Modernidade Liquida Texto
Modernidade Liquida Texto
Modernidade Liquida Texto
que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com
PREFÁCIO facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo.
Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto
e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo
SER LEVE E LÍQUIDO ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão
constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o
tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem
apenas “por um momento”. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para
os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos,
Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas se tornaram podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de
mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas
… por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados …
fora seria um grave erro. Descrições de líquidos são fotos instantâneas, que
Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos. precisam ser datadas.
Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”,
Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana
criou? “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam” são
“filtrados”, “destilados” diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos
Paul Valéry — contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu
caminho. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que
“Fluidez” é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos, como encontraram, se permanecem sólidos, são alterados — ficam molhados ou
a Enciclopédia britânica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles “não encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à idéia
podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis” e assim de “leveza”. Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são mais
“sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão”. pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-los como mais leves,
menos “pesados” que qualquer sólido. Associamos “leveza” ou “ausência de
Essa contínua e irrecuperável mudança de posição de uma parte do material peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves
em relação a outra parte quando sob pressão deformante constitui o fluxo, viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos.
propriedade característica dos fluidos. Em contraste, as forças deformantes Essas são razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas
num sólido torcido ou flexionado se mantêm, o sólido não sofre o fluxo e adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas
pode voltar à sua forma original. maneiras, na história da modernidade.
Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à
Os líquidos, uma variedade dos fluidos, devem essas notáveis qualidades ao vontade no “discurso da modernidade” e está familiarizado com o vocabulário
fato de que suas “moléculas são mantidas num arranjo ordenado que atinge apenas usado normalmente para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi
poucos diâmetros moleculares”, enquanto “a variedade de comportamentos um processo de “liquefação” desde o começo? Não foi o “derretimento dos
exibida pelos sólidos é um resultado direto do tipo de liga que une os seus átomos sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Em outras palavras, a
e dos arranjos estruturais destes”. “Liga”, por sua vez, é um termo que indica a modernidade não foi “fluida” desde sua concepção?
estabilidade dos sólidos — a resistência que eles “opõem à separação dos Essas e outras objeções semelhantes são justificadas, e o parecerão ainda
átomos”. mais se lembrarmos que a famosa frase sobre “derreter os sólidos”, quando
Isso quanto à Enciclopédia britânica — no que parece uma tentativa de cunhada há um século e meio pelos autores do Manifesto comunista, referia-se ao
oferecer “fluidez” como a principal metáfora para o estágio presente da era tratamento que o autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade,
moderna. que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente demais para mudar
O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples,
e amoldar-se a suas ambições — porque congelada em seus caminhos habituais. Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação (como
Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado dizia Weber) da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl Marx)
que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história para o papel determinante da economia: agora a “base” da vida social outorgava
— e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, a todos os outros domínios o estatuto de “superestrutura” — isto é, um artefato da
dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem “base”, cuja única função era auxiliar sua operação suave e contínua. O
ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus
sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem,
“tradição” — isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente; clamava definida principalmente em termos econômicos. Essa nova ordem deveria ser
pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que mais “sólida” que as ordens que substituía, porque, diferentemente delas, era
permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação”. imune a desafios por qualquer ação que não fosse econômica. A maioria das
Lembremos, no entanto, que tudo isso seria feito não para acabar de uma vez alavancas políticas ou morais capazes de mudar ou reformar a nova ordem foram
por todas com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para quebradas ou feitas curtas ou fracas demais, ou de alguma outra forma
sempre, mas para limpar a área para novos e aperfeiçoados sólidos; para inadequadas para a tarefa. Não que a ordem econômica, uma vez instalada,
substituir o conjunto herdado de sólidos deficientes e defeituosos por outro tivesse colonizado, reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social;
conjunto, aperfeiçoado e preferivelmente perfeito, e por isso não mais alterável. essa ordem veio a dominar a totalidade da vida humana porque o que quer que
Ao ler o Ancien Régime de Tocqueville, podemos nos perguntar até que ponto os pudesse ter acontecido nessa vida tornou-se irrelevante e ineficaz no que diz
“sólidos encontrados” não teriam sido desprezados, condenados e destinados à respeito à implacável e contínua reprodução dessa ordem.
