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Valdez Diane D

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6770

iii
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iv
Agradecimentos...

Aos mestres...

Ediógenes Aragão Santos, não somente pela constante orientação neste trabalho, como também
pelo incentivo permanente na minha vida acadêmica, possibilitando-me vislumbrar, experimentar
e vivenciar outras histórias.
Jean Hébrard, por todas as freqüentes orientações no meu estágio, na EHESS, em Paris e também
pelas dicas e ajudas preciosas durante toda a minha estadia nesta cidade.
Anne-Marie Chartier, pela disponibilidade em me orientar no INRP, em Paris.
Maria Lucia Hilsdorf, Heloísa P. Rocha, Ernesta Zamboni, Circe Bittencourt e Moisés Kuhlmann
Jr., pelas sugestões necessárias, pertinentes e cuidadosas na banca de qualificação e defesa desta
pesquisa.
Áurea M.Guimarães, pelo cuidado com as pessoas e com o conhecimento.

Aos funcionários dos arquivos e bibliotecas...

Arquivo Histórico de Goiás, em Goiânia, que, desde o mestrado, tem me orientado e contribuído
com as minhas ‘descobertas’ na história. Em especial, a M. Carmem Lisita e Mari Yazigi, pela
paciência, competência e respeito para com os pesquisadores.
Fundação Pedro Calmon, em Salvador, mais diretamente a Alice Maria R. dos Santos, por ter
prontamente me recebido e indicado arquivos e pessoas para o levantamento de materiais. Ao Sr.
Álvaro P. Dantas de Carvalho, um sábio da mesma Fundação, por ter me passado a Revista do
IGHBA sobre o barão e me contado boas histórias sobre a Bahia. Ao Sr. João da Costa P.
Victória, que me deu boas dicas e me enviou pelos Correios mais dados sobre Abilio.
Fundação Clemente Mariano em Salvador, em nome de Graça Cantalina, que com sua
competência e seriedade, levantou os materiais da Fundação e me permitiu fotografar as fontes.
Professora e pesquisadora de Salvador, Lizir Arcanjo Alves, que me enviou pelos Correios sua
publicação do IGHBA sobre os documentos do Ginásio Baiano e, gentilmente, me passou mais
dicas a respeito de documentos na Bahia.
Arquivo Público Municipal de Rio de Contas, em nome de Renato Asakawa, que me enviou pelos
Correios imagens e documentos sobre o barão.
Aos funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que em meio às dificuldades da
instituição, não deixaram de atender minhas necessidades.
Arquivo Público de São Paulo, ‘meninada’ eficiente e paciente.
Institut National de Recherche Pédagogique em Paris (Service d' Histoire de l' Éducation),
especificamente à secretária Anne-Marie e ao INRP de Rouen (Musée National de l’Éducation), a
Marie-Pierre e Marie-Françoise, pela disponibilidade e paciência.

Aos demais tão importantes...

Diego e Tito, pela ajuda com as fotos no Rio e em Salvador.


Alda Alexandre, pela revisão deste texto.
Aos contribuintes da cidade de Goiânia, representados pela Secretaria Municipal de Educação
que me concedeu a licença remunerada.
Ao povo brasileiro, pela bolsa concedida pelo CNPq.

v
Aos amigos...

“Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho
questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os de maus hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me
tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero os
santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela
cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo
que não ri junto não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade estupidez, metade
sinceridade. Não quero risos previsíveis nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem
da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos
adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o
valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem sou. Pois
os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que '
normalidade'é
ilusão imbecil e estéril”.

(Oscar Wilde).

Cristina Helou, pela presença constante e carinhosa na minha história em Goiás e São Paulo.
Claúdia, Nancy Angélica e Nanci Aparecida de Campo Grande, pela capacidade de vencerem a
distância e o tempo e ficarem sempre tão próximas e solidárias.
Glacy, Luiza e Verinha, por serem centradas, aplicadas e ‘quase’ me contagiarem com isso.
Cida, Eulange, Raílda, Irá, Jana, Black, Edmilson, Taciana, M. José, Vera Almeida, Thelma e Ilsa
Maria, pelo contágio nas tentativas de consertar o mundo na militância do Movimento Nacional
de Meninos/as de Rua e nos bares da vida.
Jota e Mário, por seguraram minha onda saudosa em Paris e tornarem a cidade luz mais linda
ainda.
Laura, pela relação afetiva e divertida que começou na França, atravessou o oceano e permaneceu
em Campinas.
Isleide, Elianinha, Flávia e Gelva, por serem especiais sempre.
Renata Cristina, Mônica, Adriana Mara, M. Socorro e M. Bianca, por comprovarem que as
diferenças são preciosas e essenciais na construção do ‘ser amiga’.
Heliane e Nasr, por serem minhas referências acadêmicas e afetivas.
Maria Cristina de Limeira, pela graça de ser guerreira e solidária.

Enfim...

Amor não se agradece, mas se reconhece... Ao Leandro, companheiro do tempo, do sonho e do


riso, por dividir a vida comigo de forma tão intensa e prazerosa.

vi
Lista de imagens
Capítulo I
Figura 1 Retrato do Dr. Abilio Cesar Borges..................................................................... 24
Figura 2 Publicações do centenário de nascimento............................................................. 25
Figura 3 Vista da casa onde Abilio nasceu........................................................................ 28
Figura 4 Materiais publicados de participação em exposições.......................................... 49
Figura 5 Capa do Relatório de 1856 .................................................................................. 56

Capítulo II
Figura 6 Discípulos ‘ilustres’ de Abilio............................................................................. 92
Figura 7 Anúncio do Colégio Abilio da Corte................................................................... 95
Figura 8 Capa Parecer sobre higiene no colégio da Corte................................................. 96
Figura 9 Matérias em jornais sobre o Colégio Abilio........................................................104
Figura 10 Anúncio do Colégio Abilio de Barbacena........................................................ 105
Figura 11. Anúncios de outros colégios particulares......................................................... 106
Figura 12 Capa da obra Vinte e dois anos de propaganda em prol do estudo no Brasil.. 118
Figura 13 Capa da Lei nova do ensino infantil.................................................................. 119
Figura 14 Capa Gramática portuguesa e Lusíadas............................................................ 143
Figura 15 Capa Geometria Popular........ ......................................................................... 147
Figura 16 Capa Discursos e poesias dos colégios de Abilio..................................... 161
Figura 17 Capa da obra Vinte anos de propaganda contra a palmatória........................... 170
Figura 18 Pauta do hino da Lei Nova................................................................................ 175
Figura 19 O Ateneu de Raul Pompéia........... ................................................................... 183
Figura 20 Lembranças de Pompéia no colégio da Corte................................................... 184

Capítulo III
Figura 21 a Livros de leitura de outros autores................................................................. 194
Figura 21 b Livros de leitura de outros autores..................................................................195
Figura 22 Propagandas dos livros de Abilio.................................................................... 214
Figura 23 Primeiro e Segundo livro de leitura.................................................................. 215
Figura 24 Terceiro, Quarto e Novo livro de leitura.......................................................... 216
Figura 25 Bordas .............................................................................................................. 226
Figura 26 Filete inglês ornado........................................................................................... 227
Figura 27 Página do catálogo de Laurent et Deberny - Piedade .......................................228
Figura 28 Página do catálogo de Laurent et Deberny -Variedades................................... 231
Figura 29 Imagem de escola ............................................................................................. 236
Figura 30 Menina com livro.............................................................................................. 237
Figura 31Meninas brincando............................................................................................. 238
Figura 32 Padre mestre e meninos..................................................................................... 242
Figura 33 Mestra ensinando crianças................................................................................ 243
Figura 34 Criança rezando................................................................................................ 259
Figura 35 Mãe ensinando filho a rezar.............................................................................. 260
Figura 36 Cristo crucificado ............................................................................................. 263
Figura 37 Cristo com crianças........................................................................................... 264
Figura 38 Menino ajudante de missa................................................................................. 267

vii
Figura 39 Mãe e filha ........................................................................................................279

Lista de quadros

Quadro 1 Trajetória resumida da vida de Abilio Cesar Borges......................................... 75


Quadro 2 Livros doados para as províncias .................................................................... 190
Quadro 3 Lista de obras publicadas ou traduzidas por Abilio ........................................ 206

Lista de abreviaturas

APMRC Arquivo Público Municipal de Rio de Contas.


AHG Arquivo Histórico de Goiás.
FCM Fundação Clemente Mariano
AESP Arquivo do Estado de São Paulo
AEL Arquivo Edgar Leuenroth
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
BNF Biblioteca Nacional da França
INRP Institute National de Recherche Pedagogique
IEB Instituto de Estudos Brasileiros

viii
Sumário

Introdução........................................................................................................13

Capítulo I: Abilio Cesar Borges: um homem de seu tempo....................... 21


1.1 A Bahia de todos os homens: fragmentos de uma história particular............................. 26
1.2 Um membro da Boa sociedade imperial......................................................................... 32
1.3 Jornalista, abolicionista e nacionalista: os espaços ocupados......................................... 38
1.4 As idéias propagadas fora do Império........................................................................... 43
1.5 Diretor Geral da Instrução da Bahia: Quem não tem padrinho morre pagão................ 50
1.6 Agraciado com um título: ser um barão na Corte tropical.............................................. 67

Capítulo II: Instruindo e educando a infância do ensino primário........... 77


2.1 Diretor e proprietário de colégios: Mens sana in corpore sano...................................... 82
2.2 A infância do ensino primário: Os pequenos regatos formam os grandes ribeiros........ 102
2.1.2 Os professores da instrução primária: O mestre deve ensinar sempre e o discípulo
sempre aprender ........................................................................................................ 116
2.3 Os métodos de ensino: Qualquer método é bom quando o professor é eficiente
e o aluno é inteligente ........................................................................................................ 126
2.4 O programa de matérias: Andar devagar, para chegar seguro e depressa................... 132
2.5 O ensino da doutrina religiosa: Quem em Deus se esperança tudo se alcança............. 148
2.6 Premiar e punir ou não castigar e nem recompensar: os caminhos trilhados................. 157
2.6.1 As cerimônias, os prêmios e as visitas: ele era todo um anúncio................. 158
2.6.2 Punições morais e reflexivas: Aquele que se envergonha ainda
não é incorrigível ................................................................................................... 166

Capítulo III: As infâncias presentes nos livros de leitura: significados e


representações..................................................................................................185
3.1 Os autores de livros de leitura: homens ‘cultos’ e preparados....................................... 192
3.2 A prodigalidade régia de Abilio e a distribuição de livros............................................. 199
3.3 Os dois primeiros livros de leitura: Ler sem refletir, é comer sem digerir..................... 212
3.4 Livrinhos ornados com ‘lindas’ gravuras: ilustrações e fonte......................................... 219

ix
3.5 Infância e escola: Nobre e ilustrada é a ambição que tem por objeto a sabedoria e a
virtude................................................................................................................................... 234
3.6 Infância e cumprimento dos deveres: A pobreza e a preguiça andam sempre em
companhia............................................................................................................................. 247
3.7 Infância e religião: O olho de Deus está sempre sobre vós............................................ 256
3.8 Infância e família: Os bons conselhos desprezados são com dor comemorados........... 275
3.9 Lembranças da infância: os leitores dos livros de leitura................................................ 284

4.0 Considerações finais................................................................................ 297

5.0 Fontes e Bibliografia geral........................................................................306

x
Resumo

Esta pesquisa investigou a representação de infância nas propostas pedagógicas do Dr.


Abilio Cesar Borges, o barão de Macahubas, médico baiano que, na segunda metade do século
XIX (1856-1891), ocupou um papel relevante na instrução do Império, sobretudo por ter sido um
autor pioneiro na publicação de livros de leitura seriados para a infância brasileira. Nosso
objetivo foi identificar o lugar dado por este educador à criança na faixa etária de seis a doze anos
do ensino primário, compreendendo que argumentos, teorias e produções foram utilizados para
divulgar a idéia do ‘bom aluno’ e, conseqüentemente, da ‘boa criança’. Serviram-nos de fontes às
próprias publicações deste autor, como relatórios, discursos, livros para a criança, obras
direcionadas aos pais e professores, gravuras, além de biografias, jornais etc. Tendo como
referência a história cultural, com enfoque nas representações, interpretamos e analisamos as
fontes, buscando confrontar as propostas de Abilio com as idéias que circulavam neste período
histórico, destacando suas particularidades e enfatizando as pluralidades que as caracterizavam.
Foi possível identificar uma série de concepções a respeito do que o autor considerava importante
no trato para com a criança. Para ele, era necessário compreender as particularidades do
desenvolvimento infantil, devendo a escola ser um ambiente atrativo e alegre onde o ensino e os
livros fossem adequados à compreensão da criança. O papel da escola era de instruir e educar
com o objetivo de formar uma criança saudável, sábia, cortês, dócil e temente a Deus,
características primordiais para a construção de uma sociedade harmônica, moderna e
‘civilizada’. Constatamos nas propostas deste autor um investimento na criança como um ‘vir a
ser’, ou seja, um futuro adulto ‘ajustado’ aos conceitos ‘civilizatórios’. Entretanto, identificamos
igualmente que, por trás deste pensamento, havia outros elementos que revelaram uma
preocupação com a criança no presente. Abilio registrou em seus discursos e materiais a pais,
professores e autoridades governamentais, algumas idéias acerca do desenvolvimento infantil as
quais incentivavam um ensino ‘amorável’ através de campanhas contra castigos corporais na
escola e na família, além de outras propostas que contribuíram para a compreensão do universo
infantil no Brasil oitocentista.

Palavras-chaves: infância; instrução primária; barão de Macahubas; Brasil Império, livros


leitura.
Abstract

This research investigated the childhood representation in Dr. Abilio Cesar Borges
pedagogical proposals, the baron of Macaubas, a physician from Bahia who in the second half of
the XIX Century (1856-1891) had a relevant role in the education of the Empire period, mainly
because he was a pioneer author in the publication of a serial books in respect the Brazilian
childhood. Our purpose was to identify the space given by this professor to children in the age
group of six to twelve years old of Elementary Education, understanding which arguments,
theories and productions were used to spread the idea of “a good student” and consequently “a
good child”. The sources studied were the publications of this author, such as reports, speeches,
children’s books, works directed to parents and teachers, engravings, as well as biographies,
newspapers, etc. The reference was the cultural history and focusing our attention on the
representations, we interpreted and analysed the sources looking for the comparison of Abilio`s
proposals with the ideas that were spread in that historical period, highlighting its peculiarities
and emphasizing the plurality that characterized them. It was possible to identify a series of
conceptions related to what the author considered important in relation to the treatment given to a
child. It was necessary for him to understand the peculiarities of the child’s development and
according his conception , the school should have a happy and attractive environment in which
education and books should be suitable for children`s understanding. The role of the school was
to instruct and educate having as aim, the formation of a healthy, wise, polite, docile and God-
fearing child, prime characteristics for the construction of a harmonic, modern and “civilized”
society. It was verified in the author’s proposals the dedication in what the child “might turn
into”, in the other words, a future adult “adjusted to a civilizing concepts”. However, it was also
identified that behind this thinking there were other elements that showed us a concern with
children at present time. Abilio recorded in is speeches and materials for parents, teachers, and
governmental authorities, some ideas regarding a child`s development encouraged a
“affectionate” education spreading a campaign against corporal punishment in schools and at
home, as well as other proposals that contributed to the understanding of the children`s universe
in Brazil during the 1800s.

Key Words: childhood, Elementary Education, baron of Macahubas, Brazilian empire


Introdução

Esta pesquisa investiga a representação de infância nas propostas pedagógicas do Dr.


Abilio Cesar Borges, o barão de Macahubas, médico baiano que na segunda metade do século
XIX ocupou um lugar representativo na instrução do Império brasileiro1. Abilio foi Diretor de
Instrução Pública da Bahia (1856-1857), proprietário e diretor de colégios na Bahia, Rio de
Janeiro e Minas Gerais e membro de entidades científicas e filantrópicas. Foi autor de livros
escolares, sendo pioneiro na publicação de obras para a infância brasileira com uma série de
cinco livros de leitura (1866-1891).
A segunda metade do século XIX, período deste estudo foi marcado por imensas
transformações econômicas, sociais, políticas e culturais no Brasil. No campo da instrução,
difundiu-se a crença em torno do ensino primário e no poder da escola como fator de progresso,
modernização e mudança social. Diante disso, a organização escolar, com enfoque na criança,
tornou-se objeto de reflexão política e pedagógica. Era consenso nos discursos de políticos e
intelectuais da época, a necessidade de reformas urgentes no ensino para que a escola cumprisse
com seu papel redentor e civilizatório.
A escola, seja ela pública ou privada, estava fortemente associada à idéia de infância e
juventude, mesmo que esta associação não tenha acontecido repentinamente e de forma
semelhante em todos os espaços, surgiram, neste período, iniciativas e movimentos de
escolarização da infância. Independente da precariedade que caracterizava o ensino nas
províncias do Império brasileiro, escolarizar a criança significava garantir para o futuro da nação
um adulto polido e educado, elemento essencial na formação da sociedade ‘civilizada’ e burguesa
que a elite intelectual almejava alcançar.
As propostas de Abilio estavam inseridas neste processo e ao eleger a instrução e a
educação da infância como sua bandeira prioritária, não poupou esforços para colocar em prática
o que, às suas vistas, era viável para a formação de sujeitos polidos e úteis. A partir de 1856,
quando ocupou o cargo de Diretor da Instrução na Bahia, até sua morte em 1891, este educador
se preocupou unicamente em investir em seus colégios, publicar materiais escolares e propagar
métodos de uma educação moderna, branda, alegre, saudável e livre de castigos físicos. A
instrução e a educação da infância deveria ser pautada sobre os princípios da ciência e da religião
e era preciso investir na criança o quanto antes, desde a mais tenra idade, para garantir um futuro
promissor para a pátria. Defendia, portanto a necessidade de uma atenção especial ao
desenvolvimento físico e intelectual da criança, respeitando suas particularidades e
especificidades próprias da infância.
A primeira vez que tivemos contato com esse autor foi no, no Arquivo Histórico de
Goiás no início do doutorado. Chamou-nos atenção as listas de solicitações de materiais para o
‘expediente escolar’, elaboradas por professores e diretores2 nas quais continham constantes
pedidos dos livros de leitura ‘de Abilio’3. Nosso interesse foi se ampliando na medida em que
uma boa parte da bibliografia da História da Educação citava este autor como um dos pioneiros
na produção de livros para a infância brasileira. Também nos surpreendeu o fato de não termos
encontrado pesquisas específicas sobre a contribuição de Abilio para a educação brasileira. Sua
imagem ainda é fortemente associada à obra O Ateneu, de Raul Pompéia, seu ex-aluno, que
inspirou seu romance autobiográfico em sua experiência no Colégio Abilio da Corte cristalizando
a imagem de Abilio a Aristarco Argolo, um diretor vaidoso e autoritário.
Ao decidirmos investigar a representação da infância nas propostas pedagógicas de
Abilio, temos por objetivo identificar o lugar reservado à criança do ensino primário neste
período da história. Sabemos que as idéias defendidas pelo autor não eram únicas e tampouco
estavam isoladas do contexto político e social de seu tempo. Identificar, portanto, a infância
idealizada por Abilio, percebendo as permanências, rupturas e transformações ocorridas, assim
como confrontar suas idéias com o que estava circulando no período, tornou-se relevante para
compreendermos como foram construídos alguns conceitos que se cristalizaram na história da
educação brasileira. Se havia a necessidade de se construir um ideal de criança, a escola, sem
dúvida, contribuiria enormemente para a efetivação da idéia do ‘bom aluno’ e conseqüentemente
da ‘boa criança’.

1
O termo ‘instrução pública’ substituiu o conceito ‘aulas régias’ implementado após a expulsão dos jesuítas (1759). Nessa
pesquisa vamos utilizar instrução, tal como era usado no período. Foi a partir dos anos 30 que o termo ‘educação’ passou a ser
utilizado, com mais freqüência.
2
As listas solicitando essas obras datam da década de setenta (século XIX) até a década de trinta (século XX), o que comprova a
longevidade dessas obras nas escolas goianas. Os ofícios eram encaminhados ao Diretor Geral da Instrução, transcrevemos uma
das listas para servir de exemplo: “1 livro de ponto; 1 dito para matrículas; 5 exemplares de “Resumo da Grammatica Portuguesa”
pelo Dr. Abilio Cezar Borges; 6 Ditos do 1o livro de leitura de Abilio; 5 Ditos do 2º livro de leitura do mesmo autor; 5 Ditos do 3o
; 12 Collecçoes de Taboadas; 6 Cartilhas da doutrina Christã; 6 cathecismos da Doutrina; 1 Mapa geografico da Provincia de
Goyaz”. (AHG/Caixa 193 – documentos avulsos/1870).
3
O termo ‘Livros de Abilio’ era usado nas solicitações, de forma quase exclusiva. Portanto, ao nos referirmos ao autor seguimos
essa prerrogativa não se trata de intimidade mas sim de darmos continuidade ao que era prescrito no período.
Os estudos realizados sobre a história da infância, intensificado nas últimas décadas, têm
procurado considerar as diferenças de raça, gênero e classe, buscando aprofundar os
conhecimentos sobre as várias infâncias existentes. Na história da educação brasileira, as
pesquisas têm trazido à tona diferentes percepções e concepções a respeito da infância escolar,
seja na abordagem da educação da criança pequena, jardim da infância, creches e outros, como
também da criança incluída na instrução primária na qual abrangem métodos de ensino, livros
escolares, escolas públicas e privadas, assim como as instituições educativas filantrópicas.
Decidimos, nesta pesquisa, investigar a representação de infância do ensino primário
presente nas propostas pedagógicas de Abilio C. Borges na perspectiva da história cultural.
Segundo Vainfas (1997), o reconhecimento da pluralidade da história cultural permite selecionar
três maneiras distintas de distingui-la: a história cultural praticada pelo italiano Carlos Ginzburg
na perspectiva da cultura e circularidade popular; a história cultural produzida pelo inglês E.
Thompson que trata dos movimentos sociais e do francês Roger Chartier com seus conceitos de
representação e de apropriação.
Ao optarmos pelo estudo da representação, estamos atentas às palavras do historiador
francês para o que Noiriel (apud, SANTOS, 2004), que considera vago o caráter do termo
representação, mesmo se os estudos das representações se tornarem um pré-requisito para os
historiadores franceses contemporâneos, o mesmo autor afirmou que raramente estes explicitam
em que sentido o empregam. A idéia de representação é um conceito central da história cultural e
a mesma envolve historiadores com posturas bem diversas, sendo que o conceito de
representação não é claro e nem assumido por todos. Contudo, para Pesavento (2003), todos
trabalham sobre a produção de sentidos referentes ao mundo construído pelos homens do passado
e o que fica evidenciado nas pesquisas é a idéia de trazer os sentidos conferidos ao mundo, que se
manifestam em palavras, discursos, imagens, práticas etc.
De acordo com Le Goff (2003), a crítica da noção de fato histórico tem provocado o
reconhecimento de ‘realidades’ históricas que há muito foram negligenciadas pelos historiadores.
Desta forma, junto à história política, econômica e cultural, nasceu a história das representações
que assumiu formas diversas, que envolve história das ideologias, das mentalidades, do
imaginário e do simbólico. Para o mesmo autor, apesar do enriquecimento que estes novos
setores da história representam, faz-se necessário evitar dois erros:
Antes de mais nada, subordinar a história das representações a outras realidades, as quais caberia um status
de causas primeiras (realidades materiais, econômicas) – renunciar, portanto, à falsa problemática da infra-
estrutura e da supre-estrutura. Mas também não privilegiar as novas realidades, não lhes conferir, por sua
vez, um papel exclusivo no motor da história. Uma explicação histórica eficaz deve reconhecer a existência
do simbólico no interior de toda realidade histórica (incluída a econômica), mas também confrontar as
representações históricas com as realidades que elas representam e que o historiador apreende mediante
outros documentos e métodos – por exemplo, confrontar a ideologia política com a práxis e eventos
políticos. E toda história deve ser uma história social (2003, p.12).

Escrever sobre o passado, há muito tempo deixou de ser uma narrativa pura e reconhecida
como ‘verdadeira’, pois o passado não está pronto e acabado esperando o historiador contá-lo,
assim como, o documento não desvenda o passado de forma direta e transparente. A história e o
passado são plurais, é um conjunto de valores construídos, socializados, significados e
legitimados pelos homens para explicar um tempo e uma sociedade. Desta forma, para
compreender um tempo, uma época e uma sociedade, faz se necessário compreender suas
representações, que em cada época são construídas para conferir e dar sentido ao real.
Segundo Pesavento (2003, p. 40), indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das
representações que constroem sobre a realidade. Assim, representar é fundamentalmente “(...)
estar no lugar de, é presentificação de um ausente, é um apresentar de novo, que dá a ver uma
ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível
uma presença.” Desta forma, seja de forma individual ou coletiva, as representações são dadas e
expressas na história por normas, instituições, discursos, imagens, ritos, crenças, conceitos,
valores, conflitos etc. que são construídos a partir do real.
Para Chartier (1990, p.19), as representações construídas do mundo social são sempre
determinadas pelos interesses de grupos que as forjam, que, a revelia dos atores sociais,
“traduzem as sua posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente,
descrevem a sociedade como pensam que é, ou como gostariam que fosse.” Para o mesmo autor,
um dos principais objetivos da história cultural é o de identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e lida. Contudo, para
identificarmos isso, é preciso ficar atentos às múltiplas configurações da construção do mundo,
feita de forma contraditória e variada pelos diferentes grupos sociais.
Ao procuramos ‘decifrar’ a época que propomos analisar, por meio de suas
representações, queremos chegar às formas discursivas e imagéticas na qual Abilio Cesar Borges,
sobretudo, expressou sua concepção e sentido de infância. Isto é, buscaremos reconstruir com as
fontes disponíveis e selecionadas as representações construídas no século XIX, levando em conta
a realidade nas quais estas foram construídas, pois de acordo com Pesavento:

As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou
enunciam, carregam sentidos ocultos, que construídos social e historicamente, se internalizam no
inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexões (2003, p.41).

O poder da representação se dá pela sua capacidade de substituir a realidade que


representa, da construção de um mundo paralelo, da legitimação e do reconhecimento dos
discursos e das imagens construídas historicamente. Tendo estes princípios como referências,
discutiremos nesta pesquisa de que forma este educador, inserido em seu contexto político e
social, fixou e prescreveu condutas para construir e representar a imagem da infância ideal. Como
seus escritos, que tinham uma função pedagógica, revelavam a vontade de expor e ensinar
maneiras e modelos para servirem de espelhos, modelos que foram cristalizados servindo por um
longo período para se definir o padrão de uma boa infância.
Conseguimos reunir um número significativo de informações a respeito do tema através
das fontes encontradas em arquivos e bibliotecas4. Recorremos, primeiramente, as próprias
publicações de Abilio da segunda metade do século XIX, seus livros de leitura para a infância,
artigos em jornais, discursos proferidos, relatórios, cartas e outros materiais. Consultamos
também às biografias5 publicadas sobre este autor na década de vinte e trinta do século XX,
algumas obras francesas de autores citados por Abilio e os catálogos do qual foram extraídas as
gravuras que ilustram seus livros de leitura.
Como podemos perceber, são tempos diferentes e lugares diferentes, o que resultou em
olhares diferenciados para focalizar e questionar os significados das práticas e das representações
provindas delas.

4
Pesquisamos nos seguintes arquivos e bibliotecas: Arquivo Histórico de Goiás (AHG), Gabinete Literário de Goiás (GLG),
Fundação Pedro Calmon: Centro de Memória e Arquivo Público da Bahia, Fundação Clemente Mariano (Salvador), Arquivo
Público do Estado da Bahia, Centro de Memória da Educação da FEUSP, Arquivo do Estado de São Paulo, Arquivo Edgar
Leuenroth (Unicamp) e Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. No ano de 2004, recebemos uma bolsa do CNPq para realizar um
estágio na França, sob orientação do Professor Jean Hébrard. Em Paris, pesquisamos na Biblioteca Nacional da França (BNF),
Institute National de Recherche Pedagogique (INRP) e Archives Nationalles de France. Em Rouen no Institute National de
Recherche Pedagogique INRP - Musée National de l’éducation.
5
As biografias estão contidas na Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia, do 1o semestre do ano de 1925, um
“Número especial dedicado ao barão de Macahubas”. É composta por uma série de conferências que foram proferidas na “Semana
Macahubas”, em setembro de 1924, ocasião em que se comemorou o primeiro centenário do nascimento de Abilio. Esse número
especial compilou as homenagens e foi publicado no ano seguinte, em 1925. A biografia intitulada Vida e obra do barão de
Macahubas, escrita em 1934 por Isaías Alves (1888-1968), quase uma cópia da sua conferência na ‘Semana Macahubas’, porém
foi organizada de forma mais didática, registrando a vida e a obra de Abilio abordando-o em tópicos: família, vida política e
intelectual, produções etc.
Nesta pesquisa, utilizaremos o termo ‘infância’ para nos referirmos à criança do ensino
primário, seguindo as prerrogativas do nosso autor. No entanto não adotamos um conceito rígido
e acabado, pois a idade escolar é flutuante e difícil de determinar, além do conceito infância ser
ambíguo neste período6. Enfatizamos a amplitude do conceito em uma sociedade onde havia
várias infâncias (livre, escrava, indígena), no entanto optamos por um recorte para podermos nos
dedicar à criança que a escola pretendia formar, com suas contradições e tensões7.
Em seus dois primeiros livros de leitura, objetos de investigação em um dos capítulos
desta tese, Abilio explicitou seu público alvo: ‘Para uso da infância brasileira’, da mesma forma,
em sua obra Lei nova do ensino infantil8 invocou novamente esta categoria, evidenciando assim a
palavra ‘infância’, um termo neutro, que incluía a criança na idade entre seis a doze anos. Ao se
dirigir ao público leitor dos primeiros livros de leitura é comum o autor utilizar termos como
‘obrinhas’ ou ‘livrinhos’ para a infância. Em algumas passagens de seus discursos é evidente a
separação de seus pupilos menores denominados por ‘menino’, ‘creança’ e mais amplamente
‘infância’ que se contrapunha com os termos ‘jovens’, ‘mancebos’ e ‘moços’ para destacar seus
discípulos do ensino secundário.
Chamamos a atenção para o termo ‘menino’ que vai aparecer nesta pesquisa, utilizado não
somente pelo nosso autor, mas também por outros autores de obras didáticas9. Nos documentos
oficiais de diretores da instrução, presidentes de províncias, assim como na legislação e em

6
Não vamos nos deter no conceito de infância deste período por consideramos este assunto bastante debatido por diversos
autores. Ver mais sobre o tema em: Ariés (1978); Gélis (1998); Rousseau (1999); Postman (1999); Riche & Alexandre-Bidon
(1994); Heyhood (2004), Freyre (1977 1996); Del Priore (1992;1999); Leite (1972); Freitas & Kuhlmann Jr. (2002); Faria Filho
(2004); Fraga Filho (1996); Freitas (1997); Marcílio (1998); Silva (1998); Venâncio (1999); Gondra (2002, 2004).
7
Não podemos deixar de mencionar que para designar a infância pobre, o vocabulário oitocentista era extenso e variado. Gondra
(In FARIA FILHO, 2004), apresentou alguns destes termos recolhidos do discurso médico-higienista, político, religioso e
jurídico: perigosos, ignorantes, descalidos, infelizes da sorte, desprotegidos, deserdados, abandonados, desamparados,
miseráveis, pobres, inocentes, enjeitados.
8
Esta obra, publicada em 1884, tinha por intenção divulgar os métodos e materiais que o autor, através de sua
experiência, compreendia como mais adequado para o ensino primário. A palavra ‘lei’ não está relacionada a
legislação oficial e sim como um modelo a ser seguido.
9
Alguns títulos de obras escolares traziam em suas chamadas o termo ‘menino’, porém no decorrer do tempo, o termo vai sendo
substituído por ‘infância’ e ‘criança’, indicando alterações na definição do público a qual era indicada a obra. Vale a pena conferir
alguns títulos: Cartinha que ensina a ler com uma solfa de cantiga para fixar a memória e curiosidade dos meninos (1568 –
Portugal); Collecção de cartas para meninos (1811); Leituras para meninos, contendo uma colleção de historias moraes relativas
aos defeitos ordinários às idades tenras (1818); Ortografia para meninos (1829); Episódios da história pátria contados à
infância (1860); Legenda para Meninos (1864); Cartilha Maternal (1876); Contos para a infância (1877); As crianças (1877);
Contos Nacionais para a Infância (1882); Tesouro Poético para a infância (1883); História de Jesus para as crianças lerem
(1883); Canto infantil (1883); Contos infantis (1886); Cânticos infantis (1895); Cartilha da infância (1895);Livro das crianças
(1896); O livro das crianças (1898); Vida infantil (1906); Poesias Infantis (1904); Leituras infantis (1908); Páginas infantis
(1908); Corações de crianças (1913); Passatempo infantil (1914).
(In: http://www.unicamp.br/iel/memoria/base_temporal/Didaticos/index.htm). Ainda no início do século XX, era traduzido a obra
clássica de Pierre Blanchard Tesouro dos meninos (adotada em 1850)e Mário: livro de leitura enciclopédico para meninos de
Paulo Tavares. (Arroyo:1990, p.97).
matérias publicadas na imprensa a respeito da instrução, percebemos que o termo referia-se,
igualmente, à criança do ensino primário10. De acordo com Kuhlmann Jr. e Fernandes (Ibid.), o
vocabulário menino (a) designava de um modo geral uma criança com apreciável grau de
desenvolvimento físico e de resistência, que permitia a aplicação de castigos corporais, contudo o
sentido da palavra evoluía ganhando significações inéditas. Desta forma não se trata puramente
de uma questão de gênero, mas, sobretudo para identificar a criança desta faixa etária.
O trabalho está organizado em três capítulos. O primeiro intitulado “Abilio Cesar Borges:
um homem do seu tempo” apresenta dados da história deste autor, situando-o em seu contexto
regional e nacional. Abordamos aspectos de sua trajetória escolar, origem familiar, formação na
Faculdade de Medicina, a inserção em instituições intelectuais e filantrópicas, na imprensa, nas
campanhas abolicionistas e na Guerra do Paraguai, viagens para a Europa, participação em
exposições internacionais, a passagem pelo cargo de Diretor Geral da Instrução Primária e
Secundária da Bahia, concluindo com o título de barão recebido do Imperador. Procuramos
apresentar esses dados, inserindo-os no contexto político e social do período pois são indicações
importantes para identificarmos o grupo ao qual Abilio pertencia, assim como tornar
compreensível para o leitor suas propostas para a instrução e para a educação.
No segundo capítulo, “Instruindo e educando a infância do ensino primário”, nos
dedicamos à análise de suas propostas idéias para este ensino. Destacamos seus colégios, seu
pensamento acerca do desenvolvimento infantil, idade, higienização, separação de classes,
professores, ensino, matérias, métodos, ensino das ciências e da religião, cerimônias e festas,
premiação, castigos morais, repercussão na imprensa etc. Organizamos os temas de modo a
apresentar a rotina dos alunos dos colégios de Abilio, sem perder de vista as práticas
educacionais que vigoravam no período. Dessa forma podemos ter um quadro mais amplo do que
a infância do ensino primário vivenciava ou não, nas escolas públicas e particulares.
O capítulo terceiro, intitulado “As infâncias presentes nos livros de leitura: significados e
representações” teve como referência principal o Primeiro e o Segundo livro de leitura para a
infância brasileira. Antes de analisarmos as lições e gravuras, discorremos a respeito da inserção
do livro de leitura na sociedade brasileira, caracterizando-o em seu espaço de produção,

10
No relatório de A. Gonçalves Dias, de 1852, o relator registrou: “(...) se quisermos calcular sobre o numero de meninos de
ambos os sexos, que a provincia deve conter”. O Decreto das Escolas de Primeiras Letras, de 1827, ao definir o que deveria ser
ensinado pelos professores, cita as disciplina e faz a ressalva “(...) proporcionadas a compreensão dos meninos (...). Ver os
relatórios dos diretores de instrução e dos presidentes das províncias a respeito da instrução a obra “A instrução e as províncias
(1835-1889)”, de Primitivo Moacyr (1939 e 1940).
comercialização e distribuição. Buscando trazer os objetivos deste material, nos debruçarmos
sobre as lições e gravuras para a criança, também de forma temática, a representação da escola, o
dever escolar, disciplina e ordem, o papel da família, os aspectos religiosos, concluindo com a
lembrança presente nas memórias dos leitores dos livros de leitura.
É no interior dessas considerações que procuramos investigar o que Abilio preconizou
para a infância nesse período da história da educação. Como ressaltou Fanfani e Levillain (apud,
BASTOS, 2002) os objetivos e intenções de um indivíduo estão sempre entrelaçados com outros
pensamentos que o rodeiam. Não é um personagem que esclarece uma época ou um século, mas
sim uma época e um século que servem para explorar o personagem, suas qualidades, defeitos e
vícios, aos quais a época atribui uma racionalidade preexistente.
Desta forma, perceber e anotar as particularidades e semelhanças do pensamento de um
educador como Abilio Cesar Borges, inserindo-o nos debates correntes no período histórico em
que viveu e atuou, esta pesquisa pretende contribuir e ampliar os estudos sobre a representação da
criança na educação e na instrução do Brasil oitocentista.
Capítulo I
Abilio Cesar Borges: um homem de seu tempo

Antes de adentrarmos as propostas pedagógicas de Abilio Cesar Borges para a instrução


da infância, optamos por apresentar alguns dados de sua história. Conhecer sua origem familiar,
sua formação intelectual, seu círculo de relações sociais, políticas e religiosas, assim como outros
aspectos de sua vida, nos permitiram traçar um quadro que nos possibilitou identificar que lugar o
autor ocupava na sociedade da época. A partir dos dados encontrados nas fontes, organizamos
sua trajetória de forma temática, buscando inseri-la no contexto da época pesquisada para não
cometermos o erro de enaltecê-lo ou subestimá-lo.
Para seus biógrafos, o autor é reconhecido como um verdadeiro ‘apóstolo’ na história da
instrução, um homem sem defeitos, que não mediu esforços para concretizar medidas a favor do
ensino. Tanto que a expressão ‘amigo da infância’, atribuída a Abilio por si mesmo, caracterizou-
o em uma boa parte dos escritos dedicados a ele10. Por outro lado, esses mesmos biógrafos
apresentaram-no como vítima, alegando que não houve um reconhecimento de suas boas
intenções no campo da instrução, já que uma grande parte de seus méritos só foi admitida mais
tarde, após sua morte. Segundo os dados contidos nas biografias, apesar de seu entusiasmo e
interesse pelo melhoramento das condições da criança, especialmente nos primeiros passos da
vida escolar, Abilio agia de forma isolada, fato que o tornou diferenciado para seu tempo.
No contato com a produção de Abilio, percebemos que as representações atribuídas a ele
nas biografias basearam-se nos escritos do próprio autor, que se auto-definia no duplo conceito de
um homem com boas intenções e, ao mesmo tempo, incompreendido. Deparamos-nos,
constantemente, com seus sentimentos, nada modestos, que exaltavam suas qualidades em
confronto com injustiças, perseguições, calúnias e injúrias provindas de opositores, adversários e
inimigos anônimos.

10
As qualidades do autor, no que se refere à promoção da instrução infantil, foram ressaltadas a partir de termos como: ‘pioneiro
dos métodos educativos’, ‘infatigável professor’, ‘benfeitor da infância’, ‘ilustre educador’, ‘educador exímio’, ‘iniciador
entusiasta’, ‘reformador fecundo do seu tempo’, ‘fanal do futuro’, ‘educador insigne’, ‘exemplo de dignidade’, ‘conspícuo
cidadão’, ‘ínclito pedagogo dotado de inteligência’, ‘notável educador patrício’, ‘filho que honrou a Bahia’, ‘obreiro da instrução’,
‘notável preceptor’, ‘apóstolo do bem’, ‘benfeitor da humanidade’, ‘patriota benemérito’, ‘verdadeiro educador’, ‘homem de
caráter’, ‘coração magnânimo’, ‘mestre da infância’ etc. Contudo estes adjetivos enaltecedores não eram uma exclusividade do
nosso autor, sendo comum identificar os homens da elite intelectual com termos semelhantes.
22

Apoiados nessa construção, os biógrafos de Abilio deram-lhe, ao representar sua trajetória


de forma mitificada, ares de um herói incompreendido. Isso porque procuraram enaltecer-lhe a
figura através de homenagens, reparando, antes tarde do que nunca, essa falta de reconhecimento.
As conferências biográficas, publicadas na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
(IGHBA), traduziram esse sentimento, pois era preciso demonstrar gratidão à memória do
educador para justificar uma espécie de juízo histórico como pagamento de uma dívida de
reconhecimento.
As biografias às quais nos referimos apresentam dados que privilegiam, de forma quase
que exclusiva, a memória em detrimento da história, pois os préstimos de Abilio para a instrução
configuram o sentido de um passado único e coerente. Embora nos forneçam vários dados sobre a
história deste educador, suas biografias, por se tratarem de homenagens, é uma fonte
escorregadia. Foram-nos necessários, portanto, atenção redobrada e um olhar criterioso, porque a
trajetória de Abilio, embora fascinante, só constitui história quando inserida historiograficamente.
A memória, segundo Le Goff (2003), como propriedade de conservar certas informações,
primeiramente, nos remete a um conjunto de funções psíquicas pelas quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Desta forma,
na representação da trajetória de Abilio, não há divergências (com exceção de algumas datas e
locais) e, sim, uma clara reconstrução de um conjunto de lembranças com a intenção de
reconhecê-lo, embora muitas circunstâncias permaneçam obscuras.
Burke (2005) discorreu sobre a tentação à qual o historiador não deve sucumbir: a de
tratar os textos e as imagens de certo período como espelhos, reflexos não problemáticos de seu
tempo. Pensamos que o cuidado deve ser maior ainda quando se opta pela história individual a
partir de uma série de documentos que fornecem dados sobre uma única pessoa.
Afinal, como averiguamos, as fontes não estão livres de paixão ou de propagandas, daí a
necessidade de nos aprofundarmos nos detalhes, nas relações, nas metáforas e em tudo o que o
documento pode oferecer, pois para Burke (Ibid., p.32-33): “Como seus colegas de história
política ou econômica, os historiadores culturais têm de praticar a crítica das fontes, perguntar
porque um dado texto ou imagem veio a existir, e se, por exemplo, seu propósito era convencer o
público a realizar alguma ação.”
Os biógrafos de Abilio seguiam os preceitos da época para escrever sobre a sua história,
não havendo a preocupação de polemizar sua figura. Ainda hoje é consenso que, para biografar,
23

não é necessário ser historiador, jornalista, antropólogo ou outro profissional da academia, basta
escolher alguém, como salientou Vilas Boas:

Em rigor, biografia é a compilação de uma (ou várias) vida(s). Pode ser impressa em papel, mas outros
meios, como o cinema, a televisão e o teatro podem acolhê-la bastante bem. Por enquanto não há
certificados epistemológicos para o fazer biográfico. (...) O biógrafo enfrenta acontecimentos que moldaram
seu biografado ou foram por ele moldados. Sem passado não há biografia, como não há história com agá
maiúsculo (2002, p.18).

Acreditamos que, quando se trata de uma pesquisa científica, a historiografia é

indispensável para compreender o fazer biográfico, na medida em que contempla pesquisa,


documentação, interpretação e recursos narrativos.
Desta forma, as biografias, sem dúvida, nos indicaram excelentes pistas, permitindo-nos
formular outras questões para explorar os limites e possibilidades da vida e da prática do nosso
autor. Procuramos articular a densidade e a ambigüidade presentes nesses escritos, buscando
condições necessárias para superar os maniqueísmos derivados deles.
Não se trata de transformar a vida de Abilio em nosso objeto de trabalho, pois, como já
ressaltamos, nosso tema central a questão da infância escolar. Foi a partir, porém, das idéias de
Abilio (idéias não exclusivas dele), que procuramos desvendar a representação da criança na
sociedade contemporânea a ele.
24

Figura 1 Retrato do Dr. Abilio Cesar Borges (Vila de Minas do Rio de Contas/BA 09-09-1824/ Rio de Janeiro 17-
01-1891).
25

Figura 2 O ano de 1924, centenário do nascimento de Abilio,


foi comemorado em toda a Bahia. A Revista do IGHBA
dedicou um número especial ao barão de Macahubas. Abaixo,
temos a biografia feita por Isaias Alves, na década de
quarenta, decorrente de sua palestra no ano do centenário.
26

1.1 A Bahia de todos os homens: fragmentos de uma história particular

A Bahia, na década de vinte, vivia fervorosa luta da emancipação política decorrente do


processo de independência de 1822. A Guerra da Independência, ocorrida entre 1822 e 1824,
representou a luta dos patriotas que, movidos por um forte nativismo, se contrapunham à
recolonização reivindicada pelos portugueses11. O dia dois de julho de 1823 é a data em que o
Império foi oficialmente aceito na Bahia, fato que, de acordo com Pinho (In: HOLANDA, 1978,
p.267), fez surgir nos baianos o “credo patriótico, firmando-se a liturgia das anuais celebrações,
obedecida a rigor até os dias que correm”.
Após o término da Guerra da Independência, todas as províncias foram incorporadas ao
Império, o que não significou o fim das rivalidades entre os patriotas e as forças portuguesas e,
muito menos, o estabelecimento da paz na Bahia. Prova disso são os sucessivos motins, rebeldias,
pronunciamentos e revoluções que inquietaram os governantes baianos12.
Abílio César Borges nasceu e viveu uma boa parte de sua vida na Bahia de todas as
revoltas, epidemias, secas, um lugar onde numerosos escravos conviviam com homens ilustres,
cujo refinamento beirava a polidez. Filho de Miguel Borges de Carvalho e de Mafalda Maria da
Paixão, nasceu no dia nove de setembro de 1824, em Minas do Rio de Contas13. Não
conseguimos apurar com precisão a origem da família de Abilio14, entretanto a cidade em que

11
No início de 1822, a população baiana se rebelou contra as tropas portuguesas que cercaram a cidade de Salvador e, apesar do
envio de tropas do Rio de Janeiro, os rebeldes baianos não conseguiram vencer os portugueses. No auge dos conflitos, o ano de
1823, muitos populares foram reprimidos e mortos. Após vários enfrentamentos entre a população e os soldados portugueses, a
guerra chegou ao fim, com a derrota das tropas portuguesas comandados por Madeira de Melo (TAVARES: 1963).
12
Uma das revoltas mais significativas foi a Revolta dos Malês (1835), liderada pelos negros africanos, escravos e libertos,
adeptos da religião mulçumana, conhecidos como malês. Essa revolta foi reprimida com violência, morreram cerca de setenta
participantes e mais de quinhentos sofreram punições como pena de morte, prisão, açoites e deportação (FAUSTO: 2001). A
Sabinada (1837-1838) foi uma revolta que reuniu uma ampla base de apoio em torno das idéias federalistas e republicanas,
incluindo a classe média e pessoas ligadas ao comércio. Segundo Fausto (Ibid., p.90), “O movimento buscou um compromisso
com relação aos escravos, dividindo-os entre nacionais e estrangeiros. Seriam libertados os cativos crioulos que houvessem
pegado em armas para a revolução; os demais continuariam escravizados. Os sabinos não conseguiram penetrar no Recôncavo,
onde os senhores de engenho apoiaram o governo. Após o cerco de Salvador por terra e mar, as forças governamentais
recuperaram a cidade depois de uma luta corpo a corpo que resultou em cerca de 1.800 mortos.”
13
Identificada hoje como Rio de Contas, essa vila foi colonizada no século XVII e criada por Provisão Real em 1745, com o
nome de Vila Nova de Nossa Senhora do Livramento de Minas do Rio de Contas. Foi a primeira cidade planejada do Brasil e
importante posto do controle de ouro que vinha de Minas Gerais e Goiás. Cidade mais antiga da Chapada da Diamantina, foi
tombada pelo patrimônio histórico e ainda mantém a arquitetura barroca. A casa onde nasceu Abilio abriga, atualmente, o Arquivo
Municipal de Rio de Contas e localiza-se na Rua Barão de Macaúbas. Seu acervo inclui documentos como cartas de alforria,
sentenças eclesiásticas, certidões de escravos, dentre outros.
14
A obra Baianos ilustres (1567-1925), de Antonio Loureiro Souza, reúne conhecidos nomes da Bahia do século XVI ao XX,
porém faz referência somente a Abílio e não a sua família. Da mesma forma, no Dicionário das famílias brasileiras (1999, p.501-
502), em um dos verbetes que assinalam Borges, os autores destacam, na Bahia, os ‘pais de Abilio’ e, em seguida, o próprio e seu
título de barão, não se estendendo a outras referências. O referido nome de família procede de Portugal. Trata-se de grupos que
27

nasceu foi um importante ponto de mineração na região da Chapada da Diamantina e uma de suas
primeiras publicações, Memória sobre a mineração na Província da Bahia15, abordou esse
assunto.
Este fato, talvez, seja uma pista de seu pertencimento a um grupo de famílias tradicionais
baianas que se estabeleceram nessas regiões, enriquecendo com o diamante16. Não podemos
perder de vista a homogeneidade da elite nordestina que, além de se diferenciar da massa,
distinguia-se, também, entre si.
Mesmo que não tenha sido confirmada a origem de Abilio na base mineradora, é notório
que ele provinha de uma classe com posses, pois a família investiu em sua formação desde o
ensino primário. Ele estudou as primeiras letras em um colégio católico na sua cidade natal, onde
aprendeu latim (a base de palmatória), francês e filosofia com padres-mestres. Teve, assim,
acesso a um ensino reservado a poucos, devendo ser sua infância distinguida por nós como mais
uma exceção do que como uma regra para o período.
Em 1838, com quatorze anos, mudou-se para Salvador com o objetivo de fazer o ensino
preparatório no Colégio Conceição, dirigido, então, pelo Padre Mestre José M. de Moura Alves e
considerado o mais conceituado do período. No primeiro ano do Colégio Conceição, foi
escolhido como monitor, pois, de acordo com Alves (1942), ‘trazia do sertão’ uma bagagem
intelectual suficiente para ensinar seus colegas e concluir o curso de preparatórios em dois anos
de estudos.
O curso secundário, reservado a uma minoria privilegiada, preparava basicamente os
jovens para ingressarem nos cursos superiores do Império. Os aspirantes ao título de doutor
deveriam saber latim, língua francesa ou inglesa, filosofia racional e moral, aritmética e
geometria. Foi a partir da década de setenta que o ensino secundário introduziu o ensino das
Ciências físicas e naturais.

atuaram com Felipe II na defesa de Bourges (província francesa de Berry), adotando o nome que, posteriormente, foi
aportuguesado para Borges. Inúmeras famílias vieram para o Brasil, embora não fossem parentes entre si e nem tivessem a mesma
origem.
15
Publicada na Bahia, no ano de 1846, na Gazeta Oficial do Império e no Jornal do Comércio.
16
O estudo de Pina (2002) sobre as lavras diamantinas do século XIX refuta a tese de uma imagem de um sertão como sinônimo
de deserto ‘incivilizado’ e ‘selvagem’, termos construídos pela historiografia tradicional. Ao discorrer sobre a diversidade da
população dos ‘sertões baianos’, a autora verificou que a riqueza da Bahia não estava concentrada somente em Salvador e no
Recôncavo. Registra, contudo, que poucos tiveram acesso à riqueza fácil, buscada com os diamantes, pois os garimpos não
trouxeram prosperidade a todos, embora tenham trazido mudanças para as vilas produtoras desse minério. Como a Bahia desse
período continuava sendo marcada por conflitos e revoltas em função da insatisfação das massas populares, sobretudo dos
escravos, essa riqueza ficou, sem dúvida, nas mãos de poucos.
28

Figura 3 Casa onde Abilio nasceu na vila de Minas do Rio de Contas, Chapada da Diamantina, na Bahia. Localizada
na Rua Barão de Macaúbas, atualmente abriga o Arquivo Municipal de Rio de Contas e seu acervo inclui
documentos como cartas de alforria, sentenças eclesiásticas, certidões de escravos etc. (Fotos: Renato Asakawa –
APMRC).
29

Neste período, ao lado das aulas públicas, o número de estabelecimentos particulares


multiplicava-se, número que, até a década de quarenta, era ignorado pelo governo. O Ato
Adicional de 1834, que delegou a responsabilidade do ensino primário e secundário às
províncias, encontrou o ensino das humanidades totalmente fragmentado. A organização ainda
era mantida, segundo a tradição jesuítica, em alguns poucos seminários e no famoso colégio
Caraça (1820) dos lazaristas.
Os colégios religiosos em regime de internatos instruíam, em cursos primários e
secundários, crianças e jovens de ambos os sexos, provindos das classes abastadas. Desta forma,
o ensino público secundário, fragmentado em aulas avulsas, às vésperas do Ato Adicional,
reduzia-se a um punhado de aulas de latim, retórica, filosofia, geometria etc. Foi a partir do Ato
que se efetivaram as primeiras providências tendentes a imprimir alguma organização aos estudos
públicos secundários. Surgiram, então, os primeiros liceus, no Rio Grande Norte (1835), Bahia e
Paraíba (1836), e na Corte o Colégio Pedro II (1838) 17.
Em todo o país, com raras diferenças, este ensino reproduzia em seu currículo o conjunto
de disciplinas fixadas pelo Centro para os exames de ingresso nas Academias. É o que Haidar
(1972) chamou de ‘pseudo-descentralização’ do ensino secundário, pois, mesmo após 1834, o
controle deste ensino em todo o Império estava nas mãos dos poderes gerais que continuavam
tendo decisiva influência sobre este ensino. A avaliação dos candidatos, realizada junto aos
próprios cursos superiores e, posteriormente, os exames gerais, foram tarefas de que o governo
jamais abdicou.
Não foi possível averiguar que tipo de literatura foi feita por Abilio em sua formação
primária e secundária. É sabido, contudo, que o ensino em colégios religiosos baseava-se na
religião, na literatura e na retórica. Um tipo de ensino que, sem dúvida alguma, influenciou
decisivamente os discursos do autor até o fim de sua vida. Freyre, ao se referir ao efeito do latim
e da retórica que impregnaram o ensino e marcaram a formação intelectual de várias gerações,
observou:

A retórica se estudava nos autores latinos, lendo Quintiliano, citando Horácio, decorando as orações de
Cícero. Lógica e Filosofia, também: eram ainda os discursos de Cícero que constituíam os elementos
principais de estudo. A Filosofia era a dos oradores e dos padres. Muita palavra e o tom sempre o dos
apologetas que corrompe a dignidade da análise e compromete a honestidade da crítica. Daí a tendência para
a oratória, que ficou no brasileiro, pertubando-o tanto no esforço de pensar como no de analisar as coisas, os
17
O Colégio Pedro II foi inaugurado em 2 de dezembro de 1837, dia do aniversário do Imperador. Considerado o mais importante
colégio criado pelo governo do Império, era destinado, sobretudo,, à formação dos filhos da elite.
30

fatos, as pessoas. Mesmo ocupando-se de assuntos que peçam a maior sobriedade verbal, a precisão, de
preferência ao efeito literário, o tom de conversa, em vez do discurso, a maior pureza de objetividade, o
brasileiro insensivelmente levanta a voz e arredonda a frase como se estivesse prestando exame de retórica
em colégio de padre (1977, p.318).

Após concluir os preparatórios, em 1840, Abilio foi aprovado nos exames da Faculdade
de Medicina da Bahia18. Precisou, no entanto, voltar para sua cidade devido à saúde desgastada
em conseqüência dos estudos, ficando um ano ‘de repouso’. A educação acadêmica e livresca no
Brasil oitocentista desenvolveu-se pelos sacrifícios do crescimento físico harmonioso. Segundo
Freyre (1977), o traço quase romântico da falta de saúde era característico dos jovens mais
estudiosos dos colégios, internatos e academias, chegando mesmo a tornar-se bonito ser doente.
Morrer velho estava reservado para os fazendeiros ricos, para os vigários gordos e outros,
enquanto morrer moço era bonito, devendo os gênios falecer cedo e, se possível, de tuberculose.
Como definiu Freyre, nada de saúde, nada de robustez, nada de gordura.
No ano seguinte, aos 17 anos, idade propícia para um estudante adentrar na educação
superior, Abilio iniciou o curso de medicina na Faculdade de Medicina da Bahia, onde estudou
durante cinco anos19. Em 1846, mudou-se para a Corte e concluiu, no ano seguinte, o curso na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendendo a tese intitulada: Proposições sobre as
ciências médicas. O título de doutor era concedido aos alunos do sexto ano, após defenderem
uma tese escrita em português ou latim. Abilio foi considerado um brilhante e talentoso aluno,
recebendo, várias vezes, a distinção cum lade (com grande distinção acadêmica), a qual, em
1846, foi concedida somente a dois alunos, tendo sido Abilio um dos contemplados.
Durante sua passagem pela Faculdade de Medicina da Corte, destacou-se não só por seu
brilhantismo, mas também por sua capacidade de provocar polêmica. De acordo com Alves
(RIGHBA,1925, p.118), devido à energia do seu caráter e seu amor pela Bahia, Abilio acusou de
forma enérgica os professores que perseguiam e faziam sofrer os estudantes baianos da faculdade
da Corte. Em virtude desse incidente, o governo Imperial ordenou que ficassem as “cartas dos

18
Criada em 1808, como Escola de Cirurgia da Bahia, em 1838, foi convertida em Faculdade, ao lado da Academia Imperial de
Medicina. A Faculdade da Bahia, assim como do Rio de Janeiro, monopolizou a acessoria ao governo imperial sobre os assuntos
de saúde pública, como epidemias, moléstias etc. De acordo com Pinho (In: HOLANDA, 1978), desde o começo, esta instituição
foi a medula intelectual da Província, sendo responsável por uma vasta publicação de artigos, em revistas e jornais, assim como
livros de autoria de lentes e professores. Provém dessa Faculdade um dos principais líderes da Revolta Sabinada, Francisco
Sabino, médico popular da Bahia, figura controvertida que, no período desta revolta, era professor nessa faculdade.
19
Essa precocidade típica, sobretudo da segunda metade do século XIX, era favorecida pelo que Freyre (1977) chamou de
‘solidariedade de geração, de idade e de cultura intelectual, da parte do jovem imperador’. É com Pedro II, desertor da meninice e
que precocemente, com 15 anos, já era imperador, que essa tendência se acentuou. Jovens começaram a ascender de forma
sistemática a cargos os quais, antes, eram ocupados por velhos com larga experiência.
31

doutores em medicina, dependentes por seis mezes da censura do Director da Faculdade”. Em sua
tese inaugural, Abilio investigou a função do coração por considerá-lo um órgão que manifesta os
sentimentos morais e físicos, explicitando: “O coração não é um órgão essencial a vida, nem é
por sua força que principalmente se executa a circulação do sangue”.
Apesar de se dedicar, depois de formado, à causa da instrução da infância, não foi sua
opção investigar sobre este tema na Academia. A questão da higiene e da medicina infantil já era
uma preocupação presente em várias teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da
Bahia. Trabalhos acadêmicos sobre aleitamento materno e doenças que provocavam um alto
índice de mortalidade infantil já circulavam desde a década de trinta do século XIX, revelando
idéias e preocupações a este respeito. Gondra (2004), em seu estudo sobre as teses da Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro no período oitocentista, investigou temas que disseminavam
concepções sobre higiene, saúde, corpo e educação escolar, debatendo a escolarização das
práticas corporais como foco dos projetos médico-higiênicos.
A vocação nos cuidados para com a infância não se manifestou nos primeiros estudos do
médico. Apenas mais tarde, no cargo de Diretor da Instrução e como de proprietário de colégios
privados, Dr. Abilio veio a pautar seus fundamentos a respeito da instrução nos debates médicos
higienistas, seja para falar do desenvolvimento da criança, defender temas relacionados à higiene
ou mesmo promover a ‘cura’ da chaga provocada pela falta de instrução.
O médico Abilio optou, primeiramente, por exercer seu ofício, de 1847 a 1855, na cidade
de Barra do Rio Grande, no vale de São Francisco, período em que a Bahia sofria o impacto da
seca e das epidemias de cólera e febre amarela. Foi clínico e cirurgião-chefe de um hospital de
caridade (com cuja fundação contribuiu) no mesmo período em que deu início a sua vida política,
ocupando cargo de vereador e presidente da câmara nesta mesma vila. Casou-se, em 1850, com
Francisca Antônia Wanderley20, com quem teve seis filhos: Mafalda Wanderley Borges, Ana
Corina Borges, Abilio Cesar Borges Jr, Joaquim Abilio Borges, João Abilio Borges e Miguel
Abilio Borges21.

20
Conhecida pelos alunos como ‘mamãe Chiquinha’, Francisca, ou baronesa de Macahubas, é identificada como uma grande
colaboradora da carreira de Abilio. Acompanhava-o em suas viagens, auxiliava-o em seus estabelecimentos e se fez presente em
todos os momentos de sua carreira. Não encontramos, todavia, nada que Abilio tenha escrito sobre a esposa.
21
Mafalda e Anna Corina, consideradas eruditas e talentosas, estudaram em colégios de Paris (Sacré Couer) e de Londres.
Mafalda morou em Lyon na França, casou-se com o Conde de Infreville, pertencente à nobreza francesa, tornando-se Condessa de
Infreville. Abilio Cesar Jr, que foi ministro diplomático, casou-se em Paris, lá permanecendo até sua morte. João Abilio estudou
agricultura também em Paris e Miguel Abilio (nascido em Paris) formou-se em Direito e exerceu magistério no Colégio Abilio da
Corte, no Colégio Militar e na Escola Normal, além de ter fundado o “Instituto de Idiomas Modernos”, instalando no Brasil o
método ‘Berlitz’. Joaquim Abilio Borges foi o filho que desempenhou o papel de seguidor do pai: foi professor, diretor honorário
32

A partir de sua entrada na vida política, Dr. Abilio passou a pertencer à elite política
letrada, elemento poderoso na unificação ideológica da política imperial. Neste período, quase
toda a elite política brasileira possuía estudos superiores, algo praticamente inacessível a quem
estava fora dela, o que levou Carvalho (1996, p.55) a concluir que: “A elite era uma ilha de
letrados no mar de analfabetos”. Também não podemos deixar de mencionar a histórica questão
do quanto os baianos ‘se davam’ aos estudos superiores. Desde os séculos XVII e XVIII, a
riqueza dessa Capitania possibilitou um ambiente de teor elevado das variadas expressões de
inteligência ilustrada22. Essa supervalorização regional e a idéia de que ser baiano era ser
excessivamente civilizado, de acordo com Freyre, se cristalizou no imaginário do século XIX:

O baiano de cidade, isto é, de Salvador, acabou por sua vez fazendo de sua condição de homem da capital do
Brasil – por muitos anos a cidade por excelência do palanquim e de negros que gritavam para todo homem
de sapato que descesse de navio ou nau: “Qué cadeira sinhô?” – motivo de supervalorização de origem ou
de situação regional. Era como se fosse Salvador a única região civilizada, urbana, polida, do Brasil; e o
mais, mato rústico (1977, p.369).

Nesse mesmo período, Abilio recusou o cargo de diretor da Faculdade de Medicina da


Bahia, anunciando que sua carreira de médico não seria longa, pois, como ele mesmo definiu:
não poderia servir a ‘dois senhores’. Ou seja, para Abilio, a prática da medicina e da instrução
eram distintas e inconciliáveis, por isso, posteriormente, trocou a carreira de médico pela de
educador como iremos averiguar ainda neste capítulo.

1.2 Um membro da Boa sociedade imperial

Abilio fazia parte da Boa sociedade, expressão que, segundo Neves (In: VAINFAS,
2002), designava a reduzida elite econômica, política e cultural do Império, a qual compartilhava
códigos de valores e comportamentos modelados na concepção européia de civilização. A palavra
civilização aparece no decorrer deste trabalho inúmeras vezes, pois, certamente, era uma das

e um dos fundadores do curso de Filosofia de Direito do Rio de Janeiro e de Niterói, desempenhando a função de diretor vitalício
da Escola Normal do Distrito Federal. Em 1924, foi adido na França tendo estado presente na cerimônia do IGHBA que
homenageou seu pai.
22
Pinho (op cit. p.300-301) ressaltou que, desde o primeiro século de colonização, a Capitania da Bahia era a que mais enviava
seus jovens para estudar na Universidade de Coimbra. No século XVI, a cada treze brasileiros em Coimbra, seis eram baianos; no
século XVII, a cada trezentos e cinqüenta jovens brasileiros, cento e cinqüenta eram filhos dessa região; no século XVIII, a cada
mil e quatrocentos, trezentos e setenta eram baianos. Já no século XIX, em função das lutas antilusas, essa proporção diminuiu: a
cada 304 brasileiros, cento e nove eram da Bahia.
33

expressões mais utilizadas pelas elites do Brasil imperial. A referência de civilização eram os
países da Europa, sobretudo a França e a Inglaterra, sendo, assim, necessário implementar
medidas civilizadoras que os aproximassem das nações européias.
De acordo com os dicionários da época, civilidade significava ‘cortesia’, ‘urbanidade’,
‘polidez’, ‘boa educação’, ‘boas maneiras’ e outros elementos que se opunham à rusticidade
‘grosseira’ dos setores sociais mais baixos. Os manuais de bons costumes, instrumento
importante na difusão dessa civilidade, tiveram ótima acolhida entre a nova nobreza e setores
urbanos em ascensão no Brasil deste período. Para as elites imperiais, as razões e motivos da
civilização tornaram-se uma obsessão a ser perseguida para superar todos os males e problemas
do país, dentre eles, a herança africana na aparência e nos costumes da população. Deveria-se
seguir os passos da humanidade branca, tida como mais civilizada e, se possível, importá-los da
Europa com o incentivo da imigração. O ideal de civilização era também associado ao progresso,
à criação de riqueza, à manutenção da produção e da ordem no trabalho (ABREU, In: VAINFAS,
2002).
O restrito círculo da Boa Sociedade não era integrado somente pelos detentores do poder
econômico e político, mas, sobretudo pelos que detinham a ‘cultura’ e o ‘saber’, elementos
indispensáveis para na diferenciação entre a elite e o restante, ou seja, a maioria. A Boa
Sociedade significava a ‘ordem’, que se contrapunha à ‘desordem’ da população ‘miúda’,
composta por trabalhadores livres e pela enorme massa de cativos, distante da cultura escrita, dos
bens e de quaisquer direitos. As facções políticas pouco importavam, porém a formação, a
carreira, a titulação e as relações ‘pessoais’ constituíam a identidade dos que compunham esta
elite.
A indumentária era uma das características dessa separação. Em várias passagens, Abílio
é descrito como um homem elegante, de barba ‘a inglesa’, fraque de lã preta e cartola, símbolos
das camadas dominantes23. Contudo, além dessa característica, a inserção em institutos
científicos e literários, assim como em sociedades filantrópicas, eram critérios importantes para
que se pudesse vir a pertencer a essa pequena parcela de apreciadores da vida educada.
Abilio teve uma vida ativa relacionada às sociedades beneficentes, sobretudo as de
atendimento à infância pobre, praticando a filantropia que, no século XIX, era uma espécie de
resposta assistencialista para os problemas da pobreza, pois, com base em conhecimentos
34

científicos, visava melhor adaptação dos indivíduos à sociedade através de intervenções do


Estado e particulares. Tanto na Europa, como no Brasil, a liderança coube aos médicos
higienistas e juristas, que apontavam uma proposta assistencialista voltada para a educação, a
regeneração e a disciplinarização dos comportamentos dos pobres, inserindo-os no mercado de
trabalho.
Hilsdorf (In: STEPHANOU; BASTOS, 2005), recorrendo a Falcon, ressaltou que,
diferentemente dos séculos XVI e XVII, a prática filantrópica, a partir do século XVIII, se definia
no universo mental iluminista com seus componentes de tolerância, humanitarismo, filantropia e
benemerência para com os pobres, doentes e infelizes. Desta forma, o movimento racionalista de
assistência às massas apresentava duas características específicas: primeiro passou a ser uma
responsabilidade pública, ao invés de ser uma atribuição somente da Igreja; depois deixou de ser
repressiva e preventiva para se tornar ativa, no sentido de assistir e educar os pobres. Estas
iniciativas eram ditadas tanto pelo sentimento filantrópico consciente, quanto por objetivos de
controle, ordem, disciplina e formação para o trabalho.
Abilio inseria-se perfeitamente nesse contexto. Em Salvador, na década de 1860,
mantinha, com seus próprios recursos e de outros entusiasmados pela filantropia, um colégio dos
órfãos. No Rio de Janeiro, era sócio da Associação protetora da infancia desamparada e do
Asylo agricola Santa Isabel, instituições implementadas pelo conde D’Eu que foi, por sua vez,
influenciado pelas instituições beneficentes laicas francesas. Segundo Kuhlmann (Ibid., 2005),
esta associação, que se ocupava da regeneração dos meninos criminosos e vagabundos do Brasil,
foi uma das primeiras entidades que se preocupou com a questão da infância em âmbito nacional.
Além de criar uma instituição própria, o Asylo agricola Santa Isabel centralizou informações
sobre os estabelecimentos para sustentação, instrução e educação da infância desamparada do
Brasil.
Os responsáveis pelo sustento destas instituições eram pessoas influentes relacionadas ao
mundo do comércio, letras e política do país e, segundo Almeida (1989), o próprio conde D’Eu
enviava-lhes as circulares, convidando-as para se inscreverem como associadas. Poderiam se
associar brasileiros e estrangeiros, cavalheiros e damas, lembrando que, com exceção das irmãs
de caridade, a filantropia, nesse período, estava nas mãos masculinas. A admissão dos sócios era
marcada pelo oferecimento de uma jóia, além da contribuição anual de uma boa soma. Os sócios

23
As vestimentas desse estilo, que diferenciava os homens da boa sociedade, levou Feijó a dizer que “qualquer homem vestido
35

beneméritos eram, geralmente, ministros do Império, vereadores, bispos, comerciantes, médicos e


outros que, ao trabalharem gratuitamente, eram reconhecidos, não só pela nobreza da Corte
(sobretudo a princesa imperial), como também pela sociedade de modo geral. Para estes
filantropos, ativos e reivindicativos frente à figura do poder e, muitas vezes, ao próprio poder, a
educação e proteção da infância pobre eram essenciais para o projeto de civilização e progresso
do país24.
Juntamente com outros educadores, como Menezes Vieira, Abilio fazia parte da Imperial
Sociedade Amante da Instrução, fundada em 1829, com o nome de Sociedade Jovial e Instrutiva,
que tinha por finalidade manter um asilo de órfãos. As instituições filantrópicas laicas não
ofereciam somente asilos para crianças desvalidas, elas tinham o objetivo de proteger e encorajar
a instrução do povo. Além do ensino primário, ofereciam cursos de línguas e forneciam roupas e
calçados para as crianças pobres, a fim de que pudessem freqüentar a escola.
Mesmo integrando as entidades filantrópicas laicas, Abilio mantinha o discurso religioso
na assistência aos necessitados. As duas instâncias se misturavam, seu sentimento cristão se unia
ao projeto de civilizar, sobretudo no que se referia à infância empobrecida. Como exemplo,
podemos citar seu Relatório de 1857, no qual ele teceu elogios ao Colégio N. S. dos Anjos, de
Salvador, dirigido pelas irmãs de caridade. O estabelecimento educava meninas abastadas e
recebia também meninas órfãs, que, segundo o Diretor, não eram tratadas com luxo (que não
convinha a raparigas paupérrimas), porém com ‘necessária limpeza’, conveniente a ricos e
pobres. As meninas se ocupavam dos ‘exercícios de espírito’ durante uma parte do dia, e no
tempo restante aprendiam serviços manuais adaptados, além de fazerem todo o serviço de criadas
para as meninas ricas e para si mesmas.
Abilio considerava isto ‘providencial’, pois as ‘mininas desvalidas’, posteriormente, não
poderiam ter serventes assalariadas, além do que, um dia, elas teriam que deixar o asilo protetor e
recorrer ao único recurso de sua educação: seus braços e a disposição para o trabalho. Apesar
destas meninas receberem instrução, era evidente sua segregação pela classe social, fato
considerado normal por Abilio e por outros do período.

assim poderia ser por ele chamado ao Ministério” (NEVES, In: VAINFAS, 2002, p. 96).
24
No Brasil, a ação da filantropia liberal-ilustrada se construiu quando a “geração da independência” começou a construir o
Estado Nacional, a partir da década de vinte e trinta do século XIX. O fundo liberal-ilustrado e regalista que seus integrantes
partilhavam, segundo Hilsdorf (In: STEPHANOU; BASTOS op.cit.), explicava porque as iniciativas filantrópicas provinham, ao
mesmo tempo, de figuras públicas, privadas e do clero iluminista. À frente desta assistência, figuravam políticos ilustrados,
práticos, organizadores e administradores, racionalistas e religiosos que refletiam a mentalidade do período.
36

Abilio integrou como sócio a Sociedade Propagadora de Instrução do Rio de Janeiro,


entidade fundada em 1874 e que funcionava em uma das salas da Escola Pública da Glória, no
Rio de Janeiro. A Sociedade teve por meta expandir, no Município Neutro, conforme seus
recursos, o ensino primário, secundário, profissional e superior, simultânea ou gradualmente. Seu
estatuto previa publicações, conferências, leituras públicas, bibliotecas, laboratórios e gabinetes
de ciências naturais, exposições, recompensas de todo gênero, além de oferecer a ajuda
necessária aos estudantes pobres para que freqüentassem as escolas.
Na década de oitenta Abilio ministrou cursos de alfabetização para adultos no Liceu
Literário Português, uma associação filantrópica criada, em 1868, por um grupo de portugueses.
A finalidade do Liceu era praticar a filantropia, oferecendo instrução popular gratuitamente para
adolescentes e adultos, incluindo alguns escravos em cursos noturnos, com aos quais eram
liberados por seus senhores. Nesses cursos, Abilio recorreu ao Novo primeiro livro de leitura
(1888), obra que serviu para evidenciar seu ‘Método Macahubas’ e que propunha eliminar o
analfabetismo em quinze lições. Seus cursos no Liceu Português eram freqüentados, sobretudo,
por soldados e marinheiros analfabetos. Para os alunos mais pobres pagava a passagem do bonde,
além de auxiliá-los com roupas, livros e material escolar. Ofereceu o mesmo curso aos praças
analfabetos do 10o batalhão da infantaria do Rio de Janeiro. Nesses dois espaços, contou com a
presença do Imperador (juntamente com seus ministros), que ‘se deu por satisfeito com o método
do barão’ aconselhando sua adoção em todas as escolas regimentais.
A partir da década de setenta, do século XIX, juntamente com a expansão do ensino
privado, foram criadas, na Corte e nas províncias, escolas gratuitas mantidas por associações
beneficentes, onde cidadãos beneméritos exerciam gratuitamente o magistério. Através de
iniciativas particulares, organizaram-se inúmeras bibliotecas populares, além de outros donativos
oferecidos ao governo para o desenvolvimento da instrução pública. Estas iniciativas, que tinham
por objetivo fornecer instrução popular para as classes menos favorecidas cujo trabalho diurno
não permitia freqüentar curso regular, foram colocadas em prática na Província de São Paulo,
segundo Hilsdorf (2005), sobretudo pelos liberais republicanos, permitindo a instrução de pessoas
que moravam no núcleo urbano, como operários, adolescentes, adultos, ingênuos sexagenários
libertos e escravos, além de patrocinar escolas para meninos e meninas pobres. A Igreja Católica
37

não teve uma participação efetiva neste movimento, porém os protestantes, os positivistas e os
maçons envolveram se intensamente com estas obras25.
Além de estar incluso na filantropia, Abilio, desde o início de sua trajetória, participou de
entidades que reuniam intelectuais, tendo seguido com essa prática até o fim de sua vida. Em
1847, quando ainda era estudante, foi admitido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), órgão criado em 1838. De acordo com Carvalho (1989, p.241), o IHGB era composto
pela “fina flor da elite política e intelectual do país” e contou com o apoio constante do poder
público e o patrocínio pessoal do Imperador que, com freqüência, assistia a suas sessões. Essa
entidade que mais se empenhou em difundir os conhecimentos do país, além de contar com filiais
nas Províncias, promovia estudos, debates, expedições científicas, concursos e publicava a
principal revista de História, Geografia e Etnografia do período imperial.
Abilio, em 1842 (com 18 anos), fundou o Instituto Literário da Bahia, tornando-se seu
presidente aos 21 anos de idade. Foi sócio correspondente da Sociedade Geográfica de Paris, de
Bruxelas e de Buenos Aires. Em 1846, fundou no Rio de Janeiro a Academia Filomática,
entidade identificada pelo seu ‘amor às ciências’ da qual foi membro e 1o Secretário ao lado do
presidente visconde de Caravelas e do vice, barão de Santo Ângelo. Integrou também o Conselho
de Instrução da Corte e era membro do Conservatório Dramático. Fora do país, foi
correspondente da Sociedade dos Amigos da Instrução Popular de Montevidéu e da Sociedade
Parisiense para o desenvolvimento da Instrução primária.
Notamos, até aqui, que a formação de Abilio, desde sua infância, visava inseri-lo no
mundo da boa sociedade. Sua intensa participação em entidades filantrópicas e intelectuais
refletia seu desejo, a exemplo de outros intelectuais do período, de construir a sociedade
civilizada através da filantropia e da ciência.
Nosso personagem precisaria empenhar-se muito para se integrar ao círculo do poder,
contudo não mediu esforços para reafirmar sua capacidade de se diferenciar, aperfeiçoando-se
naquilo que sabia fazer, investindo em sua formação intelectual, nas ciências e mantendo, ao
mesmo tempo, sua prática cristã de benemérito dedicado.

25
De acordo com Hilsdorf, a Sociedade Propagadora de Instrução Popular de São Paulo, criada com os mesmos objetivos, estava
organizada como uma instituição de grande porte, recebendo apoio financeiro e ideológico das grandes lideranças democráticas, o
que permitiu a realização de um trabalho mais estável e de grande repercussão.
38

1.3 Jornalista, abolicionista e nacionalista: os espaços ocupados e vivenciados

A imprensa foi outro instrumento a que Abilio recorreu para expressar suas idéias. A elite
letrada dava muita importância para as opiniões que circulavam em jornais e periódicos os quais,
em sua grande maioria, possuíam vínculos com partidos ou organizações políticas. A Bahia,
desde 1809, possuía prelos para imprimir jornais, revistas e livros. Pinho (op.cit., p.302-303),
após citar nomes de vários jornais, com seus respectivos jornalistas, ressaltou que “passaram por
esses jornais e jornalistas as grandes questões e campanhas: constitucionalismo, nativismo,
independência, antilusismo, federalismo, propaganda revolucionária ou de resistência legal,
ataques e rebates recíprocos entre governo e oposição”.
Cumprindo sua função de jornalista, Abilio, como outros intelectuais de sua época,
publicou artigos em jornais e revistas de grande circulação da Bahia e de outras províncias. Não
só escreveu em jornais, como também ‘chefiou’ alguns. Na Bahia, fundou, em 1845, O
Crepúsculo, jornal vinculado ao Instituto Literário da Bahia, onde publicou: Posição e algumas
particularidades históricas e descritivas da Vila Inhambupe sobre a mineração na região e
também a tradução do romance em francês de Mme C. Reybaud, A pequena Rainha.
Publicou artigos no Jornal do Comércio, um dos jornais de maior circulação do Império26,
escreveu para o Auxiliar da Industria Nacional, uma revista da Sociedade Auxiliar da Industria
Nacional, para o Arquivo médico Brasileiro, revista que publicava, freqüentemente, temas a
respeito da higienização, e também para inúmeros outros jornais. Na imprensa didática, foi
colaborador da Instrução pública, periódico da segunda metade do século XIX, sob a direção do
Dr. J. C. Alambary Luz. Além de Abilio, o conselheiro Autran, Felisberto Carvalho, Liberato
Barroso e outros colaboradores escreviam para este periódico.
Os textos e artigos de Abilio, que enfatizavam temas referentes à instrução e eram
publicados em jornais e revistas, em sua maior parte foram compilados e publicados em materiais
específicos, seja em forma de relatórios, discursos, artigos, livros etc. Além de sua vasta
publicação que abrangia cerca de vinte obras voltadas para o público escolar do ensino primário e
secundário, as quais abordaremos em outro capítulo, Abilio prezava a circulação de suas idéias,

26
Fundado em 1827, este jornal, desde seu início até por volta de 1846, teve características eminentemente econômicas, mas, aos
poucos, foi se envolvendo com os rumos políticos da nação, integrado ao grupo dos conservadores que difundiam o princípio
conservador através de valores e opiniões. De acordo com Carvalho (In: VAINFAS, op. cit.), esse jornal, apesar de publicar
alguns escritos sobre a escravidão, na fase cadente da abolição, adotou, de maneira curiosa, a defesa dos interesses senhoriais e,
39

não poupando esforços para ver seu nome estampado na imprensa, o que viria a promover seu
nome e a propagar suas idéias.
Escrever em jornais era uma prática estabelecida entre os intelectuais do século XIX27.
Para Hilsdorf (1986), a imprensa foi um importante agente de desprovincianização, pois refletia
pontos de vistas políticos, despertando interesses por assuntos nacionais e dando vazão às queixas
e reclamações locais. Uma boa parte deste processo coube à imprensa acadêmica, feita por
estudantes, a qual, apesar da vida efêmera durante o Império, perfazia 25% da produção
periódica. Não obtivemos informações que comprovassem se Abilio escreveu para jornais
acadêmicos. Provavelmente sim, pois, em seus estabelecimentos de ensino, esta prática sempre
foi incentivada.
Segundo Arroyo (1990), na Bahia oitocentista, destacaram-se vários jornais escolares,
dentre eles, O Gymnasio, órgão literário do Ginásio Baiano (o primeiro número é de 1861),
dirigido por Abilio, cujos discípulos eram os redatores. Na biografia de Raul Pompéia (1981),
durante sua passagem pelo Colégio Abilio da Corte é ressaltada a participação deste no jornal
manuscrito O Archote, como redator e ilustrador. Em um dos números, aparece uma ilustração do
autor com a frase “Aulas acabadas, férias começadas, vamos para casa, comer goiabadas!”.
Uma outra atividade exercida por Abilio refere-se às lutas abolicionistas. De acordo com
seus biógrafos, o médico nunca foi proprietário de escravos e teve uma participação ativa em
movimentos abolicionistas. No Programa do Ginásio Bahiano, registrou seu desejo de que os
alunos fossem servidos unicamente por criados livres, tendo sido também neste colégio que seu
pupilo, Castro Alves, iniciou, ainda criança e sob o incentivo de Abilio, a produção de poemas
contra a escravidão, juntamente com outros discípulos28. Os professores do mesmo Ginásio
também incluíam esse tema em suas poesias, recitadas em dias festivos do mesmo colégio. Em
algumas ocasiões, percebemos que Abilio tratava do assunto em suas falas, não com discursos
inflamados, contudo manifestava seus protestos contra a escravidão
Abilio, desde 1860, foi sócio da Anti-Slavery Society de Londres, sociedade que acolhia
outros abolicionistas, como Joaquim Nabuco. Esta sociedade foi criada na Inglaterra no século

enquanto a imprensa noticiava a agonia da escravatura e os debates no parlamento, o Jornal do Comércio ignorou a questão,
publicando anúncios de aluguel de escravos, mantendo-se fiel ao seu estilo tradicionalista.
27
Em termos culturais, Neves ressaltou que, apesar do periodismo servir de veículo para parte importante da produção intelectual
do Brasil, tolhida pela fragilidade do mercado editorial, a maior parte da população só era atingida indiretamente através da leitura
em voz alta nos lugares públicos, que tinha um alcance modesto, restrito aos pares da boa sociedade.
28
Castro Alves e Rui Barbosa, ex-alunos do Ginásio, fundaram, em 1866, na Escola de Direito de Recife, uma sociedade
abolicionista.
40

XVIII, liderada inicialmente pelos Quakers29, protestantes radicais que consideravam a


escravidão um pecado e não admitiam que os cristãos se aproveitassem dela. Na década de
cinqüenta, foi presidente da Sociedade Libertadora Sete de Setembro na Bahia e manteve um
jornal chamado O Abolicionista, um dos primeiros jornais do Império que defendia a abolição
dos escravos. Abilio doou vários de seus objetos para o Bazar dessa sociedade, com o objetivo de
mantê-la e, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, passou à presidência ao conselheiro
Dantas30.
O jornal O Abolicionista, provinha da Sociedade brasileira contra a escravidão (inspirada
na British and Foreign Society for the Abolition of Slavery), entidade que Abilio também
integrava e da qual, segundo seus biógrafos, foi um dos fundadores. Porém, ao investigarmos
sobre essa sociedade, descobrimos que foi criada por Joaquim Nabuco, em 1880, e que teve como
primeira sede sua própria casa, na Corte. Seus principais líderes eram, além dos monarquistas
Joaquim Nabuco e André Rebouças, os republicanos José do Patrocínio e João Clapp. Não
encontramos nada que comprovasse a participação de Abilio na criação dessa sociedade (exceto
as afirmações dos biógrafos) e constatamos que, nas memórias de Nabuco, não aparece o nome
de Abilio.
Abilio mantinha uma boa relação com André Rebouças, atestada por uma carta publicada
no prefácio de sua obra Geometria Prática Popular (1879), por intermédio da qual ambos
discutiram sobre a importância do ensino do desenho para a instrução da mocidade (1934, p.34).
Notamos por essa correspondência que havia entre eles uma relação de confiança, pois Abilio
partilhava com Rebouças a idéia de que não deveria haver indenização para os senhores de
engenho, proprietários de escravos31. Ele agia, assim, ao contrário de seus colegas de baronato,
que exploravam a mão-de-obra escrava (como seu padrinho barão de Cotegipe) e se recusavam,
terminantemente, a defender a abolição irrestrita dos escravos sem a indenização de seus
proprietários.

29
A princípio, o grupo, que era chamado de “Os Santos” (The Saints), organizou, em 1787, sob liderança de William Wilberforce,
a Sociedade antiescravista (Anti-slavery Society). Graças às batalhas parlamentares, essa sociedade conquistou a abolição
completa da escravidão nas colônias inglesas. Também foi pela pressão inglesa que o Brasil, através da Lei Eusébio de Queirós
(1850), aboliu o tráfico, embora tenha continuado realizando o contrabando em desembarques clandestinos.
30
Manuel Pinto de Souza Dantas (1831-1894), bacharel em Direito, ocupou vários cargos políticos na Bahia e no Brasil Imperial.
Como Abilio, foi apadrinhado pelo barão de Cotegipe (embora pertencesse ao partido Liberal), tendo assumido, em 1884, o
Gabinete, na tentativa de encaminhar a emancipação dos escravos. Apesar de ser considerado um ‘fervoroso abolicionista’, de
acordo com Mattoso (1992), ‘não chegava a tanto’, pois suas medidas não alcançaram grandes conquistas para esse problema.
31
Em 1883, Rebouças publicou um panfleto intitulado Abolição imediata e sem indenização. De acordo com Mattos e Santos (In:
VAINFAS op. cit., p.19), esse material indicava: “abolição imediata, instantânea e sem indenização alguma; a destruição do
monopólio territorial, o fim dos latifúndios”.
41

Na ocasião de sua audiência com o Papa Pio IX, em 1870, na cidade de Roma32, Abilio
pediu para o ‘santo padre’ que interviesse, no sentido de extinguir a escravidão no Brasil. O Papa
lhe prometeu interceder ‘a Deus’ em favor dos escravos e Abilio, ironicamente, solicitou-lhe que
elevasse ‘muito alto sua voz aos céus’, pois somente assim Pio IX seria ouvido por quem
explorava a raça negra no Brasil33.
No que diz respeito à posição da Igreja católica no Brasil em relação à escravidão, é
importante ressaltar que a mesma estava dentro, não fora do sistema escravista. Para Carvalho
(1998), o católico, como cidadão, não possuía a consciência da liberdade individual, pois seus
próprios representantes, bispos, padres e religiosos eram proprietários de escravos e alguns se
dedicavam à reprodução de escravos34. Não podemos perder de vista a complexidade do assunto
que não se traduz somente pelos dados que trouxemos aqui. Contudo, diante do que conseguimos
levantar sobre o abolicionismo de Abilio, não fica dúvida sobre sua sinceridade em relação à
causa, embora nos pareça que se tratava mais de uma prática filantrópica cristã que política,
posição que também marcou muitos outros abolicionistas.
Animado pelo modelo de ‘civilização’ que o Império dizia defender na Guerra no
Paraguai (1864-1870), a exemplo de outros baianos, em 1865, Abilio organizou e armou às suas
custas, uma companhia composta pelos funcionários do Ginásio Baiano para lutar pela pátria. A
companhia integrou o 24o Corpo de Voluntários, denominado Zuavos baianos, que adotava
vistoso uniforme de blusa azul e calças vermelhas em voga no período, inspirado nos zuavos da
infantaria argelina a serviço da França. A fama de bravura dos Zuavos35 ficou conhecida na
história, sobretudo em função das habilidades de seus soldados nos combates corpo-a-corpo

32
Nessa ocasião, Abilio enviou uma carta ao Dr. Carneiro, narrando que vira o ‘santo padre’ quatro vezes, sendo uma em
audiência particular (RIGHBA, 1925).
33
O abolicionista e católico Joaquim Nabuco, em sua obra biográfica, Minha formação (1966), relatou seu encontro com o papa
Leão XIII, em fevereiro de 1888, no qual pediu ao mesmo que também interviesse contra a escravidão. Leão XIII foi mais
incisivo que Pio IX, pois, além de condenar a escravidão, prometeu a Nabuco que, na próxima encíclica, faria chegar ao Brasil
uma carta condenando essa prática. Porém a carta só chegou após a abolição, juntamente com a rosa de ouro enviada para a
princesa imperial.
34
O mesmo Carvalho (Ibid., p.39) registrou que a discussão do problema da escravidão ficou, no período colonial, a cargo quase
exclusivo de padres e religiosos. Após a independência, porém, “os que se envolveram nos debates e na campanha abolicionista
eram quase sempre pessoas ligadas ao mundo oficial da política”.
35
Segundo Morais Filho (1979), o liberto Cândido da Fonseca Galvão integrou o corpo desta Companhia e, como recompensa de
seus feitos, mereceu a honra de alferes do exército. Após a guerra, Galvão compreendeu-se filho de reis e, dando-se a conhecer
como o príncipe Obá II da África e dialogando de ‘soberano para soberano’ com Pedro II, ele comparecia às audiências e festas
solenes do Imperador, o qual, levando em conta seus serviços pela pátria, lhe permitia a entrada, apesar dos protestos de outros.
42

durante a guerra. O grupo sofreu, porém, uma grande baixa no enfrentamento que ficou
conhecido como “Batalha de Curupaiti”36.
A iniciativa de Abilio em financiar uma companhia deu-se em função da criação dos
Voluntários da Pátria, grupo estabelecido pelo governo imperial no ano de 1865, em função do
despreparo e da fragilidade do Exército brasileiro. Os voluntários, juntamente com a Guarda
Nacional37, constituíam cerca de 75% dos efetivos brasileiros, conquanto fossem eram mal
armados, despreparados e recrutados, em muitos casos, à força, sobretudo os escravos.
A Guerra do Paraguai, segundo Tavares (1963), exigiu da Bahia homens e dinheiro. A
província contribuiu, além dos batalhões voluntários, com repetidas doações de armas e
manutenção do exército, sendo que essa guerra custou mais à Bahia do que as epidemias e a
estiagem no sertão. O fato de Abilio ter participado dessa ‘cruzada patriótica’ sustentando uma
companhia armada, demonstra que era detentor de um alto poder econômico. Após a guerra, o
diretor deu continuidade ao seu papel de benemérito da pátria, admitindo, gratuitamente, filhos de
oficiais do exército que lutaram nessa guerra.
Para Carvalho (1998), as primeiras vitórias nesta guerra causaram entusiasmo nacional e,
pela primeira vez, um sentido positivo de pátria brasileira começou a desenvolver-se entre a
população, a qual redefiniu símbolos de valor da nacionalidade nascente, em um tempo de heróis
e tradições. Segundo Silva (1997), a idéia do Brasil como nação ganhou uma concretude
inimaginável fora de certos círculos da elite. Depois da vitória, o Brasil jamais seria o mesmo,
pois o prestígio da farda crescera como nunca, tendo sido os soldados os heróis do novo tempo.
Os Zuavos foram recebidos com festas na Bahia, tendo sido os patrocinadores das Companhias
considerados verdadeiros beneméritos nacionalistas. O papel desempenhado por Abilio, que
financiou um batalhão, foi fundamental para que fosse tido por seus admiradores como um
grande nacionalista. A formação do sentimento nacionalista, contudo, não se resume de forma
simples a este episódio, trata-se de um tema complexo e ambíguo que não poderemos abordar de
forma contundente neste trabalho.
Definitivamente, Abilio ocupava esse espaço tomado pelo o ideal do progresso, outra
marca da elite letrada brasileira desde os tempos pombalinos e que, no caso brasileiro, de acordo

36
Ataque dos aliados chefiado pelo presidente da Argentina B. Mitre no ano de 1866, quando as forças paraguaias resistiram,
ocasionando grande derrota aos aliados. Neste confronto, morreram cerca de 2.011 brasileiros e 2.082 argentinos. Curupaiti era o
nome dado ao forte que se situava na margem esquerda do Rio Paraguai.
37
Corporação paramilitar criada em 1831, cumprindo, até 1850, o papel de ‘missão pacificadora’. Combateu insurreições,
rebeliões, movimentos quilombolas e outros tipos de ‘desordens’ promovidas pelos ‘inimigos da nação’.
43

com Carvalho, caracterizava-se pelo surgimento de um grupo social urbano e educado que se
sentia sufocado na sociedade escravista e rural.

1.4 As idéias propagadas fora do Império brasileiro

Abilio realizou três viagens para a Europa, com objetivo de tratar sua saúde, conhecer
métodos de ensino, publicar livros, contratar professores, comprar materiais para seus colégios,
participar de exposições etc. A Europa era o continente preferido da Boa sociedade, não sendo,
assim, estranho que Abilio buscasse nas ‘luzes européias’ idéias que pudessem ser
implementadas na realidade local. Essas viagens influenciaram de forma substancial seus
discursos, pois, para Abilio, o ‘velho continente’ era pleno de bons exemplos na instrução, fato
que sempre fez questão de ressaltar, citando autores e métodos que conhecera e aplicara,
influenciado pela pedagogia vivenciada na Alemanha, Inglaterra e, sobretudo, na França e sua
capital, Paris. Relação que Bastos esclareceu:

Para a intelectualidade brasileira, Paris/França exercia uma imensa atração como capital cultural, com um
significativo capital simbólico para a elite da época. XIX. (...) Se a metrópole portuguesa era a referência
política, e se a Inglaterra, desde meados dos século XVII, preparava-se para tornar-se a principal referência
comercial e financeira, a França há muito projetava-se para os brasileiros letrados como modelo intelectual e
estético. Na área da educação, a influencia francesa é extremamente significativa. No campo das ideais e
inovações pedagógicas, muitos autores franceses são traduzidos e apropriados pela elite intelectual
brasileira. (...) A necessidade de um embasamento cientifico para o desenvolvimento da educação faz com
que os intelectuais brasileiros se apropriem das idéias de representantes da intelectualidade francesa para dar
voz e força às idéias que consideravam relevantes e significativas para serem implementadas ( 2000, p. 80-
81).

Em sua primeira viagem, em 1866, permaneceu nesse continente por cerca de oito meses.
Foi para Londres38, Bélgica, Alemanha e França, permanecendo mais tempo em Paris, onde
editou seu Primeiro e Segundo livro de leitura e os Discursos proferidos no Ginásio Baiano.
Além de contratar professores, comprar instrumentos para os batalhões do Ginásio, livros para

38
No ano de 1850, foi inaugurada uma linha direta e regular de navio a vapor entre Liverpool e Rio de Janeiro, o que veio a
acentuar a relação do Império com a Europa. A viagem (que durava cerca de um mês) direta para as terras inglesas pode ter sido a
razão pela qual Abilio permaneceu primeiramente nesse país. De Londres, escreveu para Dr. Carneiro (Apud RIGHBA, 1925)
narrando sobre o espetáculo ‘sui-generis’ que encontrara na capital da Inglaterra. Destacou a população de quase três milhões de
habitantes, o tráfego provocado pelas inúmeras carruagens, o que o deixava esperando até dez minutos para atravessar uma rua, o
risco de ser atropelado por um cavalo ou pelas rodas de uma carruagem, os inúmeros vapores que cortavam o rio Tâmisa, as vias
férreas que se abriam no sub-solo e, sobretudo, o povo inglês, que trabalhava de forma espantosa. Recorria continuamente à frase
“tempo é dinheiro” para se referir ao povo inglês e sua dedicação pelo trabalho.
44

premiações, gabinete de Física e de Geografia, assistiu uma cerimônia de premiação na


Universidade de Sorbone.
Na segunda viagem, em 1870, que teve como destino a Suíça e a Itália39 e durou por volta
de um ano, Abilio buscou tratamento para a garganta, aproveitando, também, para publicar a 2a
edição de seus livros de leitura em Paris. Seu médico prometera-lhe, nessa viagem, a cura de sua
garganta na Alemanha, porém, devido à declaração da guerra franco-prussiana40, Abilio teve que
ir precipitadamente para a Bélgica. De Bruxelas, publicou a 1a edição do Terceiro livro de
leitura, em janeiro de 1871. Em 1878, retornou à Europa, onde permaneceu de abril deste ano até
o início de 1880. Nesse período, acompanhou o filho em seus estudos na Bélgica, onde conheceu
métodos de estudos para surdos-mudos e encaminhou outras edições de seus compêndios. Desses
países, escreveu cartas para seu sócio do Colégio Abilio do Rio, para ministros do Império e
outras personalidades.
Um outro motivo que ensejou suas viagens internacionais foi a participação em
exposições internacionais, fato que destacamos devido à importância atribuída à educação nestes
espaços. Segundo Kuhlmann Júnior (2001), a partir da segunda metade do século XIX, as
grandes exposições internacionais ocidentais tiveram expressivo impacto na vida das sociedades
e atraíram milhões de visitantes para celebrar a sociedade capitalista e seu progresso41. São
Identificadas por vários autores pela metáfora ‘vitrines do progresso’ e, a respeito delas,
Kuhlmann Júnior registrou:

Cada país, ao sediar uma Exposição, mostrava aquilo que seria a prova de seu lugar no “conserto das
nações” civilizadas. Demonstração tanto à sua própria população quanto aos visitantes dos demais países,
que também ali compareciam para exibir seus produtos e atributos de modernidade e buscar o referendo das
premiações. Cada um deles contribuía com suas peculiaridades, desde as potências industriais (como a
Alemanha, destaque em vários eventos) até as colônias ultra-marinhas, que adornavam os espetáculos com
seus toques de exotismo (2001, p.25).

