7-8-PB Confluência
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CONSELHO DELIBERATIVO
Presidente: Maria Lêda de Moraes Chini
1.º Secretário: Albano da Rocha Ferreira
2.º Secretario: José Antonio de Almeida Sampaio
CONSELHO FISCAL
Membros Efetivos: Antonio da Silva Correia
Ângelo Leite Horto
Carlos Jorge Airosa Branco
Suplentes: José Gomes da Silva
Eduardo Artur Neves Moreira
Alcides Martins
CONSELHO CONSULTIVO
Amaury de Sá e Albuquerque
Carlos Eduardo Falcão Uchôa
Fernando Ozorio Rodrigues
José Pereira de Andrade
Nilda Santos Cabral
Ricardo Cavaliere
Walmirio Macedo
CENTRO DE ESTUDOS LUSO-BRASILEIROS
Diretor: António Gomes da Costa
DIRETOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS PORTUGUESES AFRÂNIO PEIXOTO
Acadêmica Rachel de Queiroz (in memoriam)
DIRETOR DO INSTITUTO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Prof. Evanildo Bechara
DIRETOR DO INSTITUTO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA
Prof. Arno Wehling
SUPERINTENDENTE
Albino Melo da Costa
Ricardo Cavaliere
Cristina Altman
Universidade de São Paulo
altman@usp.br
RESUMO:
No texto estão editadas 23 das cartas que compõem a correspondência, até então inédi-
ta, entre dois grandes autores da Linguística do século XX, Joaquim Mattoso Câmara
(1904−1970) e Roman Jakobson (1896−1982), depositadas no acervo de Mattoso Câ-
mara, na Biblioteca da Universidade Católica de Petrópolis, Rio de Janeiro, e no acervo
de Roman Jakobson, confiado ao MIT Libraries-Archives and Special Collections, em
Cambridge, Massachussetts.
ABSTRACT:
The present text edits 23 letters which constitute part of the correspondence, so far
unpublished, between two great authors of the 20th century Linguistics, Joaquim Mat-
toso Câmara Jr. (1904−1970) e Roman Jakobson (1896−1982), deposited in Mattoso
Câmara’s collection, at the Biblioteca da Universidade Católica de Petrópolis, Rio de
1
A primeira versão deste texto remonta a 2001, como parte integrante da minha tese de Livre-
-Docência (v. Altman, 2001, MS inédito). Baseei-me ainda uma vez neste trabalho, ao proferir
a conferência plenária A correspondência Jakobson –Mattoso Câmara (1945−1968), ou a
guerra fria estruturalista, durante as atividades da I Jornadas Internacionales de Histo-
ria de la Linguística, no Instituto de Lingüística de la Facultad de Filosofía y Letras de la
Universidad de Buenos Aires, em 2 de agosto de 2012. O presente texto constitui a versão
escrita da conferência de 2012, com modificações.
Observações introdutórias
Acredito que não haja mais dúvida hoje de que o texto resultante de um
trabalho historiográfico em ciências da linguagem seja um objeto construído
pelo historiógrafo, no sentido de que é uma representação parcial da história
do conhecimento sobre a linguagem humana, com a qual pretende manter, em
alguma medida, uma relação de iconicidade (Swiggers 1983, 1989, 1990).
Nossas historiografias variam, pois, não apenas conforme nossos conhecimentos
dessa história — das diferentes épocas históricas e dos diferentes meios sociais
e étnicos em que circulamos — mas também conforme as fontes disponíveis
e conforme a motivação do historiógrafo que opera, sobre elas, uma seleção.
Assim, para alguém interessado em reconstruir a história do estruturalismo
linguístico no Brasil, ou mesmo na América do Sul, há fontes propícias para
informar sobre as teorias e métodos linguísticos que aqui tiveram repercussão;
outras são mais favoráveis para se identificar as maneiras pelas quais os linguis-
tas lidaram com dados e problemas; outras dão pistas sobre as influências e as
afinidades entre os linguistas, ou entre os linguistas e os não-linguistas; outras
informam sobre as crenças, valores, atitudes de pessoas, grupos, e gerações
que afetaram os rumos que tomou o conhecimento linguístico em determinado
contexto histórico; e outras, ainda, permitem recuperar certas circunstâncias
institucionais, profissionais e pessoais que moldaram a atividade de pesquisa do
linguista, inserindo, dessa maneira, uma dimensão humana a nossos precursores,
que não raro assumem, em nosso imaginário, o status de gênios inatingíveis.
A correspondência, até agora inédita, entre dois grandes mitos da Linguística
contemporânea, Joaquim Mattoso Câmara (1904−1970) e Roman Jakobson
(1896−1982) se enquadra neste último caso.
As cartas começam em 1945, momento em que as sociedades americana e
europeia davam início ao que seria a nova ordem do pós-guerra. O conturbado
contexto político, econômico e social se estendia como um pálido pano de fundo
para essa correspondência. As referências de Jakobson na primeira carta, por
exemplo, de 17 de outubro de 1945, às suas aulas na École Libre des Hautes
Études, que o acolheu de 1942 a 1946, e na Universidade de Columbia, onde
trabalhou de 1943 a 1949, ambas em Nova Iorque, testemunham a busca dos
2
Cf., por exemplo, o Círculo Linguístico de Moscow, criado em 1915; o Círculo Linguístico
de Praga, em 1926 e o Círculo Linguístico de Copenhagen, em 1939.
3
Mattoso Câmara ministrara um primeiro curso de linguística em 1938–1939, na então cha-
mada Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro,
publicado como “Lições de Linguística Geral”. In: Revista de Cultura 25. 99-104; 183-89;
216-22; 279-84; 26. 43-47; 81-86; 177-85; 27. 21-27; 83-88; 141-46; 202-8; 28. 11-17 (Rio
de Janeiro: Vozes).(V. Altman, 2004).
4
Agradeço ao colega Válter Kehdi ter me cedido o livrinho, de impagável leitura.
5
O capítulo sobre “Os estudos fonéticos em Português”, entretanto, não foi publicado, nem
no Boletim, nem na versão de 1953a. Em seu lugar, Mattoso acrescentou um terceiro estudo
sobre “A rima na poesia brasileira” (cf. Mattoso Câmara, 1977 [1953a], p. 85-115]. Esta
aplicação literária da fonêmica, assim como os estudos estilísticos de Mattoso estão fora do
escopo do presente estudo.
6
No IPA, respectivamente: [] para [nh]; [] para [lh], [] para [r] e [] para [r].
Não teria sido por vontade própria que Mattoso “failed to be an orthodox
disciple [of Jakobson]” como revelou com humildade na carta #21. Não havia
nada no Brasil dos anos cinquenta, ou sessenta (e ainda não há), que pudesse
se comparar aos laboratórios do M.I.T., ou às bibliotecas de Harvard. Mesmo
que quisesse, não teria sido possível a Mattoso Câmara dar prosseguimento às
análises acústicas de Jakobson (v. cartas #10, #14 e #15). Como consequência,
seu trabalho sobre o português do Brasil ficaria sempre vários passos atrás do
que se fazia na América (carta #17), e vários à frente do que se fazia no Brasil
e na América Latina (carta #9, #14).
Com efeito, Mattoso Câmara se dirigia a uma audiência que, embora
versada em assuntos linguísticos, não via ainda com clareza a especificidade da
sua abordagem fonêmica em relação à descrição fonética tradicional. Mesmo
porque, o interesse desta geração estava mais para o mapeamento das diferenças
de pronúncia entre o português europeu e o português do Brasil do que na sua
convergência, enquanto sistema. Construir uma ponte entre este tipo de des-
crição fonética e a abordagem funcional que tencionava aplicar à descrição do
português, mantendo, ao mesmo tempo, a especificidade de ambas, certamente
não era uma tarefa fácil.
Neste momento, escolher o termo ‘fonologia’, empregado por Trubetzkoy,
autor já conhecido da comunidade acadêmica brasileira (atestado posteriormente
na carta #20, por exemplo), era admitidamente problemático para Mattoso, na
medida em que o termo já tinha sido usado para referir a outros tipos de estudo
do som, e nem sempre de forma consistente. Por essa razão, ponderara Mattoso,
era preferível usar o termo ‘fonêmica’, originário da Escola Norte-Americana,
para designar o tipo de estudo que ele pretendia, até então praticamente desco-
nhecido do público brasileiro. Como ele claramente afirma: “Tem-se assim antes
de tudo a grande vantagem de uma designação nova para uma noção nova, sem
conotações anteriores ou paralelas que lhe possam perturbar a compreensão”
(Mattoso Câmara, 1953a, p.17).
Embora bem ponderado, fora uma escolha infeliz, os gatekeepers do
momento nem leram, nem gostaram. Observe-se:
Foi pena que o autor, um dos pioneiros deste assunto, houvesse dado
ao seu estudo o nome de fonêmica. Com certeza foi influenciado
pelo inglês phonemics, já que é tão afeiçoado aos linguistas norte-
-americanos... (Nascentes, 1954, p. 301)
Dear Friend,
For a long time I haven’t heard from you. Write me about your work and
projects. Our Circle8 develops a lively activity. How did you enjoy the first issue
of our review Word9? The second is in print. In one of the next there will be a
long contribution of mine on comparative metrics.10 We shall be really happy
to have a paper from you; any linguistic subject is welcome, in the first place,
problems of general linguistics. If you can send us, moreover, a summarizing
chronicle of the linguistic life in Brazil today, we’ll be very glad to publish it.
I am continuing to teach in Columbia and at the École, and in the next
year I shall probably go to Europe. A student of mine, Garvin, is finishing a
dissertation about the structure of the Nambikuara.11 My last publications were
mostly concerned with Slavic philology but since the time when you followed
my course I have radically developed my system of phonemics and I hope
to publish in the next year my book Sound and Meaning. How is it with the
translation of my Kindersprache?12 I wrote you my consent but have received
no answer. If the work is not done, maybe it would be interesting for the pu-
blisher to await the manuscript of my new book where the essential ideas of
Kindersprache enter in a more perfect and more popular form. If you agree I
will send a copy of the manuscript as soon as it will be ready, and at the same
7
Pela carta #2, presume-se que a data correta desta carta de Jakobson, a primeira endereçada
a Mattoso, é 17 de setembro de 1945, e não 17 de outubro.
8
Linguistic Circle of New York - Cercle Linguistique de New York, de que Mattoso foi co-
-fundador, em 1943.
9
Word. Journal of the Linguistic Circle of New York. (vol 1, n.1, abril de 1945.)
10
Presumivelmente, trata-se do seu Studies in Comparative Slavic Metrics, publicado, entretanto,
mais tarde, nos Oxford Slavonic Papers n. 3, 1952, p. 21-66; republ. em Jakobson, 1966, p.
414-463.
11
Paul Garvin (1919−1996). O trabalho está publicado como Esquisse du système phonologique
du Nambikwara. Journal de la Société des Américanistes. MS n. XXXVII, 1948, p. 133-189. A
tese de Garvin, entretanto Kutenai Grammar. Bloomington, Indiana University, 1947
foi sobre outra língua, e sob a orientação de Charles F. Voegelin (1906−1986). (Cf. Singerman,
1996). Para um depoimento ‘em primeira pessoa’, v. Garvin, 1991, p. 127-138.
12
Mattoso Câmara nunca traduziu Kindersprache, Aphasie und Allgemeine Lautgesetze,
certamente aguardando o novo manuscrito, tal como sugerido por Jakobson; mas fez dele a
resenha, v. Mattoso Câmara, 1946a.
time as the other copy will go to the publisher of this country. Some weeks ago
I had lectures at the University of Chicago on meaning as a pivotal problem of
modern linguistics. This counterpart of phonemics is now my concern, and I
try to apply here my phonemic experiences and methodology. Did you receive
my paper on Boas?13 Often I think of you and really would like to be in closer
contact with you.
Your kind letter of September 17 has just arrived, and I thank you for it.
It is the first one that has come to me from you, and I have not even received
your paper on Boas until now. I was surprised to know that you had already sent
to me your answer respecting my proposal on translating your Kindersprache.
I have been waiting for your acquiescence and for your terms on the matter.
Your new proposal, however, is excellent and we should be delighted here
in Brazil to publish the translation of your new book on Sound and Meaning
under the conditions you exposed.14 I should like to add an Introduction on the
significance of the Linguistic Circle of Praga, which is very imperfectly known
in Brazil, and on you and your linguistic work and I ask you some biographical
and bibliographical data. The first number of Word is very good and I appreciate
specially the articles of Lévy-Strauss15 and Bonfante16. I hesitate to collaborate
among so great scholars; but, since you wish so, I shall send later something
respecting the popular Portuguese of Brazil.
13
Jakobson, Roman. Franz Boas’ approach to language. International Journal of American
Linguistics, vol. 10, n. 4, 1944, p.188-195; reimpr. em Jakobson, 1971, p. 477-488.
14
V. carta #8
15
Lévi-Strauss, Claude. L’analyse structurale en linguistique et en anthropologie. Word vol.1,
n.1, 1945, p. 33-53.
16
Bonfante, Giuliano. On Reconstruction and Linguistic Method. Word vol.1, n.1, 1945, p.
83-94.
I have read last year in the Faculdade de Filosofia a paper on the The
Linguistic Studies in the U.S.A., in which I had the opportunity of speaking of
the Linguistic Circle of New York; that paper is to be published in a collection
of monographies of the Museu Nacional and of course you will have a copy
of it.17 Mr. Dreyfuss [?] has invited me to work in São Paulo, but I could not
accept, because I would abandon my permanent place in Rio for a transitory
one there. So I am until now in my old place in a municipal high school in Rio;
but maybe I shall be appointed to teach linguistics in the Faculdade de Filosofia
after its remodellation sooner or later. It is useless to insist on my interest to
maintain our mutual contact, and if you go to Europe, please let me know your
address there. With my best wishes and friendly thanks,
Yours sincerely
Mattoso Camara
Dear friend:
Thank you so much for sending me your instructive and comprehensive
survey of Linguistics in this country. I was touched by your appreciation of
my activity here.18
Recently I was appointed for 3 years Professor of Slavic Languages at
Columbia University.19 During the summer I hope to finish my book Sound and
Meaning and send you a copy of the manuscript, as I promised.
The Linguistic Circle of New York and WORD have been progressing.
We have had an interesting season of lectures. Goldstein on the ‘Pathology of
Language’; Steinberg (from Bell Company) on ‘Acoustics’; Herzog on ‘Langua-
ge of American-Indian Poetry’; Morris on ‘Linguistics and Semiotics’,20 etc....
17
V. Mattoso Câmara, 1945.
18
Trata-se, certamente, de Mattoso Câmara, 1945.
19
Jakobson refere-se à renovação, por mais três anos, do seu contrato com a Universidade de
Colúmbia onde começara a ministrar aulas em 1943, ocasião, justamente, em que conheceu
Mattoso Câmara.
20
Respectivamente, Kurt Goldstein (1878–1965); John C. Steinberg (?); George Herzog
(1901–1983) e Charles Morris (1903–1979). Os textos e os resumos das discussões estão
publicados em Word vol.2, n.1, 1946, p. 81-85.
21
Word vol.2, n.1, 1946 em diante traz, de fato, na contracapa o nome de Mattoso Câmara como
um dos membros do ‘Advisory Committee for Foreign Countries’.
22
Mattoso Câmara, 1946c.
23
Mattoso Câmara, 1946 a e d.
24
Mattoso Câmara ,1946b.
meetings. Have you received the Boletim de Filologia with my reviews of your
Kindersprache and Trubetzkoy’s Grundzüge? In a note of Charles Morris’ Signs,
Language and Behavior25 I have met with a reference on your expected book
on Sound and Meaning; as soon as you will send me the typewritten copy I
shall begin the Portuguese translation. It seems I shall be appointed this year to
deliver lectures on Linguistics in the Faculdade de Filosofia of Rio, and your
book would be of course very helpful. Will you stay in USA this year you are
you looking forward for a return to Europe? Please, don’t forget to make me
know any change of address.
Hoping that everything is at best with you, and with my cordial regards, I am
Sincerely
This is to visit you and to inform you of my new address above. I have
been working hard teaching Linguistics at Faculdade de Filosofia of Rio and
writing a thesis of doctor grade on Portuguese Phonemics. It will have three
chapters: a general survey of Phonemics, which is very little known in Bra-
zil; an exposition of the Portuguese chief studies of Phonetics till now; and a
discussion of Portuguese Phonemes based on the pronunciation of Rio.26 Of
course, you will have a copy, and I ask you to be severe about it and make
me know your observations, for I am conscient I shall make many mistakes.
How are you going with your work on Sound and Meaning? We are anxious
of knowing it in Brazil. I know that The Linguistic Circle is doing excellent
work and I am trying not to lose contact with it and its leading figures through
the journal Word.
25
New York: Prentice Hall, 1946.
26
Os capítulos inicial e final da tese de doutorado de 1949 foram publicados no Boletim de
Filologia (v. Mattoso Câmara, 1949 a e b) e depois em livro, em 1953a. O capítulo sobre
“Os estudos fonéticos em Português”, entretanto, não foi publicado, nem no Boletim, nem
na versão de 1953a. Em seu lugar, Mattoso acrescentou um terceiro estudo sobre “A rima na
poesia brasileira” (cf. Mattoso Câmara, 1977[1953a], p. 85-115)
Dear Camara,
I was happy to hear from you and to learn that you are successfully working
and that your Portuguese Phonemics is to appear. I am anxious to see it. I am
sending you a copy of the Reports of the Paris Linguistic Congress containing
my report about interrelations of phonemics and morphology.27 I was not able
to attend the Congress so that my report was presented by our outstanding
colleague and my friend, Prof. John Lotz.28
Trubetzkoy’s Grundsätze has been translated by Cantineau into French
with some of my supplements and it all is in print.29 Likewise, the new, com-
pletely revised edition of Les Langues du Monde is to appear. I have there a
detailed survey of Paleosiberian languages.30 I have my leave until February
and I hope to finish Sound and Meaning. Winter Verlag in Heidelberg requested
a German version. Are you still interested in the publication of a Portuguese
version? Please let me know. If you need some bibliographic or some other
information in connection with your book, which is to appear, I will be glad
to be of use to you.
Devotedly yours,
Roman Jakobson
27
Jakobson, Roman. The phonemic and grammatical aspects of language in their interrelations.
Actes du Sixième Congrès International des Linguistes (Paris, julho de 1948), 1949, p. 5-18.
28
John Lotz (1913–1974), da Universidade de Colúmbia, foi secretário-tesoureiro do Círculo
Linguístico de Nova Iorque e colaborador de Jakobson em algumas ocasiões.
29
Jakobson, Roman. Notes autobiographiques de N. S. Troubetzkoy. Principes de Phonologie
de Nikolai S. K. Troubetzkoy (=Travaux du Cercle Linguistique de Prague 7, 1939. Trad.
francesa de J. Cantineau.) Paris: Klincksieck, 1949, p. xv-xxix; v. também Mattoso Câmara,
1949d.
30
Langues Paléosibériennes. Les Langues du Monde, ‘par un groupe de linguistes’ sous la direc-
tion de A. Meillet et Marcel Cohen. Paris: CNRS, nova edição, 1952, p. 276-278; p. 403-431.
(O texto de Jakobson foi publicado anteriormente em inglês em American Anthropologist n.
44, 1942, p. 602-620.)
My best thanks for your kind letter and the Actes du Sixième Congrès
International des Linguistes. I have highly appreciated your excellent Rapport
and my thesis on Portuguese Phonemics will profit by it. I intend to typewrite
it until December and I shall send a copy to you before my defense of it before
the Examining Committee of the Faculdade Nacional de Filosofia.31 I should
be delighted of course to have your observations on it before its being printed
by the Faculdade as it will be if approved by the Examining Committee. Res-
pecting the translation of Sound and Meaning I have no good news to impart.
The publishers Agir, who were much interested in it, are now in a bad situation
and have dropped their plans. I have tried another publisher, but there is an
economic depression among us and I had no success. I cannot express to you
how sorry I am of not being able to make my country have the opportunity
of a first hand translation of an outstanding linguist’s book, whose scientific
thought is sound and stimulating.
With my best wishes, I am
Yours sincerely
J. Mattoso Camara Jr.
31
O comitê examinador fora constituído no ano seguinte por Sousa da Silveira (1883–1967),
Celso Cunha (1917–1989) e Ernesto de Faria (1906–1962).
32
Mattoso Câmara, 1946 a e d.
receive both in time and I want your criticism and suggestions for a definitive
publication. I was sorry of knowing the death of Bloomfield and I intend to
write something about him, for the significance of his work is not yet duly
appreciated in Brazil.33 I was sorry also of the case of Swadesh in the College
of New York and I do not know yet how it ended.34
With the assurance of my friendship and gratitude, I am
Yours sincerely,
J. Mattoso Camara Jr.
33
Leonard Bloomfield (1887–1949). O acervo de Mattoso em Petrópolis contém o texto,
datilografado, “Leonard Bloomfield e a Linguística Moderna” (5pp.), aparentemente nunca
publicado.
34
Em 1948, Morris Swadesh foi contratado pelo City College de Nova Iorque como professor
associado e demitido um ano depois em meio a grande polêmica e por razões controversas.
(v. Murray 1994, p. 206-208). Certamente é a esse incidente que Mattoso Câmara se refere.
35
‘Bibliography of the publications of Roman Jakobson, published by his friends and students’.
Duas reimpressões em 1956; republ. em Halle et al., 1956, p. 1-12; e em Jakobson, 1967, n.
I, p. XI-XXXIII. A última compilação, completa e com vários índices, é de Rudy, 1990.
36
Jakobson, Roman. “On the correct presentation of phonemic problems”. Symposium n.5, 1951,
p. 328-335. (Syracuse, N.Y., November 1951.); reimpr. em Jakobson, 1962, p. 435-442. Neste
texto (p. 436), Jakobson cita Mattoso Câmara, entre outros, como um dos scholars que estão
imprimindo uma orientação fonêmica ao seu trabalho.
37
V. Jakobson et al., 1952.
38
O título da seção indicada é ‘Prefatory Acoustical Remarks’, op. cit. 16.
39
Na primeira impressão do Preliminaries (1952) não há referência às variedades do Português
do Brasil. Presumivelmente, Mattoso recebeu a 2a. impressão do trabalho, também de 1952,
em que de fato se lê: “In some of these languages the opposition strident vs. mellow alone is
relevant and constant; the difference of constrictives and stops becomes a redundant feature
which, under certain conditions, can fail to materialize. This happens in those Portuguese
dialects of Brazil, where the intervocalic [d b g] become mellow constrictives (cf. 1952, p.
25, 2a. impr.).
40
Aniceto dos Reis Gonçalves Vianna (1840–1914).
41
Anais do Congresso da Língua Nacional Cantada. São Paulo: Depto. de Cultura do Município
de São Paulo, 1938.
