Bakhtin Os Gêneros Do Discurso
Bakhtin Os Gêneros Do Discurso
Bakhtin Os Gêneros Do Discurso
3akhtin
Os gêneros do discurso
: da edição ru ssa
Sr rfJUei B o tch a ro v
t0 r^ 3 4
A tradução é uma relação singular, es
tabelecida entre um texto de partida e um
contexto de chegada, im plicando m odos
de 1er e reler uma obra e seu autor. Assim
deve ser compreendido O s gêneros do dis
curso, livro que representa ganhos e signi
ficados especiais para os estudos bakJitinia-
nos no Brasil. O crítico, ensaísta, professor
e pesquisador Paulo Bezerra, reconhecido
por suas importantes traduções literárias e
por ser um dos responsáveis pela existência
de M ikhail Bakhtin em língua portuguesa,
retoma dois textos por ele traduzidos dire
tamente do russo e publicados em 2003 na
coletânea Estética da criação verbal, “ O s
gêneros do discurso” e “ O texto na lingüís
tica, na filologia e em outras ciências hu
m an as” , e a eles acrescenta dois inéditos,
“ D iálogo 1” e “ Diálogo II” , publicados pe
la primeira vez na Rússia em 1997.
Os estudiosos interessados nos fios con
dutores do pensam ento bakhtiniano têm
procurado estabelecer a relação existente
entre os conceitos de enunciado, texto, dis
curso, gênero do discurso, cadeia da com u
nicação discursiva, cam pos da com unica
ção cultural, e, especialm ente, a m aneira
com o esses elementos constituem unidades
e elos para a com preensão do processo vi
vo da com unicação hum ana. E ssa busca
leva, necessariamente, aos dois trabalhos
produzidos por Bakhtin nos anos 1950 e
início dos 60, aproxim ados de form a m ui
to pertinente nesse volume: “ O s gêneros do
discurso” (1952-53) e “ O texto na lingüís
tica” ¡1959-61). N eles, os conceitos men
cionados são apresentados, tem atizados,
discutidos e inseridos na construção de uma
perspectiva dialógica de concepção e abor
dagem da linguagem. Estes ensaios anali
sam duas dimensões evocadas corno condi
ção de existência de um texto: a mareriali-
16 3 2 13
5 10 11 8
9 6 7 12
4 15 14 1
h V i t I.IVHO I O I C O M l ' O S r n LM S a m o . s ,
PEI A Hk Í L H t K & M <1 I A, ( O M C T P ^
i m p r e s s A o d a R a r t i r a G r a f i c a t f cm
T O R A E M P A P E L P Ó L E N S û t I Ü O t / M 1 OA
C ia . Su/ a so de Pa p e l e C elu lo se para
K l J l lO H A 3 4 , LM I U L I I O IJ1 Ï O l h .
dade sígnica ou dim ensão sem iótica, que o
constitui e o faz participante de uní siste
m a; e a singularidade que lhe é conferida a
partir de sua participação na cadeia da co
m unicação discursiva da vida em socieda
de. Essa com binatoria constitutiva de ele
mentos dados (sistema) e elementos criados
(linguagem em uso) possibilita a um texto
ser reconhecido com o pertencente a um sis
tema (lingüístico, pictórico, musical etc.), e,
ao m esm o tempo, com o portador de valo
res, de posições que garantem a produção
de sentidos, sempre em confronto com ou
tras posições e valores presentes numa s o
ciedade, numa cultura.
O s dois inéditos, por sua vez, tem um
sabor especial, ao evocar uma d as peças-
-chave da teoria bakhtiniana, que é o d iá
logo, concebido com o constitutivo da lin
guagem humana e não apenas com o estru
tura de conversa. Escritos antes da versão
final de “ O s gêneros do d iscurso” , “ D iá
logo I ” (1950) e “ D iálogo 11” (1952), pu
blicados no tom o 5 das O bras reunidas de
Bakhtin, nos surpreendem, pois neles, se
gundo Paulo Bezerra, “ atribui-se à própria
língua um a natureza dialógica” .
C om o posfácio ao volume, o tradutor
ainda acrescenta um substancioso ensaio,
sugestivam ente intitulado “ N o lim iar de
várias ciências” , no qual caracteriza a coe
rência dos quatro textos, relacionandos-o
com outros trabalhos do autor, discutindo
a im portância desse conjunto e auxiliando,
nesse m om ento dos estudos bakhtinianos,
a compreensão dos complexos meandros de
“ O s gêneros do discurso” , trabalh o nem
sempre pensado em suas reais especificida
des, em consonância com outros trabalhos
de M ikhail Bakhtin.
Beth Brait
Mikhail Bakhtin
Os gêneros do discurso
edito ra H 3 4
EDITORA 34
A P R O P R IA Ç Ã O IN D E V ID A D O S D IR I-IT O S IN T E L E C T U A IS t P A T R IM O N IA IS D O A U T O R .
1J Edição - 2016
Bakhnn, (1895-1975J
B I42g Os géneros do discurso / Mikhail Bakhtin:
organização, tradução, posfàeio e notas de Paulo
Bezerra; notas da edição russa dr Serg Liei Botcharov,
— S ão Paulo: E ditora 3 4 , 2 0 1 6 M * E d ição )*
1 ?6 p.
ISBN 978-85-7326-636-8
CDD -410
Os gêneros do discurso
Os gêneros do discurso........................................................ 11
O texto na lingüística, na filologia
e em outras ciências h u m an as.................................. 71
Anexos
N ota do tradutor aos “ D iálogos” .................................... Ill
D iálogo I. A questão do discurso d ia ló g ic o .................... 113
D iálogo II................................................................................. 125
í , O PR O BLE M A E SUA D EF IN IÇ Ã O
O s gêneros do discurso 11
giiagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseoló
gicos e gram aticais da língua, m as, acima de tudo, por sua
construção com posicional. Todos esses três elementos — o
conteúdo temático, o estilo, a construção com posicional —
estão indissoluvelmente ligados no conjunto do enunciado e
são igualmente determ inados pela especificidade de um cam
po da com unicação. Evidentemente, cada enunciado parti
cular é individual, mas cada cam po de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso.
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são
infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multi-
facetada atividade humana e porque em cada cam po dessa
atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêne
ros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que tal
cam po se desenvolve e ganha complexidade. Cabe salientar
em especial a extrema beterogeneidade dos gêneros do dis
curso (orais e escritos). De fato, também devemos incluir nos
gêneros do discurso as breves réplicas do diálogo do cotidia
no (saliente-se que a diversidade das m odalidades de diálogo
cotidiano é extraordinariamente grande em função do seu te
ma, da situação e da com posição dos participantes), o rela
to cotidiano, a carta (em todas as suas diversas form as), o co
mando militar lacônico padronizado, a ordem desdobrada e
detalhada, o repertório bastante vário (padronizado na m aio
ria dos casos) dos docum entos oficiais e o diversificado uni
verso das m anifestações publicísticas (no am plo sentido do
termo: sociais, políticas); mas aí também devemos incluir as
variadas form as das m anifestações científicas e todos os gê
neros literários (do provérbio ao romance de múltiplos volu
mes). Pode parecer que a heterogeneidade dos gêneros dis
cursivos é tão grande que não há nem pode haver um plano
único para o seu estudo: porque, neste caso, em um plano do
estudo aparecem fenômenos sumamente heterogêneos, como
as réplicas m onovocais do cotidiano e o romance de muitos
12 M ikhail Bakhtin
volumes, a ordem militar padronizada e até obrigatória por
sua entonação e uma obra lírica profundam ente individual,
etc. A heterogeneidade funcional, com o se pode pensar, tor
na os traços gerais dos gêneros discursivos dem asiadam ente
abstratos e vazios. A isto provavelmente se deve o fato de que
a questão geral dos gêneros discursivos nunca foi verdadei
ramente colocada. O que mais se estudava eram os gêneros
literários. M as da Antiguidade aos nossos dias eles foram es
tudados num corte da sua especificidade artístico-literária,
nas distinções diferenciais entre eles (no âm bito da literatu
ra) e não como determinados tipos de enunciados, que são
diferentes de outros tipos mas têm com estes uma natureza
verbal (lingüística) comum. Q uase não se levava em conta a
questão geral do enunciado e dos seus tipos. Da Antiguida
de até hoje, estudaram -se os gêneros retóricos (dem ais, as
épocas subsequentes pouco acrescentaram à teoria antiga);
aí já se deu mais atenção à natureza verbal desses gêneros co
mo enunciados, a tais m om entos, por exem plo, como a rela
ção com o ouvinte e sua influência sobre o enunciado, sobre
a conclusibilidade verbal específica do enunciado (à diferen
ça da conclusibilidade do pensam ento), etc. Ainda assim ,
também aí a especificidade dos gêneros retóricos (jurídicos,
políticos) encobria a sua natureza lingüística geral. Por últi
mo, estudaram-se também os gêneros discursivos do cotidia
no (predominantemente as réplicas do diálogo cotidiano) e,
adem ais, precisamente do ponto de vista da lingüística geral
(na escola de Saussure,2 em seus adeptos modernos — os es-
Os géneros do discurso 13
truturalistas, nos behavioristas am ericanos3 e, cm bases lin
güísticas totalmente distintas, nos seguidores de Vossler4).
Contudo, esse estudo tam pouco podia redundar em uma de
finição correta da natureza universalmente lingüística do
enunciado, uma vez que estava restrito à especificidade do
H M ikhail Bakhrin
discurso oral cotidiano, por vezes orientando-se diretamen
te em enunciados deliberadamente primitivos (os behavioris-
tas americanos).
Jam ais se deve minimizar a extrema heterogeneidade dos
gêneros discursivos e a dificuldade daí advinda de definir a
natureza geral do enunciado. Aqui é de especial importância
atentar para a diferença essencial entre os gêneros discursi
vos prim ários (simples) e secundários (complexos) — não se
trata de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos se
cundários (complexos — romances, dram as, pesquisas cien
tíficas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.)
surgem nas condições de um convívio cultural mais com ple
xo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predo
minantemente o escrito) — ficcional, científico, sociopolíti-
co, etc. N o processo de sua form ação eles incorporam e ree-
laboram diversos gêneros prim ários (simples), que se form a
ram nas condições da com unicação discursiva imediata. Es
ses gêneros prim ários, ao integrarem os com plexos, nestes se
transform am e adquirem um caráter especial: perdem o vín
culo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais
alheios: por exemplo, a réplica do diálogo cotidiano ou da
carta no romance, ao manterem a sua forma e o significado
cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco, integram
a realidade concreta apenas através do conjunto do rom an
ce, ou seja, com o acontecimento artístico-literário e não da
vida cotidiana. Em seu conjunto, o romance é um enuncia
do, assim como a réplica do diálogo cotidiano ou uma carta
privada (ele tem a mesma natureza dessas duas), mas difere
deles por ser um enunciado secundário (complexo).
A diferença entre os gêneros (ideológicos) prim ário e se
cundário é imensa e essencial, e é por isso mesmo que a na
tureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio
da análise de am bas as m odalidades; apenas sob essa condi
ção a definição pode vir a ser adequada à natureza com ple
xa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais
Os gêneros do discurso 15
importantes); a orientação unilateral centrada nos gêneros
primários redunda fatalmente na vulgarização de todo o pro
blema (o behaviorismo lingüístico é o grau extrem ado de tal
vulgarização). A própria relação mútua dos gêneros prim á
rios e secundários, bem com o o processo de form ação histó
rica dos últimos, lançam luz sobre a natureza do enunciado
(e antes de tudo sobre o com plexo problema da relação de
reciprocidade entre linguagem e ideologia, linguagem e visão
de mundo).
O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de
formas de gênero dos enunciados nos diversos cam pos da ati
vidade humana é de enorme im portância para quase todos
os cam pos da lingüística e da filologia. Porque todo trabalho
de investigação de um material lingüístico concreto — seja
de história da língua, de gram ática normativa, de confecção
de toda espécie de dicionários ou de estilística da língua, etc.
— opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos
e orais) relacionados a diferentes cam pos da atividade hu
mana e da comunicação — anais, tratados, textos de leis, do
cumentos de escritório e outros, diversos gêneros literários,
científicos, publicísticos, cartas oficiais e comuns, réplicas do
diálogo cotidiano (em todas as suas diversas m odalidades),
etc. de onde os pesquisadores haurem os fatos lingüísticos de
que necessitam. Acham os que em qualquer corrente especial
de estudo faz-se necessária uma noção precisa da natureza
do enunciado em geral e das particularidades dos diversos ti
pos de enunciados (prim ários e secundários), isto é, dos di
versos gêneros do discurso. O desconhecimento da natureza
do enunciado e a relação indiferente com as peculiaridades
das diversidades de gênero do discurso em qualquer cam po
da investigação lingüística redundam em form alism o e em
uma abstração exagerada, deformam a historicidade da in
vestigação, debilitam as relações da língua com a vida. Ora,
a língua passa a integrar a vida através de enunciados con
cretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados
16 Mikhail Bakhrin
concretos que a vida entra na língua. O enunciado é um nú
cleo problem ático de im portância excepcional. Exam inem os
nesse corte alguns cam pos e problem as da lingüística.
Tratem os em primeiro lugar da estilística. Todo estilo
está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às form as típi
cas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Todo
enunciado — oral e escrito, prim ário e secundário e também
em qualquer cam po da com unicação discursiva (rietchevóie
obschênie)5 — é individual e por isso pode refletir a indivi
dualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter
estilo individual. Entretanto, nem todos os gêneros são igual
mente propícios a tal reflexo da individualidade do falante
na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Os
mais favoráveis são os gêneros da literatura de ficção: aqui o
estilo individual integra diretamente o próprio edifício do
enunciado, é um de seus objetivos principais (contudo, no
âm bito da literatura de ficção os diferentes gêneros são dife
rentes possibilidades para a expressão da individualidade da
linguagem através de diferentes aspectos dessa individualida
de). As condições menos propícias para o reflexo da indivi
dualidade na linguagem estão presentes naqueles gêneros do
discurso que requerem uma form a padronizada, por exem
plo, em muitas m odalidades de docum entos oficiais, de or
dens militares, nos sinais verbalizados da produção, etc. Aqui
só podem refletir-se os aspectos mais superficiais, quase bio
lógicos da individualidade (e ainda assim predominantemen
te na realização oral dos enunciados desses tipos padroniza
dos). N a imensa maioria dos gêneros discursivos (exceto nos
artístico-literários), o estilo individual não faz parte do pla-
Os gêneros do discurso 17
no do enunciado, não serve com o um objetivo seu m as é,
por assim dizer, um epifenómeno do enunciado, seu produ
to complementar. Em diferentes gêneros podem revelar-se
diferentes cam adas e aspectos de uma personalidade indivi
dual, o estilo individual pode encontrar-se em diversas rela
ções de reciprocidade com a língua nacional. A própria ques
tão da língua nacional na linguagem individual é, em seus
fundamentos, uma questão de enunciado (porque só nele, no
enunciado, a língua nacional se materializa na form a indivi
dual). A própria definição de estilo em geral e de estilo indi
vidual em particular exige um estudo mais profundo tanto
da natureza do enunciado quanto da diversidade de gêneros
discursivos.
A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gêne
ro se revela nitidamente também na questão dos estilos de
linguagem ou funcionais. N o fundo, os estilos de linguagem
ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de
determinadas esferas da atividade humana e da com unica
ção. Em cada cam po existem e são em pregados gêneros que
correspondem às condições específicas de dado cam po; é a
esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma
função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e
certas condições de com unicação discursiva, específicas de
cada cam po, geram determinados gêneros, isto é, determina
dos tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicio-
nais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de deter
m inadas unidades tem áticas e — o que é de especial impor
tância — de determinadas unidades com posicionais: de de
term inados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu
acabam ento, de tipos da relação do falante com outros par
ticipantes da com unicação discursiva — com os ouvintes, os
leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo inte
gra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento.
Isto não significa, evidentemente, que o estilo de linguagem
não possa se tornar objeto de um estudo especial indepen-
18 Mikhail Bakhtin
dente. Semelhante estudo, ou seja, a estilística da língua co
mo disciplina autônom a, também é possível e necessário. N o
entanto, esse estudo só será correto e eficaz se levar perm a
nentemente em conta a natureza do gênero dos estilos lin
güísticos e basear-se no estudo prévio das m odalidades de gê
neros do discurso. Até hoje a estilística da língua careceu de
semelhante base. D aí a sua fraqueza. N ão existe uma classi
ficação dos estilos de linguagem que goze de reconhecimen
to geral. Os autores das classificações frequentemente detur
pam a principal exigência lógica da classificação — a unida
de do fundamento. As classificações são sumamente pobres
e não diferenciadas. Por exem plo, numa gram ática acadêm i
ca da língua russa recentemente publicada são apresentadas
as seguintes variedades estilísticas da língua: o discurso do li
vro, o discurso popular, os discursos abstrato-científico, téc
nico-científico, jornalístico-publicístico, oficial, familiar coti
diano, discurso popular vulgar. Paralelamente a esses estilos
de linguagem, figuram como m odalidades estilísticas pala
vras dialetais, palavras arcaicas, expressões profissionais. Se
melhante classificação dos estilos é absolutamente aleatória,
baseia-se em diferentes princípios (ou fundamentos) de divi
são em estilos. Além disso, essa classificação é tam bém p o
bre e pouco diferenciada.6 Tudo isso é resultado direto da in
com preensão da natureza de gênero dos estilos de linguagem
e da ausência de uma classificação bem pensada dos gêneros
discursivos por cam pos de atividade (bem como da distinção,
muito importante para a estilística, entre gêneros prim ários
e secundários).
Os gêneros do discurso 1^
A separação dos estilos em relação aos géneros m anifes
ta-se de form a particularmente nociva na elaboração de uma
série de questões históricas. As m udanças históricas dos esti
los de linguagem estão indissoluvelmente ligadas às m udan
ças dos gêneros do discurso. A linguagem literária é um sis
tema dinâmico e com plexo de estilos de linguagem; o peso
específico desses estilos e sua inter-relação no sistema da lin
guagem literária estão em mudança permanente. A lingua
gem da literatura, cuja com posição é integrada pelos estilos
da linguagem não literária, é um sistema ainda mais com ple
xo e organizado em outras bases. Para entender a com plexa
dinâmica histórica desses sistem as, para passar da descrição
simples (e superficial na m aioria dos casos) dos estilos que
estão presentes e se alternam para a explicação histórica des
sas m udanças faz-se necessária uma elaboração especial da
história dos gêneros discursivos (tanto prim ários quanto se
cundários), que refletem de m odo mais imediato, preciso e
flexível todas as m udanças que transcorrem na vida social.
Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são
correias de transm issão entre a história da sociedade e a his
tória da linguagem. Nenhum fenômeno novo (fonético, léxi
co, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter per
corrido um com plexo e longo caminho de experim entação e
elaboração de gêneros e estilos.
Em cada época da evolução da linguagem literária, o
tom é dado por determinados gêneros do discurso, e não só
gêneros secundários (literários, publicísticos, científicos) mas
também primários (determinados tipos de diálogo oral — de
salão, íntimo, de círculo social, familiar-cotidiano, sociopo-
lítico, filosófico, etc.). Toda am pliação da linguagem literária
à custa das diversas cam adas extraiiterárias da língua nacio-
F.ssa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do prima
do do estilístico sobre o gramático. Nossa exposição subsequente o mos
trará com plena clareza.
20 M ikhail Bakhtin
nal está intimamente ligada à penetração da linguagem lite
rária em todos os gêneros (literários, científicos, publicísti-
cos, de conversação, etc.), em m aior ou menor grau, também
dos novos procedimentos de gênero de construção da totali
dade do discursivo, do seu acabam ento, da inclusão do ou
vinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstrução e
uma renovação mais ou menos substancial dos gêneros do
discurso. Q uando recorremos às respectivas cam adas não li
terárias da língua nacional, estam os inevitavelmente recor
rendo também aos gêneros do discurso em que se realizam
essas cam adas. Trata-se, na m aioria dos casos, de diferentes
tipos de gêneros de conversação e diálogo; daí a dialogização
mais ou menos brusca dos gêneros secundários, o enfraque
cimento de sua com posição m onológica, a nova sensação do
ouvinte como parceiro-interlocutor, as novas formas de con
clusão do conjunto, etc. Onde há estilo há gênero. A p assa
gem do estilo de um gênero para outro não só modifica o ca
ráter do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio
com o também destrói ou renova tal gênero.
Desse m odo, tanto os estilos individuais quanto os da
língua satisfazem aos gêneros do discurso. Um estudo mais
profundo e am plo destes é absolutam ente indispensável pa
ra uma elaboração eficaz de todas as questões da estilística.
Contudo, tanto a questão m etodológica de princípio
quanto a questão geral relativa às relações recíprocas do lé
xico com a gram ática, por um lado, e com a estilística, por
outro, baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos
gêneros do discurso.
A gram ática (e o léxico) se distingue substancialmente
da estilística (alguns chegam até a colocá-la em oposição à
estilística), mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gram á
tica (já nem falo de gram ática normativa) pode dispensar ob
servações e incursões estilísticas. Em toda uma série de casos
é com o se fosse obliterada a fronteira entre a gram ática e a
estilística. Há fenômenos que uns estudiosos relacionam ao
Os gêneros do discurso 21
cam po da gram ática, outros, ao cam po da estilística. Um de
les é o sintagma.
Pode-se dizer que a gram ática e a estilística convergem
e divergem em qualquer fenômeno concreto de linguagem: se
o exam inam os apenas 1 1 0 sistema da língua estam os diante
de um fenómeno gram atical, mas se o exam inam os no con
junto de um enunciado individual ou do genero discursivo já
estam os diante de um fenómeno estilístico. Porque a própria
escolha de uma determinada forma gram atical pelo falante é
um ato estilístico. M as esses dois pontos de vista sobre o mes
mo fenômeno concreto da língua não devem ser impenetrá
veis entre si, mas simplesmente se substituírem de forma me
cânica, devendo, porém, combinar-se organicamente (na sua
m ais precisa distinção m etodológica) com base na unidade
real do fenômeno da língua. Só uma concepção profunda da
natureza do enunciado e das peculiaridades dos gêneros dis
cursivos pode assegurar a solução correta dessa com plexa
questão m etodológica.
O estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros dis
cursivos é, segundo nos parece, de importância fundamental
para superar as concepções simplificadas da vida do discur
so, do cham ado “ fluxo discursivo” , da com unicação, etc.,
daquelas concepções que ainda dom inam a nossa lingüísti
ca. Além do mais, o estudo do enunciado como unidade real
da comunicação discursiva permitirá compreender de m odo
mais correto também a natureza das unidades da língua (en
quanto sistema) — as palavras e orações.
E para essa questão m ais geral que passam os agora.
U N ID A D E S D A L ÍN G U A ( P A LA V R A S E O R A Ç Õ E S )
Os gêneros do discurso 23
próprio enunciador. N o fundo, a língua necessita apenas do
falante — de um falante — e do objeto da sua fala, se neste
caso a língua pode servir ainda com o meio de com unicação,
pois essa é a sua função secundária, que não afeta a sua es
sência. Evidentemente, um grupo lingüístico, uma multipli
cidade de falantes, jam ais pode ser ignorado quando se fala
da língua; no entanto, quando se define a essência da língua,
esse momento não se torna necessário e determinante da na
tureza da língua. As vezes o grupo lingüístico é visto com o
certa personalidade coletiva, “ o espírito do po v o ” , etc., e se
lhe dá grande im portância (entre os representantes da “ psi
cologia dos povos” ), m as também neste caso a m ultiplicida
de de falantes, dos outros em relação a cada falante dado, ca
rece de substancialidade.
Até hoje ainda existem na lingüística burguesa ficções
com o o “ ouvinte” 9 e o “ entendedor” (parceiros do “ falan
te” , do “ fluxo único da fala ” , etc.). Tais ficções dão uma no
ção absolutamente deturpada do processo com plexo e am
plamente ativo da com unicação discursiva. N os cursos de lin
güística geral (inclusive em alguns tão sérios quanto o de
Saussure10) aparecem com frequência representações eviden
temente esquemáticas dos dois parceiros da comunicação dis
cursiva — o falante e o ouvinte (o receptor do discurso); su
gere-se um esquema de processos ativos de discurso no falan
te e de respectivos processos passivos de recepção e com
preensão do discurso no ouvinte. N ão se pode dizer que es
ses esquemas sejam falsos e que não correspondam a deter
minados momentos da realidade; contudo, quando passam
ao objetivo real da com unicação discursiva eles se transfor
mam em ficção científica. De fato, o ouvinte, ao perceber e
24 M ikhail Bakhtin
compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa si
multaneamente em relação a ele uma ativa posição responsi
va: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), com
pleta-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição
responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo
de audição e compreensão desde o seu início, às vezes lite
ralmente a partir da primeira palavra do falante. Toda com
preensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ati
vamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bas
tante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nes
sa ou naquela forma a gera obrigatoriam ente: o ouvinte se
torna falante. A compreensão passiva do significado do dis
curso ouvido é apenas um momento abstrato da compreen
são ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na
subsequente resposta real e em voz alta. E claro que nem sem
pre ocorre imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao
enunciado logo depois de pronunciado: a com preensão ati
vamente responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem
militar) pode realizar-se imediatamente na ação (o cum pri
mento da ordem ou com ando entendidos e aceitos para exe
cução), pode permanecer de quando em quando como com
preensão responsiva silenciosa (alguns gêneros discursivos fo
ram concebidos apenas para tal com preensão, por exemplo,
os gêneros líricos), mas isto, por assim dizer, é uma compreen
são responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi
ouvido e ativamente entendido responde nos discursos sub
sequentes ou no com portam ento do ouvinte. N a maioria dos
casos, os gêneros da com plexa com unicação cultural foram
concebidos precisamente para essa com preensão ativamente
responsiva de efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos re
fere-se igualmente às respectivas m udanças e adendos ao dis
curso escrito e ao lido.