39
Na Suíça, Abilio registrou em carta que, devido ao clima, sentiu melhora na garganta. Na Itália, visitou 16 cidades, relatando
sua viagem religiosa e cultural pelas cidades ‘vivas’, entre elas a ‘histórica, veneranda Roma’ e duas ‘mortas’, depois de ‘seculos
exhumadas: Herculanum e Pompeia’. Teve a companhia constante de sua filha ‘ Mafaldinha’, com quem subiu em alturas como a
cúpula de São Pedro, no alto do monte onde estava o túmulo de Virgilio em Nápoles, desceu em catacumbas e deslizou sobre
lagos etc.
40
Guerra declarada em 1870 que se estendeu até 1871, quando as forças prussianas, bem treinadas e comandadas por Bismarck,
venceu a França, fazendo Napoleão III prisioneiro em pelo campo de batalha. Pelo Tratado de Frankfurt, a França cedia à Prússia
a região de Alsácia-Lorena, rica em minerais, além de pagar uma pesada dívida de guerra.
41
De acordo com Kuhlmann Júnior (2001, p.10), as exposições ocorreram em vários lugares: Londres (1851); Paris (1855);
Londres (1862); Paris (1867); Viena (1873); Filadélfia (1876); Paris (1878); Buenos Aires (1882); Antuérpia (1883); Paris (1889);
Chicago (1893); Paris (1890); Luisiana (1904); Milão (1906); Bruxelas (1910); São Francisco (1915); Rio de Janeiro (1822).
45

A educação, presente nas exposições, a partir de 1862 (Londres), ocupou espaços


privilegiados, representando momentos significativos para a sua história, ao figurar ao lado da
produção industrial, artística, e das novidades tecnológicas. Para o mesmo autor, as exposições
repercutiram de forma significativa em seu tempo, transparecendo em sua organização uma
intenção didática, normatizadora e ‘civilizadora’, que prestigiava a educação como um signo de
modernidade, difundindo propostas que incluíam materiais e métodos para todos os níveis de
ensino.
O Brasil, segundo Kuhlmann Júnior, participou com as especificidades condicionadas
pela situação política e social, que se caracterizava pelos altos índices de exclusão e relações no
plano internacional. A seu modo, passou-se a considerar a educação como um dos pilares centrais
para a normatização e edificação controlada da sociedade ocidental moderna, na qual diferentes
grupos sociais debatiam propostas relativas a um conjunto de instituições educacionais, na
perspectiva, segundo o mesmo autor, de promover a educação moral e incorporar os indivíduos
na sociedade de classes.
Apesar do Império brasileiro ter participado de várias exposições internacionais, iremos
nos ater, aqui, à participação de Abilio em algumas delas. Primeiramente, constatamos sua
participação no Congresso Pedagógico Internacional, que fazia parte da Exposição Continental
de Buenos Aires, em 1882. Demonstrando sua relação próxima ao Imperador, já de porte do título
de barão de Macahubas, Abilio foi o representante oficial do Império brasileiro. Sua participação
nessa exposição mereceu elogios por parte da imprensa Argentina, do Uruguai e de
personalidades que atuavam na instrução.
Em Buenos Aires, o educador abordou, entre outros, temas referentes à implantação de
escolas normais em regime de internato para difundir a formação dos professores e melhorar a
instrução primária. Discorreu, também, sobre os meios convenientes para a escola manter a
disciplina e fomentar nos alunos o gosto pela instrução, além de ter se posicionado firmemente
contra a prática de premiações nas escolas e contra o uso de castigos físicos42.
Após sua participação neste congresso, compilou, como fazia comumente, suas palestras
acrescentando as matérias dos jornais e falas de educadores argentinos a seu respeito, sem

42
Abilio discursou longamente sobre a importância de se manter a disciplina e desenvolver o gosto pelo estudo, sem o processo
de horror, suplícios e violências que existia nas escolas primárias de todos os países. Citou como exemplo um artigo de jornal que
lera na Argentina, segundo o qual um pai mostrou seu filho de nove anos de idade, o qual apresentava no rosto e nas mãos sinais
de pancadas que lhe haviam sido dadas no Colegio de la Unión. Tratava-se de uma denúncia pública de um menino que havia sido
barbaramente maltratado (1882, p.12-14).
46

nenhuma modéstia. Além disso, publicou a obra Dissertação lida no Congresso Pedagógico
Internacional de Buenos Ayres: em 2 de maio de 1882. Passou também a elogiar e a citar
freqüentemente a República Oriental do Uruguai como modelo de um país que adotara, com
sucesso, o ‘ensino moderno’, enfatizando, sobretudo, o Dr Afonso Peña, como um distinto e
talentoso ‘pedagogista oriental’ que, semelhantemente a ele, propagava a implantação do ensino
moderno no país vizinho.
O entusiasmo de Abilio em relação aos países vizinhos era uma novidade, pois, como já
ressaltamos, os paradigmas aristocráticos da Inglaterra e da França eram os modelos aceitos pela
elite como indicadores de civilização. A elite brasileira sempre fez questão de marcar a
especificidade do Brasil em relação aos países da América do Sul, pois, no século XIX, os países
hispânicos eram vistos como exemplo negativo de violência política, de caudilhismo e de
barbárie. Basta lembrarmos que o Império entrou em guerra contra dois deles.
O barão participou da Exposição Universal de Paris no ano de 1889, uma grandiosa
exposição que celebrou os cem anos da Revolução francesa43. O Império brasileiro participou em
diversas categorias, ou grupos, como foi organizada a Exposição44, que aconteceu oito meses
antes do apagar das luzes do Império. Embora o Brasil compartilhasse dos temores das
monarquias européias em relação à imagem republicana do evento, como salientou Kuhlmann
Júnior (2001), como se fosse um ‘canto de cisne’ do regime monárquico, a delegação brasileira
era representativa. Além do empenho e da presença do Imperador na comitiva, integraram a
comissão brasileira o Conselheiro Souza Dantas, barão de Albuquerque e José Joaquim de Maia
Monteiro, o barão de Estrela45, que fez parte do juri internacional, representando o Império
brasileiro.
Abilio levou para este evento o que havia de melhor em seu estabelecimento do Rio de
Janeiro. Participou do Grupo II “Educação, ensino, materiais e métodos de artes liberais”,

43
Paris foi sede de exposições por cinco vezes (1855, 1867, 1878, 1889 e 1900), fato que contribuiu, de forma considerável, para
aumentar o prestígio da França no mundo. A Exposição Universal de Paris, em 1889, teve como destaque a presença da
eletricidade, perfazendo o primeiro uso público da iluminação com a inauguração da Torre Eiffel, porta de entrada da Exposição.
A torre, com 300 m. de altura, proporcionou um espetáculo de luzes e cores (da bandeira francesa) completado com rojões e fogos
de artifício, uma pompa vertiginosa, salientada por Kuhlmann Júnior (op.cit., p.42) : “A conversão da noite em dia indica uma
correlação aberta da exibição com a imagem da luz: o “século das luzes” é capturado por Paris, transformada literalmente em
cidade-luz.”
44
O projeto da exposição brasileira, de acordo com o Catálogo oficial do Brasil, foi uma iniciativa de bons voluntários e amigos
do Brasil, conforme descreve o denominado Comitê Franco Brasileiro, constituído em Paris, em março de 1888, por brasileiros
residentes na cidade e “encorajados” pelo então Imperador do Brasil, D. Pedro II, e pela “opinião pública” brasileira. A idéia de
progresso, amplamente divulgada na Exposição, estava presente no catálogo brasileiro com palavras e frases como “progresso da
indústria brasileira”, “produtos do desenvolvimento”, “produtos ricos do vasto Império” etc.
47

subdividido em três classes: Classe 6: “Educação da infância, ensino primário e ensino de


adultos”; Classe 7: “Organização de materiais e de ensinamento superior” ; Classe 8: “Ensino
técnico”. Na Classe 6, encontramos uma lista com as obras didáticas (que incluía tratados de
costura e de metodologia, alfabeto, vida doméstica, livros de leitura, gramáticas etc.) de uma
autora e seis autores, entre eles Abilio, com suas respectivas obras. Enquanto os outros seis
autores expuseram uma ou, no máximo, duas obras, o barão de Macahubas expôs nada mais, nada
menos, que vinte e quatro obras. Na Classe 7, Abilio foi mais modesto e expôs somente quatro
objetos46.
No Relatório do juri internacional desta exposição, encontramos um relato entusiasmado
que, ao mesmo tempo que enfatizava as riquezas do Império, ressaltava os materiais de Abilio:

No segundo piso do magnifico Palácio brasileiro, encontramos na classe 6 vários objetos de material
escolar, no qual os mais importantes – não colocaremos na ordem – eram as obras e aparelhos do barão de
Macahubas, sobretudo a exposição (fotografias, livros, trabalhos escolares) do Colégio Abilio do Rio de
Janeiro, e os métodos e livros do professor Menezes Vieira (Buisson, 1891, p.24-25) 47.

Abilio foi premiado em quase todas as categorias. Recebeu uma medalha de ouro, outra
de prata pelo seu Colégio Abílio, de ouro pelo seu Terceiro livro de leitura, uma medalha de
prata, referente ao ensino de artes e desenho e mais uma de ouro pelo seu Aparelho Escolar
Múltiplo. Do Grupo II, o Brasil trouxe 18 medalhas48, um número significativo, se comparado
com outros países da América Latina (onde o México liderou, seguido do Brasil e depois a
Argentina) e, até mesmo, de sua ex-metrópole, que não reuniu mais que cinco medalhas. O
Imperador Pedro II recebeu o ‘grande prêmio’, categoria mais alta das premiações, sendo
recompensado por construir escolas primárias tão higiênicas, ou seja, por sua preocupação com o
ensino da infância, traço que, na verdade, nunca carcaterizou Pedro II, pois sua predilação era a

45
Filho de portugueses nobres, o barão de Estrela foi um abastado proprietário de engenho. Era Fidalgo Cavaleiro da Casa
Imperial e da Real Casa de Portugal e Comendador da Ordem de N.S.da Conceição de Vila Viçosa.
46
Classe 6 expôs fotografias do seu Colégio Abilio na corte, sua biografia feita por M. Léry dos Santos, desenhos, caligrafias,
cadernos e cartas geográficas elaboradas pelos seus alunos, além de várias de suas obras. Na Classe 7 apresntou: Globo
Cosmographico, aparelho cosmographique, um quadro negro para o ensino da música e o aparelho escolar multiplicador (Apud.
BUISSON, 1891, p.24-25).
47
« Au deuxiéme étage du magnifique Palais brésiliene on trouvait pour la classe 6 un certain nombre d’objets de matériel
scolaire, dont les plus important – il en sera question à leur ordre – étaient les ouvrages et appareils du baron de Macahubas et
surtout l’exposition (vues photographiques, livres, travaux scolaires) du collège Abilio à Rio-de-Janiero, et les méthodes et livres
du professeur Menezes Vieira ».
48
Foram recompensados com medalhas nessa classe: Menezes Vieira, Hilário Ribeiro, M. Couturier. A. C. Cunha, Sociedade
Protetora da Instrução Pública, Barão Homen de Melo, Comitê Franco-brasileiro, Escola de Minas de Ouro Preto, Liceu de Artes
e Manufatura, Orfanato Santa Isabel, Orfanato Nossa Senhora da Esperança, Observatório do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional,
IHGB, Museu Nacional, Sociedade Auxiliar da Insdustria Nacional, Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro etc.
48

educação superior e os órgãos que reuniam intelectuais, como o IHGB, Imperial Observatório,
Academia Imperial de Belas-Artes, Biblioteca Nacional etc.
O barão de Macahubas foi recompensado por ter feito o que sempre considerara frutífero:
expôr seus feitos, publicizar seus colégios e fazer propaganda de seu método. Teve sucesso e foi
premiado no país que lhe trazia os ares da civilização, país de seus autores referenciais cujos
métodos educativos admirava, aplicando-os em suas entidades de instrução. Porém, apesar do
número de prêmios ser representativo, o destaque do Império na exposição se deu muito mais por
suas riquezas naturais tão cobiçadas, como os minérios e as madeiras, juntamente com a exótica e
pitoresca imagem romantizada do indígena brasileiro, algo que, nos dias de hoje, não nos parece
assim tão distante.
Sobre a representação da instrução nessa exposição, é importante ressaltar que pouco
havia de instrução pública nesse espaço. Com exceção dos materiais da Escola de Minas de Ouro
Preto e alguns materiais de Liceus, de alguns homens da ciência de entidades públicas
(Observatório e outras), o restante dos ilustres brasileiros (leia-se do Rio de Janeiro, pois 90%
representavam a Corte), levavam em suas malas o melhor da instrução privada, o que comprova a
precariedade do ensino público do período. O Imperador foi honrado e premiado em função de
seus feitos pela instrução da infância no Império, pelas escolas higiênicas, apontadas pelo
relatório. Isso, contudo, estava representado pelos estabelecimentos particulares, pelas escolas
voltadas para o ensino da elite, como o colégio de Abilio e de Menezes Vieira.
As fotos e materiais do Colégio Abilio mostraram ao mundo uma ínfima representação da
instrução no Império, representação muito mais próxima da ‘civilização’ pretendida, na verdade,
pela nata que integrava a comissão liderada por um Imperador amante das ciências e desejoso de
incluir o Império nas luzes européias. O ensino público, em várias províncias do Império,
clamava por melhor estrutura de prédios, que deveriam ser mais higiênicos, arejados e espaçosos,
mas havia também outras carências.
Era evidente a distância entre o que foi apresentado e a realidade das pálidas luzes da
instrução existente no vasto ‘Império brasileiro’. É só recordarmos a lei eleitoral de 1881 que, sob
o pretexto de moralizar as eleições, passou a exigir dos eleitores que soubessem ler e escrever,
reduzindo o eleitorado, que era de 10% da população, a menos de 1% numa população de cerca
de 10 milhões.
49

Figura 4 No Brasil, Abílio participou da


Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em
1883. Os materiais acima são decorrentes
desta participação (BNRJ – Foto Diego
Valdez). A Dissertação ao lado foi
apresentada no Congresso Padagógico
Internacional de Buenos Aires, em 1882, e
publicada juntamente com a opinião da
imprensa a despeito da participação do barão
como delegado oficial do Império (FCM –
Foto A. Trigo)
50

1.5 O cargo de Diretor Geral da Instrução Primária e Secundária da Bahia: Quem não tem
padrinho, morre pagão

Ao ser nomeado Diretor Geral da Instrução Primária e Secundária da Bahia49, no ano de


1856, Abilio abandonou definitivamente a carreira médica. Esse fato foi suficientemente forte
para que sua imagem fosse associada à de uma pessoa que nascera com ‘vocação para a
instrução’. Esse conceito adotado, primeiramente, pelo próprio Abilio ao justificar sua opção:
“Sinto me arrastado por natural vocação, que assas conheço em meu genio desde os 18 annos de

idade, quando comecei a exercer o magistério que por 5 annos continuei, no antigo Collegio
Conceição.” (Apud RIGHBA, op.cit., p.314).
A ‘vocação’, que designa uma aptidão natural, nos remete a um discurso muito comum,
usado para representar o ‘sacerdócio’ ou a ‘missão’ de muitos educadores. Para Weber (1996), a
concepção de vocação no sentido de um plano de vida, de uma determinada área de trabalho, é
produto da Reforma, empregada, primeiramente, por Lutero, não havendo dúvida de que o termo
carrega uma conotação religiosa. A atribuição de um significado religioso ao trabalho secular
cotidiano manifestou o dogma central de todos os ramos do protestantismo, segundo o qual a
única maneira aceitável de viver para Deus era cumprir as tarefas do século, impostas ao
indivíduo por sua posição no mundo, como definiu Weber:

Essa concepção desenvolveu-se, em Lutero, na primeira década de sua atividade reformadora. No início, de
acordo com a tradição medieval predominante, como a representada por São Tomás de Aquino, ele encarava
o trabalho secular – embora desejado por Deus para suas criaturas, e indispensável para uma vida de fé –
como algo de eticamente neutro, da mesma forma que o ato de comer e de beber. Mas, com a realização
progressiva da idéias de “sola fide”, em todas as suas conseqüências e resultados decorrentes, na oposição
cada vez mais aguda contra as “deliberações evangélicas” dos monges “ditadas pelo demônio”, foi surgindo
o conceito de vocação. A vida monacal passa a ser encarada por ele, não apenas como destituída de qualquer
valor e justificativa perante Deus, mas também, como produto de uma egoística falta de carinho que afasta o
homem das tarefas deste mundo. Em contraste com ela surge a vocação para o trabalho secular como
expressão de amor ao próximo (1996, p.52).

49
No ano de 1850, o Presidente da Província da Bahia decretou que a direção do ensino público seria confiada a um Conselho de
Instrução Pública e ao Diretor Geral dos Estudos, juntamente com a comissão nomeada por este em cada município. O Diretor
Geral dos Estudos presente na capital era nomeado e demitido pelo Presidente da Província, recebendo um salário anual de
2:000$. As atribuições do Diretor, entre outras, eram: a) inspecionar qualquer estabelecimento de instrução, aulas públicas e
particulares; b) informar-se nas inspeções a sobre a conduta moral do professor dentro e fora das aulas, ou seja, se era cumprida a
direção dada pelo Conselho no que se refreia a matérias, compêndios e métodos; c) organizar a relação das mobílias e todos os
utensílios das aulas públicas; d) examinar as aulas públicas e particulares se estão situadas em edifícios próprios; e) enviar ao
presidente da província um relatório. (Apud, MOACYR, 1939, p.83)
51

Deste modo, para Abilio (e seus homenageadores), atuar na educação era invocado como
uma prática cristã, baseada na realização individual para a construção de um progresso coletivo.
O trabalho era como uma doação e termos como ‘sacrifício’, ‘abnegação’, ‘desprendimento’,
‘predestinação’, ‘apostolado’ e outros traduziam essa relação. Eram necessárias pessoas
‘abnegadas’ e de ‘bom coração’ para atuarem na instrução, o que cristalizou, assim, uma espécie
de idealismo romântico atribuído a Abilio, não antes de ser reforçado por ele. Se sua aptidão para
ensinar se manifestou desde os 18 anos, foi a partir desse cargo que a construção da imagem de
um homem ‘eleito’ para tal função se solidificou.
É importante salientar que, mesmo antes de assumir essa pasta, Abilio, como médico, já
ocupava um papel privilegiado na sociedade, pois, de acordo com Freyre (1977), o médico era
um dos aspectos mais sedutores da autoridade que, raramente, depois de formado, voltava ao seu
lugar de origem. Os que pertenciam à geração de letrados tornavam-se parte de uma aristocracia,
cujo gênero de vida, estilo de política, moral e sentido de justiça diferenciava-os dos demais.
Com seus talentos e ciências abrilhantaram as cidades, abandonando a roça, pois eram absorvidos
pela diplomacia, pela política e pelas profissões liberais Isso pode ter levado Abilio a sair do
sertão e a trocar a carreira de médico pelo cargo de Diretor. Algo que não era raro neste período,
já que, como pudemos constatar na bibliografia sobre a história da educação brasileira, muitos
médicos ocuparam essa pasta50. Além de que, não havia muitas opções de emprego senão os
cargos públicos, como afirmou Carvalho:

Num país em que a visibilidade do governo era grande, em que a procura do emprego público era intensa,
em que o favor e a proteção dos amigos determinavam a ascensão política, não aceitar posições de poder era
quase um ato de heroísmo cívico, era a rejeição de uma prática universal, embora criticada. Não era de
desprezar a autoridade moral daí resultante (1998, p.17).

O diploma de curso superior era condição quase sine qua non para o ingresso na carreira
pública, porém o apoio familiar e dos amigos era essencial em todos os passos da carreira
política. Abilio foi convidado para ocupar esse cargo pelo Presidente da Província da Bahia, Dr.
Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima. Neste período, a Bahia era dominada pela política do

50
O substituto de Abilio nesta pasta foi o médico João Barbosa de Oliveira, pai de Ruy Barbosa.
52

partido Conservador51, que tinha João Mauricio Wanderley52, o futuro ‘barão de Cotegipe’, tio de
Francisca (esposa de Abilio), como uma de suas referências.
É fácil, portanto, compreender sua ida para este cargo, pois estamos nos referindo a uma
época em que os cargos públicos eram preenchidos por pessoas bem relacionadas com quem
estava no poder, um culto evidente ao dito popular divulgado no século XIX “quem não tem
padrinho, morre pagão”. Anteriormente a este, Abilio já havia ocupado outros cargos políticos na
Vila da Barra do Rio Grande, estabelecendo relações políticas desde então. Não era, assim, uma
questão de pura vocação, mas também de indicação, afinal, Diretor de Instrução não era um cargo
qualquer e a vaidade de Abilio pode ter contribuído para que aceitasse tamanha responsabilidade,
ou tamanha projeção.
Abilio permaneceu como Diretor de Instrução de 1856 a 1857. De acordo com seus
biógrafos e com ele próprio, foi um período marcado por enfrentamentos e desgastes. Ao assumir
a pasta, iniciou forte campanha para ‘moralizar’ a instrução pública baiana, sobretudo a instrução
primária. Suas críticas e sugestões foram expressas em polêmicos relatórios53, enviados ao
Presidente da Província, os quais descreveram, entre outras coisas, a situação caótica da instrução
da Bahia, juntamente com sugestões para ‘curar’ (termo médico) a Província dos grandes males
que a afligiam. A ineficácia do sistema de instrução e a inexistência de um desejo de mudança
por parte das autoridades eram argumentos que sustentavam os discursos de Abilio sobre a
instrução baiana. De acordo com seus biógrafos, este relatório causou furor contra o Diretor,
provocando uma onda de inimizades54, pois tanto o Presidente da Província como os integrantes

51
No poder desde 1848, o ministério nitidamente conservador dominava praticamente todas as instâncias no Império, Ministério
que, a partir da década de 50, teve que legislar sobre questões fundamentais como a Lei de Terras de 1850, a abolição do tráfico
negreiro, a epidemia de febre amarela e outros.
52
O estadista João Maurício Wanderley, bacharel em Direito, foi um dos líderes do Partido Conservador e manteve-se no poder
durante todo o Segundo Reinado. Recebeu o título de barão em 1860, tendo tornado-se célebre por levar a Pedro II à sanção da
Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe (1886). Porém nunca defendeu a abolição irrestrita sem a indenização dos senhores
de escravos. Foi Deputado Geral pela Bahia e Presidente dessa Província de 1825 a 1855. Além disso, foi senador pela Bahia e
presidiu o senado. Ocupou vários cargos no Brasil imperial: foi ministro da Fazenda, da Marinha e dos Estrangeiros, presidiu o
Conselho de Ministros e o Banco do Brasil, período que impulsionou a agricultura e favoreceu a imigração. Chefiava o Gabinete
quando a Princesa Izabel assinou a Lei Áurea em 1888. Ficou famoso ao dirigir à princesa a seguinte frase: "Redimiste uma raça,
mas perdeste o trono". De fato, a Monarquia ruiu pouco mais de um ano depois, embora ele não tenha vivido para ver o fim do
Império.
53
Os dois extensos relatórios, polêmicos como já salientamos, produzidos durante o cargo foram publicados: o Relatório sobre a
Instrução Pública da Bahia apresentado ao excelentíssimo Senhor Presidente Alvaro Tiberio de Moncorvo e Lima, de 1856, com
74 páginas, continha diversos mapas e documentos. No ano seguinte, em 1857, escreveu o segundo Relatório sobre a Instrução
Publica da Bahia, apresentado aos Ex.mo Presidente desembargador João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, com 71 páginas,
também na Bahia. Esses relatórios foram elogiados pelo Visconde de Castilho, que referiu-se aos mesmos como grandes
contribuições de “mestre” Abilio para a evolução do Brasil literário e científico. Encontramos somente o primeiro relatório, de
1856, na página dos relatórios dos presidentes da província no site: http://wwwcrl.uchicago.edu/content/brazil/BAH.htm.
54
Por ter agido dessa forma, Abilio virou alvo de acusação em conversas privadas e até na imprensa da Província. Essa
‘perseguição’ foi justificada por Mariani (apud RIGHBA, op.cit., p.299) da seguinte forma: “A Bahia sempre teve a presunção de
53

da Assembléia55 se sentiram‘feridos’ quando Abilio questionou, ironicamente, suas práticas em


seu Relatório de 1857:

Não obstante os bons desejos de alguns administradores que temos tido, e esse despeito das sempre
patrioticas disposições da nossa Assembléa Provincial, bem pouco temos alcançado até o presente
porquanto, falando em these a classe do nosso professorado é má e em muita parte pessima, e não temos
escolas regulares bem montadas. Que bons presidentes e que bôas assembleias, possuindo “bons desejos” e
animados por discussões patrióticas, chegarão a dar taes resultados! O que se poderia esperar se fossem
indiferentes e anti-patriotas que nem o governo e nem a Assembleia (Apud RIGHBA, op. cit., p.78).

Além das criticas dirigidas ao governo provincial durante sua passagem por este cargo, ele
manifestou um desejo de ‘organizar’ e ‘arrumar’ o que não era conveniente. Seus relatórios,
muito bem escritos, diferentemente de outros que pudemos verificar, apresentaram temas como
instrução primária, média, secundária, escola normal, Liceu da Bahia, cadeiras avulsas, criação e
extinção de cadeiras, métodos de ensino, vitaliciedade do professorado, jubilações, visita das
escolas, liberdade de ensino, férias, ordenados dos professores, liberdade de ensino, ensino
religioso, abolição de castigos fiscos, premiações nas escolas, construção de prédios escolares e
vários outros. Não trataremos de todos os temas contidos nestes documentos, pois optamos por
abordar a maior parte dos assuntos contidos neles no decorrer deste trabalho, com a intenção de
acompanhar melhor as mudanças e permanências de suas idéias.
Na história da educação brasileira, a segunda metade do século XIX é uma fase de
intensas discussões, propostas e reivindicações que se articulavam em torno do ensino público
primário e secundário, pois a escola fora eleita como a estância privilegiada para prover a
educação e a instrução das crianças e adolescentes, sobretudo para as das camadas inferiores da
sociedade. Esta concepção redentora estava presente nos discursos oficiais, na imprensa, nos
discursos de homens públicos e intelectuais de todas as vertentes políticas. Não havia dúvida
acerca do poder da instrução para mudar o rumo da nação e implementar a tão sonhada
civilização no vasto Império brasileiro.
Contudo, entre o desejo e a realidade do efetivo funcionamento da escola pública, houve
um hiato, manifestado pelas inúmeras críticas provindas do mesmo grupo citado acima. Era

ser o foco da intelligencia no Brasil, e qualquer um que ousasse dizer naquelle tempo que suas escolas não eram mais do que
imundas pocilgas, seus professores ignorantes e insubordinados, seria inevitavelmente qualificado de herege, assim como aquelle
que puzer em duvida a excellencia de seu “vatapá”, das suas modinhas”.
54

consenso que não havia escolas suficientes, professores qualificados, métodos e prédios
adequados, materiais didáticos para todos e outros fatores que ocasionavam o ‘atraso na
instrução’. As justificativas eram variadas, o ‘atraso’ decorria, segundo os registros, da falta de
recursos das províncias, das instabilidades políticas, da falta de interesse das famílias,
especialmente a classe pobre, tida por ignorante (e que não ‘se interessava’ pela instrução de seus
rebentos), das distâncias que impediam o acesso das crianças às escolas, além de outros motivos
que impediam o sucesso da instrução pública de forma contínua e organizada.
Como outros políticos e intelectuais do período, o Diretor Abilio não deixou de ressaltar a
magna importância da instrução primária, pois para qualquer nação prosperar e desenvolver-se, a
exemplo das nações civilizadas, era necessário melhorar, reformar e ‘animar’ a instrução
primária. Desta forma, salientou, em seu primeiro relatório: “Não seremos nós, os Bahianos, que
sempre nos temos distinguido por nosso ardor na carreira das lettras, que nos deixaremos ficar
estacionários, quando todos marcham pra frente” (1856, p.6-7).
Apesar da Constituição de 1824 garantir a gratuidade para todos os ‘cidadãos’, essa
disposição não foi facilmente aplicada no Império. De acordo com o Artigo 64, os pais, tutores e
curadores que não dessem ensino, seriam passíveis de multa. O Diretor Geral era o responsável
pela execução desse artigo, no entanto, pelos relatórios, percebemos que Abilio não fez esforços
para garantir essa gratuidade e que, para justificar suas propostas, recorreu às experiências dos
países europeus. Referindo-se ao ensino na Alemanha56, onde a instrução primária se achava
generalizada, o Diretor chamou a atenção para as leis que obrigavam os pais a mandarem seus
filhos de cinco a seis anos para a escola. Contudo salientou que a instrução não era gratuita, pois
os alunos pagavam por ela uma ‘contribuição módica’57. Citou a Suíça, a Áustria, a Inglaterra, a
Dinamarca e a França, demarcando estes países como referências no cuidado com este ensino,
apesar de fazer uma ressalva:

55
A Assembléia Provincial era responsável, dentre outras atribuições, por nomear e demitir funcionários públicos. Após o Ato
Adicional de 1834 (que realizou alterações na Constituição de 1824), as Assembléias Provinciais substituíram os antigos
Conselhos Gerais, porém com maiores poderes.
56
Segundo Collichio (1976), a Alemanha, com a vitória sobre a França na batalha de Sadwa, em 1866, afirmou a superioridade da
instrução universitária, da ciência e da virtude germânica. Afirmou ainda que o interesse pelo modelo de instrução alemão foi
anterior à década de setenta do séc. XIX, citando, como exemplo, a defesa feita por Abilio das escolas médias existentes na
Prússia. Não podemos afirmar que Abilio, apesar de citar a Alemanha como referência de ensino em alguns momentos, tenha sido
um germanista. Suas idéias a respeito deste país diferem do germanismo de Joaquim Teixeira de Macedo, pois Abilio não se
mostrou favorável, nem adepto, da instrução feminina (jardineiras), nem do ensino dos jardins da infância, além de não absorver a
literatura alemã. Recorreu a Frobel e Pestallozi de forma pontual, para defender, sobretudo, o ensino amorável.
57
De acordo com Collichio, a constituição alemã não tolerava que nenhum menino ficasse sem instrução, elemento indispensável
a todos os membros da nação. A obrigatoriedade já estava posta desde 1769, contudo, a partir de 1869, as famílias passaram a
contribuir com pequenas somas para a instrução seus filhos, reduzindo a sobrecarga das comunas e do Estado.
55

Nesses paizes porem, si o Governo impõe aos pais a obrigação de darem á seus filhos uma instrucção
elementar, também providencia em favor daquelles que, pauperrimos, estão na impossibilidade de cumpril-
a: é assim que na Allemanha ha as casas de asilo para a infancia desvalida, e que as communs são obrigadas
á occorrer ao esnino da mesma (1856, p.19-20).

Embora evidenciasse a obrigatoriedade, fez questão de trazer a ‘opção’ das casas de asilo
destinadas para as famílias que não pudessem cumprir com esta obrigação. Registrou que não
estava seguro para adotar, no Brasil, uma lei que garantisse a obrigatoriedade e gratuidade do
ensino. Se isso fosse viável, esclareceu o Diretor, não haveria porque retardar tais medidas tão
salutares, mas como não era, sugeriria outras medidas. Abilio era adepto da opinião de que a
gratuidade não fazia com que as pessoas valorizassem o que fora recebido. Exemplificou isso
com sua prática na medicina, porque, segundo ele, os que pagavam, nem que fosse um irrisório
valor em suas consultas, eram os que mais se beneficiavam de seu atendimento. Usando esta
mesma prerrogativa, defendia que o Estado cobrasse dos pais, de forma mais incisiva, a garantia
da instrução de seus filhos, através de uma contribuição pecuniária (por ‘pequena’ que fosse) na
admissão do aluno. De outra forma, segundo ele, os benefícios feitos pelo Governo de forma
gratuita seriam eram ‘desapreciados’, conforme explicou em seu relatório:

Estou bem persuadido, de que a falta de cuidados dos paes quanto a assiduidade de seus filhos nas escolas
provem, em muita parte, de não pagarem elles o menor sacrificio com ellas; e que apenas tenham elles de
desembolçar qualquer quantia por mais diminuta, com a matricula dos mesmos, não somente curarão melhor
frequencia, senão também que serão outros tantos inspectores dos respectivos mestres (1856, p.25)58.

A gratuidade, feita com ressalvas, não era uma idéia isolada de Abilio neste período.
Almeida registrou, em 1889, que esta deveria ser um direito estendido somente para as classes
mais desprovidas de recursos, sem que fosse dispensada, porém, uma contribuição, pois:

As classes ocupadas com trabalhos manuais ou degradadas pelos hábitos ociosos ou viciosos perecem, em
muitos casos, comprazer-se com a ignorância. As escolas são para os pais, desta categoria, apenas um meio
de ficarem desobrigados da vigilância de seus filhos. Já se conhece como são os filhos destes pais: pálidos,
fracos, mal nutridos, trazem em seus rostos um descaramento precoce, instintos perversos já se apropriam
do coração destes pequenos seres, que fumam, como adultos e não hesitam diante de um copo de pinga.
Estas crianças saem muitas vezes da escola tão logo quanto entraram, sem qualquer instrução, nem mais
moralizados nem menos turbulentos (1989, p.92).

58
Posteriormente, já diretor do Ginásio Bahiano (1858-1870), Abilio percebeu que o pagamento não fazia com que os pais
participassem mais da vida escolar dos filhos, pois, em seus discursos, constantemente procurava chamar-lhes a atenção sentido
de que valorizassem a escola, se inteirando mais da vida escolar de seus filhos.
56

Figura 5. Primeiro Relatório de Abilio no cargo de Diretor Geral da Instrução. Esta obra de 72 páginas contém, além
dos textos, mapas e tabelas a respeito da instrução na província da Bahia. (Fonte: Center Research Libraries –
Provincial Presidential Reports: Bahia. www.crl.uchicago.edu/content/brazil/BAH.htm).
57

A classe pobre era considerada uma categoria não merecedora da instrução pública, afinal,
o problema dos ‘pálidos, mal nutridos e viciosos’ filhos da classe popular, como definiu Almeida,
não seria resolvido com a escola e, sim, com a criação de instituições disciplinadoras. A
discussão da gratuidade atravessou o século XIX e, apesar desta constar em lei, houve inúmeros
empecilhos para que se efetivasse de fato.
A obrigatoriedade do ensino primário, da mesma forma que a gratuidade, também não foi
uma bandeira levantada de forma explícita por Abilio. Nos discursos do Diretor, pairava o crédito
na ‘divisão natural’ da sociedade em classes inferior, média e superior, o que demandaria para
cada classe social uma instrução correspondente. Apesar de delegar um papel redentor à escola,
para ele, nem todos os homens possuíam disposição igual para os ramos do estudo, havia alguns
mais aptos:

Que cultivem de preferencia as lettras, aquelles cuja imaginaçao é mais viva, cuja sensibilidade é mais
delicada e impressionavel. Que se dê especialmente ás sciencias, quem foi dotado pela natureza de uma
intelligencia mais elevada e penetrante, de razão mais segura e clara, e cuja paciencia é mais tenaz. Outros
que mais pendor sintam em si para as artes, que sigam as artes; e assim quanto ao commercio, á agricultura,
etc (1866c, p.19).

Isaias Alves, um dos biógrafos de Abilio, teceu elogios para ‘alma sincera’ do educador,
justificando que este considerava perigoso o fácil acesso de instrução a todos, de forma indistinta
e que, se não reivindicava o ensino obrigatório para todos, era por conhecer muito bem a
‘insuficiência do nosso meio’ para receber tão ‘adiantada medida’.
Apesar de seu manifesto interesse pelo melhoramento das condições da criança nos
primeiros passos de sua vida escolar, assim como pela necessidade do investimento no ensino
primário tido como essencial para salvar o povo da ignorância, contraditoriamente, Abilio não
recorreu ao argumento da obrigatoriedade e da gratuidade para efetivar isso. Apostava, sim, no
talento individual, os melhores e mais talentosos teriam seus lugares garantido, como o próprio
autor registrou na Lei nova do ensino infantil: “A lucta é summamente encarniçada; e vencerao
na jornada aquelles que houverem podido concentrar maior somma de ideias, de aptidoes, de
energia moral e de força physica.” (1883, p.25).
Não é evidente a defesa de Abilio de que a instrução pública era um meio eficaz para
todas as pessoas melhorarem sua posição na sociedade, crença muito difundida no pensamento
58

liberal do século XVIII, sobretudo na França, onde era entendida como uma bandeira
revolucionária da burguesia. De acordo com Cunha, a posição comum desse pensamento era:

O principal ideal liberal de educação é o de que a escola não deve estar a serviço de nenhuma classe, de
nenhum privilégio de herança ou dinheiro, de nenhum credo religioso ou político. A instrução não deve
estar reservada às elites ou classes superiores, nem ser um instrumento aristocrático para servir a quem
possui tempo e dinheiro. A educação deve estar a serviço do indivíduo, do “homem total”, liberado e pleno
(1988, p.34).

Segundo os liberais, se o talento, os dotes, os valores, as aptidões e as vocações estavam


intrinsecamente presentes no indivíduo, a instrução pública não deveria deixar escapar nenhum
aluno e, para assegurar e garantir esse fim, a instrução deveria ser gratuita. Em termos dessa
gratuidade, Abilio não proclamava das mesmas idéias dos liberais franceses.
A liberdade de ensino foi uma outra questão discutida amplamente pelo nosso autor nesse
período. Em meio a queixas, críticas e sugestões, a polêmica da ‘liberdade de ensino’ dividia as
opiniões a respeito do papel do Estado e da iniciativa particular, à frente da instrução. Para um
grupo, que incluía diferentes correntes políticas, liberais, conservadores, católicos, protestantes,
monarquistas e republicanos, os debates se intensificavam, pois, se o poder público não
conseguia cumprir com seu papel de forma eficiente e coesa e as escolas ‘padeciam’ de todo tipo
de necessidade, a solução parecia ser as escolas particulares que favoreceriam e difundiriam
rapidamente a instrução primária para as massas.
Em seu Parecer de 1882, Rui Barbosa, imbuído do intuito de reverter a situação caótica do
ensino primário, propunha a necessidade da interferência do Estado, como financiador e
fiscalizador dos trabalhos nas escolas. Sugeriu uma reforma que adotasse a gratuidade, a
obrigatoriedade (7 a 14 anos) e a laicidade do ensino. Anteriormente e oficialmente, a Reforma
Couto Ferraz (1854), que conferiu um papel importante ao ensino particular e o Decreto de
Leôncio de Carvalho (1879), que instituiu a liberdade de ensino, contribuíram para relevar o
desenvolvimento do ensino primário e secundário particular59.
A posição de Abilio não era tão explícita como a de Rui Barbosa, pois, ao mesmo tempo
em que cobrava uma maior participação do Estado na instrução, argumentava favoravelmente à

59
Azevedo (1996, p.572) afirma que, com exceção da província de Minas Gerais, o número de alunos que freqüentavam a
instrução privada era maior que o do público. Em 1865, no Liceu Provincial da Bahia, 337 alunos estavam matriculados nos
cursos de humanidades para 860 que freqüentavam colégios privados na Província. Isso se repetia em outras províncias, até
mesmo no modelar Colégio Pedro II, que abrigava 327 estudantes contra 2.223 de outros colégios e cursos particulares que
disputavam a primazia da reputação, pela eficiência do ensino.
59

iniciativa de particulares na intervenção do ensino. No cargo de Diretor da instrução, explicitou


em seu Relatório, de 1856:

Anda por certo errado aquelle que segue o principio de que em matéria de ensino publico deve presidir a
mais ampla liberdade, o que vale o mesmo que entregal-o á industria e especulação dos particulares, os
quaes, pelo commum, só curam dos seus interesses pecuniários, e nunca se lembram da sociedade (1856,
p.19).

Por esta passagem, notamos que não era viável deixar a instrução nas mãos da
‘especulação particular’. Não havia, da parte dele, uma defesa explícita ao ensino público e, sim,
uma preocupação em não entregar a instrução nas mãos de qualquer pessoa. A defesa do então
Diretor de Instrução de 1856, nem de longe se aproximou da posição do diretor enquanto
proprietário de estabelecimento privado, em 1873. Verificamos isso na proposta que apresentou
ao Conselho da Instrução do Município da Corte:

Considerando que a inspeção official não presta ao ensino privado beneficio algum, por não ser possível que
se faça qual conviria; considerando que em vez de um bem, é um mal intrometter-se o estado em cousa que
incumbe ao dever natural e impreterível das famílias, ás quaes não póde nem deve o Estado antepor-se;
Considerando que muito urge despertar e desenvolver a iniciativa individual, que, em tudo e particularmente
no que diz respeito á instrucção, faz milagres em outros paizes; Considerando que o ensino livre já se acha
decretado em varias Províncias do Imperio com muito proveito; Considerando enfim que esse Conselho ao
conferir títulos de habilitação para o magisterio não póde proceder com o necessario criterio, cingindo-se a
attestações ordinariamente pouco escrupulosas e quiçá, falsas. Proponho que se represente ao Governo sobre
a conveniencia de ser, desde já, decretado o ensino inteiramente livre no Municipio da Corte (Apud
RIGHBA, op. cit., p.130).

Essa visível contradição foi explicada por Alves como conseqüência da ‘experiência’
adquirida por Abilio em seu cargo de Diretor da Instrução. Contudo essa reação parece muito
mais uma conseqüência de sua experiência como diretor de colégio privado, pois, se o discurso
anterior era favorável a uma rígida inspeção, o posterior, ao contrário, desmerecia qualquer
intervenção pública no seu estabelecimento particular. Além da ineficiência do Estado, que não
deveria interferir na escolha natural da família diante dos ‘milagres’ que a instrução privada fazia,
era conveniente que, a exemplo de outros países, fosse decretado o ensino livre na Corte.
De acordo com Hilsdorf (1986), a idéia de que o povo que funda a escola é responsável
pela sua fiscalização também era defendida pelos republicanos que, apoiados no modelo norte-
americano, defendiam que o cidadão pagador de impostos, os doadores de contribuições
60

espontâneas e os legados testamentários para o alargamento da instrução deveriam zelar pelo


ensino.
Um exemplo da postura favorável de Abilio à intervenção da iniciativa particular, no
período de seu cargo como Diretor de instrução, foi sua opinião sobre a construção de prédios
escolares. Ao denunciar a falta de escolas para a instrução primária, propôs a construção de
prédios com a cooperação da iniciativa privada e a elaboração de uma lei que obrigasse
iniciativas particulares, como casas pias e criação de loterias (que, as suas vistas, eram lucrativas
somente para seus exploradores), a contribuírem na construção de boas escolas, alegres e sadias.
O argumento foi o seguinte: “Os ricos que não podem levar seu haver para o outro mundo, e que
á hora da morte unicamente anseiam por fazer as pazes com Deus e com os homens, procurariam
quietar a consciência, dotando com mão larga a instrução primária” (Apud RIGHBA, op.cit.,
p.176).
Sua defesa, apesar de pautada sobre argumentos cristãos, estava inclusa em um amplo
debate referente à construção de prédios específicos para a escola, onde, a partir da segunda
metade do século XIX, foi-se reforçando a representação de que construção de prédios era
imprescindível a uma ação eficaz com a as crianças. Uma representação favorecida por diversos
fatores, conforme apontou Vidal e Faria Filho (2005). Na ordem político-cultural, a
escolarização, em todo o mundo moderno, partia do fortalecimento das estruturas do poder
estatal. As discussões pedagógicas referentes às propostas metodológicas, demonstravam a
necessidade de que se construíssem espaços próprios para a escola como condição para realizar
sua função social específica. Defensores do método intuitivo e mútuo argumentavam sobre a
necessidade do espaço da sala de aula para realizar métodos que incluíssem materiais
pedagógicos, sobretudo nas últimas décadas do século, como globos, cartazes, coleções, carteiras,
cadernos, livros etc. Desta forma, não era mais possível adaptar o espaço, porque os reais
benefícios destes materiais para a instrução seriam colocados em risco.
O desenvolvimento dos saberes científicos, como a medicina e higiene, influenciaram
decisivamente na elaboração de um espaço específico para a escola. As críticas tinham como alvo
os males sofridos pelas crianças em decorrência das péssimas condições de higiene da escola, o
que prejudicava, além da saúde, a aprendizagem dos alunos. A falta de prédios próprios também
era vista como um problema administrativo, pois as escolas, isoladas e distantes, acabavam não
sendo fiscalizadas, os dados eram falseados, havia mistura de atividades domésticas com
61

profissionais. Não havia indicadores confiáveis do ensino e parte significativa das verbas era
consumida com pagamento de aluguel da casa de escola e do professor.
Apesar destes argumentos, a construção de prédios escolares para abrigar a infância
escolar não se efetivou neste período. Abilio preocupou-se, contudo, de forma substancial, com
os prédios de seus colégios privados, colocando em prática o que entendia por ‘bons prédios
escolares’, assunto que abordaremos no próximo capítulo.
Juntamente com as críticas e posições favoráveis à liberdade do ensino, Abilio
questionava a falta de investimento do Estado na melhoria do ensino popular. Manifestou suas
críticas em diferentes tempos, chamando a atenção das autoridades que, a seu ver, eram um dos
grandes responsáveis pelo atraso do ensino. No ano de 1876, enviou circular ao Inspetor da
Instrução de Minas Gerais, ressaltando ‘seu pesar’ ao ver a quantia votada no orçamento
provincial, destinada ao ensino primário. Comparou a cifra dispensada às subvenções para o
ensino privado secundário, numa crítica severa: “Tenham liberalidade com o ensino secundario,
que bem fraca influencia póde ter no desenvolvimento do ensino popular, e tanta mesquinhez
com as escolas do povo!” (Apud RIGHBA, p.382-383). Se a quantia estabelecida fosse
empregada na compra de livros, argumentou Abilio, não seria possível oferecer a cada escola um
compêndio essencial ao ensino.
Na ocasião de um discurso no Colégio Abilio da Corte, em 1875, dirigiu-se ao Ministro do
Império e manifestou sua insatisfação:

Si V. Ex. Sr. Conselheiro João Alfredo, tão interessado como se tem mostrado pelo bem da instrucção
publica, não fosse tão distrahido e attrahido pelo magnetismo da politica; si fosse só ministro da instrucção,
estou certo que haveria já attendido para esses males que aqui lhe vou apontando, e os teria remediado.
Concorra V.Ex. para a divisão do seu ministério; e fique só ministro da instrucção, que ainda mais
benemérito se tornará. A instrucção publica deste vasto Império reclama já, e merece assaz uma pasta
especial (Ibid, p.127).

Nota-se uma ambigüidade em seus discursos, pois, ao mesmo tempo em que não se
posicionava favoravelmente ao ensino universal, se opunha e denunciava o pouco investimento
do Estado nesta área. Uma outra situação que marcou de forma decisiva a passagem de Abilio por
este cargo e, segundo seus biógrafos, lhe trouxe amargos enfrentamentos, se refere aos protestos
dirigidos aos professores que faziam parte do Liceu da Bahia. De acordo com suas denúncias, a
62

situação do ensino secundário neste estabelecimento era ‘decadente’ e lhe trazia ‘muito
desgosto60.
A maior parte dos professores era constituída por deputados da Província e membros da
Assembléia Geral, os responsáveis, na visão de Abilio, pela decadência do Liceu, devido a sua
falta de capacidade e, sobretudo, ao fato de muitos professores deste estabelecimento integrarem
a banca de examinadores da Academia de Medicina, ministrando aulas particulares em suas
casas, da mesma matéria dada no Liceu, de forma que seus discípulos não eram reprovados nos
exames. Isso gerava um interesse dos diretores de colégios privados por estes professores, que
eram convidados para integrarem seus quadros, constituindo, assim, um bom argumento para
atrair numerosos alunos.
Os estudos preparatórios eram realizados com o fim de submeter o aluno aos exames para
ingressar no ensino superior. Isso era válido para todos os colégios, públicos ou privados, com
exceção do Colégio Pedro II, onde alunos poderiam ingressar em qualquer curso superior sem
esses exames. Os exames, que foram implementados em 1808 e extintos no ano de 1925, tinham
como conceitos estabelecidos: aprovação plena, simples e dependente.
A questão dos exames para entrar no curso superior foi outra pedra no caminho de Abílio,
desde esse período até o final de sua vida. Ele era favorável aos exames, entretanto criticava a
falta de critérios da banca de examinadores. Condenou de forma contundente a ‘falta de
escrúpulos’ dos professores das bancas de examinadores, os ‘inimigos gratuitos’, como ele os
definiu. Apesar de seu colégio ocupar a dianteira na lista de aprovações ‘distintas’ e ‘plenas’, se
manteve firme na crítica à banca de examinadores, uma categoria que não teve seu
merecimento61.
Sua preocupação era com a moralidade dos exames, o único meio de salvar a instrução
nacional. Eram poucos os que conseguiam passar pelo ‘peneiramento’ dos exames e Haidar,
apesar das críticas dirigidas a este sistema, esclareceu:

60
Segundo Abilio, o número de alunos do Liceu decaía a cada dia. De 456, em 1840, na década de cinqüenta, não tinha mais de
152 alunos, sendo que uma grande parte desses alunos freqüentava o Liceu para ficar livre do serviço de Guarda Nacional.
61
Desde o Ginásio Bahiano, os alunos usavam uniformes verdes, semelhantes a fardas, havia um modelo interno e outro externo,
o que servia para que fossem identificados e recebessem notas baixas ou mesmo fossem reprovados nos exames. Abilio chegou a
ser aconselhado a não mandar os alunos uniformizados para os exames, conselho que dispensou, insistindo no que considerava
justo. Na década de setenta, chegou a denunciar diretamente ao Imperador Pedro II que um aluno pobre e pertencente à classe de
gratuitos fora ‘simplificado’ em aritmética. Conseguiu a repetição das provas. Fazia parte da nova comissão (que avaliou o aluno)
Benjamin Constant que aprovou com ‘distinção’ o aluno, dando o seguinte parecer: “Na minha longa carreira do magisterio,
poucas vezes tenho dito a felicidade de encontrar um menino tão bem preparado neste utilissimo ramo de estudos. Faltaria ao
cumprimento de um sagrado dever se, como seu examinador o não premiasse com uma aprovação discitincta”. (Apud RIGHBA,
op. cit., p.151).
63

Na verdade, o velho sistema de exames parcelados, com sua indústria de adestradores incompetentes e
inescrupulosos, com seus exames fraudulentos e com todo seu séqüito de irregularidades, se mal cumpria a
tarefa de formar os futuros discípulos das Academias, atendia a uma multidão de interesses espúrios e na
medida que facilitava aos menos favorecidos da fortuna o acesso aos cursos superiores, constituía-se um
importante canal de ascensão social. Não seria fácil obter das Câmaras sensíveis às pressões da opinião
pública a mudança radical de tal situação (1972, p.262).

O sistema de aulas avulsas foi considerado como mais um problema para Abilio, que
combateu esse tipo de ensino toda sua vida, considerando-o um obstáculo ao melhoramento dos
estudos preparatórios, já que eram raros os que chegavam ao bacharelado. Insistiu na extinção
das classes avulsas e na proposta de que prestasse os exames somente quem fizesse o curso
completo de bacharelado. A Reforma Leôncio de Carvalho (1879), entre outras, concedeu a
liberdade ao ensino secundário e superior. Este ensino livre tornava a presença dos alunos
facultativa, estabelecendo de vez as “aulas avulsas”, tão criticadas por Abilio62 e por diversos
intelectuais da época que relacionavam essa liberdade à ‘liberdade de vadiação’.
As críticas ao Liceu estavam postas em outras províncias da mesma forma, sendo que, em
algumas províncias, alguns estabelecimentos foram fechados ou privatizados. Mariani (Apud
RIGHBA, op. cit.) registrou que o diretor não residia no Liceu da Bahia (conforme a legislação),
o que facilitava a ‘desordem’ no estabelecimento. O fato da matrícula ‘ser muito barata’ permitia
que todo ‘tipo de mancebos’ se matriculasse, provocando desordem. Esses alunos permaneciam
nas portas e nas janelas vaiando quem passava, tornando o Largo intransitável ‘para pessoas
honestas’. As cadeiras eram providas por pessoas sem habilitação, que não cumpriam o tempo da
aula, pois, como a maioria dele dava aulas particulares, saiam ‘voando’ do Liceu para seus cursos
particulares. O que a Província lhes pagava para fazerem no Liceu, faziam em uma ou mais casas.
Tudo isso não suportou a concorrência das escolas particulares, porque os pais faziam grandes
sacrifícios pecuniários a fim de transferirem seus filhos para estabelecimentos privados.
Alguns incidentes ocorridos no Liceu contribuíram com o aumento da hostilidade de seus
adversários. No ano de 1856, um ‘desagradável incidente’ envolveu um professor de francês e o

62
Em carta encaminhada de Bruxelas ao Conselheiro C. L. do Carmo, Abilio parabenizou-o pelas reformas feitas no Colégio
Pedro II, pois aprovava “quase todas”. Criticou, então, as classes dos alunos avulsos que, a seu ver, deveriam ser extintas, pois
prejudicavam o curso regular de bacharelado que, para ele, era o fim daquele estabelecimento, explicando: “V. Exa.
compreheende que no fatal açodamento com que nossa mocidade, excitada pelos paes e animada pelos mestres, corre pelos
estudos preparatorios, todos quantos poderem frequentar as ditas aulas avulsas, que, além de muito baratas, offerecem o privilegio
dos exames, nos quaes tanta approvação se dá por empenho, não se sujeitam a seguir até o fim, aquelle curso de estudos, e é
justamente o que tem sempre se succedido, salva apenas annualmente uma meia duzia de excepções, constituidas na maior parte
por alumnos gratuitos”. (Ibid., p.389-319).
64

diretor do Liceu, que eram inimigos de longa data. Dois alunos se ‘atracaram’ na aula de francês
e o professor não respondeu ‘respeitosamente’ à solicitação de informações feita pelo diretor que,
ofendido, obrigou o professor a comunicar o fato diretamente ao Diretor da Instrução. Abilio
acertou com o Presidente da Província a jubilação do professor, porém o Presidente, pressionado
por amigos políticos se recusou a lavrar o ato e não cumpriu com o acordo. Além disso, Abilio
suspendeu um importante colégio privado de Salvador porque seu diretor era dono de uma casa
de jogo público e jogava com seus alunos. O caso gerou um escândalo público, porém, mais
tarde, por conveniência política, o próprio Presidente da Província deu completa liberdade para o
professor continuar com o seu estabelecimento de ensino.
As denúncias geravam um clima tenso, pois era uma temeridade um Diretor criticar um
instituto como o Liceu, considerado uma verdadeira potência diante da qual se curvava a mais
alta autoridade da Província. Para seus biógrafos, as conivências do Presidente para com estes
episódios podem ter sido uma das principais causas da renúncia de Abilio, que se sentiu
melindrado e convencido de que não poderia ganhar muita glória no cargo do qual exonerou-se
em 1857.
A saída de Abilio desse cargo, considerado tão bom como um ‘beneficio eclesiástico’, foi
concretizada por ‘motivo de honra’, como registraram seus biógrafos. Suas idéias renovadoras
não foram compreendidas, fato que justifica a representação que o inseriu no ‘campo dos
injustiçados’63. A culpa dessa incompreensão foi delegada aos governantes da Província, que não
precisavam de seus ‘ilustres serviços’ e nem de suas boas idéias. Desta forma, o fato de Abilio
partir para o campo do ensino privado, expandindo suas idéias pelo Império, tornando-se uma
referência no da instrução, mostrou que os homens de valor não precisavam dos cargos públicos
para engrandecer a pátria e deixarem à posteridade um nome venerado.
No mesmo período, seu interventor, o barão de Cotegipe, também havia “caído” do poder,
não podendo sustentá-lo neste cargo. A vitória do partido Liberal, em 1857, pode ter contribuído
para precipitar sua exoneração que, segundo Alves:

Arrastou nas suas aguas tumultuosas toda a lama que os inimigos da cultura haviam accumulado, e o
coração destemeroso do lutador deixou a arena da actividade publica e recolheu-se a tebhaida, onde só o
borborino da infancia, puro e reconfortante, como o farfalhar das mattas, ao sopro das brisas matinaes, havia
63
Em várias passagens, sua prática foi comparada a outros célebres, afinal, se Oswaldo Cruz, Pedro II e Pasteur e outros gênios
não foram compreendidos, porque Abilio, um gênio semelhante a eles, deveria ser? Para que fosse comparado às imortalidades
era preciso ter sido combatido, ter sido um injustiçado.
65

encher-lhe a existencia, onde colheu frutos otimos, e forte contrataste com aquelles cochos resequidos, que
só a política sabe produzir (Apud RIGHBA, op. cit., p.163).

Abilio deixou o cargo em abril de 1857. Em agosto do mesmo ano, no governo do


Presidente (ex-senador) João Lins Vieira Cansação de Sinimbú, foi substituído pelo liberal
radical João Barbosa de Oliveira, pai de Ruy Barbosa, que liderou a administração na Província
por muito tempo. Seu substituto era uma pessoa ‘menos crítica’, para satisfação de seus inimigos
que ‘saltaram de alegria’, mas também para grande descontentamento por parte dos
conservadores.
Abilio finalizou sua passagem conturbada por este cargo, conseguindo poucos avanços,
segundo seus biógrafos. Contudo nunca esqueceu essa fase, pois em seus discursos, em diferentes
tempos, rememorava o cargo com pesar, como nessa passagem no discurso feito no ano de 1859,
no Ginásio Bahiano:

Por mais de uma vez, quando eu me achava na direcção geral dos estudos, chamei a attenção de quem podia
para o objecto de tão grave ponderação; mas, ou porque não me coubesse a fortuna de ser comprehendido,
ou por qualquer outra razão, nada se fez nem se consentiu que eu fizesse: - e, então, cedendo aos meus
sentimentos de dignidade pessoal, tive de deixar, com dôr profunda, é verdade, aquella importante posição a
outro, mais feliz do que eu, que podesse com mór proveito extirpar os abusos, e curar as chagas da
instrucção desta tão bella quanto ditosa Bahia (1866c, p.315).

Notamos que seus biógrafos, inspirados nos escritos de Abilio, justificaram sua saída em
função de todas suas boas iniciativas, seja pelo enfrentamento com as autoridades ‘intocáveis’ ou
em função da proibição do uso da palmatória, assim como outros ‘desgastes’ que levaram o
Diretor, ao perceber que suas propostas (várias) não eram compreendidas e nem executadas, a
pedir exoneração do cargo. No entanto, é prudente apontarmos outras questões para melhor
compreendermos sua saída.
Primeiramente, o período curto vivido nesse cargo não era algo anormal, pois o emprego
público era transitório e nada estável, sendo a política do Império marcada por quedas e
ascensões. Um quadro de Presidentes da Província da Bahia indica que o tempo máximo de
permanência nesta função era de dois anos. Só na década de 50, período em que Abilio desfrutou
do cargo, a Província teve seis presidentes (TAVARES, op. cit). Ademais, o cargo era
estritamente político e o período de sua saída coincidia com a queda do Partido Conservador na
Bahia, que o sustentava neste cargo.
66

As criticas, referidas pelos biógrafos, das quais Abilio teria sido vítima, também não eram
um ‘privilégio’ dele e não estava disforme com as que diretores da instrução pública de outras
províncias recebiam. Os jornais eram os instrumentos de críticas, portanto vários artigos
atacavam as pessoas que ocupavam este cargo. No jornal A Província de São Paulo , conforme
apontou Hilsdorf (1986), havia verdadeiras campanhas contra os pertencentes deste cargo, que
eram chamados de ‘beleguins políticos’ e ‘cabos eleitorais aos serviços dos generais das trapaças
políticas’ e outras definições nada lisonjeiras.
Os discursos de Abilio, marcados por enfrentamentos com o professorado e com a classe
política, também não constituíam uma novidade no período. Os relatórios oficiais eram plenos de
reclamações sustentadas, sobretudo, no argumento da falta de verba das províncias para executar
com eficiência a tarefa de organização da instrução. Segundo Haidar (1972), estes argumentos
provinham do final dos anos trinta, ocasionados pela descentralização do ensino contida no Ato
Adicional de 1834, considerado então, a panacéia universal para todos os males que afligiam o
país durante um bom tempo.
Defendemos que a originalidade dos discursos de Abilio, desde esse período, estava na
proibição dos castigos físicos, pois notamos que, apesar dessa discussão anteceder essa época,
não era comum uma defesa tão veemente como a do nosso autor. Na história da educação do
século XIX, como até bem pouco tempo, essa era uma prática normalizada nas escolas e
combate-la ainda soava estranho para uma sociedade que via nos castigos a solução para os
problemas de indisciplina. No entanto considerar a postura de Abilio como inovadora,
propriamente, parece ser exagero. Aliás, o gosto pela novidade, o filoneismo, já era uma velha
característica dos intelectuais deste período em que todos sentiam a necessidade de afirmar a
própria personalidade, criando uma autêntica tradição nacional.
Quanto às discussões em torno da necessidade de escolas primárias para o povo, apesar
das exigências de alguns parlamentares e setores da sociedade na defesa deste ensino, não houve
uma oferta significativa de escolas para as classes populares. Nos projetos apresentados nas
últimas duas décadas do século XIX, ainda era notória a dificuldade de se implementar um
modelo de escola. Desta forma, embora os discursos apontassem na direção da importância da
escola para a modernização da sociedade, a prática demonstrou um descompasso com a teoria.
Apesar da existência de escolas domésticas, urbanas e rurais, a realidade ainda carecia de
melhores estruturas para este ensino.
67

Após deixar o cargo, Abilio se dedicou ao campo de ensino particular. Terminava, assim,
sua passagem pela elite política do segundo escalão da burocracia. Uma elite local, cujo peso
político e influência dos que a ela pertenciam não é fácil avaliar. Contudo, como registrou
Carvalho (1996, p.48): “Sabemos ao certo apenas que a eles devemos quase todos os relatórios
que hoje são as fontes mais ricas para o estudo da história imperial”.

1.6 Agraciado com um título: ser um barão na Corte tropical

Abilio recebeu o título de ‘barão de Macaúbas’ no ano de 1881. A concessão desse título
nobiliárquico se deu pelo reconhecimento de seu trabalho na instrução pública do país. Apesar de
proprietário de colégios privados, foi reconhecido pelo mérito em desempenhar atividades na
instrução, conforme veremos no decorrer deste trabalho. Titular alguém por este motivo não era
uma prática comum, pois os critérios estabelecidos pelo Imperador, que determinava quem seria
agraciado com títulos nobiliárquicos, apesar de não serem sempre evidentes, buscavam beneficiar
a elite pertencente à oligarquia rural. O caso de Abilio, portanto, nos parece ser muito mais uma
exceção (podemos até dizer uma rara exceção), do que uma regra, valendo, assim, que
dediquemos uma parte deste trabalho ao tema.
O título de barão concedido a Abilio Cesar Borges nos remete a um período em que um
título nobiliárquico era sinônimo de distinção e de prestígio. Para compreendermos melhor como
o processo de se tornar um barão no Império brasileiro acontecia, é importante identificarmos os
caminhos trilhados para se obter um título, assim como salientarmos os significados disso para a
sociedade da época.
Para a monarquia européia, os títulos de nobreza concedidos pelos reis tinham como
função diferenciar determinadas pessoas do restante comum. De forma hierárquica, com suas
definições históricas, segundo Schwarcs, eram:

Duque, do latim dux, “o que conduz as tropas”, título mais importante concedido pelo monarca; marquês,
de origem alemã, mark, que significa “sinal”, “marca”, ou “região”, representava o que governava a
fronteira – os confins eram delimitados por um sinal, uma marca, e os funcionários para a vigilância das
fronteiras eram denominados “marqueses”; conde, do latim comes, “companheiro”, assessor do soberano”,
aquele que recebia o “cometimento” devia se justo, imparcial e zelar pelas crianças, órfãos e viúvas – traz já
no título o vínculo à posse da terra (condado); visconde, do latim medieval vicecones, designado pelos
condes para substituição no governo; barão, do latim baro, cujo significado está ligado a varão, “homem
valente que combatia junto ao rei” (1998, p.165).
68

Com o passar do tempo, os títulos foram sendo reduzidos a honrarias ou simples meios
das pessoas se inserirem nas disputas e hierarquias da Corte. No Brasil, a vinda da família real,
em 1808, trouxe, junto com outros rituais da Casa de Bragança (festas, cortejos, uniformes etc),
a prática de titulações, que seguia o modelo lusitano tradicional. Introduzia-se, assim, na América
portuguesa, um tipo de Corte que lembrava uma Europa distante, pagando os favores com títulos
e honras, e forçando, assim, o nascimento de uma nobreza particular e fiel ao Imperador. Havia,
contudo, uma notória e importante particularidade: se na Europa os títulos eram vitalícios ou
hereditários e essa hereditariedade era garantida pelo sangue real, no Brasil, somente a nobreza
de linhagem era restringida aos descendentes legítimos de Pedro I. O restante, ou seja, a maioria
absoluta da nobreza brasileira era composta pelos membros da nobreza adquirida, isto é, pessoas
que, para se integrarem ao atraente mundo da Corte tropical, tiveram que comprar um título
nobiliárquico, não sem antes terem sido indicadas pelo Imperador para o recebimento deste.
Durante o tempo que Dom João permaneceu na colônia (1808/1820), foram concedidos
254 títulos de duque, marqueses, condes, viscondes e barões. No reinado de Pedro I (1822/1831),
apesar da necessidade de se institucionalizar a nobreza no então recém-criado Império, o número
de títulos nobiliárquicos distribuídos alcançou cento e dezenove64, um número quase
insignificante diante do que foi concedido no reinado de Pedro II (1840/1889), período que nos
interessa no momento. Foi no Segundo Império que a ostentação de títulos de nobreza se tornou
símbolo de distinção e o número de atos para concedê-los chegou a 1.439, sendo que, deste total,
77% eram de barão. Este número não corresponde ao número de pessoas condecoradas, pois
algumas pessoas recebiam mais de um título, como no caso do Duque de Caxias65.
Cabia ao monarca conceder honras e distinções como forma de recompensar seus súditos.
Apesar dos critérios não estarem amparados por uma legislação específica, os motivos para
contemplar com um título provinham de reconhecimento aos serviços prestados, de provas de
patriotismo, de fidelidade e adesão ao Imperador, de serviços na área da saúde pública, na Guerra
do Paraguai e, até mesmo, trabalhos nas exposições universais.

64
Pedro I contemplou com títulos pessoas como Domitila de Castro a ‘marquesa de Santos’, com quem teve um polêmico
relacionamento, e também uma das filhas desse relacionamento, Isabel Maria de Alcântara Brasileira, a ‘duquesa de Goiás’.
Ironicamente, podemos afirmar que, nesse caso, Pedro I seguiu uma das prerrogativas estabelecidas para a concessão de títulos:
‘ser fiel e aderir a S.M.I’.
65
Luis Alves de Lima e Alves, o conhecido Duque de Caxias, é um exemplo de titulação progressiva: barão em 1841, conde em
1845, marquês em 1852 e duque em 1854, único título desta categoria concedido a ela pelo Império por seu desempenho na
Guerra do Paraguai.
69

No Brasil, o título de barão, o mais desprestigiado na hierarquia nobre, destinou-se,


sobretudo, ao proprietário rural que não fazia parte da elite política. Títulos mais elevados, como
o de visconde, conde, marquês e duque eram reservados aos proprietários e altos burocratas que
ocupavam cargos públicos ou a militares que ingressavam na elite. Segundo Carvalho (1996),
apesar dos barões constituírem 77% dos titulares de Pedro II, representavam apenas 14% dos
ministros do 2o Reinado que possuíam títulos. A classe eleita pelo imperador como ‘mais
merecedora’ ficou conhecida como os “barões do café”, termo utilizado para designar os ricos
cafeicultores, sobretudo do vale do Paraíba, que recebiam a titulação mobiliárquica pela riqueza e
pelo poder que ostentavam. Riqueza de origem, muitas vezes, obscura, porque relacionada a
atividades desprestigiadas que incluía, inclusive, o tráfico negreiro, como afirmou Faria (In:
VAINFAS, op. cit.). Os que não pertenciam a essa classe, como comerciantes66, industriais,
intelectuais e artistas, também foram contemplados com título de barão, porém em menor
número.
Se os principais critérios para conseguir o passaporte de pertencimento à Corte tropical
eram relativamente amplos, o mesmo não se repetia nos nomes que acompanhavam os títulos.
Era de praxe o Imperador denominar uma boa parte desses contemplados com nomes de origem
tupi, como no caso de Abilio, que recebeu o título de barão de Macahubas67. O recebimento
desse exótico e tropical nome está longe de ser um privilégio somente do nosso barão e também
do período da concessão de seu título. Após a independência de 1822 ocorreu um grande
sentimento lusófobo nativista, conhecido como tupinização que levou muitos senhores a
mudarem seus nomes de família para nomes indígenas. Freyre (1996) citou exemplos como o da
família Galvão em Pernambuco, que adotou “Capapeba” como sobrenome, e do visconde de
Jequitinhonha que transformou o nome português para “Francisco Gê Acaiba de Montezuma” ,
além de D. Pedro I, que recebeu o nome de “Gautimozím” quando entrou para a maçonaria. Para
Alencastro (1997), os nomes indígenas de origem asteca exerciam fascínio sobre a elite brasileira
pelo fato destes serem considerados índios ‘mais civilizados’.
Os exóticos nomes se confirmaram nos títulos de nobreza concedidos por Pedro I,
contudo, no governo de Pedro II, a moda estava mais enraizada e seguia as tendências dos

66
Freyre (op. cit.) denominou como "barões de tamancos” os caixeiros que enriquecidos em tavernas, pois, ao serem agraciados
com o título, trocavam os tamancos de português por botas de montaria, integrando-se ao quadro dos “grandes” do Império pela
mobilidade dos títulos recebidos e morrendo tão ostensivamente nobres como os senhores de terras.
67
Palavra que, em tupi, designa ‘planta da família de leguminosas’, uma madeira vermelha preciosa de grande estima ondeada de
preto que, depois de polida, se assemelha a uma tartaruga.
70

romances da Academia do IHGB. A voga indianista divulgada nos romances de José de Alencar
e Gonçalves Dias reforçava a inovação dos nomes concedidos pelo Imperador, sob o verniz
exótico dos trópicos. Mesmo que não fosse do agrado do novo nobre, este teria que ostentar
nomes de difícil compreensão, sobretudo para o refinado mundo das Cortes européias que não se
acostumavam com nomes como Quixeramobim, de Itaqueri, de Solimões e outros.
Os nomes de origem tupi foram privilegiados também para indicar a posição geográfica
do agraciado, ou seja, para particularizar sua região ou propriedade. Foi o caso de Francisco
Vicente Viana, o primeiro presidente da Província da Bahia, que recebeu o título de barão do Rio
das Contas, cidade onde Abilio nasceu. Portanto, como já havia um barão no lugar, nosso autor
recebeu o nome de Macahubas, uma cidade Baiana na mesma região de Rio de Contas. Outros
exemplos se repetem como do Itaquatiá, de Iguape, de Maranguape etc. O imperador seguia as
prerrogativas da nobreza européia em seu Império americano, porém inseria a concessão de
títulos nos moldes da quente, úmida e exótica Corte tropical68.
Como já ressaltamos, a maior parte dos privilegiados era composta por fazendeiros,
pessoas ligadas a atividades econômicas consideradas produtivas. Em seguida, vinham os
ocupantes de cargos públicos, comerciantes e negociantes e, posteriormente, a categoria na qual
Abilio estava inserido: a dos professores, intelectuais, médicos, diplomatas, banqueiros,
sacerdotes e outros.69 O baronato era a marca registrada, sobretudo, dos cafeicultores do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, embora a elite carioca tivesse a preferência de Pedro II. Para
ser agraciado com o título, Abilio, que era baiano e não era proprietário rural, além de ter que
esperar um bom tempo, ainda teve que comprovar seu merecimento. Notamos esse fato pela
correspondência trocada com o barão da Vila da Barra, que propôs o título nobiliárquico para
Abilio em novembro de 1876:

Amigo Velho.
Nessa data officio ao Ministro do Imperio fazendo ver o offerecimento que V. fez às Escolas de Minas, e
pedindo para que se lembre de agracial-o com algum titulo; independente da correspondencia official,
escrevo particularmente ao mesmo nesse sentido, dizendo que já é tempo de recompensar os sacrificios
68
Como era raro os nomeados com o próprio sobrenome, alguns demonstravam seu descontentamentos com o nome exótico e
alteravam para o sobrenome quando recebiam uma patente mais alta. É o caso de Francisco de Cunha Bueno, o barão de Itaqueri
que, quando recebeu a titularidade de visconde, alterou para visconde de Cunha Bueno. Também os nomes eram relacionados a
uma batalha, como o do barão da Laguna e barão do Amazonas, título concedido pela vitória na Guerra do Paraguai, a bordo da
fragata Amazonas (SCHWARCS, op. cit.).
69
Schwarcz (Ibid, p.173) ressaltou que essa classificação não era simples. Muitos titulares acumularam atividades diversas: eram
freqüentes os fazendeiros com atribuições militares e/ou cargos públicos e/ou parlamentares. Há ainda casos em que se ignorava a
ocupação dos agraciados, pessoas de biografia obscura, cujos motivos para receber a honrosa distinção eram desconhecidos.
71

seos pela Instrucção Publica, que tem servido de pretexto para agraciar a tantos que não estão no seu caso.
Vamos ver se consigo alguma cousa.
Muitas lembranças as Primas e aos Primos.
Disponha do seo amigo sincero.
Barão da Villa da Barra. (Apud RIGHBA, op. cit., p. 377)

Provavelmente, houve outra correspondência do mesmo barão solicitando a


documentação necessária para assegurar o título, que não sabemos se era de barão ou outra
patente. Em janeiro de 1877, Abilio respondeu ao primo barão:

Meu caro amigo.


Recebi os documentos que V. havia me pedido. Quanto ao memorial não me presto a escrevel-o, que com a
apresentação delle equivaleria a um requerimentode graça, e como nunca fiz, nem farei jamais. Entendo
que honras solicitadas não honram, porque a solicitação já é uma prova de pouco merecimento.Certamente
V. não seria titular se lhe houvessem pedido um memorial: eu penso do mesmo modo. Ora os serviços ou
são patentes e relevantes e a remuneração deve ser expontanea; ou não o são, e um memorial jamais os
fara taes. O que lhe peço encarecidamente é que convença o Sr. José Bento de que não partiu de mim a
lembrança que V. teve de me alcançar um titulo, o qual entretanto se está dando constantemente a tantos
outros, que nem serviços têm, nem apresentam memoriais.
Abilio. (Ibid. p.378).

Como podemos notar, Abilio precisava justificar, através de uma tese, o ‘merecimento’
dessa titulação. Entretanto notamos pela correspondência que ele não foi conivente com a
proposta de apresentar essa ‘prova’, por achar que não estava sendo valorizado pelo seu
desempenho na instrução. A crítica expressa por Abilio e dirigida ‘aos outros’ que recebiam
títulos sem merecimento é corroborada pelo seu patrício, Dr. José Carlos Mariani, que publicou,
em 1875, um relatório biográfico sobre ele. Nesse relatório, Mariani ressaltou a ingratidão do
Império para com Abilio, argumentando que, mesmo com toda sua “caridade”, o benfeitor da
infância ainda não tinha sido valorizado conforme as normas da época:

Tendo servido o seu paiz melhor, sem duvida, do que alguns ministros, que se têm distinguido unicamente
deixando a sua honra e a sua fortuna compromettidas, é de admirar que até hoje o Dr. Abilio não tenha sido
feito Barão ou Visconde. A differença que existe é que estes personagens têm mandado fazer algumas
biographias de encommenda, os cobrindo de elogios quando a execração publica os acompanhará até o
tumulo: e o Dr. Abilio encontra em um órgão da opinião publica, um juízo imparcial, que espontaneamente
faz justiça á seu mérito e proclama bem alto na imprensa dos Estados Unidos e da Europa (Ibid, p.68).

A amizade e a relação próxima com Pedro II igualmente não serviram como critério para
que Abilio fosse agraciado com um título. Isso nos indica que doar título para alguém da
instrução não parecia ser algo relevante, ou seja, a ‘generosidade’ de Pedro II para com os
72

proprietários da terra não se estendia a pessoas da elite que atuavam na instrução, pois não
identificamos em nossas leituras a distribuição de títulos para quem se destacava nessa área. Da
mesma forma, pertencer a uma família de elite com portadores de títulos, ou seja, ser primo do
barão de Vila da Barra e casado com a sobrinha do barão de Cotegipe, não garantiu a Abilio o
acesso fácil ao baronato. De acordo com Carvalho (2002), no Império, havia situações em que,
apesar da riqueza, do poder e da ostentação, a solicitação não era atendida.
Abilio só recebeu o título de barão em junho de 1881 (titularidade estendida para sua
esposa a ‘baronesa de Macaúbas’), quatro anos depois da solicitação feita pelo barão de Vila da
Barra. Além disso, não o recebeu pela Bahia e, sim, por Minas Gerais. Fazemos aqui uma
ressalva, pois foi no ano de 1871 que o barão da Vila de Barra, médico, natural da mesma cidade
baiana em que Abilio atuou na década de cinqüenta, enviou-lhe a carta, indicando seu nome para
receber o título em função de seus serviços prestados à ‘instrução mineira’. Ora, nesse período,
Abilio atuava como diretor, no Rio de Janeiro, em seu Colégio Abilio, e a única pista que temos
dos serviços que prestou para a instrução mineira foi a doação de 8.000 exemplares de seus livros
enviados a essa província, como ele mesmo definiu, em circular enviada, em 1876, para o
Inspetor da Instrução de Minas Gerais, Dr. Leônidas Marcondes (Apud RIGHBA, op. cit.).
No período de 1875-1876, o barão de Vila da Barra, que já tinha sido médico da câmara
imperial e mantinha estreita relação com o Imperador, era o presidente da Província de Minas e o
título de barão foi concedido a Abilio no mesmo ano que ele se mudou para Barbacena, a fim de
lá fundar seu Colégio Abilio de Barbacena, em junho de 1881. Ou seja, pode ter havido uma
articulação do ex-presidente da Província para a mudança de Abilio para Minas Gerais,
favorecendo, assim, o recebimento do título por ele. Ao cruzarmos as teias da história, notamos
esta pista que pode ter influenciado a mudança de Abilio para Barbacena.
O processo de solicitação de um título exigia um bom tempo de espera, pois,
primeiramente, era enviado pela Secretaria do Império para ser submetido e apreciado pelo
ministro ou pelo conselho, embora a palavra final fosse do Imperador. Além de ter que esperar
pelo título de barão, Abilio, com certeza, teve que despender uma boa quantia, já que os tributos
para sua obtenção eram altos. As chamadas “cartas de mercês” para títulos de tratamento eram
pagas de acordo com a hierarquia do título, porém não custavam pouco. Pelo título de barão,
Abilio pagou o valor de 750$000 (setecentos e cinqüenta mil-réis) e, para obter o complemento
“com grandeza”, teve que investir o valor de 1:575$000 (um conto e quinhentos e setenta e cinco
73

mil-réis)70. Sem contar os gastos adicionais com os papéis e tramitações que também não eram
suaves71.
A princípio, Abilio recebeu um título de ‘barão sem grandeza’, sendo que, no ano seguinte
(em junho de 1882), o governo imperial alterou sua patente para ‘barão com grandeza’,
recompensando-o pela sua ativa participação no Congresso Pedagógico Internacional de Buenos
Aires, como delegado oficial do Império brasileiro. A dinastia dos Bragança seguia a tradição
espanhola, na qual os barões e viscondes subdividiam-se em s novas qualificações: ‘com
grandeza’ e ‘sem grandeza’.
Outro fator interessante a ser pontuado está relacionado ao período em que Abilio recebeu
o título, o qual coincide com uma fase de pouca popularidade de Pedro II, período em que a
maior parte dos títulos era doado. Na implementação das leis abolicionistas (1871, 1885, 1888),
da mesma forma que crescia substancialmente o número de adeptos ao republicanismo,
visivelmente aumentava o número de títulos de barão concedidos. Esse fato indica uma
manipulação política dos mesmos, ou seja, uma forma de Pedro II cooptar ou compensar os
fazendeiros, aproximando-os da monarquia, na tentativa de pagar-lhes em símbolo de status o que
tirava deles em interesse material72.
Realizar viagens para a Europa era um outro critério de prestígio que pode ter contribuído
para a integração de Abilio ao baronato, particularmente, suas viagens para a França, país
considerado modelo da nobreza da terra para alcançar o ideal de civilização e da modernidade.
Como já ressaltamos, a França exercia sobre a intelectualidade brasileira do século XIX uma
imensa atração como capital cultural. A exemplo disso, dizia Pedro II: “A França é o país da
minha inteligência, a outra (o Brasil) é a de coração e de nascimento”. Essa frase definia bem o
modelo intelectual e estético da França, que servia como critério para se alcançar uma
titularidade, o qual foi cumprido por Abilio, que já havia realizado viagens para a França.

70
Um mil-réis (1$000), no ano de 1875, valia 1,05 dólares; um conto de réis, (1:000$000), no mesmo ano valia 550 dólares
(SILVA, 1997).
71
Se os critérios para a escolha dos titulados não eram tão evidentes, os preços eram. Havia uma tabela com valores bem
definidos. De acordo com Schwarcs (Ibid., p.172), as mercês honoríficas, no período imperial, eram assim classificadas 1. Títulos
de duque, marquês, conde, visconde e barão; 2. Título de Conselho e os tratamentos de Excelência e Senhoria, quando não anexos
a emprego ou graduação; 3. Empregos da Casa Imperial: maiores ou menores; 4. Condecorações de várias ordens do Império; 5.
Graduações militares honorárias.
72
Segundo Carvalho (1996, p.238): “Enquanto 51 títulos foram distribuídos no qüinqüênio 1860/64, entre 1870/74, o número
subia para 120. No último qüinqüênio do Império foram concedidos 238 títulos de barão, 173 dos quais em 1888 e 1889”.
74

No Brasil, não se era nobre de berço e nem para sempre, fato que não escapou do olhar da
alemã Ina Von Binzer73, ao definir a ‘aristocracia’ brasileira, em 1882:

A aristocracia desse país é originalíssima, fazendo parte dela gente que emigrou de Portugal para trabalhar
no campo e chegou aqui de pés descalços! Mas os barões, marqueses e viscondes da fábrica de D. Pedro
representam uma boa rendazinha para o Estado. Pena é que o marquesado adquirido por preço elevadíssimo
seja enterrado com seu feliz comprador. D. Pedro não confia no seu zé-povinho de sangue esquentado; o pai
é barão, mas o filho será talvez um revoltoso, de maneira que não se concede a hereditariedade. Mas dessa
forma, que benefícios trará ao país essa aristocracia? É muito raro, e somente com licença especial do
Imperador, quando deseja verdadeiramente distinguir alguém, obter-se permissão para juntar-se um “de”, ou
simplesmente o título ao sobrenome do contemplado; caso contrário, esses títulos referem-se quase sempre
ao nome de uma região. A maior parte é tirada da antiga língua guarani, dos indígenas, designando ainda
inúmeros lugares do Brasil (2004, p.107).

Binzer refletiu de forma irônica sobre como essa prática se dava no Brasil, contudo seu
parecer da alemã traduz parte desse período tão peculiar na história do Brasil. Os titulares
tropicais eram circunstanciais, como bem definiu Schwarcs, e a concessão não significava
somente um expediente ‘honorífico’, mas, sim, um verdadeiro ‘toma-lá-dá-cá’. Desta forma, uma
outra estratégia adotada por Pedro II era a de doar títulos para pessoas em idade avançada, pois,
assim, o uso seria breve. Foi o caso de Abilio que, apesar de ser conhecido na história como
‘barão de Macahubas’, desfrutou do prestígio dessa titularidade por cerca de uma década
somente. Começou a ser barão em 1881 e terminou em janeiro de 1901, quando veio a falecer.
Mesmo que não tivesse morrido, ainda assim seria curta sua vida de barão, pois um dos primeiros
atos da República, em 1891, foi abolir todos os títulos honoríficos, já que sua continuidade
simbolizava a sobrevivência da Monarquia74.
A titularidade, contudo, permaneceu como sinal de tradição. Abilio não se manteve barão
somente até sua morte, até hoje é identificado como tal, numa demonstração de que a nobreza nos
‘tristes trópicos’ não era tão passageira assim. Interessante observar que, até na década de 70 (do
século XX), a cédula de mil cruzeiros ainda trazia, contraditoriamente, a figura de um barão, um
símbolo forte do Império, ao lado de um marechal (Floriano), o símbolo da República.

73
Von Binzer foi uma preceptora alemã que veio ao Brasil no ano de 1881 e aqui permaneceu até o início de 1883. Nesse período,
escreveu cartas para sua prima Grete, na Alemanha, retratando suas impressões de estrangeira sobre o cotidiano do Império. Suas
cartas foram publicadas na obra: Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil (Paz e Terra: 2004).
74
Sobre isso, Schwarcs relatou um ato falho de Floriano Peixoto que, ao enviar correspondência a Rio Branco, informando-o
sobre essa medida, teria endereçado o envelope ao “Barão do Rio Branco” e este teria respondido com um ciente e ironicamente
assinado “Barão do Rio Branco”. O outro deslize se refere aos nobres que assinaram como titulares a Constituição de 1891.
Outros mantiveram o nome do título incorporando ao nome de nascimento, como o próprio Rio Branco, que passou a se chamar
José Maria da Alves Paranhos do Rio Branco, mantendo, assim, o prestígio e autoridade do passado.
75

Concluímos essa parte com a bem humorada frase de Carlos Drummond de Andrade em relação a
esta cédula: “Venham consumir seus barões e seus florianos”.
A partir dos dados deste capítulo em que apresentamos uma parte da trajetória de Abilio
Cesar Borges para o leitor, pudemos esboçar um pequeno quadro em que está organizado a
cronologia da vida daquele que escolhemos para investigar. É notável que Abilio tenha sido um
homem do seu tempo, um ‘bem nascido’ que estava inserido no que havia de mais expressivo no
mundo intelectual da boa sociedade imperial. É fato que, desde muito cedo, mostrou seu interesse
pela instrução e pela infância, dedicando-se à carreira do magistério ao invés da medicina. Além
disso, é inegável sua participação em diferentes instituições que abarcavam uma boa parte dos
homens ‘ilustres’ do período. Sua passagem pelo cargo de Diretor da Instrução, apesar de
aparentemente conturbada, refletiu o que estava circulando no período: insatisfações, denúncias,
críticas e outras demandas relativas à instrução pública nas Províncias.
Ao percorrermos sua trajetória, atentando para seu círculo de relações, compreendemos
que, sem dúvida alguma, era um homem bem relacionado. Não foi, assim, um incompreendido,
muito ao contrário, era um reconhecido, pois, diante de sua atuação em atividades intelectuais e
filantrópicas, construiu seu nome que, independente das críticas, ficou registrado na história da
educação brasileira. Abilio, independente de ser polêmico, vaidoso, representante da elite, foi um
homem que iniciou sua vida no campo da instrução e, com todas as ressalvas típicas de sua
época, se posicionou a favor da instrução. E foram justamente suas idéias a respeito da infância
escolar neste período histórico que nos motivaram a eleger este personagem como objeto de
nosso estudo.
Quadro 1 Trajetória resumida da vida de Abilio Cesar Borges

Ano Atividade Local Outros

1824 Nasce Abilio Cesar Borges Vila de Minas do Rio de Estuda as Primeiras letras nesta mesma
Contas/Bahia. vila.
1838 Inicia os preparatórios no Colégio Salvador/BA Conclui em dois anos o curso de
Conceição. preparatórios.
1840 Retorna para sua cidade natal por Minas do Rio de Contas Fica um ano se recuperando.
questão de saúde
1841 Ingressa na Faculdade de Medicina da Salvador Recebe distinção no 4º ano e laude no 3o,
Bahia. 5o e 6o anos.
1841 Atua, paralelamente aos seus estudos Salvador Permanece durante quatro anos ministrando
na Faculdade, como professor no seu diferentes matérias.
antigo Colégio Conceição.
1845 Funda o Instituto Literário da Bahia. Bahia Foi presidente do órgão aos 24 anos
1846 Transfere o curso para Faculdade de Rio de Janeiro Concluiu o curso em 1847.
Medicinal do Rio de Janeiro
76

1846 Membro fundador da Academia Rio de Janeiro Foi 1o Secretário ao lado do presidente
Philomatica. visconde de Caravellas e do vice, barão de
Santo Ângelo.
1847 Associa-se como membro na Imperial Rio de Janeiro Integra, ao mesmo tempo, outras entidades
Sociedade Amante da Instrução, filantrópicas e intelectuais.
Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e Conservatório Dramático
Brasileiro.
1847/1 Atua como médico e cirurgião. Casa- Vila da Barra - Bahia Exerce a profissão de médico por cerca de
855 se com Dona Francisca Wanderley. Zona de São Francisco. 10 anos.
1853 Funda o Atheneo Barrense, um Vila da Barra do Rio Além de médico, era vereador e presidente
1850 colégio para meninos. Grande da câmara nessa Vila.
1856 Assume o cargo de Diretor da Salvador Fica no cargo de 1856 a 1857
Instrução Pública da Bahia.
1858 Funda o Ginásio Bahiano Salvador
1859 Recebe a visita do Imperador Pedro II Salvador Foi a 1a escola baiana a receber uma visita
no Ginásio Bahiano do Imperador.
1860 Filia-se a Anti-Slavery Society de Integra outras sociedades abolicionistas
Londres. neste período.
1865 Financia uma companhia com seus Salvador A companhia formada pelos funcionários
recursos para lutar pela pátria na do seu Ginásio Baiano integrou o Corpo de
Guerra do Paraguai. Voluntários ‘Zuavos baianos.’
1866 Viaja para a Inglaterra, Itália e França. Europa Publica, da França, seus dois primeiros
livros de leitura e os discursos proferidos
no Ginásio.
1870 Viaja para a França, Itália e Bélgica. Europa Tratamento de saúde e nova edição dos
livros de leitura. Retorna em 1871
1870 Encontra o papa Pio IX, em Roma. Europa Solicita ao papa que interfira no sentido de
acabar a escravidão no Império.
1870 Funda o Colégio Abilio da Corte. Rio de Janeiro Dirige o Colégio até 1880.
1872 Membro do Conselho Diretor da Rio de Janeiro Ocupou o cargo até 1877.
Instrução Primária e Secundária no
Município Neutro.
Publica novas edições de seus livros e
1879 Viaja novamente para a França, Europa permanece cerca de um ano neste
Bélgica e Ingalterra. continente.
1879 Recebe o grau de Comendador de São Roma Título dado pelo Papa Pio IX em Roma.
Gregório Magno de Roma.
1880 Recebe Comenda da Imperial Ordem Brasil Prêmio conferido por Pedro II, pela atuação
da Rosa. na instrução.
1881 Funda o Colégio Abilio de Barbacena. Minas Gerais Dirige o Colégio até 1888.
1881 Recebe o título de barão de Minas Gerais Titulo dado pelo Imperador em
Macahubas. reconhecimento pela atuação na instrução.
1882 Participa do Congresso Pedagógico Buenos Aires É o delegado oficial do Império brasileiro.
Internacional de Buenos Aires.
1882 Recebe o complemento do título de Rio de Janeiro Devido a sua participação no Congresso em
barão “com grandeza”. Buenos Aires.
1883 Participação na Exposição Pedagógica Rio de Janeiro Recebeu prêmios pelos aparelhhos e livros
do Rio de Janeiro como expositor escolares.
1883 Reassume o Colégio Abilio da Corte Rio de Janeiro Dirige o colégio até dois anos antes de
em parceria com seu filho. morrer.
1889 Participa da Exposição Universal de Paris/França Recebe várias medalhas.
Paris.
1891 Morre com 66 anos. Rio de Janeiro Foi vitimado por uma síncope cardíaca
Capítulo II
Instruindo e educando a infância do ensino primário: os pupilos do senhor diretor

Menino só endireita no colégio


(J. L. Rego)

Neste capítulo, abordaremos a educação e a instrução primária da infância, de acordo com


os princípios defendidos e postos em prática por Abilio Cesar Borges. Trataremos dos aspectos
físicos e materiais de seus colégios, desenvolvimento infantil, papel dos professores, métodos e
disciplinas propostas (ciências e religião), premiações e punições morais entre outras. Partimos
de sua prática, assim como de seus discursos, para confrontá-los com o pensamento pedagógico
do ensino oficial que circulava no período. Muitas de suas sugestões eram dirigidas para a
infância em geral, no entanto, diante da realidade do ensino primário no Brasil, uma boa parte
destas sugestões ficava restrita aos muros de seus colégios, direcionados aos filhos da elite, que
se beneficiavam de um ensino diferenciado e de qualidade.
A importância da instrução e da escola era enfatizada com veemência por Abilio que,
antes mesmo de iniciar sua trajetória como diretor de estabelecimentos privados, já defendia o
espaço escolar, não somente para fornecer um diploma, mas, sobretudo, para formar homens de
bem ou o gentleman, protótipos de uma sociedade de ordem. Educar e instruir era o duplo
objetivo do colégio, sendo que o primeiro se daria pelo contato com os colegas, com os mestres e
com as regras bem estabelecidas, e o segundo com a aprendizagem das ciências. Aliados,
definitivamente, resultariam em homens educados e instruídos, de acordo com os valores da
sociedade que se desejava construir.
Apesar de não defender de forma explícita a instrução pública, obrigatória e gratuita,
como pudemos averiguar, Abilio não deixou de se pronunciar a favor da melhoria do ensino
primário. Mesmo sendo um monarquista convicto, alertava que, independente do regime de
governo, não haveria democracia sem investimento na instrução. Reconhecia que o ‘atraso’ na
instrução popular (ensino primário) não se limitava somente ao Império brasileiro, pois outros
países da Europa, além dos Estados Unidos, apesar do investimento incessante nesta modalidade
de ensino, almejavam um ensino melhor.
O estado desanimador da instrução pública no Império, no decorrer do século XIX, estava
posto nos diagnósticos de diferentes profissionais, intelectuais e espíritos esclarecidos,
78

independentemente da confissão política e de credo religioso. Era unânime a afirmação de que o


ensino, sobretudo o primário, era precário e, muitas vezes, inexistente. A tese de que a instrução
primária no século XIX se confinou entre a desastrada política pombalina e o florescimento da
educação na era republicana provém, para Faria Filho (2000), sobretudo, da obra Cultura
Brasileira de Fernando Azevedo e ainda não foi superada.
A abordagem que coloca este período como a nossa ‘idade das trevas’, apontando um
mundo onde as idéias estão, continuamente, fora de lugar, é contestada pelo autor, que recorreu a
recentes estudos, particularmente no período imperial, para demonstrar que havia, em várias
Províncias, uma intensa discussão acerca da necessidade de escolarização da população,
sobretudo das chamadas ‘camadas inferiores da sociedade’. Diversas leis provinciais, ainda na
década de 30 do século XIX, tornavam obrigatória, dentro de certos e sempre amplos limites, a
freqüência da população livre à escola. Além do que os precários dados estatísticos deixaram de
fora um significativo número de redes de escolas públicas, privadas e domésticas.
Sem dúvida, neste período, afirmou-se nos discursos uma maior preocupação com este
ensino, pois era fundamental o papel da instrução na elevação do nível intelectual e moral da
nação. O poder redentor da educação era um poderoso instrumento de regeneração e o Estado era
criticado, pois sua falta de atenção para com o ensino era apontada como causa principal da
ignorância a que o povo estava submetido. A instrução era desejável, tanto para os ‘novos
liberais’ (década de setenta) quanto para os ‘antigos’. A diferença era que, enquanto os antigos
associavam instrução à ‘civilização’ do povo, tentando incutir-lhes padrões de civilidade, os
modernos liberais entendiam que instrução e ‘progresso’ agregavam conceitos como utilidade,
produtividade e desenvolvimento, conforme apontou Vilella (In: STEPHANOU; BASTOS,
2005).
A necessidade da escolarização para se atingir um patamar de país civilizado estava posta
nos discursos oficiais e não oficiais, embora fosse consenso também que havia limites para a
extensão desta mesma instrução para a maioria da população. Desde os limites políticos e
culturais de uma sociedade escravista, assim como, o baixo investimento das Províncias nesse
setor, conforme encontramos registrado em vários documentos.
Abilio, que era atuante nos debates sobre a importância desta instrução, ao mesmo tempo
em que se posicionava como um crítico do Estado, cobrando investimento para o ensino, se
dedicava aos seus colégios, nos quais eram admitidas crianças e jovens provindos de classe alta.
79

Semelhantemente a outros intelectuais, procurou colocar em prática, em seus colégios, as


melhores idéias de que tomara conhecimento enquanto Diretor de Instrução, porque acreditava
que, se o Estado não cumpria com sua função, a iniciativa privada deveria ocupar este espaço
com a competência que a elite lhe atribuía.
Para sustentar seus discursos e propostas referentes a este nível de ensino, o autor
recorreu a vários autores, pois, como já ressaltamos, havia sido influenciado pelo ensino da
retórica das humanidades que marcou profundamente suas obras e seus discursos eruditos e bem
compostos, pronunciados em ocasião de solenidades e conferências76. A citação de nomes de
‘ilustrados’ que reafirmava suas propostas era um elemento essencial para demonstrar erudição e
conhecimento, evidenciando, assim, que suas idéias encontravam-se respaldadas por
‘assumidades’ e por ‘autoridades’ no assunto. Dificilmente alguém questionaria as ‘verdades’
declaradas pelos filósofos da Antigüidade ou por experientes educadores franceses.
Dois autores constantemente citados, desde a década de cinqüenta do século XIX, foram
os franceses Théry77 (1796-1878) e Barrau78 (1794-1865). Monsieur Barrau produziu obras para
alunos, professores e pais de famílias, tratando de temas de moral religiosa e moral aplicada à
ciência da educação. Seus livros, compostos de pequenos textos e historietas moralistas,
incluíam temas como os deveres das crianças para com Deus, pais, os próximos e a elas
mesmas79. As obras de M. Théry inspiraram Abilio, sobretudo nos modelos de discursos para
distribuir prêmios e recompensas80.

