Ciganos BH
Ciganos BH
Ciganos BH
DILEMAS DA
DIVERSIDADE EM
UM PROCESSO DE
REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA:
O caso de Ciganos Calon em Belo Horizonte
deborah lima* e helena dolabela**
resumo O artigo apresenta pleito de um grupo de ciganos Calon, do Bairro São Gabriel de Belo Horizonte, Minas Gerais, pela
regularização fundiária de uma área de ocupação histórica. O caso é tomado como base para discutir dilemas do atendimento
de demandas de minorias em Estados nacionais. O processo fundiário ilustra a possibilidade de redefinição de práticas estatais
a partir da ampliação das margens conceituais adotadas. Mostramos como o enfrentamento da categorização do nomadismo
– baseada numa identidade essencializada do modo de vida cigano – e a disputa por significados outros de direitos e justiça
levaram ao reconhecimento inédito do direito ao espaço-território pelos ciganos de São Gabriel.
Introdução
E ste artigo apresenta o caso da regularização fundiária de uma área ocupada por
um grupo de ciganos Calon, do Bairro São Gabriel em Belo Horizonte, Minas Ge-
rais, como base para uma discussão sobre o atendimento de pleitos de minorias em Es-
tados nacionais e, nesse sentido, frente ao imperativo de sujeição do particular ao geral.
O problema da garantia de direitos humanos a minorias se dá, no caso dos ci-
ganos no Brasil, em um contexto destacado. É separado porque, ao contrário dos
dois grandes grupos étnicos reconhecidos pelo direito brasileiro – povos indígenas
e comunidades quilombolas –, os ciganos não contam com um suporte jurídico-ins-
titucional fora da Convenção 169 da OIT e de sua inclusão, tangencial, nos espaços
e nas políticas públicas para as populações tradicionais. Por conta desse destaque,
os ciganos apresentam um desafio para a reflexão e nos levam a ampliar o escopo
analítico empregado usualmente no tratamento do tema.
Enquanto o status de grupo étnico é incerto entre as populações tradicionais
brasileiras, os ciganos são francamente reconhecidos como uma etnia. Um povo
distinto, presente no Brasil desde os primeiros séculos da colonização. Um dos mais
fortes componentes do reconhecimento étnico dos ciganos é o preconceito, denun-
ciado pelos Calon de São Gabriel como “racismo”. A associação da atribuição étnica
com o preconceito – a visão negativa, a ameaça pressentida e seu alvitre, o descrédito
anterior a qualquer façanha, embasado em um estereótipo abjeto – não é exclusiva
dos ciganos em Minas, ou no Brasil, mas se manifesta como um fenômeno surpre-
endentemente global. Ao mesmo tempo histórico e contemporâneo, o preconceito
contra os ciganos demanda uma reflexão aprofundada: por que a sua diferença é tão
ampla e consensualmente rejeitada? Que aspectos do seu modo de vida ou dos seus
valores, constituem ameaças para o cânone ocidental?
Não propomos empreender um questionamento tão amplo, mas contribuir com
a discussão de um fragmento dessa temática, apoiada no caso Calon de BH. A descri-
ção do caso e a sua discussão possibilitam pensar em outros aspectos da vida cigana
que precisam ser cuidadosamente abordados para que possam ter a chance de ser
compreendidos em seus próprios termos, e o Estado adapte suas respostas às prer-
rogativas deles. Esse dilema se mostra especialmente presente nesse caso em que
um processo de regularização fundiária envolve o principal predicado do estereótipo
cigano: o mito do nomadismo.
