J. L. Meurer - Analise Do Discurso
J. L. Meurer - Analise Do Discurso
J. L. Meurer - Analise Do Discurso
J. L. MEURER
Análise do Discurso
Florianópolis
2008
2
J. L. MEURER
Graduada (1987), mestre (1997) e doutora (2003) em Letras pela Universidade Federal de
Santa Catarina. Professora efetiva dessa mesma universidade desde 2005, onde atua nos
Cursos de Graduação em Letras – Bacharelado e Licenciatura – e Secretariado Executivo,
bem como no Programa de Pós-Graduação em Letras/Inglês – Lingüística Aplicada. Sua
área de interesse volta-se sobremodo para as linhas de formação de professores, ensino e
aprendizagem de línguas, Análise do Discurso e Lingüística Sistêmico-Funcional. Atua
em docência há 25 anos, incluindo dois anos no ensino a distância.
3
APRESENTAÇÃO
Caro(a) aluno(a):
Na verdade, alguns estudiosos dessa área, como, por exemplo, o inglês Norman
Fairclough (2001), afirmam que o discurso atualmente tem efeitos cada vez mais fortes
na sociedade. Alguns desses estudiosos, como Laclau e Mouffe (1985), chegam a afirmar
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que praticamente tudo o que acontece no mundo social atual tem alguma ligação com o
discurso. A Análise do Discurso, como você verá ao longo das discussões empreendidas
nesse livro, traz-nos embasamentos teóricos e metodológicos para melhor
compreendermos o que as pessoas fazem por meio do discurso, por que o fazem e como
organizam os diferentes discursos de forma a causar impactos desejados ou não.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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UNIDADE I
Objetivo
Ao final desta unidade, você deve ser capaz de identificar a Análise do Discurso
como uma disciplina dos estudos lingüísticos, assim como definir preliminarmente a
noção de discurso subjacente aos estudos em Análise do Discurso, reconhecendo a
perspectiva funcionalista de linguagem que perpassa os trabalhos nessa área, bem como
as origens e principais características da disciplina em questão.
Perceba que a figura é composta por um núcleo, comumente referido como núcleo
duro da ciência lingüística, no qual estão dispostos os níveis de análise lingüística, quais
sejam: fonética, fonologia, sintaxe, morfologia, lexicologia e semântica; e por raios que
determinam as disciplinas de estudos lingüísticos, dentre as quais, como mostra a figura,
incluímos a Análise do Discurso.
O que distingue os níveis das disciplinas é que os primeiros – os quais Weedwood
(2002) chama de microlingüística – tratam de questões da linguagem em si mesma, ou
seja, de sua estrutura; ao passo que as disciplinas – entendidas pela mesma autora como
macrolingüística – preocupam-se com o uso da linguagem, ou seja, com sua função
social. O que confere à Análise do Discurso, assim como às outras disciplinas, o status de
disciplina é o número expressivo de produções científicas nessas áreas do escopo
lingüístico, tanto em nível nacional como internacional.
Partimos, nas próximas seções desta unidade, para o entendimento de discurso e
de linguagem para os fins de nossos estudos. As noções que abordaremos são básicas
para a compreensão da área da Análise do Discurso, incluindo as razões pelas quais o
discurso ganhou tamanha expressividade dentro da ciência lingüística e, também, as
questões relativas a como surgiu a Análise do Discurso, em que consiste e quais as
implicações/possibilidades dessa disciplina de estudos lingüísticos. Vamos lá?
Como concebe van Dijk (1997), seria bom se pudéssemos espremer tudo o que
sabemos sobre discurso a fim de propor uma definição única, clara e objetiva. No
entanto, discurso é um termo de grande complexidade conceitual e, assim, desafia uma
definição única e objetiva. Devido à sua ligação com dimensões distintas da linguagem, a
palavra discurso adquire significados distintos.
Em consonância com a definição provisória de discurso que demos na
apresentação deste livro, é senso comum referirmo-nos a uma fala pública ou a uma fala
extensa sobre determinado assunto como discurso, por exemplo. Não raro, também nos
referimos ao discurso da mídia, ao discurso dos petistas (PT), dos democratas (DEM) e
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assim por diante. Nesses casos, discurso refere-se ao tipo de raciocínio e de idéias ou
filosofias propagadas pelas comunidades da mídia, dos petistas e dos democratas,
respectivamente.
Discurso, no entanto, para fins de estudos em Análise do Discurso, ultrapassa
essas noções de senso comum, tendo sua conceituação relacionada a, pelo menos, quatro
dimensões da linguagem: a linguagem como sistema, conhecimento, comportamento e
arte1.
Por que é importante mencionar essas dimensões da linguagem em um livro sobre
Análise do Discurso? Achamos que uma resposta possível é a seguinte: como todo o
discurso se constrói pela linguagem, ou seja, materializa-se na linguagem, todos os
discursos contêm – como parte de sua própria estrutura e identidade – elementos de cada
uma dessas dimensões. E note-se que essa característica contribui para que o discurso
seja um fenômeno altamente complexo, que desafia uma definição simples e direta, como
mencionado anteriormente. Vamos, então, a uma visão panorâmica da linguagem como
sistema, conhecimento, comportamento e arte.