76
Reconhecendo a importância da eloqüência, Abilio, em sua obra Collecção de Discursos Proferidos no Gymnasio
Bahiano, dedicada ‘Aos pais de familia brasileiros’, justificou que a obra era recomendável não apenas pela beleza
de estilo, ou por galas de eloqüência, mas pela utilidade dos discursos na educação dos filhos, pois ali constavam
‘importantes verdades’, que não eram ditas comumente, além de numerosos conselhos e advertências, considerados
úteis para a educação dos filhos (1866c, p.01).
77
O francês Augustin-François Théry foi autor de obras de educação e ensino, professor secundário e administrador,
membro de várias sociedades do saber e publicou obras para o ensino secundário e colégios. (DEFONDON, In :
BUISSON, 1887: p. 2877-2878 tome II).
78
Literário e publicista francês, Théodore-Henri Barrau foi professor de retórica, diretor de colégios secundários,
incentivador da escola normal. Autor de relatórios sobre a educação de jovens, inspetor da instrução primária, redator
do Manuel général de l"instruction primaire; compôs numerosas obras e reconhecido pelos serviços dedicados a
instrução popular (DEFONDON, op. cit., :p.173, Tome I).
79
As obras de M. Barrau onde encontramos as passagens que Abilio citou foram: Des devoirs des enfants envers
leurs parents (1837); Morceaux choisis des auteurs français a l’usage des écoles normalles primaires – des
instituteurs et des institutrices. (1862); Choix gradué de 50 sortes d’ecritures pour exercer les enfants à la lecture
des manuscrits. (1853); Exercices de composition et de style ou sujets de descriptions, de narrations de dialogues et
de discours. (1861); De l’Éducation dans la famille et au collège. (1852); Exercices de composition et de style ou
sujets des descriptions, de narrations de dialogues et de discours (1881).
80
As obras mais utilizadas, das quais Abilio copiou uma boa parte de seus discursos foram: Modèles de discours et
allocutions pour les distribuitions de prix dans les lycées, colléges et autres établissement d’instruction secondaire
80

As obras destes autores, que recorriam a filósofos gregos e romanos, civilizações antigas
para abordar a relação da criança com a escola e a família, destacando a música, a ginástica e
outros elementos, baseavam-se na importância e na missão geral da educação. Procuravam
conciliar a educação da Antigüidade com a ‘moderna’, introduzindo e reforçando a importância
da educação religiosa, responsável pelos primeiros fundamentos da moral dado à criança. Para
eles, a escola tinha por função formar um bom coração na criança, que deveria ter como
referência os ensinamentos morais cristãos.
Abilio não recorria a uma metodologia específica para citar os autores e, sim, uma mistura
de autores da Antigüidade, do século XVI e de seus contemporâneos do século XIX. Seguindo os
princípios de Barrau e Théry, Abilio lançava mão de filósofos como Sêneca, Quintiliano,
Aristóteles, Terêncio, Platão, Catão, Paulo Emílio, Aristipo, Horácio e Plutarco, juntamente com
Pestalozzi, Daguesseau, Rollin, Locke, Gauthey, Lemare, Fenélon81, Castilho etc. De forma
menos freqüente, recorria a Antônio Vieira, Victor Cousin82, M Guizot, Pierre-Alexandre
Lemare83, Joseph Jacotot84 e outros.
De acordo com ‘a necessidade’, Abilio buscava o apoio dos autores citados para reforçar
suas idéias a respeito de punições morais, supressão de castigos corporais, e também para
despertar a honra no menino, enfatizar a importância do sábio na instrução da infância, defender
o ensino amorável e adequado, disciplinar a criança com base no amor sincero da virtude,
destacar a importância da família na educação dos meninos etc.
A partir da década de oitenta do século XIX, entraram em cena outros autores, além dos já
citados. Neste período, a política educacional do ensino primário dos Estados Unidos influenciou

(1852); Modèles de discours et allocutions pour les distribuitions de prix dans les écoles primaires des deux sexes
(1854).
81
Francês de origem nobre, François-de-Salinac de la Mothe-Fénelon (1651-1715) pertencia à Igreja, tendo sido
diretor de uma congregação feminina, cujo objetivo era converter as mulheres huguenotes ao catolicismo. Compôs,
em 1687, um Tratado sobre a educação das meninas e outras obras pedagógicas como Fábulas, Aventuras de
Telêmaco (obra adotada nos colégios de Abilio) e Diálogos dos mortos, que dedicou ao duque de Borgonha,
sobrinho de Luis XIV, de quem foi preceptor (CAMBI 1999, p. 296)
82
Escritor, filósofo e defensor do ensino público, teve uma participação ativa na sociedade francesa (Conselho do
Estado), publicando livros e traduzindo as obras completas de Platão, Aristóteles, Abelardo e Descartes. Foi ministro
da instrução pública e contribuiu com Guizot na implementação da lei de 1833 sobre a gratuidade e a obrigação o
ensino primário. Incentivou a liberdade de ensino, mostrando-se favorável às escolas eclesiásticas (JOURDAN, In:
BUISSON, op. cit., p.606-605 Tome I).
83
Médico e físico publicou obras de gramática e métodos de leitura no século XVIII. Publicou (1704) um curso
prático da língua latina, consistindo seu método em ensinar para a criança a língua maternal acompanhada de um
gesto explicativo para esta o associasse à palavra (Ibid, p. 1565, Tome II).
81

os discursos de Abilio, assim como de outros educadores brasileiros. Portanto Abilio recorrera,
ainda que de forma pontual, à teoria de Spencer, para enfatizar o desenvolvimento infantil e a
felicidade como estímulo para a instrução.
Valia-se também, Horácio Mann85 como referência da valorização do ensino primário e
oposição aos castigos corporais e, ainda, dos relatórios de Celéstin Hippeau86 para enfatizar o
ensino primário concreto. Apesar de recorrer aos homens das ciências, também utilizou, de forma
generalizada, durante toda sua trajetória, princípios religiosos, destacando a prática de parábolas
bíblicas que ressaltavam Jesus Cristo, ‘o mestre dos mestres’, nas quais se encontravam
ensinamentos de como educar e instruir a infância.
Esta pluralidade de autores, que incluía elementos da pedagogia da Paidéia grega,
modelos educativos romanos e também da educação cristã, além das idéias difundidas na Idade
Moderna pela pedagogia dos humanistas, burgueses e iluministas, somada aos saberes
pedagógicos da época Contemporânea, com os princípios da pedagogia romântica, científica,
experimental e outras, sem dúvida, provinha de sua formação baseada na retórica.
Abilio citava o autor que melhor se adaptasse a suas idéias, não sendo adepto de nenhum
especificamente, pois recorrer aos autores clássicos e respeitados era para reforçar suas propostas.
Desta forma, poderia não concordar com a pedagogia de educação infantil, nem com o
protestantismo de Froebel e Pestalozzi, podendo, no entanto, recorrer às suas propostas
pedagógicas para enfatizar o ensino amorável.
Mesmo que tivesse uma formação filosófica profunda, não demonstrava isso em seus
discursos, assim como não se dispunha a fazer especulações ousadas, pois não transcrevia as

84
Foi diretor de estudos na França do século XIX e criou um método de ensino (1818) conhecido como Ensino
Universal, que consistia em fazer com que a criança associasse um livro a fatos, idéias e palavras contidas neste
livro, fazendo, assim, todas as combinações possíveis (PEREZ, In: BUISSON, op. cit., p.1399 Tome II).
85
Um dos promotores da educação popular dos Estados Unidos da América foi membro do Senado norte-americano,
tendo se posicionado favoravelmente à liberdade religiosa. Ocupou cargos da instrução pública dos EUA, no quais
defendeu o ensino primário (1837/1848). Fez, também, diversas conferências, além de ter publicado jornais e
tratados sobre a educação. Viajou para a Europa, em 1843, e publicou resumos sobre a educação em países onde esta
era avançada. Publicou livros sobre arquitetura escolar, bibliotecas escolares, método sintético, leitura, higiene
escolar etc. Se posicionou firmemente contra as punições nas escolas, aconselhando mães e mestres a recorrerem as
punições morais, condenando punições físicas. Para ele, o objetivo principal da escola era moralizar as crianças,
inculcando-lhes sentimentos naturais de confiança e de respeito (BUISSON, op. cit., p.1811 Tome II)
86
Segundo Bastos (2002), uma boa parte dos escritos de C. Hippeau resultou de suas viagens realizadas, nas décadas
de cinqüenta e sessenta do século XIX, com a função de observar e analisar a situação da educação em diversos
países. Seus livros resultaram tanto de pesquisas em documentos oficiais e relatórios, quanto de observação direta
sobre a instrução pública nos EUA e em outros países. Seus relatórios foram amplamente utilizados por intelectuais
brasileiros na segunda metade do século XIX, seja através da obra original, em francês, ou de traduções.
82

idéias mais complexas dos filósofos, apenas transmitia as mensagens destes conforme suas
convicções.
Suas reflexões, enfim, se apoiavam em análises superficiais que propunham contribuir
com a instrução. Os discursos buscavam, no passado, os ensinamentos a serem seguidos no
presente. Este traço apoiado, via de regra, nos ensinamentos dispostos em uma longa história da
humanidade, segundo Gondra (2004), marcou também o discurso dos médicos brasileiros com
uma finalidade desdobrável, tanto na demonstração de erudição, como no argumento de
autoridade. Os bons exemplos teriam função pedagógica de ensinar os caminhos a serem
seguidos, de modo que se repetisse o sucesso dos homens bons.

2.1 Diretor e proprietário de estabelecimentos privados: Mens sana in corpore sano87

Transcorrido menos de um ano de sua saída do cargo de Diretor Geral de Instrução


Pública da Bahia, transcorrida em 1857, Abilio iniciou sua trajetória como proprietário e diretor
de colégios privados. A partir da experiência em seus estabelecimentos, implementou o modelo
de instrução que achava ideal, iniciando sua produção de livros escolares e publicando um vasto
material que divulgava suas iniciativas consideradas inovadoras. O fato de ser reconhecido como
o ‘pedagogo do império’, título recebido do Imperador Pedro II, também contribuiu muito para a
divulgação de suas idéias.
Inaugurou em Salvador, em 1858, o Ginásio Baiano e, no ano de 1870, transferiu-se para
o Rio de Janeiro com o Colégio Abilio da Corte, que dirigiu até 1879. Em 1881, criou seu novo
Colégio Abilio na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, dirigindo-o até 1888, quando retornou

87
Máxima de Juvenal, muito utilizada na educação até meados do século XX. Em latim, significa Alma sã em corpo
são, indicando que o verdadeiro sábio só deseja a saúde da alma e do corpo. Porém, para muitos que defendiam a
prática da ginástica e dos exercícios físicos, o sentido era dizer que a saúde do corpo era importante para o espírito
(DUARTE, 1986). Abilio era um usuário de máximas em latim de Juvenal, Sêneca e outros. Era muito comum
apoiar suas idéias em cima destas pequenas frases moralistas, às vezes traduzidas e outras não. As máximas e os bons
conselhos decoravam as paredes de seus colégios, inclusive do refeitório, como apontou o relatório da junta de
higiene. Utilizou as máximas, sobretudo do Marquês de Maricá, em suas obras para os meninos decorarem ou
copiarem inúmeras vezes, nas punições. Neste trabalho, utilizaremos as máximas citadas por Abilio para de ilustrar
os títulos e subtítulos.
83

ao Rio de Janeiro com o Novo Colégio Abilio, inaugurado em parceria com seus filhos que, desde
1883, já dirigiam o estabelecimento88.
Como já ressaltamos, o direito à liberdade de ensino, já consagrado pela chamada
‘ineficiência’ da instrução pública provincial, reforçou a efetivação da iniciativa particular nas
províncias, que se expandiu quantitativamente e qualitativamente, com a crença
institucionalizada de que era a solução para a lacuna deixada pelo poder público. Este, por sua
vez, estimulava esta ‘contribuição’ através de variados acordos com a iniciativa particular, como
subvenções às escolas por serviços prestados ou em troca da educação gratuita de alguns alunos
(bolsistas), incorporação de aulas públicas gratuitas para crianças pobres, contratos etc.
O desenvolvimento do ensino privado foi, paulatinamente, se constituindo e se efetivando
em todas as regiões, sobretudo nas capitais, de forma a oferecer uma ‘opção’ para as famílias. Os
colégios particulares, instalados em prédios próprios, dentro dos parâmetros exigidos, com
professores qualificados e valorização dos preceitos da ‘modernidade’, não atraíram somente os
interessados em estudos fáceis e rápidos. Havia colégios nas províncias que, devido à qualidade
superior de seu ensino, desviaram dos estabelecimentos púbicos os que buscavam melhor
preparação para os cursos superiores. Eram verdadeiros refúgios para a elite ansiosa e desejosa de
uma boa instrução.
Os colégios de Abilio estavam plenamente inseridos neste circuito fechado e privilegiado.
Fato que não passou despercebido do olhar de diferentes autores da história da educação, os
quais, independente das críticas, delegaram um papel importante a esses estabelecimentos, seja
por causa alunos célebres que por ali passaram, pelos métodos renovados, pela disciplina branda
ou pela divulgação incessante, por parte do diretor e de seu grupo, que propagavam os feitos dos
colégios de forma a repercutirem por todo o Império.
O Ginásio Baiano, inaugurado em 185889, a exemplo do Colégio Pedro II, recebeu o
apelido de ‘ninho de águias’, por causa dos alunos ‘ilustres’ que lá completaram seu curso de

88
Antes desse período, Abilio já havia experimentado a prática do magistério, quando ainda atuava como médico, na
Vila da Barra do Rio Grande. Em 1850, viveu sua primeira experiência como diretor de um colégio privado,
denominado Ateneu Barrense, o primeiro estabelecimento de ensino direcionado para o sexo masculino da Vila da
Barra. A segunda experiência, como já ressaltamos, foi no Colégio Conceição, o mesmo em que fizera os
preparatórios e onde permaneceu por cinco anos ensinando várias matérias.
89
Nesse ano, a Bahia não estava voltada somente para a inauguração do Ginásio que abrigaria a elite local. Em
fevereiro, aconteceu uma manifestação violenta, conhecida como “motim da carne sem osso e da farinha sem
caroço”, liderado por mulheres que, recolhidas na Santa Casa de Misericórdia, protestaram pelas ruas contra o preço
da farinha e terminaram por apedrejar o palácio do governo. O Presidente Cansanção de Sinimbu mandou recolher as
mulheres e enviá-las para o convento da Lapa. Esse episódio ficou conhecido também como ‘revolução dos
84

humanidades, e foi abrigado em uma casa grande, com muitos cômodos, em meio a uma área
verde, num local afastado do centro de Salvador90. No ano seguinte, o colégio foi transferido para
a região de Barris, outro espaço salubre em um prédio feito exclusivamente para abrigar um
ambiente de escola.
Ao manifestar preocupação referente à localização do estabelecimento, o médico Abilio
traduzia os preceitos contidos nos discursos médicos do período, pois o afastamento do mundo
urbano, a partir da busca de um ar saudável, foi um critério utilizado na construção de colégio.
Contudo não podemos perder de vista que a Bahia acabava de sair de uma devastação de cólera,
tendo a epidemia exterminado, somente no ano de 1856, quase 30.000 baianos, tragédia que
deixou a Bahia prostrada91, um forte motivo para construir seu Ginásio longe de focos de
infecção. Com esse afastamento, Abilio pretendia, além de proteger seus pupilos contra as
doenças, retirá-los de um mundo de vícios, de paixões e de tentações urbanas, como bem
assinalou no Programa do estabelecimento:

O Ginásio Baiano vai funcionar em edifício situado em uma chácara muito próxima desta cidade, onde os
alunos, por sobre estarem isentos das distrações e desvios a que dá lugar a morada no centro da povoação,
terão dilatados espaço para o conveniente exercício corporal e excelentes banhos (Apud,
ALVES:2000,p.25).

O espaço escolar também era visto como um componente educativo, portanto era preciso
pensar um estabelecimento que assegurasse, ao mesmo tempo, condições de salubridade, tanto do
ambiente físico como do humano. Para tanto, a construção de prédios, preferencialmente, deveria
ocorrer em lugares afastados da cidade, altos, nos arrabaldes e colinas, arejados, bem iluminados.
Critérios, conforme registrou Gondra (2004), sugeridos para a higiênica expansão do espaço
urbano e, conseqüentemente, para a escolarização.

chinelos”, pois, ao fugirem da cavalaria oficial, muitas manifestantes deixaram os chinelos pelas ruas (TAVARES,
op. cit.).
90
O prédio, com acomodação para 200 alunos, localizava-se em frente ao Forte de Barbalho, na ‘Estrada do Jacaré
de Cima’, nome que foi modificado por resolução municipal de outubro de 1921, passando a se chamar ‘Rua Dr.
Abilio Cesar Borges’. Esse edifício pertenceu ao português Antônio Pedroso de Albuquerque, o visconde de
Albuquerque, um dos homens mais ricos do Império, pertencente à primeira linha do partido Conservador. Abilio
conseguiu esse espaço graças ao intermédio de seu ‘padrinho’ João Mauricio Wanderley, do mesmo partido do
visconde.
91
De acordo com Pinho (In: HOLANDA, op. cit., p.310/311), em 1855, a peste desembarcou de um vapor vindo do
Pará e invadiu a Província, entrando pelos lares e matando senhores e escravos.Houve casos de engenhos em que não
sobrou um só escravo. Abnegação e sacrifício conviviam com pavor e egoísmo e muitas autoridades se evadiram,
porém médicos, marinheiros, estudantes, freiras de caridade e outros morreram servindo. Os cemitérios logo ficaram
abarrotados de cadáveres, pois a média diária na Capital era de cem mortos.
85

O prédio do Ginásio foi pensado por seu diretor para uso exclusivamente escolar. Espaços
separados foram definidos para abrigar seus discípulos por série e idade, com salas de estudo,
rouparia, dormitórios, salas de aula, refeitório, enfermaria, latrinas, além de área para lazer e
esportes. Para Abilio, o papel da escola não se restringia somente a oferecer aos alunos uma
educação intelectual e moral, era essencial o cuidado particular com o espaço físico escolar, que
incluía: “Alimentação sã, regular e abundante; exercicios corpporaes moderados; trabalho e
repouso razoaveis; a tudo tenho convenientemente attendido” (1866c, p.127).
No discurso médico, registrou Gondra, havia um esforço para que se construíssem prédios
específicos para colégios, com capacidade para receber um número de alunos adequado ao
tamanho da sala, assegurando, assim, uma capacidade atmosférica por aluno, suficiente para a
manutenção de um ambiente com salubridade. Localização, dimensão e arquitetura, separação
por idade, divisão útil do tempo, recreio e lazer em espaços adequados, quantidade e qualidade da
alimentação, vestimentas, sentidos e excreções, tempo do sono, banhos exercícios na água, tudo
foi planejado pelo diretor, estando, dessa forma, dentro das prescrições dos doutores da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde o médico Abilio concluiu seu curso.
Abilio sempre se mostrou favorável aos internatos, adotando este sistema para todos seus
colégios. Enquanto Diretor da Instrução, já havia sugerido a transformação do Liceu da Bahia
nesse tipo de estabelecimento, alegando que seria de inestimável proveito para a Província, por
ser mais fácil ali a ‘correção dos costumes’ e a ‘manutenção da ordem’. Com origem nas
clausuras rigorosas feitas para as ordens religiosas, o internato foi utilizado como espaço escolar
primeiramente pelos jesuítas e foi uma das causas do êxito na educação dos padres da Companhia
de Jesus. Seu papel era de instaurar um mundo pedagógico, separado do mundo externo.
Este tipo de estabelecimento era tomado como modelo escolar ideal para a efetivação do
projeto de moralização, gestado e legitimado pela ordem médica. Representado como fortaleza, o
colégio atuaria como uma verdadeira barreira contra os vícios, sendo preciso, para tanto, evitar o
contato dos alunos com o mundo exterior, controlar suas saídas, comunicações e leituras92.
Educar requeria, naquele momento, certo enclausuramento para evitar tudo que pudesse ameaçar
o projeto de investimento na moralização das crianças.

92
A separação entre alunos externos e internos baseava-se, também, no perigo que aqueles poderiam trazer das ruas,
visto que eram menos controlados e menos expostos à vigilância, podendo introduzir, no colégio, jornais, livros
servir de mensageiros etc.
86

O aspecto de prisão dos colégios de Abilio também estava dentro da arquitetura dos
sobrados do século XIX. Com seus portões, muros altos e cães ferozes tinham a intenção de
preservar a família patriarcal urbana da plebe de rua composta por sedutores, ladrões e,
sobretudo, moleques ou meninos e meninas da mesma idade dos pupilos dos colégios, os quais
estavam fora da escola e que, em grande parte, se ocupavam de ofícios menos dignos, como
vendedores de loterias e quitutes, condutores de cegos, etc. Crianças e adolescentes pobres que
eram relacionados à condição de vadios, como registrou Fraga Filho:

A sociedade escravista não oferecia grandes alternativas de ascensão para geração mais novas de livres e
libertos. Especialmente para os meninos negros, a escravidão continuava a impor-lhes papéis subservientes
e serviçais. Nas tendas dos mestres de ofícios, por exemplo, eram submetidos a rigorosa disciplina, a
castigos corporais e tarefas estafantes. Diante disso, as vadiações e peraltices de rua apareciam como um
misto de desdém, indiferença, protesto e resistência a um mundo adulto de horizontes limitados (1996,
p.12).

Em nome de um projeto de moralização era preciso assegurar, no interior dos internatos,


um completo isolamento entre as classes constituídas. O combate ao perigo, representado pelo
mundo exterior, foi exemplificado na tese do Dr Armonde sobre a influência exercida pelos
“capoeiras”. Em sua ótica, os exemplos de ‘moral perniciosa’ deveriam ser erradicados, como no
caso dos capoeiras, grupo que mais comprometia a ‘civilização do Brasil’. Os professores e a
polícia deveriam atuar conjuntamente, de modo a extinguir esta ‘raça nociva” que vinha
influenciando os meninos, atraindo-os para “os fataes exercícios da capoeiragem” (Apud
GONDRA op.cit., p.456).
O Ginásio era um espaço, como definiu Abilio, distante das distrações, ou seja, que
separava a criança e o jovem do mundo adulto (visto com desconfiança) e também do mundo dos
meninos e meninas sem ‘eira nem beira’, vistos com desprezo pelos bem nascidos. Era necessário
distanciar os internos dos moleques vadios para que pudessem viver em um ambiente pedagógico
‘puro’, um ambiente saudável, como foi descrito por Castro93 e Meireles94:

Quem chegasse em horas de recreio e contemplasse a legião infantil, girando qual bandos de alacres
borboletas em torno do jardim, ou exercitando-se nos trapezios transbordante de seiva robusta, attestando-
lhe a fortaleza do organismo, physico e a saúde do espirito, a mens sana in corpore sano, apreciaria a vida

93
A professora Maria Luiza de Souza Castro foi uma das palestrantes na semana que homenageou o centenário de
nascimento de Abilio, em 1924.
94
Cecília Meireles escreveu sobre a infância de Rui Barbosa, o menino prodígio que, com doze anos, freqüentava o
Ginásio Baiano.
87

em toda a pujança, a felicidade em todo o apogeu , encerada no edifício do Gymnasio Bahiano (Apud
RIGHBA, op. cit., p.52-53).

Grande colégio cercado de frondosas mangueiras. O diretor abolira os castigos corporais, que até então se
aplicava aos alunos. Um dos jovens alunos, que se chamava Antônio de Castro Alves, até fizera uns versos,
a esse bondoso diretor chamando-o “o anjo que à mocidade dos rigores libertou”. Oh! Ali era um paraíso:
nem se falava mais em palmatória, e o diretor organizava reuniões literárias, em que os estudantes liam suas
primeiras produções (1949, p.25).

Nas passagens da professora e da poetisa, a infância que freqüentava este ‘paraíso’ é


comparada a ‘borboletas’ e ‘anjos’ que conviviam de forma harmônica e idílica em um ambiente
natural e, sobretudo, sadio, onde o ar puro contribuía constituía um espaço considerado próprio
para formar ‘bons corações’. Nos depoimentos referentes aos outros colégios, também eram
comuns opiniões que reforçavam e exprimiam sentimentos de fraternidade, de ensino amorável,
de relações idílicas e romantizadas. Ou seja, expressavam um modelo idealizado de escola
higiênica, agradável e própria para a infância sadia, que em nada lembrava o mundo externo,
composto por moleques, vadios e capoeiras.
De acordo com Abilio, para que a infância e a juventude pudessem representar um futuro
próspero, era preciso uma educação reforçada, pois a idade que os cercava era plena de ‘perigos e
ameaças’. Desta forma, seu estabelecimento era um espaço pra controlar essas constantes
imprudências, pois ‘o bem nasce do bem’, como alertou no ano de 1858:

É muito neccessario não esquecerdes um so momento que a mocidade é leviana e imprevidente. Acostumai-
vos a viver um pouco mais no futuro. A docilidadde, meus amigos, é a virtude fundamental de vossa edade.
– é a essencia mesma do bom discipulo -: aquelle de vós que a não possuisse, o que é que viria fazer no
Gymnasio? Sêde doceis; - vereis como desta só qualidade vao dimanar sucessivamente todas as outras: - o
bem nascera do bem: - o estudo rehaverá todos seus encantos; e o Gymnasio Bahiano será uma morada de
serena paz e de prazeres puros (1866c, p.30).

Um bom colégio, às vistas do diretor, não poderia abrir mão dos princípios morais, a base
segura e incontestável de seus estabelecimentos: “Até hoje, mercê de Deus, não fiz questão de
numero de discípulos, nem jamais o farei. Minha questão é outra: é disciplina e moralidade
primeiro que tudo, e depois da rehabilitação do ensino que tão frouxo e abatido vai no paiz” (Ibid,
p.66). Para manter a disciplina e a moralidade, era necessário manter a vigilância, que ficava por
conta, sobretudo, dos censores, como aponta o Regimento Interno do Ginásio:

Os censores serão obrigados:


1. A residirem no Ginásio.
2. A vigiar incessantemente os alunos que estiverem cometidos à sua inspeção.
88

3. A tratar os alunos com franqueza. Afabilidade, e a reserva necessária, para conservarem o prestígio
indispensável ao bom cumprimento dos seus deveres.
4. A dar conta minuciosa ao diretor de tudo quanto se passar entre os alunos que não seja conforme as
regras estabelecidas.
5. Será imediatamente despedido, o censor que receber o mais pequeno presente dos alunos, ou servir-se
por empréstimo, de quaisquer dos objetos a eles pertencentes (Apud ALVES, op. cit., p.35).

Se a intenção era a de oferecer um ensino diferenciado dos demais, um lugar onde as


crianças e jovens tivessem acesso à disciplina e à moralidade antes de tudo, conseqüentemente,
essa formação não aconteceria sem a implantação de normas rígidas. Afinal, era preciso se
diferenciar do ensino ‘frouxo’ que Abilio tanto criticou em sua passagem no cargo de Diretor de
Instrução da Bahia.
O Ginásio, organizado desta forma, atraiu alunos vindos de várias regiões do nordeste e
norte do país. A cada ano, somavam-se mais e mais pupilos. As escolas da Bahia neste período se
ocupavam quase que exclusivamente com o ensino preparatório para a admissão nos cursos
superiores, não havia nenhuma preocupação com o desenvolvimento do corpo, nem com higiene,
educação moral dos alunos e espaço físico. 95 Também não podemos deixar de ressaltar que uma
parte da sociedade baiana, sobretudo a da capital, era rica e opulenta, e que essa riqueza se
confrontava com a miséria dos escravos, libertos e mulatos desempregados, como afirmou
Mattoso (1992).
Esta classe abastada dispensava uma boa soma para manter os filhos estudando no
Ginásio. Os pensionários (alunos que moravam no colégio) deveriam pagar o valor de 360$000 e
os semipensionistas (aluno que permanecia o dia inteiro), 160$000, valores que eram divididos
em três prestações. Os alunos externos pagavam mensalmente de acordo com o número de
disciplinas escolhidas. O valor era menor para os freqüentadores do ensino primário, elevando-se
para os que cursavam mais ‘aulas’, sobretudo as que incluíam línguas, sendo estabelecido outro
valor separado para as ‘classes’ de música, desenho e dança. A anuidade no Colégio Abilio da
Corte (na década de oitenta) era de 600$000 e 640$000. Nos anúncios de outros colégios do porte
que encontramos no jornal A Província de São Paulo, a anuidade estabelecida para os alunos
internos fixava-se entre 370$000 a 600$000.

95
Mariani (Apud RIGHBA, op. cit., p.306) registrou que, para as diversas escolas da Bahia, o mais importante era
uma casa espaçosa para abrigar cem ou duzentos alunos. Muitas utilizavam os dormitórios como espaço de
recreação, o que se deve ao fato de que, quando os portugueses chegaram na região, já havia bosques nas
proximidades, razão pela qual baniram os jardins de suas habitações.
89

Para estabelecermos um parâmetro do valor desses pagamentos, podemos compará-los


com o salário pago aos professores da instrução pública na Bahia do período. Um professor do
interior da Província recebia anualmente o valor de 400$000, enquanto que o da capital
(Salvador) recebia o valor de 600$000. Não foi possível apurar o valor que era pago aos
professores do Ginásio, porém é evidente que um professor da instrução pública dificilmente teria
condições de manter seus filhos no Ginásio Baiano96. O fato de o Ginásio ser pago levou o
diretor, de forma constante, a investir em uma intensa e extensa propaganda, além de explanar
aos pais a importância de uma boa escola na vida da criança, como ficou registrado em um de
seus discursos:

Não é bastante, diz um grande pensador, fazer a escolha de um collegio para se tirar delle todo o fructo que
se deve esperar; convém muito, além d’isto, que os pais vejam muitas vezes o director, sub-director e
mestres, para se informarem do proceder de seus filhos, e do progresso que fazem nos estudos; que lhes
deem luzes sobre seu caracter e suas inclinaçoes; que tomem com elles medidas para corrigil-os de seus
defeitos. Refiro-me a proposito um dito muito sensato de Aristippo. Um pai, admirado de lhe pedir este
philosopho mil drachmas para instruir seu filho: como! Exclamou: por este preço comprarei eu um
escravo. Terei dous em vez de um, respondeu Aristippo, querendo com isso dizer que este avarento pai não
faria de seu filho sinao um escravo (1866c, p.45).

Independente de ser custoso permanecer no Ginásio, o certo foi que este estabelecimento
formou discípulos que ocuparam, posteriormente, posições ‘relevantes’, tornando-se conhecidos
no mundo da literatura e da política. O jurista Rui Barbosa e o poeta Castro Alves são exemplos
disso. O poeta iniciou sua trajetória no mundo dos versos neste Ginásio, quando, aos doze anos,
pediu licença ao professor de latim para traduzir a tarefa dada pelo mestre, uma ode de Horácio,
em forma de verso, fato que deixou todos ‘maravilhados’. Compôs inúmeros versos para
homenagear Abilio. Rui Barbosa, ao terminar o preparatório, foi impedido de ingressar na

96
De acordo com as pistas que encontramos, esses valores não eram pagos com facilidade por alguns pais que
tiraram seus filhos do colégio, alegando falta de condições para o pagamento. Abilio também admitia alunos
bolsistas em seus colégios e, embora não tenhamos uma proporção disso, encontramos referências de que, devido ao
seu sentimento filantrópico, não privava nenhum menino pobre de seus ensinamentos, com uma ressalva, entretanto:
‘que revelasse inteligência’. Isso era revelado após o candidato se submeter a uma seleção. Ter discípulos brilhantes
era quase uma obsessão de Abilio, para quem o talento parecia ser mais importante que o dinheiro. Em uma carta
escrita, em 1875, a um pai de Ouro Preto (MG) que, por questões financeiras, iria retirar seus filhos do Colégio
Abilio da Corte, Abilio ressaltou que já havia proposto para um deles, o Arthur, tido como notável estudante, uma
bolsa integral como prêmio de merecimento. Para o diretor, Arthur servia como exemplo para os outros alunos, e lhe
‘causava pena’ o menino sair sem antes acabar os preparatórios. Ele alegava que ter o brilhante discípulo em seu
colégio tinha valor muito maior do que a ‘pensão’ paga pelo pai do menino. Quanto ao irmão, que não devia ser
notável, não foi mencionado pelo Diretor (Apud, RIGHBA op. cit., p.381).
90

faculdade pela falta de idade mínima e permaneceu mais um ano no Ginásio estudando alemão e
fazendo revisões.
Estudaram no Ginásio Baiano outros pupilos que, posteriormente, se destacaram na vida
intelectual e política da Bahia e do Brasil, como Lino de Andrade, que foi primeiro cirurgião e
professor da Escola Militar e João Florêncio Gomes, diretor do Ginásio São José na Bahia. Além
deles, Muniz Barreto, Rodolpho Dantas, Araújo Pinto, Arestides Milton, Souza Pitanga, Alves de
Carvalhal, Teive e Argollo, Baptista Guimarães, Benicio de Abreu e outros fizeram jus ao ditado
popular: É pela árvore que se conhece os frutos.
Após treze anos na direção do Ginásio, no início de 1870, Abilio transferiu a direção do
Ginásio para o cônego João Nepomuceno97 e deixou a Bahia para se instalar na Corte, fundando o
Colégio Abilio da Corte. O Rio de Janeiro, nesse período, arrogava-se e tomava para si o papel de
informar os melhores hábitos de civilidade, inspirada, sobretudo, pelas ‘luzes’ que pairavam
sobre a antiga França Antártica. A Corte tinha suas supostas luzes ofuscadas por uma realidade
bastante clara, que foi ressaltada por Schwarcz da seguinte forma:

Não se enganem, portanto, aqueles que pensam que o Rio de Janeiro é Paris. A Corte era uma ilha cercada
por ambiente rural, por todos os lados, e a escravidão estava em qualquer parte. No fundo a elegância
européia e calculada, convivia com o odor das ruas, o comércio ainda miúdo e uma Corte diminuta, e muito
marcada pelas cores e costumes africanos (op. cit., p.111).

Independente dos problemas e contradições do período, a ‘Corte era a Corte’ e atraía


Abilio desde outros tempos, afinal, ele já tinha substituído a Bahia pela capital anteriormente,
quando optou por se formar pela Faculdade de Medicina do Rio, além de já pertencer a várias
entidades dessa região.
O motivo da mudança alegado por Alves (1942) foi que, em 1870, Abilio recebeu um
convite do Imperador Pedro II para assumir a reitoria do Colégio Pedro II, não tendo aceitado o
cargo. Demonstrou, assim, que sua ‘vocação’ não era o funcionalismo público e, sim, o privado,
embora tenha ido pessoalmente agradecer ao Imperador o honroso convite.
Orgulhoso pela condição de merecer o apoio de S. Majestade e munido da intenção de
alargar o campo de ‘seu labor’, inaugurou seu Colégio Abilio na Rua do Ipiranga. Na opinião de

97
Apesar de sua estreita e boa relação com a Igreja, essa passagem não foi algo tranqüilo. Abilio queria o pagamento
imediato, pois já tinha a intenção de se mudar para a Corte e o cônego exigia mais tempo. Demonstrando mais uma
vez sua personalidade forte e decisiva, pressionou o cônego, que conseguiu um empréstimo para o pagamento. Esta
91

seus biógrafos, a idéia de se transferir para um cenário mais largo, ‘menos odiento’ e com menos
‘botes da inveja’ foi uma opção eficaz para espalhar sua influência pelo país inteiro. De acordo
com Gondra (2004), as condições do Rio de Janeiro, cidade considerada anti-higiênica pelas
freqüentes epidemias, eram motivo suficiente para que não se estabelecessem centros de
educação nesta cidade98.
Porém muitos filhos de outras províncias eram obrigados a residir na Corte durante os
longos anos em que se dedicavam às carreiras intelectuais, ficando sujeitos à deletéria ação de um
clima diferente da localidade em que nasceram e foram criados, passando rapidamente a
apresentar alteração profunda em sua constituição física. Os males não eram atribuídos somente
ao clima da Corte, a organização dos internatos também concorria para aumentar as más
condições da higiene. Portanto, para atrair alunos, era preciso inserir-se nos padrões ditados pelo
controle da higiene.
Para Abilio, isso não foi algo difícil, pois sua experiência e convicções pautavam-se
nestes princípios. O Colégio foi descrito com precisão no Parecer dos Delegados da Inspectoria
Geral de Hygiene sobre o Collegio Abilio da Côrte99 (1887), que o definiu, primeiramente, de
forma incontestável, como o primeiro de seu gênero e o ‘único’ que satisfazia, dentre todos os
estabelecimentos visitados na Freguezia da Lagoa, as exigências da higiene escolar moderna.
A imensa chácara, dividida em dois pavimentos100, localizava-se no centro da Corte
(Botafogo), mas longe do barulho e rumor. A sala de entrada dava as boas vindas aos visitantes
(repleta de materiais de ensino importados dos EUA e Europa) e, das ‘largas janelas
envidraçadas’, avistava-se a baía de Botafogo de um lado e, do outro lado, o pátio, permitindo
uma vigilância constante do jardim. O jardim ou a chácara arborizada de recreio era a atração do

desavença foi a causa da mudança do nome do Ginásio para Colégio São José. Esse Colégio, que não existe mais na
Bahia, funcionou até por volta da década de trinta do século XX.
98
De acordo com Engel (In: VAINFAS, op. cit.), o Rio de Janeiro desse período costumava ter o cotidiano de seus
habitantes associado a doenças e a morte nas teses, nas memórias e nos artigos publicados pela Faculdade de
Medicina e pela Academia Imperial de Medicina. A inexistência ou precariedade de sistemas de esgoto, o lixo
acumulado nas ruas e praias, os cortiço e casebres, as ruas estreitas e tortuosas, a presença de morros e elevações
dificultavam a renovação do ar, tornando-o pesado e insalubre. Na conferência da Exposição Pedagógica do Rio de
Janeiro, em 1887, Abilio registrou a severa epidemia de sarampo, que havia feito mais de trinta baixas entre seus
alunos, os ‘pequenos e heróicos’ batalhadores da Lei Nova, afastando-os por mais de dois meses do colégio.
99
A obra de 37 páginas é mais uma demonstração laudatória do colégio. Evidentemente, Abilio, como médico,
sempre manifestou sua preocupação com a questão e fazia por merecer um reconhecimento. O relatório, no entanto,
nos pareceu exagerado, pois se referia à perfeição e, certamente, foi esse o motivo pelo qual o médico mandou
imprimir o material, pois significava uma boa divulgação para seu estabelecimento.
92

colégio. Com mais de mil metros quadrados, dividia-se em nove avenidas por árvores (palmeiras
e mangueiras perfeitamente alinhadas, permitindo que as crianças se abrigassem do sol), com
chão coberto de areia fina e limpa. Um espaço sem árvores para não impedir a entrada do sol no

100
O relatório esclareceu que o 1o pavimento era bastante elevado do solo, com um porão e subsolo seco e ventilado,
sem umidade, a qual era uma das principais causas do escrofulismo (tuberculose que dava geralmente em crianças e
jovens).
93

Figura 6 Acima, os discípulos mais


conhecidos do Ginásio Baiano. O primeiro
(esq.), Antonio Frederico Castro Alves (1847-
1871), entrou com 12 anos no Ginásio e
concluiu os preparatórios, juntamente com o
jurista Rui Barbosa (1849-1923). Abaixo,
(esq.) seu aluno mais polêmico, o escritor Raul
Pompéia (1863-1895) que entrou com dez
anos no Colégio Abilio da Corte. (Fonte:
ALVES, L.A. O Ginásio Bahiano, 2000 e
POMPÈIA, R. O Ateneu, 1989).
94

pátio e outros elementos que, segundo o relatório, estavam acima das exigências mínimas da
inspetoria de higiene. O recreio era dividido em ‘sessões’ correspondentes aos alunos maiores,
médios e menores. A separação era efetivada durante o tempo todo do recreio pelos inspetores ou
vigilantes do colégio.
O jardim, além da recreação, tinha uma ‘utilidade real’ para a educação da infância, pois
os alunos, desde cedo, colhiam ali noções de botânica prática, exercitando-se nos trabalhos de
cultura elementar101. Os dormitórios espaçosos, arejados e claros eram divididos em dois salões,
abrigando os alunos pequenos e os maiores, e se comunicavam entre si por uma alcova
iluminada. Era zelado a noite inteira por guardas que se revezavam, exercendo uma vigilância
contínua sobre os alunos, de forma que o relatório viesse a garantir perfeitamente a moralidade, o
repouso e a tranqüilidade durante o sono. As classes, de forma retangular e com dimensões
suficientes, além de alegres, claras e arejadas, recebiam luz conveniente, através de largas janelas
envidraçadas, de forma que os raios solares atingiam todas as salas, repletas de materiais
adequados às matérias lecionadas. A iluminação interna, tão cuidada neste espaço, era uma outra
preocupação dos médicos higienistas que, segundo Gondra, manifestavam-se a favor de uma
iluminação natural que trazia inúmeros benefícios à saúde dos alunos, evitando o surgimento de
doenças. Era, portanto condenada à iluminação artificial como a proveniente de gás, velas de
sebo, óleos não purificados e estearina, produtos que deveriam ser substituídos óleos purificados
para banir o ar viciado’ das casas e dos colégios.
O Colégio da Corte foi amplamente divulgado em jornais, não só do Rio de Janeiro, como
de outras Províncias. Encontramos textos laudatórios, escritos pelo diretor ou por amigos, que
propagavam os feitos deste estabelecimento, inclusive no jornal A Província de São Paulo,
dirigido por republicanos não favoráveis aos colégios de Abilio, por considerarem-no um símbolo
de educação que se colocava a serviços da monarquia, conforme apontou Hilsdorf (1986). O fato
de ser uma pessoa non grata neste jornal não impediu Abilio de escrever ou copiar artigos de
outros jornais que enfatizavam seus feitos e participar das colunas deste veículo da imprensa.
Nem tudo, entretanto, eram flores, pois o artigo intitulado Colégio Abilio (20 de
Dezembro de 1885, p.2), traçou criticas à análise de Félix Ferreira (amigo de Abilio) da obra

101
Trabalho, tido pelo relatório, como precioso, tanto para o desenvolvimento como para a saúde e instrução dos
meninos. Além de proporcionar uma distração para os mesmos, oferecia conhecimentos úteis sobre a cultura das
flores, das hortaliças, árvores frutíferas etc.
95

Methodos, Collegios e Compêndios, que abordava o colégio de Abilio e de seus filhos. O autor do
artigo se dizia realmente convencido de que os ‘preconizados educadores’ realizavam uma
reforma, sobretudo, no ensino primário, dispondo de um material técnico luxuoso, com apoio da
imprensa e de grandes homens do país. Ferreira foi criticado por ter somente propagado as
vantagens que o colégio de Abilio oferecia, sem ter feito uma análise crítica da obra.
Segundo a matéria, era um ‘juízo de risco’ Ferreira proclamar o colégio como o primeiro
estabelecimento do gênero na América do Sul, pois este não tinha realmente base para estabelecer
comparação com o que havia fora do Rio de Janeiro no que se referia ao levantamento de ensino
infantil. O relatório, que não passava de um panegírico, registrou somente o que era bom,
‘obscurando o que era mau’. Em seguida, foi a vez de Abilio:

Tenho accompanhado também, como o auctor, a actividade pedagógica do sr. de Macahubas. Acreditando
na sinceridade, com que se esforça pelas reformas, que proclama, estamos convencidos de que no seu
estabelecimento, cuja installação material conhecemos, emprega todos os meios contundentes á realização
de suas ideas. Um cousa, porém, lhe imputamos a mal: é a avidez do annuncio. Não é pela inveja dos lucros
que dahi lhe possam advir e advem; é pelo mal que isso traz á causa, que sustenta. O ensino moderno não
precisa ser espetaculoso; há nos seus resultados, cousa que vale muito mais no conceito publico do que as
grandes collecções de apparelhos e mappas de todo o gênero. O luxo desses meios poe o educador na
posição do prestimano, cujas mágicas tanto mais admirada são quanto a mais estranha e espantoso é o mise-
em-scéne de que se rodea.

O texto criticava Abilio, lembrando que materiais como gabinetes de física e outros, além
de difíceis de adquirir, não apresentavam vantagens, pois muitos competentes da Inglaterra,
Estados Unidos e França já tinham concluído que materiais dispendiosos eram mais nocivos do
que úteis. O ‘luxo’ no material do ensino se constituía em um ‘perigo’ para as modernas teorias
pedagógicas.O jornal A Província de São Paulo, esclareceu Hilsdorf, não era contra o a utilização
dos chamados modernos recursos de ensino, chegando mesmo a noticiar curiosas invenções. A
questão era a aplicação da metodologia avançada por uma instituição que apoiava a Monarquia e
era favorecida por ela, a exemplo do título de barão recebido por Abilio e das constantes visitas
do Imperador e da herdeira do trono em seus colégios. Abilio era um admirador da Monarquia,
contudo compactuava com os republicanos na crença de que não haveria democracia sem
instrução e de que a solução para a instrução popular não teria que vir do governo e, sim, da
iniciativa particular.
96

Figura 7. Anúncio do Colégio Abilio da Corte. Em outros anúncios era anexado o valor da anuidade a ser paga, com
a referência: “Pagamento à vista” (Fonte Jornal A Província de São Paulo – AEL).
97

Figura 8 Parecer da Inspetoria Geral da Higiene publicado em 1877. Por este material pudemos constatar o quanto o
Colégio de Abilio refletia as preocupações higienistas do período (Fonte: BNRJ – Foto Diego Valdez).
98

Como alguns republicanos, ele ministrava gratuitamente cursos de alfabetização para


operários e soldados adultos.
O exibicionismo de Abilio também foi alvo de críticas na Exposição Pedagógica do Rio
de Janeiro, em 1887. Kosertiz (Apud, BASTOS, 2002, p.50), ao analisar a atuação do Dr.
Menezes Vieira, concorrente de Abilio no ramo das atividades de instrução, fez referências à
prática de conceder honrarias como títulos de nobreza, questionando se Menezes Vieira, após
fazer enorme sucesso na dita exposição receberia o título de barão como Abilio. Em seguida, o
próprio respondeu: “Não o creio, pois ele não sabe se exibir tão bem como o outro, que desta vez
passara seguramente a visconde”.
Após dez anos, na direção do Colégio Abilio da Corte, em 1880, Abilio resolveu
transferir-se para Barbacena102. Em 1881, instalou o Colégio Abilio na cidade de Barbacena, em
Minas Gerais. O motivo, de acordo com seus biógrafos, foi sua saúde que, desde a década de
sessenta, já apresentava problemas. A Corte acabava de sair de um surto epidêmico de febre
amarela (1873-1876), o qual se manifestava, sobretudo nos verões com capacidade destrutiva. As
epidemias, sobretudo a tuberculose, amedrontavam os moradores da Corte, que buscavam ares
mais saudáveis para se livrar ou mesmo para se curar da tuberculose103.
Não podemos deixar de considerar o outro motivo que pode ter influenciado sua mudança
para Minas Gerais: o recebimento do título de barão por esta província, a que já nos referimos
anteriormente. Apoiado pelo amigo Visconde de Lima Duarte, médico, deputado mineiro, líder
do partido Liberal, integrante do Conselho do Império e Ministro da Marinha, Abilio criou, na
cidade, uma ‘réplica’ dos seus colégios anteriores.

102
A transferência não aconteceu sem conflitos. Ao se indispor, em 1877, com o proprietário do prédio, o barão de
Irapuá, Abilio fez sociedade com Ephifanio Reis (que, antes, havia sido professor no Pedro II), que assinou o
contrato de arrendamento do prédio, ficando no lugar de Abilio durante uma viagem deste para a Europa, em 1878.
Os dois, entretanto, também se desentenderam. Em uma longa e dura carta enviada a seu sócio, em 1879, Abilio fez
sérias ponderações a respeito das contas do colégio, lembrando que onde havia interesses pecuniários, havia sempre
a possibilidade de algum desacordo em uma sociedade, e que “As bôas contas fazem os bons amigos”. Acusou-ode
estar sempre a sua sombra, gastando o que não podia, abusando com empréstimos, retirando dinheiro do Colégio sem
medida conveniente etc. Chamando-o sempre de ‘meu amigo’, Abilio concluiu: “Lembro que o meu amigo tachou-
me uma vez de cruel com os pobres, quando eu em minhas reluctancias para satisfazer as exigências de dinheiro,
cheguei a dizer-lhe que nem para sua Mãi devia mandar dinheiro, não o tendo, porque (disse eu) Nemo dat quando
non habet. Quem não tem cabras não póde vender cabritos. Mas nunca é crueldade dizer aos amigos verdades,
embora nuas e cruas, uma vez que lhes possam aproveitar: ainda que desagradando-os, é bom serviço” (Apud
RIGHBA, op. cit., p. 393-396). O fato de ter sido chamado pelo ‘amigo’ de ‘cruel com os pobres’ evidencia que sua
tolerância não se estendia às ‘exigências do dinheiro’.
103
A tuberculose foi a causa de cerca de 29.916 mortes, número que superou as duas doenças epidêmicas mais
importantes da época, a febre amarela, que vitimou 14.541 e a varíola, que matou 6.618.
99

Escolheu Barbacena104, uma cidade na Serra da Mantiqueira e que, devido ao seu clima
favorável, oferecia uma garantia de saúde para ele próprio e para seus pupilos.
Em uma matéria do jornal A Província de São Paulo (20 de Dezembro de 1881, p.1), o
diretor comunicou aos pais de família a abertura de seu estabelecimento, ressaltando a compra do
edifício do antigo Colégio Providência105, que fora restaurado, ampliado e modificado para
abrigar especificamente o colégio filial. Segundo o diretor, não seriam poupados esforços para
equipar o colégio com material moderno de primeira ordem e com um grupo docente
‘escrupulosamente’ escolhido.
Os alunos, tanto do colégio da Corte como de Barbacena, poderiam passar de um ao outro
em qualquer momento, seja por motivo de moléstia, pela conveniência dos exames ou desejo dos
pais, arcando somente com a despesa do transporte. A festa de inauguração foi largamente
divulgada na imprensa106.
Os jornais de Minas Gerais e de outras províncias davam continuidade à prática de
anunciar, de forma laudatória, o aspecto físico do colégio, suas festas e atividades
comemorativas107. O teor das matérias não se diferenciava. O ambiente, onde cerca de 400
meninos estudavam, era descrito como um lugar onde o asseio, a ordem e o conforto, a religião e
a ciência reinavam, o que o tornava um estabelecimento ideal para os filhos da elite mineira108.

104
Fundada em 1698, na fazenda da Borda do Campo, arraial de Nossa Senhora da Piedade, no Arraial da Borda do
Campo, em 1791, transformou-se na Vila de Barbacena, em homenagem ao Governador Visconde de Barbacena. No
século XIX, em 1842, Barbacena tornou-se referência política do movimento liberal na propaganda republicana no
Império, revoltando-se contra o poder central com campanha abolicionista. Ficou famosa pelo clima, apreciado por
veranistas e pessoas enfermas.
105
O Colégio Providência, localizado em um grande casarão colonial nas montanhas, foi inaugurado por padres em
1874. Após a saída de Abilio, este prédio foi assumido pela Sociedade Educadora Mineira, voltando a ter o antigo
nome. Em 1890, já no Brasil República, o prédio e as terras foram doados para o governo de Minas Gerais, que ali
instalou o Ginásio Mineiro, o qual funcionou até 1913, quando o espaço foi transferido para o governo federal
instalar o Colégio Militar de Barbacena. Em 1949, o Ministério da Aeronáutica instalou a Escola Preparatória de
Cadetes do Ar – EPCAR – que permanece até os dias atuais.
106
No mês de janeiro e fevereiro de 1881, circularam no jornal A Província de São Paulo publicações de outros
jornais que anunciavam o brilhantismo da festa, desde a celebração da missa de abertura, dos discursos pronunciados
por ilustrados e pelo diretor até a presença de membros da mais ‘seleta’ sociedade de Barbacena.
107
Ver no jornal A Província de São Paulo algumas matérias a este respeito: 7 de julho de 1885, p.2; 29; de julho de
1885, p.1; 12 de setembro de 1886, p.2.
108
No jornal A Província de São Paulo (7 de julho de 1885, p.2), em uma outra matéria, (extraída do Jornal do
Comércio) intitulada Collegio Abilio de Barbacena, o juiz de direito de Cabo Frio louvava o estabelecimento.
Acompanhado de amigos ilustres (O senador Lima Duarte, Dr. Mello Franco, Conselheiro Monsenhor José Augusto,
Dr. Jardim, Dr. Coutinho, barão de Caranday, Dr Virgilio de Mello e Franco, Teixeira de Carvalho, Dr. Antonio
Carlos e Prestes Pimentel, farmacêuticos Gomes de Souza), visitou o colégio de Barbacena e, no mesmo ano,
acompanhou seu amigo Theophilo Ottoni que, de passagem pela cidade para assumir a presidência de Minas Gerais,
não deixou de visitar aquela casa de educação pregada como modelo. Percorreram todos os cômodos da casa, onde
observaram todos os preceitos de higiene e também assistiram às aulas e a outras atividades dos inteligentes
100

A direção do colégio, segundo o anúncio, caberia ao próprio Abilio que, embora tivesse se
transferido para Barbacena, visitaria e inspecionaria o colégio do Rio de Janeiro com freqüência.
Contudo Abilio acabou não fixando residência em Barbacena, embora tenha morado lá no
princípio, pois Afonso Arinos, ao escrever a biografia de seu pai, Afrânio de Melo Franco, narrou
uma parte de seus estudos no colégio de Barbacena, no ano de 1883 (onde permaneceu até 1886).
A respeito do barão registrou:

O barão de Macaúbas vinha a Barbacena mensalmente. Tinha uma casa na praça, que era, a mesma que
morou, o juiz Melo Franco. Dela descia para o colégio o Aristarco do Ateneu, metido na sua sobrecasaca e
montando um cavalinho tordilho. Os meninos gostavam destas visitas, pois o barão, em comemoração à
própria chegada, num largo gesto bem a Aristarco, costumava ordenar a suspensão das aulas pelo resto do
dia (1977, p.159)109.

Apesar do sucesso, o Colégio Abilio de Barbacena não durou muito tempo, encerrando
suas atividades em oito anos. A decisão do barão em deixar a cidade serrana causou várias
manifestações. A Câmara Municipal dirigiu-lhe, em julho de 1888, um ofício solicitando sua
permanência e a continuidade do Colégio, que trazia tantos benefícios à comunidade mineira:

Illmo. E Exmo. Sr.


A Camara Municipal de Barbacena, ao saber que V. Sra. Pretende transferir sua residencia e do Collegio
Abilio para o Rio de Janeiro resolveu, por sessão de honra e por unanimidade de votos, dirigir-se a V. Exa.,
manifestando-lhe pezar que lhe produziu tão desagradavel noticia, tendo-se habituado a ver a pessôa de S.
Exa. e em seu conceituado estabelecimento de instrucção verdadeiros elementos de ordem, progresso e
prosperidade geral e em particular para este municipio. Mas a Camara nutrindo ainda a esperança de que a
resolução de V. Exa. não seja irrevogado, resolveu dirigir-se a V. Exa. não só para agradecer-lhe os
relevantes serviços em geral á instrucção publica e particularmente a esta cidade, como também apresentar-
lhe em nome do Municipio o pedido de continuar a permanencia nelle, mantendo sua residencia e o Collegio
Abilio, que tantos serviços tem prestado (Apud RIGHBA, op. cit., p.212).
Damos aos nossos leitores com profundo pezar a desagradavel noticia da transferencia do Collegio Abilio
para a capital. Seu illustrado director Exmo.sr. Barão de Macahubas tendo sobre os seus hombros outros
encargos, relativos á educação da mocidade reconheceu a grande difficuldade de dirigir pessoalmente os
seus dois grandes estabelecimentos. O fechamento do Collegio Abilio é incontestavelmente um grande mal
para Barbacena que durante quase oito anos teve a felicidade de conviver com o brasileiro ilustre,
justamente considerado como um dos mais conspirados educacionistas da America do Sul (Ibid, p.212).

meninos. Além de estar cercado pela natureza e bons ares, ressaltou o juiz, Abilio estava cercada por homens
inteligentes que sabiam reconhecer seu trabalho magnífico. O juiz garantiu que colocara o filho para ser educado no
estabelecimento, não pelo fato de ter visto pomposos anúncios, mas pelo que já tinha visto em 1883 e novamente via
em 1885.
109
Apesar da ironia de Arinos, o mesmo registrou (ibid, p.157-158): “Abilio, apesar de seus exageros exibicionistas,
foi sem dúvida um inovador na história da nossa pedagogia. Introduziu, no ensino, a ginástica sueca, o batalhão
escolar militarizado, o estudo da música e outros progressos. Procurou tornar mais eficaz o ensino das línguas vivas,
com a adoção de métodos novos, fazendo igualmente tentativas de ensino prático, com o uso de quadros, gráficos, e
demais processos do gênero.”
101

A cidade de Barbacena, segundo os dados levantados, tem como marco na história da


educação a década de oitenta do século XIX, devido à instalação do estabelecimento do ‘ilustre
educador’ do Império. Tanto que, três décadas mais tarde, Abilio continuava presente na
memória dos mineiros, pois foi inaugurado, em 1921, o Grupo Escolar Barão de Macahubas, na
cidade de Belo Horizonte em sua homenagem. 110
De volta ao Rio, reassumiu a direção de seu estabelecimento em Botafogo, intitulando-o
de Novo Colégio Abilio. Esse colégio foi dirigido formalmente, desde que fundou seu colégio em
Barbacena, por seus dois filhos, Joaquim e Abilio Cesar Borges Filho111. No entanto Abilio nunca
deixou de estar presente na direção, pois, em exposições e outros momentos, estava sempre à
frente do colégio, muitas vezes representando os dois estabelecimentos. Joaquim e Abilio Filho
fizeram parte da comissão de instrução do Governo Imperial e percorreram vários lugares,
sobretudo os principais estados dos Estados Unidos, de onde trouxeram ricos aparelhamentos
para o colégio. Os Borges continuaram à frente do Colégio até 1911.
Por esta circular, percebemos a importância atribuída a esse estabelecimento pela classe
política local, importância dada também pela imprensa, que comunicou com pesar aos seus
leitores do jornal O Mineiro o fim do Colégio, em agosto de 1888:
Ao tomarmos contato com este breve relato da estrutura dos colégios que Abilio dirigiu,
fica evidenciada a importância destes na história da educação do período imperial. Não podemos,
todavia, perder de vista que os estabelecimentos e os pupilos de Abilio compunham um quadro
particular, constituindo muito mais uma exceção do que uma regra no interior de uma sociedade
escravista, na qual os estabelecimentos escolares públicos iam conquistando seus espaços a muito
custo e com muita dificuldade.

110
O presidente do Estado, Arthur Furtado, proferiu um discurso que foi publicado no Jornal Minas Geraes de nove
de setembro do mesmo ano. Ao homenagear a memória do diretor na “sumptuosa Capital da terra de Tiradentes”,
ressaltou que, ao instalar o “Colégio Abilio Filial” em Barbacena, Abilio, traduziu o desejo de ver a infância mineira
educar-se no culto dos ‘insignes e abnegados patriotas’, prestando serviço vital ao nacionalismo: “Fazendo irradiar
pela Terra Mineira a acção bemfazeja de seu grande espírito e de seus methodos educativos. Dalli sahiram para os
cursos superiores estudantes que se chamavam Francisco Mendes Pimentel, Gastão da Cunha, Afranio de Mello e
Franco, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e muitos mais que aqui e além, honram a nossa cultura intellectual. Nos
livros que espalhou, a mãos-cheias, pelas cidades e pelos sertões, aprenderam a ler milhares de brasileiros. Outros,
dezenas de outros, estudaram e se formaram ás suas expensas” (RIGHBA, op. cit., p.406).
111
Quanto ao fato de seus filhos continuarem sua carreira, o barão registrou em carta a Félix Ferreira (Apud ALVES,
op. cit., p.113): “Nunca procurei atrair nenhum dos meus filhos ao magistério; nunca preparei de caso pensado
nenhum deles para meu sucessor, posto os familiarizasse sempre com minha profissão. Formando um em direito e
outro em matemáticas, deixei-lhes, antes de tudo, os meios de seguirem se lhes parecesse, melhor carreira; preferindo
porém ambos a minha, auxiliei-os, como me cumpria, na fundação de um bom colégio”.
102

A realidade dos espaços físicos e dos equipamentos das escolas primárias públicas do
período, difundida em estudos e pesquisas, aponta escolas, muitas vezes, como extensão da casa
do professor, instaladas em paróquias ou casas de comércio, mal localizadas, insalubres, mal
iluminadas, mal ventiladas, com móveis toscos, como bancos em torno de mesas rústicas, nada
ajustadas aos pequenos alunos. Essas escolas eram desprovidas de materiais básicos como
quadros, mapas, e outros aparatos e seus ambientes, sem jardins e sem flores, em nada
lembravam os hábitos de ordem, com brincadeiras infantis sadias, assim como não facilitavam o
cultivo dos modos ‘civilizados’ postos como ordem do dia para o progresso da nação.
Ao assumir a posição de proprietário de colégios, Abilio armou-se de argumentos para
fazer de seus colégios verdadeiros ‘ninhos de águias’, obviamente, águias já nascidas e provindas
de ninhos abastados. A presença do Estado na instrução, com sua baixa capacidade de
investimento e políticas pulverizadas, podem ter contribuído para o sucesso de seus
estabelecimentos. Somou-se a isso a propaganda ostensiva e uma organização institucional
movida pela ansiedade de seu diretor intelectual, influente, cristão, rico e que tinha a instrução
como sentido de sua própria vida. C
Conforme ele mesmo registrou, a instrução era seu sacerdócio, embora essa dedicação não
se estendesse da mesma forma a todas as classes sociais. Assim como o diretor Abilio, outros
proprietários de estabelecimentos privados criaram colégios fabulosos, nos quais a realidade
escravista do Brasil imperial ‘parecia’ desaparecer em meio a métodos modernos, professores
qualificados, materiais importados, bibliotecas fartas e crianças coradas e sadias, que praticavam
esportes e liam Camões. Este contraste era facilmente percebido nos anúncios destes
estabelecimentos na imprensa. No jornal A Província de São Paulo, localizamos propagandas dos
colégios em meio aos anúncios de aluguel de meninos e meninas escravos para pajem, escravos
fugidos e amas de leite.
A estrutura dos colégios de Abilio estava em perfeita sintonia com as práticas higienistas
oitocentistas, investigadas por Gondra (2004), de acordo com as quais educar e civilizar
convergia para um único fim, o de eliminar os fatores adversos e produzir um futuro novo e
grandioso para os indivíduos, para a sociedade e para o Estado. E esta finalidade só seria
atingida caso a educação escolar funcionasse como um verdadeiro ‘decalque’ do projeto
construído em nome da racionalidade médico-higiênica.
103

Se tal projeto fosse medido, controlado, integrado e hierarquizado, esse modo de


intervenção funcionaria como um efetivo programa civilizador, instituindo nos trópicos uma
réplica complexa do que, então, era considerado como um padrão civilizatório a ser disseminado,
imposto e adotado no mundo ocidental. Abilio formou uma geração que almejava realizar.
Para constatar isso, é só recorrer ao grande número de discípulos que chegaram a funções
eminentes da política e da administração, ex-alunos que não só ocuparam cargos das
culminâncias do ‘saber’, como, principalmente, do ‘poder’. Abilio cumpriu o que pretendeu:
formar lideranças para assumirem a frente das questões políticas e de outros segmentos no
império brasileiro. 112

2.2 A infância do ensino primário: Os pequenos regatos formam os grandes ribeiros

O diretor e proprietário Abilio tomou para si a tarefa de instruir e educar as crianças


nestes ambientes que descrevemos acima. Para tanto, não deixou de anotar a relevância de se
observar a idade apropriada para que a criança iniciasse seus estudos, além da rígida separação
por idade e o cuidado em respeitar o desenvolvimento infantil. Ao prescrever suas idéias a este
respeito, construiu uma representação de infância ideal, amparando-se em dados científicos da
medicina, da psicologia e da religião.
Historicamente, as modificações no sentimento de infância contribuíram para definir com
que idade deveria a criança entrar no mundo da educação escolar. Se na Idade Média o espaço
escolar misturava diferentes idades e o que importava era a matéria a ser ensinada, independente
da idade dos alunos, a partir da Idade Moderna, esse espaço modificou-se, passando a ser um
meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação, tanto moral como
intelectual. A idade de cinco e seis anos, até meados do século XVII, determinava o final da
primeira infância e, aos sete anos, a criança já poderia ingressar no colégio. Segundo Ariés
(1978), o argumento utilizado para justificar esse retardo de entrada no o mundo escolar era a
fraqueza, a imbecilidade ou a incapacidade dos pequeninos.

112
Dentre seus homenageadores, muitos eram seus ex-alunos que ocupavam, então, posições semelhantes às
ocupadas pelo ex-diretor, seja como membros do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, seja em outros cargos na
vida pública política do Estado.
104

A separação entre infância, adolescência e juventude foi demarcada com mais precisão no
século XIX, graças à difusão, na burguesia, das grandes escolas ou universidades. No Brasil, a
legislação da instrução primária e secundária do Império determinou que o acesso à escola fosse
franqueado à população livre, vacinada e não portadora de moléstia contagiosa, sendo que a faixa
etária dos alunos que deveriam iniciar a escolaridade variava entre cinco e sete. A Reforma Couto
Ferraz (1854) estabeleceu a idade de cinco a quinze anos para a matrícula do ensino primário
obrigatório e, para o secundário, de quatorze a vinte e um anos. A Reforma Leôncio de Carvalho
(1879) fixou o ensino obrigatório para a faixa etária entre sete e quatorze anos.
Essas determinações, contudo, não se efetivavam conforme os preceitos da lei, muitas
pesquisas apontam a mistura de diferentes faixas etárias, tanto na instrução primária como na
secundária. A idade para adentrar o mundo escolar, em muitas escolas, sobretudo nas domésticas,
era definida pela ‘capacidade’ e ‘talento’, não pela faixa etária. Para Abilio, o ideal era que a
criança iniciasse o processo de escolarização a partir dos cinco ou seis anos. No Regulamento do
Ginásio Baiano, o diretor argumentou a favor desta faixa etária, alegando:

Sendo incontestável que a melhor e mais proveitosa educação é aquela que vem das primeiras idades, muito
convirá que os pais, que no diretor depositarem a necessária confiança, remetam seus filhos para o Ginásio
apenas completem 5 ou 6 anos de idade; desta maneira poderão os alunos aos 16 anos estar prontos de todas
as matérias que compreende o estabelecimento, e portanto em circunstância de seguirem com grande
vantagem qualquer carreira a que se destinem (Apud ALVES, 2000, p.31-32).

A defesa desta faixa etária era sustentada por argumentos que justificavam o que era
negativo na entrada precoce, antes dos seis anos. Entretanto ele também criticava a entrada tardia
dos meninos na escola, ou seja, a partir de doze anos, pois nessa idade eles já estavam habituados
a muita liberdade em todos seus atos, perdendo uma grande parte do tempo em distrações, além
de não se sujeitarem facilmente à reclusão porque repugnavam o regimento do colégio, garantia o
autor.
Aqui temos uma evidente justificativa que se baseava na concepção da criança maleável,
mais fácil de ser moldada até os doze anos, já que a entrada para a puberdade era o início da
rebeldia. Se fizermos uma alusão com a pedagogia dos jesuítas, essa idade significava a
‘expulsão do paraíso’.
105

Figura 9 Exemplos de artigos que


divulgavam o Colégio Abilio de Barbacena
(Fonte: Jornal A Província de São Paulo –
AEL).
106

Figura 10 Anúncio pago do Colégio Abilio de Barbacena. Nota-se a importância de divulgar especificamente a
instrução primária (Fonte: Jornal A Província de São Paulo – AESP).
107

Figura 11 Ao meio de anúncios diversos, como aluguel de criança escrava para servir de pajem, figuravam os
variados e numerosos anúncios de ensino pago. As propagandas incluíam ofertas de ensino nos estabelecimentos em
regime de internato, para meninas e meninos, ensino doméstico etc. (Fonte: Jornal A Província de São Paulo –
AESP).
108

Ao estabelecer a idade para o início da vida escolar, Abilio se posicionou firmemente


contra a entrada da criança na escola antes dos seis e ou sete anos de idade. Em sua conferência
na Exposição do Rio de Janeiro, em 1883, colocando-se no papel de advogar em causa da
infância, insistiu em suas considerações a respeito da idade escolar, pois sua experiência lhe
mostrara que o ensino, antes dos sete anos, causava mais danos do que benefícios, tanto para o
corpo quanto para o espírito infantil. Se o objetivo do ensino, insistia Abilio, era o de instruir e
dirigir a inteligência e a razão, somente aos sete anos a criança começava a ter o vigor necessário
para o estudo regular.
Antes da idade estabelecida, às vistas do autor, as crianças aprenderiam mais e melhor no
seio de suas famílias. Recorrendo ao desenvolvimento físico da criança, alegava que a vida
‘pautada’ da escola, antes deste tempo, acabava ‘fatalmente’ com o desenvolvimento do corpo e
também com toda a inteligência infantil. Neste sentido, Abilio não era defensor dos Jardins de
infância, tão em voga na Europa113. Era um admirador de Froebel, contudo fez ressalvas sobre
suas idéias de educar a criança precocemente, em conferência proferida na Exposição do Rio de
Janeiro:

Froebel, o grande Froebel tao citado, é com razao admirado, teve em verdade a intuiçao do methodo natural
de ensino, - do methodo razoavel, por isso mesmo que natural; - mas infelizmente applicou-o mal,
applicando-o a crianças na idade inferior a cinco annos. De feito obrigar crianças de 3 a 5 annos á
immobilidade e ao silencio ainda que pouco prolongados, a um esforço de attençao que não comporta ainda
seu delicado cerebro, e a movimentos ordenados de gymnastica e de formaturas seriais, como a preparaçao
para a vida escolar propriamente dita, é no meu entender cousa que repugna a natureza, e portanto absurda,
tendo além disto seu lado ridículo (1887, p.09).

Baseando-se nas regras impostas pela natureza, salientou que a criança deveria ser
preservada de longa imobilidade neste momento em que seus órgãos eram ainda frágeis. Munido
de argumentos, que demonstravam seu conhecimento a respeito dos Jardins de Infância, atacou
firmemente os defensores deste ensino ‘anti-escolar'
:

113
Neste período, havia outras vozes discordantes a respeito do Jardim da Infância. Ficou famosa a frase do
parlamentar João José Junqueira, em 1879, ao declarar que os jardins eram ‘ridículos e romanescos’, fato que levou
Leôncio de Carvalho a dizer que, em matéria de instrução pública, o senador era ‘um hóspede’. O relator do
congresso de instrução, Alberto Brandão, da mesma forma, afirmou que os jardins eram ‘deletérios’ por arrancarem
as crianças do lar mais cedo ainda. Manoel Olimpio Rodrigues da Costa, em seu parecer sobre a escola primária,
ressaltou que era objeto de luxo para alguns, de inveja para outros e de utilidade para poucos. As discussões também
se dividiam a respeito da função assistencial ou pedagógica deste ensino. O parecer da comissão (Jardim da infância)
na exposição se opôs às vozes discordantes, não restringindo o lugar social do Jardim da infância como meramente
assistencialista, ao enfatizar sua intenção pedagógica (COLLICHIO, 1974, BASTOS, 2000).
109

Mas, dizem os que não tem reflectido assaz sobre a materia: Nessas instituições ante-escolares nada soffrem
os meninos, porque aprendem brincando; como si brincar e aprender não fossem duas idéas que se repellem,
dous actos oppostos e inconciliaveis. Alternar com o estudo os brincos, sim: é o que recommenda a sã
pedagogia. Mas não quer isto dizer que se pôde aprender brincando, e que portanto não ha inconveniente
algum na antecipação da idade escolar (Ibid, p.10-11)

A crítica de Abilio era dirigida aos defensores do jardim da infância, sobretudo ao médico
Menezes Vieira (presente nesta Exposição), que fundou, em 1875, no Rio de Janeiro, o Colégio
Menezes Vieira, instalando ali o primeiro Jardim da Infância do Brasil114. De acordo com
Kuhlmann (In STEPHANOU; BASTOS, op. cit.), o fato do Regulamento de 1854 prever que a
criança de cinco anos freqüentasse a escola primária relacionava-se ao fato de que estas
acompanhavam seus irmãos mais velhos, sendo assim, admitidas formalmente.
Para contraporem-se a esta tendência, a partir do século XIX, as creches, asilos e outras
instituições educacionais foram criadas para receberem crianças de zero a seis anos. Com a
criação do Jardim das Crianças do Colégio Menezes Vieira, as discussões foram ampliadas,
tendo sido criadas outras instituições. 115
Ao se posicionar contra esse tipo de ensino, Abilio recorreu aos mesmos argumentos dos
médicos higienistas presentes nas teses do século XIX: a saúde infantil seria posta em risco se o
desenvolvimento fosse antecipado. A definição da idade escolar foi marcada por argumentos
oriundos da psicologia e da fisiologia, onde havia um consenso de que a educação anterior à
escola deveria ficar sob responsabilidade da família. Ao definir a idade mínima para o ingresso
na escola, Abilio também se valeu de argumentos baseados no desenvolvimento biológico. Tal
definição, no entanto, teve também efeito nas políticas públicas, já que, com esse corte, o Estado
definia claramente em que momento iniciaria sua intervenção junto à população. Desta forma, o

114
Seu colégio mantinha internato e semi-internato, com ensino maternal, no Jardim das Crianças, além de ensino
primário, secundário e profissional. Menezes Vieira, como Abilio, introduziu o que havia de mais moderno em seu
estabelecimento, suas inovações pedagógicas incluíam ginástica, museu escolar, palestras científicas etc. Visitou
centros especializados na Europa, fundou instituições beneficentes e seu trabalho foi amplamente divulgado na
imprensa. O símbolo do colégio e dos escritos de Menezes Vieira era Pro Pátria laboremus, um lema compreendido
como uma atuação voltada à pátria e pela pátria (BASTOS, 2002).
115
A Reforma Leôncio de Carvalho chegou a prever a criação de Jardins-da-infância. Em seu Parecer, Rui Barbosa
(1882) dedicou um capítulo ao estudo destes estabelecimentos, considerando-os como um primeiro estágio do ensino
primário, com vistas ao desenvolvimento harmônico da criança. Segundo Bastos (Ibid), o Jardim da infância
permanecera, por longo tempo, restrito a um pequeno contingente privilegiado de alunos. Com a República, este tipo
de ensino foi ampliado e divulgado, porém, somente no final do século XX, o Estado ofereceu, no plano legal, esta
instituição para crianças de 0 a 7anos.
110

colégio participaria da formação de um sujeito não pernicioso, útil e duradouro conforme apontou
Gondra (2004).
Enquanto uma boa parte dos alunos dos colégios do Império, sobretudo os que
freqüentavam as chamadas escolas domésticas na área urbana e rural, misturavam-se em uma
mesma classe, independente da faixa etária, sobretudo em função da falta de espaço e de
professores, a divisão por idade era outro item que o diretor considerava essencial para um bom
aprendizado. Os cursos oferecidos eram divididos em três classes, de acordo com a idade dos
respectivos alunos. Na primeira classe, estavam os meninos com menos de dez anos, na segunda
ficavam os de dez a quatorze anos e na terceira os de quatorze anos para cima. As classes eram
separadas e os pupilos de diferentes idades só se misturavam em atividades coletivas como
missas, comemorações, passeios, refeitório etc.
A separação de idades era uma outra questão contida nas teses médicas do período.
Gondra anotou que, no Brasil, o emprego do argumento moral foi decisivo para a constituição de
classe por idade, como prática ordenadora dos colégios. Para evitar ‘inconvenientes’ era preciso
que os alunos fossem completamente separados pela idade, não se encontrando nas refeições,
salas de estudos e, muito menos, nos dormitórios. Separar as classes uma das outras, estabelecer
saídas em tempos diferentes, não misturar os discípulos internos com externos eram precauções
importantes para impedir os entretenimentos ‘secretos’ dos alunos e evitar a perigosa
comunicação mútua de seus defeitos, vícios ou maus hábitos.
Era proposto, portanto, um colégio fundamentado nas classes de idade como forma de
evitar contatos perigosos e nocivos, entre os alunos de faixas etárias diferentes. A invenção das
classes de idade era uma outra medida recomendada para higienizar as práticas escolares. Ao
estabelecer essa separação, o diretor evitaria que os alunos estabelecessem contato com os
diferentes, critério importante para se obter uma uniformidade e também uma organização no
ensino, argumento necessário naquele momento para instruir a infância.
Depois de definida a idade para adentrar o mundo escolar e estabelecida a separação por
idade, Abilio manifestou preocupação com a adequação do ensino ao desenvolvimento da
criança, pois não adiantava exigir conhecimentos que não estavam adequados à fase pupilos. A
aprendizagem em seus colégios, segundo o diretor, desenvolvia-se de forma gradual, obedecendo
ao ‘plano da natureza’, progredindo em saltos. Além disso, ele baseava-se em argumentos
fisiológicos, apoiando-se no argumento que cada idade tinha sua aptidão e que, na vida
111

intelectual, o espírito infantil tinha a mesma ‘potência digestiva’ de um estômago na vida


corporal: “Si lhes são dados alimentos mais fortes, ou de mais difficil digestão do que comportam
suas faculdades, em vez de os digerirem e assimilarem, regeitam-nos; e, por sobre a nenhuma
utilidade, correm ainda o risco de molestarem e cansarem a memoria, o que é um grande mal”
(1890, p.9). Notamos nesta comparação uma visão estritamente fisiológica.
Na conferência na Exposição do Rio de Janeiro, Abilio argumentou que a inadequação dos

conteúdos e métodos nos três ou quatro primeiros anos da vida escolar dos meninos era ‘forçada,
fatigante e desagradável’, além de não garantir a eficiência da instrução:

Fazem a apregoada leitura corrente; escrevem talvez com bonita lettra, mas sem orthographia; executam
alguma de modo admiravel, embora machinalmente, contas difficeis, que não sabem applicar; recitam
outros sem tituebear regras e orações, que não entendem, assim como nada absolutamente entendem da
celebre leitura corrente; e tudo isso muitas vezes á custa da saude pela immobilidade a que são
condemnados durante longas horas diariamente, e tambem do caracter pelas durezas e injustiças, de que são
victimas (1888, p.7).

Era manifestada sua preocupação com a saúde, que poderia ser abalada em função da
sobrecarga de informações ou de exigências que não estivessem de acordo com a idade do aluno,
talvez tomando por base sua própria experiência (quando menino ele adoecera em função dos
estudos) ou mesmo sua preocupação com o desenvolvimento físico harmonioso da criança. Para
ele, no ensino primário, era o momento de instruir a infância para adquirir conhecimentos gerais,
como registrou na Lei Nova:

Basta dizer que comprehende elle as noçoes elementares de quasi todos os conhecimentos humanos, quer
scientificos, quer litterarios. Na escola, do mesmo modo que antes della, o ensino das crianças deve ser
geral. Só depois do curso primario ou já no fim deste, é que devem começar a especializaçoes. As
intelligencias infantis recebem quasi illimitadamente tudo quanto se lhes ensina agradavelmente e
methodicamente, e com mais gosto e facilidade os conhecimentos scientificos do que os litterarios (Meu
descobrimento). O ensino litterario elementar que começará pela grammatica, dou-o de par com os da
sciencias, em proporçao mui limitada e sem livro: - faço os meus pequenos grammaticos sem grammatica
(1882, p.54).

Ou seja, a infância, para Abilio, era portadora de características próprias, um dado que
deveria ser observado, pois cuidar do desenvolvimento infantil era uma garantia para a boa
formação do futuro cidadão. Para tanto era preciso incentivar a permanência da criança na escola,
se opondo ao ensino fatigante e, sobretudo, sem utilidade, pois a sociedade necessitava de
112

homens úteis, estudados e sábios. Atento a esses critérios, buscava argumentos que explicassem
as particularidades da infância em seu discurso de 1867:

O meu principal cuidado foi portanto despertar nos meus alumnos os sentimentos elevados e o amor ao
estudo, ao mesmo passo que procurava amenizar-lhes os gozos licitos, a que a infancia tem incontestavel
jus; porque sempre entendi, com Mr. Barrau, que o menino não é um homem, e sim a flôr da qual o homem
deve ser o fructo: a ingenuidade, a graça singela, o humor folgazao, a alegria turbulenta, a vivacidade
inconsiderada, são sua corolla encantadora, corolla que se desfolha com demasiada rapidez, quando depois
da flôr succede o fructo (1866c, p.56).

Se a criança era portadora de particularidades, nada como compará-la a uma planta que, se
bem cuidada enquanto broto (criança), daria flores (adulto). Outros autores que faziam parte da
pedagogia romântica, como Froebel e Pestallozi, de acordo com Arce (2002), faziam alusão à
natureza para falar da infância, comparando o desenvolvimento infantil com a semente, numa
clara tentativa de harmonizar o homem com a natureza desde a mais tenra idade.
A ênfase dada Abilio ao cuidado com o desenvolvimento infantil baseava-se em
argumentos diversos. Na década de oitenta, em sua Lei Nova do Ensino Infantil, ele recorreu aos
princípios da psicologia de Spencer para reforçar que cada período deveria ser respeitado, pois a
precocidade intelectual causaria um desequilíbrio nas forças vitais da criança:

Spencer disse com uma profundeza inimitavel que, aquelles que em sua preocupaçao exclusiva de
desenvolver o espirito, descuram os interesses do corpo, não se lembram de que o exito neste mundo
depende mais da energia physica do que dos conhecimentos adquiridos; e que, é apressar-se em busca de
sua propria derrota no combate da vida, o estender os conhecimentos á custa do desenvolvimento natural do
corpo. É por isso que a Lei nova não quer que o ensino escolar das crianças comece antes dos 7 annos
(1888, p.25).

Ao afirmar que a excitação cerebral, acompanhada de prazer, exercia sobre o corpo uma
influência grandemente fortificante, recorreu novamente a Spencer, salientando a verdade de que
a felicidade era o mais poderoso dos tônicos. Através da felicidade ativa, aceleravam-se os
‘movimentos do pulso’, cumprindo-se, assim, todas as funções do organismo, o que tendia a
aumentar a saúde ou restabelecê-la, quando perdida. Seria possível, desta forma, respeitando os
princípios da idade da vida, ritmados pela educação e instrução, fabricar, em etapas, o homem
esclarecido.
O diretor invocava e procurava reforçar o ensino prazeroso, já pronunciado desde a
década de cinqüenta do século XIX, e que se contrapunha ao ensino enfadonho, o qual obrigava a
113

criança a permanecer horas sem movimentar-se, sem recreios e sem alegria. As crianças, segundo
Abilio, antes de entrarem para a escola, já portavam idéias e conhecimentos, adquiridos de forma
espontânea no meio familiar. Esta naturalidade, contudo, era interrompida quando entravam para
a escola, juntamente com “sua tão interessante curiosidade de saber que com tanta naturalidade se
revela na loquacidade que os distingue, e suas infinitas perguntas que nunca se cansam de fazer”.
Mantendo-se o ‘ensino indigesto’, as crianças passavam de ativos a passivos, não
perguntavam mais, só respondiam, recorrendo somente à memória e perdendo,
conseqüentemente, o saber natural, a curiosidade e o encanto da ingênua e amável tagarelice. A
conseqüência deste ensino, segundo Abilio, era drástica, pois a criança, ao chegar aos dez, doze
anos, além de falar somente o que havia decorado ou o que falavam os livros e professores,
mesmo que já tivesse dominado a leitura e a escrita, não saberia usá-las, pois já teria esquecido
muita coisa. Isso, além da perda de tempo e da espontaneidade, poderia acarretar aversão aos
estudos.

Para Abilio, a criança era capaz de conhecer a própria capacidade. Pelo seu próprio
instinto ‘providencial’, conseguia distinguir a utilidade do que lhe era ensinado, pois sua
inteligência não aceitava, ou rejeitava, as lições que seu instinto reconhecia como indigestas ou
inúteis, da mesma forma que o estômago rejeitava os alimentos pesados, desagradáveis ou
nocivos. Ao definir que a criança, pelo seu espírito ‘providencial’, rejeitava o ensino inútil,
notamos que ele creditava à infância responsabilidade direta por sua aprendizagem, como um
adulto. Isso estava associado, de forma evidente, com os princípios religiosos, segundo os quais a
criança é obra de Deus:

De todo ensino recebido, a alma não toma sinao aquillo que ella quer, e rejeita o resto por mais que se faça:
nada mais do que os discipulos faz contra os dictames do coraçao ele aproveita. Assim, Deus, que a criou
para a liberdade, pôs em sua propria vontade, que fez independente, a garantia de seus direito (1866c, p.17).

A ‘alma infantil’ era dotada de capacidade que, segundo o autor, garantia o seu direito a
liberdade de escola. Dessa forma, não adiantava impor à infância conhecimentos inadequados
que não estivessem à altura de sua compreensão. O ensino inútil era criticado, tanto quanto o
ensino rígido que fatigava as ‘alminhas’:

As explicaçoes é que tornam cansativo, e portanto fastidioso e antiphatico o ensino da infancia, obrigando-a
ou della exigindo uma attençao, que não comporta sua debbil intelligencia; o que alias se não consegue por
114

mais que se faça. Os mestres estendem-se na suas explicações, porem as alminhas dos seus pequenos
ouvintes não os acompanham, ou porque as não entendem, ou porque pedem attençao prolongada, que não
podem sustentar. É ao que, com tanta propriedade, quanto espirito, chamava o grande padre Antonio Vieira:
Prégar aos peixinhos (1888, p.7).

Buscando apoio no Padre Antônio Vieira, educador jesuíta do século XVII, Abilio
propagava que o ensino deveria ser prudente e a aprendizagem introduzida aos poucos,
progressivamente, como se ‘pregasse aos peixinhos’, tudo ao seu tempo. Assim, a crença no
conhecimento, na ciência e na inteligência do homem não se encontrava desvinculada e nem era
oposta à religião. A razão e a inteligência humana eram condições básicas para formar uma
infância útil e moralizada, conforme os preceitos cristãos. Se fosse observada a inteligência
infantil inata, a curiosidade, a imitação e a vontade espontânea criadas pela Providência,
naturalmente ocorreria o desenvolvimento das faculdades cerebrais, da atenção e da memória.
A partir dessas premissas relativas ao desenvolvimento infantil (observadas pelo autor,
pautadas na ciência e na religião) que deveriam proporcionar um ensino alegre, de forma natural
e saudável, associando recreação ao ensino, Abilio estabeleceu uma rotina pautada em uma
divisão bem estabelecida das atividades, buscando inserir estes elementos. O programa que
consta a Divisão do tempo dos alunos no Ginásio Baiano descreve essa programação:

Pelas 5 horas da manhã levantar-se-ão os alunos, e, um quarto de hora depois, tendo-se vestido, composto
seus leitos (Os alunos da primeira classe serão lavados e vestidos por uma ama especial, a qual se
encarregará de compor seus leitos, e de todo o mais serviço do respectivo dormitório.) e lavado seus rostos,
dirigir-se-ão à sala do estudo, onde, feita uma ligeira oração, estudarão suas lições até 7 horas e meia.
Às 8 horas servir-se-á o almoço.
Das 8 e meia até meia hora depois do meio dia terão lugar todas as aulas que devem funcional durante a
manhã.
À 1 hora da tarde em ponto servir-se-á o jantar, depois do qual haverá recreação até as duas horas e meia,
quando começarão as aulas da tarde.
Ás 5 horas da tarde finalizarão todas as aulas, e principiarão os exercícios ginásticos, que durarão até as 6.
Ás 6 horas e um quarto começará o estudo em comum, o qual durará até as 7 horas e meia para a primeira
classe, e até as 8 e um quarto para as outras.
Ás 9 horas, depois de uma pequena oração, deitar-se-á a primeira classe, e meia hora depois as outras.
Os alunos da terceira classe poderão estudar das 9 horas e meia por diante em uma sala especial, precedendo
licença do diretor (Apud ALVES, op. cit., p.36).

Apesar de aparentemente rígida, esta era uma rotina típica de colégios em regime de
internato do período. O cronograma expressava o que era proposto pelos intelectuais que
defendiam que se deveria ocupar e preencher o tempo da criança de forma eficaz, produzindo,
assim, um projeto cívico de organização do trabalho, em voga neste período. Notamos uma
115

preocupação com a parte recreativa e um cuidado, aliado ao ensino, com o corpo através da
ginástica.
Prezando o desenvolvimento físico, o diretor também ressaltava o repouso, outro tema
caro para os médicos higienistas e, para reafirmar sua importância, afirmava que, mesmo as
pessoas que não pensam em nada, trabalham mentalmente em alguma coisa. Mostrando-se atento
a isso, colocou em seu ‘moderno plano de ensino’ exercícios graduados e alternados para
diminuir a fadiga e incitar a aprendizagem feliz.
Notamos que tinha preocupação com a primeira classe, à qual pertenciam os meninos
menores que teria acompanhamento de uma ‘ama’ para auxiliá-los nas primeiras tarefas matinais.
Importante ressaltar que o papel da mulher aqui não é o da professora e, sim, o da criada com
funções semelhantes às de uma mãe. Seus colégios, eram direcionados para o sexo masculino,
embora tenhamos encontrado algumas referências sobre a instrução para meninas em seus
pronunciamentos. Em 1871, salientou a importância da co-educação, pois, como a educação
deveria estar baseada na ‘bondade’, nada melhor do que a presença feminina para tornar o
homem melhor e mais honesto. Ressaltou, assim, a influência feminina positiva nas escolas do
sexo masculino e, apesar de não ter colocado isso em prática nos seus colégios, defendeu a causa,
tomando como base o ensino norte-americano:

A reunião nas escolas norte-americanas dos meninos dos dois sexos, entre os quaes se estabelece
naturalmente uma feliz rivalidade, produz, quanto a este ponto interessante da educação, resultados
notaveis: e esta não é a menos importante consequencia da co-educação dos dois sexos. E´ tambem uma
reforma que a anelo ver realizada em nosso paiz – esta da educação dos dois sexos promiscuamente nas
mesmas escolas (1890, p.16).

Em seus livros de leitura, como veremos posteriormente, o autor introduziu lições de


gênero, assim como, algumas ilustrações da infância feminina. Na Lei nova do ensino infantil, ao
fazer a defesa da escola primária, ressaltou que:

É o que ensina a Lei Nova, e é d’este modo que a escola primaria póde realizar a reforma gradual, posto que
lentados costumes; e preparar a mocidade de ambos os sexos, não so para desempenhar os deveres da vida
publica e as tarefas da vida economica, si não também para saber desempenhar os deveres e a tarefa de pais
e mãis de família (1886c, p.09).

Referindo-se ao papel da escola também para preparar mães de famílias, o autor estava
ciente dos parâmetros estabelecidos no período para o ensino feminino. Foi em meados do século
XIX que o número de estabelecimentos particulares destinados ao ensino do sexo feminino
116

cresceu de forma significativa116. Em uma boa parte destes, contudo, o ensino se reduzia aos
magros conhecimentos considerados imprescindíveis a uma dama: leitura e escrita, cálculo,
dança, piano, trabalhos de agulha, uma ou duas línguas estrangeiras e regras de etiquetas117.

Apesar de sua defesa do ensino primário, notamos que, sobretudo no início do Ginásio
Baiano, a maior parte do alunado pertencia ao ensino secundário, principalmente o preparatório,
que se iniciava, geralmente, aos 12 anos. No Regulamento do Ginásio Baiano, havia uma
cláusula informando que só haveria aula primária (pelo método Castilho) se houvesse ‘pelo
menos 30 alunos analfabetos’. Somente mais tarde este ensino ganhou uma importância maior,
provavelmente, devido à constante divulgação, por parte de Abilio, de métodos, livros e outros
materiais para este nível.
Também não podemos perder de vista que a instrução primária não tinha a mesma
relevância da instrução secundária no período, sendo comum as famílias mais abastadas se
ocuparem da alfabetização das crianças ou contratarem professores particulares para efetivarem
esse ensino. Isso retardava a entrada para a escola, que viria a se concretizar, normalmente, por
volta dos doze anos, quando as crianças eram encaminhadas diretamente para o ensino
secundário.
Como pudemos averiguar neste item, Abilio se mostrou um conhecedor do
desenvolvimento infantil, defendendo suas propostas com base no que compreendia ser a
condição ideal para que a criança tivesse um desenvolvimento harmonioso na escola primária. A
natureza era tomada como critério principal para ordenar o início da escolarização, devendo-se

116
Hilsdorf fez um levantamento de fontes sobre a presença feminina na educação escolar paulista, na segunda
metade do século XIX, com a intenção de elucidar a identidade feminina e contribuir para a reversão da ausência das
mulheres no âmbito da história da educação paulista oitocentista. A autora reconhece a presença, ainda discreta, de
estudos na história da educação sobre o tema, contudo destacou o século XIX como um espaço marcado pela
presença feminina. Ver mais a respeito do tema em Tempos de escola: Fontes para a Presença Feminina na Educação
– São Paulo – Século XIX (São Paulo: Plêiade, 1999).
117
Para Haidar (op. cit., p.234), se já havia alguém que discordasse da velha opinião portuguesa de que, para a
mulher, “o melhor livro é a almofada e o bastidor”, dificilmente se poderia encontrar no Brasil de meados do século
XIX alguém que defendesse a idéia de fazê-la letrada. As vozes mais ousadas limitavam-se a reivindicar-lhe a
formação intelectual necessária para o cabal cumprimento da dupla missão de mãe e esposa. Como uma notável
exceção, Haidar, citou o exemplo do Colégio Augusto, fundado na Corte em 1838, pela futura discípula de A.Comte,
Nísia Floresta. A propósito do exame de línguas deste estabelecimento, realizado em 1847, o jornal O Mercantil
expressou de forma crítica que: “Trabalhos de línguas não faltaram; os de agulha ficaram no escuro. Os maridos
precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos...”. Se o jornal fez restrições, o Núncio apostólico, presente nos
exames anuais de literatura, ficou maravilhado ao ouvir as alunas recitarem, em prosa e verso, os melhores autores
italianos. Surpresa requintada quando uma menina lhe fez lembrar as belezas da língua de Cícero, ao declamar mais
de uma centena de versos de Virgilio e traduzir Odes de Horácio. O colégio desapareceu na década de 50, com a ida
de Nísia para a Europa.
117

prestar muita atenção aos estudos da infância. Era preciso, por isso, evitar a entrada precoce na
escola, observando a separação por idade para evitar um ensino que exigisse além da capacidade
infantil, de modo que não fossem prejudicadas a espontaneidade e a vivacidade natural da
criança.
Os argumentos salientados por Abilio estavam em total sintonia com as prescrições dos
médicos higienistas investigados por Gondra (2004), pois estes também condenavam a
permanência imobilizada da criança entre quatro paredes, porque o ar viciado e não renovado
poderia causar-lhe doenças.
Além disso, se a criança ficasse curvada sobre livros que excediam o alcance de sua
compreensão, a atenção infantil poderia desaparecer, surgindo em seu lugar a aversão pela escola
e pelo conhecimento.
Médicos advertiam os diretores dos colégios para que reorganizassem as escolas em
consonância com a ordem médica. Eles deveriam compenetrar-se do grande valor e do alcance da
palavra ‘educação’, pois, na infância, o cérebro precisava de repouso e os músculos, de exercício.
Os argumentos de que o colégio, se não estivesse atento para estes conselhos, poderia oprimir,
aprisionar, deformar, enfraquecer a inteligência infantil, presentes nos discurso de Abilio,
estavam em total conformidade com discursos médicos acerca desse tema.
Apesar de valorizar o ‘vir a ser’ infantil, Abilio estava envolvido em discussões e projetos
que propunham, também, uma valorização e respeito à criança e, se isso não foi posto em prática,
é uma outra questão, pois sabemos que, a partir de iniciativas deste tipo, o mundo infantil foi
desvelado para que a criança fosse identificada com suas particularidades e necessidades.