Portanto, toda compreensão plena real é ativamente res
ponsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da res
posta (seja qual for a forma em que ela se dê). O próprio fa-
Os gêneros do discurso 25
lantc está determinado precisamente a essa com preensão ati
vamente responsiva: ele não espera uma com preensão passi
va, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em
voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma par
ticipação, uma objeção, uma execução, etc. (os diferentes gê
neros discursivos pressupõem diferentes diretrizes de objeti
vos, projetos de discurso dos falantes ou escreventes). O em
penho em tornar inteligível a sua fala é apenas o momento
abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante.
Adem ais, todo falante é por si mesmo um respondente em
maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o
primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pres
supõe não só a existência do sistema da língua que usa mas
tam bém de alguns enunciados antecedentes — dos seus e
alheios — com os quais o seu enunciado entra nessas ou na
quelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, sim ples
mente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). C ada enun
ciado é um elo na corrente complexamente organizada de ou
tros enunciados.
Desse m odo, aquele ouvinte que, com sua com preensão
passiva, é representado com o parceiro do falante nos dese
nhos esquem áticos das lingüísticas gerais, não corresponde
ao participante real da com unicação discursiva. Aquilo que
o esquema representa é apenas um momento abstrato do ato
pleno e real de com preensão ativamente responsiva, que ge
ra a resposta (a que precisamente visa o falante). Por si mes
ma, essa abstração científica é perfeitamente justificada, mas
sob uma condição: a de ser nitidamente compreendida ape
nas como abstração e não ser apresentada com o fenômeno
pleno concreto e real; caso contrário, ela se transform a em
invenção. E exatamente o que acontece na lingüística, uma
vez que esses esquemas abstratos, mesmo não sendo apresen
tados diretamente com o reflexo da com unicação discursiva
re^l, tam pouco são com pletados por alusões a uma m aior
com plexidade do fenômeno real. Com o resultado, o esque-
26 Mikhail Bakhtin
ma deform a o quadro real da com unicação discursiva, supri
mindo dela precisamente os m om entos mais substanciais.
Desse m odo, o papel ativo do outro no processo de com uni
cação discursiva sai extremamente enfraquecido.
O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no
processo da comunicação discursiva e o empenho em contor
nar inteiramente esse processo m anifestam-se no uso impre
ciso e am bíguo de termos com o “ fa la ” ou “ fluxo da fala ” .
Esses termos deliberadamente imprecisos deveriam sempre
designar aquilo que é submetido a uma divisão em unidades
da língua, concebidas como seus cortes: unidades fónicas (fo
nema, sílaba, cadência da fala) e significativas (oração e pa
lavra). “ O fluxo da fala se desintegra...” , “ nossa fala se divi
d e...” — é assim que nos cursos gerais de lingüística e gra
m ática, bem como nos estudos especiais de fonética e lexico
logía, costum am introduzir as partes dedicadas ao estudo das
respectivas unidades da língua. Infelizmente, até a nossa gra
mática acadêm ica recentemente lançada emprega o mesmo
termo indefinido e ambíguo “ nossa fala ” . Veja-se como se in
troduz a respectiva parte da fonética: “ N o s s j fala se divide
antes de tudo em orações, que por sua vez podem decompor-
-se em combinações de palavras e palavras. As palavras se di
videm nitidamente em unidades fônicas mínimas — as síla
bas... As sílabas se dividem em sons particulares da fala ou
fonem as...” .11
O que vem a ser “ fluxo discursivo” , “ nosso discurso” ?
Qual é a sua extensão? Terão princípio e fim? Se têm dura
ção indefinida, que corte tom am os para dividi-lo em unida
des? A respeito de todas essas questões reinam a plena in
definição e a reticência. A palavra indefinida riétch (“ fala,
[discurso]” ), que pode designar linguagem, processo de dis-
Os gêneros do discurso 27
curso, ou seja, o falar, um enunciado particular ou uma série
indefinidamente longa de enunciados e um determinado gê
nero discursivo (“ ele pronunciou um riétch [discurso]” ), até
hoje não foi transform ada pelos linguistas em um termo ri
gorosam ente limitado pela significação e definido (definível)
(fenômenos análogos ocorrem também em outras línguas).
Isto se deve à quase completa falta de elaboração do proble
ma do enunciado e dos gêneros do discurso e, consequente
mente, da com unicação discursiva. Quase sempre se verifica
o jogo confuso com todas essas significações (exceto com a
última). M ais amiúde subentende-se por “ nosso discurso”
qualquer enunciado de qualquer pessoa; além do m ais, essa
com preensão nunca é sustentada até o fim.12
Entretanto, se é indefinido e vago o que se divide e se de
compõe em unidades da língua, nestas também se introdu-
zem a indefinição e a confusão.
A indefinição terminológica e a confusão em um ponto
m etodológico central no pensamento lingüístico são o resul
tado do desconhecimento da real unidade da com unicação
discursiva — o enunciado. Porque o discurso só pode existir
de fato na forma de enunciados concretos de determinados
falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundi
do em forma de enunciado pertencente a um determinado su
jeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por
mais diferentes que sejam os enunciados por seu volume, pe-
2S M ikhail Bakhtin
Io conteúdo, pela construção com posicional, eles têm com o
unidades da com unicação discursiva peculiaridades estrutu
rais com uns, e antes de tudo limites absolutamente precisos.
Esses limites, de natureza especialmente substantiva e princi
piai , precisam ser exam inados minuciosamente.
Os limites de cada enunciado concreto como unidade da
com unicação discursiva são definidos pela alternância dos
sujeitos cio discurso , ou seja, pela alternância dos falantes.
Todo enunciado — da réplica sucinta (m onovocal) do diálo
go cotidiano ao grande romance ou tratado científico — tem,
por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: an
tes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu tér
mino, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma
com preensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou,
por último, uma ação responsiva baseada nessa compreen
são). O falante termina o seu enunciado para passar a pala
vra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente res
ponsiva. O enunciado não é uma unidade convencional, mas
uma unidade real, delimitada com precisão pela alternância
dos sujeitos do discurso e que termina com a transm issão da
palavra ao outro, por mais silencioso que seja o “ d ixi” per
cebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante concluiu
sua fala.
Essa alternância dos sujeitos do discurso, que cria limi
tes precisos do enunciado nos diversos cam pos da atividade
humana e da vida, dependendo das diversas funções da lin
guagem e das diferentes condições e situações de com unica
ção, tem uma natureza diferente e assume form as várias. O b
servam os essa alternância dos sujeitos do discurso de m odo
mais simples e evidente no diálogo real, em que se alternam
os enunciados dos interlocutores (parceiros do diálogo), aqui
denominados réplicas. Por sua precisão e simplicidade, o diá
logo é a forma clássica de com unicação discursiva. C ada ré
plica, por mais breve e fragm entária que seja, tem uma con-
clusibilidade específica ao exprim ir certa posição do falante
Os gêneros do discurso 29
que suscita resposta, em relação à qual se pode assum ir uma
posição responsiva. Essa conclusibilidade específica do enun
ciado será objeto de nosso exam e posterior (trata-se de um
dos traços fundamentais do enunciado). Ao mesmo tempo,
as réplicas são interligadas. M as aquelas relações que exis
tem entre as réplicas do diálogo — as relações de pergunta-
-resposta, afirm ação-objeção, afirm ação-concordância, pro-
posta-aceitação, ordem -execução, etc. — são impossíveis en
tre unidades da língua (palavras e orações), quer no sistema
da língua (no corte vertical), quer no interior do enunciado
(no corte horizontal). Essas relações específicas entre as ré
plicas do diálogo são apenas m odalidades das relações espe
cíficas entre os enunciados plenos no processo de com unica
ção discursiva. Essas relações só são possíveis entre enuncia
dos de diferentes sujeitos do discurso, pressupõem outros (em
relação ao falante) membros da comunicação discursiva. Tais
relações entre enunciados plenos não se prestam à gramati-
calizaçào, uma vez que, reiteremos, não são possíveis entre
unidades da língua, e isso tanto no sistema da língua quanto
no interior do enunciado.
N os gêneros discursivos secundários, particularm ente
nos retóricos, encontram os fenômenos que parecem contra
riar essa nossa tese. M uito amiúde o falante (ou quem escre
ve) coloca questões no ámbito do seu enunciado, responde a
elas mesmas, faz objeções a si mesmo e refuta suas próprias
objeções, etc. M as esses fenômenos não passam de represen
tação convencional da com unicação discursiva nos gêneros
primários do discurso. Essa representação caracteriza os gê
neros retóricos (lato sensu, incluindo algum as m odalidades
de popularizações científicas), contudo todos os outros gêne
ros secundários (ficcionais e científicos) usam diferentes for
m as de introdução na construção do enunciado, dos gêneros
de discurso prim ários e das relações entre eles (note-se que
aqui eles sofrem transform ações de diferentes graus, uma vez
que não há uma alternância real de sujeitos do discurso). É
30 M ikhail Bakhrin
essa a natureza dos gêneros secundários.13 Entretanto, em to
das essas m anifestações, as relações entre gêneros primários
reproduzidos, ainda que eles estejam no âmbito de um enun
ciado, não se prestam à gram aticalização e conservam a sua
natureza específica essencialmente distinta da [naturezaJ das
relações entre as palavras e orações (e outras unidades da lín
gua — grupos de palavras, etc.) dentro do enunciado.
Aqui, com base no material do diálogo e das suas répli
cas, é necessário abordar previamente o problema da oração
como unidade da língua naquilo que a diferencia do enun
ciado com o unidade da comunicação discursiva.
(A natureza da oração é uma das questões mais comple
xas e difíceis na lingüística. A luta de opiniões em torno des
sa questão continua em nossa ciência até os dias dc hoje. N ão
é tarefa nossa, evidentemente, desvendar essa questão em to
da a sua com plexidade; nossa intenção é abordar apenas um
aspecto, mas tal aspecto nos parece de importância substan
cial para toda a questão. Para nós im porta definir com pre
cisão a relação da oração com o enunciado. Isto ajudará a
elucidar com mais clareza o enunciado, de um lado, e a ora
ção, de outro.)
Posteriormente tratarem os dessa questão, por ora ob
servam os apenas que os limites da oração enquanto unidade
da língua nunca são determinados pela alternância de sujei
tos do discurso. Essa alternância, que emoldura a oração de
am bos os aspectos, converte-a em um enunciado pleno. Es
sa oração assume novas qualidades e é percebida de modo
inteiramente diverso de como é percebida a oração em oldu
rada por outras orações no contexto de um enunciado desse
ou daquele falante. A oração é um pensamento relativamen
te acabado, correlacionado de forma imediata com outros
pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enuncia
Os gêneros do discurso 31
do; ao término da oração, o falante faz uma pausa para lo
go p assar ao seu pensam ento subsequente, que continua,
completa e fundamenta o primeiro. O contexto da oração é
o contexto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante); a
oração não se correlaciona de forma imediata nem pessoal
com o contexto extraverbal da realidade (a situação, o am
biente, a pré-história) nem com os enunciados de outros fa
lantes, mas tão somente através de todo o contexto que a ro
deia, isto é, através do enunciado em seu conjunto. Se, po
rém, a oração não está cercada pelo contexto do discurso do
mesmo falante, ou seja, se ela é um enunciado pleno e aca
bado (uma réplica do diálogo), então ela estará imediatamen
te (e individualmente) diante da realidade (do contexto ex-
traverbal do discurso) e de outros enunciados dos outros ; a
estes já não se segue a pausa, que é definida e assim ilada pe
lo próprio falante (pausas de toda espécie, com o m anifesta
ções gram aticais calculadas e assim iladas, só são possíveis
dentro do discurso de um falante, isto é, dentro de um enun
ciado; as pausas entre os enunciados não são, evidentemen
te, de natureza gram atical e sim real; essas pausas reais —
psicológicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstân
cias externas — podem destruir também um enunciado; nos
gêneros ficcionais secundários, tais pausas são levadas em
conta pelo artista, o diretor de cena, o ator, mas por princí
pio elas diferem tanto das pausas gram aticais quanto das
pausas estilísticas — por exem plo, entre os sintagm as — no
interior do enunciado); espera-se que essas pausas sejam se
guidas de uma resposta ou uma com preensão responsiva de
outro falante. Semelhante oração, tornada enunciado pleno,
ganha uma validade sem ântica especial; em relação a ela po
de-se ocupar uma posição responsiva, com ela se pode con
cordar ou discordar, pode-se executá-la, avaliá-la, etc.; no
contexto, a oração carece de capacidade de determinar a res
posta; ela ganha essa capacidade (ou melhor, familiariza-se
com ela) apenas no conjunto do enunciado.
32 M ikhail Bakhtin
Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente
novas pertencem não à própria oração, que se tornou enun
ciado pleno, mas precisamente ao enunciado, traduzindo a
sua natureza e não a natureza da oração: elas se incorporam
à oração completando-a até torná-la enunciado pleno. A ora
ção enquanto unidade da língua carece de todas essas pro
priedades: não é delimitada de am bos os aspectos pela alter
nância dos sujeitos do discurso, não tem contato imediato
com a realidade (com a situação extra verbal) nem relação
imediata com enunciados alheios, não dispõe de plenitude se
mântica nem capacidade de determinar imediatamente a posi
ção responsiva do outro falante, isto é, de suscitar resposta.
A oração enquanto unidade da língua tem natureza gram a
tical, fronteiras gram aticais, lei gram atical e unidade. (Exa
m inada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse
conjunto, ela adquire propriedades estilísticas.) Onde a ora
ção figura com o um enunciado pleno ela aparece colocada
em uma m oldura de material de natureza diversa. Quando
esquecemos esse pormenor na análise de uma oração, detur
pam os a sua natureza (e ao mesmo tempo também a nature
za do enunciado, gram aticalizando-o). M uitos linguistas e
correntes lingüísticas (no cam po da sintaxe) são prisioneiros
dessa confusão, e o que estudam com o oração é, no fundo,
algum híbrido de oração (de unidade da língua) e de enun
ciado (de unidade da com unicação discursiva). N ã o se inter
cambian! orações com o se intercambiam palavras (em rigo
roso sentido lingüístico) e grupos de palavras; intercambiam-
-se enunciados que são construídos com o auxílio das unida
des da língua: palavras, com binações de palavras, orações;
adem ais, o enunciado pode ser construído a partir de uma
oração, de uma palavra, por assim dizer, de uma unidade do
discurso (predominantemente de uma réplica do diálogo),
mas isso não leva uma unidade da língua a transformar-se
em unidade da com unicação discursiva.
A ausência de uma teoria elaborada do enunciado como
Os gêneros do discurso 33
unidade da com unicação discursiva redunda em uma distin
ção imprecisa da oração e do enunciado, e frequentemente
na total confusão dos dois.
Voltemos ao diálogo real. Com o já dissemos, trata-se da
forma mais simples e clássica de com unicação discursiva. A
alternância dos sujeitos do discurso (falantes), que determi
na os limites dos enunciados, está aqui representada com ex
cepcional evidência. Contudo, em outros cam pos da com u
nicação discursiva, inclusive nos cam pos da comunicação cul
tural (científica e artística), de organização com plexa, a na
tureza dos limites do enunciado é a mesma.
Com plexas por sua construção, as obras especializadas
dos diferentes gêneros científicos e ficcionais, a despeito de
toda a diferença entre elas e as réplicas do diálogo, também
são, pela própria natureza, unidades da com unicação discur
siva: também estão nitidamente delimitadas pela alternância
dos sujeitos do discurso, cabendo observar que essas frontei
ras, ao conservarem a sua precisão externa, adquirem um ca
ráter interno graças ao fato de que o sujeito do discurso —
neste caso o autor de uma obra — aí revela a sua individua
lidade no estilo, na visão de mundo, em todos os elementos
da ideia de sua obra. Essa marca da individualidade, jacente
na obra, é o que cria princípios interiores específicos que a
separam de outras obras a ela vinculadas no processo de co
municação discursiva de um dado cam po cultural: das obras
dos predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras
da mesma corrente, das obras de correntes hostis com bati
das pelo autor, etc. A obra, com o a réplica do diálogo, está
disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua
ativa com preensão responsiva, que pode assum ir diferentes
form as: influência educativa sobre os leitores, sobre suas con
vicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e con
tinuadores; ela determina as posições responsivas dos outros
nas com plexas condições de com unicação discursiva de um
dado cam po da cultura. A obra é um elo na cadeia da com u
34 M ikhail Bakhrm
n ic a ç ã o discursiva; com o a réplica do diálogo, está vincula
d a a outras obras — enunciados: com aquelas às quais ela
re sp o n d e,e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tem
p o , à semelhança da réplica do diálogo, ela está separada da
q u e la s pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do
d is c u r s o .
D e s s e m odo, a alternância dos sujeitos do discurso, que
e m o ld u r a o enunciado e cria para ele a m assa firme, rigoro
s a m e n te delimitada dos outros enunciados a ele vinculados,
é a primeira peculiaridade constitutiva do enunciado com o
u n id a d e da com unicação discursiva, que o distingue da uni
d a d e d a língua. Passem os à segunda peculiaridade do enun
c ia d o , intimamente vinculada à primeira. Essa segunda pe
conclusibilidade específica do enunciado.
c u lia r id a d e é a
A conclusibilidade do enunciado é uma espécie de a s
pecto interno da alternância dos sujeitos do discurso; essa al
ternância pode ocorrer precisamente porque o falante disse
(ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob
d a d a s condições. Q uando ouvim os ou vemos, percebemos
nitidamente o fim do enunciado, como se ouvíssem os o “ di-
x i ” conclusivo do falante. Essa conclusibilidade é específica
e determinada por categorias específicas. O primeiro e mais
importante critério de conclusibilidade do enunciado é a pos
sibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e am
plos, de ocupar em relação a ele uma posição responsiva (por
exem plo, cumprir uma ordem). A esse critério corresponde
ta m b é m a pergunta sucinta do cotidiano, por exemplo, “ Que
horas sã o ?” (a ela pode-se responder), e o pedido cotidiano
que pode ser cum prido ou descum prido, o discurso científi
co com o qual podem os concordar ou não concordar (intei
ramente ou em parte), e o romance ficcional, que pode ser
avaliado em seu conjunto. Alguma conclusibilidade é neces
sária para que se possa responder ao enunciado. Para isso
não basta que o enunciado seja compreendido no sentido lin
güístico. Uma oração absolutam ente compreensível e acab a
o s gêneros do discurso 35
da, se é oração e não enunciado constituído por uma oração,
não pode suscitar atitude responsiva:14 isso é compreensível
mas ainda não é tudo. Esse tudo — indício da inteireza do
enunciado — não se presta a uma definição nem gram atical
nem abstrato-sem ântica.
Essa plenitude acabada do enunciado, que assegura a
possibilidade de resposta (ou de compreensão responsiva), é
determinada por três elementos (ou fatores) intimamente li
gados na totalidade orgânica do enunciado: 1) a exauribili-
dade sem ântico-objetal; 1) o projeto de discurso ou vontade
de discurso do falante; 3) as form as típicas da com posição e
do acabam ento do gênero.
O primeiro elemento — a exauribilidade sem ântico-ob
jetal do tema do enunciado — difere profundamente nos di
versos cam pos da com unicação discursiva. Essa exauribilida-
de pode chegar a uma plenitude quase absoluta em alguns
cam pos da vida (as questões de natureza puramente factual,
bem com o as respostas factuais a elas, os pedidos, as ordens,
etc.), em alguns cam pos oficiais, no cam po das ordens mili
tares e produtivas, isto é, naqueles cam pos em que os gêne
ros do discurso têm uma natureza sumamente padronizada
e é quase total a ausência do elemento criativo. N o s cam pos
da criação (particularmente nos científicos, evidentemente),
ao contrário, só é possível uma única exauribilidade sem ân
tico-objetal muito relativa; aqui só se pode falar de um míni
mo de acabam ento, que permite ocupar uma posição respon
siva. O objeto é objetivamente inexaurível, mas, ao se tornar
36 Mikhail Bakhtin
tema do enunciado (por exemplo, de um trabalho científico),
g a n h a uma relativa conclusibilidade em determinadas condi
ç õ e s , em certa situação do problema, em um dado material,
em determinados fins colocados pelo autor, isto é, já no âm
b ito de uma ideia definida do autor. Desse m odo, deparam o-
-n o s inevitavelmente com o segundo elemento, que é insepa
rá v e l do primeiro.
Em cada enunciado — da réplica monovocal do cotidia
no às grandes e com plexas obras de ciência ou de literatura
__abrangem os, interpretamos, sentimos a intenção discursi
va ou a vontade de produzir sentido por parte do falante, que
determina a totalidade do enunciado, o seu volume e as suas
fronteiras. Imaginam os o que o falante quer dizer, e com es
sa intenção verbalizada, essa vontade verbalizada (como a
entendemos) é que medimos a conclusibilidade do enuncia
do. Essa intenção determina tanto a própria escolha do ob
jeto (em certas condições de com unicação discursiva, na re
lação necessária com os enunciados antecedentes) quanto os
seus limites e a sua exauribilidade semântico-objetal. Ele, evi
dentemente, também determina a escolha da form a do gêne
ro na qual será construído o enunciado (já se trata do tercei
ro elemento que abordarem os adiante). Essa intenção — m o
mento subjetivo do enunciado — combina-se em uma unida
de indissolúvel com o seu aspecto sem ântico-objetal, restrin
gindo-o, vinculando-o a uma situação concreta (singular) de
com unicação discursiva, com todas as suas circunstâncias in
dividuais, com seus participantes pessoais, com as suas inter
venções — enunciados antecedentes. Por isso os participan
tes imediatos da com unicação, que se orientam na situação
e nos enunciados antecedentes, abrangem fácil e rapidam en
te a intenção discursiva, a vontade discursiva do falante, e
desde o início do discurso percebem a totalidade do enuncia
do em desdobram ento.
Passemos ao elemento terceiro e mais importante para
nós — as form as estáveis de gênero do enunciado. A vonta-
Os gêneros do discurso
de discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha
de certo género de discurso. Essa escolha é determinada pe
la especificidade de um dado cam po da com unicação discur
siva, por considerações semántico-objetais (temáticas), pela
situação concreta da com unicação discursiva, pela com posi
ção pessoal dos seus participantes, etc. Em seguida, a inten
ção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e
subjetividade, é aplicada e adaptada ao gênero escolhido,
constitui-se e desenvolve-se em determinada form a de gêne
ro. Tais gêneros existem sobretudo em todos os gêneros mais
variados da com unicação oral cotidiana, incluindo o gênero
mais fam iliar e o mais íntimo.
Falam os apenas através de certos gêneros do discurso,
isto é, todos os nossos enunciados têm formas relativamente
estáveis e típicas de construção do conjunto. D ispom os de
um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos).
Em termos práticos , nós os em pregam os de forma segura e
habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer in
teiramente a sua existência. Com o o Jourdain de M olière,
que falava em prosa sem que disso suspeitasse, nós falam os
por gêneros diversos sem suspeitar de sua existência. Até mes
mo no bate-papo m ais descontraído e livre m oldam os o nos
so discurso por certas form as de gênero, às vezes padroniza
das e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e cria
tivas (a com unicação cotidiana também dispõe de gêneros
criativos). Esses gêneros do discurso nos são dados quase da
mesma forma que nos é dada a língua materna, a qual dom i
namos livremente até com eçarm os o estudo teórico da gra
mática. A língua materna — sua com posição vocabular e sua
estrutura gram atical — não chega ao nosso conhecimento a
partir de dicionários e gram áticas, m as de enunciados con
cretos que nós mesmos ouvim os e nós mesmos reproduzimos
na com unicação discursiva viva com as pessoas que nos ro
deiam. Assimilamos as form as da língua somente nas form as
dos enunciados e justamente com essas formas. As form as da
38 Mikhail Bakhrin
F
língua e as form as típicas dos enunciados, isto é, os gêneros
do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciên
cia juntas e estreitamente vinculadas. Aprender a falar signi
fica aprender a construir enunciados (porque falam os por
enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não
por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam o
nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as
form as gram aticais (sintáticas). N ós aprendemos a m oldar o
nosso discurso em form as de gênero e, quando ouvim os o
discurso alheio, já adivinham os o seu gênero pelas prim ei
ras palavras, adivinhamos certo volume (isto é, uma exten
são aproxim ada do conjunto do discurso), uma determinada
construção com posicional, prevemos o fim, isto é, desde o
início temos a sensação do conjunto do discurso que, em se
guida, apenas se diferencia no processo da fala. Se os gêne
ros do discurso não existissem e nós não os dom inássem os,
se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do dis
curso, de construir livremente cada enunciado e pela primei
ra vez, a com unicação discursiva seria quase impossível.
