1995 - o Doce e Tortuoso Caminho Da Sensibilidade

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ÂNGELA MARIA BESSA LINHARES

o TORTUOSO E DOCE CAMINHO DA SENSIBILIDADE

FORTALEZA - CEARÁ

1995
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

BH/UFC

o TORTUOSO E DOCE CAMINHO DA SENSIBILIDADE

Ângela Maria Bessa Linhares

Dissertação apresentada ao Curso de


Mestrado em Educação como requisito
parcial, para obtenção do grau de
.
Mestre em Educação .

Fortaleza - 1995
BH/UFC
o TORTUOSO E DOCE CAMINHO DA SENSIBILIDADE

Ângela Maria Bessa Linhares

Aprovada em _----C/_----C/ __

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes


PHD (presidente da Banca)

Prof Maria Nobre Damasceno


PHD

Prof. Jacquies Therrien


PHD

Prof. João Francisco Duarte Júnior


Mestre
SUMÁRIO

Página
RESUMO: .

ABSTRACT: .

INTRODUÇÃO:.................................................................................... 02

QUADRO DE MATÉRIAS:.................................................................. 04

CAPÍTULO I:........................................................................................ 09

CAPÍTULO 11:....................................................................................... 18

CAPÍTULO III:...................................................................................... 33

CAPÍTULO IV:...................................................................................... 59

CONCLUSÃO:...................................................................................... 214

BIBLIOGRAFIA:................................................................................... 240
RESUl\1o

A critica da razão na modemidade, feita em níveis radicais, alcança mostrar


como se vincula esse modo instrumental de se tomar a razão, conyv lnodo de se
pensar ciência hoje. Partindo do referencial teórico da teoria critica, com os
pensadores da chamada Escola de Frankfurt, tento compreender como, na Escola,
essa hipertrofia da razão instrumental se dá às expensas do silenciamento de outras
dimensões humanas.
Apartando o sujeito epistêrnico do sujeito que deseja, hipertrofiamos a
dimensão cognitiva excluindo dela a desejante - que inclui a ética, a estética, a
afetividade, o corpo - o lugar da arte na Escola aprofundando as relações entre a
esfera da produção e a formação da subjetividade, vimos que, no estágio do
capitalismo tardio, a função precipua da Escola é preparar para o trabalho e, como
para as classes populares o trabalho é sujeição, na sua preparação mutila-se
expansões desse sujeito e treina-se para o sacrifício.
Nesse estudo etnográfico, que utilizou rituais e representações sobre o
espaço, o tempo e- as cenas onde se diz estar a arte da Escola. Fui buscando as
relações entre o modo de se tomar arte na Escola e os vestígios de dimensões
silenciadas. Nesse labirinto, o 110 de Ariadne: a sensibilidade. Pasolini, Hegel,
Adorno, Benjamin e Guattarri - interlocutores nesta discussão que mostra. a
potência. da arte como forma de conhecer e situa a tarefa crítica da cultura e do
fazer arte como vitais para a Escola.
BHJUF
RÉSUMÉ

La critique de Ia raison, dans le monde moderne, développée de façon


radicale, prétend montrer Ia relation entre le mode instrumental de concevoir
Ia raison et le mode de concevoir Ia science, aujourd'hui. En partant du
référentiel théorique de Ia théorie critique, avec l'appui des penseurs de l'École
de Frankfurt, l' étude essaye de comprendre comment dans l' école cette
hypertrophie de Ia raison instrumentale se fait au coüt de I'omission de
d'autres dimensions humaines.
En séparant le sujet epistémique du sujet qui désire, on hypertrophie Ia
dimension cognitive excluan1 d'elle Ia dimension désirante qui inclut l'éthique,
I'esthétique, l'affectivité, le corps, enfin, Ia place de l'art à l'école. Un regard
plus profond sur les relations entre Ia sphêre de Ia production et Ia formation
de Ia subjectivité, il apparait que'au stage du capitalisme tardif, Ia fonction
principale de I'école est Ia préparation pour le travail, mais étant donné que
pour les classes populaires le travail est assujetissement, cette préparation se
fait en mutilant le développement de l'acteur social, le préparant au sacrifice.
L'étude, comme approche ethnographique à l'école, a utilisé les rituels
et les représentations sociales sur l' espace, le temps et les cênes ou I' on dit se
développer I'art à I' école. La recherche a observé les rclations entre le mode
d' approche de I' art à I'école et les vestiges de dimensions omises. Dans ce
labyrinthe, le fi! d' Ariane: Ia sensibilité. Pasolini, Hegel, Adorno, Benjamin, et
Guattari son1 les interlocuteurs. L' étude révêle le potenciel de I' art comme
forme de connaitre et situe Ia tâche critique de Ia culture et des activités
artistiques comme vitales pour I' école,
2

BH/UF
INTRODUÇÃO

Situando a tarefa crítica da cultura e da obra de arte não mais


como epifenômenos mas desvendando as relações entre as esfera da produção e
a formação da consciência, a teoria crítica, com os pensadores da chamada
Escola de Frankfurt, alcançou fazer a crítica da razão, na modernidade, em
níveis radicais. Chegou a mostrar como se vincula esse modo de se tomar a
razão com o modo instrumental de se fazer ciência hoje. Partindo desse
referencial teórico, tentamos compreender como, na Escola, essa hipertrofia da
razão instnunental se dá às expensas do silenciamento de outras dimensões
humanas. Como se, ao entrar na Escola, o sujeito epistêmico pudesse se despir
de ser também o sujeito que deseja. A dimensão cognitiva, hipertrofiada na
Escola, também aparta dela a dimensão desejante - que inclui a ética, a estética,
a afetividade, o corpo: o lugar da arte na Escola. Ao focalizar, na Escola, os
contornos e as cores específicas desse modo de ser da racionalidade fomos
auscultando vestígios de dimensões humanas mutiladas. Nesse labirinto,
buscamos retomar o fio de Ariadne: a sensibilidade.

Do ponto de vista metodológico, procedeu-se ao estudo de


cinco rituais e das representações de pais, alunos e educadores sobre o lugar
onde a arte da Escola está.

o estudo dos rituais mostra que eles servem tanto de moldura


para o instituído evidenciar suas lacunas de sentido como para o instituinte
explicitar sua corporeidade nascente. A partir dessa busca e escuta de "onde a
arte da Escola está", feita através do estudo de rituais e representações de pais,
alunos e educadores de três escolas públicas de Fortaleza, tentei percorrer o
caminho tortuoso e doce da sensibilidade - essa região não de todo colonizada
pela razão instrumental.
3
BH/UFC
Levantando-se o espaço, o tempo e as cenas onde se fala e
mostra onde está a arte da Escola fui compreendendo que relações se tecem
entre um determinado modo de se tomar a arte e os vestígios de dimensões
silenciadas no ser que aí se educa. Fui desvendando homologias entre este
estudo micro-antropológico e as referências de cultura e classe social, por se ter
como premissa que as questões da subjetividade não flutuam livremente na
estrutura de produção.

Desse modo, vi que, se a função precípua da Escola, no estágio


do capitalismo tardio é a preparação para o mundo do trabalho e como, para as
classes populares, o trabalho é sacrifício, a preparação para o mundo do
trabalho que se faz na Escola antecipa o treinamento para a sujeição.
Hipertrofia o "h orno economicus" em detrimento de mTI desenvolvimento mais
integral do ser que aprende. Consequentemente, exclui-se a arte com a
produção e leitura de sentidos que ela chama a si. Aparta-se a razão da
dimensão desejante. Nega-se a polivalência do signo e sua potência como
conteúdo vivo do diálogo entre pares e textos.
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QUADRO DE MATÉRIAS

CAPÍTULO I

DA BIOGRAFIA PESSOAL À CONSTRUÇÃO DE OBJETOS: A


BUSCA DE SENTIDOS

Assim é que, o I Capítulo desta dissertação mostra a inquietação


com a minha própria busca de sentidos na construção do objeto de estudo que
tomo neste trabalho. Esta inquietação envolve o sinuoso e, às vezes, conflitante
caminho da arte e da educação na minha vida. E desde logo, anuncio: ora a
arte-educadora com suas perplexidades e anuviadas perguntas, ora a artista, em
seus deslumbramentos e margens colocariam seu olhar mais frontalmente em
algumas entretelas deste texto.

CAPÍTULO 11

DA EXPLICITAÇÃO DO PROBLEMA:

As presenças e as ausências (as sedes e fomes) da arte na


Escola apontariam para a necessidade de se trabalhar dimensões esquecidas
que compõem os fios do torto e doce caminho da sensibilidade? Neste
movimento de compreensão do problema, que pedrinhas podemos ir colocando
para, como João e Maria do conto popular, rastreannos o caminho?

Após um breve passeio onde mostro que aspectos abordo ao


buscar a presença (e detectar as ausências) da arte na Escola, menciono o
porquê da escolha da metodologia utilizada: o estudo dos rituais e as
representações.
5

Detenho-me em ir delineando a complexidade do problema que


tento compreender e, como uma paleta que vai se diversificando, através de
perguntas vou formando uma moldura primeira onde o tema vai aparecendo em
seus matizes.

CAPÍTULO 111

DA METODOLOGIA UTILIZADA

Situo o estudo dos rituais e das representações de pais, alunos e


educadores de três escolas públicas de Fortaleza sobre "o lugar onde está a arte
da escola" na esteira das abordagens antropológicas em educação. Seguindo a
idéia de Tumer de ritual como processo, relaciono a importância e a pertinência
dessa abordagem para o problema que tento compreender.

Elejo, então, cenas comuns visíveis em que os educadores e


alunos se dizem e vêem fazendo arte na Escola.

Depois, mostro como vou vincular o estudo destas


representações sobre o lugar da arte na Escola às cenas visíveis observadas.
Proponho ser oportuna a conexão das representações e dos rituais analisados,
para o aprofundamento eproblema observado.

Sublinho também que o ponto de vista escolhido releva o papel


e a fala do protagonista principal: o aluno, outro elemento que o faz alinhar-se
na fileira dos estudos etnográficos da Escola.

Analiso ainda o campo dos sentidos: os viezes ideológicos, a


errância dos significados, o modo de se tomar a palavra e o silêncio, neste
6

sistema contraditório, confluência da ideologia e da história, da incompletude


do paradigma da linguagem verbal e da polissemia do Sif,'110.

Discuto ainda questões de Validade e o lugar do observador


nesta pesquisa. Por considerar a pesquisa nas ciências humanas mais uma
questão de linhas de questionamento que de técnicas e definições quantitativas,
escolho uma abordagem qualitativa e uma posição epistemológica que não se
isenta da análise filosófica.

CAPÍTULO IV

ESTUDO DE CINCO RITUAIS ONDE SE DIZ QUE ESTÁ A ARTE DA


ESCOLA OU CINCO FUGAS PARA UMA DIMENSÃO DESEJANTE.

A partir do estudo de três rituais onde se diz que está a arte da


Escola, cheguei aos dois lugares (rituais) que extrapolaram seus muros: o fundo
de quintal e a rua. Associei os três rituais da Escola (onde se diz que a arte
está) a três momentos na história da arte-educação no Brasil.

Também tento fazer uma espécie de escritura semiótica do


nosso tempo, a partir desse estudo das cenas e ritos do cotidiano escolar. Duas
I

metáforas balizam esse olhar: o momento do negativo, com suas alegorias de


dor que a história acumula e a compulsão para se caminhar para o imaginário
do futuro.

Incluí neste Capítulo uma reflexão teórica mais aprofundada


sobre o processo de reificação da consciência no capitalismo, que ampara-se
nos estudos estéticos de Hegel e Adomo.
7

Este subcapítulo intitula-se:

Elementos para uma concepção mais totalizadora da Razão


ou de como o Sentimento entra na história.

Na análise dos processos rituais (Ritual I, 11, 111, IV e V), vê-


se as fugas para onde vai se abrigar uma dimensão desejante encurralada.
Assim é que ao longo desta análise dos processosrituais, levanto os seguintes
fios (tênues?) por onde escorre o tortuoso e doce caminho da sensibilidade:

IV.l - A arte como crítica social ou como um modo de se


trabalhar a dimensão negativa da razão, na acepção de Adorno.

IV.2 - A dimensão utópica e o reino das possibilidades em seu


colo de xamã: a arte.

IV.3 - A arte enquanto especificidade do trabalho humano.

IVA - O sentimento, na Arte, como qualidade experienciada.

IV. 5 - Da idéia de omnilateralidade e de como a arte pode


trabalhar com a dimensão do fazer, do sentir e do pensar.

IV.6 - A arte e a cultura na Escola: a importância do tratamento


político e estético dos símbolos e gestos da cultura, em Educação.

IV.7 - Arte como crítica da cultura capitalística ou como crítica


de um certo modo de formação da subjetividade.
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CONCLUSÃO

Em busca de uma nova concepção de sujeito nas práticas educativas


na Escola ou para que Auschwitz não se repita.
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CAPÍTULO I

DA BIOGRAFIA PESSOAL À CONSTRUÇÃO DE OBJETOS: A


BUSCA DE SENTIDOS

Muito se tem escrito sobre a relação do sujeito cognoscente


com o objeto que quer conhecer e, também, sobre o processo de
conhecimento. Polarizações foram feitas, ao longo da história da humanidade,
ora enfatizando o pólo do objeto, ora o pólo do sujeito.

As principais correntes que marcaram, na Modemidade, o modo


de se pensar o conhecimento resvalaram de um pólo a outro.

Quando se passou a compreender o mundo em sua existência


materializada, a Razão passou a assumir seu caráter pleno de manipulação e
dominação da Natureza. O Positivismo ou o Empirismo é, das correntes
filosóficas da Modernidade, a que sintetiza este primado do Objeto: o dado da
experiência é a dimensão fundante do Real, este real é fático e, assim, Ciência
fica reduzida a um conhecimento instrumental.

No outro pólo, embora a idéia de fundo seja a de que o Real é


dado ao sujeito, em sua imediaticidade, o Racionalismo vai sintetizar o primado
do Sujeito. Entre um e outro ângulo de visão supõe-se que o Real se deixa
conhecer sem mediações. O modo de conhecer se pensa, nesses pólos, livre do
contexto sócio-histórico.

O neo-empirismo, apesar de trazer à discussão metodológica a


importância da mediação linguística, continua a ter uma visão fática da
realidade, sempre fugindo da prática histórica.
10

Tomando-se da Dialética a idéia processual do conhecimento


que quer superar o imediato, já que o imediato não é pensado, temos como
norte que a construção do objeto é fruto de um trabalho teórico-prático. Na
verdade, um trabalho que parte de um concreto percebido que, ao se elevar
continuamente, passa através de mediações ao concreto pensado: o objeto de
estudo visto numa dimensão totalizante, síntese de múltiplas determinações. O
pensar, nessa perspectiva, é tido como uma mediação da ação transformadora
no mundo.

É nesse caminho mediado que um sujeito tenta construir seu


objeto, incluindo-o em meio a um conjunto relacional que lhe confere
propriedades específicas. Os objetos construídos situam-se em determinados
pontos históricos e num espaço de relações objetivas e subjetivas: buscar essa
rede relacional, na acepção de Bourdieu, seria o objeto desse percurso.

Como situar-me fora desse percurso de construção de


significações e sentidos? O processo de conhecer é um processo de elaboração
de sentido. Esse processo inscreve-se e está imerso na cultura dos indivíduos.
Cultura aí, tem a concepção gramsciana de que "todos são já cultos"
(GRAMSCI, Antônio. Scritti Giovanili. Turim, Einaudi, 1958 apud
MANACORDA, 1990:23). É organização subjetiva do próprio eu interno e,
também, objetiva, externa, dos instnunentos de sua difusão e configuração no

corpo social. A imbricação entre as relações sociais e o processo educativo,
entre a prática social dos sujeitos e sua expressão na dialética entre pensamento
e linguagem são modos de ser da cultura.

A construção de sentido situa-se, portanto, dentro do quadro


cultural, cuja dimensão histórica é vital, "já que o homem é sobretudo espírito,
isto é, criação histórica e não natureza". (Ibidem p.22).
11

Vendo cultura como um modelo de direção do agregado social,


como diz Manacorda (ibidem, p38), ao comentar o pensamento gramsciano,
deixamos a visão da cultura apenas como herança dada às massas e passamos a
vê-Ia como organização e ação do pensamento do homem, indivíduo e
coletividade.
Quem elabora estes sentidos, no processo de conhecer, é LUn
sujeito histórico que está a crescer e desenvolver-se em várias dimensões. Esse
"homem completo", na acepção de Gramsci, é alguém cuja dimensão subjetiva
está em interação com sua prática social e política, uma alimentando a outra,
dialeticamente.

A ação educativa, portanto, envolve uma dimensão subjetiva


inequívoca que, ao longo da história da educação, ressentiu-se de
considerações que lhes extirpavam seus componentes históricos e culturais. A
ideologia dos dons, o inatismo e uma vertente espontaneísta advinda do
pensamento rousseauniano consideraram os potenciais dos sujeitos sem relevar
o aspecto formador do meio ambiente.

Tanto num tipo de visão que nega como que afirma a formação
social da mente, a ação educativa costuma dar prevalência quase que absoluta a
aspectos cognitivos, como se eles estivessem imunes à dimensão do sentir
humano.

A razão instrmnental e técnica erigida como única forma


legítima de conhecimento, alijou as outras dimensões humanas do processo
educativo encetado pelas agências educacionais fundamentais, principalmente a
Escola.

A elaboração e expressão de significados ficam consideradas,


nessas agências, apenas como um construto intelectual, do qual se retirou a
dimensão sócio-emocional. O significado "possui uma dimensão sentida
12

(vivida) e simbolizada (refletida) - é o resultado da interação entre a


experiência e os símbolos", (DUARTE JÚNIOR, 1981 :32).

É esse processo de elaboração e expressão de significados,


numa agência educacional específica chamada Escola, que foi esquecido nas
abordagens radicais sobre Educação.

A meu ver, esse processo que envolve o desvelamento dos


significados e sentidos postos pela cultura é, também, o processo de recriação,
reelaboração ou gestação do Novo (dos novos significados e sentidos). Por
envolver o trabalho com a elaboração e expressão de sentidos, nas várias
amplitudes que são as linguagens artísticas expressivas do ser, estaremos
lançando subsídios para uma proposta de Arte-Educação.

Antes vista como apenas um veículo de comunicação do sentido


já dado, vamos ver o trabalho com as várias formas expressivas como o "colo"
onde se gesta o novo sentido. Assim como o próprio processo de conhecer é
um processo de elaboração de sentidos, em educação o trabalho com as várias
formas de expressão do ser, nascedouro da Arte, é um modo de não aceitarmos
a razão instrumental como a única válida dimensão humana.

Também não se quer colocar a discussão sobre a Arte e sobre


I

as dimensões humanas com as quais ela trabalha em um fosso de


irracionalismo, negando a essas esferas seu construto de racionalidade. A
compreensão destas questões que envolvem a relação entre a razão
instrumental, as outras dimensões da razão (sobretudo a dimensão negativa da
razão, na acepção de Adorno, que vamos cotejar ao longo deste texto) e as
outras formas de conhecer e exprimir que a dimensão estética chama a si serão
baliza neste "détour" que desenha o torto e doce caminho da sensibilidade.
13

Situando esse objeto de estudo como mma (fonte) de um


território marítimo que é a biografia pessoal, algwnas palavras deveriam ser
ditas sobre essa água turva.

Na minha história como trabalhadora, ora da Arte, ora da


educação, ora esses dois veios se misturavam em um mesmo manancial de
realidade: as populações exploradas, nas várias e contraditórias faces da
realidade educacional. O trabalho com a Educação Popular e especificamente
com a ação alfabetizadora, o terreno mais constante para onde essas águas
confluíram, alimentava-se dessa fonte ininterrupta que se fazia no terreno da
Arte e da Educação Popular. A figura do "moto contínuo" poderia dar conta da
relação dialética entre essas duas esferas de atuação - a Arte e a Educação -
que se confrontavam cotidianamente.

Como transformar os canais proficuos dessas esferas de


trabalho que se alimentam mutuamente num mesmo rio, ainda que com
afluentes diversos?

Como distanciar-se o suficiente para não nos afogarmos na


mesclagem entre as identidades do vivido e do concebido?

.
.Traduzir uma parte na outra parte, como diria Ferre ira Gullar, é
uma questão de amor e arte.

O traçado dessa tradução, todavia, nunca foi claro nem fácil.


Decifrar o caminho da sensibilidade no processo do conhecimento, sem
descurar da razão ... Buscar alguma trôpega luz para alumiar esses pontos (de
fuga?) é wn tanto pôr à mostra a costura da roupa que se vestia e tentar ver, no
seu rastro, o delinear-se de um corpo inteiro.
14

Tornar explícitas algumas questões que haviam sido (e são)


vitais na minha vida: esse o caminho.

Essa teia tecia-se junto à busca de decifrações em experiências


com Arte e Educação, como um processo de construção de sentidos.
Como esquadrinhar, vasculhar, na materialidade da ação
educativa que envolve escolarização, o oficio mais constante, esses sinais da
fonte (submersa) da sensibilidade? Como raspar o nanquim negro e deixar ver o
desenho que ali jaz oculto? Como recortar a reflexão teórica que fazemos hoje
se, na verdade, ela é apenas LUTI momento de uma história de trabalho?

Grupos de instituições totais, agrupamentos feministas,


populações confinadas (hansenianos, presidiários, "menores" infratores),
trabalhadores da mais vária arte e ciência foram sujeitos ativos nessa história
em que também eu era artífice e argila. Dificil, portanto, fazer a ruptura
necessária nesse processo de, apaixonadamente, viver e trabalhar com Arte e
Educação para recortar, nesse mar, o trecho do território cognoscível.

Por isso, é necessário reiterar, optei por tentar compreender as


demandas (o que eu chamo as sedes, as fomes) e as representações que os
educadores, os pais e os alunos de três escolas públicas de Fortaleza - Ceará
expressam com relação ao que a Arte possa trazer à Escola. Ao lado da análise

dessas representações, trago comigo interlocutores e cenas de outras situações
vividas e refletidas ao longo da minha trajetória pessoal e que, l1lUTI ponto ou
noutro desta dissertação, dialogarão de modo mais explícito neste texto.

o trabalho com as representações envolverá como contraponto


às falas, o estudo de cenas e de rituais na Escola e, também, em um outro
trabalho que faço, em Arte-Educação, e que não inclui escolarização: o do "Um
Canto em Cada Canto". Penso que, como se faz às vezes "papos de
in trumentos sonoros , poderíamos pôr a dialogar algumas situações pinçadas
15

na Escola com outras na situação de educação não formal do "Um Canto em


Cada Canto", que envolve arte-educação.

o Projeto "Um Canto em Cada Canto" é a história de um grupo


de cnanças de um bairro chamado Messejana (cento e quarenta e cinco
crianças), que faziam parte de um coral infantil, regido por Ana Maria Militão
Porto (Nininha). Os pequenos calças curtas trasnforrnaram-se em rapazes, as
meninas se fizeram mulher e cada um deles comprou a idéia da regente de
espalhar essa chama da música, esse gosto de cantar e fazer arte, dessa forma
coletiva que tem como seu desenho primeiro o Canto Coral. Com cento e
quarenta e cinco crianças e adolescentes que refletem sobre suas realidades e
sonhos fazendo arte, você faz o quê? Um acordo com tempo, para que esse
sonho se faça história? A esse amor coletivo se deu um nome (Um Canto em
Cada Canto) e estruturou-se um cotidiano de trabalho (para repartir esse saber
que é a música) e Estudo (para continuar crescendo e aprendendo). Seguiu-se,
então, fazendo esse sonho virar came dos dias, realidade pura, capaz de
alimentar esses adolescentes nesse gosto ..

A música como linguagem artística central, nucleadora do


processo de agrupamento onde se insere a ação educativa, utiliza-se
principalmente do Canto Coral. Os desenhos e formatos dessa ação em arte-
educação, que , tem como fio condutor a música e, especialmente, o Canto
Coral, privilegiam uma abordagem que considera o ser singular que cresce e se
desenvolve em várias dimensões sem, todavia, esquecer-se do coletivo e sua
educação.

Eu disse que a música é a linguagem central porque a idéia que


temos é que devemos trabalhar outras formas expressivas: as artes dramáticas e
as artes plásticas, sobretudo, neste processo que, na verdade, é de
desen olvimento da sensibilidade. Chamada a dirigir e escrever um musical,
que intitulei 'Míria ou Lá se vem a lua, quem te disse que ela é tua", com o
16

corpo dos monitores regentes e apoios de bairros (cerca de quarenta pessoas),


desde esse tempo (há cerca de 2 anos e meio) trabalho como assessora
pedagógica deste antigo projeto que, hoje, é uma associação, que dirijo, sem
fins lucrativos e que conta com 26 (vinte e seis) corais infantis em Fortaleza e
cerca de 30 (trinta) corais no interior do Estado (em todas as sete regiões do
Estado). Nossa ação volta-se exclusivamente para crianças das classes
populares. Em Fortaleza, como um rosário de contas hoje se conta os bairros
onde se tem canto coral: Jangurussu (onde os meninos que apanham lixo, à
noite, com velinhas acesas nas mãos, de dia tocam flauta e cantam nesse
canto), Pirambu (onde filhos de desempregados, aprendizes dos improvisos da
vida nas "gangues" ou bandos de rua, compõem nosso corais); Santa Maria,
São Bemardo, Conjunto Palmeiras e favela São Miguel (a velha Messejana e
as vilas de pobreza que a abraçam); os grandes Conjunto Ceará e Prefeito José
Walter, Castelo Encantado e Serviluz (onde os filhos e filhas de pescadores e
dos morros da beira da praia encorpam esse canto), Tancredo Neves (onde as
crianças moram em casas de papelão que se transmudam pouco a pouco em
tijolos), Dias Macedo I e II (um verdadeiro arquipélago de invasões que se
irmanam, aflitas), Parque Potira (as crianças pobres e simples de uma quase
cidade do interior: a velha Caucaia, e São Vicente de Paula (onde as crianças
desse canto moram nas favelas do trilho que circundam a Aldeota elegante e
rica, com seus shoppings e suas luzes) ...

Em 1994 incluímos novos Cantos (como chamamos a cada


núcleo novo que envolve pelo menos um coral ou algum trabalho expressivo
em música, a linguagem central, como dissemos) em Orfanatos: Eunice Weaver
filhos de hansenianos), Nosso Lar, Cristo Rei ... A expansão para o interior
também se fez este ano.

O que é mister observar é a riqueza do contraponto entre


periências tão diversas, cada uma com seus limites (extensos, "duros" de
erem transpo tos aceitos refletidos) e suas descobertas, certamente
17

importando a mim considerá-Ias, de mn modo mais consciente nesta entretela


do texto desta dissertação.
18

CAPÍTULO 11

DA EXPLICITAÇÃO DO PROBLEMA:

- Seria a Arte uma das formas de se buscar desenvolver na


Escola os fios do tortuoso.sinuoso e doce caminho da sensibilidade? Como?

A abordagem etnográfica, que se fará através do estudo das


representações e dos rituais, serve sobremaneira aos objetivos deste trabalho,
por dar conta da dialeticidade necessária para integrar aspectos que parecem
acessórios, tangenciais, marginais ou contingentes, com outros mais estruturais.

Assim como eu própria busco costurar sentidos nesse meu


(tortuoso) percurso, neste trabalho intento recortar no objeto também a esfera
dos sentidos e significados que compõem o caminho da sensibilidade. É que o
que se quer fazer ressaltar é a necessidade de um tratamento, mediante a Arte,
da dimensão simbólica humana.

A expressão como vínculo inexpugnável da necessidade que o


homem tem de simboIização não pode ser aIijada de LUnprocesso educacional.
Essa expressão, se é solicitada apenas no nível da expressão em leitura-escrita,
a ser adquirida, é desconfinnadora do referencial cultural do estudante, que se
I

expande nas várias direções expressivas. A expressão, reiteramos, não é apenas


um refletir a realidade - é um construí-Ia permanentemente na medida em que
vemos que a linguagem não é um veículo inodoro, insípido, transparente que,
como uma substância invisível que não deixa marcas, toma a forma do
recipiente (conteúdo, sentido) que a contém. Pelo contrário, se linguagem é
constituidor e constituinte e, no ato de seu pronunciar-se, ela toca e refaz novos
campos semânticos, a expressão é re-elaboração da realidade.
19

De acordo com a escola de pensamento do "sistema" simbólico


(VICTOR TURNER, CLIFFORD GEERTZ, SHERRY ORTNER, DAVID
SCHNEIDER e outros), tomarei a cultura também na acepção de sistema de
símbolos. Considerar a dimensão simbólica no processo de Educação (e em
todo o percurso educativo escolar) é desvelar as minúcias e os sentidos de que
estão repletos os rituais (na acepção de Victor Turner e McLaren) do cotidiano.
Os símbolos possuem um poder de representação ou de elaboração da ação:
têm poder de estruturar a imaginação e de proclamar ou emoldurar a desordem,
assim como a ordem (ORTNER; BAUM; BAB COK apud MCLAREN, Peter.
1992). As dimensões simbólicas do currículo oculto, se expressas, serão um
modo de deixar pronunciar-se, reconhecer-se, desenvolver-se esse sujeito
(educando) partindo-se do próprio "nicho" cultural em que está imerso.
Trabalhar-se a linguagem popular verbal ou "usar-se palavras do vocabulário
do educando" num processo alfabetizador, por exemplo, é reduzir a
complexidade simbólica do homem a essa pequena fresta.

Trabalhar-se a dimensão simbólica, nesse constante montar e re-


montar os símbolos e ritos do nosso cotidiano, é desnaturalizar a injustiça. É
desenfocar o que é visto como "natural", de sua moldura de permanência,
aceitabilidade e naturalidade. E o momento da Educação na Escola, por ocorrer
atribuindo prioridade à mediação de um novo código, o da leitura-escrita, é um
momento privilegiado para considerarmos o trabalho com o simbólico, haja
I

vista que esta nova aprendizagem pode se dar, como se dizia na cultura da
cana-de-açucar no Nordeste, assassinando as outras culturas, plantações e
terrenos; essa nova cultura sufocava o que nascesse perto.

Seguindo a esteira desses fios, esquadrinhamos o edificio


pedagógico escolar: suas falas, cenas e ritos cotidianos, impregnados de visões,
usos, representações sobre Arte - e a falta dela - para vermos como estas
presenças - e ausências - estão tocando (ou sonegando) o caminho da
en ibilidade.
20

A dimensão utópica e seu colo vivificador: a Arte

A razão instrumental, como a vêem os frankfurtianos, é


dominante hoje, no império do positivismo e do experimentalismo em Ciências.
Outras formas de conhecimento como a Arte e a Religião não são consideradas,
e apenas a Ciência é vista como única forma legítima de conhecer. A dimensão
negativa da razão - o que o real não é, o que o real poderia ter sido ou poderia
vir a ser, como diz Adorno (ADORNO e HORKHEIMER, 1985) não é
considerada. A ética, a filosofia, a moral, a dimensão utópica capitularam e
sucumbem ao peso da razão devoradora da lógica do capital e do positivismo
nas Ciências. Nesse momento em que se vê configurada essa crise de
paradigmas, a dimensão utópica encontra seu reduto na Arte. O trabalho com o
"mundo simbolizado", inextricavelmente ligado ao "mundo vivido" e ao
"mundo refletido", comporta o sonho, as projeções, as fantasias que negam,
transfiguram, deformam, transcendem, superam o que se presentifica como real
e como hoje. É a utopia, esse fio de Ariadne no labirinto do mundo, segundo
Triandópolis (1991), que atualiza os ideais de humanidade e humanização
estranhados pela ordem capitalista.

A Arte parece conter em si elementos de representações utópicas que atuam


como núcleos vivos de bom senso e de criticidade. O trabalho com a utopia
é, necessariamente, um campo tenso, onde se trabalha o que se vê do real do

modo como ele se apresenta hoje. Isso quer
dizer que quando se mira a fantasia, o desejo, o sonho, também se está criando
um campo de tensão entre o não-ser-ainda dessa "realidade" e o que temos
hoje. Está-se lidando com o progressivo e o regressivo, como pares mínimos,
indissoluvelmente ligados e que se mostram na tessitura do que é cultural e do
que é estrutura. Na verdade, a relação cultura e estrutura teve vícios de
tratamento que, em que pese a importância das análises estruturalistas,
resultaram em urna certa mecanicidade e não dialeticidade na análise dessa
relação. Como diz illis (1991): "Os processos culturais de reprodução
21

passam por um momento de penetração real e solidariedade radical potencial.


Com a mesma freqüência com a qual as formas culturais reproduzem o velho,
elas têm desafiado o velho. Uma leitura ingênua dessa posição poderia sugerir
que se poderia fazer uma simples intervenção ou que se pudesse fazer de
algwna forma wna separação direta entre o progressivo e o regressivo. O
problema com essa interpretação é, naturalmente, que ela esquece a unidade
essencial do nível cultural (sobre a qual a descrição etnográfica, por exemplo,
insiste) e negligencia as formas complexas pelas quais o cultural tem fraquezas
especificamente internas que fazem parte de sua natureza e que são facilmente
invadidas pela ideologia.

Além disso, o nível cultural não flutua, em nenhum sentido,


livremente. Ele tem uma relação mediada com fatores estruturais e com
frequência um contexto material e organizacional institucional preciso que
endossa formas de relação e padrões característicos de equilíbrio e
complementariedade. Acomodação/resistência formam um par em que cada um
desses termos está firmemente atado ao outro". (p. 225, op. cit.)

A indisciplina, por exemplo, na Escola, apontaria conteúdos de


destruição, conteúdos conservadores, como também conteúdos revolucionários?