liquefação por já estarem enferrujados, esfarelados, com as costuras abrindo; por Esse estágio na carreira da modernidade foi bem descrito por Claus Offe (em
não se poder confiar neles. Os tempos modernos encontraram os sólidos pré- “A utopia da opção zero”, publicado originalmente em 1987 em Praxis
modernos em estado avançado de desintegração; e um dos motivos mais fortes international): as sociedades “complexas se tornaram rígidas a tal ponto que a
por trás da urgência em derretê-los era o desejo de, por uma vez, descobrir ou própria tentativa de refletir normativamente sobre elas ou de renovar sua ‘ordem’,
inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que se pudesse confiar e que isto é, a natureza da coordenação dos processos que nelas têm lugar, é
tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável. virtualmente impedida por força de sua própria futilidade, donde sua inadequação
Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as essencial”. Por mais livres e voláteis que sejam os “subsistemas” dessa ordem,
lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e isoladamente ou em conjunto, o modo como são entretecidos é “rígido, fatal e
mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir desprovido de qualquer liberdade de escolha”. A ordem das coisas como um todo
seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro não está aberta a opções; está longe de ser claro quais poderiam ser essas opções,
livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. e ainda menos claro como uma opção ostensivamente viável poderia ser real no
“Derreter os sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações caso pouco provável de a vida social ser capaz de concebê-la e gestá-la. Entre a
“irrelevantes” que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia ordem como um todo e cada uma das agências, veículos e estratagemas da ação
Max Weber, libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a proposital há uma clivagem — uma brecha que se amplia perpetuamente, sem
família e o lar e da densa trama das obrigações éticas; ou, como preferiria ponte à vista.
Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às responsabilidades humanas Ao contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito não foi alcançado
mútuas, deixar restar somente o “nexo dinheiro”. Por isso mesmo, essa forma de via ditadura, subordinação, opressão ou escravização; nem através da
“derreter os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar — “colonização” da esfera privada pelo “sistema”. Ao contrário: a situação presente
nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação emergiu do derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou errado,
e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para eram suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher e de agir. A rigidez
competir efetivamente com eles. da ordem é o artefato e o sedimento da liberdade dos agentes humanos. Essa
rigidez é o resultado de “soltar o freio”: da desregulamentação, da liberalização, a maternidade, o núcleo da vida familiar, estão começando a se desintegrar
da “flexibilização”, da “fluidez” crescente, do descontrole dos mercados no divórcio … Avós e avôs são incluídos e excluídos sem meios de
financeiro, imobiliário e de trabalho, tornando mais leve o peso dos impostos etc. participar nas decisões de seus filhos e filhas. Do ponto de vista de seus
(como Offe observou em “Amarras, algemas, grades”, publicado originalmente netos, o significado das avós e dos avôs tem que ser determinado por
em 1987); ou (para citar Richard Senett em Flesh and Stone) das técnicas de decisões e escolhas individuais.
“velocidade, fuga, passividade” — em outras palavras, técnicas que permitem
que o sistema e os agentes livres se mantenham radicalmente desengajados e que O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e
se desencontrem em vez de encontrar-se. Se o tempo das revoluções sistêmicas realocação dos “poderes de derretimento” da modernidade. Primeiro, eles
passou, é porque não há edifícios que alojem as mesas de controle do sistema, afetaram as instituições existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das
que poderiam ser atacados e capturados pelos revolucionários; e também porque ações-escolhas possíveis, como os estamentos hereditários com sua alocação por
é terrivelmente difícil, para não dizer impossível, imaginar o que os vencedores, atribuição, sem chance de apelação. Configurações, constelações, padrões de
uma vez dentro dos edifícios (se os tivessem achado), poderiam fazer para virar a dependência e interação, tudo isso foi posto a derreter no cadinho, para ser
mesa e pôr fim à miséria que os levou à rebelião. Ninguém ficaria surpreso ou depois novamente moldado e refeito; essa foi a fase de “quebrar a forma” na
intrigado pela evidente escassez de pessoas que se disporiam a ser história da modernidade inerentemente transgressiva, rompedora de fronteiras e
revolucionários: do tipo de pessoas que articulam o desejo de mudar seus planos capaz de tudo desmoronar. Quanto aos indivíduos, porém — eles podem ser
individuais como projeto para mudar a ordem da sociedade. desculpados por ter deixado de notá-lo; passaram a ser confrontados por padrões
A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem e figurações que, ainda que “novas e aperfeiçoadas”, eram tão duras e indomáveis
defeituosa não está hoje na agenda — pelo menos não na agenda daquele domínio como sempre.