As form as do gênero, nas quais m oldam os o nosso dis
curso, diferem substancialmente, é claro, das form as da lín
gua no sentido da sua estabilidade e da sua coerção (norma-
tividade) para o falante. Em linhas gerais, elas são bem mais
flexíveis, plásticas e livres que as form as da língua. Também
neste sentido a diversidade dos gêneros do discurso é muito
grande. Toda uma série de gêneros sumamente difundidos no
cotidiano é de tal form a padronizada que a vontade discur
siva individual do falante só se manifesta na escolha de um
determinado gênero e adem ais na sua entonação expressiva.
Assim são, por exemplo, os diversos gêneros cotidianos bre
ves de saudações, despedida, felicitações, votos de toda espé
cie, inform ação sobre a saúde, as crianças, etc. A diversida
de desses gêneros é determinada pelo fato de que eles dife
rem entre si dependendo da situação, da posição social e das
relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da
Os gêneros do discurso 39
com unicação: há form as elevadas desses gêneros, rigorosa
mente oficiais e respeitosas, concomitantes com formas fam i
liares, que adem ais apresentam diversos graus de fam iliari
dade, e com form as íntimas (estas diferem das fam iliares).1-'’
Esses gêneros requerem ainda certo tom, isto é, incluem em
sua estrutura determinada entonação expressiva. Esses gêne
ros, particularmente os elevados, oficiais, apresentam um al
to grau de estabilidade e coação. Aí, a vontade discursiva cos
tuma limitar-se à escolha de um gênero, e só leves matizes de
uma entonação expressiva (pode-se assum ir um tom mais se
co ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introdu
zir a entonação de alegria, etc.) podem refletir a individuali
dade do falante (a sua ideia discursivo-emocional). M as tam
bém aqui é possível uma reacentuação dos gêneros, caracte
rística da com unicação discursiva em geral; assim , por exem
plo, pode-se transferir a form a de gênero da sau dação do
cam po oficial para o cam po da com unicação familiar, isto é,
empregá-la com uma reacentuação irônico-paródica; com fins
análogos pode-se m isturar deliberadamente os gêneros das
diferentes esferas.
Paralelam ente a sem elhantes gêneros p ad ro n izad os,
existiam e existem, é claro, gêneros mais livres e mais criati
vos de com unicação discursiva oral: os gêneros das conver
sas de salão sobre temas do cotidiano, sociais, estéticos e si
milares, os gêneros das conversas à mesa, das conversas ín
tim o-am istosas, íntim o-fam iliares, etc. (por enquanto não
existe uma nomenclatura dos gêneros do discurso oral e tam
pouco está claro o princípio de tal nomenclatura). A m aioria
40 M ikhail Bakhtin
desses gêneros se presta a uma reform ulação livre e criadora
(à semelhança dos gêneros ficcionais, e alguns talvez até em
maior grau), m as o uso criativamente livre não é uma nova
c r ia ç ã o de gênero — cabe dom inar bem os gêneros para em
pregá-los livremente.
M uitas pessoas que dominam magníficamente uma lín
gua sentem amiúde total impotência em alguns cam pos da
com unicação, justo porque não dominam na prática as for
mas do gênero desses cam pos. Com frequência, uma pessoa
que tem pleno domínio do discurso em diferentes cam pos da
com unicação cultural — sabe 1er um relatório, desenvolver
uma discussão científica, fala muito bem sobre questões so
ciais — em uma conversa m undana cala ou intervém de for
ma muito desajeitada. Aqui não se trata de pobreza vocabu
lar nem de estilo tom ado de maneira abstrata; tudo se resu
me a uma inabilidade para dominar o repertório dos gêneros
da conversa m undana, à falta de um suficiente acervo de no
ções sobre um enunciado inteiro que ajudem a m oldar de for
ma rápida e descontraída o seu discurso nas form as estilísti-
co-com posicionais definidas, a uma inabilidade para tom ar
a palavra a tempo, começar corretamente e terminar corre
tamente (nesses gêneros, a com posição é muito simples).
Quanto mais dom inam os os gêneros, m aior é a desen
voltura com que os empregamos e mais plena e nitidamente
descobrim os neles a nossa individualidade (onde isso é p o s
sível e necessário), refletimos de m odo mais flexível e sutil a
situação singular da com unicação — em suma, tanto mais
plena é a forma com que realizamos o nosso livre projeto de
discurso.
Desse m odo, ao falante não são dadas apenas as form as
da língua nacional (a composição vocabular e a estrutura gra
matical) obrigatórias para ele, mas também as form as igual
mente obrigatórias de enunciado, isto é, os gêneros do dis
curso: estes são tão indispensáveis para a compreensão mú
tua quanto as formas da língua. Os gêneros do discurso, com-
Os gêneros do discurso 41
parados às form as da língua, são bem mais mutáveis, flexí
veis e plásticos; entretanto, para o indivíduo falante eles têm
significado normativo, não são criados por ele mas dados a
ele. Por isso um enunciado singular, a despeito de toda a sua
individualidade e do caráter criativo, jam ais pode ser consi
derado uma combinação absolutamente livre de form as da
língua, com o o supõe, por exem plo, Saussure (e muitos ou
tros linguistas que o secundam), que contrapõe enunciado (la
parole) com o ato puramente individual ao sistema da língua
como fenómeno puramente social e obrigatório para o indi
viduo.16 A imensa m aioria dos linguistas, se não na teoria,
assume na prática a mesma posição: veem no enunciado ape
nas uma com binação individual de forma puras da língua (lé
xicas e gram aticais), e praticamente não enxergam nem estu
dam nela nenhuma outra form a normativa.
O desconhecimento dos gêneros do discurso com o for
mas relativamente estáveis e normativas de enunciado deve
ria levar necessariamente os linguistas à já referida confusão
do enunciado com a oração, deveria levar a uma situação
(que, é verdade, nunca foi defendida coerentemente) em que
os nossos discursos só se m oldam em form as estáveis de o ra
ção que nos foram dadas; no entanto, o número de tais ora
ções interligadas, que pronunciam os seguidamente, e o m o
mento em que param os (terminamos) são um assunto que se
deixa ao pleno arbítrio da vontade individual de discurso do
falante ou ao capricho de um mítico “ fluxo da fala".
42 Mikhail Bakhtin
Q uando escolhemos um tipo de oração, não o escolhe
mos apenas para uma oração, não o fazemos por considerar
mos o que queremos exprim ir com determinada oração; es
colhemos um tipo de oração do ponto de vista do enunciado
inteiro que se apresenta à nossa im aginação discursiva e de
termina a nossa escolha. A concepção da form a de um enun
ciado integral, isto é, de um determinado gênero do discur
so, guia-nos no processo do nosso discurso. A ideia de cons
truir o nosso enunciado em sua totalidade pode, é verdade,
exigir para sua realização apenas uma oração, mas também
pode exigir um grande número delas. O gênero escolhido nos
sugere os tipos e os seus vínculos com posicionais.
Uma das causas do desconhecimento lingüístico das for
mas de enunciado é a extrema heterogeneidade dessas for
mas no tocante à construção composicional e, particularmen
te, à sua dimensão (a extensão do discurso) — da réplica mo-
novocal ao grande romance. Uma diferença acentuada nas
dimensões também ocorre no âm bito dos gêneros do dis
curso oral. Por essas razões, os gêneros do discurso se afigu
ram incomensuráveis e inaplicáveis enquanto unidades do
discurso.
Por isso, muitos linguistas (principalmente pesquisado
res do cam po da sintaxe) tentam encontrar formas especiais
que sejam intermediárias entre a oração e o enunciado, que
tenham conclusibilidade como o enunciado, e ao mesmo tem
po com ensurabilidade como a oração. Assim são a “ frase”
(por exem plo, em K artzevski),17 a “ com unicação” (Chákh-
Os gêneros do discurso 43
m atov18 e outros). Entre os pesquisadores que empregam es
sas unidades não existe identidade na sua concepção, porque
na vida da língua a elas não corresponde nenhuma realidade
definida e nitidamente delimitada. Todas essas unidades ar
tificiais e convencionais são indiferentes à alternância dos su
jeitos do discurso, que ocorre em qualquer com unicação dis
cursiva viva e real, por isso se obliteram os limites mais subs
tanciais em todos os cam pos da ação da língua — os limites
entre os enunciados. D aí (consequentemente) desaparece o
critério central de conclusibilidade do enunciado com o uni
dade autêntica da com unicação discursiva — a capacidade
de determinar a ativa posição responsiva dos outros partici
pantes da com unicação.
Para concluir esta seção, cabem ainda algum as observa
ções sobre a oração (faremos um resumo a respeito no final
do nosso trabalho).
A oração enquanto unidade da língua é desprovida da
capacidade de determinar imediata e ativamente a posição
responsiva do falante. Só depois de tornar-se um enunciado
pleno, uma oração particular adquire essa capacidade. Q ual
quer oração pode figurar como enunciado acabado, mas, nes
te caso, é com pletada por uma série de elementos essenciais
de índole não gram atical, que lhe modificam a natureza pe
la raiz. E é essa circunstância que serve de causa a uma aber
ração sintática especial: ao analisar-se uma oração isolada,
44 M ikhail Bakhtin
destacada do contexto, inventa-se promovê-la a um enuncia
do pleno. Consequentemente, ela atinge o grau de conclusi-
bilidade que lhe permite suscitar resposta.
Com o a palavra, a oração é uma unidade significante da
língua. Por isso, cada oração isolada, por exem plo “ o sol
saiu ” , é absolutam ente compreensível, isto é, nós compreen
demos o seu significado lingüístico, o seu papel possível no
enunciado. Entretanto, é impossível ocupar uma posição res
ponsiva em relação a uma posição isolada se não sabem os se
o falante disse com essa oração tudo o que quis dizer, que es
sa oração não é antecedida nem sucedida por outras orações
do mesmo falante. M as neste caso ela já não é uma oração e
sim um enunciado plenamente válido, constituído de uma só
oração: ele está emoldurado e delimitado pela alternância dos
sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (si
tuação) extraverbal. Esse enunciado suscita resposta.
Contudo, se essa oração está envolvida pelo contexto,
ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto,
isto é, apenas no enunciado inteiro, e uma resposta só é pos
sível a esse enunciado inteiro cujo elemento significante é a
referida oração. O enunciado pode, por exem plo, ser tam
bém assim: “ O sol saiu. É hora de me levantar” . A compreen
são responsiva (ou a resposta em voz alta): “ Sim, realmente
está na h o ra” . Entretanto, o enunciado pode ser também a s
sim: “ O sol saiu. M as ainda é muito cedo. Preciso dormir
mais um p o u co ". Aqui, o sentido do enunciado e a atitude
responsiva perante ele são outros. Essa oração pode fazer
parte até da com posição de uma obra de arte com o elemen
to da paisagem . Aqui a atitude responsiva — im pressão ar-
tistico-ideológica e avaliação — pode referir-se apenas a uma
paisagem em seu conjunto. N o contexto de outra obra, essa
oração pode ganhar significação sim bólica. Em todos os ca
sos semelhantes, a oração é o elemento significante do con
junto de um enunciado, e ela adquiriu o seu sentido definiti
vo apenas nesse conjunto.
Os gêneros do discurso 45
Se nossa oração figura com o enunciado acabado, ela ad
quire o seu sentido pleno em determinadas condições concre
tas de com unicação discursiva. Assim, ela pode ser uma res
posta à pergunta do outro: “ Será que o sol já saiu ?” . (E cla
ro que em certas circunstâncias que justifiquem essa pergun
ta.) Aqui esse enunciado é a afirm ação de um determinado
fato, afirm ação que pode ser verdadeira ou falsa, com a qual
podem os concordar ou não. Uma oração, afirmativa em sua
forma , torna-se afirm ação real apenas no contexto de um de
terminado enunciado.
Quando se analisa semelhante oração isolada costuma-
-se interpretá-la com o enunciado acabado em alguma situa
ção simplificada ao extremo: o sol realmente saiu e o falan
te constata: “ O sol saiu ” ; o falante está vendo que a gram a
é verde e declara: “ A gram a é verde’’ . Semelhantes “ com uni
cações” sem sentido costum am ser consideradas francam en
te com o casos clássicos de uma oração. Em realidade, porém,
toda inform ação semelhante dirige-se a alguém, é suscitada
por alguma coisa, tem algum objetivo, ou seja, é um elo real
na cadeia da com unicação discursiva em determinado cam
po da atividade humana ou da vida.
Com o a palavra, a oração tem conclusibilidade de sig
nificado e conclusibilidade de form a gram atical , m as essa
conclusibilidade de significado é de índole abstrata e por is
so mesmo tão precisa: é o acabam ento do elemento, m as não
o acabam ento do conjunto. A oração como unidade da lín
gua, à semelhança da palavra, não tem autor. Ela é de nin
guém, como a palavra, e só funcionando como um enuncia
do pleno ela se torna expressão da posição do falante indivi
dual em uma situação concreta de com unicação discursiva.
Isto nos leva a uma nova, a uma terceira peculiaridade do
enunciado — a relação do enunciado com o próprio falante
(autor do enunciado) e com outros participantes da com uni
cação discursiva.
Todo enunciado é um elo na cadeia da com unicação dis-
46 M ikhail Bakhtin
c u r s iv a . É a posição ativa do falante nesse ou naquele cam
po do o b je to e do sentido. Por isso cada enunciado se carac
te r iz a , a n te s de tudo, por certo conteúdo semântico-objetal.
A e s c o lh a d o s meios lingüísticos e dos gêneros de discurso é
d e t e r m i n a d a , primeiramente, pelas tarefas (pela ideia) do su
jeito do d isc u rso (ou autor) centradas no objeto e no senti
d o . É o prim eiro elemento do enunciado que determina as
suas peculiaridades estilístico-com posicionais.
O segu n d o elemento do enunciado, que lhe determina a
c o m p o s i ç ã o e o estilo, é o elemento expressivo , isto é, a rela
ção subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o
conteúdo d o objeto e do sentido do seu enunciado. N o s di
ferentes cam p o s da com unicação discursiva, o elemento ex
pressivo tem significado vário e grau vário de força, mas ele
existe em to d a parte: um enunciado absolutam ente neutro é
impossível. A relação valorativa do falante com o objeto do
seu discurso (seja qual for esse objeto) também determina a
escolha d os recursos lexicais, gram aticais e com posicionais
do enunciado. O estilo individual do enunciado é determina
do sobretudo por seu aspecto expressivo. N o cam po da esti
lística, pode-se considerar essa tese universalmente aceita. Al
guns pesquisadores chegam inclusive a reduzir diretamente o
estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso.
Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso
um fenômeno da língua com o sistem a? Pode-se falar de a s
pecto expressivo das unidades da língua, isto é, das palavras
e orações? A estas perguntas faz-se necessária uma resposta
categoricamente negativa. A língua com o sistema tem, evi
dentemente, um rico arsenal de recursos lingüísticos — lexi
cais, m orfológicos e sintáticos — para exprim ir a posição
emocionalmente valorativa do falante, mas todos esses recur
sos enquanto recursos da língua são absolutam ente neutros
em relação a qualquer avaliação real determinada. A palavra
“ benzinho” — hipocorística tanto pelo significado do radi
cal quanto pelo sufixo — em si mesma, com o unidade da lín
Os gêneros do discurso 47
gua, c rão neutra quanto a palavra “ lonjura” . Ela é apenas
um recurso lingüístico para uma possível expressão de rela
ção emocionalmente valorativa com a realidade, no entanto
não se refere a nenhuma realidade determinada; essa referên
cia, isto é, esse real juízo de valor, só pode ser realizado pelo
falante em seu enunciado concreto. As palavras não são de
ninguém, em si mesmas nada valorizam , mas podem abaste
cer qualquer falante e os juízos de valor mais diversos e d ia
metralmente opostos dos falantes.
A oração enquanto unidade da língua também é neutra
em si mesma e não tem aspecto expressivo; ela o adquire (ou
melhor, comunga com ele) unicamente em um enunciado con
creto. Aqui é possível a mesma aberração. Uma oração co
mo “ Ele m orreu” pelo visto incorpora uma determinada ex
pressão, e a incorpora ainda mais uma oração com o “ Que
alegria!’’ . Em realidade, nós percebemos ações dessa nature
za como enunciados plenos e ainda mais em uma situação tí
pica, isto é, numa espécie de gêneros do discurso dotados de
expressão típica. Enquanto orações elas são desprovidas des
sa expressão, são neutras. Dependendo do contexto do enun
ciado, a oração “ Ele m orreu” pode traduzir também uma ex
pressão positiva, de alegria e até de júbilo. E a oração “ Que
alegria!” , no contexto de certo enunciado, pode assum ir tom
irônico ou amargamente sarcástico.
Um dos meios de expressão da relação emocionalmen
te valorativa do falante com o objeto da sua fala é a entona
ção expressiva que soa nitidamente na execução o ra l.19 A en
tonação expressiva é um traço constitutivo do enunciado.20
48 M ikhail Bakhtin
N o sistema da língua, isto é, fora do enunciado, ela não exis
te. Tanto a palavra quanto a oração enquanto unidades da
língua são desprovidas de entonação expressiva. Se uma pa
lavra isolada é pronunciada com entonação expressiva, já
não é uma palavra mas um enunciado acabado expresso por
uma palavra (não há nenhum fundamento para desdobrá-la
em oração). N a com unicação discursiva, existem tipos bas
tante padronizados e muito difundidos de enunciados valo-
rativos, isto é, de gêneros valorativos de discurso que tradu
zem elogio, aprovação, êxtase, estím ulo, insulto: “ Ó tim o !",
“ B ravo !” , “ M aravilh a!” , “ É uma vergonha!” , “ P orcaria!” ,
“ Uma b esta!” , etc. As palavras que, em determinadas condi
ções da vida político-social adquirem um peso específico, tor
nam-se enunciados exclamativos expressivos: “ P az!” , “ Liber
d ad e !” , etc. (Trata-se de um gênero de discurso político-so
cial específico.) Em certa situação a palavra pode adquirir um
sentido profundam ente expressivo na form a de enunciado
exclam ativo: “ M ar! M a r !” (exclam am dez mil gregos em
X enofonte).21
Em todos esses casos não estam os diante de uma p ala
vra isolada como unidade da língua nem do significado de tal
Os gêneros do discurso 49
palavra, mas de uni enunciado acabado e com um sentido
concreto11 — estam os diante do conteúdo de um dado enun
ciado; aqui, o significado da palavra refere uma realidade
concreta em condições igualmente reais de com unicação dis
cursiva. Por isso, aqui não só compreendemos o significado
de dada palavra enquanto palavra da língua com o ocupam os
em relação a ela uma ativa posição responsiva — de sim pa
tia, acordo ou desacordo, de estímulo para a ação. Desse m o
do, a entonação expressiva pertence aqui ao enunciado e não
à palavra.
E ainda assim é muito difícil desistir da convicção de que
cada palavra da língua tem ou pode ter por si mesma “ um
tom em ocional” , “ um colorido em ocional” , “ um elemento
axiológico” , uma “ auréola estilística” , etc. e, por conseguin
te, uma entonação expressiva inerente a ela enquanto p ala
vra. Porque se pode pensar que quando escolhemos as p ala
vras para o enunciado é com o se nos guiássem os pelo tom
em ocional próprio de uma palavra isolada: selecionam os
aquelas que pelo tom correspondem à expressão do nosso
enunciado e rejeitam os as outras. E precisamente dessa m a
neira que os poetas representam o seu trabalho com a pala
vra e é assim mesmo que o estilista (por exemplo, a “ expe
riência estilística” de Pechkovski)2" interpreta esse processo.
50 M ikhail Bakhtin
E, apesar de tudo, isso não é assim. Estam os diante de
uma aberração já conhecida. Q uando escolhemos as p ala
vras, partim os do conjunto projetado do enunciado24 e esse
c o n j u n t o que projetam os e criam os é sempre expressivo e é
ele que irradia a sua expressão (0 11 melhor, a nossa expres
são) a cada palavra que escolhem os; por assim dizer, conta
gia essa palavra com a expressão do conjunto. E escolhemos
a palavra pelo significado que em si mesmo não é expressivo
mas pode ou não corresponder aos nossos objetivos expres
sivos em face de outras palavras, isto é, em face do conjunto
do nosso enunciado. O significado neutro da palavra referida
a certa realidade concreta em determinadas condições reais
de comunicação discursiva gera a centelha da expressão. Ora,
é precisam ente isto que ocorre no processo de criação do
enunciado. Reiteram os: só o contato do significado lingüís
tico com a realidade concreta, só o contato da língua com a
realidade, contato que se dá no enunciado, gera a centelha
da expressão; esta não existe nem no sistema da língua nem
na realidade objetiva existente fora de nós.
Portanto, a em oção, o juízo de valor e a expressão são
estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no pro
cesso do seu emprego vivo em um enunciado concreto. Em
si mesmo, o significado de uma palavra (sem referência à rea
lidade concreta) é extraem ocional. H á palavras que signifi
cam especialmente emoções, juízos de valor: “ alegria” , “ so-
Os gêneros do discurso 51
frim ento” , “ belo” , “ alegre” , “ triste” , etc. M as esses signifi
cados também são neutros com o todos os demais. O colori
do expressivo só se obtém no enunciado, e esse colorido in
depende do significado de tais palavras, isoladamente tom a
do de forma abstrata; por exemplo: “ Neste momento, qual
quer alegria é apenas am argura para m im ” — aqui a palavra
“ alegria” recebe entonação expressiva, por assim dizer, a des
peito do seu significado.
Contudo, o acima exposto está longe de esgotar a ques
tão. Esta é bem mais com plexa. Q uando escolhemos as pa
lavras no processo de construção de um enunciado, nem de
longe as tom am os sempre do sistema da língua em sua form a
neutra, lexicográfica. C ostum am os tirá-las de outros enun
ciados , e antes de tudo de enunciados congêneres com o nos
so, isto é, pelo tema, pela com posição, pelo estilo; consequen
temente, selecionamos as palavras segundo a sua especifica
ção de gênero. O gênero do discurso não é uma forma da lín
gua, mas uma forma típica do enunciado; como tal form a, o
gênero inclui certa expressão típica que lhe é inerente. N o gê
nero a palavra ganha certa expressão típica. Os gêneros cor
respondem a situações típicas da com unicação discursiva, a
temas típicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos
significados das palavras com a realidade concreta em cir
cunstâncias típicas. D aí a possibilidade de expressões típicas,
que parecem sobrepor-se às palavras. Essa expressividade tí
pica do gênero não pertence, evidentemente, à palavra en
quanto unidade da língua, não faz parte do seu significado,
m as reflete apenas a relação da palavra e do seu significado
com o gênero, isto é, com enunciados típicos. Essa expressão
típica e a entonação típica que lhe corresponde carecem d a
quela força de coerção que têm as form as da língua. É uma
normatividade do gênero mais livre. Neste exemplo: “ Neste
momento, qualquer alegria é am argura para mim” , o tom ex
pressivo da palavra “ alegria” , determinado pelo contexto,
evidentemente não é típico dessa palavra. Os gêneros do dis-
52 M ikhail Bakhtin
curso, no geral, se prestam de modo bastante fácil a urna rea-
centuação; o triste pode ser transform ado em jocoso-alegre,
nías daí resulta alguma coisa nova (por exemplo, o género de
um epitáfio jocoso).
Essa expressividade típica (de genero) pode ser vista co
mo a “ auréola estilística” da palavra, mas essa auréola não
pertence à palavra da língua com o tal mas ao genero em que
dada palavra costum a funcionar, é o eco da totalidade do gé
nero que ecoa na palavra.
A expressão de gênero da palavra — e a expressão de
gênero da entonação — é impessoal com o im pessoais são os
próprios gêneros do discurso (porque estes são uma forma
típica de enunciados individuais m as não são os próprios
e n u n c ia d o s ) . Todavia, a s palavras podem entrar no nosso
discurso a partir de enunciados individuais alheios, manten
do em menor ou maior grau os tons e ecos desses enunciados
individuais.
As palavras da língua não são de ninguém, mas ao mes
mo tempo nós as ouvimos apenas em certos enunciados in
dividuais, nós os lemos em determinadas obras individuais,
e aí as palavras já não têm expressão apenas típica, porém
expressão individual externada com m aior ou menor nitidez
(em função do gênero), determinada pelo contexto singular
mente individual do enunciado.
Os significados lexicográficos neutros das palavras da
língua asseguram para ela a identidade e a compreensão mú
tua de todos os seus falantes, m as o emprego das palavras na
com unicação discursiva viva sempre é de índole individual-
-contextual. Por isso pode-se dizer que qualquer palavra exis
te para o falante em três aspectos: com o palavra da língua
neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos
outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, co
mo a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela
em uma situação determinada, com uma intenção discursiva
determinada, ela já está com penetrada da minha expressão.
Os gêneros do discurso 53
N os dois aspectos finais, a palavra é expressiva, m as essa
expressão, reiteram os, não pertence à própria palavra: ela
nasce no ponto do contato da palavra com a realidade con
creta e nas condições de uma situação real, e esse contato é
realizado pelo enunciado individual. Neste caso, a palavra
atua como expressão de certa posição valorativa do homem
individual (de alguém dotado de autoridade, do escritor, cien
tista, pai, mãe, am igo, mestre, etc.) com o abreviatura do
enunciado.