Observa-se constantes verbalizações sobre Arte como "coisa



que bagunça o cotidiano" da Escola, sobretudo no aspecto disciplinar. Associa-
se a este tipo de verbalização outra ordem de falas que denunciam um cuidado
em controlar o tempo e o espaço da Arte (possível?) que se faz na Escola. Uma
outra série de representações faz-nos ler uma visão de Escola como Sacrifício.
De estudo, na Escola, como algo sacrificioso, que não dá prazer. Pode-se
conectá-las a representações outras sobre o trabalho, que são do mesmo teor. O
estudo como uma preparação para o mundo do trabalho havia de ser mesmo
sacrificio? Aí também, neste sacrificio que é o estudo na Escola estariam as
22

marcas da luta (desigual? inglória? esgotante?) por se transpor detenninantes de


classe tão vincados?

o reverso da medalha é se tentar "canteiros" (antes fossem) em


espaços e tempos controlados (para não exorbitarem, para não modificarem em
nada o curso deste rio em repouso) onde se faz, dos momentos com Arte,
recantos de "escapismos", de "catarses" das tensões do sistema escolar?
Desmontando este tempo e espaço em repouso neste rio perene, vamos ver que
animal jaz esquartejado nesses canteiros ou nesse fluxo diário de ritos
escolares. Vamos enxergar que corpos e dimensões são mortos na infância
ainda.

Para construir a visão critica, temos que desmontar o cotidiano,


que está eivado de senso comwn interiorizado e repassado a-criticamente, de
modo cristalizado, ao modo de verdadeiras conservas culturais.

É nos ritos do cotidiano que se expressam esses conteúdos de


resistência e de acomodação - é aí que pulsa a ideologia internalizada pelos
sujeitos sociais e expressa em atitudes consensuais. A Arte e, em especial, a
expressão dramática, possui um leito propício à radicalização (no sentido
etimológico) dessas "vestimentas" ou "vestiduras" com que se dá a
conformação da realidade posta como permanente, É que, o próprio ato de
I

descontextualizannos esses ritos e práticas do cotidiano, tirando-lhes seu "valor


de uso" e "conferindo-lhes" um "valor simbólico" em acréscimo, já
proporciona um distanciamento que pode ser bem trabalhado em educação.
as não é o simples fato de, por exemplo, utilizar-se o jogo dramático em sala-
de-aula que nos garante que este distanciamento, fruto da descontextualização
ou da saída do ambiente onde foi "gestado") desses "rituais do cotidiano"
alcançará valor de reflexão critica. Embora reconhecendo a experiência
totalizadora envolvida no ato de jogar dramaticamente, a verbalização ou a
23

reflexão sobre esse "vivido" pode não ter profundidade e atuar reforçando o
senso comum e sua imediaticidade.

As perguntas que nos faríamos giranam em tomo da


necessidade de discutirmos o mundo, os ritos do cotidiano, sob um modo que
seja o da poética (no sentido da linguagem ser artística e não apenas um relato
mecanizado do nosso "olho ao cotidiano"). Como esse modo pode ser
incorporado ao "que fazer" da Escola? Esta discussão sobre os ritos, sobre a
dialética do novo e do velho no nosso atuar no mundo, e nesse atuar, a
construção da nova identidade podem ser feitos mediante a Arte?

Que representações nos apontam para essas necessidades? O


trabalho com a dimensão estética (com a Arte) poderia dar seu contributo às
referências escolares sobre o ato de conhecer como um ato que não é
sacrificioso? Poderíamos trabalhar, através da dimensão estética, a
negatividade, a não conformação ao que se tem como realidade hoje como
único modo possível de existência?

Poderia a Arte funcionar como xamãs (feiticeiros, sacerdotes,


pajés) do reino das possibilidades, como põe Emst Bloch?

AI
visão de Arte, de Adorno, como Crítica Social,
essencialmente, em que perfura (e como) esse edifício pedagógico do que se
tem hoje como realidade na Escola? Que contribuições para a compreensão
destas questões nos dá a Teoria Critica?

Ao colocarmos a razão instrumental em face de outras


dimensões como a estética, a ética, não estaríamos ajudando a trazer de volta o
paradigma perdido que é a natureza humana (a natureza do humano), como diz
Edgar Morin?
24

Como utilizar a dimensão dramática (vista como a dimensão


totalizadora que engloba todos os que fazeres artísticos) para "instruir o povo

no prazer de mudar a realidade", como se referia com precisão e simplicidade o


nosso Brecht? Quais são as "sedes" que os pais, alunos e professores de Escola
revelam sobre a necessidade de Arte em Educação?

Não estamos querendo reduzir as questões estruturais a um

tratamento adstrito ao nível do simbólico, mas justamente utilizando lU11adas

especificidades da função da Escola, que é a da inculcação ideológica, para

trabalharmos essa tensão entre o que está posto e dado como ideologia e os
conflitos radicais que aí estão intervindo. E mostrarmos como o fazer artístico

alcança essas questões.

Se percebermos a unidade (ao mesmo tempo, a

intercomplementaridade, a contraditoriedade) entre cultura e estrutura, suas


interpenetrações, lacunas e, sempre, movimento, bem como "um certo grau de

efetividade quanto um certo grau de não-correspondências (com as estruturas)

no nível cultural", no dizer de Willis, poderemos ver que "há algum espaço

para a ação no nível cultural e certamente que há um espaço aqui para expor a

seus membros mais claramente o que suas próprias culturas "dizem" a eles

sobre sua localização estrutural e social. Pelo menos as ilusões do oficial e de


outras ideologias podem ser expostas"(p. 226, op. cit.)

o que proponho é, não um programa detalhado (o que sena

improcedente) em Arte-Educação, mas um exame e a tentativa de compreensão

do nível de demandas que estão envolvida s nas representações dos professores

sobre Arte em Educação e, especificamente, na Escola. Claro que, ao lado


desse "esquadrinhar as sedes das Escola, suas fomes" e o modo como ela
vincula essas "sedes e fomes" a representações sobre Arte em Educação

escolar, está-se a propor elementos para subsidiar propostas em Arte-

Educação.
25

A Arte como especificidade do trabalho humano

Educar também é problematizar o Trabalho Humano. O


Trabalho é visto também como definidor da humanização (e não o
pensamento). Nessa medida, é no trabalho que o homem hominiza-se ou aliena-
se, sendo o elemento através do qual se mediatizam as relações do Homem
singular com o Homem Coletivo.

"A Arte é produção porque consiste


numa apropriação e numa transformação da realidade
material e cultural, mediante LUn trabalho e para
satisfazer uma necessidade social, de acordo com a
ordem vigente em cada sociedade", (CANCLINl,
s/d).

Ao colocarmos a Arte como fruto do trabalho humano, que se


insere num processo de transformação histórica permanente e num "modo de
ser" específico de cada cultura, com sua dinâmica de "transações" entre
classes, estamos negando a obra como objeto fetichizado. A "obra" como fruto
do gênio, do acaso, ou da "inspiração", alheia ao mundo histórico e cultural de
que se nutre, que reflete e transcende, é criação da estética liberal burguesa.

Segundo Canclini, a história da arte ocidental é uma história de


simulação e exibicionismo:

"A simulação reside em propor obras


como objetos de contemplação e reverência como se
não fossem resultados de um ato humano; oferecê-Ias
sobre a solenidade de pedestais, ou sob a custódia de
vitrines como se não houvessem estado expostas, em
seu nascimento, e em seu uso, às contradições das
26

sociedades dos homens". (CANCLINI, 111 LOPES,


JOANA, 1981).

Essa visão da história da arte ocidental (eu diria que "a história
da arte segundo o contar de um dado ponto de vista") coloca a Arte enquanto
trabalho humano, correspondendo a necessidades de gostos produzidos
socialmente, em determinadas condições históricas. Todavia, como diz Arnold
Hauser (HAUSER, 1973, capo 1), "embora toda arte esteja condicionada
socialmente, nem tudo na arte é definível socialmente". Já que, no capitalismo,
tudo o que se toca vira mercadoria, como a arte incorpora novas funções
SOCIaISna modernidade? Que especificidades tem a Arte como trabalho
humano?

A experiência artística seria resultante de uma relação sujeito e


objeto em que a forma prevalece sobre a função, como quer Umberto Eco? Ou
o que é considerado "artístico" é WDaconvenção relativamente arbitrária", cuja
única legitimidade é dada pelas necessidades do sistema de produção e pela
reprodução das atitudes consagradas como estéticas pela educação" como quer
Canclini (p. 12; op. cit.)? Apesar de submetida ao mundo da produção e das
relações produzidas no capitalismo, a Arte como trabalho humano teria
aspectos característicos enquanto criação, distribuição e consumo (recepção)
diversos do de outras mercadorias no capitalismo?

Como a Arte lida com o desejo e, vindo junto a ele, a dimensão


utópica e o "reino das possibilidades" de que nos falava Emst Bloch? Ela cria
(ou narcotiza) a tensão entre o que se tem de felicidade e o que se poderia ter?

O trabalho sendo visto de lUDdado modo (e o estudo, como


preparação para o mundo do trabalho também) - como Sacrificio, poderia ser
posto em tensão (em discussão também) nas experiências educativas escolares?
I o pare e implicar uma discussão sobre a substancialidade do ato de trabalhar
27

e do papel da criatividade nesse processo? O trabalho com Alie, na Escola,


poderia incluir estas perguntas?

Da idéia de omnilateralidade

A totalidade de disponibilidade do homem é aviltada numa

ordem que elege a omnilateralidade como regra. A omnilateralidade é negada

pela própria divisão do trabalho e pela oposição entre trabalho manual e


intelectual, entre quem produz e quem aluga a força de produção, acumulando

um excedente. A omnilateralidade, como define Manacorda "é a chegada


histórica do homem a lUna totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo

tempo, a uma totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se

deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais,

e dos quais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência da divisão do

trabalho" (1991:81).

A afmnação de Manacorda de que "a reintegração da


omnilateralidade do homem exige a reunifícação das estruturas da ciência e as

da produção" (ibidem, p. 85) é colocada como um cuidado de se oferecer a

prática e a teoria, e não como um "pensar em termos de homo ceconomicus que

nada mais é do que aquilo que Marx identifica como limitação da sociedade
capitalista"(p. 86; op. cit.). Quando Marx fala em termos de Politecnia não

exclui a Arte mas recoloca a necessidade de uma articulação entre ciência e

trabalho. Por ciência ele abrange o estatuto dos conhecimentos que a Escola

tomou para si o encargo de socializar e que, como assegura Acácia Kuenzer,

não são produzidos por uma classe dominante mas são patrimônio (e também

são produzidos) de toda a humanidade. É contra a apropriação deste legado por


uma classe e a limitação das classes populares à unilateralidade que o

capitalismo lhe obriga, que se insurge a pedagogia radical. Uma das expressões
d sta unilateralidade é a atrofia da formação geral no tipo de ensino dado às

Ia populares. O caminho da sensibilidade e todo o campo de trabalho com


28

o simbólico é sonegado em nome de uma necessidade de se ensinar um


"prático" que na verdade é "limite".

Há um modo de conhecer (e um conhecimento também) que se


dá através da Arte? Que características singulares teria esse modo de conhecer?
Nos programas educativos que se oferece às classes populares (em especial na
Escola Pública) considera-se esse modo de conhecer e esse conhecimento?

Além de wn modo de conhecer, sabe-se que as modalidades


artísticas são um tipo de conhecimento importante no currículo? Ou deixa-se
que a estetização da vida cotidiana aconteça de modo a-crítico: um divertir-se
no sentido vulgar de conswnir e de estetizar os objetos de uso (objetos outros
de consumo que não os artísticos) para que melhor sejam consumidos?

A Arte e a cultura na Escola: A importância do tratamento


político aos símbolos e gestos na educação

O homem é um animal simbólico. Ele tem tanta necessidade de


"decifrar" e " construir" sentidos para sua existência no mundo como tem de
comer ou dormir. Essa "decifração" e "construção" de sentidos e significados
(significado visto como o sentido aprisionado pelo conceito) pode se dar de um
modo não positivista e não racionalista em excesso?
I

Em épocas de crise, vimos em obras literárias a fenda que se


imiscuía num tipo de racionalidade que era tratada de maneira conveniente ao
modo de produção e ao contexto da cultura de um momento histórico.

Goethe, em seu romance "Afinidades Eletivas" mostra as fendas


na razão iluminista que era o sustentáculo (e sustentada) pelo modelo sócio-
econômico da Alemanha dos fins dos século XVII e século XVIII. Através de
modo de abordagem do amor adúltero, parece expor a perplexidade da
29

racionalidade iluminista diante de dimensões que esta racionalidade não

comportava. Um homem casado, próspero, com urna vida sob todos os ângulos

invejável, protótipo do que havia de melhor na juventude burguesa alemã,


queda-se impotente (e desconhecedor) de forças que levavam a taça da

racionalidade iluminista a transbordar.

Também no Brasil, ao tempo mesmo do "período das luzes", a

estrutura (feudal?) dos grandes latifúndios do Nordeste expunha sua fenda.


Graciliano Ramos em seu romance "São Bemardo" exibe essa fenda de um
modo particularíssimo.

Um senhor de engenho, dono de gado e gentes, não lograva

possuir inteiramente a professora Madalena, mulher com quem se casara. Uma

parte do ser da mulher Madalena foge à compreensão e à posse desse senhor.

Uma parte insurge-se contra o sistema fechado desta racionalidade e essa fenda
que se inicia com um insuportável sentimento de ciúme vai tomando

proporções várias, se agigantando, fazendo ruir o que parecia tão sólido. Pari
passu, a soberania do latifúndio vai tendo que buscar mecanismos de parceria

com o liberalismo burguês que insidiosamente provocava rachaduras nesse

cimento.

Estes dois romances de um outro modo, explicitam também



discussões que iremos travando sobre estética.

Os autores que preferencialmente nos servirão de interIocutores

serão Hegel, Benjamin e Adomo.

Este movimento de elucidação volta sob seus pés e inquire:


quando um dado pensamento crítico sobre a Modernidade revê a racional idade

iluminista (ou o que se fez dela) em suas fendas, que aportes nos dá para uma
análise de processos semelhantes na Escola? Como essa agência educacional
30

tem funcionado de modo a comportar (em parte, de que modo?) todo este
fermento crítico?

Poderíamos dizer que haveria necessidade de pensarmos nos


tortuosos e doces fios que tecem a espúria região do sensível na Educação?
Victor Turner nos diz que "os rituais são sementeiras quentes para a mudança";
que os "rituais não apenas definem limites, eles evocam um momento fásico em
um cultura".

McLaren nos diz que "as dimensões variadas do processo


ritualístico são intrínsecas aos eventos e transações da vida institucional e na
tessitura da cultura da escola" (1992:29).

Vemos que uma análise dos gestos, dos símbolos, dos ritos da
Escola e fora dela, mais que um simples reflexo da realidade, poderia vir a ser
uma "construção social"(porque discutida coletivamente com os alunos) da
realidade.

Explicitemos um tanto mais essa ordem de problemas.

"A cultura é uma construção que permanece como uma


realidade consistente e significativa através da organização abrangente de
I

rituais e sistemas simbólicos. Os símbolos podem ser verbais ou não verbais e


estão geralmente ligados ao "ethos" (tom, caráter, humor e qualidade de vida
de um grupo) filosófico da cultura dominante" (McLAREN, 1992).

A partir daí, poderíamos supor ( e está-se a cada momento


dando-se nós nesses mesmo fios) que Arte-Educação seria uma das formas de
considerarmos, na Escola, as dimensões esquecidas que reafirmam ser a
natureza humana o paradigma perdido?
31

Quando Mclaren fala na "destruição anômica da vida em sala de


aula", da cultura escolar como "cultura da dor" e da "desconfirmação do eu do
educando através da desconfinnação da cultura do educando" e sugere que se
desmonte a rede de gestos e ritos da escola e se produza os novos ritos, estas
observações apontam para um determinado modo de se conceber o Educando e
suas necessidades?

Um modo novo de se conceber o Educando poderia incluir


dimensões esquecidas, incluindo a estética? Poderíamos colocar elementos que
servissem para discussões mais concretas sobre o que se poderia chamar
alfabetização Estética, no 10 Grau, na Escola?

A contradição é uma categoria que não se deve perder de vista.


O "novo" rito pode ser menos coerente com as necessidades vitais de
terminado grupo, que outro "rito" antigo, considerado não mo demo e "mais
superado"? Análises coletivas desses "condicionamentos culturais" não seriam
parte de uma formação que considera a cultura e saber da vida o tecido onde se
dará a ancoragem de novos saberes sistematizados e socializados pela Escola?

Ao analisarmos os conteúdos das simbolizações, como


partirmos dos conceitos espontâneos e chegarmos a aprofundamentos
substanciais, ~ue afastem de todo a possibilidade de estarmos a fazer a
apologia do senso comum? Como trabalharmos o sexismo, o racismo, o
fascismo incluso nessas representações, apenas para dar um exemplo de
problemas que a cultura popular também incorpora? Como trabalharmos sobre
'o óbvio", "a superficie", "o que se mostra" nos gestos e rituais do cotidiano e
da cultura, fazendo as ilações necessárias com a estrutura com a qual se
vincula?
32

Como reconstruir processos coletivos na teia do trabalho com a


subjetividade? Ou como identificar nos processos coletivos a explosão de
processos subjetivos?

Como falar de Ética, Moral e de uma Educação do Sentimento


num processo e formação da sensibilidade? E inscrever essas análises nas
veias abertas da cultura do educando?

Num processo de articulação orgânica, penso levantar as


representações sobre as "sedes" da Arte, na Educação na Escola, como
material que aponta para um tratamento dessas questões que me parecem ser
categorias mestras, da qual derivarão, sem dúvida, um contingente de
desdobramentos e de novos impulsos e direções de compreensão desses fatos.

Para tanto, mesclo um trabalho de análise das representações


de professores, alunos e pais de três Escolas Públicas sobre "a necessidade da
Arte na Educação" (ou sua sede, como eu digo) com LUTI exame dos ritos
escolares e do tratamento que se poderia dar, mediante a Alie (especialmente
do jogo dràmático) a esse manancial simbólico a que temos nos referido .
.I
33

CAPÍTULO m

DA METODOLOGIA UTILIZADA

Uma abordagem micro-antropológica na Escola

Este estudo, uma abordagem micro-antropológica na Escola, é a


tentativa de compreensão das representações de estudantes, pais e educadores
de três Escolas Públicas de Fortaleza (três estudos de caso) sobre a
necessidade da arte na escola e, complementando estàs falas, analisarei cinco
Rituais que, segundo estas representações expressam "onde está a Arte da
Escola".

Utilizarei as perguntas: a escola precisa de Arte? Prá quê? Por


quê? Onde a arte da Escola? Essas perguntas me possibilitarão esquadrinhar o
que eu chamo de sedes (necessidades, faltas), vinculando suas visões de Arte a
essas necessidades. Assim é que, tentarei focalizar minhas análises vinculando-
as a cinco Rituais onde, pelas representações de pais, educadores e alunos, se
diz estar a arte da escola.

Como vimos, optei pela compreensão da cultura na acepção de


Geertz como "sistema simbólico" e tomei as representações como carne desse

istema.

Essa carne expressa-se através das falas e dos rituais e símbolos


da Escola. Desse modo, compreendi representação como um dizer que se
manifesta nos ritos e falas. O verbal, portanto, não é a única forma de
manifestação das representações que utilizei nessa análise. Os rituais da Escola
orneceram o corpo que foi compondo a tessitura dramática a ser investigada e
onfrontada com as falas dos informantes.
34

o que se pensa sobre ritual não nos remete a uma realidade


mística, sem sedimentação no contexto histórico, concreto. Os estudos
etnográficos e as abordagens micro-sociológicas sobre escola ressentem-se
muitas vezes de vinculações com as detenninantes sociais que circulam na
sociedade maior. Não se pode esquecer que "a cultura da Escola é informada
por detenninantes específicos de classe social, ideologias e estruturas da
sociedade maior" (MCLAREN, 1992:33.) Como na sociedade maior, a cultura
da sala de aula apresenta disjunções entre condições de classe, cultura e
símbolos, competições entre ideologias, conflitos. Não é uma unidade pura, um
bloco monolítico, uma ideologia uniforme. O processo de produção da contra-
hegemonia enfrenta-se, passo a passo, com as construções hegemônicas - falar
em dominação, portanto, traz o seu avesso: resistência.

Muitos dos esfoques neogramscianos, neomarxistas e


reconceptualistas da escola, que criticaram os estudos micro-sociológicos, por
ignorarem os detenninantes da classe, gênero e poder, nunca se debruçaram no
estudo dos símbolos e das representações.

Este estudo tenta dar conta dessas dificuldades e tenta seguir na


esteira dos estudiosos que utilizaram um enfoque crítico para análise da
dimensão simbólica na Escola. A análise que fazemos nesta dissertação, ao
invés de usar a teoria do ritual e da representação dramática como modo de

asculhar as dimensões simbólicas do currículo oculto, como o faz McLaren,
tenta compreender as "sedes" sobre a necessidade da Arte na Escola com a
intenção de, por meio da arte, propor a entrada da cultura do educando.
Fazendo-se a crítica do modo como a incorporam os modelos de formação da
subjetividade capitalística, propomos, assim, o trabalho com o simbólico como
básico. A saída (expulsão) da cultura do educando, em suas formas expressivas
e poéticas, eqüivale à destruição da vida em sala de aula. Também o modo
orno as classes populares se situam socialmente, sendo exploradas e a forma
a E cola funcionar como agenciadora desta mão-de-obra, faz com que esse
35

momento de "preparo" para este mercado também seja visto como sacrificioso,
uma cultura do sacrificio.

As propostas de trabalho com Arte-Educação, na Escola,


necessitam amparar-se no sentimento de pertencimento, de identidade que o
trabalho com a cultura do educando confere. O conhecimento do código
erudito, em Arte, não pode se dar sem que se considere esse caudaloso rio que
são as representações, sob quaisquer formas ou linguagens artísticas, que re-
elaboraram os sentimentos e imagens das ações cotidianas, os sentidos e
significados que estão sendo construí dos nas interações com o mundo. Isso
também não significa que se fique nas codificações que o (digamos) código
popular já confere.

Um estudo de representações não pode ser meramente


descritivo - tentou-se o estranhamento, a aventura de dessocializar-se,
desprender-se, em um certo nível, de nossa cultura, alcançar uma nova
socialização na cultura institucional escolar, para depois, compreendê-Ia. Esse
deslocamento do discurso, no texto das representações é, também,
representação. E, em seu "détour" de clarificação, foi-se desbordando a
gramática superficial dos gestos e símbolos e chegando-se à estrutura profunda,
ao desmonte desse aparato simbólico e seus vínculos com a lógica do capital.

As representações são, entretanto, uma recomposição do objeto.


'" ão são descrições, apenas: desenvolve-se-Ihe o conteúdo, busca-se-lhe as
isceras, desborda-se suas reentrâncias. Numa palavra: interpreta-se.

O conteúdo das representações, portanto, resulta da dialética


ntre o indivíduo e o coletivo a que pertence. É algo eminentemente
terpretativo mas não aleatório. Uma abordagem antropológica das
r presentações culturais na Escola não é a irrupção de um contar e recontar, é
um mirar-se dialético um no outro. Procede-se ao exame de sua
36

racionalidade, estranha-se a naturalização do que é dado como certo e posto e


parte-se para a análise dos rituais sem deixar no etéreo as vinculações desses
micro-fenômenos com os macro-fenômenos da sociedade maior. Portanto, o
fato de este estudo situar-se como uma abordagem micro-antropológica da
educação não nos levou ao abandono das relações entre a Escola e as
determinante sociais como classe, poder e gênero. Pensando-se a Escola como
esse manancial de símbolos que se assenta numa estrutura determinada
socialmente (não mecanicamente), tem-se-Ihe como um espaço de contradições
e correlação de forças de reprodução e resistência. Vincular os micro-
fenômenos que acontecem na Escola e se expressam nas representações
analisadas, com os macro-fenômenos da sociedade maior é tentar uma
abordagem das representações, considerando-as em sua subjetividade mas
vendo-as imantadas à macro-estrutura que as gesta e à qual aquelas, por sua
vez, influenciam.

o conceito de ritual que utilizei abandona a visão "plana",


utilizada pelos antropólogos funcionalistas, que concebem o ritual como mero
'reflexo" dos aspectos constituintes da estrutura social. É Victor TUl11erquem
vai conferir ao ritual uma função de reconstrução (e não espelho), uma função
paradigmática: ele é um "modelo para", emoldurando tanto o instituído como as
geratrizes das mudanças. O ritual, portanto, é visto como reconstrução, re-
elaboração criativa, momento também de criação do novo. No sentido amplo,
I

ritual é o uso simbólico de movimentos e gestos corporais em uma situação


ocial para expressar e articular significados" (BOCOCK apud MCLAREN,
Peter, 1982:37). Com McLaren, utilizei o conceito de ritual, atendo-nos às suas
propriedades e funções e, após a imersão no campo do empírico, a
ompreensão do fenômeno me dará novos campos semânticos e redefinições
para abrigar.
37

Faz-se necessária uma breve observação

o ritual e seu estudo têm servido à ciência sob ângulos diversos.


McLaren (1992) faz um apanhado desses tratamentos, dos quais pincei algumas
das suas várias formas de conceituações:

- Sistema simbólico (Geertz);

- Estrutura profunda (Leach; Lévi-Strauss);

- Tipo de lógica (Langer; Cassirer);

- Metalinguagem (Bateson).

Turner qualifica o ritual como processo; Huizinga como forma


de jogo; Jung como uma "necessidade hwnana primordial" e Ricoeur,
Gadamer, Palmer como LUn"mecanismo para se entender a realidade". (p. 80;
op. cit.).

Para os objetivos desse trabalho usei a conceituação de ritual


como processo, de Victor Turner, uma vez que sua abordagem é antropológica
e mais se aproxima do modo como atuo no campo do empírico. Isso não

ignifica que não possa acrescentar, em alguns momentos, diálogos com outros
tipos de contribuições, advindos dos outros modos de se considerar os rituais
que já arrolamos.

o modo de se trabalhar as representações: as falas e os rituais: -


Dilthey propõe, para compreender o sentido das representações, parâmetros,
que ele utiliza na hermenêutica e que envolvem: a linguagem, a ação e as
'pressões vivenciais. Utilizando estas "formas elementares de compreensão
e entido", como parâmetros, segundo as propostas de Dilthey para a
38

hennenêutica, tentei compreender as presenças e as ausências (o que eu chamo


as fomes, as sedes) da arte na escola.

o sentido das representações, portanto, envolve a linguagem


(as representações através da fala), a ação (que abordo através do estudo das
cenas ou rituais) e, no estudo dos rituais, as expressões vivenciais ficam
inclusas.

Penso que estas observações do cotidiano podem me permitir


captar a expressão do particular na relação com categorias universais. As
representações feitas através da fala carregam toda a problemática do sentido
na linguagem cotidiana.

Em última instância, trabalhar com a problemática da


reconstrução dos sentidos é interpretar. É tentar vestir a fala do outro, sem
esquecer que, colocando a luz sobre ela, nossa própria fala também, ao espiar,
diz. Ao colocar a luz sobre a cena do outro, todavia, o que olha, de repente,
estranha aquela partilha. Em certo sentido estranhar é, ao interpretar a fala do
outro, tentar compreender o que não foi dito. No labirinto, o bordado mais
esmerado que se vê por estas terras, o bordado é feito com o próprio desfiar do
linho. A fazenda (o linho) ao ser desconstruída, constrói aquela renda bonita:
arte precisa. Nesta descostura, no entanto, vê-se logo os vazios, como que

ilêncios que se contrapõem àquela fala trançada. Talvez que, como nas rendas,
parar de repente a fala do outro, estranhando, seja um outro jeito de fazer o
bordado.

o trabalho das intepretações exige esse estranhamento, me


parece: o sujeito que interpreta toma uma certa distância da "naturalidade" dos
entidos, para melhor conhecê-los. Depois, há que inserir estes sentidos (que
ão polivalentes) na teia das mediações que o situam em tempo e espaço,
outras palavras, espaço social e história.
39

Este trabalho de interpretação, além das falas (e seus silêncios),


ancora-se num outro construto simbólico que envolve ação: são os rituais ou
cenas.

Os rituais são um tipo de ação que lida com o simbólico e que


se dá na interação social, manifestando-se, neles, a ambiguidade do que é
intenção com o que se efetivou no cotidiano. Uma cesura entre o que se fala
sobre as coisas e o modo de se postar diante delas. O modo como as coisas
aparecem com sua luz é algo que faz parte do jogo dessa conversão de
sentidos.

As expressões vivenciais são outro construto que as expressões


verbais e os rituais vão incorporar. É a semântica dos gestos e das respostas do
corpo, com sua carga vital espontânea, que se vai tentar ler. Aí, muito se
inscreve do que não ousou ser dito verbahnente e que carece de uma
articulação cognitiva que pudesse ser exposta em palavra e rito. Todavia,
poder-se-ia dizer que essas expressões (reações corpóreas, fisionômicas, etc.)
pertencem ao universo do rito. Considero esses índices expressivos, portanto,
dentro do universo do que se está chamando processo ritual.

Essa conexão entre linguagem e ação como elementos


constituintes do trabalho com o sentido é tomada em consideração por
Wittgenstein na concepção do "jogo-de-linguagem". A dialética do falar e do
agir incorpora este mapa das expressões corpóreas. Na verdade, a linguagem
natural ou do cotidiano integra as manifestações não-verbais. "O caráter
specífico do linguajar cotidiano reside nesta retlexividade; do ponto de vista
da linguagem formal podemos também dizer que a linguagem ordinária perfaz
ua própria meta-linguagem. Esta função peculiar ela a adquire por sua
apacidade de integrar em sua própria dimensão as manifestações vitais não-
erbais, através das quais ela mesma é interpretada. Podemos, assim, falar
obre ações e as descre er, podemos nomear expressões e fazer da linguagem o
40

mediwn de expressões vivenciais: seja de um modo fonético, ao utilizarmos a


expressividade da entonação, seja em termos estilísticos, ao representarmos na
própria linguagem a relação do sujeito com suas objetivações verbais. Toda
linguagem ordinária pennite que se faça alusões reflexivas a dados
inexprimíveis. "( O grifo é meu) - (HABERMAS, J. 1987:179).

Há nesta colocação de Habermas, mais um dado novo para


minhas considerações: a linguagem do cotidiano (ordinária, como Habermas
diz) está a considerar permanentemente estes indicadores não verbais, que se
dão nas interações sociais. Poder-se-ia dizer que os diálogos dos sujeitos, em
suas interações sociais, estão permanentemente vincados de interpretações
desses mesmos falantes, baseados em códigos extra-Iinguísticos.

Até então, poderia ficar parecendo que vou abordar as


representações como se o senso comwn fosse considerado na experiência
cotidiana sem mediações. Sem que o tomasse como wn texto de sujeitos que se
situam nwn determinado espaço social.

As representações sociais são ditas por sujeitos inclusos numa


estrutura social que produz wna espécie de suor, que é a ideologia, que impede
de ver. Esta "espécie de suor" que fica como uma capa fina deformando o real
é a ideologia - e ela impede de ver tanto as causas profundas deste modo de ser
I

social como suas possibilidades de superação. Faz-se necessário o que


Bourdieu chama de ruptura e que os brechtianos chamam, em arte, de
estranhamento", para que se possa fazer um movimento de compreensão
ignificativo. Como vim pontuando, para não pensar as representações como
um momento subjetivista completamente separado das coações estruturais que,
em variados níveis, transformam ou conservam, vai-se tentar relacionar os
modos de falar e os ritos dos sujeitos no cotidiano às posições sociais que
ocupam na estrutura de classes. É inegável que, tanto a arte como a ciência se
de colam do tipo de conhecimento do senso comum, por alcançarem um tipo
41

de objetivação crescente, uma espécie de elevação do aparente, na busca de


sínteses das múltiplas determinações do objeto pensado.
~ \ 42

Conclusão - Para que Auschwitz não se repita ou em busca de


um paradigma perdido: a natureza humana.

Nessa linha de reflexões, poderei ir deslindando toda a fonte


rica que deriva da conexão entre Arte e Aprendizagem. Esse espaço da Arte, na
Educação, seria o espaço de uma Educação da Sensibilidade? Tecer o diálogo
entre o campo dos desejos e o campo do real, costurando-o na entretela do
lúdico e da alegria, da Cultura Popular e da Fantasia, da Educação Política e
Estética, não seria uma forma de se lançar as sementes para uma educação da
sensibilidade? Sensibilidade também se aprende na Escola?

Neste trabalho, que Adorno coloca como uma "volta ao sujeito"


- há a necessidade de alterarmos o modo de trabalho com a subjetividade, em
sua relação com as detenninantes sócio-políticas, que caracterizam a realidade
objetiva. Nos termos de Adorno (ADORNO, 1986)

"Para a educação, a exigência que


Auschwitz não se repita é primordial. Precede de tal
modo quaisquer outras, que, creio, não deva nem
precise ser justificada. Não consigo entender como
tenha merecido tão pouca atenção até hoje. Justificá-
Ia teria algo de monstruoso em face da
monstruosidade que ocorreu. Mas que a exigência e
os problemas decorrentes sejam tão subestimados
testemunha que os homens não se compenetraram da
monstruosidade cometida. Sintoma esse de que
subsiste a possibilidade da re-incidência e
inconsciência dos homens. Todo debate sobre
parâmetros educacionais é nulo e indiferente em face
deste - que Auschwitz não se repita. Foi a barbárie, à
qual toda a educação se opõe. Fala-se da iminente
43

recaída na barbárie. Mas ela não é iminente.


Auschwitz é a própria recaída: a barbárie subsistirá
enquanto as condições que produziram aquela recaída
substancialmente perdurarem. Esse é que é o receio
todo. A pressão da sociedade perdura, não obstante
toda a invisibilidade do perigo hoje. Ela impele os
homens até o indiscritível, que em Auschwitz
culminou em escala histórica".

Fica posto o desafio: a dimensão da sensibilidade poderia ser


trabalhada na Escola? As sedes sobre Arte apontam para essa necessidade?
Que diretrizes poder-se-ia colher para encaminhar atuações nessa direção? É
possível, através disso, empreender (ainda e sempre) a busca de um paradigma
perdido: a natureza humana?
44

o Processo Ritual

Cenas comuns visíveis em que os educadores e alunos se dizem


e se vêem fazendo arte na escola.

