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Wesley e a experiência cristã

Rui de Souza Josgrilberg*

Resumo

O sentido da experiência cristã para Wesley revela a grande importância que ele deu
à vida como fonte concreta da teologia. Ao mesmo tempo em que o texto aponta
essa importância atribuída à experiência de fé, indica também os cuidados e cautela
com as quais Wesley trata a experiência. Se a experiência tem o privilégio no
entrelaçamento com a mensagem bíblica, ela não tem a prioridade no julgar e em
orientar a vida. A experiência, nesse caso deve ser conjugada às outras fontes da
teologia wesleyana. Sem discernimento a experiência pode corromper-se e não
amadurecer. Isso nos abre um horizonte de compreensão para as muitas distorções
que a experiência cristã está hoje sujeita, imersa num mundo de mercado religioso,
determinado por uma máquina global.
Preliminares

John Wesley valorizou a experiência religiosa. [1] Entretanto, foi cauteloso.


Essa cautela é importante ainda hoje. A experiência pessoal é vista como ponto de
partida e depende de orientação como alimento para a vida cristã como um todo. A
experiência cristã especial não é uma forma de sensualismo ou hedonismo religioso
que deve ser repetida a todo o momento. Num tempo em que muitos cristãos buscam
respostas para suas crises, a experiência religiosa mal compreendida e mal orientada
serve, em muitos casos, para exploração de modo incompatível com o evangelho.
Wesley colocou a experiência viva do cristão com Cristo como motivação para o
caminho. Não transformou sua própria experiência em um fim em si mesma; poucas
vezes se refere a ela, e quando o faz revela que a experiência abre um horizonte de
missão, de trabalho, de amadurecimento. A experiência não se fecha em si mesma,
nem trata de criar um círculo recorrente em torno dela. Outros critérios são essenciais
para que não seja reduzida a um produto de consumo.

*
Reitor e professor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião/Umesp.
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Em um mundo massificado, a valorização da pessoa é essencial. No fundador


do movimento Metodista a experiência pessoal, com toda a sua importância, é
solidária com o corpo de Cristo e com a vida. O próprio Cristo e a Igreja são solidários
com a humanidade. O "próximo" concretiza essa solidariedade. O valor da experiência
pessoal, em Wesley, encontra a sua forma de realização na vida solidária da
comunidade cristã, tanto dos pequenos grupos bem como da grande humanidade (“O
mundo é minha paróquia”). A experiência cristã de estilo wesleyano inclui o eclesial e
o social. A experiência cristã com Cristo não visa a sua repetição circular, mas
associada a outros critérios de vida cristã, reconhece o caminho e a missão, cresce
por meios de graça ordinários recomendados por Cristo e os apóstolos.
Vivemos uma época de crise que se sintetiza em uma máquina global que
atinge todas as dimensões da vida. Essa máquina global tem seu poder baseado em
princípios do sistema financeiro internacional (capitalismo financeiro), na posse dos
processos de produção científica e de técnica de ponta, no controle de mercados e na
capacidade de produção competitiva. Através dos meios de comunicação de massa,
tornou-se no mais poderoso meio de transformação da vida humana. Transformações
muito rápidas criam novos desafios, dilemas humanos, déficit ético, novas formas de
opressão e de exclusão. A experiência cristã de conversão freqüentemente é cooptada
pela máquina, o que exige de nós um novo exame de seu sentido e propósito. A
experiência religiosa pode ser transformada em um produto passa a ser gerenciada
com o fim de cativar uma clientela que consome experiência religiosa. Em meio a uma
situação grave de confusão espiritual no interior da máquina, temos de discernir não
só o que se opõe ao evangelho, mas, também, aquilo que é só aparência de
evangelho. Jesus e Paulo, especialmente, conviveram com este risco e deixaram
muitas observações de cautela.
1. O Espírito Santo e a experiência cristã em Wesley