2.1.2 Os professores da instrução primária: O mestre deve ensinar sempre e o discípulo


sempre aprender

Abilio, ao chamar a atenção para a questão da criança como um ser ativo e do respeito à
ordem natural do seu crescimento e de seus sentidos, salientou igualmente que, para que essa
prática se efetivasse com sucesso, era necessário que um professor moralizado e sábio assumisse
esta árdua tarefa. No século XIX, era unânime a opinião de que a moralidade e a capacidade
intelectual dos professores constituíam as condições fundamentais para o êxito da instrução,
estando nas mãos deles o papel redentor de instruir e educar os que eram o futuro da pátria.
118

Os critérios estavam postos e os mestres deveriam, primeiramente, portar uma moralidade


necessária à altura de sua responsabilidade, além de carregarem consigo, de forma instintiva, a
tão propagada vocação para o magistério. O discurso do presidente da Província do Sergipe, em
1866, exemplifica esses critérios: “O título de professor é honrado quando é sustentado por um
modo conforme aos deveres que impõe; não é uma simples tarefa; é uma função social; um
ministério moral.” (Apud: MOACYR, 1934, p.44)
Além do papel redentor delegado a esta categoria profissional, um dos destaques que
caracterizou este período foi a expressiva crítica dirigida aos mestres. A estes, era atribuída a
pesada responsabilidade do infortúnio e da situação caótica que caracterizava a instrução,
sobretudo a primária, sendo comum a referência de que as províncias gastavam, anualmente,
grandes cifras com ‘parasitas do magistério’, ‘velhos preceptores ineptos’, ‘prepostos da
afilhadagem e do compadresco eleitoral’, sujeitos que não ensinavam, não tinham discípulos e
viviam na ‘ociosidade’ etc.
No Brasil do século XIX, o provimento de cargos no magistério mobilizava um complexo
sistema de concessão ou intermediação de favores, em que o emprego público ocupava lugar
central. Segundo Vilella (Op. cit., 2005), reflexões clientelísticas amarravam o sistema social e
político e alto a baixo, definindo redes de lealdade baseadas em laços de família, amizade,
proteção. O emprego público era um dos principais elementos nesta configuração de trocas
materiais e simbólicas e uma cadeira na escola pública não escapava deste jogo de interesse.

Abilio, da mesma forma, enquanto esteve no cargo de Diretor da Instrução, não poupou
críticas aos professores da Província. Em sua opinião, não bastava somente uma formação
intelectual, pois de nada valeriam seus conhecimentos se não fossem um bom exemplo para os
alunos. Por isso, denunciou os professores do Liceu da Bahia, que se envolviam com jogos,
bebidas, brigas e outras atividades que traziam conseqüências funestas para os alunos. Definiu
uma boa parte do professorado como ‘indecentemente ignorantes’, complementando que, mesmo
que trabalhassem de graça, seu trabalho ainda era ‘caríssimo’. No segundo relatório, acrescentou:
“E’ difficil fazer-se uma idéa da estupidez e ignorancia de alguns professores dessa bela
Provincia que passa por uma das mais ferteis em talentos e rica cultura.” (Apud RIGHBA, op.
cit., p.298).
119

Figura 12 A obra Vinte dous annos em


prol da elevação dos estudos no Brazil,
foi publicada pela primeira vez em 1880.
A mesma reúne textos de Abilio a
respeito da instrução primária. Divulga
sua experiência e aconselha pais e
mestres a incentivar o acesso e a
permanência da criança de sete a doze
anos na escola (Fonte: BNRJ – Foto:
Diego Valdez).
120

Figura 13 A Lei nova do ensino infantil, publicada em 1882, foi resultado de um curso especial sobre instrução
primária que Abilio ministrou para os professores do colégio da Corte. De acordo com o autor, essa lei baseava-se
nos ‘princípios da pedagogia moderna’, assim como em seus conhecimentos e experiências enquanto educador e
defensor da instrução primária. A publicação deste material não se limitava somente aos professores para a educação
dos seus discípulos como também servia para os pais de família educarem seus filhos (Fonte FCM – Foto: Diane
Valdez).
121

Os motivos registrados nas fontes que sustentavam as representações negativas acerca do


professorado eram relativamente amplos. Além de ser um cargo que refletia as relações pessoais
corporativistas, como já salientamos, a ausência da vocação, a falta de inspeção (por parte do
governo), a formação intelectual precária, a questão da vitaliciedade, os salários baixos
justificavam o péssimo desempenho, segundo os que criticavam a categoria, vista com
desconfiança por políticos e intelectuais.

Segundo os relatos mais críticos, o governo, ao repassar dinheiro aos professores das
escolas domésticas (presentes em uma boa parte do Império), deixava de inspecioná-las de forma
conveniente e muitos mestres sustentavam paralelamente duas escolas, uma na sala melhor para
os discípulos particulares, que lhes pagavam, e outra para os discípulos públicos, metidos em
sótãos ou lugares mais incômodos, totalmente desassistidos. Desta forma, os relatórios oficiais
questionavam a obrigatoriedade do ensino primário, pois era inviável obrigar os pais a mandarem
seus filhos para a escola que, além de funcionarem em locais impróprios, ainda corriam o risco de
perverter as crianças, seja pela péssima influência de alguns professores, seja pela ‘suprema
ignorância’ ou pelo ‘escândalo de seus costumes’.

Para Abilio, era fundamental separar a vida privada da vida pública do professorado.
Defendeu por isso a construção de prédios escolares onde não residissem os professores e as
quais teriam acesso somente aos mestres e discípulos, evitando a aproximação da família
(referindo-se as escolas domésticas), que poderia roubar a atenção ou distrair os alunos das
obrigações, além de que, isto daria um caráter de importância ao magistério. O próprio Abilio,
como diretor de colégios particulares, não morava em suas dependências, deixando isso a cargo
de funcionários destinados para este fim.
A incapacidade do professor era um dos motivos atribuídos à precariedade do ensino,
portanto sugeria-se uma ampliação do espaço e recursos para que as escolas normais pudessem
formar professores dignos. Para Abilio, só haveria bons mestres para instruir as crianças do
ensino primário se o espaço da Escola Normal fosse remodelado e transformado em Internato
Normal, pois a ‘vida agitada’ das cidades não poderia oferecer boa formação aos alunos-
mestres118:

118
Ao defender que o futuro do magistério primário dependia de uma boa formação provinda da Escola Normal,
sugeriu sua reorganização e se posicionou firmemente contra a fusão da Escola Normal com o Liceu, pois o aluno-
mestre era merecedor de uma instrução e educação especial. Sugeriu, assim, a implantação do ‘exame de admissão’,
122

A formação docente institucionalizada ocorreu com o aparecimento das primeiras escolas


normais instituídas a partir das décadas de trinta e quarenta do Brasil oitocentista. De acordo com
Vilella (Ibid.), a primeira metade do século XIX não foi favorável à consolidação da formação
dos professores das primeiras escolas normais que se criaram, pois, em geral, estas instituições
caracterizaram-se pela mesma situação de instabilidade evidenciada por reformas sucessivas,
extinções, transformações, mudanças de prédios etc.

Na segunda metade do século XIX, no entanto, houve um reflorescimento das escolas


normais, promovido por diversos fatores. Segundo a mesma autora, a Escola Normal tinha um
tríplice desafio na formação dos professores: era preciso ensinar os mestres a saberem se portar, a
saberem o que ensinar e a saberem como ensinar. Desta forma, a partir da década de sessenta, a
escola normal deveria formar professores para que, além de ensinarem a ler, a escrever, a contar e
a rezar, formassem também um cidadão produtivo para o país.

A incompetência e o desleixo atribuídos aos professores provinham também dos defeitos


da vitaliciedade, pois, se qualquer pai de família podia despedir os mestres dos filhos quando
reconhecia sua ‘inabilidade’, o governo precisava de inúmeras formalidades para despedir um
mestre conhecidamente vicioso, jogador, ébrio, relaxado, além de outros defeitos. Abilio se
posicionou firmemente contra a vitaliciedade, propondo que ela só fosse adquirida depois de
cinco ou seis anos de exercício de magistério, e também que a perdesse o professor que, depois
de tê-la conquistado, fosse suspenso três vezes em vinte anos.
Para ele, a jubilação (aposentar com honra) não deveria ser um direito indistinto, deveria
ser somente para os que tivessem notas de ‘bons serviços’. Ele também condenou as gratificações
adicionais que faziam permanecer nos cargos professores não eficazes, pois postulava que no
magistério deveriam permanecer as pessoas que fossem ‘dignas’ disso, devendo o Estado
conceder a jubilação aos que a pedissem e demitir os incapazes. Por um outro lado, segundo
Abilio, não eram todos os professores que estavam inseridos no triste quadro dos ‘sem vocação’,
havia os comprometidos e sérios, que eram merecedores de ‘favores e proteções’.

medida que poderia evitar os atestados dados por mestres primários inescrupulosos aos ‘alunos-prontos’, os quais
permitiam a matrícula dos futuros alunos mestres. O dito exame exigiria o conhecimento de português, latim e
francês, pois a seu ver: “Individuos assim habilitados hão de infallivelmente alcançar grande proveito da Escola
Normal e conseguinte o nosso professorado primario ha de infallivelmente rehabilitar-se” (Apud, RIGHBA, op.cit.,
p.176).
123

Sugeriu, portanto, que o governo lhes proporcionasse uma biblioteca com revistas e livros
que contribuíssem para sua na formação intelectual, insistindo, ainda, na importância de
qualificar e pagar bons salários para os professores, pois considerava impossível um mestre
manter-se com 400$000 no interior e 600$000 mil rés na capital. Sugeriu ele, ainda, que o
legislativo provincial criasse, a exemplo de alguns países da Europa, um montepio dos
professores, ou seja, uma espécie de aposentadoria, recolhida anualmente (uma pequena soma),
além da criação de animações honoríficas (como na França), incluindo amovibilidade
(transferência), como prêmio ou punição para os professores119.
Um bom colégio, segundo Abilio, deveria ser a perfeita imitação de uma ‘família bem
regulada’ e o transmuto fiel de uma sociedade bem constituída. Desta forma, os mestres, devido
ao seu papel relevante, deveriam também agir como um amigo ou um pai carinhoso para com o
aluno, uma sabedoria à qual os filósofos da Antigüidade já estavam atentos:

Já dizia Quintiliano que o mestre, para ser digno de tal nome, devia antes de tudo ter entranhas de pai,
despendendo com seus discipulos a doçura, a paciencia, e essa ineffavel bondade que são naturais no
coração paterno. Terencio tambem se exprimia assim e Seneca no seu tratado De Ira preceitua, que aqueles
que se occupam do governo dos outros devem para curar os espiritos, começar pelo uso de doces
advertencias e argumentos suasorios, fazendo-os amar a honestidade e a justiça e inspirando-lhes horror ao
vicio e estima para a virtude (1866c, p.163).

Se ao professor era atribuída tamanha responsabilidade, aos alunos cabia a tarefa de


respeitar, honrar e amar os mestres. Abilio não se cansava de dirigir suas falas aos alunos,
aconselhando-os a valorizarem seus professores, pois, se a instrução era tida como elemento
essencial para mudar os rumos do país, os futuros ‘homens de bem da nação’ ou os ‘dotados pela
natureza’ deveriam amar os mestres e tê-los como amigos. O amor, a amizade e o respeito

119
Buscamos nos relatórios oficiais (MOACYR, op.cit.) os valores pagos anualmente por algumas províncias para a
carreira do magistério público. Havia critérios diferentes na remuneração entre ‘professores’ (ensino primário) e
‘lentes’ (ensino secundário), sendo os últimos remunerados de acordo com a cadeira que ocupavam (francês,
geometria, gramática etc.). Algumas províncias complementavam o salário com gratificações que variavam de
acordo com o número de alunos ou conforme os critérios estabelecidos por cada província. Havia uma diferenciação
entre os professores de cidades, vilas e área rural. Não nos ateremos a esses critérios, vamos simplificar e estabelecer
uma média entre menor e maior salário. Optamos pelo período da década de cinqüenta do século XIX para nos
aproximarmos do período da passagem de Abilio pelo cargo. Espírito Santo: 350$000 e 6000$000; Minas Gerais:
500$000 e 800$000; Paraná 600$000 e 800$000; Santa Catarina: 800$ e 1.000$000; Rio Grande do Sul: 400$000 e
800$000; Goiás 300$000 e 1.000$000. Segundo alguns relatos, os baixos salários pagos eram motivos de
descontentamento geral e, enquanto um pedreiro ganhava diariamente 2$000 ou mais por dia, um professor primário
ganhava menos de $800 réis diários. O salário do Diretor da Instrução era de 1:200$000.
124

sugeridos por Abilio deveriam ser traduzidos em uma única prática: a obediência, dever que as
crianças teriam que ter com os pais, estendendo-o aos mestres:

Si vossos pais vos deram o ser, e fazem toda sorte de sacrificios para vosso bem; a vossos mestres sois
devedores d’esses estremecidos cuidados de todos os dias e de todas as horas na cultura de vosso espirito, e
na boa direcção dos sentimentos de vosso coração, sem o que não podereis ser felizes n’este e no outro
mundo (Ibid, :p.60).

Abilio tinha para com os professores de seus estabelecimentos um grau de exigência


muito grande120. Alguns de seus ex-professores afirmaram que, se não trabalhassem mais do que
os alunos, não permaneciam no cargo121. Os professores de seus estabelecimentos eram
escolhidos criteriosamente pelo diretor, fazendo parte deste quadro padres intelectuais, bacharéis,
engenheiros, doutores, artistas, além de professores estrangeiros, trazidos pelo diretor para
ministrar aulas de línguas. Abilio levava a sério a exigência da “vocação real” e, freqüentemente,
presidia aulas para mostrar aos professores como entendia que o ensino fosse administrado. Era o
que ele chamava de ‘educar os professores’. O item Dos professores contido no Regimento do
Ginásio Baiano trata deste assunto:

1. Os professores do Ginásio são obrigados a mais restrita assiduidade.


2. O professor que, sem motivo justificado, deixar de comparecer em sua aula, será despedido.
3. Será igualmente despedido aquele que der mostras de pouco zelo e interesse pelo adiantamento dos
respectivos.
4. A demora, não justificada, de qualquer professor, até 10 minutos, depois da hora em que deve começar
sua aula, além de ser contada como falta, será razão para desconto proporcional no respectivo ordenado.
5. Nenhum professor poderá levantar da cadeira, antes de terminado o espaço do tempo marcado para
cada sessão diária de sua aula (Apud ALVES, op. cit., p.33).

Em correspondências trocadas com alguns professores, por ocasião de suas viagens para a
Europa, notamos sua exigência para com esta classe. Enviou uma carta de Paris, em 1866, na
qual reclamou da interrupção de algumas atividades consideradas vantajosas para os meninos do
Ginásio Baiano. Esclareceu aos professores Dr. Carneiro e Satyro Dias122 que os dois seriam

120
Abilio nunca admitiu que os professores de seus colégios fizessem parte da banca de exames. Para ele, isso
poderia colocar em dúvida suas criticas ferrenhas ao que ele entendia por privilegiar os alunos.
121
Teodoro Sampaio, que foi professor de matemática e filosofia do Colégio Abilio, no Rio de Janeiro, lembra que
Abilio era ‘moralizado, prudente e enérgico com os professores’, sabendo distinguir os mesmos, que ele não
explorava, mas dos quais exigia ‘qualidades de compostura e de ação’ (ALVES, 1942, p.101).
122
Satyro Dias seguiu o ramo da política. Na ocasião da morte de Abilio, em 1891, era Diretor Geral da Instrução na
Bahia e recomendou aos professores da capital que suspendessem os trabalhos nas escolas, em sinal de pesar pela
morte do Barão de Macahubas, definido por ele como o ‘grande mestre, amigo da infância brasileira, fundador dos
novos métodos de educação e ensino no Estado da Bahia’.
125

responsabilizados por qualquer interrupção das atividades no Ginásio. Referia-se ele ao fato da
data Dois de Julho123 não ter sido comemorado em função da chuva: “Não o posso desculpar.
Alguma cousa se devia ter feito, por pouco que fosse; mesmo dentro da casa, e com pouca gente.
Pois é possivel que nem um grão de incenso se queimasse ahi nesse patriotico Gymnasio? No
Altar da Pátria, em seu dia por excellencia?” (Apud RIGHBA, op. cit., p.364).
Na visão do diretor, o professor era insubstituível e era essencial que as primeiras lições
fossem dadas por um sábio. Ao destacar o papel dos mestres na formação das crianças, no
prólogo do Segundo livro de leitura, Abilio buscou, mais uma vez, argumentos baseados na
história da Antigüidade:

Semear, pois, as primeiras sementes das boas idéias, e dos bons sentimentos, na alma e no coração dos
meninos, é sem duvida, um emprego que so os parvos poderão considerar somenos, e que certamente não
desdouraria aos talentos mais illustres. Quem procurou Felipe da Macedonia para dar as primeiras lecções a
seu filho, que foi depois Alexandre o Grande? O primeiro sabio da epocha, Aristóteles (1866c, p.9).

Exigia maior paciência dos mestres para que estes não condenassem seus alunos ao
silêncio e à imobilidade, submetendo o espírito infantil em esforço sobrenatural. Abilio criticava
os mestres que eram levados por um zelo exagerado ou dominados ainda pelo influxo da antiga
rotina e que davam grande importância à aquisição de conhecimentos por meio da memória, não
se importando com a parte instrutiva do ensino das crianças. Ao professor, segundo ele,
convinha, antes de tudo, gerar hábitos, desenvolver propensões, corrigir tendências e, por meio de
exercícios graduados, tornar os meninos aptos a observarem por si mesmos, a julgarem e
resolverem por si, assumindo, pouco a pouco, debaixo da influencia do pátrio poder, a direção
individual de seu próprio destino.
O mestre era o responsável por captar a atenção dos meninos, pois qualquer desatenção
dos discípulos provinha de assuntos que excediam a compreensão do aluno e, sobretudo, era uma
conseqüência da imperícia destes profissionais. Segundo ele, era impossível obrigar os alunos a
estarem atentos às lições, pois a atenção, da mesma forma que a vontade, estava fora do alcance
da autoridade humana. Desta forma, só se obteria alunos atentos através da conquista quando os
mestres tornassem a lição agradável.

123
Essa data à qual nos referimos anteriormente era muito comemorada no Ginásio. Encontramos vários poemas
‘declamados’ no outeiro sobre esse tema, feitos pelos alunos e professores.
126

Acusou os professores que usavam de castigos físicos para obter resultados das crianças,
pois não era atenção e, sim, apatia, que os meninos aparentavam diante de mestres brutais e da
palmatória. O mais importante era que o professor não obrigasse e, sim, exercitasse o amor pela
escola, inspirando nos meninos o gosto pela instrução, assim como também aguçando sua
curiosidade e convencendo-os das grandes vantagens da escola, que deveria se tornar convidativa
pela variedade, amenidade e utilidade do ensino.

Um bom professor também deveria portar uma boa formação de caráter para exercer sua
sagrada missão. Se o mestre era a referência, um exemplo a ser seguido, não poderia abrir mão
das atividades religiosas. Portanto, desde que era Diretor da Instrução, Abilio recomendava-lhes
que acompanhassem seus discípulos nas missas e, em seus colégios, exigia a presença de seus
professores em diferentes rituais católicos.

Nos quadros de docentes de seus estabelecimentos não encontramos a presença de muitos


profissionais do sexo feminino, além das amas que auxiliavam os meninos pequenos nas tarefas
de se vestirem e outras atividades domésticas. Em seu colégio de Barbacena, a classe de
principiantes estava a cargo de Dona Luiza G. De Góes, professora formada no Internato Normal
de Bahia.

É sabido que, na segunda metade do século XIX, a presença feminina nas escolas, atuando
no magistério, era defendida por inúmeros intelectuais, sobretudo pelo fato da mulher ser a mais
indicada, pela postura doce e maternal, para atuar na instrução da criança do ensino infantil e
primário. O pensamento liberal cientificista não abriu mão da reserva feminina para realizar a
grande tarefa de regenerar a população. A presença feminina fazia parte do cotidiano dos colégios
de elite apoiados e criados pelo grupo republicano da província de São Paulo, esclareceu Hilsdorf
(1986).

As exigências postas por Abilio, assim como por outros intelectuais do período para com
os professores, as quais incluíam requisitos intelectuais e morais, tinham por função principal
garantir a boa formação moral e intelectual dos alunos. Para isso, os mestres deveriam conhecer
bem os alunos, ter paciência e autoridade, investir na sua própria formação, ser felizes e honrados
para, desta forma, conduzir o alunado no caminho da formação de uma sociedade com as mesmas
aspirações. Critérios não tão diferentes dos que são postos nos dias atuais.
127

2.3 Os métodos de ensino: Qualquer método é bom quando o professor é eficiente e o aluno é
inteligente

O ideal pedagógico de Abilio centrava-se na formação da criança que se desenvolveria


através do cuidado com o corpo, como ginástica, práticas de higiene e de boas posturas, e
também com a mente através do conhecimento científico e literário clássico, assim como pelo
cuidado com a alma, através das práticas religiosas voltadas para a exaltação do amor divino
presente no ensinamento ético religioso do cristianismo.
O tripé saúde, moral religiosa e ciências favoreceria a harmonia interior e formaria bons
homens para servir a sociedade. Para discutirmos formas ou métodos adequados para transmitir
esses princípios, foi necessário localizarmos as idéias que circulavam no período, a fim de
compreendermos, então, o que o autor entendia por métodos e formas de ensinar. As idéias de
Abilio se transmutavam, tendendo as experiências acumuladas a serem transformadas, alterando a
medida dos resultados e mesmo das influências postas em voga.
Enquanto ocupou o cargo de Diretor da Instrução, defendeu com afinco o Método
Castilho para a instrução primária, assim como criticou o Método Individual124 por convir
somente às escolas com poucos alunos, da mesma forma que o Método Mútuo125, indicado pela
legislação. A exemplo de outras autoridades se posicionou contra este último, seja pela falta de
professores e de monitores zelosos e perseverantes, seja pelo pouco resultado que apresentava.
Citou os países que o haviam adotado, comprovando que a experiência mostrara sua ineficácia.
Por outro lado, destacou o ensino simultâneo como a melhor opção.
O ensino monitorial e mútuo foi introduzido oficialmente pelo Decreto das Escolas de
Primeiras Letras de 1827, que propunha a criação das escolas primárias, com a adoção do
método lancasteriano como oficial. Antes desta legislação, segundo Bastos, uma boa parte das
escolas adotava o ensino individual, que consistia em fazer com que cada aluno, individualmente,
lesse, escrevesse e calculasse. O professor dedicava pouco tempo a cada aluno e o emprego de
meios coercitivos garantia o silêncio e o trabalho. Não havia a adoção de um programa e as

124
Criado por Jean-Baptiste de La Salle, no fim do século XVII.
125
De acordo com Bastos (2005), André Bell (1753-1832) e Joseph Lancaster (1778-1832) reivindicam a paternidade
do método. O primeiro, médico e pastor anglicano, não podendo contar com mestres capacitados em um orfanato que
dirigiu, teve a idéia de utilizar os melhores alunos como monitores para transmitirem o conhecimento aprendido aos
demais alunos. Ao mesmo tempo, Lancaster, da seita dos Quackers, criou uma escola para crianças pobres em
128

variações, de escola para escola, eram imensas. No método simultâneo, que se generalizou nas
escolas primárias do Brasil a partir da década de cinqüenta do século XIX, o professor, o agente
de ensino, instruía e dirigia, simultaneamente, todos os alunos, divididos de acordo com o grau de
instrução, embora o material fosse o mesmo para todos.
Já no método mútuo, esta responsabilidade era dividida entre professores e monitores. O
aluno que se distinguia recebia do professor explicações e indicações particulares, que transmitia
aos seus colegas, indicando o texto e averiguando a leitura destes, além de repreendê-los diante
de algum erro, até que superassem a dificuldade. O papel do professor era restrito, cabendo ao
monitor controlar a classe e classificar os alunos. Segundo Bastos, no Brasil, não houve a
implantação do método conforme foi idealizado pelos ingleses:

O que ocorreu, foi a adoção de medidas legais e de muita discussão política em torno das vantagens e
desvantagens do método, e das dificuldades de implementação de escolas mútuas. Na prática, não tivemos
uma escola que comportasse mais de cem alunos, além de um número reduzido de professores realmente
com domínio do método e com o material necessário para seu desenvolvimento (Ibid, p.49).

Oficialmente, a partir da Reforma Couto Ferraz, em 1854, o método simultâneo foi


adotado nas escolas, ficando ainda a cargo do Inspetor e Conselho de estudos determinarem
convenientemente outro método, conforme seus recursos. Bastos averiguou, a partir de vários
documentos, a permanência do ensino mútuo durante todo o período monárquico, sobretudo pela
falta de professores. Após a Reforma Couto Ferraz, encontrava-se nas escolas a presença do
método simultâneo, do mútuo e de um sincretismo de ambos, o método misto, no qual o professor
dava uma parte do ensino, confiando a outra aos monitores.
Abilio não era um adepto do método mútuo, pois, para ele, a presença do professor no
ensino era fundamental. A princípio, defendeu que o ‘divino método’ de Castilho era o ideal pelo
fato das crianças aprenderem brincando, sem esforços e com muita alegria126. Enquanto exerceu

Londres e, diante da dificuldade de instruir gratuitamente os alunos, dividiu a escola em várias classes, colocando em
cada uma um aluno com conhecimento superior, como monitor.
126
Este método já era aplicado na Bahia por dois professores, que foram aprendê-lo no Rio de Janeiro, diretamente
com o Visconde de Castilho. No Relatório (apud: MOACYR, 1939, p. 97.) de 1854, o Presidente da Província da
Bahia (João Mauricio Wanderley) discorreu sobre a necessidade de indicar professores ‘hábeis’ para irem a Portugal
estudar o método de leitura repentina do distinto literato Antônio Feliciano de Castilho, pois era necessário conhecê-
lo na prática. Porém registrou sobre a vinda de Castilho ao Brasil: “Felizmente o sr. Antônio Castilho resolveu-se a
vir ao Brasil e pretende abrir na Corte um curso de seu sistema que durará de março a maio. Aproveitando tão
favorável ocasião nomeei o professor Felipe Alberto para estudá-lo, com o que ter-se-á de fazer uma despesa de
800$000, quantia insignificante em relação à grandeza do fim; conto com a aprovação deste ato pelo poder
129

seu cargo de Diretor da Instrução, visitou as escolas que adotaram este método e, com satisfação
e admiração, considerou-o uma verdadeira ‘carta de alforria e redenção da infância’, pois, além
da eficiência no ensino da leitura, não havia ‘sequer uma ameaça de castigo’ por parte do
professor. Registrou em seu Relatório de 1856 sua admiração, ao perceber o aproveitamento dos
meninos com menos de dois meses de escola:

Alli se acham as materias de ensino tão simples e naturalmente encadeiadas, filiadas por tal arte, que se
parte do simplissimo para o simples, deste para o mais composto, marchando sempre a intelligencia do
conhecido ao desconhecido por uma gradação tão doce e imperceptível, que o espirito das creanças se vai
como deslisando por tudo com satisfação e presteza indiziveis, satisfação e presteza que mais se augmentam
com a associação do canto, das palmas, e mais evoluções que constituem toda a amenidade e infantilidade,
se assim me consentem dizer, da maravilhosa producção do grande talento portuguez (1856, p.53).

Desta forma, Abilio procurava convencer que a Bahia, com suas idéias de progresso,
respeito à cultura da inteligência, assim como pela posição de ilustração que ocupava no cenário
nacional, teria que adotar este método. António Feliciano de Castilho (1800-1875) foi um escritor
português, também conhecido por visconde de Castilho. Em 1850, publicou, em Lisboa, o seu
Método de Leitura Repentina e, em 1855, veio ao Brasil com a intenção de divulgar seu método.
Ministrou conferências na Corte e deu cursos para diretores e professores. Nos relatórios oficiais,
alguns presidentes sugeriram a indicação de um professor (inteligente e zeloso) para fazer o curso
do método de Castilho na capital do Império e alguns em Portugal. O método por ele proposto
encontrou, apesar disso, fortes opositores que Castilho combateu com polêmicos textos.
No Ginásio Baiano, o diretor adotou, primeiramente, este método e, durante um largo
tempo, elogiou o ‘ilustrado’ Castilho. Podemos até mesmo afirmar que suas idéias baseadas na
aprendizagem alegre, na educação amorável e outras marcas semelhantes, provieram deste
método. Não se importou com os críticos de Castilho, os ‘anônimos de maus corações’, que
rejeitavam tudo quanto era inovação e ‘nem possuíam convicções’. Essas observações cáusticas,
provavelmente, se dirigiam aos críticos que, na década de setenta, era um grupo de republicanos
que rejeitavam os métodos de Castilho, de Abilio e de outros vistos como representantes da
monarquia.
Segundo Hilsdorf (1986), os métodos de João de Deus, Silva Jardim, João Köpke e
Hudson eram aceitos pelos republicanos que os divulgavam amplamente no Jornal Província de

legislativo”. Abilio também sugeriu que a Província escolhesse alguns professores mais talentosos para aprenderem o
método com este mesmo professor que já o havia adotado.
130

São Paulo, dirigido por republicanos adeptos ou simpatizantes do positivismo. Eles viam João de
Deus como o grande ídolo dos republicanos portugueses127. Em contrapartida, com exceção dos
anúncios pagos do jornal, não mencionavam os métodos de Castilho, Abilio e Freire da Silva e
outros próximos do poder monárquico. João de Deus foi elogiado por Abilio, não como Castilho,
porém não percebemos quaisquer rusgas dele em relação a este autor.
Abilio ressaltou também outros métodos e criou, posteriormente, o método Macahubas,
que apresentava poucas novidades em relação aos outros. Na Lei Nova do Ensino Infantil,
registrou que o ‘método antigo’, razoavelmente modificado, era o ideal, demonstrando não ser
adepto de um só método. No que se refere aos métodos de leitura, não era favorável à soletração,
porém ressaltou que, para ensinar a ler, todos os métodos eram bons, já que o sucesso da leitura
estava relacionado, sobretudo, à competência do mestre e a inteligência do discípulo128.
Podemos afirmar, no entanto, que o método intuitivo era a referência principal da
pedagogia deste autor. Como o próprio Abilio ressaltou, nos primeiros tempos do aprendizado, as
lições teriam que ser dadas a vista de objetos para prender os olhos e a atenção dos meninos.
Neste ensino, a moral deveria ser exemplificada: “Do conhecido parte-se para o desconhecido; da
materia se deriva a existência do espírito e do poder de Deus; das phrases, das palavras se tiram
os exemplos e exemplos escolhidos, para conhecimento das regras grammaticaes” (Apud
RIGHBA, op. cit., p.46).
Constatamos que, além do ensino baseado na moral cristã, o diretor compreendia a
importância do conhecimento científico. Era incessante sua busca por novos materiais para
ensinar conteúdos das ciências naturais, ressaltando constantemente a importância dos meninos
acompanharem os progressos da ciência. Essa preocupação foi registrada em carta enviada de
Paris (em 1866) ao professor Carneiro:

Na Revolução nova que projeto fazer no ensino da mocidade brasileira, entre os melhoramentos que
pretendo introduzir, há de caber muita parte ao cultivo das ciencias naturais, dando-se a possivel extensão

127
Segundo Hilsdorf (1986), João de Deus, poeta português, criou sua própria cartilha para substituir os usuais
abecedários e seu método foi rapidamente propagado pelas escolas de Portugal. O autor representava idéias
democráticas, na linha do partido republicano português. Seu método foi difundido, no Brasil, por Antonio Zeferino
Candido, positivista ativo e foi endossado, na década de oitenta, por Rangel Pestana, Silva Jardim e outros
republicanos.
128
Ao citar alguns autores e métodos europeus, Abilio observou que a Alemanha teve o método Feinaigle, a França
os métodos Lemare e Jacotot, Portugal o método Castilho e de João de Deus. No Brasil surgiram, embora não se fale
mais neles, os métodos Pinheiro (Ba-ca-da-fa) e Hudson. Era necessário, portanto, que se criassem outros métodos,
como ‘método Macahubas’, criado pelo próprio Abilio.
131

ao ensino dos fenômenos mais comuns da natureza, explicaveis pela pela fisica e pela quimica. Não faz
ideia, meu amigo, da distancia em que a instrução preparatoria da mocidade se acha em nosso país, do que
se dá por toda a Europa! Os meninos aqui sabem mais historia e ciencias do que os homens de letras em
nosso caro Brasil (Apud ALVES, 1943, p.32).

Abilio não escondia seu desejo de implementar no Império brasileiro, sobretudo em seus
colégios, o modelo de instrução europeu. Foi a partir da década de década de setenta que seu foco
se voltou para os Estados Unidos, país que, para ele, havia obtido uma incontestável
superioridade na instrução primária. Buscando apoio no ‘ilustrado pedagogista’ norte-americano,
Celéstin Hippeau, Abilio continuou a buscar dados para referendar o ensino concreto e
experimental129. Utilizando como exemplo o progresso do ensino primário dos Estados Unidos,
registrou na introdução de seu Terceiro livro de leitura que, desde os tempos do Ginásio Baiano,
já empregava o método reconhecido por Hippeau e que dava aos Estados Unidos:

Eu quizera, pois, por bem da instrucção publica do meu paiz, ter auctoridade bastante para convencer a
todos os professores, de que em que todas as materias deve o ensino concreto e experimental preceder ao
theorico e abstracto; e reclamo sua attenção para a seguinte transcrição que aqui faço do notavel relatorio
que, sobre a instrucção publica nos Estados Unidos, dirigiu o illustrado pedagogista Mr. Hippeau ao
governo francez, pelo qual havia sido comissionado para ir estudar os progressos do ensino naquelle paiz
admiravel, que, segundo afirma o mesmo illustrado relator, está superior, neste importantissimo ramo de
serviço, a todos os paizes da velha Europa, ainda mais os adiantados. (1890, p. 07).

A partir da segunda metade do século XIX, o método intuitivo, também conhecido como
lições de coisas, generalizou-se como o mais adequado à instrução das classes populares. O
método, não era uma novidade130 porém o clima de descontentamento proporcionou um amplo
movimento de renovação pedagógica, no qual este método foi reconhecido como o instrumento
pedagógico capaz de reverter à ineficiência do ensino escolar.

O método intuitivo, segundo Schellbauer (In: STEPHANOU; BASTOS, 2005), veio para
o Brasil na bagagem de nossos intelectuais ilustrados, homens públicos, reformadores, juristas,
proprietários de escolas, diretores e professores. No decorrer da década de setenta, algumas

129
Segundo Bastos (2002), as idéias de Hippeau foram apropriadas pelas elites do Brasil, tomando novas formas e
traduções condizentes com a realidade brasileira, muitas vezes, em sentido contrário àquele preconizado por seu
autor. Suas idéias agradavam à elite ilustrada porque mostravam as modernidades educacionais, as inovações
pedagógicas e os progressos alcançados nos países mais desenvolvidos, nos quais deveríamos nos espelhar, auto-
legitimando, assim, suas propostas para a educação brasileira. A partir da segunda metade do século XIX, os EUA
tornaram-se, gradativamente, referência e, juntamente com a França, passaram a ser modelos para o Brasil. A
apropriação se deu por dois relatórios elaborados com olhar francês de Buisson e Hippeau. Como assinalou Bastos,
se os EUA adotaram as referidas propostas e os franceses aplaudiram, por que não fazer o mesmo no Brasil?
130
O ensino pelos ‘sentidos’ já era proposta de Locke, Pestalozzi, Froebel e outros.
132

iniciativas, na Corte preconizaram o método: Benjamin Constant (Instituto dos Meninos Cegos),
Alambary Luz (Escola Normal do Rio de Janeiro), Menezes Vieira (Jardim da infância), Leôncio
de Carvalho (Decreto de 1879) e Abilio em seu colégio da Corte. Na Província de São Paulo,
intelectuais republicanos evidenciaram-no, sobretudo, através dos jornais A Província de São
Paulo e A Gazeta de Campinas. Personagens como João Köpke, Rangel Pestana, Silva Jardim,
Américo dos Campos, Júlio Ribeiro, os irmãos Prudente de Moraes, entre outros, fundaram um
discurso em torno do método intuitivo e implementaram algumas iniciativas práticas, sobretudo
em escolas particulares, além de apoiarem as experiências trazidas pelos protestantes norte-
americanos.

O manual Primeiras lições de coisas, de Norman Allison Calkins, educador americano,


foi largamente traduzido nos século XIX. Para Valdemarin (2004), o manual se constituiu como
uma proposta de efetivação do método intuitivo, demarcando seus princípios norteadores e
desdobrando-se em lições, exercícios e atividades. Traduzido por Rui Barbosa, em 1882, foi um
marco significativo da tentativa de se implantar o método de intuitivo no ensino brasileiro que
pretendia adotar um método de ensino consoante com a renovação pedagógica em curso na
Europa e nos EUA, cujos efeitos poderiam ser irradiados para toda a sociedade, implementando
as transformações sociais, políticas e econômicas almejadas nas ultimas décadas do império.

Amparado pelos Relatórios de Hippeau, Buisson e outros, Rui Barbosa evidenciou o


desenvolvimento das lições de coisas, mostrando sua propagação em diversos países da Europa e
no continente americano. Para o ensino primário, propunha a adoção do ensino das lições de
coisas como cura para três séculos de ensino abstrato e morto, baseado na repetição. O ensino das
ciências físicas e naturais deveria ser iniciado no jardim-de-infância, por meio de observação e da
experimentação e o conteúdo escolar proposto deveria girar em torno do ensino da ciência
elementar, associado ao sentimento geral de amor à pátria e trabalho.

As idéias das lições de coisas foram evidenciadas, sobretudo, por Leôncio de Carvalho e
Rui Barbosa, ambos preocupados com a modernização do ensino brasileiro131. Embora possamos

131
É conhecido, na história da educação, o confronto de idéias dos dois autores a respeito da aplicação deste método.
Para Carvalho, Rui Barbosa confundiu lições de coisas com o método intuitivo, sem atentar para a diferença entre
eles, uma vez que a lição de coisas é uma parte do todo intuitivo. Havia limites na aplicação do método intuitivo
porque algumas coisas não poderiam ser ensinadas e apreciadas ‘como que brincando”, pois, assim, suprimiria-se o
esforço e o trabalho da escola e da sociedade, abrindo espaço para o anarquismo e despotismo. Já Rui Barbosa
afirmou que as lições de cosias deveriam ser o método e o processo geral.
133

afirmar que, nas décadas finais do século XIX, a adoção do método intuitivo significasse
modernização e inovação, sua aplicação ou prática, decorrente de seus princípios gerais, assumiu
interpretações diferenciadas. Havia um reconhecimento consensual a respeito dos méritos e da
superioridade do método do ensino intuitivo, juntamente com as queixas quanto à dificuldade de
colocá-lo em prática, em virtude da inexistência de material didático específico, o que levou
Valdemarim a concluir:

A escola anexa da Praça da República e as escolas particulares de Menezes Vieira e Abilio Cesar Borges
possuíam todo mobiliário e todo o material necessário para sua prática, atestando sua influência tanto no que
se refere à concordância quanto a preocupação com a aquisição dos materiais didáticos necessários, restrita
a poucas escolas (2004, p.171-178).

Segundo Abilio, enquanto os vizinhos do Prata, notavelmente o Uruguai, aplicavam em


suas escolas o ensino baseado nas lições de coisas, obtendo o mais completo êxito, como teve
ocasião de observar, no Brasil, ainda era ínfimo o número de escolas que recorriam a este ensino.
O próprio Abilio registrou:

Não há cousa mais comum hoje de que ouvir falar em liçoes de cousas, porém ao entrar na primeira escola
que encontrardes, e indagai, si se dá, e de que modo se dá tal ensino; e experimentareis a mais desagradável
decepção. Póde-se quasi affirmar, que, á parte rarissimas excepçoes, tal ensino ainda não entrou nas nossas
escolas” (1884, p.27).

Nos colégios de Abilio, era evidente a adoção deste método. Vários documentos
caracterizavam as salas dos colégios, apontando os recursos práticos utilizados para facilitar o
ensino do curso primário intuitivo. O ambiente das salas repletas de coleções mineralógicas,
peças botânicas, museus com insetos, répteis, instrumentos de física, química, sólidos,
geométricos, mapas, globos etc. não fugiu do olhar dos visitantes dos colégios, que viam estes
instrumentos como prova da excelência e da racionalidade com que era dirigido o ensino infantil.
Desta forma, o ensino intuitivo, baseado nas lições de coisas, já era largamente utilizado em suas
escolas, antes mesmo dos debates em torno do tema.

2.4 O Programa de matérias: Andar devagar, para chegar seguro e depressa


134

O Decreto de Leôncio de Carvalho, além de prever a co-educação até a idade de dez anos,
dividiu o ensino primário em primeiro e segundo graus, com duração de quatro anos, nos quais
seriam ministradas as disciplinas de instrução moral, instrução religiosa (não obrigatória), leitura,
escrita, noções essenciais de gramática, princípios elementares de aritmética, sistema legal de
pesos e medidas, noções de história e geografia do Brasil, elementos de desenho linear,
rudimentos de música, com exercício de solfejo e canto, ginástica e costura simples para as
meninas132.
Nos colégios de Abilio, o programa de matérias incluía o que era estabelecido pela
legislação com alguns acréscimos, que foram se alterando de acordo com sua experiência. No
Programa do Ginásio Baiano, em 1858, o ensino primário abrangia:

1. Primeiras letras pelo método antigo; 2. Idem pelo método Castilho; 3. Catecismo da Religião Cristã; 4.
Latim; 5. Francês; 6. Inglês; 7. Gramática Filosófica; 8. Filosofia; 9. Geometria; 10. Retórica; 11. História,
principalmente a nacional; 12. Geografia; 13. Música vocal e instrumental; 14. Desenho; 15. Dança; 16.
Ginástica (Apud: ALVES, 2000, p.26).

Até então, Abilio não havia definido o tempo que a criança passaria no ensino primário.
Apenas mais tarde consentiu-se que três anos (regularmente, não era fixo) seriam suficientes para
concluir esta fase. O Plano de Estudos do Colégio Abilio da Corte133, publicado em 1871, aponta
algumas alterações na natureza dos estudos realizados para o ensino primário:

Secção da instrução primária.


Três anos dura regularmente nesta secção o ensino para os alunos analfabetos de inteligência e aplicação
comuns; e compreende as matérias que devem constituir a instrução primária propriamente dita ,
distribuídas como segue:
1º Ano
Leitura: Pelo sistema que o diretor propõe em seu Primeiro livro de leitura.
Aritmética: As quatro operações elementares, praticamente. Ensino sem livro, por assim dizer concreto, e
sempre constando de problemas usuais na vida familiar, conhecidos e já inscientemente resolvido pelos
meninos. Com alguns grãos de milhos, bolas, ou outros quaisquer objetos, fazem-se todas as operações de
números inteiros; e com uma batata, por exemplo, cortada em 2,3,4, e 10 partes iguais, ensinam-se
facilmente as frações dízimas.

132
A formação da criança seria complementada com o ensino das escolas de 2º grau, o qual daria-se continuidade às
disciplinas ensinadas no 1º grau, somadas ao ensino de princípios elementares de álgebra e geometria; noções de
física, química e história natural, com explicação de suas principais aplicações à indústria e aos usos da vida; noções
gerais dos deveres do homem e do cidadão, com explicação sucinta de economia social (para os meninos); noções de
economia doméstica (para as meninas); prática manual de ofícios (para meninos) e trabalho de agulhas (para
meninas) (Apud: MACHADO, op. cit., p. 98)
133
O Plano de estudos foi publicado em 1872, no Rio de Janeiro, pela Tipografia Imperial Instituto Artístico. Este
material encontra-se recolhido na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro para ser recuperado, portanto não tivemos
acesso a ele. Copiamos da obra de Haidar, que o reproduziu na íntegra, incluindo o prospecto do ensino secundário.
135

Catecismo: Primeiras noções e orações sem livro, e na aula aprendidas, à força de explicadas e repetidas
pelo mestre, de modo que vão logo os meninos ligando a cada termo o seu valor próprio, e compreendendo
assim o que aprendem.
Geografia: Noções muito gerais, dadas oralmente, à vista da esfera terrestre.
Historia Santa: Fatos principais, contados pelo professor diante de estampas representando os mesmos, e
pelos meninos repetidos. Estudo sem livro.
Lições sobre as cousas: Aqui aprende o menino a observar, a pensar e exprimir-se, descrevendo por suas
próprias palavras qualquer objeto que lhe seja apresentado, seus usos, sua forma, suas partes, materiais de
que é feito etc..
Prática da Língua Francesa: Palavras e frases as mais simples e mais freqüentemente empregadas no trato
familiar. Ensino absolutamente prático, onde não entra constrangimento algum. O professor dá cuidado
especial à pronunciação.
Desenho e Caligrafia: Muito elementarmente. Imitação tosca de objetos comuns e letras.
Dança e Ginástica: Exercícios muito simples e metódicos, destinados a dar às crianças porte e andar
elegantes, assim como a desenvolver as forças corporais.
Música Vocal: Cantos simples e alegres e solfejo de ouvido.
Observação
Durante este primeiro ano os discípulos nunca vão à banca de estudo em silencio; o que aprendem,
aprendem somente nas aulas, e sem constrangimento, não tendo jamais lição passada e estudada de véspera.
Os dias correm para eles, ora nas aulas, ora nas recreações.
2o Ano
Leitura: Conseguir que entendam os discípulos aquilo que lêem, fazendo a leitura com a entoação e as
pausas próprias da pontuação, será o principal cuidado do professor.
Caligrafia: Imitação do que escreve o professor sobre a tábua negra, e de translados escolhidos.
Ortografia: Ensino principalmente prático em cópias diárias de pequenos trechos da lição de leitura do dia
anterior.
Aritmética: Tabuada de cor; e as quatro operações sobre lousas, versando sempre problemas usuais da vida.
Ensino por assim dizer concreto. Nada de cálculo abstrato.
Catecismo: Continuação do ensino oral, como no 1o ano, e também por leitura.
Geografia: Continuação as lições puramente orais à vista da esfera terrestre e das cartas murais. Idéias gerais
somente.
História Santa e do Brasil: Contadas como no 1o ano, e também lidas na aula em resumos apropriados.
Prática da Língua Francesa: Continuação da lição anterior.
Lições sobre as cousas: Continuação dos mesmos exercícios de descrição de objetos. P.223.
Gramática portuguesa: Somente os gêneros e graus de significação e números dos nomes, as terminações
dos adjetivos e seus modos e graus de significação, os verbos auxiliares regulares, alguns dos irregulares
mais usuais na conversação ordinária, e lá para o fim do ano, algumas lições de análise etimológica ou
lexicografia. Nada de lições decoradas previamente, exceto quanto aos verbos. O professor ensina tudo
dentro da aula. O menino lê a lição de gramática, ou outra, o professor explica, e tudo exemplifica até ser
compreendido.
Música Vocal: Continuação.
Desenho: Continuação.
Dança, Ginástica e Natação: Continuação.

3o Ano
Leitura: De artigos que excitem a curiosidade e o interesse dos meninos. Excertos escolhidos dos clássicos,
poesias e discursos lidos com ênfase, e alguns curtos e fáceis recitados de cor. Declamação.
Caligrafia: Imitação constante de translados. Ensino dos caracteres gótico e ornamentado duas vezes por
semana.
Ortografia: Regras lidas e praticamente ensinadas pelo mestre. Exercícios constantes de ditado.
Aritmética: Continuação das quatro operações de números inteiros, e noções sobre os decimais e
fracionários. Sempre ensino por meio de problemas, jamais em abstrato.
Catecismo: Continuação por leitura e de cor.
Sistema decimal de pesos e medidas: Por leitura na aula seguida de explicação do professor sobre a tábua
negra, e diante do Atlas mural representando os diversos pesos e medidas.
136

Geografia: Continuação das noções gerais à vista da esfera terrestre e das cartas murais, especialmente
acerca do Brasil, de que se ensinarão também as divisões políticas e eclesiástica. Tudo por explicações e
leitura.
Cosmografia: Noções à vista das esferas terrestre e planetária. Lições sem livro.
História Santa e do Brasil: Resumos lidos, e narrações pelos discípulos com suas próprias palavras.
Cronologia dos principais acontecimentos. Narrações orais e por escrito.
Gramática portuguesa: Tudo em compêndio muito resumido. Continuação da análise etimológica. Análise
sintáxica de trechos fáceis.
Lições sobre as cousas: Continuação dos mesmos exercícios de descrição, já orais, já escritas, pelos alunos.
Prática da Língua Francesa: Continuação da lição anterior.
Música Vocal: Começo do ensino teórico. Solfejo. Cantos.
Desenho: Continuação. O desenho linear é ensinado também só por prática. O mestre traça as linhas e
figuras na tábua negra, explica; e por questões aos discípulos chega a conhecer se os mesmos têm ou não
compreendido o que lhe foi explicado. Nada de definições decoradas.
Dança, Ginástica e Natação: Continuação.

Observação
Por este método saem da escola primaria os meninos com noções gerais de quase tudo que terão que
aprender nos estudos secundários, escrevendo o português com boa ortografia, e já com um tal ou qual
estilo; e por sobre isto, sem haverem tido uma só lição de francês de véspera, e sem mesmo lhe terem visto a
gramática, somente por breves mas constantes exercícios absolutamente práticos e amenos, podendo ler com
perfeição esta língua, e falando-a regularmente no que é propriamente conversação familiar, entendendo e
respondendo a todas as questões que na mesma lhes são dirigidas; de modo que, ao começarem o estudo
teórico dela, encontrarão a maior facilidade. (Apud Haidar, 1972, p. 222-225)

Como pudemos notar as alterações não foram substanciais. A filosofia e a retórica foram
suprimidas, enquanto que o restante permaneceu de forma mais seqüenciada. Mais tarde, após ter
vivenciado experiências em seus estabelecimentos, registrou em sua Lei nova do ensino infantil,
uma resenha sucinta de tudo quanto poderiam aprender os seus meninos no curso primário,
‘cheios de vontade e satisfação’, independentemente de prêmios e de castigos.

O ensino do meu curso primario comprehennde os elementos de – geometria linear, plana e no espaço, da
calculo concreto e abstrato, de geographia e cosmographia, de mineralogia, geologia, botanica, zoologia,
physica, chimica mineral e organica, anatomia e physicologia, historia da Brasil, hygiene, economia
politica, agricultura, direitos e deveres do homem, ensino religioso, grammatica da lingua vernacula sem
livro, leitura, desenho e escrita, conversaçao na lingua franceza, ingleza, canto de ouvido e solfejo
methodico, gymnastica, dansa e evoluçoes militares (1882, p. 34).

Notamos a introdução de disciplinas referentes à área de ciências naturais, como


mineralogia, geologia, botânica, química e zoologia, assim como de outros interesses, como
agricultura, higiene, direitos e deveres do homem e economia política, matérias relevantes no que
se refere à valorização do trabalho. Vamos destacar algumas consideradas mais relevantes pelo
educador, inserindo-as no contexto da época. Antes, porém, é importante salientarmos que uma
boa parte das matérias estava dentro do programa do ensino intuitivo e constava no manual de
137

lições de coisas, traduzido pelo seu ex-aluno, Rui Barbosa. Observamos também, que uma boa
parte de sua defesa para este ensino inspirava-se nos discursos médicos das teses acadêmicas que
circulavam no período.
A ginástica sempre ocupou um papel de destaque nos programas do ensino primário (no
secundário isso se repete). Evidentemente que, como médico, Abilio não poderia deixar de
ressaltar a importância de manter o corpo e a mente sãos. Além disso, a ginástica era uma
legitima propaganda de seus estabelecimentos. Nos artigos que descreviam as cerimônias dos
colégios, a exibição dos alunos com alteres, bastonetes e outros modernos equipamentos de
exercício de evolução era um momento que abrilhantava e mostrava a superioridade da
organização dos estabelecimentos, emocionando convidados, pais e alunos.
No Parecer da inspetoria da higiene do colégio da Corte (1887), há uma rica descrição do
que significavam a higiene e a ginástica para o diretor. Havia no fundo deste estabelecimento um
espaço projetado em forma de anfiteatro, específico para as corridas a pé ou de velocípede e
outros jogos. Em uma outra área livre e arborizada, havia sólidos aparelhos de ginástica
protegidos com areia em baixo para amortecer a queda. Também havia um ginásio coberto,
destinado a guardar os instrumentos da banda da música, além de diversos aparelhos de ginástica,
velocípedes, panóplias (armaduras de cavaleiros) para esgrima, aparelhos para ginástica
ortopédica e outros materiais para a prática de exercícios físicos. Este mesmo local também
servia para recreios em dias de chuva.
De acordo com o Parecer, com os aparelhos descritos, era possível executar variados
números de movimentos úteis, exercitando cada músculo, cada articulação, o que daria, assim,
elegância e precisão aos movimentos do corpo. Os exercícios tinham por objetivo tornar os
meninos fortes e ágeis, robustecendo seus corpos e retemperando-lhes o espírito, na realização do
grande desiderato da educação moderna: Mens sana in corpore sano.
A ginástica, como já ressaltamos, provinha de preocupações higienistas da medicina,
contudo notamos que Abilio nutria uma fixação por exercícios militares. Chamava seus alunos de
‘soldados’ da Lei Nova, em seus colégios exercitava-se o tiro ao alvo, os alunos organizavam-se
em forma de pequenos pelotões de soldados com tambores e cornetas militares. Seus discípulos
usavam fardas verde-oliva como uniforme e, constantemente, este autor citava táticas militares
como bons exemplos para a organização de seus colégios. Abilio financiou também uma
companhia para lutar na Guerra do Paraguai e recebeu gratuitamente os filhos de ex-combatentes
138

nesta guerra como alunos. Esta fixação pelo militarismo poderia estar relacionado com o fato de
ter sido “Tenente Coronel Chefe d’Estado do Commando Superior de G. N. das Villas da Barra e
Santa Rita”. Sobre este cargo não pudemos apurar mais dados, pois a única referência que
encontramos foi em seu currículo anexado na capa do Relatório da Instrução Pública e
encaminhado, em 1856, para o Presidente da província da Bahia.
Embora o vigor, a força e a robustez, princípios do esporte de rendimento estivessem
contidos nas representações médicas acerca do corpo, a escola ainda não era considerada um
celeiro de atletas. O corpo domado, forte, saudável e sem vícios era a meta a ser atingida com a
adequada aplicação das prescrições médicas. Os modos de atingi-las aparecem entrecruzados
com um discurso que, ao tratar do corpo, aplicava postulados de racionalidade higiênica,
conjugando, fundamentalmente, os princípios da classificação, variação, hierarquização,
execução, regularidade, moderação e integração. Legitimar e fixar a idéia de um corpo plástico e
moldável que poderia e deveria ser formado, sustentava a tese de que, acompanhando as bases
daquela racionalidade, poderia-se chegar ao sonho de, no corpo do indivíduo, inscrever e tornar
visíveis as marcas de um povo higienizado e civilizado.
O Parecer esclareceu-nos que, neste espaço, bancos limitavam o espaço do recreio,
mantendo separados dos alunos menores, médios e maiores. Esta separação era mantida e
efetivada durante todo o tempo do recreio, pelos inspetores ou vigilantes do colégio, evitando,
assim, a mistura de idades até mesmo na recreação. Neste espaço, reforçou o Parecer, os alunos
não se entregavam aos vícios, graças aos exercícios propostos sob uma constante vigilância, aos
bons conselhos e ao espírito e moralidade que seus ‘dignos diretores’ haviam lhes infundido.
Adotar as práticas dos exercícios corporais na hora do recreio funcionaria como um antídoto
contra os vícios, pois, juntamente com a distração da juventude, viria a ocupação integral do
tempo escolar. Nessa representação, a ginástica escolar se encontrava a serviço da
regulamentação física, mas, neste caso, sobretudo moral.
A perspectiva nos discursos médicos era preventiva e curativa. Alguns defendiam a
ginástica, baseando-se em autores credenciados de nações civilizadas como a França, Inglaterra e
Itália, onde a essa modalidade já fazia parte do currículo. A defesa do movimento e do exercício,
segundo Gondra, se encontrava em uma ordem de ações sucessivas que desenvolveriam os
músculos, duplicariam as forças e educariam os movimentos.
139

Com argumentos semelhantes contidos nas lições de coisas, Rui Barbosa defendeu que a
educação física havia sido introduzida nos programas de ensino de vários países, tendo em vista
sua função moralizadora, higiênica e patriótica. O substitutivo destacava as finalidades morais e
sociais da ginástica: agente de prevenção dos hábitos perigosos da infância, meio de contribuição
de corpos saudáveis, fortes e vigorosos, instrumento contra a degeneração da raça, ação
disciplinar moralizadora dos hábitos e costumes responsável pelo cultivo de valores cívicos e
patrióticos imprescindíveis à defesa da pátria.
Souza (2000) salientou que a introdução da educação física foi apresentada como uma
inovação relevante, pois a satisfação da vida física era a primeira necessidade da infância, o que
justificava a importância fundamental da ginástica num plano de estudos que postulava a
inseparabilidade do espírito e do corpo.
Na visão dos médicos higienistas, a educação física, associada ao trabalho moral e
intelectual, deveria cumprir vários objetivos simultaneamente: fortalecer, disciplinar, ordenar o
trabalho nas escolas, moldar os temperamentos, estruturar o tempo escolar e regenerar. Nesta
distribuição, não havia tempo vago, porque a escola deveria ser toda regrada pela idéia do tempo
útil, do tempo produtivo, um tempo, de acordo com Gondra, disciplinado e disciplinador. A
educação física deveria ser trabalhada de modo associado aos espíritos que se queria esclarecido
e às ‘almas’ que se queria virtuosas.
A música era outro elemento imprescindível na instrução dos pupilos. As festas
anunciadas nos jornais incluíam impreterivelmente apresentações de canto, que eram
acompanhadas pela banda do colégio, fato que produzia, segundo os artigos, uma agradável
impressão no público presente. As bandas dos colégios de Abilio eram elogiadas pela harmonia e
entoação de peças musicais que demonstravam organização e beleza. A música estava presente
em diferentes momentos, tanto que o diretor publicou, em 1888, a obra Cantos Escolares com um
Compendio de Musica. No prólogo da 3a edição do Segundo livro de leitura, acrescentou dois
hinos, um para o começo e o outro para o encerramento das aulas, justificando sua importância:

Estes hymnos são diariamentes cantados no Gymnasio Bahiano, desde que o fundei; e muito grato me seria
si fosse também cantados em todas as escholas do meu paiz, em logar da monotoma, prosaica e desencabida
toada, em que todos fazem geralmente as crianças a oração do começo e do fim dos trabalhos diarios. (...)
Teem estes cantos o poder de dar principio e fim da aula um certo ar de festa, que mui agradavelmente
impressiona aos meninos, ao mesmo passo que deleitam ao mestre, inspiram-lhe uma certa doçura de
sentimento, e poem-no portanto, em uma favoravel disposição de espirito (1869, p.8).
140

A educação sensorial era outro argumento presente nas teses higienistas. Era preciso
cuidar da função auditiva e uma das prescrições se referia à ação da música que, além de
proporcionar verdadeira felicidade, tinha a vantagem de acostumar o ouvido a receber e
transmitir com fidelidade ao cérebro as mais ligeiras combinações. Desta forma, a música teria
um efeito terapêutico porque atenuaria as afeições deprimentes, já que seu exercício constituía-se
como uma prenda que tornava as pessoas desejadas e agradáveis para a sociedade como ressaltou
Gondra (2004). Tendo em vista seu caráter moral e utilitário, a música e o canto foram indicados
como conteúdos essenciais ao programa do ensino primário. As palavras de Guizot, citadas por
Rui Barbosa, atestavam a relevância do estudo da música para a formação do homem moderno:

A música produz n’alma uma verdadeira cultura interior, e faz parte da educação do povo. Tem por efeito
desenvolver os vários órgãos do ouvido e da palavra, adoçar os costumes, civilizar as classes inferiores,
aligeirar para elas a fadiga do trabalho, e proporcionar-lhes um inocente prazer, em vez de distrações muita
vez grosseiras e arruinadoras. (Apud, SOUZA, op. cit., p.17)

O método intuitivo aconselhava que os movimentos corporais fossem acompanhados pela


música, devendo-se cantar muito na escola, seja para dar ritmos aos jogos e caminhadas, seja para
introduzir os estudos ou distribuir os instrumentos de trabalho. O canto era entendido como uma
espécie de ginástica responsável pelo desenvolvimento dos órgãos respiratório e vocal. Como
percebemos, não era somente Abilio que defendia o ensino da música com a perspectiva de
educar para o bom gosto e harmonia.
O ensino da gramática da língua materna era um outro princípio caro para o ensino
intuitivo, com o que compactuava Abilio, sobretudo na crítica mordaz contra o ensino puro da
gramática. Em seus colégios, ele implementou e defendeu com afinco o estudo da língua
nacional, instituindo o exame de português e sugerindo a aprendizagem ‘não mecânica’ das
regras gramaticais, através da leitura expressiva e da declamação. Antes mesmo de o governo
decretar obrigatórios e oficializar os exames da língua nacional, os alunos do Ginásio recebiam
aulas especiais de português e se exercitavam, declamando nos famosos ‘oiteros’134, palanques
que serviam para os alunos recitarem em público suas composições livres literárias. Essas
reuniões literárias se realizavam em datas comemorativas, nas quais os alunos expunham seus

134
Outeiro designa a parte mais alta do altar e também a festa que se realizava nos pátios dos conventos, ocasião em
que os poetas homenageavam as freiras nos festejos de glórias ou eleição de abadessas. (FERREIRA, 1986, p.1239)
141

talentos, como ocorreu com Castro Alves e Ruy Barbosa. Essas composições eram publicadas em
jornais e nas gazetas literárias impressas135.
Abilio chegou a contratar, em 1862, um professor de Portugal para corrigir os defeitos da
pronúncia de seus pupilos que, no seu pensar, ‘afeavam’ a língua. Criou também, em seus
colégios, a cadeira de ‘grammatica philosophica’ e publicou, em 1860, a obra Resumo da
Grammatica portuguezapara uso das escolas primárias136. Não mediu esforços para que seus
alunos aprendessem o puro vernáculo137.
No ano de 1872, publicou o Livro do povo ou syllabario brazileiro e, em 1860, fez uma
tradução do livro Telêmaco de Fenélon. Em 1879, assinou o prefácio da Edição escolar dos
Lusíadas138, poema épico de Luis de Camões, adaptado por ele com a seguinte ressalva: “Para
uso das escolas brasileiras; na qual se acham suppressas todas as estancias que não devem ser
lidas pelos meninos”. O diretor decorou Camões e utilizava Lusíadas para manter a emulação
entre os meninos, do alto de sua janela ou nos pátios, acompanhava e corrigia seus pupilos que
recitavam ‘as estâncias do vate luzitano’.
Abilio, apesar de criticar a aprendizagem acima da compreensão dos meninos, segundo
seus biógrafos, recebeu várias críticas por exigir muito da infância. Esse fato, entretanto, não o
preocupava, pois garantia que, ao apostar nessas obras tidas como difíceis, colhia excelentes

135
Com a intenção de mostrar os feitos literários do Ginásio, em 1860, Abilio publicou Poesias e allocuções
recitadas nos outeiros ou festas litterarias patrióticas havidas no Gimnasio Bahiano, a dous de julho e sete de
Setembro do corrente anno135, com 45 páginas de poemas de seus alunos e colaboradores. Em seu aniversário,
também comemorado no Ginásio, os alunos homenageavam-no com mais poemas. Em 1860, publicou Poesias
offerecidas ao Dr. Abilio Cesar Borges, no dia 9 de Setembro por occasião de festejar no Gymnasio Bahiano seu
aniversario natalício.
136
Esta obra recebeu a aprovação do parecer do Grêmio dos Professores Primários de Pernambuco, como consta no
prefácio de 1878 (p.8) da 7a edição dessa obra: “Accommodando-as aos preceitos pedagógicos, que se deve ter em
vista para com as crianças no ensino desta materia, resumiu o Dr. Abilio o quanto pôde as definições, sem, todavia
prejudicar em cousa alguma o definido ao alcance das intelligencias infantis; devendo o mestre, que dedicado for,
dessas mesmas definições tirar argumento para o maior desenvolvimento philosophico da lingua nacional”. Freyre
(1990) citou o caso de Raimundo, sobrinho do presidente da Província de Pernambuco que, em 1884, foi fazer o
curso secundário no Ginásio Pernambucano (o Pedro II do Nordeste) e estudou na Gramática do Dr. Abilio Cesar
Borges, várias vezes reeditada. Encontramos um exemplar dessa obra, editado em 1915, no Gabinete Literário de
Goiás, fato que comprova sua longevidade.
137
Em carta enviada de Paris, no ano de 1869 (Apud RIGHBA, op. cit.), a um amigo português, Abilio agradeceu a
divulgação de sua obra Geometria Popular em Portugal e a franqueza que haviam dispensado ao seu português, ao
submeterem o prefácio de sua obra à Junta da Instrução Pública de Lisboa. Ressaltou que precisava de alguém para
denunciar seus defeitos de escritor brasileiro, concluindo que as críticas fizeram com que decidisse, de ‘forma
heróica’, a começar ler, com atenção e lápis nas mãos, os melhores clássicos portugueses, com objetivo de aprender
o puro vernáculo que se encontrava tão alterado e corrompido no Brasil.
138
Essa foi uma obra que ele dedicou a um antigo mestre de português que, apesar de não ser brasileiro e nem
português, ‘manejava a lingua portuguesa, quer falando, quer escrevendo com notáveis fluência e perfeição
gramatical’.
142

resultados. Respondendo às criticas, esclareceu que fazia isso como um dever para com a
dignidade e honra dos meninos, acrescentando: “Até aqui, mostrei aos cegos propugnadores das
velhas doutrinas, que a infancia também é capaz de aspirações elevadas, e que possuem o nobre
estimulo que eles não teem querido reconhecer-lhe” (1866c, p.114-116).
Não era essa, todavia, a opinião de seu ex-aluno, Luis Edmundo. Nas memórias de sua
experiência no Colégio de Abilio e no aprendizado das línguas com os velhos clássicos
portugueses, sobretudo na obra de Camões, registrou que esse método era um modo indireto de
indispor as crianças contra os grandes artífices do idioma. Em relação à supressão das partes
consideradas ofensivas a moral que não deveriam ser lidas pelos meninos, Edmundo registrou
que os pontinhos marcadores das omissões feitas por Abilio eram:

Verdadeiros convites a nossa curiosidade, serviam-nos de fácil indicação para as descobertas das passagens,
que no poema, eram consideradas indiscretas, abrejeiradas ou maliciosas. Em muitas delas, embora lidas e
relidas com cuidado, não achávamos logo as razões do censor em suprimi-las (Apud ARROYO, 1990,
p.93).

O mesmo memorialista exemplificou a repulsa que esse tipo de ensino causava, citando o
caso de um colega do mesmo colégio que, no exame de português, a muito custo, fora aprovado
com um ‘simplesmente’. Chegando a sua casa, abriu um buraco no fundo do quintal e enterrou
Camões e seus cadernos de gramática. A impressão relatada pelo ex-aluno de Abilio não
corrobora sua proposta ‘moderna’ de ensino.
Embora defendesse que a educação das crianças deveria marchar sempre para frente,
modelada pelo progresso e modo de ser da sociedade presente, assentada em outras bases, não
naquelas que regiam os tempos idos, na opinião de seu ex-aluno, anacronismo era sua insistência
em fazer com que os alunos aprendessem a gramática em velhos livros.
Independente do uso de clássicos para a aprendizagem da língua portuguesa, o mais
importante para Abilio era aprendê-la bem para poder falar bem. Por isso, criticava o método
puro da soletração. Também reforçava que era essencial, para conhecimento da ortografia e
perfeição da pronúncia, o caminho da declamação, prática a que o povo norte-americano dava
uma grande importância.
Em seu relatório de 1856, manifestou sua preocupação com a leitura que ‘afeiava’ a
língua pátria e alertou o Presidente da Bahia sobre o abandono em que se achava o nosso idioma,
143

citando, como exemplo, as meninas do Colégio N. S. do Anjos que liam ‘escarnêo, míster,
necropóle’, além de suprimirem a letra ‘s’ do final das palavras.
Cabrini (1994) percebeu esta preocupação também nas obras de Felisberto Carvalho, o
qual alertava que a pronúncia deveria se isentar de sons estranhos e rústicos, comuns na ‘classe
ignorante do povo’. Boto (2004) anotou que, em Portugal, no século XIX, a formação de uma
cultura erudita também era alvo de alguns escritores, pois era preciso formar o indivíduo para a
construção do discurso e para o uso elaborado das combinações lingüísticas autorizadas pela
gramática nacional, necessidade que justificava, também, esta premissa para o Brasil. Abilio foi
atento também ao ensino das línguas estrangeiras no ensino primário. Ao argumentar que a
memória era a primeira coisa que se desenvolvia na criança, aproveitou para, desde cedo,
introduzir o estudo das línguas vivas e da geografia, deixando o ensino das dificuldades da língua
latina para depois, quando a criança já tivesse adquirido certa soma de conhecimentos.
Em relação ao aprendizado do latim no curso primário, fez somente algumas experiências
em seus colégios, preferindo investir realmente no ensino do francês e do inglês. Deu tanta
importância a uma boa aprendizagem das línguas citadas que, no início do Ginásio Baiano, trazia
professores da Europa, ‘já feitos em cousas do ensino’, para ensinarem os meninos a falarem as
línguas francesa e inglesa. Mais tarde, resolveu contratar os mestres do Brasil mesmo. Imprimiu
para os alunos, em 1860, a Epitome da Grammatica franceza. Fez também, no mesmo ano, uma
adaptação do francês para o português do método de Ahn, Pequeno Tratado de Leitura em voz
alta e, em 1872, do Método para o ensino prático da língua francesa.
Não havia proposta para o ensino da língua estrangeira no currículo oficial e Abilio
justificava seu investimento neste tipo de estudo, sobretudo como um modo de aumentar os
conhecimentos, comprovando, assim, sua intenção de diferenciar seus pupilos dos demais alunos.
Abilio sempre deu importância ao ensino do cálculo e da aritmética. Para ele, este ensino
criaria nos meninos o precioso hábito de pensar e de refletir antes de falar, além de ativar o
espírito, desenvolver a razão e a aquisição de conhecimentos. Exemplificou uma das técnicas,
recorrendo a caramelos, que eram distribuídos na sala, auxiliando na aprendizagem da divisão e
exercitando a inteligência. Teceu críticas ao ensino mecânico, a exemplo das tabuadas, colocadas
nas mãos dos meninos e decoradas em casa, sem a mínima intervenção da inteligência.
Os argumentos de Abilio encontraram eco no método das lições de coisas para o ensino da
matemática, o que era reconhecido como uma novidade por evidenciar métodos concretos que
144

procediam as operações escritas e o uso formal e metódico dos algarismos. A utilidade do calculo
mental era reconhecida desde que fosse praticado sem caráter abstrato, sobretudo, mediante
problemas de aplicação usual e próximo da vida da criança, como registrou Souza (2000).

Figura 14 A preocupação com a língua


pátria foi algo que marcou a trajetória de
Abilio. A Grammatica Portugueza (esq.) foi
publicada em 1860 e reeditada até meados do
século XX (Fonte: Arquivo particular da
autora – Foto: L. Socolovsky). Abaixo, a
adaptação feita por Abilio, em 1879, da obra
de L. de Camões. Na edição ‘escolar’, Abilio
suprimiu as ‘partes que não deveriam ser
lidas pelos meninos’. Os pontinhos deixados
pelo autor, ao suprimir as ‘partes imorais’,
despertava e aguçava a curiosidade dos
pupilos que, em grupos, procuravam
descobrir o que fora retirado (Fonte:
IEB/USP – Foto: Cristina Helou).
145

No que se refere a este ensino, Abilio não poupou esforços para obter o vantajoso
aparelho ‘contador mecânico’, visto pela primeira vez na Europa. Mandou construir um que,
segundo ele, prestava os melhores serviços em seu colégio de Barbacena139. Na Exposição de
1883, o diretor, juntamente com seus ‘soldados da Lei nova’, ou seja, seus alunos da instrução
primária, explicou e demonstrou aos ouvintes as vantagens do contador, no qual o ensino das
frações era dado com a utilização de objetos visíveis e tangíveis para, depois, os meninos
expressarem suas idéias. Partia-se sempre do concreto para o abstrato, do conhecido para o
desconhecido, explicou o diretor140.

139
O aparelho, antes pouco visto nas escolas públicas ou particulares, se generalizou graças ao conselho dado por
Abilio, quando fazia parte do Conselho Superior de Instrução da Corte, ao Conselheiro José Bento, que foi
convencido pelo diretor a adotá-lo, devido aos bons frutos que colhera (1887, p.7).
140
Sua experiência a partir do contador mecânico levou-o a construir o Aparelho escolar múltiplo, que apresentou na
Exposição de 1883 como sua invenção, definida como um Aparelho complexo que atendia plenamente à exigência
da escola primária. O Aparelho continha: 1.Arithomometro fraccionario; 2.Contador de bolas por inteiro; 3.Contador
de palitos para ordens de unidades (dito de Froebel); 4. Contador vertico-horizontal; 5.Imprensa escolar; 6.Pauta
musical; 7. Quadro negro; 8. Solidos arithmeticos; 9.Porta-mapas; 10.Apparelho chromatico; 11.Fracções sólidas de
unidade,cavilas e tabellas com os caracteres alphabeticos e os algarismos; 12.Instrumento necessario ao desenho
linear140. Abilio o expôs longamente, a uma platéia seleta, que incluía o Imperador e ministros, as utilidades de sua
engenhoca, justificando suas imensas vantagens. Recebeu da Exposição um diploma de 1a classe por sua invenção e
pela numerosa coleção de mapas e demais objetos relativos ao ensino da aritmética (Ibid).
146

O ensino do desenho era outra preocupação de Abilio. Para melhor cultivar a inteligência
infantil, ele recomendava o desenho a partir da entrada da criança na escola, como registrou na
Lei nova:

Basta que as çrianças se ocupem nos primeiros tempos da imitaçao dos translados com gis, ou lapis, o que
lhes tornara agradavel o trabalho, pois todos sabem bem quanto gostam ellas de rabiscar com taes
instrumentos. A propria natureza nos esta assim mostrando que o ensino da escripta deve ir de par com o do
desenho, ou ser deste precedido (1882, p.19).

No ano de 1878, em Paris, Abilio editou e publicou a obra: Desenho linear em Geometria
pratica popular141, ressaltando, na introdução, que, além dessa obra ser utilíssima e de fácil
compreensão, despertava nos meninos o gosto de aprender, apesar de não se restringir somente ao
público infantil:

As vantagens que teem colhido meus discipulos, ainda os mais tenros, os proprios analphabetos, do estudo
do desenho geometrico, levaram-me a ambicionar a gloria de concorrer para sua geral diffusão no Brasil: e
esta é a razão principal do apparecimento do presente livro, que, si não me cegam os affectos do
compilador, ha de ser manuseado com grande proveito, tanto nas escolas, como nas officinas e nas familias,
porque n’elle se instruirão meninos e adultos em muitas cousas que ninguem deve hoje ignorar, sobretudo
os artistas e operarios em todos os generos de industria (1934: p.8).

Desde 1827, um projeto de lei previa a introdução de noções de geometria elementar nas
escolas de primeiras letras. Segundo Souza (2000), o projeto gerou muita polêmica, uma vez que
muitos defendiam o ensino da geometria no curso secundário e não no primário. Desta forma, o
debate atravessou o século XIX, pois, desde o início, os partidários das noções elementares da
geometria no primário assinalavam o caráter útil dessas noções para a vida prática, como no
Parecer de Rui Barbosa, que era um fervoroso defensor do ensino do desenho nas lições de coisa,
por considerá-lo uma das matérias fundamentais no programa da escolar elementar.
Este entusiasmo, explicou Souza, fazia eco à opinião de industriais, pedagogos e
autoridades de ensino dos países adiantados, que viam a potencialidade da escolarização desse
saber profissional para o desenvolvimento econômico. Por conseguinte, o desenho foi ressaltado
como fonte de riqueza, como elemento essencial à prosperidade do trabalho e como conteúdo
atribuído a uma finalidade prática que se ajustava às necessidades da indústria e da arte. O
desenho, uma das atividades essenciais ao método intuitivo, compreendia aplicações artísticas e

141
Essa obra, reeditada até os anos cinqüenta do século XX, foi a que encontramos em maior número nos arquivos e
bibliotecas citadas.
147

industriais, possibilitando tanto a ornamentação quanto a construção de objetos, sendo a


geometria sua base indispensável e seu ponto de partida.
Podia ser desenvolvido a mão livre ou com a utilização de instrumentos e materiais
específicos, tais como régua, modelos, papéis quadriculados etc. Todos os exercícios do desenho
voltavam-se para e educação do olhar, principal instrumento de percepção, e para o adestramento
da mão, principal instrumento de trabalho. Tratava-se de uma preparação para a vida inteligente e
ativa do homem, contribuindo para a manutenção de uma sociedade esclarecida e laboriosa
esclareceu Valdemarin (2004).
A sensibilidade para o valor aplicado e econômico da ciência intensificou-se na segunda
metade do século XIX, pois a ciência era o conhecimento que melhor revelava o sentido do
progresso e da sociedade civilizada, além de essencial para a vida moderna. Era um
conhecimento útil e válido, passível de aplicação aos mais variados negócios da vida prática, na
indústria, no trabalho, na conservação da saúde, nos exercícios, nos deveres políticos e sociais e
também na condução da vida moral.

O ensino primário ministrado pelos colégios de Abilio encontrava opositores, não só por
requerer mestres preparados e escolas equipadas com variados e caros materiais, como gabinetes,
laboratórios e oficinas, mas também por ser considerado muito difícil e não estar ao alcance das
crianças. Assim, ele era alvo de críticas, provindas dos que não compactuavam com seus ‘novos
processos no ensino da infância’.

Era comum que enviasse recados aos que se espantavam por ver figurarem em seu
programa de escola primária ‘certas disciplinas’ que só os adultos poderiam aprender em cursos
universitários. A esses ‘ignorantes pedagógicos’ que mantinham seus medrosos espíritos da
rotina, não se dando o trabalho de investigar qual era o verdadeiro plano de ensino moderno,
Abilio respondia que tudo era aplicado em curtas sessões, entremeadas com freqüentes
‘recreações ruidosas e prazenteiras’.
E também que trabalhava com seus discípulos cerca de sete horas diariamente, dividindo
o curso em oito sessões, das quais duas eram dedicadas à leitura e à escrita, sendo as demais
reservadas para o ensino geral. Ao nos debruçarmos, ainda que sem o devido aprofundamento,
sobre os métodos, matérias e práticas defendidas e utilizados por Abilio, percebemos que seu
objetivo não se resumia apenas em fazer com que as crianças da instrução primária conseguissem
148

‘ler, escrever, e contar’. O ensino ministrado por ele, sem dúvida, agregava conhecimentos mais
amplos que perpassavam o que estava estabelecido pela legislação.
Segundo ele, a exigência feita aos seus alunos era para que estes adquirissem o feliz
hábito de refletir e expor as idéias com frases apropriadas e corretas. Seu ensino, apostando na
iniciativa pessoal, no talento e na perspectiva de formar homens úteis e bons para a sociedade,
deveria criar nas crianças o hábito de estudar no colégio e em casa.
149

Figura 15 Compêndio de geometria para uso da escola primária. Esta obra, publicada pela primeira vez em 1878, foi
reeditada até meados do século XX (Fonte: BNRJ – Foto Diego Valdez).
150

2.5 O ensino da doutrina religiosa: no meio do caminho havia polêmicas

Mesmo com a intensificação da discussão sobre a ciência na escola nas últimas décadas
do século XIX, a questão da educação moral religiosa ainda ocupava um papel fundamental na
instrução pública e privada. No Brasil, a Lei Imperial de 1827 determinava que os professores,
além de outras disciplinas, deveriam ensinar os princípios da moral cristã e da doutrina da
religião Católica. Esta foi uma questão que atravessou o final do Império marcando as discussões
sobre a educação até o período republicano, quando a Constituição de 1891, influenciada pela
pressão dos positivistas, rompeu com a Igreja e se posicionou firmemente a favor da laicidade
nos estabelecimentos públicos.
A partir da segunda metade do século XIX, uma parte da elite eclesiástica imperial,
visando a uma ampla reforma da vida religiosa católica, tinha por objetivo tornar o catolicismo
mais ligado às diretrizes de Roma, uma política que ficou conhecida como ‘romanização’. Isto
implicava em autonomia do poder espiritual perante as autoridades imperiais e reunião do poder
dos leigos em irmandades, o que requereria um grande investimento na formação moral e
intelectual do clero, em substituição ao antigo regalismo. A intenção era formar católicos,
seguindo o modelo do Concilio de Trento (1545-1563): sacralização dos locais de culto, combate
aos rituais profanos, valorização dos sacramentos, boa preparação dos sacerdotes, substituição da
devoção aos santos tradicionais pelas corretas devoções a Jesus Cristo e a Virgem Maria, entre
outras medidas.
A aproximação do clero brasileiro com a Igreja romana baseava-se nos princípios
defendidos pela cúria envolvida numa campanha política e ideológica contra o liberalismo, o
racionalismo, o protestantismo e a Maçonaria. A perspectiva deste pensamento católico
conservador, também denominado de ultramontismo, segundo Abreu (op.cit.), provocou uma
série de crises entre o poder religioso, as autoridades liberais e os leigos da irmandade,
expressando os impasses na definição do catolicismo brasileiro do século XIX.
O clima nada harmônico na relação entre a Igreja e o Estado142, como não poderia deixar
de ser, desdobrou para o campo da instrução pública e privada, pois a instrução não era e nem é

142
De acordo com Souza (1977), durante anos, os defensores da Igreja atribuíram a simples cobiça do poder público
pelos bens eclesiásticos à política anticlerical dos diversos governos que se sucediam. Para estes, apesar das
aparências, o sentimento anticlerical era, no caso, subproduto inevitável, e não origem de convicções mais profundas
151

imune ao movimento da sociedade. Provocou-se, assim, um extenso e conflituoso debate no que


se refere ao papel da escola e da igreja no ‘anúncio da palavra’, ou seja, nos ensinamentos da
doutrina cristã. A tão discutida liberdade ultrapassava os ideais de criar e administrar escolas,
escolher os conteúdos a serem ensinados, garantir a autonomia dos colégios privados, a liberdade
religiosa também era um elemento que compunha fortemente esta discussão.
A catequese começava no lar com o ‘ensino das rezas’ e, em seguida, a religião tomava
foros de oficialidade, através da escola, como matéria do currículo. Contudo este período foi
pleno de queixas. Os governantes acusavam os padres de desleixo, os padres criticavam os pais
por relegarem para a escola a instrução religiosa de seus filhos e os bispos reformistas reagiam
contra o ensino catequético relegado pelos padres às escolas143. Os discursos destacavam um
esmorecimento quase completo do ensino religioso nas escolas da maior parte do Império, fato
atribuído, entre outras coisas, ao influxo da Maçonaria, dos protestantes e liberais laicos.
Isso exigia um esforço dos bispos para que fizessem com que os párocos assumissem o
ensino catequético como atividade específica de seu ministério, até porque uma grande maioria
das crianças não freqüentava escolas. Na década de cinqüenta, os defensores da posição
ultramontana se defendiam e preconizavam os direitos da Igreja intervir no sistema geral de
ensino144, propondo a ação conjunta dos professores (ensino primário) e padres, que aliasse
escola e igreja no trabalho de moralização e formação dos indivíduos. Não podemos perder de
vista que, para alguns intelectuais do período, o catolicismo era uma crença considerada superior,
que impediria a difusão de crendices populares, típicas de ‘povos atrasados’145.

e gerais que, vendo nas instituições monásticas entidades arcaicas e sem função social, desejavam livrar a sociedade
de um peso morto e de uma fonte de abusos.
143
Em 1861, escreveu o padre Pinto dos Campos ao ministro dos Negócios Eclesiásticos: “Os nossos colégios de
meninos ensinam muito francês, muita filosofia, mas não explicam o padre-nosso. Ainda é mais grave ensino em
colégios de meninas.” (apud FREYRE, 1977, p.115)
144
O Deputado Mendes de Almeida sustentou a tese de que o clero deveria ter a direção do ensino público ao invés
do Estado, pois não restava dúvida de que um dos grandes males de que Roma, em outras eras, fora vítima, foi essa
educação literária, desacompanhada dos corretivos morais e dos preceitos religiosos. Dr. Costa Ferraz, médico,
integrante da Associação Municipal Protetora da Infância Desvalida da Corte, em um discurso durante a
inauguração de uma escola financiada pela instituição, em 1872, condenou a liberdade religiosa, fazendo referência à
‘odiosa barreira’ levantada contra as irmandades e ordens religiosas que “em todos os tempos cobriram a
humanidade de benefícios e glórias” (SCHUELLER In: MONARCHA, 2001, p.166-167).
145
Segundo Silva (2000), a fé mostrava-se fraca e os párocos não cumpriam com seus deveres de católicos,
sobretudo pela geral aceitação da prática de ‘feitiçarias’ pelos escravos, que comiam carne na semana santa, sem
contar os gentios que educavam suas crianças na barbárie de seus ritos, uma presença mais recuada entre a
civilização e a barbárie. Esses combatidos hábitos e atitudes, bem como outras carências, concorriam na formação
dos católicos, sendo parte do problema depositada ao desempenho do clero.
152

Em 1869, o diretor da Escola Normal do Rio de Janeiro, Alambary Luz, argumentou a


favor do ensino religioso para o Conselheiro Thomaz Gomes, salientando:

Todos sabem que caminho leva a moderna sociedade no tocante aos deveres religiosos. Entre nós este mal é
mais sério por certo do que pensa; não está só na distancia entre os pastores espirituais e suas ovelhas, nas
despovoações das igrejas, na irreverência e desprezo dos atos religiosos. A indiferença parece haver
penetrado no seio da família brasileira, porque se observação mostra que a educação da primeira infância no
lar é fraquíssimo quanto ao lado religioso, os pais muito pouco, depois, se importam com este mesmo
assunto quando procuram dar a seus filhos mestres de instrução primária ou secundária (Apud , CABRINI,
op. cit., p.13).

O Decreto de Leôncio de Carvalho, ao considerar o ensino religioso de livre freqüência,


tornando-o facultativo, aumentou ainda mais a polêmica. Rui Barbosa foi radical e colocou em
pauta a necessidade de separação entre o Estado e Igreja, mostrando as vantagens do ensino leigo.
Rui acusava o ultramontismo de obstruir a aprovação da liberdade de ensino, se apoiando na
origem protestante da medida atribuída à Alemanha, ao mesmo tempo em que discordava da
atribuição delegada aos professores de ministrar o ensino religioso. De acordo com o jurista, na
escola pública não deveria constar o ensino religioso, embora ela devesse abrir suas portas, fora
do horário escolar, para que este ensino fosse ministrado por representantes de cada confissão.
Ele também sugeria que o catecismo fosse excluído do programa escolar.
Esta concepção recebeu apoio de outros republicanos que, desde a década de setenta,
defendiam a separação entre Igreja e Estado. Hilsdorf (1986) ressaltou que vários artigos e
matérias do jornal republicano A Província de São Paulo, se pronunciavam contra a ação
educativa da Igreja Católica, exercida na escola pública ou particular. Os referidos textos
alegavam que este tipo de ensino propagava doutrinas anticientíficas, contrárias ao progresso e à
mudança social, ao mesmo tempo em que se posicionavam abertamente a favor dos colégios
protestantes.
A reclamação do clero e dos católicos fervorosos intensificava-se, sobretudo, no que se
referia à catequese infantil que, na visão de muitos, estava esquecida, além da pouca freqüência
dos fiéis na missa e das omissões que empobreciam a vida cristã católica, fazendo com que a
‘irreligião’ se tornasse domínio público. O catolicismo vigente não parecia creditado e o pensar
de uma parte da elite sobre o papel da religião era visto com desconfiança e hostilidade. A
153

sociedade e o governo, nesse período, não respeitavam o padre e ‘maquinavam’ para extinguir a
religião católica146.
Indiferente às polêmicas a respeito de se ensinar ou não a doutrina religiosa na escola,
Abilio manteve a instrução e a educação moral baseadas na religião católica, um aspecto
predominante e determinante em sua pedagogia, sobretudo para o ensino primário, como bem
expressaram seus programas de matérias, além dos discursos por ele pronunciados. Era mister
assegurar uma infância e uma juventude tementes a Deus e, para tanto, era preciso contar com
todos. A princípio, com a família, na idade que antecedia a escola que, depois, daria continuidade
a esta árdua tarefa. Para o autor, a escola não teria nenhum valor e não daria bons frutos se não
fosse embasada pelos princípios religiosos:

A instrucçao póde fazer um philosofo; mas so a educação pode fazer um homem témente a Deus: - a
instrucçao fara um homem virtuoso, portanto um bom cidadao. Entretanto, o menino, desde a aurora de seus
dias deve ser dirigido com prudencia; deve ouvir constantemente palavras de vida: pois so assim seus
sentimentos, seus gostos, seus habitos, suas esperanças se penetrara de tudo quanto há de bom e de bello. O
evangelho, que é a palavra annunciada aos pobres, é também o que convem aos meninos. Seu espirito se
abre mais depressa do que se crê ás verdades sanctas, as quaes lhe causam impressoes geralmente
inextinguíveis (1866c, p.295).

Apesar de Abilio ressaltar a importância da formação moral cívica, a formação moral


religiosa é que ocupou um maior espaço em seus discursos e textos para as crianças no início da
vida escolar. Porém, para ele, as duas estavam intrinsecamente associadas, pois, sem as virtudes
religiosas que deveriam orientar a vida da criança, a escola não teria função e pouco restaria a
fazer pela pátria. Ou seja, pela predominância da fé, brotaria, de forma quase inevitável, a
obediência, a disciplina, a ordem, o dever e o respeito.
Este era um princípio essencial para o católico Abilio, desde que ocupava o cargo de
Diretor da Instrução. Através dos princípios religiosos, ele se armava de argumentos, nos
discursos, e de materiais publicados para a infância, para divulgar suas idéias fecundadas no amor

146
Em 1870, um seminarista, ex-aluno do Seminário Menor de Salvador, escreveu: “O mundo é Salvador. O mundo
é o Brasil, onde “se estreitam às conquistas da fé”. Onde a família esta ameaçada pelo casamento civil, ou seja, a
prostituição honrada por um público instrumento da lei e a mulher “amarga a sorte que a oprime de deveres e não lhe
concede direito algum”. Os pais, cuja conduta, deveria ser o “evangelho dos filhos”, abrem as portas à impiedade.
Em lugar de levá-los às “igrejas que estão desertas pela manhã, vão aos teatros lotados a noite”. Crescem sem o
catecismo, sem a primeira comunhão, avessos a confissão, indicador maior da “árvore má e estéril que se recusa a
produzir frutos do bem que leva ao céu”. Essa sinalização da baixa freqüência aos sacramentos e atos do culto
público em geral, vem seguidamente atestada nas exortações e mandamentos da hierarquia.” (Apud SILVA, 2000,
p.225-227).
154

e na sabedoria, de modo a adequar o ensino à realidade da criança, combater o emprego do rigor


na educação, incentivar o aprendizado prazeroso e, sobretudo, inculcar na criança as virtudes
necessárias para ter um ‘bom coração’. Em 1858, discursou aos alunos:

Pois que tudo quanto somos, sentimos e gozamos, provem de Deus; pois que de Deus procede todo o bem ca
na terra, e lá no ceu, sejamos sempre com Deus, meus bons meninos. E como para sermos com Deus
nenhum meio deparamos fóra da religião (Ibid, p.65).

Além de católico assumido, dentro das perspectivas do ultramontanismo, como


constatamos, Abilio recebeu de Pedro II o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, uma ordem
militar portuguesa que, mais tarde, foi substituída pela Imperial Ordem da Rosa147, uma distinção
romântica cujas insígnias giravam em torno do simbolismo da flor de mesmo nome. O motivo
alegado foi o reconhecimento aos serviços prestados por Abilio à instrução popular148. Também
lhe foi conferido, pelo Papa Pio IX, o grau de Comendador da Ordem de São Gregório, em
Roma. Esses títulos eram exibidos com orgulho nas capas de livros e materiais publicados por
Abilio.
No cargo de Diretor da Instrução da Bahia, ele já havia se pronunciado favorável ao fato
de constar em lei a obrigação do professor (púbico e particular) conduzir seus alunos à missa uma
vez por semana, incluindo pena para quem não cumprisse. Essa proposta era respaldada por
outros discursos oficiais do período, que manifestavam uma preocupação pelo ‘descaso’ com que
era tratado este ensino nas escolas públicas. Nos relatórios oficiais, diferentes presidentes,
inspetores e diretores de ensino estabeleciam a obrigação dos mestres e diretores conduzirem os
alunos à missa nos domingos e dias santos. Em 1851, o Diretor Geral da Instrução de Minas
Gerais discursou sobre a necessidade de que um só pensamento moral, um só pensamento
religioso e um só pensamento político presidissem a educação da juventude, pois:

147
Essa ordem foi criada em 1829 para celebrar o casamento de D. Pedro I com D. Amélia e, de acordo com
Guimarães (In:VAINFAS, op. cit.), compreendia dignitários, grandes dignitários, grã-cruzes, efetivos, honorários,
além de cavaleiros, oficiais e comendadores.
148
Esta era outra questão criticada por alguns membros da Igreja. Silva (2000, p.142-143) fala de uma carta de D.
Luis Antonio dos Santos ao barão de Cotegipe, na qual relatava que, antigamente, o governo imperial agraciava os
sacerdotes que lhes lhe mereciam por qualquer motivo, incluindo os serviços eclesiásticos, com o Hábito de Cristo
ou com a Comenda, conforme os serviços prestados. Contudo, depois que ‘se tornou moda’ o uso das insígnias
canônicas, todo serviço de qualquer natureza que fosse, passou a ser reconhecido, fato que o fazia desgostar destas
concessões. D. Luis ressaltava, ainda que, ‘ordinariamente’, quem promovia essas nomeações eram políticos que
dominavam o círculo onde residiam os agraciados: “certamente eles não o fazem senão em recompensa dos serviços
prestados ao campo da política. Porque não deixar o que é da Igreja só para remunerar pios serviços prestados a
Igreja”.
155

É para deplorar, que em um pais católico, e que tem jurado os sistema monárquico constitucional, hajam
professores que ou são indiferentes aos descuidados do ensino e dos princípios e maximas religiosas, ou
infiltram na alma dos meninos principios opostos á religião do Estado e á forma do governo. É urgente a
extirpação deste mal. (Apud MOACYR, 1940, p.88).