Um aspecto que fica evidente desse primeiro contato forçado entre os ciganos de
São Gabriel e os moradores do Anel Rodoviário, fruto da parceria entre o DNIT e a ação
política local, é o tratamento diferenciado na atuação do poder público. Moradores do
Anel Rodoviário e os ciganos de São Gabriel ocupavam áreas públicas da União para
2 A indicação de tempo- fins de moradia, há bem mais de cinco anos.2 No entanto, aos primeiros estava sendo
ralidade na lei de conces-
são de uso especial para proposta uma alternativa para realocação das famílias que seriam removidas; enquan-
fins de moradia é um dos
to que, para os segundos, a ordem pública estabelecia o que a literatura especializada
requisitos para a obten-
ção do direito de perma- qualifica como uma forma de “remoção compulsória”, com prazo exíguo para desocu-
nência – via concessão
de uso especial para par a área e sem alternativa para realocação.
fins de moradia – ou de Essa prática oficial mostrou, por um lado, o longo histórico de marginalização
realocação para outra
área pública, no caso de social e territorial dos ciganos na cidade de Belo Horizonte, traduzido, nesse caso
risco social ou ambiental.
Moradores das faixas
específico, pelas várias vezes, ao longo dos 30 anos na região de São Gabriel, em que
do Anel Rodoviário e foram “empurrados” dos locais de acampamento para outras áreas periféricas da
os ciganos de São
Gabriel preenchiam esse cidade. Por outro lado, pela primeira vez, as famílias ciganas Calon de São Gabriel
requisito. Os primeiros
impuseram resistência a uma ordem estatal de desocupação da área de acampamen-
já estariam no local há
décadas; os segundos, to motivadas pela ausência de áreas disponíveis na cidade: “A gente não tinha para
há mais de 30 anos na
região e mais de 10 anos onde ir” (Ronan, cigano, 28 anos).
na área em disputa.
O movimento de resistência dos ciganos de São Gabriel teve início no final de
2010, por meio do protagonismo da liderança cigana local, Carlos Amaral, que, desde
a notícia sobre a ordem de despejo, gosta de contar como começou a formar “parce-
rias” (sua qualificação) com políticos e funcionários públicos que já atuavam na região
e eram de sua confiança. A primeira parceria foi com uma historiadora e funcionária
da Secretaria Municipal de Políticas Sociais que trabalhava na implementação do “Pro-
grama Global de Cidadania” para incentivar os ciganos a regularizar a documentação
civil e possibilitar o acesso às políticas sociais, como o bolsa-família. Outra funcionária
da Prefeitura de Belo Horizonte que mantinha contato frequente com a comunidade
cigana de São Gabriel era lotada na regional nordeste de Belo Horizonte. Essa funcio-
nária, entre outras coisas, conseguia apresentar interesses dos ciganos à Prefeitura de
Belo Horizonte.
A Defensoria Pública da União em Belo Horizonte foi acionada. O primeiro de-
safio da DPU na defesa do direito coletivo cigano à permanência na área pública
mais de 60
Faixas de idade
24 - 59
16 - 23
0 - 15
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45
100,00 100,00
80,00 80,00
60,00 60,00
Idade
Idade
40,00 40,00
20,00 20,00
00 00
10 8 6 4 2 0 2 4 6 8 10
Frequência
18
16
14
número de tendas
12
10
0
1 2 3 4 5
número de moradores
Figura 6: Destino de viagens realizadas por ciganos do acampamento no ano anterior à entrevista (maio 2012
a maio 2013) – notar a importância de cidades mineiras
São Gabriel, mas 11 estariam dispostos. Somando o interesse dos parentes imediatos
– pais e filhos dos donos de tendas atuais –contabilizamos uma demanda presente de
ocupação de pelo menos 22 tendas.
Pedimos que informassem a residência atual de cada um desses parentes pró-
ximos. A maioria residia no estado de Minas Gerais, corroborando a identidade mi-
neira da rede de relações desses ciganos. Além de Belo Horizonte (bairros Zilah
Spozito, Tirol, Dom Silvério e Céu Azul), os parentes próximos residiam nas cidades
mineiras Alvinópolis, Barbacena, Barroso, Caeté, Conselheiro Lafaiete, Contagem,
Ibirité, Igarapé, Lafaiete, Matozinhos, Nova Lima, Piumhi, Pouso Alegre, Ribeirão
das Neves, Santa Bárbara, Três Marias e Viçosa.