De início queremos observar que Wesley vê na experiência cristã (segundo sua


própria linguagem) uma face interior e outra face exterior. Sem perder de vista a face
exterior, a face interior oferece, segundo Wesley, um impulso interno para o
reconhecimento da presença e da ação de Deus. O conhecimento da fé necessita
deste impulso, além da razão e outras fontes ainda mais decisivas, como a Bíblia, por
exemplo. Mas, este impulso inicial é fundamental. Por ele chegamos a um
reconhecimento interno, a um convencimento da graça pelo Espírito de que Deus está
agindo em nós e fora de nós, livremente.
Wesley fala de um cristianismo experimental ou cristianismo prático e pensa a
Teologia como Teologia prática. Atento e crítico, observou que uma teologia da
experiência cristã está cercada de dificuldades. Nem por isso a renunciou. Durante
mais de 60 anos, nos narra Wesley em seu Diário, foi observador atento das mais
variadas formas de experiência religiosa por todo o Reino Unido. Constatou inúmeros
desvios e defendeu um amadurecimento dessa experiência. Contestado, ele foi
obrigado a defender o “cristianismo experimental” crítico. Não padronizou nenhum

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modelo de vida cristã. Valorizou as experiências “especiais”, tanto como as que


chamou de “ordinárias”. Reconheceu a conversão “instantânea”, igualmente
valorizada como a “gradual”. O que lhe causou maiores preocupações foram
distorções que a experiência cristã pode sofrer, enganos e falsificações. Combateu a
inflação do ego, a intoxicação, a corrupção do “espírito”, mesmo por meios
“piedosos”. A experiência cristã para Wesley oferece motivações para um caminho,
mas não é o caminho: os cristãos metodistas teriam que trabalhar, orar, estudar, para
fazê-lo de modo lúcido. Valorizou a razão. A experiência cristã não visa a sua
reprodução contínua (como se fosse ela o caminho), mas o seu desdobramento e
amadurecimento no tempo. Em síntese, a experiência cristã para Wesley não julga, é
julgada e desenvolvida: não mede, é medida; não fornece os critérios de orientação
quando se trata de direção, doutrina. Sua função, segundo Wesley é, além da
confirmação e testemunho da fé, sinal e não fim, horizonte de trabalho e não
chegada. Quando ocupa o centro, perde a sua essência, testemunha a si mesma, a
vida se transforma em busca da experiência pela experiência, auto-satisfação e
hedonismo religiosos.
Wesley pressupõe, pois, um conhecimento vivido da fé, uma experiência viva
daquele que nos move. Ela amplia o princípio de Calvino do “testimonium Spiritus
Sancti internum” (testemunho interno do Espírito Santo) da interpretação da Bíblia,
em sentido confirmatório, aplicando-o à experiência cristã como um todo. A
subjetividade do cristão é dependente aqui do “Outro” que é o Espírito – a experiência
acontece, pois, como uma confirmação da presença do Espírito em nós, confirmando,
também, o que Deus faz de outros modos fora de nós. Não há confusão entre o
Espírito e o nosso espírito (Rm 8.16). A experiência cristã não é só um fluxo de
vivências emotivas, mas marcas da ação de Deus que nos propõe um caminho que
deve ser visto e seguido por outros passos. Não é só nosso interior, pois corremos o
risco de atribuir a Deus as nossas fraquezas e ilusões. O Espírito Santo em nós
confirma e convence, cria um vínculo (o espírito é “vínculo do amor”) com outras
formas manifestas da verdade divina, como a Bíblia, o testemunho histórico da Igreja,
a razão humana. O Espírito Santo é comunhão com a verdade. A objetividade do
nosso conhecimento da fé não provém fundamentalmente, pois, da experiência cristã:
a experiência Cristã necessita de, outras formas de ver, que a leve pela mão, por mais
fundamental e básica que ela seja para os cristãos, para os metodistas em particular.
Nesse sentido, Wesley foi obrigado a combater o “entusiasmo” (como a maioria
dos reformadores) palavra que era usada em seu tempo para descrever experiências
religiosas exacerbadas (do grego enthousiasmós ou a presença divina que transborda
no interior de uma pessoa): “uma loucura religiosa – escreve – proveniente de
qualquer falsa e imaginária influência ou inspiração de Deus, ou afinal partindo de
imputar a Deus alguma coisa que a Ele não se pode atribuir, ou esperando de Deus
alguma coisa que Dele não deve esperar” [2] . Segundo escreve, são
comportamentos:

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dos que imaginam que possuem uma graça de que não dispõem;
dos que imaginam possuir certos dons de Deus, que na verdade não possuem;
dos que pensam atingir o fim sem usar os meios, pelo imediato poder de Deus.