Segundo Hilsdorf (1986), apesar da oficialidade da religião católica, a educação religiosa


era descuidada no país. Na Província de São Paulo, os relatórios oficiais apontavam a
irreliogisidade dominante nos colégios particulares e públicos, chegando o inspetor geral a multar
os professores do Colégio da Glória que não conduziam seus alunos à missa nos dias
santificados. Os responsáveis pela instrução, diretores e inspetores nada mais faziam que cumprir
as recomendações da santa sé, pois tratava-se , segundo a autora, de um motivo interno inerente à
vida espiritual da Igreja, cuja hierarquia mostrava-se, na época, vivamente empenhada em
retomar sua missão catequética, tão descuidada em tempos anteriores.
Desta forma, a Igreja se fez presente no campo da educação, sobretudo nas décadas de
sessenta e setenta, fornecendo conteúdos ultramontanos à sua pratica pedagógica nas escolas, na
imprensa, nos púlpitos e na tribuna parlamentar, conteúdos justificados pelo caráter regalista do
estado monárquico.
Os princípios católicos conservadores foram assumidos por Abilio de forma quase
integral. Em seu Relatório (1857), esclareceu que, para abrir um colégio, não bastavam os
critérios estabelecidos pela lei de 1842 (bom comportamento, moral, político e religioso, atestado
de moléstia não contagiosa; idoneidade etc), pois, ao ser concedido o direito da instrução nas
mãos de particulares, outros critérios deveriam ser estabelecidos, como a exigência de títulos
acadêmicos, habilitação exclusiva de bacharéis dos Liceus ou padres ‘abonados’ em concursos ou
exames rigorosos, feitos pelo Diretor Geral de Estudos.
Sua maior preocupação, contudo, não se restringia a essas questões, sendo critério da
religião algo que afligia o católico Abilio. Portanto, para os estrangeiros, leia-se protestantes, sua
proposta era mais rigorosa ainda, pois não era conveniente consentir que um protestante
estabelecesse ‘entre nós’ uma casa de educação para a mocidade. Na Província de Minas Gerais,
assim como em outras, essa preocupação se repetia. Em 1959, o relatório oficial declarava que o
ensino público seria gerido por indivíduos nacionais ou estrangeiros, com a ressalva de que, no
caso de estrangeiros “cuja crença não for a católica, não poderão reger cadeira alguma, cuja
matéria tiver conexão com a dita crença” (Apud MOACYR, op. cit., p.119).
156

Os imigrantes protestantes de origem européia e norte-americana vieram ao Brasil,


sobretudo, a partir de 1824, quando a Constituição permitiu outras religiões, com algumas
ressalvas. Embora o sudeste tenha sido o lugar onde o ‘protestantismo de missão’ esteve mais
presente, algumas iniciativas também ocorreram no norte, nordeste e sul do país. A preocupação
de Abilio e de outros católicos provinha de conflitos gerados entre católicos e protestantes nessa
época. Segundo Kreutz (2001), os estranhamentos entre o poder público e os imigrantes
protestantes ocorreram de maneira mais marcante no que se refere às diferentes competências
sobre o processo escolar (Estado, Igreja, autonomia comunitária), na articulação da escola com a
língua materna e na dinâmica pedagógica a partir das especificidades culturais. Contudo, a partir
de 1870, com a crescente influência do liberalismo também entre os imigrantes alemães, a Igreja
Católica e a Luterana iniciaram uma forte frente de oposição ao avanço do ideário liberal.
Os colégios de Abilio eram laicos, mas apesar disso, a prática religiosa ocupou um lugar
importante. Isto foi expresso no currículo, como já vimos, nos livros de leitura, nos rituais como
missa, primeira comunhão e outros. O quadro de matérias do Ginásio Baiano incluía a admissão
gratuita dos alunos no ensino do Catecismo da Religião Cristã, a interrupção de aulas em dias
santos, a oração como primeira e última atividade do dia e a leitura, em voz alta, da Bíblia
Sagrada, no refeitório. Nos quadros de professores, havia padres-mestres ministrando disciplinas
como latim, história sagrada, línguas estrangeiras e também ocupando cargos de
responsabilidades, como vice-diretor, coordenador e outros. Alguns destes padres eram trazidos
da Europa149. O papel do diretor e dos professores estava estabelecido no Regimento Interno do
Ginásio Bahiano, que assinalava: “Todos os domingos e dias santos conduzirá os alunos à missa”
(Apud ALVES, 2000, p.33).
No colégio da Corte e no de Barbacena, na década de setenta e oitenta, em um momento
de plena efervescência dos debates acerca do assunto, continuavam prevalecendo aulas de ensino
religioso, juntamente com oração e canto na capela como última atividade diária, antes do
recolhimento geral. Em cada colégio havia uma capela150. A do Colégio Abilio da Corte foi
descrita assim pela Inspetoria Geral da Hygiene:

149
Em carta enviada ao Dr. Carneiro, em 1866, de Paris, Abilio comunicou que contratara um jovem padre francês
‘inteligente, trabalhador e virtuoso’ e, no mesmo ano, escreveu ao padre-mestre Santos Pereira dizendo da visita que
faria ao bispo francês Dupanloup, além do Diretor do Seminário Stº Suplício para que estes lhe indicassem religiosos
competentes na arte de ensinar (Apud RIGHBA, op. cit.).
150
Ter uma capela particular não era privilégio somente dos colégios de Abilio. Na Bahia oitocentista, cada grupo e
cada família procuravam dispor de um santuário particular para sua devoção, mantendo até mesmo um capelão
157

N’uma espaçosa e magnifica sala, ornada com simplicidade e gosto, fica a Capella do Collegio. Ostentando
imponente com seu teto erguido e recuado até o plafond do edificio, rodeada de uma elegante tribuna na
altura do primeiro andar. Esta magnifica peça recebe a luz solar côada atravez dos vidros de uma artistica
claraboia aberta no centro do plafond. Ha ahi um piano de cauda e um harmonio (1887, p.9).
O relatório ressaltava, ainda, que este era o lugar onde, todos os dias, os alunos faziam
aula de música e solfejo metódico em coro. Assim, pouco a pouco, se inspiravam nas harmonias
da ‘arte divina e maravilhosa’, que possuía o poder de amenizar os corações mais duros e de
inspirar os nobres sentimentos á alma. A capela, estava localizada à esquerda do dormitório dos
meninos pequenos e à direita do dormitório dos maiores. A localização estratégica demonstrava
sua importância no estabelecimento.
Os ilustrados que faziam parte da Igreja, sobretudo os bispos e padres, mais que os
membros da Monarquia, recebiam atenção e dedicação especial por parte de Abilio. Apesar de se
posicionar de forma crítica em relação a alguns políticos, independente da posição que
ocupavam, não mantinha a mesma postura em relação à Igreja. Encontramos uma única crítica
sua em relação a esta instituição no que se referia ao uso de catecismos de perguntas e respostas
prontas.
Ao considerar as reflexões sobre a educação moral ou sobre a formação do caráter da
infância, contidas na Lei nova, chamou a atenção dos pais e dos mestres, salientando que não
conhecia nada mais ridículo, nem mais totalmente em vão do que esse ‘estulto’ ensino de regras
de moral dado nas escolas, em pequenas brochuras ou catecismos, através de perguntas e
respostas, “que nenhuma influencia exercem nem no espirito, nem no coraçao dos meninos, e que
desapparecem promptamente da memoria sem deixar vestigios sequer” (1888, p.27).
Para Abilio, neste tipo de ensino, os resultados eram iguais aos que, da tribuna sagrada,
davam os padres aos fiéis em seus longos e mal ouvidos sermões. Conseqüentemente, jamais se
conseguira o almejado enfeito moralizador, pois jamais estes ensinamentos inspirariam bons
sentimentos ou nem dariam hábitos morais aos meninos. Ele aconselhava aos mestres, então, os
exemplos vivos, as ocorrências da escola, as relações animadas e “actos de abnegaçao, de
benevolencia e philantropia; são as anecdotas e as parabolas, os meios que se hão de empregar
para formar na meninice a consciencia moral” (Ibid., p.28). Esta defesa foi posta em prática nas
lições dos livros de leitura, os quais iremos abordar no terceiro capítulo.

permanente ou convidado, um privilégio da elite. Era a o modo peculiar de ser cristão católico. Desenrolava-se,
assim, nos oratórios a expressão máxima de uma liturgia privatizada (SILVA, 2000).
158

Com exceção desta crítica, não encontramos mais nada que associasse sua trajetória aos
conflitos com a igreja. Pelo contrário, Abilio mantinha uma relação afetiva, de respeito e
admiração com os membros pertencentes ao alto clero. Encontramos nomes de Bispos e
arcebispos que marcavam presença nas festas de entrega de prêmios e de aberturas do ano escolar
e que elogiavam constantemente sua atitude cristã de manter seus colégios o ensino religioso e
práticas as morais religiosas, assim como sua atitude benemérita de distribuir livros para os mais
necessitados151.
Amigo prestimoso de Abilio, o arcebispo D. Romualdo Antônio de Seixas (1827-1860), o
marquês de Santa Cruz, um dos membros mais ilustrados do clero e ardiloso defensor da
romanização, marcou presença, de 1858 a 1860, nas cerimônias do Ginásio Baiano. Doutor em
Teologia, reconhecido por Sérgio B. de Holanda, como um ‘homem notável’, foi o primeiro
cardeal primaz do Brasil Império, tendo acompanhado os monarcas, desde D. João, depois Pedro
I e Pedro II, e recebido, de todos eles, condecorações e títulos. Presidiu, no ano de 1841, a
solenidade de sagração de D. Pedro II.
Um dos princípios da romanização era o de aprimorar os estudos e estimular o aumento de
um clero mais qualificado, prática a qual D. Romualdo sempre manifestou seu irrestrito apoio, já
que considerava fundamental o apuro nos estudos, o fomento à piedade e à disciplina para um
novo espírito eclesiástico capaz de acudir duas frentes, a ignorância religiosa da maioria e a
crítica secularizante de minorias letradas. Romualdo, que defendia os mesmos princípios
defendidos de seu compadre e amigo Abilio, teve uma participação política ativa.
Entre outras atividades, foi deputado e fez campanha contra os movimentos
revolucionários que ameaçavam a unidade imperial, sobretudo a Cabanagem. Condenou padres
mercenários que negavam sacramentos aos pobres que não podiam pagá-los e apoiou a lei que

151
A política da boa relação com o bispado estendia-se até mesmo ao sistema de compadrio. Os bispos eram
recebidos com festas em seus estabelecimentos. No seu Colégio Abilio de Barbacena, em carta (Apud RIGHBA, op.
cit.) enviada ao Bispo do Pará (1881), Abilio expressou sua alegria em receber notícias do ‘caro compadre’,
sobretudo pela visita deste a Barbacena. Ressaltou que o Bispo seria recebido de braços abertos e que já havia
anunciado aos seus bons discípulos (muito bons!) do Colégio Abilio que iam conhecer o mais ilustrado e o mais
amável dos prelados brasileiros, um estremecido amigo da infância. Concluiu garantindo ao bispo que ele se
encantaria com os excelentes meninos. No jornal A Província de São Paulo (8 de março de 1882), uma matéria
anunciou que, ao voltar da serra da Caraça, o arcebispo da Bahia demorou um dia em Barbacena e, juntamente com
os sacerdotes de sua comitiva, ‘não deixou de fazer uma honrosa visita ao Colégio Abilio’. Foi recebido na porta do
edifício ao som da música marcial e de alegres vivas levantados pelos alunos do Colégio, que formaram duas alas
por entre as quais passou S. Exc. Rvdma, até chegar ao interior do Colégio, onde foi recebido com harmoniosos
cânticos entoados pelos pequenos corados e inteligentes alunos.
159

autorizava a construção dos cemitérios, adotando uma política romanizadora, ciosa da formação
de um clero melhor preparado, menos subserviente ao Estado. Para Vainfas (2002), Don
Romualdo ficou no meio do caminho da romanização por ter colaborado, em vários sentidos,
com o processo de formação do Estado imperial.
Em meio ou não a conflitos, as práticas e rituais de sentimento religioso se
institucionalizaram no século XIX, tornando-se indissociáveis da escola e se materializando pelos
rituais aos quais nos referimos, assim como pelo material e pelos programas de ensino que
abordaremos posteriormente. Apesar de, paulatinamente, ter perdido a importância na legislação
do Império, nos colégios de Abilio (assim como vários outros), o ensino religioso continuou
sendo uma marca inconfundível. A ele era dada importância similar ao ensino científico, fato que
não perfazia uma contradição, pois, como afirmou Cabrini (1994), associar a religião com a
ciência fazia parte do debate do século XIX, como uma reorganização do pensamento católico
diante da sociedade industrial, pois a disciplina moral cristã também contribuía para construir a
ordem fabril.

2.6 O premiar e o punir contrapondo-se ao não castigar e nem recompensar: os caminhos


trilhados

Castigar e recompensar. A pedagogia, em diferentes épocas e lugares, utilizou este


binômio para delimitar o comportamento do aluno, assim como para distinguí-lo na coletividade
à qual pertencia. A premiação, argumento antigo (os gregos já utilizavam) e aperfeiçoado pela
pedagogia dos jesuítas, foi usada para incentivar ao máximo o espírito de emulação, nomeando
imperadores com cruz de prata, quadros de honra, prêmios (livros, sobretudo), louros, coroas e
outros meios, que foram imitados nos sistema educacional de vários países, em estabelecimentos
públicos e privados.
A prática dos castigos corporais, igualmente, perdurou por muito tempo. As rígidas
normas disciplinares escolares, comumente eram definidas antes de qualquer outro procedimento,
porque o aluno adentrava o mundo escolar com as proibições (não tão diferentes do ambiente
familiar) já definidas, pois a autoridade do ‘ser mais velho’ do ‘ser mestre’ conduzia a relação
entre adultos e crianças e entre mestres e alunos. A autoridade sempre exigiu obediência, sendo
160

comumente confundida com alguma forma de poder ou violência, dando a entender que a
manutenção da autoridade exigia que se recorresse à autoridade.
Abilio, que era contra os castigos físicos, publicou, no ano de 1875, uma coletânea de
textos (publicados no jornal O Globo) intitulada Vinte anos de propaganda contra o uso da
palmatória e outros meios aviltantes no ensino da mocidade152, na qual argumentava firmemente
contra as punições, defendendo os castigos morais. Por outro lado, foi um adepto das cerimônias
de premiações, recorrendo a esta prática até a década de setenta, quando percebeu que não
adiantava premiar os alunos. Continuou, contudo, promovendo cerimônias de comemoração, nas
quais divulgava os feitos de seus colégios para visitantes ilustres como o Imperador, ministros,
conselheiros, presidentes, além dos membros do clero.

2.6.1 As cerimônias, os prêmios e as visitas: a sedução do espetáculo

Na obra O Ateneu, Raul Pompéia (1992) descreveu com precisão as festas de ‘arromba’
promovidas pelo diretor que, segundo o autor, tinha um ‘talento’ especial para fazer de seu
colégio uma tradução completa da alegoria. O ex-aluno de Abilio registrou a festa de
encerramento do ano, a qual reunia os alunos com suas fardas de botões dourados (a fina flor da
sociedade brasileira), o diretor (sentado em seu trono), os ministros do império, os pais e outros
ilustres convidados que faziam parte da comissão de prêmios. Segundo Pompéia, o ambiente
majestoso, preparado para a campanha da ‘ciência e do bem’, causou profunda impressão no
menino Sérgio que, ao ser comunicado pelo pai de que iria ser matriculado no Ateneu, sentiu um
imenso prazer, definido como conseqüência apaixonada pela sedução do espetáculo.
Esse relato ia ao encontro das descrições, sobretudo as feitas pela imprensa, referentes às
cerimônias e festas dos colégios de Abilio, marcadas por luxo, pompa, eloqüência e pela
satisfação de se comprovar a eficiência do ensino de seus colégios. Premiar e recompensar sob
forte emulação era uma proposta de Abilio, provinda da década de cinqüenta, quando ocupava o
cargo de Diretor da Instrução. O Programa do Ginásio Baiano apontava:

152
Essa obra, editada primeiramente pela Tipographia do Globo, foi reeditada em Bruxelas, no ano de 1880, pela
Typographia e Lythographia E. Guyot, com 68 páginas.
161

No dia das férias haverá no Ginásio Baiano uma reunião solene para a distribuição de prêmios pelos alunos,
que mais se houverem distinguido nos exames. Os prêmios consistirão em medalhas de ouro e prata
mandadas expressamente fabricar pelo diretor, em livros escolhidos, e em certificados de distinção, sendo,
além disto, os nomes dos premiados inscritos em um quadro de honra, que será colocado no salão dos
exames (Apud, ALVES, 2000, p.31).

Era preciso reconhecer o talento e o esforço dos alunos, cabendo aos prêmios desenvolver
a vontade, tudo sob forte emulação e festividades brilhantes, defendia Abilio. As premiações
eram divididas em “prêmios gerais” que consistiam em livros e “prêmios especiais” como
diplomas, medalhas de ouro e prata e menções honrosas. Estabeleciam-se ordens ou
classificações de prêmios: de aplicação, de docilidade, de bom comportamento, de asseio, de
ordem, de leitura, de escrita, de gramática etc.
Para Abilio, suas festividades pomposas assemelhavam-se às dos países ‘civilizados’. Em
carta enviada a um professor do Ginásio, em 1866, ressaltou que havia assistido a uma importante
festa literária na Sorbone, a distribuição de prêmios no Concurso Geral dos Liceus de França153,
solenidade que, segundo ele, era muito parecida com as festas de seu Ginásio Baiano.
Na França do século XIX, segundo Caron (1999), a distribuição de prêmios com borda
dourada, às vezes encadernados com couro, em cartonagem vermelha, com o timbre do
estabelecimento, fornecia o quadro da grande cerimônia anual que a República prolongou e
ampliou até o ano de 1968. Para a elite francesa, a recompensa suprema era ser apresentada no
concurso geral para, neste espaço, defender as cores de seu liceu e receber prêmios ou menções
honrosas que serviam para renomar e publicizar o estabelecimento que se estava representando.
Seguindo esta orientação, a distribuição de prêmios nos colégios de Abilio era
acompanhada por eloqüentes discursos, publicados, a princípio, nos jornais da Bahia, e em 1866,
reunidos e publicados na coletânea intitulada: Collecção de Discursos Proferidos no Gymnasio
Bahiano – por seu Director o Dr. Abilio Cesar Borges. Os discursos foram publicados por ordem
de data e assunto, ou seja, as falas para abertura do ano letivo, que acontecia no mês de fevereiro,
e do encerramento do ano, que culminava com a entrega de prêmios no mês de
novembro154.Nessa obra, nos foi possível identificar uma boa parte dos elementos que

153
Esta cerimônia foi criada em 1747, suprimida sob a Revolução Francesa e restabelecida em 1809.
154
Nos textos, o autor evidenciava seu saber através de eloqüentes discursos produzidos com o apoio da religião e da
ciência, plenos de conselhos, afirmações, orientações e prescrições. Ao lermos este material, não tivemos dúvida do
poder da fala e da escrita de Abilio. O estilo rebuscado, próprio de sua época, não correspondia e a sua aparente
humildade, declarada no discurso de 1862: “Meus charos alumnos é custoso na verdade, especialmente para quem,
como eu, não dispoe de muita facilidade para fallar e ainda menos para escrever” (1866c, p.218).
162

sustentavam a concepção do autor a respeito da instrução ideal. Abilio, por meio dela, divulgou
amplamente suas idéias, brindando com seus discursos pais, políticos e amigos155. No ano de sua
publicação, enviou essa obra da França, como prêmio, para duzentos alunos da 2a e da 3a classe
do seu Ginásio. 156
O dia da cerimônia de entrega de prêmios era considerado pelo diretor um dia de extrema
relevância, não bastando, portanto, somente a pompa e o luxo. Era preciso justificar a sua
importância, recorrendo a exemplos grandiosos do passado. As autoridades que iniciavam o
processo de premiação faziam uma alusão à premiação dos meninos na Grécia antiga, país dos
grandes filósofos. Abilio ressaltava, porém, as transformações que diferenciavam a entrega
desses prêmios e seu merecimento:

Meus caros discipulos! Nos celebrados jogos olympicos da famosa Grecia, tambe’m tinham os meninos o
seu concurso particular – era o Pentathle: e os vencedores ganhavam em recompensa uma coroa de oliveira,
sendo depois recebidos em triumpho nas suas cidades nataes; mas na éra presente, tendo passado o imperio
da força bruta, não são mais os concursos feitos para saber-se quem vencera no salto ou na carreira, na lucta
ou no disco, e sim, nos exercicios do espirito e nas perfeiçoes morais (1866c, p.27)

Ou de grandes generais:

Meus bons amigos! – Villars, o grande general francez que em Denain salvara sua patria, e depois em
muitas e variadas circunstancias a illustrará e honrára, quer nos campos de batalha, quer nos conselhos da
diplomacia, já carregado de annos, como de glorias, disse uma feita: ‘duas épochas há na minha vida, das
quaes guardo a mais chara lembrança; - o dia em que ganhei minha primeira batalha, e sobretudo aquelle em
que pela primeira vez fui premiado no collégio (Ibid, p.253).

Para o Diretor, esta era uma forma de desenvolver a vontade e o desejo dos alunos, pois o
menino que recebia prêmio servia como exemplo para incentivar os outros a se encorajarem para
os estudos. Portanto era de suma importância causar uma profunda impressão no ânimo da
coletividade escolar. No discurso de 1859, Abilio ressaltou que daria prosseguimento aos
métodos do ano anterior, aplicando as mesmas animações e correções morais, pois essa era uma
forma de valorizar os aplicados, de modo a exaltar a dignidade pessoal de cada criança e

155
Na década de setenta, ao protestar contra uma lei que autorizava o uso da palmatória nas escolas de Santa
Catharina, enviou para o Presidente dessa Província cem exemplares dessa obra, juntamente com a observação:
“Tenho fé que a leitura desses discursos levará aos encarregados da delicada tarefa, de instruir a infancia, a
convicção de que além de fazer a escola antipathica, torna a profissão do mestre mais penosa, reduzindo-o de amigo
e pae, a condição de inimigo e algoz”. Persuadido, o Presidente comunicou-lhe a supressão e revogação da dita lei
(Apud RIGHBA, op. cit., p.208).
156
Em 1875, publicou, no Rio de Janeiro (Typoghraphia do Globo), a obra: Discurso que por occasião da solenidade
do Collegio Abilio, a 11 de abril de 1875, proferiu seu director Dr. Abilio Cesar Borges.
163

‘desprezar os vadios’. Sua única preocupação eram os critérios para premiar os meninos, de
acordo com os quais era preciso ser justo, de acordo com o próprio diretor evitava-se, sobretudo,
fazer uso de fingimento ou de capciosos rodeios com os meninos, pois isso significava autorizá-
los a fazer o mesmo.
164

Figura 16 Abilio procurava divulgar seus colégios


publicando as poesias e os discursos proferidos por ele
próprio, pelos discípulos e pelos convidados, aqui temos dois
exemplos de publicações resultantes das cerimônias de
distribuição de prêmios. Ao lado (esq.) a Collecção de
discursos proferidos no Gymnásio Bahiano, publicado em
1866, em Paris (Fonte: FCM – Foto: A. Trigo). Abaixo,
Discursos e poesias recitadas no Collegio Abilio da Corte
(Fonte: BNRJ – Foto: Diego Valdez).
165

Para explicitar sua posição, utilizou a seguinte passagem:

É assim que em algumas das passadas distribuições de premios, quando eram condecorados com medalhas
de ouro alunos gratuitos, bem que pobres de dinheiro e nascimento, ricos de meritos real, ficavam envoltos
na poeira do esquecimento moços de familias distintas, e até filhos de intimos amigos meus, por carecedores
de meritos. E é o que ainda hoje vai succeder (Ibid, p. 251).

Abilio tentava convencer os alunos inconformados com o fracasso do merecimento de


cada um, explicando-lhes que não se premiavam somente talentos e progressos, mas,
principalmente, o bom procedimento. Portanto aconselhava que nenhum dos bons discípulos se
julgasse humilhado, abatido ou sem amor próprio, ao constatar a ausência de seu nome na lista
dos premiados, pois nem todos possuíam uma grande soma de talentos. Mais uma vez recorria a
exemplos que justificavam sua fala:

Attendei ao seguinte dialogo havido entre um grande preceptor francez, e um seu discipulo descontente por
não ter sido premiado em um dia como este. “Estas com um ar por demais sombrio, meu charo menino; que
te succedeu hoje? Não respondes? Vamos, tem mais confiança em mim. Bem sabes da amizade que te
dedico, e do valor que dou a uma grande sinceridade. Appliquei-me todo o anno, disse o menino; fui docil,
como vós mesmo tantas vezes o dissestes; dei regularmente as minhas lecçoes; não soffri um só castigo; e
entretanto não fui premiado! “Sim, meu amigo, replicou o mestre, concordo em teres sido um bom
discipulo; mas, bem vês que os premios não podem pertencer a todos quantos merecem este nome.
Prodigalisar taes recompensas, seria o mesmo que destruir-lhes o valor. Pois nenhuma eschola, onde todos
são laboriosos há-se de premiar a todos? Si todos os que tem sido estudiosos e doceis fizessem a mesma
reclamaçao, deveria eu dar o premio a todos para os satisfazer? Não seria isso ridiculo? Convem, portanto,
comigo, meu charo menino, em que as distincçoes devem ser dadas, não a todos os bons, porém aos
melhores. E deixa de te affligir sem razão. Continua em tuas boas disposiçoes; e confia no futuro; que a tua
vez póde chegar um dia.” Eis ahi justamente como eu responderia hoje aos descontentes (Ibid, p.64-65).

As cerimônias de distribuição de prêmios, iniciadas em 1858, no Ginásio Baiano157,


duraram até 1877 no Colégio Abilio da Corte, quando, aos 53 anos, Abilio se convenceu da
completa inutilidade dessa prática. Iniciou, então, campanhas contra a distribuição de prêmios,
ressaltando a influência danosa que isso provocava nos meninos:

157
Em carta (Apud RIGHBA, op. cit., p.367-374) enviada, de Paris, ao Dr. Carneiro e ao Padre Mestre Santos
Pereira, em outubro de 1866, Abilio comunicava sobre o adiamento de seu retorno ao Brasil, em função de sua
esposa Francisca ter entrado em trabalho de parto antes do previsto (isso fez com que seu filho Joaquim nascesse em
Paris).Nas cartas, ele ressaltava sua insatisfação em não poder realizar a cerimônia de distribuição de prêmios no
Ginásio. Reafirmava que sentia imensamente o fato de não poder abraçar os caros alunos antes de eles partirem para
suas casas, lembrando, ainda que havia gasto mais de 4 mil francos em prêmios, mas que enviava os livros/prêmios
que tinha adquirido para serem distribuídos para os ‘melhores discípulos’. Mandava 200 exemplares da coletânea de
seus “Discursos” que tinham sido recentemente publicados, para os meninos da 2a e 3a Classe, além de um volume
do ‘Manual Abreviado da Missa’ para cada menino da Primeira classe. Enviava também outra caixa com mais livros
para presentear seus pupilos que havia se destacado no ano de 1866.
166

Vi sempre que os galardoados com medalhas e mençoes honrosas, assim como os que alcançam premios
inferiores, ou não obtinham nenhum, continuavam a ser os mesmos que dantes eram nos estudos e na
applicação, com esta differença porém, isto é, que os primeiros se tornavam cada vez mais orgulhosos e
vaidosos, e portanto menos trataveis, e os outros, ou desanimavam, ou tornavam-se peores, enfezados pela
humilhaçao soffrida dente dos seus collegas e de seus parentes. Felizmente senhores, reconheci em tempo
quão errado andava. Que esta minha sincera confissao aproveite aos educadores da mocidade (Apud
RIGHBA, op. cit., p.143).

No Colégio Abilio da Corte e no de Barbacena, deixou de haver distribuição de prêmios,


tendo o diretor também argumentado com convicção contra os prêmios no Congresso de Buenos
Aires, fato que, segundo o próprio Abilio, foi decisivo para que se extinguisse essa prática
também na Argentina.
Mesmo não havendo mais premiações, as cerimônias que divulgavam o aproveitamento
de seus brilhantes discípulos continuaram. Já comentamos a respeito das reuniões literárias,
ocasiões em que os alunos recitavam, em público, suas composições literárias livres, expondo
seus talentos. As provas orais e os exames eram realizados publicamente, na presença de pessoas
fluentes, as quais pertenciam ao mundo da política imperial, da Igreja e também da imprensa,
meio essencial para que o desempenho dos pupilos nas provas orais, nos exercícios ginásticos e
nos recitais de poemas e clássicos, fosse amplamente divulgado.
Como exemplo dessas cerimônias, podemos citar a ‘Festa da infância’, ocorrida após
cinco meses da inauguração do Colégio Abilio da Corte, revestida de brilho e divulgada no
Jornal do Commercio, que ressaltou a exposição feita por Abilio dos ‘modernos métodos’ a um
ilustrado auditório. Após a exposição, começaram os exames das crianças que, de acordo com o
jornal, ao serem interrogadas sobre história santa do Brasil, gramática, aritmética, botânica etc,
“responderam não como alumnos que tem apenas quatro mezes de estudo, mas com
conhecimentos das ideias geraes que expunham, dos fatos que narravam” (Apud RIGHBA,
p.78)158.
Na presença do Imperador, do Conde D’Eu e de outras autoridades, no salão de honra da
159
Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro (1883) , Abilio, juntamente com seu filho, Joaquim

158
Após dois anos de funcionamento deste estabelecimento, o vice-diretor do Colégio Pedro II escreveu um longo
artigo, no qual traçava mais elogios, aconselhando professores e pais a adotarem seus métodos, pois o excelente
resultado obtido do sistema adotado pelo distinto pedagogista brasileiro rompia com as tradições rotineiras para
iniciar a puerícia no campo das ciências, das letras e das artes. Finalizou o texto ressaltando a resposta pronta dos
alunos em um exame a que assistiu e o desenvolvimento intelectual e natural dos meninos.
159
Nessa exposição, foram feitas, na sala de Imprensa Nacional, quatro palestras: a primeira, “A educação da
infância sem proteção”, pelo conselheiro Leôncio de Carvalho; a segunda, “Higiene escolar”, pelo Dr. Antônio de
Paula Freitas; a terceira,“Mobiliário escolar do Colégio Abilio”, pelo Dr. Abilio; a quarta, “Ensino moral e religioso
167

Abilio, e seus alunos, divulgou e explicou as novidades acerca de seus métodos para as escolas
primárias160. Também demonstrou, na prática, sua Lei Nova do Ensino infantil, fato reconhecido
como uma novidade para a época, pois não era comum o aluno fazer parte das conferências de
seus mestres. Nesta Exposição, Abilio explicou que sua presença se justificava por seu crédito na
iniciativa do Governo geral em relação à instrução. Por este motivo, desfalcou seu Colégio
Abilio, levando o que tinha de melhor para ‘contribuir’ na elevação da pátria à civilização
almejada.
Segundo Bastos (2005), na segunda metade do século XIX, o estado brasileiro fez da
educação um grande espetáculo, promovendo conferências, organizando Congressos, exposições
pedagógicas, museus escolares e pedagógicos. No Rio de Janeiro, a partir de 1873, organizaram-
se vários eventos ilustrativos deste empenho na vulgarização do conhecimento e do
aperfeiçoamento do corpo docente. Era um espaço privilegiado da instrução e ensino,
transformando-se em verdadeira “instituição”, segundo Bastos, porque divulgavam as idéias
educacionais e práticas educativas que, gradativamente, foram se impondo no contexto
brasileiro161.
Em relação aos convidados presentes nas cerimônias promovidas por Abilio, sem dúvida
alguma, o mais ilustre e mais considerado era o Imperador Pedro II. Em 1859, o Ginásio Baiano
(o único colégio) teve a ‘honra’ de sua visita na viagem que a comitiva imperial fez pela Bahia162.

nas escolas públicas”pelo Dr. Amaro Cavalcante . Almeida (1989) ressaltou que ainda foram feitas mais duas
conferencias de Abilio, uma sobre os aparelhos de seus colégios e outra sobre seus métodos de instruir as crianças de
seis a nove anos.
160
Para essa Exposição, Abilio preparou o Catalogo da Secção do Collegio Abilio, contendo todo o material que
estava expondo. Também publicou, nesse mesmo ano, a Conferencia feita na presença de S. M. o Imperador, pela
Typographia Nacional. Este material foi publicado pela primeira vez no ano de 1883, pela Typographia Universal de
H. Laemmert & Cia e, em 1884, pela Typographia e Lithographia E. Guyot de Bruxelas, com 30 páginas. No ano de
1887, foi republicado com o título Conferencia feita pelo Barao de Macahubas a 7 de outubro de 1883: no salão de
honra da Exposição Pedagogica sobre a presidencia de sua alteza real o Sr. Conde D' Eu e na presença de S. M. o
Imperador sobre o ensino moderno dado no Colegio Abilio. E, em 1887, foi reeditado pela Typographia e
Lythographia E. Guyot, com 29 páginas. Essa mesma obra foi publicada em inglês, no ano de 1884, com o título de:
Educational exhibition of Rio de Janeiro. Lecture delicred in the presence of H. H. the emperor of Brazil, and
under ther presidency of H. R. the Count D’Eu, in the grand Saloon of the educational Exhibition by Abilio Cesar
Borges Baron de Macahubas, and the Key fot the use of the same.
161
Segundo Chizotti (Apud BASTOS, 2005, p.118), as conferências expressavam um “ufanismo laudatório de
pessoas” em prol do progresso da instrução pública do Brasil, atitude típica do intelectual da época, que participava
da formação do Estado Nacional. Porém o mesmo autor afirmou que esta louvação não devia ser confundida como
mera bajulação, mas reconhecida como um entusiasmo nacionalista “sobretudo um entusiasmo pela educação,
responsável pelo papel de promover o desenvolvimento e a marcha radiosa da humanidade para um povo porvir da
civilização humana”.
162
Pedro II visitou a Bahia após visitar o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo
com Tavares (1963), essa viagem de Pedro II à Bahia se deu em um momento em que a Província atravessava uma
168

A presença ‘augusta’ da majestade imperial era motivo de imenso orgulho para Abilio, que
iniciou, neste período, uma relação de amizade com Pedro II, a qual o acompanharia em sua vida
profissional, sendo determinante para seu êxito163. Era evidente e transparente a admiração de
Abilio pelo Imperador, que representava para o diretor, não só a instância mais elevada do
Império, como também um intelectual protetor do conhecimento, um verdadeiro ‘amigo da
infância’. Não era comum Pedro II manter um contato tão próximo com outros súditos mirins de
colégios públicos, com exceção do Colégio Pedro II na Corte164. No ano seguinte, a célebre visita
ainda era exaltada:

O nosso magnanimo Imperador, o protector decidido das lettras patrias, o estremecido amigo da infancia
brasileira, desceu do alto do seu throno e misturou-se com os meninos do Gymnasio, animou-os com sua
respeitavel e sympathica presença e palavras; - que os meninos do Gymnasio pois se preparem desde já para
um dia serem preclaros cidadaos deste grande imperio, e dignos suditos de tao esclarecido e desvelado
monarcha (1866c, p.117).

Para Schwarcz (1998, p.104), as viagens de Pedro II aumentaram de forma considerável


sua popularidade, pois as procissões e beija-mãos permitiram a visibilidade da realeza:
“simbolicamente o monarca tomava posse do seu vasto território. Ver e ser visto: eis uma nova
lógica que implica unificar, também, a nação”. Para Abilio, a visita que o ‘magnânimo’
Imperador se dignou fazer em seu colégio representou uma honra e uma glória sem tamanho, pois
representava o reconhecimento por seu trabalho pela instrução no Império e pela grandeza da
nação, como ressaltou em vários de seus discursos. É importante ressaltarmos esse sentimento
patriota ou nacionalista de Abilio, muito exaltado por seus biógrafos, em relação à figura do
imperador e que foi definido por Carvalho da seguinte forma:

fase difícil, pois faltava dinheiro para obras públicas, a agricultura sofria com a estiagem e a agitação política dividia
liberais e conservadores. Mesmo assim, tudo se fez para que a visita brilhasse como um sucesso da unidade e
estabilidade da monarquia. Junto com o Imperador, viajavam também os rituais monarcas e, se o cenário variava de
acordo com a Província, o ritual da precisão e da pompa era o mesmo. Apesar das dificuldades da Província,
Salvador estava em festa, milhares de pessoas esperavam o Imperador e entre vivas, fogos e festas e os habitantes se
vangloriavam da presença real na Província, como também fez Abilio.
163
Em 1859, no discurso de distribuição de prêmios, iniciou sua fala lembrando esta visita, fato que tornou o dia 30
de outubro uma data ‘altamente memorável’ para o Ginásio e para a Bahia. Na nota do discurso (1886c, p.86),
registrou que a S. M. demorou-se no Ginásio “por 3 horas menos 11 minutos”.
164
O Imperador e sua comitiva não prestigiaram somente Abilio. Bastos (2002) inclui em um quadro das visitas que o
Colégio Menezes Vieira recebeu (estiveram presentes ministros, conselheiros, viscondes, barões, doutores,
inspetores) o nome de Pedro II que, entre o ano de 1881 e 1884, visitou o colégio quatro vezes. Estas visitas davam
prestígio para os estabelecimentos, pois os jornais as anunciavam de uma forma que enaltecia os colégios.
169

O sentimento monarquista da população não significava necessariamente sentido de brasilidade. Era antes
fidelidade a tradição monárquica-católica, de natureza religiosa e cultural antes que política. Para que se
transformasse em patriotismo era necessário que se vinculasse a figura do monarca como chefe da nação. O
que seria de se esperar, então, da parte da elite, era uma ação pedagógica, dirigida a população, que buscasse
identificar a monarquia ao Imperador e este a nação (1998, p.104).

Um outro momento em que se reuniam inúmeros convidados em seus colégios, era nas
festas de aniversário de Abilio. Encontramos várias comemorações que, segundo os jornais, eram
de própria ‘iniciativa dos alunos’, os quais mostravam o respeito e a gratidão dos moços
inteligentes pelo seu diretor. Nestas ocasiões, eram declamados poesias e textos feitos por alunos
e professores165.
A Monarquia sempre se fazia representada nestas atividades. Figuras ilustres, pertencentes
à hierarquia do Império, como ministros imperiais e outros, se somavam aos participantes nas
atividades festivas realizadas nos colégios, independente do partido Conservador ou Liberal estar
no poder, sendo a recompensa final o prestígio que Abilio recebia. Pelo que pudemos observar, o
diretor estava cercado de ‘bons homens’, seus colégios recebiam apoio de uma boa parte da
sociedade que estava no poder, fator essencial para lhe dar a visibilidade necessária, favorecendo
as menções honrosas que conferiam renome e publicidade a seus estabelecimentos.

2.6.2 Punições morais e reflexivas: Aquele que se envergonha ainda não é incorrigível

Não mais dôres, nem prantos;


Não mais constrangimento;
Na escola da Lei Nova
Só ha contentamento.
A estudar! A estudar!
Vinde, vinde a estudar!

(Hino da Lei Nova do Ensino infantil – 1888)

165
Encontramos um artigo retirado do Correio de Barbacena (de 12 de setembro de 1886), no jornal A Província de
São Paulo (7 de outrubro de 1886, p. 2.), a respeito do brilhantismo da festa do 60º aniversário do barão de
Macahubas. A festa, que contou com uma parte literária e recreativa, foi assim anunciada: “A fachada do collegio,
esplendidamente illuminada á giorno, offerecia um bonito aspecto que se casava perfeitamente com a alegria e
animação que iam lá dentro. Nesta festa os alunos inauguraram o Grêmio Litterario Joaquim Abilio, diretor do
Colégio Abilio da Corte, que agradeceu emocionado a delicada idéia que tiveram os dignos allumnos de dar seu
nome ao gremio. A festa que começou as 9 horas terminou as 2 da madrugada, quando retiraram se os convidados
agradecidos pelo modo cavalheiroso com que foram tratados”.
170

Defensor de uma pedagogia baseada no ensino amorável e livre de castigos físicos, Abilio
divulgava-se como um semeador de idéias inovadoras no campo de instrução da infância. Ao
defender que a instrução da época não estava seguindo um caminho conveniente, marcou em seus
discursos, da década de cinqüenta até o final de sua trajetória (1891), constantes defesas do
ensino prazeroso, envolvente, sedutor, atrativo, que deveria se contrapor ao castigo físico e,
sobretudo, ao uso da palmatória166. Ele se contrapunha ao ensino fatigante, à atividade que estava
além da capacidade da criança e outras práticas que pudessem afastá-la da escola.
O uso de castigos físicos, uma prática que, definitivamente, marcou a relação aluno-escola
desde o século XVIII, já vinha sendo combatido na Europa167. A condenação dos jesuítas, em
1759, juntamente com uma nova orientação do sentimento de infância, baseado na idéia de que a
infância não era uma idade servil e não merecia ser metodicamente humilhada, contribuiu para
que esta prática diminuísse consideravelmente168. Os castigos corporais em uso na Europa,
segundo Caron (In LEVI & SCHIMITT, 1996) 169, caíram em desuso no fim do Antigo Regime,
salvo na Inglaterra e na Rússia.
Eles foram oficialmente abolidos na França em 1808, período em que se iniciou uma
campanha que estimulava os professores a não empregarem nenhum meio humilhante, nem
ofensivo no trato com os escolares, evitando maltratá-los ou feri-los por qualquer causa que

166
A férula: uma planta de haste delgada, conhecida internacionalmente como “palmatória”, teve sua origem em
Roma e servia para castigar os escravos e as crianças. O Dicionário Brasileiro de Educação (DUARTE, 1986, p.131)
incluiu em seus verbetes a palavra palmatória pela sua permanência no decorrer da história da educação, em
diferentes tempos e lugares, definindo-a assim: “Peça circular de madeira, sola ou pele de cação, em geral com cinco
orifícios dispostos em cruz e com um cabo e que servia, no passado, para castigar as crianças nas casas e nas escolas,
batendo-lhes com ela na palma da mão. Por vezes, para aumentar a dor dos castigados, punha-se alfinete na sua
ponta. O mesmo que férula, menina-de-cinco-olhos, pavana, Maria Vitória, Santa Luzia, Santa Luzia de cinco olhos,
Santa Vitória de cinco buracos. Conhecida desde a Roma antiga como castigo das crianças na escola, ou usada como
“excitadora” da memória infantil”.
167
De acordo com Ariés (1978), antes do século XV, as crianças não eram submetidas a uma disciplina baseada na
autoridade e na hierarquia escolar, pois a aprendizagem não se limitava à escola, as crianças aprendiam a regra de
sua comunidade em festas, cultos religiosos ou com um menino mais velho. Ao final da Idade Média, a infância
escolar foi organizada de forma hierarquizada e autoritária, na qual o papel do mestre se restringia à transmissão de
conhecimentos, devendo educar e instruir igualmente para formar os espíritos, inculcando-lhes as virtudes. Os
poderes de corrigir e punir apoiavam-se na noção de fraqueza da infância e do sentimento da responsabilidade moral
dos mestres.
168
Rousseau (1999), no século XVIII, apontou em sua obra, Emílio ou da educação, a infância como tempo
diferenciado dos adultos, propondo para seu aluno Emílio, uma educação sem imposição da autoridade, baseada na
liberdade e livre de punições. Nesta obra, o autor teceu uma crítica à sociedade da época, acusando-a de não respeitar
o período da infância e de ser muito enérgica com as crianças. A idade da alegria, segundo o autor, passava-se em
meio a prantos, a castigos e a ameaças. Ele também acusava os pais e professores de maus tratos.
169
Caron, Jean-Claude: Os jovens na escola: alunos de liceus na França e na Europa (fim do século XVII – fim do
séc. XIX) In: Levi 137-194.
171

fosse. Contudo o uso da palmatória, do chicote, do açoite ou da régua, ainda no século XIX, era
temido pelos colegiais170.
A abolição dos castigos físicos nas escolas, sobretudo nas escolas primárias, foi a ‘menina
dos olhos’ das campanhas de Abilio. Usando de seu próprio exemplo para argumentar sua
posição contra a palmatória, explicitou no relatório de 1857:

Nunca me hei de esquecer de como se me gelava o corpo inteiro ao pôr os pés na soleira da porta da minha
primeira escola do padre-mestre João Baptista e do horror que me tomava ao ver a enorme palmatória preta
do mestre Ignácio, com quem principiei a aprender o latim. Oh! Nunca”! (Apud RIGHBA, op. cit., p.338).

Mais tarde, para ilustrar sua campanha contra o uso da palmatória, Abílio pediu à direção
da escola onde estudara a mesma férula que lhe causara tanto horror, recebendo-a em doação.
Para seus biógrafos, ao se posicionar contra o uso da palmatória, Abilio provocou uma grande
oposição, sobretudo por ter encaminhado oficialmente, em 1857, uma circular aos professores da
Bahia, proibindo o uso de castigos físicos, sobretudo o uso da palmatória:

Directoria Geral dos Estudos da Bahia, aos 3 de Julho de 1857.


Tennho eu pleno conhecimento da pouca reserva, com que, em geral, nas nossas escolas são applicados os
castigos phisicos, não obstante a expressa prohibição contida no regulamento de 29 de Janeiro de 1842, ao
passo que as moraes ficam quasi de todos esquecidos, levando-se frequentemente aquelles á ponto tão
descommunal, que só proprios seriam de povos barbaros, além de constituirem verdadeiras sevicias, e por
tanto, crimes em face das leis do paiz; e proporcionando o mesmo regulamento outros meios correccionaes,
mais proficuos e humanos, expressamente vos determino que, obedecendo ao que naquelle regulamento se
acha disposto, em caso nenhum empregueis taes castigos, excluindo desde já de vossa escola esse arretanho
instrumento de dôr, a que se dá o nome de palmatória (Ibid, p.304).

Abilio se posicionou contra uma prática que, para a grande maioria da população e para os
que atuavam na instrução, assim como para as famílias dos alunos, era a forma correta de
‘corrigir’ o alunado. Apesar desta proibição já estar contida na lei imperial de 1827, não era
consensual, tanto era que o deputado Holanda Calvacanti ressaltou “presumo que entre nós
atualmente haverá pouca gente capaz de ensinar sem palmatória... então pra que excluir a
palmatória?” (Apud SUCUPIRA, 2001, p. 58). A lei foi aprovada com a ressalva de que os
castigos seriam aplicados somente sobre o método Lancaster, que consistia em castigos

170
Os castigos que começavam a chocar as classes médias baseavam-se em proibições de ver os pais, privações de
alimentos (até 1809), de saída para recreio e de parte das férias, ou punições mais simbólicas com roupa de burel,
chapéu de burro, mesa de penitência para as refeições, banco de preguiça, envio para o canto com a variante clerical
de permanecer com os braços em cruz etc. Entre os mais usados estavam a prisão (suprimida em 1863) e a lição
suplementar. A lição dobrada era uma punição escrita que ia da dissertação à cópia (de verbos latinos, sobretudo).
172

considerados leves, como chapéu de burro, ficar de pé virado para a parede e outras punições
consideradas ‘menos ofensivas’.

A lei foi duramente criticada em alguns relatórios oficiais, pois considerava-se que os
meninos tornaram-se cada vez mais indisciplinados e ofensivos171. Os relatórios criticavam o
método lancasteriano, sem castigos físicos, pois reinava uma desinquietação nas aulas. Segundo
as avaliações, os meninos não obedeciam aos mestres porque sabiam que jamais seriam punidos
com a palmatória dentro da aula, recebendo com risos as punições morais do ensino mútuo por
meio dos cartões, o que justificava o fato de muitos pais mandarem os filhos aos professores
particulares, que ainda recorriam ao antigo sistema disciplinar para que não se tornassem
‘imorais’, registrou Hilsdorf (In BASTOS e FARIA FILHO, 1999).
Bell e Lancaster não acreditavam que a motivação como simples desejo de aprender era
suficiente para um grande número de alunos. Recorreram, então, à emulação, procedimento que
deveria se tornar um meio de educação instituindo-se um concurso permanente entre os alunos,
depois de definido um conjunto de procedimentos que combinavam sansões positivas e negativas.
Assim, todo trabalho era digno de elogios ou todo o comportamento meritório ou repreensível
estava sujeito a punições ou a recompensas mediatas. Uma série de sanções, progressivas e
hierarquizadas surgiu para destacar as marcas de honra ou de infâmia. Desta forma, suprimir a
recreação, premiar com dinheiro ou com objetos úteis, submeter à criança a julgamentos pelos
próprios colegas etc. substituiria os castigos corporais que deveriam ser suprimidos. Para Lesage
(In BASTOS e FARIA FILHO, op.cit.), essa foi uma decisão considerada corajosa, a qual,
embora não tenha significado o desaparecimento dos castigos, de fato, ocasionou mudanças nas
práticas cotidianas.
Essas mudanças, entretanto, não se estenderam para todos, pois, no século XIX e uma boa
parte do século XX, ainda não se compreendia a escola sem o castigo corporal e a férula, ou
palmatória, que, nas palavras do professor Leopoldo Pereira, era para o mestre como o cetro para
o rei ou o cajado para o pastor. Nas aulas de latim e francês, corria bem aceito o axioma de que
estas línguas, quando não entravam pelos olhos e ouvidos, deviam entrar pelas unhas (Apud
VIDAL e FARIA FILHO, 2005).

171
Nas décadas de trinta e quarenta, observamos exemplos como o do presidente de Goiás (Apud MOACYR, 1934)
que aconselhou a Assembléia a organizar um regimento para regular os mestres, pois, com a retirada do arbítrio das
punições, os alunos se encontravam em plena liberdade para cometerem excessos, ocasionando a ‘imoralidade e a
desordem formal’.
173

Figura 17 Nesta obra publicada em 1878, Abilio reuniu seus artigos publicados no jornal O Globo em 1876. Os
artigos argumentam contra o uso de castigos físicos na escola, campanha que o educador iniciou na década de
cinqüenta e com a qual prosseguiu até o fim de sua vida (Fonte BNRJ – Foto: Diego Valdez).
174

A temida palmatória era parte integrante do precário mobiliário das escolas primárias em
diferentes cantos do país. De origem romana, como já ressaltamos, a férula, foi muito utilizada na
Idade Média e veio para o Brasil junto com os Jesuítas. Recebia o nome popular de Santa Luzia
e, para que não fosse esquecida pela meninada da época, havia uma quadrinha que ficava
guardada na memória mesmo que involuntariamente: Santa Luzia - De cinco buracos - que tira a
mandinga -De todos os velhacos. A ironia do nome era uma alusão a Santa Luzia que, de acordo
com a crença popular, era venerada como advogada da vista, ficando subentendido que a férula é
que devia dar vistas aos cegos.
Não são poucas as pesquisas, assim como os romances, que apontam a punição física
como um dos pilares básicos da ação educativa da época. Personagens dos romances de autores
como Machado de Assis, José Lins do Rego e outros foram vítimas, em suas passagens pela
escola, dos bolos aplicados com a palmatória, seja como forma de punição por comportamento
indesejável, ausência de aprendizagem de algum conteúdo escolar ou indisciplina do corpo em
submeter-se a algumas tarefas prescritas pela escola.
Segundo Galvão (In FARIA FILHO, 2001), apesar da institucionalização do discurso que
impunha como obrigação do professor tratar seus alunos com ‘docilidade e prudência’, em caso
de infração dos deveres prescritos, a admoestação era permitida e aplicada. Críticas contra o uso
dos castigos físicos na escola não faltaram, entretanto, entre o discurso e a prática, o uso da
palmatória perdurou por muito tempo nas escolas, não se restringindo ao uso pelo professor, pois
os próprios os alunos que demonstravam mais aprendizado aplicavam bolos nos colegas. Além da
Santa Luzia, outros instrumentos ou procedimento eram aplicados para conter a pequenada, como
o uso de varas simples ou com cerol, tabefes, tapas ou ‘reguadas’ nas mãos, croques na cabeça,
puxões de orelha e outros meios para corrigir os alunos insubordinados.
Os recursos menos doloridos, contudo ainda humilhantes, eram as correções que
expunham o ‘réu’, como ficar de pé no canto da sala, no tamborete, com orelhas de burro, receber
pancadas com livros (para o conhecimento entrar) na cabeça, ficar de braços estendidos ou de
joelhos, além da famosa prisão, ou cafua, onde o aluno era detido, permanecendo preso e
incomunicável. Dar nota baixa e proibir a comunicação entre os colegas também se constituía
como punição. O último recurso era a temida expulsão. Contudo, em algumas escolas, nem todos
os alunos eram punidos, ressaltou Galvão, isentando-se as meninas. Além disso, a classe social a
que pertenciam os alunos servia para distinguir o tipo de punição.
175

A educação rígida era adotada tanto em casa como na escola, de modo que as crianças
eram punidas à menor falta. Além disso, eram vestidas como gente grande, exigindo-se delas
comportamentos de adulto. Cora Coralina contou como era sua infância no final do século XIX:

Sem a compreensão de seus responsáveis, sem defesa e sem desculpas, vítimas desinteressantes de uma
educação errada e prepotente que ia da casa à escola, passando por uma escala de correções absurdas, a
criança se debatia entre as formas anacrônicas e detestáveis castigos e repreensões disciplinares, do puxão
de orelhas ao beliscão torcido, o cocre que tonteava, até as chineladas de roupas levantada em cima da pele
e não raro a palmatória. Havia, ainda, disciplinas mais suaves, e não menos impiedosas, como seja, ficar a
menina sentada no canto de castigo. Sua tarefa de fazer trancinhas ou abrolhos para amarrar, carta de
“ABC” na mão, cacos amarrados no pescoço, tempo esquecido, cacos de louças, acaso quebrada. O menino
peralta, arteiro, inquieto era contido na sua vivacidade e daninheza, como se dizia, amarrado ao pé da mesa
(1985, p.106).

Contudo a educação ‘nos conformes’, que incluía diferentes dispositivos para controlar o
comportamento das crianças não impedia as mesmas de manifestarem comportamentos
tipicamente infantis, na escola ou em casa. Os alunos não eram sujeitos submissos que assumiam
facilmente as normas impostas. Quando tomamos contato com a literatura do período, notamos
práticas como algazarras, brigas, brincadeiras e outros comportamentos que caminhavam na
contramão das duras e rígidas regras.
Nos relatos da preceptora alemã Ina Von Binzer, no início da década de oitenta,
encontramos várias reclamações, nas quais a professora salientava o comportamento de seus
alunos pequenos, que brigavam nas aulas e atropelavam a professora com seus velocípedes, além
de vários outros episódios que demonstravam a vivacidade infantil se contrapondo a apatia. Ela
queixava-se também das alunas ‘selvagens’ de um colégio de elite do Rio de Janeiro, as quais se
digladiavam em batalhas de laranjinhas no período do carnaval, além de comportarem-se mal não
só nos intervalos como nas aulas172.
Binzer narrou, em 1882, um episódio interessante, a respeito da disciplina das crianças
que a deixava totalmente desanimada.

Outro dia ao entrar na classe, achei-a muito irrequieta e barulhenta e na minha confusão recorri ao Bormann.
Quando obtive silêncio para poder ser ouvida, ordenei: “levantar, sentar”, cinco vezes seguida, o que no
nosso país nunca deixa de ser considerado vergonhoso para uma classe. Mas, aqui – oh! Santa Simplicitas!

172
Assim Binzer (Ibid, p.84) registrou: “Era água nas roupas e nos ouvidos, de sorte que não havia meio de se
conseguir uma aula silenciosa e concentrada. No domingo, como as meninas não tinham o que fazer, tornaram-se
completamente indisciplinadas, despejando água uma nas outras, até com jarros e bacias. O dormitório ficou alagado
e as selvagens continuavam brincando e pulando”.
176

–, quando cheguei a fazer-lhes compreender o que delas esperava, as crianças estavam tão longe de imaginar
que aquilo representava um castigo, que julgaram tratar de uma boa brincadeira e pulavam
perpendicularmente como um prumo, para cima e para baixo, feito autômatos, divertindo-se regiamente
(2004, p.87).

Exemplos assim demonstram que as crianças não eram passivas diante das normas rígidas
e mesmo diante da possibilidade de serem punidas. O quadro de castigos físicos que
apresentamos foi duramente criticado por Abilio, para quem a instrução existente não era
conveniente, pois o sistema não passava de um ‘tirocínio literário’ que causava horror aos moços
e, até mesmo, aos gênios. Era preciso excitar nos meninos o amor das ciências e das letras,
recorrendo a meios adaptados para fazê-los compreender suas ‘vantagens e encantos’, pois, à
custa de dores, sofrimentos e humilhações de toda espécie, estes se tornariam inimigos do
conhecimento.
Para fundamentar sua defesa, recorreu a diferentes autores que, independente da época,
argumentavam em prol de um ensino baseado no amor. Citou os franceses como Daguesseau,
Rolin e M. Gaulthey para salientar que a memória recebia e retinha com mais vontade e mais
facilmente tudo aquilo que ‘a alma aprendeu com verdadeira satisfação’. Até mesmo para impor a
disciplina, deveria-se tomar como base o amor, pois: “O amor, dizia Pestalozzi, é o único e eterno
fundamento da educação” (1866c, p.126).
Apoiando-se em Fenélon, o autor procurava ressaltar a importância de recorrer a todos os
meios que tornassem agradável aos meninos o que deles se exigia, afinal, não lhe era conveniente
propor qualquer trabalho que causasse incômodo à infância. Em seus discursos, Abilio se
orgulhava de afirmar que não havia empregado a férula em seus colégios, lembrando que eram
raros os casos de delitos entre seus duzentos alunos, os quais, apesar ‘das fraquezas’da infância,
eram (quase todos) dignos de seu reconhecimento e, conseqüentemente, de seus elogios.
Ao lembrar que a palmatória e os castigos físicos não levavam a nada e que a ciência não
era algo que se introduzisse com pancadas, aconselhava aos pais e mestres que corrigissem os
‘desmandos do espírito’ com amor ou conselhos, promovendo a emulação e o gosto do estudo,
estimulando, assim, os ‘brios e a dignidade da infância’.
Segundo ele, sua missão ou seu ‘dom divino’ que havia recebido das ‘mãos do Criador’,
se justificava pelo fato dos meninos precisarem de ‘um guia’ para ampará-los e livrá-los do risco
de ‘caírem’. Por isso, constantemente, dirigia sua fala aos seus pupilos, lembrando que seu maior
177

desejo era, além de ser amigo de todos, formar homens dignos, cidadãos capazes de colocarem
suas luzes e virtudes para uma boa direção dos negócios da ‘cara pátria’.
Registrou também que poucos entendiam seus ideais de educação amorável, chegando
mesmo a rotulá-lo de ‘utópico’ por educar a mocidade de acordo com estes princípios. Embora
se sentisse incompreendido, empregava uma educação liberal, baseada na confiança, no conselho
e na persuasão. Mesmo assim, apresentou os resultados confiáveis de sua proposta pedagógica,
de acordo com a qual alunos aprendiam sem rigor e, mais tarde, sem prêmios.
Ao discorrer sobre seus ‘adversários’ que insistiam em criticá-lo, afirmando que seu
Ginásio não poderia dar certo porque ele tratava os alunos ‘com excessivo amor’, recorreu a Mr
Barrau em seu discurso, em 1858, para demonstrar que suas idéias estavam amparadas pelo que
havia de melhor:

Escrevendo o ano passado Mr. Barrau acerca desse assumpto, dizia, referindo-se à mocidade franceza as
seguintes palavras: “Em nossos meninos tão cedo se desperta o sentimento da honra, que se puderam
supprimir os castigos corporaes no ensino publico, sem que desta suppressão resultasse o menor
inconveniente, quer para a disciplina, quer para os estudos.” Nossa mocidade neste ponto não excede em
nada a franceza (1866c, p.19).

Fazer amar o estudo era um dos pontos mais importantes na educação, porém, para Abilio,
a grande dificuldade era os poucos mestres com mérito de tornar o estudo amado por seus
discípulos, pois estes não eram felizes o suficiente para cumprir tal tarefa. Alegou, em seu
discurso proferido em 1853, que advertir era melhor do que castigar, ilustrando a idéia com
passagens e obras de Sêneca e Quintiliano:

Quintiliano já professava a opinião de que, quanto mais o mestre adverttir o discipulo dos seus deveres,
tanto menos se verá obrigado a castigal-o. Seneca, no seu admirado tratado De Clementia, depois de fallar
com aquella proficiencia que o distingue em todas suas obras, pergunta: qual será mais digno apreço?
Aquelle mestre que por sabios pareceres e motivos de honra procura corrigir seus discipulos, ou aquelle que
os despedaça com pancadas por causa de algumas falhas tipicas da edade? (Ibid, p.27).

Em relação às correções morais, necessárias na formação da criança na escola, ressaltou


que era importante considerar os aplicados e desprezar os vadios, pois entendia, como já dissera
um escritor português, provavelmente Castilho, que:
178

Figura 18 Pauta do Hino da lei nova do ensino infantil. Na letra, a escola é apresentada como um lugar convidativo e
alegre (Fonte: Lei nova do ensino infantil (1884) BNRJ – Foto: Diego Valdez)
179

A criança na eschola não é um animal, cujos instinctos se fazem convergir pela educação para um fim alheio
a sua propria personalidade. A criança é um ente pensante, activo, moral, influido por affectos e paixoes que
é preciso regular, mas nunca violentar pela coaçao, ou destruir pela tyrania. A criança tem uma dignidade
que sera um dia a dignidade do homem, e é necessario engrandecel-a em logar de envilecer (Ibid, p. 167).

A criança, em sua visão, era um ente pensante, ativo, influída por afetos e paixões,
cabendo, portanto, ao adulto, regulá-la e nunca violentá-la pela coação ou pela tirania, pois a
criança portava uma dignidade que, um dia, seria a do homem. Daí a necessidade de
‘engrandecer’ esta dignidade e não envilecê-la. A criança deveria ser tratada com doçura extrema,
‘a não ser’ nos casos de necessidade flagrante:

Si Mentor empurrou Telemaco violentamente, e o precipitiu no mar, foi só no momento em que, sem isto,
sua virtude iria perecer. Essa docúra de tratamento, não é, nem um direito do menino, nenhum dever nosso,
porem é a felicidade de seus tenros annos, a esta felicidade é o allivio das fadigas e a consolaçao dos
cuidados que nos da sua educação: essa doçura de tratamento faz nascer sobre o semblante do menino a
expressao da confiaça e da franqueza: e poe em seus labios um sorriso, que nunca mais se extingue (Ibid,
p.91/92).

Ao lembrar dos mestres que empregavam o castigo físico para tornar o ensino
aparentemente ‘mais fácil’, custando-lhes menos que o uso da doçura e da insinuação, garantiu
que, por meio de castigos, quase nunca se chegava ao verdadeiro fim da educação Citando Rollin:
“Que é persuadir os espiritos, e inspirar-lhes o amor sincero da virtude”. Apesar de Abilio ter
registrado ser necessário recorrer ao rigor para educar as crianças, sobretudo algumas que
exigiam mais, procurava diferenciar que ser rigoroso era diferente de ‘ser tirano’, pois em
nenhum caso exigiu de seus alunos uma obediência servil e tirana, ao contrário, apoiado em M.
Barrau lembrou que introduzir a escravidão no ensino era contra a natureza.
A necessidade de seguir a lei geral da natureza já estava posta nos discursos médicos
higienistas, que tomavam como responsabilidade não apenas a educação física escolar, como
também o funcionamento integral de toda a organização escolar, prescrevendo tempo, duração,
práticas, ordenações e conteúdos. Os médicos posicionavam-se firmemente contra os castigos
corporais e contra a suspensão do recreio, alegando que isso poderia afetar a rotina pré-
estabelecida, prejudicando o corpo e o desenvolvimento.
Abilio era um diretor que se fazia presente em seus estabelecimentos. Acompanhava a
rotina dos alunos mesmo estando longe, e enfatizava sempre o aspecto familiar característico
dessa relação. Ora os alunos eram vistos ora como filhos, ora como irmãos e como amigos, não
havendo, contudo, dúvida de que ele era a autoridade máxima de seus colégios. Enfatizava
180

sempre a importância de se manter o hábito do respeito à autoridade no colégio e em casa, pois


esta era a garantia de uma vida laboriosa. Além disso, sem obediência não haveria harmonia nem
progresso, pois era da desordem e desrespeito que provinham os males e vícios.
Em carta enviada ao professor Carneiro173, de Londres, em 1866, expressou sua felicidade
(a ponto de arrancar lágrimas), referindo-se às notícias de seus discípulos174. Porém chamou a
atenção para a 1a classe, que não tinha se destacado, ordenando que o professor responsável
(Andrade) se colocasse à frente disso, pois, para ele, as glórias, assim como as derrotas dos
exércitos, “dependem mais da perícia dos chefes que do valor dos soldados”. Reforçou sua
alegria dizendo que, em breve, mandaria tambores, barretes e outras coisas para as classes, a fim
de recompensar os esforços dos bons pupilos.
Neste mesmo período, escreveu de Paris, cartas para seus alunos da 1a, 2a e 3a classes do
Ginásio. Para os alunos da 1a classe, o conteúdo leve, alegre, despojado e carinhoso, estava de
acordo com a ‘inocência e brandura’ de seus pequenos discípulos. Estes foram aclamados,
elogiados e, obviamente, aconselhados a estudar e a obedecer aos mestres. Estabelecendo um
diálogo com os meninos, Abilio indagou sobre seus filhos e, em seguida, ressaltou as boas novas
que iria levar nas malas:

E meus Abilinho, Joãosinho e Pimpim, ns. 1, 2, e 3 do G.B; - como tendes vós tratado? E elles são bem
amigos de todos, como tanto desejo? Eu quero que todos vós alumnos da 1a classe, considerem meus filhos,
como vossos irmãos, que tambem eu vos olhe a todos como meus proprios filhos. Divertem-se muito nos
recreios? Agora quanto aos brinquedos. Pulam, gritam, cantam? Oh! Que brinquedos bonitos já tenho para
levar para aquelles que se têm lembrado de mim, estudando e procedendo bem. São brinquedos bonitos na
verdade; e muitos. E os premios, que tambem hei de levar? Mas saibam que só os hão de ganhar os que
merecerem. A justiça vem de Deus, e por isso deve estar acima de tudo. Mesmo Abilinho, Joãosinho e
Pimpim, se não merecerem, não ganharão nada: hão de ficar com os olhos bem compridos a ver os outros
ganharem os bons e bonitos e engraçados brinquedos (Apud RIGHBA, op. cit., p.373).

Na carta para a 2a e 3a classe, o diretor não foi duro, porém não tão carinhoso,
aconselhando os meninos a se ocuparem com suas obrigações, cultivando a inteligência,
estudando com afinco e não se entregando ao ‘ócio vil e degradante’. Ressaltou que a distância

173
Dr. Carneiro, médico e professor do Ginásio Baiano, era o fiel escudeiro de Abilio. Em uma carta, Abilio tentou
convencê-lo a trocar a carreira de médico pela da instrução, argumentando que este havia nascido para ser preceptor
da mocidade e que não devia contrariar sua vocação, pois, à frente de uma casa de educação, prestaria grandes
serviços ao país. De acordo com seus homenageadores, foi graças a Abilio que Dr Carneiro, seu mestre da língua
portuguesa, se tornou, mais tarde, um filósofo e pedagogo de renome, tornando-se proprietário de colégio em
Salvador e, em 1924, Diretor da Instrução Pública da Bahia, como seu ex-diretor.
174
Registrou: “Foi-me assaz agradavel saber que os alumnos da 3a classe (verdadeiramente exemplares este anno), se
divertem innocentemente, formando-se em batalhões ás tardes; e que os da 2a pretendem imital-os, envolvendo
porem a amorosa idéa de me obsequiarem”.
181

não o impedia de acompanhá-los com o espírito e com o coração. Chamou-os de ‘bons


discípulos’, ‘amorosos e fiéis amigos’, incentivando-os em seus ‘belos procedimentos’ que os
‘tornavam dignos’ da imitação dos colegas das outras classes.
As cartas nos revelam seu esforço permanente para construir a organização que se
pretendia. São documentos importantes porque ressaltam a representação da diferença da
linguagem no tratamento dirigido aos alunos, diferenciando-os pela idade. Para os que tinham
menos de dez anos, não esquecia os brinquedos e incentivos; à 2ª classe, composta
provavelmente por adolescentes que deveriam fugir das regras, dirigia mais conselhos; a 3ª
classe, composta por meninos mais responsáveis, era motivo de orgulho. Mesmo assim era
visível sua rigidez para com os alunos no ‘cumprimento de seus deveres’, o que não destoava da
prática pedagógica desse período em que se impunham, na escola, normas e regras que
orientavam a prática rotineira. Quando as regras não eram cumpridas, a punição, seja a física ou a
moral, era imediatamente aplicada.
De acordo com Castro (1925), durante uma de suas viagens à Europa, alguns alunos
romperam as normas. Ao retornar, Abilio chamou-os e repreendeu-os pelo ocorrido. Ao viajar
novamente, chamou os mesmos infligidores e pediu-lhes que se manifestassem, levantando as
mãos os que não estivessem de acordo com sua ausência. Nenhum se manifestou e, desta feita,
não houve quebra de disciplina. Em carta enviada ao Padre-mestre Santos Pereira, da Europa,
Abilio aconselhou-o a não ter o mínimo de cuidado com a saída de alunos “ingratos ou vadios”
do Ginásio, alunos, segundo ele, cujos pais, não apreciavam a ‘boa ordem e o zelo’ com que
tratavam a mocidade. Também ordenou que um aluno fosse enviado para a 3a classe, pois seria
um ‘bom remédio para suas malcriações’.
Para Abilio, e outros que escreveram sobre ele, os alunos correspondiam às normas
impostas sem violência e às exigências rigorosas de seu diretor, o que fazia com que os seus
adversários insinuassem que o Ginásio não poderia ‘marchar bem’, porque os alunos eram
tratados com excessivo amor. Em seu discurso que abriu o segundo ano de funcionamento do
Ginásio Baiano, lembrou que nunca sentira necessidade, uma só vez, de usar a palmatória,
mesmo que tivesse que animar, corrigir etc.
O Regimento Interno do Ginásio Baiano (item Dos castigos) não designava ‘excessivo
amor’, porém não havia nenhuma referência de castigos físicos:
182

1. Os castigos para os alunos do Ginásio consistirão em, - ficarem de pé ou de joelhos, enquanto os outros
se conservam sentados, privação do recreio com obrigação de escreverem em certo número de prosa ou
verso, proibição de saírem para visitar suas famílias, jejum de pão e água, prisão, e, quando incorrigíveis,
expulsão.
2. Só os três primeiros destes castigos podem ser impostos pelos censores, os quais representarão ao diretor
sempre que qualquer aluno cometer delito que reclame punição mais rigorosa (Apud ALVES, 2000, p. 35).

Notamos que ele tinha um cuidado em não deixar nas mãos de outros o castigo
considerado mais grave. Abilio nunca admitiu ter usado castigos corporais em seus
estabelecimentos, ao contrário, garantia, a cada discurso, que não precisara recorrer a castigos
físicos e que os resultados no Ginásio tinham ido ‘além do ele esperava’, tendo mesmo chegado,
devido à ‘aplicação’ dos alunos, a retirar os livros no recreio, receando que tanto apego ao estudo
viesse a adoecê-los175. Alves registrou que, embora raramente, Abilio empregou punições físicas
algumas vezes, pois:

Havia meninos terriveis e elle sentia o dever de não abandonal-os. Preferia ás vezes contrariar suas opiniões
a desistir da transformação de alumnos mais revessos e quase invenciveis. Elle se gabava de ter conseguido
verdadeiras victorias, com o emprego de certa violência. (...) Abilio perdoava ou dava castigos moraes; mas
também os empregou violentos, sobretudo na primeira phase do Gimnasio Bahiano. Nestes momentos de
maior energia intervinha sua desvelada esposa, a Mamãe Chiquinha dos alumnos, de quem era ella o anjo
protector (1942, p.142).

Contrariando a prática do ensino amoroso e moderno propagado pelo diretor e por outros,
no ano de 1888, Raul Pompéia, ex-aluno do Colégio Abilio da Corte, publicou O Ateneu: crônica
de saudades, romance autobiográfico inspirado em sua experiência como aluno interno neste
estabelecimento. O destaque desta obra é para o papel do temido ‘Mestre Aristarco’, proprietário
e diretor do Ateneu, um personagem autoritário, egocêntrico e vaidoso, que fazia claramente
alusão a Abilio.
Segundo Curvello (1981), não se pode tomar O Ateneu como o colégio de Abilio, pois na
vida de Pompéia, Abilio gozou de uma relação bem contrária ao ódio que Aristarco despertava no
personagem Sérgio176. Em 1891, quando Abilio morreu, Pompéia dedicou-lhe verdadeira

175
No Brasil, outras pessoas relacionadas à instrução igualmente se posicionavam contra o uso de castigos físicos. O
Colégio Menezes Viera foi um exemplo disso. A Revista Illustrada, em dezembro de 1880, (Apud BASTOS: 2002
p.120) divulgou: “Hoje ensina-se: não se bate. A palmatória desapiedada foi vantajosamente substituída pelo método
e já não se mete o abc no cérebro do menino pelas brechas abertas do crânio; a gramática já chega à compreensão da
criança sem lhes fazer escala pelas mãos. E nem por isso elas aprendem menos e sabem menos depressa que nossos
antepassados. Pelo contrario. Exemplo? O Colégio Menezes Vieira. Não se abate ali, ensina-se a criança, não há
castigo, há promessa, o carinho em vez do bolo, um jardim em lugar de escola. E quanto progresso: quanta alegria!”
176
Reis (1996, p.6), ao analisar esta obra, recorrendo à frase de Pompéia, “Não é o internato que faz a sociedade; o
internato a reflete”, colocou-a como a chave do romance. A frase, ao seu ver, faz inverter, exato como um reflexo em
espelho redutor, deformante e de motilidade ampla, a leitura ingênua – “é um romance sobre o internato”. A autora
183

homenagem. Não encontramos nada que Abilio tenha escrito sobre essa obra, porém todos seus
homenageadores são unânimes em afirmar que este episódio foi motivo de grande decepção para
o barão. Chamado de ‘livro da maldade’ pelos biógrafos do diretor, O Ateneu é identificado como
uma crítica injusta e malévola, um meio de Pompéia se promover, fato que causou em Abilio
uma mágoa profunda que ele ‘levou ao túmulo’, pois Pompéia fora um aluno que Abilio
distinguira e fizera todo esforço para ‘guiar na vida177’.
De acordo com Alves, essa mágoa foi redimida e atenuada pelo seu também antigo
discípulo Eduardo Ramos, pertencente à Academia Brasileira de Letras, na primeira década do
século XX, um intelectual inimigo de internatos, pois os considerava ‘indirigíveis’ por maior que
fosse a capacidade de seus diretores. Sobre o romance de Pompéia, Eduardo Ramos escreveu:

Perlustrei a narração com a curiosidade de uma testemunha que poderia dar seu depoimento sereno, entre
um accusador e um accusado, já mortos. Pois bem: o desabono assacado naquella obra é amargamente
injusto. O lavor litterario, com suas desigualdades ficará como a expressão de um raro engenho, que não
viveu bastante para arrebatar das mãos do odio o resinoso fogaréo accendido para illuminar o seu renome.
Dr Abilio (pae), o educador de duas gerações, é exposto por Pompéia como um charlatão ignóbil, cuja
cupidez se emplumou na Cortezania para explorar a mocidade no mercantilismo da educação, em um trafico
cynico de 40 annos. Erro de biographo; e erro de sociologo. Erro clamoroso de biographo, porque o Dr.
Abilio Cesar Borges foi o renovador da educação collectiva no Brasil. Não ha talvez nas instituições
pedagogicas actuaes uma só que elle deixasse de entrever e praticar, ha cerca de um seculo. Evidentemente
suas intuições tinham de ser tacteantes, algumas vezes grosseiras, como é natural á sua phase emryonaria. O
apparecimento desse medico no campo da instrucção attrahiu, como por encanto, a attenção de todas as
classes cultas da familia brasileira. A divulgação do seu processo educativo feriu de morte os
estabelecimentos congeneres da sua epoca, no Norte ao menos. A audacia da sua iniciativa dispersou as
corporações do ensino fradesco e truculento, que se obstinavam, entre nós, até o meiado do seculo passado,
a immobilizar o pensamento e a energia no ideal classico da mythologia e da latinidade. A figura insolente
do novo pedagogo cahiu a fundo sobre a barbaria aviltante do ensino infantil, pelo methodo medieval da
flagellação, e o desbaratou. Os instinctos da família encontram por fim, uma expressão social nas
reinvindicações desse extranho paladino. Elle foi a certos respeitos um intreprete da natureza. Raul
Pompeia, entretanto lança-se a esse homem e o esquarteja. Para requintar o supplicio, despe-o
primeiramente, e lhe táctua o corpo de estigmas. Ora nem por ser de oiro o estylete, se deve absolver o
braço do matador. Nada mais é dannoso á reputação de um artista que embriagar sua phantasia, para fazer
della a pregoeira de seu genio. Isso lhe faz correr o risco da imprudencia. A gloria buscada no villipendio
mata o escriptor, como as drogas toxicas matam, por fim, aquelles que confiam a seus artificios o semblante
da beleza. Eu seria injusto se de tantas reminiscencias que toldaram a madrugada de minha infancia, em oito
annos de internato, não evocasse agora, ao terminar esse capitulo, crepuscular de minha existencia, o
semblante seraphico da baroneza de Macahubas, da mamãe Chiquinha, nome caricioso com que a nossa

exaltou que se trata de um romance sobre a sociedade, uma sociedade bem determinada de ricos, confundida, por
‘erro sensato’, com a melhor. Examinou ainda o nome do diretor etimologicamente. Aristarco, ao dizer que era o
‘governante dos melhores’, levou a autora a chamar a atenção para as palavras aristocrata e monarca, cujas raízes
arist – superlativo de ‘bom’ e arc – “governar”, compõem o nome de Aristarco. Arc – se relaciona também com a
palavra ‘inicio’, ‘origem’: arcaico.
177
Abilio, por inúmeras vezes, fez com que os alunos repetissem os exames, mesmo após aprovação plena, caso
julgasse que estes não obtiveram uma colocação justa. Um deles foi Raul Pompéia, que repetiu quatro vezes o exame
de francês, obtendo ‘distinção’ no último após três notas ‘plenamente’.
184

innocencia respondia a sua inexquecivel ternura. Por uma singular coincidencia, seus traços, como os
conservam em minha memoria, de annos já tão distantes, assemelham-se aos que Canova, o celebre
esculptor italiano, julgou mais acertados á obra-prima da sua Vestalis. Tenho uma copia de tamanho natural
em meu gabinete de trabalho. Estou a vel-a aqui. Levanto-me para depôr junto a ella um ramo de violêtas.
(Apud, RIGHBA, op. cit., p. 215-216).

Não é nossa intenção discutir se o teor do romance de Pompéia era realidade ou ficção,
tampouco argumentar sobre a veracidade de suas memórias178. Porém, ao percorremos a referida
obra, não podemos deixar de estabelecer algumas relações com o que investigamos sobre Abilio e
seu colégio. Assemelham-se as solenidades da entrega de prêmios, as reclamações de Aristarco
pelo não reconhecimento de seus sacrifícios, os discursos contra a imoralidade, a erudição do
diretor, as aulas de ginástica, os aparelhos modernos do internato, as missas nos domingos, a
biblioteca, as festas literárias etc.
Schueller (2001, p.18) fez referências também aos nomes, citados no episódio, relatados
por Pompéia, dos exames preparatórios, tão criticados por Abilio: “Que barbaridade aquela
conspiração toda contra mim, o Matoso, o Neves Leão, as comissões qual mais poderosa e
carrancuda”. José Mattoso Duque-Estrada era um oficial da secretaria de instrução primária e
Neves Leão era secretário da Instrução Pública da Corte. Andrade (1974) citou como exemplo os
desenhos de Pompéia que pareciam dar ao Ateneu a fisionomia arquitetônica do colégio Abilio.
Em relação à briga de Sérgio com Aristarco, uma das páginas mais emocionantes de O
Ateneu, segundo Andrade, Pompéia publicou em seu 5o ano do Colégio Abilio uma matéria
semelhante no jornal O Archote. No texto, Pompéia criticou a conduta de um aluno que se bateu
com o vice-reitor, sendo expulso abaixo de pancadas. O jornal reprovava atitude do vice-reitor
com as mesmas censuras do livro, lançando a criadagem contra o adversário e, ao mesmo tempo,
censurando o aluno por ter batido em um velho. Na obra O Ateneu não há punições físicas,
porém, real ou não, o romance de Pompéia fez com que muitos olhassem com desconfiança o
nome de Abilio.
A punição física, segundo Abilio, deveria ser substituída pela punição moral, considerada
por ele como mais vantajosa para desenvolver os sentimentos nobres nos corações infantis.
Segundo Gondra (2004), na década de cinqüenta, os médicos se posicionavam em favor da
eliminação definitiva dos castigos físicos nos colégios. As teses reforçavam a necessidade da

178
Sobre isso, ver artigo de Gondra, J, Arquivamento da vida escolar: um estudo sobre O Atheneu, In: Vidal e Souza
(orgs). A memória e a sombra: a escola brasileira entre o Império e a República. Belo Horizonte: Autêntica, 1999,
p.33-58.
185

formação de um indivíduo bem constituído do ponto de vista moral e, para tanto, os sistemas de
punições e premiações deveriam integrar os dispositivos de disciplinamento a serem adotados nos
colégios.
Era preciso paciência, compreensão e a crença firme de que, com o sopro da educação
moral, seria possível disciplinar aqueles julgados como desviantes e de espírito minúsculo,
despertando-lhes o sentimento de justiça.
Neste capítulo, nos foi possível averiguar que as idéias de Abilio a respeito da instrução
primária estavam inseridas nas discussões do período. Contudo seus colégios eram dirigidos a
uma minoria privilegiada, além do que neles eram ministradas disciplinas que tinham por
objetivo formar um bom cidadão para o futuro da pátria, sobretudo bons dirigentes e também
pessoas moralizadas sob os princípios da religião católica conservadora.
Suas idéias acerca do desenvolvimento infantil, pautadas na ciência e na religião,
confirmaram sua intenção de que a infância era um bom investimento para o futuro. Enfim,
ciência, religião, disciplina branda, música, exercícios físicos e intelectuais, além do ensino
amorável definiam a representação do educador para promover e produzir sujeitos que
integrariam uma sociedade moralmente bem constituída.
186

Figura 19 Imagens da obra O Ateneu, de Raul


Pompéia, publicado em 1888. As ilustrações são
do próprio autor e a descrição de Aristarco na
gravura acima aproxima-se muito da imagem de
Abilio, assim como o prédio escolar com seu
jardim. (Fonte: POMPÉIA, R. O Atheneu. Rio de
Janeiro: Francisco Alves & Cia, 1905).
187

Figura 20: Lembranças de Raul Pompéia em sua passagem pelo Colégio Abilio
da Corte. Acima (dir.), temos seu boletim escolar, que demonstra boas notas e
bom comportamento. No centro uma fotografia de sua turma. Acima (esq.) e
abaixo (esq.), comprovamos sua participação no jornal O Archote, no qual
Pompéia foi redator e ilustrador, sob pseudônimo de Fabricius. A palavra
Archote, está relacionada a fogo, tocha que ilumina e é ironicamente associada
ao fogo que destruiu o Ateneu no romance de Pompéia. (Fonte: CURVELLO, M.
Raul Pompéia (Estudos biográficos) São Paulo: Abril Cultural, 1981, p.8).
188
Capítulo III
As infâncias presentes nos livros de leitura: significados e representações

Neste capítulo, abordaremos as infâncias presentes nas lições e nas gravuras dos livros de
leitura de Abilio. Optamos novamente por organizar o texto de forma temática, de modo a trazer
as lições que inseriam a criança no contexto escolar, familiar e religioso. Contudo, antes de
partirmos para esta análise, discorreremos sobre a inserção do livro de leitura na sociedade
brasileira, caracterizando-o em seu espaço de produção, comercialização, distribuição, além de
abordarmos aspectos como linguagem, quantidade e demanda deste material, pois entendemos
que não é viável partirmos da análise pura e objetiva dos livros sem a compreensão de sua
história e de seus significados para a sociedade do período.
Abilio registrou no prólogo de seu Primeiro livro (1866): “Um livro próprio para leitura
de crianças é coisa dificilima de fazer-se; muito mais dificil mesmo do que me figurava antes de
empreender a composição do presente”. O autor, a exemplo de outros intelectuais do período,
criticava os livros elaborados para agradar às ‘pessoas esclarecidas’, sobretudo as obras com
estilo, linguagem e assunto não apropriados para crianças entre sete e onze anos de idade, pois os
meninos as liam sem nada entender, tornando-se ‘autômatos e verdadeiros papagaios’.
Argumentava, portanto, a favor de livros elaborados de acordo com compreensão da criança e
contra a leitura penosa e enfadonha.
A opinião de Abilio, com vistas a enaltecer o livro escolar, era de que nem o mais
inteligente e zeloso professor seria capaz de instruir sem bons livros. Antes mesmo de iniciar sua
produção didática, já alertava para o ‘descaso’, segundo ele, provindo dos responsáveis pela
instrução, os quais cuidavam exclusivamente ‘da política’, não colocando seus talentos na
composição de obras adequadas ao serviço dos meninos e do povo. Criticava, além da linguagem
sisuda, que não atendia às particularidades da infância escolar, o número reduzido de livros para
o ensino da leitura. Em 1872, registrou no prólogo de seu Terceiro livro:

Entretanto quantos e quaes os livros que se distribuem nas escolas? Bem raros são os que podem ser
entendidos, e lidos portanto com interesse e proveito pelos discipulos; e alguns conheço adoptados, cuja
leitura mal poderia convir para adultos pouco esclarecidos. Referindo-me a taes livros, eu já tive occasião de
dizer que – si houvesse deliberado proposito de perpetuar a materialidade do ensino em nossas aulas
primarias não seria possivel fazer-se mais apropriada escolha e distribuição de livros! E esses mesmos
improprios livros, sabeis em que proporção se distribuem? Na provincia da Bahia, como tive occasião de
186

verificar o anno passado, a proporção de livros distribuidos nos 9 annos ultimos foi approximadamente de 1
para 500 meninos! Quer isto dizer que a maior parte dos meninos aprendem a ler sem livros, servindo-se,
principalmente nas localidades centraes ou pouco consideraveis, das cartilhas do Pe. Ignacio, de bilhetes e
de cartas, (ás vezes, oh Deus! Com que lettra e orthographia!) ou de gazetas que seus paes lhe fornecem , ou
dos velhos autos, pelo commum indecifraveis, que os proprios mestres alcançam dos tabelliães do logar!
(1890, p.8).

Para o autor, este era o motivo dos meninos saírem da escola aos treze, quatorze anos, no
mais ‘lastimoso estado de ignorância’, sem o hábito de pensar e sem valorizar minimamente o
que liam179.
O discurso de Abilio, apesar de exagerado, encontrava ressonância em algumas falas do
período. Diferentes registros apontam a precária situação dos poucos materiais existentes nas
escolas do Brasil oitocentista180. Não havia muito material do que se reconhece como livro
didático, utilizava-se alguns poucos clássicos da literatura internacional e as crianças aprendiam a
leitura nos abecedários, em toscas cartilhas, papéis de cartórios e cartas manuscritas que
professores e pais de alunos forneciam181. Havia manifestações referentes a este respeito,
entretanto estes discursos se justificavam por alguns fatores que influenciavam uma boa parte da
sociedade ilustrada no período.
A linguagem apropriada para a infância, embora aparentasse ser avançada para a época, já
era defendida na França por diversos intelectuais, desde o fim do século XVIII. Buisson (1887),
em seu verbete sobre o livro escolar, citou Condorcet que, em seu Relatório para o legislativo,
registrou, em 1793, a necessidade de se publicarem livros que não causassem fadiga à infância,
proporcionando-lhe uma instrução fácil, agradável e, sobretudo, útil.
No discurso da intelectualidade e de homens públicos do Brasil imperial, esta
preocupação também estava inclusa. Em 1869, o ministro Paulino José Soares, revelou que,

179
Com receio de que isto fosse visto como uma forma de propagar suas obras, Abilio esclareceu aos ‘mal intencionados’ (seus
críticos) que não estava ‘advogando em causa própria’, porém, se ‘os competentes’ não achassem seus livros ‘prestimosos’, que
negassem a entrada destes nas escolas, e quando adotados, se surgissem livros melhores, era obrigação dos pais, mestres e
autoridades, preferi-los.
180
A falta de livros não escapou do olhar dos viajantes que passaram pelo Brasil no século XIX. Como exemplo, podemos citar o
inglês Robert Walsh (apud Leite, 1998: p.34) que, em sua passagem pela Bahia, em 1828, indignou-se com uma escola que
funcionava num “cômodo contíguo” e era mantida por um homem instruído que era também proprietário de uma venda: “Fomos
até lá e deparamos com dez ou doze meninos sentados em bancos, decentemente trajados, todos lendo juntos em voz alta. Seus
livros não passavam de cartas comerciais recebidas por seu mestre e tratando de vários assuntos relativos aos seus negócios, sendo
cada folha protegida de maneira que manuscritos tão preciosos não sofressem com o manuseio dos meninos. O professor via-se
forçado a se valer desse recurso porque não dispunha de livros, e dessa forma seus alunos aprendiam a ler textos manuscritos
antes dos impressos. ” O mesmo viajante espantou-se com o fato de já existirem impressos tão modernos, como jornais e gazetas,
e não se publicarem livros de ensino elementar.
181
Capistrano de Abreu atribuiu a carência de documentos antigos no Brasil à utilização destes nas escolas para leitura dos alunos
(apud OLIVEIRA, 1984, p.23).
187

devido à ‘inteligência precoce’ dos meninos, convinha que seus livros fossem escritos por
homens entendidos, pois: “Temos visto livros dedicados à instrução da infância cujo contexto é
um excessivo pedantismo; outros vicios no método ou fastidioso, narcotizam o leitor ao invés de
provocar a curiosidade”. Para o ministro, o maior defeito das ‘mesquinhas e raras livrarias’
provinha da má escolha de seus poucos livros “pela maior parte de extrema aridez”. Defendeu,
ainda, que as obras deveriam incitar a curiosidade das crianças além de estarem ao alcance da
inteligência comum das “classes não letradas”, pois somente assim provocariam o gosto pelo
hábito da leitura e despertariam o desejo do saber (Apud MOACYR, 1939, p. 561).
Almeida (1989, p.161), em 1889, enfatizou que os autores, ao escreverem suas obras,
pensavam mais ‘em seus rivais’ do que nos alunos: “Pretendem mostrar que não ignoram nada do
que se poderia ensinar sobre a matéria e crêem que nada dizem, se não disserem tudo”. Veríssimo
(1985), no final do século XIX, registrou que estudara, de 1867 a 1876, em livros estrangeiros,
alheios ao Brasil. Segundo o autor, ainda na década de 90, a maioria dos livros de leitura, se não
era estrangeira de origem, o era de espírito. A falta de livros apropriados não se restringia,
contudo, somente ao ensino primário, tendo Alambary Luz atribuído a deficiência da Escola
Normal à ausência deste material: “Não temos compêndios apropriados à necessidade da escola,
nem há facilidade de adquiri-los vertidos para o português porque a careza da impressão e a falta
de leitores não anima os tradutores ao dispendioso e infrutífero trabalho deste gênero de
publicações literárias” (apud CABRINI, op. cit., p.15).
A crença no poder do livro como depositário privilegiado do saber escolar e objeto de
viabilização dos projetos educacionais, incluindo a formação de professores e alunos, com poucas
diferenças, transparecia nos discursos de grupos conservadores católicos, positivistas ou
cientificistas republicanos. De acordo com Bittencourt (1993), esta valorização partia do conceito
que vigorava na França, no período da Revolução Francesa, de acordo com o qual um livro
apropriado induziria a novos hábitos. O livro escolar deveria condicionar o leitor, refreando
possíveis liberdades frente à palavra escrita. A permanência da concepção iluminista do poder da
literatura escolar podia ser percebida no cuidado que a elite intelectual tinha em relação a isso,
pois o livro escolar, diferentemente de outros, deveria resultar de um cuidadoso plano do poder
constituído, articulado com outros saberes que definiam o saber escolar.
Tanto a necessidade de uma linguagem adequada para a infância como o número reduzido
de livros, ressaltados de forma contundente por Abilio, afirmavam a importância deste material
188

de forma generalizada. O Decreto Leôncio de Carvalho proclamou que a educação primária


deveria ter caráter obrigatório e, para garantir a freqüência de meninos pobres, determinava a
necessidade de fornecer-lhes vestuário, livros e demais objetos necessários aos estudos. A
distribuição de livros para alunos pobres, apesar de constar na legislação, não se efetivou de
forma concreta, a exemplo de tantas outras leis e regulamentos da instrução pública.
Nos relatórios de presidentes das províncias, de inspetores e diretores da instrução
pública, a falta de recursos era o argumento principal para justificar a ausência deste material nas
escolas182. Diante da necessidade de dotar as escolas desse tipo de material, uma boa parte dos
responsáveis pela instrução nas províncias alegava que não havia outra opção se não a de recorrer
às doações de ‘beneméritos autores’, editoras e homens da boa sociedade183.
O inspetor de instrução do Paraná alertou, em 1873, que, no ano anterior, as escolas
públicas desta Província não haviam sido supridas de livros e outros materiais, fato que, em sua
visão, representava “um sério obstáculo para a freqüência das aulas e adiantamento dos alunos”.
Informou, ainda, que os professores, ‘com seus exíguos ordenados’, supriam os meninos mais
necessitados deste material (apud MOACYR, 1934, p.283). O problema persistia em 1877,
quando o presidente da mesma província solicitou à legislatura urgência de votar recursos para a
compra de livros, ressaltando que cabia reconhecer a oferta de 3.000 exemplares das obras
didáticas do Dr. Abilio Cesar Borges.
Em Minas Gerais, no ano de 1879, o presidente Rabelo Horta informou que, no último
exercício, haviam sido distribuídos para os alunos pobres 4.781 livros, alguns oferecidos
gratuitamente por Abilio. O presidente do Espírito Santo, em 1886, ao ressaltar a obrigação de
oferecer compêndios aos alunos, lembrou que esta despesa deveria sair do fundo escolar, porém,
como o fundo não havia sido executado e a verba orçamentária para a compra de mobílias e
compêndios era insuficiente, precisou lançar mão de recursos extraordinários, traduzidos da
seguinte forma:

182
Para constatar essa falta de materiais, ver os relatórios províncias em MOACYR, Primitivo. A Instrução e as Províncias (1835-
1889). 2º Vol. (Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo), São Paulo/Rio/Recife/Porto Alegre: Companhia Editora Nacional,
1939 e 3ovol. (Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás), 1940.
183
Entretanto uma boa parte dessas doações se concretizava em dinheiro, que não era especificamente destinado para a compra de
livros e, sim, para as ‘faltas’ que persistiam na instrução. Encontramos dados, nos relatórios dos presidentes, de doações em
dinheiro para a província de Minas Gerais, na década de setenta, como as do Imperador e do deputado Assis Martins, tendo doado
ambos um conto de rés. A mesma província recebeu a oferta de material para construção de um prédio escolar do barão do Rio
das Velhas, o inglês H. Willian, diretor da Associação Mineira de mineração, que também ofereceu uma casa mobiliada para uma
escola. No Paraná, na década de oitenta, o presidente anunciou que fora inaugurado um prédio escolar somente com donativos. No
Rio de Janeiro, o diretor de instrução anotou que recebera de Pedro II a importância de $400 para compra de livros para a
biblioteca pública (apud MOACYR, 1939 e 1940).
189

Recorri ao barão de Macahubas, o notavel e benemerito educador, que não se demorou em oferecer os
seguintes livros: primeiros livro de leitura, 500 exemplares; gramatica 200; geometria popular 200;
segundos livros de leitura 200; terceiros livros de leitura 100; Lusíadas de Camões, 100; novo método para
o ensino da língua francesa, 100 (Ibid. p.60).

Notamos por estes exemplos que a prática da doação supria, de certa forma, a carência de
livros nas escolas e que estas doações não passavam desapercebidas, pois era grande o empenho
para divulgar o nome dos beneméritos. Todavia não era comum a prática da doação, pois, nos
relatórios oficiais, além das doações feitas por Abilio, não era expressiva a presença de outros
autores.
Na década de setenta, o presidente do Paraná citou o oferecimento do livreiro Alves & Cia
da Corte, que havia doado mil exemplares da Introdução ao livro à infância, mil exemplares da
Aritmética de Otoni, mil de Geografia de Zaluar, cem dos Rudimentos de aritmética de Barbier e
duzentos exemplares de Tabuadas do professor Povoa, da Corte (Ibid., 1939, p.297). O
presidente do Sergipe informou sobre a doação de sessenta exemplares do Resumo de História
sagrada, sessenta de Ortografia e outros tantos de Aritmética, feita pelo cidadão Francisco
Teixeira de Faria (Ibid, p.44), para os alunos pobres das aulas da vila Itabaiana.
Arroyo (1990) registrou a doação para o governo Imperial, feita pelo barão de
Paranapiacaba, de mil exemplares das Fábulas de La Fontaine, traduzidos pelo próprio autor, em
1886. Segundo Bastos (2002), Menezes Vieira também distribuiu gratuitamente suas obras,
oferecendo às províncias do Maranhão, Paraná, Santa Catarina uma grande quantidade de seus
trabalhos didáticos e, ao governo geral, exemplares do Manual para o Jardim de Infância (1882)
e a coleção de quadros para o ensino intuitivo nas escolas primárias das Corte. Pode ter havido
outras doações feitas por anônimos, porém, como a política da benevolência, neste período, era
vastamente reconhecida, cremos que doar anonimamente não era uma prática corrente no
período.
Cabia às províncias suprir as escolas de materiais para o ‘expediente escolar’, sendo
responsabilidade dos professores e diretores solicitar a lista de materiais necessários, juntamente
com o mapa de freqüência dos alunos. Desta forma, os protestos ocasionados pela falta de livros
provinham também desta categoria. No levantamento de documentos realizado no Arquivo
Histórico de Goiás (AHG), nos deparamos com várias justificativas de cunho apelativo para que
190

os governantes cumprissem com a legislação184. Nota-se que eram necessários muitos


argumentos, pois uma boa parte destes documentos registrava um não cumprimento pela
província no que concernia a esta demanda, fato que gerava ofícios com relatos do tipo: “no
corrente ano ainda essa escola não foi dotada com livros escolares”; “peço que providenciem com
maior brevidade possível, pois já é o terceiro ofício que enviamos”. Alguns chegavam a alegar
que, sem os livros solicitados, seria impossível cumprir a legislação em vigor. Constatamos,
também, que alguns professores, preocupados com a situação, acabavam por arcar com este
material para os alunos pobres. 185
A carência de livros estava na ordem do dia dos discursos de políticos, intelectuais,
diretores, professores e autores. Debates, discussões, discursos e propostas para sanar esta
ausência não faltavam, o que faltava eram os livros. Contudo, apesar da efervescência, esta não
foi uma questão prontamente solucionada, pois, ainda no século XX, era notória a falta de
materiais didáticos para as escolas públicas. Não podemos perder de vista que livros, didáticos ou
não, eram material pouco acessível no período, sobretudo pelo preço. Contudo também não
podemos deixar de ressaltar a pouca importância dada à instrução primária que,
conseqüentemente, inviabilizava prover as escolas deste material.

Quadro 2 Obras publicadas/traduzidas por Abilio Cesar Borges186.

Ano Obra Editora/local


1845 Posição e algumas particularidades históricas e descritivas da Bahia: Dicionário Bibliográfico
Vila de Inhambupe. Brasileiro de Sacramento Blacke –
1846 Memória sobre a mineração na Província da Bahia. Rio de Janeiro: Gazeta Oficial do
Império e Jornal do Comércio.
1847 Tese inaugural de conclusão do curso de medicina: Proposições Faculdade de Medicina do Rio de
sobre ciências médicas. Janeiro
1856 Relatório sobre a Instrução Pública da Bahia apresentado ao Bahia: Tipografia de Antonio Olavo
Presidente Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima da França Guerra e Comp.
1857 Relatório sobre a Instrução Publica da Bahia apresentado ao Bahia: Tipografia de Antonio Olavo
Presidente João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu. da França Guerra e Comp.

184
Os argumentos giravam em torno da situação de pobreza dos alunos, que não tinham condições de adquirir livros. Eram
definidos como ‘indigentes’; ‘pobres; ‘filhos de pais pobres’; ‘extremamente pobres’; ‘órfãos’ (de pai ou mãe); ‘notoriamente
pobres’; ‘não dispõem de recursos’; ‘miseráveis’ e outros. Apelos para que o representante ‘se digne de pena’; ‘se comova’; ‘se
compadeça’ também eram comuns.
185
Foi no AHG, através dessas listas de solicitações, que ‘descobrimos’ os livros de leitura de Abilio. Por isso achamos
conveniente citar esta província como exemplo.
186
Mantemos neste quadro a data e o nome da obra da primeira publicação, contudo é bom ressaltar que o autor
modificava o título das obras de acordo com as edições. Na citação deste trabalho, as datas são diferentes em função
de termos usado edições posteriores às primeiras edições. Os dados dos locais e editoras de algumas obras não são
confiáveis, portanto as deixamos sem esta referência. Optamos por atualizar a ortografia neste quadro.
191

1859/1860 Livro do povo ou silabário brasileiro.