Em cada época, em cada círculo social, em cada rnicro-
mundo familiar, de am igos e conhecidos, de colegas, em que
o homem cresce e vive, sempre existem enunciados investi
dos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciên
cia, jornalism o político, nas quais as pessoas se baseiam , as
quais elas citam, imitam, seguem. Em cada época, e em to
dos os cam pos da vida e da atividade, existem determinadas
tradições, expressas e conservadas em roupagens verbaliza
das: em obras, enunciados, sentenças, etc. Sempre existem es
sas ou aquelas ideias determinantes dos “ senhores do pensa
m ento” de uma época verbalmente expressas, algum as tare
fas fundamentais, lemas, etc. J á nem falo dos modelos de an
tologias escolares nos quais as crianças aprendem a língua
m aterna e que, evidentemente, são sempre expressivos.
Eis por que a experiência discursiva individual de qual
quer pessoa se form a e se desenvolve em uma interação cons
tante e contínua com os enunciados individuais dos outros.
Em certo sentido, essa experiência pode ser caracterizada co
mo processo de assimilação — mais ou menos criador — das
palavras do outro (e não das palavras da língua). N osso dis
curso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras
criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de
alteridade ou de assim ilabilidade, de um grau vário de aper-
ceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros tra
zem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assi
m ilam os, reelaboram os, e reacentuamos.
54 M ikhail Bakhtin
Desse m odo, a expressividade de determinadas palavras
não é uma propriedade da própria palavra com o unidade da
língua e não decorre imediatamente do significado dessas pa
lavras; essa expressão ou é uma expressão típica de gênero,
ou um eco de uma expressão individual alheia, que torna a
palavra uma espécie de representante da plenitude do enun
ciado do outro como posição valorativa determinada.
O mesmo cabe dizer também da oração enquanto uni
dade da língua: ela também carece de expressividade. Isso
nós já afirm am os no início desta seção. Resta apenas com
pletar brevemente o que foi dito. Acontece que os tipos exis
tentes de orações costum am funcionar com o enunciados ple
nos de determinados tipos de gênero. Assim são as orações
exclam ativas, interrogativas e exortativas. Existe um núme
ro muito grande de gêneros centrados no cotidiano e espe
ciais (por exem plo, gêneros de ordens militares e de produ
ção), que, em regra, são expressos por uma oração de tipo
correspondente. Por outro lado, as orações desse tipo se en
contram de m odo relativamente raro no contexto de subor
dinação dos enunciados desenvolvidos. Q uando expressões
desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordina
ção, destacam-se com certa nitidez de sua com posição e, em
regra, procurando ser ou a primeira ou a última oração do
enunciado (ou da parte relativamente autônom a do enun
ciado).2'' Esses tipos de orações apresentam um interesse es
pecial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas.
Aqui nos importa apenas observar que as orações desse tipo
se fundem muito solidamente com sua expressão de gênero,
assim com o absorvem com especial facilidade a expressão in-
Os gêneros do discurso 55
dividual. Essas orações em muito contribuíram para conso
lidar a ilusão sobre a natureza expressiva da oração.
M ais uma observação. A oração enquanto unidade da
língua tem uma entonação gram atical específica e não uma
entonação expressiva. Situam-se entre as entonações gram a
ticais específicas: a entonação de acabam ento, a explicativa,
a disjuntiva, a enumerativa, etc. Cabe um papel especial à en
tonação narrativa, à interrogativa, à exclam ativa e à exorta-
tiva: aqui se cruza de certo modo a entonação gramatical com
a entonação de gênero (mas não com a expressiva no senti
do preciso do termo). A oração só ganha entonação expres
siva no conjunto do enunciado. Ao apresentar um exemplo
de uma oração com o fito de analisá-la, costum am os abaste
cê-la de certa entonação típica, transform ando-a em en un
ciado acabado (se tiramos a oração de um texto determina
do nós a entonam os, evidentemente, segundo a expressão de
dado texto).
Pois bem, o elemento expressivo é uma peculiaridade
constitutiva do enunciado. O sistema da língua é dotado das
form as necessárias (isto é, dos meios lingüísticos) para emi
tir a expressão, mas a própria língua e as suas unidades sig
nificativas — as palavras e orações — carecem de expressão
pela própria natureza, são neutras. Por isso servem igualmen
te bem a quaisquer juízos de valor, os mais diversos e contra
ditórios, a quaisquer posições valorativas.
Portanto, o enunciado, seu estilo e sua com posição são
determinados pelo elemento semântico-objetal e por seu ele
mento expressivo, isto é, pela relação valorativa do falante
com o elemento sem ântico-objetal do enunciado. A estilísti
ca desconhece qualquer terceiro elemento. Ela só considera
os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado:
o sistema da língua, o objeto do discurso e do próprio falan
te e a sua relação valorativa com esse objeto. A escolha dos
meios lingüísticos, segundo a concepção lingüística corrente,
é determinada apenas por considerações semântico-objetais
56 M ikhail Bakhtin
e expressivas. Com isto se determinam também os estilos da
língua, tanto os de uma corrente quanto os individuais. O fa
lante com sua visão do mundo, os seus juízos de valor e emo
ções, por um lado, e o objeto de seu discurso e o sistema da
língua (dos recursos lingüísticos), por outro — eis tudo o que
determina o enunciado, o seu estilo e sua com posição. É es
ta a concepção dominante.
Em realidade, a questão é bem m ais com plexa. Todo
enunciado concreto é um elo na cadeia da com unicação dis
cursiva de um determinado cam po. Os próprios limites do
enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do
discurso. Os enunciados não são indiferentes entre si nem se
bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se
refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos
lhes determinam o caráter. Todo enunciado é pleno de ecos e
ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado
pela identidade da esfera de com unicação discursiva. Todo
enunciado deve ser visto antes de tudo com o uma resposta
aos enunciados precedentes de um determinado cam po (aqui
concebemos a palavra “ resp osta” no sentido m ais amplo):
ela os rejeita, confirma, com pleta, baseia-se neles, subenten
de-os como conhecidos, de certo m odo os leva em conta. Por
que o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada
esfera da com unicação, em uma dada questão, em um dado
assunto, etc. E impossível alguém definir sua posição sem cor
relacioná-la com outras posições. Por isso, todo enunciado é
repleto de variadas atitudes responsivas a outros enunciados
de um dado cam po da comunicação discursiva. Essas reações
têm diferentes form as: os enunciados dos outros podem ser
introduzidos diretamente no contexto do enunciado; podem
ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que,
neste caso, figurem como representantes de enunciados ple
nos, e além disso enunciados plenos e palavras isoladas p o
dem conservar a sua expressão alheia mas não podem ser rea-
centuados (em termos de ironia, de indignação, reverência,
Os gêneros do discurso 57
etc.); os enunciados dos outros podem ser recontados com
um variado grau de reassim ilação; podem os simplesmente
nos basear neles com o em um interlocutor bem conhecido,
podem os pressupô-los em silêncio, a atitude responsiva p o
de refletir-se somente na expressão do próprio discurso — na
seleção de recursos lingüísticos e entonações, determinada
não pelo objeto do próprio discurso m as pelo enunciado do
outro sobre o mesmo objeto. Este caso é típico e im portan
te: muito amiúde a expressão do nosso enunciado é determi
nada não só — e vez por outra não tanto — pelo conteúdo
semântico-objetal desse enunciado, m as também pelos enun
ciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais responde
mos, com os quais polem izam os; através deles se determina
também o destaque dado a determinados elementos, as repe
tições e a escolha de expressões mais duras (ou, ao contrário,
mais brandas); determina-se também o tom. A expressão do
enunciado nunca pode ser entendida e explicada até o fim le-
vando-se em conta apenas o seu conteúdo centrado no obje
to e no sentido. A expressão do enunciado, em m aior ou me
nor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com
os enunciados do outro, e não só a relação com os objetos
do seu enunciado.26 As form as das atitudes responsivas, que
preenchem o enunciado, são sumamente diversas e até hoje
não foram objeto de nenhum estudo especial. Essas form as,
é claro, diferenciam-se acentuadamente em função da distin
ção entre aqueles cam pos da atividade humana e da vida nos
quais ocorre a com unicação discursiva. Por mais monológi-
co que seja o enunciado (por exem plo, uma obra científica
ou filosófica), por mais concentrado que esteja no seu obje
to, não pode deixar de ser em certa medida também uma res
58 M ikhail Bakhtin
posta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada
questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido
urna nítida expressão externa: ela irá manifestar-se na tona
lidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalida
de do estilo, nos matizes mais sutis da com posição. O enun
ciado é pleno de tonalidades dialógicas , e sem levá-las em
conta é impossível entender até o hm o estilo de um enuncia
do. Porque a nossa própria ideia — seja filosófica, científica,
artística — nasce e se forma no processo de interação e luta
com os pensam entos dos outros, e isso não pode deixar de
encontrar o seu reflexo também nas form as de expressão ver
balizada do nosso pensamento.
Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro,
apreendidas e destacadas como do outro e introduzidas no
enunciado, inserem nele algo que é, por assim dizer, irracio
nal do ponto de vista da língua com o sistema, particularmen
te do ponto de vista da sintaxe. As relações recíprocas entre
o discurso introduzido do outro e o restante — o meu discur
so — não têm qualquer analogia com nenhuma relação sin
tática no âm bito de um conjunto sintático simples e com ple
xo, nem com as relações, centradas no objeto e no sentido,
entre totalidades sintáticas gramaticalmente desconexas e iso
ladas no âm bito de um dado enunciado. Em com pensação,
essas relações são análogas (mas, evidentemente, não idênti
cas) às relações das réplicas do diálogo. A entonação que iso
la o discurso do outro (m arcado por asp as no discurso escri
to) é um fenômeno de tipo especial: é uma espécie de alter
nância dos sujeitos do discurso transferida para o interior do
enunciado. Os limites criados por essa alternância são aí en
fraquecidos e específicos: a expressão do falante penetra atra
vés desses limites e se dissemina no discurso do outro, que
podem os transmitir em tons irônicos, indignados, sim páti
cos, reverentes (essa expressão é transm itida com o auxílio
de uma entonação expressiva — no discurso escrito é como
se a adivinhássem os e a sentíssemos graças ao contexto que
Os gêneros do discurso 59
emoldura o discurso do outro — ou pela situação extraver
bal — ela sugere a expressão correspondente). Assim, o dis
curso do outro tem uma dupla expressão: a sua, isto é, a
alheia, e a expressão do enunciado que acolheu esse discur
so. Tudo isso se verifica, antes de tudo, onde o discurso do
outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha força de
um enunciado pleno) é citado textualmente e destacado com
nitidez (entre aspas): aqui se ouvem com nitidez os ecos da
alternância dos sujeitos do discurso e das suas mútuas rela
ções dialógicas. Contudo, em qualquer enunciado, quando
estudado com mais profundidade em situações concretas de
com unicação discursiva, descobrim os toda uma série de p a
lavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de
alteridade. Por isso o enunciado c representado por ecos co
mo que distantes e mal percebidos das alternâncias dos su
jeitos do discurso e pelas tonalidades dialógicas, enfraqueci
das ao extremo pelos limites dos enunciados, totalmente per
meáveis à expressão do autor. O enunciado se mostra um fe
nômeno muito complexo e multiplanar se não o exam inam os
isoladamente e só na relação com o seu autor (o falante), mas
com o um elo na cadeia da com unicação discursiva e da rela
ção com outros enunciados a ele vinculados (essas relações
costum avam ser descobertas não no plano verbalizado — es-
tilístico-composicional — mas tão somente no plano semân-
tico-objetal).
C ada enunciado isolado é um elo na cadeia da com uni
cação discursiva. Ele tem limites precisos, determinados pe
la alternância dos sujeitos do discurso (dos falantes), mas no
âm bito desses limites o enunciado, como a monada de Leib
niz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro,
e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais
imediatos, e vez por outra até os muito distantes — os cam
pos da com unicação cultural).
Q ualquer que seja o objeto do discurso do falante, ele
não se torna objeto do discurso em um enunciado pela pri-
6U M ikhail Bakhtin
rneira vez, e um determinado talante não é o primeiro a fa
lar sobre ele, O objeto, por assim dizer, já está ressalvado,
contestado, elucidado e avaliado de diferentes m odos; nele
se cruzam , convergem e divergem diferentes pontos de vista,
visões de mundo, correntes. O falante não é um Adão bíbli
co, só relacionado com objetos virgens ainda não nom eados,
aos quais dá nome pela primeira vez. As concepções sim pli
ficadas sobre com unicação com o fundamento lógico-psico
lógico da oração nos lembram obrigatoriam ente esse Adão
mítico. N a alma do falante ocorre a com binação de duas con
cepções (ou, ao contrário, o desmembram ento de uma con
cepção com plexa em duas simples), e ele profere orações co
mo as seguintes: “ O sol brilha” , “ A gram a é verde” , “ Eu es
tou sentado” , etc. Semelhantes orações, é claro, são perfeita
mente possíveis; contudo, ou são justificadas e assim iladas
pelo contexto de um enunciado pleno, que as incorpora à co
municação discursiva (na qualidade de réplica do diálogo, de
um artigo de divulgação científica, de palestra de um profes
sor na sala de aula, etc.), ou, se são enunciados acabados, a
situação do discurso os justifica de certo m odo e os inclui na
cadeia da com unicação discursiva. Em realidade — repeti
mos — , todo enunciado, além do seu objeto, sempre respon
de (no sentido am plo da palavra) de uma form a ou de outra
aos enunciados do outro que o antecederam. O falante não
é um Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se tor
na inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de in
terlocutores imediatos (na conversa ou na discussão sobre al
gum acontecimento cotidiano) ou com pontos de vista, vi
sões de mundo, correntes, teorias, etc. (no cam po da com u
nicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um
ponto de vista, uma opinião sempre têm uma expressão ver
balizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal
°u im pessoal), e este não pode deixar de se refletir no enun
ciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto
mas também para os discursos do outro sobre ele. N o entan
gêneros do discurso 61
to, até a m ais leve alusão ao enunciado do outro imprime no
discurso um a reviravolta dialógica, que nenhum tema cen
trado meramente no objeto pode imprimir. A relação com a
palavra do outro difere essencialmente da relação com o o b
jeto, m as ela sempre acom panha esse objeto. Reiteremos: o
enunciado é um elo na cadeia da com unicação discursiva e
não pode ser separado dos elos precedentes que o determi
nam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes
responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.
Entretanto, o enunciado não está ligado apenas aos elos
precedentes mas também aos subsequentes da com unicação
discursiva. Quando o enunciado é criado por um falante, tais
elos ainda não existem. Desde o início, porém, o enunciado
se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol
das quais ele, em essência, é criado. O papel dos outros, p a
ra quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente gran
de, com o já sabem os. Já dissem os que esses outros, para os
quais o meu pensamento se torna um pensamento real pela
primeira vez (e deste m odo também para mim mesmo), não
são ouvintes passivos, m as participantes ativos da com unica
ção discursiva. Desde o início o falante aguarda a resposta
deles, espera uma ativa com preensão responsiva. É como se
todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta.
Um traço essencial (constitutivo) do enunciado é a p o s
sibilidade de seu direcionamento a alguém, de seu endereça-
mento. A diferença das unidades significativas da língua —
palavras e orações — , que são im pessoais, de ninguém e a
ninguém estão endereçadas, o enunciado tem autor (e, res
pectivamente, expressão, do que já falam os) e destinatário.
Esse destinatário pode ser um participante-interlocutor dire
to do diálogo cotidiano, pode ser uma coletividade diferen
ciada de especialistas de algum cam po especial da com unica
ção cultural, pode ser um público mais ou menos diferencia
do, um povo, os contem porâneos, os correligionários, os ad
versários e inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um
62 M ikhail Bakhtin
su p e rio r, uma pessoa íntima, um estranho, etc.; ele também
pode ser um outro totalmente indefinido, não concretizado
(em toda sorte de enunciados m onológicos de tipo emocio
nal)- Todas essas m odalidades e concepções do destinatário
s ã o determ inadas pelo cam po da atividade hum ana e da vi
da a que tal enunciado se refere. A quem se destina o enun
ciado, com o o falante (ou o que escreve) percebe e represen
ta para si os seus destinatários, qual é a força e a influência
deles no enunciado — disto dependem tanto a com posição
quanto, particularmente, o estilo do enunciado.
C ada gênero do discurso em cada cam po da com unica
ção discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que
o determina com o gênero.
O destinatário do enunciado pode, por assim dizer, coin
cidir pessoalmente com aquele (ou aqueles) a quem respon
de o enunciado. N o diálogo cotidiano ou na correspondên
cia, essa coincidência pessoal é comum: aquele a quem eu res
pondo é o meu destinatário, de quem, por sua vez, aguardo
resposta (ou, em todo caso, uma ativa com preensão respon
siva). M as nos casos de tal coincidência pessoal uma pessoa
desempenha dois diferentes papéis, e essa diferença de papéis
é justamente o que importa. Porque o enunciado daquele a
quem eu respondo (com o qual concordo, ao qual faço obje
ção, o qual executo, levo em conta, etc.) já está presente, a
sua resposta (ou com preensão responsiva) ainda está por vir.
Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira
ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta an-
tecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o
meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que preve-
jo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.). Ao falar, sem
pre levo em conta o cam po aperceptivo da percepção do meu
discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da si
tuação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado cam
po cultural da com unicação; levo em conta as suas concep
ções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vis-
Os gêneros do discurso 63
ta), as suas sim patias e antipatías — tudo isso irá determinar
a sua ativa com preensão responsiva do meu enunciado ele.
Essa consideração irá determinar também a escolha do gene
ro do enunciado e a escolha dos procedimentos composicio-
nais e, por último, dos meios lingüísticos, isto é, o estilo do
enunciado. Por exem plo, os géneros da literatura popular
científica são endereçados a um determinado círculo de lei
tores dotados de um determinado fundo aperceptivo de com
preensão responsiva; a outro leitor está endereçada uma li
teratura didática especial e a outro, inteiramente diferente,
trabalhos especiais de pesquisa. Em todos esses casos, a con
sideração do destinatário (e do seu cam po aperceptivo) e a
sua influência sobre a construção do enunciado são muito
simples. Tudn se resume ao volume dos seus conhecimentos
especiais.
Em outros casos, a questão pode ser bem mais com ple
xa. A consideração do destinatário e a antecipação da sua
atitude responsiva são frequentemente amplas, e inserem uma
original dram aticidade interior no enunciado (em algum as
m odalidades de diálogo cotidiano, em cartas, em gêneros au
tobiográficos e confessionais). Esses fenômenos são de uma
índole aguda, porém m ais exterior nos gêneros retóricos.
A posição social, o título e o peso do destinatário, refle
tidos nos enunciados dos cam pos cotidianos e oficiais, são de
índole especial. N as condições de um regime de classes e par
ticularmente de castas, observa-se uma excepcional diferen
ciação dos gêneros do discurso e dos respectivos estilos em
função do título, da categoria, da patente, do peso da fortu
na e do peso social, da idade do destinatário e da respectiva
posição do próprio falante (ou de quem escreve). Apesar da
riqueza da diferenciação tanto das form as basilares quanto
das nuances, esses fenômenos são de índole padronizada e
externa: não são capazes de inserir uma dram aticidade inte
rior minimamente profunda no enunciado. São interessantes
apenas como exemplos da expressão, ainda que bastante tos
64 M ikhail Bakhtin
ca, mas assim mesmo evidente da influência do destinatário
s o b r e a construção e o estilo do enunciado.2
M atizes mais sutis do estilo são determinados pela ín
dole e pelo grau de proxim idade pessoal do destinatário em
relação ao falante nos diversos gêneros familiares de discur
so, por um lado, e íntimos, por outro. A despeito de toda a
imensa diferença entre os gêneros familiares e íntimos (e, res
pectivamente, os estilos), eles percebem igualmente o seu des
tinatário em m aior ou menor grau fora do âm bito da hierar
quia social e das convenções sociais, por assim dizer, “ sem
classes". Isto gera uma franqueza especial do discurso (que
nos estilos familiares chega às vezes ao cinismo). N os estilos
íntimos isto se traduz no empenho voltado com o que para a
plena fusão do falante com o destinatário do discurso. N o
discurso familiar, graças à supressão dos vetos ao discurso e
das convenções, é possível o enfoque especial, não oficial e
livre da realidade.2s Por isso, na época do Renascimento, os
gêneros e estilos familiares puderam desempenhar um papel
grande e positivo na causa da destruição do quadro oficial
medieval do mundo; também em outros períodos em que se
colocava a tarefa de destruir os estilos e concepções de mun
do oficiais, que se haviam petrificado e tornado convencio
nais, os estilos fam iliares ganham uma grande importância
Os gêneros do discurso 65
na literatura. Além disso, a fam iliarização dos estilos abre
acessos para a literatura a cam adas da língua que até então
estavam sob proibição do discurso. Até hoje a importancia
dos géneros e estilos na história da literatura não foi suficien
temente valorizada.
Os géneros e estilos íntimos se baseiam na m áxim a pro
xim idade interior do falante com o destinatário do discurso
(no limite, com o que na fusão dos dois). O discurso íntimo é
impregnado de urna profunda confiança no destinatário, em
sua sim patia — na sensibilidade e na boa vontade da sua
com preensão responsiva. Nesse clima de profunda confian
ça, o falante abre as suas profundezas interiores. Isso deter
mina a expressividade específica e a franqueza interior des
ses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rúa do
discurso familiar).
Os géneros e estilos familiares e íntimos (até hoje mui
to mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente cla
ra a dependência do estilo em face de uma determinada sen
sação e compreensão do destinatário pelo falante (em face do
seu enunciado e da antecipação da sua ativa com preensão
responsiva pelo falante. N esses estilos revelam-se com espe
cial clareza a estreiteza e o equívoco da estilística tradicional,
que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto
de vista do conteúdo do objeto, do sentido do discurso e da
relação expressiva do falante com esse conteúdo. Sem levar
em conta a relação do falante com o outro e seus enunciados
(presentes e antecipáveis), é impossível compreender o gêne
ro ou estilo do discurso.
Contudo, também os cham ados estilos neutros ou obje
tivos de exposição, concentrados ao m áxim o em seu objeto
e, pareceria, estranhos a qualquer olhada repetida para o ou
tro, envolvem, apesar de tudo, uma determinada concepção
do seu destinatário. Tais estilos objetivo-neutros produzem
uma seleção de meios lingüísticos não só do ponto de vista
da sua adequação ao objeto do discurso, m as também do
66 M ikhail Bakhtin
ponto de vista do proposto fundo aperceptível do destinatá
rio do discurso, mas esse fundo é levado em conta de modo
extremamente genérico e abstraído do seu aspecto expressi
vo (também é mínima a expressão do próprio falante no es
tilo objetivo). Os estilos neutro-objetivos pressupõem uma
e sp é c ie de triunfo do destinatário sobre o falante, uma uni
dade dos seus pontos de vista, m as essa identidade e essa
unidade custam quase a plena recusa à expressão. Cabe ob
servar que o caráter dos estilos neutro-objetivos (e, conse
quentemente, da concepção que lhes serve de base) é bastan
te diverso em função da diferença de cam pos da com unica
ção discursiva.
A concepção do destinatário do discurso (como o sente
e imagina o falante ou quem escreve) é uma questão de enor
me importância na história da literatura. C ada época, cada
corrente literária e estilo ficcional, cada gênero literário no
âmbito de uma época e cada corrente têm com o característi
cas suas concepções específicas de destinatário da obra lite
rária, a sensação especial e a com preensão do seu leitor, ou
vinte, público, povo. O estudo histórico das m udanças des
sas concepções é uma tarefa interessante e importante. M as
para sua elaboração eficaz faz-se necessária uma clareza teó
rica na própria colocação do problema.
Cabe observar que, paralelamente àquelas sensações e
concepções reais do seu destinatário, que efetivamente deter
minam o estilo dos enunciados (obras), na história da litera
tura existem ainda form as convencionais ou semiconvencio-
nais de apelo aos leitores, ouvintes, descendentes, etc., assim
como paralelamente ao autor real existem imagens conven
cionais e semiconvencionais de autores testas de ferro, edito
r s , narradores de toda espécie. A imensa maioria dos gêne
ros literários é constituída de gêneros secundários, com ple
xos, form ados por diferentes gêneros prim ários transform a
dos (réplicas do diálogo, relatos cotidianos, cartas, diários,
Protocolos, etc.). Tais gêneros secundários da com plexa co
gêneros do discurso 67
m unicação cultural, em regra, representam form as diversas
de com unicação discursiva prim ária. D aí nascem todas essas
personagens literárias convencionais de autores, narradores
e destinatários. Entretanto, a obra mais complexa e pluricom-
posicional do gênero secundário no seu conjunto (enquanto
conjunto) é o enunciado único e real, que tem autor real e
destinatários realmente percebidos e representados por esse
autor.
Portanto, o direcionamento, o endereçamento do enun
ciado, é sua peculiaridade constitutiva sem a qual não há nem
pode haver enunciado. As várias form as típicas de tal dire
cionamento e as diferentes concepções típicas de destinatá
rios são peculiaridades constitutivas e determinantes dos di
ferentes gêneros do discurso.