Wesley enfatizou a necessidade da experiência cristã e de um cristianismo vital,


mas temeu por um livre curso de experiências sem controle no movimento metodista.
Wesley, sem excluir a riqueza da autêntica experiência cristã, procurou orientá-la.
Wesley visou à experiência autêntica que anima a pessoa para a maturidade e
liberdade cristãs.
Destacamos cinco pontos importantes da perspectiva wesleyana da experiência
cristã:
- O cristianismo experimental se opõe ao cristianismo formal, exterior, de
costume ou só de opiniões (mesmo corretas).

- “Um cristianismo verdadeiro, escriturístico e experimental” – inclui a


experiência pessoal com o Deus vivo em Jesus Cristo. É uma “religião do
coração” – isto é, vivida pessoalmente, assim como é “uma religião social”.

- O Espírito Santo é moção interna da presença divina no espírito do homem


que atesta e confirma a graça de Cristo, além de nos mover para o amor, o
serviço, a pregação do evangelho, a perfeição cristã.

- O cristianismo experimental possui uma dimensão de convicção, de certeza


cognitiva, da evidência pessoal, que confirma nossa filiação com Deus,
mediante de Jesus Cristo.

- O cristianismo experimental exerce o discernimento doutrinário e


missionário em congruência com outros critérios que julgam a própria
experiência: a Bíblia, a tradição da Igreja, a razão e a criação.
Wesley define cristianismo experimental: “em essência, é a união do conhecimento
bíblico e racional e a concordância prática com essa momentosa verdade”. [3] Os
metodistas o tomaram como vocação:
“coube mais de perto aos chamados metodistas o terem compreendido e
defendido esta doutrina, que constitui uma grande parte do testemunho que
Deus lhe encarregou de dar a toda humanidade. Foi por esta bênção peculiar,
derramada sobre eles, no pesquisar das Escrituras – confirmadas, estas, pelo
testemunho da experiência de seus filhos – que a grande verdade do evangelho
se restaurou, após ter atestado por muitos anos quase perdida e esquecida”.
[4]
Apesar desta “peculiaridade” experimental do povo metodista, Wesley nunca
usou a experiência cristã como chave hermenêutica de interpretação da Bíblia ou

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como critério de doutrinas ou de missão. Valorizou todos os critérios de verdade de


seu tempo. A importância fundamental da experiência cristã é, nessa perspectiva, o
fato de que ela se constitui no sinal visível, na marca viva de uma transformação de
um caminho que está acontecendo. Ela necessita, para se complementar e
permanecer saudável, de outras formas de ver o caminho, especialmente a Palavra de
Deus.
Wesley manifestou uma predileção pelo texto de Rm 8.16 (= 9.1) onde destaca:

1. todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus;
2. nele reconhecemos a relação de adoção e clamamos: ABBA, pai!;
3. o Espírito divino dá testemunho com o nosso espírito. Nos primeiros vinte
sermões de sua edição “Standard”, constatamos que no 16 o texto grego é
analisado. São célebres seus dois sermões sobre o “Testemunho do Espírito”.
Neles, Wesley é defensor e crítico da experiência cristã autêntica que é um
privilegio ordinário de todo cristão ao qual ninguém deve renunciar.

Wesley revela dois objetivos nesses sermões:


“Que é o testemunho ou prova de nosso espírito; qual é a prova do Espírito de
Deus e como ele testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus?”
“Como pode ser esse testemunho conjugado do espírito de Deus e do nosso
próprio espírito, clara e solidamente, distinguido da presunção da mente natural e do
engano do diabo?”
Para Wesley é central que não haja supressão do espírito humano – mas relações e
funcionamento natural no testemunho de que o espírito dá com o nosso espírito.
Assim, Wesley interpreta outros textos da Escritura e dos pais da Igreja. O Espírito
Santo age primeiro. Nós respondemos. A ação do Espírito Santo não elimina a
capacidade natural e nossa responsabilidade moral. O nosso espírito é chamado a
responder, não a sofrer violência. Esse testemunho, e nossa resposta, produzem fruto
do Espírito – arrependimento, confiança, alegria, paciência, obediência a Deus, amor,
etc... Aquele que “fantasiou” ou foi “iludido” revela uma incoerência com os frutos e
os critérios externos e objetivos da fé. A experiência e o testemunho do Espírito é a
experiência de todo autêntico cristão, “não de dois ou três ou de uns poucos”
(Wesley).
A sabedoria de Wesley nesta perspectiva foi a de corrigir aqueles que pretendiam
levar a experiência para o centro da vida cristã. Sua sabedoria foi de valorizá-la
obedecendo a critérios maiores que a dirigem. O método de Wesley conjuga aspectos
vivenciais com critérios externos. Ele articula na experiência cristã o interior com o
exterior, o pessoal com o eclesial e o social, o racional com revelado, o coração com a
vida, o amor a Deus com o amor ao próximo. Um termo pressupõe o outro. No
conjunto de suas obras, Wesley mantém uma tensão dialética e um equilíbrio em que