em que se supõe que a ação política resida. O “derretimento dos sólidos”, traço Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro;
permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que as pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e
tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse censuradas caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços
redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão dedicados, contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré-fabricados da
da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para ser lançados nova ordem: nas classes, as molduras que (tão intransigentemente como os
no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade estamentos já dissolvidos) encapsulavam a totalidade das condições e
fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações perspectivas de vida e determinavam o âmbito dos projetos e estratégias realistas
coletivas — os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida de vida. A tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade para encontrar
conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e
humanas, de outro. modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar.
Numa entrevista a Jonathan Rutherford no dia três de fevereiro de 1999, São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que
Ulrich Beck (que alguns anos antes cunhara o termo “segunda modernidade” para podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos
conotar a fase marcada pela modernidade “voltando-se sobre si mesma”, a era da nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que
assim chamada “modernização da modernidade”) fala de “categorias zumbi” e nossos contemporâneos sejam guiados tão somente por sua própria imaginação e
“instituições zumbi”, que estão “mortas e ainda vivas”. Ele menciona a família, a resolução e sejam livres para construir seu modo de vida a partir do zero e
classe e o bairro como principais exemplos do novo fenômeno. A família, por segundo sua vontade, ou que não sejam mais dependentes da sociedade para obter
exemplo: as plantas e os materiais de construção. Mas quer dizer que estamos passando de
uma era de “grupos de referência” predeterminados a uma outra de “comparação
Pergunte-se o que é realmente uma família hoje em dia? O que significa? É universal”, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual está
claro que há crianças, meus filhos, nossos filhos. Mas, mesmo a paternidade e endêmica e incuravelmente subdeterminado, não está dado de antemão, e tende a
sofrer numerosas e profundas mudanças antes que esses trabalhos alcancem seu aferidos utilizando-se muitos marcadores diferentes. Uma característica da vida
único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo. moderna e de seu moderno entorno se impõe, no entanto, talvez como a “diferença
Hoje, os padrões e configurações não são mais “dados”, e menos ainda “auto- que faz a diferença” como o atributo crucial que todas as demais características
evidentes” eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus seguem. Esse atributo é a relação cambiante entre espaço e tempo.
comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática
boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. E eles da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e
mudaram de natureza e foram reclassificados de acordo: como itens no inventário mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como
das tarefas individuais. Em vez de preceder a política-vida e emoldurar seu curso eram ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente
futuro, eles devem segui-la (derivar dela), para serem formados e reformados por distinguíveis da experiência vivida, presos numa estável e aparentemente
suas flexões e torções. Os poderes que liquefazem passaram do “sistema” para a invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história,
“sociedade”, da “política” para as “políticas da vida” — ou desceram do nível tem história por causa de sua “capacidade de carga”, perpetuamente em expansão
“macro” para o nível “micro” do convívio social. — o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permitem
A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada da “passar”, “atravessar”, “cobrir” — ou conquistar. O tempo adquire história uma
modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço
caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna
dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas.