A linguagem como sistema engloba os elementos que integram aquele núcleo duro
da ciência lingüística contido na Figura 1.1. Esse sistema se refere à linguagem
propriamente dita como um repertório de recursos fonológicos, léxico-gramaticais e
semânticos. Tais recursos são cruciais para o discurso na medida em que possibilitam ao
ser humano criar, reconstruir e/ou desafiar significados (representações de aspectos da
realidade), bem como estabelecer relações interpessoais. Nesse sentido, a linguagem
como sistema pode ser entendida como capacitadora, visto ser o sistema lingüístico o que
permite a expressão do conhecimento, do comportamento e/ou da arte. Em termos da
Análise do Discurso, privilegia-se, nessa dimensão, o estudo de textos com relação a
vocabulário, sintaxe e semântica, incluindo coesão e estrutura retórica, i.e., recursos que
o(a) escritor(a)/falante (ou ainda o(a) tradutor(a)) usa para indicar ao(à) leitor(a)/ouvinte
como o texto se organiza e qual é a função (ou quais são as funções) das várias partes do
texto e do texto como um todo.
1
Na Unidade III, quando tratarmos de interdiscursividade, expandiremos ainda mais a noção de discurso.
9
Finalmente, a linguagem como arte se preocupa com o caráter literário dos textos e
com os contextos em que se inserem. Essa dimensão inclui questões relevantes para o
estudo da literatura, objetivando formar profissionais da linguagem interessados em
explorar o texto literário. Essa perspectiva do estudo e análise da linguagem é, também,
essencialmente multidisciplinar – como as duas anteriores –, podendo buscar seus
subsídios teóricos em estudos literários, culturais, e mesmo lingüísticos, entre outros.
2
Semiótica é a ciência que estuda o sistema de signos como um todo – sejam eles verbais, visuais ou sonoros –, ou
seja, a atividade semiótica ocupa-se, para fins do presente livro, dos processos de construção de sentidos em situações
reais de interação social. Seguimos, portanto, a perspectiva identificada como semiótica social desenvolvida
inicialmente por Halliday (1978), e continuada por teóricos como Halliday e Hasan (1989), Kress (1989), Kress e Van
Leeuwen (1996/2006), Motta-Roth e Heberle (2007), Vian Jr e Lima Lopes (2007), Ikeda (2007), Baloko (2007),
Meurer (2007), dentre outros.
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3
Uma das vertentes do formalismo é a escola estruturalista, que se construiu a partir do pensamento de Ferdinand de
Saussure, a quem devemos as idéias contidas em Curso de Lingüística Geral (1916/2000), livro publicado após sua
morte (1913), mas registrado sob sua autoria por seus alunos e seguidores. Outra escola de pensamento de base
formalista é o gerativismo, erigido a partir dos estudos de Noam Chomsky.
12
Van Dijk
14
Para fazer Análise do Discurso, alguns princípios básicos devem ser respeitados.
São eles:
• análise do discurso como prática social: discursos devem ser entendidos como
práticas sociais e não como atividades individuais (a ser elaborado na Unidade III
– sobre a Análise Crítica do Discurso).
Pêcheux
Kress
16
Wodak
Fairclough
UNIDADE II
Objetivo
Halliday
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1 Linguagem e contexto
Figura 2.1 – Níveis ou estratos envolvidos no uso e análise da linguagem segundo a LSF
Contexto da Cultura
Contexto da Situação
Semântica
Lexicogramática
Fonologia
4
Note-se que, neste livro, usamos os termos sentido, significações e significados como sinônimos.
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representada pelo nível da semântica. Os outros níveis desse sistema complexo são os
níveis da lexicogramática e da fonologia, ambos abaixo do nível semântico, e os dois
tipos de contexto – o nível do contexto da situação e o do contexto da cultura –, ambos
acima do nível da semântica.
Quando analisamos um texto, bem como quando usamos a linguagem para
qualquer fim, estamos sempre interessados nas significações que podem ser criadas e/ou
recriadas a partir dessa interação; ou seja, nosso interesse situa-se, sobremodo, no nível
semântico. Entretanto, conforme sugere a Figura 2.1, não podemos considerar o estrato
semântico sem considerar também os níveis que estão logo acima (o contexto da situação
e da cultura) e os níveis que estão logo abaixo (a lexicogramática e a fonologia) porque,
ao fazermos uso da linguagem, utilizamos – conscientemente ou não – todos esses níveis
simultaneamente.
A interação ou interdependência entre esses níveis acontece da seguinte forma: os
elementos de ordem semântica – i.e., o potencial das significações que podemos produzir
– são realizados por meio de elementos lexicogramaticais – i.e., palavras e estruturas
sintáticas. A lexicogramática, por sua vez, é realizada por, ou materializa-se em,
elementos fonológicos, no caso da fala, grafológicos, no caso da escrita, ou espaço-
visuais, no caso de LIBRAS. Além disso, as escolhas que fazemos no nível da
lexicogramática e da fonologia/grafologia/LIBRAS – ao materializar nossas significações
– dependem do contexto da situação e do contexto da cultura em que um determinado
texto ocorre (MEURER, 2006, p. 167).
que nos conscientizemos de que, ao privilegiar certos aspectos em nossa análise, estamos
negligenciando outros. De qualquer forma, a Análise do Discurso enfatiza a presença
simultânea de todos esses estratos nos processos de construção de sentidos5.
Nas próximas páginas, vamos em busca de maiores especificações relativas às
maneiras como o contexto da situação e o contexto da cultura podem ter impacto na
materialização das significações ou sentidos realizados no uso do discurso por meio de
escolhas (conscientes ou não) lexicogramaticais. Como os termos sugerem, o contexto da
situação se relaciona aos elementos contextuais mais imediatos que influenciam o uso da
linguagem, enquanto que o contexto da cultura inclui aspectos contextuais mais
abrangentes.