42
Há vários artigos de estilística publicados em jornal por Mattoso Câmara até 1952 (cf. Uchôa,
2004). Neste caso, presumivelmente, se trata de uma cópia da primeira edição da sua tese
de livre docência, apresentada à Faculdade Nacional de Filosofia (Rio de Janeiro) em 1952,
publicada com o título de “Contribuição para uma Estilística da Língua Portuguesa.” (2a. ed.
ampl., Contribuição à Estilística Portuguesa. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953b.)
43
Mattoso se refere ao Traité de Phonétique de 1933, de Maurice Grammont (1866−1946).
44
Ao final da carta, lê-se, manuscrito: “Na nova edição, Jakobson fez a correção indicada, e no
Prefácio agradeceu a minha contribuição”.
I am writing to you to send you my best wishes for a happy New Year.
Many years are past since our contact in New York, but I have it still present in
my memory and I don’t forget how much I have profited by it. I hope you have
received the 2nd edition of my Princípios de Linguística Geral and I should
be glad to have your criticism on it, since your ideas are quoted there so often.
Of course we wait eagerly your long promised Sound and Meaning. I know
you are working at it by Paul Garvin and Dr. Francis Rogers45 who have been
of late in Brazil. Don’t you have also in your plans a trip to this country? The
phoneme theory of Prague is now well known in Brazil (I am bold to say that
I have a great deal contributed to its diffusion) and you are highly appreciated
among Brazilian students of language. For my part I should be delighted to
renew our personal contact of years past.
Yours sincerely, [J. Mattoso Câmara Jr.]
45
Francis Millet Rogers (n. 1914), então da Universidade de Harvard.
46
Provavelmente Jakobson confundiu duas publicações de Mattoso bastante próximas: apesar
da referência aos Princípios (2a. ed., 1954) na carta anterior, o único trabalho de Mattoso
Câmara resenhado em Language entre 1950–1956 é a Fonêmica de 1953a (v. Rogers, 1954). A
terceira edição dos Princípios, de 1959, é que receberia futuramente outras resenhas, inclusive
em Language (v. Saporta, 1960; e também Llorach, 1962).
enter into your plans for the near future? As to me, I would be very glad to visit
you and finally to see Brazil and if a possibility arises it will indeed appeal to
me. But first I must finish my book which I dare to say brings a number of new
problems and which I would hate to postpone as so often I have been obliged
to do. By the way, is the publishing house of your ministry of Education still
interested in its Portuguese translation, the permission for which it asked me
on your suggestion. Your work in the field of stylistics also impressed me most
favorably and as soon as I have the reprints of my two papers, which at present
I have in press and which discuss the problem of metaphor and metonymy in
the light of language disturbances, appear, I shall immediately send you them.
Yours sincerely,
Roman Jakobson
# 13 February 6, 1955
I thank you for your kind letter. I was deeply sorry to know you have been
ill and I hope your health is by now entirely recovered. As all your friends and
admirers, I am expecting with the deepest interest your book on Sound and
Meaning. Unfortunately the recent political changes in Brazil have created new
conditions in the Ministry of Education and I fear that the offer of the ancient
Director, who was a friend of mine, will be no more extant, at least for the time
being.47 But I have still the hope of translating at last your future work. It has
just come out of printing my old translation of Sapir’s Language48 and I am
sending a copy to you by sea mail; the book was in preparation since 1952,
for, according to an old saying No Brasil não há pressa (In Brazil there is
no hurry).
With my best wishes, I am
Yours sincerely,
[J. Mattoso Câmara Jr.]
47
Essa é uma das raras referências de Mattoso às questões políticas que agitavam o país, e, mes-
mo assim, secundária em relação ao que parecia ser sua preocupação principal: a publicação
da tradução do livro de Jakobson. O comentário de Mattoso, de qualquer maneira, sugere
a extensão do ‘compadrio’ vigente no país e o tipo de dificuldade enfrentado pelo scholar
brasileiro no mercado editorial dos anos cinquenta.
48
V. Sapir, 1954 [1938].
This is first of all to wish to you and Mrs. Jakobson a good Christmas and
a Happy New Year. I have received your offprints and I sincerely thank you
for them. As I am now preparing a 3rd. edition if my Princípios de Lingüística
Geral, 49 for which your works are being most useful, I take the opportunity
to ask you a favor: I am trying to give a place to acoustic phonetics in my
exposition and I make bold to ask you and conjointly to Professor Halle and
Fant the permission to reproduce some of the spectrograms of your excellent
Preliminaries of Speech Analysis.
In the expectation of an answer from you, I am
Yours sincerely
J. Mattoso Camara Jr.
I just returned from another trip to Europe and found your letter of Decem-
ber 29. In my turn I wish you a happy and productive year. You will soon receive
some of my new reprints. I am indeed happy to learn that you are preparing a
new edition of your splendid Princípios. You are welcome to reproduce any
spectrograms from our Preliminaries.
Cordially yours,
Roman Jakobson
49
Trata-se da 3a. ed., revista, de 1959.
50
Serafim da Silva Neto (1917–1960) era então a figura dominante no cenário acadêmico bra-
sileiro. Catedrático de Filologia Românica na Universidade Católica do Rio de Janeiro e na
Universidade do Brasil, Silva Neto se encontrava na Europa neste momento, como professor
de Filologia Portuguesa da Universidade de Lisboa (Coelho, 1999, p. 44).
51
O Setor Linguístico do Museu Nacional foi criado em 1958 como um dos setores da Seção
de Antropologia Cultural, ao lado dos setores de Etnologia e Arqueologia. (Separata do
Relatório de 1959. Rio de Janeiro, 1960.)
52
Mattoso Câmara começara a trabalhar na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Petrópolis
em 1957.
53
Provavelmente em referência a Saporta, 1960.
us, but I hope very much that either you will visit the United States again in
the very near future or I shall finally have an opportunity to make a personal
acquaintance with your beautiful country. With my warmest wishes for a happy
and productive New Year, I’m sending under separate cover a few reprints and I
hope to dispatch to you, in the very near future, some other papers now in press
and two books being prepared for publication: The Grammar of Poetry and the
Poetry of Grammar54 and the so unpardonable delayed Sound and Meaning.
Your most cordially, Roman Jakobson
54
‘Poetry of Grammar and Grammar of Poetry’ foi apresentado pela primeira vez na Inter-
national Conference for Poetics, em Varsóvia, em 1960. Há variantes do trabalho em russo
(in Poetics, Poetyka, Poètika. Warsaw: Polish Academy of Sciences, 1961, p. 397-417); em
alemão (in Mathematik und Dichtung, ed. por H. Kreuzer. Munique, 1965, p. 21-32) e em
inglês (Lingua n. 21, 1968, p. 597-609); reimpr. em Jakobson, 1981, p. 87-97, que dá o título
ao volume.
55
Mattoso Câmara foi professor visitante de História da Linguística e Estrutura da Língua
Portuguesa no Instituto Linguístico de Verão da Universidade de Washington (Seattle, 1962).
Os originais datilografados, em inglês, das aulas de história da Linguística que Mattoso
ministrou na ocasião estão em Petrópolis e foi a partir deles que, postumamente, a editora
Vozes lançou a História da Linguística (Mattoso Câmara, 1975), com tradução de Maria do
Amparo Barbosa de Azevedo.
56
O IX Congresso de Linguística estava programado para acontecer em Cambridge, MA, em
1963, onde Jakobson residia desde o início da década de 1950, pelo menos.
57
Jakobson, R. The Phonemic Concept of Distinctive Features. Proceedings of the Fourth
International Congress of Phonetic Sciences at the University of Helsinki, 4-9 September
1961. Selected Writings I, p. 440-455.
They realize that the sum is small, but the conditions for a scientific book in
Brazil do not allow better terms; moreover, we have to face the Brazilian money
inflation that makes US 100,00 equivalent to a great amount of Brazilian money.
For the selection I have translated the following essays: Phoneme and
Phonology58 - Observations sur le classement phonologique des consonnes59
- Zur Struktur des Phonems60 - On the Identification of Phonemic Entities61 -
Typological Studies and their Contribution to Historical Comparative Linguis-
tics62 - Why mama and Papa?63 - Retrospect.64 This selection has consulted the
interest of the Brazilian universitarian student, who has been aimed by me. I have
omitted the papers you have included in the French translation of Trubetzkoy’s
Phonology,65 because that translation is widely available in Brazil. There will
be an ‘Appendix’ with my three studies on you and your work.
My great ambition is to translate in a near future (so I hope) your forth
coming book on Sound and Meaning.
In the expectation of your answer and that you will understand the difficult
conditions in which we work for a small public of scholars and devoted students
(the great public is biased towards false problems of linguistic ‘correction’ and
‘good style’), I am
Yours cordially
[J. Mattoso Câmara Jr.]
58
Fonema e Fonologia. Jakobson, 1967, p. 11-13. (Trad. de “Phoneme and Phonology”, [Fo-
néma] [Fonologie] Ottův slovnik naučný, Dodatky II, Praga, 1932, p. 611-612; reimpr. em
Jakobson, 1962, p. 231-233.)
59
Observação sobre a classificação fonológica das consoantes. Jakobson, 1967, p. 65-74. (Trad.
de Observations sur le classement phonologique des consonnes. Proceedings of the Third
International Congress of Phonetic Sciences. Ghent, 1939, p. 34-41; reimpr. em Jakobson,
1962, p. 272-279.)
60
Para a estrutura do fonema. Jakobson, 1967, p. 15-52. (Trad. de Zur Struktur des Phonems,
conferências pronunciadas em maio de 1939 na Universidade de Copenhagen; publ. pela
primeira vez em Jakobson, 1962, p. 280-310.)
61
Sobre a identificação das entidades fonêmicas. Jakobson, 1967, p. 53-63. (Trad. de On the
identification of Phonemic Entities. Travaux du Cercle Linguistique de Copenhage V, 1949,
p. 205-213; reimpr. em Jakobson, 1962, p. 418-425.)
62
Os estudos tipológicos e sua contribuição para a linguística histórico-comparativa. Jakobson,
1967, p. 87-99. (Trad. de Typological Studies and their Contribution to Historical Comparative
Linguistics. Proceedings of the VIII International Congress of Linguists 1957. Oslo, 1958, p.
17-25; reimpr. em Jakobson, 1962, p. 523-532.)
63
Por que ‘Mama’ e ‘Papa’? Jakobson, 1967, p. 75-85. (Trad. de “Why ‘Mama’ and ‘Papa’”.
Perspectives in Psychological Theory. Essays in Honor of Heinz Werner. New York, 1960,
p. 124-134; reimpr. em Jakobson, 1962, p. 538-545.)
64
Retrospecto. Jakobson, 1967, p.147-185.
65
V. nota 28
66
V. Mattoso Câmara, 1967
67
V., respectivamente, Mattoso Câmara, 1946a, 1956b e 1964
68
Isaac Nicolau Salum (1913–1993), na ocasião, professor catedrático de Filologia Românica
da Universidade de São Paulo.
69
Jakobson, Roman. Linguistics in its relation to other sciences. Actes du Xe. Congrès Internatio-
nal des Linguistes. Bucarest, 28 Août - 2 Septembre 1967. Bucarest: Éditions de L’Académie
de la République Socialiste de Roumanie, 1968; reimpr. em Jakobson, 1971, p. 655-696.
70
Mattoso Câmara, J. Wilhelm von Humboldt et Sapir. Actes du Xe. Congrès International des
Linguistes. Bucarest, 28 Août - 2 Septembre 1967. Bucarest: Éditions de L’Académie de la
République Socialiste de Roumanie, 1969, p. 237-332. (Petrópolis, Sep M-112)
71
De 1966 a 1969 Jakobson esteve ligado ao Salk Institute for Biological Studies, em La Jolla,
California (Waugh & Burston, 1990, p. 13)
to Brazil this year, but I shall be happy to visit you and them in 1968 either in
late May and early June, or in September.
I am glad to learn that my volume, graciously prepared by you, is to appear
in July or August. It would be nice to have a copy of it in Bucharest.
With warmest wishes to both of you from both of us,
Affectionately,
Roman Jakobson
Referências
ALTMAN, Cristina. A pesquisa linguística no Brasil (1968-1988). São Paulo:
Humanitas, 1998. (Ed. revista e ampliada da tese de doutorado Unificação e
diversificação da linguística. Pesquisa documental de produção linguística
brasileira contemporânea (1968-1988). São Paulo: FFLCH-USP/ Katholieke
Universiteit Leuven, 1993. 1a. ed. Munique: Lincom Europa, 1995; 3a.ed.
São Paulo: Humanitas, 2004.)
ALTMAN, Cristina. A conexão americana: Mattoso Câmara e o Círculo Lin-
guístico de Nova Iorque. DELTA: Revista de Documentação de Estudos em
Linguística Teórica e Aplicada, n. 20, 2004, p. 129-158.
COELHO, Olga. Filologia e linguística no Brasil (1940-1960): o ponto de vista
filológico. Boletim III do GT de Historiografia da Linguística Brasileira.
São Paulo: Humanitas, 1999, p. 37-60.
FALK, Julia S. Roman Jakobson and the history of saussurean concepts in
North American linguistics. Historiographia Linguistica, vol. 22, n. 3,
1995, p. 335-367.
FRANÇA, Angela Maria Ribeiro. Texto e contexto nos escritos linguísticos
de Mattoso Câmara (1938-1954). Dissertação (Mestrado em Linguística).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1998.
GARVIN, Paul. Review of Mattoso Câmara 1949a. Studies in Linguistics, vol.
8, n. 4, 1950, p. 93-98.
GARVIN, Paul. 1991. Audience with five decades of linguistics. A conversation
with Paul L. Garvin. In: KOERNER, E. F. K. (ed.) First Person Singular II.
Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins, 1991, p. 125-138.
HALL Jr., Robert A. The unit phonemes of Brazilian Portuguese. Studies in
Linguistics, vol. 1, n. 15, 1943a, p. 1-6.
HALL Jr., Robert A. Occurrence and orthographical representation of phonemes
in Brazilian Portuguese. Studies in Linguistics, vol. 2, n. 1, 1943b, p. 6-13.
Gonçalo Fernandes
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
gf@utad.pt
RESUMO:
Este artigo apresenta uma visão panorâmica das primeiras descrições gramaticais das
línguas nativas do centro-oeste africano dos antigos reinos do Congo e de Angola, e de
Moçambique, na parte sudeste do continente africano, pelos missionários portugueses
e/ou ao serviço do padroado português. Merecem particular destaque as obras Gentio
de Angola (Lisboa 1642; Roma 1661), Arte da Lingua de Cafre (ca. 1745 [ca. 1680])
e Arte da Lingua de Angola (Lisboa 1697), de Francesco Pacconio S.J. (1589–1641),
António do Couto, S.J. (1614–1666) e António Maria da Monte Prandone, O.F.M.
(1607–1687), anónimo (fl. ca. 1680) e Pedro Dias, S.J. (1621/1622–1700), respeti-
vamente. Também se apresenta a Obra nova da Lingoa geral de mina (Minas Gerais
1741) de António da Costa Peixoto (1703–1763), que, sendo um leigo, descreve uma
língua bantu da família Kwa, falada em Minas Gerais por escravos oriundos do Golfo
do Benim, na costa ocidental de África.
Introdução
As relações comerciais entre Portugal e o rei do Congo (ou manicon-
go) começaram ainda no século XV, logo depois de o navegador Diogo Cão
(ca.1440–ca.1486) ter atingido o rio Zaire (atualmente rio Congo), em 1482.
1
Dedico este artigo à memória saudosa do Professor Amadeu Rodrigues Torres (1924–2012),
que me abriu as portas da Historiografia Linguística e me induziu o gosto pelo estudo das
gramáticas antigas.
Manda El Rey Nosso Senhor que se faça carta pera o bispo de são
Thomé en que lhe encomenda que fauoreça os padres frei Gaspar
da Cõceipçaõ e frey Esteuaõ de Lagos da ordẽ de saõ Francisco da
obseruãcia, da prouincia da piedade, que vaão ao Regno de Congo,
ẽ companhia do ẽbaixador de sua alteza e dos do dito Rey de Cõgo;
e lhe roga que cõ eles se ẽforme das cousas do Regno de Ẽgola e do
aparelho que auerá pera a cõuersão do dito Regno de Ẽgola; e assi
tome deles ẽformaçaõ do que lhe pareçer da cõversaçaõ dos padres
que ora uão a Cõgo, pera ver se ás algũs que naõ cõvenha passarẽ ao
dito Regno; e assi os fauoreça no modo do jnsino e doctrina christã
que cá fezeraõ jmprimir ẽ lingoa da terra, pera ser mays comunicauel;
e que veja se são tãbẽ as ditas Cartilhas necessarias pera o jnsino dos
escravos das fazendas da dita Jlha, que não sabẽ a lingoa portuguesa
e entẽderaõ muytos deles a en que as ditas Cartilhas vaõ jmprimidas,
que hé a do Regno de Congo // ẽ Lixboa, a 12 doctubro de 1556.
Manda El Rey Nosso Senhor que se faça carta pera El Rey de Congo en
que lhe ẽcomẽde muyto o fauor e bõ tratamento dos padres frei Gaspar
da Cõçeipçaõ que já lá esteue e de frei Esteuaõ de Lagos seu cõpanheiro,
o qual p.e frei Gaspar lhe sua alteza torna a mãdar pera sua cõsolaçaõ
e por ter visto nelle quãto amor tẽ ás cousas do Regno do Congo e á
conversaõ e saluaçaõ das almas dele e á mesma ẽformaçaõ e conhe-
çimento que ẽ pouco tempo teue do que cõpriã ao bõ ẽcaminhamento
das cousas de serviço de nosso Senhor no dito Regno, pera bẽ do qual
Regno e dos naturaes dele procurou que se jmprimissẽ Cartilhas, ẽ
portugues e ẽ lingoa do dito Regno, pera jnsino e doctrina da gẽte
comũ; e assi lhe pede e roga que ẽ tudo o que aos dictos padres pareçer
que hé serviço de nosso Senhor ou ouça, cre[i]a e fauoreça, e assi ẽ
ordenar collegios pera jnsino dos moços, como casas de recolhimento
e co[n]vẽtos pera poderẽ jr ao dicto Regno religiosos // ẽ Lixboa, a
12 doctubro de 1556. // Antonio Pinheiro // ATT — CSV, vol. 9, fl. 63
(António Pinheiro citado por BRÁSIO, 1953, vol. II, p. 393).
2
Neste artigo, utilizámos os seguintes critérios de transcrição:
Nos textos em língua portuguesa, desdobrámos as abreviaturas, mas mantivemos as sílabas
assinaladas com til, por forma a manter, o mais possível, a ortografia original; também
mantivemos o uso das letras ramistas conforme o original, bem como o sinal tironiano ou o
“ampersand” (&);
a) Nos textos em Latim, desdobrámos as abreviaturas, mas mantivemos o sinal tironiano (&),
eliminámos os acentos pedagógicos, uniformizámos a grafia das letras ramistas, mantendo
os grafemas <v> e <j> como consoantes e <u> e <i> como vogais, e uniformizamos o uso
do <ſ> longo (ou medial) para o <s> redondo (ou terminal);
b) Nas línguas africanas, procurámos manter os textos o mais próximo possível do original.
3
José de Anchieta, S.J. (1534–1597), canonizado pelo Papa Francisco em 3 de abril de 2014,
descreveu o mesmo para o Tupinambá: “Nesta lingoa não ha f. l. s. z. rr. dobrado nem muta
com liquida, vt cras, pra, &c.” (ANCHIETA, 1933 [1595], p. 1).
4
O Lexicon Capuccinum refere-se a um Catechismus pro regno Matambae, lusitanico, latino
et eius regni idiomate (Romae 1661) e há uma carta de Monte Prandone ao Secretário da
Propaganda Fide onde refere que há vários catecismos em Quicongo: “Molti mesi sono pre-
sentai V. S. Il.ma e Revu.ma alcuni Catechismi per i Sacramenti in lingua Conghese, e con la
lettera Dedicatoria à lei medesima, jn ordine ad esser presentati à cotesti Eminentissimi per
la stampa” (MONTE PRANDONE citado por BRÁSIO, 1981, vol. XII, p. 314). Estas duas
citações são contraditórias, uma vez que na Matamba a língua falada era, aparentemente, o
Quimbundo e não propriamente o Quicongo.
–– “Observação” n.º 3:
–– “Observação” n.º 6:
–– “Observação” n.º 7:
5
Doke não está correto quando afirma que Monte Prandone “included tree pages of ‘Obser-
vationes in legendo idiomate Angollae’ in preface” (DOKE, 1961, p. 11), uma vez que na
edição de 1661há 11 “observações”, das quais 10 existiam na edição de 1642 e os autores
eram Pacconio & Couto. Não parece, assim, que Doke tenha conhecido a editio princeps.
6
O catecismo indica a data de 1650 e a autorização do Superior é de 15 de julho de 1650.
Contudo, há também uma “ata” nos arquivos da Propaganda Fide, datada de 8 de outubro
de 1658, referindo que Vetralla solicita a impressão de um catecismo (“Rosario”) e de uma
gramática (“Regole”) na língua do Congo: “Relationes Eminentissimi Cardinalis Brancatij. F.
Giacinto da Vetralla Capuccino, Prefetto delle Missioni del Congo, supplica di poter stampare
un Rosario tradotto dall’usato à recitarsi in Jtaliano, in lingua Conchese, et Abunda, nella
stamparia della S. Congregatione, et un foglio con alcune Regole più necessarie per apprendere
quelli difficoltosi linguaggi. Supplica anche de qualche numero delle Dottrine fatte stampare
da lui in lingua Conchese per dispensarle nell’occorrenze” (Vetralla citado por BRÁSIO, 1981,
vol. XII, p. 157 e 178). A gramática (ou as “Regole” / “Regulae”) foi efetivamente publicada
em 1659, mas não temos conhecimento de uma reedição do catecismo ou de qualquer outro
“Rosario” da autoria de Vetralla.
Esta lingua por ser muito limitada he muito falta de palavras; nem
tem generos mascolino femenino, e neutro em suas adiectiuacoens.
So tem alguã mudança de letras em seu adjectiuo. V. g. Bonus bona
bonum coza boa, chin tû chô cû còmà. (ANÓNIMO, ca. 1745 [ca.
1680], f. 204 v)
(…) naõ tem esta lingua declinações, nem casos; mas tem singular,
& plurar, v.g. Nzambi, Deos. Gimzambi, Deoses. (DIAS, 1697, p. 4);
Naõ tem os Ambundos casos, & por isso respondem pela mesma
pessoa, & proposições, pelas quaes se faz a pergunta. v.g. Nzambi
üazola atu osso? Deos ama a todos? üazôla: ama. O exemplo está na
pergunta, & verbo, üazola; à qual se responde com o mesmo verbo
üazola, & pessoa üà. (DIAS, 1697, p. 39);
Naõ tem esta lingua verbo passivo, donde para dizerem, Deos he
amado dos homens, dizem: Omala azola nzambi, os homens amaõ
a Deos: pondo o verbo na activa. Tambem para dizerem, os homens
saõ amados de si, dizem: Omala arizola, os homens se amaõ a si.