A diferença dos enunciados (e dos gêneros do discurso),
as unidades significativas da língua — a palavra e a oração
por sua própria natureza são desprovidas de direcionam en
to, de endereçamento — não são de ninguém e a ninguém se
referem. Ademais, em si mesm as carecem de qualquer rela
ção com o enunciado do outro, com a palavra do outro. Se
uma palavra isolada ou uma oração está endereçada, direcio
nada, temos diante de nós um enunciado acabado, constituí
do de uma palavra ou de uma oração, e o direcionamento
pertence não a elas com o unidades da língua, mas ao enun
ciado. Envolvida pelo contexto, a oração só se incorpora ao
direcionam ento através de um enunciado pleno com o sua
parte constituinte (elemento).24
A língua como sistema tem uma imensa reserva de re
cursos puramente lingüísticos para exprimir o direcionamen
to formal: recursos lexicais, m orfológicos (os respectivos ca
sos, pronom es, formas pessoais dos verbos), sintáticos (di-
68 M ikhail Bakhtin
versos padrões e modificações das orações). Entretanto, eles
só atingem o direcionamento real na totalidade de um enun
ciado concreto. E evidente que a expressão desse direciona
mento real nunca se esgota nesses recursos lingüísticos espe
ciais (gram aticais). Eles podem nem existir mas, neste caso,
o enunciado pode refletir de m odo muito acentuado a in
fluência do destinatário e sua atitude responsiva antecipada.
A escolha de todos os recursos lingüísticos é feita pelo falan
te sob m aior ou menor influência do destinatário e da sua res
posta antecipada.
Q uando se analisa uma oração isolada, destacada do
contexto, os vestígios do direcionamento e da influência da
resposta antecipável, as resson âncias d ialó gicas sobre os
enunciados que antecedem aos outros, os vestígios enfraque
cidos da alternância dos sujeitos do discurso, que sulcaram
de dentro o enunciado, perdem-se, obliteram-se, porque tu
do isso é estranho à natureza da oração com o unidade da lín
gua. Todos esses fenômenos estão ligados ao todo do enun
ciado, e deixam de existir para ele onde esse todo desapare
ce do cam po de visão do analisador. N isto reside uma das
causas da já referida estreiteza da estilística tradicional. A
análise estilística, que abrange todos os aspectos do estilo, só
é possível com o análise de um enunciado pleno e só naquela
cadeia da com unicação discursiva da qual esse enunciado é
um elo inseparável.
gêneros do discurso 69
O texto na lingüística, na filologia
e em outras ciências humanas:
um experimento de análise filosófica 1
O texto na lingüística 71
ros. N isto reside a diferença essencial entre as nossas disci
plinas (humanas) e naturais (sobre a natureza), embora aqui
não haja fronteiras absolutas, impenetráveis. O pensamento
das ciências hum anas nasce com o pensamento sobre pensa
mentos dos outros, sobre exposições de vontades, m anifesta
ções, expressões, signos atrás dos quais estão os deuses que
se manifestam (a revelação) ou os homens (as leis dos sobe
ranos do poder, os legados dos ancestrais, as sentenças e enig
mas anônim os, etc.). O, por assim dizer, inventário cientifica
mente exato dos textos e a crítica dos textos são fenômenos
mais tardios (trata-se de toda uma reviravolta no pensam en
to das ciências hum anas, do nascimento da desconfiança). A
princípio era a fé, que exige apenas com preensão — interpre
tação. O apelo aos textos profanos (o aprendizado dc lín
guas, etc.). N ão é nossa intenção um aprofundamento na his
tória das ciências hum anas, particularmente da filologia e da
lingüística — estam os interessados na especificidade do pen
sam ento das ciências hum anas, voltado para pensamentos,
sentidos, e significados dos outros, etc., realizados e dados
ao pesquisador apenas sob a forma de texto. Independente
mente de quais sejam os objetivos de uma pesquisa, só o tex
to pode ser o ponto de partida.
N o sso interesse estará voltado apenas para a questão
dos textos verbais , que são o dado prim ário das respectivas
disciplinas hum anísticas, primordialmente da lingüística, da
filologia, da investigação literária, etc.
Todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem
escreve). Os possíveis tipos, m odalidades e form as de auto
ria. Em certos limites, a análise lingüística pode até abstrair
inteiramente a autoria. A interpretação de um texto com o
modelo (os juízos modelares, os silogism os na lógica, as o ra
ções na gram ática, a “ com utação” 2 na lingüística, etc.). Tex-
72 M ikhail Bakhtin
ros im aginários (modelares e outros). Textos a serem cons
truidos (com fins de experimento lingüístico ou estilístico).
Aqui, manifestam-se em toda parte tipos especiais de auto
res, inventores de exem plos, experim entadores com sua pe
culiar responsabilidade autoral (aqui existe também um se
gundo sujeito: quem poderia dizer dessa maneira).
A questão das fronteiras do texto. O texto com o enun
ciado. A questão das funções do texto e dos géneros de texto.
Dois elementos que determinam o texto como enuncia
do: a sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção. As
inter-relações dinâm icas desses elementos, a luta entre eles,
que determina a índole do texto. A divergência entre eles po
de sugerir muita coisa. O “ PelestradaF (L. T olstoi).1 Os lap
sos e om issões segundo Freud (expressão do inconsciente).
M udança da intenção no processo de sua realização. O não
cumprimento da intenção fonética.
A questão do segundo sujeito, que reproduz (para esse
ou outro fim, inclusive para fins de pesquisa) o texto (do ou
tro) e cria um texto em oldurador (que comenta, avalia, ob
jeta, etc.).
A dualidade especial de planos e sujeitos do pensamen
to das ciências hum anas.
A textologia com o teoria e prática da reprodução cien
tífica dos textos literários. O sujeito textológico (o textólo-
go) e as suas peculiaridades.
A questão do ponto de vista (da posição espaço-tempo-
ral) do observador na astronom ia e na física.
O texto com o enunciado incluído na com unicação dis
cursiva (na cadeia textológica) de dado cam po. O texto co-
O rexto na lingüística 73
mo m ónada original, que reflete todos os textos (no limite)
de um dado cam po do sentido. A concatenação de todos os
sentidos (uma vez que se realizam nos enunciados).
As relações dialógicas entre os textos e no interior de
um texto. Sua índole específica (não lingüística). D iálogo e
dialética.
D ois polos do texto. C ada texto pressupõe um sistema
universalmente aceito (isto é, convencional no âm bito de um
dado grupo) de signos, uma linguagem (ainda que seja a lin
guagem da arte). Se por trás do texto não há uma linguagem,
este já não é um texto mas um fenômeno das ciências natu
rais (não em basado em signo), por exemplo, um conjunto de
gritos naturais e gemidos desprovidos de repetição lingüísti
ca (sem iótica).4 F claro, todo texto (seja ele oral ou escrito)
compreende um número considerável de elementos naturais
diversos, desprovidos de qualquer configuração sem iótica,
que vão além dos limites da investigação humanística (lin
güística, filológica, etc.) mas são por estas levadas em conta
(a deterioração de um m anuscrito, uma dicção ruim, etc.).
N ão há e nem pode haver textos puros. Além disso, em cada
texto existe uma série de elementos que podem ser cham ados
de técnicos (aspecto técnico do gráfico, da obra, etc.). Por
tanto, por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A
esse sistema correspondem no texto tudo o que é repetido e
reproduzido e tudo o que pode ser repetido e reproduzido,
tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o dado). Conco-
mitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo
individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido
(a sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que
nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a be
leza, com a história. Em relação a esse elemento, tudo o que
é suscetível de repetição e reprodução vem a ser m aterial e
74 Mikhail Bakhtin
meio. Em certa medida, isso ultrapassa os limites da lingüís
tica c da filologia. Esse segundo elemento (polo) é inerente
ao próprio texto mas só se revela numa situação e na cadeia
dos textos (na com unicação discursiva de dado cam po). Es
se polo não está vinculado aos elementos (repetíveis) do sis
tema da língua (os signos) mas a outros textos (singulares),
a relações dialógicas (e dialéticas com abstração do autor)
peculiares.
Esse segundo polo está indissoluvelmente ligado ao ele
mento da autoria e não tem nada em comum com a singula
ridade natural e casual; é inteiramente realizado com recur
sos do sistema de signos da língua. E realizado por um con
texto genuíno, embora seja acrescido de elementos naturais.
A relatividade de todas as fronteiras (por exem plo, para on
de se dirige o timbre da voz do leitor, do falante, etc.). A m u
dança das funções determina igualmente a m udança das fron
teiras. A diferença entre fonología5 e fonética.
O problema da inter-relação semântica (dialética) e dia-
lógica dos textos no âm bito de um determinado cam po. Uma
questão específica da inter-relação histórica dos textos. Tudo
isso à luz do segundo polo. A questão das fronteiras da ex
plicação causai. O principal é não se desligar do texto (ao
menos do eventual, imaginário, a ser construído).
A ciência do espírito. O espírito (o meu e o do outro)
não pode ser dado como coisa (objeto imediato das ciências
naturais) mas apenas na expressão semiótica, na realização
em textos tanto para mim quanto para o outro. Crítica à in-
O texto na lingüística 75
trospecção. C ontudo, faz-se necessária uma com preensão
profunda, rica e sutil do texto. Teoria do texto.
Um gesto natural na representação do autor ganha va
lor de signo (como gesto arbitrário, de representação, subor
dinado à intenção do papel).
A singularidade natural (por exem plo, as impressões di
gitais) e a unicidade significante (semiótica) do texto. Só é
possível a reprodução mecânica das impressões digitais (em
qualquer número de exemplares); é possível, evidentemente,
a mesma reprodução mecânica do texto (por exem plo, a có
pia), m as a reprodução do texto pelo sujeito (a retom ada de
le, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação)
é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o no
vo elo 11 a cadeia histórica da com unicação discursiva.
Todo sistem a de signos (isto é, qualquer língua), por
mais que sua convenção se apoie em uma coletividade estrei
ta, em princípio sempre pode ser decodificado, isto é, traduzi
do para outros sistem as de signos (outras linguagens); conse
quentemente, existe uma lógica geral dos sistem as de signos,
uma potencial linguagem das linguagens única (que, eviden
temente, nunca pode vir a ser uma linguagem única concre
ta, uma das linguagens). N o entanto, o texto (à diferença da
língua com o sistema de meios) nunca pode ser traduzido até
o fim, pois não existe um potencial texto único dos textos.
O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verda
deira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas
consciências, de dois sujeitos.
Um estenogram a do pensamento humanístico é sempre
o estenogram a de um diálogo de tipo especial: a com plexa
inter-relação do texto (objeto de estudo e reflexão) c do con
texto em oldurador a ser criado (que interroga, faz objeções,
etc.), no qual se realiza o pensamento cognoscente e valora-
tivo do cientista. E um encontro de dois textos — do texto
pronto e do texto a ser criado, que reage; consequentemen
te, é o encontro de dois sujeitos, de dois autores.
76 Mikhail Bakhrin
Pode-se passar ao primeiro polo, isto é, à linguagem __
à linguagem do autor, à linguagem do gênero, da corrente,
da época, passar à língua nacional (lingüística) e, por último,
à linguagem potencial das linguagens (o estruturalism o, a
glossem ática).6 Pode-se avançar para o segundo polo — pa
ra o acontecimento singular do texto. Entre esses dois polos
se dispõem todas as possíveis disciplinas humanísticas, oriun
das do dado prim ário do texto.
Ambos os polos são indiscutíveis: é indiscutível a poten
cial linguagem das linguagens, com o é indiscutível o texto
único e singular.
Todo texto verdadeiramente criador é sempre, em certa
m edida, uma revelação do indivíduo livre e não predetermi
nado pela necessidade empírica. Por isso ele (em seu núcleo
livre) não admite nem a explicação causai nem a previsão
científica. M as isto, evidentemente, não exclui a necessidade
interior, a lógica interior do núcleo livre do texto (sem isso
ele não seria compreendido, reconhecido e eficaz).
O texto nas ciências humanas. As ciências hum anas são
as ciências do homem em sua especificidade e não de uma
coisa muda ou um fenômeno natural. O homem em sua es
pecificidade humana sempre exprime a si mesmo (fala), isto
é, cria texto (ainda que potencial). Onde o homem é estuda
do fora do texto e independente deste já não se trata de ciên
cias hum anas (mas de anatom ia e fisiología do homem, etc.).
O texto na textologia. O aspecto filosófico dessa ques
tão.
O texto na lingüística 77
Tentativa de estudar o texto com o “ reação verbal” (be-
haviorism o). A cibernética, a teoria da inform ação, a esta
tística e o problema do texto. A reificação do texto. Os limi
tes dessa reificação.
A atitude humana é um texto em potencial e pode ser
com preendida (como atitude humana e não ação física) uni
camente no contexto dialógico da própria época (como ré
plica, com o posição sem ântica, com o sistema de motivos).
“ Todo o sublime e belo” é não uma unidade fraseológi
ca no sentido comum mas uma com binação de palavras de
tipo especial dotada de entonação ou expressividade. E o re
presentante do estilo, da visão de mundo, do tipo humano,
cheira a contextos, nele há duas vozes, dois sujeitos (aquele
que falaria assim tão sério, e aquele que parodia o primeiro).
Tom adas em separado (fora da combinação), as palavras “ be
lo ” e “ sublim e” carecem de bivocalidade; a segunda voz só
entra na com binação de palavras que se torna um enuncia
do (isto é, recebe o sujeito do discurso sem o qual não pode
haver uma segunda voz). E uma palavra pode tornar-se bivo-
cal se vier a ser uma abreviatura de enunciado (isto é, se ga
nhar autor). A unidade fraseológica não foi criada pela pri
meira, mas pela segunda voz.
Língua e fala, oração e enunciado. O sujeito do discur
so (uma individualidade “ natural” generalizada) e um autor
do enunciado. Alternância dos sujeitos do discurso e alter
nância dos falantes (autores do enunciado). Podemos identi
ficar língua e fala uma vez que na fala estão obliterados os li-
78 Mikhail Bakhtin
mites dialógicos dos enunciados. N o entanto, nunca pode
mos identificar língua e com unicação discursiva (como inter
cam bio dialógico de enunciados). E possível uma identidade
absoluta entre duas e mais orações (sobrepostas uma à ou
tra, com o duas figuras geom étricas, elas irão coincidir), além
disso, devemos admitir que qualquer oração, mesmo a mais
com plexa, no fluxo ilimitado da fala pode repetir-se um nú
mero ilimitado de vezes em form a absolutam ente idêntica,
mas com o enunciado (ou parte do enunciado) nenhuma ora
ção, mesmo a de uma só palavra, jam ais pode se repetir: é
sempre um novo enunciado (ainda que seja uma citação).
Surge a questão de saber se a ciência opera com tais in
dividualidades absolutam ente singulares com o os enuncia
dos, se eles não iriam além dos limites do conhecimento cien
tífico generalizador. E claro que isso é possível. Em primeiro
lugar, o ponto de partida de toda ciência são as unicidades
ímpares e em todas as etapas da sua trajetória ela permane
ce ligada a estas. Em segundo, a ciência, e acim a de tudo a fi
losofia, podem e devem estudar a forma específica e a função
dessa individualidade. Deve-se ter o entendimento preciso de
que é necessário aplicar um corretivo permanente às preten
sões da análise abstrata (lingüística, por exemplo) ao esgota
mento de um enunciado concreto. O estudo dos tipos e for
mas de relações dialógicas entre os enunciados e das suas for
mas tipológicas (fatores de enunciados). O estudo dos ele
mentos extralinguísticos e ao mesmo tempo extrassemânti-
cos (artísticos, científicos, etc.) do enunciado. Existe um cam
po inteiro entre a análise lingüística e a pura análise do sen
tido; esse cam po desapareceu para a ciência.
N o âm bito de um mesmo enunciado a oração pode re
petir-se (a repetição, a citação de si mesma, o involuntário),
mas a cada vez ela é sempre uma nova parte do enunciado,
pois mudou de lugar e de função na plenitude do enunciado.
O enunciado em sua plenitude e en formado como tal pe
los elementos extralinguísticos (dialógicos), está ligado a ou-
O texto na lingüistica 79
tros enunciados. Esses elementos extrãlinguísticos (dialógi-
cos) penetram o enunciado também por dentro.
As expressões generalizadas do falante na língua (pro
nomes pessoais, form as pessoais dos verbos, form as gram a
ticais e lexicais de expressão da m odalidade e de expressão
da relação do falante com o seu discurso) e o sujeito do dis
curso. O autor do enunciado.
Do ponto de vista dos objetivos extrãlinguísticos do
enunciado, o conjunto lingüístico é apenas um meio.
O autor e as form as da sua expressividade na obra. Em
que medida é possível falar de “'im agem ” de autor?
Encontram os autor (percebemos, compreendemos, sen
tim os, temos a sensação dele) em qualquer obra de arte. Por
exemplo, em uma obra de pintura sempre sentimos o seu au
tor (o pintor), contudo nunca o vemos da maneira com o ve
mos as imagens por ele representadas. N ós o sentimos em tu
do com o um princípio representador puro (o sujeito repre
sentador) mas não como imagem representada (visível). Tam
bém no autorretrato não vemos, é claro, o autor que o repre
senta mas tão somente a representação do pintor. Em termos
rigorosos, a imagem de autor é um contradictio in adjecto.
Em verdade, a cham ada imagem de autor é uma imagem de
tipo especial, diferente de outras imagens da obra, mas é uma
imagem e esta tem o seu autor, que a criou. A imagem do nar
rador na narração na pessoa do eu , a imagem da personagem
central nas obras autobiográficas (autobiografias, confissões,
diários, m emórias, etc.), o herói autobiográfico, o herói líri
co, etc. Todos eles são m ensurados e determinados por sua
relação com o autor-homem (como objeto específico de re
presentação), mas todos eles são imagens representadas que
têm o seu autor, o portador do princípio puramente repre
sentativo. Podemos falar de autor puro para diferenciá-lo de
autor parcialm ente representado, m ostrado, que integra a
obra com o parte dela.
O autor do enunciado mais comum, padronizado, coti-
80 M ikhail Bakhtin
diano. Podemos criar a imagem de qualquer falante, perceber
objetivamente qualquer palavra, qualquer discurso, mas essa
imagem objetiva não entra na intenção e na tarefa do próprio
falante, nem é criada por ele com o autor do enunciado.
Isso não significa que não haja cam inhos que levam do
autor puro ao autor-homem; esses caminhos existem, eviden
temente, e ainda mais na própria medula, no próprio âm ago
do homem, mas essa medula nunca pode vir a ser uma das
imagens da própria obra. Tal autor está nela com o um todo,
e adem ais em grau superior, m as nunca pode vir a ser parte
componente figurada (objetai) da obra. Ele não é uma natu
ra ereata ^ nem natura naturata et creans,9 mas uma natura
creans et non creata 10 pura.
Em que medida são possíveis na literatura palavras pu
ras desprovidas de objeto, m onovocais? Pode uma palavra,
na qual o autor não ouve a voz do outro, na qual só existe
ele, e ele inteiro , vir a ser material de construção de uma obra
literária? Algum grau de objetificação não seria condição in
dispensável de qualquer estilo? N ão estaria o autor sempre
fora da língua com o material para obra de arte? N ão seria
qualquer escritor (até o lírico puro) sempre “■dramaturgo” no
sentido de que ele distribui todas as palavras às vozes dos ou
tros, inclusive à imagem de autor (a outras m áscaras de au
tor)? É possível que toda palavra desprovida de objeto e mo-
novocal seja ingênua e imprestável para uma criação autên
tica. Toda voz autenticamente criadora sempre pode ser ape
nas uma segunda voz no discurso. Só a segunda voz — a re
lação pura — pode ser desprovida de objeto até o fim, sem
abandonar a som bra substancial figurada. O escritor é aque-
O texto na lingüística 81
le que sabe trabalhar na língua estando fora dela, aquele que
tem o dom do falar indireto.
Exprim ir a si mesmo significa fazer de si mesmo objeto
para o outro e para si mesmo (a “ realidade da consciência” ).
Este é o primeiro grau de objetivação. M as também é possí
vel exprim ir minha relação com igo enquanto objeto (o se
gundo estágio da objetivação). Neste caso, minha própria pa
lavra se torna provida de objeto e recebe uma segunda voz
— a minha própria. M as essa segunda voz já não lança som
bra (de si mesma), porquanto exprime uma relação pura e
toda a carne objetivadora, materializadora da palavra, foi ce
dida à primeira voz.
Exprim im os a nossa relação com aquele que falaria des
se m odo. N o falar cotidiano isso se exprime na entonação
leviana, zombeteira ou irônica (Kariénin em Tolstói),11 uma
entonação surpresa, que não compreende, interroga, duvida,
confirma, rejeita, sente indignação, entusiasm a-se, etc. Tra-
ta-se de um fenômeno de bivocalidade bastante primitivo e
muito com um na com unicação discursiva da conversa do dia
a dia, dos diálogos e discussões sobre temas científicos e ou
tros temas ideológicos. E uma bivocalidade bastante grossei
ra e pouco generalizadora, amiúde francamente pessoal: são
reproduzidas com reacentuação as palavras de um dos inter
locutores presentes. Uma form a igualmente grosseira e pou
co generalizadora são as diferentes variedades da estilização
paródica. A voz do outro é limitada, passiva, e não tem pro
fundidade nem eficácia (criadora, generalizadora) na relação
mútua entre as vozes. N a literatura, é o caso das personagens
positivas e negativas.
82 M ikhail Bakhtin
Em todas essas form as manifesta-se uma bivocalidade
literal, pode-se dizer física.
A questão é mais com plexa com a voz do autor no dra
ma, onde ele parece não se realizar na voz.
O texto na lingüística 83
Do sujeito da língua aos sujeitos de uma obra. Diferen
tes degraus intermediários. Os sujeitos dos estilos de lingua
gem (o burocrata, o comerciante, o cientista, etc.). As m ás
caras do autor (as imagens de autor) e o próprio autor.
A imagem socioestilística do funcionário pobre, do con
selheiro titular (D iévuchkin,13 por exem plo). Tal imagem,
ainda que dada pelo método da autorrevelação, é dada co
mo ele (terceira pessoa) e não com o tu. Ela é objetifkada e
modelar. Ainda não existe uma autêntica relação dialógica
com ela.
A proxim ação dos meios de representação do objeto da
representação como indício de realismo (autocaracterização,
vozes, estilos sociais, não representação, m as citação das per
sonagens com o pessoas falantes).
Elementos objetais e puramente funcionais de qualquer
estilo.
A com preensão do enunciado. Para a com preensão é
ainda necessário, sobretudo, estabelecer limites essenciais e
precisos do enunciado. A alternância dos sujeitos do discur
so. A capacidade de definir a resposta. A responsividade de
princípio de qualquer com preensão. Kannitverstan ,14
N a pluralidade premeditada (consciente) de estilos, sem
pre há relações dialógicas entre eles.1- N ão podem os enten
84 M ikhail Bakhtin
dei essas inter relações em teimos puramente lingüísticos (ou
até mecânicos).
Um inventário e uma definição puramente lingüísticos
(e ademais puramente descritivos) de diferentes estilos no âm
bito de uma obra não podem revelar as suas inter-relações
sem ânticas (nem mesmo as artísticas). F. im portante com
preender o sentido total desse diálogo de estilos do ponto de
vista do autor (não como imagem mas com o funções). Q uan
do se fala em aproxim ar os meios de representação do re
presentado, subentende-se por representado o objeto e não o
sujeito (o tu).
Representação da coisa e a representação do homem (fa
lante por sua essência). O realismo coisifica frequentemente
o homem, m as isso não é uma aproxim ação com este. O na
turalism o, com sua tendência para a explicação causai dos
atos e pensam entos do homem (de sua posição semântica no
m undo), coisifica-o ainda mais. O enfoque “ indutivo” , que
aparentemente é próprio do realismo, é, no fundo, uma ex
plicação causal coisificante do homem. Aí, as vozes (no sen
tido de estilos sociais coisificados) se transform am simples
mente em indícios das coisas (ou sintom as de processos), a
elas já não se pode responder, com elas já não se pode dis
cutir, extinguem-se as relações dialógicas com tais vozes.
Os graus de objetificação e subjetificação das pessoas re
presentadas (i.e., da índole dialógica da relação do autor com
elas) diferem acentuadamente na literatura. Nesse sentido, a
imagem de Diévuchkin difere essencialmente das imagens ob
jetais dos funcionários públicos pobres em outros escritores.
Ele também está polemicamente afiado contra essas imagens,
nas quais não existe o tu autenticamente dialógico. N os ro
mances costum am aparecer discussões perfeitamente acab a
das e resum idas do ponto de vista do autor (isso, evidente-
O texto na lingüística 85
mente, quando aparecem discussões). Em Dostoiévski há es-
tenogram as de uma discussão inacabada e inacabável. C on
tudo, todo romance geralmente é pleno de tonalidades dia-
lógicas (nem sempre com as suas personagens, é claro). D e
pois de D ostoiévski, a polifonia cresce de forma imperiosa
em toda a literatura universal.
Em relação ao homem, o amor, a com paixão, o enter-
necimento e quaisquer outras emoções sempre são dialógicas
nesse ou naquele grau.
N a dialogicidade (i.e., na configuração de sujeito das
suas personagens) Dostoiévski ultrapassa certo limite, mas a
sua dialogicidade assume uma qualidade nova (superior).