A partir do agrupamento de falas e de observações


participantes, pude selecionar cenas (que poderíamos chamar rituais) que são
expressão do modo como é percebida e tratada a arte na escola. Quando eu
perguntava "onde a arte da escola está? " Nesse momento, as experiências
apontaram recorrências:

I - O momento das "festas na escola": encerramento de


semestre letivo e comemorações de datas do calendário escolar (São João,
Natal, Dia ou Semana da Criança, Dia ou Semana da Pátria, Dia da Páscoa ou
Semana Santa).

lI. - O que "as mãos de algumas professoras habilidosas" fazem


sobre as paredes nuas das escolas e que é visto como uma "arte de
impressionar a vista", como uma "arte de decorar a escola" ou como "coisa
bonita de se ver".

llI. - As experiências de construir, com sucatas, feitas pelos



meninos e meninas e que mostram "como eles vêem o mundo, como re-criam o
mundo com aquele lixo ali da sucata, puxando tudo da cabeça deles mesmo,
reconstruindo tudo o que vêem e sentem do mundo naquelas estruturas de
papel, plástico, madeira, o que for".

Chamo a atenção também para os momentos do "entre" uma


oisa e outra (entre a atividade e o recreio; entre o pátio e a sala de aula, na
Ia; antes de merendar; no fim da aula, antes de sair) ou de espera (ainda não é
45

hora de ... vamos cantar?): são esses os momentos da música na escola, além
dos momentos nas festas comemorativas.

Os dois momentos que se seguem foram citados apenas pelos


alunos (é a perspectiva deles):

IV- Os momentos de fundo de quintal: aí se brinca de esconde-


esconde, de "faz-de-conta". "O faz-de-conta é o momento em que se vira o que
quer". "No faz que conta a gente vive o que não é da conta da gente. Quando a
ente quer saber umas coisas das pessoas, a mãe diz: não é da sua conta. No
faz-de-conta tudo a gente pode ser. tudo a gente pode saber. De imaginar como
. e ir fazendo". "A arte mora nessas horas".
V - Na rua. "Na rua a canção é paixão". "É acalanto". "Na rua
se briga por amor e por necessidade". "As canções da rua até viram dança:
amaval". "Batuque". "Na rua tem a luta: a capoeira, o boi. Tem luta. E é
arte".
46

Ainda uma palavra sobre esse olhar

o lugar da pesquisa

A partir da observação de três escolas públicas de Fortaleza,


para onde eu me dirigia duas vezes por semana, durante cerca de doze meses
(três semestres letivos), pude agrupar alguns momentos em que professores,
pais e alunos se diziam ( e se viam) fazendo arte na escola. Também agrupei
alguns momentos em que, na fala dos alunos, eles se diziam e se viam fazendo
arte noutro lugar. Estes momentos, que só foram mencionados pelos alunos,
tinham um tempo e lugar que era fora da escola.

Eu não previra este tipo de resposta. Quando eu pensei estudar


a presença e as ausências de arte na escola, não contava com a idéia de que os
alunos iam colocar outros lugares como sendo "melhor para fazer arte". Com
as respostas e as falas que eles ajuntavam, pude ver de um modo claro que a
idéia que tinham de escola era a de um lugar vigiado, onde o que se fazia ali era
algo custoso, sacrificioso, que exigia wna prontidão diferente da prontidão para
o lúdico, para o que eles achavam que era a arte. O caráter de pesquisa
etnográfica, o uso de representações e rituais parece ter ancorado melhor este
"olhar estranhado".

o ponto de vista escolhido

Tentei utilizar os pontos de vista dos pais e dos educadores


acerca "do que é arte, para você", "para que arte na escola", "por que arte na
escola" e "onde a arte da escola está"? Tive o cuidado de fazer a escuta do
ponto de vista do aluno que é a razão de ser da educação na Escola e teria
(pressupunha eu) uma perspectiva valiosa para o estudo que eu me propunha.
47

Pode-se-ia dizer que estas observações se situam na tradição


dos "estudos qualitativos" em Educação. Para realizá-Ias combinei:

- entrevistas de grupo, com cnanças na escola e fora dela,


sempre utilizando as perguntas que citei;

- entrevistas individuais: com alunos, educadores e pais, nas


escolas observadas;

- observações participantes (nas escolas observadas);

- entrevistas e observações participantes com educadores, pais e


cnanças do "Um Canto em Cada Canto", que constituem os corais. Este
trabalho poderia ser classificado como de arte-educação. Educação não formal
e não envolvendo escolaridade tradicional.

Pode-se dizer que eu tentei compreender as questões que eu me


colocava: Para que a arte na escola? Por que a arte na escola? O que é arte na
escola, para você? Onde a arte da escola está? Utilizando a perspectiva dos
protagonistas, o que se pode chamar de uma perspectiva êmica. Houve também
momentos em que eu pedi para eles "falarem e se descreverem fazendo arte em
qualquer lugar".I

Num segundo momento, eu tentei juntar minhas observações


om estas descrições livres, na intenção de reconstruir "cenas visíveis
omuns". Estas cenas tanto aconteciam aos meus olhos (e eram registradas em
observações) como eram mencionadas nas falas dos meus interlocutores, Desse
odo, não ficou dificil observar as recorrências: aonde as falas convergiam,
aonde as observações mais repetiam cenas, ao meu olhar. Parece-me que esta
oncordância das observações das cenas e das falas ajuda-me a estabelecer um
ri ério de alidade.
48

É como se tivesse de buscar capturar sentidos numa rede de


significados convergentes. Melhor dizendo: buscar construir LUTIarede de
significações era o primeiro passo - o segundo, buscar suas convergências.

Os estudos qualitativos dão oportunidade ainda de, na coleta de


dados, por exemplo, quando se faz entrevistas e observações, corrigir
inconsistências, mal-entendidos, incongruências comuns na linguagem cotidiana
e nas situações de pesquisa também.

o campo dos sentidos

Sabemos que os sentidos têm sua errância. Eles migram e, como


as aves de arribação, arribam em bandos. Buscar os rituais é admitir que esse
migrar se faz nos silêncios (os silêncios significam também), no implícito, no
silenciado, (no que se não deixou ser dito), no dito (verbal), nos corpos (as
expressões não verbais) e gestos.

Não quero dizer com isso que um mesmo sentido se camufla e


aparece, aquele conteúdo, com outro significante. Isso é um aspecto. Há outros,
contudo. É que o sentido quando "muda seu lugar de dizer", também muda:
este-se de novas cores, fica sendo outro. Poderíamos dizer que o sentido é LUTI
no que, se encontra WTIobstáculo por aqui, logo cava LUTIavereda e faz-se
I

outro.

Podemos chegar a dizer de antemão, que o sentido não é algo


o, ele movimenta-se. Se houve aqui um processo de silenciamento limitante,
le vai significar em outros lugares: no equívoco, no non sense, no chiste, no
ilêncio, na palavra, no implícito, no corpo. As próprias palavras também
impedem de dizer - elas camuflam, confundem, impedem até o silêncio de
ignificar. E a si próprias também.
49

Afora tudo isso, sabe-se que a palavra artística ou poética é o


lugar do múltiplo, da polissemia. O que é diferente de dizer-se que o que é
múltiplo, é irreal: aí está-se reduzindo o imaginário à irrealidade. Tanto a ilusão
de unidade de sentido, forjada sobretudo pela ideologia é falsa, quanto a idéia
de que a ordem das coisas é igual à das palavras. "Sabemos que a dispersão
dos sentidos e do sujeito é condição de existência do discurso, mas para que
funcione ele toma a aparência de unidade. Essa ilusão de unidade é efeito
ideológico, é construção necessária do imaginário discursivo. Logo, tanto a
dispersão como a ilusão da unidade são igualmente constitutivas". (ORLANDI,
Eni Puccinelli, 1993:18-19).

A ideologia também não é algo que funcione sem contradições,


como um sistema fechado, mas é fruto da confluência da material idade da
língua e da história: produz-se nas relações dos sujeitos e dos sentidos. O
homem, porque é essencialmente um ser que necessita de símbolos e está
constituído pela sua relação com o simbólico, está permanentemente (também
com palavras ou ritos) a significar. Talvez que, uma vez estabeleci da a falta
primordial, o homem ao fazer migrar seu desejo, numa ânsia de completude,
também aí migre com ele os sentidos. A insatisfação do desejo e a
incompletude do sujeito e a do sentido: a base da polissemia? Mais: usar rituais
é tentar não reduzir a significação ao paradigma da linguagem verbal.

Parece-me que, ao descrevermos os rituais, o uso de outros


ignos, a intennitência das palavras, o silêncio significativo, deixa-se significar
processos ainda nem articulados pelos sujeitos, e que a gente poderia dizer que
stão plenos de devir. A fala não se apresenta, como os rituais, como um lugar
o sentido uno, fixo - ela abre-se à opacidade e à polissemia, é a um tempo
produção, ideologia mas também espaço de jogo de sentidos, resistência e
ansfonnação. Há sempre, ao ocorrer as travas, as negações, os
ilenciamentos, a possibilidade dos sentidos, ao moverem-se, constituírem
ovos campos de sentido.
50

Outra forma de dizer enriquecerá o que vimos margeando com


as palavras. Parece-me precioso o modo de Milton Nascimento e Caetano
Veloso, na proa desse poema, irem assuntando sobre as margens das coisas, a
das palavras, a do silêncio, em suas misturas e separações. (A ordem das coisas
e das palavras num trançado bonito).

A terceira margem do rio

Oco de pau que diz


eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, tristriz
Risca certeira.
Meio a meio o rio ri
Silencioso sério
Nosso pai não diz: diz
Risca terceira
Água da palavra
Água calada pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
puro silêncio, nosso pai.
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai,
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
51

Por sob a risca da canoa


o rio riu, ri
o que ninguém jamais olvida
Ouvi ouvi ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai.
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando o mais dentro aflora
Tora da palavra:
. .
no, pau enorme, nosso par.
52

Questões de validade

Ative-me à idéia base de que o conhecimento social válido,


construído por meio das pesquisas nas ciências humanas, "é mais uma questão
de linhas de questionamento do que de técnicas e definições específicas. É uma
questão de uma busca por contextos relevantes para inquirir a verdade".

(KV ALE, Steinar. Issues of Validity in Qualitative Research apud

QUARSELL, 1993:66). Considerei ainda outras questões discutidas no estudo

que supracitei e que releva o fato de que "as ciências humanas não são uma
série de técnicas ou métodos. É uma posição epistemológica aplicada - por

conseqüência, a análise filosófica se torna parte integrante de seus

procedimentos" (ibidem, p. 66).

o pensamento antropológico cuida de não nos deixar esquecer


que, também, somos participantes de uma cultura - o que dificulta o

estranhamento desejado em qualquer abordagem, sobretudo a etnográfica, que

considera o ponto de vista do informante. Sobre a abordagem de situações de

educação escolar e de situações fora dela, eu pensava que, estabelecendo

comparações, eu poderia ter referências mais ricas para a pesquisa. Confesso

que a ordem de problemas, de negações das dimensões que eu me propunha

observar serem tratadas na escola era de tal monta, que eu senti necessidade de
ter um contraponto mais feliz.

Quando pensei em questões de validade em pesquisas

qualitativas, tive receio de tentar um estudo etnográfico da escola. Mas os

trabalhos últimos que lidavam com códigos que não eram apenas verbais (Paul
Willis, McLaren) eram estudos que se incluíam nessa linha antropológica. E
por que eu me preocupava em utilizar códigos outros e não apenas a linguagem

erbal? Primeiro, porque eu acreditava que estes outros códigos "falam" de um

modo tão contundente quanto a linguagem verbal. São signos que estão

permanentemente a significar. Além disso, eu achava que os rituais e as


53

expressões corporais não verbais dizem o que a fala pode querer negar. Eu não
queria fazer um levantamento do que o senso-comum diz sobre alie, apesar de
julgar esse ponto de partida também importante. O senso-comum está prenhe
de ideologia e, se esse material me é caro não é, todavia, suficiente.

Eu queria justamente ver e ouvir o que os corpos e os ritos


diziam desejar e que nós cotidianamente sufocamos, negamos ou deixamos
passar despercebido.

Claro que eu tinha uma teoria (a teoria crítica) que me


informava e sobre a qual eu me debruçava para fazer perguntas. A idéia de que
a razão instrumental é hipertrofiada no modo de se fazer ciência hoje, eu fui
buscar em Adorno. Aprofundando um pouco mais, eu vi que não era só um
modo de se lidar com o conhecimento, era um modo de conhecer que, desde a
escola, era proposto. Era um modo de considerar, da racionalidade, só um
aspecto: o que confirmava o existente como o possível único. A dimensão
negativa da razão, que coloca os possíveis, que pergunta pelo que o real
poderia ser, pelo que o real não é, eu via como sonegada nos mínimos gestos
da cultura escolar. E o sentimento? E a ética? E a estética? E o fazer? (') Uma
cultura riquíssima (extra-escolar) ficava considerada ali sem valia, ficava (como
a classe que a possuía) considerada como um não existir, um não-saber. Os

.
estudos de estética, entre outros, que fui fazendo, ao lado da minha prática
como artista (e arte-educadora) me faziam querer sair do "fosso" inarredável
dos silêncios e das ausências na Escola.

(1) É a dimensão desejante, que o pensamento construtivista aponta como pilar,


junto com a organísmica e a cognitiva.
54

Tudo o que se acumulou sobre teoria em educação fala da


urgência de uma escola pública de qualidade. O cotidiano que se vê fala da
pobreza e da distância que há para se percorrer na ida para este alvo. Cruzando
uma coisa com outra (a urgência, que aponta para um devir e a necessidade, a
pobreza que mostra onde se está), o arte-educador fica perplexo. No esboço
das frases, do "não tem nem... que dirá ..."você completa a frase com um
solilóquio sem fim sobre como não fazer da arte um artigo de luxo. Ou uma
sobremesa. Ou wn modo continuista de estender o que a estética "global" faz.
Ou um modo de estetizar a vida, narcotizando a tensão real entre o reino da
necessidade e o da liberdade. O que eu tentava radicalizar (ainda uma vez o
sentido é de ir à raiz) era que há dimensões sonegadas (corpos mutilados) na
escola e que a arte é um dos modos de se poder trabalhar com a razão de um
modo mais totalizador, com a esfera do sentir e do fazer de um modo crítico.
As outras questões: a utopia, a cultura, o trabalho, a omnilateralidade, enfim,
foram desdobramentos da idéia principal.

o lugar do observador

É importante observar que eu me vinculava às escolas como


professora do campo de estágio da UFC, em atuação. E a minha pesquisa

.
carregava esse viés de ser, também, trabalhadora em serviço. As anotações de
campo eram complementadas com momentos que eu estruturava para este fim.
No entanto, o traço pelo qual eu me fazia conhecer na escola era, antes, o de
trabalhadora (professora). O de pesquisadora era um papel coadjuvante.

Este fato me criava sérios problemas. Se, por um lado, me dava


uma certa familiaridade com os informantes, o que facilitava a criação de
momentos mais espontâneos para os falantes, por outro lado, o fato de se estar
a fazer coisas no lugar, pode fazer escapar momentos de observação mais
tranhada.
55

o estatuto de professora e de pesquisadora, inegavelmente me


dava uma certa "autoridade" que fazia com que os informantes se cobrassem
dizer o que acham que uma pessoa como eu espera que eles digam. O fato de
eu ser "professora de professora", como disse uma criança, explicando para
outra, conferia um estatuto inarredável. Seria melhor considerar estas
mediações a cada procedimento usado ao invés de tentar camuflar os vieses.
Por outro lado, o fato de ser vista como "uma colaboradora" na escola,
diminuía em muito a estranheza com que se trata pesquisadores, "alguém que
só presta atenção e não faz nada", "a gente fica toda errada com aquela pessoa
ali só prestando atenção na gente" - como se referiam alguns.

Nos dois pnmeiros semestres, eu apenas compilava


observações, que também continuaram no terceiro semestre. As entrevistas
foram feitas em situações mais estruturadas, sobretudo no último semestre.
Cada semestre uma escola era observada, e não as três ao mesmo tempo, como
se poderia supor. Como disse, eu aproveitava meu trabalho na escola para
conseguir o trânsito necessário aos momentos de observação, sem que isso
causasse maior celeuma. (Creio que para mim. Eu ficaria perturbada se, diante
de tudo o que eu via e que me viam ver, eu de nada participasse).

As situações de observação fora da escola eu as fiz também


aproveitando o vínculo que tenho como trabalhadora (voluntária), que assessora

(e coordena) o "Um Canto em Cada Canto", que cuida da implantação e
manutenção de corais infantis (as outras linguagens artísticas são trabalhadas
também mas o canto coral é o fio condutor) com crianças das classes
populares. As observações em situações de educação não formal e que não
envolvem escolaridade foram feitas junto a essa ação educativa.
56

As duas metáforas que balizam esse olhar: Melancolia e


Angelus Novus - o momento do negativo e o imaginário do futuro.

Na fala dos alunos apareceu algo como "a alie que precisa
haver na escola é algo assim como a que nasce nos fundos de quintal e na rua".
"Porque todo o mundo que tá fazendo aquilo tá porque quer". "Porque todo
mundo ali tá fazendo aquilo, com gosto, não tem ninguém vigiando". "Porque
nessas horas a gente é o que é. Diz esculhambação, briga". (Outro interrompe:
"Beija". Riem). "É o mundo", concluiu. "Escola num é dessas coisa não, tia.
Aqui é para se educar". "Se a tia for fazer essas coisa aqui, deixar a gente fazer
como faz na rua ... A tia perde a moral". "Se for assim, eu nem venho para aula.
Fico por aí que é melhor".

Essa arte que os alunos dizem ter lugar nos quintais e nas ruas
certamente traz marcas culturais de classe, de gênero - o que faz com que as
vestimentas que se quer para elas na escolas não as comportem.

o tempo e o espaço da arte na escola são momentos punctuais:


espaço e tempo controlados. Não são dimensões que se expandem no ser
indivíduo e coletivo que cresce e se reconhece. O que se quer buscar nesses
rituais de escola e nos que foram alijados de seu espaço-tempo são vestígios de
dimensões perdidas historicamente e que precisam ser reconhecidas, porque

ainda parte do ser vivo que se educa. Ainda que amortecidos, dormentes,
esquecidos, esses vestígios da sensibilidade existem - é isso que se quer dizer.
ós os reconhecemos por sinais, marcas, silêncios, rituais, palavras, onde eles
utilizam a vestidura possível para aparecer. (Os vestígios da sensibilidade.
Perdida?).

Ao tentar ir iluminando essas cenas, esses rituais de escola,


penso que se vai iluminando o que foi perdido, deixado a um canto. ora
amuflado, ora des estido de suas cores e características, e travesti do em
57

outras. Essas usurpações não são obra de uma instituição (apenas) como a

escola. Toda uma rede de verdades supostas e de violências, com seus


símbolos, são produzidas, como wna gosma que escorre desse modo de existir

da socialidade, sustentado pelas classes dominantes.

Tentei fazer uma "escritura" dessas cenas e ritos, a partir de

uma perspectiva semiótica.

A cena ou o rito produzem, em seus entrelaçamentos, uma


quase escrita alegórica, o que faz com que um certo distanciamento facilite a

reflexão sobre o que é e o que poderia ser o exercício de crescimento em

direções a novas dimensões do ser que aprende.

Em seu trabalho sobre o drama barroco, W. Benjamin escolhe


um quadro de Dürer, intitulado "Melancholia I" (Melancolia) para fazer a

alegoria de tudo o que a história tem de sofrido, falho, imprimido num rosto.

Flávio René Kothe (1978:64) diz que esta "não é uma visão otimista da
história, é uma visão que recolhe tudo aquilo que ela poderia ter realizado e não

realizou". E, referindo-se à Melancolia, figura alegórica base do barroco,

segundo Benjamin, diz Kothe:

"A distância entre o que poderia e deveria ter sido em confronto



com o que foi e é, transforma o rosto em caveira hamletiana. O seu quietismo e

rigidez são os da própria história: ela os assume e espelha em si, condenando

em fala muda a história. Absorve o negativo em si e por isso não é valorizada.

O seu distanciamento aparente é o reflexo da distância entre o que é e o que


poderia ser. Pelo fato de mostrar isto, desmistifica, desmistificando, pode ser o

caminho para a felicidade. Dando uma visão da vida a partir da morte,

mostrando a morte existente na vida, acarreta uma profunda melancolia, mas


pode também dar vida à vida". (ibidem, p. 64).
58

Num outro trabalho de Benjamin sobre arte moderna ( o


"Trabalho das Passagens"), Benjamin também escolhe um quadro, agora de
Paul Klee, chamado "Angelus Novus" para traçar novamente uma visão
alegórica dessa época da história (1939/1940), a partir da alegoria do anjo.

Assim se refere Benjamin: "Há um quadro de Klee, chamado


'Angelus Novus'. Nele está representado um anjo, parecendo afastar-se de
algo, que contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas
asas estão prontas para voar. O Anjo da história deve parecer assim. Ele tem o
rosto voltado para o passado. Onde nós vemos uma seqüência de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula ruínas
sobre ruínas e as arremessa ante seus pés. Ele gostaria de parar, de acordar os
mortos e de recompor o destruído. Mas uma tempestade sopra do paraíso,
entranhando-se em suas asas - e é tão forte que o Anjo não pode cessá-Ias. Esta
tempestade empurra-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas,
enquanto o monte de ruínas cresce ante ele até os céus. Aquilo que chamamos
progresso é esta tempestade". (KOTHE, 1978:65).

Estes dois quadros, o primeiro revelando a morte existente na


vida, ou a distância entre o que é e o que poderia ser, e o segundo, colocando
wn impulso do olhar para o futuro como inevitável, compulsivo, apesar das
ruínas, estas duas alegorias dão conta de balizar duas ordens de preocupações

deste trabalho: esta iluminação do momento do negativo no que ele é e,
também, a compulsão para se caminhar na direção do imaginário do futuro.
59

CAPÍTULO IV

Estudo de Cinco Rituais onde se diz que está a Arte da Escola ou Cinco
Fugas para uma Dimensão Desejante.

Ritual I

Ritual de Encerramento do ano letivo ou festas comemorativas


de datas cívicas ou religiosas do calendário escolar.

Pátio- O lugar da cena I ou Ritual I

O Espaço do Pátio

O Pátio é um lugar descoberto: leva-se sol no corpo inteiro.


Costumeiramente é o lugar do recreio e, em datas especiais, o lugar do ritual de
comemorações de datas cívicas, religiosas ou referentes ao encerramento do
semestre letivo.

No pátio se fala que as crianças estão "liberadas". As


professoras dizem que as crianças estão "liberadas para o pátio" (nunca dizem

'liberadas para as aulas").

Nele se diz que as crianças estão com os "cabelos ao vento" e


soltas na buraqueira". Ainda sendo uma área da escola ( se alguém fizer algo
onsiderado "errado" no pátio da escola, diz-se que ele "feriu as normas do
stabelecimento") é, contudo, uma área menos íntima, onde há mais expansão
dos corpos e menos vigilância que na sala de aula. Diz-se do pátio que é o
. lugar onde se soltam as crianças". As professoras pedem para "soltar as
rianças mais cedo hoje para o pátio". Esta ambigüidade de estar dentro da
60

escola mas se estar num recanto dela onde "se soltam as crianças", também se
expressa espacialmente, uma vez que essa área, do pátio, fica na confluência
entre as salas de aula e a rua.

No pátio se brinca de bola (diz-se apeans, porque nas escolas


que observei nunca houve bola para se brincar). A brincadeira comum ao pátio
é "de pega", de "manja" ou outro tipo de brincadeira de correr e se pegar. Em
tese, o pátio é o lugar onde se pode fazer esporte e brincadeiras dirigidas que
não se faz em outras áreas da escola. Nas escolas que observei, as situações
dirigidas se limitam às aulas de educação física - que não atingem o J o grau
menor.

Nas brincadeiras comuns ao recreio, no pátio, usa-se o corpo


inteiro - assim como de corpo inteiro se toma contato com o sol e o vento. Nos
jogos do pátio (espontâneos) as crianças correm, pulam, mexem mãos, pés,
pernas, braços e cabeças, O tronco também se movimenta. O corpo costuma,
nessas horas, estar a esticar-se, expandir-se, abrir-se. Os que não jogam e
apenas conversam, o fazem de pé, geralmente, por isso é também característico
do modo de estar no pátio, esse jeito de falar com o corpo inteiro. De se mexer
com o corpo inteiro quando se fala e ri no pátio. No pátio há mais sons de risos
que em outros lugares da escola. Este falar e rir está junto de olhar e ser visto
com o corpo inteiro, sentido com o corpo inteiro.
I

O pátio é o "lugar do riso". A associação que se pode fazer do


riso com a distensão corporal, com o olhar de corpo inteiro a um corpo inteiro,
em o travo das carteiras retendo o movimento ... parece significar que o pátio é
uma espécie de espaço permitido para o corpo da infância pulsar, com limites,
um momento controlado, em que a escola emudece de um lado, vira-se as
ostas aos alunos e "solta-se para o recreio" - e aí o pátio parece rir inteiro. No
recreio o riso aparece como ajudando a criar um veio, um fiozinho onde eSCOlTe
a rítica que se esboça, aga, ao instituído. Ela é feita mediante a gozação, a
61

palhaçada, a molecagem - que é o que eles dizem que estão a fazer nessas
horas. Parece ser a "resposta" corporal ao que está sem espaço para ser
elaborado, escutado de outro modo na sala de aula. Essa "resposta" escorre
pelas margens. Essa "resposta" à forma e ao conteúdo da cultura escolar
necessita de um corpo inteiro que pulse, sinta, pense, aja. E esse corpo inteiro
"solta-se" no pátio. Diz-se até o seu contrário: "hoje eu vou prender a 4<1 até
9:30, depois é que eu solto". O olhar do adulto aprende com ou apreende esse
desnudamento de se estar solto no pátio? Acompanha esse desnudamento?
Nessas horas em que se está "solto no pátio", as crianças e os maiores ensaíam
tomar contato com suas emoções sobre o que vem sendo colocado pela
"cultura do antes e depois do recreio". Um respingo, outro de riso vai
atravessando o medo, a repressão internalizada (também) e se articulando num
amálgama de irreverência e molecagem. Com o riso, vem depois o chiste, a
"presepada", a "lorota", a esculhambação (que é a crítica com seu peso e
brutalidade), vem também a gozação, a ridicularização, a baderna e as
combinações mais "pesadas" para o que fazer dos momentos fora de escola.

Uma professora disse, distraída: "Você já viu pássaros soltos?"


É assim". Parecem pássaros, se os pássaros rissem. O riso sela o nascimento de
um discurso que vai sendo costurado com imagem, frase, "mungango" e se
construindo pensamento arrwnado em seu caminho de ir-se completando.
Ainda velado (no pátio ainda há um pouco de medo) o riso vai compondo

cenas, rompendo esse monólogo dos currículos e do que "a escola quer da
criança". No pátio "só dá fuleragem, tia" e "conversa frouxa" e, se você olhar
bem, você escuta o pulsar de um corpo que ri. Um corpo que vai articulando
uma reflexão: a experiência de construir uma fala entre seus pares - e que
escorre pelas margens. Esse momento vinha depois do momento (10 tempo) de
"correção do dever de casa na lousa" e "exercícios do livro - tarefa de classe".
E antes de "se tirar da lousa o dever de casa". "A gente queria aprender novas
.cnicas com as estagiárias da Universidade ..." E, logo após: "A gente faz tudo
é d treinamento do E ado sobre construtivisrno mas ... a realidade da
62

Escola Pública é outra". "É a outra" - brincou outra professora que falava
vilipendiada por ser "a outra" num triângulo amoroso. E completa, mordaz,
sem querer saber de fato (não nessa hora): "Por que é que você acha que não
dão certo essas coisas aqui na nossa escola?"

Tempo no Pátio - o lugar da Cena I

o tempo no pátio diz-se que "passa voando". "A gente nem vê


o tempo passar" - as crianças dizem. Parece que quando se vê o tempo passar o
tempo é algo maciço como um trem lentíssimo que nos levasse a um lugar que
não chega. Sempre há frases como: "Já acabou o tempo?" "Puxa, já? " "Passou
rápido!" O tempo do pátio fica, costumeiramente, entre dois momentos grandes
em que não se está "solto" como no pátio. Estar no pátio, para as mães é
"perder tempo" e "lugar de vagabundagem". "Eles têm de aprender alguma
coisa logo para ganhar a vida" e "no pátio se perde tempo". Uma criança falou
que "estar no pátio é gozar a vida de criança". Por isso parece ser evidente,
para elas, que o tempo no pátio é gozo.

Quando a gente pergunta porque é bom o tempo do pátio, as


crianças costumam dizer que "no pátio a gente é dono do tempo", que "se faz
do tempo o que quiser". Por isso se poderia dizer que o tempo do pátio parece
I

sugerir wna experiência de autonomia das crianças sobre o que fazer do tempo
do pátio. Esse "que fazer" desse tempo é negociado entre grupos. "Vamos
brincar de elástico" (um elástico que é segurado por duas crianças, uma em
frente à outra e que dá margem a que façam simultaneamente uma série de
palmas ritmadas, com as mãos wna da outra e, também, alguns malabarismos
de mãos e pés). As outras: "Não. De pega, hoje". "Eu não vou" - disse lima. E
outra também. A maiorzinha disse: "Quando tu quiser brincar de elástico, a
gente também não vai". Houve wna negociação longa de silêncios e olhares e,
ao cabo de alguns minutos mai , foram brincar de pega.
63

No pátio também há um "não fazer". Esse "não se sabe bem o


que se vai fazer", esse "corpo mole" ("a gente fica aqui de corpo mole, é isso
que a gente faz do tempo no pátio", "a gente fica no pátio de corpo mole e o
tempo vai passando") parece fazer parte do gozo e do modo de se usar o tempo
no pátio.
"A gente faz o que "pintar" na hora. E isso é que é bom".
Alguém se refere ao tempo no pátio como "um momento sem dever nem
obrigação". Apesar de não haver obrigações a cumprir quanto ao uso do tempo
no pátio, exceções são feitas para as aulas de educação fisica. "A fisica, mesmo
quando tá legal é uma aula, entende? É aquele negócio do comportamento, não
conversar, o dever, a obrigação, essa coisa de aula ..." Nesses momentos, o
pátio funciona como "essa coisa de aula". Como se não fosse pátio, fosse aula
mesmo, "igual lá dentro, só que aqui fora, entende?"

A Cena I

A Cena I mostra os pais e outros adultos da família das crianças


numas cadeiras que contornam todo o espaço do pátio. Este contomo vai sendo
preenchido, em cadeiras, por dentro, até ficar um espaço ao meio, vago, onde
vão acontecer as apresentações dirigidas e as falas dos adultos.

À frente destas cadeiras onde estão os adultos que vão assistir


ao encerramento ou à festa, estão sentados, no chão, as crianças do 10 Grau
Menor. O preenchimento das crianças e adultos no espaço forma um retângulo:
como no retângulo, dois lados iguais têm maior número de pais e crianças que
os outros dois lados.

No centro do retângulo acontece uma quadrilha, precedida de


outras danças para São João. A quadrilha fora ensaiada por "duas moças da
omunidade que sabem os passos". A quadrilha é com os meninos maiores.
64

"As outras danças são bestinha, tia. Bom é a quadrilha. Mas a tia só quer fazer
com os maiores ..." A quadrilha, portanto, é o último número - o ponto alto da
festa. É acompanhada por um som que fica sempre chiado, ao amplificar-se.
Nos ensaios não havia música, só os ensaios dos passos. "Se a gente não botar
para ensaiar bem direitinha, na hora eles erram". A preparação, os ensaios,
portanto, tinham "o objetivo de não errar no dia".

Imagem "Congelada" da Cena I ou Ritual I:

As cnanças dançam a quadrilha, os pais assistem e as tias


ajudam a "controlar" os meninos, enquanto outros educadores apresentam os
números, dão avisos.

As representações

Quando se perguntou: "A arte na escola, onde está?", um


número significativo de professores remeteu à Cena I: festas de encerramento
do período letivo ou comemorações de datas cívicas ou religiosas. Como as que
acabei de descrever.

Quanto às representações que os professores fizeram aludindo a


estes momentos, vamos transcrevê-Ias inteiras para, depois, comentar.
65

Pergunta: A Arte na escola onde está?

Quadro I

Professores

1 ~ "Nas festas de encerramento do período letivo, claro. Todas


as turmas se apresentam ... A gente faz aquele ensaio bem um mês antes. Senão
elas erram no dia e fazem feio ... É jogral, poesia, dança folclórica - nosso
folclore não é arte? - e até peça de teatro criada por eles mesmos. Tudo isso
não é arte? (pausa). Agora não é mais tanto ... Às vezes não dá para fazer. Já foi
melhor. A gente vai se desestimulando com a escola pública e com tudo dela ..."

2 - "Nas comemorações de datas religiosas ... Datas cívicas ... do


calendário escolar. São momentos em que a gente mostra nossa alie. A parte
religiosa é uma coisa da cultura do nosso povo e a cívica por que não? Já foi
mais ... Antes ... a gente fazia a coroação no mês de Maria Maio, né? Com os
contos e os dramas da ... da liturgia, não é? Os meninos e meninas, até as
meninas, têm vergonha dessas coisas ... e fazem um mungango. Mas eu acho
que aquilo mexia com todo mundo. Eram dramas lindos, todo o mundo
gostava ... Os cantos ... Tinha parte falada e parte cantada no drama todo ... Eu
acho que essa coisa de TV, do ...(Pausa) Mudou muito. Não sei ... A educação

toda. Os alunos agora vão tendo aquela mentalidade de se envergonhar com
essas coisas ... Datas cívicas, então ... Mas a arte estava aí".

3 - "Nas datas cívicas. República ... Independência ... Libertação


dos escravos ... Tem ainda um pouco ... (Pausa). Arte na escola. (Pausa). Era
mais. Não era assim uma coisa modema mas tinha. O hinário oficial, tinha ...
Pelo menos isso se aprendia de música. O chamado canto orfeônico ... eu
guei. Esse tempo eu ainda peguei. Isso foi tirado ... Podia ser ... Uma coisa
mais ... Atual. Isso foi tirado e não se botou nada no lugar".
66

4 - A arte na escola está sobretudo nas comemorações. Datas


festivas, Cívicas, Religiosas, também. Quando se falava em religioso vinha na
cabeça um bocado de coisa da Igreja que não se aceitava mais ... Chegou uma
hora que isso foi perdendo. Aí tiveram de se renovar. Rever essa coisa de culto
exterior ... Tava exterior demais, a Igreja. Vieram outras informações ... O que
eu sei é que havia pastoril. .. Pastoril todo fim de ano ... E a arte parecia mais
viva que agora. Na escola, que eu tou falando".