O mesmo he nas mais pessoas, entrepondo sempre a particula Ri.
(DIAS, 1697, p. 22);
(…) naõ tem esta lingua Generos; explicaõ-se porèm pelos sexos
femenino, ou masculino. v.g. Yalla, macho. Ngana yaalla, senhor.
Muhetu, femea. Ngana ya muhetu, senhora, &c. (DIAS, 1697, p.
23-24).
7
Apenas conhecemos um catecismo da língua dos Ardas. Foi publicado em Madrid em 1658,
pela Ordem dos capuchinhos, para a Missão de 1659. Tem o título Doctrina Christiana, y
explicacion de sus misterios, en nuestro idioma Español, y en lengua Arda. Trata-se de um
trabalho coletivo, mas foi liderado por José de Nájera com a colaboração de Vans, mais tarde
batizado como Felipe Zapata, emissário do rei de Arda, Tojonu (FERNANDES, 2012).
(…) pelo menos 90% dos dados do manual de Costa Peixoto foram
imediatamente reconhecíveis, não só os vocábulos soltos, mas igual-
mente as sentenças, de modo a não deixar dúvidas de que a língua
em questão pertence ao complexo dialectal Ewe e coincide sobretudo
com o Fõ (RODRIGUES, 2003, p. 93).
A Obra Nova tem, na totalidade, 899 palavras africanas, 426 palavras iso-
ladas e 473 inseridas em pequenos diálogos e frases pequenas (RODRIGUES,
2003, p. 93-94), registrando a atividade social naquela realidade sócio-histórica
específica, como as relações entre os proprietários e os escravos, atividades
–– “(…) màtim vihâ = naõ tem filhos naõ” (Peixoto 1741: 15);
–– “(…) hè mà gam dume hâ = naõ me mordeo naõ” (PEIXOTO, 1741, p. 37);
–– “(…) hémá bouhâ = naõ corta naõ” (PEIXOTO, 1741, p. 39).
Conclusões
Apresentamos uma síntese das primeiras descrições das línguas africanas
por portugueses ou ao serviço do padroado português e o resumo das conclusões
mais importantes dos investigadores que mais se têm destacado no estudo dessas
obras. Apesar de algumas fontes primárias estarem desaparecidas e, portanto,
só termos breves referências secundárias sobre a sua existência, situamo-nos
no espaço temporal dos séculos XVI, XVII e primeira metade do século XVIII.
Os estudos das línguas africanas têm sido bastante descurados, não só em
termos da Historiografia Linguística mas também da Linguística Missionária,
sobretudo devido à dificuldade de acesso às fontes primárias. Muitas obras
circulavam manuscritas entre os missionários, nunca tendo sido impressas.
Contudo, alguns documentos importantes chegaram até nós, quer obras escri-
tas especificamente para o continente africano quer para o americano, espe-
cialmente o Brasil, por forma a os missionários e/ou colonos estabelecerem
contatos linguísticos com os escravos oriundos sobretudo dos países / reinos
do centro-oeste de África. Destacamos, por isso, as obras Gentio de Angola
(Lisboa 1642; Roma 1661) e Arte da Lingua de Cafre (ca. 1745 [ca. 1680]) de
Francesco Pacconio S.J. (1589–1641), António do Couto, S.J. (1614–1666) e
António Maria da Monte Prandone, O.F.M. (1607–1687), e anónimo (fl. ca.
1680), respetivamente, e Arte da Lingua de Angola (Lisboa 1697) de Pedro
Dias, S.J. (1621/1622–1700), e Obra nova da Lingoa geral de mina (Minas
Gerais 1741) de António da Costa Peixoto (1703–1763).
Estas duas últimas são particularmente interessantes não só em termos
da análise linguística das línguas africanas específicas que descrevem, mas,
também, porque são dois registros brasileiros dessas mesmas línguas africa-
nas, demonstrando não só a origem dos escravos mas também — e sobretudo
— a realidade social e histórica desses mesmos escravos. São, de fato, dois
testemunhos diferentes de duas línguas africanas no Brasil, uma língua bantu
e outra da família kwa, que, embora muito distintas entre si e faladas em espa-
ços, eventualmente, diferentes (Rio de Janeiro e Bahia; Minas Gerais e Bahia)
influenciaram de sobremaneira o Português Brasileiro.
Referências bibliográficas
Fontes Primárias
ÁLVARES, Manuel. De institutione grammatica libri tres. Olyssipone: Ioannes
Barrerius, 1572. Online: http://purl.pt/23043 http://purl.pt/23121.
_________. De institutione grammatica libri tres. Olyssipone: Ioannes Bar-
rerius, 1573.
Fontes secundárias
RESUMO:
Este artigo trata da terminologia gramatical de Antonio de Nebrija (1441?-1522) e
João de Barros (1496?-1570), autores respectivamente da Grammatica sobre la lengua
castellana (1492) e da Grammatica da lingua portuguesa (1540). O objectivo deste
estudo é precisamente demonstrar a relação entre a doutrina e a “(meta)terminologia”
destes dois gramáticos peninsulares, em cujas obras se detectam, a par de singularidades
próprias de cada gramático, muitos pontos de convergência, quer no plano conceptual
quer no plano estritamente terminológico. Dada a semelhança entre as duas línguas
românicas – castelhano e português – a possível existência de um “fundo terminoló-
gico” partilhado é relevante para ambas as tradições metalinguísticas, tanto mais que
muita dessa terminologia continua a ser usada nos nossos dias. Por último, importa
averiguar onde, como e em que medida Nebrija terá funcionado como um modelo para
João de Barros.
ABSTRACT
This article focuses on the grammatical terminology of both Antonio de Nebrija (1441?
-1522) and João de Barros (1496? -1570), the authors of Grammatica sobre la lengua
1
CIDEHUS-UÉ/FCT, projeto UID/HIS/00057/2013
Introdução e propósito
É bem sabido que as primeiras codificações gramaticais sistemáticas ou “com-
pletas” da la língua espanhola e portuguesa nos chegam, respectivamente, pela
mão de Antonio de Nebrija (1441?-1522) e de João de Barros (1496?-1570).
Às mãos e ao seu talento de ambos devemos igualmente – e em perfeita con-
sonância com essas codificações gramaticais sistemáticas ou “completas”, e
como não poderia ser de outra mameira – as primeiras terminologias gramaticais
sistemáticas em espanhol e em português.
Nebrija Barros
GC-1492
GP-1540
Libro V-GC=ILC GC
2
Nesta ocasião prescindimos do Dialogo em louuor da nossa lingvagem (mas também, por
exemplo, do Prólogo da GC de AdN) que JdB acrescenta no final da sua GP. São textos
bastante conhecidos e interessantes que, não obstante, escapam à rigidez dos esquemas gra-
maticográficos e do nosso foco atual.
3
Em boa medida, é o que fez Quijada (2009) com Charpentier.
4
Para quem precise de provas: a Bibliografía nebrisense (374 páginas) de Esparza e Niede-
rehe, de 1999, contém 761 registos de obras “de” Nebrija aparecidas entre 1481 e 1996, e 33
páginas de “Fuentes bibliográficas y estudios”. Muita água correu sob as pontes desde 1999,
e a bibliografia “sobre” Nebrija não tem parado de crescer.
Nebrija Barros
GC-1492
GP-1540
Libro V-GC=ILC GC
68 219 245
Tabela 1
nominativo/primero genitivo/segundo
dativo/tercero acusativo/cuarto
vocativo/quinto
singular/número de uno plural/número de muchos
5
Em geral, e exceto quando for pertinente ou focal manter as grafias originais, as citações de
Nebrija são adaptadas à ortografia espanhola atual.
Comentários:
1.º Os termos que designam as unidades linguísticas fundamentais (por
ordem de “grandeza” ascendente) com as quais se opera nos textos do corpus
são os seguintes:
letra sílaba dicción/palabra/parte de la oración cláusula
oración/sentencia
lêtera sílaba diçám/palávra/párte da oraçám cláusula
oraçám/sentença
AdN, pelo seu lado, eleva a lista até dez com: nombre participial infinito
e com gerundio. E JdB, até nove, com a interjeiçám6.
6
Gerúndio é termo que também se encontra em JdB, tal como interjección em AdN, mas não
com o estatuto de parte da oração.
Subclasses de ILC GC GP
Adverbios 0 22 18
Conjunciones 0 5 3
Nombres 1 20 20
Pronombres 0 2 3
(Relativos) 1 5 5
Verbos 1 12 19
7
Com estas excepções, onde se prefere a preposição de: advérbios de lugar, advérbios de
tiempo.
8
Com a única excepção de continuativa que, em pares se apresenta junto com para continuar.
9
“A quál, máis própriamente, se déve chamár disjunçám que conjunçám, porque divide as
pártes” (GP: p.355).
Comentários:
1.º Tudo isto tem a ver com características ou atributos que afetam ou
dizem respeito às classes; são aqui recolhidos os tradicionalmente conhecidos
e chamados – pelos próprios autores –accidentes/açidentes (formais em geral,
mas semânticos por vezes: cf. o acidente sinificaçám/significación) dos tipos
de palavras. Estos termos caberiam – e os seus conceitos correspondentes – nas
atuais Morfologia e Morfossintaxe, e isto ainda na ausência de uma separação
teórica ou descritiva entre o que só muito mais tarde seria considerado flexão
vs derivação vs composição: estes três fenómenos entram indistintamente sob
a etiqueta acidentes.
2.º Há termos específicos – por sinal, todos latinos – para doze acidentes:
estão no quadro abaixo junto com a sua incidência (apenas a explicitamente
declarada pelos dois gramáticos) no conjunto das classes de palavras categori-
zadas por cada autor, para o português ou para o castelhano:
Acidentes Adv Art Conj 9 Ger Int N N.P.I. Part 10 Prep Pron V
Caso/Declinación no *
* * * *
Cáso/Declinaçám n/a
Conjugación
*
Conjugaçám
Calidad
*
Calidáde
Especie
* * * *
Espéçia
* *
Figura * * * * *
n/a n/a
*
Género * * no * *
n/a
Modo
*
Módo
*
Número * * no * *
n/a
Orden * *
n/a11 n/a n/a
Persona
no * *
Pessoa
Significación * *
*
Sinificaçám n/a n/a
Tiempo *
no *
Tempo n/a
10 11 12
Ali poder-se-á ler: (i) só para o gerúndio (AdN) e a interjeição (JdB) não
se indica qualquer acidente; (ii) só o verbo tem conjugación/conjugaçám ou
modo/módo; (iii) só o nome tem qualidade; (iv) só o verbo e o pronome têm
persona/pessoa; (v) a figura é o acidente mais comum: aparece em sete classes;
etc. Não é preciso chamar a atenção para as fortes concomitâncias entre os dois
gramáticos, seja no estritamente terminológico, seja no resto.
10
Não existe informação a este respeito: JdB considera-a uma parte da oração, mas não lhe
dedica um capítulo independente em que trate dela, da sua definição, dos seus traços, etc.
11
Não existe informação a este respeito: JdB considera-a uma parte da oração, mas não lhe
dedica um capítulo independente em que trate dela, da sua definição, dos seus traços, etc.
Apenas trata dele como forma do verbo, não como uma das nove partes da oração.
12
Não é propriamente um acidente em JdB.
3.º Acidente caso/cáso: existem dez nomes para cinco casos na obra de
AdN: este prefere o termo mais românico, mais adaptado aos leitores primero,
segundo, tercero… nas ILC, e o termo mais legítimo nominativo, genitivo,
dativo…, na GC. JdB usa ambas as etiquetas e mantém vivos os nomes dos
sete casos latinos (isto é, inclui o efectivo ou seitimo, o instrumental) com certa
preferência para os termos técnicos latinos.
Por sua vez, os termos primera, segunda, tercera servem: (i) em AdN
para as “tres formas de declinação” do castelhano (GC: p.231, ILC: p.315),
língua em que se configuram não à maneira latina, segundo a forma do genitivo
singular, mas deste outro modo: 1ª: singular em –a/plural em –as; 2ª: singular
em –o/plural em –os; 3ª: singular em –d, –e, –i, –l, –n, –r, –s, –x, –z/plural em
–es; (ii) nisto toma JdB as suas próprias decisões e distingue duas: primeira
declinaçám (nomes acabados em vogal) e segunda declinaçám (nomes acaba-
dos em consoante):
Isto é: não segue exatamente nem a tradição latina nem Nebrija, e adapta
a teoria à língua que procura codificar.
6.º Acidente género no nome: opta-se por decalcar os termos latinos salvo
em dois casos em que ambos os autores apostam por termos românicos “no-
vos”: dudoso/duvidoso ‘ambiguo’ (el/la color) e mezclado/confuso ‘epiceno’
(el ratón)13.
13
Não encontramos exemplos em JdB.
ao longo do texto. Contudo, não deixa de ser sugestivo que AdB, nas suas In-
troduciones latinas contrapuesto el romance al latín (c.1488), tenha proposto
pares muito semelhantes aos que são exibidos no texto de JdB:
AdN
(Introduciones… c. 1488) JdB
(GP)
Por
manera de mostrar indicativo Módo
pera demostrár
Por
manera de mandar imperativo Módo
pera mandár
Por
manera de desear outativo Módo
pera desejár
Por
manera de ayuntar sujuntivo Módo
pera–d’ajuntár
Por
manera infinita infinitivo Módo
infinito
8.º Acidente número: para este, o mais elementar e propedêutico dos textos,
as ILC, propõe pares, com clara preferência pelo termo românico: número de
uno/singular; número de muchos/plural; a GC só apresenta os termos hoje
usados; e a GP volta a oferecer ambas as etiquetas com preferência pelos termos
que continuam vivos. Supomos que JdB leu ambos os textos nebrissenses e
se serviu de um e de outro conforme a sua convêniencia (talvez pedagógica).
14
Apenas para este apresenta, também, o latinismo futuro, igualmente em JdB.
Comentários:
1.º Já se disse (supra 2.2.) que nos textos do corpus também se opera –
embora em muito menor grau do que até este ponto – com termos técnicos (ou
tecnicizados, isto é, palavras da língua comum convertidas em tecnicismos ou
empregadas como tais) que servem para manifestar relações, funções, processos
ou procedimentos entre elementos categoriais (sejam classes, sejam traços).
2.º Para referir relações, sejam sintáticas, sejam sintático-semânticas entre
elementos (geralmente palavras, tendo em conta o tipo de sintaxe perante o
qual estamos), ativam-se os termos seguintes:
15
“No se trata de una de las muchas castellanizaciones que acuña Nebrija y que tan poco éxito
tuvieron (“rodeo”, “partecilla”), sino del calco de un término latino ya empleado en la gra-
mática anterior”: reciprocatio (ESPARZA e CALVO, 2008: p.69).
16
Tanto quanto podemos alcançar, este, sim, é termo criado em castelhano por Nebrija.
17
Para régimen, não encontramos termo específico em AdN.
menos nove ocorrências nas quais JdB trata do processo na flexão verbal
ou o instrumentaliza para a explicação de outros assuntos.
Isso por um lado; por outro, num dos seus sentidos, declinación é em
AdN qualquer variação flexiva dos nomes e dos verbos; desinências, portanto,
causais, modais ou temporais, segundo a raiz nominal ou verbal; com isto é
coerente que tanto o nome como o verbo se declinen. JdB não aceita esse ponto
de vista e mostra-se inflexível – e, talvez autoafirmando-se, como antinebris-
sense – a este respeito:
18
Não se encontra na GC mas, sim, nas Introduciones…: “Inuertimus uerbum actiuum in pas-
siuum / Volvemos el verbo activo en verbo pasivo” (ILB: p.134), con invertire/volver.
e verbos; cada um deles seria uma espécie de forma base ou neutra, não
marcada – e até certo ponto “ideal” – tomada como referência para a
elaboração dos paradigmas, proporcionalmente, do nome ou do verbo.
Em JdB as coisas são de outra maneira. Em primeiro lugar, afeta só o
verbo, não o nome; em segundo lugar, para o próprio verbo são conside-
radas duas posições: a primeira, o infinitivo, que serve como pauta (“dele
podemos tomár régra”) para a formação dos outros modos, e a segunda,
primeira pessoa singular presente indicativo, que faz outro tanto para as
pessoas verbais:
“Assi que justa cousa será tomármos a ele [el infinitivo] por primeira posi-
çám do vérbo, pera dele formármos os outros módos. E a segunda posiçám
póde ser o primeiro presente do número singulár do módo demostrador,
se déla quisérmos formár algũas pessoas” (GP: p.343).
(vii) suplir (GC) | soprir-suprir, soprimento-suprimento (GP)
AdN vincula – em três ocasiões – suplir a circunlóquios ou ao rodeo e,
por conseguinte, a “carencias” do castelhano relativamente ao latim:
Comentários:
1.º Não se encontra um só termo deste tipo nas ILC; por isso foi elimi-
nada da tabela qualquer referência a esse texto. Apenas na GC oferece AdN
termos românicos para denominar a gramática e as suas partes, e isto com o
já conhecido recurso ao par terminológico neologismo latino / adaptação faci-
litadora em castelhano: gramática/arte de letras, ortografía/ciencia de bien y
derechamente escribir, prosodia/acento, etimología/verdad de palabras, etc.
JdB não anda longe disto: gramática/çiênçia de lêteras, ortografia/çiênçia de
escrever dereitamente, etimologia/naçimento da diçám, etc.
19
É o fenómeno que se produz quando se acrescenta mismo (yo mismo, ese mismo, …) ou otros
(nos otros, vos otros) aos pronomes (GC: p.237).
20
É o fenómeno que se produz quando se acrescenta mesmo (eu mesmo, …) ou outros (nós
outros, …) aos pronomes (GP: p.320) .
3. Termos e conceitos
É claro que uma coisa são os termos (“significantes”, afinal, até a este
ponto do texto) dos quais nos temos ocupado até agora, e outra bem distinta os
conceitos gramaticais – teóricos, descritivos ou de método – aos quais procuram
dar encaminhamento linguístico e aos quais procuram dar expressão formal
verbal (“significados”, afinal, considerados apenas até este ponto do texto).
Essa relação forma–significado, termo–conceito (“cada término tiene una
carga conceptual”; SWIGGERS, 2009: p.20-21) muda significativamente ao
longo da história praticamente em cada termo encontrado; não é necessário
insistir em que género não é o mesmo, nem se refere à mesma realidade gra-
matical, em AdN, por exemplo, em Villalón (1558) ou em Bello (1847), por
exemplo; ou que verbo, embora na prática acolha as mesmas entradas lexicais
em Nebrija e na GRAE-1870, é considerado a partir de perspetivas diametral-
mente diferentes pelo humanista andaluz e pela sábia corporação. O mesmo
poder-se-ia dizer da tradição portuguesa. Mas estas histórias são complexas
e não tratadas aqui, entre outras coisas porque aqui não se apresenta uma his-
tória – uma diacronia – da terminologia gramatical luso-castelhana (evolução
da relação termos–conceitos no decurso do tempo), mas antes o estado – uma
sincronia – da terminologia proposta e usada pelos dois autores concretos, uma
fase ou um momento terminográfico bem circunscrito.
Não podemos ocupar-nos aqui, obviamente, de todos os termos encon-
trados nos textos22 e já apresentados ao longo deste trabalho, pelo que nos
centraremos a partir de agora em alguns deles que, por alguma razão, conside-
rámos mais importantes ou mais chamativos ou mais difíceis: Que referem os
termos propostos? Que conceitos gramaticais – teóricos ou descritivos – são
preenchidos e referidos, e por quais termos? Redescobriremos que essa relação
21
Supra 1.2.2. 7º (modos), 8º (números) e 10º (tempos) e 1.2.4 1º (gramática e as suas partes).
22
Insistimos: uns 226 em AdN e uns 245 em JdB.
Declinaciones/declinações
Castelhano (ILC: p.315; GC: p.231):
1ª singular em –a / plural en –as
2ª singular en –o / plural en –os
3ª singular en –d, –e, –i, –l, –n, –r, –s, –x, –z /plural en –es.
Português (GP: 315):
1ª [nominativo singular em] a, e, i, o, u: vocal
2ª [nominativo singular em] l, m, r, s, z: consonante
Ainda não nos foi possível identificar o traço que guia a numeração das
declinações, nem em latim nem em castelhano, nem, ainda, em português;
não será, certamente, a ordem alfabética, nem o nominativo ou o genitivo em
latim, nem do singular ou o plural em espanhol, nem de vogal vs consoante
em português.
Casos
Nas ILC: p.316-317 e GC: p.233 atribui-se o nome de (caso) primero, se-
gundo, tercero, cuarto, quinto a, respectivamente, nominativo, genitivo, dativo,
acusativo, vocativo. Nas ILC mostra-se uma clara preferência por denominações
23
No texto não são pormenorizados os usos dos termos que apenas servem para o latim e não
têm correlato em espanhol (ILB: p.146-149 e GC: p.253-255): “tres gerundios sustantivos:
el primero del genitivo, el segundo del ablativo, el tercero del acusativo”; com relação ao
supino: “primero supino” (eo venatum > voy a cazar), “segundo supino” (mirabili dictu >
cosa maravillosa de ser dicha).
Isto tem a ver, portanto, com o que hoje se consideraria a sua função de
SN sujeto, ou de primeiro actante, etc.
Conjugações
Castelhano (ILC: p.327-329; GC: p.249) e português (GP: p.331):
1ª acaba/contrói (presente do) infinitivo em –ar/–ár: amar / amár
2ª acaba/ contrói (presente do) infinitivo em –er: leer / ler
3ª acaba/ contrói (presente do) infinitivo em –ir: oír / ouvir
24
Casus rectus = derecho [‘no cae de otro” nas ILB: p.105].
Deve atender-se ao facto de que nem AdN nem JdB definem propriamente
a categoria (GÓMEZ ASENCIO, 1995: p.295), mas, sim, cada um dos seus
componentes, isto é, não se define pessoa mas cada uma das três reconhecidas;
e que na definição destas existe algo de pragmático e situacional: atende-se
menos ao aspecto formal do acidente, ao morfemático, do que aos intervenientes
no ato de comunicação.