que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, A própria idéia de velocidade (e mais ainda a de aceleração), quando se
como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma refere à relação entre tempo e espaço, supõe sua variabilidade, e dificilmente
é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os teria qualquer significado se não fosse aquela uma relação verdadeiramente
fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço variável, se fosse um atributo da realidade inumana e pré-humana e não uma
perpétuo — e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável. questão de inventividade e resolução humanas, e se não se lançasse para muito
Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o além da estreita gama de variações a que as ferramentas naturais da mobilidade
advento da “modernidade fluida” produziu na condição humana. O fato de que a — as pernas humanas ou eqüinas — costumavam confinar os movimentos dos
estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não- corpos pré-modernos. Quando a distância percorrida numa unidade de tempo
estruturado do cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um passou a depender da tecnologia, de meios artificiais de transporte, todos os
modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam limites à velocidade do movimento, existentes ou herdados, poderiam, em
cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A princípio, ser transgredidos. Apenas o céu (ou, como acabou sendo depois, a
questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma velocidade da luz) era agora o limite, e a modernidade era um esforço contínuo,
ou encarnação, é possível; ou — se não for — como fazer com que eles tenham rápido e irrefreável para alcançá-lo.
um enterro decente e eficaz. Graças a sua flexibilidade e expansividade recentemente adquiridas, o tempo
Este livro se dedica a essa questão. Foram selecionados para exame cinco moderno se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista do espaço. Na
dos conceitos básicos em torno dos quais as narrativas ortodoxas da condição moderna luta entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível,
humana tendem a se desenvolver: a emancipação, a individualidade, o pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, de trincheiras — um
tempo/espaço, o trabalho e a comunidade. Transformações sucessivas de seus obstáculo aos avanços do tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo na batalha,
significados e aplicações práticas são exploradas (ainda que de maneira muito o lado sempre na ofensiva: a força invasora, conquistadora e colonizadora. A
fragmentária e preliminar) com a esperança de salvar os bebês do banho desta velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade
torrente de água poluída. chegaram nos tempos modernos à posição de principal ferramenta do poder e da
A modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanço podem ser dominação.
Michel Foucault utilizou o projeto do Panóptico de Jeremy Bentham como se mover com a velocidade do sinal eletrônico — e assim o tempo requerido para
arquimetáfora do poder moderno. No Panóptico, os internos estavam presos ao o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em
lugar e impedidos de qualquer movimento, confinados entre muros grossos, termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, não mais
densos e bem-guardados, e fixados a suas camas, celas ou bancadas. Eles não limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço (o advento do
podiam se mover porque estavam sob vigilância; tinham que se ater aos lugares telefone celular serve bem como “golpe de misericórdia” simbólico na
indicados sempre porque não sabiam, e nem tinham como saber, onde estavam no dependência em relação ao espaço: o próprio acesso a um ponto telefônico não é
momento seus vigias, livres para mover-se à vontade. As instalações e a mais necessário para que uma ordem seja dada e cumprida. Não importa mais
facilidade de movimento dos vigias eram a garantia de sua dominação; dos onde está quem dá a ordem — a diferença entre “próximo” e “distante”, ou entre
múltiplos laços de sua subordinação, a “fixação” dos internos ao lugar era o mais o espaço selvagem e o civilizado e ordenado, está a ponto de desaparecer). Isso
seguro e difícil de romper. O domínio do tempo era o segredo do poder dos dá aos detentores do poder uma oportunidade verdadeiramente sem precedentes:
administradores — e imobilizar os subordinados no espaço, negando-lhes o eles podem se livrar dos aspectos irritantes e atrasados da técnica de poder do
direito ao movimento e rotinizando o ritmo a que deviam obedecer era a principal Panóptico. O que quer que a história da modernidade seja no estágio presente, ela
estratégia em seu exercício do poder. A pirâmide do poder era feita de é também, e talvez acima de tudo, pós-Panóptica. O que importava no Panóptico
velocidade, de acesso aos meios de transporte e da resultante liberdade de era que os encarregados “estivessem lá”, próximos, na torre de controle. O que
movimento. importa, nas relações de poder pós-panópticas é que as pessoas que operam as
O Panóptico era um modelo de engajamento e confrontação mútuos entre os alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos voláteis na
dois lados da relação de poder. As estratégias dos administradores, mantendo sua relação podem fugir do alcance a qualquer momento — para a pura
própria volatilidade e rotinizando o fluxo do tempo de seus subordinados, se inacessibilidade.