Fora de Minas Gerais, os parentes próximos residiam em São Paulo/SP, Pin-
damonhangaba/SP, Itaquaquecetuba/SP, Paraíso/SP, Angra dos Reis/RJ, Barra
Mansa/RJ e na Bahia.
A origem dos casais também é predominantemente mineira. Dos 50 casais, 14
ciganos nasceram em Belo Horizonte, e apenas oito eram de outros estados (São
Paulo, Bahia, Paraná e Rio de Janeiro). Os outros são naturais de 45 cidades mi-
neiras, corroborando a identidade que gostam de declarar: são os Calon de Minas
Gerais. A figura 7 ilustra essa identidade:
ção, consta que todas as escolas públicas ou privadas devem garantir a matrícula de
crianças nessa situação sem impor qualquer tipo de embaraço. Porém, os pais das
crianças ressaltaram que ainda encontram dificuldades na efetivação da matrícula e na
compreensão da realidade cigana.
A dificuldade de relacionamento das crianças ciganas com outros alunos e seu en-
frentamento cotidiano com o preconceito na escola reforça uma tendência de alguns
pais ciganos a não considerar prioridade de manter os filhos na escola. Para esses pais,
a importância da educação formal é atenuada por suas prioridades, especialmente em
relação às mulheres, que param de estudar ao se casarem, muitas vezes, sem nem
completar o ensino básico. Do ponto de vista dos pais, a escola cumpre seu papel
principal quando as crianças recebem o que consideram conhecimentos suficientes.
Em muitos casos, depois disso, a educação é abandonada, e é raro as crianças ciganas
permanecerem na escola depois do ensino fundamental.
Os benefícios como bolsa-família são um estímulo eficaz para manter as crianças
na escola. Muitos pais matriculam os filhos por precisarem do auxílio, que exige a
contrapartida de manter os filhos com até menos de 15 anos matriculados na escola e
apresentando baixo índice de faltas (no máximo 15%). Dos entrevistados, 27 recebem
benefícios sociais, entre os quais 16 provêm do bolsa-família e 11, de aposentadorias.
Apesar dos impedimentos e das incompatibilidades para cursar o ensino formal,
a oferta precisa ser garantida. Para as lideranças Calon, a educação formal deve visar
a políticas inclusivas e diferenciadas que contemplem os povos ciganos e sua cultura
para que o quadro precário de escolaridade dos adultos possa ser revertido. Entre os
adultos, mais da metade não tinha recebido instrução. A tabela 2 mostra a escolaridade
de 94 jovens e adultos do acampamento.
Tabela 2: Grau de Instrução de 94 jovens e adultos (pessoas acima de 15 anos)
Instrução N %
Sem instrução 53 56
Lê e escreve 5 5
1 a 3 anos 10 11
4 a 7 anos 19 20
8 a 10 anos 7 7
Total 94 100
As tendas são mobiliadas com uma decoração própria – panos coloridos, exposição de
panelas bem areadas, chão coberto com tapetes e lona – e comportam alguns bens. A pos-
se de bens, como TV, geladeira e tanquinho de lavar, atesta o grau de sedentarização dos
moradores e corrobora o tipo de mobilidade interurbana e intermitente descrito acima.
Bens Domésticos %
Televisão 86
Tanquinho de lavar roupa 86
Geladeira 84
Fogão a gás 84
Aparelho de som 70
Celular 66
Fogão a lenha 54
Cavalos 46
Carro 40
Máquina de costura 38
Computador sem acesso à internet 2
Computador com acesso à internet 2
Telefone fixo 2
Dois anos após a elaboração do segundo laudo, dois aspectos importantes indicam
uma alteração na forma de ocupação territorial. O primeiro deles, já previsto no relatório,
foi o aumento do número de novas famílias ciganas, acelerado após a expedição da certi-
dão de posse pela Secretaria de Patrimônio da União. No entanto, a maior parte das famí-
lias que chegaram ao acampamento após meados de 2014 não pertencem ao núcleo de
ciganos original, sendo conhecidos pelos Calon de São Gabriel como “ciganos cariocas”.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito à súbita mudança na paisagem
local devido à rápida construção de casas de alvenaria no acampamento para fins de
moradia dos próprios ciganos. Atualmente, as casas superam numericamente as anti-
gas tendas que, embora ainda presentes, são em número bastante inferior. Em breve,
pretendemos avaliar os impactos dessas mudanças – a presença de famílias Calon de
outro núcleo e a construção de moradia fixa – no modo de mobilidade cigano.