A disposição das pessoas precisamente nessa sequência numérica ordinal
tem fundamento explícito em AdN, mas não em JdB: obedece à “orden natu-
ral de las personas”. Mais ou menos: a pessoa que fala é mais importante que
aquela à qual fala (tem a mais alta dignidade e deve mencionar-se em primeiro
lugar); e esta é mais importante que aquela da qual fala a primeira (por isso,
tem de mencionar-se em segundo lugar):
Existem, pois, seis razões para tal preeminênçia: (i) metalinguística, me-
tagramatical: o infinitivo fornece a pista para atribuir cada verbo concreto a um
modelo formal de conjugação (1ª, 2ª, 3ª); (ii) gramatical: o infinitivo fornece a
pauta para a formação do resto das formas verbais: em –ár fazem a suas formas
de uma manera, en –er de outra, etc.; (iii) de frequência: o infinitivo é a forma
verbal mais usada; (iv) de aquisição: o infinitivo é a forma que as crianças
usam primeiro na aquisição da sua língua materna; (v) de aprendizagem: o
3.2. Género
O termo recobre conceitos bastante diferentes consoante se trate do nome
(e classes com ele conectadas25) ou de verbo; é, portanto, termo não unívoco,
e a categoria mal aparece definida. É surpreendente o paralelismo com que
25
No que respeita ao artículo, nem sequer é certo que tenha o acidente género. Há (GC: p.241)
três artigos que servem “para demostrar de qué género es” o nome: el para o género masculino,
la para o género feminino, lo para o género neutro. Nada sugere que, em AdN, género seja
um traço ou propriedade inerente ao artículo. Em JdB (GP: p.313) não é muito diferente.
JdB segue-o de perto, mas corta com tão perfeito paralelismo definitório
(GP: p.308 e p.325):
o mácho da femea e o
em el nome é ũa distinçám
pela quál neutro de ambos
Género
em o vérbo é ũa natureza espeçi- conheçemos serem uns autivos, outros
ál que tem uns e nam tem outros passivos e outros neutros
3.2.1. No nome
Ambos os gramáticos apresentam sete tipos de géneros (supra tabela 4).
Em AdN, seis deles – em escassa consonância com a definição da categoria –
não são considerados sob os pontos de vista semântico nem referencial:
É do género masculino o nome com o qual se junta este artigo el: el
hombre, el libro
É do género feminino aquele com o qual se junta este artigo la; la mujer,
la carta
É do género neutro aquele com o qual se junta este artigo lo: lo justo
É do género comum de dois aquele com o qual se juntam estes dois artigos
el, la: el/la infante
É do género comum de três aquele com o qual se juntam estes três artigos
el, la, lo: el/la/lo fuerte
Es del género dudoso aquel con que se puede ayuntar este artículo el, la:
el/la color, el/la fin
É do género misturado aquele que sob este artigo el ou la significa os
animais machos e fêmeas: el ratón, la comadreja.
pelo supino); em duas delas é traduzido por Nebrija como suplimos e, numa
terceira, como por circunloquio suplimos. Eis o primeiro registo do termo
circunloquio na história da língua española26. E, talvez, a primeira pista para
soprir/suprir e o circunlóquio de JdB.
O denominado Diccionario de Autoridades (RAE: 1729) define circunló-
quio como ‘rodeo de palabras’ e inclui esta acepção especificamente gramatical:
“En la Gramática es una de las partes de la conjugacion, que corresponde
a esta locucion: Que amára, ò huviera de amar”.
Alguma coisa, se não tudo, vem da GC de AdN: o capítulo xi do Libro
tercero intitula-se precisamente assim: “De los circunloquios del verbo”. Aqui se
incluem expressões, formas verbais complexas, que se integram na conjugação
(ILC: p.329 e seguintes) e com as quais são resolvidas, em castelhano, certas
carências flexivas dos verbos quando são cotejados com os latinos: “Así como
en muchas cosas la lengua castellana abunda sobre el latín, así por el contrario la
lengua latina sobra al castellano, como en esto de la conjugación” (GC: p.249).
Em concreto, incluem-se aqui:
1. Os equivalentes em espanhol da “voz impersonal” latina: (i) terceiras
pessoas do plural do verbo ativo; (ii) terceiras pessoas do singular com
se de reciprocación o retorno (supra 1.2.3. comentários 2º (i) e 3º (vii)).
Assim, curritur é corren ou se corre.
2. As construções com ser e particípio em –do que substituem a voz passiva
latina. Assim, amor é soy amado.
3. As construções com verbo ativo e o pronome se de retorno que referem
o mesmo – passiva – que a fórmula sintetizada na secção imediatamente
anterior. Assim, ámanse las riquezas equivale a son amadas las riquezas.
4. No que diz respeito à “voz activa”, “tiene también el castellano menos
tiempos que el latín” e para expressar isso mesmo é necessário fazer
um rodeo. Cabem aqui as posteriormente denominadas “formas com-
puestas del verbo”, as construídas com o verbo haber seguido de nome
participial infinito (vid. TOLLIS, 1998 [1984] e também aqui, infra).
26
Naturalmente, no estado atual dos conhecimentos sobre ela: Corominas-Pascual (Dicc. crítico
etimológico castellano e hispánico, Madrid, Gredos, 1980, s.v. Locuaz) colocam a sua pri-
meira ocorrência em 1530, e o Corpus del Nuevo diccionario histórico del español (consulta
online: 15/03/2013: http://web.frl.es/CNDHE/org/publico/pages/consulta/entradaCompleja.
view) regista o circumloquio (sic) em 1500, mas teremos de esperar até 1528 para encontrar
circunloquio, forma já atestada em Nebrija ILB-1488?
Já se terá percebido que vários dos circunloquios del verbo (em concreto
o 2. e o 4. de 3.3.) são formas por rodeo, mas que ambos conceitos – embora
entrecruzados – não se recobrem um ao outro; os circunlóquios constituem,
em latim, formas verbais da conjugação.
27
Tal como os comparativos (estes, pelo contrário, não explicitamente considerados como por
rodeo) constroem-se com más e o positivo.
2. Eficáçia
Em JdB é termo bastante próximo de vehêmençia (hemencia em AdN;
supra 2.1.3.), mas usado mais profusamente. Fica por definir, o que já não nos
deveria surpreender, dado que essa prática é relativamente habitual nos dois
gramáticos estudados. Tem a ver com uma espécie de força ou “ênfase” que
ocorre em duas circunstâncias: (i) vinculada à figura composta do pronome e
da preposição28; (ii) relacionada com o contributo do advérbio para o verbo.
Leia-se:
28
Para este último caso, supra 1.2.2. comentário 5º.
Foi ésta párte [o avérbio] mui neçessária, ca per éla se denóta a efi-
cáçia ou remissám do verbo, porque, quando digo: Eu amo a verdáde,
demóstro que simplesmente fáço ésta óbra de amár; mas dizendo: Eu
amo muito a verdade, p[er] este avérbio muito, denóto a cantidáde do
amor que tenho à cousa; e se dissér: Amo pouco a verdáde, com este
pouco se diminuie o muito de çima; e: Nam amo a verdáde, desfáço
toda a óbra de amár (GP: p.345).
É digno de nota, para terminar, que AdN por um lado considere também que
mismo e otros (em nos-otros) são elementos que, por meio da figura composta,
acrescentam hemencia ao pronome, e por outro entenda que aquele mismo, e
pelo menos alguns casos de “mucho”29, são partezillas, termo e conceito ideados
pelo gramático espanhol.
Conclusão
Cada um dos dois livros ou três textos examinados – à sua maneira, e
em grau e natureza diversos – apresenta uma forte dose de informação lexico-
gráfica de carácter terminológico. De facto, poderia sustentar-se – com algum
atrevimento – que quase nos encontramos perante “dicionários técnicos” em
que os termos não aparecem na habitual ordem alfabética; aqui, essa mesma
realidade metalingüística (i.e. a gramática, “o gramatical”) encontra-se disposta
em ordem gramaticográfica, que obedece a pautas que tinham sido fixadas pela
tradição herdada. Dito de outro modo: em boa parte estes textos contêm um
dicionário de gramática espanhola ou de gramática portuguesa disposto de uma
forma não alfabética, mas antes gramatical, de acordo com a teoria-doutrina;
em disposição não lexicográfica mas, sim, gramaticográfica.
A maior parte da terminologia gramatical presente nos textos do corpus
continua viva nas atuais gramáticas do português e do espanhol; dito de outra
maneira: muita da terminologia gramatical em uso “hoje em dia” encontra-se
já configurada nestes textos pioneiros: as listas acima apontadas dão sobeja-
mente testemunho dessa conclusão, que se impõe naturalmente por si própria.
29
Por exemplo em “Hijo mío mucho amado” do Marqués de Santillana (GC: p.193).
Ora bem, esse fracasso, em particular, não é senão uma das faces do su-
posto fracasso gramaticográfico de Nebrija, em castelhano, em geral. Já foi dito
até à exaustão que a GC não voltou a reeditar-se durante o século XVI nem no
XVII, que veio a lume – já inoperante, e, supõe-se, sem eficácia – nos meados
do século XVIII, na edição contrafeita atribuída ao conde de Saceda, etc. Por
outras palavras: não se trata de não ter êxito especificamente no seu esforço de
adaptação/criação de uma terminologia gramaticográfica para o espanhol; antes
se trata de que – e salvo excepções muito puntuais, entre as quais se contam
Miranda ou Correas – careceu de repercussão em geral no tocante à codificação
do espanhol… E, portanto, à teorização sobre esta língua.
Curiosamente, a obra castelhana de AdN teve incidência, sim, e muita, na
obra portuguesa de JdB; fracassou o gramático salamaticense do lado espanhol
da raia e triunfou – relativamente, claro – do lado português.
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Janeiro: Presença, 1991.
RESUMO:
Este texto tem como foco de observação, a partir da Historiografia da Linguística, a
retórica de linguistas em momentos de ruptura na história do conhecimento sobre
a linguagem. Para tanto são colocados sob análise posicionamentos discursivos em
um texto que se considera na história da linguística brasileira como o de divulgação
inicial da Gramática Gerativa no Brasil, a saber, a resenha que Miriam Lemle fez em
1967 das ideias de Noam Chomsky. A interpetação aqui proposta destaca um episódio
do desenvolvimento da linguística no Brasil, acabando por evidenciar de que modo
a prática científica é também uma prática discursiva, circunscrita a uma dimensão
histórica e social específica.
ABSTRACT:
This text focuses on the observation, from a Linguistic Historiography perspective,
of the linguists rhetoric in moments of rupture in language knowledge history. It will
analyze discursive positions in texts, which are considered the initial development of
Gerative Grammar in Brazil, specifically, the review Miriam Lemle wrote in 1967 about
Noam Chomsky’s ideas. The proposed interpretation will focus on one episode of the
Linguistics development in Brazil, showing that cientific practices are also discursive
practices that are surrounded by historical and social dimensions.
Introdução
As reflexões elaboradas historiograficamente podem colocar em destaque
uma complexa dimensão que se forma quando correntes teórico-metodológicas
de tratamento da linguagem são consideradas como objeto de análise, permitindo
uma interpretação do desenvolvimento histórico da construção de saberes por
meio de uma perspectiva que estabelece o conhecimento científico como deri-
vado de um contexto social e institucional. Nessa perspectiva de observação,
o historiógrafo pode chegar a interpretações que evidenciam como as ações da
conduta investigativa na ciência relacionam-se em cadeia implicativa, na qual
um posicionamento conduz a outro, ao mesmo tempo em que anula aqueles que
se circunscrevem a outras esferas sociais de prática científica. Para chegar a esse
ponto de investigação, observar a dimensão social do conhecimento científico
é essencial, porque se passa a definir “a ciência não como um episódio isolado
de comportamento de determinado indivíduo, mas como um padrão de com-
portamento que se encaixa em determinado contexto” (DUTRA, 2008, p. 291).
Ou seja, os empreendimentos científicos estabelecem uma rede de contatos, na
qual apresentações de modelos e suas aplicações por um pesquisador implicam
necessariamente formação de diálogo com o grupo a que ele pertence e mesmo
com outros grupos em relação aos quais se coloca em posição de franca ruptura.
Chega-se, assim, ao que Bourdieu (2004) define como os capitais de valoração
que envolvem o conhecimento intelectual e científico, permitindo o reconheci-
mento de ideias em um recorte temporal e em uma esfera institucional e social.
Sendo assim, a realidade histórica, com seus documentos e vestígios, é re-
construída constantemente pelas perspectivas analíticas que a tomam como objeto
de observação a partir de diretrizes teórico-metodológicas, neste caso aquelas
assumidas pela Historiografia da Linguística. Coloca-se como função desse re-
corte teórico interpretar saberes sobre a linguagem humana (considerados como
documentos históricos) tanto em sua dimensão interna (o que os documentos/
textos históricos dizem, como dizem, por que o dizem), quanto em sua dimensão
externa (o contexto histórico-social em que documentos/textos históricos são
legitimados como parte de um processo científico e/ou intelectual).
Para uma reconstrução historiográfica da linguística, pode-se teoricamente
considerar que a história é sucessão alternada de continuidades e desconti-
nuidades. Há, portanto, a compreensão de que o desenvolvimento de estudos
sobre a linguagem ao longo do tempo possibilitou a formação de tradições
de pensamento, no sentido de que o conhecimento sobre línguas e linguagem
configurou-se em perspectivas diversas, congregando intelectuais, cientistas,
1
“As teorias científicas são sempre provisórias e refletem certo estado do conhecimento, nunca
sendo atribuído a elas o caráter de verdade final.” (BORGES Neto, 2012, p. 38)
2
Em sentido geral, consideramos a definição de discurso relacionada ao que propõe Foucault:
“um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva;
ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento
ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um
número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de
existência”. (FOUCAULT, 2008, p. 132-133)
3
A abordagem considerada como fundadora para a reflexão dos modos de dizer dos linguistas
é a publicação de Murray (1994), que propõe como categoria de análise para os processos
sociais que envolvem práticas científicas (e especificam o que entendemos como discursos
científicos), os conceitos de retórica de continuidade e retórica de ruptura. Esses conceitos
dizem respeito a percepções que a comunidade de cientistas tem sobre si mesma e sobre suas
formas de atuação nos ambientes em que empreende suas práticas de produção e difusão do
conhecimento.
essa noção como um dispositivo de análise que permitirá observar nas manifes-
tações linguísticas, no âmbito do discurso científico em ciências da linguagem,
posicionamentos de continuidade ou de ruptura na produção e divulgação de
modos de descrição e análise de fenômenos linguísticos, pois, quando comu-
nidades científicas se organizam em torno de uma retórica de ruptura ou de
adesão a um paradigma, a suposta neutralidade do discurso científico coloca-se
diante de um posicionamento que se quer legítimo e ocupa seu lugar social,
uma vez que fala de um espaço específico e demarcado4. Propomos, assim,
considerar retórica como modos de dizer resultantes de práticas discursivas,
originadas em campos específicos dos saberes. Esse retórica é veiculada em
modalidades enunciativas específicas (em gêneros discursivos), associadas a
imagens simbólicas produzidas pelos próprios atos discursivos, engendrados
em um contexto social, histórico e ideológico (com todas as variáveis que esse
complexo implica), que acaba por definir cada ato de enunciação como singular
e específico, a partir de um sujeito enunciador da linguagem, visto, desse modo,
como imerso em um jogo de forças entre a transparência (efeito de sentido) e
a opacidade da linguagem5.
Essa retórica dos cientistas da linguagem (imersos nos efeitos de sentido
implicados no que se considera como ideal científico em determinada época)
veicula nos enunciados/textos produzidos (nosso material considerado como do-
cumento histórico) considerações acerca da linguagem próprias de um domínio
teórico (relativo a concepções de linguagem adotadas por um pesquisador), que
valida, consequentemente, um domínio técnico (conjuntos de procedimentos
de descrição e análise). Essas dimensões em que os discursos dos cientistas se
ancoram estão presentes (de modos variados, de acordo com as especificidades
de práticas comunicativas contextualizadas) em um domínio documental (o
material considerado para análise historiográfica), inserido, consequentemente,
em um domínio contextual e institucional, singulares e específicos também
(SWIGGERS, 2005).
4
“O empreendimento científico é corporativo. [...] Nunca se trata de um único indivíduo que
passa sozinho por todas as etapas da cadeia lógico-indutiva, e sim de um grupo de indivíduos
que partilham entre si o trabalho mas fiscalizam permanente e zelosamente as contribuições
de cada um.” (ZIMAN, 1979, p. 25)
5
Essas colocações são derivadas de Foucault, que entendia prática discursiva como “um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que
definiram, em dada época e para determinada área social, econômica, geográfica ou linguística,
as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2008, p. 133)
6
Definir retórica como categoria observacional traz como consequência a afirmação de que a
ciência e o conhecimento intelectual podem ser situados em um panorama sociológico, pois
se entende ciência como produto de uma situação social específica, que pode ser observada
também nos meios de troca do conhecimento, os quais passam a adquirir valores a serem
alcançados ou negados, um capital reconhecido pelas comunidades de pesquisadores. Valores
que podem ser materializados em ampla rede intertextual de citações, legitimadora do conhe-
cimento e do próprio fazer científico adquiridos e divulgados pelos sujeitos que os elaboram
em busca da validação de saberes.
7
O emprego do termo retórica na tradição clássica grega relacionava-se exatamente com essa
propriedade persuasiva dos dizeres, com os treinamentos para convencer por meio da palavra
e por meio dela também vencer debates e disputas que se davam pelo exercício da prática
oral da linguagem. (v. NEVES, 2005)
8
“Now, to regard science as an enterprise marked by controversies and constant clashes of
opinion amongst researchers with conflicting and competing views is to admit that scientific
research is over and above everything else a human affair.” (RAJAGOPALAN, 2009, p. 435)
9
As reflexões sobre retórica como categoria de análise devem ser consideradas como primeiras
tentativas de abordar a categoria de um ponto de vista teórico-metodológico. Este artigo é
parte de uma reflexão maior que está em desenvolvimento como projeto de pesquisa.
10
"'Ideologia' se define classicamente de acordo com dois elementos: uma função valorativa,
normativa, diretiva que corresponde aos interesses de um grupo ou classe dominante numa
sociedade; e o ocultamento desta função e de sua origem, produzindo-se uma ilusão de
objetividade que de resto é indispensável para que a ideologia exerça sua função diretiva. A
linguagem apresenta-se assim como instância autônoma, como meio transparente, enquanto
na realidade é uma prática social concreta, e as relações sociais que a pressupõem e que a
constituem não são simples e aparentes." (MARCONDES Filho, 1992, p. 29)
mento de ethos dos produtores dos textos; estilos de escrita11. Assim, propomos
considerar o discurso científico a partir de uma hipótese central que estabelece
que um texto é uma prática comunicativa que envolve sujeitos que enunciam,
em modos específicos de materializar efeitos de sentido em determinado con-
texto de enunciação, e procuram persuadir seus interlocutores a acatar ideias,
saberes, pensamentos, sempre a partir de uma circunscrição histórica, social
e ideológica dos dizeres. Um texto, nesse sentido, é uma materialidade e uma
singularidade também, uma vez que atualizado e reatualizado constantemente
nas práticas comunicativas produtoras dos mais variados efeitos de sentido,
imerso em relações intertextuais e interdiscursivas. A partir dessa consideração
de base, entende-se, também, que texto e discurso estão autoimplicados nesse
processo, portanto pode-se compreender uma unidade textual a partir tanto
de sua dimensão linguística (componente linguístico), como também em sua
dimensão de ato de fala (componente retórico).
Além desses aspectos linguísticos, que dizem respeito à configuração
interna dos textos escritos por linguistas (nosso material de análise e docu-
mento histórico), a circunscrição social dessa retórica é fundamental para a
compreenssão das práticas discursivas dos linguistas. Desse modo, interessa
o aspecto social como parte do processo histórico de formação e desenvol-
vimento de uma ciência ou área de saber e de suas práticas discursivas. Em
busca da discussão e correlação dos dados, para elaborar uma reflexão crítica
das escolhas tomadas pelos agentes que trataram de um problema situado em
determinado contexto/período, serão considerados também como elementos
de análise: a) o clima de opinião em que paradigmas são propostos12; b) a
11
Indicamos alguns elementos que podem estar em jogo quando se coloca retórica como uma
categoria de análise. Este artigo procura iniciar uma reflexão nesse tema, por isso nem todos
esses aspectos serão considerados na observação, introdutória, do texto (documento histórico)
na próxima seção.
12
Ainda que haja uma série de críticas a respeito do controverso emprego do termo e da noção de
paradigma como formulada por Thomas Kuhn em 1962, ela permanece adotada nesta proposta
de trabalho, considerando um distanciamento crítico em relação à proposta kuhniana original
e fazendo as adaptações necessárias para uma análise em Historiografia da Linguística. Na
revisão em que novamente se debruça sobre o termo paradigma e sua configuração teórica,
diz Kuhn: "No livro [de 1962], o termo 'paradigma' ocorre em estreita proximidade, física e
lógica, com a expressão 'comunidade científica'. Um paradigma é aquilo que os membros de
uma comunidade científica, e apenas eles, compartilham. Reciprocamente, é a posse de um
paradigma em comum que institui a comunidade científica a partir de um grupo de pessoas
com outras disparidades" (KUHN, 2011[1977], p. 312).
"A noção paradigmática de Kuhn e o conceito de Carl Becker dum 'clima de opinião' - se
redefinidos com o propósito de escrever a história da linguística - parecem-me ser os pilares
sobre os quais uma historiografia linguística pode repousar." (KOERNER, 2014, p. 12)
13
A expressão “grupo de especialidade” é de uso constante em Historiografia da Linguística, a
partir de Murray (1994), denotando comunidades de pesquisadores em torno de um mesmo
paradigma.
14
Ressaltamos, mais uma vez, que este texto é o início de uma reflexão sobre o alcance do
estudo da retórica em Historiografia da Linguístca. Os elementos apontados para observação
do contexto social de produção e divulgação dos modos de dizer não serão todos aplicados
na análise inicial que apresentamos na seção seguinte.
15
Considerações desta seção retomam análises presentes em outros trabalhos já realizados em
torno de uma análise da recepção brasileria à Gramática Gerativa.
16
A denominação "estruturalismo" é complexa, pois o termo pode se referir a diferentes dimen-
sões de análise. Consideramos o emprego do termo para estabelecer referência a estudos em
torno de propostas distribucionalistas, reconhecidas como "estruturalismo norte-americano".
17
“Esse período da linguística nacional pode ser descrito como um momento de superposição
de teorias e métodos propostos por diferentes escolas linguísticas. Basta lembrar que um ano
antes da publicação da resenha que muitos consideram como marco da recepção do programa
gerativista, em 1967, Aryon Rodrigues publicou na revista Estudos Linguísticos, em seu
número de julho de 1966, as “Tarefas da linguística no Brasil”. No texto, Rodrigues estabe-
leceu uma série de atividades (de natureza descritiva com destacada orientação estruturalista
norte-americana) a serem cumpridas pelos pesquisadores, tendo em vista o desenvolvimento
de uma ciência da linguagem no Brasil. Essas tarefas envolviam investigação das línguas
indígenas e das línguas de minorias europeias e asiáticas e a ‘descrição da língua portuguesa’,
além das tarefas relacionadas à linguística aplicada.” (BATISTA, 2010, 265)
18
As aspas duplas são empregadas para indicar que as palavras e expressões são citações do
texto de Lemle.