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a ação de Deus e a resposta do homem fazem parte de um processo no qual Deus


detém a iniciativa.
Em síntese, a experiência cristã é preparada, construída, situada, orientada e
serve a uma realidade que não é ela própria [5] . Por si, corrompe-se. Ela se completa
com as realidades, que são igualmente parte da fé, mas, mais essencialmente,
comunitárias e públicas.

2. O Espírito Santo e a experiência de koinonia

Uma de nossas maiores debilidades, e que hoje passa por seguidas


transformações, é a eclesiologia. Essa debilidade está presente em quase todas as
tendências teológicas contemporâneas. Sofremos com a falta de solidez, quer teórica,
quer prática. Necessitamos recuperar o sentido da absoluta essencialidade eclesial
sem cairmos na armadilha do eclesiasticismo. Wesley soube manter o sentido da
essencialidade eclesial como “Comunhão dos Santos” e seus grandes traços da
tradição reformada. A sua doutrina típica de santidade está entretecida com a sua
eclesiologia. (Colin Williams).
A eclesiologia prática de Wesley foi retomada da idéia, pietista, das eclesiola in
ecclesia (ou das pequenas igrejas dentro Igreja), a vida cristã desenvolvida a partir da
grande comunhão do Corpo de Cristo em pequenos grupos voluntários. Sua
eclesiologia prática mantém a idéia central de participação e unidade no Corpo de
Cristo, Koinonia como vida compartilhada em Cristo, junto com o dinamismo das
eclesiola in ecclesia. Hoje necessitamos recuperar a visão da unidade essencial do
Corpo de Cristo como uma prioridade.
Numa sociedade individualista e massificada como a nossa, não é fácil valorizar
a estrutura dialogal e comunitária do ser humano e da fé. Inconscientemente
desviamos a experiência cristã do Novo Testamento no contexto individualista
contemporâneo. No NT o mesmo Espírito que testemunha com o nosso espírito é o
que promove a realização da nova comunidade e rompe as barreiras e opressões
raciais, culturais, econômicas, de gênero e outras. No NT a experiência cristã ´é a
experiência de um novo ser humano, de uma nova humanidade, de uma koinonia com
vínculos muito especiais.
A palavra “koinonia” pode ser traduzida “pelo que temos em comum” e, mais
especificamente, por “comunidade” ou como “vida compartilhada”.
Ela aparece relativamente pouco no NT com o significado, que usamos aqui [6]
, de comunhão, fraternidade, relacionamento e participação íntima – como o meio
próprio onde o cristão se desenvolve: comunhão com os irmãos, com Deus, com o
espírito Santo, com Cristo. É claro que o NT apresenta uma riqueza de outras
expressões e figuras para o mesmo fim. Mas, usamos koinonia para expressar toda a
riqueza e amplitude da comunhão cristã, incluindo a do sentido material, conforme em
muitas passagens (At 2.44; 4.34; etc).

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O Espírito Santo é entendido como a presença divina que promove a koinonia