5 - "Todo o mundo achava ruim. Cansativo. Chato. Solenidade


tem essa coisa insuportável de custar muito. E de não ser mais espontânea. É,
mais feliz, você tem razão. A gente tinha dificuldade de manter a disciplina
com eles. Quando não era hasteamento da bandeira, era discurso. Ou tinha
falatório demais. Aquela coisa moralizante demais. E falsa. Todo o mundo via
que era falsa. (Pausa). Não sei se foi a ditadura, a repressão violenta aquele
tempo enorme ... Agora é a desmoralização que é a corrupção ... do presidente,
dos governantes, dos políticos ... A meninada não distingue: bota tudo num saco
só: povo, político, bandeira. Eles acham esse negócio de civismo uma
babaquice. Não sei se é porque eu fui de política estudantil. .. A meu ver, faltou
a medida. Porque pátria ... não são esses ... que passam ... O povo é sempre
pátria. E sempre há o povo".

6 - "Nas comemorações do ano letivo: final de semestre e datas



de festas do calendário oficial. Isso era sempre horrível. A gente ficava quatro
horas em pé, no sol quente, as crianças suadas, com sede, com fome e a gente
segurando as pontas para bagunça não tomar de conta... E esperando às vezes
para dizer uma frase, num drama, num jogral ou ... Eu achava uma coisa tão
formal que matou ... Hoje pelo menos a gente vai buscar o cívico cantando,
oetando ... Até o nome, cívico, eu acho que não é isso. A gente vai buscar
oisas que são da vida mesmo. Um exemplo? Uma festa de encerramento do
O pa sado. Um grupo de alunos fez um menino de rua nascendo nas ruas de
oje. Jogados como são. pergunta era pelo sentido do Natal: a gente tinha
67

algo a ver com aquilo? E se Jesus nascesse hoje ali? Eu acho isso melhor que
aquela decoração toda que tinha nessas horas. (Rí). Tudo era muito decorado.
Nos dois sentidos.

7 - "Nas festas de final de semestre e datas festivas, a arte tá ali.


A gente não sabe bem como vai ser cada vez .... Porque a gente não tem uma
formação para isso ... mas as pessoas, os alunos, as professoras têm tanta coisa
dentro delas para expressar, pra dizer, que isso acaba explodindo numa hora
dessas. A arte é essa coisa que a gente nem segurando mais, explode".

8 - A arte está ... nestas datas .... Nestas festas de escola.


Comemorativas... Entrega de boletins... O que eu não gosto disso é a
obrigação de fazer isso como se a gente tivesse de mostrar serviço que tudo tá
funcionando direito (e não tá) e que a diretora imprime uma ordem a tudo ...
Precisa que esse momento da arte seja um postal? Um cartão de visitas da
escola? Esse lado obrigatório ... Só obrigatório, não. Tem mais ... eu não acho .
Não bate com o lado da arte. As professoras devem organizar a programação .
Não tou fugindo das responsabilidades, não. Mas o mesmo ... ramerrão .
Acaba ... O lado da espontaneidade, da criatividade, essas festas não tiram não.
ão tiram e dão só o gostinho. Fica o eu das crianças preso, querendo se botar
para fora sem saber. A gente se perde, eu acho. Misturou o novo e o antigo de
wnjeito que eu acho que a gente se perdeu".
I

Pergunta: Onde está a arte da escola?

Ahmo:

- Nas coisas que a gente inventa. Como? Quando? Quando as


tias pedem. (pausa). Nas datas. Às vezes o trabalho é apresentar uma música
que a gente criou ... Ou uma peça ... Um ... painel, né? A nossa turma uma vez
fez um rap com música e a coreografia. A letra era sem fim. (RI). Foi a maior
68

comédia. O assunto era a incompreensão dos adultos e a esculhambação que tá


o mundo. Pela Bela Vista a gente dá uma geral no resto. É só aumentar o
visual, a dose ... porque a loucura é a mesma ... a arte na escola é a única hora
que a gente olha pro mundo e diz: não é nada disso, Ó, cara".

Situação de entrevista em grupo. A pergunta foi a mesma: "a


arte da escola, onde está"?

(Era recreio e esse era o "grupo dos fora de faixa". Da 4:1 Série.
Algumas professoras dizem que "é a turminha que não quer nada". A diretora
"tá de olho neles, para botar para fora. Porque ela soube que eles tão formando
uma "gangue" - disse outra professora).
- "Nas festas da escola. De entrega de notas em meio de ano ...

- Tem no fim, galalau.

- No fim e no meio, tanto faz, babaca.

- Deixa o cara falar, macho.

- ... O Grêmio ... dos caras do outro tumo ... Do sistema de TV ...
Eles organizavam esse lance .

- Tinham wn conjunto ... No final tocavam ... Uma COIsa para


-aler.

- Eu acho que as professoras tinham preguiça (RI).

Elas deixaram por conta da rapaziada e a rapaziada tomava de


onta mesmo.
69

- Elas ficam muito nervosa porque elas querem organizar


demais ... (Ri) E a gente quer mais é curtir.

- O Grêmio organizava concurso de poesias.. Festival de


música Tanta coisa ... Mas a direção cortou. Disse que tem uns maconheiros
no meio Cortou.

- Parece que teve um que foi criticar a escola. Ela cortou. Com
o Grêmio organizando, eu acho que tinha arte. Com a diretora é paieza*. A
gente fica só se lembrando de quando o Grêmio se metia.

- É uma briga por poder. E sempre a escola ganha. É um jogo


que a gente já sabe quem vai ganhar. Não tem graça. O que vem no meio é
queixo* .
- Professor não devia ficar queixando os alunos. Eles deviam
queixar a direção, que é quem pega no pé deles. Eles dizem que não
concordam com isso e aquilo.

- Quase dá para acreditar. (Riem).

- A corrupção ... O autoritarismo ... Eles dizem que são contra.


Mas na hora do "vamo ver" eles roem a corda. E a direção continua dando as

cartas.
- E dizendo que recebe ordens. (Riem).
- Paia. Paieza. *

"Paieza" tem acepção de coisa ruim, de categoria inferior.


70

- Quando a gente disse a ela que ficar na escola é sacrif1cio, o


maior sacrifício, parecia que a gente tava xingando a mãe dela. Mas é.

- Vamos nessa, cara.

- Daqui há pouco termina o recreio, cara.

- Uma coisa eu digo: a gente aprende tudo que é de queixo na


Escola. Como é queixo? É assim: a gente sabe, todo mundo, quem tá dizendo
sabe e quem tá escutando sabe, que aquilo ali não é assim, aquilo que a pessoa
tá dizendo. Mas ela continua dizendo, explicando o que a gente, e ela também,
ê que não é. É queixo*. (Todos riem).

- Queixudo.

- Tu que é... (Riem)".


Comentando a Cena I, vemos que, de acordo com Susanne Langer, "a
linguagem, na acepção estrita, é essencialmente discursiva, possui unidades
permanentes de significado, combináveis em unidades maiores: possui
equivalências fixas que possibilitam a definição e a tradução; suas contrações
são gerais, de modo que ela requer atos não-verbais, como apontar, olhar, ou
I

inflexões enfáticas de voz para consignar denotações específicas a seus termos.


Em todas essas características salientes, ela difere do simbolismo sem palavras,
que não é discursivo e, intraduzível, não admite definições dentro de seu
próprio sistema e não pode transmitir diretamente generalidades

Queixo tem acepção de "conversa fiada", falação enganosa, lorota, É um


modo de mentir requintado, utilizando-se as sinuosidades da linguagem.
71

Os significados fomecidos através da linguagem são


sucessivamente entendidos e reunidos em um todo pelo processo chamado
discurso; os significados de todos elementos simbólicos que compõem um
símbolo maior e articulado são entendidos apenas através do significado do
todo, através de suas relações dentro da estrutura total. Seu próprio
funcionamento como símbolos depende do fato de estarem envolvidos em uma
apresentação simultânea e integral. Essa espécie de semântica pode chamar-se
"simbolismo apresentativo", para caracterizar sua distinção essencial em face
do simbolismo discursivo, ou "linguagem" propriamente dita "(LANGER,
Susanne. Filosofia em Nova Chave, SP, Perspectiva, 1971. apud KOUDELA,
1991:)".

Nas escolas que observei não havia arte-educadores. Algum dos


professores se destacava e era qualificado para "essa parte das tarefas da
Escola". Geralmente essa pessoa, que era posta de fato como um arte-
educador, recebia o apoio inicial da direção e dos professores, em sua maioria,
que ficavam contentes por ter achado quem cuide dessa "parte de ensaios das
festas e das festas mesmas". E suspiravam: "Meu Deus, é um trabalhão!" Uma
professora, religiosa, que tinha tomado a si a tarefa "dessa parte religiosa e de
educação artística", uma vez comentou, desapontada:

" quando a gente vai querer fazer algo junto aos temas e
situações que são trabalhados pelos outros professores, fica aquele ar de
constrangimento ... Como se a gente tivesse fora do lugar. .. Tomando lUTI

lugar ... Como se a gente quisesse entrar na seara alheia ..."E, doutra feita: " ...
um trabalho cotidiano, mais prolongado com a criança não é nem pedido nem
querido ... O que se deseja é essa coisa de ter aquela apresentação, de ver
aquela coisa arrumadinha e bonita no final. .. Porque a maioria dos professores
acha que educação artística bagunça a cabeça das crianças. Na questão da
disciplina. E, para fazer qualquer coisa, toma um tempo muito grande. Ai fica
72

só essa coisa de encerramento, dia das mães, semana da Páscoa, da Pátria, da


Criança, dia do Índio. "É como se a gente tivesse de cumprir aquele ritual. .."

Noutro momento, ainda: "tudo parece dizer que esse pátio nas
festas e datas assim é o espaço permitido para trabalhar com essa parte das
pessoas que a gente esqueceu. Qual parte? Eu poderia dizer que é aquele dom
da música, por exemplo. Mas não é dom não, que todos têm e dom parece ser
COIsa de privilégio. Poderia dizer expressão, criatividade, alegria,
espontaneidade ... Mas não é. Prá mim é uma pessoa inteira que fica muda ...
assistindo ... as aulas. Assistindo que lhe digam que é só aquilo ... Prá mim,
religião acorda a pessoa para justiça do mundo. E arte, para vida ..."

Depreende-se destas falas uma concepção de arte em que se


parece colocar a educação artística dentro do campo da educação estética.
FUSARI (1992:56) sustenta que "é importante que os cursos de arte sejam
pensados também pelos caminhos de uma educação estética, a qual deverá
articular-se com esse "fazer" (o fazer artístico), partindo do contexto da
percepção, do uso, conhecimento, apreciação e crítica artística. A educação
estética irá contribuir para a ampliação das habilidades já existentes,
estabelecendo no processo educacional a ponte entre o fazer e o refletir". E,
ainda, "não existe na maioria dessas escolas, um trabalho ativo que mobilize
reflexões de ordem analítica, comparativa, histórica e crítica das coisas
I

percebidas, como deveria ocorrer numa proposta de educação estética". " ... a
ducação estética assemelha-se profundamente com a educação intelectual,
principalmente por aprofundar o interesse cognoscitivo e desenvolver o
processo de percepção e capacidade de observação". (ibidem p. 57).
73

A especificidade da arte como trabalho humano.

FUSARI e REZENDE, citando Thomas Munro e Sofia


Morozova, chamam a atenção para que o processo artístico não se fie
unicamente muna produção final e em "técnicas" isoladas, em que pese a
reconhecida importância (que Rezende e Fusari sublinham ser consensual, em
arte-educação) de se trabalhar atividades artísticas nas oficinas e salas de aula,
valorizando como básico o aspecto do "fazer" na arte.

Pareyson (1993) diria mesmo que esse fazer é fundante na


experiência artística. A essencialidade da arte estaria no que ele chama
fonnatividade - essa fonnatividade estabelecendo-se, na arte, de um modo
específico e intencional.

"Como operação própria dos artistas a arte não pode resultar


senão da ênfase intencional e programática sobre uma atividade que se acha
presente em toda a experiência humana e acompanha, ou melhor, constitui toda
manifestação da atividade do homem.

Essa atividade, que de modo genérico é inerente a toda a


experiência e, se oportunamente especificada, constitui aquilo que
propriamente denominamos arte, é a "fonnatividade", um certo modo de

"fazer" que, enquanto faz, vai inventando o "modo" de fazer: produção que é,
ao mesmo tempo e indissoluvelmente, invenção. Todos os aspectos da
operatividade humana, desde os mais simples aos mais articulados, têm um
aráter, ineliminável e essencial, de fonnatividade. As atividades humanas não
odem ser exerci das a não ser concretizando-se em operações, isto é, em
ovimentos destinados a culminar em obras. Mas só fazendo-se forma é que a
bra chega a ser tal, em sua indivídua e irrepetível realidade, enfim separada de
u autor e vivendo vida própria, concluída na indivisível unidade de sua
erência, aberta ao reconhecimento de seu valor e capaz de exigi-Io e obtê-Io.
74

Nenhuma atividade é operar se não for também formar, e não há obra acabada
que não seja forma", (ibidem, p. 20).

Vemos aí que o ato de formar é uma exigência até para


operações do pensamento. "Toda operação humana é sempre formativa, e até
mesmo uma obra de pensamento e uma obra prática exigem o exercício da
fonnatividade", (ibidem, p. 25). Ele envolve aspectos de produção e invenção -
todavia, também estes aspectos acontecem nas outras experiências da ciência e
nas atividades produtivas. Nesse sentido, diz-se que todas as atividades têm um
operar formando obras, açambarca toda a pessoa humana: não aconteceria,
pois, situações em que a fonnatividade se faria sem as atividades do
pensamento e vice-versa. Ocorre, todavia, que há algumas capacidades que
ficam subordinadas a outras - embora Pareyson se pronuncie pela unitotalidade
da pessoa, nos seguintes termos:

"Nenhuma das atividades humanas consegue especificar-se em


uma operação sem a conspiração, a contribuição, o apoio e o controle de todas
as outras, cada uma das quais, no mesmo ato de subordinar-se a ela, continua
todavia agindo em seu caráter próprio: não se pode pensar sem ao mesmo
tempo agir e formar, nem agir sem ao mesmo tempo pensar e formar, nem
formar sem ao mesmo tempo pensar e agir. Conforme a posição que assumem
dentro de uma determinada operação, as atividades humanas se fazem portanto,
I

a cada vez, específicas ou comuns, predominantes ou subordinadas,


intencionais ou constitutivas.

A necessidade da concentração de todas as atividades em uma


operação específica é garantida pela unitotalidade da pessoa, e esta, como
autora da própria operação, coloca-se nela por inteiro, com todas as suas
ossibilidades e atitudes próprias" (ibidem, p. 24).
75

Acontece, porém, que a arte, se é sempre fonnati a, por ser


operação humana que abarca toda a vida espiritual, possui a especifícidade de
ser "fonnatividade pura". Esse conceito de Pareyson parece-me próximo da
idéia de Kant sobre a arte como finalidade sem fins. A forma sendo a razão de
ser primeira, sobrepondo-se ao valor de uso dos objetos (à utilidade). Assim
explicita Pareyson:

" ...Mas na arte essa fonnatividade, que investe toda a vida


espiritual e possibilita o exercício das outras operações específicas, se
especifica por sua vez, acentua-se no predomínio que subordina a si todas as
outras atividades, assume uma tendência autônoma, rumo independente,
direção diferente, e, ao invés de apoiar as outras atividades no exercício das
respectivas operações, mantém-se por si mesma, fazendo-se intencional e fim
em si mesma" (ibidem, p.25).

A forma do pensamento subordinar-se à intenção fonnativa, na


Arte, certamente difere do pensamento como um fim em si mesmo, como na
pesquisa filosófica ou científica. Esse pensamento, para Pareyson, é de uma
determinada espécie: tem como função precípua o juízo crítico, que exerce seu
poder no curso mesmo de formar a obra, essencialmente. "A alie é constituída
pelo pensamento porque a pura fonnatividade só consegue efetivar a própria
específica operação quando mantida e controlada pelo vigilante exercício do

pensamento crítico" (ibidem, p. 27).

É interessante notar que a ultrapassagem do senso comum, em


busca de posicionamentos mais analíticos, mais críticos, que ajudem a
"discriminação entre qualidades perceptuais e imagens, bem como o
desenvolvimento de níveis de percepção e composição" não precisa ser feita
com o abandono das influências artísticas da comunidade local. Fusari e
Rezende citam Thomas Munro, que se posiciona, sobre o assunto, nestes
ermos:
76

"A herança cultural deve ser apresentada aos estudantes


gradualmente, em tal qualidade e seleção que possa ser melhor apreendida,
apreciada e entendida em cada fase do desenvolvimento ... O estudante deve
omparar os trabalhos da população de sua localidade e essa produção pode ser
esenvolvida e enriqueci da sem perda de suas características", (FUSARI,
992:58).

Certamente que a percepção da escola como incentivadora das


anifestações artísticas que se presentificam nas "datas" e comemorações do
alendário oficial escolar, ainda parece se situar num nível mais rudimentar.
ão vai aí nenhum juízo de valor. É que, talvez, começar por um caminho de
alfabetização estética seja algo que envolveria uma análise mais global e um
estudo perceptivo das imagens, dos símbolos e gestos da nossa cultura. O
" sito de formas de trabalho mais apresentativas até incluir a discursiva parte
experiência sensório-corporal mais primitiva, envolvendo as funções mais
elementares de nossos olhos, ouvidos e mão, base do perceber, e que
nstituem uma moldura que é a vivência primeira, básica, a "leitura" de
.digos que não são só leitura e escrita e que envolvem uma espécie de
.. onnação da sensorial idade", na acepção de Brecht. Eu diria que haveria de
r uma "formação da sensibilidade"- ao lado do contato com a expressão da
bjetividade, a reflexão e a análise irem se re-olhando. O trabalho com os
ímbolos .
não envolve, como eu ia dizendo, apenas a dimensão lógica e
. güística - ele trabalha com uma fonte maior que é o sentimento e as formas.

o sentimento, em Arte, como "qualidades experimentadas".

Distinguindo a forma discursiva e a apresentativa como espécies


trabalhos distintos com o simbolismo, Koudela explica (1991):
77

"As polaridades que envolvem as discussões em estética são

problemas reais, que envolvem tanto a expressão do artista como a impressão

do espectador (a recepção)." O uso mais célebre dessa polaridade de

"princípios" opostos é a graduação feita por Nietzsche de todas as obras de

arte entre os extremos do puro sentimento e da pura forma, e a sua


classificação em dionisíacas ou apolíneas segundo a preponderância de um ou
outro princípio. Efetivamente, esse tratamento de uma antítese básica na teoria

da arte absorveu toda uma classe de "polaridades" relacionadas: emoção-razão,

liberdade-restrição, personalidade-tradição, instinto-intelecto, e assim por

diante". Susane Langer não aceita que haja de fato polaridade entre sentimento

e forma mas uma associação. Sentimento, para Langer, são qualidades não-

sensoriais que envolvem o Eu subjetivo. A idéia de Langer retoma Baensch,

para quem os sentimentos enquanto "qualidades experimentadas" contêm um

caráter muito concreto e particular. De Baensch:

" ... Na vida e no pensamento científico, nada nos serve a não

ser abordá-los (aos sentimentos) indiretamente, correlacionando-os com os


eventos descritíveis, intemos e extemos a nós, que os contêm c, assim

transmitem-nos, na esperança de que qualquer pessoa que relembre tais eventos

será assim levada de alguma forma a sentir as qualidades emotivas, também,

para as quais queremos chamar sua atenção". (BAENSCH, Kunst und Gefuh1.

Logos II, p. 5 e 6 apud LANGER, 1980:23) .


Com isto, vê-se que o problema da arte não seria mobilizar uma

espécie de memória emotiva ou colocar sentimentos para deleite, para a

experiência, somente, mas para o conhecimento sobre eles. Para Baensch, esta

é a própria definição da arte, senão vejamos:

" Como podemos captar, reter e manupular sentimentos, de


onna que seu conteúdo possa ser tomado concebível e ser apresentado à nossa

on ciência sob urna forma uni ersal, sem que sejam entendidos no sentido
78

estrito, isto é, por meio de conceitos? A resposta é: Podemos fazê-Io criando


objetos 110S quais os sentimentos que procuramos reter estejam incorporados
tão definitivamente que qualquer sujeito, quando confrontado com tais objetos
e dispostos enfaticamente em relação a eles, não pode deixar de experimentar
uma apercepção não-sensorial dos sentimentos em questão. Tais objetos são
chamados "obras de arte", e por "arte" designamos a atividade que os produz".
(BAENSCH, apud LANGER, 1980:23). Baensch vai tratar de nos levar para os
meandros da idéia de arte como Fonna Significante. Todavia, ele nos propõe
uma questão que, para Langer, é a nova chave na filosofia: a idéia do
sentimento na arte. Langer vai buscar, no estudo das estruturas tonais da
música, semelhanças lógicas com as formas dos sentimentos humanos -
grandeza, brevidade, fluência, estagnação, conflito, decisão, crescimento,
atenuação, etc. - e propor essas semelhanças como padrão da "senciência"
(substantivamente, o que sente ou é sensível). Todavia, ela faz uma distinção
entre captar objetos que dão prazer sensorial, ou sensorialidade, do que ela
chama de sensibilidade, que seria uma relação mais vital e intimamente
importante com a vida dos sentimentos. A tentativa de Langer é de partir da
idéia de obra de arte como "forma significante", que envolve uma "expressão
articulada do sentimento, refletindo as verbalmente inefáveis e portanto
desconhecidas formas de sensibilidade". (1980: 41).


o conceito de "importe" talvez esclarecesse melhor o que
Langer tem perseguido nesse sentido. Ela parte do estudo da música para
concluir que:

"A música tem importe (na impossibilidade de encontrar um


ermo que corresponda exatamente à palavra inglesa "import", que em lógica
significa "conjunto das idéias ou dos sentimentos que uma palavra ou uma
expressão desperta em um meio social dado, além do que esta palavra ou
expressão designa literalmente ...) e esse importe é o padrão da senciência - o
padrão da própria vida, como é sentida e conhecida diretamente. Chamemos,
79

então, a significação da música de "importe" vital ao invés de significado,


usando "vital" não como um vago termo laudatório, mas como um adjetivo
qualificativo que restringe a relevância do "importe" ao dinamismo da
experiência subjetiva" (1980:34).

Lidar com o paladar, sentir perfume doce, pôr o tato num tecido
delicado, macio, sentir prazer através do sensório, não é experiência estética.
Também a produção de uma mercadoria é diferente de quando um artesão cria
uma coisa bela - haveria de ter, nessas formas algo de "criação" que faz com
que arte seja "a criação de formas simbólicas do sentimento humano" (p. 42).
Segundo ainda Langer:

"Um artefato enquanto tal é simplesmente uma combinação de


partes materiais, ou uma modificação de um objeto natural a fim de servir aos
propósitos humanos, Não é uma criação, mas um arranjo de fatores dados ...
Uma obra de arte, por outro lado, é mais do que um arranjo de coisas dadas -
mesmo de coisas qualitativas. Emerge, do arranjo de tons e cores, algo que não
estava ali antes, e isso, mais do que o material arranjado, é símbolo da
senciência.

A feitura dessa forma expressiva é o processo criativo que alia a


suprema habilidade técnica do homem no serviço de seu supremo poder
I

conceitual, a imaginação. Não é a invenção de novos aspectos originais, não é a


adoção de temas novos, que merece a palavra "criativo", mas sim a elaboração
de qualquer obra simbólica de sentimento, ainda que no contexto e no modo
mais canônicos" (ibidem, p. 43). E segue, Langer, pretendendo expor esse
onceito em cada campo das artes, tentando calcá-Io com o que ela diz ser
mesmo uma teoria filosófica da arte.

Esta aparente digressão serve-nos para, desde já, propormos


algumas asserti as:
80

- Sensibilidade não se reduz a sensorialidade;

- Sensibilidade parece implicar também um construto não


discursivo;

- Para falarmos em educação estética talvez devêssemos desde


já admitir que há uma reflexão analítica, crítica, um ato do pensamento
discursivo mesmo, que também pode ser mobilizado (é necessariamente
mobilizado?) para o "conhecimento do sentido". A fruição, portanto, não
envolveria só uma apreensão sensória do objeto artístico mas mobilizaria as
idéias e sentimento que constituem a senciência ou a região que eu chamaria da
sensibilidade;

- A obra de arte não é um arranjo "coisal" do artefato mas,


através da imaginação criadora cria símbolos expressivos que contêm
sentimentos;

- Estes sentimentos são percebidos pelo receptor da obra de arte


de um modo que não se reduz ao modo lógico discursivo da razão;
- Isso não exclui que haja mna parte da razão que como que
dialoga (ou "encaixa?") este construto não discursivo numa estrutura perceptiva
que poderíamos também chamar conhecimento e conhecer.

A professora religiosa que entrevistamos, certamente percebia


essa "inteireza" dos aspectos que deviam ser mobilizados pela experiência
artística. O fato de a escola pensar no "produto final" (na festa) talvez não
devesse ser tomado por nós na conta de (apenas) preocupações motivacionais
exteriores à que envolve a necessidade da arte. Servir de "cartão de visita", de
. postal", de "fazer bonito" talvez devesse nos lembrar que é a obra de arte (o
roduto final, como diz-se na linguagem cotidiana dos alie-educadores) que,
nfun d u àquelas pe ntimento de gostar de arte. A estese foi
81

experimentada com a obra concluída... e não com o processo, poderíamos


dizer.

Essas preocupações, todavia, não me autorizam a simplificar as


questões (ou, simplesmente, a pôr as questões) do modo como essas escolas
têm colocado. Esses "rituais" das festas são um entre tantos que,
cotidianamente, prefiguram um tipo de homem que se está a reduzir em suas
possibilidades de criar algo novo em termos de convivência humana e de
qualidade do humano. Por enquanto, resta-me ir, como sismógrafos, registrando
os sinais desses estranhos corpos atrofiados na escola. Vamos buscar esses
sinais na dor nossa de cada dia, no sacrificio como disse o aluno (e, nós
sabemos, nem só disso vive a escola) para tentar tatear na busca do caminho
(sinuoso? tortuoso? doce?) da sensibilidade.

Voltando à Cena I ou ao Ritual I, vimos que a criança carrega,


no pátio, junto com a idéia dessa festa e dessa arte, o olhar do adulto (do que o
adulto quer ver nele). Ou: do que os educadores acham que os pais querem ver
nos filhos. Poder-se-ia dizer que, inadvertidamente, talvez, os educadores
atropelam o processo que vai desembocar na criação dos produtos de arte (no
caso, a representação escolhida (de produto artístico) são as festas com suas
apresentações constando das diversas modalidades de expressão artística).

.
Poder-se-ia dizer também que é característico desse modo de fazer arte que o
olhar do adulto se faça dentro e antes de qualquer experimentação mais
espontânea.

Nesse Ritual ou Cena pode-se ver (e ter sobre ela) falas que nos
remetem às primeiras incursões da arte na escola: um discurso sobre Cultura
omo uma espécie de humanismo no plano ético e político, vago, que não
apontava para contradições nem conflitos reais. Uma certa idéia de cultura
orno ilustração, aliada à civismo. Um civismo que compunha-se, em grande
arte, de um trabalho sobre o hinário oficial e sobre danças evocadas como
82

tradição folclórica. O discurso que tem esse "lugar" situa-se historicamente, no


Brasil, no período do que Libâneo e Savianni chamam de ideário educacional
tradicional. Seu momento histórico antecede a eclosão do movimento
escolanovista em nossas plagas.

É desse ideário uma crença e um louvor ingênuo (quase) na


idéia de se "ter cultura" e de se "ser um indivíduo culto". Essa apologia do
"culto" era feita em oposição aos "não-cultos": os que não tinham a educação
escolar de nenhum modo ou a tinham em bases menos profundas e continuadas.
Essa visão do saber do povo como um não-saber e de sua cultura como um
"não ser culto" ou "incultura" é expressa desde essa cena, no único papel que
se dá aos pais na Escola: o de assistência que, nos rituais de fim de semestre ou
ano letivo, aplaude sentada o que a escola quer Ihes mostrar, quer Ihes deixar
ver.
83

o Processo de Reificação das Consciências

liA denúncia daquilo que atualmente passa por razão é o maior


serviço que a razão pode prestar". (Rouanet)

"Chega um tempo em que não se diz mais:


Meu Deus

Tempo de absoluta depuração


Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil
E os olhos não choram
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

(Carlos Drummond de Andrade)

o poeta Drummond não diz a palavra crise. A relação com


Deus, com o outro, consigo foi esvaziada. O próprio sentimento do mundo,
expresso no "choro" e no "coração seco", parece desnecessário. Sobrante, eu
diria. Mais embaixo, no meio do poema, ele parece nos dar uma chave: "És
todo certeza, já não sabes sofrer". O homem atrelou-se ao existente, e este
arvorou-se como a única possibilidade de ser e de socialidade. O não sofrer que
Drummond alude, seria talvez uma conformação, na própria esfera do sentir,
das emoções, à racionalidade afirmativa de um real posto como único possível.
Quando a libido e todo o potencial revolucionário pulsional capitula ante um
tipo de razão que apenas reafirma o existente, o que há que ser feito? Se você
"já nem sofre", já nem sequer percebe a dor como dor. Se você "já nem sofre",
ocê também parece dizer que um tipo de racionalidade mantenedora da ordem
84

que aí está, se mantém às expensas dessa negação. Clarice Lispector


(LISPECTOR, 1992, p. 61-62) em seu conto "O Ovo e a galinha" metaforiza
esta discussão nesses termos:

"A galinha que não queria sacrificar a sua vida. A que optou por
querer ser "feliz". A que não percebia que, se passasse a vida desenhando
dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia
perder a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por
possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para
suavizar a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia
prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que
era para que ela se distraisse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não
sabia que "eu" é apenas uma palavra que se desenha enquanto se atende ao
telefone, mera tentativa de buscar a forma mais adequada. A que pensou que
"eu" significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que
são um "eu" sem trégua. Nelas o "eu" é tão constante que elas já não podem
mais pronunciar a palavra "ovo". Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo
precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à
grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo".

Na história, o despertar do sujeito (a galinha do conto) implica


reconhecer que há um poder que aniquila o "eu" que quer ter um "si-mesmo",

em nome de que o que há é a feitura do ovo. E para fazer-se o ovo anula-se o
ujeito, a galinha. Suas preciosas penas (que ela julgou preciosas) só interessam
para reproduzir o ovo, travessia na qual o sofrimento não pode ser aniquilador,
pois se iria pôr tudo a perder: o ovo e a galinha.

Este eu abstrato (como um nome que se rabisca enquanto se fala


ao telefone) confere ao poder coletivo a posse de si. E aí se vê outra traição: a
ominação tem a máscara do coletivo.
85

"As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um "eu"


sem trégua. Nelas o "eu" é tão constante que elas já não podem mais
pronunciar a palavra ovo". O "eu" se estabelece quando se aceita a alteridade, a
diferença. Para haver o "eu" há que haver o outro. E o não - eu e a negação da
diferença é também a afirmação do totalitarismo que se revestiu (ou desvestiu?)
de esclarecimento.

Também na teoria, "o esclarecimento expulsa da teoria a


diferença. Ele considera as paixões "ac si quaestio de lineis, planis aut de
corporibus esset" ("como se fosse uma questão de linhas, planos ou volumes").
A ordem totalitária levou isso muito a sério. Liberado do controle de sua
própria classe, que ligava o negociante do séc. XIX ao respeito e amor
recíproco Kantianos, o fascismo, que através de uma disciplina férrea poupa o
povo dos sentimentos morais, não precisa mais observar disciplina alguma. Em
oposição ao imperativo categórico e em harmonia tanto mais profunda com a
razão pura, ele trata os homens como coisas, centros de comportamentos"
(ADORNO, 1985:85).

É com a idéia de que essa grande vida não seja apenas uma
palavra vã que os pensadores da chamada Escola de Frankfurt vão se insurgir e
elaborar as bases do que eles intitularam de Teoria Crítica.

O Instituto de Pesquisas Sociais foi o local onde inicialmente se


aglutinaram Erich Fromm, Herbert Marcuse, Theodor Adomo, Horkheimer,
Walter Benjamin, Ernst Bloch, entre outros colaboradores da chamada Escola
de Frankfurt, Alemanha, cidade onde ficava o Instituto. Inicialmente
desenvolvendo pesquisas sobre a estrutura sócio econômica da sociedade
burguesa, desde o ano de 1923, quando o Instituto foi criado, nos anos
posteriores a 1930, passaram a dedicar-se à crítica radical da superestrutura
ultural. Perseguidos pelo nazismo (a maior parte dos membros do Instituto
raro judeus), mudaram- e I ai, sucessivamente, para Genebra (l933)t
86

Nova Iorque (1934), Los Angeles (1941) e, em 1953, ré-estabeleceram-se


novamente em Frankfurt, na Alemanha. Financiado por um rico comerciante de
cereais da Argentina e que mantinha vínculos parentais com um dos membros
do Instituto, essa independência financeira favoreceu-os nos posicionamentos
críticos que lhes caracterizaram a atuação.

Para a Escola de Frankfurt, fazer a crítica da razão que se


constituía como ápice do Iluminismo era também fazer a crítica da Ciência e da
sociedade que institui essa racionalidade dominante. Criticar o positivismo, que
se atinha à constatação dos fatos e os colocava numa moldura de afirmação do
progresso da ciência, que por sua vez validava o que se convencionou chamar
progresso social - esse o primeiro ataque dos frankfurtianos. Marcuse apresenta
as bases do positivismo (contra as quais vai-se apoiar a crítica frankfurtiana) do
seguinte modo:

"Desde a primeira vez em que foi utilizado, provavelmente na


Escola de Saint-Simon, o termo positivismo tem abrangido:

1) a validação do pensamento cognitivo por meio da experiência


dos fatos;

2) a orientação do pensamento cognitivo para as ciências fisicas



como um modelo de certeza e exatidão;

3) a crença de que o progresso do conhecimento depende dessa


orientação. Conseqüentemente, o positivismo é uma luta contra toda metafisica,
transcedentalismo e idealismo considerados como modos de pensamento
obscurantistas e retrógrados. Na medida em que a realidade dada é
ientificamente compreendida e transformada, na medida em que a sociedade
toma industrializada e tecnológica, o positivismo encontra na sociedade o
eio para a realização (e alidação) de seus conceitos - harmonia entre teoria e
87

prática, verdade e fatos. O pensamento filosófico se toma pensamento


afirmativo; a crítica filosófica se exerce dentro do quadro de referência da
sociedade e estigmatiza noções não-positivas como mera especulação, sonhos
ou fantasias "(GIROUX, 1986:.)