19
Este texto considera como material de análise apenas a resenha de Lemle, tendo por ob-
jetivo evidenciar a presença da retórica de ruptura em texto que a história da linguística
brasileira reconhece como introdutor do pensamento chomskiano no Brasil. Esse recorte
bastante específico não desconsidera, naturalmente, que a Gramática Gerativa se desen-
volveu em diferentes modos de presença no contexto brasileiro de produção científica em
linguística, no entanto não é o escopo deste artigo estabelecer tal história. Para uma leitura
sobre desenvolvimentos dos estudos em Gramática Gerativa no Brasil remetemos o leitor
a trabalhos de Batista (2007, 2010).
20
Aspects representa o início do período cognitivo da Gramática Gerativa, momento de diálogo
entre as propostas gerativistas e os aspectos cognitivos da linguagem humana. As aclamadas
ruptura e mudança revolucionária se faziam mais uma vez presentes na aproximação da
linguística com a prática de pesquisa das disciplinas exatas e naturais, de onde viria, por
exemplo, o rigor metodológico e argumentativo.
Note-se que, com isto, fica postulada uma hipótese bastante ousada
e específica sobre o mecanismo da aquisição lingüística: tanto a
criança no aprender a falar quanto o adulto no aprender novas lín-
guas só poderiam realizar essa tarefa imensamente complexa se, ao
se aproximarem dos dados, já possuíssem um esquema prévio, um
pré-conhecimento tácito dos universais lingüísticos.
..............................................................................................
O modelo do processo psicológico de aprendizagem aí sugerido opõe-
-se diametralmente ao proposto pelas teorias mecanicistas, que vêem
a aprendizagem como uma fixação de hábitos baseada na seleção de
associações estímulo-resposta [...]
..............................................................................................
Assim chega-se a mais uma notável diferença de conceitos entre a
lingüística da primeira metade do século e esta. Aquela, conceben-
do uma língua como um corpus de dados, considerava-a como um
sistema em si, independente de todas as outras. [...] Pela teoria de
Chomsky, ao contrário, [...] sendo uma língua vista como uma das
formas possíveis de manifestação da propriedade humana de lingua-
gem, é natural que todas as descrições partam de um mesmo molde
e façam uso de um cabedal comum de termos e tipos de regras, pois
eles são entendidos como denotações de caracteres que são gerais.
(LEMLE, 1967, p. 58-59)
Mesmo quando se abordou algum elemento que poderia não ser favorável
ao paradigma gerativista, a retórica adotada acabou direcionando o que seria
uma fraqueza para o caminho da cientificidade ideal, mesmo que esta estivesse
próxima de uma abstração maior, o que exigiria outra capacidade e entrega in-
telectual do linguista. Ou seja, a retórica, em linhas implícitas, nos parece dizer
que a tarefa é árdua e exatamente por isso é que é evidência da superioridade da
proposta teórico-metodológica em resenha. Temos, aqui, o estabelecimento de
um ethos para esse “novo” linguista, atrelado, por conta da imagem que dele se
constrói no discurso, a símbolos de juventude, ousadia e amplidão intelectual,
capaz de ultrapassar o tradicional em pesquisa de linguagem e manter diálogo
aberto com o que sempre constituiu o imaginário sofisticado de um cientista:
a lógica, o uso de cálculos, a abstração, as fórmulas e recursos gráficos. Um
ethos que também segregava, mas mesmo esse distanciamento pode ser visto,
na retórica, como positivo, uma vez que apontava para a própria necessidade
de reformulação na formação dos linguistas (veja, nesse sentido, que Lemle
destacou uma revisão nos EUA do que seria considerado como conhecimento
básico para a formação desse cientista da linguagem já sob influência das
propostas de Chomsky).
No trecho abaixo, pode-se notar a distinção que a retórica estabeleceu entre
um linguista teórico e um linguista, digamos, aplicado. O ethos da cientificidade
está atrelado a esse teórico que, imerso nas abstrações próprias relacionadas
ao ideal de explicação do fazer científico, deve, após seus empreendimentos
chegarem a um bom termo, lançar caminhos para o “lingüista prático”. O
discurso de Lemle, seguindo modos de construção de discursos como o cien-
tífico (que precisam trabalhar com a suposta, e enganadora, transparência da
linguagem para transmitir sentidos próximos da ideia de algo incontestável e
dado como certo; autoritários, portanto), ao fazer afirmações como “nessa luz,
não há alternativa mais adequada para a descrição do fenômeno linguístico do
que uma teoria rica e a linguagem algébrica”, colocou na perspectiva do leitor
a noção de que essa teoria, vista, ressaltamos mais uma vez, como o ideal de
cientificidade, era exatamente aquela que a resenha estava expondo. Em uma
construção declarativa afirmativa ressaltou-se o conteúdo proposicional, dei-
xando encobertos seus valores subjetivos, mascarando a retórica que está por
detrás dos dizeres científicos, sociais e argumentativos em sua essência. Veja-
Conclusão
Um discurso programático, como o estabelecido por Lemle na divulgação
da proposta gerativista, nos indicia que a retórica adotada estabelece o que se
entende como uma pragmática da investigação científica, circunscrita a co-
munidades específicas. Entender essa prática como ação põe em evidência um
modelo de interpretação da ciência e seus desenvolvimentos que, ao colocar em
jogo uma série de parâmetros de análise, observa contextos em que se inserem
investigações científicas. Assim, colocam-se como aspectos importantes: a) o
dialeto técnico dos linguistas e a retórica utilizada ao configurar um discurso
programático, também este institucional, pois o discurso localiza e relaciona
membros pertencentes a determinadas comunidades de pesquisa; b) as funda-
mentações teóricas e os procedimentos de análise que particularizam práticas
de investigação científica; c) as formas de comunicação dos resultados, con-
figurando a literatura específica de um grupo de pesquisadores vinculados a
paradigmas específicos.
Desse modo, considerar a retórica como categoria de análise para a in-
terpretação de períodos da história da linguística define como ponto central de
observação o discurso dos cientistas da linguagem. Na dimensão pragmático-
-discursiva que esse cientista delimita e firma no processo histórico, reconhe-
cemos as marcas de iniciativas sociais e subjetivas que colocam uma prática
intelectual e científica em contextos configurados pela própria ação linguística
de seus executores, em ressonância com o conceito de atos de fala e com a
compreensão da linguagem como ação, no sentido de que os dizeres, localizados
e circunscritos em uma dinâmica social, elaboram espaços de inserção científi-
ca em contextos mais amplos. Espaços que serão ou não validados por outros
pesquisadores, ficando para a história da área como trajetória de sucesso ou
fracasso. Espaços delimitados, na perspectiva analítica aqui adotada, pela força
de uma retórica de ruptura com outros saberes, como numa chave elementar:
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FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves
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RESUMO:
No artigo é analisada, nas obras metagramaticais do português dos séculos XVI e XVII,
a descrição dos pronomes pessoais átonos. Partindo de trabalhos que, entre outros as-
petos, abordam com algum pormenor o pronome na tradição gramatical do português,
é estudado o grau de gramatização das formas em estudo, bem como, no caso de elas
aparecerem registadas, o discurso gramatical acerca delas, tanto no que se refere à
descrição como à prescrição, e os paradigmas em que se integram.
PALAVRAS-CHAVE:
Pronomes pessoais átonos – Gramaticografia do português – Séculos XVI e XVII
ABSTRACT:
This paper analyzes the description of clitic pronouns in the metagrammaticals works
of the Portuguese language of the 16th and 17th centuries. Based on works that,
among other aspects, discuss in some detail the pronoun in the gramatical tradition of
Portuguese language, it is studied the degree of gramatization of the forms, as well as
the grammatical speech about them regarding the description, the prescription and the
paradigms in which they are integrated.
KEIWORDS:
Clitic pronouns – Portuguese grammaticography – 16th and 17h centuries
Introdução
O pronome constitui uma classe de palavras que, na tradição gramatical
do português, tem vindo a ser descrita de maneira, por assim dizer, instável; a
este respeito, Barbara Schäfer-Priess esclarece que:
ii) Ainda mais interessante me parece a defesa que Eduardo Paiva Raposo
faz da identidade entre estas formas, tal como se pode ler no seguinte
fragmento:
[...] τ cõ tudo nos tambẽ temos casos em tres pronomes: os quaes são
.eu.me.mi.tu.te.ti.se.si. no premeiro destes o derradeiro caso q̃ e mi.
alghũs o acabão co esta letras .til. assi mĩ: porq̃ estes nomes teuerão
casos: mais q̃ outros em outro tempo τ obra diremos (Oliveira, 2012
[1536], p. 184),
o que não é de admirar, visto que a Grammatica de Oliveira não parece ser, em
rigor, como já puseram em relevo alguns investigadores (BUESCU, 1978, p.
52; BUESCU, 1984, p. 15; Schäfer-Priess, no prelo, p. 4; KEMMLER, 2007,
p. 378; PONCE DE LEÓN, 2013, p. 39-40), uma gramática (isto é: uma arte de
gramática, com as secções constituintes habituais nesta classe de obras). Pese
embora estas considerações, na obra de Oliveira são analisados, de maneira
muito relevante, certos aspetos – registados, é verdade, de forma fragmentária
1
“Muito exactas são também as indicações de Oliveira quanto às assimilações [...], embora
interprete neste contexto os pronomes pessoais o, os erradamente como ‘artigos’” (COSERIU,
2000, p. 43). Negrito do original. O trabalho citado de Eugen Coseriu é, em minha opinião,
construído de juízos de valor – uns positivos, outros negativos – na ótica do linguista mo-
derno, que o afastam do rigor e do distanciamento que deveria ter um estudo no âmbito da
historiografia linguística.
2
Schäfer-Priess carateriza, a propósito da Gramatica castellana nebrissense, este acidente do
nome da forma seguinte: “a «qualidade» contém a distinção entre nome próprio e nome comum
ou genérico bem como [...] entre substantivo e adjectivo, e entre relativo e antecedente” (no
prelo, p. 117).
3
Não posso concordar, por conseguinte, com Mª Helena Carvalhão Buescu quando, no confronto
entre a gramática barrosiana e a de Nebrija, refere que “tal como Nebrija, e usando a sua termi-
nologia, Barros inclui os relativos nos adjectivos; apresenta, contudo, exemplificação diferente”
(BUESCU, 1984, p. 89). Na verdade, Barros estabelece diferentes subclasses da categoria de
nome; uma delas é a de nome substantivo e nome adjectivo; outra, sem aparente relação com a
anterior, é a de nome relativo e nome antecedente; o gramático estabelece, aliás, uma tipologia
do nome relativo em relatiuos de sustançia e relatiuos de açidente (BARROS, 1540, f. 6v/7r).
Parece-me que os primeiros – chamados de substância “por fazerem lembrança de nome sus-
tantiuo” (BARROS, 1540, f. 6v) – dificilmente se poderiam analisar como adjetivos...
4
José Antônio Neto refere, a propósito desta questão, que “it is Buescu’s contention that it
was common to find the inclusion of the personal pronoun among the relatives in the French
and Italian grammars, although the relatives correspond with the “demonstrative articles.”
She adds that i tis importante to notice that, already in the sixteenth century, there is a clear
distinction between the article and the pronoun and that João de Barros saw that indicated
in the orthography: “o, a, os, as, - artigos; ô, â, ôs, âs – pronomes” (Buescu in BGP [i.e. a
edição, ao cuidado de Mª Helena Carvalhão Buescu, da Gramatica da língua portuguesa.
Lisboa: Faculdade de Letras, 1971], 302)” (NETO, 1992, p. 148). Infelizmente, não me foi
possível consultar a edição referida de Buescu.
5
E talvez pelas Introductiones in latinam grammaticen nebrissenses, em cujo livro quinto é
caraterizado o (nomen) relatiuum: “Relatiiuum est quod rem antecedentem refert. Et est duplex.
Substantiae & accidentis. Relatiuum substantiae est: quod refert antecedens substantiuum [...].
Relatiuum accidentis est: quod refert antecedens adiectiuum” (NEBRIJA, 1525, f. lxxvii r)
(Relativo é aquele que se refere ao antecedente. É de dois tipos: de substância e de acidente.
Relativo de substância é aquele que se refere a um antecedente substantivo [...]. Relativo de
acidente é aquele que se refere a um antecedente adjetivo”. A tradução deste texto latino, bem
como dos seguintes, é da minha autoria.
6
Barbara Schäfer-Priess infere dos capítulos morfológicos da Ars grammaticae um esquema
tripartido das partes da oração: “o primeiro sistema «ternário» verdadeiro encontra-se em Bento
Pereira (1672), que – embora sendo um fiel seguidor do seu irmão jesuíta Manuel Álvares,
quanto ao mais – não se atém ao sistema octádico do seu modelo [...], antes distinguindo três
partes do discurso, implicitamente, através dos capítulos, a que chama classes” (SCHÄFER-
-PRIESS, no prelo, p. 109). Trata-se, com efeito, do nome, do verbo e das dictiones quae nec
sunt nomina, nec verba (i. e. advérbio, preposição, conjunção e interjeição); A explicação do
pronome, por seu turno, é incluída na Classis I, que trata dos nomina. Apesar de concordar
com Barbara Schäfer-Priess na dedução do “esquema global triádico” na proposta de Bento
Pereira, é preciso, no entanto, evidenciar a definição do pronome, na Ars grammaticae, como
pars orationis.
velmente através da edição que desta obra elaborou o também jesuíta António
Velez, publicada em Lisboa, em 1599 – da seguinte forma: “Pronomen vtriusque
nominis substantivi, & adiectivi naturam aemulatur: quia in oratione aliquan-
do subjacet, aliquando adjacet: & definitur pars orationis, quae loco nominis
posita certam, determinatamque personam significat”7 (Pereira, 1672, p. 13).
No atinente às formas pessoais átonas, Pereira apresenta as funções sintáticas
desta, através da atribuição de casos:
ii) to(s), ta(s): “Etiam loco pronominis tu vtimur his particulis To, ta, in sin-
gulari: & particulis tos, tas in plurali: v. g. Douto de graça, ou de graça
to dou, id est o livro. Douta de graça, ou de graça ta dou id est a seda
7
“O pronome procura imitar a natureza do nome substantivo e do adjetivo, pois na oração umas
vezes é a base, outras é adjacente, e define-se como a parte da oração que, em substituição
do nome, exprime uma pessoa precisa e determinada”.
8
“É preciso notar que o mesmo pronome [i. e. ‘eu’] admite frequentemente um dativo ou
acusativo suplementar me, sem nenhuma outra partícula; por exemplo, Nam me curo d’isso:
ou Nam me curo eu d’isso. Nam me vay nada nisso [...]. E no plural o nominativo, dativo ou
acusativo nos sem nenhuma outra partícula; por exemplo, nam nôs[sic] curamos d’isso: ou
nam nos curamos nôs d’isso”.
9
“Também em substituição do pronome eu usamos as partículas mo, ma no singular, e mos,
mas no plural, ou antes, ou depois do verbo; por exemplo, vendeomo muy caro: ou muy caro
mo vendeo; isto é: o liuro; vendeoma muy cara, ou muy cara ma vendeo; isto é: a seda”.
[...]”10 (PEREIRA, 1672, p. 15); iii) volo(s), vola(s), cujo segundo elemento
Pereira identifica com o artigo do castelhano:
Adde Lusitanos in hoc pronome elle iuncto primitivo tu saepe uti parti-
culis Castellanis lo, la, los, las, v. g. Eu volo matarey. Eu vola matarey.
Ego occidam illum tibi. Ego occidam illam tibi [...]: vbi pronomen vos
amittit literam s, in vtroque numero11 (PEREIRA, 1672, p. 16).
10
“Também em substituição do pronome tu usamos as partículas to, ta no singular, e tos, tas
no plural; por exemplo, Douto de graça, ou de graça to dou; isto é: o livro. Douta de graça,
ou de graça ta dou; isto é: a seda”.
11
“Deve acrescentar-se que os portugueses, neste pronome elle, unido ao primitivo tu, com
frequência utilizam as partículas castelhanas lo, la, los, las; por exemplo, Eu volo matarey.
Eu vola matarey. Ego occidam illum tibi. Ego occidam illam tibi [...], nos quais o pronome
vos perde a letra s, no singular e no plural”.
12
“É preciso notar que os portugueses exprimem com frequência as três pessoas referidas: Eu,
tu, elle: Nôs, vôs, eles através das partículas me, te, se: nos, vos, se [...]. Isto é feito de duas
formas: i) quando exprimimos as formas pessoais Eu, tu, elle, então empregamos as partículas
me, te, se antepostas ao verbo, mas num caso diferente, a saber: acusativo; por exemplo, Eu
me envergonho, tu te envergonhas, elle se envergonha [...]. Ego erubesco, tu erubescis, ille
erubescit [...]; ii) quando não são expressas aquelas formas pessoais, então são empregues
as referidas partículas pospostas ao verbo; por exemplo, Envergonhome, envergonhaste,
envergonhase [...]. Erubesco, erubescis, erubescit”.
13
“É preciso observar que, quando, depois do verbo no infinitivo presente ou no imperfeito, é
regido, em substituição do caso do verbo, o pronome elle expressado através dos diminutivos
lo, la, los, las, tais formas de infinitivo perdem a letra r; por exemplo, Quero louvalo, louva-
la, louvalos, louvalas, ne dicamus, Quero louvar a elle, a ella, a elles, a ellas. Volo laudare
illum, illam, illos, illas [...]; contudo, se em lugar dos referidos diminutivos é empregue o
diminutivo lhe, lhe, não perdem aquela letra; por exemplo, Quero agradecerlhe, agradecerlhes
[...]. Volo gratificari illi, vel illis. Quando o verbo está no infinitivo e no tempo futuro, então
é acrescentado o verbo ey; por exemplo, amaloey, louvaloey, amabo illum, laudabo illum”.
Seja como for, o próprio autor, no capítulo dedicado à sintaxe, não parece
distinguir os pronomes clíticos dos artigos, já que designa os primeiros como
articuli (PEREIRA, 1672, p. 201).
Conclusão
Na conclusão do presente trabalho, importa sublinar que as obras analisa-
das dão conta da evolução, na descrição gramatical, do sistema das formas que
na atualidade se designam como pronomes pessoais átonos, condicionados, no
caso de Oliveira, Barros e Roboredo, pelo peso da matriz gramatical subjacente
– diferente segundo os casos: em Oliveira e Barros podemos entrever a gramá-
tica castelhana (e talvez a latina) de Nebrija; em Roboredo, é bem conhecida
a influência de Francisco Sánchez de las Brozas –. Interessa especialmente a
proposta de Bento Pereira, porquanto, pese embora a influência dos alvaresianos
De institutione grammatica libri tres na caraterização do pronome como pars
orationis, Pereira impulsa, a partir da comparação entre o português e o latim,
a reorganização do sistema dos pronomes clíticos, equiparando as formas acu-
14
“No que toca aos pronomes elle, aquelle, este, esse, para além da sua declinação, pela qual
se assemelham aos nomes adjetivos, apresentam a sua peculiar e repetida irregularidade que
vamos expor. O pronome elle com frequência é empregue na oração e declarado no singular
através da partícula lhe, e no plural através da partícula lhes; então às vezes une-se ao sintagma
a elle, ou a elles; às vezes não se une: por exemplo, Nam se lhe dâ d’isso: ou Nam se lhe dâ
a elle d’isso [...] Non curat de hoc.
Deve notar-se que a partícula o às vezes tem o mesmo valor que as partículas a elle e os que
as partículas a elles; por exemplo, é o mesmo Eu o matarei que Eu o matarey a elle [...]. Isto
serve também para as partículas a, as no que se refere ao mesmo pronome ella, ellas, no
género feminino do singular e do plural”.
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e pedagogo português seiscentista, pioneiro na didáctica das línguas e nos
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Amaro de Roboredo. Edição facsimilada. Prefácio e introdução por Carlos
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FERNANDES, Gonçalo. Amaro de Roboredo, um Pioneiro nos Estudos Lin-
guísticos e na Didáctica das Línguas. Dissertação (Doutoramento) – Depar-
tamento de Letras, Artes e Comunicação, Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro, Vila Real, 2002.
Marina A. Kossarik
Universidade Estatal Lomonosov de Moscou
olissipo@yandex.ru
RESUMO:
Para a consolidação da linguística como ciência madura foi necessária, além da compre-
ensão de fundamentos universais de todas as línguas, formação das ideias da gramática
universal (esta temâtica tem atraído a atenção de historiógrafos), o entendimento do
caráter universal de propriedades da língua. A análise dos monumentos filológicos
portugueses dos sécs. XVI e XVII possibilita estudar o mecanismo da universalização
dos conceitos de apologia da língua materna, de norma, história, linguodidática, ela-
borados primeiro com base de uma língua concreta e logo aplicados a outras línguas,
à língua em geral, a LÍNGUA.
ABSTRACT:
Linguistic historiography pays much attention to the emergence and development of
universal grammar concepts. However, grammar is not the only field where we can
see universalist approach in action: the idea that all languages have a certain range of
functions, have examples of good and bad usage and undergo transformations in the
course of time, markes a crucial point in the development of linguistic thought. Early
Modern Times (XVI-XVII cc. in particular) were undoubtedly an important stage in this
perspective, and Portuguese linguistic writings of the period show universalist attitude
both to language structures ‒ at all levels ‒ and to patterns of language functioning in
society and across time.
Introdução
É difícil sobrevalorizar o significado dos monumentos filológicas portu-
gueses anteriores a Port Royal para a consolidação da linguística como ciência
madura e independente com a sua própria área do estudo. Neste período 1.
constitui-se a noção da língua como um específico objecto de estudo, diferente
dos outros domínios do saber humano; 2. amplia-se a área de estudo: aumenta
o número de línguas descritas, descrevem-se vários aspetos da língua e todos
os níveis do sistema linguístico; 3. surge uma nova problemática, refletindo
atenção ao funcionamento da língua a) na sociedade (questões de apologia, de
norma, de comunicação); b) no espaço (correlação da norma e de dialectos,
a língua fora do território nacional); c) no tempo (questões de história); 4. os
princípios da descrição de toda a variedade de línguas com base de um modelo
único, do qual serve o cânone gramatical clássico; 5. diversificam-se géneros
e princípios de descrição linguística: a) criam-se gramáticas, dicionários, di-
álogos, tratados ortográficos, cartinhas; b) surgem umas sérias modificações
no cânone gramatical, antigamente unificado, o que leva à sua multiplicação,
como resultado esboçam-se vários tipos de gramáticas – universais, particulares,
descritivas, prescritivas, comparadas, históricas, escolares. Deste modo nos
sécs. XVI e XVII formam-se conceitos e princípios da descrição linguística
importantes para a história ulterior da linguística. Realiza-se a estruturação do
saber linguístico que dá o início à formação de várias disciplinas.