1860 Resumo da gramática portuguesa.
1860 Epítome da Gramática Francesa.
1860 Poesias e alocuções recitadas no outeiro ou festas literárias Bahia: Tipografia do Diário da
patrióticas havidas no Ginásio Baiano a dois de julho e sete de Bahia.
setembro do corrente ano.
1860 Poesias oferecidas ao Dr. Abilio Cesar Borges no dia 9 de Bahia: Tipografia de Camillo Lellis
setembro por ocasião de festejar no Ginásio Baiano seu masson & Cia.
aniversário natalício.
1863 Epítome da Geografia Física.
1866 Coleção de discursos proferidos no Ginásio Baiano, por seu Paris: Livraria de Vva J.P. Aillaud,
diretor o Dr Abilio Cesar Borges entre 1858/1862. Guillard e Cª
1866 Primeiro livro de leitura para uso da infância brasileira. Paris: Livraria de Vva J.P. Aillaud,
Guillard e Cª
1866 Segundo livro de leitura para uso da infância brasileira. Paris: Livraria de Vva J.P. Aillaud,
Guillard e Cª
1870 Novo método para o ensino prático e fácil da língua francesa
aos meninos de 6 a 11 anos segundo os principios do professor
F. .Ahn (tradução do inglês)
1871 Terceiro livro de leitura para uso da infância brasileira. Bruxelas: Tipografia e Litografia E.
Guyot.
1872 Plano de estudos e estatutos do Colégio Abilio, fundado na Rio de Janeiro: Tipografia do Globo
corte do Império.
1875 Vinte anos de propaganda contra o emprego da palmatória e de Rio de Janeiro: Tipografia do Globo.
outros meios alvitantes ao ensino da mocidade.
1875 Discurso que por ocasião da solenidade do Colégio Abilio, a 11 Rio de Janeiro: Tipografia do Globo.
de abril de 1875, proferiu seu diretor Abilio Cesar Borges.
1875 Discursos e poesias recitadas no Colégio Abilio por ocasião da Rio de Janeiro: Tipografia do Globo.
solenidade da distribuição dos prêmios.
1878 Geometria prática popular. Paris
1879 Edição Escolar dos Lusíadas para uso das escolas brasileiras na Paris:
qual se acham supressas todas as estâncias que não devem ser
lidas pelos meninos.
1879 Pequeno tratado de leitura em voz alta (tradução da obra em Bruxelas.
francês de E. Legouré).
1880 Vinte e dois anos de propaganda em prol da elevação dos Rio de Janeiro: Tipografia a vapor e
estudos no Brasil. Pereira Braga & Cia,
1883/1884 Conferência na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Tipografia do Globo.
1882 Dissertação lida no Congresso Pedagógico Internacional de Rio de Janeiro: Tipografia a Vapor
Buenos Aires em 2 de maio de 1882. do Cruzeiro.
1884 Lei Nova do ensino infantil pelo Barão de Macaúbas Rio de Janeiro: Tipografia do Globo.
1884 Conferencia feita pelo Barão de Macahubas a 7 de outubro de Bruxelas: Tipografia e Litografia E.
1883: no salão de honra da Exposição Pedagógica sobre a Guyot & Cia.
presidência de sua alteza real o Sr. Conde D' Eu e na presença
de S. M. o Imperador sobre o ensino moderno dado no Colégio
Abilio
1888 Cantos escolares com um compêndio de música. Rio de Janeiro: Tipografia do Globo.
1888 Novo primeiro livro de leitura segundo o método do barão de Bruxelas: Tipografia e Litografia E.
Guyot & Cia.
Macahubas dedicado ao povo brasileiro.
1890 Quarto livro de leitura para uso das escolas brasileiras. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
1891 Quinto livro de leitura para uso das escolas brasileiras. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
192

3.1 Os autores de livros de leitura para a infância: homens ‘cultos’ e preparados

No século XIX, ao mesmo tempo em que a industrialização trouxe novos materiais e


modelos para a leitura, novas categorias de leitores como mulheres, crianças e trabalhadores
foram apresentados à cultura impressa no ocidente. No Brasil, sobretudo na segunda metade do
século XIX, foi a vez das crianças serem incluídas no restrito mundo dos livros produzidos
especialmente para esta categoria: os livros de leitura seriados.
Conceituar os livros de leitura não nos parece uma tarefa fácil187. Podemos simplificar e
dizer que o objetivo principal da série de Livros de leitura, como o próprio enunciado revela, era
colocar a leitura como prioridade na aprendizagem da criança, através de textos variados e
atrativos. Contudo, para Arroyo (1990), no século XIX não havia uma nítida separação entre os
livros de entretenimento puro e os de leitura para adquirir conhecimento nas escolas. Coelho, ao
registrar a importância destas séries, também apontou a dificuldade em separar literatura e
educação neste período:

Não podemos ignorar os Livros de leitura que foram, no Brasil (e nas demais nações) a primeira
manifestação consciente da produção de uma leitura específica para crianças. E em última análise foram
também a primeira tentativa de realização de uma literatura para crianças. E como os conceitos
“literatura” e “educação” andaram sempre essencialmente ligados, tais livros só poderiam, realmente, surgir
no âmbito escolar (1981, p.341).

De qualquer forma, essas obras que compunham o que então se chamava de ‘leitura
escolar’ eram lidas sistematicamente pela infância e juventude brasileira, exercendo um papel
relevante, não só no campo da didática, como também no cultivo do hábito de leitura, como
justificou Arroyo:

Tais livros não traduziam apenas o processo de aprendizagem da história, das ciências naturais, da
gramática, da retórica. Traziam também aquele necessário condimento que é o sal da curiosidade, muitos
deles tecnicamente enriquecidos por ilustrações e desenhos, a que não era estranho as preocupações
estéticas (Ibid., p.98).

Antes de Abilio publicar sua série de livros de leitura, já circulavam outras obras
destinadas à leitura para a infância com este objetivo, embora não tenham se constituído como

187
A expressão livro didático não era utilizada no período, utilizava-se os termos compêndios, livros para a escola, livrinhos para
a infância e outros. Entendia-se por compêndios os livros de disciplinas específicas, como matemática, gramática etc. Contudo,
nas fontes, essa divisão não era muito rígida, pois, de modo geral, compêndios traduzia todos os livros escolares.
193

uma série graduada de leitura188. Arroyo (1990) e Pfromm Neto (1974), em suas pesquisas sobre
a história do livro, arrolaram uma série de obras, produzidas por autores nacionais na segunda
metade do século XIX. Contudo vamos destacar aqui os principais autores da série graduada de
livros de leitura, que é nosso objeto de estudo.
Segundo Bittencourt (2004), a partir da década de setenta, uma nova geração de autores
entrou em cena. A anterior a este período era composta por autores que se aproximavam do poder
institucional e que eram, sobretudo, oriundos do Colégio Pedro II e da Academia Militar. Além
disso, eram escolhidos pelos editores pela posição social e publicavam compêndios para o ensino
secundário em detrimento do primário, enquanto que a geração que veio depois, que marcou o
crescimento do setor, provinha de outras esferas sociais, se diferenciando, sobretudo, pela
experiência na instrução, seja como professores ou proprietários de estabelecimentos privados.
Entre eles estão, além de Abilio Cesar Borges (1866), Hilário Ribeiro (1880), Felizberto
de Carvalho (1892), Romão Puigari e Arnaldo Barreto (1895), Francisco F. Mendes Vianna
(1908), João Köpke (1900), Thomaz Galhardo (1910) e Antonio Firmino Proença (1920). As
datas indicadas entre parênteses apontam o início da produção dos livros de leitura seriados por
estes autores. Contudo os mesmos autores publicaram outras obras em datas diferenciadas e se
ocuparam, entre outras coisas, dos livros de leitura seriados para o ensino primário. Os
supracitados escritores, munidos de experiência na área educacional durante um bom tempo,
contribuíram com seus livros e métodos para a elaboração de novos projetos para a instrução
brasileira.
Hilário Ribeiro, contemporâneo de Abilio, publicou, no final da década de oitenta, sua
série de cinco livros de leitura, coleção premiada com medalha de prata na exposição
internacional de Paris, em 1889. De acordo com Pfromm Neto (1974), seus Primeiro, Segundo,
Terceiro e Quarto livro de leitura, em 1930, tinha atingido mais de uma centena de edições,
sendo difundindo por todo o país. Sua ‘série instrutiva’ estava bem de acordo com a educação da
época, pois retratava assuntos como pátria, família, bons costumes, além de adotar o método
analítico que ia da parte para o todo.

188
Para Arroyo (1990, p.169), o pioneirismo coube ao maranhense Antonio Marques Rodrigues (1826-1873), com seu Livro do
povo, publicado em 1861 para o ensino primário. O objetivo da obra era: “Satisfazer uma grande necessidade de nosso ensino
primário, a uniformidade do livro de leitura, vulgarizar a história do Salvador do mundo, os seus milagres, a sua doutrina e os
melhores preceitos da economia e ordem”. Arroyo destacou ainda a obra de José Saturnino da Costa Pereira, Leitura para
meninos, publicada em 1818, e reeditada até 1824. Era composta por pequenos contos e poesias, com o mesmo objetivo dos livros
de leitura.
194

Figura 21 a: Exemplos
de Livros de leitura
seriados de outros
autores. (Fonte: Arquivo
particular da autora)
195

Figura 21 b: Exemplos
de Livros de leitura
seriados de outros
autores. (Fonte: Arquivo
particular da autora)
196

A partir da década de noventa, surgiram no cenário da cultura impressa outros autores


para concorrer com a série do de Abilio e de Hilário Ribeiro, como o Primeiro, Segundo e
Terceiro livro de leitura do professor primário, Felisberto de Carvalho, formado pela Escola
Normal de Niterói e membro do Conselho de Instrução Pública189. Sua série de livros, ilustrada
pelo seu filho Epaminondas de Carvalho, foi editada pela primeira vez em 1892. Para Galvão e
Batista, a inovação foi uma característica primordial dessas obras:

Nesses livros, com algumas ilustrações em cores, as lições, que - como a coleção de Abílio César Borges -
traziam conteúdos das diversas áreas do conhecimento, vinham geralmente seguidas de exercícios. Alguns
dos textos buscavam oferecer à criança, além da instrução, ensinamentos morais. (...) Em alguns casos, a
leitura também provocava prazer, apesar das práticas escolares não terem essa intenção e se visse, de modo
geral, como daninha a relação entre leitura e prazer (1998, p.03).

Cabrini (1994), em sua pesquisa sobre este autor, revelou que os livros didáticos de
Felisberto, sobretudo os de ensino de leitura, estavam em conformidade com os parâmetros
oficiais, incluindo a moral cristã católica e os paradigmas das ciências naturais (critérios que
abordaremos ainda neste capítulo). Freyre (1990, p.187) registrou que as referidas obras
compunham o cenário de um estado de voga no final do século XIX, no Rio de Janeiro:
“Brasileirismo ou tropicalismo louvado pelos estrangeiros, a voga do guarda-pó; a voga do
châtelaine; a voga da mitene; a voga do piano; a voga do charuto; a voga nacional dos Livros de
leitura de Felizberto Carvalho; a voga do Coração, de Amicis”190.
Incentivado pelo nacionalismo vivido no período, o professor da Escola Normal de São
Paulo, Romão Puiggari e o professor de Campinas, Arnaldo Barreto, lançaram, em 1895, a série
de quatro volumes de seus Livros de leitura da série Puiggari-Barreto, que conquistou, em 1904,
a medalha de prata na Exposição Universal nos Estados Unidos. Assim Pfromm Neto os retratou:

Com suas páginas em branco e preto e algumas cores, seu texto simples, leve e freqüentemente bem
humorado, cheio de ação e de diálogos, suas lições ingênuas e vivazes de boas maneiras, tolerância, respeito
e afeição, os Livros de Leitura da série Puiggari-Barreto fogem completamente ao antigo esquema do livro
didático de leitura árida, sem vida e sem interesse (1974:, p.175).

189
Ver mais sobre a trajetória de Felisberto de Carvalho em Cabrini, C. A. Memória do livro didático: os livros de Felisberto
Rodrigues Pereira de Carvalho. Dissertação de mestrado. USP: 1994.
190
Freyre (op. cit., p.187-191), em seus inúmeros depoimentos, recolhidos entre 1850 e 1900, ressaltou várias pessoas em
diferentes regiões do Brasil de cuja aprendizagem escolar fizeram parte as obras de Felizberto de Carvalho que eram: “livros que
foram verdadeiramente nacionais, na época em apreço, como livros escolares ou didáticos, concorrendo de modo nada desprezível
para a unidade brasileira de sentimento”.
197

Um outro nome que se destacou no período foi o de João Köpke, advogado e promotor
que trocou a magistratura pelo magistério. Este republicano fervoroso, proprietário de
estabelecimentos particulares (Colégio Köpke; Escola Modelo e Escola Primária Neutralidade,
onde Caetano de Campos e Rangel Pestana foram professores), escreveu sua série de cinco livros
de leitura intitulada: Série Rangel Pestana. Citando D’Avila (1968), Pfromm Neto ressaltou que
Köpke tinha uma extraordinária capacidade para escrever livros para crianças e para
adolescentes:

Mais de uma vez temos colhido ao vivo no testemunho de velhos educadores, a força e a fascinante atração
com que as histórias de Köpke se enraizaram no trama sentimental de seus leitores. Essas histórias fizeram o
Brasil menino e nos ajudaram em nossa infância a pensar com acerto e agir com retidão (op. cit., p.175).

Dando continuidade à linha de obras evolutivas de leitura, Francisco Furtado Mendes


Vianna lançou, em 1900, Leituras infantis em seis volumes, sendo que os dois primeiros
correspondiam a uma cartilha pela sentenciação e o outro era de leitura preparatória para depois
da cartilha, seguido de quatro Livros de leitura publicados na série Puiggari-Barreto. Vianna,
adepto do positivismo de A. Comte, optou por ensinar a leitura através de contos e histórias,
aproveitando as lições para a formação dos sentimentos, do caráter e da moral nas crianças. O
autor era contra o ‘perigo’ de se ensinar depressa a leitura para as crianças:

Uma das primeiras causas do fracasso no ensino atual consiste na pressa de se chegar imediatamente ao que
soem chamar de resultados práticos. No caso da primeira aprendizagem da leitura, há quem julgue ter
obtido uma grande Victoria, por seremos seus discípulos, ao cabo de seis meses, capazes de ler
foneticamente qualquer vocábulo, v. g. mentecapto, ainda que o façam mentecaptamente (1913, p.69)

Podemos destacar, ainda, a série de Livros de leitura de Thomaz Galhardo, um dos


primeiros alunos da primeira turma da Escola Normal de São Paulo, que ficou conhecido ao
lançar a Cartilha da infância no início da década de oitenta do século XIX, a qual foi editada até
a década de oitenta do século XX. Para termos uma idéia do alcance de suas obras, o Museu da
Escola de Minas Gerais possui um exemplar da 228ª edição dessa cartilha editada em 1987, o
que demonstra que, durante um século, este livro alfabetizou inúmeras gerações.
Antonio Firmino de Proença lançou, na década de vinte (séc.XX), pela Editora
Melhoramentos, sua série de Livros de leitura, que se destacou pelas numerosas gravuras
coloridas e pela proposta de acompanhar as exigências didáticas da escola brasileira. O próprio
autor ressaltou, no prefácio de seu Terceiro livro, na 34a edição:
198

Quanto à linguagem, procuramos, dentro da simplicidade que requer uma obra didática, fornecer ao aluno
variedade de vocabulário e de construção, habilitando-o desse modo para o entendimento dos livros em
geral. Não tocante aos assuntos evitamos a puerilidade e a pieguice, que, ao nosso ver, aviltam o educando
que já vai entrando na adolescência (1948, p.03).

As séries de livros de leitura dos autores citados foram publicadas em sucessivas edições,
revistas, ou simplesmente reimpressas191. Como pudemos averiguar, apesar de não ser grande o
número de autores, também não havia carência de autores preparados e envolvidos com a questão
educacional. O que faltava, na realidade, eram livros para a escola pública, pois, nas escolas
privadas, sobretudo as dos autores, certamente inexistia este problema.
A relação de Abilio com os outros autores da série de livros de leitura não nos pareceu
amigável. Identificamos alguns conflitos estabelecidos entre nosso autor e o republicano João
Köpke e Menezes Vieira, o qual, apesar de não ter publicado livros de leitura (publicou outros
livros), era adversário de Abilio pela concorrência na escola particular e pela divergência de
métodos. Apesar do mercado de livros para a infância ser relativamente amplo neste período, os
autores disputavam espaço e rivalizavam entre si, buscando aninhar-se nos círculos que decidiam
quais livros seriam adotados e adquiridos pelo poder público. Nos escritos de Abilio, não
achamos nenhuma referência sobre os referidos autores, o que comprova que não havia relações
cordiais entre eles.
É importante destacarmos que a mesma inquietação de Abilio no que se diz respeito à
carência de métodos e assuntos adequados ao ensino no Brasil, afligia igualmente estes autores.
Assim como nosso autor, cada um defendia a idéia de que sua série de livros preencheria esta
lacuna, trazendo novos métodos e posturas mais adequadas. Ao tomarmos contato com uma boa
parte desses livros e também de pesquisas e estudos sobre os mesmos, percebemos que, apesar
dos discursos de seus inovadores e de se apresentarem como portadores de métodos ‘modernos’,
as inovações eram mínimas e os conteúdos de todas essas obras não divergia de forma
substancial, pois era preciso seguir os parâmetros oficiais. As lições de uma boa parte dessas
obras, mesmo no período republicano, mantinham temas referentes à moral, ao comportamento
ideal, às posturas consideradas “modernas”, à higienização, às regras de boa convivência e

191
Nos catálogos da Livraria Francisco Alves de 1959/1960, várias dessas obras continuavam a ser adotadas, ao lado de outras
mais recentes. Entre as décadas de cinqüenta a setenta do século XX, a série graduada de leitura ampliou-se e renovou-se de
forma considerável. Podemos citar como exemplo, a série Pedrinho de Lourenço Filho, sucesso editorial durante algumas
décadas.
199

obediência, além de outros elementos considerados essenciais para a construção do nacionalismo


idealizado para esse período histórico.
A questão religiosa, a qual baseava-se, sobretudo, nos conflitos entre católicos e
protestantes, e entre monarquistas e republicanos, podia ser um dos elementos que diferenciam
alguns deles. Os republicanos (como Köpke) defendiam um ensino laico e apostavam na moral-
cívica e no nacionalismo, porém a grande maioria se preocupava em repassar os valores morais,
cívicos e religiosos necessários e convenientes para a manutenção da ordem. Por outro lado, um
fator que também poderia justificar essa permanência de conteúdos estava relacionado ao
comportamento contraditório dos professores que, segundo Bittencourt (2004), desde este
período, ao mesmo tempo em que exigiam obras atualizadas, desconfiavam das renovações
pedagógicas que alteravam a configuração do saber escolar.

3.2 A prodigalidade régia de Abilio e a distribuição dos livros

Abilio distribuiu gratuitamente para diferentes vilas das províncias do Império centenas de
livros, que escreveu ou traduziu. Este mecenato do autor foi considerado por seus biógrafos e
admiradores como uma atitude benemérita de seu ‘incontestável desejo’ de expandir a instrução
popular em todos os cantos192. Contudo a amplitude de sua generosidade era vista com
desconfiança por outros, que insinuavam ser esta uma forma do autor se autopromover.
Pompéia, ou Sérgio, na obra O Ateneu, explicitou que essa prática não passava de mais
uma estratégia do Dr. Aristarco Argolo Ramos, personagem associado a Abilio, descrito como
‘todo um anúncio’ que enchia o Império com seu renome de pedagogo, com a pura intenção de se
promover:

Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à
substância, atochando a imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados ás
pressas com o ofegante e esbaforido concurso dos professores prudentemente anônimos, caixões e mais
caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão

192
Segundo Mariani (apud RIGHBA, op. cit.), além de Abilio distribuir gratuitamente vários de seus compêndios para as
províncias mais pobres, o lucro que tinha com a venda de seus livros era revertido em benefício da instrução pública e da
construção de asilos para crianças abandonadas. Isso comprova, para seus biógrafos, a sua dedicação ao ensino público, pois esta
prática servia como uma utilíssima propaganda em prol da instrução das classes populares. Para nós, a distribuição gratuita de
seus livros também justifica o fato de suas obras terem se espalhados pelo Brasil de forma significativa.
200

de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo
venerador dos esfaimados do alfabeto dos confins da Pátria. Os lugares que não o procuravam eram, um
belo dia, surpreendido pela enchente, gratuita, espontânea, irresistível! E engordavam as letras, à força,
daquele pão. Um benemérito! (1991, p.7).

De acordo com Mário de Andrade (1974, p.179), foi na descrição do mal que Raul
Pompéia se tornou absolutamente um mestre. Sempre que se tratava da descrição de um ser
moralmente defeituoso, de um caso ruim, a idéia acordava, a imagem se avigorava, o toque era
nítido e o traço atingia o centro do alvo. Quando era momento de estudar Aristarco, segundo
Andrade, Pompéia atingia as raias da genialidade, pois não havia nenhuma página sobre esse
mestre que não fosse magistral: “A violência é prodigiosa, as imagens saltam inesperadas, de um
vigor de realismo e de uma beleza de imaginação absolutamente excepcionais”.
Apesar da observação contundente de Andrade, Pompéia, seu ex-aluno, não estava
equivocado ao proclamar que o nome de Aristarco, ou do barão, ecoava nas capas azuis, rosas e
amarelas. Abilio, como outros de sua época, anexava seu currículo nas capas de seus livros, a
exemplo da capa de seu Segundo livro (1866):

Doutor em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro, Commmendador da Ordem da Rosa, Cavalleiro de
Christo, Ex-Director Geral dos Estudos da Provincia da Bahia, Membro do Conselho Superior da Instrucção
Publica, Sócio correspondente do Instituto Historico e Geographico Brasileiro e de varias outras sociedade
litterarias e scientificas.

De acordo com o aperfeiçoamento de seu currículo, os dados acresciam nas capas. A


partir de 1881, ao se tornar ‘barão de Macahubas’, acrescentou o título nobiliárquico logo abaixo
do ‘Dr.’ Registrou, também, as premiações obtidas em exposições, tal qual constava da capa do
Terceiro livro de leitura: “Premiado com medalha de ouro na Exposição Universal de Paris.”
Esta era uma prática do período, pois havia a necessidade de apresentar um currículo que
chamasse a atenção do público, uma estratégia que pudesse contribuir com a comercialização das
obras.
Com relação às críticas recebidas por ter ‘fabricado’ às pressas os dois primeiros livros,
Abilio, revelou que as primeiras edições dos livros de leitura (1866) não estavam em seus planos,
como estava a compilação de seus discursos feitos no Ginásio Baiano, os quais pretendia publicar
em Paris. Os livrinhos, segundo ele, foram elaborados para aproveitar sua viagem, pois não era
seu perfil ficar no ‘ócio inglório’. Em carta enviada ao Dr. Carneiro, registrou que estava
aproveitando a demora forçada em Paris para, inspirado em sua prática e no que havia na França,
201

escrever ‘obrinhas elementares’ para as crianças brasileiras. Da mesma forma, no prefácio da


segunda edição do Segundo livro, esclareceu:

Si a primeira edição, que (declaro-o francamente) continha não pequenos defeitos e até erros varios, já
nascidos da rapidez com que os escrevi, já de copistas e correctores de provas, mereceu tão generosa
aceitação, que sendo de dez mil exemplares esgotou-se em menos de dous annos, razão tenho para esperar
que esta, que vai aparecer, não só emendada e consideravelmente augmentada, como em muita parte
melhorada, continue a melhorar egual, sinão maior estima. Ao menos para isso trabalhei com muita boa
vontade e consciência (1869, p.3).

Quanto a contar com ‘concurso dos professores prudentemente anônimos’, que nada mais
era que delegar a outros a tarefa de escrever suas obras, Bittencourt (2004) ressaltou que, apesar
da dificuldade de comprovar se Abilio contara com ‘anônimos professores’, a quantidade e a
variedade de obras que deixou despertam dúvidas quanto à possibilidade de terem sido
produzidas por um só indivíduo. A mesma autora afirmou que, desde meados do século XIX, não
era incomum autores renomados assinarem obras feitas por auxiliares desconhecidos.
Abilio não escondia que suas obras, originadas do resultado de sua experiência no ensino,
nada mais eram do que cópias do que ele viu de melhor na Europa193. Várias lições, sobretudo
dos dois primeiros livros, são adaptadas pelo autor, como explicitou no prólogo do Segundo livro:
“Quanto a mim, confesso ingenuamente que todos estes pequenos contos, apezar de serem

imitados alguns, foram feitos e refeitos, emendados e reemendados, quatro, cinco e mais vezes, e
assim mesmo não cheguei a ficar inteiramente satisfeitos sinão de poucos d’elles” (1866, p.10).
No prólogo do Primeiro livro, continuou argumentando que a obra fora composta segundo o que
vira adotado “com immensa vantagem” nas melhores escolas de Londres e Paris. Neste mesmo
prólogo, Abilio informou que havia acrescentado, na 2a edição, dois hinos para o começo e
encerramento da aula, fornecendo os créditos devidos:

As lettras d’estes belos hymnos são da admiravel penna de Castilho, (Antonio), o immortal auctor do
methodo de leitura repentina, dito methodo Castilho, onde quasi tudo aprendem os meninos cantando
alegremente. A musica de um, a da Invocação, pertence ao dedicado professor de canto do Gymnasio
Bahiano, o Sñr. J. Vflaker; a do outro de um compositor portuguez (Ibid, p.5).

Ao declarar que seus livros nada mais eram que cópias do que vira ‘de melhor’ em alguns
países das Europa, Abilio não se diferenciava de outros autores, pois a literatura escolar não
estava inume a influências exteriores que, segundo Chopin:
202

Copia sistemas de controles de produção ou difusão, traduções ou adaptações de obras, da instalação de


empresas ou de filiais. Assim, os manuais transcendem paradoxalmente, as fronteiras nacionais: mesmo a
afirmação de uma identidade nacional, à primeira vista singular, irredutível, apoia-se em procedimentos
comuns, na verdade copiados (2002, p.16).

Discutir originalidade neste período nos parece indispensável, pois a grande maioria dos
autores seguia o mesmo preceito: adaptar fábulas, historietas, passagens da bíblia etc, sem
maiores preocupações sobre direitos autorais194. De acordo com Hallevell (1985), a inexistência
de proteção internacional de direitos autorais, no Brasil, foi um dos fatores que favoreceu o
crescimento das editorais nacionais195.
Como já ressaltamos anteriormente, os livros de leitura de Abilio foram adotados em
várias províncias do Império brasileiro. Trindade (2002) enumerou seu Primeiro livro de leitura
como um dos mais utilizados na instrução pública do Rio Grande do Sul, no final do século XIX.
Maciel (1999), em pesquisa realizada no Arquivo Público Mineiro, verificou que os livros de
Abilio, ou Os livros do Barão de Macaúbas, estavam entre os mais utilizados nas escolas de
primeiras letras na Província de Minas Gerais. Da mesma forma, Monarcha (1999), ao analisar as
escolas primárias anexas à Escola Normal de São Paulo, verificou, em 1888, que, da lista de
livros solicitados, constavam o Primeiro, Segundo e Terceiro livro de leitura, assim como a
Gramática Portuguesa do mesmo autor196.
Estas passagens, juntamente com outras pistas contidas nesta pesquisa, confirmam a
adoção dos livros de leitura de Abilio em uma grande parte das províncias, o que não se deu por
acaso. A princípio, consideramos que não havia muitas outras opções, pelo fato de sua série de
livros ter sido uma das primeiras iniciativas de livros ‘nacionais’. Porém, como já pudemos
averiguar, duas décadas após a publicação de sua série, outros autores publicaram obras
semelhantes. O que podia justificar mais precisamente esta vasta adoção era o número de livros

193
O Quarto e Quinto livro de leitura foram escritos em parceria com seu filho Joaquim Abilio Borges, como consta nas capas.
194
Ao se referir aos direitos autorais neste período, Martins (1977, p.63) destacou a prática dos editores e citou como exemplo, a
reimpressão abusiva de Senhora Montolieu, romance de enorme sucesso comercial. Ao comparar as edições desta obra, conferiu
que a Editora Garnier fez simples reimpressões dela: “Se a casa Garnier, aliás, os costumes da época, pirateou a edição
portuguesa de 1835, seguiu apenas outros exemplo de outro colega lisboeta, a Empresa Lusitana Editora, que tirou o livro em
dois volumes, sem data e sem nome do tradutor.”
195
O código criminal, de 1830 advertia que era crime imprimir, gravar, litografar etc. escritos, estampas feitos por cidadãos
brasileiros, enquanto estes vivessem e dez anos após sua morte. Porém isso, aparentemente, permaneceu letra morta. Na
constituição de 1891, foi introduzida uma cláusula relativa aos direitos do autor, a qual só recebeu apoio legal com a Lei de 1898
(HALLEVELL, op. cit).
196
Monarcha (1999, p.157), ao discutir sobre Alves Jardim e sua controvérsia sobre compêndios e métodos de ensino de leitura
em São Paulo, entre 1870 e 1880, anotou: “No âmbito do ensino da língua materna, entre “coisas antigas”, estão a Gramática da
Coruja de Antônio A. Pereira Coruja., Primeiro livro de leitura, Segundo livro de leitura e Terceiro livro de leitura do médico
Abilio Cesar Borges – barão de Macaúbas.
203

que Abilio distribuía gratuitamente para as escolas públicas do país, dado que podia ser
encontrado em diferentes artigos publicados em jornais, nos relatórios governamentais, nas
biografias e em outras fontes consultadas.
Haiddar (op. cit., p.218-219), contestando Pompéia, lembrou que não somente as capitais
e a Corte que recebiam os donativos de Abilio, se estendendo sua ‘prodigalidade’ também a
remotas e humildes localidades do Império. A autora registrou oito notas publicadas em jornais
que atestam este fato:

O Exmo. Sr barão de Macaúbas, Dr. Abilio Cesar Borges, tendo o Sr. Tenente Pedro Getúlio de Mendonça
como Presidente da Câmara, pedido a S. Exa. a sua coadjuvação e valimento para com os meninos pobres
deste município, dignou-se aquele infatigável propugnador da instrução oferecer ao mesmo Presidente da
Câmara quinhentos e tantos volumes de suas obras para o ensino primário. (Da redação da Gazeta de
Passos, Passos, Minas, nº 82, ano 2, 2 de julho de 1884).

A generosidade do Exmo. Sr. Barão de Macahubas veio satisfazer uma grande necessidade de que se
ressentiam a s escolas públicas deste município, entregando-me, a meu pedido, 300 e tantos livros
elementares para os meninos pobres das escolas. Cidade de Piumhy, 10 de março de 1884. Vigário, José
Florêncio. (Do Liberal Mineiro, 29 de março de 1884).

O Exmo. Sr. Barão de Macahubas ofereceu ao Gabinete de Leitura do paraíso, no Ceará, 200 exemplares de
várias obras suas (...). (Jornal do Comércio, agosto de 1887).

O Sr. Barão de Macahubas ofereceu para as escolas de Tracunhaem, em Pernambuco, 200 exemplares de
seus compêndios. (Diário de Noticias, setembro de 1887)

O Sr. Barão de Macahubas mandou entregar, a quem os reclamar da parte do Dr. Pedro Chermont, os 400
exemplares dos seus compêndios, que ofereceu para serem distribuídos pelos meninos pobres que
freqüentarem a escola gratuita fundada pelo mesmo doutor na cidade de Belém do Pará. (Redação de O
País, 23 de setembro de 1887).

O Exmo. Sr. Barão de Macahubas acaba de oferecer à Sociedade Protetora da Infância desvalida desta
cidade, a fim de serem distribuídas pelas camadas incultas e desprotegidas da sorte, mil exemplares de seus
livros escolares que constituem tesouro à infância. Morretes, 15 de amrço de 1884. (Jornal do Comércio, 25
de maio de 1884).

Do Sr. Barão de Macahubas recebeu o Sr. Comendador Filadelfo de Souza Castro 400 exemplares de
diversas obras pedagógicas oferecidas por S. Exa. para uso dos meninos pobres que freqüentam as escolas
públicas da Comarca de Iguape, Província de São Paulo. (Gazeta de Noticias, 20 de agosto de 1884).

Por intermédio da Casa Fischer, Fernandes e Cia., ofereceu o Sr. Barão de Macahubas, a diversas
municipalidades desta província, cerca de quinze mil exemplares dos seus compêndios para serem
distribuídos pelas respectivas escolas. O mesmo senhor, satisfazendo o pedido que lhe dirigira a junta
municipal da instrução pública de Itatiba, ofereceu-lhe, para idêntico fim, mil exemplares. (Província de São
197
Paulo, 17 de maio de 1884) .

197
As citações foram adaptadas a ortografia atual pela autora.
204

Nos relatórios provinciais, esta prática se confirmava. O Presidente de Goiás, em 1875,


registrou que “O Dr. Abilio Cesar Borges fez donativos de 300 exemplares de seus livros 1o, 2o,
3o de leitura e de 400 de gramatica elementar” (apud., MOACYR,1940, p.554). O presidente do
Espírito Santo, em 1874, informou que o autor oferecera ao governo da província 200 exemplares
de cada um dos seus três livros de leitura e da Gramática Elementar da língua francesa e mais 400
de Gramática portuguesa (Ibid., p.47). No ano seguinte, o presidente desta mesma província, com
muita gratidão, referiu-se ao valioso oferecimento feito pelo Dr. Abilio de 300 exemplares de
seus livros escolares.
Em carta encaminhada (de Paris) ao Ministro Leôncio de Carvalho, em 1872, Abilio, após
enaltecer o bom serviço do Partido Liberal, destacando a confiança que este lhe inspirava pela
instrução nacional, reclamou, mais uma vez, do quanto às escolas ‘padeciam’ de livros
apropriados. Por conhecer (tão bem) as precárias condições das finanças do estado, ofereceu
trinta mil exemplares de compêndios escolares. Lembrou ao ministro que não era para incluir na
distribuição as províncias da Bahia e de Pernambuco, visto que as duas já tinham sido
contempladas com 2.000 exemplares cada (apud, RIGHBA, op. cit., p.384). Em ofício
encaminhado ao inspetor da instrução de Minas Gerais, em 1876, após criticar o pouco
investimento desta província nas escolas primárias, Abilio registrou que oferecia seus préstimos
na medida de suas ‘posses’:

Assim é que, nos limites das minhas forças, não cesso de ir por toda a parte em auxilio dos pobres famintos
de instrucção, offerecendo livros e minha composição, e outros para as escólas do povo, e que, ainda agora,
doendo-me vêr a cainhesa com que neste particular foram attendidas as escólas da grande e rica província de
Minas, officio ao Exmo. Sr. barão da Villa da Barra offerecendo-lhe para as mesmas 8.000 exemplares dos
meus livros, os quaes a V. S. remetto nesta occasião (Ibid., p.384).

Ao fazer as doações, o autor aproveitava para lembrar o motivo do envio das obras,
criticando os governantes que não cumpriam com seu papel, além de reforçar sua prática de
benevolência para com a instrução pública. Ao doar suas obras para Mato Grosso, Abilio alertou
que seus ensinamentos serviriam para retirar da “barbárie” a população daquela região:

Em 1874, tendo-me sido comunicado que as escolas dessa Província padeciam falta absoluta de livros,
porque o Tesouro provincial em penúria não permitia fornecê-los desses principalíssimos instrumentos do
ensino, sem os quais bem pouco valem escolas, ofereci para as mesmas 1.200 exemplares dos meus
compêndios escolares. Lendo agora nos jornais a notícia do crime nefando praticado aí por mãe bruta e
feroz, que à sua própria filha, na flor dos anos, arrancara fria e calculadamente a vida, cravando-lhe no seio
a faca filicida, e tendo para si que praticava um ato de sublime virtude com punir assim uma falta da infeliz
filha, que mais do que punição mereceria compaixão; crime esse que não é senão a continuação de muitos
205

outros igualmente atribuídos à completa ignorância em que jaz imersa a maior parte da população dessa
Província; no desejo de concorrer para que vão penetrando alguns raios de luz nessas trevas espessas que
ainda aí envolvem os espíritos, resolvi fazer novo oferecimento de três mil exemplares dos ditos meus livros
para serem distribuídos pelos alunos pobres mato-grossenses, que freqüentam as escolas (Apud SIQUEIRA,
2000, p.232)

Seguindo a mesma prerrogativa em um artigo do jornal A Província de São Paulo, o autor


comunicou ao inspetor da instrução pública de Paty dos Alferes, o encaminhamento de 500 livros
e acrescentou:

Assim como tantas subscrições se fazem e tantos legados se deixam para hospitais, para asilos de órfãos e
mendigos, e para a libertação dos escravos, promovam-se também subscrições, instituam-se também
legados em favor dos que sofrem a terrível doença da ignorância, dos que tem sede e fome de instrução, dos
que pedem luz para sair do tremendo cativeiro das trevas (Apud HILSDORF, op. cit., p.159).

Como percebemos, as doações eram acompanhadas de críticas, sugestões e pareceres


referentes ao que Abilio pensava ser o objetivo de seus livros. O autor expressou uma visão
inteiramente iluminista ao ressaltar que a distribuição de livros teria a função redentora de,
juntamente com a instrução, tirar a população das trevas da ignorância, sendo um meio para
melhorar a sociedade tão cheia de corrupção e calamidades cuja causa parecia estar na
multiplicação da ignorância.
Quanto ao seu modo de pensar, não diferia de outros intelectuais do período no qual a
instrução era responsável por transmitir à população e, sobretudo à camada pobre, os valores
morais e religiosos necessários para atingir a tão sonhada civilização. Por isso, o autor fazia
questão de contribuir com seus livros que, a seu ver, possuíam estes valores, ou seja, eram ‘raios
de luzes’ nas trevas em províncias e vilas que pareciam tão distantes (no espaço também) do que
era compreendido como bons modos pelo erudito.
A distribuição de livros não gerava somente elogios à benemerência do autor, que era
acusado por seus opositores de auto-promover-se. Como exemplo, podemos citar a irônica
apreciação de O Protesto (RJ Imprensa Industrial, 1881p. 64) sobre os jornais que anunciavam
constantemente atos de filantropia em artigos redigidos pelo próprio educador:

Esses jornais fariam melhor se inserissem por uma vez esta declaração: O nosso ilustre educandista Dr.
Abílio C. Borges ofertará cada semana, um certo número de seus compêndios às escolas das províncias ou
das paróquias do Brasil. No fim de cada ano daremos as estatísticas das ofertas generosas, em pomposos
elogios do costume. Assim pouparão aos seus leitores essa comoção hebdomadária, que nos causa a
206

comemoração da filantropia do Sr. Abilio. Em tempo de calor são nocivas as comoções (Apud HILSDORF,
op.cit., p.157-158).

Em relação à tiragem e distribuição das obras, os dados eram contraditórios. O próprio


Abilio, em matéria no jornal A Província de São Paulo (29.3.1882), calculou, em 1882, que a
soma dos exemplares doados chegava 300.000. No mesmo jornal, (8.4 1886) em 1886, o número
se elevou para 5000.000. De acordo com seu biógrafo, Alves, em vinte anos, as obras de Abilio
tiveram uma tiragem de 400.000 volumes, porém, em outra passagem, o mesmo autor ressaltou
que Abilio distribuíra gratuitamente mais de um milhão de exemplares de seus livros. Não nos
propusemos a investigar a precisão deste número, contudo, tomando como base somente os dados
que encontramos nos relatórios e em outros materiais, somamos um total de 68 mil livros
distribuídos.

Quadro 3 Livros doados por Abilio Cesar Borges

Ano Local destinado Número de exemplares


1872 Governo Geral (Ministro Leôncio de Carvalho) 30.000
1872 Província da Bahia 2.000
1872 Província do Pernambuco. 2.000
1874 Província do Espírito Santo, 1.000
1874 Província do Espírito Santo 300
1874 Província do Mato Grosso 1.200
1875 Província de Goiás 700
1876 Província de Minas Gerais 8.000
1877 Província do Paraná 3.000
1884 Província de Minas Gerais (Passos) 500
1884 Província do Paraná (Morretes) 1.000
1884 Província de São Paulo (Iguape) 400
1884 Província do São Paulo (Itatiba) 16.000
1884 Província de Minas Gerais (Piumhy) 300
1886 Província do Espírito Santo 1.400
1887 Província do Ceará (Paraíso) 200
1887 Província do Pernambuco (Tracunhaem) 200
1887 Província do Pará (Belém) 400
Total 68.600

Apesar da imprecisão a respeito deste número, o fato é que Abilio distribuiu uma boa
soma de suas obras. Mesmo que sua intenção tenha sido se promover, atestar sua filantropia cristã
ou assegurar a adoção de seus livros é evidente que muitas crianças se beneficiaram desta
207

distribuição. É incontestável, neste período, o fato de que o poder público não proporcionava
distribuição de livros para crianças pobres. Desta forma, ter um livro em mãos era ter um
instrumento de aprendizagem, fato que não podemos deixar de considerar relevante.
Feita essa ressalva, lembramos que uma boa parte das doações aconteceu, sobretudo, após
a mudança do autor para a Corte, posteriormente à publicação de outros livros concorrentes e ao
recebimento do título de barão. Apesar de Abilio, aparentemente, não demonstrar interesse
lucrativo com a venda de seus livros, a proximidade com o poder imperial pode ter-lhe garantido
a aquisição de obras pelo governo para que o autor pudesse distribuí-las gratuitamente nas
escolas. Bittencourt (1993) ressaltou que, levando em conta que se tratava de uma sociedade que
se iniciava no mundo da leitura, a circulação de livros didáticos, neste período, superava as
demais obras de caráter erudito, possuindo um status diferenciado e privilegiado. Este poder se
deu, dentre outros motivos, pelo fato dos autores eruditos se utilizarem, de forma significativa, da
literatura escolar para divulgarem seus trabalhos.
Havia um nítido interesse, por parte deles, em difundir métodos renovados, contudo
considera-se que o retorno financeiro também incentivava de maneira considerável a produção de
livros didáticos neste período. A relação estabelecida entre os livreiros e autores, a qual incluía o
contrato, a qualidade da obra, o preço e outros interesses mútuos de caráter comercial,
desmistificava, para Cabrini (1994), a idéia da escritura do livro, principalmente os didáticos,
apenas com objetivo altruísta.
Para Cabrini, a ‘chave’ do êxito comercial da obra escolar estava no tripé da relação
estabelecida entre ‘Editora’, ‘autor’ e ‘Estado’. O autor deveria escrever os temas de acordo com
o programa oficial e melhor seria se fizesse parte das decisões dos programas deste ensino. A
editora publicaria somente os textos que seguissem as normas vigentes, obtendo, assim, a
certidão de aprovação da Diretoria Geral da Instrução Pública. A adoção das obras era
incentivada pelas editoras, chegando os editores a oferecer prêmios aos autores que obtivessem
do estado o certificado de adoção198. Atento a esta norma, Abilio incluía nos prólogos de suas
obras esta aprovação, munindo-se, assim, de argumentos para que suas obras fossem adotadas199.

198
O prêmio variava entre certa quantia de dinheiro ou pagamento de qualquer prêmio pelo governo, buscando a editora, assim,
arrebanhar os autores que lhes garantissem uma margem de venda. Já os autores esperavam da editora infra-estrutura para a
composição, propaganda e distribuição de seus livros.
199
No prólogo da segunda edição do Primeiro livro (1869), estampou seu voto de profunda gratidão “aos Srs. Directores da
instrução publica de quasi todas as provincias do Imperio, que os distinguiram e honraram, fazendo-os adotar nas aulas publicas
primarias sob sua jurisdicção”, agradecendo, igualmente, o acolhimento dos professores públicos e particulares. Da mesma forma,
incluiu, nesta mesma obra, o parecer do Conselho Superior de Instrução da Província da Bahia: “Ilmos. e exmos. Sñrs. – Examinei
208

Devido a sua ampla divulgação, os livros de Abilio eram facilmente aceitos nas
províncias, contudo não podemos deixar de mencionar que as circunstâncias e as divergências
políticas, muitas vezes, impediam a adoção ou o pagamento deste ou daquele livro. Citamos
como exemplo a carta que Abilio encaminhou, em 1878, ao Diretor da Instrução Pública da
Bahia, o barão Homem de Mello, cobrando o pagamento de vinte mil exemplares de suas obras.
Abilio registrou, de forma contundente, que seus procuradores estavam ‘embaraçados’ em cobrar
a dívida, sem conseguir recebê-la. Reclamou da suspensão realizada por Homem de Mello que
havia desaprovado a encomenda dos livros pelo seu antecessor, quando estes já tinham sido
entregues200.
Pelo que indica a carta de Abilio, houve acusação de troca de favores, pois, em duas
passagens, ele procura esclarecer que não mantinha relação pessoal com o diretor anterior.
Mesmo elogiando a moralidade e a economia imposta pelo novo diretor (proposta pelo Partido
Liberal), o autor não abriu mão de receber a dívida, embora se dispusesse a esperar que os cofres
provinciais permitissem o pagamento. Com pudemos averiguar, além da distribuição gratuita,
havia a comercialização dos livros, que não era feita com muita tranqüilidade.
Apesar de não se referir aos livros do nosso autor, em uma matéria publicada no jornal A
província de São Paulo, (30 de maio de 1875, p.02), João Köpke criticou duramente o inspetor
geral da instrução pública de São Paulo por ter preterido sua obra Methodo Rapido para aprender
a ler nas escolas primarias, em detrimento as de outros três autores: Freire, Abilio e Renault201.

os dois opusculos, que VV. Ex. e SS. Tiveram a bondade de submetter ao meu parecer, intitulados Primeiro e Segundo Livro de
leitura para o uso da infancia brasileira, compostos e publicados em Paris pelo incansavel, muito illustrado e zeloso Dircetor do
Gymnasio Bahiano Dr. Abilio Cesar Borges, e entendendo que elles podem ser mais uteis aos meninos, do que quantos sobre a
materia por ahi há, minha humilde opinião é, que o digno Conselho superior dos Estudos os approve e recommende para serem
admittidos nas aulas primarias d’esta Provincia, no que fará um grande bem aos meninos, por estar eu convencido de que elles
acharão nos ditos livros um riquissimo thesouro, do qual com maior facilidade tirarão excellente cabedal para sua instrução
elementar. Deus guarde a VV. Ex. e SS. O Conselheiro Dr. Joao Antunes de Azevedo Chaves. Bahia, 5 de outubro de 1867”
(1869, p.17).
200
Alertou o diretor que não era sua intenção especular com o dinheiro público, porém já havia doado 10.000 livros para a Bahia,
lembrando, ainda, que tudo fora acordado com o antecessor de Homem de Melo, deixando claro que não mantinha nenhuma
espécie de relação pessoal com ele, pois o contato havia sido feito por solicitação do próprio diretor que lhe enviara uma
correspondência solicitando a encomenda. Mesmo não considerando vantagem financeira na transação, Abilio afirmou que
reduzira os preços com a intenção de, mais uma vez, prestar serviço a sua terra natal: “Si V. S. examinar a correspondencia
trocada entre mim e seu antecessor á respeito, verá a exactidão do que acabo de expôr, e comprehenderá que cedendo eu a minha
Provincia livros no valor de 25 contos de réis por 10, isto é, com a reducção de 60% nos preços, e ainda em cima pagaveis em 5
annos – se houver favor não fui eu quem recebeu, e sim quem o fez” (apud, RIGHBA, op. cit., p.386).
201
Köpke, desabafou: “Anotei, pois, pela gloria de lutar contra s.s., que o ampraso e desafio a justificar o parecer, que emittio, ; é
sim, e só, porque desejo, que o publico seja informado das rasões que militam em favor dos livros preferidos, para que faça justiça
a quem fôr de direito; porque, no fim de contas, s.s. deve declarar ao publico, quaes os motivos que o levaram a recusar u livro,
que a imprensa sensata approvou, e eu tenho justa que s. s. me dê occasião de convencel-o ou de convencer – se é que s.s. não
appreciou bem, ou eu deixei-me levar pelos encantos do meu próprio trabalho.[ fecha aspas?] O autor, concluiu que a informação
(tardia), provinda do ‘lacaio’ do inspetor, de que não havia verba para a compra da obra, o que lhe causou ‘graves prejuizos’ em
seus interesses de vender o livro, não o convencia. (A Província de São Paulo, 30 de maio de 1875, p. 02.)
209

Como pudemos constatar, há pistas evidentes que apontam uma relação marcada por conflitos, o
que demonstra que as boas relações determinavam as adoções dos livros.
A Livraria de Vvª J. P. Aillaud, Guillard e Cª. foi a editora francesa pela qual Abilio
publicou as três primeiras edições dos dois primeiros livros, em Paris. Ao investigarmos sobre
essa editora, encontramos nos catálogos de 1821 a 1920 outras publicações referentes ao Brasil e
identificadas como “Livros portugueses publicados em Paris”. Trata-se de obras como a
Constituição do império brasileiro, Paisagens do Rio de Janeiro, Gramática da língua no Brasil,
além de Atlas, mapas, livros clássicos e vários outros títulos adotados nas escolas de Portugal e
do Brasil. No ano de 1866, o catálogo anunciava:

Além de numerosas obras publicadas pela sua casa, a que pertencem especialmente ao seu fundo, a Livraria
de Vvª J. P. Aillaud, Guillard e Cª., tem um sortimento de livros portuguezes, assim antigos como
modernos, publicados em Paris, Leipzig, Portugal e mesmo no Brasil. A cada tem igualmente uma
importante collecçao de obras relativas a Historia de Portugal e do Brazil. As suas relações com as
principais livrarias europeias permite-me lhe fornecer, com prontidao e por modicos preços, todas e
quaisquer obras que os seus correspondentes possao desejar (1866, p. 35).

As vantagens anunciadas eram uma atração para os autores brasileiros e uma boa parte
dos livreiros confiavam a publicação às gráficas em Paris. De acordo com Hallewell (1985), a
preferência pelas tipografias francesas, além do apelo esnobe, especialmente nos livros mais
caros, para os quais a encadernação francesa serviria de propaganda (aparecia nos anúncios
publicitários da época), tinha razão basicamente econômica, sobretudo após a segunda metade do
século XIX, com o navio de vapor, que encurtava a viagem (por volta de 54 dias). Mesmo
arcando com o preço do frete transatlântico, o produto europeu era mais barato e de melhor
qualidade que o do Rio de Janeiro, tanto técnica quanto esteticamente. Os impressores brasileiros
sofriam de outra desvantagem, pois tinham que pagar taxas mais elevadas pelo papel do que
pelos livros importados202. O mesmo autor cita o exemplo dos irmãos Garnier que enviavam
livros para serem publicados em Paris e mantinham um tradutor brasileiro nas gráficas francesas.
De fato, publicar fora do Brasil, na época, sobretudo na França, era financeiramente mais
vantajoso. Entretanto Bittencourt (1993) alertou que a produção de livros didáticos constituía-se

202
Não podemos deixar de ressaltar que, devido à inibição da metrópole (Portugal), foi tardia a arte de impressão no Brasil e,
mesmo com a implementação da Imprensa Régia, (1808) essa situação persistiu, pois o objetivo da imprensa real era divulgar atos
governamentais e, apesar da publicação de algumas obras cientificas e literárias (sobretudo nas áreas de medicina e engenharia),
não produziu livros didáticos para a escola elementar. Bittencourt (2004) destacou que, após o término do monopólio da Imprensa
Régia em 1822, a Tipografia Nacional continuou publicando obras didáticas em número restrito e editoras privadas de origem
estrangeira passaram a se ocupar da produção nacional, embora sempre vinculada a países europeus, principalmente.
210

em mais um elemento do quadro de relações culturais entre Brasil e França, cuja relação era
permeada por interesses econômicos e culturais estabelecidos entre os dois países e não como
simples decorrência da importação de idéias feitas pelas classes dirigentes. Havia interesse de
ambos os lados em implementar uma cultura francesa no Brasil203.
Abilio se encarregou, de forma independente, dos custos de edição e de impressão de
seus livros, sendo que as datas das três edições coincidiram com viagens suas para Paris.
Entretanto o dado impresso nas capas dos catálogos, a partir do ano de 1860, logo abaixo dos
nomes dos proprietários, indicava: “Livreiros de suas Majestades o Imperador do Brasil e El Rey
de Portugal”204. Isso nos dá alguma pista sobre o porquê da escolha de Abilio por esta editora. O
autor mantinha uma relação próxima a D. Pedro II, o que pode ter facilitado uma ‘ajuda’ do
governo imperial nos custos dos livros. De qualquer forma, a comercialização de livros didáticos
dependia do Estado, como salientou Bittencourt (2004), seja pelo seu poder de aprovação ou
como comprador, condição que levou os editores a criarem diversas estratégias de aproximação
com o poder educacional, como assegurar a presença de autores próximos ao poder.
Em relação à longevidade da adoção e publicação dos livros de leitura, o fato de Abilio ter
sido um fiel monarquista após a implementação da República indica a razão por que,
provavelmente, suas obras foram substituídas por outras séries de livros de leitura. Um exemplo
disso foi o Estado do Rio Grande do Sul, onde seu Primeiro livro, amplamente adotado durante o
período monárquico, foi descartado pelo Conselho Diretos no início do período republicano,
conforme indica o parecer:

O Sr. Diretor declarou que tendo que chamar-se concurrencia para arrematação do fornecimento às aulas
publicas do próximo anno, convocara a presente reunião do Conselho para que esta corporação resolvesse se
iria ou não fazer alguma alteração nos livros adoptados. O Conselho foi de opinião que, temporariamente,
isto é, no próximo anno não fossem contemplados os livros de Abilio (Atas, 1891, p.190. Apud,
TRINDADE, 2004, p. 95).

203
Segundo Bittencourt (1993), a França tinha interesse em penetrar em uma região monopolizada pelo comércio inglês. Fazia,
então, esforço para ocupar determinados setores comerciais no Brasil, vinculando-se as relações culturais a tal projeto. A
preferência do Brasil pela França no que se refere à produção cultural, além dos interesses econômicos, pode ser entendida
também pelo catolicismo brasileiro que se aproximava da mentalidade deste país, que possuía, além da educação francesa, uma
mercadoria moderna e necessária para o projeto civilizatório. Era um modo de ser ‘moderno’, mais próximo de valores católicos
de setores conservadores que desconfiavam do mundo protestante inglês.
204
Não era somente esta livraria que carregava este título. Hallewell (1985) registrou que as livrarias F.L. Pinto & Cia e J. Barbosa
e Irmão, no Rio de janeiro, em 1860, utilizavam o nome Livraria Imperial, “fornecedores de S.M. o Imperador” . O livreiro Paula
Brito, igualmente, teve o apoio do Império. Sua Imperial Typographia Dous de Dezembro (data de aniversário de ambos, por uma
feliz coincidência) teve o patrocínio imperial e, em 1850, foi inaugurada, tendo o Imperador como acionista, embora, para
preservar sua neutralidade, não tenha exercido seu direito de ostentar a autorização de que era “impressor da Imperial da casa.”
211

Em Goiás, seus livros foram adotados oficialmente até a década de trinta do século XX,
como afirmou A. Fleury, professor catedrático do Liceu, em artigo na Revista de Educação
(1940)205. Também encontramos, no catálogo da Francisco Alves, o Primeiro livro (7a edição), o
Segundo livro (8a edição),o Terceiro livro (5a edição) e o Quarto livro (2a edição), todos do ano
de 1906. Lembramos que os filhos de Abilio, após sua morte, continuaram cuidando da edição e
distribuição de seus livros, por esta editora.
Como bem ressaltou seu ex-pupilo, Raul Pompéia, ao dizer que ‘ele era todo um anúncio’,
incontestavelmente, a propaganda foi um forte elemento utilizado por Abilio para divulgar seus
livros e suas idéias educacionais. Como outros autores, utilizava os próprios livros, a contracapa,
para listar suas obras (algumas incluía o preço), além de divulgá-las, seja distribuindo-as
gratuitamente ou comercializando-as. Era expressivo o número de artigos em jornais, revistas e
outros meios impressos escritos por ele próprio e por seus ‘admiradores’.
O autor enviava exemplares de seus livros para a imprensa com a clara intenção de que
fossem divulgados. Não podemos nos esquecer de que a editora que publicou seus livros não era
brasileira, portanto era papel seu fazer com que os livros fossem divulgados. Uma boa parte
destas matérias e artigos foi anexada a suas obras (nos prefácios e conclusões) na tentativa de
demonstrar o quanto a repercussão era positiva. Abilio também divulgou amplamente seus livros
em anúncios pagos que ocupavam expressivos espaços nas páginas para este fim.
Um dos primeiros anúncios que, por certo, deve ter agradado muito ao autor, foi o artigo
publicado na Revue de l’instruction en France et dans les pays étrangers (Revista de Instrução
Publica de Paris) em sete de Fevereiro de 1867, ou seja, assim que publicou seus dois primieros
livros de leitura. Na seção denominada Bulletin Bibliographique, seção que a Revista dedicava ao
comentário das últimas publicações consideradas importantes para a instrução pública, o autor
(após se referir aos últimos livros da condessa de Ségur), lembrou que, já que se estava falando
de livros destinados aos meninos, era justo mencionar “dous livros em lingua portugueza”, um
verdadeiro presente que o Dr. Abilio fazia à mocidade ‘brasileira e portugueza’. Essa referência
se devia, provavelmente, ao fato da editora (Aillaud &Guillard) ser franco-portuguesa206.

205
Ao salientar que o ‘alicerce’ do edifício educacional era o material sólido e substancioso, o professor registrou: ‘já possuímos e
é ótimo’, fazendo referência aos cinco livros de Abilio, detalhando-os e tecendo inúmeros elogios a eles.
206
Utilizando como referência os prólogos que Abilio deixou nos livros, o artigo teceu inúmeros elogios a eles, detalhando seus
conteúdos, métodos e objetivos, não deixando de salientar as atrativas ‘historiasinhas’ que se finalizam com uma lição de moral e
um conselho, por fim concluía: “Se nós mencionamos estes dois livros, é que somos felizes de verificar que em todos os países
surgem novas preocupações em favor da infância e da mocidade, a nossa iniciativa para bater em brecha a rotina, esta velha
inimiga do progresso; e que os espíritos os mais sérios, os homens os mais eminentes, como é o Sr. Abilio, não desdenharão de
212

Nas páginas dos jornais Diário da Bahia, Jornal da Bahia, Jornal do Comércio e
Província de São Paulo e outros meios impressos, encontramos várias matérias que opinavam
sobre os livros que o ‘incansável’ Dr. Abilio havia publicado. As matérias não se diferenciavam
muito umas das outras, pois o objetivo principal era o de enaltecer as obras que haviam sido
publicadas ‘em Paris’. Dessa forma, os textos descreviam os livros como ‘livrinhos’ que vinham
para preencher a grande lacuna deixada pela falta de livros apropriados em uma pátria em que
faltava tudo à instrução primária. Propagavam os livros como obras apropriadas às ‘inteligências
infantis’, ‘à fraqueza da inteligência’ e à atenção infantil ‘tão movediça e inquieta’, registrando a
importância dos contos morais presentes nos livros que continham ‘germes preciosos’ de muitos
princípios ‘salutares’, livros considerados como ‘um verdadeiro reconhecimento à importância da
infância’. Anunciar e propagar as obras não era somente uma prática de Abilio, outros autores
também divulgavam em jornais e revistas matérias semelhantes, tecendo inúmeros elogios para
seus próprios estabelecimento e livros.

3.3 Os dois primeiros livros de leitura: Ler sem refletir, é comer sem digerir

Abilio manifestava um interesse expressivo em relação à aprendizagem da leitura pela


207
criança . Estava sempre atento aos debates em torno de adequação de linguagem, realidade
próxima da criança, de modo que seus dois primeiros livros de leitura, de acordo com ele próprio,
foram publicados para suprir estas faltas. O Primeiro livro era uma transição entre a vida na
família e na escola, uma substituição das cartas de leitura utilizadas no período, porém com uma
linguagem que proporcionava, segundo o autor, além de um ensino mais agradável, uma redução
no tempo de aprendizagem em uma clara demonstração da produtividade e do rendimento da
escola. O ‘livrinho’ não deveria ser posto nas mãos das crianças, a não ser após duas ou três
semanas depois da entrada da criança na escola. Neste tempo, que chamou de ‘preparação para a
leitura’, o mestre ditaria as sílabas e palavras da lição, fazendo os alunos pronunciarem
‘destacadamente’ as sílabas de cada palavra sem fazer referência às letras que compunham a

dar, em prol do desenvolvimento intelectual de seu país, toda sua solicitude a esses primeiros passos de infância” (1866/04-
1867/04: p.716/717).
207
Na década de oitenta, Abilio criou um aparelho denominado ‘imprensa escolar’ como forma de incentivar ainda mais a
aprendizagem da leitura. O aparelho, segundo o autor, tinha também a intenção de redimir crianças e adultos analfabetos dos
estudos fastidiosos dos silabários comuns. Em forma de porta com réguas paralelas e horizontais, trazia gravadas as letras do
alfabeto, maiúsculas e minúsculas, de forma visível de qualquer ponto da sala de aula. Com as tabelas, era possível ao mestre
213

mesma. Ao fim deste ‘exercício de cor’, o mestre, de forma solene, ordenaria que os pupilos
abrissem os livros e passassem a ler as palavras, cuja silabação havia acabado de fazer de cor.
Isto é, ele os fazia ler com ‘os olhos’ o que já haviam lido ‘pelos ouvidos’.
O mestre passaria, então, a ler com os discípulos, pois estes não poderiam ler sozinhos e,
muito menos, estudar previamente as lições, a não ser depois da última edição do método, quando
entrassem nos exercícios de leitura corrente, momento em que já dominavam a leitura. Abilio
alertava que o mestre ‘jamais’ deveria passar de uma lição a outra sem que a maioria dos
discípulos a soubesse na ‘ponta da língua’. Aconselhava ainda que, todos os dias, ao começar
nova lição, o mestre fizesse uma ligeira recordação das lições anteriores e, ao chegar na última
lição, retornasse à primeira, verificando se houve, de fato, a aprendizagem.O método Macahubas,
contido no prefácio do Novo livro de leitura, proclamava que o ensino da leitura deveria ser:

Nos primeiros exercicios, a fim de animar os timidos e menos intelligentes, os tardos, ou poupl-os, em caso
de erros, as risotas dos companheiros mais tallentosos e activos, seja a syllabação feita por todos
simultaneamente em voz alta, porem, depois de duas ou tres secções, devera o mestre questionar a cada um
por sua vez, para certificar-se do progresso relativo dos mesmos (1888, p.12).
Quanto ao tempo empregado nesta tarefa, o autor sugeriu que, para os meninos de sete a
nove anos bastariam de duas a três sessões diárias de quarenta e cinco a cinqüenta minutos cada.
Deste modo, em três ou quatro semanas, os pequenos estariam lendo ‘suficientemente bem’.
Bastava que conhecessem as sílabas elementares para formar todas as outras, evitando perda de
tempo, sendo inútil insistir no ensino pelas sílabas soltas, pois se deveria ler como se fala e
‘ninguém fala soletrando’. Baseando-se em um sistema ‘natural’ de aprendizagem, Abilio
recomendava, ainda, que, apesar de simples, este método demandava mestres de particular talento
e vocação para o ensino específico da infância. 208

colocar e deslocar, compor e decompor sílabas, palavras e frases, ensinando, assim, a ler sem fastio., Abilio afirmou, sem
modéstia, que se a imprensa escolar fosse generalizada, resolveria o problema do ensino da leitura do povo.
208
É interessante observar que, em seu Novo primeiro livro de leitura (1888), no qual implantava definitivamente seu ‘Método
Macahubas’, Abilio ressaltou que a obra não se dirigia somente as crianças, mas também a todos os analfabetos. Também não
seria instrumento somente do professor, como também um recurso que ‘até’ as mães de família ‘mais incultas’, poderiam utilizar.
Apesar de o autor registrar que seu ‘novo método’ iria revolucionar completamente o ensino da leitura, o discurso era o mesmo de
1866, com algumas ligeiras modificações que em nada se assemelhavam a uma revolução do método, que continuou baseado
inteiramente na natureza da linguagem, na simplicidade, na ausência de qualquer artifício, na insistência de que o mestre fizesse a
‘recordação geral’, na facilidade de compreender e de aplicar, assim como na obtenção de ‘resultados surpreendentes’. Com
cautela, talvez temendo críticas, alertou que o emprego da obra não era exclusivo do ensino pelo Método Macahubas, pois se
prestava igualmente ao ensino da leitura pelo método comum, com a vantagem de que se conseguia muito mais proveito do que se
poderia obter com outros silabários ‘vãos, indigestos e sem sistema’ que existiam. Uma das diferenças que ele fez questão de
destacar se relacionava com a sua aplicação. Sem modéstia alguma, ressaltou que o tempo do aluno era menor com ele, pois se
considerava diferente dos outros mestres pelo fato de portar a vantagem de conhecer profundamente a ‘philosophia do methodo’,
que havia conseguido organizar depois de muito estudo, constantes observações e repetidas experiências, lembrando, ainda, que
era animado pela intensa paixão de autor e fervor de propagandista convicto.
214

Figura 22. Dois exemplos de propagandas para divulgar as obras de Abilio. As primeiras eram anúncios pagos pelo autor e as
últimas são artigos feitos por outros que recebiam os livros e divulgavam-nos (Fonte: Jornal A Província de São Paulo – AEL).
215

Figura 23 Primeiro e Segundo livros de leitura para a


infância brasileira, publicados pela primeira vez em Paris
no ano de 1866. (Fonte e Fotos BNF).
216

Figura 241 Novo Primeiro


Livro de leitura publicado em
1888; Terceiro Livro de leitura,
publicado em 1872 e Quarto
livro de leitura, publicado em
1890 (Fonte: BNRJ e FCM)
217

Ou seja, não bastava somente a vocação, o talento e a capacidade eram essenciais.


Quanto à escrita, aconselhava que não se iniciasse antes dos sete anos, pois, além de ser um
trabalho de pouco proveito, era penoso demais para mãozinhas ‘tão pequenas’.
Seu método se diferenciava do ensino mútuo (referido no capítulo anterior), método que
recorria ao uso de monitores (alunos mais adiantados treinados pelos mestres) para ensinar as
outras crianças. No método de Abilio, o papel do professor não era substituído e o livro era
elemento essencial na aprendizagem. No que diz respeito ao papel do livro didático, em meados
do século XIX, este passou a ter uma função diferente. Se antes era um material de uso exclusivo
do professor, que transcrevia ou ditava partes deles nas aulas, surgiu uma necessidade do livro ir
direto para as mãos dos alunos, pois, de acordo com Bittencourt:

O aluno era (e ainda é) um público compulsório, mas assumi-lo como consumidor do livro significava para
os autores e editores, atender as novas exigências, transformando e aperfeiçoando a linguagem dos livros.
As ilustrações começaram a se tornar uma necessidade, assim como surgiram novos “gêneros didáticos”,
destacando os livros de leitura e os livros de lições de coisas, não se limitando a compêndios e cartilhas
(2004, p.485).

Em suas rápidas considerações (uma espécie de prefácio) sobre o método do Primeiro


livro de leitura, Abilio registrou que o objetivo principal da obra era o de fazer com que as
crianças pensassem e entendessem o que liam, enfatizando que:

É opinião minha muito antiga, que si as creanças, depois de conhecido o alphabeto, deparassem logo, na
reunião de lettras em syllabas, com palavras que lhe fossem familiares, combinadas em curtas orações ja por
elles usadas no tracto familiar, não so aprenderiam a ler rapidamente, mas aprenderiam com gosto, por
encontrarem nas suas primeiras lecções de leitura, justamente as palavras e phrases que estavam
acostumadas a ouvir e a fallar em suas casas, e cuja significação, portanto, lhes não seria estranha (1866a,
p.485).

Seguindo esta prerrogativa, o autor iniciou o Primeiro livro com o alfabeto, apresentando
depois as vogais maiúsculas e minúsculas para, em seguida, apresentar o que denominou
“Combinação das palavras precedentes em orações faceis, conhecidas dos meninos.” Apresentou,
primeiramente, as palavras com uma sílaba, como ‘bem’; ‘mal’; ‘cruz’; ‘mãi’ e outras. Após o
domínio esperado das letras e das palavras, surgiam pequenas frases: ‘Não tem cruz’; ‘Não ha
mel’ etc. Prosseguia com palavras de duas sílabas, como: ‘angu’; ‘café’; ‘boi’, ‘porco’; ‘leitoa’, e
com as frases: ‘Rosa tem quatro limas’; ‘Eu ganhei seis ovos’; ‘Bento está com sarna’; ‘Na noite
de S. João se faz fogueira’; ‘Joaquim não lava as orelhas’; ‘Miguel está no quarto’.
218

As palavras, de fato, deveriam corresponder à realidade próxima da criança,


correspondendo a sua preocupação a respito da ineficiência da utilização de nomenclaturas não
identificadas pelo mundo infantil. Seguindo esta prerrogativa, na segunda edição desta obra,
Abilio substituiu nomes de frutas como nozes por caju, uvas por mangas, maçã pela jaca, figo por
cajá, além de trazer animais típicos de um Brasil rural do período, o que evidenciava seu
nacionalismo que, apesar de ambíguo, era marcado pelo sentimentalismo romântico rural.
O Primeiro livro trazia oito pequenas lições, que tratavam de temas que aludiam à
obediência, ao cumprimento dos deveres, à fidelidade e a outras virtudes que se contrapunham ao
orgulho, à obediência, e também a temas gerais como tipos de casa, divisão do tempo: horas,
minutos, dias e meses etc. O alfabeto e vogais deste livro não eram ilustrados. Diferente dos
alfabetos ilustrados, que já estavam em voga na França, e do Primeiro livro de leitura, de
Felisberto Carvalho, cujos textos de alfabetização eram ilustrados e cujas palavras estavam
relacionadas com o desenho, buscando o auxílio do desenho para que as crianças, utilizando a
intuição, compreendessem melhor o assunto.
Assim que a criança, através de seu talento individual, aprendia o repertório desta obra,
passava para o Segundo livro, composto exclusivamente de pequenas historietas, fábulas,
poemas, hinos ou fragmentos de textos literários clássicos. A proposta deste livro era aperfeiçoar
a leitura e, através dela, oferecer à criança a instrução moral e religiosa, com temas referentes às
virtudes, trazendo novamente temas como bom comportamento, obediência, amor a Deus,
honestidade, caridade, deveres cívicos, princípios de higiene etc. Semelhantemente às lições do
primeiro livro, as lições combatiam duramente os ‘pequenos vícios’ da infância como mentira,
desobediência, egoísmo, gulodice etc.
Não havia discrepância entre os conteúdos dos livros e os discursos oficiais e não oficiais.
Temas como os já citados se complementavam e reforçavam a intenção de moralizar o
imaginário das crianças. Abilio era um autodidata e, portanto, suas obras foram compostas na
medida que se alargava sua experiência no campo da instrução. Ao tomarmos contato com
algumas poucas edições de diferentes épocas, notamos que as reduzidas modificações eram
anunciadas nos prefácios. Infelizmente, devido à escassez dessas obras, não nos foi possível
realizar maiores confrontos.
219

3.4 Livrinhos ornados com ‘lindas gravuras’: ilustrações e fonte

Os livros de leitura, objetos de nossa análise, foram ilustrados com gravuras retiradas dos
catálogos de Laurent et Deberny, uma imprensaria francesa do século XIX. Nesta parte,
discorreremos sobre a implementação de imagens nos livros escolares, situando a iconografia no
tempo histórico, incluindo seu percurso na França, seus objetivos e o modo como foi ordenada
nas obras didáticas. Nessa pesquisa, utilizaremos, além da palavra ‘ilustração209’, o termo
‘gravura’ e ‘imagem’ para designar a iconografia que acompanha os textos dessas obras. Porém é
importante salientarmos que a expressão ‘gravura’ era a mais utilizada nesse período, como
pudemos constatar nos catálogos do século XIX: “livrinhos ornados com lindas gravuras”.
A tese de que, através da imagem, a criança é estimulada a identificar a palavra e o texto
não é recente. Apesar das ilustrações terem adentrado de vez nas obras escolares francesas a
partir da segunda metade do século XIX, os estudos que abordam a ilustração nas obras didáticas
nos reportam ao pioneirismo de Jean Amos Comenius. O autor da conhecida Didática Magna
(1678) publicou a enciclopédia ilustrada Orbis pictus (1657), na qual passava noções de ensino
associadas às imagens correspondentes, numa tentativa de adequar a leitura à estrutura mental da
criança. Tratava-se de ensaio ou protótipo dos livros didáticos ilustrados que apareceriam depois.
As idéias de Comenius do século XVII vieram a se tornar consenso na França do século
XIX. Contudo, as gravuras tiveram que percorrer um longo percurso até se instalarem
definitivamente nas obras escolares. O aperfeiçoamento da técnica da xilogravura contribuiu de
forma definitiva para essa efetivação, permitindo o uso da gravura em larga escala. A técnica
milenar da xilogravura remonta a uma época anterior à invenção da imprensa e era simples: após
a imagem ser esculpida na madeira pelo artista, esta recebia tinta e era gravada sobre o papel,
funcionando como uma espécie de carimbo. Na Idade Média, a técnica da gravura sobre madeira
se popularizou e oferecia temas populares para um largo público, visando, sobretudo, funções
religiosas, tanto que os primeiros ateliês se instalaram próximos aos monastérios. Eram gravuras
de piedade, de amor e outras que tocavam o coração de gente simples, desempenhando papel de
proteção e consolação.

209
A origem da palavra ‘ilustrar’ provém de “homem ilustre”, de saber e de erudição209. Na França, o uso desse termo para
assinalar uma imagem que acompanha um texto ou que associa uma imagem à palavra, apareceu nos guias de viagens dos
ingleses em 1825, sendo consagrado a partir de 1843, com o jornal francês L’Illustration. A partir de então, a palavra passou a ter
um duplo sentido, tanto para imagens como para o reconhecimento e a glória. (LE MEN: 2002).
220

Somente a partir da segunda metade do século XVIII a xilogravura, a gravura sobre a


madeira e a litogravura, a imagem esculpida sobre a pedra, revolucionaram a imagem impressa
para o século XIX. Alguns ilustradores imprimiam sua arte diretamente na pedra, contudo os que
criavam ilustrações para os livros utilizavam a madeira para este fim. A gravura sobre madeira se
expandiu na técnica tipográfica, permitindo que ilustração e texto se integrassem sob a mesma
prensa, o que gerava tiragens simultâneas e de melhor qualidade. A expansão da técnica de
gravura na madeira oferecia inúmeras vantagens, como preços mais baixos, multiplicidade de
provas, variedade de detalhes e, sobretudo, liberdade de composição. Isso simplificou a produção
de gravuras destinadas a diferentes públicos no decorrer do século XIX, aumentando
consideravelmente o acesso, não somente das crianças, como das pessoas em geral, às cenas
simbólicas do cotidiano.
Em relação à efetivação de imagens voltadas para o público infantil na França, é
importante ressaltar que isso não surgiu ao acaso, assim como não resultou de uma só causa.
Primeiramente, para que se produzisse uma literatura para a infância e, conseqüentemente,
ilustrações específicas para esse público, era preciso ter claro a noção de infância.
De acordo com Havelange & Le Men (1988, p.09), a partir do século XVIII, a
preocupação pedagógica iluminista, reforçada pela expulsão dos jesuítas e pela necessidade de
uma reorganização do ensino, impulsionou a produção de livros mais adaptados para o público
infantil. Aos olhos da pedagogia, a criança não era mais considerada uma ‘carga’ e, sim, um
investimento e uma esperança para o futuro, sendo preciso, assim, investir em uma produção de
livros apropriados, atrativos e alegres para esta faixa etária.
As gravuras, contudo, ainda não estavam implantadas de forma definitiva nos manuais
escolares. Hébrard (2001, p.127) ressaltou que os primeiros manuais escolares da França eram
severos e sem ilustrações:

No fim do século XIX, a ilustração se faz mais freqüente: título enfeitado, pequeno desenho ilustrativo
colorido nos maiores, pequenos desenhos geométricos embaixo das páginas (como frisos). Graças ao poder
evocador das imagens, o livro não é mais esse objeto austero que devia ser até então. Ele ensina tanto por
suas representações quanto por seus textos.

Um dos fatores, segundo Parmegiani (1989), que não contribuíram com a instalação das
ilustrações para a criança relacionava-se ao nascimento de uma cultura infantil submetida aos
valores estéticos e pedagógicos da burguesia liberal francesa do século XIX, classe que, por sua
221

vez, cultivava e admirava as manifestações acadêmicas, sobretudo a pintura histórica e de gênero,


identificada como peinture pompier. Até meados do século XIX, a ilustração era
convenientemente reduzida a esses valores, não sofrendo modificação e não se adaptando aos
moldes da natureza do público infantil, pois a seriedade que regia a ordem social vigente não
encorajava a imagem a se infantilizar.
Um outro fator que contribuiu para que não existisse diferença morfológica ou de estilo
entre as imagens destinadas aos adultos e às crianças foi que, durante uma grande parte do século
XIX, a ilustração infantil era feita por artistas que não estabeleciam diferenças de idade entre seu
público. Parmegianni exemplificou isto com a arte de Gustave Doré, que utilizou uma técnica de
desenho comum na obra O Inferno, de Dante (1860) e na obra infantil Pequeno Polegar (1862),
de Charles Perrault. Para essa mesma autora, Doré deveria conhecer mal a psicologia da infância
ou se recusava a tomar conhecimento disso. Os ingleses, mais atentos aos detalhes das ilustrações
direcionadas ao público infantil, contestaram a falta de ilustrações na história do Pequeno
Polegar e questionaram a única imagem feita por Doré, considerada agressiva, na qual o Ogro se
prepara para cortar a garganta de suas próprias crianças.
Esta exigência provinda do povo inglês resultava de um país com um sentimento de
infância mais desenvolvido do que na França, pois os ingleses demonstravam uma exigência em
responder às necessidades da infância, garante a autora.
Hetzel (1814-1886) foi o grande editor de ilustração para crianças na França do século
XIX, sendo suas obras dirigidas ao público infantil e feminino. Consciente de que era o adulto
quem escolhia as obras para o público infantil, Hetzel editou obras direcionadas para a família.
Contudo foi a partir das ilustrações de Eugène Froment, em 1861, na obra “La comedie
enfantine”, que os editores encontram elementos constitutivos para uma representação de infância
mais idealizada. Nessa obra, segundo Parmegiani (1989), surgiram as primeiras inspirações de
que se deveria exigir nos livros destinados para a criança.
Paralelamente a estas iniciativas, as representações inspiradas pela estética romântica e a
pintura pompier continuaram a ser utilizadas nas histórias para crianças. As figuras eram as
mesmas que ilustravam romances, contos, livros de história, obras documentais e outros
materiais. Segundo Perrout (1985), apesar de, no final dos anos trinta do século XIX, a imprensa
infantil e a iconografia serem mais abundantes, elas ainda eram destinadas às famílias. Portanto
nada justificava que suas representações fossem distintas da visão a que nos referimos.
222

O abecedário ilustrado pode ter sido a forma mais antiga de livros ilustrados para o
público infantil. Foi o primeiro contato da criança com a arte através de cada figura que
acompanhava cada letra do alfabeto. Esse tipo de material foi amplamente divulgado na
sociedade francesa do século XIX, um tempo em que a aprendizagem da leitura se fazia não
somente na escola, como também no interior da família. Nesse período, alfabetos de diferentes
tipos foram difundidos, sobretudo pela prática da literatura de colportage210 e também da
l’imagerie populaire. Para Le Men (1984), através dos abecedários, manifestava-se uma cultura
infantil caracterizada pela uma duplicidade: de um lado, a própria infância que se inventava, se
transmitia e se modificava; do outro lado, uma cultura produzida pelo adulto e que impunha à
infância os objetivos da educação e da integração social, através de seus pais e professores.
A partir da segunda metade do século XIX, o papel da imagem, apresentada como um
suporte pedagógico nos manuais escolares foi reforçado pelas preocupações da pedagogia
francesa em manter a atenção da criança, tornando a lição mais simples, agradável e fácil de
compreender através de histórias atrativas e ilustradas. Foi neste contexto que as imagens
adentraram os materiais pedagógicos, provenientes dos catecismos diocesanos. Tratava-se de
imagens de pequeno formato, como eram as dos pequenos catecismos e, posteriormente, surgiram
imagens maiores, que ocupavam mais espaço na página. Os temas perduraram, do século XVI ao
século XX, sem grandes alterações, pois o papel da l’imagerie não era dar uma nova
interpretação para o grande público e, sim, garantir o sucesso já efetivado.
Para esboçar uma noção de como se processavam as imagens no interior do comércio das
tipografias, vamos discorrer sobre as gravuras contidas nos Livros de leitura, usando como
referência uma tipografia de que foram extraídas as gravuras dos dois primeiros livros de Abilio,
a tipografia francesa Laurent et Deberny. Não encontramos dados sobre a história dessa
tipografia, a qual não nos parece ter ocupado um lugar significativo no comércio das imagens na
França211.

210
O colporteur ocupou um papel importante na divulgação dessas imagens na França. Trata-se de vendedores não sedentários,
feirantes sem lugar fixo, que comercializavam imagens e textos em lugares públicos e, eventualmente, se solicitados, iam ao
encontro do cliente. Compravam um grande estoque de imagens de piedade, de abecedários, de temas históricos, temas divertidos,
imagens infantis, canções e outros com o intuito de divertir um público diverso durante os longos invernos. As imagens eram
endereçadas ao povo do campo, porém numerosas pessoas pertencentes à burguesia também colecionavam estas imagens
populares, plenas de simplicidade.
211
Nas citações de Le Men (1984), que registrou os nomes de tipografias que ilustraram os diferentes Abecedários ilustrados
franceses do século XIX (mais de 700), é ausente o nome de Laurent et Deberny. Contudo, ao analisarmos as ilustrações de
alguns manuais franceses para o ensino primário da época, encontramos algumas ilustrações dessa tipografia. Na obra de J. A.
Eugène Gaultié: Cours méthodique de lecture – Avec ou sans épellation. Ouvrage où se trouvent aplanies toutes les difficultés de
la lecture élementaire. (Paris, 1878), há uma ilustração dessa tipografia que aparece no Primeiro livro de Abilio, porém somente
223

Nas obras francesas que abordam a história da iconografia, é constante a alusão da


importância da imprensaria denominada Épinal. Criada em 1796, por Jean-Charles Pellerin, esta
fábrica de imagens, além de utilizar as técnicas de impressão de sua época (gravura em madeira),
recorreu a técnicas modernas. A partir de 1820, reproduziu litogravuras coloridas para tornar as
imagens mais vivas. Épinal viveu seu auge no século XIX, graças à distribuição de imagens
populares divulgadas pelos colporteurs que, de cidade em cidade, levavam o trabalho dessa
imagerie.
A tipografia de imagens de Laurent et Deberny provém da década de trinta do século
XIX. Encontramos na Bibliotèque National de France os seguintes catálogos:

1- Laurent et Deberny. Fonderie de Laurent et Deberny. Epreuves de Caractères. Second Cahier. Paris:
Fonderie de Laurent et Deberny, (imp. De J. Didot L’aîné), Juillet 1832.
2- Spécimens Typographiques. Spécimen des divers types de la Fonderie Laurent et Deberny. Paris (17 Rue
de Marais Saint-Germain): Fonderie de Laurent et Deberny, 1848(?).
3- Spécimens Typographiques. Spécimen des divers types de la Fonderie Laurent et Deberny. Paris (17 Rue
de Marais Saint-Germain): Fonderie de Laurent et Deberny, 1860.
4- Spécimens Typographiques. Spécimen des divers types de la Fonderie Laurent et Deberny. Paris (17 Rue
de Marais Saint-Germain): Fonderie de Laurent et Deberny, 1862 (?).

Estes livros denominados typographiques (tipográficos) continham, além de diferentes


fontes para textos e cartazes, diversas espécies de gravuras, feitas no estilo xilogravura, para
serem apreciadas e escolhidas pelas editoras ou pelos autores. Uma boa parte delas era
identificada nas obras do Dr. Abilio e nos catálogos pela assinatura de Laurent et Deberny.
Entretanto, nas mesmas obras, encontramos outras ilustrações, do mesmo estilo, somente com a
assinatura de Deberny212 e outras sem assinatura alguma.
Ao analisar os alfabetos ilustrados na França oitocentista, Le Men (1984) constatou que a
ausência de noção da propriedade artística era comum, se estendendo também para outros tipos
de imagem e para os textos. Isto podia ser explicado pela extrema raridade de figuras originais.

uma parte da mesma, mostra que as ilustrações eram compostas por partes, podendo seus fragmentos ser utilizados em separado.
Nessa obra destinada para crianças aprenderem a ler, esta é a única ilustração que aparece em 48 páginas. Somente na última
página aparece um friso ornamentado com uma flor para fechar a obra, o que demonstra que as ilustrações não eram abundantes
nos manuais.
212
Ao investigarmos os catálogos de Deberny et Cie, percebemos que os mesmos surgiram a partir do ano 1877 e perduraram até
1911. Contudo as gravuras assinadas somente por Deberny também se fazem presentes nos catálogos de Laurent et Deberny. Os
catálogos de Deberny et Cie (em número de 13) são uma continuidade da primeira tipografia, porém acrescidos de mais páginas.
O fato de a tipografia alterar o nome não era algo estranho para a época. Encontramos situação semelhante na editora que
publicou os Livros de leitura do Dr. Abilio, em Paris. Ns catálogos desta editora, averiguamos que, em 1821, o nome estava
registrado como J.-P. Aillaud, Libraire;em em 1865, a chamada foi alterada para Va J.-P. Aillaud, Guillard e Ca, (o Va
corresponde à viúva de Aillaud que assumiu a empresa após sua morte, conforme indicava a legislação da época); e em 1889:
Aillaud & Cie 1889, éditeurs (Archives Nationales Français: cote F/18/1726, enregistrement *F/18 (I)18, nº 1488.
224

As assinaturas apareciam em gravuras de madeira, mas muitas litogravuras não tinham


assinaturas. A prática de assinar os desenhos começou a se efetivar, sobretudo, a partir dos anos
quarenta do século XIX. Apesar do nome do ilustrador ser ignorado em algumas gravuras, o
nome do editor figurava sempre em bom lugar na página do título, o que se dava em função da
obrigatoriedade das disposições legais na França. Dessa forma, o editor detinha a propriedade
artística e literária da obra, embora o papel reservado para a editora e para os fabricantes de
imagens não fosse algo fácil de distinguir com precisão no século XIX, porque havia realidades
diferentes na redação dos endereços bibliográficos.
Nos catálogos de Laurent et Deberny, a propaganda para incentivar a compra das imagens
era marcada por chamadas do tipo: ‘grande novidade’; ‘belas gravuras’; ‘novos modelos de letras
ornadas’ etc. As gravuras também eram referências para seduzir os compradores dos livros
contidos nos catálogos da editora Va J.-P. Aillaud, Guillard e Ca, sobretudo as obras
direcionadas à infância e à juventude, público para o qual essa editora dedicou uma boa parte de
suas publicações (livros de historietas morais e religiosas, contos de fadas, livros de aventuras
etc.). Encontramos constantes chamadas e comentários como: ‘livrinho ornado com belas
gravuras’; ‘obrinha animada com gravuras para recrear’ e outras chamadas que nos oferecem
pistas de que as gravuras eram elementos importantes na divulgação da obra.
De acordo com Monnerat, Lefranc et Perriault:(1984), na França deste período assistia-se
a um grande desenvolvimento comercial e os grandes editores ou livreiros especializados
rivalizavam, criando artifícios de todas espécies para vender suas obras. Distribuíam pequenos
materiais escolares como canetas, porta-cadernos, mata-borrão e também as «belles images: les
chromolithographies», figuras autocolantes com que as crianças eram presenteadas em ocasiões
como aniversário e outras festas e que colavam nos álbuns.
Desta forma, os catálogos eram instrumentos essenciais para divulgar e vender as
imagens. Devido a isso, as páginas dos catálogos que manuseamos foram cuidadosamente
elaboradas, com detalhes nos cantos das molduras, de forma que as chamadas fossem um atrativo
para os compradores. As primeiras letras que anunciavam os títulos eram trabalhadas em estilo
gótico e cada exemplo era ilustrado com o próprio tema Laurent et Deberny. É visível a estratégia
comercial utilizada para divulgar a tipografia nas páginas desse material, tanto no aspecto visual,
como na organização dos temas.
225

Os temas nos catálogos se dividiam em Types divers, que incluíam diversos tipos de
fontes, letras ornadas para anúncios, filetes, molduras etc.; Attributs, que eram pequenas imagens
dos signos do zodíaco, dos meses etc.; Melanges, que eram figuras de diversos tipos como
famílias, crianças, paisagens, meios de transporte etc.; Medaillles, com diferentes tipos de
medalhas; Piétés, com imagens religiosas como santos, anjos etc.; Emblemas politiques, que
eram armas, bandeiras, soldados e temas históricos da França e Types pour affiches, com letras
para cartazes etc.
A maior parte dos catálogos era dedicada às letras para imprensa primeiramente e depois,
para temas religiosos. Cada ilustração apresentava um preço, que variava de acordo com o
tamanho ou a quantidade (unidade e conjunto). Isto significa que Abilio ou a editora pagou pelas
ilustrações contidas em suas obras, a princípio, reutilizando-as depois em suas outras edições,
pois muitas delas permaneceram em outras edições, já feitas no Brasil.
Como já ressaltamos, uma boa parte desses mostruários era reservada para os modelos de
letras ornadas como anunciava o catálogo: letres initiales, uma novidade do século XIX, bastante
difundida, não só nos materiais para a escola, como também para os romances e catecismos
religiosos. As palavras ilustradas, nomeadas como deux-points ornées recebiam a imagem de
acordo com sua categoria213. Interessante observar que, nesses tipos, a estética da gravura não
permitia que os temas fossem distinguidos com precisão, ou seja, as letras se perdiam no interior
dos desenhos, tornando quase impossível reconhecer a palavra.. Porém não podemos perder de
vista que se tratava de uma novidade para a época e, além do mais, a decoração em torno da letra
nos pareceu mais importante que a própria letra.
Nessa mesma categoria, encontramos uma parte intitulada enfantines (infantis), com
algumas opções de letras ilustradas com motivos de infância. As letras eram decoradas com
crianças nuas, com expressão e corpo de adulto, brincando em torno das letras com ramos de
flores e folhas em volta.
Não havia uma relação da imagem com a letra, ou seja, as figuras não representavam as
letras iniciais, como os alfabetos ilustrados da época, que associavam a letra à imagem, como, por

213
Por exemplo, o título Le Saint-Evangile (O Santo Evangelho) era recoberto por velas acesas, cruz, palmas, sol etc. A palavra
Tableau (quadro de escrever) também sugeria imagens ligadas ao saber, como réguas, compassos, globo, pergaminho, natureza,
lunetas, tinta e outros. A chamada do Banque de Marseill estava bem guardada, delineada por uma figura oval preta com
delicados detalhes em volta. Guide de voyager sugeria traços de lazer e brincadeiras. Harmonies poetiques religieuses era
confeccionada com expressivas letras góticas.
226

exemplo, o Z de zèbre ou o D de Dieu. Havia uma mistura de argumentos religiosos e laicos


nessas imagens e as gravuras não apresentavam muita originalidade.

Figura 25 Bordures

As bordas (bordures), como essa que anexamos acima, eram anunciadas em todos os
cadernos, opção bastante utilizada nos livros da época. Trata-se de bordas que serviam para
‘enfeitar’ capas e textos, dando um ar mais leve e atrativo para a obra. No interior dos catálogos,
elas eram inúmeras e variadas, desde as mais simples, como pequenas linhas onduladas, até as
mais sofisticadas, com ramos de flores e folhas.
Como podemos perceber no exemplo anexado, as figuras se confundiam em meio aos
traços, característica típica deste tipo de ilustração, na qual o mais importante era a idéia de
enfeitar e não de relacionar a ilustração ao texto. Nota-se que os anjinhos que portam livros nas
mãos quase não se destacam, ficando mais perceptível a idéia dos traços que fecham e protegem
títulos e capas.
Este ornamento, sempre na cor preta, ganhou a cor vermelha nos catálogos do final do
século XIX, oferecendo, assim, mais uma opção para o público. O gosto por esse tipo de gravura
foi amplamente adotado nos romances de escritores franceses como Flaubert, Dumas e Zola. No
romance Madeleine de Zola, as artes eram representadas por uma série de imagens que
recontavam a história de Pyrame e Thisbé, enquadradas por finas tiras pretas, como afirmou
Monnerat, Lefranc et Perriault (1979).
227

Figura 26 Filete inglês ornado

Uma outra opção eram os fillets anglais et ornés (filetes inglês e ornado), como
exemplificamos acima. Eram enfeites utilizados para separar, iniciar ou finalizar os textos. Os
catálogos dedicaram boas páginas para esse tipo de ilustração, pois, no século XIX, essa era uma
opção simples, mais barata e, portanto, muito procurada e utilizada.
Encontramos modelos de filetes de todas as espécies, desde os mais simples até os mais
elaborados, sendo que os preços variavam de acordo com os detalhes. Os filetes em lâminas,
riscos finos ou mais espessos que serviam como bordas, diversificavam-se, indo de modelos, com
simples riscos ou pequenas ondulações, até os compostos por pedras preciosas como pérolas,
diamantes ou tiras com flores, folhas etc.
Os livros românticos do período exploravam esse tipo de recurso. Os autores inseriam os
filetes de petite taille nas páginas de seus romances, criando uma imagem romantizada de leveza
e de sonho, evitando, assim, limitar o texto em um enquadramento geométrico e frio. Tanto as
bordas enfeitadas como os filetes ingleses serviram para enfeitar as páginas dos Livros de leitura
de Abilio, embora não em abundância.
Na cessão intitulada Sujets de piété (temas de piedade), encontramos mais de 400 opções
de imagens religiosas que incluíam anjos, crucificação de Cristo, palmas, santa ceia, medalhões
com santos, virgem com menino Jesus, símbolos do papa, raios de luz, céu etc.
228

Figura 27 Página do catálogo de Laurent et Deberny da categoria Pieté (piedade). As gravuras de cunho religioso
ocupam uma boa parte das páginas deste catálogo. (Fonte: Fonderie de Laurent et Deberny, 1860 – Foto BNF)
229

Um tipo de gravura que sempre foi muito solicitado e utilizado para diferentes fins, além
da origem da imagem gravada ser essencialmente religiosa214. A imagem da criança inspirada nos
motivos religiosos foi se modificando para a imagem laica e burguesa de forma progressiva, a
partir do século XV e XVI. Entretanto, no século XIX, encontramos, em várias imagens dos
catálogos pesquisados, traços religiosos. Nesse período, sob a influência da litogravura de massa,
esse tipo de devoção evoluiu em torno de uma imagem piedosa, mais sentimental e que fazia
apelo à emoção.
A iconografia medieval representando a infância é uma fonte muito expressiva para
pesquisas sobre o tema. A abundância de imagens desse período desempenhou um papel
importante ao desvelar a ‘descoberta’ e o ‘reconhecimento’ da infância do homem medieval. Na
França, sobretudo no decorrer das três últimas décadas, ampliaram-se os debates sobre a infância
provinda da iconografia medieval.
A idéia da infância vista como adulto em miniatura foi apontada pelo estudo de Ariès
(1978), que recorreu à iconografia, sobretudo a medieval, para apontar o pouco valor dado à
infância até meados do século XVII, quando a representação da infância, sobretudo a do Menino
Jesus era feita com traços de homens. Para Riché e Alexandre-Bidon (1992), a sociedade
medieval não ignorava a infância e a representação do Menino Jesus como adulto ocorria pelo
fato do mesmo não ser uma criança comum e não ser visto como criança, sendo que suas imagens
representadas como pequenos adultos indicavam a mesma mensagem: “Le Christ est homme et
no enfant.”.
A obra de Ariés impulsionou o interesse de pesquisadores para a temática da infância na
França e em outros países do ocidente, seja para reforçar essa tese ou refutá-la215. Os
historiadores medievalistas, Riché e Alexandre-Bidon, na ocasião da exposição “L’enfance au
Moyen Age”, organizada pela Biblioteca Nacional da França (1989), publicaram uma obra com o
mesmo título (1994), na qual demonstraram, através da iconografia, as diversas faces do
cotidiano da infância ocidental medieval dos séculos VII até o fim do XV, incluindo o papel da
educação religiosa e a imagem da criança na liturgia religiosa. Os autores garantem que a
imagem laica da infância também era comum nesse período, porém imagens como a do Menino

214
A obra Cinq siècles d’imagerie française (1973), que compreende o papel das imagens como propagandas de várias épocas,
enfatiza que, durante os cinco séculos estudados (XIV a XIX), três quartos das imagens conservadas são de intenção religiosa. São
imagens que comemoravam as grandes passagens do Evangelho ou da Bíblia e que disseminavam uma doutrina ou uma devoção.
Sua intenção era evocar uma certa moral, da qual se esperava proteção para os homens e para suas casas.
215
É o caso dos franceses P. Ariès, J. Gelis, P. Riché e D. Alexandre-Bidon.
230

Jesus (com a virgem) em diferentes episódios de sua vida constituíam a maior parte da
iconografia medieval. Outras imagens relacionavam a infância à pureza e aos princípios da
religião. Independente de qualquer discussão é notório também, nas gravuras dos livros de
leitura, que uma boa parte da infância retratada no século XIX não aparentava fisionomia própria,
tendo, freqüentemente aspecto de velhinho.
As imagens de cunho religioso não ficaram restritas ao domínio religioso, foram
divulgadas e ampliadas no campo da instrução. No século XIX, serviram para premiar (a título de
recompensa) as crianças que davam provas de docilidade no interior das escolas francesas, sob a
alegação que as imagens resultadas de episódios da história santa, com reflexões morais, eram as
mais apropriadas para apresentar às crianças exemplos de piedade, de caridade e de docilidade.
Relatórios e decretos indicavam quais tipos de imagens deveriam servir como recompensa.
Em 1885, se modificou a idéia de utilizar as imagens religiosas nas escolas públicas216. O
programa passou a indicar que as imagens deveriam ser simples, contendo figuras de animais, de
objetos pessoais etc.e, sobretudo, que a imagem deveria ser utilizada para explicar a história
nacional. Em 1880, o Ministério da Instrução Pública e de Belas Artes estudou a imagem e as
artes plásticas como meios para a educação, recorrendo ao argumento de que o ensino oral, por
ser abstrato, exigia da criança um esforço maior, enquanto que a aprendizagem através da
imagem, dotada de cores e formas, ajudaria a criança a rever com mais precisão os fatos que lhe
eram revelados, em uma clara relação com a educação do sentido visual, como afirmou Lerch
(2000).
Abilio introduziu algumas imagens religiosas, como constatamos neste trabalho, inserindo
também gravuras laicas, que eram apresentadas às crianças em situações de lazer e de estudo.
Essas imagens foram retiradas da parte do catálogo denominado Melanges (variedades), categoria
em que encontramos um grande número de estampas como recreação, instrução, personagens de
teatro, dançarinas, instrumentos musicais, personagens alegóricos, de sátiras, caricaturas
parisienses, animais que falavam, e também paisagens românticas, sobretudo rurais e de praias,
imagens de famílias, de escolas, de modelos de casas, bebidas (vinho), utensílios barcos.
caravelas etc.