Considerações Finais
Desde o início do pretenso conflito fundiário, gerado pelo próprio poder público,
a atuação estatal não se deu fora da lei, mas de forma seletiva e restritiva. Essa forma
de atuação pública não pode ser bem compreendida sem uma referência ao longo
processo histórico de marginalização e discriminação social que marcam a relação
entre “ciganos” e “não ciganos”, incluindo o próprio poder público. Os primeiros
ciganos Calon chegaram ao Brasil deportados de Portugal e da Espanha ainda no sé-
culo XVI. Desde a sua chegada, as relações entre os Calon, os “gajon” e o Estado são
marcadas pelas representações mitológicas e populares sobre o modo de vida cigano
que atravessaram além-mar (Teixeira, 2008; Fazito:2010).
Desde o primeiro contato com os ciganos de São Gabriel, fica claro que as prá-
ticas estatais discriminatórias não são “fantasmagóricas”, mas estão presentes na
relação cotidiana com o poder público local. Histórias de extorsão e espancamento
policial contra homens e mulheres ciganas, expulsões e deslocamentos compulsó-
rios, obstáculos para inscrição e manutenção das crianças ciganas na escola munici-
pal e dificuldades no atendimento médico nos postos de saúde da região locais são
mais do que recorrentes na narrativa cigana, constituem a imagem dos ciganos do
seu lugar – inferiorizado – na relação com o Estado.
Os ciganos de São Gabriel reconhecem que, nos últimos anos e, principalmente
em relação ao acesso aos serviços públicos de educação e saúde, foram obtidos avan-
ços significativos. Entretanto, duas palavras definem o sentimento dos ciganos na
relação com a polícia local: medo e impotência.
O caso dos Calon de BH ilustra a possibilidade de redefinição de práticas estatais
em razão do alargamento das margens conceituais do Estado. O enfrentamento da
categorização do nomadismo, baseada numa identidade congelada do modo de vida
cigano, e a disputa por significados outros de direitos e justiça levaram ao inédito
reconhecimento do direito ao espaço-território pelas famílias ciganas de São Gabriel.
Isso não teria sido possível sem a construção de uma rede de “parceiros” que, por
meio de uma disposição inventiva, engendraram novas formas de governar e legislar.
Referências
CANTARINO, Eliane. “Nation Building” e relações com o Estado: o campo de uma antropologia em
ação. In: Desenvolvimento, Reconhecimento de Direitos e Conflitos Territoriais. Org. Andrea
Zhouri. ABA Publicações, 2012.
DAS & POOLE. El Estado e sus márgenes. Etnografias Comparadas. Revistas Acadêmicas de Rela-
ciones Internacionales, nº 8, junio, GERI-UAM. 2008
FERRARI, Florencia. O mundo passa: uma etnografia sobre os calon e suas relações com os brasileiros.
Tese de Doutorado/Departamento de Antropologia da USP. São Paulo, 2010.
LIMA, Deborah; DOLABELA, Helena; CAMPOS, Juliana; GONÇALVES, Flora; SAMPAIO, Alexan-
dre. Relatório Antropológico: Avaliação da Demanda de Ocupação dos Ciganos Calon do Bairro São
Gabriel, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Belo Horizonte, NuQ-UFMG. Manuscrito.
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Núcleo de Estudos Ciganos: Recife, 2008