Os modos de se compreender a razão estão em relação com o


modo como se dá o trabalho histórico do homem. Quando, com o iluminismo, o
procedimento das ciências exatas se toma o próprio "ritual do pensamento", "o
pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina
que ele produz para que ela possa, finalmente, substituí-lo" (ADORNO,1985:
37).

A exigência de pensar o pensamento reduz-se a transfonná-Io


em coisa, em instrwnento - como se um determinado modo de se fazer ciência
se arvorasse a ser o próprio conteúdo e continente do mundo. "A equação do
espírito e do mundo acaba por se resolver mas apenas com a mútua redução de
seus dois lados. Na redução do pensamento a uma aparelhagem matemática
está implícita a ratificação do mundo como sua própria medida. O que aparece
como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao
fonnalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da razão ao
imediatamente dado" (ibidem, 1985:38)

Por isso os frankfurtianos dizem ser a razão instrumental um


modo de operar com a mesmice.

A razão reduz-se a este aspecto da razão que opera com esta


aparelhagem econômica que tudo justifica e faz o eco da mesmice.

Este pensamento que considerou espúria a região do mítico e da


afisica, em nome do esclarecimento, passa a vincar tudo com sua marca
""'••nfal: a de coerciti ame au o - conservar-se.
88

Quando se tentou fugir ao Mito, na tentativa de não se deixar


devorar pela impetuosidade das forças da natureza e, ao invés disso, controlá-
Ias, dominá-Ias, ter-se-ia incorrido na capitulação ao mito da civilização?
Perdendo o homem sua humanidade, não se reconhecendo no produto do seu
trabalho, achando-se alheio a si mesmo, num processo de alienação crescente,
o vagão da civilização não passou a ser território sem nome da des-razão, da
força cega, sob a capa de progresso e inteligibilidade? Uma espécie de
desnatureza não teria se apossado da natureza do humano, negando-lhe seu
sentido de sujeito?

Submergir a essa natureza segunda seria tão regressivo quanto


cair no mítico, do qual o homem do esclarecimento parecera fugir?

Por que a civilização teria trazido esse processo regressivo, se


assim se poderia dizer? Antes de me alongar nessa pergunta, seria importante
para o leitor perceber que o progresso das ciências e sua aplicação técnica,
estabelecendo um modo de usufruto de riquezas da natureza jamais pensado,
proporciona um certo nível de satisfação com a cultura, de um modo geral.
Freud mostra essa reflexão, no seguinte texto:

"Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito


de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente
I

adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza,


consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a
quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os
tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em
concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única pré-condição da
felicidade humana, assim como não é único objetivo do esforço cultural (o grifo
é do autor). Disso não devemos inferir que o progresso técnico não tenha valor
para a economia de nossa felicidade. Gostaríamos de perguntar: não existe,
então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento inequívoco no meu
89

sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade, escutar a


voz de meu filho que está morando a milhares de quilômetros de distância, ou

saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter atingido seu

destino, que ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não significa nada

que a medicina tenha conseguido não só reduzir enormemente a mortalidade

infantil e o perigo de infecção para as mulheres no parto, como também, na


verdade, prolongar consideravelmente a vida média do homem civilizado? Há

uma longa lista que poderia ser acrescentada a esse tipo de benefícios, que

devemos à tão desprezada era dos progressos científicos e técnicos". (p. 107.

Freud, S. O Mal - Estar da Civilização. RJ Imago, 1969).

Todavia, Freud, após reconhecer o indubitável acervo de ganhos

que a ciência açambarca, volta ao que ele chama "voz da crítica" e relativiza

esses legados. Ao colocar a felicidade em outro lugar que nós não temos (ao

admitir que a natureza dessa civilização não nos trouxe a felicidade que

buscávamos, com o "domínio" da natureza), tenta uma observação mais radical

da cultura. Dizer que civilização descreve "a soma integral de realizações e

regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais


e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza
e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos" (ibidem, p. 109) é a ponta do

iceberg que se quer ver por inteiro. Compreender a natureza dessa civilização,

à custa de que tensões ela se mantém, como se dá a luta entre o campo dos

desejos e o da realidade existente é começar a desconfiar da natureza profunda

destas contradições no nível da psique (desde o nível da psique) até suas

manifestações no mundo.

Com a Lispector, mais uma vez, vejamos esta sensação de ser

meio, de coisificar-se, alienar-se de si e de sua função de sujeito na sua história

pessoal e coletiva:
90

"Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo


o café da manhã. Sem nenhwn senso de realidade, grito pelas crianças que
brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia
amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas,
dia que é nosso sol e nós somos o sal do dia, viver é extemamente tolerável,
viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser


apenas um meio, e não um fim, tem me dado a mais maliciosa das liberdades.
Não sou boba e aproveito. Inclusive faço um mal aos outros que francamente.
O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois
aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro
que me dão como diária para facilitar minha vida de modo a que o ovo se faça,
pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba,
ultimamente comprei ações da Brahma e estou rica. "(1992:64)

Com uma nova visão de teoria social, partindo da crítica do


marxismo, a Escola de Frankfurt se caracteriza por fazer uma crítica radical da
cultura, aliada a uma análise da psicologia profunda. Conectar a crítica das
estruturas sócio-econômicas com o reservatório interior da psíquê que as
alimenta e, por sua vez, é por elas alimentado, é sua particularidade - decerto
um grande desafio. Para os frankfurtianos, não se tratava de negar a ciência

mas o modo como ela se edifica no mundo hoje. Separando-a da questão dos
fins e da ética, eliminando a auto-crítica e a possibilidade de criticar seus
próprios paradigmas e sua estrutura nonnativa, o conhecimento, para os
pensadores de Frankfurt se reduzia agora à reafírmação do existente. Como
ondenava Nietzsche: "Não é a vitória da ciência que é a marca distintiva do
éculo dezenove, mas a vitória do método científico sobre a ciência". Ignorando
categorias históricas fundamentais (como consciência, subjetividade,
bjetividade, essência, aparência) o positivismo, mais do que um erro
pistemoló . o é um tipo de conhecimento "interessado" à hegemonia
91

ideológica que sustenta o "status quo", o "ethos" do capitalismo. Em nome de


uma pseudocorreção metodológica se esquecia da complexa categoria da
verdade. Por medo do obscurantismo, o positivismo reduziu o conhecimento à
sua recorrência, esquecendo seu fundamento crítico e transformador.

liA teoria ... deve transformar os conceitos que ela traz, como se

fosse, de fora, para aqueles que o objeto tem de si mesmo; deixada a si mesma,
procura ser, e se confronta com o que é. Ela deve dissolver a rigidez do objeto
temporal e especialmente fixado em um campo de tensão entre o possível e o
real: cada um, a fim de existir, depende do outro. Em outras palavras, a teoria é
incontestavelmente crítica (GIROUX, 1986:34), entendendo-se por crítica tanto
o olhar para trás na história, como, desde o presente, ir levantando pontos de
luz para com ele tecer o imaginário do futuro.

Como diz Adorno: "Todo progresso da civilização tem


renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento.
Contudo, enquanto a história real se teceu a partir de um sofrimento real, que
de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua
eliminação, a concretização desta perspectiva depende do conceito. Pois ele é,
não somente, enquanto ciência, um instrumento que serve para distanciar os
homens da natureza, mas é também enquando tomada de consciência do
próprio pensamento que, sob a forma da ciência, permanece preso à evolução
I

cega da economia, um instrumento que permite medir a distância perturbadora


da injustiça". (ibidem, p. 50).

A questão também se coloca, portanto, como um resgate da


esperança. Cultura como anamnese, como passado é um dos lados da moeda -
o outro é o princípio esperança, o reino das possibilidades.

A racional idade como dominação da natureza, acabando por

olocar o homem apagado, em seu caráter de sujeito, ante o poder totalizador


92

da sociedade tem ainda a faceta de obscurecer o que faz. Colocar o que é


histórico como natural e, até, familiar ("naturalizar a injustiça" como falaria
Brecht) e, ao lado disto, dispensar a reflexão, a crítica, o trabalho do conceito -
essa é a característica da civilização modema. Não que o processo que veio
antes não tenha mostrado seus extremos de crueldade - sabe-se que a gloriosa
civilização grega sequer considerava os escravos, as mulheres e as crianças
como cidadãos. Adorno não nega que há o caminhar da história e não se está,
portanto, fazendo-se a apologia da pré-história da humanidade.

Contudo, "acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza


que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas
concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contêm o
germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento
não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está
selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a ret1exão sobre o
elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado
perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. A
disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar
dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade
autodestrutiva com a paranóia racista, todo esse absurdo incompreendido
manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual".
(ibidem, p. 13).

o que, nesta espécie de segunda natureza que é a socialidade,


parece um dado biológico, parece um dado da psique que empurra o homem
para uma vida societária nos moldes que comporta holocaustos silenciosos (ou
ostensivos como os do anti-semitismo)? Estaríamos vendo o que é histórico e
ocial como algo constitutivo na espécie humana?

Quando Freud se pergunta "por que é tão dificil para o homem


r feliz?" (FREUD. 19 :105 responde que há "três fontes de que nosso
93

sofrimento provém: do poder superior da natureza, a fragilidade de nossos


próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os

relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na


sociedade" (ibidem, p. 105). Se não podemos excluir de todo as duas primeiras

fontes (pois nunca dominaremos completamente a natureza nem nosso

organismo corporal), podemos, ativamente, tentar controlar essas fontes de

sofrimento. "Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude

é diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber por que
os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário,

proteção e beneficio para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o


quanto fomos mal sucedidos exatamente nesse campo de prevenção do

sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por

trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável - dessa vez uma parcela

de nossa própria constituição psíquica" (ibidem, p. 105).

Após analisar o papel de Eros e A..nanke (o amor e a

necessidade, ou seja, a compulsão para o trabalho e o poder do amor) Freud


tenta estudar porque acontece a "incompatibilidade entre amor e civilização".

Porque a tendência para a agressão, que obriga a civilização a um dispêndio

enorme de energias para pôr limites a essas paixões instintivas? Claro está, que

"a tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos

clara do que sua outra tendência em ampliar a unidade cultural". (ibidern, p .



124).

o que Freud vai continuar observando e aprofundando é que os

instintos do ego (que visam preservar o indivíduo) e a libido (o amor em seu

esforço de busca de objetos na luta pela preservação da espécie) constituem

uma economia da libido em geral, que coincide com a energia instintiva. A


inclinação para a agressão, seria para Freud uma disposição instintiva original,

que é derivada (e principal representante) do instinto de morte; que divide com

Eros O domínio do mundo. Posso agora acrescentar que a civilização constitui


94

um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos


isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única
grande unidade, a unidade da humanidade" (ibidem, p. 144-145).

Deriva desse instinto agressivo, o complexo de culpa. Uma vez


que a intenção de fazer o mal é considerada equivalente ao ato (pois o
superego, assim o julga a estrutura da censura interior que a tudo assiste), o ego
reage, culpando-se. Portanto, quando há a interdição ao prazer, à satisfação
pulsional, a intenção da agressão reage e, mesmo não agindo, revela esta
intenção de agredir ao agente que executou a interdição: o superego, então o
pune com a culpa.

Os processos mentais acontecem tanto no indivíduo quanto no


grupo cultural como um todo. Assim é que, o desenvolvimento do indivíduo e o
o seu grupo cultural acham-se interligados. "O superego cultural desenvolveu
suas idéias e estabeleceu suas exigências. Entre estas, aquelas que tratam das
elações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do
ue quaisquer ordens éticas; mas o reconhecimento desse fato entre os
- cialistas foi obscurecido e tomado inútil para fins práticos, por lima nova e
ealista concepção equivocada da natureza humana (ibidem, p. 168) .

Poderíamos dizer que a absolutização da separação


- divíduo/sociedade é algo produzido historicamente mas que, em certo nível,
economia libidinal dos indivíduos e da cultura há que se dar conta de
stintos agressivos no homem, que colocam em tensão permanente o processo
- ilizatório. Entre as exigências da cultura e a realidade pulsional do homem
é-se um homem cindido.

Rouanet diz que Freud VIU como constitutivo algo que é


órico. O inconsciente abstrai a realidade de suas dimensões temporais -
- dou Freud, a realidade sendo portanto) alimentadora do Id, plena de
95

conteúdo social. Todavia, parece a Rouanet que Freud desconhece, em certo


momento, a gênese social do material depositado no Id. e, logo, "o histórico se
transforma numa invariante antropológica" (ROUANET, 1989:88).

Para Rouanet, a razão de ser da psicanálise, o programa "onde


havia o Id, que passe a haver o Ego" é anulada no momento em que Freud
parece cancelar a autonomia do Ego, ao fazer a autonomia da história humana
regredir à história da libido". A psicanálise, que tinha descrito a gênese do Ego,
a partir do Id, mas que afirmara que o Ego se havia autonomizado com relação
ao Id, oblitera essa autonomização e tenta reduzir todo o real ao denominador
comum do Id". (ibidem, p.87). Adomo vai mais além, ao falar que a crítica do
superego (instância intrapsíquica que representa a autoridade repressora
externa) tem que converter-se na crítica da sociedade que produz o superego.

Penso que a elucidação dessa tensão, que ora parece polarizar-


se para uma defesa das exigências do Id (e do campo dos desejos, da realidade
instintual, da libido), ora parece compreender as exigências do Ego e do
Superego (pois é a renúncia instintual que vai permitir a criação da cultura) é
que necessitava ser dita, na intenção (parece-me) de Freud de fazer chegar à
consciência seus condicionamentos mais profundos. Rouanet, todavia, chama-
nos a atenção para o fato de que o princípio de realidade existente é móvel (por
exemplo: a repressão da era vitoriana é certamente diversa da de hoje) e que a

crítica à sociedade que "adoece" o indivíduo e os grupos é fundamental. Ele
pergunta-se, até: vai-se devolver o paciente "curado" pela terapia psicanalítica à
sociedade (doente) que o adoeceu? Freud não parece ter se proposto a discutir
os termos de uma crítica social, todavia, reitera o mal-estar da civilização como
sendo a condição natural do indivíduo em sua interação com a sociedade, neste
tipo de socialidade que temos.

Este movimento de reflexão que fizemos até aqui visava a


egar no por que "a contradição entre a dimensão psíquica e a social não
96

resulta de uma simples insuficiência provisória da inteligência científica, mas de


uma clivagem in re, constitutiva do próprio real antagonístico." (ROUANET,
1989: 85). Sabe-se, pois, que a cisão não se resolve na razão, mas que essa
compartimentalização também da ciência, já está realizada no mundo.

Na modernidade, coisifica-se a alma - antes, o animismo do


mito dotava as coisas de alma. Nesta viagem do pensamento místico ao lógico,
o pensamento perdeu sua base de reflexão sobre si mesmo e a racionalidade
reificou-se, confimdindo-se com a dominação - o esclarecimento passou a ser
totalitário. Reconhecer a presença da dominação no próprio pensamento,
enriquecer o domínio do pensamento com a experiência (domínios que foram
separados, com a escalada da racional idade para a produção do idêntico e da
humanidade), resgatar o nome, o eu rendido à civilização, que o reduz a um
elemento da inumanidade, retomar a plurivocidade do pensamento e de toda
significação em geral - enfim, realizar a não redução do espírito ao existente,
eis as bases de um momento de crítica da razão instrumental.

Como xamãs que afugentam o perigo com as imagens do perigo,


cremos ter iniciado uma crítica ao modo de conhecer que adveio com a
natureza desencantada. O desencantamento do mundo, vindo com o
esclarecimento pareceu ser uma renúncia ao sentido, a técnica
apologeticamente sendo saudada como a essência desse saber, que é usado

para a redução do entendimento à dominação. Resta fazermos agora um outro
caminho. É por entre estas veredas que vamos persegui-Io.

Confrontando-se com esta identidade da razão e da dominação,


da razão científica e da racionalidade dominante, os frankfurtianos,
especialmente Adomo e Walter Benjamin, detiveram-se no exame da questão
da arte e da estética. Dando às questões ligadas à subjetividade a mesma
atenção e importância que às do mundo objetivo. os frankfurtianos parecem nos
97

gritar que, nesta introjeção da razão instrumental na vida dos corpos, há um


escuro caminho da sensibilidade, que pode ser refeito.

A arte pode ajudar-nos, portanto, a construir um paradigma


social mais amplo. Ela lida com uma região ambígua, movediça que envolve
sentimento e razão, paixão e expressão, conhecimento e imaginação e, se a
estetização da vida social tem convivido com a dominação, não é tão certo que
não se atinja estes campos além do controle possível. Tendo nascido como um
discurso sobre a tensão entre espírito e natureza, sentimento e razão, a Estética
vem lembrar-nos de dimensões esquecidas, entravadas nos corpos. Entravadas
na vida social .

o nome estética, que vem do grego "aisthesis" e que significa


toda a região da percepção e sensação humanas, parece manter-se até hoje para
que não esqueçamos desta via, no acesso ao conhecimento teórico. Na sua
obra, Baumgarten, o primeiro a utilizar este termo, na 2° metade do século
XVIII, propõe que se percorra esse escuro caminho da sensibilidade. Tentando
colocar a perfeição como um caminho (o caminho do conhecimento que
considera o sensível) e não como algo inscrito no objeto de arte, Baumgarten
tenta sistematizar a estética como wna ciência distinta da Lógica.

Para ele, o "método do conhecimento claro e distinto", da



lógica, contrapunha-se ao método do conhecimento sensível - que ele disse ser
escuro e confuso. E, logo depois, Baumgarten retoma que há "claridade" nesse
caminho. Apenas que, havendo a "claritas intensiva" (própria da lógica), a da
estética era "claritas extensiva", que continha proposições escuras para a razão
mas claríssimas para a faculdade estética. E qual seria, para Baumgarten, a
faculdade estética?

liA hora, utilizando Ia división leibniziana, hace de Ia estética Ia


teoria de wna facultad intermedia entre el mero conocimiento sensible (escuro y
98

confuso) e o intelectual (claro e distinto) - facultad que él lIama "analogum


rationis". E explica, então, que o conhecimento estético é intelectual também
mas possui "una claridad diversa que cosiste en Ia nitidez de Ias imágenes
sensibles" (BAUMGARTEN apud Biblioteca de Autores Cristianos,
1973:104).

Vendo-a como uma irmã da Lógica, uma espécie de "análogo


feminino da razão no nível mais baixo" ... Baumgarten, porém, disse ter a
estética por função ordenar este domínio em representações claras ou
perfeitamente determinadas, de uma forma semelhante às (embora
relativamente autônomas das) operações da razão propriamente dita ... "Como
uma espécie de pensamento concreto, ou análogo sensual do conceito, a
estética participa ao mesmo tempo do racional e do real suspensa entre os dois,
um pouco à maneira do mito em Lévi-Strauss. Nasceu como uma mulher,
subordinada ao homem, mas com suas próprias tarefas humildes e necessárias a
cumprir" (EAGLETON, Terry. 1993:19).

Uma espécie de "domínio escuro" a ser colonizado pela razão,


uma espécie de dialeto do subjetivo, ou um modo de considerar o mundo-da-
vida sob uma nova luz? Reunir os particulares concretos na narrativa histórica,
desvelar esta forma híbrida de cognição e sensível é, ao mesmo tempo, evocar
a violência que a racionalidade instrumental inscreve nos corpos e na história .

A arte traz o reino do não existente em suspensão, grávida, na crítica do
existente mesmo.

Todavia, esta arte, que antes só andava de braços com a ética e


a política, agora adquire foros de maioridade e tenta sua autonomia. Mas, no
mundo onde ela faz o seu "début" ela é uma mercadoria. O seu novo papel lhe
libera do antigo servilismo à Igreja, ao tribunal e ao Estado, mas lhe cobra, por
eu turno, o preço de ser um objeto. Pura mercadoria. É esta independência
prostituída que caracteriza a arte na modemidade. Neste momento em que a
99

arte deixa de ser uma grande dama, a estética, como uma irmã caridosa, abre
seus braços para protegê-Ia.

Eagleton coloca esta situação nos tennos seguintes:

"A arte se tomará assim, uma procura cada vez mais marginal,
mas a estética, não. De fato, pode-se dizer, de modo um tanto exagerado, que a
estética nasce no momento da falência da arte como força política, e que ela
cresce sobre o cadáver de sua relevância social. Embora a produção artística
represente um papel cada vez menos significativo na ordem social, ela
transmite a esta ordem, de certo modo, um modelo ideológico que pode ajudá-
Ia a sair de sua própria confusão - tendo marginalizado o prazer, reificado a
razão e esvaziado inteiramente a moral.

A estética propõe reverter essa divisão de trabalho, colocando


as três regiões novamente em contato uma com as outras ..." (1993:266).

Claro que este (claro?) caminho tem suas sinuosidades, e esta


(generosidade?) terá o seu preço. No seu próprio nascimento, a estética veio a
se gestar quando a racional idade reificada do Iluminismo percebia, pressurosa,
que seus tentáculos não chegavam a regiões vitais que, incontroladas e cegas,
eram opacas ao seu entendimento e domínio .

Nascida como prótese da razão, mas lidando com os


"particulares livres "da arte, a estética é este bicho híbrido, feito de utopia e
ideologia, instituído e instituinte e que, talvez, até se desvie do seu papel de
"mãe drástica". Adorno, apesar de analisar as contradições com que se depara a
arte e o fazer artístico na modemidade, considera-a, ainda, o único veículo da
verdade que nos resta, numa época de terror e sofrimento incompreensíveis.
Eagleton comenta: liA arte para Adorno é, assim, menos uma dimensão
ealizada do ser do que a contradição em came e osso. Toda obra de arte
100

funciona resolutamente contra si mesma, e isso por muitos caminhos. Ela luta
por uma autonomia pura, mas sabe que sem wn aspecto de heterogeneidade
não seria nada, desapareceria no ar. Ela é ao mesmo tempo um ser-para-si e um
ser-para-a-sociedade, distanciada criticamente de sua história, mas incapaz de
assumir uma melhor perpectiva fora dela" (1993:255).

Se a arte possui esta contraditoriedade é que ela acontece no


mundo objetivo, que ela reflete e refrata. O que acontece é que a sociedade,
este corpo coletivo aviltado, é colocado no próprio lugar de um corpo sensível
coletivo. O corpo coletivo aviltado alienou todos os seus sentidos e a sua
natureza humana ficou reduzida ao jugo da necessidade e ao sentido do ter. A
"percepção sensível" como Marx chama, é o próprio modo humano de tocar a
realidade e também o modo de ser das relações humanas.

O corpo, para Marx, é este substrato humano, que passa a ser


amputado e substituído pelo arranjo tecnológico. "O sistema da produção
econômica, como aponta Scarry, é- para Marx uma espécie de metáfora
materializada do corpo, como a conversão do solo num prolongamento do
corpo. O capital funciona como um corpo substitutivo do capitalista, provendo-
o com uma forma vicária de sensibilidade; e se a essência fantasma dos objetos
é o valor de troca, então é o seu valor nos Grundrisse, que os dota de existência
corpórea. A história que o marxismo tem para contar é um relato classicamente

hubrístico de como o corpo humano, através de suas extensões que nós
chamamos de sociedade e tecnologia, chega a superar a si mesmo e a levar a si
mesmo até o nada, reduzindo sua própria riqueza sensível a uma cifra no ato de
converter o mundo em um órgão do seu corpo" (EAGLETON, ] 993:147).

Vejamos como Lispector mostra o susto de se ver o dentro e o


ora reificados:
101

"Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si


ambém não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando
com uma coisa impossível. E com o coração batendo, com o coração batendo
tanto, ela não o reconhece.

De repente, olho o ovo na cozinha e só vejo nele a comida. Não


o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim:
começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de
cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo.
Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus olhei
demais um ovo e ele foi me adoecendo" (LISPECTOR, 1992:61).

o capital sena, então, uma espécie de corpo fantasma que,


ampiramente, rouba os sentidos humanos de sua possibilidade sensível.
Dotando-os do repetitivo eco do ter, retiram do sujeito sua humanidade. A
propriedade privada seria expressão da alienação do homem de seus atributos
humanos e de seu corpo social, que foi reduzido à absoluta pobreza do ter. O
corpo alienou-se de seu sentido de vida e passou a se ver como um corpo
sobrevivente, em sua luta pela sobrevivência. O espírito bateu em retirada, pois
sobreviver era abdicar de sua existência. Continuemos com Clarice Lispector
(1992:60):

"Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior


prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio
que o ovo é impossível de existir.

E a galinha? O ovo é o grande sacrificio da galinha. O ovo é a


cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A
galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si
mesma um ovo, ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma o ovo,
perderia o estado de galinha. Ser uma galinha é a sobrevivência da galinha .
102

Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva à morte.
Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver
chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser uma galinha é isso."

Constatando esta negação da vida no processo de alienação


capitalista, o marxismo aponta para o reaver da humanidade do corpo após
superado o reino da necessidade. Marx parece dizer que é quando a
subjetividade for considerada como algo liberto da necessidade que o homem
será pleno no seu desenvolvimento do humano, senão vejamos:

"Só através do desenvolvimento objetivo da riqueza da natureza


humana poderá a riqueza da sensibilidade subjetiva humana - um ouvido
musical, um olhar para a beleza da forma, em síntese, sentidos capazes de
gratificação humana - ser cultivada ou criada. Pois não só os cinco sentidos,
mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade,
amor, etc.), numa palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos - tudo
isso só vem a ser através da existência de seus objetos, através da natureza
humanizada. O cultivo dos cinco sentidos é a obra de toda a história anterior. O
sentido que é prisioneiro da necessidade prática bruta tem só uma significação
restrita. Para um homem faminto a forma humana da comida não existe, só
existe sua forma mais abstrata; ela pode mesmo estar presente em sua forma
mais tosca .
e seria difícil dizer como essa maneira de comer difere da dos
animais... a sociedade plenamente desenvolvida produz o homem em toda a
riqueza de seu ser, o homem rico, dotado profunda e abundantemente de todos
os sentidos, como sua realidade constante" (MESZÁROS, 1981 :353).

O que é importante anotar é como Marx vinculou os órgãos dos


sentidos reificados à alienação do homem de sua natureza humana. E como
mostrou a cisão entre seu desejo (expulso) e o corpo instrumentalizado e
ampliando-se na tecnologia e na razão capitalista. Também se poderia detectar
uma cisão entre os sentidos e o espírito.
103

Expulsos pela tirania da razão reificada, esquecida de sua


função de pensar o pensamento e transformar o existente, o desejo e a
sensibilidade vão atuar cada vez mais, em zonas marginais, outrora refúgio do
mito: a arte e a religião. A arte e a religião, para esta mentalidade científica
mutiladora são regiões espúrias, regressão ao pensamento mítico - por
transgredirem a realidade existente, ultrapassarem o dado imediato,
mediatizando-o com o conceito, inquirindo-o em seu sentido social, histórico,
humano. O ininteligível na natureza, no tempo do mito, proporcionava o pânico
e o horror que hoje causa o mundo integralmente inteligível. E a impotência
ante as forças da natureza é, hoje, multiplicada ante a mecanização do mundo
do qual fazemos parte como natureza desumanizada. O processo técnico , diz
Adorno, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está
livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em
geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem
econômica que a tudo engloba. Ela é usada como instrumento universal
servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos".

Voltemos a Clarice Lispector:

"De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo


com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo.
Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se toma ter

visto um ovo há três milênios. - No próprio instante de se ver o ovo ele é a
lembrança de um ovo. - Só vê o ovo quem já o tiver visto. - Ao ver o ovo é
tarde demais: ovo visto, ovo perdido. - Ver o ovo é a promessa de um dia
chegar a ver o ovo. Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há;
há o ovo. - Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora"
(1992:57).

Que mecanismos existem no interior dos sujeitos para que os


corpos fiquem sem nome, neguem-se a vida e a razão quede domesticada ao
104

real como um animal ensinado? As custas de que sacrificios OCOIT esta


mutilação e por quais veios se mina esta vida?

A teoria crítica e a psicanálise vão dialogar, e contrapontear


seus trinados de dor e perplexidade, a partir desse eixo de tensão: por que esse
processo civilizatório se faz às expensas de uma mutilação do homem? E,
retomando o marxismo mas num outro nível, porque tentando dar conta da
dialética relação (intestina mesmo) entre a objetividade e uma subjetividade
que se forma em determinadas conformações históricas, inquire-se: que faz
com que o homem se renda a esse modelo do existente como única
possibilidade? Rouanet expressa sua perplexidade nesses termos.

"O que se trata de compreender é como pode ter-se evaporado


tão completamente a memória de um tempo em que a transcendência era
possível (ROUANET, 1989:121). Retomemos Clarice Lispector:

"O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa,


não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. - Olho o
ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-Io. Tomo o maior
cuidado de não entendê-Io. Sendo impossível entendê-Io, sei que se eu entender
é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-Io não é o modo
de vê-lo. - Jamais pensar no ovo é um modo de tê-Io visto. - Será que sei do
I

ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. - O que em não sei do ovo
é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente
dito. - A Lua é habitada por ovos" (ibidem, p.58 ).

Quando a razão é desconhecimento da vida, o transcendente


aponta para o momento do negativo. É nele que vamos pinçar o imaginário do
futuro. Iluminemos ainda o momento do negativo. Rouanet explicita-o bem
quando pergunta:
105

- "Como pode a cultura ter se imposto tão radicam nt aos


indivíduos que não somente extinguiu qualquer resistência, como até o
conhecimento de que existe algo contra que resistir? Como pode o E pírito
Objetivo ter desalojado tão absolutamente o Espírito Subjetivo? Como pode ter
sido extirpada, de forma tão perfeita, a negatividade imanente à cultura, da qual
subsiste apenas o lado afirmativo que apaga a origem e glorifica o existente?"
(ROUANET, 1989:121).

Os freudo - marxistas colocavam esse espanto, primordialmente,


nos seguintes termos: como é possível que a classe trabalhadora pense e aja
contra interesses que seriam os seus?

Que tentáculos teria a ideologia e em que se amparavam na


estrutura da personalidade para perpetuarem o existente e produzirem a
estrutura caractereológica fascista? Como se relacionavam ideologia, caráter,
personalidade?

Como a ideologia se imiscui, na Escola, no modo de se


considerar a Subjetividade e sua relação com o mundo Objetivo?

Rouanet (1989:47), ao exarrunar com cuidado a crítica da


cultura, a teoria da personalidade e o estatuto do conhecimento analisado pelos
I

frankfurtianos e pelo freudismo, faz a seguinte relação entre o subjetivo e o


objetivo na crítica da ideologia:

"Ao limitar sua ação à esfera econômica e política, o movimento


socialista abandonou à política cultural burguesa, um terreno que pode revelar-
se decisivo no processo político: o da vida privada. Contra-atacar a burguesia
na frente cultural significa combater, no dia-a-dia, as influências
emburguesadoras exercidas pelos aparelhos ideológicos sobre a consciência
106

perária. Através de uma luta ideológica - a luta cultural vermelha - (rote


rulturkampf) cujo campo de batalha é a vida cotidiana".

A psicanálise, no seio das ciências humanas, é quem vai fazer


a ruptura profunda com o paradigma positivista, ao colocar o sujeito
ovamente no centro, com tudo o que era considerado periférico 110 mundo da
'ida cotidiana. Ao devolver ao sujeito sua palavra e, nela, a inscrição do seu
esejo, ela colocava em tensão a racionalidade do princípio da realidade.
eich, de posse dos elementos psicanalíticos, vai levantar estas discussões no
seio mesmo do movimento socialista:

"Uma infiltração da política nas frestas mais estreitas da vida


iária, teria como efeito expurgar a consciência proletária da infecção pequeno
urguesa. Para isso é necessário colocar no centro da atenção o que até agora
ai considerado periférico. "O que se passa nos bastidores da vida humana deve
er exposto, sob a luz mais crua, e de forma mais enérgica, no centro do palco,
onde se representa a força na qual todos somos espectadores e figurantes"
REICH, 1933:108).

O que se tenta alcançar é uma discussão aguçada, que atente


para as de terminantes do mundo objetivo que alimentam uma subjetividade
doente e, nesta relação que se estabalece, discernir o que parece ser

onstitutivo do que é histórico. Reich, por exemplo, vai tentar historicizar as
ategorias psicanalíticas e tentar ver até que ponto o princípio de realidade
constitutivo da estrutura dinâmica do ego) impõe assentimentos, para o
operariado, que servem à manutenção do poder nos termos antagonísticos
vigentes.

Era por onde Adorno e Horkheimer caminhavam, desde suas


pesquisas conjuntas no Instituto de Pesquisas Sociais, em Frankfurt. De início o
estudo de Adorno e Horkheime alou-se para a tentativa de captação dos
107

valores mars ostensivos localizados na estrutura dos sujeitos que eram


ostensivamente fascistas. Claro que eles previam que o anti-semitismo e o
etnocentrismo, por exemplo, não eram fenômenos superficiais mas tinham um
substrato ideológico enraizado na estrutura mais profunda da personalidade.
Este substrato ideológico cristalizava-se em caráter, desde o núcleo familiar,
onde se sedimentava. Aí mesmo, na família, o terreno da neurotização ia sendo
forjado: solo propício ao crescimento da personalidade autoritária.