5
O reconhecimento dessa simultaneidade, infelizmente, não tem acontecido em muitas práticas escolares relativas ao
estudo da linguagem. Um dos problemas sérios, no que diz respeito ao estudo de textos na escola, tem sido a
priorização do nível lexicogramatical desprovido de contexto (e.g., estudo de vocabulário e análise sintática
basicamente), desconsiderando, assim, a interdependência entre os estratos, em especial, desconsiderando a forma
como as significações se traduzem na lexicogramática (léxico e sintaxe) em diferentes contextos. Um outro problema
tem sido o estudo de textos apenas em termos dos elementos que os constituem, como se o único objetivo da lingüística
textual fosse o de descrever as partes que compõem um discurso. Voltando a aludir ao princípio de estratificação da
linguagem, e, portanto, à sinergia e à simultaneidade da realização dos vários estratos envolvidos no uso do discurso,
podemos dizer que o foco em exercícios lexicogramaticais descontextualizados na escola é um verdadeiro contra-senso.
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Dalai Lama, e é ele quem dá a topada. Podemos imaginar que, devido à capacidade desse
homem de perdoar e não se abater pelo sofrimento físico – podendo até mesmo
considerar tal acontecimento uma oportunidade divina de crescimento que lhe
proporcionaria aprimorar-se espiritualmente – ele poderia produzir um texto como:
– Obrigado, Senhor, por me permitir essa experiência em terras brasileiras!
Nossos exemplos podem ser hilariantes, mas o ponto principal que queremos
destacar é que, ao mudamos qualquer uma das variáveis do contexto da situação,
estaremos criando possibilidade de variação do registro. Para isso ficar ainda mais claro,
vejamos mais um exemplo.
Conta-se que um dia, Rui Barbosa ia passando por uma rua qualquer quando se
viu molestado pelo riso de um pequeno grupo de pessoas, um riso aparentemente sem
motivos. Diz-se que Rui Barbosa teria se voltado com certa indignação e dito o seguinte:
Por que rides? Se rides por ignorância, eu vos perdôo, mas se rides
por ignomínia, ficai sabendo que com a vossa hipocrisia não
chegareis a atingir o ínfimo das profundezas telúricas e cósmicas as
quais, com a minha perseverança e perspicácia, eu conduzi para o
pico da minha sabedoria.
As pessoas não teriam entendido quase nada e riram ainda mais, ao que Rui
Barbosa continuou, assim:
Hasan
Essa re-elaboração das noções de campo, relações e modo pode ser representada
conforme se vê na Figura 2.2.
24
+
institucionalizada
Natureza da
CAMPO atividade –
Atividade não-institucionalizada
social
hierárquica (+)
Relação de
RELAÇÕES poder não-hierárquica (– )
Papéis dos
agentes
máxima (+)
Distância social
mínima (+)
auxiliar
Papel da
linguagem
constitutivo
ativo (i.e. dialógico)
Compartilhamen
to do processo passivo (i.e. monológico)
MODO
fônico
canal
gráfico
falado
meio
escrito
( 1 ) M: venham aqui . a primeira criança – então o que eu quero que vocês façam é um
exame básico neo-natal . exatamente como o Dr. Matthews tem que fazer logo
que um bebê chega no berçário . então tá vocês vão ter que realmente tocar na
criança . e expliquem ao grupo o que estão fazendo mostrando os pontos básicos
a serem examinados você gostaria de tentar? . pode começar
( 2 ) A: bem primeiro de tudo eu vou ( )
primeiro . antes disso
( 3 ) M: você tem que lavar as mãos não é . porque você acabou de examinar outro bebê
(longo silêncio) você ainda está em você já está pronto para começar o exame ( )
(4) A: só vou remover isso .
(5) M: muito bem . o problema é colocar de volta não é –
(6) A: volte mãe –
(7) M: tá certo . OK agora mude a posição do bebê para abrir mais espaço . é ali em .
cima um pouco mais muito bem . agora . pode começar a descrever o que está
acontecendo.
( 8 ) A: bem aqui temos um menino . que nós decidimos que tem . trinta . trinta e sete
semanas de vida agora . nasceu . há duas semanas . é bem ativo . os é olhos dele
estão abertos . ele tem cabelo . a cabeça dele . os olhos estão abertos
( 9 ) M: sim você já disse isso
Fonte: “The Boys from Horseferry Road”, Granada Television 1980. Citado em Fairclough, N.
(1989, p. 44-45). Language and Power. New York: Longman. Traduzido por Juliana Barboza
Bittencourt.
26
CAMPO:
Atividade social: parte de uma aula neonatal ministrada para alunos de medicina
ou de enfermagem. Poderia ser uma aula para mães de primeira viagem, mas eles
estão supostamente examinando vários bebês e utilizam termos técnicos.
RELAÇÕES:
Papel dos agentes: professor - médico(a) ou enfermeiro(a); aluno (de medicina ou
enfermagem).
Distância social: tendendo ao máximo. A pessoa com mais poder parece ser até
mesmo rude algumas vezes e a outra não reclama. Esse comportamento mostra
claramente como o contexto se inter-relaciona com as opções de comportamento
lingüístico.
MODO:
Papel da linguagem: constitutivo no sentido de que é essencial para que a
atividade aconteça, para que expliquem o que estão fazendo, o que precisa ser
feito. Ao mesmo tempo, a linguagem é auxiliar, no sentido de que faz parte da
atividade que está se desenvolvendo.
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Canal: fônico, visto tratar-se de um diálogo oral que foi transcrito, como se
percebe pelas pausas, hesitações e sobreposições de fala.
6
O processo de nominalização transforma sujeito, verbo e complemento em substantivos, como, por exemplo, na
transformação de “A polícia matou 119 prisioneiros no Carandiru” por “A matança no Carandiru”.