eclesial. Uma das expressões mais perfeitas para descrever uma ação é fornecida por
Agostinho: vinculum caritatis, o vínculo do amor. Em todas as formas de ação do
espírito Santo no NT há explicitamente a preocupação com a unidade. A ação do
Espírito Santo, por mais livre e autônoma que seja, é uma ação de condução e
construção de unidade com o Pai, o Filho, a Igreja, os homens, a criação. Nesse
sentido, os principais escritores do NT serão incompreendidos se suas ênfases na obra
do Espírito Santo não forem entendidas como a obra de fortalecer, em todos os
sentidos, o vínculo do amor. Especialmente em relação à comunidade cristã, Paulo e
Lucas são claros: os cristãos vivem unidos na obra de unidade do Espírito Santo.
A experiência cristã é muito parcial, para Paulo; até pode ser perniciosa se não
for acompanhada pelo sentido de comunhão, participação e dependência de outros
membros da koinonia. A Igreja é o lugar de experiência dessa koinonia. Um contrato,
os valores de afirmação comuns, uma ideologia, são apenas expressões exteriores de
uma experiência que é mais do que solidariedade. Uma expressão mais plena da
koinonia é possível na celebração da santa ceia. Unidos no Espírito, na celebração da
pessoa e obra de Cristo, temos a comunhão dos santos. Assim como podemos falar do
ministério da presença do Espírito Santo na pessoa, também podemos afirmar que a
Igreja depende do ministério da koinonia enquanto experiência da comunhão.
A experiência pessoal não pode ser dissociada da experiência da koinonia.
Alguns dos sinais mais expressivos, além do “partir do pão” são: o partilhar dos bens
da Igreja de Jerusalém, o mesmo sentimento fraterno (“eram um só coração e uma só
alma”), as coletas das igrejas gentias em favor de Jerusalém. Paulo traduz a
experiência da koinonia pela unidade da fé, do batismo, dos dons, e as resume na
magnífica expressão do corpo de Cristo (Ef 4. 1-17). Em João a unidade koinonia é
elevada ainda mais quando se refere à unidade de todos com as pessoas divinas, que
o poder do Espírito Santo realiza (Jo 15.4; 14.11-20).
O ser humano possui uma estrutura dialogal e comunitária. Mas, as forças de
negação dessa realidade desenvolvem-se e multiplicam-se de muitas maneiras na
história. É a vida com suas forças solidárias contra as tendências da máquina global. É
contra esta realidade que afirmamos a experiência de koinonia, não apenas como um
dado natural de solidariedade humana, mas como experiência cristológica, conduzida
pelo Espírito Santo. Se buscarmos uma descrição das situações em que esta
experiência é narrada e testemunhada no NT, não teríamos dificuldade em configurar
concretamente o vínculo do amor como experiência de koinonia: filiação divina,
alegria, liberdade, presença, poder, discernimento, justiça, verdade, direção,
comunhão de sentimentos, serviços, solidariedade material, paz, comprometimento e
testemunho, generosidade, humildade, aperfeiçoamento e maturidade, etc. Essa
experiência da koinonia no Espírito Santo é a antítese de toda experiência social
alienante, opressora, corruptora. É a fonte de desconformidade do cristão com a
sociedade e suas formas de opressão e negação da koinonia.

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É neste contexto da koinonia que devemos pensar no surgimento do novo ser


humano criado por Cristo. O homem novo é essencialmente o Cristo, o novo Adão.
Mas, ele é também o cristão que se desveste do velho e reveste o homem (mulher)
novo (a), ou melhor, é Cristo que se forma no novo ser. A koinonia é o lugar
privilegiado da experiência do novo ser em profundidade – é na koinonia que o novo
ser chega à autoconsciência de si mesmo. Os hábitos individualistas têm levado
muitos cristãos a interpretarem a nova criatura (novo nascimento) e o novo homem
no sentido da redenção do indivíduo isolado. Na verdade, Paulo e João falam do novo
homem porque, como pessoa, se reintegra no corpo de Cristo (cf. as parábolas de
Jesus sobre a ovelha perdida e o filho pródigo). A conversão tem uma dimensão
koinônica (Cl 3.9,10) [7] .
O novo homem (mulher) não se configura como indivíduo. O novo homem
(mulher) é parte do corpo de Cristo e a da comunidade cristã. A comunidade cristã,
como koinonia, deve ser o lugar de nossa experiência pessoal com Cristo como
pessoal e mais do que pessoal – é o lugar privilegiado da experiência do novo homem
e da nova mulher em amplitude e profundidade. Amplitude, porque atinge a
humanidade. Profundidade, porque chegamos à consciência de nós mesmos como “o
outro” que nós somos. Para a salvação é necessário que aconteça a perda de si
mesmo, como no ensino de Jesus:
Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-
me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas, o que perder a sua vida
por causa de mim e do evangelho, irá salvá-la (Mc 8.34,35).
Ou nas palavras de Paulo: “Fui crucificado com Cristo. Já não sou eu quem vive,
mas Cristo vive em mim” (Gl 2. 19b,20).
O pessoal e o koinônico não podem ser interpretados como "indivíduos" que se
salvam. São pessoas que se integram num processo de uma comunhão presente e
futura, são novas criaturas que se integram dentro de uma nova criação – integram-
se num poder novo que rompe com o antigo: “passou o velho, tudo é novo” (2 Co
5.17).
O sentido da Igreja tem seu campo de significação gerado a partir da
experiência de koinonia (“onde dois ou três...”). O futuro da Igreja e o futuro da
humanidade é o futuro da koinonia. A experiência da koinonia tem uma dimensão
presente e uma dimensão escatológica. Por isso mesmo está sujeita, em sua
dimensão presente, às vicissitude históricas: ela deve ser buscada, aperfeiçoada,
sinalizada. Creio que as Igrejas de hoje necessitam fazer o movimento de reencontrar
os pequenos grupos de koinonia em sua expressão autenticamente metodista: são
das raízes, por vezes as mais tenras, que a árvore retira o alimento que a mantém
viva.