Mais tarde, nos EUA, com novas técnicas de pesquisas e


colaboradores norte-americanos, Adorno e Horkheimer desenvolverão em seus
estudos sobre a personalidade, reflexões sobre o caráter histórico e
macrossocietário atentando para o modo como se detenninam mutuamente: a
configuração ampla das convicções políticas, econômicas e sociais e as
tendências e desejos mais profundos da personalidade. Tornando mais opaca
ainda esta costura, o cimento dado pelo "general cultural climate" (clima geral
da cultura) ia tornando-se amálgama dessas duas forças, constituindo-se
"mentalidade" ou "espírito". "Se as opiniões, atitudes e valores dependem das
necessidades humanas, e se a personalidade é essencialmente uma organização
das necessidades, a personalidade pode ser vista como uma determinante das
preferências ideológicas" (ADORNO et alii. The autoritarian Personality. New
York: Harper and Row, 1950, p. 233 apud ROUANET, 1989:168-169).

Rouanet, retomando esta discussão, com sua sagacidade,


propõe a politização da vida privada como modo de crítica da ideologia: "A
politização da vida significa, inversamente, uma espécie de "vitalização" da
política. O socialismo clássico enfatiza a luta e o sacrifício, o trabalho e o
heroísmo, e adia para um futuro nebuloso a realização da felicidade individual,
quando raiar, graças ao desenvolvimento das forças produtivas, o reino da
liberdade" (ibidem, p. 48). Reich se pergunta: "Nós não perguntamos: por que
não a felicidade na terra? Por que não o prazer como essência da vida?
(REICH, 1933: 198). E Rouanet fazendo-lhe coro reitera: "A felicidade não é
108

uma recompensa futura, mas o próprio conteúdo da política da vida"


(ROUNET, 1989:48). Rouanet vai buscar no pensamento de Reich e Fromm a
concordância sobre este ponto,com que também Adomo corrobora:

"...0 enfoque geral ...é considerar personalidade como a


instância mediadora entre as influências sociológicas e a ideologia" (ibidem,
p.6). Sigamos com a Lispector:

"Ovo é coisa que precisa tomar o cuidado. Por isso a galinha é


o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe". Mãe é
para isso. (1992:59).

A família hwnana, além de um grupo natural de indivíduos


unidos a partir de relações biológicas, também possui estrutura cultural. Esta
dimensão cultural específica da família faz parte desse Outro que as ciências
humanas em seu paradigma positivista têm tido dificuldade de auscultar. Lacan,
em seus primeiros textos propunha esta revisão de paradigma para este Outro
que não despreza o genético mas que "manifesta a instalação progressiva de
uma estruturação cultural, no lugar da ordem vital. A história que é ao mesmo
tempo, estrutura, repetição do mesmo, mas também seguimento de
acontecimentos sempre novos e diferentes, permite conjugar estas duas
dimensões do estrutural e do dinamismo" (1981:112). A emergência deste

recalcado que se dá na cena social, também tem seu correspondente nas
relações de poder que se travam em tomo do discurso científico dominante.
Lacan, com felicidade fala destas duas cenas:

"O contexto científico atual parece-nos caracterizado pelo


esboço de uma nova revolução científica: os primeiros traços de um
pensamento novo parecem desenhar-se sob a organização oficial do saber.
109

No domínio que nos ocupa, o das ciências ditas humanas, e em


particular no campo da psicanálise, um sintoma dessa crise parece-nos ser a
crítica do estruturalismo, em tomo da seguinte tese: o estruturalismo engloba
tudo na linguagem, na estrutura (ou mesmo no sistema: este salto da estrutura
para o sistema mereceria aliás, por si só, ser interrogado), haveria um Outro da
cultura e da lingugem, ignorado, recalcado mas que insiste, e que é urgente
ouvir. Esse Outro pode-se chamar: natureza, corpo, sentido, loucura, pulsão,
povo." (LACAN, 1981:111).

À família, portanto, caberia esse papel primordial na


transmissão da cultura, que Lacan chamou de "hereditariedade psicológica" e
que "preside aos processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, a esta
organização das emoções segundo tipos condicionados pelo ambiente, que é a
base dos sentimentos segundo Shand; duma maneira mais lata, ela transmite
estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites
da consciência. Ela estabelece assim entre as gerações uma continuidade
psíquica cuja causalidade é de ordem mental" (1981:15).

Se a família é determinante como modeladora da personalidade


e~ como vimos, já não se pode discutir a relação entre o mundo objetivo e a
subjetividade sem discutirmos essas mediações e considerá-Ias em suas
condicionantes mais profundas, a Escola é inegavelmente, lugar onde, desde a
I

infância, se dá a vivência com um Outro que não é a família e, também, com o


conhecimento.

A instituição Escola ancora-se na função docente de


transmissão do conhecimento sistematizado. Esta função docente legitima o
poder que se estabelece na relação educador, educando. O modo de se postar
diante desse poder, segundo LAPIERRE & AUCOUTOURIER, (1980)
relaciona-se com um paradigma educacional. Segundo estes autores, nossa
ducação atual tem um ripa essencialmente "superyoica todo y recurriendo al
~
110

condicionamento operante. La educación superyoica está baseada


principalmente sobre 10 prohibido, el enjuiciamiento moral, social, integrado en
el inconsciente del superyo. Está bén o está mal. De alí, uma culpabilización
deI deseo; no soIamente es eI acto que es maIo sino eI mismo deseo del acto.
De 10 que resulta una represión dcl deseo en eI inconsciente.

La decisión dei hacer o no hacer no pertenece ya desde


entonces aI sujeto. Se holla bajo Ia dependencia dcl conflicto inconsciente entre
Ias puIsiones y el superyo, conflicto que unicamente puede resolverce por dos
caminos, el respeto a Ia prolibición o Ia transgresión cuIpabilizante" (1980: 13-
14).

Ao caracterizarmos este tipo de educação quanto à relação com


o inconsciente, deste modo, vemos que, durante toda a infância, fase formadora
por excelência da personalidade do sujeito, nós lhes propiciamos wna
hipertrofia do superego e um enfraquecimento das potencialidades reflexivas
sobre as pulsões e desejos, infantilizando o ego. Isto parece criar terreno para
que um tipo de neurose, que reafirma o autoritarismo na sociedade e no
indivíduo, se estabeleça.

"La personalidad real, profunda, no si estrutura en nível


intelectual. Se estructura o reestructura en el nível de Ia evolución de los
I

fantasmas a través de una vivencia afectiva y emocional en Ia que el cuerpo


está siempre presente" (1980:108). Se o sujeito vai amadurecendo ao produzir
espontaneamente os resultados de suas pulsões e fantasias inconscientes, isto
só acontece se houver espaço para que essa expressão simbólica se faça, lado a
lado com uma educação que tome esse educando mais consciente dos seus atos
e de suas reações emocionais. Tratar o emocional, o sentimento como uma
queda d'água descendo ribanceira abaixo e cegamente, sem aprofundar razões e
motivações mas centrando-se num tipo de relação heterônoma em que a
111

autoridade do professor se exerce desconhecendo essas dimensões sena o


melhor modo de se trabalhar com a razão?

Não se ignora que, como Freud expõe, a vida social só é


possível às custas de uma quota de sacrifício puIsional. Na verdade, graças ao
"domínio" do pulsional.

Aucoutourier e Lapierre retomam essa discussão, trazendo-a


para a questão das funções da Escola:

"Pero, se nos podrá objetar que Ia vida social so es posible


gracias a un domínio de Ias pulsiones. ? No es el de preparar ai nino para este
domínio WIa de Ias funciones de Ia escuela? De hecho estamos de acuerdo,
pero no confundamnos "domínio" com "represión". EI aparente domínio exigido
a los niãos desde sus más tierna edad no es más que una represión empuesta
desde el exterior integrada luego al superyo sobrevalorando Ia dinámica
inconsciente" (1980: 12).

Independente de outros modos de se considerar essa dimensão


do inconsciente, na Escola, pela arte também se pode, por lidar com ações
simbólicas, trabalhar-se com a expressão e o conhecimento dos desejos e
fantasias dos educandos. Não seria uma regressão ao conteudismo na arte mas

um modo de se propor leituras deste nervo vivo que é a obra de arte, tanto em
seu momento de processo quanto como produto. E do material desiderativo,
sobretudo, que ela detona.

"La hipertrofia del superyo provoca y mantiene Ia debilidad del


yo. Situación conflictiva entre pulsiones ciegas y no reconocidas y un superyo
no menos ciego; conflictos inconscientes que tiendem a resolverse a través de
sintomas neuróticos. Resultado parodójico para una pedagogía que se pretende
racionalista y que en definitiva desemboca en un debilitamiento y una
L

infantilización dei yo, instancia racional de decisión, en contacto con 10 real. ?


Como se puede facilitar en el nino el domínio de SlIS pulsiones y SlIS fantasmas?
En princípio, dejándoselos vivir, pennitiéndole expresarlos en una acción
simbólica" (ibidem, p.lS).

É certo que a obra de arte (e o processo de fazê-Ia e pensá-Ia) é


uma das várias formas de lidarmos com o sentimento em formas não
discursivas. Este modo envolve tanto o sujeito epistêmico como o sujeito
desejante, num nível especial de atuação com a ação simbólica. No corpo deste
trabalho vai-se tecendo um fio, meio em surdina, que propõe a arte como um
modo de se lidar com ação simbólica, tocando dimensões da sensibilidade não
mobilizadas costumeiramente (e de um certo modo) na Escola. Explicitemos
um tanto mais esses aparentemente "dois" sujeitos: o que conhece e o que
deseja.

Considerando que o conhecimento é o efeito da inteligência


(nos afirma Piaget) e que o saber é o efeito do (desejo) inconsciente e sabendo-
se que estas duas operações é que vão constituir o pensamento, percebe-se o
quanto a ordem do (desejo) inconsciente e a do conhecimento estão imbricadas.
Freud, a partir da observação da fratura do pensamento, observava os choques
entre a ordem dos conhecimentos e a dos saberes e concluía que "esta díade
deve estar sempre, e em última instância, sutilmente estruturada. "Portanto, o
sujeito epistêrnico, o sujeito que aprende na Escola, está a construir-se como
sujeito do conhecimento e do desejo, estas duas dimensõs se entrançando sem,
contudo, serem redutíveis uma à outra. Lajonquiêre (1993: 191) acrescenta
ainda o pólo do objeto, senão vejamos:

"O saber e o conhecimento se encontram entrelaçados e


conformam O pensamento. Assim, cabe afirmar que o sujeito reconstrói o
pensamento em si mesmo enquanto se constrói como sujeito desiderativo e
inteligente. Mais ainda, o pensamento se reprocessa a SI mesmo e nesse
113

combinar se significa um sujeito do saber e do conhecimento como também se


estrutura uma realidade "objetiva". Querendo ser esquemático podemos dizer
que, do lado do sujeito, o reprocessamento do pensamento produz uma
estrutura inteligente e uma outra desiderativa; entretanto, do lado do objeto,
produz um punhado de conhecimentos e um "plus de saber". (1993:191).

Certamente por pensar este sujeito que conhece nesta amplitude


é que Sara Paim diz ser "a aprendizagem um ato de transvazamento de
conhecimento, e esse conhecimento é sempre de outro. Não se pode aprender
algo que não seja algo sabido para outro" (PAlN, 1991). Este conhecimento do
outro não quer dizer apenas que é o outro que o possui mas que esse outro
possui saber e esta relação que eu estabeleço sempre envolve a dimensão
desiderativa, além da cognitiva. Na Escola, onde o sujeito epistêmico se
relaciona com seus pares e com o educador, a socialidade vai sendo esculpida
nos corpos. É nesta instituição o lugar onde se passa o saber sistematizado e,
nela, um sujeito se constrói com a mediação do outro que é o bJTUPO (no sentido
lato). Neste lugar de passagem do conhecimento (porque o conhecimento é
algo que migra) também vai-se esculpindo nos sujeitos a vestidura da
socialidade com seus silêncios, conflitos, lacunas, palavras, ritos. Na Escola, ao
operarmos com os aspectos lógicos e linguísticos da linguagem e do número,
costumamos excluir da cena todo um campo de expressão que não envolve
apenas este tipo de estruturação do pensamento.
I

Na verdade, o atual estágio de semiotização da vida cotidiana


leva o indivíduo a pôr seu campo dos afetos e desejos a serviço do lucro. Cada
mercadoria, além do próprio objeto leva a marca de ser também formadora de
um certo tipo de indivíduo consumidor.

Assim, vai-se padronizando comportamentos e desejos, e


quando nós compramos mercadorias vamos comprando também um modo de
relação com o outro e com a ida. A homogeneização dos comportamentos e
114

desejos passa a ftmcionar nos indivíduos como uma neblina, que a tudo abarca.
Cada indivíduo quer ser igual aos outros no modo de ser, de viver e, sobretudo,
no possuir - essa dimensão devoradora. A fragmentação, a homogeneização e a
hierarquização (categorias que Marx utilizou para sua análise do capitalismo)
vai solapando o humano nas relações sociais e na intimidade da vida privada,
distanciando o homem de sua vocação ontológica.

o "flâneur" de Baudelaire, o passante a multidão, o indivíduo no


meio da massa amorfa, que Walter Benjamin tão bem examinou na estética
baudelaireana, tipifica esse indivívuo sem nome, alijado da própria
possibilidade de uma relação mais verdadeira com o outro e com a vida. O
empobrecimento da experiência - aspecto que Benjamin sublinha na era da
modernidade - é evidente, desde a infância. A infância, contudo, é um
reservatório (como a arte, conforme proponho) de modelos de relações mais
vitais e menos empobrecidas. A tarefa da reificação do homem, na infância,
ainda está se modelando. Poder-se-ia fazer, na Escola, este movimento de
desconstrução, de crítica dessa racionalidade e, pari passu, de construção de
novos campos expreSSIVOS,novos modos de conhecer que revitalizem esta
experiência empobrecida?

Também farei aqui o elogio da diferença. Para que a relação


dialógica se estabeleça na Escola, precisaríamos uma atenção fecunda à leitura

e à recepção ativa do discurso de outrem, como propõe Bakhtin que se faça nos
modos sociais de resistência. Eu acrescentaria que o campo expressivo do
outro (e não só o discurso que é a palavra) precisa ser re-lido e recepcionado
de mTI modo ativo. Nosso potencial expressivo criador, vai sendo, desde a
Escola, esvaziado e, em seu lugar, põe-se este sujeito alheiado de SI,
padronizado na própria esfera do sentir, desde a Infância.
115

Vamos à Lispector, novamente:

"Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça,


exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada?
Pois venho notando que tudo o que é erro meu tem sido aproveitado. Minha
revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de
mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas
preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de
confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo
emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na
própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de
quem é exigida a aparente desonrra. Nem meu espelho reflete mais um rosto
que seja meu" (LISPECTOR, 1992) ..

Este texto (dissertação) percorre o caminho (escuro? confuso?)


dessas dimensões - caladas, sonegadas, camufladas, mutiladas, vivas, latentes,
nuas. Elas estão inscritas nos corpos das crianças na Escola. É em torno delas
e através delas (ou do seu esquecimento) que se vai tentar reconhecer o lugar
da arte na Escola. (Quando falo corpo, não estou dizendo organismo. Como diz
Pain: "não há conhecimento, por mais abstrato que se apresente, que um dia
não tenha sido corpo, e aqui não se trata unicamente da percepção, mas da ação
capaz de coordenar um gesto a um sensório" (1991:86). Nesse percurso, vamos
I

tentar tecer, nessa estranha escrita, o tortuoso (e doce) caminho da


sensibilidade.

A necessidade da Arte como crítica social ou como um modo


de se trabalhar a dimensão negativa da Razão.

À pergunta: "Que é arte para você? a escola precisa de arte?"


uma professora respondeu:
116

"A escola precisa de arte porque ... Deixa eu pensar... É uma


libertação. O ser hwnano tá preso, acorrentado a essa realidade que ele vê, que
ele pega, que ele vive. Mas no sonho, na imaginação, e a arte é essa
imaginação posta para fora, virando coisa ... No sonho que ele nem sabe que
tem, o ser humano quer se libertar. Porque a realidade não é ... Porque a
realidade não é só aquilo sempre. Ele quer criar outra. A escola fica fabricando
essa coisa, esses punhos de rede - sabe punhos de rede? - uns punhos de rede.
Para pensar a realidade lá fora. E fica tudo preso, aqui dentro, com o que tá
acontencendo lá fora. O problema é que o que está acontecendo lá fora é só
uma parte da verdade. E a parte que é prisão. Não digo que sempre seja prisão
mas está sendo prisão. E então ... A gente fica ... A gente quer a liberdade de
sonhar e ter outras coisas diferentes do que o que está colocado como
realidade. Arte é essa liberdade, pronto. Isso é tanto! Quer mais? "

Vou privilegiar, entre outros tantos aspectos que podíamos


agora abordar a partir destas representações, a idéia de que "O que está
acontecendo lá fora é só uma parte da verdade. "Que esta parte é prisão e, arte,
libertação.

Para entender esse sentido da arte como não conformação ao


existente( ou a dimensão da negatividade, o que o real não é, o que o real
poderia ter sido), que me parece ter sido a tônica do pensamento desta

professora, remontemos ao pensamento de Hegel. Debrucemo-nos um pouco
sobre a dialética, que traz um lado do seu rosto banhado por essa luz que
ilumina o momento do negativo e, seguindo por ela, chegaremos a Adomo, que
insiste muito neste ponto.

O pensamento dialético Hegeliano parecia ser a tentativa de,


pela razão, se fazer renascer das cinzas, como uma fênix, um mundo em ruínas.
A esperança na racional idade da Revolução Francesa, frustada e a ruína da
Prússia, sancionada na paz de Tilsitt, quando as tropas francesas acampam em
117

Sena, em frente à sua casa são símbolo desta ruína. São também imagens que
nos fazem chegar ao centro do problema hegeliano: o mundo antigo é
inaceitável - há que se criar um outro, obra da razão. A obra de Hegel é esta
profunda fé na capacidade do homem de ser sujeito da história e de
compreender-se (e compreender) o real. A dialética é uma lógica do conflito e,
nela, as relações humanas e as coisas acham-se em relações de enfrentamento.

A visão dialética de Hegel nega a lei do entendimento abstrato,


que faz do momento da identidade e da imobilidade o momento único,
exclusivo, da realidade, e propõe a identidade concreta, que é a unidade da
identidade e da diferença. Portanto, esse primeiro princípio de Hegel,
estabelece que "a identidade não existe nas coisas mas somente no pensamento
que as confronta com a diferença e com a diversidade, ela é um momento
abstrato da reflexão que a mediatiza por seu contrário: a diferença"
(GARAUDY, 1983:133). E, assegurando esta não identidade, propõe seu
segundo princípio: que todas as coisas são contraditórias em SI. As
propriedades de uma coisa são, antes de tudo, suas relações com o que ela não
é. O todo e as partes se condicionam reciprocamente - diz Hegel ( e vemos aí
outro conceito Hegeliano: o de totalidade).

O movimento é o corolário da interdependência universal e


somente ele é real - o repouso é uma abstração. O ponto de partida de Hegel é

o devir que, como a tempestade do Ângelus Novus, de Paul Klee, impulsiona o
drama da história, apesar do momento presente vir sobre ruínas. A alma do
mundo como que seria esta pulsação imanente à vida que, inscrita no infinito,
aparece como um fínito prenhe de negatividade. Estaria na própria natureza do
finito superar-se, negar sua negação e, neste movimento do real, tomar-se
infinito. Mostrar que a aparência é um momento do conhecimento do real
implica também dizer que há encadeamento destes momentos e, neles, o
nascimento imanente da diferença e da negação. Seria impossível conceber as
coisas isoladas das relações que as constituem e, assim, o pensamento e suas
118

categorias senam momentos da totalidade concreta do real. Para Hegel,


portanto, a dialética, seria uma "lógica da vida": "O determinado não tem,
enquanto tal, nenhuma outra essência do que a inquietude de não ser o que é".
(HEGEL, Enciclopedie apud GARAUDY, 1983:35).

A diaiética, aSSIm, expõe-se como o conjunto movente de


relações intemas de uma totalidade orgânica em devir. Conflito, movimento,
totalidade, negatividade - as bases dialéticas da compreensão do mundo. A
libertade se fazendo através da negatividade como que "ernprenha" o devir de
criação. A história, então, seria a história da libertação do homem, separando-
se da imediatidade da natureza e lutando contra a alienação. Hegel já observava
a alienação como um fenômeno histórico, nascido com a propriedade privada
dos meios de produção, no momento em que a mercadoria que o homem
produz torna-se-lhe um objeto estranho e, até, por efeito da acumulação, hostil.

É um nível, de compreensão porém. Há outros. Parece-me que o


fenômeno de sentir-se estranhado também refere-se ao mundo natural, à
natureza sensível, e o homem acaba por resolver esta equação transformando
esta tensão em domínio. Senão vejamos:

"...é preciso supor que o espiritual é o processo final izado do


conhecimento de si através da apreensão do que lhe é estranho, a natureza

sensível (HEGEL, 1944:99). E mais além: "A arte é, portanto o esforço de
redução do que é estranho" (ibidem, p. 198). E em outro lugar de sua obra:

"Cada vez que trabalha, o artista se opõe a uma coisa, a esse ser
obscuro, estranho e próximo que se apresenta diante dele como seu outro e que
é preciso reduzir" (ibidem, p. 104). O artista vai dialogar com esse escuro e
estranho mundo que o seu Outro e que ele se esforçaria por compreender e
humanizar, humanizando-se também. É neste campo de tensões, onde se acha o
devir permanentemente sendo ge tado, que se pode mirar o ideal, para Hegel o
119

reino das sombras, que transcende o imediato da vida. Nesta "outra cena"
estaria o nascedoura da arte?

"Todos nos lembramos do célebre dístico em que Platão dirige

uma invocação a Aster:

'Quando olhas as estrelas, oh! minha estrela, eu queria ser o céu

Com mil olhos para te contemplar da minha altura' .

Numa paráfrase invertida, poder-se-ia dizer que a arte faz de

cada figura sua um Argus com mil olhos para que a alma e a espiritualidade

apareçam em todos os pontos da fenomenalidade, para que manifestem a sua

presença não só na configuração do corpo, na expressão do rosto, IlOS gestos e

nas atitudes, mas também nos atos e nos eventos, nos discursos e nos sons, pois

em quaisquer condições e contigências da fenomenalidade, elas devem ser o

olhar que reflete a alma livre em sua infmitude intema". (HEGEL, s/d p.8-9).

Parece-me que Hegel quer referir-se a um conteúdo como que

arquetípico que ele vê nesta relação "estranhada"homem-natureza. Uma espécie

de permanente susto diante do incomensurável das "coisas"? - eu me

perguntaria. É como que um grito arcaico, que a arte descobre e, inconsciente,


issimula uma espécie de espanto inaugural diante do mundo que, de repente

e a arte pode ser um modo de ofertar esse "de repente") se instala? E

'estranha-se" o ter-se ficado tão apartado do olhar de mil olhos das superfícies

que nos atravessam? ..

Clarice Lispector fala desse (espanto?) primordial:

"Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia. E,


assim sobre a mesa nua. parecia o riso de wn louco (não sei explicar melhor).

ão fosse a resignação a um m do que me obriga a ser s nsata, como eu


119

reino das sombras, que transcende o imediato da vida. Nesta "outra cena"
estaria o nascedoura da arte?

"Todos nos lembramos do célebre dístico em que Platão dirige


uma invocação a Aster:

'Quando olhas as estrelas, oh! minha estrela, eu queria ser o céu


Com mil olhos para te contemplar da minha altura'.

Numa paráfrase invertida, poder-se-ia dizer que a arte faz de


cada figura sua um Argus com mil olhos para que a alma e a espirirualidade
apareçam em todos os pontos da fenomenalidade, para que manifestem a sua
presença não só na configuração do corpo, na expressão do rosto, nos gestos e
nas atitudes, mas também nos atos e nos eventos, nos discursos e nos sons, pois
em quaisquer condições e contigências da fenomenalidade, elas devem ser o
olhar que reflete a alma livre em sua infinitude intema". (HEGEL, s/d p.8-9).

Parece-me que Hegel quer referir-se a um conteúdo como que


arquetípico que ele vê nesta relação "estranhadahomem-natureza. Uma espécie
de permanente susto diante do incomensurável das "coisas"? - eu me
perguntaria. É como que um grito arcaico, que a arte descobre e, inconsciente,
dissimula uma espécie de espanto inaugural diante do mundo que, de repente

(e a arte pode ser um modo de ofertar esse "de repente") se instala? E
"estranha-se" o ter-se ficado tão apartado do olhar de mil olhos das superficies
que nos atravessam? ...

Clarice Lispector fala desse (espanto?) primordial:

"Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia. E,


assim sobre a mesa nua. parecia o riso de um louco (não sei explicar melhor).
ão fosse a resignação a um mundo que me obriga a ser sensata, como eu
120

gritaria de susto às alegres monstruosidades pré-históricas da terra. Só um


infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se repete

desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o


apaziguamento do medo, a negação do medo, a civilização, enfim. Enquanto
lSSO, sobre a mesa nua, a talhada gritante de melancia vermelha. Sou grata a
meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas coisas. Para falar a
'erdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver"
LISPECTOR, 1990:74).

Veja como Hegel situa ainda este (parece-me) espanto" ... a arte
e constitui nesse confronto com o obscuro, com a alteridade, fundando-se
numa relação arcaica com o mundo, que não desaparece coin a civilização"
lliEGEL, p. 104).

Adorno também parece admitir este "arrepio essencial"e, ainda,


ga-o ao mundo primitivo mágico:

"As obras de arte autênticas escondem-se como seu segredo a


nono Permanecem ao mesmo tempo sob o efeito. do Aufklarung,
esclarecimento) porque desejariam tomar comensurável aos homens esse
epio rememorado, incomensurável no mundo primitivo mágico".

Essa impossível reconciliação, parece-me, advém de o próprio


pensamento Hegeliano trabalhar com a categoria da contradição, dentro de um
cosmo que é espírito em constante evolver.

Para Hegel, as contradições (que são interpretadas como um dos


momentos da razão) são vida, e o mundo é por completo obra do Espírito. A
otalidade, para Hegel, é síntese da unidade e da negatividade. Quando Hegel
iz que a razão é como "a rosa na cruz do sofrimento presente" e, também, que
aquilo que é. é a razão. ele está tentando sair da oposição abstrata do ideal e da
121

realidade. Colocando o momento do negativo como algo que evolve


continuamente, que está perpetuamente grávido de seu devir, Hegel quer chegar
a concluir que as idéias têm uma existência objetiva, para ele o pensamento não
tem de criar o mundo, porque ele é o mundo.

A idéia, para Hegel, não é uma abstração, é algo que se


manifesta no seu Aparecer. O fundamental para a Estética, diz Hegel, é as
obras de arte existirem. Pensar a arte segundo a Idéia é, pois, pensar as formas
em que ela se realiza efetivamente, pensar na necessidade que opera no seu
processo através da história, diz Hegel. A Idéia não seria uma espécie de
essência separada das aparências, como em Platão mas seria a unidade
significante de lUna forma sensível e de um conteúdo espiritual. A essência se
mostraria, pois, na aparência e, a Idéia obriga-nos a pensar um processo
teleológico que se processa na história. A sensibilidade, portanto, não se reduz
ao momento do sensível, poderíamos concluir, embora este momento inclua um
momento do sentido, que não exclui o trabalho do conceito. Assim diz Hegel,
articulando lUn conceito de Arte: "é um sensível significante, intermediário
entre inteligível e sensível, isto é, um momento do Espírito Absoluto."

Veja o parentesco de Hegel com Susanne Langer. Ela propôs-se


mudar a idéia da obra de arte de "forma significante" para "forma expressiva"
mas ainda utiliza a primeira denominação como referência base.
I

Compreendendo melhor: para Hegel, o Espírito é infinito que


inclui um [mito - e este [mito se corporifica. O Espírito Absoluto, portanto, é
reconciliação de dois momentos: o Espírito Subjetivo (ao se elevar acima da
natureza e tornar-se livre, temos esse momento) e o Espírito Objetivo (para
Hegel, o Espírito só pode ser livre num mundo que não lhe seja estranho).
Logo, o momento desta reconciliação que vai cimentar a racionalidade do
mundo é quem vai determinar a ordem do subjetivo.
122

A Arte, um momento do Espírito Absoluto, é o momento em


que o espírito infinito assume figura sensível. Esse movimento das essências,
no seu aparecer vai tomar-se o que é mediado pelo sensível. "Na obra de arte
se expressa a ambigüidade da palavra sentido, que designa ao mesmo tempo os
órgãos que servem para a apreensão de uma coisa e a significação, o conceito"
(HEGEL, 1944:23).

(Nesta ambigüidade, vemos como até hoje a estética se debate


entre um discurso sobre o corpo (com todo o séquito de antinomias
coração/mente, razão/emoção, percepção/cognição, afeto/racionalidade) e um
discurso sobre as obras de arte. Mas, voltemos a Hegel).

Vemos nesta assertiva que a obra de arte eleva-se acima da


imediaticidade do que aparece como sensível (sensível visto como o que
impressiona os sentidos). Remete para um sentido que a transcende, sentido
que é atravessado pela policromia da luz e da sombra - das constradições que
habitam o mundo objetivo em seu processo de tomar-se Racional. A figura, a
forma, a configuração da obra no plano do sensível, resulta de um trabalho
espiritual e, em Arte, é o Belo se realizando. Esse "acordo" entre o espírito e o
sensível (ou esse revelar-se do espírito no sensível), Hegel exprime nos termos:

"O Belo conserva essa singularidade essencial de aparecer


I

sempre sob forma sensível. O Belo é a Idéia concebida como unidade imediata
do conceito e de sua realidade, na medida em que essa unidade se apresente em
sua manifestação real e sensível" (HEGEL, p.62).

Hegel, por exemplo, falando da pintura holandesa do século


XVII, com Rembrandt e Van Dyck, p. ex., menciona assuntos como veludos,
clarões de metais, luz, cavalos, mulheres velhas, vinho que brilha em copos
transparentes, rapazes de fatos rotos a jogar cartas ... "e centenas de outros
assuntos que na vida cotidiana pouco nos interessam, pois é com outro tipo de
123

interesse que jogamos cartas, bebemos... Ora, prossegue Hegel, o que atrai
nestes conteúdos quando representados pela arte, "é precisamente essa
manifestação dos objetos enquanto obras do espírito, que transforma em
profundidade o mundo material, exterior e sensível" (HEGEL, p.24).

O artista enquanto criador, segundo ainda Hegel, traz todo lUn

mundo que desviou da natureza e acumulou no vasto reino da representação e


da intuição. Ao lado da realidade das coisas, o artista cria uma espécie de
idealidade, transformando os objetos para seu próprio fim, desencantando-os
do mundo natural em que estavam para "penetrar na universalidade, apesar de
seu caráter de individualidade vivente e sensível" (ibidem, p.27). Nesta
expressão da idealidade superior do poético na individualidade sensível,
penetrada de universalidade, se encontra a diferença formal do trabalho de
fabricação. A forma e sua individualidade, na arte, banhada deste ideal de que
Hege1 nos fala, tem determinação bem característica no seio da generalidade.

A idéia do Belo, que é a forma sensível do verdadeiro - o


verdadeiro sendo o que é efetivo, Racional - traz três consequências que são a
base de suas reflexões em Estética:

1. Na Natureza, a idéia está no movimento da vida.

2. A Beleza Artística é superior à beleza natural, porque nela o


Espírito está em obra conscientemente.

3. A Idéia se desdobra numa História.

Este tornar-se do Espírito Absoluto, em Arte, chama a si a


tarefa de "fazer com que, em todos os pontos da sua superficie, o fenomênico
se transforme em olhar, sede da alma e torne sensível o espírito". (HEGEL,
p.2IO). O corpo é o signo da destinação da alma - quer dizer Hegel. E a arte -
124

como a religião e a filosofia - constituem, para Hegel, a expressão sensível da


consciência histórica de um povo na história. Hegel diz que, pelo fato de ser
histórica a arte, nenhuma obra pode ser considerada como entidade que se dá a
compreender simples e imediatamente por si só, porque é como o fruto de um
mundo ético cuja significação revela.

A arte não sendo uma coisa natural, é um produto humano,


alimentando-se da contradição com o natural e desta tensão em relação ao
Outro, que eu estranho e onde, também, me reconheço. Nesse desejo de
capturar o estranho do outro e da Natureza, o homem se mostra cindido:
alienado. Alienado, na tradução literal de Entfrerndung significa "tornar-se
estranho". Esse processo de sair de si e se fazer outra consciência, segundo
Hegel é o próprio modo de ser da atividade da consciência, que sai do em-si e
alcança um para-si. Esse processo de pensar a consciência é análogo ao de
pensar o Belo (Hegel recusa-se a fazer do Belo uma categoria do juízo; para ele
o Belo é algo objetivo -porque a Idéia o é - nele se fundem o espiritual e o
sensível, o universal e o particular).

Hegel difere de Kant porque situa a arte no corpo da história. A


Estética sendo, essencialmente, em Hegel uma espécie de história da arte,
como ele quer, alimentando-se todo o tempo da contradição com o natural- que
ela transcende.

Esboçadas essas pontes para o pensamento de Hegel, gostaria


de assinalar alguns pontos que penso férteis, de um modo surpreendente, para a
modemidade. Primeiramente, essa vinculação do sensível à aparição da Idéia e
a não redução do sensível a uma sensorialidade tacanha. Essa idéia de que a
arte é um fazer (ou um apreender) que "passa pelo sensível" mas aí não se situa
como limite, é importante - e claro que tem nuances no pensamento de Hegel,
como vimos.
125

o modo do pensamento relacional, hegeliano, ser eivado das


contradições do real, faz ver na obra de arte uma espécie de "olho lúcido" do
tempo. Porque tem a dignidade de ser conhecimento, ela transcende a região
dos sentidos. Hegel engloba, portanto, o cognitivo e o afetivo, sem que a razão
deixe de ser "um projeto de reconstrução hegemônica dos sujeitos", como quer
Eagleton (EAGLETON, 1993).

o primeiro problema que se coloca é o de como se vai trabalhar


essa feitura (do artista) e essa recepção (de quem lê) da obra de arte, se Hegel
acentua que esta forma significante não é possível de apreensão imediata,
requer o trabalho do conceito? Se as estruturas do mundo-da-vida, no processo
de alienação do capitalismo são opacas à razão, (e as obras de arte as
"ofertam", como comentamos no exemplo da arte holandesa), o trabalho com a
dimensão estética não teria de necessariamente, amparar-se na ética e na
política? Ou, dizendo melhor: se o homem vive wn processo de alienação que
vai lhe destituindo de sua ação de sujeito na história, vai lhe solapando as
outras dimensões em detrimento da monocórdia compulsão do "ter", para tornar
seu olho novamente humano, não se haveria de reduzir esta hipertrofia do ter e
acordá-lo para sua emancipação?