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Um gênero textual é, antes de mais nada, um tipo de texto. Pode ser tanto escrito
como falado e pode vir acompanhado de outros recursos semióticos como imagens, sons,
música. Muitas vezes, reconhecemos o gênero automaticamente ao ler ou ouvir apenas
um dos seus componentes. Por exemplo, quando lemos ou ouvimos “era uma vez um
príncipe…”, já sabemos que estamos diante de um conto de fadas – um gênero textual ao
qual muitos de nós fomos expostos quando crianças bem pequenas. Mais dois exemplos:
quando lemos
“Prezado Sr. Paulo Gonçalves…”
ou
sabemos que provavelmente se trate dos gêneros carta comercial e capítulo de livro,
respectivamente.
Os gêneros, de forma semelhante aos três exemplos que acabamos de mencionar,
normalmente têm um nome. Vejamos mais alguns nomes de gêneros: entrevista, convite,
ata, aviso, programa de auditório, briga de namorados, bula, comédia, convênio, faroeste,
filme de terror, crônica, editorial, ementas, e-mail, circular, contrato, decreto, discurso
político, história, instrução de uso, lei, notícia, novela, oração, parecer, piada, poema,
portaria, projeto, receita, regimento, relatório, reportagem, encontro de serviço,
requerimento, resenha, romance, sermão, sumário, telegrama, palestras e artigo científico.
Segundo Bakhtin (1992), interagimos por meio de um determinado gênero, o que
acontece em uma determinada esfera social. A esfera social associada aos gêneros, da
perspectiva da LSF que estamos utilizando neste livro, é o contexto da cultura. Esse nível
do contexto, como sugere a Figura 2.1 apresentada na primeira seção desta Unidade,
estende-se para além do contexto da situação e corresponde às estruturas sociais mais
amplas que influenciam os textos e podem ser por eles influenciadas7. É dentro do
7
Para saber mais sobre o contexto da cultura e como se relaciona com gêneros textuais, você pode ler o trabalho de
Meurer (2006).
29
Bakhtin
9
Além dessas duas definições, os gêneros podem ser estudados sob muitos outros ângulos, como pode ser visto, por
exemplo, nas onze diferentes abordagens contidas na coletânea organizada por Meurer, Bonini e Motta-Roth (2007).
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Uma das tarefas centrais do analista do discurso – e essa tarefa responde às duas
perguntas formuladas anteriormente – é estabelecer para cada gênero textual as unidades
de análise e especificar as suas funções. Cremos que os gêneros textuais são as unidades
maiores, com funções mais ou menos específicas, sobre as quais a Análise do Discurso se
debruça. Cada gênero, por sua vez, pode se compor de unidades menores que o
constituem, cada uma delas exercendo uma determinada função comunicativa.
Em termos de sua classificação como gênero, a história transcrita anteriormente é
chamada de narrativa pessoal. Vamos analisar, especificamente, a sua função
comunicativa e a sua organização retórica.
A função comunicativa das narrativas pessoais, ou seja, o que as pessoas fazem
com esse gênero textual, é, entre outras coisas, recordar e expressar verbalmente eventos
ou episódios ocorridos no passado e talvez entreter aqueles(as) que ouvem as narrativas.
Se consideramos que as pessoas fazem alguma coisa com as narrativas, nesse sentido as
narrativas pessoais são parte da linguagem como forma de comportamento, de acordo
com a noção que vimos na Unidade I. Mais à frente, no capítulo sobre Análise Crítica do
Discurso, veremos que as narrativas pessoais – e, na verdade, todos os textos – podem ter
outras funções comportamentais além da expressão verbal de eventos. Veremos, então,
novas funções cruciais da linguagem sobre as quais reincide a Análise do Discurso,
incluindo, por exemplo, questões de identidade e relacionamento.
A organização retórica, por sua vez, diz respeito à questão das unidades
constituintes dos gêneros. Ao descrevermos essas unidades de um texto determinado,
estaremos descrevendo a sua organização retórica – uma das possibilidades da Análise
do Discurso, entre as suas múltiplas aplicações no estudo da linguagem. Além disso,
como veremos, cada unidade tem também uma função específica.
O que vem a ser a organização retórica? Podemos dizer que é a maneira típica em
que um determinado texto é organizado por quem o constrói. É a maneira como um texto
é composto em unidades funcionais, ou estágios, de modo a formar um todo coerente.
Quem lê um texto, assim como quem o analisa, compreende-o melhor ao reconstruir a
sua organização, como mostram, por exemplo, trabalhos de pesquisadores em leitura
(TOMITCH, 1996).
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Mas será que a narrativa pessoal veiculada anteriormente – que à primeira vista dá
a impressão de ser bastante desorganizada – apresenta uma organização retórica? A
resposta é um sim enfático, sem qualquer vacilação. Vamos ver isso, então!
Com base em estudos feitos pelo sociolingüista estadunidense, William Labov,
nos anos 1960, que gravou e analisou uma grande quantidade de narrativas semelhantes,
produzidas por adolescentes em Nova Iorque, podemos descrever a organização geral da
“história do fusca que a mulher foi em cima” em seis unidades, ou estágios. São eles:
resumo, avaliação, orientação, ação complicadora, resolução e coda. Cada um desses
estágios tem uma função, isto é, tem um papel – faz alguma coisa – em termos da
intenção – ou valor comunicativo – da história. Vamos detalhar primeiramente os
estágios que materializam a organização retórica da narrativa para, depois, analisarmos a
função de cada um desses estágios, ou seja, o papel que desempenham na totalidade
dessa narrativa pessoal.