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3. O Espírito Santo e a experiência do próximo

A experiência cristã se desenvolve como koinonia em relação aos outros


cristãos, em relação com o próximo, em relação a todo ser humano. A categoria
"próximo" descreve uma realidade com a qual o próprio Cristo se identificou. Próximo,
irmão, povo, não são categorias filosóficas ou científicas; porém, bíblica e
teologicamente, são categorias que dão peso e sentido à história, à existência, à
sociedade. Já no AT, a realidade do outro diante de nós e de Deus tornou-se central.
No NT, Jesus renova e amplia a concepção na sua prática. O resumo da Lei é “amarás
o Senhor teu Deus...”. O segundo mandamento “semelhante”, igualmente importante
a este é: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. Na junção desses dois versículos
Jesus radicaliza a Lei mostrando onde tudo se enraíza. É interessante notar que em
Lucas, ao exemplificar o fato, coloque um samaritano, um dos muitos à margem da
religião dominante, como aquele que agiu diante do outro como “próximo”. O próximo
é componente essencial da experiência cristã.
Jesus anunciou para nós o fato de que o amor ao próximo está implicado no
amor de quem ama a Deus. Mais do que isso, Jesus explicou o fato de que o próximo
é também palavra de Deus para nós. O próximo, para Jesus, era os “pequeninos” com
quem ele se relacionava: pecadores, homens, mulheres desprezadas, doentes
marginalizados, estrangeiros e grupos humanos discriminados, etc... Isto se evidencia
no discurso escatológico de Jesus (cf. Mt 25.31-46) quando no último julgamento a
herança do Reino será daqueles que amaram Jesus na pessoa do próximo: Jesus se
identifica com o próximo sedento faminto, nu, preso, estrangeiro, e conclui “Em
verdade, vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais
pequeninos, a mim o fizestes”. Pressupomos que devemos interpretar este versículo
inclusivamente a todos os que sofrem os males da opressão e não somente aos
“irmãos” da koinonia. O próximo é a outra face da Palavra de Deus que se faz homem
para nós. [8]
Quando em Lucas (10.29) o escriba pergunta “Quem é o meu próximo?” a
declaração soa como se o escriba não estivesse disposto a reconhecer o próximo. O
próximo tem a ver com todo aquele que clama, na sua própria condição, por socorro,
amor, justiça, libertação, perdão.
O próximo é a vítima dos muros da separação, do cinismo, de marginalização,
do não reconhecimento, da fraqueza, da vida esvaída em sofrimento. O próximo é
aquele que não está sendo amado e está impedido de amar; é aquele que está
segregado da vida plena. Para Jesus, trata-se de amar não só o da família, ou da
comunidade – mas, de amar aquele que é excluído do círculo dos que são
“naturalmente” estimados. Esse fato torna-se evidente quando Jesus, novamente
falando da radicalização da Lei no amor, nos propõe uma atitude de vida que supera o
ódio no mais profundo da pessoa. Não mais podemos “amar ao próximo” e “odiar o
inimigo”, mas amar o inimigo e orar pelos que nos perseguem (Mt 5.43,44). Os
“próximos” não são socialmente iguais, como o seu ministério o demonstra.