A configuração objetai da imagem do homem não é me
ra materialidade. Pode-se amá-lo, ter com paixão dele, etc., e,
o m ais importante, pode-se (e deve-se) entendê-lo. N a litera
tura de ficção (como na arte em geral), há reflexo de subjeti
vidade até nas coisas mortas (correlacionadas com o homem).
O discurso concebido em termos de objeto (e o discur
so objetai requer necessariamente com preensão — caso con
trário não seria discurso — , mas nessa com preensão o ele
mento dialógico é atenuado) pode ser incluído na cadeia cau
sai da explicação. O discurso desprovido de objeto (centra
do meramente no sentido, funcional) permanece no diálogo
concreto inacabado (por exem plo, a investigação científica).
C om paração dos enunciados — provas em física.
O texto com o reflexo subjetivo do mundo objetivo, o
texto com o expressão da consciência que reflete algo. Q uan
do o texto se torna objeto do nosso conhecimento podem os
falar de reflexo do reflexo. A interpretação de um texto sem
pre é um correto reflexo do reflexo. Um reflexo através do
outro no sentido do objeto refletido.
Nenhum fenômeno da natureza tem “ significado” , só os
signos (inclusive as palavras) têm significado. Por isso, qual
quer estudo dos signos, seja qual for o sentido em que tenha
avançado, começa obrigatoriam ente pela compreensão.
86
M ikhail Bakhtin
O texto é o dado (realidade) prim ário e o ponto de par
tida de qualquer disciplina nas ciências hum anas. Um con
glom erado de conhecimentos e m étodos heterogéneos cha
m ado filologia, lingüística, investigação literária, metaciên-
cia, etc. Partindo do texto, eles peram bulam em diferentes di
reções, agarram pedaços heterogêneos da natureza, da vida
social, do psiquism o, da história, e os unificam por vínculos
ora causais, ora de sentido, misturam constatações com juí
zos de valor. Da alusão ao objeto real é necessário passar a
uma delim itação precisa dos objetos da investigação científi
ca. O objeto real é o homem social (inserido na sociedade),
que fala e exprime a si mesmo por outros meios. Pode-se en
contrar para ele e para a sua vida (o seu trabalho, a sua lu
ta, etc.) algum outro enfoque além daquele que passa pelos
textos de signos criados ou a serem criados por ele? Pode-se
observá-lo e estudá-lo com o fenômeno da natureza, como
coisa? A ação física do homem deve ser interpretada como
atitude m as não se pode interpretar a atitude fora da sua
eventual (criada por nós) expressão semiótica (motivos, ob
jetivos, estímulos, graus de assim ilação, etc.). E como se obri
gássem os o homem a falar (nós construím os os seus impor
tantes depoim entos, explicações, confissões, desenvolvemos
integralm ente o seu discurso interior eventual ou efetivo,
etc.). Por toda parte há o texto real ou eventual e a sua inter
pretação. A investigação se torna interrogação e conversa, is
to é, diálogo. N ó s não perguntam os à natureza e ela não nos
responde. N ó s colocam os as perguntas para nós mesmos e
de certo m odo organizam os a observação ou a experiência
para obtermos a resposta. Quando estudam os o homem, pro
curam os e encontramos signos em toda parte e nos empenha
mos em interpretar o seu significado.
Estam os interessados primordialmente nas form as con
cretas dos textos e nas condições concretas da vida dos tex
tos, na sua inter-relação e interação.
As relações dialógicas entre os enunciados, que atraves-
O texto na lingüística 87
sam por dentro rambém enunciados isolados, pertencem à
metalinguística. Difere radicalmente de todas as eventuais re
lações lingüísticas dos elementos tanto no sistema da língua
quanto em um enunciado isolado.
A índole metalinguista do enunciado (da produção do
discurso).
As relações de sentido dentro de um enunciado (ainda
que seja infinito, por exem plo, no sistema da ciência) são de
índole lógico-objetiva (no am plo sentido dessa palavra), no
entanto as relações de sentido entre os diferentes enunciados
assumem índole dialógica (ou, em todo caso, matiz dialógi-
co). Os sentidos estão divididos entre vozes diferentes. A im
portância excepcional da voz, do indivíduo.
Os elementos lingüísticos são neutros em face da divi
são em enunciados, movem-se livremente ignorando as fron
teiras do enunciado, ignorando (sem respeitar) a soberania
das vozes.
O que determina as fronteiras inabaláveis do enuncia
do? As forças metalinguísticas.
Os enunciados extraiiterários e as suas fronteiras (répli
cas, cartas, diários, discurso interior, etc.) transferidos para
a obra literária (por exemplo, para o romance). Aqui se m o
difica o seu sentido total. Sobre eles recaem os reflexos de ou
tras vozes e neles entra a voz do próprio autor.
D ois enunciados alheios confrontados, que nada sabem
um do outro, se querem tocar, ainda que de leve, o mesmo
tema (pensamento), entram inevitavelmente em relações dia-
lógicas entre si. Eles se tocam no território do tema comum,
do pensamento comum.
A epigrafía. Uma questão dos gêneros dos escritos m ais
antigos. O autor e o destinatário dos escritos. Os chavões
obrigatórios. Os epitáfios nos túmulos (“ Alegra-te!” ). O ape
lo do m orto ao vivo que passa ao lado. As form as padroni
zadas obrigatórias das evocações nominais, dos exorcism os,
das rezas, etc. As form as dos encomios e dos enaltecimentos.
88 Mikhail Bakhtin
As form as do vitupério e da ofensa (ritual). O problema da
relação da palavra com o pensamento e da palavra com o de
sejo, com a vontade, com a exigência. As concepções m ági
cas da palavra. A palavra como ato. A reviravolta na histó
ria da palavra quando ela se torna expressão e pura (sem ato)
inform ação (comunicação). A sensação de si mesmo e do ou
tro na palavra. O nascimento tardio da consciência do autor.
O autor de uma obra literária (romance) cria uma obra
(enunciado) discursiva única e integral. M as ele a cria a par
tir de enunciados heterogêneos, com o que alheios. Até o dis
curso direto do autor é cheio de palavras conscientizadas dos
outros. O falar indireto, a relação com a sua própria lingua
gem com o uma das linguagens possíveis (e não como a úni
ca linguagem possível e incondicional).
As personagens acabadas ou “ fechadas” na pintura (in
clusive no retrato). Elas apresentam um homem definitivo,
que já está todo ali e não pode vir a ser outro. Os rostos das
pessoas que já disseram tudo, que já morreram [ou] é como
se tivessem morrido. O pintor concentra a atenção nos tra
ços que concluem, determinam, fecham. N ó s vimos o homem
inteiro e não esperamos mais nada (nem outra coisa). Ele não
pode renascer, renovar-se, sofrer uma metamorfose — é a sua
fase conclusiva (a última e definitiva).
A relação do autor com o representado sempre faz par
te da com posição da imagem. A relação do autor é um ele
mento constitutivo da imagem. Essa relação é sumamente
com plexa. E inadmissível reduzi-la a uma avaliação linear.
Tais avaliações lineares destroem a imagem artística. Elas não
existem nem na boa sátira (em Gógol e Schedrin). Ver pela
primeira vez, tom ar consciência de algo pela primeira vez já
significa entrar em relação com esse algo: ele já não existe em
si nem para si, m as para o outro (já são duas consciências cor
relacionadas). A interpretação já é um importante momento
(a interpretação nunca é uma tautología ou uma dublagem,
pois aí há sempre dois e um potencial terceiro). O estado do
O texto na lingüística 89
não ouvido e do não compreendido (cf. T. M ann). “ N ão sei” ,
“ foi assim que aconteceu, aliás, o que é que eu tenho a ver
com isso?” — são relações importantes. A destruição das ava
liações que se fundiram com o objeto e das relações em geral
cria uma nova relação. Um tipo especial de relações valora-
tivo-emocionais. Sua diversidade e com plexidade.
N ão se pode separar o autor das imagens e personagens,
uma vez que ele integra a com posição dessas imagens com o
parte inalienável (as imagens são biunívocas e às vezes bivo-
cais). Entretanto, a imagem de autor pode ser separada das
imagens das personagens; m as essa própria imagem foi cria
da pelo autor e é igualmente biunívoca. Frequentemente, em
vez das imagens das personagens, tem-se em vista pessoas
aparentemente vivas.
O s diferentes planos do sentido, nos quais estão os dis
cursos das personagens e o discurso do autor. As personagens
falam com o participantes da vida representada, falam , por
assim dizer, de posições privadas, de uma form a ou de outra
os seus pontos de vista são limitados (elas sabem menos que
o autor). O autor está fora do mundo representado (e em cer
to sentido criado por ele). Ele apreende todo esse mundo a
partir de outras posições qualitativamente distintas. Por úl
timo, todas as personagens e seus discursos são objetos da
relação do autor (e do discurso do autor). Entretanto, os p la
nos dos discursos das personagens e do discurso do autor p o
dem cruzar-se, isto é, entre eles são possíveis relações dialó-
gicas. Em Dostoiévski, cujas personagens são ideólogas, o au
tor e tais personagens (pensadores e ideólogos) estão no mes
mo plano. São substancialmente diversos os contextos dialó-
gicos e situações de discurso das personagens e do discurso
do autor. Os discursos das personagens participam dos diá
logos representados no interior da obra e não entram direta
mente no diálogo ideológico real da atualidade, isto é, na co
municação discursiva real da qual a obra participa e na qual
se assimila em sua plenitude (elas participam desse diálogo
90 Mikhail Bakhtin
apenas com o elementos dessa plenitude). P o r outro lado, o
autor toma posição precisamente nesse diálogo real e é de
terminado pela situação real da atualidade. À diferença do
autor real, a imagem de autor por ele criada carece de parti
cipação imediata no diálogo real (participa deste apenas atra
vés do conjunto da obra), entretanto ela pode participar do
enredo da obra e intervir no diálogo representado com as per
sonagens (a conversa do “ au tor” com Oniéguin). O discur
so do autor que representa (do autor real), se tal discurso
existe, é um discurso de tipo essencialmente diverso, que não
pode estar no mesmo plano com o discurso das personagens.
E justo esse discurso que determina a última unidade da obra
e a sua última instancia do sentido, a sua, por assim dizer, úl
tima palavra.
As imagens de autor e as imagens das personagens são
determinadas, segundo a concepção de V. V. Vinográdov, por
linguagens-estilos, as diferenças entre elas se resumem a di
ferenças entre linguagens e estilos, isto é, a diferenças me
ramente lingüísticas. Vinográdov não revela as relações mú
tuas extralinguísticas entre elas. Entretanto, essas imagens
(linguagens-estilos) não estão lado a lado na obra com o da
dos lingüísticos, aí elas entram em com plexas e dinâm icas re
lações semânticas de tipo especial. Esse tipo de relações pode
ser definido com o relações dialógicas. As relações dialógicas
são de índole específica: não podem ser reduzidas a relações
meramente lógicas (ainda que dialéticas) nem a meramente
lingüísticas (sintático-com posicionais). Elas só são possíveis
entre enunciados integrais de diferentes sujeitos do discurso
(o diálogo consigo mesmo é secundário e representado na
m aioria dos casos). Aqui não nos referimos à origem do ter
mo “ d iálo go ” (cf. em H irzel).16
O texto na lingüística 91
Onde não há palavra não há linguagem e não pode ha
ver relações dialógicas, estas não podem existir entre objetos
ou entre grandezas lógicas (conceitos, juízos, etc.). As rela
ções dialógicas pressupõem linguagem, no entanto elas não
existem no sistema da língua. N ão são possíveis entre os ele
mentos da língua. A especificidade das relações dialógicas re
quer um estudo especial.
A concepção estreita do diálogo como uma das form as
com posicionais do discurso (o discurso dialógico e o discur
so m onológico). Pode-se dizer que cada réplica é monológi-
ca em si (um diálogo mínimo), e cada m onólogo é a réplica
de um grande diálogo (da com unicação discursiva de um d a
do cam po). O m onólogo com o discurso que não se dirige a
ninguém e não pressupõe resposta. São possíveis variados
graus m onológicos.
As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre
toda espécie de enunciados na com unicação discursiva. Dois
enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados no plano
do sentido (não com o objetos e não com o exem plos lingüís
ticos), acabam em relação dialógica. M as essa é uma forma
especial de dialogism o não intencional (por exem plo, a sele
ção de diferentes enunciados de cientistas vários ou sábios de
diferentes épocas sobre uma questão).
“ Fome, frio !” é um enunciado de um sujeito do discur
so. “ F o m e!1- — “ F rio !” são dois enunciados confrontados de
dois diferentes sujeitos; aí surgem relações dialógicas que não
havia no primeiro exemplo. O mesmo ocorre com duas o ra
ções desenvolvidas (pensar um exemplo convincente).
Q uando o enunciado é tom ado para fins de análise lin
güística, sua natureza dialógica é repensada, é tom ada no sis
tema da língua (como sua realização) e não no grande diálo
go da com unicação discursiva.
E imensa e até hoje não estudada a variedade de gêne
ros do discurso: das esferas impublicáveis do discurso inte
rior às obras de arte e aos tratados científicos. A diversidade
92 Mikhail Bakhtin
de gêneros de rua (cf. Rabelais), de gêneros íntimos, etc. Em
diferentes épocas e em diferentes gêneros dá-se a form ação
da linguagem.
A língua, a palavra são quase tudo na vida humana.
C ontudo, não se deve pensar que essa realidade sumamente
m ultifacetada que tudo abrange possa ser objeto apenas de
uma ciência — a lingüística — e ser interpretada apenas por
m étodos lingüísticos. O objeto da lingüística é apenas o ma
terial, apenas o meio de com unicação discursiva mas não a
própria com unicação discursiva, não o enunciado de verda
de, nem as relações entre eles (dialógicas), nem as formas da
com unicação, nem os gêneros do discurso.
A lingüística estuda apenas as relações entre os elemen
tos no interior do sistema da língua, mas não as relações en
tre os enunciados, nem as relações dos enunciados com a rea
lidade e com a pessoa falante (o autor).
N o tocante aos enunciados reais e aos falantes reais, o
sistema da língua é de índole meramente potencial. E o sig
nificado da palavra, uma vez que é estudado por via lingüís
tica (a sem asiología lingüística), só é definido com o auxílio
de outras palavras da mesma língua (ou de outra língua) e
nas suas relações com elas; só no enunciado e através do
enunciado tal significado chega à relação com o conceito ou
imagem artística ou com a realidade concreta. Assim é a pa
lavra com o objeto da lingüística (e não a palavra real como
enunciado concreto ou parte deste, com o parte e não meio).
O texto na lingüística 93
entre as produções do discurso nos diferentes cam pos do pro
cesso do discurso. O “ processo literario", a luta de opiniões
na ciencia, a luta ideológica, etc. D uas o bras discursivas,
enunciados, enunciados confrontados entre si, entram em um
tipo especial de relações em basadas em sentidos que cham a
mos dialógicas. São de natureza específica. Os elementos da
língua dentro do sistema da língua ou dentro do “ texto ” (no
sentido rigorosamente lingüístico) não podem entrar em re
lações dialógicas. As línguas, dialetos (territoriais, sociais, gí
rias), estilos de linguagem (funcionais), digam os, o discurso
familiar do cotidiano e a linguagem científica, podem entrar
em tais relações dialógicas, isto é, conversar entre si? Só sob
a condição de passarem por um enfoque não lingüístico dos
mesmos, isto c, de serem transform ados em “ visões de mun
d o ” (ou em certas visões de mundo centradas na linguagem
ou no discurso), em “ pontos de vista” , em “ vozes sociais” ,
etc. O artista efetua essa transform ação ao criar enunciados
típicos ou característicos de personagens típicas (ainda que
não concretizadas nem nomeadas definitivamente), tal trans
form ação (em um plano um tanto diferente) é realizada pela
lingüística estética (a escola de Vossler e parece que particular
mente pelo ultimo trabalho de L. Spitzer).18 Sob semelhantes
transform ações a linguagem ganha um peculiar “ au tor” , um
sujeito do discurso, um portador coletivo (um povo, uma na
ção, um grupo social, etc.). Tal transform ação sempre vai
além dos limites da lingüística (na sua concepção rigorosa e
exata). São lícitas tais transform ações? Sim, são lícitas, mas
apenas em condições rigorosam ente definidas (por exemplo,
na literatura, onde, sobretudo no romance, encontramos com
frequência diálogos de “ línguas” e estilos de línguas) e numa
94 Mikhail Bakhtin
assim ilação m etodológica rigorosa e clara. Tais transform a
ções são inadmissíveis quando, por um lado, se declara que
a língua é extraideológica com o sistem a lingüístico (e extra-
pessoal) e, por outro, quando se introduz por contrabando
uma caracterização sócio-ideológica das linguagens e estilos
(o que acontece particularmente em Vinográdov). Essa ques
tão é muito com plexa e interessante (por exem plo, em que
medida se pode falar de sujeito da língua ou sujeito do dis
curso de um estilo de linguagem, ou da imagem do cientista
que está por trás de um trabalho científico, ou da imagem de
um homem de negócios, que está por trás da linguagem dos
negócios, ou da imagem do burocrata, que está por trás da
linguagem burocrática, etc.).
F. original a natureza das relações dialógicas. A ques
tão do dialogism o interior. O limiar das fronteiras entre os
enunciados. A palavra bivocal. A com preensão com o diálo
go. Aqui chegam os ao extremo da filosofia da linguagem e
do pensamento das ciências hum anas em geral, às terras vir
gens. N ova colocação do problem a da autoria (do indivíduo
criador).
O dado e o criado no enunciado verbalizado. O enun
ciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já
existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que
não existia antes dele, absolutam ente novo e singular e que,
ademais, tem relação com o valor (com a verdade, com a bon
dade, com a beleza, etc.). Contudo, algum a coisa criada é
sempre criada a partir de algo dado (a linguagem , o fenôme
no observado da realidade, um sentimento vivenciado, o pró
prio sujeito falante, o acabado em sua visão de mundo, etc.).
O dado inteiro se transform a em criado. Veja-se uma análi
se do mais simples diálogo cotidiano (“ Que horas sã o ? ” —
“ Sete h o ras” ). A situação da pergunta é mais com plexa. Pre
cisa-se olhar para o relógio. A resposta pode ser verdadeira
ou não, pode ter significado, etc. “ Em que fuso h o rário ?” ; é
a mesma pergunta feita no espaço cósm ico, etc.
O texto na lingüística 95
As palavras e form as como abreviaturas ou representan
tes do enunciado, de uma visão de mundo, de um ponto de
vista, etc., reais ou possíveis.
O m onologism o do pensamento nas ciências hum anas:
o linguista se habituou a perceber tudo em um contexto fe
chado único (no sistema da língua ou no texto interpretado
em termos lingüísticos, não correlacionado dialogicamente
com o outro, com o texto não responsivo) e com o linguista
ele, evidentemente, está com a razão. O dialogism o do nos
so pensamento sobre obras, teorias, enunciados, em geral, do
nosso pensamento sobre os homens.
Por que se aceita o discurso não propriamente direto,
mas não se aceita a sua interpretação com o palavra bivocal?
Estudar no dado criado (por exem plo, a língua, os ele
mentos acabados e gerais da visão de mundo, dos fenômenos
refletidos da realidade, etc.) é bem mais fácil que estudar o
próprio criado. Frequentemente, toda a análise científica se
reduz à revelação de um dado inteiro, já presente e pronto
antes da obra (o que foi encontrado de antem ão e não cria
do pelo artista). É como se o dado inteiro fosse recriado no
interior daquilo que fora criado, se transform asse nele. A re
dução ao que foi dado e preparado de antem ão. O objeto
pronto, os meios lingüísticos prontos para sua expressão, o
próprio artista pronto, sua visão de mundo pronta. E eis que
por meio de recursos prontos, à luz de uma visão de mundo
pronta, o poeta reflete o objeto pronto. Em realidade, tam
bém se cria o objeto no processo de criação, criam-se o pró
prio poeta, a sua visão de mundo, os meios de expressão.
A palavra usada entre aspas, isto é, sentida e em prega
da com o palavra do outro, e a mesma palavra (como algu
ma palavra do outro) sem aspas. As gradações infinitas no
nível de alteridade (ou assim ilação) entre as palavras, as suas
várias posições de independência em relação ao falante. As
palavras distribuídas em diferentes planos e em diferentes dis
tâncias em face do plano da palavra do autor.
96 Mikhail Bakhtin
N ão só o discurso propriamente direto mas as diferen
tes form as de discurso latente, semilatente, difuso, etc., do
o u tro .|y Tudo isso fica fora do emprego.
Q uando nas linguagens, gírias e estilos começam a se fa
zer ouvir as vozes, essas deixam de ser meios exponenciais de
expressão e se tornam expressão do momento, realizada- a
voz entrou nelas e passou a dominá-las. Elas estão cham adas
a desempenhar o seu papel único e singular na comunicação
discursiva (criadora).
A interpretação recíproca de linguagens e estilos. A re
lação com o objeto e a relação com o sentido personificado
na palavra ou em algum outro material estruturado em sig
nos. A relação com a coisa (em sua m aterialidade pura) não
pode ser dialógica (isto é, não pode ser uma conversa, dis
cussão, acordo, etc.). A relação com o sentido é sempre dia
lógica. A própria com preensão já é dialógica.
A coisif cação do sentido para incluí-lo numa série cau
sai.
A com preensão estreita do dialogism o com o discussão,
polêmica, paródia. Estas são form as externas mais evidentes
porém grosseiras de dialogism o. A confiança na palavra do
outro, a aceitação reverente (a palavra de autoridade), o
aprendizado, as buscas e a obrigação do sentido abissal, a
concordância , suas eternas fronteiras e matizes (mas não li
mitações lógicas nem ressalvas meramente objetais), sobre
posições do sentido sobre o sentido, da voz sobre a voz, in
tensificação pela fusão (mas não identificação), com binação
de muitas vozes (um corredor de vozes), a com preensão que
O texto na lingüística 97
com pleta, a saída para além dos limites do compreensível,
etc. Essas relações específicas não podem ser reduzidas nem
a relações meramente lógicas nem a meramente objetais. Aqui
se encontram posições integrais, pessoas integrais (o indiví
duo não exige uma revelação intensiva, ela pode manifestar-
-se em um som único, em um a palavra única), encontram-se
precisamente vozes.
A palavra (em geral qualquer signo) é interindividual.
Tudo o que é dito, o que é expresso se encontra fora da “ al
m a” do falante, não pertence só a ele. A palavra não pode
ser entregue apenas ao falante. O autor (falante) tem os seus
direitos inalienáveis sobre a palavra, mas o ouvinte também
tem os seus direitos, têm tam bém os seus direitos aqueles
cujas vozes estão na palavra encontrada de antemão pelo au
tor (porque não há palavra sem dono). A palavra é um d ra
ma no qual participam três personagens (não é um dueto,
mas um trio). Ele é representado fora do autor e é inadm is
sível que seja introjetado (introjeção) no autor.
Se não esperam os nada da palavra, se sabem os de ante
m ão tudo o que ela pode dizer, ela sai do diálogo e se coisi-
fica.
A auto-objetivação (na lírica, na confissão, etc.) com o
autoalienação e em certa medida com o superação. Ao me ob
jetivar (isto é, ao me colocar para fora de mim mesmo) g a
nho a possibilidade de uma relação autenticamente dialógi
ca com igo mesmo.
Só o enunciado tem relação imediata com a realidade e
com a pessoa viva falante (o sujeito). N a língua existem ape
nas as possibilidades potenciais (esquemas) dessas relações
(form as pronom inais, tem porais, m odais, recursos lexicais,
etc.). Contudo, o enunciado não é determinado por sua rela
ção apenas com o objeto c com o sujeito-autor falante (e por
sua relação com a linguagem enquanto sistema de possibili
dades potenciais, enquanto dado), mas — e isso é o que mais
importa para nós — de forma im ediata com outros enuncia-
98
Mikhail Bakhtin
dos no âmbito de um dado cam po da comunicação. Fora des
sa relação ele não existe em termos reais (apenas como tex
to). Só o enunciado pode ser verdadeiro (ou não verdadeiro)
correto (ou falso), belo, justo, etc.
A com preensão da língua e a com preensão do enuncia
do (que envolve responsividade e, por conseguinte, juízo de
valor).
N ão estam os interessados no aspecto psicológico da re
lação com os enunciados (e interpretações) dos outros mas
com seu reflexo na estrutura do próprio enunciado.
Em que medida as definições lingüísticas (puras) da lín
gua e de seus elementos podem ser em pregadas na análise ar-
tístico-estilística? Elas podem servir apenas de termos iniciais
para a descrição. Entretanto, elas não descrevem o mais im
portante: isto vai além dos seus limites. Porque aí não se tra
ta de elementos (unidades) do sistem a da língua, porém de
elementos do enunciado.
O enunciado com o uma totalidade de sentidos.
A relação com os enunciados dos outros não pode ser
separada da relação com o objeto (porque sobre ele discutem,
sobre ele concordam , nele as pessoas se tocam) nem da rela
ção com o próprio falante. Trata-se de uma tríade viva. M as
até hoje não tem sido hábito levar em conta o terceiro ele
mento. Contudo, mesmo onde ele tem sido levado em conta
(na análise do processo literário, da publicística, da polêm i
ca, da luta entre opiniões científicas), a natureza específica
das relações com outros enunciados enquanto enunciados,
isto é, enquanto totalidades de sentidos, não tem sido estu
dada nem revelada (elas têm sido interpretadas de forma abs
trata, lógico-objetiva ou psicológica, ou até mecanicamente
causai). N ão foi compreendida a natureza específica e dialó-
gica da inter-relação das totalidades sem ânticas, das posições
sem ânticas, isto é, dos enunciados.