tornavam uma só. Mas havia tensão entre as duas tarefas. A segunda tarefa punha O fim do Panóptico é o arauto do fim da era do engajamento mútuo: entre
limites à primeira — prendia os “rotinizadores” ao lugar dentro do qual os supervisores e supervisados, capital e trabalho, líderes e seguidores, exércitos
objetos da rotinização do tempo estavam confinados. Os rotinizadores não eram em guerra. As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e
verdadeira e inteiramente livres para se mover: a opção “ausente” estava fora de a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os
questão em termos práticos. complicados corolários de construção e manutenção da ordem, e com a
O Panóptico apresenta também outras desvantagens. É uma estratégia cara: a responsabilidade pelas conseqüências de tudo, bem como com a necessidade de
conquista do espaço e sua manutenção, assim como a manutenção dos internos no arcar com os custos.
espaço vigiado, abarcava ampla gama de tarefas administrativas custosas e Essa nova técnica do poder foi vividamente ilustrada pelas estratégias
complicadas. Havia os edifícios a erigir e manter em bom estado, os vigias desenvolvidas pelos atacantes nas guerras do Golfo e da Iugoslávia. A relutância
profissionais a contratar e remunerar, a sobrevivência e capacidade de trabalho em utilizar forças terrestres na guerra foi impressionante; quaisquer que tenham
dos internos a ser preservada e cultivada. Finalmente, administrar significa, ainda sido as explicações oficiais, essa relutância foi ditada não apenas pela
que a contragosto, responsabilizar-se pelo bem-estar geral do lugar, mesmo que amplamente referida síndrome dos “cadáveres ensacados”. O engajamento num
em nome de um interesse pessoal consciente — e a responsabilidade, outra vez, combate terrestre foi evitado não só por seus possíveis efeitos adversos na
significa estar preso ao lugar. Ela requer presença, e engajamento, pelo menos política interna, mas também (talvez principalmente) por sua total inutilidade e
como uma confrontação e um cabo-de-guerra permanentes. mesmo contra-produtividade em relação aos objetivos da guerra. Afinal, a
O que leva tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, da conquista do território com todas suas conseqüências administrativas e gerenciais
“segunda modernidade” e da “sobremodernidade”, ou a articular a intuição de não só estava ausente da lista de objetivos das ações de guerra, como era uma
uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob eventualidade a ser evitada a todo custo, vista com repugnância como outro tipo
as quais a política-vida é hoje levada, é o fato de que o longo esforço para de “prejuízo colateral”, desta vez infligido à própria força atacante.
acelerar a velocidade do movimento chegou a seu “limite natural”. O poder pode Golpes desferidos por bombardeiros furtivos e “espertos” mísseis
autodirigidos capazes de seguir seus alvos — lançados de surpresa, vindos do discriminação legal, quando não de perseguição ativa. Embora isso ainda se
nada e desaparecendo imediatamente de vista — substituíram os avanços aplique à “subclasse” andarilha e “sem-teto”, sujeita às antigas técnicas de
territoriais das tropas de infantaria e o esforço para expulsar o inimigo de seu controle panóptico (técnicas quase abandonadas como veículo principal para
território — o esforço de ocupar o território possuído, controlado e administrado integração e disciplina do grosso da população), a era da superioridade
pelo inimigo. Os atacantes definitivamente não queriam mais ser “os últimos no incondicional do sedentarismo sobre o nomadismo e da dominação dos
campo de batalha” depois da fuga ou retirada do inimigo. A força militar e seu assentados sobre os nômades está chegando ao fim. Estamos testemunhando a
plano de guerra de “atingir e correr” prefigura, incorpora e pressagia o que de vingança do nomadismo contra o princípio da territorialidade e do assentamento.
fato está em jogo no novo tipo de guerra na era da modernidade líquida: não a No estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é dominada pela elite
conquista de novo território, mas a destruição das muralhas que impediam o fluxo nômade e extraterritorial. Manter as estradas abertas para o tráfego nômade e
dos novos e fluidos poderes globais; expulsar da cabeça do inimigo o desejo de tornar mais distantes as barreiras remanescentes tornou-se hoje o meta-propósito
formular suas próprias regras, abrindo assim o até então inacessível, defendido e da política, e também das guerras, que, como Clausewitz originalmente declarou,
protegido espaço para a operação dos outros ramos, não-militares, do poder. A não são mais que “a extensão da política por outros meios”.