Labov
Estágios:
(e) Ai, aquela rua que sai dos servidores, que tem aquela |
bomba de gasolina agora, que a gente entra ali. |
Aquela rua ali. |
(f) Vinha passando ali. |
(g) Tinha dois carros. |_
(q) Agora eu não sei, se foi milagre, ou foi devoção que | Avaliação
eu tenho, a fé que eu tenho em muitas coisas |_
(u) Foi só. A única coisa, que aconteceu na minha vida. | Coda
Né? Mais nada. |_
Eis a contracapa:
(Harry Potter and the Sorcerer’s Stone, J. K. Rowling, 1997, tradução da aluna)
35
10
A noção de Estrutura Potencial do Gênero (EPG), desenvolvida por Ruqaiya Hasan (ver Motta-Roth e Heberle,
2007), estabelece que, nem sempre, todos os estágios de um gênero necessariamente ocorrem em todas as suas
instanciações. Daí o termo potencial.
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Hogwarts. Elementos desse gênero, entretanto, ocorrem nas contracapas dos romances
seguintes da série, ao mencionar professores, aulas, treinamentos etc.
Tomando todos esses aspectos em consideração, é possível dizer que a contracapa
de Harry Potter e a pedra filosofal atinge o objetivo de apresentar o livro de maneira a
atrair a atenção dos leitores, incentivando-os a querer comprá-lo. A descrição da história
parece cativar a atenção e a curiosidade do(a) leitor(a), por meio do uso de palavras e
expressões coerentemente relacionadas ao gênero híbrido do romance em si e aos
elementos aparentemente convencionais de uma contracapa.
Perceba que o que fizemos anteriormente, na análise da narrativa pessoal, foi um
trabalho essencialmente descritivo. Há alguns anos, alguns estudiosos da linguagem, por
exemplo, Beaugrande e Dressler (1981), no exterior, e Koch (1989), Koch e Travaglia
(1990), seguidores seus no Brasil, referiam-se a esse tipo de estudo de textos como
lingüística textual ou lingüística do texto (incluída na Figura 1.1). Entretanto, existe um
consenso entre professores e pesquisadores na área do discurso, inclusive os que se
ocupavam da lingüística textual citados acima, em seus trabalhos mais atuais, de que é
necessário ir além da descrição – como já comentamos na Unidade I, ao mencionarmos
as perspectivas críticas e não-críticas da Análise do Discurso. E, como se pode ver no
mapa conceitual desta disciplina, a organização retórica é apenas um dos focos de
atenção da Análise do Discurso.
Nesse sentido, a análise da contracapa que também apresentamos extrapola o nível
da descrição ao oferecer nuances interpretativas, em especial no que tange à hibridização
contida na série dos livros de Harry Potter. Ainda assim, esse avanço não contempla a
postura crítica que desenvolvemos na Unidade III.
Em que pese a salutar diversidade na abordagem aos gêneros, concordamos com
Miller (ver CARVALHO, 2007) em sua argumentação acerca da necessidade de ver os
gêneros textuais como uma forma de prática social, ou seja, como uma forma de ação, ou
ainda, para voltarmos aos termos utilizados em nossa pergunta, como uma forma de fazer
alguma coisa com a linguagem.
Assim, como vimos nas análises da narrativa pessoal e da contracapa veiculadas
anteriormente, o que as pessoas fazem com esses tipos de texto é narrar fatos do passado
e entreter pessoas, e incentivar a compra do livro, respectivamente. Para isso, organizam
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o gênero em estágios, sendo que, em cada um deles, fazem também alguma coisa, o que
implica dizer que cada estágio tem uma função que, por sua vez, coopera para o sucesso
da função geral do gênero.
Todavia, a função dos gêneros, como já sugerimos anteriormente, não é apenas
comunicativa. Há outras coisas que as pessoas fazem semioticamente, por meio da
criação de significados, em diferentes gêneros. Para entendermos isso melhor, vamos
entrar na Análise Crítica do Discurso.
Nossa próxima Unidade enfoca, além dos conceitos, objetivos e características de
que “falamos” brevemente ao final da Unidade I, o modelo tridimensional para a Análise
Crítica do Discurso proposto por Fairclough (1989, 1992), o que faremos aludindo
novamente à Lingüística Sistêmico-Funcional hallidayana, a qual, como já vimos, propõe
construtos a partir dos quais faz-se possível mapear relações de poder e recursos
lingüísticos e, por isso, tem sido usada como uma ferramenta de análise crítica.
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UNIDADE III
Objetivo
Ao final desta unidade, você deve ser capaz de identificar os objetivos da Análise
Crítica do Discurso, bem como as dimensões em que se pode realizar essa análise,
reconhecendo a relação entre linguagem e poder e entre discurso e mudança social. Você
também deve ser capaz de perceber que o discurso é uma prática social que cria, reforça
ou desafia conhecimentos/crenças, identidades e formas de relacionamento.
discriminação, abuso de poder, enfim questões que geram desigualdade social. Desse
modo, a análise crítica visa, também, expor as ideologias das(os) produtoras(es) de
discurso a partir de suas práticas discursivas para, então, trabalhar na luta contra essa
desigualdade com vistas a promover mudança social. Subjacente a esse objetivo está a
crença, já referida, de que há uma relação intrínseca entre discurso e estrutura social. Tal
crença implica que o discurso se relaciona a formas de poder (cf. Fairclough, 1989) e
ainda a formas de continuidade ou mudança social (Fairclough, 1992, 2001). Essa
perspectiva nos remete à noção de que o discurso não é neutro, visto que, ao se interligar
a estruturas sociais, vincula o comportamento lingüístico à ideologia. Há, portanto, um
estreito imbricamento entre discurso, formas de poder e ideologia. A Análise Crítica do
Discurso empenha-se em expor tal imbricamento e, em especial, aqueles que passam
despercebidos – como senso comum.