O experim entador com põe uma parte do sistema expe
rimental (na microfísica). Pode-se dizer que o interpretador
O texto na lingüística 99
é parte do enunciado a ser interpretado, do texto (ou melhor,
dos enunciados, do diálogo entre estes, entra nele com o um
novo participante). O encontro dialógico de duas consciên
cias nas ciências humanas. A m olduragem do enunciado do
outro pelo contexto dialógico. Até quando dam os uma ex
plicação causai do enunciado do outro nós o estam os rejei
tando. A coisificação dos enunciados dos outros é o modo
específico (falso) de rejeitá-los. Se entendermos o enunciado
com o uma reação mecânica e o diálogo com o uma cadeia de
reações (na lingüística descritiva ou entre os behavioristas),
então a tal compreensão estão sujeitos igualmente tanto os
enunciados verdadeiros quanto os falsos, tanto as obras ge
niais quanto as desprovidas de talento (a diferença está ape
nas nos efeitos mecanicamente entendidos, na utilidade, etc.).
Esse ponto de vista, relativamente lícito, assim como o pon
to de vista puramente lingüístico (a despeito de toda a dife
rença entre eles), não afeta a essência do enunciado enquan
to conjunto de sentidos, com o ponto de vista semântico e po
sição semântica, etc. Todo enunciado pretende a justiça, a ve
racidade, a beleza e a verdade (o enunciado figurado), etc.
Esses valores dos enunciados também não são determinados
por sua relação com a língua (como sistema puramente lin
güístico), m as por diferentes form as de relação com a reali
dade, com o sujeito falante e com outros (alheios) enuncia
dos (particularmente com aqueles que são avaliados como
verdadeiros, belos, etc.).
A lingüística opera com texto, mas não com obra. O que
ela diz sobre a obra é trazido de fora por contrabando e não
decorre de análise puramente lingüística. E claro que essa
própria lingüística também costum a ter, desde o início, natu
reza conglom erada e ser saturada de elementos extralinguís-
ticos. Simplificando um pouco a questão: as relações pura
mente lingüísticas (isto é, o objeto da lingüística) são relações
do signo com o signo, e com os signos no âm bito do sistema
da língua ou do texto (isto é, as relações sistêm icas ou linea-
l üu Mikhail Bakhtin
res entre os signos). As relações dos enunciados com a reali
dade concreta, com o sujeito real falante e com outros enun
ciados, relações que pela primeira vez tornam os enunciados
verdadeiros ou falsos, belos, etc., nunca podem vir a ser ob
jeto da lingüística. Signos particulares, os sistem as da língua
ou o texto (como unidade semiótica) às vezes não podem ser
nem verdadeiros, nem falsos, nem belos.
C ada conjunto verbalizado grande e criativo é um siste
ma de relações muito com plexo e multiplanar. N a relação
criadora com a língua não existem palavras sem voz, p ala
vras de ninguém. Em cada palavra há vozes às vezes infinita
mente distantes, anónim as, quase im pessoais (as vozes dos
matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vo
zes próxim as, que soam concomitantemente.
Toda observação viva, competente e im parcial, feita de
qualquer posição e de qualquer ponto de vista, sempre con
serva o seu valor e o seu significado. A unilateralidade e as
limitações do ponto de vista (da posição do observador) sem
pre podem ser corrigidas, com pletadas e transform adas (enu
m eradas) com o auxílio das mesm as observações levadas a
cabo de outros pontos de vista. Os pontos de vista pobres
(sem observadores vivos e novos) são estéreis.
E fam oso o aforism o de Púchkin sobre o léxico e os li-
vros. 70
Relações dialógicas. Essas relações são profundamente
originais e não podem se reduzir a relações lógicas, ou lin
güísticas, ou psicológicas, ou mecânicas ou a quaisquer ou
tras relações naturais. E o novo tipo de relações semânticas ,
O texto na lingüística J 03
elusive a com preensão do pesquisador de ciências hum anas);
o entendedor (e também o pesquisador) se torna participan
te do diálogo ainda que seja em um nível especial (em função
da tendência da interpretação e da pesquisa). Uma analogia
com a inclusão do experimentador no sistema experimental
(como parte dele) ou do observador no mundo observável da
microfísica (a teoria quántica). Um observador não tem po
sição fora do mundo observado, e sua observação integra,
com o componente, o objeto observado. Isto se refere inteira
mente aos enunciados plenos e às relações entre eles. Eles não
podem ser entendidos de fora. A própria com preensão inte
gra o sistema dialógico como elemento dialógico e de certo
modo lhe modifica o sentido total. O entendedor se torna ine
vitavelmente um terceiro no diálogo (é claro que não no sen
tido literal, aritmético, uma vez que, além do terceiro, pode
haver um número ilimitado de participantes do diálogo a ser
compreendido), entretanto a posição dialógica desse terceiro
é uma posição absolutamente específica. Todo enunciado tem
sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de
proxim idade, de concretude, de com preensibilidade, etc.),
cuja compreensão responsiva o autor da obra discursiva pro
cura e antecipa. Ele é o segundo (mais uma vez não em sen
tido aritmético). Contudo, além desse destinatário (segundo),
o autor do enunciado propõe, com m aior ou menor cons
ciência, um supradestinatário superior (o terceiro), cuja com
preensão responsiva absolutamente justa ele pressupõe quer
na distância m etafísica, quer no distante tempo histórico.
“ Um destinatário como escapatória.” Em diferentes épocas
e sob diferentes concepções de mundo, esse supradestinatá
rio e sua com preensão responsiva idealmente verdadeira g a
nha diferentes expressões ideológicas concretas (Deus, a ver
dade absoluta, o julgamento da consciência humana impar
cial, o povo, o julgamento da história, etc.). O autor nunca
pode deixar que ele mesmo nem o conjunto de sua obra dis
cursiva fiquem inteiramente à mercê plena e definitiva dos
i
N o t a do trad u to r ao s “ D i á l o g o s ”
Paulo Bezerra
112
Noca do tradutor aos “ Diálogos”
Diálogo I
A questão do discurso dialógico
Diálogo 1
O relativismo da diferença entre m onólogo e diálogo.2
C ada réplica é monológica até certo ponto (o enunciado de
um sujeito) e até certo ponto cada m onólogo é urna réplica,
urna vez que integra <?> o contexto da discussão ou da per
gunta, pressupõe ouvintes, uma polêmica precedente, etc. O
diálogo envolve <?> enunciados de ao menos dois sujeitos,
m as sujeitos interligados por relações dialógicas, que conhe
cem um ao outro, respondem um ao outro, e essa ligação (re
lação de um com o outro) se reflete em cada réplica do diá
logo, determina essa réplica.
O apelo da literatura ao discurso falado ou popular não
é apenas um apelo ao léxico, à sintaxe (mais simples); é, an
tes de tudo, um apelo ao diálogo, às potencialidades da con
versação com o tal, à sensação imediata de ter um ouvinte, à
intensificação do elemento da com unicação, da comunicabi-
lidade. É o enfraquecimento do elemento monológico do dis
curso e do reforço do dialógico.
[Uma apreciação dos gêneros do ponto de vista de sua
dialogicidade (interna e externa).]
M aior ou menor grau de concentração do falante em si
mesmo ou no objeto (o m onólogo científico), isto é, m aior
ou menor grau de m onologicidade3 (i.e., de dialogicidade),
da expressividade (no sentido de função).
H um boldt sobre a compreensão. A com preensão e sua
im portância excepcional. Uma diretriz centrada numa com-
preensibilidade m áxim a, na compreensibilidade de todo um
povo. Uma diretriz centrada numa compreensibilidade limi-
Diálogo 1
cas são m onológicas. Limitam o papel do parceiro e estão
voltadas para um restrito círculo de leitores de livros, que co
mungam num específico convencionalismo livresco. Intensi
fica-se o elemento dialógico e amplia-se a própria com unica
ção dialógica...
Diálogo i
la dialógica de M arx e Engels.4 Uma ideia só se esclarece pa
ra si mesma no processo de seu esclarecimento para o outro.
Por isso não há nem pode haver, por assim dizer, um m onó
logo absoluto, ou seja, não endereçado a ninguém, uma ex
pressão puramente individual de um pensamento para si mes
mo. Semelhante m onólogo individual absoluto, se é que o
concebemos, dispensaria a língua, compreensível para os ou
tros, perderia qualquer relação no cam po da língua. Todo
enunciado é dialógico, ou seja, é endereçado a outros, parti
cipa do processo de intercâmbio de ideias: é social. M onólo
go absoluto — expressão de uma individualidade — não exis
te; isto é uma ficção da filosofia idealista da linguagem, que
haure a língua da criação individual. A língua é dialógica
(“ meio de com unicação” ) por natureza. O m onólogo ab so
luto, que seria um m onólogo fundado na língua, é excluído
pela própria natureza da língua.
(A lingüística idealista estuda a língua com o se esta fos
se m onológica.)
Contudo, se a língua é dialógica por sua natureza social
e se o m onólogo absoluto é impossível, a diferenciação entre
form as dialógicas e form as m onológicas de discurso não é só
admissível com o necessária. A par com as form as dialógicas
de discurso (por exem plo, o diálogo cotidiano), existem for
mas m onológicas (por exem plo, o discurso científico, as no
velas e os contos, as obras líricas, etc.). Estas não são m onó
logos absolutos, mas por sua organização diferem acentua-
118
Mikhail Bakhtin
damente dos diálogos. N o ámbito de totalidades monológi-
cas com o o romance, distinguem-se o discurso monológico
do autor (ou narrador) e os diálogos das personagens. É dis
pensável dem onstrar a evidente existencia de diferenças es
senciais entre os discursos m onológico e dialógico no ám bi
to (e na base) da dialogicidade geral de uma língua. É natu
ral supor que as form as do discurso dialógico são interessan
tes por exprimirem, de m odo mais acentuado e puro, a na
tureza social da língua com o <?> meio de com unicação (o
que, evidentemente, não reduz tam pouco a significação da
form a relativo-monológica <?> de discurso).
[2. Língua e fala. Os cam pos de emprego da língua (são
quase infinitos). A função da língua e a form ação dos enun
ciados. A questão da unidade da com unicação lingüística, do
intercâmbio de ideias.
3. A definição de diálogo e seus problem as.
4. O papel do diálogo na história da linguagem literá
ria. D iálogo e escrita. O m onologism o da escrita (leis, análi
ses <?>, form as discursivas religiosas, tipos de textos sagra
dos, orações, etc.).
5. O diálogo na literatura. A teoria da linguagem poéti
ca oriunda de Aristóteles, o discurso fundado nos tropos <?>,
que não se propaga aos diálogos. Estudava-se apenas a lin
guagem do autor, a linguagem das personagens só se estuda
va de m odo naturalista (com predomínio dos diálogos obje
tais no passado, das m udanças <?> no futuro).
O intercâm bio de ideias e sentimentos prontos e a for
m ação das ideias e sentimentos no diálogo. A form ação da
ação no diálogo (o diálogo dram ático na acepção precisa do
termo).
As form as da língua, que levam uma vida mais ativa no
diálogo (por exem plo, os pronomes e algum as form as ver
bais). Elas levaram essa vida também no passado (retrospec-
ção). A questão da origem da língua e de algum as de suas
formas.]
D iálog o 1
A oração não é, absolutam ente, uma unidade da com u
nicação discursiva. Se o enunciado (a réplica do diálogo, o
provérbio, o aforism o, etc.) é com posto de uma oração, esta
já não é apenas uma oração: a ela se incorpora algo novo
(uma nova qualidade) — o acabam ento discursivo, e ela já
pode ser seguida não de outra oração, mas de um enunciado
alheio (compreensão-apreciação). Temos dois sujeitos discur
sivos, um intercâmbio de ideias, uma fronteira dialógica. <...>
[O discurso dialógico e o pensamento. A form ação do
pensamento no diálogo. A luta do novo contra o velho.]
O estilo do discurso de salão <?>, o estilo do discurso
familiar, o estilo de uma conversa oficial ou prática. Os esti
los do discurso dialógico. Cada um deles domina vários esti
los. Estes são determinados pela relação com o interlocutor
(por toda a com plexidade da hierarquia social), pelo objeti
vo da conversa (por seu tema), por form as específicas de co
m unicação dialógica (a conversa mundana de salão <?>, as
confissões íntimas, a conversa prática numa repartição, etc.),
pelo clima externo da conversa, pelos acontecimentos que en
sejam a conversa. Os estilos dialógicos de Tchítchikov.'’
Além das réplicas de personagens isoladas, que as carac
terizam assim com o caracterizam o seu estilo e seu perfil so
cial e individual, ainda há o diálogo em seu conjunto, isto é, o
encontro, o toque e a luta entre diferentes individualidades.
[A im portância das leis internas da língua para a com
preensão.
A diferença entre o enunciado monológico e a réplica de
um diálogo.]
A com posição das pequenas e grandes m assas discursi
vas. A lingüística termina com uma oração subordinada, um
período, que são elementos do enunciado, e desconhece a
com posição das totalidades verbais. Q uando uma oração se
Diálogo I 121
palavras, quer em ação (por exemplo, o cumprimento de uma
ordem compreendida ou de um pedido, etc.). E justamente
nessa com preensão ativa e responsiva que se fixa o discurso
do falante: a com preensão não dubla o compreensível; essa
dublagem passiva seria inútil para a sociedade. M as no grau
e no caráter do ativismo da com preensão existe um a diferen
ça essencial entre o m onólogo e o diálogo. Esse ativismo es
pecial da intercom preensão dialógica determina a ação, o
dram atism o do discurso dialógico.
Os ritmos e as entonações do discurso dialógico influen
ciam os ritmos e as entonações dos gêneros m onológicos.
H á uma ligação entre as orações e os parágrafos do dis
curso m onológico e um nexo entre as réplicas de um diálo
go. <...>
Então, o estilo não é determinado pelo significado lógi-
co-objetal das palavras, mas pela expressão, ou seja, pela au
réola estilística que caracteriza o sujeito do discurso e sua re
lação com a realidade expressa no aspecto lógico-objetal da
palavra. A isto se incorpora um terceiro elemento no discur
so dialógico — a relação com a palavra do outro acerca do
mesmo objeto , isto é, com as réplicas antecedente e conse
qüente do interlocutor (que podem ser antecipadas, direcio
nadas e esperadas). A relação com o interlocutor determina
o discurso tanto quanto a relação com o objeto (com a rea
lidade). A relação com o interlocutor e com seu discurso é
um elemento determinante do discurso no diálogo, fora do
qual é impossível compreender uma réplica. M as esse elemen
to está imp licité, presente em qualquer discurso, uma vez que
todo discurso pressupõe um ouvinte, um apelo a este. Con-
Diálogo I 123
O grau de dialogizaçâo do m onólogo pode ser muito varia
do. É necessário levar em conta os diferentes pontos de vista
que se enunciam sobre o objeto do discurso, polemizar com
alguns pontos de vista (citações, reproduções de concepções
alheias, etc.), apoiar-se em outros — levar à dialogizaçâo do
discurso m onológico. Além disso, pode-se falar de uma ten
dência histórica geral à dialogizaçâo do m onólogo (dos gê
neros científico, publicístico, ficcional, jornalístico e de revis
tas, etc.). Uma dialogizaçâo dos estilos.
[A concentração m onológica do falante no próprio ob
jeto de seu discurso e em sua relação com ele sem se voltar
para o ouvinte, sem levar diretamente em conta os pontos de
vista e apreciações dos outros.]
Diálogo II 125
cípios e tarefas da estilística com o disciplina lingüística ain
da não estão plenamente claros e continuam indefinidos os
conceitos e categorias basilares dessa ciência. O termo ‘esti
lo’, aplicado às variedades funcionais do discurso nacional-
-literário, tem um conteúdo diferente do que se encontra na
queles casos em que ele designa um sistema de recursos ex
pressivos de uma obra de ficção ou de uma corrente literária.
As questões e tarefas da norm alização da língua nacional e a
luta contra o entulhamento da língua falada com gírias e pro
vincianismos estreitamente locais precisam da estilística p a
ra serem bem resolvidas em base teórica. A estilística da lín
gua nacional deve dar uma ativa contribuição para o incre
mento da cultura do discurso. Nesse cam po da lingüística, a
teoria está unida à prática de m odo particularmente estreito,
entrelaça-se com ela. Uma profunda concepção da estilística
da língua nacional em seu desenvolvimento deve servir tam
bém com o fundamento da criação verbal do escritor. A lin
guagem de uma obra literária conta com sua percepção e
apreciação no aspecto de uma língua nacional com um .”
“ Nesse ciclo de questões, ganham im portância especial
as observações da sinonimia da língua no cam po gram ático
e léxico-fraseológico. O estudo dos recursos sinonímicos de
expressão, próprios da língua nacional, permitirá estabelecer
seus estilos ativos vivos e determinar as leis de seu desenvol
vimento semântico. E impossível desenvolver uma investiga
ção da diversidade de estilos da língua separada do estudo
das peculiaridades funcionais de seu emprego nos diferentes
cam pos da vida social.”
“ N um a sociedade de classes, o ciclo das diferenças esti-
lístico-funcionais do discurso se cruza com as diferenças de
caráter sociodialetal. Diversos grupos sociais e diversas clas-
Diálogo II 127
de nacional de uma literatura. Q uanto m ais forte e duradou
ro é o seu efeito, tanto mais próxim as elas se tornam da cria
ção artístico-verbal do povo e de suas qualidades nacionais.
Há nelas a marca da profunda originalidade nacional.”
“ O valor e a significação do discurso artístico ‘são de
term inados pelo quando, onde e em que lugar e, essencial
mente, pela finalidade desse discurso’. ‘É necessário conside
rar cada palavra — diz Saltikov-Schedrin4 — para que ela
não represente uma dissonância, mas seja exatamente a p a
lavra que caberia ser.’ É de Púchkin o aforism o, que revela
com acuidade a imensa importância dos meios de seleção e
unificação das palavras no sistema do conjunto de uma o ra
ção: ‘A razão é inesgotável quando se consideram os concei
tos, assim como a língua c inesgotável na unificação das p a
lavras. Todas as palavras estão no léxico, mas os livros, que
surgem a cada instante, não são uma repetição do léxico” (A.
S. Púchkin, Obras completas , tom o 7, M -L, 1951, p. 4 4 5 ).”
“ O clima estilístico de uma obra determina o sentido da
imagem artística, sua função e sua apreciação por parte do
autor. O estilo do discurso é o meio de caracterização do fa
lante. Os recursos sinonímicos da língua são profundam en
te individuais, isto é, do povo ou nacionais.”
“ N o estilo do discurso refletem-se os gostos sociais e o
nível da cultura do falante ou do escritor. 'D os lábios de uma
pessoa — diz Saltikov-Schedrin — não sai uma única frase
que não permita observar em que situação ela foi proferida.'
N o estilo de uma obra revela-se a pessoa social do escritor e
sua personalidade criadora individual.”
“ O estilo das grandes obras da literatura russa, suas ge
neralizações figuradas e seus procedimentos de expressivida
de encarnam e concentram a força inexaurível da língua na-
Diálogo II 129
manee, por exem plo, não foram absolutamente elaborados.
A teoria dos gêneros parte de definições semântico-objetais.
Ainda se estudou a relação dos gêneros com o estilo (Aristó
teles, H orácio, Boileau, Lomonóssov).]
O diálogo, a discussão e a luta pressupõem uma inter-
com preensão lingüística.
Trata-se de um problema de form as de gêneros. N o pro
cesso de desenvolvimento da cultura esses gêneros discursi
vos se especializaram , assim com o se especializaram as for
mas de com unicação cultural (científica, artística, técnica,
etc.); suas etapas essenciais são a escrita e a publicação de li
vros. Tudo isso contribui para a especialização dos gêneros
e sua concentração no objeto.
Q uanto mais convencional e tradicional o estilo, menos
ele considera o ouvinte vivo, concreto e atual, e mais m ono
lógico ele é. A destruição desses estilos começa com sua dia-
logização paródica. N os momentos cruciais sempre se inten
sifica o elemento dialógico do discurso, agudiza-se a sensa
ção de ouvinte-contemporâneo, inimigo e am igo, cresce a lu
ta com todo convencionalismo, com o m onologism o conven
cional. O recurso aos estilos de conversação e a am pliação
do cam po da linguagem literária estão intimamente ligados
<?> ao recurso ao diálogo; ocorre — e isso é muito impor
tante — uma am pliação da concepção de ouvinte-contempo
râneo, de sua dem ocratização. O convencionalismo, ao en
fraquecer a sensação e o ato de considerar o ouvinte, ao mes
mo tempo separa a palavra até da realidade efetiva. A dialo-
gização, ao agudizar a sensação e a consideração da palavra
do outro (do ouvinte ativo-responsivo contemporâneo), apro
xima simultaneamente a palavra da realidade, assegura uma
concentração objetai até mais criadora dessa palavra. O con
vencionalismo tradicional no cam po da arte contribui para
o dogm atism o no cam po da ciência.
[O crescimento do diálogo na literatura e a dialogização
das partes m onológicas.
Diálogo II 131
-relação dialógica. A expressão já não se relaciona ao objeto,
não colore o objeto, nem diz respeito a uma pessoa com o o b
jeto (objeto de amor, de encantamento, de repulsa, etc.) mas
ao falante e ao seu discurso, seu ponto de vista, seu estilo.
Há uma refração do raio-palavra através do ambiente
verbalizado do outro.
Uma ideia do outro, que se expõe apenas a uma apre
ciação sem ântico-objetal, e o enunciado do outro, revestido
de forma estilística (tendencial, ideológica e individual). En
tre elas há transições contínuas, pois “ não existem ideias
n u as1'. N o entanto, podem os abstrair esse caráter alheio (na
ciência).
[A dialogicidade interior de toda palavra e a forma com-
posicional externa do diálogo (em sentido restriro).
O encontro com a palavra do outro no objeto e um no
vo encontro com ele na resposta (a palavra a provoca, ante
cipa-a, constrói-se direcionada para ela ).J
Diálogo II 133
O enunciado já pertence ao campo da ideologia (mas
não tem necessariamente caráter de classe).
“ Espere, ainda não terminei.” Ou: dixi.
Destacada do contexto, uma oração-objeto de discussão
é vista como um enunciado acabado (pelo <...> qual o falan
te responde).
IA relação com o conteúdo semântico-objetai do <enun-
ciado> (na ciência) e a relação com seu estilo (visão de mun
do). “ Quem viveu e pensou...” '’ Compare-se isto à tirada aná
loga de Gruchnitski.6
Aqui não se pode separar o estilo do conteúdo semânti-
co-objetal. Discute-se também com o estilo (como expressão
de uma visão de mundo).
Aquele mínimo, depois do qual se pode dar a palavra ao
outro, pode produzir um intercâmbio de pensamentos.)
Assim o enunciado se insere no campo da ideologia, mas
as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros, perten
cem à linguagem. O mesmo acontece com as formas do re
flexo do enunciado do outro, vinculadas a essa questão. E
um campo limítrofe. Uma filosofia da linguagem.
O enunciado não coincide com um juízo. Pode pressu
por uma apreciação não lógica, mas diferente deste.
N as fronteiras do enunciado dá-se a alternância dos su-
Diálogo II 135
N ão é possível compreender o estilo de um discurso sem es
se elemento sumamente importante e estilizador.
Trata-se justamente do estilo do enunciado e não do es
tilo da língua na acepção precisa do termo. O estilo de um
enunciado concreto sempre incorpora a relação com o ou
vinte, mesmo que seja o estilo de um requerimento, de uma
resolução positiva emanada deste, o estilo de uma ordem mi
litar, etc.
Estilos cosmovisivos e estilos tendenciais. Ao se torna
rem estilos de um enunciado concreto, eles assumem um ca
ráter polêmico, apologético e estilizador, mesmo que tenham
o máximo de pureza e moderação. O emprego de um estilo
constituído é, até certo ponto, quase sempre uma estilização,
uma vez que envolve <?> a relação do falante com determi
nado estilo (um falar com ressalvas <?>, uma relação com o
discurso alheio ou semialheio).
Nem de longe são neutros todos os fenômenos da lín
gua (palavras, unidades fraseológicas, ou mesmo as formas
morfológicas e sintáticas). Estas exalam estilos, a elas estão
vinculadas certas apreciações tendenciais, ideológicas, s o
ciais. Cabe empregar essas palavras com ressalvas, tomá-
-las entre aspas entoadas. Além das palavras neutras de nin
guém, na língua há muitas palavras alheias ou semialheias
para o falante, para o seu, isto é, para o estilo adequado à
sua intenção.
Em qualquer estilo (o negociai, por exemplo), empre-
gam-se palavras com ressalvas. “ Com o se diz no dia a dia” ,
“ como diriam os poetas” , “ falando em linguagem oficiosa” ,
etc.
Que form as de relação com o ouvinte-leitor-interlo-
cutor e com o discurso do outro existem no enunciado? C o
mo classificá-las?