guerra hoje, pode-se dizer (parafraseando a famosa fórmula de Clausewitz), A elite global contemporânea é formada no padrão do velho estilo dos
parece cada vez mais uma “promoção do livre comércio por outros meios”. “senhores ausentes”. Ela pode dominar sem se ocupar com a administração,
Jim MacLaughlin nos lembrou recentemente (em Sociology 1/99) de que o gerenciamento, bem-estar, ou, ainda, com a missão de “levar a luz”, “reformar os
advento da era moderna significou, entre outras coisas, o ataque consistente e modos”, elevar moralmente, “civilizar” e com cruzadas culturais. O engajamento
sistemático dos “assentados”, convertidos ao modo sedentário de vida, contra os ativo na vida das populações subordinadas não é mais necessário (ao contrário, é
povos e o estilo de vida nômades, completamente alheios às preocupações fortemente evitado como desnecessariamente custoso e ineficaz) — e, portanto, o
territoriais e de fronteiras do emergente Estado moderno. Ibn Khaldoun, no século “maior” não só não é mais o “melhor”, mas carece de significado racional. Agora
XIV, podia elogiar o nomadismo, que faz com que os nômades “sejam melhores é o menor, mais leve e mais portátil que significa melhoria e “progresso”. Mover-
que os povos assentados porque … estão mais afastados de todos os maus hábitos se leve, e não mais aferrar-se a coisas vistas como atraentes por sua
que infectaram o coração dos assentados” — mas a febre de construção de nações confiabilidade e solidez — isto é, por seu peso, substancialidade e capacidade de
e Estados-nação que logo em seguida começou a sério por toda a Europa colocou resistência — é hoje recurso de poder.
o “solo” firmemente acima do “sangue” ao lançar as fundações da nova ordem Fixar-se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e
legislada e ao codificar os direitos e deveres dos cidadãos. Os nômades, que abandonado à vontade, imediatamente ou em pouquíssimo tempo. Por outro lado,
faziam pouco das preocupações territoriais dos legisladores e ostensivamente fixar-se muito fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos
desrespeitavam seus zelosos esforços em traçar fronteiras, foram colocados entre mutuamente vinculantes, pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas
os principais vilões na guerra santa travada em nome do progresso e da oportunidades que surgem em outros lugares. Rockefeller pode ter desejado
civilização. A “cronopolítica” moderna os situa não apenas como seres inferiores construir suas fábricas, estradas de ferro e torres de petróleo altas e volumosas e
e primitivos, “subdesenvolvidos” e necessitados de profunda reforma e ser dono delas por um longo tempo (pela eternidade, se medirmos o tempo pela
esclarecimento, mas também como atrasados e “aquém dos tempos”, vítimas da duração da própria vida ou pela da família). Bill Gates, no entanto, não sente
“defasagem cultural”, arrastando-se nos degraus mais baixos da escala evolutiva, remorsos quando abandona posses de que se orgulhava ontem; é a velocidade
e imperdoavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para seguir atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da
o “padrão universal de desenvolvimento”. substituição que traz lucro hoje — não a durabilidade e confiabilidade do
Ao longo do estágio sólido da era moderna, os hábitos nômades foram mal produto. Numa notável reversão da tradição milenar, são os grandes e poderosos
vistos. A cidadania andava de mãos dadas com o assentamento, e a falta de que evitam o durável e desejam o transitório, enquanto os da base da pirâmide —
“endereço fixo” e de “estado de origem” significava exclusão da comunidade contra todas as chances — lutam desesperadamente para fazer suas frágeis,
obediente e protegida pelas leis, freqüentemente tornando os nômades vítimas de mesquinhas e transitórias posses durarem mais tempo. Os dois se encontram hoje
em dia principalmente nos lados opostos dos balcões das mega-liquidações ou de
vendas de carros usados.