216
Em 1880, as leis de J. Ferry colocaram fim na obrigação da instrução religiosa nos programas escolares. Em 1905, porém, as
leis consagraram a separação entre a Igreja e o Estado. Diante disso, as cúrias organizavam as lições de catecismo na quinta-feira,
dia em que as crianças eram dispensadas da escola. Designado Jour de congé, este dia era dedicado à folga da criança na escola
primária. Ainda hoje esse dia é dedicado ao descanso da criança.
231

Figura 28 Exemplo de uma página do catálogo Laurent et Deberny da categoria mélanges (variedades) do qual
foram retiradas as gravuras que ilustram as lições do Primeiro e Segundo livro de leitura (Fonte Fonderie de Laurent
et Deberny, 1860 – Foto BNF)
232

Nesta mesma categoria (variedades), encontramos outras imagens que se relacionavam


aos temas de inspiração científica. Eram gravuras de balões dirigíveis, pára-quedas, locomotivas,
botânicas, animais, pássaros, cultura do vinho, fabricação de queijos, frutos, flores, indústria,
trabalho na cidade no campo, monumentos, cenas da história, reprodução de obras de arte etc.
Essas imagens, além de terem a intenção de divulgar os progressos trazidos pelos homens da
ciência, procuravam tratar de temas que familiarizassem as crianças e os adolescentes que
freqüentavam as escolas com o mundo do trabalho e das técnicas. De acordo com Chalmel
(2004), nenhuma produção artística escapava por completo à tutela econômica de uma entidade
governante. Dessa forma, a arte também era governada pelo progresso e pelos valores de uma
sociedade em ingresso na era industrial, pois era visível a conotação de progresso nesses modelos
do catálogo.
As imagens científicas, as mesmas da obra Le tour de France de deux enfants, serviram,
no final do século XIX, como objetos de recompensa nas escolas. Citando o Relatório da
Comissão sur l’imagerie scolaire de 1881, Monnerat, Lefranc et Perriault (1979) registraram que
as estampas e as fotografias que tematizavam o mundo científico e do trabalho eram escolhidas
meticulosamente para servirem como prêmio. O mestre deveria, no entanto, ser prudente, pois
uma recompensa imerecida poderia ser comprometedora e injusta.
Foi nestes catálogos que encontramos, não em grande número, as imagens de crianças.
Nos cenários, elas estavam sempre acompanhadas, ora aparecendo com outras crianças,
geralmente do mesmo sexo, ora acompanhadas de adultos como pais ou professor (a).
Para Ariès (1978, p.55-56), a iconografia leiga que representava somente crianças remonta
do século XVII. O mesmo autor, todavia, alertou que ainda não se tratava de descrição exclusiva
da infância, pois, muitas vezes, as crianças não eram protagonistas e, sim, personagens
secundárias. A partir do século XIX surgiu, na iconografia, a tendência de separar o mundo das
crianças e dos adultos, anunciando o sentimento moderno da infância.
Essa divisão concreta entre o mundo infantil e o mundo do adulto apresentada na
iconografia que investigamos, nos deu a impressão de uma representação real e descritiva da
época. Contudo não podemos explorá-las separadamente do contexto social de sua época, na qual
essas imagens eram (e são ainda) instrumentos poderosos para comunicar mensagens, sendo
preciso um olhar atento e cuidadoso para perceber os múltiplos papéis invocados pela
iconografia.
233

É interessante observar como os catálogos mantiveram as mesmas imagens durante quase


um século, tendo sido mínimas as alterações sofridas no que se refere aos traços e temas. Sofreu
modificações apenas a introdução de algumas cores, tendo surgido, também, mais opções de
imagens no interior dos temas. É importante destacar que os catálogos de Laurent et Deberny,
não continham imagens exclusivas para o uso escolar, as gravuras eram endereçadas para um
público diverso. A intenção era de abarcar diferentes setores, como comércio, indústria,
exposições internacionais, materiais religiosos, cívicos e outros. Além disso, as imagens eram
utilizadas na literatura geral.
As gravuras contidas nos livros de leitura de Abilio, retiradas dos catálogos Laurent et
Deberny, não eram abundantes e nem variadas, devido ao preço e às poucas opções que existiam.
Muitas delas se repetiam no Primeiro e Segundo livro, sendo que, no Terceiro livro, elas se
diferenciavam pelo fato da obra ser destinada a crianças maiores.
A primeira edição do Primeiro livro de leitura tinha 56 páginas e seis ilustrações,
contando com a capa. O Segundo livro tinha 116 páginas e oito ilustrações, não sendo a capa
ilustrada. Ambos apresentam o formato 17,5 x 11,0217. O fato de Abilio ter buscado as ilustrações
de suas obras fora do Brasil justificava-se pelo fato de ter publicado seus livros na França.
Contudo isso trazia também uma vantagem econômica, pois, segundo Hallewell (1985), os
trabalhos tipográficos no Brasil eram mais caros que os da Europa e os que exigiam serviços de
ilustrações poderiam custar três vezes mais218.
Normalmente, o editor era responsável pela escolha das gravuras inseridas nos livros,
contudo percebemos que Abilio pode ter escolhido as imagens de suas obras e se não foi o autor
que as escolheu, sem dúvida alguma, ele elaborou os textos a partir das imagens. Em uma boa
parte das lições ilustradas, o texto está associado à gravura de forma integral, mesmo que alguns
detalhes não correspondam de forma rígida a representação da imagem ao texto permaneceu
associada.

217
De acordo com Wallevell (1985), havia dois formatos de livro: o in-oitavo ( 16,5x 10,5 centímetros) e ' longo in-doze’
(17,5x11,0), o mais utilizado, que era também formato dos livros de Abilio. Os ‘longo in-doze’ eram conhecidos por formato
francês e foram introduzidos no Brasil por Garnier, se ajustando ao mercado de livros durante 60 anos ou mais.
218
O mesmo autor informou que, ao se instalar no Rio de Janeiro, em 1832, a firma suíça de Leuzinger teve importante
participação no desenvolvimento da xilogravura no Brasil. Na década de quarenta, trouxe dois talentosos gravadores da Alemanha
e, apesar de um deles ter morrido na epidemia de febre amarela e o outro ter voltado para a Europa em 1850, ficaram aqui
aprendizes bem treinados. Atribui-se a Leuzinger a introdução de cartões ilustrados no Brasil.
234

3.5 Infância e escola: Nobre e ilustrada é a ambição que tem por objeto a sabedoria e a virtude

“Tenho gosto particular em ver-me rodeado da infância.


Isso mesmo que a muita gente cause enfado.
Amo profundamente os meninos,
quando eles são doceis, applicados e dignos”.
(Abilio Cesar Borges)219

Ao explicitar sua dedicação para com a infância, Abilio, o ‘amigo dos meninos’, não
deixava de enfatizar que este amor estava restrito a um tipo de infância: a dócil, aplicada e digna.
Não poupou, esforços na tentativa de formar esta infância no ‘edifício’ de maior valor, social e
moral, que era a instrução, a qual, aliada à educação familiar, promoveria e ressaltaria o talento
individual de cada criança, garantindo, assim, um bom futuro para os pequeninos.
Abilio, a exemplo de outros educadores do período, desenvolvia uma pedagogia de cunho
preventivo, cujo alvo era a criança pela sua própria característica tida como ‘maleável’, se
diferenciando a população adulta, miscigenada e portadora de maus hábitos, da candura da
infância. O tão desejado progresso da civilização só poderia ser efetivado se viesse acompanhado
do esforço da moral e da religião e a escola, colocada no papel de redentora da humanidade e
salvadora dos males da ignorância, era o ambiente propício para esta realização. Investir na
infância, seja ela pobre ou rica, era o modo ideal para atingir os valores morais necessários para
se chegar a uma sociedade civilizada.
A escola, aos olhos de Abilio, era o melhor investimento que os pais poderiam fazer para
garantir um futuro harmonioso aos filhos. Neste ambiente, o objetivo era ‘esclarecer a
inteligência’, ‘formar o coração’ dos ‘futuros cidadãos’ e ‘futuras esperanças da pátria’,
contribuindo para que se constituísse, assim, uma geração inteligente, cheia de dignidade e de
energia para o Brasil ser grande e poderoso. Dessa maneira, Abilio justificava que, quanto antes a
criança adentrasse o ambiente escolar, melhor seria sua formação, pois neste ambiente saudável e
louvável ela teria normas coletivas e aprenderia a se portar de forma disciplinada e dócil.
A educação doméstica era vista por alguns educadores, neste período, com desconfiança,
seja por causa dos vícios gerados pela convivência das crianças com escravos e outros que faziam
parte da ‘parcela de ignorantes’, seja pela ausência dos sentimentos religiosos. Para Abilio,
somente a educação doméstica não era suficiente, pois, no colégio, a criança seria corrigida pelas

219
Discurso proferido no Ginásio Baiano, em 1860 (In: Discursos,1866:p.43)
235

lições dos superiores e companheiros, preparando o espírito para a diversidade da vida em


sociedade. Daí sua insistência para que não somente os primogênitos, mas também todas as
crianças em idade escolar freqüentassem os colégios. A índole infantil deveria ser observada
desde cedo, não tanto para abrir caminhos para a profissão, quanto para que as crianças
aprendessem se comportar em sociedade.
Os bons livros e os mestres bem preparados contribuiriam com a formação através de
bons exemplos, orientando, incentivando e promovendo momentos em que a criança pudesse
desenvolver suas aptidões. Essa postura o diferenciava dos conservadores católicos que atribuíam
a tarefa do ensino elementar à família e à igreja.
Para Abilio, a criança não era portadora do mal, contudo era alvo fácil dele e somente
uma pedagogia moralista poderia conter seus maus instintos e sua ameaçadora espontaneidade.
Era uma de suas tarefas desmistificar a idéia já formada da maldade nata da infância. Desta
forma, caberia à criança comprovar que ‘não era tão má’ e os critérios para demonstrá-lo estavam
postos nas lições dos livros. No prefácio de seu Segundo livro, ressaltou:

Si se quer melhorar um povo, regeneral-o, ou aperfeiçoal-o, o unico meio de o conseguir consiste em dar à
infancia do povo, em livrinhos ao nivel de suas forças intellectuaes, as sans doctrinas da moral e da religião,
da razão, da virtude, e da ordem: e é so na eschola que isto se pode fazer, e sob a direcção de mestres dignos
de tão grande tarefa (1866b, p.11).

Assim, através das lições e das ilustrações, prescreveu um sistema de comportamento


sociável para seus pequenos leitores, ensinando-os a serem polidos, educados, dóceis, obedientes
e, sobretudo, a amarem os estudos. As histórias e as gravuras dos livros de leitura também se
referiam ao ambiente escolar e os argumentos para convencer a criança da importância da
instrução eram contundentes.
Essa gravura (Figura 29) que decora a capa do Primeiro livro de leitura (e também a
contracapa do Segundo livro de leitura), tinha o papel de atrair a atenção da criança para o que
Abilio considerava essencial: a escola primária. Apresenta um quadro que é uma mistura de
ambiente escolar e ambiente doméstico. O tamanho reduzido da sala pouco lembra um ambiente
escolar, aproximando-se muito mais de uma sala doméstica. Elementos como cortinas e quadros
contribuem para essa proximidade, contudo o banco no qual estão sentados três meninos, a
exemplo do tinteiro com uma caneta completa a ilustração do cenário tipicamente escolar.
236

Figura 29 Meninos em sala de aula

O tema é ensino e aprendizagem e o mestre, magistralmente sentado, aguarda um aluno,


que está a sua frente, recitar sua lição com uma varinha na mão, enquanto os outros o observam
atentamente. O reduzido número de alunos (dez ao todo), é também é um indicativo de que pode
ser a sala de um curso privado, pois eles estão próximos uns dos outros. Pouco se assemelha ao
ambiente de uma sala grande com um número maior de discípulos. Trata-se de uma ilustração de
gênero, uma escola para meninos, distribuídos de forma harmônica e organizada. As crianças não
portam uniformes e, pela estatura, parecem pertencer ao ensino primário. Talvez por isto esta
imagem tenha inaugurado a primeira obra de Abilio destinada a esse público. Meninos sentados,
atentos, comportados e um mestre com autoridade. São representações do ideal, pensado e
defendido pelo autor, de instrução da infância brasileira.
Os colégios de Abilio eram direcionados ao sexo masculino, porém seus livros se dirigiam
ao público infantil de ambos os sexos, sendo as meninas também representadas nas lições e nas
gravuras. A imagem que anexamos abaixo (figura 30) está na contra capa do Segundo livro
(1866)220.Trata-se de uma menina folheando um grande livro, ao lado de dois meninos que,
compenetrados, a observam.

220
Esta ilustração foi amplamente utilizada por Abilio em outras edições do 1o e 2o livros. A partir da 3a edição (1874), foi
inserida na contra-capa do Primeiro livro.
237

A obra grande nada mais é que um álbum de imagens (Les albuns chromolithographies)
aberto (no qual aparece um pedaço de uma imagem), pousado em cima de uma mesa, talhada
finamente, lembrando que a cena acontece no interior da casa das crianças. A produção deste tipo
de material na França do século XIX tinha por finalidade despertar o interesse das crianças que

Figura 30 Menina com livro

ainda não dominavam a leitura. Eram obras caras, de tiragem limitada e reservadas a uma classe
social abastada. Confeccionados em grandes pranchas com pequenos textos, os álbuns de
imagens foram difundidos, sobretudo, no período do romantismo.
A técnica das gravuras era a litogravura com uma ilustração enriquecida por uma técnica
semelhante ao desenho de bico de pena, colorida com lápis ou pincéis que revelavam muito mais
uma criação artística do que uma ilustração propriamente dita. Por esta razão, segundo Le Men
(1984), eram preferidos os grandes formatos. Esse material, caro como já ressaltamos, além de
auxiliar as crianças que ainda não freqüentavam as escolas (em função da idade) a se
familiarizarem com as palavras através das ricas gravuras, também tinha a função de repassar
lições de moralidade e ensinar as crianças a adquirirem conceitos de ‘viver bem’.
De acordo com Monnerat, Lefranc et Perriault (1979), para apreciar o justo valor desses
álbuns, é preciso compreender o ambiente da infância da elite francesa no século XIX. As
238

crianças, normalmente, ficavam em seus domicílios nas quintas-feiras (Jour de congé) e, além
dos jogos tradicionais, distraíam-se com esses álbuns. Através das imagens diversas, os pequenos
faziam momentos de trocas, comentando e criando novas histórias, de modo que a criança ia,
pouco a pouco, se inteirando de novos conhecimentos. As gravuras tratavam de contar e
comentar cenas conhecidas com frases do tipo: “Aqui está uma pequena menina que chora
porque sua mamãe quer lhe lavar o rosto, isto não é bom, porque ninguém vai mais querer
abraçá-la”221. A criança conhecia todas as imagens, porém, a cada dia que re-folheava o álbum,
encontrava um outro detalhe interessante, pois lia as imagens antes de saber ler as letras. A
gravura da menina folheando o álbum foi inserida como um anúncio que pretendia ressaltar o
quanto era belo uma criança (comportada) folhear um livro. O autor era da opinião de que
somente os bons exemplos deveriam ser postos para a criança, o que funcionava como uma
espécie de espelho e dava bons resultados, a exemplo das duas imagens que analisamos.

Figura 31 Meninas brincando

Nas lições, o autor continua mantendo o firme propósito de apresentar situações nas quais
as se valorizavam as virtudes. O cumprimento dos deveres, ou seja, a realização das tarefas

221
«Voici une petite fille qui pleure parce que maman veut lui laver la figure, ce n’est pas bein, personne ne voudra plus
l’embrasser ».
239

designadas pela escola era o tema das duas primeiras lições no Primeiro livro222. A primeira, uma
lição de gênero, recebeu a ilustração acima (Figura 31), na qual o tema se desenvolve a partir de
uma imagem na qual três meninas brincam de pular corda em um ambiente rural e bucólico,
tendo ao fundo uma casa semelhante a uma casa de campo, tudo calmo como ‘deveria ser’ a vida
de uma criança. As meninas, em momento de lazer são as que souberam bem as lições, portanto a
mestra lhes permitiu, como recompensa, que brincassem.
A gravura retrata um ambiente externo o qual, de forma ambígua, se insere no texto. A
ambigüidade decorre do fato de que o texto aponta um momento de recreio escolar, embora a
imagem se aproxime muito mais de um cenário bucólico rural. A paz do campo, a inocência e as
virtudes, em contraste com a idéia de barulho, a mundanidade e a ambição delegadas à cidade se
cristalizaram no imaginário popular. A relação da paisagem rural e bucólica era freqüentemente
associada à infância, sobre isso, observou Williams (1989, p.194): “A associação entre felicidade
e infância deu origem a toda uma convenção, na qual não apenas a inocência e segurança, mas
também a abundância, foram incorporadas, de modo indelével, primeiro à paisagem, a um
período especifico do passado com o campo”.
Os galhos das árvores demarcavam o cenário, formando quase um quadrado, sem ser, no
entanto, algo fechado ou delimitado. Para vários ilustradores da época, a infância deveria ocupar
um espaço privilegiado, por isso, constantemente, encontramos limites nas gravuras, marcados
por barreiras enfeitadas. Os motivos eram variados, incluindo, desde os galhos, como na nossa
gravura, a florais, guirlandas, frisos, tecidos ornamentais, entrelaces de caligrafias e outros. Desta
forma, a cena, apesar da plena harmonia, tem uma nítida intenção de indicar as fronteiras de um
domínio proibido. Esse tipo de imagem não se constituía como uma representação da realidade e,
sim, como um sistema simbólico, dissimulado e conveniente223.
O tipo de vestimenta das meninas de tom europeu era adotado pela elite brasileira do
século XIX. Os vestidos compridos cobriam os corpinhos das meninas e os meninos vestiam
terninhos, sendo-lhes cobrado um comportamento de adulto, imposto pelo traje que envergava.

222
Interessante observar que das oito lições do Primeiro livro, todas sem título, três se referem ao tema de escola e tarefa,
enquanto as outras abordam temas como utilidade dos órgãos dos sentidos, animais domésticos (cachorro), tipos de casas e noção
de tempo (dias, horas, meses). Havia assim uma preocupação de, além de incutir os valores morais e religiosos, situar a criança no
tempo, no espaço com algumas noções de lições de coisas.
223
Importante registrar que esse tipo de imagem foi transferido para os livros didáticos do Brasil, enfeitando as lições durante
muito tempo. As gravuras importadas também serviram para ilustrar os calendários que figuravam nas paredes das casas
brasileiras, até meados do século XX.
240

Freyre descreveu a ‘reeuropeização’ que assolou o país no século XIX, tornando as crianças,
sobretudo as meninas, verdadeiras ‘martirezinhos’ da moda européia:

Os figurinos dos meados do século XIX vêm cheios de modelos de vestidos para meninas de cinco, sete,
nove anos, que eram quase camisinhas-de-força feitas de seda, de tafetá, ou de “poil de chévre”. Meninas
que já tinham de usar duas, três saias, por cima das calçolas, as de baixo bordadas com “ponto de espinhos”
e guarnecidas com franja Tom-Pouce. Ou então três saias guarnecidas com três ordens de fofos. E não é só
de excesso de saias: gorra de veludo preto. Botinas de pelica preta até o alto da perna. Penas de perdiz
enfeitando a gorra (1977, p.315).

De nada adiantavam os conselhos dos médicos de que as crianças de um país tropical não
podiam ser criadas como as européias. Os pais consideravam os conselhos dos médicos
‘esquisitos’ e continuavam vestindo seus filhos como ‘inglesinhos’ ou ‘francesinhos’, não se
importando que os pobres sofressem de brotoejas ou assaduras. 224
Há outras duas meninas que, supostamente, não aparecem na ilustração porque ficaram
‘presas’, expressão utilizada para designar ‘castigo’. A primeira, Joanna, porque não sabia a
lição, a segunda, Isabel, definida como uma ‘menina vadia’, porque meteu o dedo no tinteiro e
passou no nariz da Justina. As vantagens para quem soube as lições é, além de poder brincar,
ainda ser é digna de receber o amor de todos, sobretudo da mestra e de Deus que jamais amariam
quem tem um coração mau.
Mais uma vez, deparamos-nos com atitudes evidentes da fragilidade infantil e do
sentimento da responsabilidade moral de um adulto. No caso, a mestra, que não hesitou em
corrigir e punir as duas que infringiram as normas. A espontaneidade e a natureza infantil, tão
apreciadas por Abilio nos discursos, não encontraram respaldo nesta lição, evidentemente pelo
fato de uma delas não saber a lição, assim como a peraltice da outra menina foi reprimida pela
mestra.
Abilio investia em uma suposta idéia de liberdade da criança, tendo como princípio a
natureza. Contudo a idéia da natureza defendida pelo autor neste período, em nada se aproximava
da idéia defendida por Rousseau225, que acreditava na pureza da criança e na necessidade dela ser
orientada pela natureza. Abílio destacava, de forma considerável, os ‘defeitosinhos’ da idade e a
necessidade da orientação de pais e professores para que a alma infantil não se desviasse para o

224
Mauad (1999), referindo-se ao figurino contido na revista Novo Correio das Modas, de 1854, registrou a moda de inverno em
um rinque de patinação de gelo, onde a s crianças trajavam capas e cachecóis, além dos patins de gelo. Modelo completamente
inadequado para o Brasil.
225
Rousseau, não é citado em nenhum momento por Abilio.
241

mal. Seguia desta forma, os princípios defendidos pelo francês Barrau (1852), de acordo com os
quais a infância deveria ser criada com liberdade, embora a criança com plena possessão de
liberdade fosse a ‘mais miserável de todas os seres’, pois sua felicidade consistia não no uso, mas
no bom uso da liberdade.
Barrau (1852, p.105), criticava Rousseau, lembrando que Emilio tornou-se sua vítima por
ter dispensado a obediência, além do que teria que ter uma população inteira a serviço de seu
preceptor, era filho de um homem rico, habitava um palácio, mas não tinha amigos etc. Para
Barrau, a educação sem autoridade era inviável e aproveitou para tecer mais criticas ‘aos
copistas’ de Rousseau, sobretudo na Alemanha: “os socialistas de hoje que impõe a família e a
sociedade o dever de respeitar e favorecer as crianças mesmo diante de suas falhas”.
Esta era uma posição semelhante a dos católicos liberais italianos dos oitocentos, autores
que, segundo Cambi (1999), tentavam fazer uma fusão entre cristianismo e liberalismo, embora
permanecessem ancorados numa concepção antropológica do tipo religioso. O problema central
era a relação entre autoridade e liberdade, para a qual procuravam uma solução intermediária e de
compromisso que, muitas vezes, se tornava frágil226.
A gravura da 24a lição do Segundo livro (Figura 32), mostra um padre sentado, trajando
uma batina majestosa, com um livro aberto nas mãos. Ele parece interrogar o menino que está a
sua frente, enquanto outro menino, colocado na lateral, observa a cena227. Na lição, o padre
mestre repreende o Gustavo, que não soube a lição. Gustavo é definido como um menino ‘sem
vergonha’, ‘peralta’ e ‘vaidoso’, que só queria saber de andar bem arrumado. O menino rico,
segundo o texto, era digno de pena, pois de nada adiantava ser rico, se não tinha ‘brio’ e
entristecia seus pais por ser tão ruim. O texto alerta ainda que se este não soubesse a lição no dia
seguinte, teria que ficar preso. A figura do adulto é imponente e ocupa maior espaço no centro da
ilustração. O ambiente não apresenta muitos dados que nos permitam discorrer sobre o contexto,
porém a cena se aproxima de um ambiente religioso ou de uma escola religiosa. O padre mestre
tem uma expressão zangada, enquanto que o ‘acusado’ não aparenta muita preocupação.

226
Cambi (1999: p.459) exemplificou essa prática com Capponi, que tecia criticas ao naturalismo de Rousseau que, segundo ele,
simulava uma educação impossível e um menino impossível, com uma pedagogia abstrata, definindo Emilio assim: “Aquele
menino gorducho e insípido, sem índole nem engenho próprio, como Rousseau quer deliberadamente representá-lo e o conseguiu
otimamente, comuníssimo, verdadeiro bípede da espinha ereta, mas sem que o sopro de Deus o tenha penetrado, e sem que o
diabo tenha lhe sugerido nada... meninos como esses eu jamais conheci, embora conheça piores. Acrescente que Emilio não tem
pai, nem mãe, nem família, nem cidade, nem estado; e não sabe de que religião seja, em que mundo vive, em qual se preparar para
viver.”
227
Essa imagem, apesar de retratar um padre, está na categoria de mélanges, provavelmente porque ele está na sua função de
mestre e não rezando nenhuma missa.
242

Figura 32 Padre mestre e meninos

Neste episódio, Abilio utilizava o recurso da ilustração para verbalizar mais uma lição de
moral. A referência era a vestimenta do menino que só sabia andar bem vestido, bem penteado e
não gostava de estudar. De fato, a roupa do Gustavo lembra a de um delfim, embora se destaque
na cena o papel que ocupa o adulto, ou seja, o padre mestre. Ele é representado como a imagem
de Cristo, tendo em volta os aprendizes aos quais ensina as verdades incontestáveis.
Desenvolveu-se nesta imagem o tema do papel social do adulto na sua função de repassar os
ensinamentos. Na pedagogia cristã, essas representações necessitavam desses espaços para
mediatizar a construção do saber. Para Perrot:

O fascínio pela emoção figurada, herança do romantismo, provoca efeitos fáceis, cujo objetivo é suscitar a
efusão sentimental. No campo da infância figurada, este comportamento se transforma em atitude protetora
e maternal: são vários os personagens adultos representados como um santo ou uma virgem em toda sua
majestade, acolhendo aos pequenos no seu manto. Em todo caso, estes sinais garantem um suplemento que
se vende bem, e os editores, até mesmo os laicos, buscam atrair uma clientela tranqüilizada pelo caráter
sublime de uma imageria bem pensante (1991: p. 128/129)228.

228
“La fascination pour l’émotion figurée, héritée du romantisme, provoque des effets faciles, destinés à susciter l’éffusion
sentimentale. Dans le domaine de l’enfance figurée, ce comportament se transforme en attitude protetrice et maternant : nombreux
sont les personagens adultes que l’on voit dans la situation d’un saint ou d’une vierge en majesté accueillant les petits dans les plis
243

A lição combatia o orgulho e a vaidade ao se referir às roupas do menino ‘rico’,


reforçando que isso não valia nada se a criança não tivesse as virtudes postas. Para Ago (1996), o
apelo à modéstia não era algo original, pois tal exortação se constituía uma das passagens
obrigatórias dos tratados de pedagogia, que deveriam servir como antídoto para um dos vícios
mais condenáveis, até mesmo entre os nobres europeus: o orgulho. Apesar de católicos e
protestantes partirem de pressupostos diversos quanto à índole natural da criança,
compartilhavam de pensamentos semelhantes a este respeito. A obstinação e a firmeza de ânimo,
originadas pelo orgulho natural e presentes na criança, deveriam ser dobradas e vencidas em
primeiro lugar. A modéstia convinha, sobretudo, aos rapazes nobres. Para Ago, a adoção efetiva
desta recomendação não se preocupava somente com o aspecto moral do problema, parecendo
que a oportunidade social de um comportamento modesto prevalecia nitidamente sobre as
questões éticas.
Uma outra gravura que também nos transporta as atitudes protetoras inspiradas nas figuras
tutelares da iconografia religiosa é esta que ilustra a 26ª lição do Primeiro livro (Figura 33). A
gravura apresenta uma mulher, com ar maternal, que ensina a lição para uma menina pequena,
estando ao lado desta um menino, sentado com um livro aberto sobre as pernas, dando a lição
continuidade ao tema do cumprimento dos deveres.

Figura 33 Mestra ensinando crianças

de leur manteau. Dans tous les cas, ces signes sont garants d’une supplément d’âme qui se vend bien, et les éditeurs, même
laïques, cherchent à capter une clièntele rassurée par le caractère sublime d’une imagerie bien-pensant.”
244

Desta vez, um casal de crianças protagoniza a história. Pedrinho e Mariquinha não foram
brincar, pois não sabiam a lição e novamente a mestra é a responsável em tomar-lhes a lição e
não liberá-los enquanto não souberem as mesmas. Prontificada a ameaça, o autor volta a dialogar
com seu leitor: “Os mestres não podem querer bem aos discipulos que nunca estudam suas
lecções.” Punição ou recompensa, antíteses no caso, são postas novamente como se a criança
pudesse optar livremente por uma delas. Abilio, apesar de apostar na educação amorável e alegre,
não deixava de afirmar que: “Não desconheço, nem dissimulo os sacrificios que faz um menino
sem esquecer dos brincos para seriamente applicar-se aos estudos; mas devo igualmente
certificar-vos de que, para se alcançar as doçuras da vida, não há outro caminho sinao o dos
sacrificos” (1866c, p.149).
Era na infância que se adquiriam os bons hábitos do estudo e do trabalho, sendo sacrifício
de deixar de brincar recompensado mais tarde, pois, se nessa fase não fosse praticado o hábitosdo
estudo, do trabalho regular e da prática do bem, não seria possível adquiri-los mais tarde e quem
não conseguisse sair da mediocridade nas aulas viveria, na vida social, também na eterna
mediocridade. Daí a importância da criança deixar os brincos e investir no ‘seu futuro’, garantia
Abilio.
Apesar do papel dos pais ser valorizado, nota-se que havia uma transferência de poder
quando a criança adentrava o mundo escolar, pois instruir estava delegado aos mestres, os
responsáveis pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento das faculdades intelectuais e morais das
crianças. Fazer as lições era uma condição para que a criança estivesse inserida no mundo da
instrução, por cuja efetivação os adultos eram os responsáveis, nem que fosse necessário recorrer
à aplicação de penas.
Da mesma forma que na gravura anterior, o ambiente da cena é externo, contudo a lição
referenda o espaço como o de uma escola. As personagens se encontram embaixo de uma árvore,
que fecha o cenário com sua copa, formando uma moldura que parece proteger a família. A
fisionomia de certa ingenuidade das crianças é um sinal particular, pois uma bela visagem
certifica uma bela alma. Esta idealização está impressa no ar angelical que se materializa e se
reforça com a presença de figuras tutelares, como a força protetora da professora reforçando a
reserva da infância desprotegida.
A figura da mulher era relacionada à da mestra que não poderia querer bem aos
discípulos que não sabiam suas lições. Porém nos parece muito mais próxima a idéia dos
245

primeiros ensinamentos dados pela mãe em um ambiente doméstico, pois as crianças pequenas
não aparentam ter idade para freqüentarem a escola. A imagem também pode ser relacionada à
idéia da preceptora, professora particular de crianças de famílias abastadas, algo muito comum na
França do século XIX.
As mães, nessas imagens, eram sempre representadas com poses majestosas, porém com
graciosidade e serenidade, pureza e piedade, características que, ‘naturalmente’, deveriam
compor seu papel. Tratava-se de um tipo de gravura no qual se desenvolvia a representação da
mulher, da mãe de família consoladora que se remete a Deus diante dos ‘maus da terra’. A
mulher, como mestra, era ressaltada na lição, papel que já havia sido redimensionado neste
período, passando da esfera familiar à pública, na escola, sob a crença de que o papel de
educadora era a extensão da ação materna, sobretudo para atuar no Jardim da infância, como já
haviam proclamado Froebel e Pestallozi.
No Segundo livro, as lições passaram a ter títulos, os temas eram mais variados e os textos
se tornaram mais extensos. A escola continuou sendo merecedora de espaço e os personagens
passaram a cometer ou, ao menos, a tentar cometer atos mais graves. Notamos que esta
‘evolução’ condizia com o crescimento da criança, pois quanto maior a faixa etária, mais atenção,
vigilância e conselhos eram necessários.
Na lição intitulada “Henrique, Pedro e Joaquim”, os personagens eram três meninos de
um colégio interno. Henrique, o talentoso, aplicado e estimado pelos mestres, recebeu de sua mãe
um bolo inglês, que devorou imediatamente. Devido a esta atitude, Henrique adoeceu e o médico
receitou-lhe um remédio muito amargoso e, além, disso, ele não recebeu mais nada da mãe:
“Dahi por diante ficou elle no collegio com o apelido de Comillão.” Pedro, o econômico,229
ganhou um pudim grande e, refletindo acerca da conseqüência funesta de seu colega, resolveu
comer o pudim devagar. Trancou a guloseima em seu baú e foi comendo aos poucos, não
dividindo-o, porém, com seus amigos. Então, os ratos comeram o pudim e ele teve que jogar fora
o doce: “O caso foi sabido no collegio; e todos cassuaram muito d’aquelle pobre menino, que
d’alli por diante ficou sendo chamado Pedro o Ridiculo.” Joaquim era um bom menino, todos no
colégio o estimavam muito. Recebeu da mãe, doces e uma porção de biscoitos, que dividiu com
todos, guardando um pouco para o dia seguinte. Entretanto, ao avistar um velho mendigo com

229
O menino foi recompensado também por ter escrito uma carta sem ‘borrão’ para sua mãe É importante ressaltar que o
aprendizado da escrita incluía um repertório complexo de gestos e posturas. Era preciso saber manter o corpo a boa distância da
folha, posicionando os braços corretamente sobre a mesa, segurando de maneira adequada a pena etc. (Chartier, 1991: p.116
246

fome, não teve dúvida, deu os biscoitos que restavam ao pobre velho, que agradeceu comovido,
dizendo que Deus havia de recompensá-lo trazendo-lhe felicidade. O menino ficou mais satisfeito
do que se tivesse comido os biscoitos: “Então os collegas de Joaquim concordaram em dar-lhe o
titulo de caridoso: assim ninguem mais o chamou sinão Joaquim o Caridoso.”.
A moral fecha a lição indagando: “Agora, meus amigos, dizei-me qual d’estes tres
meninos era o melhor? Henrique, Pedro ou Joaquim?”. A lição conduz a criança a optar entre as
três histórias, levando-a a exprimir seu sentimento de justiça. Os defeitos como ser comilão,
egoísta e mesquinho contrastam com a virtude voluntária do menino caridoso. Este episódio
demonstra que até mesmo os bons meninos estavam sujeitos à tentação dos pecados.
Cada um, com seus defeitos e qualidades, foi mensurado pela história na qual o último
menino era o único seguramente decidido a optar pelo bem. Os que cometeram falhas foram
punidos com doença, remédio amargoso, perda das guloseimas, vergonha, culpa e com o castigo
dos próprios colegas, que lhes imputaram apelidos pejorativos e zombarias, excitando o vexame e
a exposição. Por outro lado, a dupla boa ação do último foi coroada por um final feliz que incluiu,
além da satisfação pessoal, o apelido virtuoso e reluzente de ‘caridoso’.
O uso de situações e de personagens aparentemente comuns nos internatos foi a tática
usada pelo autor para repassar as virtudes que distinguiam o bem do mal e eram consideradas
úteis para a consciência moral da criança. Como pudemos perceber, diferentemente dos meninos
anteriores que haviam recebido punição por não se adequarem às normas, nessa história, o
castigo não foi aplicado pelo adulto, porém a punição veio em conseqüência da ‘própria escolha’
que os dois primeiros fizeram, da mesma forma que a recompensa para o último.
Através destes exemplos, foi possível perceber o controle acionado pelo autor para
prevenir atitudes conhecidas como ‘paixões’, a exemplo da gula e do egoísmo. Esse controle, que
tinha a intenção prevenir o aparecimento dos vícios e Abilio, ao alertar para os perigos que
rondavam os mais inexperientes, prescrevia os meios para protegê-los.
Desta forma, o colégio, uma representação com múltiplas funções, era o lugar onde não se
deveria ensinar somente a ciência, mas também cultivar os bons costumes, fornecendo exemplos
de como isso se daria na prática.
247

3.6 Infância e cumprimento dos deveres: A pobreza e a preguiça andam sempre em


companhia

Ensinar a criança a ser laboriosa, a honrar o trabalho e a desprezar a desonestidade, a


ociosidade, a preguiça e a vadiagem também compunha o ideal de uma boa educação. Para
Abilio, o trabalho com ordem e disciplina deveria ser um hábito incentivado desde tenra idade,
independentemente da classe social. A vadiagem, para o autor, era um dos piores vícios, devendo
os meninos ricos adquirirem a ordem disciplinar e o hábito salutar do trabalho, pois de nada
adiantava a criança ter uma bela aparência e boas vestimentas se a criança fosse vadia e
preguiçosa.
Somente adquirindo disciplina, a criança rica poderia, mais tarde, administrar seus bens de
forma ordenada e correta. Para tanto, Abilio dava exemplos de famílias ricas que haviam perdido
sua fortuna pela falta de disciplina e valorização do trabalho. Não podemos deixar de salientar
que, no século XIX, sobretudo nas últimas décadas, intensificaram-se os debates em torno da
criança abandonada e delinqüente que fazia das ruas seus espaços e incomodava os ‘bem
nascidos’. A vadiagem que correspondia a brincadeiras, jogos e divertimentos de rua praticados
pelos não bem nascidos tendia a ser estigmatizada e identificada como vício da vadiação. Esta
prática tinha que ser combatida para incentivar e acentuar a moral do trabalho.
Segundo o autor, trabalhar era obedecer a Deus, obtendo, assim, a felicidade almejada,
como registrou, em 1860, em seu discurso: “Feliz pois, dizia M. Thery, feliz aquele que acha em
seus primeiros annos o habito do trabalho. O trabalho submetido a regras e habilmente variado,
muda-se um habito feliz, o amor-proprio presta encanto ao trabalho” (1866c, p.75).
A defesa de Abilio estava inserida em um contexto particular que enfatizava o trabalho
como algo que representava honra e glória, contudo não era um pensamento comum no período.
Nos tempos de colonização do país, os portugueses trouxeram consigo a noção de trabalho como
algo desonroso. Presunçosos, de uma fidalguia requerida por costumes ancestrais, repugnavam
qualquer moral fundada no culto ao trabalho, pois nobre e honrado era aquele que tinha alguém
pra trabalhar por si, uma concepção que estava em desacordo com a ética protestante, a qual
tomava fôlego com a expansão capitalista. Contudo o avanço do capitalismo industrial na Europa
e o estabelecimento da corte portuguesa no país forçaram mudanças de atitude e concepção em
relação ao trabalho, embora de modo apenas insinuado inicialmente. O contexto da época exigia
248

que o trabalho se tornasse prova de honestidade, capaz de propiciar às pessoas sustento e


dignidade, como registrou Moura (2001).
O preconceito contra o trabalho manual persistiu um bom tempo na sociedade brasileira
tradicional. O diploma era a ambição das elites, que se envaideciam ao verem seus filhos
alcançarem fortuna e posição com os graus conferidos pelos bacharelados em direito, medicina
etc., pois, como bacharéis, estes facilmente alcançariam altos cargos políticos do país, os quais já
eram ocupados pela família e pelo círculo de amigos. Havia a crença que não se submeter aos
ofícios manuais era uma forma de preservar a dignidade, o que levava os da elite a preferirem os
empregos públicos que exaltavam a personalidade individual. Por outro lado, mantinha-se um
discurso de combate à vadiagem e à ociosidade. As críticas à preguiça estavam na ordem dos
discursos, pois a indolência ocasionada pela mestiçagem era uma preocupação da elite.
O trabalho delegado à infância, defendido por Abilio nas lições dos livros, estava
relacionado com o cumprimento de seus deveres, seja da escola ou de casa. De um lado,
valorizava-se o trabalho infantil, já tão praticado pelos filhos da classe pobre. Por outro lado,
procurava encaminhar a criança para a disciplina do trabalho escolar a qual seria adquirida na
escola, no cumprimento de seus deveres ou na realização de pequenas tarefas. Nos dois casos,
pela prática da obediência, da ordem e da disciplina, a criança aprenderia o valor da hierarquia
que deveria ser respeitada em toda a sociedade, sobretudo por aqueles que ocupariam as funções
prestigiadas da elite predominante.
Um exemplo disso é a lição O pequeno estudante. Definido como um ‘tolosinho’ e
‘preguiçoso’, Miguel230 não amava seus livros e só queria brincar. Se fosse maior, teria ‘mais
juízo’, porém ele gostava mesmo era de ‘vadiar’. No percurso da escola, o menino cruzou com
uma abelha, um cachorro, um passarinho e uma formiga. Convidando-os para brincar, recebeu
uma negativa como resposta, sob a alegação de que eles, um por vez, precisavam cumprir com
suas funções (fazer mel, vigiar a casa, catar palhas e carregar folhas), pois não eram vadios nem
preguiçosos. Enfim, o menino pensou consigo mesmo: - Que! Si ninguem é vadio, nem
preguiçoso, também os pequenos meninos não devem ser vadios, nem preguiçoso”. E seguiu
depressa para a escola. Diante da atitude ‘espontânea’ do menino, a lição é concluída enfatizando
que o mestre ficou muito satisfeito e disse a Miguel que ele era um menino muito bom “e havia
de ser um homem de bem.”
249

A disciplina do trabalho, levada com seriedade pelos bichos desta história, correspondia à
disciplina que a criança teria que cumprir com o compromisso delegado a ela de ir para a escola,
pois, se todos tinham um papel na natureza, o menino, igualmente, tinha o seu. A
responsabilidade era individual e aprendida através do autocontrole da criança com a ajuda dos
animais que, através de seus ensinamentos morais incentivavam a criança ao trabalho, afastando-
as, assim, da vadiagem. A linguagem era própria dos conselhos que os adultos transmitiam para
as crianças, como ressaltou Graciliano Ramos (1982: p.127), ao se referir aos ensinamentos
dados pelos animais nesta lição: “Infelizmente um doutor, utilizando bichinhos, impunha-nos a
linguagem dos doutores.”
Na lição “Crispim e a vaca”, um pequeno pastor sentiu desejo de comer alguns araçás que
avistara. Ao se descuidar da vaca, esta entrou no jardim, estragando e comendo plantas e flores.
Diante disso, o menino ficou furioso e tentou bater na vaca. Porém seu pai, que tinha visto tudo,
perguntou-lhe quem merecia ser castigado, a vaca ou ele que sabia distinguir o bem do mal. O
menino ficou triste, envergonhado e arrependido, pois, se tivesse cumprido com seu dever não
agindo com irresponsabilidade e gulodice, nada disso teria acontecido. Assim, o autor concluiu
para os leitores: “Aprendei desta pequena historia meus meninos, a sacrificar os prazeres ao
cumprimento dos deveres, e a nunca commetterdes a desonra de abandonar os póstos que vos
foram confiados”.
O trabalho foi invocado novamente na lição “Jacinto ou o pequeno fabricante de cestos”,
história de dois meninos que foram apanhados por piratas e, após um naufrágio, conseguiram se
salvar, aportando em uma terra habitada por negros. O pequeno Eduardo era rico, porém
detestava o trabalho e não gostava de estudar. Já o pequeno Jacinto era pobre, porém muito
diligente e industrioso. Segundo a lição, Jacinto, por saber confeccionar cestos, foi quem
conseguiu sobreviver na ilha desconhecida. Quanto ao outro, que era ‘estúpido’, ‘preguiçoso’ e
‘ignorante’, só não foi morto graças à intervenção de Jacinto, contudo teve que se desfazer de
suas ricas roupas, virando um criado de Jacinto. O autor finalizou a lição dando sua lição de
moral: “Por esta pequena historia, meus charos meninos, vós vêdes que em toda parte os meninos
trabalhadores e industriosos estao seguros de achar quem o estime e proteja, enquanto os
preguiçosos e ignorantes passam uma vida miseravel, despresados de todos”.

230
Na primeira edição, o menino não tinha nome; a partir da segunda foi chamado de Miguel, nome do filho de Abilio, Miguel
Abilio.
250

Este texto, do qual encontramos outras versões nos livros dos autores franceses Barrau e
Thèry e também na coleção Biblioteca infantil, coordenada por Lourenço Filho na década de
trinta, é bastante conhecido. A história era representativa para a sociedade francesa231, como
ressaltou Amalvi (1992), as obras destinadas às crianças na França oitocentista se esforçavam em
provar que o fabuloso destino do grande herói se manifestava desde sua pouca idade. Invocado
sempre por uma energia e uma coragem fora do comum, esse esforço era mais poderoso quando a
criança vinha de classe baixa.
Aparentemente, a importância do trabalho exercido por crianças era relevante para todas
as classes sociais232. Abilio já defendia, em outros textos, a idéia de que de nada adiantava a
criança ser afortunada se não tivesse preparo para o trabalho. Contudo o trabalho exercido por
Crispim e Jacinto era bem diferente do que era feito por Miguel. As classes sociais eram
definidas, assim como o trabalho, de forma ‘natural’. Não era possível exigir uma postura do
autor contra o trabalho infantil, porque, neste período, essa prática era encarada como algo
normal e em acordo com a legislação. A responsabilidade de sacrificar os prazeres em detrimento
ao dever era o tema central das lições, dirigidas às crianças que precisavam trabalhar e às que
somente estudavam.
A honra era evocada na lição “Cecilia, ou a pequena pada de pão”, na qual um homem
‘muito caridoso’ distribuía pães em sua casa para os pobres que, de forma desorganizada,
avançavam, querendo cada um escolher o maior e o melhor ‘pado de pão’. A pobre Cecília ficava
à distância e, ao apanhar a última fatia que sobrara, de forma resignada, beijou o pão e a mão do
bom homem. No dia seguinte a história se repetiu e, ao partir o pão, moedas de ouro caíram de
dentro dele. A família, honrada, ainda que pobre e faminta, levou as moedas ao rico benfeitor,
que não as recebeu de volta, dizendo que as tinha posto de propósito para recompensar a
modéstia e o bom procedimento da menina. Isto fez com que a abundância entrasse na casa da
menina e que a moral fosse dada: “Sêde sempre, meus meninos, como Cecilia, com o que vos

231
Na versão francesa, como na versão apresentada por Lourenço Filho, o jovem Moricot também era levado por piratas e
vendido para um negociante cruel da Tunísia para servir de doméstico. Moricot conseguiu, contudo, fugir para o mar, encontrando
um “belo navio francês”. Foi então salvo, graças à coragem do jovem menino. Quando o capitão morreu, deixou toda sua fortuna
para ele, que se tornou um rico agricultor.
232
Não só para crianças como para os adultos, a questão do trabalho era valorizada nas lições. Em “Um velho e tres moços”, o
tema principal é o trabalho e o amor familiar. Um velho de quase 80 anos foi questionado por três moços sobre o motivo que o
levava a construir e a plantar, já que não iria usufruir a recompensa de seu trabalho. O velho, prontamente, respondeu que não
trabalhava somente para ele e, sim, para os que viriam, como os netos, que poderiam sentar-se à sombra da árvore e colher os
frutos da mesma. Esta seria sua recompensa. “Que dizeis meus meninos, das reflexoes deste velho? Não eram sabias, justas e
dictadas pelo mais puro amor da familia? É assim meus amiguinhos, que desejo que todos vos pensei e pratiquei algum dia”
251

couber por sorte; porque aquelles que são modestos, e se satisfazem com o pouco, estão seguros
de alcançar a benção de Deus; e a abundancia reinará em suas casas”.
Calvino (1993), ao se referir aos contos populares daquela época, ressaltou que estes
apresentavam dois tipos de transformação social, sempre com final feliz. Um nobre ou rico que,
por alguma conseqüência desastrosa, se via reduzido à pobreza de alguma forma (depois recupera
sua posição), e um pobre (camponês ou pastor) que nada possuía, mas que, por virtude própria,
ou ajudado por seres mágicos, alcançava a abundância, o fausto e a riqueza. No caso da menina,
foi a modéstia e a honestidade que a tornaram rica. Era a pobreza honesta que deveria contar com
a sorte, pois parecia não haver outra chance de elevação na escala social.
No Segundo livro, o tema do furto foi apresentado para as crianças em duas lições. Na
primeira, “O ladrão que ia furtar um porco”, um amansador de feras ensinou uma onça a dançar
e, ao se hospedar em uma estalagem, acomodou-a em um chiqueiro, no lugar de um porco que
tinha sido vendido pelo dono. Um ladrão foi ao chiqueiro e, em vez do porco, deparou-se com a
onça que quase o matou. O ‘infeliz’ foi salvo e, ferido, foi levado para a cadeia, onde teve um
castigo merecido por ter penetrado na propriedade alheia com o objetivo de furtar. Em “O ladrão
e o mercador”, a narrativa trouxe à tona a moral da ‘Providência’ que salvou o rico mercador de
um grande mal. Ou seja, o mercador foi salvo das garras de um ladrão pela chuva que ele próprio
amaldiçoara anteriormente. O ladrão teve o fim merecido e o rico mercador conseguiu preservar
o que era de sua legitima propriedade.
O respeito e o direito da propriedade privada eram inquestionáveis e quem ousasse
penetrar neste recinto íntimo era merecedor do nome vil de ladrão. Quem furtava, comete um dos
sete pecados capitais e, além de estar exposto ao perigo, perdia a graça Divina, sendo desprezado
pela sociedade. Havia recomendações preciosas pra que a infância não se deixasse cair nesta
funesta prática.
O tema do trabalho continuou em duas fábulas protagonizadas por insetos, nas quais à
virtude laboriosa eram acrescidas outras virtudes. A conhecida fábula “A cigarra e a formiga”
discorria sobre a cigarra que cantara durante o verão, se vendo na miséria com a chegada do
inverno. Para não morrer, pediu alimento à formiga, que tinha o defeito de ser muito sovina. Ela
indagou a cigarra sobre sua ocupação ‘durante o tempo do estio’ e, ao ouvi-la dizer que cantava
para divertir os que iam e vinham, deu uma resposta dura: “Tu cantavas, replicou a formiga; pois
bem, dansa agora!” A cigarra morreu de fome e o episódio serviu para ensinar aos leitores um
252

perigo duplo: “Não sejamos imprevidentes, nem preguiçosos como a cigarra, nem crueis para
com os desgraçados, como a formiga; mas sejamos laboriosos como esta, a fim de termos com
que nos sustentar a nós e as nossas familias, e com que dar esmolas aos necessitados”.
Esta fábula, escrita no século XVII por um membro da aristocracia francesa (La
Fontaine), retratava os valores éticos daquela época e daquela classe social. No entanto foi
utilizada como instrumento educativo, sobretudo para as crianças pequenas, a fim de exemplificar
o valor do trabalho. Este tipo de texto tornou-se universalmente conhecido pela simplicidade e
exemplaridade de seus casos. Embora tenham sido criadas também para os adultos, as fábulas
foram deslocadas muito cedo para a infância, devido à simplicidade das narrativas e aos
exemplos dos casos morais que as tornavam idôneas para a recepção infantil. Abilio se apropriou
da fábula para expressar um tipo de vida moral ideal, combatendo, ao mesmo tempo, a preguiça e
a crueldade. 233
Dando continuidade às lições com insetos que exemplificavam a prática do trabalho, da
bondade e da justiça “A formiga e a abelha” conta a história de um tamanduá234 que investiu no
mesmo formigueiro da formiga que fora cruel com a cigarra, comendo todas as formigas, menos
a malvada, que sobreviveu ferida. Prestes a morrer, avistou um ‘cortiço’ de abelhas, para onde se
dirigiu a fim de obter socorro, pois suas irmãs abelhas, trabalhadoras, ricas e industriosas,
certamente seriam piedosas e não lhe negaria uma gota de mel como esmola. O que a formiga
não esperava era que a abelha a cobrasse por ter sido tão dura com a cigarra, negando-lhe
socorro. Surpresa, indagou como sabia daquele fato e a abelha respondeu: “Sim, aquella cigarra
era minha amiga e minha comadre”. A formiga pediu perdão e se mostrou arrependida pela falta
de caridade. A abelha disse, então, que não iria imitá-la, desde que ela aprendesse a ser ‘mais
compadecida dos desgraçados’.
Recorrendo à moral da fábula, o autor aproveitou para diferenciar o procedimento dos
personagens, lembrando às crianças que a crueldade e a avareza da formiga contrastavam com as
doces virtudes da caridade, da bondade e da generosidade da cigarra. Por fim, chamou a atenção

233
No fim da lição, aproveitou para aplicar a fábula ao ciclo de vida humano, considerando o verão como a mocidade, ou a idade
da força, e o inverno como a velhice, assim resumindo o conselho do fabulista: “Trabalhai em quanto sois moços, para terdes com
que viver na velhice”. Ao ter as provisões, resultantes de trabalho constante, aconselhava aos leitores que se um ‘imprudente’ ou
‘preguiçoso’ viesse dizer: “Perdi meu tempo, e agora morro de fome”, embora este seja culpado, não se deveria deixá-lo perecer,
pelo contrário, deveria-se dar-lhe alguma esmola e, se ainda fosse tempo, dizer com doçura: “Sê mais ajuizado, para o futuro,
meu amigo, canta menos e trabalha mais.” Este, garantiu o autor, era um procedimento humano, pois unir o insulto à negativa,
como agiu a cigarra, poderia revelar maldade, atitude que não deveria ser tomada como modelo.
234
Explicado em nota que se tratava de um quadrúpede com uma língua comprida e fina, que vivia de comer formigas.
253

dos leitores para a virtude mais preciosa aos olhos de Deus, a caridade com os infelizes235. É
interessante observar o recurso utilizado pelo autor para transmitir os valores do trabalho e da
compaixão. Não satisfeito em alertar os leitores de que não deveriam ter atitudes como a da
primeira formiga, Abilio deu continuidade ao tema criando uma outra fábula (que abordava a
relação de compadrio), enfatizando a premissa de que ser bondoso e não avarento era o caminho
a ser seguido por todos.
Abilio recorreu às fábulas para abordar outros temas nos livros de leitura, mostrando-se
um adepto do uso deste tipo de narrativa, a exemplo de outros autores do período, como o
Ministro Paulino José Soares, (apud ALMEIDA, 1989, p.542), em1850, que ao contestar a
substituição das fábulas de Esopo por outras obras nas escolas da Corte236, registrou que preferia
as boas fábulas, pois enquanto os outros livros se esforçavam para demonstrar um fato, as fábulas
ensinam um princípio “e tanto mais seguramente quanto o menino é doutrinado, sem o perceber,
por meio de um exemplo trivial de que ele vai por si mesmo tirar a conclusão, que vem a ser mais
uma máxima para a vida”.
Ao utilizar as histórias de bichos para ativar os conceitos morais que pretendia alcançar,
Abilio recorria a um tipo de gênero literário muito antigo, encontrado em diferentes culturas e
períodos históricos237. Como afirmava em seus escritos, proporcionar histórias simples para a
criança, como fábulas adaptadas com interesse anedótico, sem, contudo, distanciá-las da
edificante lição de moral, as levaria a refletir sobre virtudes importantes, como bondade,
honestidade, caridade etc. Desta forma, as fábulas, transportadas e adaptadas pelo autor (muitos
faziam e fazem isto até hoje), transferiam para os animais os traços de caráter (negativos e
positivos) dos seres humanos, servindo claramente para ilustrar alguma virtude ou vício. Abilio
ainda salientava a moral das fábulas em uma conversa dirigida diretamente aos leitores, na
tentativa de tirar proveito delas repassando o ensinamento útil.
Sobre a eficácia das fábulas na transmissão da moral, alguns autores duvidavam que as
crianças pudessem incorporar ao seu cotidiano as lições recebidas. Rousseau considerava um erro
o uso das fábulas na formação da criança. Na obra Emilio (1999, p.329), teceu críticas à moral
que já vinha pronta, impedindo a criança de descobri-la por sua conta e questionou a eficácia de

235
Citou ainda: “Quando Jesus veio ao mundo para nos livrar da perdição, nunca cessou de recommendar a virtude da caridade. E
dizia o Senhor: “Quem dá esmolas aos pobres, é a mim que dá. Quem dá um na terra, no reino dos ceus receberá cem”.
236
De acordo com o ministro, as fábulas foram substituídas pelas obras: Tesouro dos meninos e Simão de Nantua de Jusssieu.
254

seu proveito: “Não somente nunca vi crianças fazerem qualquer aplicação sólida das fábulas que
aprendiam, como nunca vi ninguém que se preocupasse com que elas fizessem esta aplicação.”238
Da mesma forma, Benjamin considerava que as fábulas representavam um produto espiritual de
maravilhosa profundidade, percebida pela criança, no entanto, em pouquíssimos casos:

Também podemos duvidar que os jovens leitores apreciem a fábula em virtude da moral que a acompanha,
ou que a utilizem para aperfeiçoar sua capacidade de compreensão, como por vezes supunham e, sobretudo
desejava, uma certa sabedoria alheia à esfera das crianças. Seguramente, os pequenos se divertem mais com
o animal que fala de forma humana e age racionalmente do que com o texto mais ricos de idéias (2002:
p.58).

Monteiro Lobato (1972, p.245), em 1916, escreveu a G. Rangel, reclamando da postura


moralizante das fábulas e dizendo que seus filhos, ao ouvirem fábulas, guardavam-nas em suas
memórias, recontando-as aos amigos “Sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade,
como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir-se revelando mais tarde, à medida
que progredimos em compreensão”.
Indagar a respeito da eficácia das fábulas, assim como das outras histórias, não é uma
tarefa fácil (ver ainda neste capítulo as impressões dos leitores dos livros de leitura), contudo não
resta dúvida de que histórias, aparentemente simples e ingênuas, estavam carregadas de
intenções, tanto de manter o domínio e a superioridade da classe que dominava, quanto de
invocar que o trabalho era redentor da humanidade como para sobrepor a cultura cristã em
detrimento de outras. As intenções eram variadas e, muitas vezes, ambíguas, porém não devemos
nos enganar, como bem ressaltou Ferro (1990), pois a imagem que temos de outros povos e até de
nós mesmo está associada à história que nos contaram quando éramos crianças.
As lições e as gravuras que analisamos enfatizavam a importância do trabalho, da ordem e
da disciplina, sem abrir mão da responsabilidade, da honestidade, da modéstia e de outros
elementos que viriam a formar o cidadão adequado para ao trabalho que traria prosperidade à
pátria. Aparentemente, essas noções eram endereçadas a todos os seus leitores, crianças pobres e
ricas, pois os livros de leitura, como já apontamos, eram distribuídos e adotados em diferentes

237
Autores como Esopo (Grécia; séculos VII e VI a.C.), Fedro (Roma; Séculos 15 a.C. - 50 d.C) e, na Idade Moderna, Jean de La
Fontaine (França; 1621-1695), ficaram conhecidos universalmente pelas suas fábulas que encantaram adultos e crianças em
diferentes tempos e espaços.
238
Rousseau teceu criticas ao que ele considerava pronto demais nas fábulas e sobre a passividade do aluno diante da moral das
fábulas. Indagou sobre o significado dos quatro versos que La Fontaine acrescentou no final da fábula da rã que incha: “Será que
ele teme não ser compreendido? Será que um grande pintor precisa escrever o nome dos objetos que pinta embaixo deles?”.
255

realidades. Se a importância da criança se tornaria reconhecida no futuro, ela teria que ser
remodelada e arrumada na família e, sobretudo, na escola, para se inserir na futura sociedade.
Abilio não escondia sua intenção em modelar a criança, sendo as lições abordadas até aqui
mais um testemunho de sua pedagogia moralizadora e civilizadora. Era preciso ensinar um
código comum de comportamento que fosse válido para todas as crianças, pois a infância era
portadora de ‘pequenos defeitosinhos’, como o autor registrou, sendo urgente moldar a cera
enquanto mole, antes que fosse tarde. Desta forma a frase “O que Joãozinho não aprende João
não aprenderá jamais”239 se adequava perfeitamente aos seus preceitos de, quanto antes, intervir
nessa formação, melhor o resultado.
O rol de comportamento infantil ideal presente nos livros de leitura assemelhava-se aos
tratados de função pedagógica, escritos em época bem anterior à do nosso autor. Segundo Revel
(1991), uma sociedade constrói representações de seu próprio funcionamento e a literatura das
civilidades do século XVI a XIX codificava minuciosamente os valores comportamentais,
regulamentando em detalhes o sistema de comportamento sociável, descrevendo condutas
prescritas e não condutas reais. Como toda documentação normativa, os tratados tinham uma
função pedagógica e expressavam a vontade de expor e ensinar maneiras legítimas.
As transformações dos comportamentos eram lentas, difusas e, muitas vezes,
contraditórias, contudo a história da civilidade ancorava-se num texto básico que, durante três
séculos, fora reivindicado, plagiado e deformado: A Civilidade pueril, de Erasmo. Editado em
latim pela primeira vez em 1530, esta obra garantiria a pedagogia das boas maneiras por cerca de
três séculos. A Civilidade reuniu conselhos para uso das crianças, tratando das posturas e
comportamento sociáveis com um repertório que, na essência, continuaria sendo o mesmo de que
outros tratados. Com variações repetitivas sobre o esboço de Erasmo, as regras se mantiveram
semelhantes de um país para o outro240.
No século XIX, mantinha-se a crença de que, através da imitação (elemento sociável
típico das crianças) dos pais, as crianças aprenderiam realmente as boas maneiras, acrescentadas
à disciplina, que só poderia ser aprendida na escola, de acordo com Revel:

239
Epígrafe contida no livro de abecedário e leitura para a Colônia São Leopoldo (apud KREUTZ, 2000, p.351).
240
Segundo Revel (In ARIÉS e CHARTIER, 1991), a matéria da Civilidade pueril não era verdadeiramente original. Erasmo
continuou uma tradição muito antiga que acabou se constituindo num conhecimento amplamente partilhado. Baseava-se numa
vasta literatura clássica que tratava de educação e fisionomias, incluindo de Aristóteles a Cícero, de Plutarco a Quintiliano.
256

A partir daí, a civilidade tende a tornar um exercício escolar destinado a dispensar uma instrução
inextricavelmente religiosa e cívica. Esta se destina prioritariamente às crianças que, depois dos sete anos (a
idade da “razão”) e antes dos doze (e das ameaças da puberdade), adquirem os rudimentos do saber: ler,
escrever, contar (1991, p.179).

A civilidade competia, portanto, a uma pedagogia de base, muito mais eficaz quando
posta em prática nesta fase, na qual se depositava ilimitada confiança, pois, símbolo de
simplicidade e da inocência evangélica, a criança que ainda não fora pervertida pela vida social
estava aberta a todos os aprendizados e, ao mesmo tempo, por não saber esconder o que era,
encarnava uma espécie de transparência elementar.
Como salientou Boto (2002), essa era a representação da infância comprometida com a
idéia de insuficiência ou do caráter incompleto da condição infantil em relação ao que se
almejava ser o ponto de chegada, o ser adulto. A criança era percebida pelo que lhe faltava, por
suas carências, as quais só poderiam ser supridas pela educação e pela instrução. A criança era
frágil na constituição física, na conduta pública e na moralidade, precisando, portanto, ser
regulada e normalizada para o convívio social.
Desta forma, o que encontramos nas lições dos livros de Abilio, não eram
comportamentos específicos da infância e, sim, do que esta deveria ser. Eram prescritas as regras
a serem seguidas, comportamentos que deveriam ser imitados, veiculando, assim, um pensamento
e uma versão da realidade.

3.7 Infância e religião: O olho de Deus está sempre sobre vós

Em duas palavras: a sacristia e o inferno, prováveis escândalos e horrores inevitáveis, desgostaram-me de


tudo. Demais, eu tinha por vezes tentado dar boa conta, estudando um pouco e rezando muitíssimo, com um pequeno
jejum ainda por cima; ao dia seguinte, nota má!
Era um descrédito para o favor divino.
Que custava à suma Onipotência modificar em lição sabida uma ignorância sofrível, como transmutara em
fartura sem conta uma miséria de cinco pães?
(O Ateneu)

Como já abordamos no capítulo anterior, a religião católica configurava-se como um


elemento de suma importância na pedagogia do católico Abilio. Desta forma, este tema não

Conhece-se, também, pelo menos em parte, a abundante produção medieval que, sobretudo depois do século XII, passou a
regulamentar os comportamentos.
257

poderia estar ausente das lições dos livros de leitura e, muito menos, das gravuras escolhidas pelo
autor. No prefácio do Segundo livro, o autor registrou que o primeiro tempo da criança na escola
não deveria ser diferente do ensino iniciado na família: “E o que é que na familia se ensina
universalmente desde o despontar da razao? É o amor e o temor de Deus; é a verdade, a justiça e
a charidade; é emfim a distincção pratica do bem e do mal, ou, melhor, a moral e a fé em acção”
(1866c, p.6).
A escola, às vistas do autor, tinha a função de ‘continuar’ a educação iniciada no lar, no
sentido de dar seqüência aos primeiros ensinamentos religiosos, porém é importante esclarecer
que isto não significava descartar a instrução científica e literária. Conforme apontou Bittencourt
(1993), o progresso moral deveria articular-se com o progresso material e político porque o
espírito da civilização moderna era eminentemente liberal e religioso.
Abilio defendia que, na primeira fase da instrução da criança, o ensino de cunho moral e
religioso deveria receber a mesma importância dos outros ensinamentos. Em seu discurso de
1865, justificou porque insistia tanto neste ponto: “Pela convicçao que nutro de ser muito mais
proveitosa ao paiz uma mocidade moralisada e temente a Deus, do que uma mocidade repleta de
instrucçao, porem licenciosa e libertina, sem moral e sem virtude” (1866c, p.290). Seu discurso
exaltava, sem dúvida, o pensamento de uma boa parte da sociedade cristã do período a qual,
como já referimos, vivenciava os impasses entre Igreja e Estado no interior de uma sociedade
cuja religiosidade era repleta de outras devoções.
Para ensinar os bons e salutares princípios morais religiosos, na opinião do autor, era
preciso recorrer ao uso de máximas, histórias adaptadas da Bíblia e outros métodos agradáveis.
Não havia dúvida de que a criança, ao entrar em contato com esse tipo de história, promoveria o
desenvolvimento de seus sentimentos e da razão, prosseguindo a educação moral e religiosa
iniciada na família. Contudo, alertava o autor, acima de tudo, era preciso ter crença e amor no
conduzir da infância neste campo.
Nas lições, o tema religioso predominava a partir das primeiras palavras que iniciavam a
criança no mundo da leitura, afinal esta deveria ser dominada a partir de palavras conhecidas dos
leitores, pressupondo que as palavras religiosas eram comuns no repertório infantil. No Primeiro
livro, era introduzida nas “palavras comuns de uma syllaba”, como, por exemplo, a combinação
das palavras ‘bom’, ‘céu’, ‘deus’, ‘pai’, ‘luz’, ‘sol’ (com letra minúscula ainda, pois a criança não
conhecia a maiúscula) e outras palavras colocadas aleatoriamente para depois compor o que era
258

denominado como: “Combinação das palavras precedentes em orações faceis, conhecidas dos
meninos”. Trata-se de pequenas frases que faziam alusão ao tema: ‘Deus é bom’; ‘É bom pai’;
‘Quer ver Deus?’; ‘Va no céu’. A seguir, eram apresentadas frases maiores como ‘Os meninos
christãos devem rezar todos os dias o Padre Nosso e Ave Maria’; ‘Antes de rezarem devem fazer
o Signal da Cruz’. Nas lições seguintes desta obra, as referências religiosas não eram explícitas,
pois, como vimos anteriormente, elas se ocupavam do papel da criança no cumprimento de seus
deveres, não deixando de alertar os leitores que, ao praticarem a desobediência ou contrariarem
as normas, deixariam tristes os pais, os mestres e ‘Deus’.
Havia um constante apelo ao temor divino e ao desamor que poderia provir do Criador,
dos pais e dos mestres, caso o aluno não seguisse as normas. No início ou no final de cada lição,
era salientada a presença de Deus, a fim de reforçar esse conceito na mente e na consciência
infantil.
No Segundo livro, supondo que a criança já dominasse a leitura corrente, havia um
predomínio maior de lições explicitamentes relacionadas à religião. Das vinte e quatro lições, sete
delas abordavam temas como a importância de Deus, da religião, de saber rezar, de ajudar o
padre na missa e outras que narravam temas bíblicos, adaptados para a criança. O restante
relacionava-se à moral cristã, como os sete pecados permeando as práticas infantis.
A primeira lição, que inaugurava o Segundo livro, era intitulada “O amor de Deus” e
trazia uma ilustração (Figura 34) que relacionava a infância ao estado de graça extremo: uma
criança de joelhos, com as mãos unidas na altura do pescoço, como se estivesse rezando241. O
texto, com cinco páginas, procurava ressaltar e incentivar o amor a Deus, principiando de forma
incisiva: “Desde os primeiros annos de sua vida, os meninos devem amar profundamente a Deus,
porque não foi para outro fim que Deus o deitou no mundo”.
Seguia destacando as qualidades do criador, seu infinito amor e bondade, estabelecendo
um exemplo concreto à altura da compreensão da criança, ao esclarecer que Deus dera ao menino
um pai amoroso e uma mãe carinhosa ‘para amparar de sua fraqueza’, assim como dera-lhe
também o alimento, o sol, o ar, as árvores, os frutos etc.

241
Ao abordar a história do corpo e dos gestos, Burke (2005, p.95) cita o estudo de Schimit (1990), que investigou o gesto na
Idade Média. Este autor argumenta que rezar com as mãos postas (e não com os braços abertos) e também ajoelhar-se para rezar
259

Figura 34 Criança rezando.

O rol de critérios para a criança perceber se, de fato, amava o criador eram postos de
modo a não deixar dúvida de que somente com estas virtudes ela seria digna do amor divino. A
criança que amava Deus não cometia pecados, não mentia, era dócil, obediente, estudava suas
lições e rezava. Se fosse casta, pura e virtuosa, seria recompensada com o reino dos céus.
A gravura apresenta a infância idealizada ao extremo de servir como modelo. O ambiente
lembra o céu, pois há nuvens a volta da criança e raios iluminando sua cabeça. Os cabelos, nem
curtos e nem compridos e a camisola, também usada pelos dois sexos, não nos permitem
diferenciar o gênero, o que nos reporta aos anjinhos sem sexo das gravuras antigas, apesar da
ausência de asas. Parece um anjo, mas é uma criança com a qual o aluno pode se identificar e
cujas atitudes revelam, de prontidão, o que o texto pretende transmitir: que a criança deve rezar.
Era comum os livros da época veicularem a imagem da “criança modelo”, que deveria servir para
passar noções da moral e de religião, através de um realismo que refletia sobre a vida cotidiana
da criança.
A lição era simples e objetiva, não havia indagações, só afirmações que não davam à
criança chance de pensar em alternativas para ser aceita no céu. Notamos que não havia
necessidade de falar que os meninos maus iam para o inferno, pois Abilio era mais favorável à
exaltação das boas conseqüências. Os ditames da fé e da consciência moral eram fundamentais na

eram transferências para o domínio religioso do gesto feudal de homenagem: ajoelhar-se diante do senhor e colocar as mãos entre
eles.
260

distinção entre o bem e o mal. A leitura, defendia o autor, deveria ser amenizada pela narração de
cenas comuns da vida das crianças, ou seja, histórias com que elas se identificassem. Abilio era
contra o uso de catecismos de perguntas e respostas na escola, em sua opinião esse material não
tinha efeito, pois a criança o decorava somente, sem refletir sobre ele. Já as histórias e os contos
morais atingiam com maior precisão seus objetivos aos quais nos referimos.

Figura 35 Mãe ensinando filho a rezar.

O texto “Recordações” também era ilustrado (Figura 35) e por se relacionar aos primeiros
ensinos maternos, a gravura mostra uma criança com sua mãe em um luxuoso quarto. A criança,
de joelhos em cima do berço, é arrumada pela mãe com de ternura. Semelhantemente à gravura
anterior, ela tem as duas mãos unidas como se estivesse se preparando para rezar e usa uma longa
camisola que lhe cobre os pés, o que lhe dá, também, a aparência de um anjo. Seus cabelos são
compridos, não sendo possível, porém, distinguir se é menino ou menina. Apesar do texto se
referir à personagem como pequenino, não podemos afirmar o sexo, pois o autor sempre usava a
palavra ‘menino’ para representar a infância. A lição, que falava de uma mãe que ensina seu filho
a rezar, complementava a imagem.
261

O texto, na primeira pessoa, era composto de pequenos versos rimados Na lição, um


adulto recordava sua infância, sua mãe e a religião, um tripé perfeito e idílico. O primeiro
ensinamento do amor materno, dado mesmo antes da criança falar, era “Ao Deus do ceu adorar”.
A mãe, entre beijos e carícias, apresentava ao filho a imagem do “papai do céu” e da “Sancta
Virgem Maria”, a mãe de Deus. Semelhante a um anjo, com voz doce e amorosa, a mãe ensinava
o pequeno a “Louvar a Jesus” e a fazer o “sancto signal da cruz”. Era ressaltada também a
gratidão a este ato maternal que lhe abria o coração da criança às ‘santas leis do senhor:

Oh minha mãi! eu te devo esta fé,


que tenho n’alma:
esta fé que é meu thesouro,
que minhas dores acalma.

A história em nada se distancia do que era defendido por Abilio: a fé ensinada desde cedo,
os conselhos de que os meninos deviam seguir e respeitar a religião dos pais, a gratidão para com
os pais, o amor filial e o importante papel da mãe, considerada como a figura principal na
transmissão dos primeiros valores religiosos para os filhos. De acordo com Heywood (2004),
desde a Idade Média, a educação da criança começava nos joelhos de sua mãe, tradicionalmente a
responsável por ensinar os filhos a fazer o sinal da cruz, ajoelhar-se durante as orações e dizer
preces básicas, como o Credo e o Pai-Nosso. Era grande o número de imagens religiosas que as
mães apresentavam aos seus filhos e os moralistas também as aconselhavam a produzir lições
para o cotidiano infantil, fazendo com que a criança jogasse legumes na panela de água fervente
como se fossem pecadores indo pro inferno, ou marcando o tempo do cozimento de um prato
com uma prece, por exemplo, um ovo cozido demorava uma Ave Maria. Assim, os valores
cristãos eram transmitidos de forma amena e divertida.
A exaltação e valorização do papel feminino eram reforçadas, de um lado, pelas santas,
capazes de sublimar a capacidade de amar e de se comunicar diretamente com Deus, sendo suas
intermediárias; de outro lado, pelo amor cortês, que elaborou um código cavalheiresco de amor
que levava à idealização da mulher, do seu papel de guia e conselheira, conforme apontou Cambi
(1999). Na literatura do século XIX, segundo Hilsdorf (1986), a mulher ainda era associada à
flor, ao anjo, a uma entidade moral, protetora do lar e de seu santuário, que eram os filhos. Essa
262

heroína, cujo fim era ser esposa, nascera para a família e não para o mundo242. Um discurso
masculino produzia o discurso feminino, acrescido de estudos médicos que visavam provar a
inferioridade biológica e psíquica da mulher e, portanto, sua incapacidade física para a vida
profissional ou política.
Abilio demonstrava sua preferência por textos em forma de poesias simples, rimadas,
extratos, anedotas e pequenas historietas para repassar os conhecimentos, com diferentes tipos de
detalhes. Este tipo de texto, simples e afetivo, era muito utilizado nos livros escolares do período,
sendo uma boa maneira de comunicar e educar a criança. Ninguém contestava, nem nessa época,
o fascínio que as histórias exerciam sobre o público infantil. Por isso, os textos eram escritos e
adaptados para se aproximarem ainda mais da realidade infantil, a começar pela história na qual
uma criança, aparentemente igual a outra qualquer, aparecia como um modelo a ser seguido
desde a mais tenra idade. Nas gravuras, graças à atribuição da inocência, a criança pequena era
representada em imagens celestiais como um anjo, imagem reproduzida durante muito tempo na
iconografia.
A Igreja teve forte influência na definição da idade cronológica da criança e do
adolescente. A primeira infância marcava a fase do nascimento até seis ou sete anos, período em
que a criança era idealizada ao extremo, sendo tida como portadora da graça e da inocência de
um anjinho. Tratava-se da criança pequena e vulnerável, na qual os jesuítas projetavam
nostalgicamente a imagem do Menino Jesus. Ao chegar à idade da razão, seis ou sete anos, as
crianças de ambos os sexos eram obrigadas a cumprir alguns deveres religiosos, como realizar a
primeira confissão. Aos doze anos, entravam na puberdade, fase em que deixavam de ser dóceis e
obedientes, tornando-se perigosas e ingratas. Realizavam, nesta fase, a Primeira comunhão, uma
das celebrações introduzidas, no final do século XVI, pelo Concílio de Trento e que deveria
acontecer sobre festa solene na paróquia. Para fazer a Primeira comunhão, a criança deveria ser
suficientemente instruída para poder recitar o catecismo, que era uma referência do saber cristão
para entrar no mundo dos adultos.

242
Contudo, apesar da crença que instituía o amor materno como uma característica nata na mulher, de alguma forma, intuía-se
que isso não significava que ele existisse em todas as mulheres, haja visto o número crescente de filhos enjeitados e o alto índice
de mortalidade infantil. Muitas mulheres não pareciam se interessar pela sorte das crianças, não se conscientizando da importância
de seu papel nesta questão, como esclareceu Duarte (2000).
263

Na 23a lição do Primeiro livro (Figura 36), aparecia a clássica ilustração da crucificação
de Cristo243. A gravura, que não precisa ser explicada, era adequada de forma perfeita ao texto,
que se propunha a ensinar os leitores a fazerem o sinal da cruz.

Figura 36 Cristo crucificado

A imagem era o elemento que conduzia e, ao mesmo tempo, enfatizava essa importante
aprendizagem, além de incentivar, ao extremo, a piedade e a solidariedade à religião. Não eram
necessários outros complementos, pois o fato de uma imagem de Cristo crucificado abrir a lição
era suficiente para demonstrar a importância de se aprender a fazer o sinal da cruz.
Cristo, nas ilustrações, era quase sempre apresentado para a criança (e para qualquer
outro público) como um jovem de barbas e ar tranqüilo, porém majestoso, iluminado por feixes
de luz, imagem que acentuava, para a criança, uma visão do todo poderoso. Esse olhar, do qual
ninguém escapava, remetia ao aspecto missionário da igreja, num tempo em que as missões
propagavam a fé e divulgavam o evangelho para os infiéis do mundo inteiro.
As imagens de piedade eram desenvolvidas em um contexto popular e endereçavam-se
aos corações e aos sentimentos, reavivando os sentimentos de piedade e chamando a lembrança

243
Nos Catálogos de Laurent et Deberny não faltava essa imagem. Encontramos quatro modelos muito semelhantes, dos quais
somente uma gravura se diferenciava, pois mostrava somente a cabeça de Cristo crucificado, com a coroa de espinhos e um ar de
sofrimento sem fim. As outras gravuras refletiam a clássica imagem de Cristo pregado na cruz.
264

para os exemplos e para as ‘verdades santas’, as quais todos eram encorajados a imitar. Dessa
forma, as crianças assistiam à ação, sentindo, sofrendo e combatendo junto com os personagens.
No ensino da catequese, essas ilustrações eram inseridas com a intenção de que seu efeito
permanecesse gravado no imaginário das crianças, edificando a piedade e constituindo-se em
mais um suporte para facilitar a memória da doutrina católica deliberada pelo catecismo.

Figura 37 Cristo com crianças

A lição “Palavras más” apresentava uma ilustração muito divulgada, a imagem de Jesus
com crianças a sua volta (Figura 37), refletindo a parábola Deixai vir a mim as criancinhas.
Figurava em torno de Jesus um bebê no colo da mãe, uma criança sentada a sua direita, com um
pano abaixo da cintura, uma criança nua sentada no chão, de frente para Jesus, com a mãozinha
estendida (parece louvá-lo), e uma quarta, em pé, vestida com uma roupa até a altura dos joelhos.
As crianças eram representadas com vestimentas simples e descalças e apesar da diferença de
tamanho não havia outros elementos que aludissem à existência de diferentes faixas etárias. Esta
gravura, romântica e idílica, tinha como cenário plantas e flores, com as quais contrastava, ao
fundo, um aparente deserto montanhoso, que nos reportava à terra onde supostamente Jesus
viveu.
265

A temática central desse texto era a condenação do uso de palavras más, ou seja, o
combate ao uso de palavrões, que sempre fizeram parte do repertório infantil244. O texto apelativo
ressaltava que os meninos cristãos, que falavam o nome de Jesus e de Maria, não deveriam dizer
palavras más. Além disso, Jesus só abençoava e tomava nos braços as crianças que não tinham na
boca ‘palavras feias e más’. A história falava de um velhinho atrás do qual, ao passar pela rua,
alguns meninos correram, dizendo palavras ‘grosseiras’ e de ‘mangação’. Além disso, atiraram
pedras no velho, que sofria com resignação e dizia Seja tudo pelo amor de Deus. Então os
meninos, vadios, preguiçosos e sem educação, que passavam o tempo todo na rua aprendendo
maus costumes, foram punidos por Deus. No dia seguinte, amanheceram todos mortos. A lição
terminava indagando ao leitor qual personagem ele preferia ser: um menino com quem Deus
ficou zangado ou um daqueles que Nosso Senhor tomava nos braços e abençoava?
Neste episódio, o autor procurou enfatizar aspectos interessantes, como a forma de
convencimento usada para evitar que as crianças falassem palavras más. Esclareceu que o Senhor
só tomava nos braços quem não fizesse tal afronta e, em seguida, procurou exemplificar com
meninos ‘vadios’ a conseqüência trágica para quem praticasse tal ato. De forma explícita,
245
evidenciou que só Deus tinha autoridade para castigar, podendo até tirar a vida. . Porém os
seres mortais deveriam agir com cautela e prudência, resolvendo os pequenos vícios infantis com
conversas e bons exemplos, como exemplificou em outras lições.
Nesta lição, a razão, caracterizada pelo diálogo e pela transmissão da experiência, foi
substituída pelo principio teológico, de acordo com o qual os problemas eram resolvidos pela
Onipotência. Ao que tudo indica, o ‘Divino modelo dos mestres’ não usou de sua paciência sem
limites e nem de seu amor e caridade para com os meninos ‘vadios’. A aplicação de punições
drásticas nos leva a refletir sobre a contraditória idéia de inocência infantil. Para Heywood (2005,
p.52), apesar de o romantismo eleger a inocência infantil no século XIX, não eram todas as
crianças que se inseriam nesta categoria, pois: “Uma coisa era proclamar a natureza da infância

244
O Relatório sobre higiene do Colégio Abilio já havia apontado a ordem e o asseio das salas de aulas dos meninos do primário,
chamando a atenção para a ausência total de escritos ou riscos ‘inconvenientes’ nas paredes e nas carteiras. Este fato indica que os
palavrões eram uma prática existente, não do uso exclusivo da criança na sociedade brasileira do século XIX. Freyre (1996,
p.251) salientou que em nenhuma outra língua, como no português, os palavrões e os gestos que os acompanhavam ostentaram
tamanha opulência: “O erotismo grosso, plebeu, domina em Portugal todas as classes, considerando-se efeminado o homem que
não faça uso dos gestos e dos palavrões obscenos. A mesma cousa no Brasil, onde este erotismo lusitano só fez encontrar
ambiente propício nas condições lúbricas da colonização.”
245
O tema da morte não se constituía em assunto proibido para o mundo infantil. Em outras lições, Abilio se referiu à morte e ao
uso do luto sem grandes estranhamentos. É importante salientar que o índice de mortalidade infantil era alto e marcou a sociedade
brasileira até o final do século XIX. As crianças morriam em grande número, seja pelas doenças provocadas pelas condições de
higiene ou pelas pestes e epidemias que assolavam as regiões e que levavam muitos ‘anjinhos’ para o céu precocemente.
266

angelical da infância em um poema, e outra, bastante diferente, seria criar personagens bem-
definidas em um romance, ou lidar com moleques de rua que estavam longe de serem inocentes”.
O papel desta gravura era, portanto, de extrema relevância, pois ela reforçava as idéias do
texto, garantindo a eficácia da moral e do bom exemplo representado pelas ‘boas’ crianças em
volta de Deus, as quais, não por ficarem ‘vadiando’, mereciam estar próximas a Ele. Quanto
àqueles que falavam palavrões, de acordo com Abilio, não era justo Nosso Senhor Tomá-los em
seus braços e abençoá-los. O temor da justiça divina era passado para as crianças não pela
imagem que, ao contrário, expressava o bom resultado de quem obedecia e não falava palavrões.
Isso nos reporta a um dado interessante: Abilio não se contradizia, continuando fiel a sua
proposta de que ninguém devia castigar a infância, pois os textos e imagens não faziam referência
a ninguém aplicando castigos físicos, exceto o ‘autorizado’ para isso: Deus.
Na lição, era nítida a fronteira, estabelecida pelo autor, que separava a infância que
freqüentava a escola da outra infância que ficava ‘vadiando’ pelas ruas. Para os que estavam fora
da escola, vadiando, o castigo cruel era conveniente, enquanto que as outras crianças eram
corrigidas com diálogo, exemplos e punições morais. O comportamento nobre e cortês era um
forte argumento usado por Abilio para se contrapor aos modos rudes e não civilizados da grande
massa, que não tinha acesso aos ‘bons costumes’.
O termo vadio, segundo Fraga Filho (1996), já comportava em si a condenação moral,
pois advinha do fato da criança estar fora do domínio familiar e produtivo. O menino vadio
atentava contra a ordem familiar, por isso era inevitável que fosse visto como ameaça à ordem
social. A questão da vadiagem infanto-juvenil na Bahia oitocentista preocupava as autoridades
baianas, que se queixavam da grande quantidade de ‘peraltas’ e ‘moleques’ que permaneciam nas
vias públicas com atitudes irreverentes e irrequietas. A expressão ‘moleque’ aponta que a maioria
desses meninos era da cor negra.
A lição em questão era uma das poucas que apresentava crianças em atitudes traquinas,
pois o autor defendia lições que inspirassem as boas relações. No entanto, a conseqüência fatal
apresentada para punir os meninos vadios e a gravura que foi anexada deveria incentivar os
leitores a não falarem palavrões. Seguindo essa prerrogativa, o autor não escolheria, para compor
seus textos, a imagem das crianças vadias.
267

No texto “O ajudante da missa ou acolyto”, contido no Segundo livro, a imagem (Figura


38) era composta por um padre em um altar, rezando a missa de costas para os fiéis, como era
comum na época e, logo abaixo, um menino, seu acólito (nome dado também aos ‘coroinhas’ que
ajudavam nas missas), de joelhos com as mãos unidas e com a cabeça baixa como se estivesse
rezando246.

Figura 38 Menino ajudante de missa

A lição enfatizava a importância dos meninos serem ajudantes na missa, ato visto como
uma grande honra, como sinal de respeito, devoção e cuidado, contando a história dos turcos
(povo não cristão) que queimaram igrejas, mataram padres e escravizaram o povo de uma cidade.
O rei João, que contava com um exército bem menor que o dos turcos, buscando a ajuda de Deus,
chamou um padre para ‘dizer uma missa’, se oferecendo para ser o ajudante. Todos se admiraram

246
Interessante observarmos que o padre, apesar de não ser um santo, estava incluído na parte reservada aos temas de piedade, o
que se justifica, provavelmente, pelo seu papel de ‘representante de Deus na terra’. No catálogo, há uma série de imagens acerca
deste tema. São quatorze quadros, sendo que um deles foi escolhido para ilustrar. O livro
268

com a humildade do devoto que, ajoelhado, de braços abertos, pediu a vitória para Deus, que a
concedeu. A história, neste ponto, indagava o que achavam os leitores quando chamados para
esse religioso serviço. Deus ficaria contente com eles?
Havia uma coerência que se manifestava na gravura relacionada com o texto, pois Abilio,
ao defender a ‘honra’ de ser acolyto, mostrava uma criança ocupando uma posição importante
com uma vestimenta rica e semelhante à do padre. A ilustração, que representava um pensamento
teológico, não recorria ao uso de santos ou anjos, porém era uma representação da Igreja Católica
e se associava integralmente ao cotidiano de uma criança, conduzindo-a para uma cena que ela
poderia perfeitamente viver: ser ajudante do padre na igreja de sua cidade, vila ou outro. As
perguntas colocadas no texto, somadas à imagem do menino ajudante, pareciam não deixar outra
escolha para as crianças que não a de servir ao papel sugerido. Importante observar que o
‘pequeno clérigo’ da ilustração parecia ter uma de uma idade próxima à adolescência, ou seja, era
uma criança que poderia fazer parte de uma ordem católica ou estudar num de colégio de padres.
Recorrer a exemplos em que figuravam santos ilustres para encorajar os meninos a se
dedicarem ao serviço religioso era um recurso bastante utilizado pelos autores moralistas. Abilio
assegurou a importância deste ato exemplificando com a atitude de um santo que se ofereceu para
ajudar o padre na missa. Contudo o fato de indagar que reação teriam os meninos caso fossem
chamados para tal tarefa, salientando a atitude de Deus diante disso, nos revela que essa não era
uma tarefa bem aceita pelos meninos, já que era grande seu empenho em convencê-los da
importância do papel do acólito.
Sobre a reação dos meninos nas celebrações e em outros rituais católicos dos quais eram
obrigados a participar, Caron (1996) lembrou, tomando como exemplo à França do século XIX,
que, nas missas, confissões e comunhões, havia incidentes provocados por comportamentos ‘anti-
religiosos’ existentes desde antes da revolução. Baseando-se em relatos de ex-alunos, relatou
sacrilégios que os meninos cometiam em tempo pascal, como perturbar a missa por murmúrios a
apupos, professar blasfêmias nas capelas aonde iam se confessar, zombar das pessoas que
participavam das procissões, imitar de forma burlesca os cantos religiosos, cuspir o pão de Deus,
usar as hóstias para lacrar cartas etc.. Pompéia (1992) registrou que, nas missas do colégio, havia
acessos comunicativos de tosses e convulsões de risos, mal contidas no lenço, sob o olhar atento
e severo do diretor. Certa vez, um cão ‘brejeiro’ e ‘sem princípios’ adentrou a missa e escapou
com o casquete de um fiel contrito, situação que fez Sérgio ‘segurar’ o riso.
269

Na lição “A mosca e a aranha”, o tema girava em torno da explicação sobre a sabedoria


Divina. Ao ser questionada pelos netos sobre a utilidade da teia de aranha, mosquitos e outros
insetos, uma avó contou a história de um príncipe que, em uma batalha, fora salvo por uma
mosca que, ao ferroar seu nariz, o salvara de um soldado que queria matá-lo. O mesmo príncipe
escondeu-se em uma gruta e, no decorrer da noite, uma aranha fabricou uma teia na porta da
gruta. Os soldados não entraram na gruta por concluírem que, se houvesse alguém lá dentro, não
haveria uma teia fechando a porta. O príncipe ajoelhou e agradeceu a Deus por ter salvado sua
vida através de uma mosca e de uma aranha: “Entao conheceu elle que todas as obras de Deus
são boas e sabias, embora nós, pela nossa fraqueza e ignorancia, as não possamos entender.”
Mais uma vez, a salvação divina se fazia presente. Desta feita, a natureza estimularia a
inteligência das crianças para notarem o quanto a bondade de Deus estava presente em pequenas
coisas e atos, trazendo a idéia de que os elementos postos na natureza tinham uma utilidade,
assim como os outros elementos existentes na terra e feitos por Deus.
As lições do Segundo livro finalizavam com uma série de histórias bíblicas. “A creação do
mundo” é a primeira que, de forma simples e curta, conta a história da criação do mundo por
Deus. Na historieta adaptada, não havia alguma referência de lição, de pergunta ou de conclusão
feita pelo autor. Ela, por si, já bastava para passar a mensagem aos leitores. O pecado original,
ocasionado pela desobediência do casal era suficiente para constatar o quanto a desobediência
pode ter conseqüências desastrosas.
A clássica história de Caim e Abel enfatizava a relação entre o bom e mau. A inveja fez
com que Caim matasse Abel, ciente de que ninguém saberia de sua malvadeza. Contudo o autor
esclareceu: “Porém Deus viu, porque Deus vê tudo, e nada lhe é occulto”. Desta forma,
amaldiçoou Caim para que todos soubessem que era assassino. A rivalidade entre os irmãos foi
explicada pela diferenciação entre a atitude benéfica e a maléfica. A oposição das duas naturezas
explicava a escolha de Deus e, através do exemplo da inveja, foi demonstrada a diferença que
gerava e acentuava os conflitos que provocaram o assassinato de um irmão por outro. A idéia de
que um tinha mais qualidades do que o outro era sempre um tema que trazia os modelos a serem
seguidos e, nesta passagem bíblica, o olho de Deus, presente em todo lugar, era a comprovação
de não valia à pena cometer pecados.
Em O dilúvio, o mundo era corrompido por pecadores, o que fez com que Deus resolvesse
acabar com o mundo por meio de um dilúvio. Escolheu então Noé, que construiu uma arca para
270

se salvar com sua família e um casal de animais que havia na terra. Após quarenta dias de
incessante chuva, todos morreram, exceto os que estavam na arca e que não se esqueceram de
agradecer ao Onipotente por salvá-los.
A Torre de Babel destacava Cham, o filho mau de Noé, que faltara com respeito a seu pai
sendo, por isso, amaldiçoado. Este concebeu, juntamente com outros, um louco projeto de
edificar uma torre que se elevasse ao céu para servir de refúgio, em caso de novo dilúvio. Então,
o Senhor, para puní-los, confundiu-lhes as línguas, de modo que não se entenderam mais e a
Torre tomou o nome de Babel, que quer dizer confusão. No episódio A vocação de Abraham,
como os homens continuaram se corrompendo, o Senhor resolveu abandoná-los. Escolheu
Abraham, o justo, para chefe do povo de Canaã, impondo-lhe uma dura prova: ao ter Issac, o
filho prometido, teria que sacrificá-lo e oferecê-lo ao Senhor. Quando Abraham estava pronto
para obedecer, Deus o impediu, pois a ordem fora para experimentar-lhe a fé. Ao fim da história,
os filhos de Abraham tornaram-se a grande nação dos Judeus, da qual veio nascer Nosso Senhor
Jesus-Cristo, Salvador do mundo.
As histórias bíblicas, apesar de terem sido feitas em tempos remotos, foram e ainda são,
constantemente re-elaboradas, refeitas, comentadas para diferentes públicos. Constituem uma
referência em todas as ocasiões em que se deseja transmitir valores cristãos. Entre as mais
marcantes estão as que contam a origem do mundo, a aparição do homem, o nascimento de suas
relações com Deus e os animais e as gêneses das diferenças em um grupo. Estes mitos criam
arquétipos que, de forma consciente ou não, tratam da maneira como os homens devem construir
as relações. As passagens bíblicas adaptadas e outras sobre o mistério divino, contidas nos livros
de leitura, tinham este objetivo: impressionar as crianças para que absorvessem com mais
facilidade os ensinamentos morais. Como afirmou Chartier (1997, p.07): “O livro procura sempre
instaurar uma ordem, quer seja a ordem de sua decifração, a ordem segundo a qual deve ser
entendido, ou a ordem determinada pela autoridade que o encomendou ou que a autorizou.”.
Não é fácil de avaliar a reação das crianças diante desses ensinamentos. Na obra literária
de J. Lins Rego (1974), Doidinho, e na de Pompéia, O Ateneu, encontramos algumas pistas sobre
possíveis sentimentos manifestados pelos alunos. Rego narrou uma relação conflituosa de
Carlinhos com a religião, registrando que seus surtos de crença morriam logo, como ‘pequenos
relâmpagos na escuridão’. As idas à missa, nos domingos, era a única coisa ‘que se fazia para
271

agradar a Deus’, pois não havia aula de religião em seu colégio. Segundo o menino, o que o padre
falava, ‘fosse o que fosse’, era certo que tomava para si.
Impressionou-se ao ouvir do padre a parábola Deixai vir a mim as criancinhas, dirigida
aos setenta meninos do colégio. O sermão ressaltava que Jesus amava as crianças por sua
inocência, alegria e alma limpa de pecados. Porém nem todos os meninos eram assim, havia os de
‘coração imundo’, crescidos ‘nos vícios’, como adultos, que ‘empestavam’ os outros e que
‘fediam’ à distância. Era doloroso ofender a Deus e, se havia rosas emporcalhadas e sujas de
lama pelo mundo, os culpados por deixarem os porcos invadirem o jardim do Senhor eram “os
pais, as mães e os educadores”, garantia o clérigo. Repetindo as palavras do evangelho, o padre
sugeria que melhor seria amarrar uma pedra no pescoço e jogar no rio quem não aceitava a
religião. Reforçou que Deus estava ausente das escolas e dos lares, criticando a educação dos
colégios públicos e particulares247. Carlinhos dormiu com aquelas palavras na cabeça e sonhou
com morte de seu avô que, com uma pedra no pescoço, era atirado no açude. Acordou aos berros,
ficando aliviado ao perceber que tudo não passara de um sonho.
Nas aulas de religião, Carlinhos respondia às perguntas tal qual estava no livrinho, embora
continuasse com suas dúvidas sobre o que era ‘Unidade de Deus’, ‘Encarnação’, ‘misericórdia de
Deus’, ‘virgindade de Nossa Senhora’ etc. Os jogos de palavras, as confusões e as dúvidas do
ensino da doutrina cristã levaram o menino a concluir que as lições de religião eram dadas do
mesmo jeito com que no engenho se ensinavam os papagaios. De qualquer forma, ele permanecia
perturbado pelas ‘verdades a igreja’, garantindo que a ‘serpente da dúvida’ rondava sua cama e
tinha medo dos pecados que tinha na memória248, assim como, das penas do inferno e da desgraça
daqueles que morriam em pecado mortal. O fato de Deus estar vigiando-o por toda parte afligia-
o, porém, após a confissão. Carlinhos dormiu com a consciência limpa e no dia da primeira
comunhão foi um dia festivo e alegre no colégio, uma verdadeira festa.
Em O Ateneu, Pompéia registrou a relação ambígua de Sérgio com a religião. Narrou com
entusiasmo e, ao mesmo tempo, com desdém, os cantos religiosos, as orações, as idas às missas
no domingo, a participação nas procissões e outras práticas religiosas presentes no internato.