A potência que tem a arte para este trabalho é inegável,


poderíamos .
dizer desde já. Pode-se observar o que o cinema tem feito,
colocando no espectador um novo olhar ao mundo.

No teatro, nós dirigimos (como encenadores) o olhar do


espectador, ora fechando-lhe o campo de visão para as mãos de uma
personagem que, por exemplo, num imperioso jogo de tremores mostra seu
desconcerto interior, ora ampliamos-lhe o campo de visão para toda a área do .
palco, mostrando, por exemplo, o redemoinho humano numa feira livre
improvisada ou numa praça (com seus cegos, cantadores, grupos de crentes
lendo a Bíblia, meninos de rua, passantes, desempregados, estudantes,
126

prostitutas, vendedores de pequenos negócios como milho, pipocas, cachorro


quente etc.).

Benjamim fala que essa condução do olhar tem uma função


política. Explicitemos melhor esta sua observação. Benjamim diz ser a
otografia um símbolo da perda da aura pelo objeto de arte, na era da
reprodutibilidade técnica. Segundo ele, pela reprodutibilidade técnica a
otografia perde seu caráter de único, o caráter único, de aparição, da arte. (Eu
observaria que este único deriva do significado cultual, que banhava a arte na
5Ua origem histórica). No entanto, ambiguamente, ganha um outro aspecto: a
acessibilidade, advinda com a produção em massa dos objetos artísticos. Pois
em, segundo Benjamin, as fotografias podem levar a uma interpretação
etenninada (essa coisa que eu estou chamando de condução do olhar do
spectador/leitor) .

Para Benjamin, elas têm (as fotografias) uma significação


olítica secreta. Exigem ser acolhidas num certo sentido, e não se prestam mais
uma contemplação desinteressada. Elas inquietam quem as olha; para atingí-
, o espectador adivinha ter de seguir uma via específica. A reprodução
êcnica pode, por exemplo, "pela fotografia, acentuar certos aspectos do
riginal, acessíveis à objetiva - ajustável e capaz de selecionar arbitrariamente
seu ângulo de observação -, mas não acessíveis ao olhar humano. Ela pode,
I

ambém, graças a procedimentos como a ampliação ou câmara lenta, fixar


agens que fogem inteiramente à ótica natural. Em segundo lugar, a
eprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis
ara o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a
bra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco". (BENJAMIN, 1994: 168).

Assim, a percepção das coletividades humanas se transforma,


orno seu modo de existência, não sendo condicionada só naturalmente, mas
ambém historicamente. A unitotalidade do capitalismo, em sua ânsia de
127

perpetuar o idêntico, no atual estágio da cultura de massas investe desde o nível


perceptivo até o modo de orientação do pensamento e da intuição. Diz
Benjamin: "retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura é a característica
de wna forma de percepção cuja capacidade de captar o semelhante no mundo
é tão aguda, que graças à reprodução técnica ela consegue captá-Io até no
fenômeno único. Assim se manifesta, na esfera sensorial a tendência que na
esfera teórica explica a importância crescente da estatística. Orientar a
realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um
processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição.
(ibidem p. 170).

O trabalho do cinema, no conduzir o olhar do espectador, por

exemplo,ao holocausto dos judeus na 2a. Guerra é sutil, mas uma evidência. A
transformação do que era exterior em íntimo, com a câmera do cinema, que
estabelece um campo relacional amplo com as imagens, é do fôlego de uma
revolução copernicana. Esta alteridade que Hegel frisa, com relação ao mundo
I

dos objetos naturais, poderíamos dizer que é uma das funções sociais da arte.
Viver vicariamente a experiência do Outro através da identificação e
personificação no drama, por exemplo, (televisivo, cinematográfico ou teatral)
proporciona um "ficar no lugar no outro", muna espécie de descentramento que
poucas experiências podem dar.

Um país onde sua população (o Brasil) pára durante três ou


quatro horas à noite para ver os dramas televisivos (novelas), não denuncia,
além do fascínio da indústria cultural e seu poder, por um lado, também o
aspecto da fome de viver o outro que se veste do amor ao personagem ? Se os
conteúdos alienantes, a padronização (homogeneização) dos costumes e da
cultura são um fato, como esquecer que, apesar desta narcotização, também um
olho se põe no lugar do outro para sentir e viver os dramas da condição
humana?
128

Esta alteridade , esta sede de viver o Outro, neste campo dos


desejos e dos afetos, não é um país tão idílico assim. Na exposição dos objetos
de arte, vê-se a mercadoria, diz Benjamin. Só que ele estende este conceito de
mercadoria para todas as coisas e pessoas, como em Marx. Melhor dizendo, as
relações entre as pessoas ficam uma fantasmagórica relação entre coisas. O
homem, criador da mercadoria que é a arte ( e de todas as mercadorias
fabricadas) não se reconhece no que cria ou faz. Ele não se percebe sujeito da
história de fazer ou não esse tipo de mundo funcionar como um mercado, este
tipo de mercado funcionar assim, ou esse tipo de mundo de vida funcionar
como um mercado. Daí, falam-se coisas como a inflação vai baixar ou subir e
a vida vai melhorar ou piorar, a moeda agora é forte, a vida com o real vai
melhorar, o custo de vida só vai depender da Inflação - como se a senhora
Inflação (eu botei um i maíúsculo porque ela parece gente, não é?) - fosse o
sujeito dessa história e o homem um espectador desse Mercado que se mexe
como aquele tipo de mamulengo do Teatro de Bonecos. Esses mamulengos de
que eu falo têm umas espécies de arames neles enganchados que os movem,
mas, por sua vez, os arames são movidos por atores que não são vistos na cena
do palco. Este ofuscamento, o estar num lugar invisível aos espectadores,
mexendo os bonecos mas não sendo visto, é característico da consciência
reificada . A realidade do modo como ela se posta causa esta reificação da
consciência. O mercado são essas coisas, coisa e gente quero dizer que, como
os mamulengos do espetáculo do teatro de bonecos , parecem não ter quem as

mova. Na verdade, um tipo de técnica de manipulação de teatro de bonecos,
porque há outras; há as que mostram quem as move diante do expectador.

Benjamin chama a esta espécie de impressão inverídica sobre as


coisas e as pessoas, que passam a funcionar como coisas, de fantasmagoria. Ele
usa a imagem de um colecionador de objetos para dizer como acontece uma
espécie de fantasmagoria do tempo, na medida em que mostra este
colecionador como alguém que retira dos objetos sua história, seu contexto
histórico as significações acumuladas no objeto, como dobras que se ocultam à
129

razão reificada. Como comenta Rouanet sobre a fantasmagoria do tempo,


"através dela, a história é secularizada e trazida para o ciclo da natureza de
uma forma tão implacáveL ..

Este modo de ser das coisas e das pessoas funcionando como


mercadorias, como autômatos movidos por algo sistêmico (as pessoas dizem: o
sistema é que é assim), Marx chamou de fetiche da mercadoria. Rouanet
observa uma espécie de analogia entre o fetiche da mercadoria e a idéia de
fetiche em Freud, pois o objeto representa o falus mas não é o falus (e o falus
por sua vez representa o próprio desejo, assim: eu desejo o desejo do outro,
diz Lacan ) . Esta idéia de remeter para algo que não é si próprio, esta coisa
que é uma representação de outra coisa, faz o fetiche da mercadoria parecer-se
com o objeto-fetiche que substitui o falus.

Esse mergulhar do homem no outro, como estava dizendo, esse


viver vicariamente as vicissitudes de um outro sujeito através da personagem,
tem também o caráter de alienação, sim. Eu dava o exemplo dos ídolos
televisivos e das personagens de novelas. Na verdade, a indústria cultural
cultua as duas coisas e faz passar uma pela outra. Seria como se o homem
comum desnudasse sua alma de sujeito e se vestisse com as cores da
mercadoria, já que homem e coisas têm este padrão coisal, se assim se pudesse

.
dizer. Como se este vestido da mercadoria fosse uma persona (sentido
etimológico= máscara) e também na acepção junguiana de falsa personalidade,
capa de uma personalidade que não tem a verdade do self. E esta persona ,
como diz a poesia de Femando Pessoa, fica pregada à cara:.
130

TABACARIA
... "Fiz de mim o que não sou,
E o que podia fazer de mim não ofiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo.
E vou escrever esta história para provar que sou sublime ... "

(pESSOA, 1992:217-218)

Um outro aspecto que, a meu ver, é o mais importante em Hegel


é o anúncio do momento da negatividade na razão, gestando o devir e se
fazendo história. Adorno diz que as obras de arte tomam-se belas por força de
sua oposição à simples existência. O Belo seria, então, a homeostase desta
tensão. Nela se vê o negativo do mundo administrado. Quanto mais total é a
sociedade, diz Adorno, tanto mais ela se reduz a um sistema unívoco, tanto
mais as obras, que armazenam a experiência deste processo, se transformam no
seu Outro (ADORNO, s/d, p.44).

Para Adorno, a negação pode tornar-se prazer, mas não


positivo, pois "a arte não é divertimento, é sofrimento" (ibidem, p. 54). A idéia
de arte, como se vê, mudou com a história. Ligada, em sua origem, aos
processos cultuais, à magia, ao mito e à religião, depois foi servir de
-ertimento aos senhores chegando. na modernidade, a se constituir uma
131

esfera de relativa autonomia. A idéia de catarse e purificação, que Aristóteles,


em sua "Poética" confere como objetivo da tragédia, ainda guarda resquícios
das práticas cultuais, que usavam a arte para controlar a realidade, exorcizando
fantasmas, atraindo simpatias, concebendo-se como efeitos reais nesta área.
Como esfera que se quer fechada, exterior ao mundo, irredutível ao simples
existente, a arte suscita "a contradição entre a liberdade no particular da arte e
o estado de não liberdade do todo" (ibidem, p.11). Todavia, retira seu conteúdo
da realidade, em parte modelando o existente, em parte o renegando. O
momento da forma (conteúdo sedimentado) vai se opor à simples empiria.

A dor cósmica desloca-se para o novo inimigo: o mundo -


bservava Baudelaire. Ao constatar o empobrecimento do sujeito ante o
mundo administrado do capitalismo, a obra de arte moderna nega a coerência
de sentido.

O Conteúdo da obra recusa-se a identificar-se com a razão e


foge às normas do pensamento discursivo. Adorno exemplifica com Beckett
esta extrapolação do momento do negativo. Devido ao esvaziamento do sujeito
e dos sentidos da realidade, chega-se a desembaraçar-se da ilusão de uma
ubjetividade significante.

Será que este potencial de negatividade da arte, na escola, pode



er detonado? Ou a violência simbólica fere mortalmente esta rosa púrpura?

Haveria um modo de se trabalhar com a sensibilidade, causando


pturas nesta estetização da vida cotidiana, a que foram submetidos os
divíduos com a indústria cultural? Parece-me que, após um patamar inicial, os
divíduos podem ir refazendo esse (escuro) caminho. Não podemos nos
esquecer, porém, que a cultura mobiliza psicologicamente as pessoas para que
opacidade se perpetue. Diz Adorno:
132

"Um indivíduo motivado para identificar-se "a priori" com o


mundo tal qual é tem pouco incentivo para penetrá-l o intelectualmente e
distinguir entre essência e aparência ... Em sua fase atual, nosso sistema social
tende a produzir objetiva e automaticamente cortinas que impedem o indivíduo
ingênuo de devassá-lo. Essas condições objetivas são intensificadas por
poderosas forças econômicas e sociais que intencionahnente ou não, eternizam
a ignorância... A fim de não comprometer sua forma de identificação, (os
indivíduos) inconscientemente não querem saber demais, e estão prontos a
aceitar informações superficiais e distorcidas, desde que confirmem o mundo
que escolheram viver... Têm dificuldades em pensar e aprender porque receiam
pensar os pensamentos errados e aprender coisas erradas" (ibidem, p.193). O
próprio núcleo verídico das informações transmitidas pela indústria cultural,
através do rádio, da TV e da imprensa são banalizados, tornam-se inofensivos e
neutralizados. Ficam em circulação as informações sociais e políticas que
alimentam estes perfis psicológicos.

Certamente não se pretende negar a força da arte como crítica


o existente e modo de defesa do não idêntico. Adorno concorda, inclusive,
om esta potencialidade da arte. Vendo-se, contudo, as contradições que acabei
de apontar, como pensar elementos para subsidiar uma proposta de
alfabetização estética, no 1 Grau na Escola? Ter-se-ia condições de, neste
0

abalho, considerarmos o campo dos desejos e dos afetos, e o campo da


I

gnição, desapartando-os dos seus nichos fechados, na Escola?

Parece-me que Eagleton tem razão quando diz que a Estética


asceu como um discurso sobre o corpo - e não sobre a arte.

É verdade, inclusive, que Baumgarten ao cunhar o nome


. thesis referia-se à região da percepção e sensação humanas, diferente do
11

ensamento conceitual. A colocação inicial, em Estética, se referia menos à


antinomia arte e vida, que à fissão entre o corpo e o pensamento, a intuição e o
133

intelecto, as sensações e as idéias, o sentimento e a racionalidade. Esse


território (escuro?) da totalidade da vida sensível, à razão iluminista parecia ser
ameaçador e ela tremia ante a paixão e a percepção (uma volta, por estranhos
caminhos, à transcedência que ela tanto evitava tocar?). Ou um território
indomável, que a tirania da razão instrumental desconhecia e que era preciso
colonizar?

Talvez nem estivéssemos de olho na obra de arte nem no corpo


mas numa espécie de vestíbulo entre os dois, na Escola. Parece-me que o corpo
era uma região silenciada (com a esfera do sentir e do sentimento como "coisa
de família, de lá fora", como disse uma professora). E a obra de arte, essa era
"uma coisa do mundo, lá de fora, essa coisa de arte, porque é na rua que a
gente vive; aqui na Escola a gente "aprende" - dizia um adolescente, quase". E
o que havia de arte na Escola era também esse "preparar-se para a vida - para a
arte?" - do qual se retira os conteúdos vitais e deixa-se a fantasmagoria disso,
apenas?

Talvez que, por paradoxal que seja, na Escola seguimos


caminhos contrários. A educação artística, no Brasil, vem a falar, só hoje, numa
educação estética. Para lidar com a arte numa sociedade onde a consciência
está reificada, havíamos de, antes, acordar os corpos e a paixão, conectar o
mundo da vida com a história para, então, esse olhar humano devassar estas
I

cortinas de que Adorno falava e, só então, fruir da experiência estética? O


caminho que vai até a obra passa primeiro pelo coração? Passa primeiro pelo
riso que se alegra com a razão?

Como diz Rouanet:

"Não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão


usando os instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria
modemidade: uma razão autônoma, capaz de desmascarar as pseudo-
134

legitímações do mundo sistêmico, uma ação moral autodeterminada, que não


depende de autoridades externas, e uma ação política consciente e uma vontade
livre. Deixar de ver essa dialética da modernidade, reduzindo-a em bloco à sua
vertente perversa, é privar-se dos meios de resistir à perversão. Demitir-se da
modemidade é a melhor maneira de deixar intata a modemidade repressiva"
(ROUANET, 1987:25-26).

Deixarmos a Escola entregue ao seu eterno "preparar-se para a


vida", como dizem os cartazes dos corredores na Escola, seria como deixar a
modernidade entregue ao seu sono hibernal, no qual a razão virou o mito do
poder e' do domínio e a consciência, como as fábulas contavam, antigamente,
"fez virar estátuas" aos homens que percorriam a estória?

Talvez que a preocupação de Adorno de que Auschwitz não se


repita e que, evitar esse tipo de práxis histórica, seja a grande tarefa da
educação, queira dizer também que essa "iluminação do momento do negativo"
seja uma via importante. É isto que me parece dizer a fala da professora.
Parece-me que o conceito de alegoria de Benjamin é bem uma das tarefas da
arte: revelar "o facies hippocratica da história como a história mundial do
ofrimento" (ibidem, p. 45).
135

Ritual 11

o Corredor - O Lugar da Cena 11 ou Ritual 11

o Tempo-
Os corredores, geralmente, são lugares por onde se passa. "Não
se pode ficar vagando nos corredores", diz-se. "Nos corredores se passa, não
se fica muito tempo neles. Se se quisesse saber do tempo, pelos corredores não
se sabia, porque a luz que entra neles é pouca. Há clarabóias ou combogós,
espécies de linhas geométricas formando buracos na parede e, por isso, a luz
que entra por eles é rala. O tom fica meio noturno, nos corredores, e o ar
pesado deixa uma espécie de mormaço causado pela ausência de luz, se assim
se pudesse dizer.

À pergunta: "onde está a arte da escola? - Uma professora


responde: -"Não viu ali? Não viu ali os corredores? É a presença da arte, pela
mão de nossas professoras, enchendo a vista de beleza", E outro: "Tá vendo
aquelas duas ali? São as artistas da nossa escola. São elas que fazem esses
murais e painéis ... aquela pintura ali foi uma delas ... Os cartazes ... esse trabalho
de recorte e colagem ali." dos corredores. Com as crianças elas fazem uns
trabalhos primorosos com as mãos. Você precisa ver".

O espaço do Corredor

Corredor é passagem; Na Escola: para o pátio ou para a rua. É


uma espécie de dedo em riste da administração: aponta para o lugar da sala de
aula ou deságua rápido na rua.
136

o espaço do corredor tem pouca luz. Nestas construções das


Escolas Públicas, por algum motivo que se desconhece, numa terra tão quente
(no sertão é muito mais) não se faz janelas nos corredores.

Há umas clarabóias, com umas aberturinhas redondas por onde


entra pouco ar e sol. No espaço do corredor os corpos se tocam: porque ele é a
via por onde se sai, correndo, para o pátio. Sai aquele coletivo se empurrando,
ainda que todos os dias a professora repita (sem convicção nenhuma ou se
esgoelando): "Não empurrem ..." Às vezes se acresce a isto um "Quem
empurrar fica sem recreio", mais ou menos convicto (a ameaça às vezes se
consolidando acontecido). No espaço do corredor também "se espia". Porque
"espiar" tem um acento meio clandestino, meio de fruta furtada. É assim
mesmo: a administração, furtivamente (às vezes acintosamente) vem ver se "as
crianças estão quietas e em silêncio", se "as crianças estão se comportando".
Há outro tipo de espiar, no espaço do corredor: o de alguma criança que "foge"
das salas. E, com o gosto do prazer proibido, espia o que pode dali do
Corredor.

Cena 11

As crianças estão em filas. As professoras falam: - "Devagar,



não corram. "E: - "Quem empurrar fica sem recreio. "Também: - "Se você fizer
isso vai para diretoria. "No entanto, sempre há empurrões, , nas horas de saída
para o pátio ou para a rua, após terminada a aula. Há, ainda, além desse tocar-
se dos empurrões, um tocar-se de tapas (ou "tapinhas"), beliscões, cascudos,
chulipas" (aquele "tapa" com os dedos que se dá nas orelhas de quem tem
cabelos cortados, de trás para frente) e "bolinações" (tem um tom malicioso de
'pegação" como uma "piada meio pesada"). Quando é entre meninos
geralmente), o desejo de toque veste a capa de brincadeira agressiva, com
imulacros de brigas e, até briga mesmo. Quando é menino em menina, as
137

meninas reclamam para as professoras - isso faz parte - ainda que estejam rindo
e gostando.

Nas paredes dos Corredores há painéis com alguma pintura, ou


recorte e colagem, ou cartazes mesmo "feitos no capricho". E todos apontam:
foram as professoras que fizeram. Não vi nenhum painel feito pelas crianças.

Quando eu perguntei porque as crianças não faziam um painel,


uma professora olhou-me como quem responde o óbvio: "Não se vai
desperdiçar ..." E, depois de me olhar um pouco, "achou" a resposta: - "Nem há
material para isso!" (Realmente não havia). -"Nem há merenda!" (Realmente
não havia).

Dos painéis nas paredes, as crianças dizem: "- Que bonito! Eu


não sei desenhar assim não. Não sei desenhar".

E, no continuar desenhando os modelitos, as professoras vão


passando suavemente para as crianças que a idéia de tentar sua expressividade,
por torta e tão diversa dos zelos das paredes, não deve ser ousada. Ou então: -
"Arte é assim, a gente nasce com aquilo e acabou-se". Ou: "- É um dom, não
é? Tem gente que nasce com aquele dom e tem gente que não nasce, pronto. E
a escola? A Escola pode incentivar. Onde? (Silêncio). Não sei. (Silêncio). Acho

que na vida deles, eles vão se desenvolver... Quando a pessoa nasce com aquilo
fica sempre aquele gosto, não é? "Essa visão de arte como dom exime a Escola
(e a todos, ao Estado também) de pensar nos que não têm, segundo eles, que
assim pensam, aquele dom - porque não os têm. E também de educar os que
têm, já que o têm. Como não é a dimensão estética que se está a considerar na
Escola (nem se percebe que há "dimensões" que todos têm e não só alguns), a
conversa não vai longe. Há, contudo, sempre um arremate que finaliza qualquer
especulação maior sobre o assunto: "- Não se tem formação para isso". "Os
arte-educadores? ão sei onde eles estão". (Uma espécie de arrependimento ou
138

confusão passou pelo olhar e expressão do rosto e ela consertou): "- É


Educação Artística... Pessoa para isso mesmo a Escola não tem, a gente
improvisa ..." Uma das professoras falou: "- Quem tem muito interesse nesse
negócio de arte na Escola são as professoras do Pré (Pré-Escolar). Elas
precisam mais, têm de desenvolver a coordenação motora e toda essa parte de
desenvolvimento psico-motor e precisa demais ..." Engraçado é que na fala das
professoras que falam de psicomotricidade, elas falam psicomotricidade e lê-se
só motricidade, como se fosse algo mecânico (elas fazem gestos com os dedos
e as mãos, ajudando a palavra).

Um parêntese:

Às vezes o que chega até os professores da Escola Pública é


uma informação fora de um processo continuado de aperfeiçoamento e
atualização. Daí por que algo dá a impressão de uma caricatura do
conhecimento que é considerado o novo. Também o "novo" conhecimento
hega aos borbotões, como se uma água muito forte derramasse, ao chegar,
oda a outra que estava na vasilha. Bebendo-se às goladas e, duma vez, também
asta-se muita água (desperdiçada) porque não se consegue beber mais de que
tanto. E depois, por um longo tempo que se fica sem água, fica-se com
,
de. As capacitações que o Estado tem ministrado aos professores têm esse
odeio de água .

Outra COIsa: quando este "novo" conhecimento vem,


. desapropria" o professor da Escola Pública do saber que ele construiu até
então. É como se tudo aquilo que o professor fizesse, fosse, soubesse
estivesse ... "ultrapassado". Tem o estigma de uma sentença: incompetência. E
m nome de algum ismo que ninguém sabe (por último foi o construtivismo),
inguém dali sabe, todos se julgam a cada minuto como se fossem "da escola
rradicional". Alguns dos professores mais estudados acrescentam outras
pestes": e colanovismo tecnici mo. E escuta-se esse tipo de coisa: "- A linha
139

do Estado agora é o construtivismo ou a pedagogia histórico-crítica? "Como se


fosse uma linha de Umbanda ou um time de futebol (ou partido político)? Ser
mais ou menos construtivista é como estar em dia com a moda e está tão longe
de chegar ao centro do problema da Escola quanto discutir-se de quem é a
culpa do construtivismo aparecer como não é. Não se trata de culpabilidades
mas de assumir responsabilidades. E responsabilidades todos têm parte. Claro
que o projeto neo-liberal tem um projeto educacional: sustentar o modelo do
existente e conceder para as classes populares um tanto que seja necessário
para a classe hegemônica continuar no poder. Mudar, claro que é conosco,
não?

Como diz Kant, "só podemos pensar o mundo porque de início


temos experiências dele; é por essa experiência que temos a idéia de ser e é por
ela que as palavras "racional" e "real" recebem simultâneamente um sentido
"(MERLEAUPONTY, 1990:49).

Discutirmos o quanto nossa prática como professores está presa


(e servindo) a um determinado contexto sócio-político; o quanto foram
formadas nele e como há, nela, correlação de forças de reprodução e de
resistência, significa propor que se lhe ultrapasse. Uma ultrapassagem não é
algo que se põe no ar. É algo que tinha um patamar, um limite e, a partir de
então, o limite foi ultrapassado. O ponto de partida parece ser, então, a práxis

do professor.

Na escola e... política. No mundo da vida, porque tudo se


relaciona e interpenetra. É só "lendo" essa práxis que se vai ter a sede de elevá-
Ia, a cada vez, a níveis cada vez mais críticos e radicais (no sentido de raiz). A
isso eu digo que é construir teoria.

"Não se trata de reduzir o saber humano ao sentir mas de


assistir ao nascimento des e saber, de torná-lo tão sensível quanto o sensível,
140

que se perde acreditando que ela vai por si, que se a reencontra, ao contrário,
fazendo-a aparecer sobre um fundo de natureza inumana" (ibidem, p. 49).
Embora os sentidos já estejam condicionados pelo aparelho conceitual antes
que a percepção ocorra, é a partir deles (e agora sentido tem a acepção de
significado, que é o sentido aprisionado pelo conceito) que se vai "ancorar" o
novo. Na verdade, é neles que se ancora o "novo" que, por sua vez, vai causar
a "acomodação" de que fala Piaget, uma espécie de rearranjo - como mexer
com uma peça no jogo de xadrez: modifica-se todo o quadro anterior e já se
configura um vir-a-ser.

Fechemos o parêntese. Agora situemos esta visão de arte que


fala arte mas lê-se um "útil", como sendo a dominante ainda nos tempos do
Brasil Império. Pensava-se arte em educação como Desenho Técnico e
Industrial.

Esta visão de arte trazida pela Missão Francesa, que junta Arte
e Técnica foi reforçada pelo positivismo e o processo de industrialização, que
nfatizavam a Arte como Desenho Geométrico e não incluíam o aspecto da
riação Artística. Deduz-se daí uma visão de arte como algo que forçosamente
e ser útil ao industrialismo.

Também o desenho de observação, muito usado a esta época,



- gundo Ana Mae (BARBOSA, 1973: 577-592) não considerava que, em Artes
isuais, há a construção simultânea de significante e significado. Isto quer
er que a forma não é um mero envoltório do conteúdo, é o conteúdo mesmo
dimentado.

Ana Mae insiste: Desenho de observação é estratégia


teuéisúca e pressupõe esta divisão entre tonna e conteúdo, rigidéllnente.
141

Como diz Adorno: "o modelo dominante é filisteu: a aparição


deve ser puramente intuitiva, o conteúdo puramente conceitual mais ou menos
segundo a dicotomia rígida de tempos livres e trabalho" E, adiante, "porque o
esteticamente emergente não é absorvido pela intuição, também o conteúdo das
obras não se reduz ao conceito (ADORNO, 1970:116).

° desenho de observação, como íamos dizendo, concentra as


análises nas qualidades visuais do objeto, indo até seu aspecto qualitativo,
pretendendo com isso alcançar a percepção (o desenvolvimento dela). Como
conclui Ana Mae, tal metodologia é construída sobre a idéia de que percepção
é mera notação da realidade e baseia-se no pressuposto de que os órgãos
abastecem o cérebro com cópias do mundo externo, Há uma interação dos
perceptos e das idéias que contradiz esta visão de percepção. A ênfase estática,
no Desenho de observação, prossegue Ana Mae, não satisfaz as nossas
necessidades perceptivas vinculadas à ambigüidade intrínseca do ato
perceptivo. Esta ambigüidade permite, ao mesmo tempo, a abstração da
complexidade do real em direção à globalização (teoria da forma) e a
xploração integrada, que vinculada o campo visual eficaz sobre o qual recai
nossa atenção ao campo visual difuso em que o receptor individual funciona
orno explorador. Para responder a esta complexidade operatória que é a
ercepção, em Artes Plásticas, havia de se possibilitar o relacionamento entre
qualidades e a mutabilidade da aparência do objeto em função a diferentes

ontextos, permitindo a análise, seletividade, a analogia, a síntese em direção a
a maior fluência e flexibilidade perceptiva - assevera Ana Mae. Já neste
mpo, a arte-educadora, após a análise de 53 programas de Arte (Desenho,
.ca atividade artística do currículo, em 1973), em 48 escolas de São Paulo e
- do interior, propõe a formulação de Currículos em Arte, com uma base
- osófica (Estética). Segundo ela, estas bases filosóficas deveriam adaptar-se
nfonne os aspectos regionais e locais. Falava também da urgência de que os
odos de ensino tivessem suporte também em Teorias da Percepção e Teoria
riatividade.
142

Enfatizando a função da Arte como conhecimento, algum tempo


epois (1969), Rudolf Arnheim apuraria sua atenção no estudo da conjugação

e duas ordens distintas de operações do pensamento: a da percepção intuiti a


a da análise intelectual. Para ele, o modo de operar de cada uma vincula-se ao

da outra, ainda que com intensidade variável em cada caso. Convém anotar,

orém que o mundo da percepção intuitiva opera diversamente do mundo da


álise intelectual. Acostumou-se a pensar que o universo perceptivo

cionava de um modo quase mecânico e a ação de perceber foi cercada de

a moldura apassivadora que, além de inverídica (essa consideração)


iminuía a complexidade dos processos que ela efetivamente envolve.

Arnheim, ao propor-se a uma abordagem cognitiva da mente,

ecusa-se a considerar a percepção um registro mecânico dos estímulos do

eio, captados pelos órgãos receptores do homem. Antes, vai tentar mostrar o

uão é ativa esta apreensão, que utiliza processos de campo perceptivos (que
Amheim chama intuição) e que funcionam secundariamente apoiados pelo

ntelecto. O intelecto, segundo pensa o autor, atua com redes de cadeias


ineares de conceitos e tem como seu principal instrumento a linguagem verbal.

Diz Arnheim:

"Tradicionalmente, acreditava-se que a aquisição de


onhecimentos se efetuava através da cooperação de duas faculdades mentais:

a coleta de informações em estado tosco pelos sentidos, e o processamento

estas pelos mecanismos mais centrais do cérebro. Nesse sentido, a percepção


e limitava a fazer o modesto trabalho preliminar seguido pelos executivos

ais nobres do pensamento. Mesmo assim, desde o início era claro que a

oleta de material perceptivo não poderia ser inteiramente mecânica. O


ensamento não possuía o tipo de monopólio que se atribuía a ele. Em meu

ivro Visual Thinking, mostrei que a percepção e o pensamento não podem

operar separadamente. As capacidades comumente atribuídas ao pensamento -


iferenciação comparação, classificação, etc. - atuam na percepção elementar;
143

ao mesmo tempo, todo pensamento requer uma base sensorial" (ARNHEIM,


1989:14). Vemos portanto que, mesmo nos processos analíticos realizados pelo
intelecto, não se pode deixar de considerar a intuição. O intelecto parece
ealizar suas análises seqüenciadamente (diacronicamente) e os chamados
rocessos de campo, ao contrário, apreendem os componentes de uma
otalidade em que atuam simultaneamente (sincronicamente). Arnheim
rgunta-se de que maneira a linguagem verbal ataca o problema de lidar com
struturas sinópticas num meio linear. E responde nos seguintes termos:

"O problema pode ser solucionado porque a linguagem, embora


'erbalmente linear, evoca referentes que podem ser imagens e estão portanto
ujeitas à síntese intuitiva. Um verso escolhido ao acaso comprovará isto:
"Embora os nomes inscritos em suas lápides cobertas de ervas daninhas sejam
avados pela chuva" ... À medida que a mente do leitor ou ouvinte vai sendo
onduzida pela cadeia de palavras, estas evocam os seus referentes, que
rganizam a imagem unitária dos túmulos cobertos de musgos com seus nomes
esgastados. Através da tradução das palavras em imagens, a cadeia intelectual
e itens é revertida à concepção intuitiva que inspirou inicialmente a
afirmação verbal" (ibidem p. 21). E, um pouco adiante, arremata: "As palavras
azem o melhor que podem para fornecer as peças de urna imagem adequada, e
imagem proporciona uma sinopse intuitiva da estrutura global". (ibidem p.
_1).

Todavia, Arnheim diz não ser a smopse a única condição


indispensável para compreender-se um todo organizado: a hierarquia estrutural
em importância, assegura. E explica que, na verdade, a percepção é essa busca
da estrutura:

"Devemos ser capazes de ver onde, nesse todo, um componente


pecífico está localizado. Estará no alto ou embaixo, no centro ou na preferia?
E úni o ou e tá associado a muitos outros? O intelecto pode chegar à resposta a
144

s perguntas determinando as relações lineares entre itens singulares,


mando-os, fundindo todas as conexões numa cadeia abrangente e, finalmente,
ando uma conclusão. A intuição completa este processo ao apreender a
strutura toda de modo simultâneo, e ao ver cada componente no lugar ocupado
r ele na hierarquia total (ibidem p. 21-22).

Arnheim diz também serem estes dois processos - o da


ercepção intuitiva e o da análise intelectual, comuns a todas as atividades
umanas. Claro que a intuição privilegia a percepção da estrutura global das
onfigurações e, por isso, nas artes, certamente é fundamental. E, se Amheim
siste em provar a urgência de considerações sobre estes dois aspectos da
ognição que, segundo ele, são igualmente importantes para as ciências e para
as artes, Fayga Ostrower vai deter-se em mostrar como o trabalho dos
sentimentos cristalizados na obra de Arte vai realizar uma espécie de síntese
entre conteúdo e forma que não é redutível ao verbal.

Vejamos como Fayga Ostrower se expressa sobre isso:

"... O veículo das palavras ainda representa um dos principais


nstrumentos de trabalho; logo, uma necessidade do método analítico. Porém
pode trazer uma espécie de condicionamento formulando principalmente o
acesso à imaginação. Seja como for há uma real dificuldade em acompanhar,

nas linguagens artísticas, conteúdos expressivos que são articulados através de
formas, isto é, de modo não verbal, não racional, não discursivo. Mas no
fundo, os sentimentos dificilmente se prestam a serem transpostos para o nível
discursivo sem que se empobreçam os vários significados coexistentes. Nesta
tradução verbal há sempre uma redução" (1990:17).

