ALEGORIA
ALEGORIA
ALEGORIA
Carlos Ceia
Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma
ilação moral. Um bom exemplo em português é-nos apresentado pelo Padre António Vieira:
“Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro
vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos do cair: há-de
cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a
cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão-de
vir bem trazidas e em seu lugar hão-de ter queda; a cadência é para as palavras, porque não
hão-de ser escabrosas, nem dissonantes, hão-de ter cadência; o caso é para a disposição,
porque há-de ser tão natural e tão desafectado que pareça caso e não estudo: Cecidit,
cecidit, cecidit.” (Sermão da Sexagésima, V, Obras Escolhidas, vol.XI, Sá da Costa, Lisboa,
1954, p.222).
Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do
sentido literal”, e veio substituir ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.) um termo mais antigo:
hypónoia, que queria dizer “significação oculta” e que era utilizado para interpretar, por
exemplo, os mitos de Homero como personificações de princípios morais ou forças
sobrenaturais, método que teve como foi especialista Aristarco de Samotrácia (c.215-143
a.C.). A alegoria distingue-se do símbolo (v.) pelo seu carácter moral e por tomar a realidade
representada elemento a elemento e não no seu conjunto. Muitas vezes definida como uma
metáfora ampliada, ou, como dizia Quintiliano, no Institutio oratoria, uma “metáfora
continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”, a alegoria é um dos
recursos retóricos mais discutidos teoricamente ao longo dos tempos. A mesma correlação é
estabelecida por Cícero no De Oratore, onde a alegoria é vista como um sistema de
metáforas. Uma forma de distinguir metáfora e alegoria é a proposta pelos retóricos antigos:
a primeira considera apenas termos isolados; a segunda, amplia-se a expressões ou textos
inteiros.
Na tradição grega mais antiga, uma aplicação possível da proto-ideia de alegoria é o ensino
dos pitagóricos, cujo sistema filosófico, apoiado em relações numéricas simbólicas, contém
associações de natureza alegórica. Tal acontece, por exemplo, na doutrina do dualismo
essencial entre limite e ilimitado, que se funda na composição de dez pares de opostos,
alguns alegóricos como Luz/Trevas e Bom/Mau.
, prática muito comum sobretudo na literatura medieval. Regra geral, a alegoria reporta-se
a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites
textuais (pode ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também
tem afinidades com a parábola (v.) e a fábula (v.). Seja o exemplo seguinte de uma fábula
de Esopo: “O leão e a rã”: Certa vez, um leão, ao passar perto de um pântano, ouviu uma
rã coxear muito alto e com muita força. Dirigiu-se então na direcção do som, supondo que
ia encontrar um animal grande e possante, correspondente ao barulho que fazia. Por isso,
ao avançar, nem reparou na pequena rã e pôs-lhe a pata em cima. “Vê lá onde pões os
pés!”, gritou a rã. O leão olhou, admirado, e disse: “Se és assim tão pequena, porque é que
fazes tanto barulho?” Se substituirmos a rã por “o Orgulho” e o leão por “o Poder”,
transformamos a fábula numa alegoria; se em vez da rã colocássemos “o Ministro Sem
Pasta” e em vez do leão “o Pai Severo”, teríamos uma parábola, que esconde personagens
reais por detrás de uma máscara alegórica. De notar que é usual na alegoria o recurso a
personificações ou prosopopeias (v.), em especial de noções abstractas
Até à Idade Média inclusive, a alegoria serviu de instrumento de defesa de teólogos, que
recorreram às interpretações alegóricas da Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas.
A própria Igreja foi muitas vezes referenciada na literatura teológica com nomes alegóricos
como Cidade, Arca ou Aurora. Santo Agostinho ensinou que a Bíblia devia ser lida de forma
alegórica: “No Velho Testamento, o Novo Testamento está dissimulado; no Novo Testamento,
o Velho Testamento é revelado.”. Para o Autor de A Cidade de Deus, a alegoria não está nas
palavras, mas deve ser encontrada nos acontecimentos históricos. Ao homem não é permitido
o conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido segundo o homem se
poderá aproximar (mas nunca chegar totalmente) da Verdade divina. S. Tomás de Aquino
estabeleceu uma distinção importante entre a alegoria teológica, que não é vista como um
artifício retórico mas como uma visão do Universo, e a alegoria secular ou literária. Depois da
escolástica, a teologia opta gradualmente por proceder a interpretações bíblicas que
privilegiem o sentido literal das Escrituras. Mesmo na arte medieval, o processo de construção
das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo, obedece também a complicados
esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o
simplesmente observável.
A discussão sobre as diferenças entre símbolo e alegoria continua no século XX, salientando-
se as reflexões de Walter Benjamin, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Paul de Man.
Todos tentam, de uma forma ou de outra, estabelecer a conciliação de ambos os conceitos,
que está negada pelos românticos.
Heidegger estudou a natureza da obra de arte como sendo constitutiva de uma realidade
alegórico-simbólica indivisível: “A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada,
mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa é, ‘allo agoreuei’. A obra dá
publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa: ela é alegoria. À coisa fabricada
reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. Reunir-se diz-se em grego symballein. A obra
é símbolo.” (A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Lisboa, 1992, p.13).
Na sua magnum opus, Wahreit und Methode (1960), Hans-Georg Gadamer
estabelece as semelhanças entre alegoria e símbolo: ambos se referem a algo cujo sentido
não consiste na respectiva aparência externa ou imagem acústica, mas numa significação que
os supera; em ambos, uma coisa quer dizer outra. E conclui que a principal diferença reside
no facto de o símbolo se opor à alegoria da mesma forma que a arte se opõe à não-arte.
http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/convidado15.htm