Cabe, antes de tudo, enfocar <...> o seguinte fenômeno.
O interlocutor-ouvinte-leitor é a segunda pessoa a quem o
enunciado está dirigido, endereçado, a quem eu respondo ou
Diálogo II
A condição de parceiro dialógico é ocupada pelo públi
co, pelos críticos, pelos cientistas especialistas, os descenden
tes, o povo, etc. As várias concepções de ouvintes aos quais
se destina o enunciado.
N o discurso falado, o falante não tem estilo individual,
mas uma maneira individual de construir seu enunciado.
A questão da polêmica aberta. Estudo das formas de
enunciado com base no fato de que cada enunciado (inclusi
ve o mais monológico, solitário e autossuficiente) participa
do intercâmbio social de idéias, é uma unidade desse inter
câmbio, é determinado por esse intercâmbio, que é dialógi
co por natureza.]
138
M ikhail Bakhtin
enunciado deixa de ser compreendido). Sobre o significado
basilar (de toda a língua e neutro) das palavras e formas da
língua superpõem-se significados complementares especiais
de caráter predominantemente valorativo. Ocorre uma espé
cie de contaminação de palavras e formas particulares da lín
gua por certas avaliações (auréolas estilísticas). Essa contami
nação ocorre nos enunciados. São até possíveis coloridos in
dividuais em manifestações da língua. N ã o se pode entender
o mecanismo desse processo sem um estudo mais profundo
da estrutura do enunciado como unidade da comunicação
discursiva, sem uma compreensão de sua natureza dialógica.
Todos os campos da ideologia usam a língua, mas cada
um a seu modo.
Diálogo II 139
descobertos, foram expressos e descritos com o auxílio da
língua, cujo campo basilar — tanto a estrutura gramatical
como o sistema fonológico — continuou sem mudanças. Tu
do isso levanta a questão do significado contextual de todos
os fenômenos da língua. O estudo dos estratos e camadas do
significado e do sentido das palavras. Tais estratos são tanto
semântico-objetais quanto expressivos.
O que se incorpora (sobrepõe-se) ao significado de uma
palavra no estilo da língua (a “ nuance lexical” )? O que se so
brepõe ao significado no estilo tendencial? O que se sobre
põe 11 0 estilo individual? Por último, no enunciado singular
individual (significado contextual) <?> o que determina a es
colha da única palavra necessária e do único lugar necessá
rio para ela? Uma elaboração produtiva da questão do signi
ficado contextual é impossível sem um estudo mais profun
do da natureza e da estrutura do enunciado.
Função e situação.
O que resta do significado contextual 11 0 sistema da lín
gua nacional? N ão só reminiscencias, não só associações, mas
certa flexibilidade e uma riqueza potencial do significado ba
silar, certa capacidade para combinações contextuáis.
0 enunciado (a réplica) pode ser constituído de uma
oração extremamente incompleta: “ E ? ” . É um imposição à
continuidade do discurso, à abertura do principal. Esse “ E ”
pertence a uma outra voz.
Os gêneros primários do discurso refletem de modo ime
diato e direto uma situação de comunicação, e os gêneros se
cundários, especializados, refletem uma situação complexa
de comunicação cultural organizada. M as, em sua maioria,
esses gêneros especializados são formados por gêneros pri
mários (o drama de réplicas, o romance, etc.).11 A organiza-
Diálogo II 141
3. Diálogos ideológicos: filosóficos, científicos, artístico-
-tendenciais, ético-morais (confessionais), políticos, etc.; re
fletir a luta de opiniões em todos os campos da vida ideoló
gica é uma das tarefas mais importantes do romance (ja a
partir do género dos diálogos socráticos, uní dos embriões
do género romanesco em solo antigo);
4. Há diálogos internos de diversos tipos — “ consigo
mesmo’’ , formas dialógicas de desenvolvimento da vida in
terior, formas de discussão consigo mesmo, modos de forma
ção dialógica do pensamento individual dos heróis, etc.
A capacidade <?> e a inventividade na criação de situa
ções dialógicas é um traço muito importante de um roman
cista.
Seria uma tarefa interessante classificar as diversas for
mas de diálogo em Balzac e caracterizar a especificidade de
cada uma dessas formas.
Falamos de diálogos como gêneros discursivos primá
rios e não tocamos nas funções artísticas do diálogo nos ro
mances.
[O reflexo das diversas formas de gênero primário da es
crita na história do romance.]
Desse modo, em todas as etapas do seu desenvolvimen
to histórico o romance é uma fonte excepcionalmente impor
tante para o estudo dos gêneros discursivos primários, de sua
estrutura (dialógica) e de suas diversas formas. E claro que
outros gêneros literários também oferecem material para se
melhante estudo, mas em grau incomparavelmente inferior.
O estudo dos gêneros do discurso contribuirá substan
cialmente também para uma doutrina dos estilos de lingua
gem e — especialmente — para a complexa história social de
sua formação (de sua reacentuação, reassimilação).
A complexa vida dos <estilos> lingüísticos, ideológicos
(tendenciais, cosmovisivos) e sociais, a história do surgimen
to, do desenvolvimento e da luta entre esses estilos e de sua
transformação e reacentuação, não pode ser compreendida
Diálogo II 143
nos gêneros publicísticos e até nos científicos.12 Evitar <?>
esses gêneros com suas particularidades específicas é absolu
tamente impossível quando se estuda a história da linguagem
literária.
Dividir os gêneros em livresco e de conversação não é
essencial.
Os gêneros que servem como fonte para o estudo dos
gêneros discursivos primários: 1) os gêneros dramáticos, par
ticularmente os cômico-populares (o drama satírico, os mi
mos, as comédias para a fase antiga; as farsas e os dramas
cômicos na Idade Média (o “ jogo na conversa” <?>), as so
tas, a charada <?>, etc.); 2) os gêneros satíricos (a sátira me-
nipeia, os gêneros do sério-cômico da Antiguidade, Luciano);
3) os gêneros publicísticos, os ensaios, etc.
Diálogo II 145
“ As palavras são os tijolos, a gramática são as regras e
os meios da construção, do edifício — isto é o enunciado.” 1"
“ N osso discurso se desmembra antes de tudo em ora
ções, cada uma das quais, sendo um enunciado mais ou me
nos acabado, traduz um pensamento particular.” 16
A pausa separa uma oração de outra. Essa pausa só exis
te no interior do enunciado. Entre enunciados, a pausa é de
uma espécie totalmente especial (se é que neste caso pode-se
falar de pausa). Tal “ p au sa” já não é determinada pelo falan
te que concluiu sua fala. E determinada pelo interlocutor e
por toda a situação do discurso.
Uma oração subordinada continua oração e não nos
aproxima das fronteiras do enunciado, ainda não gera uma
nova qualidade.
“ N osso discurso tem por finalidade comunicar a outros
os nossos pensamentos. Estes se encarnam no discurso em
forma de orações.” 1
Se a oração efetivamente encarna como forma todo um
pensamento que queremos comunicar ao outro, então ela já
não é apenas uma oração, mas um enunciado integral. Já não
é concluída por uma pausa, mas pela conclusão, não é segui
da de outra oração mas do discurso do outro, do enunciado
Diálogo II 147
As formas da relação dialógica com o enunciado do ou
tro, as formas de reflexo do ouvinte e de seu discurso são ex
tremamente diversificadas, mas quase não foram objeto de
nenhum estudo (quase nada acrescentamos à retórica anti
ga). O estudo dessas formas é uma importante tarefa que se
coloca perante nossa ciência.
Quando nos abstraímos da totalidade de um enuncia
do, quando estudamos uma oração como elemento de um
contexto monológico-convencional deixamos de ouvir to
dos os harmônicos dialógicos, exceto os mais grosseiros e
externos.
Diálogo 11 149
Os harmônicos dialógicos: polémica velada, potencia
lidade paródica leve <?> e ironia em alguns lugares, discur
so alheio difuso e velado, justificação polêmica do destaque
de posições e palavras particulares, etc. O campo dialógico
150
Mikhail Bakhtin
P o s f á c io
PlUiIo Bezerra
Pôsfácio
têtica da criação verbal em quatro livros e publicá-los sepa
radamente, começando por Os gêneros do discurso. Assim,
temos um livro temáticamente coeso, estruturado sobre vá
rios conceitos do pensamento bakhtiniano, entre os quais fi
gura como núcleo central o enunciado como unidade míni
ma do discurso e elo do processo de comunicação humana.
Ao preparar os dois primeiros textos para a nova edi
ção, fiz várias modificações na redação com o intuito de tor
nar o discurso mais claro e direto, substituindo formas con
ceituais como " o to d o ” ou “ conjunto” (do enunciado, por
exemplo) por “ totalidade” , “ artístico” por “ ficcional” quan
do se trata de discurso ou gênero literário, “ semântico” por
“ de sentido" (em português não existe adjetivo para “ senti
d o ” ) para destacar a ênfase bakhtiniana no sentido como ele
mento essencial da reflexão teórica sobre o discurso, “ confi
guração dialógica” por “ dialogicidade” para manter com a
máxima originalidade a terminologia de Bakhtin; também
substituí “ compreensão” por “ interpretação” quando o ob
jeto da leitura é um texto literário. M as cabe observar que
esses dois conceitos derivam do original russo ponimánie ,
que Bakhtin emprega constantemente nas duas acepções,
preferindo-o ao vocábulo tolkovánie , que significa de fato
interpretação. Com o intuito de dar mais leveza à lingua
gem dos textos, tive de apelar para uma “ ousad ia” . N a lín
gua portuguesa não existe adjetivo para a palavra “ princí
p io ” como proposição lógica fundamental sobre a qual se
apoia o pensamento (Houaiss). O russo usa, às vezes quase
como um cacoete, a palavra latina principio na forma adver-
biada printsipialno , que tanto pode ter o valor de advérbio
(principalmente ) como da locução adjetiva “ de princípio” .
Como Bakhtin a emprega com o sentido de proposição lógi
ca, resolvi traduzir printsipialno por principiai, em vez de
usar a locução adjetiva “ de princípio” que, numa seqüência
formada com outros adjetivos, quebra frequentemente a flui
dez do discurso, tornando-o pesado. Ademais, não vejo ne
Posfácio 153
herança. N ão há dúvida de que muitos aspectos do pensa
mento de Bakhtin estão presentes nesse livro, assim como é
notória a diferença na abordagem de vários de seus temas na
obra posterior do próprio Bakhtin, sobretudo no que tange
à ênfase, a meu ver excessiva, nos condicionamentos socio
lógicos dos fenômenos língua e linguagem, muito recorrente
no livro assinado por Volóchinov. A segunda abordagem dos
referidos temas encontra-se em O discurso no romance , obra
escrita entre 1934 e 1935, assinada pelo próprio Bakhtin e
publicada no Brasil primeiro pela editora Hucitec como in
tegrante do livro Questões de literatura e de estética, em tra
dução de Aurora Bernardini e outros, e mais recentemente
pela Editora 34 com o título Teoria do romance I. A estilís
tica, em tradução minha.
“ O discurso no romance” (publicado pela primeira vez
na União Soviética em 1972) foi escrito num momento de in
tensificação do terror de Stálin e seu entourage contra a ve
lha guarda bolchevique e a intelectualidade, com prisões, fu
zilamentos e confinamentos, em campos de trabalhos força
dos, de milhares de escritores, dramaturgos, críticos de arte,
cientistas de todas as áreas do conhecimento e todos aqueles
sobre quem pairasse a mínima suspeita de simpatizar com
qualquer forma de pensamento que não rezasse contritamen
te o credo da obediência absoluta ao pensamento único que
então se consolidava. Tudo isso ocorria sob a égide de uma
nova ideologia, que começara a ser forjada na segunda me
tade dos anos 1920 e foi simbolicamente marcada pelo suicí
dio de Maiakóvski em 1932. O crítico e historiador da arte
Yuri Davídov comenta a nova etapa na evolução do pensa
mento social e as novas tendências ideológicas no campo das
artes e das ciências humanas nos anos 1930 soviéticos:
Paulo Bezerra
mentó sobre a arte... M as essa tendência recebeu,
por assim dizer, um reforço oficial e reconhecimen
to nas páginas da única revista de estética e teoria
literária em nosso país — a Literatúrnii Krítik [O
Crítico Literário) — [...] Para se manter à altura da
teoria, a estética dos anos 1930 deveria propor sua
solução para aquelas questões que permaneceram
‘em aberto’ ao término dos anos 1920. Visando a
tentar resolver essa questão, consolidou-se como
princípio, ao lado do caráter de classe da arte, um
novo princípio — o do caráter popular da arte a
par com o princípio da natureza ideológica da cons
ciência artística e o princípio de sua ‘veracidade
Tratava-se [...] de resolver, por um lado, o proble
ma da ‘correlação entre o caráter de classe ou so
cial — em termos mais amplos — com o gnosioló-
gico ou cognitivo, por outro [...] Em linhas gerais,
tratava-se de resolver a correlação ‘entre a lógica
do processo histórico e a lógica interior da criação
intelectual em todos os campos da consciência so
cial na ciência, na moral ou na arte.-” 1
Posfácio 155
neidade basicamente como uma contraposição de
diferentes formações não literárias (dialetos lato
senso , dialetos sociais, linguagem vulgar) à lingua
gem literária comum a todos. Esta era considera
da, antes de tudo, como algo único, que unia a to
dos. M ais tarde (1948-1950), esse enfoque foi ca
nonizado no livro de Stálin Marxismo e questões
de lingüística.”1
Posfácio 157
É verdade que a ideia de gênero aí desenvolvida está vin
culada ao heterodiscurso, chave para a interpretação de sua
teoria do discurso, e Bakhtin não especifica sua concepção de
gênero. Por essa razão, suas reflexões sobre gênero em O dis
curso no romance podem ser consideradas a antessala de “ Os
gêneros do discurso” .
Os G ÊN ER O S D O D ISC U R SO
O G ÊN ER O É U M E N U N C IA D O
P ostado 159
enunciado é uma unidade do processo de comunicação mar
cada pela alternância dos sujeitos do discurso. Desse modo,
“ o estudo do enunciado como unidade real da comunicação
discursiva" permite “ compreender f...] também a natureza
das unidades da língua (enquanto sistema)” .
Esses traços distintivos da concepção bakhtiniana de
gêneros do discurso se constituem num sistema de comuni
cação, no qual nossa fala transborda e se funde em formas
definidas de gêneros que nos são dad os praticamente da
mesma maneira como nos é dada nossa língua materna. Lo
go, como já nascemos num mundo povoado pelas palavras
(enunciados) do outro, nossos primeiros contatos com a lín
gua materna já se dão na forma de enunciados ou gêneros do
discurso, mesmo que ainda não tenhamos consciência desse
fato. N o processo de comunicação, tais enunciados se dire
cionam a outros falantes, são dotados de integridade e aca
bamento, contatam imediatamente coin a realidade do pró
prio falante e dos outros participantes da comunicação dis
cursiva, têm pleno valor semântico e forma de gênero que se
reproduzem em sua tipicidade. Demais, empregamos a lín
gua em formas de “ enunciados concretos únicos” , que têm
uma estrutura triádica constituída de um conteúdo temáti
co relativamente estável, de estilo e de um processo de com
posição. A essa estrutura triádica do enunciado como unida
de basilar da comunicação Bakhtin adiciona um elemento
crucial de toda a sua reflexão teórica sobre esse tema: os
enunciados se distinguem de outras unidades congêneres pe
la alternancia dos sujeitos do discurso , isto é, dos falantes.
O enunciado como unidade da comunicação discursiva.
Bakhtin dá ao processo de comunicação um novo formato
— o formato dialógico — , ao promover a participante ativo
do diálogo o antigo ouvinte passivo dos “ desenhos esque
máticos das lingüísticas gerais” , ao mostrar que “ toda com
preensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ati
vamente responsiva” , que toda compreensão (assim como to
Posfácio 161
jeto. Com o esses discursos vão de simples questões do dia a
dia a pontos de vista sobre o homem e o mundo, o passado,
o presente e o futuro, abrangem um vasto campo da comu
nicação cultural. Assim, “ o enunciado é um elo da cadeia da
comunicação discursiva, não pode ser separado dos elos pre
cedentes que o determinaram tanto de fora quanto de den
tro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias
d ialó gicas” . C o m o elo do processo de trocas culturais, o
enunciado une passado, presente e futuro, pois “ não está li
gado apenas aos elos precedentes, mas também aos elos sub
sequentes da comunicação discursiva” , formando, assim, um
continuum na cadeia histórica da cultura.
Bakhtin amplia e aprofunda ainda mais sua concepção
de enunciado como um continuum da comunicação cultural
e da história ao incluir o romance na categoria de enuncia
do, ou melhor, de enunciado estético que contata e dialoga
com outros enunciados congêneres em sua atualidade ou
através dos séculos, isto é, naquele vasto e indefinível lapso
temporal que ele chama de grande tempo. A obra romanes
ca é uma “ réplica" de um grande diálogo que se estende atra
vés dos séculos, “ está disposta para a resposta do outro (dos
outros), para a sua ativa compreensão responsiva” , que po
de se dar como “ influência educativa sobre os leitores, sobre
suas convicções, suas respostas críticas, como influência so
bre seguidores e continuadores; ela determina as posições res
ponsivas dos outros nas complexas condições de comunica
ção discursiva no vasto campo da cultura alimentado pela li
teratura. A obra é um elo na cadeia da comunicação discur
siva: como réplica do diálogo, está vinculada a outras obras-
-enunciados: com aquelas às quais responde, e com aquelas
que lhe respondem” . O que a separa dessas outras obras são
“ os limites absolutos da alternância dos sujeitos do discur
s o ” . Esses limites absolutos são a distância temporal entre o
autor de uma obra e seus interpretadores, qualificados por
Bakhtin como terceiro do diálogo ou supradestinatário , que
Posfácio 163
a meu ver, podemos resumir assim: 1) teoria do texto como
enunciado e diálogo entre sujeitos ou textologia ; 2) teoria da
compreensão ou interpretação; 3) teoria da autoria centrada
na díade autor primário-autor secundário, bem como uma
espécie de filosofia da composição da obra literária.
O texto se define como “ dado primário ou realidade, co
mo ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências hu
m anas” , fato que enfatiza a essência empírica da reflexão teó
rica de Bakhtin, segundo a qual toda teoria tem um objeto;
no caso da teoria literária, por exemplo, o objeto é o texto,
o texto povoado pelo homem social e suas relações culturais
tomadas no mais amplo sentido da palavra. M as a definição
de texto tem outras implicações de ordem comunicativa, pois
ele é algo que se desenvolve essencialmente “ na fronteira de
duas consciências” , o que muda totalmente a concepção de
texto até então dominante nas ciências humanas, porque o
concebe como produto de fronteira, como espaço da intera
ção dialógica entre os indivíduos vivos, sujeitos de sua cons
ciência e de sua da cultura. “ O espírito (o meu e o do outro)
não pode ser dado como coisa, mas apenas numa expressão
estruturada em signos, na realização em textos tanto para
mim quanto para o outro.” Trocando em miúdos, o espírito,
leia-se a cultura, não pode ser dado como coisa, mas como
produto da interação discursiva entre os indivíduos, isto é,
como produto de diálogo e interação cultural que os indiví
duos entabulam através de textos. O texto como diálogo com
outros textos é um tema tão consolidado no pensamento de
Bakhtin que, depois de escrever “ Os gêneros do discurso” ,
ele o retoma num pequeno ensaio do início dos anos 1940,
intitulado “ Para uma filosofia das ciências hum anas” , e pu
blicado em Estética da criação verbal com o título “ M etodo
logia das ciências hum anas” . Aí ele enfatiza que o texto “ só
tem vida contatando com outro texto (contexto)” , que esse
contato “ é um contato dialógico entre textos (enunciados)” .
E salienta um aspecto de sua reflexão que deve servir de aler-
Posfácio 165
COM PREEN SÃO-INTERPRETAÇÃO
Paulo Bezerra
tivo, responsivo, que o próprio texto vive da aspi
ração a mim — àquele a quem o autor se dirige
(imediatamente ou através dos séculos na tentativa
de entendê-lo (leia-se entender o supradestinatário
no tempo imediatamente posterior à escrita e pu
blicação da obra, ou pequeno tempo, e na distân
cia imensurável, ou no grande tempo). Contudo,
também é claro que, ao responder às minhas per
guntas (o próprio autor não se fez essas perguntas)
e ao me fazer suas perguntas, o autor do texto m u
da permanentemente (junto comigo), evolui, ou
melhor, evolui e aprofunda-se o seu texto. E este
é um fenômeno inevitável da compreensão como
inter compreensão.'"'
Posfácio 167
aprofunda-se” , o que sintetiza a concepção bakhtiniana de
texto como discurso aberto a novas interpretações dos supra-
destinatários no grande tempo , aberto a novos sentidos pro
porcionados por novas conquistas das ciencias humanas.
Bakhtin parte da categoria narrativo-composicional de
imagem de autor lançada por Viktor Vinogradov, com quem
ele polemiza ao longo dos dois ensaios que compõem o pre
sente livro. A princípio discorda dela por considerar a ima
gem de autor um contradicho in adjecto , mas acaba incor
porando a ideia, se bem que na forma de uma filosofia da
composição da obra literária. Ele desenvolve uma engenho
sa teoria da autoria baseada na díade autor primário-autor
secundário. Autor primário é o autor real, a pessoa biogra
fada, que está fora da obra e Bakhtin chama de natureza cria
dora. Autor secundário é um autor imánente à estrutura da
obra, é natureza criada mas que também cria de dentro des
sa estrutura. Essa categoria composicional de Bakhtin é um
elemento importantíssimo para a análise de “ narradores” de
M achado de Assis como Aires e Brás Cubas, por exemplo,
que vejo como autores secundários. Exemplos semelhantes
podem ser encontrados em outros autores brasileiros como
Graciliano Ram os e Clarice Lispector.
Posfácio 169
M. Ríklin resume assim o perfil de Bakhtin como pen
sador:
i 70 Paulo Bezerra
So bre o au to r
Sobre o tradutor
F.S 1L LIVRO r o i COM POSTO em S a b o n .
PI iA liK A C llE K Sc M a i I A , COM C 'T P F
IM PRFSSÂO DA B a R IIR A C tR Á U C .A t F d 1-
TORA F M PAPEL PÓLEN SO FT 8 o G/M * DA
C ia . S u z a n o de P a p e l e C e lu lo s e p a r a
a E d i t o r a 3 4 . em ( u l i i o d e í o i ó .
dade sígnica ou dim ensão sem iótica, que o
constitui e o faz participante de um siste
m a; e a singularidade que Ihe é conferida a
partir de sua participação na cadeia da co
m unicação discursiva da vida em socieda
de. Essa com binatoria constitutiva de ele
mentos dados (sistema) e elementos criados
(linguagem em uso) possibilita a um texto
ser reconhecido como pertencente a um sis
tema (lingüístico, pictórico, musical etc.), e,
ao mesmo tempo, com o portador de valo
res, de posições que garantem a produção
de sentidos, sempre em confronto com ou
tras posições e valores presentes numa so
ciedade, numa cultura.
Os dois inéditos, por sua vez, tem um
sabor especial, ao evocar uma das peças-
-chave da teoria bakhtiniana, que é o diá
logo, concebido com o constitutivo da lin
guagem humana e não apenas com o estru
tura de conversa. Escritos antes da versão
final de “ Os gêneros do discu rso” , “ D iá
logo I” (1950) e “ Diálogo II” (1952), pu
blicados no tom o 5 das O bras reunidas de
Bakhtin, nos surpreendem, pois neles, se
gundo Paulo Bezerra, “ atribui-se à própria
língua uma natureza d ialógica” .
Com o posfácio ao volume, o tradutor
ainda acrescenta um substancioso ensaio,
sugestivam ente intitulado “ N o limiar de
várias ciências” , no qual caracteriza a coe
rência dos quatro textos, relacionandos-o
com outros trabalhos do autor, discutindo
a importância desse conjunto e auxiliando,
nesse momento dos estudos bakhtinianos,
a compreensão dos com plexos meandros de
“ Os gêneros do d iscu rso” , trabalho nem
sempre pensado em suas reais especificida
des, em consonância com outros trabalhos
de Mikhail Bakhtin.
Beth Brait
Organizado e rraduzido por Paulo Bezerra, estudioso da
obra de M ikhail Bakhtin (1895-1975), Os gêneros do discurso
contém textos fundam entais para a compreensão da ab ord a
gem dialógica bakhtiniana quanto ao texto e à linguagem viva,
em traduções revistas e cotejadas com a últim a edição das
Obras reunidas do autor, e suplem entadas com as esclarecedo
ras notas de Serguei Botcharov, organizador da edição russa.
Escritos entre os anos 1950 e 60, “ Os gêneros do discur
so ” e “ O texto na lingüística, na filologia e em outras ciências
hum anas” são ensaios canônicos de Bakhtin, sobre os quais é
lançada nova luz com a publicação, neste volume, de outros
dois textos inéditos intitulados “ D iálogos” , que não apenas
serviram de base p ara a escrita de “ O s gêneros do discurso” ,
m as que tam bém esboçam ideias que m iram m uito além, e
onde, com o afirma o tradutor em seu posfácio, “ atribui-se à
própria língua uma natureza dialógica” .
e d ito r a H 3 4