Parece complicado? Não se preocupe, vamos trabalhar todas essas informações de
forma mais detalhada nas seções que agora seguem.
não tomar as rédeas dessa educação. As crianças, por sua vez, crescem ouvindo esses
discursos e internalizando esse tipo de prática (e de ideologia), o que termina por
contribuir para perpetuarem esses mesmos discursos e práticas sociais, ou seja, as pessoas
continuam usando esse tipo de discurso – e acreditando nele – tanto quanto agindo de
forma a perpetuar esse tipo de prática.
Por outro lado, no entanto, podemos, por meio do discurso, desafiar essa prática
social se passarmos a fazer uso de construções lingüísticas como “Meu marido e eu nos
ajudamos muito na educação de nossos filhos” ou ainda “Meu marido é injusto quando se
trata da educação dos nossos filhos, não porque não faz nada, mas porque se acha
fantástico por dividir as responsabilidades comigo; como se isso fosse meu encargo”.
Note que, por meio desses tipos de prática discursiva, as crianças crescerão percebendo
que a educação dos filhos é uma responsabilidade conjunta ou que, se não o é, deveria
ser. Assim, práticas sociais tendem a ser modificadas mediante a instauração de novas
práticas discursivas. É exatamente aí que entra a relação entre linguagem e mudança
social.
Não podemos esquecer, ainda, que a mudança social não necessariamente será
motivada pelo discurso, mas também pode o ser pela própria prática social. Se
observarmos, por exemplo, à nossa volta, casais que se ajudam na educação dos filhos,
haveria uma mudança de prática antecipando – ou desafiando – a mudança de discurso.
De qualquer forma, importa enfatizar que as práticas discursivas e as práticas sociais têm
um inter-relacionamento bidirecional: ambas influenciam e são influenciadas
mutuamente.
Você ainda pode estar se perguntando em que medida essas mudanças citadas
acima podem tornar-se efetivamente desafios, já que, muitas vezes, as pessoas sequer se
dão conta dos efeitos sociais que o uso de linguagem pode acarretar. No entanto,
queremos chamar sua atenção para o objetivo da ACD referido no parágrafo inicial desta
unidade. Como ‘dissemos’, é papel dos analistas críticos do discurso expor ideologias
ocultas por detrás do discurso a fim de tornar o maior número de pessoas possível
conscientes de que nem tudo que é senso comum é natural, mas sim naturalizado por
tradições e convenções sociais que, via de regra, perpetuam relações assimétricas de
poder. Assim, quando as práticas discursivas forem percebidas – explicitamente expostas
42
“Mais uma vez, o time de voleibol masculino do Brasil conquistou o título mundial”.
entendimento de que esse título não veio de graça; foram necessários esforço, luta,
dedicação, comprometimento, motivação, entusiasmo, trabalho em equipe etc. Como
você pode perceber, esse simples comentário parece indicar que, em nossa visão de
mundo, aspectos como os acima citados são, conscientemente ou não, apreciados e
valorizados; ou seja, por meio desse texto vocês já conhecem alguns de nossos valores e
crenças e, grosso modo, um pouquinho de nossa identidade e de formas de
relacionamento que apreciamos. Não é comum, no entanto, depararmo-nos com pessoas
que param para pensar e refletir acerca do que dizem, ouvem ou fazem. Via de regra, não
nos damos conta de que nossas ações e nossos discursos – por mais simples que sejam –
têm reflexos na formação de indivíduos e de estruturas sociais; e é desse modo que
(re)constituímos o mundo em que vivemos, reforçando ou desafiando a realidade, assim
como nossas identidades e relações sociais.
Você pode estar se perguntando por que colocamos itálico na palavra realidade no
parágrafo anterior. Nossa resposta é, ao mesmo tempo, simples e complexa. É simples na
medida em que acreditamos que o que é verdade para você pode não o ser para nós, por
exemplo, ou vice-versa. Todavia é complexa por sua relação com ideologia, noção de que
já tratamos anteriormente, mas que retomamos agora com um pouco mais de
profundidade, visto já termos avançado um pouco mais em nossas discussões.
Ideologia, para os fins dos estudos em Análise Crítica do Discurso, refere-se ao
sistema de conhecimento, pensamento, valores e crenças que as pessoas constroem ao
longo de sua história por meio de suas interações sociais com o outro; e é esse sistema
que nos faz ter uma determinada representação do real.
Se esse sistema, como referimos acima, constrói-se por meio de nossas interações
com o mundo que nos rodeia, então ele pode ser entendido como uma construção social,
uma vez que, muito provavelmente, a forma como cada um de nós vê o mundo reflete a
forma como aqueles que pertencem ao nosso meio social vêem o mundo. Isso porque
foram essas as pessoas com quem interagimos ao longo de nossa história.
Isso explica, por um lado, por que membros de um mesmo grupo social tendem a
compartilhar idéias semelhantes a respeito de certos aspectos da realidade e, por outro,
por que grupos sociais distintos tendem a diferir em seu modo de ler o mundo.
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11
Os grupos e organizações que representam o interesse de minorias beneficiadas por ações afirmativas de inclusão
social provavelmente terão orientação ideológica diferente a respeito da alocação de vagas para estudantes de classes
socioeconomicamente desfavorecidas.
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A preocupação social da teoria de ACD que adotamos tem por pressuposto o fato
de que, em sociedades democráticas, a distribuição de poder é uma questão mais
persuasiva e de consentimento do que coerciva (FOUCAULT, 1972; VAN DIJK, 1997).