247
O diretor do colégio, avesso ao ensino religioso, esbravejou sobre o sermão do padre, alegando que aquilo era uma indireta
para seu colégio, onde, admitia, os meninos não haviam entrado para aprender a rezar. Recebendo apoio de sua mulher que
garantiu não ser ‘barata tonta de sacristia’, vingou-se duramente no sobrinho do padre que era aluno de seu colégio, humilhando,
chamando-o de ‘burro’ e aplicando-lhe a palmatória.
248
Rego anotou que Carlinhos pecava por palavras, obras e omissões: “Quase todos os pecados do catecismo estavam comigo,
para contar ao padre. Os da gula, da luxúria, da ira, da inveja, da preguiça. Um monstro para a codificação da Igreja”.
272

Sérgio, devoto de Santa Rosália249, manifestava sua não simpatia pela religião. Dizendo ser
portador do ‘germe do futuro libertino’, registrou sua aversão pela confissão, pela primeira
comunhão, pelas cerimônias e pelos homens de batina. A missa foi narrada pelo autor como
momento de total desinteresse250, assim como o ‘hino do anjo da guarda’, cantado no recreio, ao
meio-dia, quando os estudantes, transpirando ainda dos folguedos, não tomavam o rito a sério. A
dureza dos vigilantes constrangia os meninos naqueles dez minutos de religião.
De forma conflitante, Sérgio registrou a respeito de Barreto251 (que o instruiu na punição),
colega do internato, que mostrava caldeiras de inferno e palavras em chamas onde as culpas
ardiam como ‘sardinha em frege’. Impressionado, Sérgio narrou a ‘comunhão sacrílega’, um livro
‘cruel’ dado a ele por Barreto, que descrevia coisas dignas de Moloc252: crianças justiçadas pela
celeste cólera, uma que havia comungado sem confissão prévia, (iludindo o sacerdote) e que fora
apanhada pela roupa entre dois cilindros de aço de uma máquina, sendo reduzida a uma pasta
‘acabando impenitente, maldita, sem tempo para um ai-jesus’. Sérgio achava incrível que uma
simples hóstia pudesse causar tanto efeito de terror, enquanto que Barreto prosseguia com sua
tarefa de pregador, descrevendo o inferno ‘como se tivesse visto’253.
Sérgio, como Carlinhos, não afirmava suas devoções religiosas de forma segura, porém
era evidente, nos dois romances, o temor que as histórias da doutrina causavam nos personagens.
Os sentimentos de descrença, dúvidas, deboches, descaso, ironias conflitavam com o temor, o
horror, os pesadelos e com a angústia do fantasma do pecado. A religião mexia com as emoções
dos alunos e, mesmo que os métodos de ensinar não fossem tão ‘modernos’, a imagem do céu e
inferno permanecia no imaginário.
A princípio, os livros de Abilio não estavam tão distantes do que legisladores e
educadores sugeriam para a composição deste material. Segundo Bittencourt (1993), enquanto

249
Sérgio portava consigo uma imagem desta santa (tida como sua padroeira) que ganhara de uma prima. Planejou fazer uma
capela para Santa Rosália, projeto frustrado pela falta de flores.
250
O tédio foi, assim, narrado por Pompéia (1992: p.73): “Íamos à missa nos domingos. Todos abriam os livrinhos, para que o
diretor os visse atentos. Eu não abria o meu. Deixava apenas fugir-me o espírito para o alto e aderir á abóbada como as decorações
sagradas, ajustar-se estreitamente nos detalhes da arquitetura do templo como o ouro sutil dos douradores, conservarem-se lá em
cima, ávido ainda de ascensão, ambicioso de céu como a baforada dos turíbulos.”
251
Barreto provinha de um seminário rigoroso, onde, segundo o romance, passara por um ‘regime de nitro para congelar as
ardências da idade’. Descrito como uma ‘fisionomia geral de caveira em pele ressecada de múmia’, foi o único colega de Sérgio
conhecedor de suas ‘preocupações beatas’. Nos recreios, o menino meditava, falava de morte, de outras vidas, rezava muito, tinha
figas de pau, bentinhos, medalhinhas que saltavam quando brincavam.
252
Personagem bíblico com cabeça de touro, divindade Cananéia, Deus do fogo, à qual os Fenícios e outros povos da Ásia
ofereciam crianças como sacrifício.
253
Após isso, Sérgio leu a Nova Floresta de Bernardes, que veio ‘retocar’ a obra de Barreto, com mais narrativas de ‘iluminado
terrífico’. Diante desta experiência confessou que começou a achar a religião insuportável melancolia: “Morte certa, hora incerta,
inferno para sempre, juízo rigoroso; nada mais negro”.
273

predominou a imposição da moral católica, a ênfase recaía sobre o conteúdo moral que deveria
compor estes matérias. Portanto eram sugeridas traduções de obras de vida de santos ou da vida
de personagens que servissem de exemplo para as crianças. A partir da década de setenta, os
liberais republicanos começaram a sugerir a substituição da moral-religiosa pela moral-cívica, o
que ocasionou debates inflamados na instrução.
Abilio não estava alheio à discussão travada entre católicos conservadores e liberais
republicanos, a respeito do uso da doutrina religiosa na escola. A manutenção da moral católica
conservadora estava explícita nessas lições, e quem não cumprisse as normas colocadas pela
verdade cristã estava fadado às conseqüências do desamor filial e Divino, do afastamento, do
isolamento e da morte. A pedagogia do temor, representada pelos elementos católicos e posta nos
livros de leitura, sempre permeou sua proposta pedagógica, de forma que ele não poderia se
adequar aos discursos que dispensavam o ensino religioso nos colégios.
As gravuras escolhidas, apesar dos catálogos trazerem outras opções, foram imagens
simples as quais não só complementaram as lições como também de corroboraram os conselhos,
os temores e os exemplos. Não foram utilizadas imagens que associavam a monarquia à igreja,
como havia em vários manuais franceses, nem imagens de santas e outras. A seleção de imagens
e de textos seguia, impreterivelmente, a norma defendida pelos ultramontanos, nas quais deveria-
se privilegiar a religião clássica. Por isso, ele não abriu mão das figuras de Cristo, de histórias
que retratavam as celebrações tradicionais e enfatizavam Jesus e Maria como referências
principais.
A representação da criança era baseada no princípio da infância maleável, que deveria ser
orientada e vigiada para ter uma boa formação. Tendo sido ‘feita por Deus’, a criança não vinha
ao mundo completa e nem perfeita, porém ainda não havia sido ‘infectada’ pela corrupção,
podendo ser moldada aos bons princípios. Não restavam dúvidas de que seu cérebro ‘quente’,
‘úmido’ e ainda ‘mole’ facilitava o ensino da moral. Como ela era portadora de uma memória
fraca, era preciso insistir na repetição dos temas para que os absorvesse, aos poucos, de acordo
com seu desenvolvimento. Era curiosa, atenta à novidade, daí a importância da verdade na sua
formação. Sua docilidade deveria ser incentivada por exemplos, reflexões e muito diálogo.
274

Como já pudemos perceber, não estavam presentes nas reflexões que Abilio e seus
contemporâneos faziam, a defesa da inocência infantil254. Após o renascimento, deu-se um
equilíbrio entre o inato e o adquirido. Classes intermediárias e superiores começaram a prestar
mais atenção à criação dos filhos, acatando a orientação dos moralistas sobre como criá-los ou
educá-los, o que levou alguns educadores a afirmarem que ‘a mão que balança o berço define os
destinos da sociedade’, tese que foi aceita como prova de sabedoria, só vindo a ser posta em
xeque nos fim do século XIX e início do XX, em função dos avanços científicos que reagiram
contra este viés ambientalista. A associação da infância à inocência tornou-se profundamente
arraigada na cultura ocidental, especialmente depois que os românticos deixaram suas marcas no
século XIX, registrou Heywood (2004).
Outra idéia compartilhada pelos autores que Abilio citava era a de que a criança não
deveria ser vista como adulto, pois seu comportamento era diferente daquele que um adulto
poderia ter. Portanto o papel da autoridade era valer-se de sua experiência, dando bons exemplos,
emulando e incentivando através de recompensas, prêmios etc. Estudar não consistia somente em
ler livros, o essencial era a divulgação de virtudes como honestidade, humilde, paciência,
caridade, modéstia e outras que encontravam um bom respaldo na religião, a base do ensino
moral.

254
O debate sobre a inocência infantil era polêmico e contraditório. De acordo com Heywood, no século IV, Santo Agostinho
concluiu que a mancha do pecado era transmitida de geração a geração pelo ato da criação. A única maneira de redimir o pecado
original era o sacramento do batismo, estando a criança que morria antes do batismo fadada à chama do inferno. Esta posição,
oposta à inocência nata da criança, foi predominante até o século XIII, quando São Thomas de Aquino sugeriu um meio termo
com a criação do limbus puerorum, um lugar para receber as almas infantis poupadas das chamas, que, porém, ainda não teriam o
reino do céu. Em 1520, Lutero e outros protestantes reafirmaram a tese do pecado original, afirmando que as crianças eram
sedentas de fornicação, idolatria, magia, hostilidade, enfrentamento, desejos impuros, disputas, ódio, voracidade etc. Por um lado,
afirmava que o pecado original era tão arraigado na criança como no adulto; por outro lado, aceitava a inocência da criança nos
primeiros cinco, seis anos de sua vida, chamando-as de ‘pequenos ingênuos de Deus’. Os puritanos ingleses e norte-americanos
afirmavam que a criança nascia com o mal em seus corações, mesmo assim eram comparadas a ‘vasilhas de gargalo estreito,
preparadas para receber Deus ou o mal, gota a gota, ou a ‘galhos novos’ que poderiam ser dobrados de forma certa ou errada. Os
jansenistas, ou puritanos católicos, não eram menos veementes na condenação da corrupção das crianças que os protestantes, ao
alegarem que as mesmas possuíam violência máxima, por serem portadoras de um raciocínio fraco e não terem experiência do
mundo. Para Heywood, paradoxalmente, foi esta fragilidade que fez das crianças cristãos modelos por serem incapazes de
colocarem em prática seus planos malévolos. A crença na inocência original das crianças estava igualmente enraizada na tradição
cristã e, durante a Alta Idade Média, as opiniões se polarizavam, sendo as crianças consideradas como canais de influência
diabólica ou divina. Nos séculos XVII e XVIII, as opiniões de católicos e protestantes evangélicos radicais eram contrabalançadas
por moderados que acreditavam na inocência de seus filhos. Porém, mesmo na Idade Média, a idéia da ação da natureza não
estava incontestada, sendo familiar a noção da criança como uma cera mole, facilmente moldada ou como ramo tenro, que
precisava ser posto na direção certa. Os educadores identificavam a fase infantil como um período de vida em que as crianças
eram mais receptivas aos ensinamentos, enfatizando, assim, a importância de se proporcionar bons exemplos para estas seguirem.
Houve um grupo significativo influenciado pelo dogma religioso do caráter pecaminoso das crianças,que estava determinado a
exercer uma influência moral formidável sobre a criança (Heywood, 2004).
275

3.8 Infância e família: Os bons conselhos desprezados são com dor comemorados

A importância da família no processo de desenvolvimento harmonioso da criança também


compunha os discursos de Abilio. Eram constantes seus conselhos para que os pais participassem,
de forma efetiva, da vida escolar das crianças, praticando uma educação baseada no amor, livre
de castigos e de opressões, além de servirem como bons exemplos para seus rebentos. Estas
Idéias, se postas em prática, contribuiriam com a formação da criança burguesa civilizada. A
família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, era o modelo ideal difundido por Abilio e por
outros integrantes da boa sociedade. No século XIX, portanto, este modelo de estrutura familiar
não era o único, pois, além da família patriarcal (descrita por Freyre como a típica brasileira), que
incluía diferentes parentes, agregados e outros, o modelo familiar coexistia com uma variada
gama de organizações: famílias temporárias, consensuais, ‘imorais’ (famílias de padres),
concubinatos, famílias escravas e outras.
A idéia de Abilio em ressaltar a família como elemento estratégico e substancial na boa
formação infantil não era original. Desde o século XVI, este era um tema constante em tratados,
com objetivo de reforçar o papel dos pais na formação dos filhos, ensinando-os a educarem seus
rebentos de forma civilizada. Foi, entretanto, na pedagogia romântica do século XIX, com a
reafirmação da relação educativa entre a escola e a família como momentos centrais de toda
formação humana, que este princípio adquiriu contornos mais fortes. Para Cambi (1999, p.416), o
romantismo pedagógico alemão amadureceu a relação do comportamento educativo e docente,
harmonizando autoridade e liberdade, nutrindo-se do conhecimento psicológico e de “amor
penseroso”. Foi criada uma imagem nova dos dois maiores agentes educativos: a família,
(Pestallozi), que deveria se organizar dentro de seu próprio papel educativo, e a escola, que
deveria se tornar de todos e para todos, capaz de formar, ao mesmo tempo, o homem e o cidadão,
e que, embora organizada segundo perfis diferentes, mas justamente por isso,fosse capaz de agir
em profundidade no tecido social.
Embora o papel da família européia durante o século XIX tenha absorvido algumas
práticas consideradas ‘modernas’ nos métodos de criação, como o aumento na quantidade do
tempo que os pais dedicavam aos filhos, persistia, tanto na família burguesa como na patriarcal, a
276

educação dos filhos, desde pequenos, para a submissão. E a família nuclear tornou-se uma
espécie de modelo guia no qual se espelhava outras famílias, como a camponesa e a operária.
Se a família recebia conselhos sobre como educar seus filhos de forma civilizada, a
criança, por sua vez, receberia as instruções de como se comportar diante dos pais, sendo grande
a responsabilidade atribuída a ela. O amor, o respeito, a honra, a obediência sem limites para com
os pais eram traduzidos como princípios gerais e inquestionáveis que deveriam ser acatados pela
infância para que se evitassem nefastas conseqüências.
Nessa direção, era expressivo o amor irrestrito no texto “Saudações de uma menina a seu
pai e a sua mãi nos seus dias natalicios”, que fazia parte do Segundo livro. Em forma de carta,
uma menina declarava seus sentimentos para com seus pais em seus dias natalícios. Para o pai,
registrou seu respeito, agradecimento e, sobretudo, seu absoluto e profundo amor. Para a mãe,
destacou as primorosas virtudes que, com ela, aprendera e aprenderia. A declaração ‘voluntária’
ressaltada pela ‘menina’ não escondia o quanto ela precisava do amparo materno e paterno para
sua formação. Em contrapartida, ela seria uma pessoa digna deste amor. As virtudes ensinadas
pelos pais foram explicitadas como elementos úteis para a formação de sua tenra idade. Seu
discurso se assemelhava muito mais ao do adulto que ao de uma criança, embora fosse invocado
pela menina para facilitar o entendimento e a absorção do comportamento pela criança.
Na história “Um grande homem ou o Amor de verdade”, Jorge, com seis anos, ganhou de
presente um machadinho com que golpeava todas as árvores, inclusive uma romeira que seu pai
estimava. Ao ver a árvore pronta ‘para morrer’, o pai, raivoso, indagou quem tinha feito aquele
estrago. Jorge ficou calado por um momento e disse: “Eu não devo dizer uma mentira! Fui eu que
cortei ella com meu machadinho”. Ao invés de repreendê-lo, o pai tomou-o nos braços,
perdoando o mal que tinha feito, pois o menino foi honrado e justo “não faltando com a verdade”.
Jorge, quando cresceu, foi um homem ‘honrado e distinto’, tanto que foi escolhido por seus
patrícios para ser ‘governador da terra’. No final, o autor alerta os leitores para o perigo da
mentira, pois ninguém dá crédito aos mentirosos.
As crianças deveriam falar sempre a verdade, mesmo contra si próprias, pois Deus ama a
verdade e, conseqüentemente, os mentirosos são amaldiçoados por Deus, reforçou o autor. Para
combater a mentira, Abilio não se apoiava somente na religião. No discurso feito, em 1862,
lembrou que, da mesma forma que o sol é o centro do sistema planetário, tendo todos os planetas
sob sua influência, a verdade é o centro do sistema moral, em torno da qual giram as outras
277

virtudes. Citou Montaigne, que chamou o vício de mentira de ‘maldito’ e aconselhou seus pupilos
a detestarem a mentira, pois nela estava a origem de todos os outros males e, se dirigindo aos
pais, aconselhou-os a jamais considerarem-na como algo natural, como alguns educadores
defendiam.
Os bons filhos não deviam deixar de respeitar, amar e honrar a memória de seus pais. Esta
era a idéia da história do filho que se perdeu em uma tempestade e, ao voltar, anos depois, seu
pai, um rico negociante, já havia morrido, e três moços reclamavam a herança. Para decidir a
questão, o juiz mandou vir um retrato do defunto e pediu que cada um atirasse na marca feita em
seu peito. Quem acertasse teria o direito à herança. Na vez do verdadeiro filho, este se recusou e,
chorando muito disse que não faria uma ferida no coração de seu ‘querido pai’, nem em retrato,
mesmo que perdesse a herança. Este era o verdadeiro filho, concluiu o juiz, pois nenhum filho
teria a coragem de atirar uma flecha no peito de seu pai, ainda que fosse em uma pintura.
O amor materno foi ressaltado com a história “A galinha e seus pintinhos”, na qual
valores como cuidado, proteção, dedicação, sacrifício, abnegação e amor incondicional foram
invocados para definir o quanto a galinha era uma boa mãe. Contudo a dedicação da ave para
com seus filhotes não era a metade do que as mães dos meninos faziam quando estes eram
pequeninos, agindo com verdadeiros ‘Anjo de Guarda’, vigiando, zelando e cuidando deles até o
fim da vida. Por isso, os pequenos deveriam amar suas carinhosas mães, respeitando-as e
honrando-as, assim como Deus queria e mandava.
Em “A Moscasinha”, uma família de moscas vivia em uma chaminé, próxima de um
caldeirão cheio de água fervendo. A mãe, antes de sair, aconselhou a filha, uma moscasinha,
imprudente, a não sair do lugar até sua volta, pois poderia cair dentro do poço para nunca mais
sair, conforme sua experiência havia lhe ensinado. Mal a mãe partiu, a filha começou a zombar
das advertências, chamando a mãe de caduca, velha e rabugenta. Dirigindo-se às proximidades do
caldeirão foi sufocada pelo vapor e caiu dentro da água fervendo. Antes do último suspiro,
acrescentou o quanto eram infelizes os filhos que não obedeciam às ordens de sua mãe. O final
trágico do inseto deveria servir como lição para meninos, pois os que desprezam as advertências
e conselhos dos seus pais e mestres estavam sujeitos a um fim tão desastroso como o que tivera a
ignorante e desobediente moscasinha.
O cuidado dos pais ao alertar o perigo das más companhias era o tema de outra lição na
qual um pai (amoroso) escolhia cuidadosamente as companhias dos filhos. Mathilde, a filha mais
278

velha, ao ser convidada pelas vizinhas para um passeio e um batizado de bonecas, não obteve
consentimento de seu pai. A menina retrucou seu pai, com muito cuidado, sob o argumento de
que não havia risco em passar uma tarde com as vizinhas, pois, se estas tinham defeitos, ela
certamente não os aprenderia e não ficaria menos boa do que era. O pai não a castigou, porém
exemplificou sua decisão com um carvão, que mesmo não queimando a mão de Mathilde, sujou
sua alva mão, concluindo que o carvão, apesar de não queimar, suja a quem nele pega: “Pois o
mesmo succede com as más companhias; as quaes, si não chega a nos corromperem, como é facil
de acontecer, deixam-nos pelo menos uma má reputação”.
Abilio concluiu a lição lembrando os meninos da importância de uma boa escolha nas
amizades, pois quem anda com os maus, embora não o seja, acaba por tornar-se mau. Os vícios,
insistia o autor, ‘são contagiosos como a sarna’. Para finalizar, citou o provérbio: Dize-me com
quem andas, que te direi as manhas que tens e aconselhou ‘os amiguinhos’ a fugirem das más
companhias como quem foge de uma pessoa ‘atacada de peste’.
Nesta lição, além de exemplificar como deveria ser um bom trato dos pais para com os
filhos, demonstrou às crianças o perigo das más companhias. A vigilância exercida pelo pai na
lição reforçava a idéia de que as crianças eram consideradas moralmente frágeis e, desta forma,
estavam constantemente correndo riscos de serem expostas a desvios e perdições. Diferente do
adulto, seu autocontrole ainda estava em formação, portanto seu destino só poderia ser visto
como incerto. Essa era uma das razões por que os pais deveriam mandá-las, o quanto antes para
os colégios.
As férias, período em que as crianças se ausentavam do colégio, eram motivo de
preocupação para Abilio. Era comum, em seus discursos de encerramento do ano, que ele
alertasse pais e mães para que fossem vigilantes com os filhos. Abilio seguia as mesmas
recomendações de Théry (1866), que sugeria às crianças uma boa ocupação do tempo durante as
férias para que se afastassem das más companhias. Ele aconselhava os pais a imporem aos
meninos ao menos duas horas de trabalho escolar por dia, a fim de que eles não perdessem o
hábito dos exercícios da escola. O tempo devia ser bem aproveitado, tanto que Théry dedicou
uma parte de seus discursos ao “uso útil do tempo”, uma das formas de manter a criança afastada
das más companhias que poderiam corromper-lhe a inocência. Ele se referia aos meninos que não
freqüentavam as escolas, que não eram polidos e que, certamente, provinham das classes
populares.
279

Figura 39 Mãe e filha

A lição “Virginia ou o prato de uvas pretas” é acompanhada desta ilustração (Figura 39).
As duas mulheres, ricamente vestidas, em uma sala luxuosa, têm a mesma aparência, porém, de
acordo com o texto, trata-se de mãe e filha. A vaidosa Virginia, não valorizava o que tinha, nem
ligava para os conselhos da mãe descuidando de seu rico quarto. A ‘desleixada’ menina parecia
não merecer esta riqueza, pois deixou um prato de uvas em cima da cadeira e ao voltar a noite
cansada, sentou em cima do prato, sujando não só o vestido de seda novo, como a ‘linda cadeira’
de damascos. A mãe da menina aproveitou da situação, enquanto esta chorava, para dar sua lição
referindo-se a importância de manter cada coisa em seu lugar, pois a desordem era a causa de
ruínas de muitas famílias ricas que caíam na pobreza.
No trabalho de reconciliar a atitude da filha, a mãe foi apresentada como aliada da filha,
cumprindo com a função mediadora que lhe foi atribuída. Apesar da cautelosa atitude materna, a
punição moral (da vergonha) de Virginia não se restringiu somente à lição da mãe. A menina
pagou um preço grande pela sua negligência, sendo alvo de risos e, por se sentir envergonhada,
no dia seguinte, não comeu e passou fome. À custa deste sofrimento, dali em diante, dava gosto
entrar em seu quarto e ver tudo arrumado e limpo.
Temos novamente, a repetição do tema da moral, que nada tinha de original, a exemplo do
desfecho das histórias, no qual a ‘desmazelada’ (titulo exclusivo de meninas) ou o
‘desobediente’, ‘gazeteiro’, ‘mentiroso’, ‘orgulhoso’ etc. se redimiam à custa de duras lições,
280

prometendo transformar seus defeitos em boas virtudes. Quanto às imagens, estas estavam
integradas a um conformismo moralizador, mais próprio das crianças do sexo feminino,
demonstrando as meninas maior resignação que os meninos. Ressaltamos, mais uma vez, que,
apesar de Virginia ter cometido atos de ‘desmazelo’, ela não recebeu punição física, tendo sido
castigada por seu próprio ato, como era o desejável.
A ilustração, na qual a ‘desmazelada’ está aos pés de sua mãe, com as mãos juntas, como
se tivesse pedindo perdão pelo seu defeito, foi bem adaptada ao texto. Nela a mãe, de pose
majestosa, porém com expressão de doçura, está olhando para a menina, cujo braço estendido
alude a um gesto de perdão, argumento inteiramente cristão, que também ocupava um bom
espaço nesse tipo de imagens.
A presença de homens e mulheres desempenhando papéis protetores era universal,
forjando a mentalidade dos cristãos e servindo como pólo de identificação para justificar atitudes
e condutas sociais. O hábito da ordem e do cumprimento dos deveres foi enfatizado na lição em
contraposição ao desleixo e da negligência da menina que, sobretudo pela sua posição social,
deveria valorizar o que tinha, pois quem não cultivasse uma vida laboriosa, poderia correr o risco
de perder tudo, inclusive a fortuna, como disse a mãe. A autoridade da mãe estava impressa em
seu comportamento calmo, reflexivo e sábio, de acordo com o que era aconselhado pelo autor.
No discurso médico, predominante na segunda metade do século XIX, de acordo com
Gondra (2004), o papel da mãe era intervir de forma incisiva na formação higiênica da criança
em casa. A educação bem cuidada salvaria a família dos inconvenientes da vida tropical e
funcionaria como um elixir responsável pela instalação de uma nova era. Deste modo,
manifestava-se uma preocupação com a formação feminina, pois as futuras mães e educadoras, se
devidamente formadas, evitariam um conjunto de problemas, males e doenças comuns no espaço.
Diferentemente das mães de outras lições, que se ocupavam somente em cuidar da formação
religiosa da família, as mulheres deveriam ser qualificadas, pois já não bastavam, para o discurso
ilustrado, os atributos da natureza, muitas vezes desprezados pelas próprias mulheres por
desconhecimento e ignorância. A formação não deveria ocorrer nos moldes da educação
religiosa, pois o projeto de modernização requeria novas práticas, do ponto de vista que a razão
medica desejava instalar.
Na lição “O aceio ou a historia de Anna Rita”, a protagonista, por ter perdido parentes de
forma continuada, andara vestida de luto durante anos, adquirindo o hábito de limpar suas penas
281

na saia do vestido preto ao terminar de escrever, um mau hábito ‘enraizado’ na consciência de


Anna Rita.
No dia do batizado de sua prima, estava vestida com um lindo vestido branco de cambraia
seu pai lhe pediu que fizesse um bilhete para a prima. A menina, como de costume, limpou a
pena no vestido, manchando a roupa, o que a impediu de ir à festa. A lição foi concluída com
mais conselhos para que os leitores, desde cedo, fugissem do hábito de pouco asseio ou outra
‘porcaria’.
Notamos nas duas lições que, embora o autor pretendesse passar aos leitores preceitos de
higiene, a questão religiosa não foi esquecida. O luto da menina, o batizado das bonecas e da
priminha, assim como outras manifestações religiosas católicas estavam presentes. Notamos
também que a autopunição foi o efeito do desleixo das duas meninas, com os vestidos bonitos
manchados e a supressão do divertimento. A mensagem das duas histórias era evidente: para
evitar tristeza, constrangimento e outras decepções não se deve negligenciar os cuidados da
higiene.
Nas duas histórias, o modelo de família era docilizado pelo comportamento civilizado dos
pais que ocupavam o papel central de orientação. Contudo o papel de gênero estava nitidamente
estabelecido, conforme os preceitos que atuavam sobre uma boa parte da sociedade do período. O
pai, ao recorrer a um exemplo prático, obtido através da sabedoria e do conhecimento, foi mais
racional na educação da filha, enquanto que a atitude da mãe foi de ternura, paciência e proteção.
A mulher burguesa, inserida nos preceitos morais e higienistas do período, não deveria ser uma
mãe desocupada, desinformada e ignorante. Para que pudesse ensinar os filhos a se portarem de
forma civilizada e cortês, deveria auxiliá-los nas tarefas escolares, além de cuidar da higiene da
família, proporcionando-lhe uma casa limpa e harmônica, livre de desordem e conflitos. Desta
forma, confirmava-se o papel das lições que deveriam conferir os bons hábitos às crianças, mas
também aos os pais, demonstrando que a polidez no trato com a infância só traria bons resultados
como os da lição.
Nas duas situações, as meninas provinham de famílias abastadas, o que indicava que este
tipo de preocupação não estava restrito somente à classe ‘desafortunada’. A vigilância rigorosa
para com a melhoria da higiene e da vida familiar regulada não se restringia aos filhos pobres e
da classe trabalhadora, estando a questão posta igualmente para a elite. Não podemos perder de
282

vista que os costumes de higiene nos sobrados descritos por Freyre (1977) não eram muito
diferentes dos mocambos.
Nas histórias de pais e filhos, devemos destacar também a relação afetuosa que marcava
diálogos e práticas. Percebemos, através das lições escolhidas por Abilio, que havia, ou melhor,
deveria haver uma espécie de maturidade emocional dos pais em relação aos filhos que em nada
lembrasse a frieza e a brutalidade descritas por Freyre para definir a família patriarcal brasileira,
sobretudo a nordestina, no que se refere à criação dos filhos. Distanciavam-se as lições também
dos romances deste período nos quais as situações traduziam uma prática, se não de indiferença,
de violência dos pais255, como no caso de Graciliano Ramos (1982, p.31) que, com cinco anos, já
figurava na qualidade de réu: “Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural”.
O amor familiar, fraterno e idílico nos remete a uma discussão dos historiadores a respeito
da relação de indiferença e negligência de alguns pais em relação aos filhos no século XIX. Para
Heywood (2004), essa é uma revisão que os historiadores estão fazendo na história da infância
européia, pois pode ter havido pais cruéis e abusivos em qualquer época, embora a ampla maioria
sentisse afeto por sua prole. Os cuidados dos pais para com os filhos eram transmitidos de
geração para geração sem grandes mudanças, sendo que as mulheres aprendiam com a mãe, a
parteira, as amigas e os parentes. Bater na criança para mantê-las em estado de temor e sujeição
era um costume difundido e aqueles que faziam isso acreditavam que o estavam fazendo para o
bem da criança256. A partir do fim do século XVIII e início do século XIX, essa situação se
alterou, tendo os pais passado a receber orientações de médicos e de outros especialistas, prontos
a intervir na formação infantil, precedendo os conselhos dos homens da ciência que contribuíram
enormemente para a queda da mortalidade infantil.
Não podemos afirmar que, na sociedade brasileira deste período, havia somente
brutalidade por parte dos pais, mas falar de respeito e educação amorável seria exagero. Como
ressaltou Heywood (Ibid, p.362): “É na direção dessa complexidade que devemos nos mover, em
qualquer época pais tiranos conviviam e coexistiam com genitores afetuosos e liberais, não faz
sentido corrigir ou propor um acronologia do amor paterno”.

255
Além de Infância de Graciliano Ramos, encontramos dados sobre este tema nos romances autobiográficos que citamos, como
Menino do engenho e Doidinho de J. Lins Regos, nos poemas de Cora Coralina, em O Ateneu, de Raul Pompéia, além de vários
outras.
256
Heywood (Ibid, p.133) citou um verso francês do século XVII que justificava essa prática: “Myeulx vault chastier sur le cul, de
verges son petit enfant, que le voir pendu quand est grand.” (melhor bater no filho enquanto ele é pequeno do que vê-lo enforcado
quando crescer). O mesmo autor garante que, mesmo no século XIX, quando os manuais de orientação se afastavam da
recomendação de castigos físicos, três quartos das crianças ainda apanhavam.
283

Desta forma, os princípios invocados por Abilio nas lições dos livros não apresentavam
grandes diferenças das idéias que circulavam no período. As práticas de civilidades,
representadas pela honestidade, pelos bons exemplos, pela obediência e por outras virtudes foram
se dar nas práticas privadas, no interior da escola e do lar. Ao se referir aos periódicos dedicados
às famílias, produzidos no Brasil no decorrer do século XIX, Veiga (In: FARIA FILHO, 2004)
ressaltou que, em uma boa parte deles, o amor racionalizado estava associado à família nuclear
quase como uma tradição inventada. A ênfase no dever do amor recíproco entre pais e filhos
servia como regra para se distinguir uma família civilizada.
Os pais tinham essa pesada responsabilidade que recaía sob suas costas e não podiam,
nem deviam, se sentir tranqüilos em relação aos filhos. Daí a importância de uma constante
vigilância relacionada às companhias (sobretudo, as más companhias), ao uso do tempo (não
deixar a criança ociosa), ao ensino de boas práticas etc. Tudo isso sustentado por conselhos, por
exemplos de dignidade (poder da imitação) e por diálogos constantes.
Era preciso muito investimento para educar a meninada nos modos ‘civilizados’, pois as
crianças refletiam a sociedade em que viviam. O educador Menezes Vieira, preocupado em
cumprir o papel de moralizar os pequenos do Jardim da Infância, na perspectiva de educá-los
para o controle da vida social, relatou, em 1884, os conflitos expressos nas brincadeiras: “As
crianças no Brasil (...) entregam-se geralmente a brinquedos aviltantes: uma representa o burro,
outra o cocheiro; esta o urbano, aquela a capoeira; uma o negro fugido, outra o capitão do mato”
(Apud KUHLMANN JR, 2005, p74).
Ina Von Binzer, nos relatos de sua experiência com a instrução de crianças da elite, não
deixou de registrar os comportamentos infantis ‘malcriados’ que tanto a irritavam. Anotou os
maus costumes à mesa, como a maneira enervante de comer, além da rumorosa conversa, cheia
de gestos brasileiros e da correria dos meninos. Seus ‘substratos de discípulos’, como Binzer
definia seus pupilos, eram perfeitos exemplares de rebeldia, como ela exemplificou, em 1883:

Caius e Plinius possuem cada um o seu velocípede vindo da Inglaterra. Nesses veículos amaldiçoados os
jovens romanos passam a vida fora das aulas, demonstrando-lhes tal apego que já chegaram a ponto de
almoçar encarrapitados nos tais velocípedes. Como os pais assistem a cena impassíveis, achei melhor não
interferir, mas o sossego de minhas refeições não aumentou na vizinhança das três rodas ameaçadoras de
Plinius. Os momentos mais inquietantes eram aqueles em que eles voltavam ao seu lugar depois de
pequenas excursões de recreio em volta da mesa, realizadas no intervalo de cada bocado. Só levou uma
severa repreensão quando esbarrou com tanta força na minha cadeira que quase me atirou com o rosto
dentro do prato; mas depois o irritante veículo continuou com seus privilégios (2004, p. 111).
284

Por estes exemplos, podemos perceber como a infância provinda de classes sociais
abastadas agia. Era preciso, assim, europeizar os modos de vida, educando as irrequietas crianças
brasileiras que traziam em seu sangue componentes de três raças, a indígena a africana e a
européia, não sendo as duas primeiras confiáveis aos olhos dos que almejavam construir a tão
sonhada sociedade civilizada.

3.9 Lembranças de infância: os leitores dos livros de leitura

Tenho certeza de que esses livros não me valeram de nada.


Força de vontade não adquiri nem um pingo mais do que tinha.
Caráter não mudei em nada.
Bondade, nada mais do que eu já tinha.
Só uma coisa eu penso que lucrei,
mas não tenho certeza se foi Samuel Smiles que me ensinou,
pois não me ensinou outras coisas: foi aprender a ser poupada e a guardar tudo que tenho.
(Diário de Helena Morley)

Em Minha vida de menina: cadernos de uma menina provinciana nos fins do século XIX,
Helena Morley (1973, p.39) registrou suas impressões a respeito de duas obras que lera quando
menina: O poder da vontade e O caráter, ambas de autores ingleses, impostos pela tia que só
achava bom ‘o que era inglês’. De acordo com suas memórias, além de ler, ainda tinha que contar
tudo “tintim por tintim”, de forma que sua aprendizagem fosse verificada através da decoração e
da exposição oral. Estas duas obras tinham por objetivo ensinar economia, correção e força de
vontade. Segundo Helena, a única coisa que conseguiu apreender foi poupar, exemplificando com
os ovos que conseguia juntar, ‘talvez’ incentivada pelos livros. Diante disso, sua mãe insistiu com
seu irmão, Renato, para que lesse as obras, aprendendo a poupar, como Helena. Ele, porém, se
negou a isso, justificando que, além de não gostar de ler, não aprenderia nada com os tais livros e,
se gostasse de ler, não ia perder seu tempo com Samuel Smiles, leria Júlio Verne, que era “muito
melhor e mais divertido!”.
Esta passagem nos fez refletir sobre os significados de algumas obras para as crianças
leitoras. Certamente, não é fácil analisar com precisão os sentimentos que as lições dos livros de
leitura de Abilio causavam em seus pequenos leitores. É precipitado assegurarmos que as idéias
que este autor pretendia difundir em seus leitores tenham atingido, de fato, seus objetivos,
285

modificando o comportamento de seus alunos e fazendo destes meninos de ‘bom coração’. Da


mesma forma, não podemos investir na tese de que os livros não tenham significado nada para
seus leitores numa época em que os livros não estavam ao alcance de todos.
Dados levantados nos indicam que os livros de Abilio foram adotados em escolas para
crianças pobres e ricas, em ambientes domésticos, simples escolas domésticas, nas escolas rurais
e nos ricos internatos. Levando em conta essa diversidade, podemos afirmar que os sentidos dos
leitores são diferentes. Chartier esclareceu que:

Por um lado, a leitura é prática, criadora, atividade produtora de sentidos singulares, de significações de
modo nenhum redutíveis às intenções dos autores ou dos fazedores dos livros; ela é uma “caça furtiva”, na
opinião de Michel de Certeau. Por outro lado, o leitor é sempre pensado pelo autor, pelo comentador e pelo
editor como devendo ficar sujeito a um sentido único, a uma compreensão correta, a uma leitura autorizada.
Abordar a leitura é, portanto, considerar, conjuntamente, a irredutível liberdade dos leitores e os
condicionamentos que pretendem refreá-lo (1988, p.123)

O papel da leitura para crianças nos reporta a relações ambíguas, identificadas tanto por
situações de desconforto e desprazer que elas experimentavam ao serem obrigadas a decorar
partes ou lições inteiras, como pelo prazer provocado pela leitura de histórias atrativas que lhes
proporcionavam a aprendizagem de conhecimentos interessantes. Além dos sentimentos
registrados serem ambíguos, ora nos remetendo a uma visão saudosista e melancólica, ora nos
trazendo lembranças amargas e tristes, um fator importante deve ser ressaltado: o que
encontramos foram lembranças de adultos que se reportaram aos seus sentimentos de infância, ou
seja, temos a visão dos adultos, não a das crianças leitoras. De acordo com Bosi, devemos
duvidar da sobrevivência do passado tal como foi, pois lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir o passado com imagens e idéias de hoje:

A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de
então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor
(1994, p.55).

Fernandes (2004, p.538), em sua pesquisa sobre a memória de usuários de livros


didáticos, lembrou que as recordações acerca dos livros trazidas pelos entrevistados não podem
ser confundidas com fatos do passado, pois: “São representações ressignificadas no transcorrer do
diálogo presente/passado, a partir de um conjunto de lembranças selecionadas ao longo do tempo,
que se tornaram significativas em um contexto mais amplo da vida do depoente.”
286

Levando em conta esta ressalva, a lembrança evocada pelos leitores a respeito de sua
relação com a leitura e livros está permeada pelo senso crítico do adulto que a recorda. Bosi citou
como exemplo, a experiência da releitura que o adulto faz de um livro lido na infância, na qual a
diferença está no teor das idéias e das reflexões surgidas da nova leitura, sobretudo, no que se
refere às diferenças entre os dois contextos psicológicos:

A atenção da criança leitora fixa-se nos mil acidentes de paisagem, e a sua curiosidade insaciável é atraída
pelos fenômenos estranhos ou violentos da natureza, uma erupção vulcânica, um ciclone, uma nevasca, uma
tempestade, ou por animais e plantas insólitas. O adulto muitas vezes passa rapidamente por estes aspectos e
detém-se, de preferência, na descrição de costumes, de tipos humanos, de instituições sociais que, por sua
vez, pouco dizem à experiência infantil (1994, p. 58).

Como já ressaltamos, os livros de leitura chegaram às mãos de crianças que viviam em


diferentes regiões do Brasil. Em Goiás, a poetisa Cora Coralina257 registrou, em seus poemas, que
entrou para a escola doméstica da mestra Silvina com seis anos, por volta do ano de 1895. No
poema A escola da mestra Silvina, a poetisa narrou sua rotina na escola, escrevendo sobre a velha
e boa mestra, sobre os constantes ‘bolos de palmatória’, e sobre o que lia sob os olhares atentos
dos retratos dos marechais Deodoro e Floriano, no alto da parede:

A gente chegava “- Bença, Mestra”. Sentava em bancos compridos, escorridos, sem encosto. Lia alto lições
de rotina: o velho abecedário, lição salteada. Aprendia a soletrar. Vinham depois: Primeiro, segundo,
terceiro e quarto livros do erudito pedagogo Abilio Cesar Borges – Barão de Macaúbas. E as máximas
sapientes do Marquês de Marica (1977, p.40).

Na visão de Cora, os livros do ‘erudito pedagogo’ eram importantes instrumentos na


aprendizagem da leitura. Em outra passagem, a poetisa descreveu, mais uma vez, sua relação com
estas obras, expressando suas saudades:

Quanto daria por um daqueles velhos bancos onde me sentava a cartilha de “ABC” nas minhas mãos de
cinco anos, quanto daria por um daqueles velhos livros de Abílio César Borges, Barão de Macahubas e
aquelas máximas de Marquês de Marica, aquela enfadonha tabuada de Trajano custosa demais para meu
entendimento de menina mal amada e mal alimentada. Meus vinténs perdidos, tão vivos na memória (1987,
p.68).

257
Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretas nasceu na Cidade de Goiás, antiga capital do Estado, em 1889. Adotou o pseudônimo
de Cora Coralina e ficou conhecida também como Aninha da Ponte da Lapa. Doceira de profissão e com instrução primária,
publicou seu primeiro livro aos 75 anos de idade. Ficou famosa, sobretudo, quando suas obras chegaram até as mãos de Carlos
Drummond de Andrade, quando já ela tinha quase 90 anos de vida. Seus poemas se caracterizam pela espontaneidade com a qual
traçava o povo, os costumes e os sentimentos de Goiás. Publicou: Estórias da Casa Velha da Ponte, Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais, Os Meninos Verdes, Meu Livro de Cordel, O Tesouro da Velha Casa, Becos de Goiás; e Vintém de cobre: meias
confissões de Aninha. Em 1983, foi eleita Intelectual do Ano e recebeu da União Brasileira de Escritores, o Troféu Juca Pato. Cora
faleceu em 10 abril de 1985, em Goiânia.
287

Os livros eram preciosos para Cora e a saudade de um objeto perdido aflorou no seguinte
registro: “quanto daria por um daqueles velhos livros de Abílio César Borges”, indicando que o
livro poderia trazer-lhe de volta algo bom da infância que se perdeu com ela. O adulto, segundo
Bosi, não se contenta em narrar como testemunha de história neutra, ele quer também julgar,
marcando bem o lado em que estava naquela altura da história, reafirmando sua posição ou
matizando-a. É o caso de Cora em seus poemas, nos quais sua infância não é invocada como uma
fase idílica, pelo contrário, a poetisa fazia questão de enfatizar momentos duros e tristes,
registrando seu repúdio ‘invencível’ à palavra ‘infância’. Como bem ressaltou Drummond, Cora
não ornamentava a infância com ‘flores falsas’258.
Para Halbwachs (1990, p.71) “A lembrança é em larga medida uma reconstrução do
passado com dados emprestados do presente, além disso, preparada por outras reconstruções
feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada”. O
parâmetro estabelecido pela poetiza para analisar sua meninice era a infância do momento em
que escreveu suas memórias, mais de meio século depois. Tanto que acrescentou: “Jovens,
agradeçam a Deus todos os dias terem nascido nestes tempos novos...”. Cora, sem dúvida, não
foi adepta do mito da infância feliz, porém é interessante observarmos que, apesar das agruras de
sua infância na escola, dos castigos físicos, das humilhações e do sentimento de inferioridade
narrado, ela se referia aos livros do barão como algo que lhe causava saudades. Esses livros de
que ela tanto sentia falta destacavam as ‘máximas do marquês de Maricá259’ e buscavam os livros
de leitura da enfadonha tabuada de Trajano. A poetisa lembrou, da mesma forma afetiva, outros
livros inesquecíveis, os quais resumiam seus poucos bons momentos na infância, como as
histórias de carochinha, um livro de capa escura, parda, dura e com desenhos em preto e branco.
Inácio (2005, p.126), ao pesquisar o mestre-escola em Goiás, em 1930-1964, recorreu aos
depoimentos orais de diferentes professores e alunos que estudaram no referido período,
constatando que as obras de Abilio foram as mais citadas. Estudante de uma escola rural na
década de trinta, o Sr. Pedro fez uma referência à série de livros de leitura de Abilio destacando:
“Naquele tempo (...) tinha um livro, esse livro de história preparatória era bão dimais. Explicava
coisa dimais. (...) começava na cartilha, depois primeiro livro, segundo, terceiro e depois o

258
Sobre sua infância na família e na escola, ver mais nos poemas: Nasci antes do tempo; Meu vintém perdido; Criança; Menina
mal amada; Normas de educação; Mestra Silvina; Os aborrecimentos de Aninha; O prato azul-pombinho; A escola da mestra
Silvina e Minha infância.
259
Abilio era adepto do uso de máximas. Como já ressaltamos, no Quarto livro de leitura, o autor dedicou uma lição para o
marquês de Maricá, e suas máximas.
288

quarto, na hora do quinto já vinha a história do Brasil.” Nos depoimentos desta pesquisa, é
comum encontrarmos passagens deste tipo, de pessoas simples, sobretudo da área rural que
estudaram pouco, mas que se lembram dos livros de forma positiva.
Cabrini (1994, p.120), em sua pesquisa sobre os leitores de Felisberto de Carvalho, citou a
impressão de Patativa do Assaré que, em seus versos, registrou a relação afetiva de um menino
agricultor com os dois primeiros livros de leitura de Felisberto:

Foi os livros de valô


Mais maió que vi no mundo
Apenas aquele auto
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tiro da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Felisberto.

Freyre (1990), recorrendo a depoimentos de pessoas que viveram suas infâncias no fim do
século e XIX e início do século XX, descreveu passagens da vida escolar de personagens em
diversos lugares do Brasil. Os depoimentos apresentam dados interessantes de métodos, livros
adotados, castigos e outros fatos que caracterizavam as escolas brasileiras. Waldemar Martins
iniciou sua vida escolar aos seis anos, em 1885, no Colégio Mineiro, em São Paulo, onde
aprendeu a ler pela cartilha de João de Deus, estudando, também, na Gramática portuguesa de
Coruja, ao mesmo tempo em que lia o Primeiro livro de leitura de Abilio. Ele recorda que foi um
estudante pobre e que, na escola, tudo se aprendia nos livros, que eram lidos e decorados ao ‘pé
da letra’. Aos sábados, havia sabatinas entre meninos e meninas e os que erravam tomavam bolos
de palmatória dos que acertavam.
Gilberto Amado, ao relembrar sua vida escolar em História da minha infância, no início
do XX, no interior do Sergipe, registrou dados sobre sua escola doméstica, seus colegas e sua
mestra, Sá Limpa, (Dona Olímpia). Na sala atijolada, com três bancos altos encostados na parede,
nos quais os meninos não encostavam os pés no chão, a tabuada era decorada e cantada,
juntamente com a leitura tomada dos livros de leitura do barão de Macahubas e de Tomás
Ribeiro. Os mais ‘adiantados’ se exercitavam na Gramática do Dr. Abilio e no Tesouro de
leitura. Amado lembra que os meninos tinham entre seis e dez anos, havendo alguns alunos com
até dezoito anos, como João Balaio que
289

Vinha todos os dias à escola com o primeiro livro de leitura e um caderno dentro de uma caixa de charutos.
Era grande, magro e seco. Durante o ano que tivera na escola, não aprendera a tabuada sequer; era lhe
impossível somar números simples; do primeiro livro de leitura não passou. Era incapaz de soletrar (1958,
p.61).

Abreu (1978), ao escrever suas memórias da infância vivida em Curralinho, interior de


Goiás, no início do século XIX, ressaltou sua aprendizagem na série de livros de leitura do barão
de Macahubas. O autor registrou dados de sua escola doméstica primária, destacando o mestre
Virgílio, um mestiço de personalidade forte, o ‘terror da meninada’. A leitura se dava à custa de
muitos castigos físicos. Além dos bolos da palmatória, o faltoso era posto na porta da escola, de
braços abertos, tendo na cabeça um capacete de papelão com palavras alusivas à indisciplina e
sobretudo à leitura não correta. Abreu lembra que, quando o aluno concluía corretamente o
Primeiro livro de leitura, era promovido, com festas, à leitura do Segundo livro, ou seja, a
primeira etapa estava vencida.
Na obra Infância, o escritor Graciliano Ramos discorreu sobre sua vida de menino,
incluindo sua relação com os livros de leitura. Antes, experimentou decifrar ou gaguejar, como
registrou, as primeiras letras nas cartas de ABC e as palavras que o artodoavam no final da carta
de ABC. O autor confessou que não lia direito a ‘excelência do papel escrito’, nem conseguia
mastigar os conceitos sisudos: “Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. Esse Terteão para mim
era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta”. Diante de sua dúvida de
menino, perguntou para sua irmã, quem, afinal, era ‘Terteão’? Ao ouvir a resposta honesta da
irmã, de que não sabia, o menino, triste, ficou aguardando novas decepções em relação aos
personagens que viriam nas lições seguintes (1982, p.109).
De acordo com Ramos, sua primeira relação com a leitura se deu em uma manhã
“funesta”, quando seu pai insistiu que ele deveria se inteirar das maravilhas da leitura e tornar-se
um ‘sujeito sabido’. Relutante, o menino concordou em ler os livros de leitura, lembrando: “Bom
virem logo. Piores que os folhetos não deveriam ser”. Após sua entrada na escola primária, veio
um bilhete para os pais no qual se pedia o Segundo livro:

Meu pai manifestou surpresa com espafalhato. Houve uma aragem de otimismo, chegaram-me retalhos de
felicidade. Ofereceram-me um carretel de linha, mandaram-me comprar uma folha de papel vermelho na
loja de Seu Filipe Benício, obtive uma tesoura, grude, pedaços de tábua, e fabriquei no alpendre um
papagaio que não voou. No jantar deram-me toucinho. E exibiram-me a preciosidade que exteriorizava meu
progresso: volume feio, com um retrato barbudo e antipático. Ericei-me, pressenti que não sairia boa coisa
dali. Realmente, encrenquei, para bem dizer caí num longo sono, de que a perseverança da mestra não me
290

arrancou. Eu nunca revelara nenhum gênero de aptidão. (...) Depois, muito depois, avancei uns passos na
sobra. Recuei, desnorteei-me. Andei sempre em ziguezagues. Certamente não foi o Segundo livro a causa
única do meu infortúnio. Houve outras, sem dúvida. Julgo, porém, que o maior culpado foi ele (Ibid, p.124).

Demonstrando uma relação nada afetiva com o Segundo livro de leitura do barão de
Macahubas, Ramos narrou, de forma severa, sua leitura de má vontade em um ‘grosso volume
escuro’, onde, nas incontáveis folhas delgadas, as letras miúdas fervilhavam e as ilustrações
avultavam num papel brilhante “como rasto de lesma ou catarro seco.”. Ao principiar a leitura,
‘emperrou’ na história de um menino ‘vadio’ que, no caminho da escola, se retardava a conversar
com os passarinhos recebendo destes bons conselhos:

- Passarinho, queres tu brincar comigo?


Forma de perguntar esquisita, pensei. E o animalejo, atarefado na construção de um ninho, exprimia-se
de maneira ainda mais confusa. Ave sabida e imodesta, que se confessava trabalhadora em excesso e
orientava o pequeno vagabundo no caminho do dever.
Em seguida vinham outros irracionais, igualmente bem intencionados e bem falantes. Havia uma
moscazinha, que morava na parede de uma chaminé e voava à toa, desobedecendo às ordens maternas.
Tanto voou que afinal caiu no fogo (Ibid, p.127).

Estas duas passagens, de acordo com Ramos, intrigavam-lhe da mesma forma que o barão
de Macahubas. Ao avistar o retrato do barão260, descrito como um tipo de barbas espessas,
semelhante ao mestre rural visto anos atrás, carrancudo, cabeludo e perverso, foi assaltado por
‘maus presságios’. Para Ramos, o barão era ‘perverso’ com a mosca inocente e com os leitores,
pois o que ele fazia era intentar elevar as crianças, os insetos e os pássaros ao mesmo nível dos
professores. Era um doutor que, infelizmente, nas palavras de Ramos, utilizava bichinhos para
impor a linguagem dos doutores. Para Graciliano, o passarinho que respondia com preceito e
moral e a moscazinha que usava adjetivos colhidos no dicionário, ou seja, o pedantismo atribuído
às personagens, era a própria figura do barão, ao qual o autor se referia com estas palavras:
“Ridículo um indivíduo hirsuto e grave, doutor e barão, pipilar conselhos, zumbir admoestações.”
Ao comparar o passarinho moralista e a mosca pedante com a figura do barão, Graciliano
demonstrou o desafeto que o autor do livro lhe inspirava. Galvão (2001), ao investigar sobre o
cotidiano da escola primária (1890-1920), na Paraíba, analisou a representação que os alunos
construíam a respeito da leitura. Os personagens dos livros de leitura eram considerados pelos
leitores como parâmetros de comparação e de identificação ou não, em relação a si próprios ou

260
Nas primeiras edições do Primeiro e Segundo livro, não havia o retrato de Abilio.Já do Terceiro livro constava este retrato
descrito por Graciliano, o que nos leva a crer que o retrato, pintado em 1875, foi anexado a partir desta data.
291

aos que lhes eram significativos. Citou o exemplo de Carlinhos (Doidinho) que relacionou
Napoleão ao ‘Seu Maciel’, professor de seu cotidiano, devido à crueldade de ambos.
As lições, sem sentido desanimavam o menino Graciliano, que lia bocejando, soletrando,
gaguejando e nauseado:

Os meus infelizes miolos ferviam, evaporavam-se, evaporavam-se, transformavam-se em nevoeiro, e nessa


neblina flutuavam moscas, aranhas e passarinhos, nomes difíceis, vastas barbas pedagógicas. Achavam-me
obtuso. A cabeça pendia em largos cochilos, os dedos esmoreciam, deixava cair o volume pesado. Contudo
cheguei ao fim dele. Acordei bambo, certo de que nunca me desembaraçaria dos cipoais escritos (Ibid,
p.128).

Indagou então de quem seria o defeito, do barão ou dele? Assumiu a culpa, pois o barão,
nas palavras dele, deveria ser um homem coberto de ‘responsabilidades’ e que, com certeza,
‘escrevia direito’. Porém continua afirmando que o exercício lhe produzia enjôo. O que lhe
restava era a esperança e a ilusão de que o Terceiro livro não fosse tão ruim como o Segundo. Se
o catecismo tivesse algum significado, pediria a Deus para livrá-lo do barão de Macahubas,
porém essa libertação nenhum proveito lhe daria, afinal, “os outros organizadores de histórias
infantis eram provavelmente como ele”.
Graciliano registrou ainda a lembrança penosa guardada de sua infância (próximo dos sete
anos), de seus rascunhos pavorosos e a da dificuldade em aprender a ler. Os pontos, as vírgulas,
os parênteses e as aspas lhe produziam um sono terrível e, para piorar a situação, foi nesse tempo
que lhe impuseram Camões em “medonhos caracteres borrados”, que o levou a concluir:

Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua
estranha, as filhas de Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. Um desses barões era
provavelmente o de Macaúbas, o dos passarinhos, da mosca, da teia de aranha, da pontuação. Deus me
perdoe. Abominei Camões. E ao barão de Macaúbas, associei Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, o
gigante Adamastor, barão também, decerto (Ibid., p.130).

Ao receber o Terceiro livro do barão, confessou que o abriu desgostoso e tornou a


‘encalhar’ nas regras de pontuação. Invejava os colegas que liam com clareza e depressa,
enquanto que seus ‘desgraçados’ olhos vagueavam pelas páginas amareladas e molhavam os
‘contos execráveis’ do barão de Macahubas261.

261
Após narrar sua experiência com os livros do barão, Graciliano dá seqüência a sua análise de livros que fizeram parte de sua
infância. Apesar de admitir que a escola primária sofreu algumas alterações, registrou que não havia pior prisão que ela e que as
cinco horas de suplício que passava imobilizado no banco escolar se comparavam a uma crucificação. Aos nove anos, ainda não
sabia ler, continuando a escola para ele funesta por um bom tempo: “Na ausência do mestre, bocejávamos, olhávamos as
andorinhas no céu, as largatixas brancas na parede e os lombos temerosos dos livros nas estantes” (Ibid., p.206)
292

Para Santos (2001), pesquisadora da obra Infância, Graciliano expôs nesta obra questões
de ordem social, com o artifício do testemunho do menino. Levando em conta os liames da
memória e a abrangência poética ficcional do texto, a obra leva a refletir sobre a maneira como
eram consideradas as crianças num determinado período da história. Constituía assim, na
representação de um menino, o poder dos adultos sobre a criança uma espécie de prisão escolar e
familiar que se mascarava sob a necessidade de proteger vigiando ou de punir para educar.
Ao discorrer sobre o tema, Arroyo (1990, p.130) citou o depoimento de Antônio de
Oliveira, feito na transição entre o Império e a República, no qual o memorialista registrou que
guardara verdadeiro ‘pesadelo’ de um dos livros de Felisberto de Carvalho em função de uma
história em que o filho matava o pai. Porém o mesmo Antônio guardou imperecível lembrança do
livro de Hilário Ribeiro, o encanto de sua meninice, lembrando “quando pegou fogo em nossa
casa, andei perto de morrer queimado, ao tentar salvá-lo das chamas.”
Estes depoimentos nos reportam a várias leituras sobre as relações com os livros de
leitura. Um dado que pode nos esclarecer até que ponto os relatos se aproximam do cotidiano
escolar do passado e como os valores atuais podem remodelar a memória, se refere à escolaridade
e ao papel ocupado pela pessoa no momento em que escreveu suas memórias. Fernandes (2004)
ressaltou que, quanto maior a escolaridade do entrevistado, maior o número de lembranças sobre
o tema, mesmo que o depoente seja mais velho. As pessoas de menor escolaridade se recordaram
menos dos livros. Também o fato de, atualmente, os livros serem criticados por educadores,
interferiu nos depoimentos, independente do uso que dele tenha sido feito em outras épocas, pois
o presente acomoda o passado e o transforma. É o caso de Graciliano Ramos, um escritor crítico
que não via os livros com bons olhos e de Cora que, como poetisa, valorizava a leitura, enquanto
que os leitores mais simples lembraram o livro lembrado com indiferença ou com valorização.
Não é evidente em que idade e em qual série eram adotadas essas obras. Para Abilio, os
mestres nunca deveriam se ocupar com discípulos de menos de sete anos de idade, como já
relatamos. De acordo com os depoimentos, podemos especular que os leitores dos livros de
leitura se iniciavam no Primeiro livro em torno dos cinco, seis, sete anos, porém é difícil afirmar
com precisão com que idade passavam para outro livro, pois isto dependia do ‘talento natural da
criança’. Registros nos apontaram que uma criança permanecia um bom tempo no Primeiro livro.
Outros como Graciliano, apesar da dificuldade, assim que entravam para a escola, solicitavam
que os pais providenciassem o Segundo livro.
293

A série de livros de leitura servia não somente para verificar a capacidade do


conhecimento da criança, como também para identificar seu grau de amadurecimento. De acordo
com Postman262, uma das condições pelas qual uma criança se tornava adulta era ditada, em larga
medida, pela natureza dos livros e das escolas:

Por exemplo, ao escrever livros escolares seriados e organizar classes escolares de acordo com a idade
cronológica, os professores inventaram, por assim dizer, os estágios da infância. Nossas noções do que uma
criança pode aprender ou deve aprender, e em que idade, foram em grande parte derivadas do conceito de
currículo seriado; isto é, do pré-requisito. [...] Ao criarem o conceito de uma hierarquia de conhecimento e
habilidades, os adultos inventaram a estrutura do desenvolvimento infantil ( .

Postman lembra que esse fator tornava a infância um nível de realização simbólica, na
qual:

O primeiro estágio da infância terminava no ponto em que o domínio da fala era alcançado. O segundo, na
tarefa de aprender a ler. Na verdade, a palavra child era muito usada para designar adultos que não sabiam
ler, adultos que eram conhecidos intelectuais infantis. [...] Mas o vínculo entre educação e a idade
cronológica das crianças levou algum tempo para se desenvolver. As primeiras tentativas de estabelecer
classes ou séries de alunos se basearam na capacidade de ler dos alunos, não em suas idades cronológicas. A
diferenciação por idade veio mais tarde (1999, p.56).

A série de livros de leitura era uma espécie de termômetro que anunciava os progressos
dos alunos ou marcava um ritual de passagem263. Progresso e talento individual mediam a
capacidade de passar de um livro para outro, o que, muitas vezes, não era feito sem sacrifícios,
como exemplificou Coralina (1987, p.127): “Repassar folha por folha, gaguejando lições num
aprendizado demorado e tardo. Afinal, vencer e mudar de livro”. Da mesma forma, o menino
Carlinhos, da obra Doidinho, realizou seu exame (tremendo e gaguejando) no internato com o
Segundo livro de leitura de Felizberto. Foi considerado um menino ‘atrasado’, pois, aos onze
anos, ainda estava no segundo livro de leitura, enquanto que outros meninos menores já liam

262
Para Postman (1999), o sentimento moderno de infância se originou do tripé: alfabetização, conceito de educação e vergonha.
A idéia de inocência infantil estava relacionada ao sentimento de vergonha e de pudor do adulto perante as crianças. Baseando-se
em Norbert Elias, Postman ressaltou o papel da civilidade nesse processo. Havia uma preocupação ampliada voltada para a
criança em sua suposta pureza original, sendo a intimidade reforçada pela criação de espaços próprios, por vestimentas e
atividades específicas para a criança. O segundo argumento relaciona-se com a preocupação dos adultos para com a infância, o
que resultou em teorias sobre o desenvolvimento infantil e o aparecimento de instituições específicas para a formação dos
mesmos: os colégios.
263
Na obra Saudade, de Thales de Andrade, publicada em 1919 e apresentada como Livro de leitura para o 3o e 4o anos, o menino
Mário (personagem principal) foi avaliado pela professora em seu primeiro dia de aula para demonstrar o que ‘sabia’. A mestra
solicitou que abrisse o livro e lesse a página 10. Sentindo confiança, Mário abriu o livro: “Era o primeiro livro de João Köpke,
livro muito conhecido e do qual eu tanto gostava. (...) Comecei: - ‘O periquito.’ Um homem tinha um periquito. Era um periquito
muito bonito....”. Ao perceber que Mário lera até o fim com segurança, a mestra disse: “- Está bem. Você precisa de um livro mais
difícil. À tarde veremos isso.” (ANDRADE, Thales de. Saudade. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1966:p.66)
294

Coração264. Ao falar sobre seus colegas do internato, Carlinhos se referiu ao Papa-Figo, um


menino que não aprendia nada, “Estudava em um livro em pedaços, de tão velho, e não passava
pra outro” (1974, p.13).
Fazer com que o aluno lesse sem opressão era uma preocupação de Abilio, pois a criança
de ‘coração aflito’ pela pressão dos mestres tinha uma impressão desagradável da leitura e,
quando se ‘aclarava’ a compreensão do menino, ficando ele satisfeito, calmo, de coração
desassombrado e sereno, a leitura era a mais gostosa das ocupações, garantia o autor. Apesar dos
inúmeros conselhos de Abilio para que os professores não recorressem ao castigo físico e
incentivassem a leitura e a aprendizagem dos pupilos por meios ‘não alvitantes’, a aprendizagem
da leitura, para muitas crianças deste período, não se dava sem sacrifícios e sem castigos e
punições. Os mestres pareciam não entender o princípio da ‘pedagogia moderna’ e a palmatória e
outros tipos de castigos físicos eram utilizados pelos professores a qualquer falta das crianças e
aprovados pelos pais. Cora descreveu bem como se dava esta educação ‘nos conformes’:

Um dia, certo dia, a mestra se impacientou.


Gaguejava a lição, truncava tudo. Não dava mesmo.
A mestra se alterou de todo, perdeu a paciência e mandou enérgica: estende a mão!
Estende a mão! Mão de Aninha, tão pequena!
A meninada pensando nalguns avulsos para eles, nem respirava, intimidada.
Tensa, espectante repassada. Era sempre assim na hora dos bolos em mãos alheias.
Aninha, estende a mão. Mão de Aninha, tão pequena.
A palmatória cresceu no meu medo, seu rodelo se fez maior, o cabo se fez cabo de machado, a mestra se fez
gigante e o bolo estralou na mão obediente.
Meu berro! E a mijada incontinente, irreprimida. Só? Não. O coro do banco dos meninos, a vaia impiedosa.
− Mijou de medo... Mijou de medo... Mijou de medo...
A mestra bateu a régua na mesa, enfiou a palmatória na gaveta, e, receosa de piores conseqüências, me
mandou para casa, toda mijada, sofrida, humilhada, soluçando, a mão em fogo. (...) Infância... daí meu
repúdio invencível à palavra saudade, infância (1987, p.115).

A leitura em voz alta, um método recorrente no período, não tinha somente o objetivo de
verificar a relação de conhecimento, pois não bastava somente ler, era preciso ‘falar bem’, de
acordo com a máxima de Graciliano, ‘fala pouco e fala bem’. Isso significava ler corretamente a
língua portuguesa, recitar sem gaguejar (como apontou Cora) a lição.

264
A obra Cuore (Coração), de Edmundo de Amicis, foi publicada na Itália, pela primeira vez, em 1886. De acordo com Pfromm
Neto (1974, p.174), este livro de leitura escolar e, ao mesmo tempo, obra clássica de literatura infantil, conquistou as crianças
brasileiras, a partir do final do século XIX até meados do século XX. Influenciou autores, como Arnaldo Barreto, Olavo Bilac,
Júlia Lopes e outros. A história do menino Henrique, contada em forma de diário, compõe o quadro de recordações de diferentes
pessoas. Lobato (1972, p. 246), se queixando da falta de obras para crianças, escreveu a Rangel, no ano de 1916, ressaltando que
“Mais tarde só poderei dar-lhes o Coração de Amicis – um livro tendente a formar italianinhos.”
295

Para Abilio e outros educadores, a leitura, além de inserir a criança ao mundo ilustrado,
tinha a função de disciplinar seu corpo, daí a importância de se exigir uma postura correta e
corrigir os defeitos dos leitores, sobretudo no início da aprendizagem da leitura. Para ler, era
preciso ‘acertar’ a postura física, por isso os mestres exigiam das crianças uma maneira correta de
segurar o livro, virar as páginas, postar a voz, pontuar o texto e pronunciar corretamente.
Gondra (2000) chamou isso de ‘higienização da leitura’, questão trabalhada pelos médicos
higienistas para que a criança adquirisse posturas corretas para o desenvolvimento deste ato.
Além dos mobiliários, da iluminação, eram necessárias práticas de leitura silenciosa, em voz alta,
recitação, respiração adequada, de modo a coordenar os órgãos respiratórios com o bom uso dos
aparelhos de fonação. Essa preocupação também foi manifestada no Parecer de Rui Barbosa, em
1882, de acordo com o qual deveria-se considerar a higiene escolar, uma vez que o
posicionamento da luz, as edições defeituosas dos livros escolares, a mobília inadequada
poderiam prejudicar o ensino, indicou Machado (2005).
Em uma grande parte das lembranças registradas deste período, os conselhos ou exemplos
de educação amorável, tão presentes nos discursos de Abilio, não compunham a prática registrada
nas memórias de pais e de professores. Certamente, deveria existir uma relação de mimos e de
cuidados para com a infância, porém uma boa parte das fontes nos reporta a um ambiente escolar
com disciplina rigorosa, supervisionado e controlado por adultos, sendo que este rigor se estendia
à prática da leitura.
Críticas, laudatórias ou nostálgicas, as lembranças conferiram um lugar importante ao
tempo de leitura e aprendizagem. Refletindo tanto uma afirmação do presente, ou mesmo do
futuro, quanto uma visão objetiva do passado, muitas vezes mitificada. A infância é mais
representada que descrita, sendo estas representações marcadas pela ansiedade social, moral e
política da obrigatória seleção trazida pelo tempo e da deformação operada pela memória. Como
afirmou Darnton (1990), provavelmente é a palavra central para este tema, pois podemos apenas
fazer suposições sem descartar a possibilidade de que as crianças tenham interpretado os textos
de uma maneira que nos escapa inteiramente.
Neste capítulo, pudemos averiguar que os livros de leitura, tradução viva da prática
educativa do nosso autor, tinham por objetivo servir como instrumentos na transformação dos
valores e hábitos dos pequenos leitores. É expressiva a carga atribuída à criança para garantir o
futuro de um país ideal, projeção esta que, não podemos perder de vista, estava posta no período
296

pela grande maioria, pois este era o caminho de se chegar à civilização. A construção da imagem
da criança ideal, pautada sobre os princípios da ciência e da religião, era necessária, daí a
discussão dos livros atrativos, alegres e de acordo com a compreensão infantil. Abilio colocou em
prática e escreveu os ‘livrinhos’ para que seus pequenos leitores tivessem contato, através de
histórias de seu cotidiano, com situações que os levariam a refletir acerca da importância de
serem dóceis, polidos e, acima de tudo, valorizarem a escola, a família e a religião, um tripé
essencial para caminhar rumo a sociedade civilizada e harmônica.
Esta crença no poder extraordinário do livro, sustentada pela suposta neutralidade cultural
do ato de ler, estava presente tanto na política educacional da Reforma quanto nas expansões
escolares do século XIX. Segundo Hébrard (In CHARTIER, 1996), este otimismo pedagógico,
presente em vários tempos e lugares, conhecia a modalidade da leitura apenas enquanto pura
mensagem para transformar a cera mole que se imagina ser o leitor. No entanto, esta intenção
pode ter sido desviada de seus fins, seja porque os grupos sociais apoderam-se, por contágio, das
práticas escritas ou porque saber ler pode conduzir a más leituras.
Portanto a escola não é o lugar onde que se adquire leitura, mas o lugar onde maneiras de
ler se revelam. Desta forma, podemos notar que o esforço de Abilio no investimento de livros
apropriados e seguros para a criança adquirir as boas maneiras pode ter sido em vão, até porque
estes materiais, isolados, não tinham o poder de formar ou deformar personalidades. Contudo os
livros podem ter sido objetos de prazer, pois as crianças, ainda hoje, se divertem com histórias
que traduzem seus comportamentos ou mesmo que trazem animais ou outros elementos de ficção
e fantasia.
Considerações finais

Após um intenso trabalho de análise das diferentes fontes, visando abordar, descobrir,
interpretar, confrontar, indagar e escrever a respeito dos aspectos educacionais referentes à
infância, os quais foram pensados, divulgados e defendidos por Abilio, podemos tecer
algumas considerações finais, levando em conta que o tema é amplo e apresenta lacunas como
todo trabalho historiográfico, podendo ser elucidado em outras pesquisas.
Abilio Cesar Borges, foi um homem de seu tempo, conforme afirmamos no primeiro
capítulo. Contudo isto não significa que a sociedade fosse homogênea e nem que todos os
sujeitos provindos de uma mesma classe social agissem de forma semelhante. Ao apresentar o
autor como um homem de seu tempo, a nossa intenção foi de historiar suas práticas e
propostas com o objetivo de compreender como um educador deste período pensava a
infância e sua educação. Ao interpretarmos o passado, não podemos partir de conclusões a
priori e, muito menos, nos basearmos somente nos juízos positivos ou adversos dos
personagens que estudamos. Da mesma forma, devemos evitar posturas que procuram
acomodar ou explicar o passado pelas circunstâncias atuais. Procuramos, portanto, olhar para
o nosso tema e recorte histórico, buscando identificar, primeiramente, as características
próprias deste período, para então nos debruçarmos sobre a análise do objeto de estudo.
O século XIX foi, sem dúvida alguma, um tempo dinâmico no que se refere ao
contexto cultural e educacional brasileiro. Um tempo de homens eruditos que se projetaram
em uma sociedade plena de contradições e sobretudo, em uma sociedade escravista que estava
distante não somente da cultura escrita, como de quaisquer outros bens. Com as contradições
próprias da época, uma geração de ‘ilustrados’ elaborou e definiu uma série de elementos que,
durante muito tempo, nos legaram as idéias que temos a respeito da infância escolar. A
instrução da criança fazia parte dos projetos de modernização educacional que, por sua vez,
estavam inseridos no processo de modernização do país. Desta forma, independente do
discurso, por vezes, privilegiar a infância da elite, de pensar na criança como ‘’um vir a ser’,
de estimular a regeneração do povo pela educação dos pequenos, de formar o futuro
trabalhador dócil e disciplinado, além de outras intenções, o mais importante é perceber que a
infância, via escola e com todas suas particularidades, começou a ser o foco das discussões e
das políticas implementadas no período.
O educador Abilio Cesar Borges foi um dos homens deste período que estava atento e
inserido nas discussões que privilegiavam a criança. Evidentemente o pensamento deste autor,
no decorrer de sua trajetória, refletiu o lugar que este ocupava na sociedade. Provindo de uma
298

classe social abastada, desde cedo, freqüentou escolas privadas e aprendeu o que tinha de
melhor no período. Ao iniciar sua relação com o magistério, primeiro no papel de monitor e,
mais tarde, como professor, na mesma escola em que estudara, depois de formado médico na
escola da Vila de Barra, Abilio, aos poucos, foi se inserindo no mundo do magistério. Não se
trata de reforçar a tão proclamada idéia de ter nascido para tal tarefa, contudo, ao se afirmar
no cargo de Diretor Geral da Instrução, trocando a profissão de médico pela de educador,
demonstrou que a instrução fora, de fato, sua opção. Um médico ocupava um papel relevante
na sociedade da época, era um profissional respeitado e necessário em um espaço no qual as
doenças endêmicas dizimavam uma boa parte da população. Portanto, ao escolher a instrução,
elegendo a infância como foco de seus estudos e produções, Abilio se inscreveu no rol dos
educadores e, se suas idéias não eram tão originais, sem dúvida, suas contribuições serviram
para deixar registradas as contradições e avanços postos para a instrução da infância primária.
Abilio não mediu esforços para ser reconhecido, sua inconfundível vaidade, somada
ao seu desempenho eclético, conforme os parâmetros da época, levou seu nome a ser
identificado não somente em sua província como em todo o Império. Sua inserção em
entidades filantrópicas e instituições intelectuais confirmava sua relação com a ciência e com
a religião, aspectos que marcaram sua trajetória de forma definitiva, afinal, era necessário
estar nestes espaços para realizar o projeto de civilização da população. Ao contrário de ser
um homem isolado e incompreendido, era um homem bem relacionado, ocupando cargos e
papéis na sociedade como jornalista, abolicionista e defensor das causas nacionais, sobretudo,
do regime monárquico, que reconheceu seu esforço e o premiou com o título de barão, um
privilégio que poucas pessoas dedicadas à instrução receberam.
Desta forma, seguindo a prerrogativa da máxima ‘diga-me com quem andas que direis
quem és’, Abilio fazia parte de um grupo da elite que agregava intelectuais e políticos do
Brasil imperial, onde cada um, a seu modo, ansiava por uma solução para os problemas
educacionais do país. Sua participação no campo da instrução e em outros espaços não nos
oferece segurança para inseri-lo puramente na categoria dos liberais ou dos conservadores.
Ele era um monarquista convicto e um católico conservador, contudo se movimentasse em um
círculo amplo que incluía diferentes correntes sociais e políticas.
As contradições de Abilio, marcadas pela defesa da importância da escola e que,
portanto se contrapunham ao acesso total e integral da classe popular, demarcavam as
inquietações de um tempo em que o processo de escolarização estava em construção, não
estando definidos de forma evidente e clara os princípios e objetivos da escola pública.
Enfatizamos a importância de sua participação nas discussões dos projetos educacionais do
299

período, chamando a atenção do leitor para o empenho do autor na divulgação do ensino


primário, através de seus materiais pedagógicos destinados a pais e professores, assim como
para seus livros destinados à infância brasileira, que demonstram um profundo envolvimento
com a instrução e, conseqüentemente,com a infância escolar.
Na visão do autor, a criança deveria ser educada e instruída por adultos capazes de
compreender seu desenvolvimento particular, portanto ela deveria receber atenção
permanente, quer seja no sentido da vigilância para evitar que se manifestassem suas paixões
e vícios ou seja para corrigir seus defeitos. Desta forma, prescreveu uma série de medidas
para os adultos compreenderem a infância enquanto portadora de características próprias e,
por outro lado, ensinou para as crianças leitoras como deveriam se portar na escola e na
família. Algumas dessas orientações eram dirigidas à infância pertencente à elite, contudo
uma boa parte tinha por objetivo abarcar a infância em geral, pois a esta categoria era
atribuída a pesada responsabilidade de encaminhar o país rumo à tão sonhada civilização.
Para Abilio, a criança, antes de tudo, não era vista como um adulto em miniatura e sim
um ser em desenvolvimento que merecia cuidado particular. Não era portadora de uma
inocência nata, ao contrário, trazia consigo ‘pequenos defeitosinhos’ que deveriam ser
corrigidos pelo adulto. Não era ‘tão má’ como pensavam algumas pessoas, era moralmente
frágil, porém propensa a receber bons ensinamentos. Era uma criatura feita por Deus, portanto
tinha que ser educada sob os princípios morais religiosos. Era o futuro adulto, daí a
necessidade de uma instrução que lhe garantisse conhecimentos científicos e literários para
atuar posteriormente na construção da sociedade moderna.
Diante desses princípios básicos, Abilio investiu na tese de que, para formar uma
‘nova infância’, era preciso uma ‘nova escola’,pois a existente não assegurava a formação
adequada. Além de ser um ambiente rígido, com professores despreparados que puniam os
pupilos à menor falta, não havia livros adequados, métodos coerentes à natureza infantil e,
muito menos, prédios escolares apropriados. Se a escola era a maior responsável pela
formação integral da criança que aprenderia ali, além das regras de convivência, os
conhecimentos úteis para o trabalho, era preciso convencer os pais da importância do ensino
primário. Por isso defendeu a entrada da criança na escola a tempo de freqüentar este ensino,
alegando que, além dos pupilos aprenderem mais e melhor, isso facilitaria sua formação para
o ensino secundário e superior. Por outro lado, era preciso atrair o público infantil para a
escola. Desta forma, ele defendeu um ensino amorável, alegre, atrativo e livre de punições
físicas.
300

O ensino primário, alvo de discussões e políticas que nem sempre levava a bons
resultados, foi eleito pelo autor para formar moralmente e intelectualmente a criança. Para
sustentar suas concepções, Abilio buscou o que havia de referência e servia de modelo na
época. Autores e contextos da educação européia e norte-americana, considerados modelos
por terem experimentado, com relativo sucesso, a inserção da infância no mundo escolar,
eram ressaltados e citados para mostrar conhecimento da causa e também erudição, elementos
importantes para obter crédito junto à sociedade que valorizava a retórica.
Ao iniciar sua trajetória como diretor de colégios privados, implementou o que havia
de mais moderno para o ensino dos filhos da elite que ansiava por espaços que garantissem a
continuidade de suas posições nos postos e cargos chaves da sociedade. Para garantir a
eficácia da instrução e educação de seus discípulos, era preciso separar o mundo da infância
do espaço do adulto, isolando-os da vida pública e doméstica, tanto rural como urbana.
Demarcando o espaço escolar, afastaria as crianças de suas famílias, criticadas por não lhes
imporem regras pertinentes e não cuidarem da forma que deveriam da educação religiosa de
seus rebentos, e também do mundo dos sem ‘eira nem beira’, como os escravos e outros que
poderiam influenciar de forma negativa na formação dos pupilos. As crianças, em seus
colégios, poderiam desfrutar de um ambiente saudável e higiênico e de instrumentos didáticos
que lhe propiciariam uma formação integral. Cuidar do espírito e do corpo era prioridade para
o médico Abilio que, imbuído de argumentos morais e intelectuais, estabeleceu normas e
regras bem pensadas atraindo assim numerosos alunos.
Ao se posicionar contra a entrada precoce das crianças no mundo escolar, ou seja,
antes de seis ou sete anos, sob a alegação de que estas não estavam ‘prontas’ para enfrentarem
a rigidez do ensino, baseou-se no discurso médico acerca do desenvolvimento biológico da
criança. Com isso, sua intenção não era somente a de criticar a implementação dos jardins-de-
infância, já que, antes mesmo da chegada deste nível de ensino, já se posicionava desta forma.
A garantia do bem estar infantil era um argumento forte usado por Abilio. Não podemos
esquecer que, neste período, muitas crianças e jovens tinham a saúde prejudicada nas escolas,
não só devido ao ritmo de estudos, como também pelas condições higiênicas dos colégios. É
compreensível a preocupação deste educador para com a saúde da criança, pois estamos
falando de um período no qual a mortalidade infantil era altíssima, no qual as crianças, pela
sua própria fragilidade, eram as maiores vítimas, tanto das epidemias que assolavam o país,
quanto também das péssimas condições de higiene em que vivia boa parte da sociedade.
Separar as crianças por faixa etária, evitando misturar os pequenos com os maiores,
para evitar o ‘contágio’ das más influências e higienizar o espaço escolar,além do argumento
301

moral., também demonstra mais uma vez que o autor acreditava em uma suposta docilidade
da criança pequena. Abilio tinha claro que o ensino deveria ser apropriado para cada faixa
etária, portanto não era viável misturar diferentes idades como acontecia na época. As
crianças deveriam ter um espaço próprio na escola para evitar que adquirissem vícios e
também propiciar que convivessem com seus pares, facilitando, assim, uma boa formação. O
fato de defender a vivacidade e a espontaneidade própria desta faixa etária, o que já
significava uma compreensão mais acentuada do desenvolvimento infantil, não impediu
Abilio de acentuar sua base educativa e instrutiva em uma pedagogia rígida, típica da época,
pois este era o momento de modelar e imprimir na criança o que considerava apropriado.
Para convencer da necessidade de um ensino amorável, em diversos momentos de sua
trajetória, buscou argumentos na ciência e na religião. A natureza biológica e divina era
tomada como critério principal para ordenar o início da escolarização. Desta forma, a mente
infantil não deveria ser forçada a receber conhecimentos que não eram apropriados para sua
idade. Recorrendo aos argumentos fisiológicos, biológicos, religiosos e românticos, ele
associava a criança a plantas, peixinhos, órgãos do corpo humano e outras representações que
visavam chamara atenção para sua fragilidade merecedora de cuidados especiais.
A aprendizagem deveria ser pautada em doses apropriadas, não sendo conveniente
sobrecarregar a criança com conhecimentos que não lhes fossem úteis. Da mesma forma, o
ensino deveria ser agradável e atrativo para facilitar e incentivar a permanência da criança na
escola. Baseando-se no discurso da psicologia, Abilio manifestou sua preocupação com a
energia física da criança, pois a precocidade intelectual traria um desequilíbrio às forças
mentais da criança, portanto a felicidade era o tônico para aumentar a saúde. Por outro lado,
se a criança era uma obra de Deus, era preciso, mais do que nunca, respeitar suas
particularidades e reconhecê-la como um pequeno ser provindo da divindade. Afinal, se o
mestre dos mestres foi o primeiro a reconhecer a singeleza e a pureza de seus atos, os seres
mortais deveriam agir com prudência e cautela com este público. Desta forma, a crença no
conhecimento da ciência não estava desvinculada da religião.
Para atender às necessidades da infância, era preciso boas escolas, bons professores e
bons livros. Os critérios da boa escola já estavam postos tendo como referências seus próprios
estabelecimentos. O ensino intuitivo, baseado na educação pelo olhar, considerado, no
período, o melhor método de ensinar, proporcionou aos seus pupilos um ensino que se
diferenciou pela qualidade e resultados obtidos. Apesar de se basear na natureza,
aconselhando um ensino proporcional ao tempo da criança, notamos, pelo quadro de matérias
para o ensino primário, um programa extenso que ocupava o tempo dos pupilos de forma
302

integral. Esta era outra necessidade do período, pois disciplinando e organizando o tempo,
evitaria o ócio e contribuiria na formação para o trabalho.
Fortalecer, disciplinar e ordenar o trabalho nas escolas eram requisitos básicos para
moldar o temperamento e regenerar os pequenos. A higiene, princípio caro para o médico
educador, estava relacionada com o cotidiano de seus colégios, pois, através do corpo plástico
e moldável, atingir-se-iam as marcas de um povo higienizado e civilizado, daí o incentivo dos
médicos para que a escola estivesse atenta às normas postas pelas teses higienistas. Assim,
além da prática da ginástica, cada matéria tinha uma função definida.Por exemplo, o ensino da
música serviria para afinar os ouvidos e civilizar as classes sociais, pois proporcionando a
delicadeza e o gosto pelo belo, evitaria as atitudes rudes que iam a contra mão do progresso
almejado. Da mesma forma, o papel do ensino da língua materna era o de garantir a isenção
dos sons rústicos próprios da classe popular. Assim, procurava delegar à criança o cultivo do
bom hábito do estudo, apostando na iniciativa e no talento pessoal com a perspectiva de
formar homens bons, polidos e úteis para a sociedade.
Para formar este homem, era preciso evitar constrangimentos e coerções na escola e na
família.Assim, para Abilio, punir fisicamente a criança não faria desta alguém melhor, pois,
além de prejudicar sua saúde, poderia torna-la apática e servil. Apesar de constar em lei esta
proibição, averiguamos que não se compreendia a escola sem o castigo corporal e a
palmatória era um instrumento que fazia parte do cotidiano escolar. Apesar dos conselhos aos
adultos para agirem com prudência e docilidade, a educação rígida era adotada tanto em casa
como na escola. A correção moral, baseada em exemplos era o ideal para engrandecer a
dignidade da criança e os sentimentos nobres, além de fazê-la amar o estudo, defendeu o
educador . Ao adotar esta postura e apostar na educação branda, fazendo campanhas públicas
contra o uso de castigos físicos na escola, Abilio colocou a criança em uma posição mais
elevada na sociedade. Se não foi possível mudar totalmente o quadro, a discussão serviu para
evidenciar o assunto e pôr em xeque a ineficiência dos castigos corporais.
Não resta dúvida que Abilio escreveu e traduziu um número vasto de obras, tanto para
crianças como para pais e professores, com o intuito de divulgar para os leitores princípios
aos quais considerava representativos. A distribuição gratuita de seus livros traduzia seu
pensamento filantrópico, pois, como pudemos comprovar, tanto o governo imperial como o
provincial não assumiam para si a responsabilidade de assegurar aos alunos pobres a garantia
de livros escolares. Desta forma, independente da vaidade do autor, ele nutria a crença de,
com os livros, levar as luzes às mais remotas vilas, fazendo com que as crianças tivessem em
suas mãos livros que transmitissem conhecimentos básicos. Queremos evidenciar que esta foi
303

também uma forma de divulgar suas obras, propagar seus métodos e seus estabelecimentos e
garantir um retorno financeiro. Por outro lado, ressaltamos que não era comum outros autores
praticarem a benevolência da doação de suas obras.
Quanto aos livros dirigidos para o público infantil, pudemos constatar um afinamento
de seu discurso para com as lições impostas aos seus pequenos leitores. Os livros que
abordamos serviam para introduzir as crianças no mundo da leitura e as lições, em sua grande
maioria, traziam elementos do cotidiano infantil, levando a sério à questão da proximidade
com o mundo da criança. A base essencial de seus livros era a divulgação de dois tipos de
representação de infância, tanto nos textos como nas gravuras. A primeira se fazia com o
exemplo da criança ideal que por si própria era boa, caridosa, doce e exemplar. Para esta
infância, eram dedicadas lições harmônicas onde prevalecia a construção dos bons princípios
que a fazia bela e bem aceita por todos.
A outra representação era de uma criança que já estava corrompida pelo egoísmo,
preguiça, mentira, desleixo, gula e outros vícios. Apresentava, assim, nas historietas, as
fraquezas da incompletude do mundo infantil, defeitos reconhecidos pela própria criança que,
à custa de conflitos, como dor, vergonha, exposição vexatória etc., prontamente se redimia e
afastava de si qualquer atitude que viesse lhe causar problemas. Acabava, desta forma,
compreendendo, de modo resignado, que o melhor caminho era a honestidade, a humildade, a
honra, a disciplina, o trabalho, a responsabilidade, a caridade, a modéstia e outros elementos
que a fariam uma pessoa melhor, mais feliz e sobretudo mais aceita. As lições eram dadas
como uma espécie de roteiro que apresentavam aos leitores descrições do perigo dos erros e
do vício, complementadas pela linguagem da verdade e dos bons exemplos, dados muitas
vezes por adultos, por animais ou pela própria criança. Ele elaborou um sistema de cuidados e
de controle da criança, com tendências a conformá-la a um ideal e igualmente valorizá-la
como um mito.
A formação religiosa foi outro argumento de Abilio relevante e essencial na formação
da infância que idealizava. Adepto dos princípios clássicos da igreja católica, pregados pela
romanização, ele não abriu mão da instrução moral religiosa em toda sua trajetória. Enquanto
outros intelectuais acusavam a igreja de impedir o desenvolvimento científico nas escolas, ele
soube articular e unir a ciência com a religião para instruir as crianças. Através das virtudes
religiosas, alimentava a crença de que a criança aprenderia a ser obediente, disciplinada,
respeitosa além de outros comportamentos morais necessários, não somente para com os pais
e mestres, pois se a criança não temesse estes, ao menos temeria a Deus. Portanto a pedagogia
do temor contidas nas lições de cunho moral religioso tinha por objetivo frear os instintos
304

naturais da criança que a levaria ao mundo dos vícios. A punição divina estava posta no
sentido de intimidar a criança, assim como exaltar a obediência às leis de Deus, estabelecendo
critérios inquestionáveis para se alcançar o céu e a felicidade.
Desta forma, as lições representam a idealização de uma criança que mantinha uma
relação idílica com a família, a escola e a religião, enfim, com a sociedade. Às crianças e aos
pais delegava-se o papel de cultivar o amor filial, pois os pequenos deviam aos pais sua
própria existência no mundo, e os pais deveriam educar as crianças com paciência, conselhos
e bons exemplos, bem aos moldes idealizados pela família burguesa. Na escola, a criança
aprenderia as regras de boa convivência necessárias para sua formação. Seu papel estava
definido, ela deveria amar os estudos, ser aplicada e absorver os conhecimentos das ciências e
da moral para ser uma pessoa ilustrada, cortês e útil para a formação do estado moderno. A
escola, por sua vez, deveria ser atrativa, prazerosa e proporcionar um ensino ao alcance da
compreensão infantil, sem abrir mão da formação moral. A Igreja deveria ser uma aliada
constante da família e da escola e a criança deveria ser obediente aos mandamentos da lei
divina e temente a Deus, pois somente desta forma atingiria um comportamento propício para
uma vida regrada e moralizada.
Esses princípios que não eram originais e nem próprios somente deste período. Os
objetivos poderiam se diferenciar no tempo e no espaço, contudo o investimento na infância
pautado pela crença de sua característica plástica e maleável, para se atingir algo no futuro,
era alvo central da política educativa, desde os jesuítas até os dias de hoje, obviamente, com
elementos diferentes. Podemos destacar o investimento na infância, a partir da segunda
metade do século XIX, como um vir a ser, associado de forma intensa ao espaço escolar. A
infância e a juventude adquiririam lugar mais especifico e a escola passaria a ser o espaço
ideal para formalizar os aspectos de educação e da instrução. Para tanto era preciso que o
ambiente escolar se adequasse, tanto na estrutura física, como nos métodos de ensino e na
produção de materiais adequados.
Neste sentido, Abilio contribuiu de forma importante para que se colocasse em prática
essas concepções. Evidentemente que estava contida em suas propostas e práticas uma clara
necessidade imediata de investir na escola e na criança como elementos prioritários para a
formação de uma sociedade moderna, moralizada e ‘civilizada’. Contudo atribuímos sua
contribuição ao sentido de desvelar o mundo infantil, de colocar a criança como prioridade e
influenciar para um olhar mais atento ao desenvolvimento infantil, assim como para a
divulgação de um sentimento mais afetivo para com esta categoria.
305

Identificamos os conteúdos ideológicos presentes em seus livros, porém não podemos


deixar de ressaltar a importância que este material teve na formação, independente da classe
social da criança leitora em diferentes lugares do Império brasileiro. Ter um livro ilustrado,
com histórias atrativas, neste período, era algo precioso para uma sociedade grande maioria
das crianças estava excluída do contato com a palavra escrita. Não acreditamos no poder
redentor do livro e da escola, pois, se isto fosse possível, teríamos tido uma geração de
crianças dóceis e polidas. Contudo cremos no poder das histórias para encantar e incitar a
imaginação e a curiosidade infantil. Se hoje temos critérios mais rígidos quanto à qualidade e
utilidade do livro, além de podermos contar com uma série de obras que estão postas no
mercado, naquela época não era assim. Daí a importância que atribuímos aos ‘livrinhos de
Abilio’ que certamente não deixaram de encantar as crianças com suas histórias moralistas e
apropriadas para o público infantil.
Por estes motivos, podemos considerá-lo um ‘amigo da infância’, pois, apesar de todas
suas contradições, publicou livros cuidadosos para esta categoria, escreveu e se pronunciou
contra os castigos físicos, ressaltou as necessidades básicas do desenvolvimento infantil,
dirigindo à infância um olhar, para a época, diferenciado e cuidadoso.
Mesmo não sendo possível a inclusão de outros patamares de análise, acreditamos que
esta pesquisa serviu para apontar que a construção do aluno ideal não é atual e que a ‘boa
criança’ é mais fruto da elaboração de sentimentos provindos da representação do adulto. Era
preciso idealizar, pois não existia, como ainda não existe hoje, o aluno sem defeitos, o filho
perfeito e o pequeno cristão moralizado e atento a suas falhas. Se formos buscar no passado
bons exemplos de crianças, podemos até encontrar algumas pistas de uma infância que se
adequava aos parâmetros estabelecidos como ideais, contudo é mais provável que esta criança
tenha existido mais na imaginação e na representação dos adultos que a queriam assim, pois,
ao contrário, não seria necessário tanto empenho para formar a tão sonhada ‘criança ideal’.
Ao inserimos o pensamento do autor em seu contexto histórico, identificando as
influências tanto externas como internas, vivenciadas pelo mesmo, foi possível constatar
algumas das práticas educacionais postas para a criança neste período. A trajetória deste
educador pode ser explorada sob diversos aspectos, escolhemos a representação da infância
no ensino primário e deixamos assim a nossa contribuição para a compreensão da história da
criança no mundo escolar do Brasil oitocentista.
306

5.0 Fontes e bibliografia geral

5.1 Arquivos pesquisados

Arquivo Histórico de Goiás (AHG – Goiânia/GO).


Gabinete Literário de Goiás (GLG – Cidade de Goiás/GO).
Fundação Pedro Calmon: Centro de Memória e Arquivo Público da Bahia (FPC –
Salvador/BA).
Fundação Clemente Mariano (FCM – Salvador/BA).
Arquivo Público do Estado da Bahia (APBA – Salvador/BA).
Arquivo Municipal de Salvador (AMS – Salvador/BA)
Centro de Estudos Baianos/UFBA (CEB/UFBA – Salvador/BA)
Centro de Memória da Educação da FEUSP (CME/USP – São Paulo/SP).
Arquivo do Estado de São Paulo (AESP – São Paulo/SP)
Arquivo Edgar Leuenroth (AEL/UNICAMP – Campinas/SP)
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Biblioteca Nacional da França (BNF – Paris/FR).
Institute National de Recherche Pedagogique (INRP – Paris/FR)
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB – São Paulo/SP)
Archives Nationalles de France (Paris/FR)
Musée National de l’éducation (INRP – Rouen/FR)

5.2 Páginas da internet


Center Research Libraries – Provincial Presidential Reports: Bahia.
wwwcrl.uchicago.edu/content/brazil/BAH.htm
Projeto Memória de Leitura: Linha do Tempo: Infantis e didáticos.
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5.3 Fontes

5.3.1Obras de Abilio Cesar Borges

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Allaud, Guillard e Ca, 1866a.
BORGES, A.C. Segundo livro de leitura para uso da infância brasileira. Paris: Vva J.-P.
Allaud, Guillard e Ca, 1866b.
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BORGES, A.C. Terceiro livro de leitura: para uso das escolas brasileiras. Rio de Janeiro:
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Bruxelas:Typographia e Lythographia E. Guyot, 1887,
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5.3.2 Fontes no Brasil

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PROENÇA, F. de P. 3o livro de leitura. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1948.
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Numero especial dedicado ao barão de Macahubas. Bahia: Imprensa Official do estado, 1925.
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5.3.3 – Fontes na França:

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SPECIMENS TYPOGRAPHIQUES. Spécimen des divers types de la Fonderie Laurent et
Deberny. Paris (17 Rue de Marais Saint-Germain): Fonderie de Laurent et Deberny, 1860.
SPECIMENS TYPOGRAPHIQUES. Spécimen des divers types de la Fonderie Laurent et
Deberny. Paris (17 Rue de Marais Saint-Germain): Fonderie de Laurent et Deberny, 1862 (?)
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colléges et autres établissement d’instruction secondaire. Paris: Librairie de L. Hachette et
Cie, 1852.
THÉRY, A. Modèles de discours et allocutions pour les distribuitions de prix dans les
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5.4 Bibliografia geral.

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