Na tradição portuguesa formaram-se umas concepções e atitudes à língua,
importantíssimas para a nossa ciência, inclusive a concepção da gramática uni-
versal, que se cristalizou na obra de Amaro de Roboredo, em primeiro lugar, no
seu Methodo grammatical para todas as línguas, que antecipou mais de 40 anos
a gramática de Port Royal (ASSUNÇÃO, FERNANDES, 2007; KOSSÁRIK,
2002; LEITE, 2011; SCHÄFER-PRIEß, 2000). A historiografia linguística tem
prestado muita atenção à formação das ideias de gramática universal, porém
não só a ideia do caráter universal do sistema linguístico deve chamar a atenção
do investigador, pelo que neste artigo não tocamos especialmente as questões
da descrição de sistemas gramaticais de várias línguas ou a problemática da
língua universal (analisámos estes temas em KOSSARIK, 1990, 1997, 2001,
20021, 20022, 2003, além das investigações publicadas na Rússia). Ao nosso
ver, há mais um aspeto significante para a linguística geral que ainda não
1
Não visando analisar, pelas razões do espaço, todos os aspetos dos temas indicados, salientaremos
as características que mais claramente refletem a universalização das concepções indicadas.
materna2. Nós vamos tratar este problema com o objetivo de compreender como
se realizava a universalização da apologia e o significado deste processo nas
mudanças da atitude a vários aspetos da língua. A apologia do vernáculo não
só desempenhou um importante papel na sua própria historia, mas também na
história do pensamento linguístico e foi fonte de muitas inovações na época
precedente a Port Royal. A corrente da “defesa e ilustração”, que atendia imen-
so às condições de funcionamento da língua na sociedade, pode considerar-se
uma das primeiras manifestações da problemática sociolinguística na história
da nossa ciência. A tarefa de codificação da língua nacional, também ligada à
apologia, deu o impulso ao desenvolvimento das ideias de norma, enquanto
a descrição de vários níveis do sistema linguístico no decurso da codificação
fomentou o estudo mais profundo das questões de fonética, gramática, lexi-
cologia. A comparação do vernáculo com o latim, provocada pela apologia,
levava à descrição comparada de línguas, à engendração de tipologia, enquanto
a demonstração do parentesco genético dos vernáculos com o latim e entre si
preparava a formação da visão histórica da língua. A necessidade de ensinar a
gramática da língua materna e, com a base desta, do latim estimulava melhorar
métodos de ensino de língua. Deste modo a “defesa e ilustração” da língua
materna instigou o desenvolvimento do pensar linguístico, o esboço de novos
enfoques à língua e novos princípios de sua descrição, incitou a formação de
novos ramos da linguística da Idade Moderna.
Uma notável consequência de apologia da língua materna foi a passagem
de louvor das características de uma língua à aceitação de peculiaridades de
2
Marquemos os traços principais da “defesa e ilustração” na filologia portuguesa dos séc.
XVI. A apologia do vernáculo, um dos temas centrais da línguística da época, resultava das
transformações radicais do paradigma sociocultural da época (destruição da visão medieval
do mundo, consolidação de estados nacionais, mudanças na situação sociolinguística, forta-
lecimento da atenção a várias línguas particulares). Em Portugal ela constava na revelação do
papel que o vernáculo desempenhava na história do povo, no estado nacional e nos territórios
descobertos, bem como no enriquecimento do vernáculo e na consolidação do seu paradigma
funcional. Os filólogos valorizavam a semelhança do português com o latim como a prova de
“gramaticalidade” (à excepção de Oliveira e Roboredo), caráter sistêmico da língua materna
e construíam a hierarquia de línguas e dialetos partindo desta semelhança. Todos os autores,
exluindo Oliveira e Roboredo, estimavam o estudo da gramática portuguesa como ajuda
no domínio do latim. As obras linguísticas portuguesas demonstram etapas da substituição
do latim como metalíngua da descrição gramatical e a fixação do vernáculo nesta função,
inclusive nas descrições da própria língua latina, primeiro para ilustrar com as formas portu-
guesas significados dos tempos e modos do verbo latino (Resende, Álvares), logo aparecem
gramáticas do latim completamente escritas no vernáculo (Roboredo, F. Pereira); as gramáticas
missionárias também se escrevem em português.
Diz Marco Varrão que nenhũa outra lingua tem declinação de casos
senão a grega e latina, e esses casos mostrão antrelles o estado das
cousas o qual e diverso segundo os diversos ofiçios dessas cousas;
porq̃ hum estado tem este nome homẽ quãdo faz, dizendo o homẽ
senhoreya o mundo. E outro estado muy diverso do premeiro tem
quando padeçe, dizendo deos castiga o homẽ; e para estas diversidades
e outras muitas de estados ou offiçios q̃ tem as cousas tem tambem os
nomes antre os latinos e gregos, diversidade d’letras dividindo cada
estado da cousa com sua diferença de letras no cabo do nome assi
como nos dissemos que fazia a nossa lingua nos generos e numeros e
posto q̃ este seja hũ grande primor e perfeição dessas linguas declarar
na voz as meudezas das cousas cõ a diversidade da letra ou voz que
dissemos, todavia a nossa lingua nem por isso ficou sem outro tam
bo conçerto e de menos trabalho. Este he o ajuntamento dos artigos
os quaes juntos com os nomes declarão nelles tudo o que os casos
Modos <…> Ipsa tamen loquêndi necessitas cogit nos septe facere,
Indicativum, Imperativum, Permissivum, Optativum, Potentialem,
Subiuntivum, & Infinitivum (Res, Aiij). Permissivum, etiam Conces-
sivum nominant. Similis is fere Imperativo est, temporibus, voce, &
significatione, nisi quod primam in singulari personam admittit, qua
Imperativus, uti prædictum est, privatur. Eo tunc utimur, quum nos
súsq̃; dêq̃; laturos, si quidpiam fiat, ostendere volentes, quasi impera-
mus (Res, Dijv). Optativus & Imperativus modus, utruq̃; enim unius
Optativi nomine permiscemus, tempus præsens proprie non habent.
Nam nihil præsentis temporis ratione optatur, sed futuri. Ergo præte-
ritum vero, animi adfectus quidam est, quo id quod contigit aliter,
nos aliter contigisse malle significamus. Improprie tamen præsens
vocamus in hoc modo, quum aliquid iam iam fieri optamus, futurum
vero, quum deinceps. Eadem propterea vox est, & præsentis, & futuri.
Huic modo particulas optandi, & imprecandi, utinam, o, o utinam, o
si, sic, aut, ut, & simile, nonnunquam præfigimus, nõnunquam vero
admitimus (Res, Div v-E). De potentiali modo hoc, multa erudite
Linacer disputavit, ut illud videlicet, licere per hunc unica voce
enunciare, id quod per Indicativum, vel Potentialem, verbi possum,
vel verbi, Debeo, & infinitivum verbi quivis usus indicat, longuiscula
oratione deceretur. ut facere, poteram, vel debebam facere. Aliquando
tamen verbum voluntatis desiderat (Res, Eiijv).
Cada Numero tem seis casos, que as ultimas vogaes fazem diversos, ou seme-
lhantes, segundo a propriedade da lingua (M., 2). Quando a Preposição, De, rege
Genitivo não lhe respõde a Latina cõ a letra algũa (M., 48). Esta Preposição, Pera,
rege Dativo, antepondose a pessoas <…>. & então não lhe responde a Latina com
letra algũa, & fica o seu Dativo de acquisição (M., 49).
<…> declinações Portuguesas
Nominativo Alt-o <…> Quem
Genitivo de Alt-o <…> De quem
Dativo a Alt-o <…> A quem, pera quem
Accusativo Alt-o <…> Quem padece
Vocativo Alt-o <…> Quem he chamado
Ablativo Alt-o <…> Sem que. Com que. <…>
<…> Declinações Latinasas
Nominativo Alt-us <…> Quem
Genitivo de Alt-i <…> De quem
Dativo a Alt-o <…> A quem; Pera quem
Accusativo Alt-um <…> Quem padece
Vocativo Alt-e <…> Quem se chama
Ablativo Alt-o <…> Sem q̃. Com q̃. (M., 2-3)
E ainda se póde crer, que estas vózes com antiguidáde ia devem ser
corrompidas: como vemos em muitos vocábulos gregos, hebráicos, e
latinos, que foram as tres linguágẽes a que podemos chamár princesas
do mundo, porque esta autoridáde lhe deu o titolo da cruz, onde foram
póstas (Bar, 53v).
Consta a copia de palavras, assi dos nomes, como dos verbos; &
nesta parte parece, q̃ a lingua Hebrea tem o ultimo lugar, assi como
a Grega o primeiro; porque na Hebrea os nomes saõ muito poucos,
& faltãolhe os cõparativos, & superlativos <…>. O mesmo se ve nos
verbos, onde naõ tem preterito imperfeito, nẽ plusquã perfeito, & se
valẽ do Participio <…> pera significar estas vozes. Pelo contrario a
lingoa Grega he abundantissima, porque alem da multidaõ de nomes
que nella ha ateno mesmo nome tem tres variações, & naõ havendo
nas outras lingoas mais de dous numeros, singular, & plural, nella se
acha o terceiro, que he, Dual, & nos verbos alem do Activo e Passivo,
tem de mais outro, que se chama Medio <…>; usa os dous Aoristos,
q̃ saõ outros preteritos, ê o Exomeno, q̃ he o outro segũndo futuro
(Far, 65–65v). A boa pronunciação he a segũda parte que se na lingoa
requere, a qual he de tanta importancia, que sem ella fica a lingoagem
imperfeitissima, porq quãdo as palavras se não formão em seu lugar,
senão da gargãnta, ou dos beiços, âlem da descomposição que fazem
no que pratica, saõ causa de se naõ poderẽ escrever, nem os que usaõ
aquella lingua poderẽ, tomar outra. Do primeiro he grande exemplo
o Vasconso de Biscaya <…>. O segundo exemplo se ve na lingoa
Hebrea, q por ter muitas letras, & dicções, q̃ elles chamaõ guteraes,
& outros labiaes, vierão a não poder pronunciar qualquer outra lingoa
(Far, 66v–67). A terceira qualidade que se requere na lingoa, he a
brevidade com q̃ em poucas palavras explique os conceitos, & não
grande quem â belius fecit. Por tanto, tem dado este intento não
pequena materia a grandes engenhos para cõpor muitos volumes em
abonação de suas proprias lingoas. E vendo eu a nossa Portuguesa
tão falta destes livros escritos em seu louvor, como sobeja de razões
para não reconhecer por superior a nenhũa, determinei de ao menos
as apontar neste Discurso, posto que via o aventurava a ser tido por
Paradoxo; pois sendo a nossa lingoa na opinião de muitos quasi
inferior a todas; a igualo com as melhores de Europa (Far, 62–62v).
3
Elaboram-se noções do uso, princípios da seleção de variantes normativas, das bases territo-
rial, social e funcional da norma, da estabilidade e mobilidade dela. Esboça-se a separação
de gramáticas prescritivas e descritivas, o que foi condicionado por diversos objetivos da
descrição de línguas vivas. O aparecimento das gramáticas prescritivas foi causado pela
codificação da língua materna, que, junto com a apresentação do sistema do vernáculo,
visava a escolha de variantes que se consideravam corretas. i.é a limitação do uso. Entre as
gramáticas descritivas da época achamos as obras de missionários e a gramática de língua
portuguesa para estrangeiros de B. Pereira, cujo objetivo era ensinar a comunicação exitosa
em língua estrangeira, o que previa, além da exposição do sistema de língua estrangeira, a
informação mais completa sobre as formas e o funcionamento delas na fala pelo que não
exigia a limitação do uso.
As dições usadas são estas q̃ nos servem a cada porta (como dizẽ)
estas digo q̃ todos falão e entende as quaes são proprias do nosso
tẽpo e terra: e quẽ não usa dellas e desentoado fora do tom e musica
dos nossos homẽs dagora (Ol, xxxv, Dij v). & algũas formações
tẽ milhor sõ ou musica q̃ outras e são mais usadas (Ol, xii, Dvj).
notemos o falar dos nossos homẽs e da hi ajunaremos preçeitos
(Ol, v, Av v). Porque a boa ortographia consiste em escrever, como
pronunciamos: & da mesma maneira pronunciar como escrevemos.
E assi como os Gregos, Latinos, & Arabes não tem nem conhecérão
esta nossa pronunciação cheminé, chinella, marcha, chora, chupa;
assi nós não temos (na nossa materna) a sua per ch; nem letra com
que signifiquemos o χ dos Gregos. Assi que quando viremos escrittos
estes nomes, & outros semelhantes, lhes daremos a pronunciação de
qui, &c. (Vera, 10–10v).
Todos estes negativos eîma dos preteritos & futuros se podem pôr
no meyo & no fim, ut jucaagoreíma, vel jucaeimagoéra; jucaaõame-
íma, vel jucaeimaõáma. A hus está melhor no meyo, a outros no fim,
usus dicebit (Anch, 19v). Em todas estas regras pode haver algũas
exceições que se aprenderão com o uso (Anch, 4). Na composiçaõ
de syllabas ha muitas mudanças, que aqui naõ pomos, por evitar
confusaõ; o uso bastará (Fig, 3). Isto baste da composiçaõ dos verbos;
outras miudezas se deixaõ por evitar confusaõ, que o uso ensinará
(Fig, 92). A formaçaõ destes verbos ensinará melhor o uso, mas com
algũas regras se darà noticia della (Fig, 117–118). Com algũs nomes,
que o uso ensinará, em lugar da preposiçaõ Pe. se põe a letra I. ut Aço
çobái, & naõ se diz çobáiape, vou à banda dalem (Fig, 131). O uso
ensinarà a boa collocaçaõ das partes da oraçaõ entre si; mas aponta-
remos aqui algũas que pedem certos lugares (Fig, 165). Advirtase que
muytos nomes sustantivos desta lingoa pello uzo della <…> terminaõ
a ultima syllaba do Nominativo do singular em ,au, ou em ,ao, &
quando os acharmos acabados em ,au, entaõ teraõ o genitivo em ea,
& iraõ por pao, ea: deste teor saõ Rao, guneao, andao <…>, & outros
semelhantes a estes, q̃ o tempo, & uzo descobrira, & so se pos aqui
esta advertencia pera q̃ quando encontrarmos cõ esta variedade, naõ
nos embaraçemos, & saibamos por onde, & como nos havemos de
guiar (Est, 5–5v). Por Chouai, vaõ tambẽ, mui, ie, formiga, sui, sue,
agulha, & outros desta laya, naõ obstante diffirire no Nominativo &
tambẽ, ddoi, ie, Coco <…>, & outros semelhantes, q̃ o uzo ensina-
ra; aos nomes Vallαi, Carea bicho <…>. Estes & outros, que cõ o
uzo se acharaõ (Est, 9) Desta regra se tiraõ algũs nomes proprios &
appellativos aue vaõ por esta declinaçaõ, & saõ masculinos: ut pαti,
y, marido <…>, & outros que o uzo decobrira (Est, 12).
casos. Ele constata a diferença de rigidez das regras a que são sujeitas “decli-
nações naturais e voluntárias” (flexão e derivação). Oliveira distingue o uso
e as regras racionais e julga que português segue mais a estas regras do que
o latim e grego. Marca a colisão entre a razão e o costume no plural de algu-
mas formas nominais em -ol. Uma nota do gramático reflete incoincidência
do sistema e da norma: ele escreve de formas que, arraigadas pelo costume,
existem na fala, e dá exemplos de formas, que realmente não existem, mas que
poderiam existir. Mas, apesar de diferenciar fenômenos do sistema e da norma,
na codificação Oliveira considera o uso o principal ponto de referência. Tudo
isto revela a aproximação do autor quinhentista ao entendimento dos conceitos
do sistema e da norma.
Tem tanto poder o costume e tambem a natureza que em que nos pes
nos faz conheçer esta diversidade de vozes (Ol, viii Avj v). assi na
analogia [morfologia] dos verbos como das outras partes não temos
regras q̃ possão cõprender todos se não os mais do que nos não avemos
despantar por q̃ os gregos cuja lingua e bem conçertada tem hũ bo
caderno de verbos irregulares: e algũs nomes. e os latinos tẽ outro tã
grande (Ol, xlviii, Ev). As declinações de generos são muitas <…>
não por isso se pode dar regra universal (Ol, xliiij, Dviijv). A latina e
grega <…> seguẽ mais o sabor das orelhas q̃ as regras da rezão (Ol,
xlv, Eiijv). Com tudo não e mui franca ou para milhor dizer solta a
liberdade de todos nesta parte porq̃ posto que não podẽ dar aqui mais
limitadas regras esta que em toda parte se deve guardar servira tãbem
aqui: <…> seja cõforme a melodia da nossa lingua (Ol, xli, Dv). As
declinações naturaes são mais sogeitas as regras e leis de cujo mandato
se rege esta arte. As regras ou leys q̃ digo são como disse anotações
do bo costume. As quaes porque aqui são mais gerais e comprendem
chamamoslhe naturaes e de feito pareçẽ ser mais proprias e consoãtes
a natureza da lingua (Ol, xlij, Dvi v). Qualquer forma ou genero, q̃ os
nossos nomes tẽ no singular, esse guardão tambẽ no plural, porque
nisto assi como em outras cousas guarda a nossa lingua as regras da
proporção mais que a latina e grega, as quaes tem em suas dições
muitas irregularidades e seguẽ mais o sabor das orelhas q̃ as regras
da rezão: assi como nos tambẽ deixamos as regras geraes: porque o
bo costume e sentido nos mandão tomar algũas particularidades (Ol,
xlv, Eiij v). Dos nomes acabados em .ol. pareçe q̃ deviamos tirar algũa
eyçeyção: porq̃ alhgũs nomes temos cuja rezão e bõa voz requere
que se não acabem no plural em ois <…> [sol, rol] por diferença das
segundas pessoas destes verbos [soes, roes] (Ol, xlv Eiij). se fosse
em costume tambem diriamos Romão, Romãos; Italião, Italiãos,
Sól, lũa, glória, fama, memória nam tem plurár. E quem algũ nome
destes levár ao plurár que a orelha póssa sofrer, nam encorrerá em
pecádo mortál: dádo que em rigor de bõa linguágem sam mais pró-
prios do singulár que do plurár (Bar, 10 v–11).
Hũas letras se dobrão nas dicções per natureza das palavras, de que
se não pode dar regra, porque consiste em uso; & não em arte. E assi
não se pode dar razão, porque estas palavras Latinas, gutta, caballus
(de que dizemos gotta, cavallo) tem dous tt, & dous ll; mais que
dizer: Sic voluerunt priores: Que forão compostas â vontade de quẽ
as inventou (Vera, 28).
que despois do Artigo tem algũa destas syllabas Nho, Io, a perdem
no Conjuntivo, & dahi por diante; pola perderem na terceira pessoa.
Anhotym, Erenhotym, Otym; Conjunct. Tyme. Infinivo, Tyma, &c.
(Fig, 101). Os seguintes tempos se formaõ do Presente do mesmo
Infinitivo. Os preteritos perfeito, & plusquamperfeito acrescentaõ
Agoéra: o futuro imperfeito, Ramboéra <…>. Os Participios passivos
em Yra procedem só de verbos activos. Formaõse das terceiras pes-
soas do presente do Indicativo (Fig, 106–107). Hũa das cousas mais
importantes pera saber fallar, he entender a ordem, & formaçaõ dos
Gerundios dos verbos, & assi se deve muito advertir. Os principios
dos Gerundios se tomaõ da terceira pessoa do Indicativo, tirando o
artigo, nos de artigo; & as syllabas Nho, Io, nos que as tiverem. <…>
Os neutros, que começaõ por pronomes, Xe, nde, &c. no gerundio
conservaõ os taes pronomes, mas na terceira pessoa sempre tem a letra
O (Fig, 109). Exceituaõse porèm desta regra os verbos, que despois
do pronome Xe, teiverem a letra R, immediatamente, a qual letra R se
muda em ç, com zeura na terceira pessoa <…>. Tambem se excetuaõ
daquella primeira, & da segunda regra, os verbos compostos de no-
mes, cuja primeira letra T, fica na terceira pessoa (Fig, 38). Primeira
exceiçaõ das duas regras sobreditas. Esceituaõse destas regras os
nomes seguintes, que começandose por ç, com zeura, fallandose dellas
relativamente, mudaõ o ç, em x, & naõ em r, tomando i, por relativo.
Çébe, mantimento; Ixébäe, o seu mantimento. Çumarã, inimigo.
Ixumarã, o seu inimigo <…>. Segunda exceiçaõ. Tiraõse tambem
das duas regras os Infinitivos dos seguintes seis verbos Activos, que
nunca mudaõ o Ç, em R. ainda que lhes proceda immediatamente o
Accusativo. E fallandose relativamente tomaõ I, por caso relativo,
mudando o Ç, em X <…>. Aiocyb, alimpo. Çyba. Ixiba, alimpalo.
Aioçúb, visito. Çúba. Ixúba, visitalo (Fig, 73). o nome, ou pronome
em respeito do verbo podem estar antes ou depois. ut Oçóu Pedro;
Pedro oçóu. <…> Na terceira pessoa relativos comummente o nome,
ou pronome precede o verbo. ut Coriteĩ Pedro rúri. <…> Os relati-
vos sempre se collocaõ depois do nome, que relataõ, como a ordem
pede <…>. O Adverbio em quanto tal, póde preceder, ou posporse
comũmente. Coriteĩ açó, l, Açó coriteĩ. A preposiçaõ em quanto tal,
sempre se pospoe (Fig, 165–166). Primeira conjugaçam geral dos
verbos do artigo A (Fig, 12). Segunda conjugaçam geral dos verbos,
que começaõ per pronome, Xe (Fig, 36). Da conjugaçaõ de alguns
verbos irregulares. De duas maneiras podemos chamar aos verbos
irregulares; s. ou porque se naõ usaõ mais que em alguns tempos,
numeros, ou pessoas; & estes melhor se chamaõ Defectivos, porque
tem faltas nas taes cousas: mas nos tempos que tem, guardaõ a ordem
Depois deste verbo activo sera muito necessario por logo antes dos
outros verbos a formaçaõ dos tempos pera que os que aprẽdẽ saibaõ
como haõde formar os tẽpos pera conjugarẽ. Formaçaõ dos verbos.