A persuasão e a produção de consentimento são exercidas, antes de mais nada, por meio
de verdades veiculadas discursivamente, o que tem contribuído para a importância do
discurso na constituição da sociedade, como enfatizamos na apresentação a este material.
O crescimento do discurso como um fenômeno constitutivo de sistemas de conhecimento,
identidades e relações legitima os empreendimentos de conscientização propostos pela
ACD.
Uma das suposições da análise crítica do discurso é a de que qualquer texto pode
ser analisado criticamente, concebendo a análise textual como a descrição e a
interpretação não somente do conteúdo dos textos, mas também de sua forma lingüística
(textura), o que remete à sua face lingüisticamente orientada. Queremos dizer com isso
que representações distintas de um dado conteúdo envolvem diferentes formas
lingüísticas e vice-versa. Assim, forma e conteúdo não podem ser dissociados, visto
tratar-se de “frente e verso de uma mesma moeda”.
Dessa forma, Fairclough (1992) propõe uma análise de discurso em que se
investigam as dimensões textual, discursiva e social (Figura 3.1). A investigação dessas
dimensões se dá separadamente, mas com o intuito de, posteriormente, inter-relacioná-las
na tentativa de especificar a forma como os significados são lingüisticamente construídos
e, por fim, chegar ao objetivo principal da ACD, que é desnaturalizar o naturalizado e
promover mudança social e emancipação.
TEXTO
PRÁTICA DISCURSIVA
PRÁTICA SOCIAL
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Desse modo, na ACD, não podemos referir a características de um texto sem fazer alusão
aos processos de descrição (texto), interpretação (prática discursiva) e explicação
(prática social). É a partir dessa integração das três dimensões que podemos verificar
como a linguagem e os processos de ordem social se entremeiam. Aqui se verifica uma
preocupação semelhante entre essas duas áreas de estudos da linguagem – LSF e ACD –
e se justifica a integração das duas para os objetivos deste livro.
Concordamos com os preceitos teóricos acima registrados de que cada uma dessas
dimensões analíticas é indispensável para uma análise de discurso que se proponha
social, visando à conscientização dos usuários de linguagem quanto à característica
potencialmente manipuladora do discurso.
4 Um exemplo de análise
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Exploraremos essa perspectiva em maior detalhe ao falarmos de discurso como prática social, pois visões individuais
tendem a ser influenciadas pelas estruturas sociais nas quais os indivíduos se inserem. De acordo com vertentes de
análise do discurso de linha francesa, a noção de individualidade é uma ilusão (por exemplo, Grigoletto).
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Note-se que tanto a ACD quanto a LSF possuem níveis de análise de profundidade maior e mais detalhada do que a
análise simples e de caráter ilustrativo que aqui apresentamos.
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Não há uma determinação de que a análise seja feita na ordem em que estamos fazendo. Trata-se de uma opção.
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EU ODEIO SEGUNDA-FEIRA
SENSOR PROCESSO MENTAL FENÔMENO
ESSE É O DIA
IDENTIFICADO PROCESSO RELACIONAL IDENTIFICADOR
transmitir algo que o(a) recebedor(a) precisa saber. No entanto, quando se trata de
informação cujo conteúdo já é do conhecimento do(a) recebedor(a), essa informação
pode adquirir outros sentidos, além daquilo que é dito/escrito. Achamos que uma das
intenções da tirinha, ao dar uma informação já conhecida, é entreter leitores(as).
Além disso, o texto faz mais, pois, por meio da linguagem, podemos estabelecer
relações sociais simétricas/assimétricas de simpatia/antipatia, solidariedade/antagonismo,
amor/ódio, amizade/desprezo, cooperação/competição, entusiasmo/apatia, certeza/dúvida,
alegria/tristeza, contentamento/raiva, aceitação/rejeição, aproximação/distanciamento,
dentre tantas outras.
O tipo de relações que estabelecemos pode revelar algo sobre nossa identidade e,
também, sobre como vemos a identidade do outro. Essas duas perspectivas interpessoais,
por sua vez, estão estreitamente ligadas a formas de conhecimentos e crenças –
significados ideacionais – que internalizamos ao longo de nossa vida.
Que relações sociais são estabelecidas na tirinha de Garfield, além de
proporcionar entretenimento? Sob o ponto de vista da relação entre o gato e o objeto de
atenção do seu texto (segunda-feira), as afirmações do nosso personagem parecem revelar
uma relação de ódio com a segunda-feira, com o trabalho, com a escola e, especialmente,
com as dietas.
A análise, nesse nível focaliza o modo verbal, que pode ser de três tipos:
afirmativo, interrogativo e imperativo. Interessa, no momento, saber que o uso desses
modos verbais posiciona tanto o(a) falante/escritor(a) como o(a) ouvinte/leitor(a).
Sob o ponto de vista do seu relacionamento com o grau de verdade do seu texto, o
gato é categórico (não há qualquer atenuação ou modalização), estabelecendo, assim, um
alto grau de certeza quanto ao seu posicionamento. Essa certeza – evidenciada
lingüisticamente pelas afirmações categóricas de Garfield – contém uma ambigüidade
interessante quanto ao seu direcionamento. Por um lado, pode estar relacionada às
próprias crenças do gato preguiçoso e afeito a um bom prato de lasagna, como se ele
quisesse reafirmar essa verdade a si próprio. Por outro, pode relacionar-se ao leitor, na
medida em que Garfield, ao se apresentar como autoridade no assunto, parece tomar
como fato que o(a) leitor(a) compartilha a sua visão de mundo. Nesse sentido, Garfield
estabelece uma relação de cooptação do(a) leitor(a).