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O Espírito Santo é também o vínculo que nos possibilita a experiência do outro


como próximo. Se mencionarmos o Espírito Santo, em relação a esta experiência é
porque cremos que ela é mais profunda e qualitativamente diferente da natural
“solidariedade” presente na raça humana. O Espírito Santo é ação que rompe as
fronteiras: na Igreja, estabelece os laços que ultrapassam as nações, rompe com os
limites de línguas. Paulo reclama-se do Espírito Santo para desenvolver o ministério
dos gentios. Em Atos 10, Pedro rompe as barreiras culturais por iniciativa do Espírito
Santo e é o próprio Espírito que desce de forma concreta sobre os gentios (Atos 11).
A comunidade cristã forma um só corpo espiritual (Paulo) e aí os cristãos se tornam
autoconscientes. Na koinonia somos, todos, povo de Deus; todos somos chamados. O
Espírito Santo converte os bloqueios e discriminações sociais impostas aos homens.
Em verdade, a experiência com o próximo é apenas o outro lado da experiência com
Cristo, mediada pela ação do Espírito Santo, é o outro lado da koinonia. Assim como o
Espírito Santo testemunha a Cristo formação em nós, ele também testemunha o
Cristo presente no próximo. A sociedade e a história recebem a ação do Espírito Santo
como uma transformação em direção ao próximo e a koinonia (esta é uma
conseqüência do esquema de trabalho de Lucas, no seu evangelho e no livro de Atos:
o poder do Espírito Santo é o poder da unidade e da universalidade da experiência
cristã). A experiência da koinonia no vínculo do amor (obra do Espírito Santo) é
análoga à experiência com o próximo vítima da anti-koinonia da máquina global.
Muda o ângulo, mas a experiência cristã é a mesma: o “próximo” é aquele que do
ponto de vista da koinonia necessita urgente socorro por estar excluído e oprimido. O
próximo é meu irmão excluído e oprimido. “Irmão” é o meu próximo visto na sua
relação transfigurada de koinonia e integrado a ela, consciente de sua pertença ao
Corpo de Cristo.
Jesus, na parábola do bom samaritano, responde à pergunta “Quem é o meu
próximo?”. Mostra que o “pecado do sacerdote e do levita não foi o de não possuírem
sentimentos de compaixão. Habitualmente, todo homem os tem. O pecado foi o de
evitar o encontro com o necessitado, colocando-se numa situação em que não
tivessem de se comprometer (“Viu-o e passou adiante” Lc 10.31). Essa atitude
impediu que se fizessem irmãos e próximos do judeu espancado.
Este estudo foi apresentado como introdução a uma celebração da experiência
religiosa de Wesley em !738. Na programação a abordagem dessa experiência
ficou a cargo do Dr. Joe Hale. Devido a isso não nos referimos a ela
diretamente. Em nossa interpretação essa experiência foi muito importante
para o metodismo que, entretanto, a valorizou mais que Wesley e num sentido
[1] que não foi dado por Wesley mesmo. A experiência era para Wesley algo que
se prolongava no tempo através da vida cotidiana disciplinada e orientada
para a missão. É nesse contexto que Wesley a relembra. A experiência cristã
não foi reverenciada como objetivo da vida cristã, mas como um começo e
com necessidade de amadurecimento durante o seguimento a Cristo e por um
cristianismo vital prático.
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Sermões standards, vol. II, p. 217. Usamos aqui a edição publicada em Cdrom
[2]
pela Editeo em 2006.
[3] Sermões, XI, p. 219
[4] Sermões, XI, p. 220
Em sentido estrito Jesus Cristo é ele mesmo a experiência religiosa autêntica.
A autêntica experi~encia é segui-lo. Nossa experiência religiosa é autêntica
[5] por participação na experiência mesma de Cristo. Fora isso, corremos muitos
riscos de levar o subjetivismo religioso a caminhos que não são os de Cristo,
confundindo nossos desejos e sensações com a vontade de Deus.
[6] At 2.42; I Co. 9; 2Co 13.13; Fl 1.5; 2.1; IJo 1.3,6,7
Este foi um texto de predileção de João Wesley e da experiência cristã. Para
[7] J.W. o amor ao próximo é a marca essencial de todo cristão, e que ele
assinalou muitas vezes, como marca do povo metodista.
Este texto foi um texto de escolha de João Wesley e da experiência cristã.
[8] Para J.W. o amor ao próximo é a marca essencial de todo cristão, e que ele
assinalou muitas vezes, como marca do povo metodista.

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