O Preterito imperfeito, sodĩ, se forma da primeira pessoa do singular
do indicativo tirando o tã, & pondolhe o til na vogal, que estava antes
do tã, v. g. soditã, tirandolhe o tã, & pondo o til na vogal atras fica
sodi. Bαissαtã, bαissã <…>, tiraõse daqui algũs irregulares como
se pode ver nas suas conjugaçoẽs. O segundo imperfeito, soditalõ,
se forma da terceira pessoa do singular do prezente do Indicativo
acressentando, lo, ly, le, assy como soditã, soditalõ, ly, lẽ. O Preterito
perfeito, sodilo, se forma da primeira pessoa do prezente do Indica-
tivo, tirando o tã, & pondo lhe, lo, ly, lẽ <…>, tiraõse daqui algũs
verbos, q̃ tendo, α, antes do tã, mudaõ no preterito aquelle ,α, em ,i,
<…>, outros tẽ seus preteritos irregulares <…>. A primeira pessoa
do Pl. deste futuro, sodũ, se forma da primeira pessoa do prezente
do Indicativo tirando o tã, & mudando , i, em , ũ, soditã, sodũ. Tiraõ
se daqui os verbos disyllabos q̃ retẽ a dita vogal acrescentando lhe
a syllaba, ũ, ut Pitã, piũ <…>. Tiraõse tambẽ os q̃ tem , e, antes do
tã, a qual letra naõ se muda em ũ, mas se lhe acrecenta a syllaba, ũ,
tirando o tã, ut pɑlletã, vejo, pαlleũ <…> (Est, 39–40). no que toca
ao conjugar, o verbo activo tem hũa so conjugaçaõ <…>. Depois
Dividi este primeiro grao em tres livros. No primeiro, & mais principal
da Grammatica de cada lingua se devem lãçar as Declinaçoẽs dos
Nomes, & seu Genero: as Conjugaçoẽs dos Verbos, & seus Prete-
ritos, com a summa das Concordias, & Regencias das palavras, No
segundo livro, & menos principal se devem ajuntar as irregularidades
dos Nomes, & Verbos (M., c2).
A corrupção per troca de hũas letras por outras he mui comũ, & q̃
cõprende as mais das palavras, porq̃ de ecclesia dizemos igreja, de
desideriũ desejo, de cupiditas cobiça. Na qual maneira de corrupçaõ
hã hũas certas letras que quasi sepre respondẽ a outras, como o
diphtõgo au, dos latinos a, q̃ os Portugueses respõdẽ com o seu ou,
como por audio, ouço, por aurum ouro, por taurus touro, por laurus,
louro, por maurus, mouro, & por paucus pouco <...>. Da mesma
maneira se mudão as letras em outras semelhantes como he o l. em r.
& o p. em b. o t. em d. Porq̃ por obligar dizemos obrigar, por blandus
brando, <...> por amatus, amado. (N. L, 36). As letras entre si teem
hũas com as outras muita semelhança, & e affinidade, & portãto
facilmente se corrõpem & mudão hũas em outras, não soomente
de hũa lingoa a outra, mas em hũa mesma lingoa. Polo que, teendo
noticia desta semelhança, & mudança, que fazem de hũas em outras,
facilmente viremos dar cõ a origem dos vocabulos corruptos. <...>
A. primeiramente se muda em .e. como de alacris, alegre. de factus,
feito. de amavi, amei. & aas vezes e .ou. como de aurum, ouro. de
laurus, louro. de taurus, touro <...>. B. mudase em .v. como de debeo,
devo. de caballus, cavalo <...>. C. mudase em .g. como de cæcus,
cego. locusta, lagosta. <...>.E o gn corrompese em .nh. como de
lignum, lenho. <...>. I. mudase em .e. como de cibus, cevo. <...> de
bibo, bebo. <...>. L. corrompese em .r. como de blandus, brando. de
clavus. cravo. <...>. E quãdo vem despois de .c. f. p. corrompese em
.ch. como de clavis, chave. de flamma, chama. de plaga, chaga. <...>.
T. corrompese em .d. como de amatus, amado. de auditus. ouvido,
de fatum, fado (N. L, Ort, 25-26).
Desta lingua Latina nos não ficou ja agora mais que a parte da Es-
critura; & o uso se corrompeo em Italia, França, & Hespanha nas
lingoas vulgares, que ao presente se fallão nestas Provincias (Far,
70v). segundo a milhor, & mais verdadeira opinião, nẽ por primeira
antiguidade, nem por incorrupção do idioma, pôde nenhũa lingoa ser
tida por milhor que a outra. Supposto isto, devemos buscar outras ra-
zões, que não sejão de origem, pera julgarmos em que estâ a milhoria
de hũa lingua â outra (Far, 64-64v). com o tempo, e transmigrações
dos povos, se vierão a corromper de maneira as palavras, que ja desta
primeira lingoa [de Adão] haverâ mui poucas no mundo (Far, 63v).
esta [hebraica] com o tempo veyo a tamanha corrupção que conserva
ja muito pouco de seu bom principio, pois vemos no estado de hoje
hũa das imperfeitas do mundo <...>. O mesmo podemos das demais
lingoas q̃ tiverão seu principio nos edificadores da torre, por q̃ depois
de tãtos seculos, ê mudãças das gẽtes, & Monarquias não podião
deixar de se corromper, & mudar em outras formas (Far, 64-64v).
o diphtongo, ão, he proprio nosso, & o corrõpemos do om, Frãcez,
& Galego, e q̃ não ha muitos annos acabavão as mais das dicções
q̃ hoje terminamos em, ão, por se pronunciar este diphtõgo por, a,
com mais brandura, & suavidade que não por, o. Donde não ficou a
lingoa pejorada cõ esta mudança, mas antes com notavel melhoria
(Far, 76-76v).
4
Embora a gramática de Oliveira não tenha indicações de caráter escolar, foi criada sendo ele
professor dos filhos de Barros. Dos fins educacionais da obra de Barros informa Severim de
Faria (Far, 32-33).
como uma abstração que pode ser demonstrada por exemplos de várias línguas
concretas. É de notar que a problemática da língua universal está presente nas
gramáticas escolares de Roboredo, antecipando o caráter escolar de Port Royal
e diferindo o autor português da tradição medieval, onde as ideias da língua
universal não aparecem só nos tratados teóricos de modistas. Roboredo expõe,
nos manuais de iniciantes, a diferença entre estruturas profundas e superficiais,
entre a oração e a frase, pertencentes à gramática e à retórica.
Conclusão
A tradição filológica portuguesa dos sécs. XVI e XVII contribuiu muito à
universalização de ideias ligadas com as concepções de apologia, norma, histó-
ria, linguodidática. Neste processo destacam-se duas etapas. Primeiro, na prática
da descrição linguística, elaboram-se noções que são aplicadas a uma língua.
Ao limiar do século XVII elas são espalhadas a outras línguas, entendem-se
como aplicáveis à LÍNGUA em geral, o que é condição indispensável de sua
ulterior consolidação como conceitos linguísticos teóricos da ciência madura.
Lista de abreviaturas
Alv – Alvares, 1572. Anch – Anchieta, 1595. Bar – Barros, 1540. BP –
Pereira, 1672. Est – Estêvão, 1640. Far – Faria, 1624. Fig – Figueira, (1621).
Gan – Gândavo, 1574. GL – Roboredo, 1625. M. – Roboredo, 1619. N. L –
Leão, 1606. N. L, Ort – Leão, 1576. Ol – Oliveira, 1536. PL – Roboredo, 1623.
RLL – Roboredo, 1621. Res – Resende, 1540. Sou – Sousa, 1535. Tav – Távora,
1566. Vera – Vera, 1631.
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RESUMO:
A presente investigação faz parte da revisão sobre o posicionamento teórico-metodoló-
gico do trabalho em Historiografia Linguística, em que reafirmamos a interação fatível
com campos de estudo análogos como o da História Cultural, dos Estudos Culturais, da
História do Presente. Além de indicar a continuidade de matérias relativas às etapas
metodológicas, o estudo visa a complementá-las e expandi-las em regime de transdis-
ciplinaridade, como uma das formas de interdisciplinaridade.
ABSTRACT:
The present study aims at continuing the review on theorethical and methodological
issues in Linguistic Historiography reaffirming the potential interaction with similar
fields of study such as Cultural History, Cultural Studies and History of the Present.
In addition to the continuous studies on methodological stages, this research plans to
enhance the process through transdisciplinarity as one of the forms of accomplishing
interdisciplarity.
Considerações iniciais
Certezas e desafios acompanham os estudiosos da Historiografia Linguís-
tica quando se trata da intersecção com disciplinas ligadas às Humanidades.
Semelhanças e divergências entre as várias áreas de estudo fornecem subsídios
para o aparecimento de linhas alternativas de conduta historiográfica - questio-
namentos a respeito da história do presente e verdade histórica, que incluem
indagações sobre o presentismo e o modo como os indivíduos se relacionam
com o tempo (BASTOS e HANNA, 2012), a problematização da noção do
regime de historicidade, são alguns dos debates emprendidos no Grupo de
Historiografia da Língua Portuguesa, do IP-PUC/SP e do GT de Historiografia
da Linguística Brasileira da ANPOLL. Novas e desafiantes possibilidades de
estudo para se trabalhar em regime de transdisciplinaridade com a história, a
história cultural, a história do tempo presente, em intercâmbio com a HL, são
foco de atenção. A finalidade de alcançarmos um conhecimento mais global da
pesquisa histórico-linguística revela-se na procura de novas etapas de investi-
gação metodológica, baseadas para além da análise do texto e do discurso e do
continuum dos procedimentos históricos conhecidos, sugeriram o acréscimo do
diálogo com os Estudos Culturais (BASTOS e HANNA, 2014). Tal diálogo
leva ao interesse do denominado auto/etno continuum que compreende a auto/
biografia, via individual ou em memória de grupo, a busca de produções em
fragmentos escritos, em fontes orais, que tem aberto oportunidade para que
façamos a justaposição com a História Cultural no que tange à política de
identidade, e de construção da identidade (‘documentos-ego’), à retórica da
identidade (‘retórica dos documentos’) – em textos em primeira pessoa, sob
a forma de cartas ou narrativas de viagem, diários, autobiografias (BURKE,
2005, p.116). Assim, ao se somaram à teoria e aos métodos de matérias relati-
vos, esses campos de estudo - tão diversos quanto os de objetos de análise -,
ao se aliarem à questão das fontes nos passos investigativos no âmbito da HL,
têm-se estimulado um intercâmbio criativo e dinâmico estabelecido durante
tal processo.
Pelo objetivo que elegemos alcançar nesse estudo, o de investigar fontes
subsidiárias para estudos em Historiografia Linguística, relativas ao encontro
com a História Cultural e com os Estudos Culturais, consideramos válido re-
tomar, brevemente, considerações apresentadas por Bastos e Hanna em 2014
(b) sobre o conceito de interdisciplinaridade e a identificação que partilha com
pressupostos da HL. Voltamo-nos, desse modo, para algumas considerações
sobre a acepção, desenvolvida por Fiorin, que serviu de base para aquele
entendimento, “A interdisciplinaridade pressupõe uma convergência, uma
complementaridade, o que significa, de um lado, a transferência de conceitos
teóricos e de metodologias e, de outro, a combinação de áreas” (2008, p.31).
Tentamos aqui um entendimento mais aberto sobre alguns termos mais uti-
lizados na tipologia da interdisciplinaridade. Além do próprio termo, encontram-
-se a multidisciplinaridade (muitas vezes substituído por pluridisciplinaridade) e
a transdisciplinaridade - a opção pelo último é antes explicada pela etimologia
dos prefixos. Ao focalizarmos a diferença entre inter-, que convencionalmente
trata do que existe entre duas abordagens existentes e trans-, que vai além
delas, tratando de um contexto de interconexão e complexas formas de inter-
câmbio, elucidamos a preferência por trans-, pelo fato de vir ao encontro da
busca para que a multiplicidade de abordagens, advinda das relações entre os
vários ramos do conhecimento e da própria abundância de objetos de estudo
constantes da HL.
Levando em conta que, ao executar a tarefa de seleção, ordenação, re-
construção e interpretação dos documentos, o historiógrafo manifesta uma nova
visão de mundo, fazendo acontecer um processo de desagregação do que era
considerado padrão, os resultados de seu trabalho apresentarão, consequente-
mente, um novo paradigma. Sobre esse assunto, destacamos que, ao se referir
às dimensões teóricas e/ou metodológicas da HL, no lugar do termo paradig-
ma, Altman (1998) nomeia o termo ‘programa de investigação’, utilizado por
Swiggers (1981), para enfocar a dinâmica interna dos problemas assinalados
na HL, assim como o modo de tratá-los funcionalmente e de maneira integral.
A autora assim apresenta os quatro programas de investigação: o programa de
correspondência que examina as correspondências entre linguagem, pensamento
e realidade; o programa descritivista em que a língua é vista como um conjunto
de dados formais, autônomos, ordenáveis de maneira sistemática; o programa
sociocultural que analisa a variação das formas linguísticas no âmbito de uma
comunidade linguística e das performances linguísticas dos falantes e o pro-
grama de projeção que visa à projeção de um sistema formalizado em certos
fragmentos de uma determinada língua (p. 37-39).
O enredamento nas investigações no campo da história da linguística é
apontado por Swiggers (2013), que justifica, por sua complexidade, a deman-
da pela adoção de pesquisas interdisciplinares, partilhadas com a filosofia da
linguagem, a retórica, a dialética, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a
teologia e, por sua vez, com a história de cada uma delas,
English Working Class (1963) tiveram importância capital para que o interesse
por cultura e pelas duas áreas de estudo se tornasse de âmbito internacional.
A abordagem relativa aos três livros tornou-se mais tarde conhecida como a
tradição “cultura e sociedade de Hoggart-Thompson-Williams”.
A respeito desse assunto, retornamos à questão do texto-contexto, sobre-
pondo algumas considerações de Raymond Williams (1961), comentadas por
Kellner, em seu texto Border Crossing, Transdisciplinarity, and Cultural Studies
(s/d, p.18) sobre o que denomina de ‘fronteiras do texto’, mais precisamente
do cuidado que devemos ter de não nos determos nas fronteiras, ou mesmo em
sua intertextualidade já que, como a noção de transdisciplinaridade indica, o
cruzamento de fronteiras através das disciplinas, do texto para o contexto, da
cultura para a sociedade, é o que justamente constitui o texto, e assim deverá
ser lido e interpretado. Williams sempre apreciou a interconexão entre cultura
e comunicação e suas conexões com a sociedade na qual são produzidas, dis-
tribuídas e consumidas.
Isso posto, é adequado destacarmos que a ascensão que a História Cultu-
ral gozou, esteve vinculada à influência de movimento intelectual importante
ocorrido na mesma época, conhecido por virada cultural, que trouxe ideias
inovadoras de teóricos e historiadores culturais e contribuiu para que a heran-
ça da dimensão social permanecesse viva nessas investigações – “a virada
cultural é, ela mesma, parte da história cultural da última geração”, explica
Burke, (2005, p.9).
Para termos ideia da importância que a noção de virada cultural assumiu,
tomamos como base algumas interpretações de Stuart Hall (1997, p.220-224)
sobre revoluções culturais. Na visão do autor, é um período de reconfiguração
de elementos já presentes na análise sociológica que se associou a alguns no-
vos elementos, com foco na linguagem e na cultura . Em particular, é de nosso
interesse assinalar a admirável mudança de atitudes registradas em relação à
linguagem – “uma preocupação com a linguagem como um termo geral para
as práticas de representação, sendo-lhes oferecida uma posição privilegiada
na construção e circulação de significado” (p.220), que passou a ter um caráter
mais amplo, incluindo-se a completa relação entre linguagem e o que se chama
de ‘realidade’. A nova atitude está intimamente ligada à ideia de cultura men-
cionada por ele – “a cultura se constitui como a soma de diferentes sistemas
classificatórios e de formações discursivas distintas aos quais a língua apela
para dar significado às coisas” (p.222).
A relação entre as linguagens e os objetos descritos pela História Cultural
foi radicalmente revista, a linguagem passou a exercer um papel muito mais
Considerações finais
Elementos de união entre os campos de pesquisa apresentados, o texto,
o contexto, o presentismo, os produtores do texto e a audiência desses textos
encontram respaldo nas mais importantes tradições dos Estudos Culturais – a
combinação da teoria social, crítica cultural, história, análise filosófica e espe-
cíficas políticas de intervenção.
Pesquisas como a nossa, que se ocupam de teorias culturais em interação
com a HL, operam em um contexto cultural particular e funcionam e existem
a partir de uma moldura de conhecimentos e significados que estimulam novas
ideias e novos significados. A afirmação de Lewis (2006) e classificação que
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RESUMO:
Neste artigo, avaliamos como cinco gramáticas brasileiras – Ribeiro (1881), Pacheco &
Lameira (1887), Ribeiro (1889[1887]), Carneiro Ribeiro (1890) e Maciel (1902[1894])
– publicadas na segunda metade do século XIX, descrevem o português do Brasil. Nossa
análise aponta que, além de relevantes para a Historiografia Linguística, esses materiais
constituem fontes essenciais para o estudo da História da Língua Portuguesa no Brasil.
ABSTRACT: In this article, we evaluate how five Brazilian grammars – Ribeiro (1881),
Pacheco & Lameira (1887), Ribeiro (1889[1887]), Carneiro Ribeiro (1890) and Maciel
(1902[1894]) – published in the second half of the nineteenth century have described
Brazilian Portuguese. Our analysis has showed that these grammars are relevant not
only to the study of Brazilian Linguistic Historiography; they are also essencial sources
to studies on the History of Portuguese language in Brazil.
Introdução
Nos últimos dez anos, tem nos interessado a reconstrução do processo de
formação de uma ‘escola’ brasileira de tratamento gramatical do Português, a
partir do século XIX. Procuramos chegar a um feixe de características estru-
turantes do pensamento gramatical brasileiro em seu período de formação, e,
desse modo, contribuir para a identificação de seus traços de maior durabili-
dade histórica, seja quando pensamos na gramática do português, seja quando
pensamos no conjunto de estudos sobre a língua portuguesa desenvolvidos no
Brasil a partir daquele período. Como sabemos, a língua portuguesa tem sido,
ao longo do tempo, o objeto preferencial de análise daqueles que se dedicam
aos estudos linguísticos no país (cf. ALTMAN, 2004; ALTMAN et al., 1995;
COELHO, 1998; entre outros); desse modo, os estudos voltados para a sua
análise condensam muitos dos movimentos que se podem tomar como gerais
quando consideramos a pesquisa linguística brasileira.
Assumindo essas hipóteses, temos lidado, no âmbito de dois macroprojetos1,
com trabalhos gramaticais publicados nos anos 18002, bem como com documen-
tos e revisões históricas que têm permitido reconstruir aspectos dos contextos de
produção e circulação dessas obras. As metas desses dois projetos de dimensões
mais amplas animam e contextualizam este artigo, cuja proposta fundamental é
avaliar o interesse que cinco gramáticas publicadas na segunda metade do século
XIX no Brasil podem ter como fontes tanto para a reconstrução da história dos
estudos linguísticos, quanto para a reconstrução da história da língua portuguesa.
Em trabalho anteriormente publicado (COELHO; DANNA & POLA-
CHINI, 2014), procuramos reconstruir os modos como um conjunto de dez
gramáticos brasileiros, ao longo de todo o século XIX, descreveu processos
que posteriormente vieram a ser compreendidos como inovações ocorridas
no Português, no Brasil. Investigamos como essa gramaticografia emergente,
1
ALTMAN & COELHO (Coord.), 2006-2010; COELHO (Coord.), 2010-2014.
2
Estamos nos referindo a trabalhos portugueses e brasileiros que teriam, por um lado, integrado
o conjunto de referências da gramaticografia brasileira que se organiza a partir do século XIX,
ou, por outro lado, integrado essa gramaticografia. São eles: OLIVEIRA, 1536; BARROS,
1540; LOBATO, 1770; BACELAR, 1783; MORAES SILVA, 1806; COUTO E MELO,
1818; SOARES BARBOSA, 1822; CONSTÂNCIO, 1831; FREIRE, 1842; OLIVEIRA,
1862; CALDAS AULETE, 1864; SOTERO DOS REIS, 1866; FREIRE DA SILVA, 1875;
BRAGA, 1876; CARNEIRO RIBEIRO 1877; ALMEIDA NOGUEIRA, 1881; RIBEIRO,
1881; GRIVET, 1881[1876]; LAGE, 1882; MACIEL, 1887; RIBEIRO, 1889[1887]; GOMES,
1887; CARNEIRO RIBEIRO, 1890; COELHO, 1891; MAIA, 1899; BOSCOLI, 1899; SAID
ALI, 1919 [1887, 1888, 1894, 1895, 1908].
brasileira, lidou com novos dados, isto é, com dados nem sempre percebidos,
registrados ou comentados pela ‘tradição’ na qual aqueles textos gramaticais
se inseriam. Notamos, naquela incursão específica por dez trabalhos, publica-
dos entre 1806 e 1919, que houve, por exemplo, em relação ao nível sintático,
registro: da divergência em relação à colocação pronominal no português do
Brasil (PB) e no português europeu (PE); de um processo de estabilização da
forma você como pronome pessoal na maior parte do Brasil; da ocorrência,
na linguagem popular e familiar brasileira, de construções como vi ele, para
mim ler; do emprego preferencial de ter em lugar de haver nas construções
existenciais, e da flexão desses dois verbos nas mesmas construções; do uso de
a gente em orações com sujeito indeterminado e até do uso do que mais tarde
conheceríamos pelo nome de ‘relativas copiadoras’ (a pessoa que eu falei com
ella), entre outros. Também fenômenos de outros níveis de articulação (fonético-
-fonológico, morfológico, lexical) foram explorados naqueles textos destinados
à instrução linguística escolar. Os gramáticos, assim, mostraram habilidade de
identificação de fatos relevantes nos usos linguísticos não-padrão da sua época
e, em muitos casos, os caracterizaram como fenômenos típicos do PB, que o
modificavam em relação a suas origens.
Neste novo exame de documentos gramaticais da época, optamos por
privilegiar os trabalhos produzidos a partir de 1881, quando se inaugura a fase
denominada ‘científica’3 da gramaticografia no Brasil. Os trabalhos produzidos
nessa fase foram os que se mostraram mais atentos a especificidades do PB (cf.
POLACHINI, 2012; COELHO, DANNA & POLACHINI, 2014). Supomos que
essa maior atenção dada pela gramática ‘científica’ brasileira à variedade local do
português pode estar relacionada a fatores de natureza diversa, como os seguintes:
3
A chamada fase ‘científica’ dos estudos linguísticos no Brasil está marcada por textos que
pretendiam analisar ‘fatos’ da língua, sem perder de vista questões históricas que os perme-
ariam. As produções da fase ‘científica’ contrapõem-se àquelas da chamada fase ‘filosófica’,
marcadas por maior apreço às considerações especulativas ou explicações posteriormente
consideradas metafísicas para fenômenos linguísticos.
4
Por vezes, à risca, como em Pacheco & Lameira (1887).
5
Em Coelho, Danna & Polachini (2014), argumenta-se que as distinções lexicais foram bem
acolhidas nas gramáticas, assim como algumas das distinções fonéticas (velocidade da fala,
grau de abertura de vogais). As especificidades brasileiras de natureza sintática, com exceção
da colocação pronominal, de caráter mais polêmico, foram, na maioria das vezes, julgadas
negativamente, como erros, vícios.