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se coadunam. Por essa razão, entre outras, justifica-se a noção de tema e rema. Observe a
seguinte oração, a título de ilustração:
Perceba que o elemento lingüístico que inicia a oração não é o sujeito, e sim uma
circunstância. Ainda assim, esse elemento constitui o tema da oração. A função do tema
não é nos dizer quem é o sujeito ou quem pratica a ação, mas sim indicar qual o elemento
da oração que está sendo salientado como ponto de partida. O conjunto de temas de um
texto, portanto, sugere o seu foco de atenção.
Vamos ao Garfield!
EU ODEIO SEGUNDA-FEIRA
TEMA REMA
ESSE É O DIA
TEMA REMA
Como percebemos nos quadros acima, os temas são: eu (Garfield), esse (segunda-
feira), as pessoas, as crianças, as dietas. Esses temas por si só sugerem que o elemento
central do texto com um todo é eu. Esse tema se relaciona – por meio dos processos –
com os demais temas. Temos, pois, uma visão geral do foco de atenção do texto.
É interessante observar a tematização de dietas no papel de agente de uma oração
material – as dietas começam, ao invés de eu começo uma dieta. Essa textualização dá
saliência à dieta, atribui-lhe a função de agente e, dessa forma, constitui Garfield como
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vítima. Por ocasião da análise sob o ponto de vista da prática social, voltaremos a esse
aspecto, relacionando dietas e boa forma física a questões de ideologia e poder.
Com relação à dimensão textual do modelo tridimensional da ACD, acabamos de
analisar aspectos lexicogramaticais responsáveis pela realização das três metafunções
semânticas: ideacional, interpessoal e textual. Resta ainda lançarmos um olhar acerca do
papel da coesão e da estrutura de texto. Vamos fazer isso agora brevemente.
Coesão significa o estabelecimento de ligações semânticas entre os elementos que
se encadeiam em um determinado texto. O estabelecimento de um elo coesivo se dá
quando interpretamos um elemento do texto com base em outro elemento que já ocorreu
ou que ainda ocorrerá. Assim, no texto de Garfield, entendemos que as orações
encaixadas que qualificam esse dia (segunda-feira), quais sejam as pessoas voltam ao
trabalho, as crianças voltam à escola e as dietas começam, referem-se todas,
coesivamente marcadas pela conjunção que, a segunda-feira. O texto não faz sentido sem
a (re)construção dessa cadeia coesiva. Em termos de ACD, a coesão pode oferecer
aspectos interessantes ao estudo de textos no sentido de que a escolha dos elos coesivos
que dão continuidade a um texto pode revelar posicionamentos dos(as)
falantes/escritores(as), tanto derrogatórios quanto favoráveis.
Para encerrarmos esta parte de análise, referimo-nos agora à estrutura textual.
Esse é um termo sinônimo à organização retórica que usamos na Unidade II por ocasião
da discussão de gêneros textuais. Sugerimos a você que retorne àquela Unidade a fim de
verificar como se pode realizar tal análise. Reiteramos, no entanto, que cada gênero tende
a caracterizar-se por uma seqüência relativamente típica de estágios que constituem a sua
organização retórica. Nesse sentido, não espere encontrar em uma tirinha cômica os
mesmos estágios que convencionalmente constituem uma narrativa pessoal.
Acrescentamos, ainda, que alguns gêneros têm uma estrutura retórica mais
convencionalizada e constante do que outros. Até onde sabemos, não há pesquisas que
indiquem um grau de padronização de tirinhas em termos de sua estrutura. No entanto,
podemos nos aventurar a afirmar que a presente tirinha vale-se da estrutura retórica
situação-avaliação-base (WINTER, 1977; 1982), usada em muitos gêneros.
Especificamente, a situação é segunda-feira, a avaliação é o sentimento de ódio que
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Garfield expressa sobre esse dia e a base para esse sentimento é que esse é o dia em que
pessoas voltam ao trabalho etc.
criada, reforçada e legitimada por meio do discurso da forma física veiculado na mídia,
entre outros ambientes de comunicação. Esse discurso não somente expressa valores do
que poderíamos chamar de instituição da boa forma física, como também demanda
comportamento tanto lingüístico quanto físico que se encaixem nos padrões desse
discurso. Temos, então, nessa simples tirinha, reforçado o culto ao corpo magro e esbelto.
Concluímos nossa análise da dimensão prática discursiva sugerindo a você que
relembre um dos preceitos fundamentais que temos enfatizados a respeito do uso da
linguagem: fazemos coisas, praticamos ações, enfim, agimos por meio do discurso. Se
você algum dia sentiu necessidade de fazer dieta, isso se deve, em grande medida, a
significações produzidas discursivamente.
outro lado, o texto exerce poder sobre seus(suas) potenciais leitores(as) no sentido de
reforçar neles(as) a expectativa desses comportamentos naturalizados.
Independentemente do texto de Garfield, pode-se dizer que todo o discurso
procura, de alguma forma, colonizar indivíduos e outros discursos, alinhando suas
percepções e formas de comportamento às formas de percepção e comportamento
aprovados por aquele discurso. Esses alinhamentos podem gerar tanto benefício quanto
prejuízo para os indivíduos. Daí depreende-se a importância da consciência lingüística e,
por via de conseqüência, da análise do discurso. É crucial procurar conhecer que formas
de discurso veiculam que verdades em benefício e em prejuízo de quem. Nesse sentido, a
análise do discurso pode ter efeito emancipatório.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Professores e Tutores
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