1. Opções metodológicas
Neste estudo, optamos por analisar as seguintes obras publicadas do último
quartel do século XIX:
RIBEIRO, J. Grammatica Portugueza, 1881;
RIBEIRO, J. Grammatica portugueza: 3º anno, 1889[1887];
PACHECO DA SILVA JR., M. da & LAMEIRA DE ANDRADE. Noções
de grammatica portugueza, 1887;
CARNEIRO RIBEIRO, Ernesto. Serões Grammaticaes. Nova Grammatica
Portugueza, 1890;
MACIEL, M. A. Grammatica Descriptiva baseada nas doutrinas moder-
nas, 1902[1894].
Circunscrevemos a análise aos domínios sintático e morfossintático, le-
vando em conta que o nível sintático se apresentou, em estudo anterior, como
aquele em que se registraram mais fenômenos6 caracterizados como do PB e
que os dados classificados pelos autores como morfológicos (ou lexiológicos)
estão, nos textos, fortemente interligados à sintaxe da língua.
A observação do tratamento oferecido às especificidades sintáticas e mor-
fológicas do PB pautou-se, essencialmente, nos seguintes parâmetros:
6
Nela, diferenciamos ‘ocorrências’ (o número de exemplos citados) de ‘fenômenos’ (a questão
linguística posta em destaque). Isso permitiu observar, por exemplo, que as eventualmente
longas listagens de itens lexicais correspondiam a exemplos sobre fenômenos como polissemia
e incorporação de itens de origem africana e indígena ao PB; na mesma direção, há muitos
exemplos fonéticos, referentes a grau de abertura de vogais. No caso das questões sintáticas,
o número de exemplos é mais restrito, mas a quantidade de ‘fenômenos’ identificados supera
a de fenômenos lexicais e fonéticos.
cinco dialetos, na qual se mencionam as regiões em que são falados e seu status
nessas localidades. João Riberio, neste texto, não toma o brasileiro como um
dialeto propriamente dito7, mas como uma ‘linguagem’ fortemente distinguida
na prosódia, na sintaxe e no vocabulário8 da original. Também, nesta obra, a
mudança linguística ‘natural’ que há em todas as línguas é promovida e também
refreada por fatores ‘elementares’ externos (étnicos, geográficos, climáticos):
7
Ao que parece, o autor adota o termo ‘dialecto’ para se referir ao PB porque assim aparece
no Programa de Barreto.
8
“O dialecto brazileiro – o impropriamente chamado dialecto é constituido pela linguagem
portugueza falada no Brazil. Distingue-se por differenças notaveis de prosodia e de syntaxe,
por um vocabulario novo de termos tupis-guaranis e africanos. A reacção litteraria de dous
seculos nunca pôde obstar nem diminuir a dialectação do portuguez do Brazil.” (RIBEIRO,
1889 [1887], p. 306).
colocação pronominal, feita “de modo contrário á ordem que sempre lhes
deram os bons escriptores” (p. 353). Há uma defesa retórica dos ‘idiotismos’
como legítimas particularidades de um ‘idioma’, que o adornam e engraçam,
traduzindo o que têm de “próprio, de ingênuo, de nativo e original” (p. 350).
Contudo, a postura geral é também de crítica e correção a essas formas, já que
cabe à gramática descritiva ou expositiva ‘ensinar a escrever e falar correta-
mente’, segundo modelos oferecidos pelos bons escritores através dos séculos.
3. Nível descritivo
“7. Não se deve começar uma oração pelo pronome em relação ob-
jectiva (me parece, te disse, lhe fallei). O povo (no Brazil), conserva-
-se, porem afferrado ás fórmas procliticas, que ainda são correntes
no hesp. e no ital.[…], e eram dos primeiros documentos da lingua
portuguza [sic], que moldou-as pela syntaxe latina. (PACHECO &
LAMEIRA, 1887, p. 493)
“Os caipiras fieis aos usos arkaicos da lingua, como sóe sel-o a gente
do povo, exprimem-se de modo analogo ao dos francezes: poem claro
Considerações finais
Nos textos analisados, vemos indícios de que a questão dos pronomes
ganhou algum destaque nos tratamentos dados aos fenômenos do PB: tanto a
colocação pronominal quanto o emprego das formas retas e oblíquas, assim
como o uso de a gente como forma de indeterminação do sujeito são objeto da
atenção dos gramáticos, que adotam majoritariamente postura prescritiva ao
tratar dessas questões. Do ponto de vista da história da língua, de fato, o sistema
pronominal parecia dar claros sinais de desestabilização naquele momento, a
ponto de se converter no principal objeto de atenção ao se pensar nos falares
(populares, rudes) brasileiros.
Ao contrário da retórica de maior apelo à história e à comparação no tra-
tamento dos fatos linguísticos ‘positivos’, a postura em relação ao tratamento
efetivo dos chamados ‘brasileirismos’ é preponderantemente estática e isolada
Referências bibliográficas
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da lingua portugueza. Rio de Janeiro: Typ. de Antonio dos Santos, 1881.
AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora
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ALTMAN, C. A pesquisa linguística do Brasil (1968-1988). 2a. ed. São Paulo:
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ALTMAN, C.; COELHO, O. (coord). Documenta, gramaticae et historiae:
projeto de documentação linguística e historiográfica (séculos XVI –XIX).
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ALTMAN, C. et. al. Mapeamento historiográfico da produção linguística nos
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BACELAR, Bernardo de Lima e Melo. Grammatica philosophica e orthogra-
phia racional da lingua portugueza, para se pronunciarem e escreverem
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BARROS, João de. Grammatica da lingua portugueza. Lisboa: Olyssiponne.
Apud Ludouicum Totorigiu Typographum, 1540.
BOSCOLI, José Ventura. Grammatica portugueza. (corrigida e aumentada).
[s.l.], 1899.
Candida Barros
Museu Goeldi
mcandida.barros@gmail.com
RESUMO:
O trabalho apresenta o levantamento de documentos setecentistas sobre a língua ge-
ral com indícios de terem sido escritos por um pequeno grupo de jesuítas da Europa
Central (tapuitinga) que chegou à Amazônia entre 1750 e 1753 e aponta algumas das
estratégias de aprendizado da língua geral empregadas por eles.
ABSTRACT:
We present a survey of 17th Century documents about the lingua geral which appear
to have been written by a small group of Central European Jesuits (tapuitinga) that
arrived in the Amazon region between 1750 and 1753, and we point out some of the
strategies they employed for learning the lingua geral.
Introdução
1. Objetivos
São dois os objetivos deste trabalho: apresentar o conjunto de fontes
manuscritas da língua geral que contêm indícios de terem sido escritas por
jesuítas da Europa Central, chegados à Amazônia na década de 50 do século
XVIII, e desvendar as estratégias utilizadas por seus autores no aprendizado
da língua geral.
Para denominar essa língua indígena usaremos tanto o termo língua geral,
recorrente no século XVIII, como tupi, mais conhecido na literatura.
2. O grupo
Em termos institucionais, os padres tapuitinga pertenciam à Assistência
Germânica da Companhia de Jesus, que compreendia os colégios jesuíticos nas
regiões do que é hoje Holanda, Bélgica, Alemanha, Suíça, Áustria, Hungria,
Polônia e República Checa (AYMORÉ, s.d).
Entre os 12 jesuítas que aqui chegaram na década de 50 do século XVIII,
oito eram coadjutores espirituais - cargo direcionado às funções da evange-
lização dos índios - e, como tal, com obrigação de aprender a língua geral;
dois eram coadjutores temporais, que não atuavam diretamente na conversão.
Enfocaremos os oito coadjutores espirituais, listados abaixo:
Nascimento e Período na
Nome Missões de atuação
morte Amazônia
Piraguiri, Trocano, Abacaxis,
Eckart, Anselm 1721-1809 1753-1757
Caeté
Tapuitapera, São José, Acarará e
Fay, David 1722-1767 1753-1757
entre os índios Amanajés
Hoffmayer,
1722-1757? 1753-1757 Santa Cruz
Henrique
Kaulen, Lou-
1716-ca.1797 1750-1757 Piraguiri , Mortigura e Sumaúma
renço
Índios Tremembé , São João de
Kayling, José 1725 -1791 1753-1760
Cortes
Meisterburg, Trocano, Abacaxis, Arucará,
1719-1799 1750-1757
Anton Santa Cruz
Nascimento e Período na
Nome Missões de atuação
morte Amazônia
Schwartz , Mar-
1719-1788 1753-1759 Guaricuru, Araticum
tinho
Szluha, João
1723-1803 1753- 1759 Amanajé, Pindaré
Nepumoceno
A vinda dos jesuítas tapuitinga foi organizada em 1749 pelo padre Roque
Hundertpfund, então missionário na Amazônia, tendo recebido apoio da Rainha
de Portugal Maria Ana da Áustria e do Padre Geral da Companhia de Jesus,
Franz Retz, originário da Boêmia. Todos os três eram de “fala alemã”.
Por contingências políticas, os religiosos da Europa Central que chega-
ram a partir de 1750 ficaram na Amazônia por breve período de tempo. Com a
morte da Rainha Maria Ana da Áustria, e a entrada em vigência da política do
Marquês de Pombal (1750-1777), contrário à Companhia de Jesus, os padres
tapuitinga foram especialmente visados pela administração pombalina, como
se pode ver no documento anônimo de crítica à Ordem Relação abreviada da
república que os religiosos jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha
estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias (1757). O
panfleto denuncia os padres David Fay, Anselm Eckart e Antônio Meisterburg.
3. Os documentos
O quadro abaixo inventaria os códices sobre a língua geral contendo sinais
que apontam para autoria tapuitinga. Em seguida, situaremos esses documentos
no conjunto das demais obras congêneres da mesma época.
Esfregar. akytýc v apixíb. alii: apixío. german. reiben (Trier, fl. 18)
Amarella cor do rosto. Tobá jubá. Gelb wie saffran (Voc. da Língua
Brazil, f.19)
[...] o Anti Cristo ou esse fingido homem bom /: sou Deus :/ ele diz
no meio de todos homens [ou] bem às claras, ensinou aos habitantes
da terra. [tradução RM]
sonoras por surdas (b por p, d por t, g por c,qu,k, z por s), ou o contrário,
a troca de surdas por sonoras, entre outros. Isso ocorre também no registro
de palavras em latim e em tupi. Exemplos do dicionário de Trier:
A B ( f.45)
Aba tecocuàb. pessoa prudente.
Aberàb. resplandecer. reluzir.
Aberáberáb. resplandecer a miudo.
Acaangàb, amoçaangàb. medir. aballizar, v assinalar.
Açab foiro signū per modū crucis, qualicunq ex re.
Acekendab. aliis: acenkendáo. fechar grlmte
Acacuab. crecer a pessoa ou aãl.
Açokendàb. fechar a porta.
Aiàb. nacer o pinto ou qlqr passaro. abrirse a flor.
f) Textos catequéticos:
Entre os textos catequéticos de autoria tapuitinga, há duas versões da
oração do Pai Nosso traduzido para o tupi, uma na carta de Fay de 1753
e outra no artigo de Eckart (1778). O códice Prosódia contém uma série
de sonetos e canções em tupi. Algumas destas eram inspiradas em música
de origem européia, como “Stabat Mater” (Nossa Senhora da Piedade
Imitando o Stabat Mater” , fl. 107v).
A única amostra de diálogo de doutrina que temos dos autores tapuitinga
é o códice “Doutrina christaã em lingoa geral dos Indios do Estado do
Brasil e Maranhão, composta pelo P. Philippe Bettendorff, traduzida em
lingoa geral e irregular, e vulgar uzada nesses tempos”. O título nos
indica que o autor se propõe a fazer uso da variedade “vulgar” da língua
geral no diálogo de doutrina, diferentemente do que havia sido decidido
pela Companhia de Jesus uma década antes - ou seja, que deveriam ser
mantidos no diálogo de doutrina oficial recursos do tupi clássico ( MON-
SERRAT, BARROS e MOTA, 2010). Podemos constatar a diferença no
“Ama, que cria. mocãbyâra v mocãbyçara, ARAÚJO E LEÃO, 1686, pág. 117:
membycambubäè. Cate. fol. 117” (Trier fl.4) “D.Cunumĩ, cunhã täi, tunhabäẽymâna,
goaibĩ ymâna, muruápôra, imembycam-
bubäé, mbäé acybôra, cóâra pucúi mora-
bykyâra, goataçâra abé.”
“Purgatorio. tatà. mondycaba. Bett. pag. 51. BETTENDORFF, 1687, pag. 51:
forte dicdū repymondycaba”(Trier, fl. 34). “D. Putunuçú tatá mondycâba árybo
oçôbäé, pitanga imogaräíbipŷrëŷma recoâ-
bamo cupê.”
“[O Limbo] é uma caverna grande acima do
purgatório para onde vão as crianças que não
foram batizadas”
Doente. mbäe acymbóra. a arte diz: bae- FIGUEIRA, 1687, pag 96:
acybóra. pag. 96. “Quecé paié baeäcybóram çubáni, ontem,
o feiticeiro chupou o enfermo. Baeäcybóra,
he accusativo, & se naõ estivera immediato
ao seu verbo activo, diriamos, Ixubáni: ut
Quece baeäcybóra paié ixubáni.”
Acái. queimarse.
Açapucái. gritar chamando.
Acarái. arranhar a outro.a. (Trier, fl. 45):
Irá mel
Itá lapidem et ferrum ( ECKART, 1759)
Conclusão
A chegada de jesuítas da Assistência Germânica à América Portuguesa
para assumirem função de missionários não ocorreu pela primeira vez no sé-
culo XVIII. Meier e Aymoré (2005) listam os nomes dos vários missionários
tapuitinga que foram chegando desde o século XVI, sempre individualmente
ou em duplas. Em nenhuma ocasião anterior eles vieram em número de 12,
como ocorreu entre 1750 e 1753 na Amazônia. Isso nos motivou a investigar
os recursos comuns de que dispuseram para seu aprendizado da língua geral.
A iniciativa de trazer um grupo de jesuítas da Europa Central para atu-
arem como missionários no Brasil mostra que a Companhia de Jesus preferiu
formar um quadro bilíngue de adultos (o mais jovem tinha 25 anos) letrados
e sem domínio pleno do português a admitir na Ordem filhos de colonos da
Amazônia, detentores do conhecimento da língua geral necessário para essa
função. No século XVI, foi esta última a estratégia da Ordem na costa do Bra-
Referências bibliográficas
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ARENZ, Karl Heinz. Os possíveis autores do Dicionário de Trier (1756) . In:
Extrato de um dicionário jesuítico de 1756 em língua geral da Amazônia
- Letra A: Português-Língua geral. Portal BNDigital (em fase de edição).
AYMORÉ, Fernando Amado. A literatura etnográfica dos jesuítas alemães
sobre o Brasil e a América Espanhola nos séculos XVII e XVIII. Palestra
apresentada no Museu Goeldi, Belém.
RESUMO:
Este trabalho discute o processo de implementação do ensino da Língua Portuguesa
no Nordeste com os métodos de ensino: Mútuo (século XIX) e Multisseriado (século
XXI). Busca-se, assim, identificar as (des)continuidades linguísticas das concepções
de gramática e língua/linguagem, para isso, toma-se como corpus a Grammatica
Elementar da Lingua Portugueza, de Filippe B. O. Condurú (1888); o Caderno de
ensino e aprendizagem: Língua Portuguesa 4 e 5 e o Caderno do Educador: Língua
Portuguesa, de Selma A. P. W. Dias (2010). O trabalho ancora-se nas proposições da
Historiografia Linguística, representada por Konrad Köerner (1996), bem como na
organização proposta por Swiggers (2013).
ABSTRACT:
This paper discusses the implementation of teaching the Portuguese Language in
the Northeast process with teaching methods: Mutual (XIX century) and Multigrade
(XXI century). The aim is to identify the linguistics (dis)continuity of the concepts of
grammar and language, is taken as the corpus of the Grammatica Elementar da Lingua
Portugueza, by Filippe B. O. Condurú (1888); Caderno de ensino e aprendizagem:
Língua Portuguesa: 4 and 5 and the Caderno do Educador: Língua Portuguesa, by
Selma A. P. W. Dias (2010). The work is anchored in the propositions of Linguistic
Introdução
Este trabalho aborda a práxis do ensino da Língua Portuguesa no Brasil,
especificamente no Nordeste, com os métodos de ensino: Mútuo, na segunda
metade do século XIX, e Multisseriado, na primeira metade do século XXI. Para
tanto, tomamos como corpus a Grammatica Elementar da Lingua Portugueza,
de Filippe Benicio de Oliveira Condurú (1850); o Caderno do educador: Lín-
gua Portuguesa; o Caderno de ensino e aprendizagem: Língua Portuguesa 4 e
o Caderno de ensino e aprendizagem: Língua Portuguesa 5, de Selma Alves
Passos Wanderley Dias (2010), materiais que servirão para a verificação das
concepções linguísticas em que os autores ancoram o ensino. A seleção, pois,
desse material justifica-se na medida em que foi adotado nas escolas públicas:
escolas primárias (século XIX) no Maranhão e escolas de ensino fundamental
(século XXI), no Nordeste. Esclarecemos, ainda, que a obra de Condurú, por
nós utilizada é a XIII edição, de 1888.
Desse modo, buscamos identificar as continuidades e descontinuidades
linguísticas nas obras analisadas e “reconstruir o ideário lingüístico e seu desen-
volvimento através da análise de textos situados em seu contexto” (Swiggers,
2013, p. 43), para tanto embasaremo-nos nos três princípios da Historiografia
Linguística apresentados Konrad Köerner (1996): contextualização, imanência e
adequação, bem como na Organização proposta por Swiggers (2013, p. 44-45),
a saber: I – estabelecer um organograma historiográfico para o trabalho; II –
organizar o trabalho com a base documental (textos do passado e do presente)
em relação a três aspectos: heurístico, hermenêutico, executivo. No caso deste
trabalho, a execução de uma historiografia que correlacionará o rumo evolutivo
das concepções adotadas para o ensino mútuo (século XIX) e as adotadas para
o ensino multisseriado (século XXI).
Diante disso, observaremos a organização das fontes elegidas, bem
como analisaremos as concepções de língua/linguagem, gramática e texto.
Buscaremos os momentos de continuidade e de ruptura, quanto às concepções
filosóficas e científicas sobre a educação e o ensino de Língua Portuguesa, no
século XIX e XXI.
O autor destaca o fato de que sua gramática não se limita aos fatos
relativos à língua escrita, mas expande-se para a linguagem articulada,
abrangendo tanto a expressão por ‘viva voz’ – oral – ou por ‘carac-
teres’ – escrita. É dessa maneira que Condurú a define no início da
Introdução, chamando a atenção para o aspecto prescritivo, comum
às gramáticas de sua época, pois gramática ‘é a arte (*) que trata da
linguagem articulada, quer esta se exprima de viva voz, quer por ca-
racteres que a representem’ (p. 3). E, em nota de rodapé, acrescenta:
Condurú (1888, p.3) estabelece, ainda, que falar “é exprimir nossas idéas
por meio de sons articulados, chamados palavras”, pois, além desses sons, foram
inventados os caracteres da escrita a fim de os sons se tornassem duráveis, assim
sendo, escrever “é representar nossas idéas por meio de caracteres chamados
letras”. Nessa perspectiva, o autor aborda a leitura ao fazer a correspondên-
cia entre letra e o som que ela representa, manifestando a existência de uma
única maneira de escrever e falar em Português, uma vez que “Ler é exprimir
por palavras ou sons articulados o que se acha representado por caracteres ou
letras. Da mesma forma que “Letra é um caracter com que se representa um
som simples ou elementar. De uma ou mais letras se compõem as syllabas”.
A utilização da conceituação do termo fala em lugar de língua utilizado por
Condurú é bastante significativa se a relacionarmos ao método lancasteriano,
pois se trata de método amparado no ensino oral, que não buscava originalida-
de ou reflexão intelectual na atividade pedagógica, mas uma disciplinarização
mental e física, assim, por meio da repetição e da memorização (NEVES;
MEN, 2007). Desta forma, a concepção de língua como expressão de ideias é
substituída pela de fala.
A seguir, Condurú (1888, p. 3-4) apresenta as definições e exemplificações
do nome, assim como da quantidade de sílabas da palavra: “Nome é a palavra
pela qual se conhecem as pessoas, as cousas, as suas qualidades, como – Rei,
Monte, Alto. Chama-se monossyllabo a palavra que consta de uma só syllaba,
como – Pai, Dor; e polysyllabo a que consta de mais de uma, como – Gloria,
Sabedoria, Virtude”.
Os conceitos anteriores evidenciam que a concepção de língua/ lingua-
gem em uso relaciona-se ao conceito utilizado pelos filósofos gregos para a
produção de obras clássicas, assim, a linguagem é vista apenas como expressão
do pensamento. O pensamento é criado no interior da mente de cada sujeito e
sua exteriorização manifesta a tradução do seu pensamento, sem influências
do contexto ou do outro.
Na Introdução, Condurú (1888, p. 4) aborda a classificação das palavras
quanto a sua formação: “As palavras consideradas em sua formação podem ser
primitivas ou derivadas, simples ou compostas. Palavra primitiva é a que não
CENA 1
- Viche! Óia só!
O outro assustado:
CENA 2
- Licença, patrão! O dotô tem pó pá tapá taio?
- O quê???, diz o médico.
- Ah, doutor! Ele quer saber se o senhor tem pó cicatrizante para
colocar no talho – o corte do dedo – explica o dono da fazenda.
Considerações finais
As questões referentes ao processo de implementação do ensino da Língua
Portuguesa no Nordeste, com os métodos de ensino: Mútuo, na segunda metade
do século XIX, e Multisseriado, na primeira metade do século XXI, merecem
especial destaque do estudioso da Historiografia Linguística, não apenas porque
influenciam a produção do material dos momentos a que pertencem, mas porque
podem ajudar a compreender as relações entre as escolhas metodológicas e o
clima de opinião.
Por um lado, a gramática da Língua Portuguesa, no primeiro momento, é
marcada pela continuidade do modelo latino e se apropria deste modelo para
a execução do método de ensino mútuo, especialmente, porque ambos tendem
a uma prática mais disciplinada e rígida, por outro lado, o material didático,
no segundo momento, é marcado pela descontinuidade do modelo latino, mas
a adesão à concepção de língua/linguagem como interação, portanto mais
propício a um modelo multisseriado que se baseia no apoio mútuo dos alunos
e nas interlocuções nos grupos de alunos e com o educador para a construção
do conhecimento linguístico.
Desta forma, verificamos que os dois métodos de ensino, de 1850 e 2010,
refletem-se nos materiais auxiliares do professor: a gramática e o material
didático. Tais análises levam-nos a assegurar que investigação historiográfica
e escola devem caminhar compassadamente para colaborarem com o ensino
de língua portuguesa.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação/Fundação Nacional para o Desenvolvimento
da Educação. Programa Escola Ativa: guia para a formação de educadores
da Escola Ativa. Brasília, 2005.
_________. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Projeto base. Brasília, 2010.
CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Política e educação no Maranhão. São
Luís: SIOGE, 1984.