Isso não significa que tudo em Arte seja sensorialidade e que


não haja contextos significativos que como que focalizam a percepção. A
iferença básica residiria no aspecto que faz da Arte uma obra cujo caráter
145

expressivo condensa-se na sua forma. Estas "formas expressivas" convertem


dados sensoriais em noções não - sensoriais e vice-versa. Nesta conversão de
imagens e significados, diz Fayga (ibidem p. 51), fundamentam-se as
linguagens simbólicas. Esta autora sugere uma espécie de busca de
significações, que corresponderia a estados de equilíbrio interno, como sendo
de ordem não sensorial. Todavia, quando essa ânsia encontra-se no ato de
avaliar as formas expressivas, ela não abandona o caráter sensorial e, neste
contexto avaliativo, há sempre uma imagem subjacente. O sentido desta
experiência seria uma espécie de reestruturação da experiência em níveis de
consciência sempre mais elevados, abarcando complexidades crescentes e
intensificando o "sentimento de vida", diz a autora.

Então: porque o pensamento situa-se na esfera do simbólico,


lida essencialmente com imagens e significações. Como a percepção é uma
operação de simbolização, certamente envolve o trânsito, a confluência e a
mistura destas duas faces do pensamento: as imagens e as significações. A arte,
por lidar essencialmente com "formas expressivas", em sua criação e recepção,
exige com certa veemência que o pensamento ponha wn peso maior nos
aspectos chamados de "processos de campo", que atuam como que na busca de
sínteses, de configurações de totalidade e, ainda, realizando um modo de situar
os elementos numa estrutura global. Por esse motivo, os processos analíticos,
cujo instrumento primordial é a linguagem verbal, além de participarem deste

campo expressivo, escorrem no leito do imaginário - território onde o sentir
constrói seus caminhos e a percepção intuitiva sua casa.

A imaginação, portanto, seria o território por onde voa tanto o


sujeito que sente como o que pensa. Imaginar, esse modo de se estar com o que
está ausente, não constrói uma cidade nas nuvens do inexistente. A imaginação
tem seus pés na experiência. Ou suas asas. Por beber na material idade da vida,
ouve as vozes dos corpos e da experiência e parte, com o pensamento
reflexi o, rompendo o ei o do existente.
146

A dimensão utópica e o reino das possibilidades em seu colo


de xamã: a Arte.

A imaginação vai dar à experiência a graça de transmudar-se de


orpo exterior para signo. A imaginação, portanto, é um trabalho do
ensamento que recorre à razão e ao sentimento e, também (eu acrescentaria)
quilo que escapa a ambos. O compromisso (a casa sobre os pés) da
periência, como se disse, se escuta as vozes dos corpos, também dá asas à
aginação para ir em busca do que não se vê, não se sabe, do nem sido ainda.

Uma análise de "Passion - Itinerários de uma anunciação"


PEIXOTO, apud NOVAES, 1994), filme de Godard, mostra como a imagem
ontemporânea quer (e pode) falar do invisível, do inexprimível, do
inapresentável. Peixoto principia sua análise com a pergunta: pode o cimena
sta arte da evidência, falar daquilo que não pode ser inteiramente visto?
ibidem, p/375). Deleuze fala que é como se a imagem quisesse causar um
hoque na imaginação, levando o pensamento a aventar a presença de algo que
ão pode ser dito.

Essa relação com o que nos escapa, esse jogo que empurra a
ercepção para o não visto, não dito, para o reino da imaginação, nós
poderíamos admitir que, mais que uma discussão sobre as possibilidades da

agem no cinema da contemporaneidade, parece ser o grande problema da
ercepção intuitiva como aspecto do pensamento na Arte.

Referia-se Deleuze, ainda falando do cinema, "à gênese de um


risível que ainda escapa à visão", nos seguintes termos:

" ... o problema não é o de uma presença de corpos, mas o de


. wna crença capaz de nos devolver o mundo e o corpo a partir do que significa
sua ausência". E segue comentando Peixoto: "Estamos diante de algo
147

intolerável, alguma coisa de muito forte ou muito bela que nos retira toda
possibilidade de ação, que nos cega. Algo ficou forte demais na imagem. A
percepção do visionário é uma experiência que resulta do ofuscamento do olhar
abitual, o excesso que acompanha a falta de visão comum. Ele fala por
enigmas. A visão é uma evidência do invisível. Tentativa de apresentar pela
. guagem aquilo que se experimenta como radicalmente ausente, ela convoca o
ímbolo a exercer-se na sua plenitude"(ibidem p. 381). Fazendo uma analogia,
eu diria: Seria esse o desafio da percepção intuitiva na Arte?

Da idéia de omnilateralidade e de como a arte pode


trabalhar com a dimensão do fazer, do sentir e do pensar.

Voltemos no tempo. Estávamos antes da LDB / 1971, período


em que as discussões e a prática em arte - educação, no geral, explicitavam um
onflito que se travava entre Arte e Técnica, nos termos em que comentamos.
Iuito depois a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira 1971).
ao deixar coexistir a Iniciação Artística e o Desenho, pretendeu eliminar o
onflito entre Arte e Técnica.

Na cultura nordestina, a escola vista como oportunidade de


ascensão social pelas classes populares, cedo desencanta, pelos malogros que
I

ausa e pela tenninalidade sem fim com a qual ela acena. "Aprender algo útil
om as mãos é uma forma de se fazer com que o belo sirva pra alguma coisa" -
isse uma professora. E outra apartou: "- O pessoal é pobre de um tudo. Se
les aprendem aqui uma coisinha a mais pra vida prática, isso é melhor do que
car fazendo coisas sem utilidade. Beleza não põe mesa, diz o ditado. "A visão
de arte como omamento, fazia esta professora pensar em supérfluo. A
polarização com o útil (já que omamento é supérfluo e supérfluo é inútil, numa
ultura da necessidade) era evidente.
148

Vejamos como é colocado todo um contexto sócio-político-


conômico que situa esta visão do útil, do agradável ou da astúcia de juntar os
dois, na representações de uma mãe de aluno, de uma das escolas observadas:

"Arte é aquele conhecimento mais da delicadeza, não é? Fazer


orzinha miudinha de papel, cinzeiro no dia das mães ... Eu outro dia ganhei ...
'Ri) É não? (Olha, sonda um pouco minha expressão ...) É? Diga que eu não sei
e vou bestando ... Não sei dessas coisas não, meu negócio é mesmo o que o
pessoal bota o nome de prendas do lar. Bom, mas ... Basta. Não sei bem como é
a coisa de escola ... O que eu faço é trazer menino, apanhar menino ... Reunião
aqui é quase nunca e quando tem, não vou. Vou lá ouvir reclamação que eu não
ou conta! Mas se a dona moça me pede assim, quer ouvir uma coisa qualquer
a gente, eu não me faço de rogada ... Como é mesmo a pergunta? Ah! Quando
u ia dizendo que arte é um trabalho assim mais maneiro, é que é assim mesmo.
Pode até não ser, mas parece. É aquele trabalho que não é a luta de todo dia.
Tá certo que tem uns que lutam com isso mas ... Arte é um que fazer assim que
mventa uma alegriazinha, a Sra. compreende? Quer dizer, trabalho mesmo não
é. que trabalho é como wna dor. E escola também. Pros pobres é. A gente
acostuma porque é a vida e... Vai indo, vai indo ... Perdí. Ali, sim: Arte eu não
ei. Não é isso das festas na escola? Acho que, na escola não carece disso não.
Essa arte, não. Os meninos precisam ir levando jeito pra agüentar o trabalho
daqui de fora. Se fica muito animado, aquela coisa frouxa, eles amolecem e...

qui fora isso não vinga não".

Vemos aí que "essas alegriazinhas" não são vistas como coisa


e Escola, não. Porque, como venho observando, o que as classes populares
'êem como necessário para seus filhos é que o ganho seja melhor, que escapem
tanto mais das privações que elas chamam de luta da vida.
149

É claríssima nesta fala que a representação que os pais têm de


Escola é esse "preparar para o mundo do trabalho". As professoras,
ufemisticamente, dizem que "a escola prepara para a vida".

(É interessante anotar agora que as professoras não se vêem


orno da classe social dos pais dos alunos. Elas se julgam de outra classe e,
oncretamente, nas escolas observadas todas praticamente tinham colocado os
- os na escola particular. Em várias conversas na sala dos professores elas
emonstravam ver seus filhos como diferentes das crianças da escola pública. E
hoviam censuras, lamentações para com as condições da escola pública, o
salário delas e... todavia, pelo que elas colocavam, a culpa pelos problemas da
prendizagem estava nas famílias desestruturadas onde as crianças não eram
rientadas e acompanhadas em suas tarefas escolares. Estas visões admitem
xceções).

Também, nestas representações, vê-se a visão do trabalho como


or, sacrifício-e ... a da Escola também. E porque ela é o lugar que prepara para
trabalho que é sacrificioso ("trabalho é como uma dor" ...), também não
deve (na visão dos pais das crianças da Escola Pública) distrair-se deste fim.
Porque senão ... "aqui fora isso (de arte) não vinga não."

.Inclusive aparece noutras falas dos pais a idéia de que "hoje em


'a na Escola tem muita embromação. Antigamente era mais puxado". E, outra
ãe: "O negócio é melhorar o ganho pra botar o que for melhorzinho da cabeça
uma escola particular. É puxado ... Lá os professores têm de mostrar serviço ...
êm de dar aquele tanto de matéria ... Aqui, se der, deu; se num der, mun
eu ..."

Uma observação também digna de nota: apenas as mulheres


mães. irmãs, parentes. vizinhas) iam buscar as crianças no colégio.
150

o prunetro pressuposto é que tal fato se dá por moti os


conômicos: quando há pais e trabalham, ficam no serviço o dia inteiro; quando
ão desempregados ou são alcoólatras, também não vêm e por outros moti os
diversos, também não aparecem. Os motivos não justificam tal ausência, uma
ez que as mães também têm motivos que se assemelham aos dos homens.

Todavia.ainda a tarefa da educação dos filhos é considerada


algo essencialmente feminino. Também os depoimentos femininos se referem a
stes "cuidados" como "obrigação da mulher".

As que são apontadas (pelas professoras ou por outras mães)


omo não cumpridoras da responsabilidade delas são severamente julgadas
elas outras mulheres.

Um fenômeno que eu atribuo como relativamente novo é a


ausência da figura masculina assumindo a função paterna. O índice de
eparações foi significativo, em todas as classes sociais, e isto tem implicado
numa ausência da figura masculina que assuma a patemidade. Quando a
"mulher arranja um homem", ele não costuma assumir-se como pai dos filhos
que ela já tem. O abandono do lar pelo marido, para constituir nova família, é
um fato comum, e há uma incidência altíssima destes casos. A mulher, então,
parte mais ferozmente para o subemprego (lavadeira, doméstica, faxineira,

diarista de espécie vária, vendedora ambulante, trabalhadora de fábrica de
astanhas, da indústria têxtil...), que exige o dia inteiro de ausência do lar. a
distância do local de trabalho para o lar, os transportes (que na periferia são
muito insuficientes), levam estas mulheres a chegar em casa já sendo noite
adiantada.

E as professoras (todas, das três escolas, sem exceção),


, igindo impreterivelmente o de er de casa diário. Que exigisse o dever ou o
obras e como responsabilida q elas ajudariam a criança a conquistar,
serIa compreensível. Agora pressupor que "os pais devem acompanhar
orientar os deveres, todos os dias, de seus filhos", ignorando todo esse qua
de misérias que eles vêem todos os dias, isso eu acho perverso. Ten -
conversar com eles (com os professores) sobre isso. Levantei primeiro como
que eles acham que os meninos e as meninas vivem. Depois, fui perguntando
mais detalhes sobre seus lares, seus trabalhos, condições de moradia, emprego
salário ... Tentamos (informalmente) fazer um perfil desses pais das crianças
com as quais trabalhavam. Pronto. Chegamos a pintar as telas que aí acima
delineei, do modo mais próximo, mais "chão" que soubemos. Depois, em
algum momento eu perguntei: "- Bom, e aí, o dever de casa? Será que é uma
coisa que se pode pedir, do modo como se está pedindo, dentro de uma
situação dessas que acabamos de avaliar?" E aí parece-me que, coletivamente,
nós voltamos ao ponto inicial. Ao ponto em que a consciência reificada não
quer "aprender coisas erradas", como diz Adorno, não quer aprender coisas
que mexam com sua estrutura de valores, tão bem alicerçada por esta vestidura
(aço?) ideológica.

Também aos poucos eu fui vendo como o cotidiano da sala de


aula baseava-se na instituição do dever de casa. No primeiro tempo: correção
do dever de casa (na lousa). Ainda no 1°. tempo ou no início do 2°. tempo, após
o recreio, ainda se fazia alguma tarefa de classe (tirada do livro-texto,

.
geralmente). Invariavelmente, todavia, na maior parte do 2°. tempo, em todas as
classes, praticamente, se ficava a copiar um extensíssimo dever de casa, da
lousa e vagarosamente. Decerto que, mexer com o dever de casa também era
mexer com uma pedra que calçava muito do edificio escolar.

Parece-me que as reflexões mais gerais sobre sociedade, que


poderíamos chamar "políticas" são colocadas em outra prateleira, diferente da
prateleira aonde se guardam as reflexões sobre o cotidiano escolar, sua vida e
as relações com os alunos. De a- e colocar como de outra ordem algo que
deveria um fim ionar como a - b a sobre outro para iluminar
152

melhor, e vice-versa. Já vimos como esta esfera do mundo da vida foi apartada
da política - desde a própria história do socialismo. Aprofundemos um pouco
ainda estas questões.

A estória do dever de casa parecia ser a "ponta do iceberg".


Era como que um símbolo do que a gente costuma observar como sendo "o
jogo do empurra": a professora "culpa" os pais por "não acompanharem e
orientarem a vida escolar de seus filhos" e os pais "culpam" as professoras
"porque os meninos não aprendem nada" e "a escola pública é como o inferno
e a particular, o céu". Interessante que tanto um grupo (de pais) como o outro
I de educadores) não parece contextualizar as questões, buscar interrelações
ntre os fatos e perceber mediações. Talvez que, para os pais, os professores
ejam a face explícita do poder do Estado.

Para os professores, penso que "colocar o problema bem mais


lá, onde eles não alcançam e fogem às suas responsabilidades", além do que já
observamos, ambigüamente, também é um modo de (pelo avesso) perceber os
seus limites. Ou perceber que o seu trabalho é parte de todo um conjunto que
- interrelaciona. E, desse conjunto, a parte que a professor vê mais à mão (ou
ais "embaixo"?) são os pais dos alunos.

Isso que eu falava de que o professor é a face que se vê de um



onstro disforme que, em suas representações, os professores dizem ser o
s stema, ficou claro em um momento que eu gostaria de deixar visto como
agem.

Eu cavara um espaço de tempo para discutir com os professores


- bre agressividade. Ninguém me convidara ali para fazer tal coisa, e os
ofessores entendiam que esta discussão fora gerada pela minha necessidade
.tplícita) de não "deixar como e tá' as expulsões de alunos que vinham
arrendo ilenciosamente, fei as a r ão da Escola. Tendo me oferecido
153

para trabalhar com as 4as séries (os expulsos eram os quase ou já adolescentes,
os rotulados "fora de faixa". Alguns comentários eram precisos: "Ele "até" fora
de faixa era ..." e o tom era: "devia dar graças a Deus a Escola lhe ter
aceitado") sobre Sexualidade (o que os professores acharam "um alívio" para
eles), pensei que devia também ver a percepção das professoras sobre esta
"agressividade" que "era o problema maior da Escola", diziam. Eu sabia como
a vida tem pressa e como era fatal uma expulsão na vida de lima criança ou
adolescente pobre das favelas de Fortaleza. Eu os pegava logo depois, no
movimento de meninos e meninas de rua para de algum modo trabalhar com
eles. E lá, nas ruas, era pior. (Ainda que no geral permanecessem "em casa",
morando, quero dizer ou mantendo algum tipo de vínculo, mesmo assim
pareciam viver só "nas ruas", pelo modo de sobreviver, de estar ali o dia todo e
de se ofertar feito fruta de várzea a toda sorte de situações de violência que
passavam então a compactuar. Eram os "improvisos" da vida, como eles
diziam. Um iinproviso definitivo nas suas vidas, eu sabia). Eu estava dizendo
que fui conversar sobre agressividade na Escola. Nós, os professores, ( a
direção se excluíra desde o início) , fizemos um trabalho para "tomar contato
om a infância que nós tivemos", "com a criança que fomos".

Depois, confrontamos com a que as crianças com as quais se


trabalhava ali, tinham. Levantamos tudo, toda SOlte de imagem, palavra,
lembrança, sonho valia. Depois do confronto, levantamos o que elas achavam
agressivo, da parte das crianças e adolescentes. Os sentimentos delas sobre
1 so. Houve choro, drama, riso, brincadeira. Por fim, eu perguntei sobre cada
a das coisas que listávamos como agressivas, o acontecido. E daí, a
rgunta que era um "nocaute" para todas nós: - "O que você acha que a
riança ou o adolescente (ou eles) tinha querido dizer quando tinha feito
"aquilo" (que era agressivo aos professores).
154

o que foi respondido foi:: que "a fome era intensa" (nunca
havia merenda escolar, eles não tinham dinheiro, no geral, para comprar nada,
era comum saírem sem comer ou comer quase nada de manhã e no 2°. tempo já
não se agüentavam); "devia haver uma bola ou qualquer coisa pra se jogar
(porque não havia); a direção os tratara mal e a seus pais, reclamando deles,
"humilhando", como diziam; o pai estava dando de beber, tinham deixado a
casa, estava desempregado, a mãe pegara ele na rua e dera Limasurra e dizia
"que ele ia dar pra ruim", a irmã estava grávida "e ia ser uma boca a mais", já
nem ... E por aí ia .. Isso pra não entrar no mais miúdo dali: não tinham lápis
nunca (se acabavam, se perdiam ou ), nem borracha, nem lápis de cor, nem
livro didático (só uns poucos), nem (aquilo eram uma "fuleragem", era o que
os mais afoitos diziam). E ... as filas antes da aula, pra rezar (rezar obrigado) era
a hora dos carões (dos intermináveis preconceitos "em nome de Deus"). O que
elas perceberam no fim dessa manhã (foi uma manhã): "só uma parte era pra
gente, mas tudo se ligava".

Vejamos como, na visão do aluno sobre a arte da Escola, ele


passa esse desconcerto do mundo, que ele tem dificuldades de elaborar
erbalmente, como vimos. (além das outras formas expressivas, ficou registrada
também como proposta, na reunião sobre agressividade de que falamos, tentar-
se chegar a níveis de elaboração também verbal, com os alunos).

À pergunta: "Onde está a arte da Escola?" um aluno da 4°. série


responde:

- "Nas coisas que a gente inventa. Como? Quando? Quando as


Ias pedem. (Pausa. Pensa um pouco). Nas datas. Às vezes o trabalho é
apresentar uma música que a gente criou ... Ou uma peça ... Painel ... é coisa de
menina. (Ri). Dos mais pequenos ... A nossa turma escolheu um "rap", Foi
assa, cara. ós fizemos a mú i a. o pas os ... Tem a dança toda, né? A letra
ra sem fim. (Ri). Foi a maior . O as unto era a in ompreensão dos
155

adultos e .. a esculhambação que tá o mundo. Pela Bela Vista a gente dá uma


geral no resto. É só aumentar o visual, a dose ... porque a loucura é a mesma,
cara. Arte na escola é a única hora que a gente olha para o mundo e diz: "-

Num é nada disso, Ó, cara".


156

Ritual rn

o Espaço da Cena Hl ou Ritual lU: A Sala de Aula

o espaço da sala de aula é o coração da Escola. Há cadeiras e


:::ralmente elas formam várias filas olhando para o quadro. Invariavelmente há
quadro - como nas igrejas há o altar. O quadro é o altar da sala. Geralmente
le tudo acontece, ou quase tudo, porque há o livro também, mas é mais raro:
dever de classe (a hora de passá-Io para que façam), o de casa e, também, as
. plicações". As "explicações" são a "matéria nova" que "a tia vai explicar .

Em frente ao quadro as pessoas quase sempre explicam.


- plicar é dizer como as coisas se dão. Como as coisas acontecem. Não faz
rte de explicar perguntar o por quê, as causas. Quando se explica se sabe - e
- explicações geralmente terminam com ponto mesmo.

De um lado da sala há janelas (no geral) e, do outro, a porta que


para um corredor. Na sala se fica "preso, sem recreio" - como se diz. Quem
ide isso é a professora. O espaço da sala é também um espaço vigiado. A
ofessora até dá "nota por comportamento". Mas também, na sala, é onde a
_ nte fica todos os dias, quase 4 horas: a gente ama a sala de aula, portanto,

.
rque a gente ama viver. Lá a gente fica entre colegas. Não há pai nem mãe,
. . iguais": os outros que são um coletivo de gente.

o Tempo da Cena lU: O Tempo na

Sala de Aula

O tempo na sala de aula custa a passar. As cnanças dizem:


Professora, está custando tanto a h gar o recreio " Ou: "O tempo hoje não
a... O implesmenter rO tando! .
157

A lentidão é tanta que é corno se o tempo fosse um boi bem


pesado levando a gente vagarosamente. Ou wn rinoceronte antiquíssimo que
mal dá um passo. Ou um trem andando pra trás, desacelerando.

A Cena nr.

A Cena TIl não é sempre que acontece. É até raro acontecer. A


mesa da professora está cheia de brinquedos e objetos criados "- da imaginação
mesmo, deles" diz a professora da sala, explicando para outra que está do
corredor olhando para dentro da sala. Há brinquedos: vai-e-vem , traca-traca,
iô-iô, carros, boneco de mola (sem mola, claro), telefone de faz de conta,
bonecões de todo tipo, gatos, coelhos, relógio maluco, instrumento musical,
pandeiros, caxixis, ganzás, cinzeiros, porta-lápis, porta-retrato, enfeite de
parede, rosas de papel. ..

Não há hora para se brincar com aquilo ali. "A sala não é lugar
de brincadeira" - diz sempre a professora. Nunca mesmo se fez brincadeiras na
sala de aula com estes brinquedos. "Foi da cabeça da gente mesmo" - disse
uma menina pra mim, logo depois que a professora dissera aquilo para a outra
que entrou.

Diz-se
I
dessas professoras que "são umas artistas, fazem
trabalhinhos de arte com as crianças, uma riqueza ..." - "Um artesanato lindo -
ajunta outra - e além de ser útil, é bonito". (A velha questão do útil e do belo).

Realmente havia beleza nos objetos mostrados. Em alguns, você


sentia que elas haviam "criado" algo. Em outros, o convencional e a
padronização do "útil" matava talvez o desejo de criar. "Essa ternurinha assim
não é uma arte?" - perguntou-me uma professora, monstrando-me wn trabalho
de palitos de picolé e palhinha orida formando uma janela risonha e
158

franca (por esse corredor se vê a saudade de uma escola risonha e franca, como
dizia o poeta)?

Lembrei-me dos bois de barro de Vitalino e dos tantos mestres


anônimos nessa arte, que povoam as feiras do Nordeste. Das cenas dos carros
de bois puxados por homens de chapéu de palhas largas, chinelos sisudos,
potes nas ilhargas dos bichos, por cima montaria. Lembrei-me da fileirinha de
potes formando uma espécie de balcão de feir.a livre tendo, por trás, uma
mulher um pouco debruçada na mercadoria. E o conjunto de tocadores: um com
a zabumba, o outro com o triângulo e mais o sanfoneiro, os três enganchados
num tripé só, olhando para uma suposta gente (nós?) que os animava a tocar. ..
E os cestos de todos os formatos: urus, urupemas balaios, alguidar... Cestos de
um redondo que se confinavam nas beiras como num pescoço 'de barro! Outro
sambava ali, as quartinhas acolá... E o homenzinho de madeira talhada,
carregando entre os ombros aquele toco onde se penduram, nas duas pontas, os
cajus em cordinhas?

E o casamento das penas coloridas com o barro, mistura divina


que só a soberania da arte popular é capaz de conjugar!? Penas coloridas e
barro esculpindo a festa dos bichos: pavões, caçotes, galinhas d' angola,
marrecos, preás, galinha d'água, porcos, seriemas, carcarás, avestruzes ... Como
ficavam majestosos, os bichos de penas, com sua plumária lhes inchando os
estos, como as mulheres em suas roupas de domingo! Por qual corredor
aíram estas figuras que todos ali conheciam e que lhes negavam a dignidade de
rem respeitadas, amadas, esculpidas na Escola? Um saber postiço (uma
murinha, uma arte, mas postiça?) se criava artificialmente para usurpar o
gar da obra e da história dos que, ali, pareceriam sempre ter um etemo não
aber? Lembrei dos tantos Papai Noel das lojas da rua do Ouvidor, muitos
eles palhaços de profissão, já cansados) suportando aquelas golas e bigodes
algodão se empastando do uor o nosso calor equatorial.. E os circos
obres com o palha o le an o idad com a graça dos simples, por
159

quais portas saíram? Quantos papai-noel nos shoppings, desengonçadamente


tristonhos, no seu papel de receber pipocas como os macacos do zoológico!?
Numas turmas de uma creche, nas palafitas de São Luís, Maranhão, onde eu
trabalhava, perguntava eu a elas o que era Natal.Elas respondiam: Papai Noel,
presentes, e as cadeias de associações daí derivadas. Do nascimento do Cristo
Jesus, só uma menina lembrara. Talvez em sua casa alguém ainda recordasse as
Iapinhas, feitas com papel e materiais os mais diversos, a pura poesia
cristalizada num canto ... E que expressão de singeleza nos olhos dos pastores ...
Como se conseguia colocar, misteriosamente, aquela estrela no alto, que
conduzia os três reis magos! E a pobreza da palha - havia sempre um material
tão ricamente arranjado expressando a pobreza do lugar. .. E por onde se
colocara aquela lâmpada, que dava um contraste lindo de luz e sombra à
estrebaria? Um amigo me dizia, contrafeito, que o Papai-Noel era um
usurpador" das lapinhas que, quando feitas, em tomo de si se faziam até autos
natalinos. De quantas usurpações são feitos os corredores! ...

De outra feita, estava eu em Juazeiro, município da região sul


do Ceará, trabalhando com capacitação a professores do lugar. E, em dado
momento, eu lhes perguntei sobre cantos de romaria (a cidade vive e pulsa em
função das romarias ao "Padim Ciço Romão"): elas enfiaram um rosário de uns
dez cantos lindíssimos, naquelas tonalidades estranhas, tristíssimas, tão
emelhantes à cigana dor andaluza (os "modos" dórico, frígio e outras escalas

modais)! Eu lhes perguntei, emocionada: Alguma vez vocês ensinaram ou
;ram cantar por aqui esses cantos, na escola?

Das trezentas professoras, aproximadamente, para quem em


-ariados momentos fiz esta pergunta, em Juazeiro, nunca alguém me respondeu
afirmativamente. E, pra causar um certo estranhamento nelas, me pus a cantar,
om a alma imensamente dolorida pela dor daquele meu povo, um dos cantos
d romaria que elas ainda não ha iam antado. (O hino de Nossa Senhora das
andeias. que eu já conbe ia a a . 110\ ' de música popular que eu
160

fizera nos idos de 80). O canto de romana tinha uma parte que dizia o
seguinte:

"Ó que caminho tão lindo e cheio


de pedra e areia.
Valci-me meu Padim Ciço e a mãe
de Deus das Candeias.

Bendito, louvado seja a luz


que mais alumeia.
VaIei-me meu Padim Ciço e a mãe
de Deus das Candeia.

No caminho de Juazeiro
nunca ninguém "se areia",
por causa da luminura da mãe
de Deus das Candeia ..."

Passado o espanto inicial e o enternecimento que eu lhes


causara, esperei feliz que elas cantassem COllÚgO,ao final, o hino como eu
conhecia. Para surpresa minha, elas cantaram modificando o hino original da
seguinte forma: .

... "no caminho de Juazeiro


nunca ninguém "se perdeu",
por causa da luminura da mãe
de Deus das Candeias".

Vejam só: a pala Ta areia" (jeito popular de referir-se a uma


espécie de estado de 'alheam nto 000 n ou para o vocábulo "areiar-se" e,
então, ar ia foi riscada da . _. m seu lugar uma palavra que
161

quebra a sonoridade e a rima da canção. Já se viu rimar-se "perdeu" com


"Candeias"? Mas parece que se trata de não deixar vestígios do falar, do sentir,
do saber do povo, das classes populares na Escola.

o legítimo, para as professoras que ali estavam, eram as


usurpadoras "musiquinhas de comando", como chama Rosa Fuks e que
funcionam como elementos disciplinadores, aliciadores da domesticação que é
feita na Escola. Rosa Fuks diz que é o discurso do silêncio. Eu diria: do
silenciamento. Porque o silêncio é polissêmico e belo - o silenciamento é
unívoco.

Depreende-se também dessa atividade com arte, na Escola, a


idéia de arte como livre expressão. Vejamos como uma professora se expressa
sobre isso. À pergunta "precisa de arte na Escola?" , ela responde:

"Precisa. E muito. É um tipo de um modo novo de se pensar que


vai nascendo. O artista sempre tem mais sensibilidade e... A sociedade precisa
de gente para atuar de um modo mais sensível. Como é que a gente vai criar
uma sociedade mais justa sem essa sensibilidade? Ano passado nós fizemos a
semana cultural. Todo ano a gente faz. É em agosto. A escola pára e é só arte.
É todo mundo se empolgando, as crianças vão enfiando pelo dia sem cansaço ...
vinham para escola em todos os horários... Os costumes se organizaram
I

melhor ..."Houve uma parceria muito grande dos professores com os alunos, dos
funcionários com os alunos ... E a escola toda foi envolvida nesse processo ... Os
trabalhos com sucata... eram de uma criatividade impressionante. A gente se
espanta de ver como eles sabem coisas que a gente nem imagina, como
percebem aspectos da realidade que nem se tinha reparado ... Tudo aparecia ali,
naqueles trabalhos de sucata. Expressão deles ... Uns olhos de gigante, eu senti
que é como se eles tivessem olhando tudo com olhos de gigante e eu me sentia
bem pequenininha. Tinha prof ora qu comentava na sala dos professores:
"puxa eles abiam tudo isto? : ida com a arte. É como a
162

música da Banda: "eu estava à toa na vida" ... Depois que passa a semana
cultural, a gente já fica imaginando a próxima ..."

Nós poderíamos perguntar por que é só um momento punctual,


a arte na Escola. São momentos como que espasmódicos e que ... passam como
a Banda da letra do Chico Buarque, a professora disse bem.

Também aí se vê a percepção da arte como algo que é uma


dimensão de todos, uma coisa que leva a pessoa a atuar na vida de mTI modo
mais sensível. Há, até, a conexão desta sensibilidade, aliada à idéia de justiça
social. É uma sensibilidade que deve fazer a justiça social, ela sugere. A visão
de arte como livre expressão, contudo, é um assunto que merece algumas
considerações.

Desde o período em que, no Brasil, eclodiu o chamado


movimento escolanovista, e talvez como reação ao rigor com que era tratada a
arte, no sentido de aliar-se a civismo, autoridade, depois (com o industrialismo)
técnica, oficios, utilidade, a arte na Educação curvou a vara para o outro lado:
"a plena expressão da individualidade e a criação". Após a LDB/71, que
introduziu o ensino obrigatório de Educação Artística nas escolas brasileiras,
ficou explicitado o lugar da Arte como Expressão e Criação. Antes, porém, no
início do século, já se vinha articulando todo um movimento neste sentido. O
I

pintor Cizek, em 1904, em seu Departamento de Pesquisas e Experiências na


Escola de Arte e Artesanato de Viena, reunira crianças para pintar e desenhar,
elaborando o discurso da livre-expressão. Matisse, ChagaIl e Paul Klee também
experimentaram vivenciar as idéias de Cizek. Os trabalhos de Decroly, Rouma,
Luquet e Kerchensteiner, sobre o grafismo infantil em suas origens, evolução e
significação psicológica, já norteavam reflexões mais aprofundadas sobre a
expressão criadora. Dewey, nos Estados Unidos e Marion Richardson, na
escola inglesa, cuidaram de en ar squisas e fundamentar teoricamente as
vi ências que apontav am n o Brasil, em 1948 fundou-se as
163

chamadas Escolinhas de Arte, que fomeceram a massa crítica que começou a


teorizar sobre o assunto e a desenvolver experimentos nessa área. Augusto
Rodrigues, em Pernambuco, dissemina uma fértil reflexão sobre Arte em
Educação, a partir de uma Escolinha de Arte, em Recife e, em 1954, mostra à
Europa o trabalho das Escolinhas de Arte Brasileiras.

Na Revista do TNEP, n° 132, vê-se que a idéia de expressão


criadora, nasce no Brasil vinculada à de técnica, de possibilidades maiores na
corrida da tecnologia, senão vejamos:

"A recente preocupação com a formação do pesquisador, do


homem dedicado à ciência pura, ou daquele capaz de abrir os caminhos para
técnicas novas, para soluções novas, já começa a determinar novos objetos
para a educação. Procura-se desenvolver o homem criador, aquele que se
constituirá no elemento gerador do desenvolvimento procurado. É preciso
educar para criar, isto é, procurar os meios para estimular ao máximo a
capacidade criadora inerente à cada indivíduo, para que ele possa responder
vitoriosamente ao desafio da revolução acelerada em que vivemos (idem,
p.596). E, mais adiante: "Lembremos, para terminar, que a criatividade
funcional, isto é, a parte posta em uso da capacidade criadora inata, própria de
todo o ser humano, cresce por ação da sensibilidade, a qual, estimulada,
desencadeia o processo criador (ibidem, p.597) .

A arte e a cultura na escola: Da importância do tratamento


político e estético aos símbolos e gestos da cultura, em Educação.

Quando se pergunta por quais portas teriam saído estas cenas da


vida popular, esculpidas por mestres da arte do barro, da talha, da palha no
nordeste, não se quer retirar as obras de arte do processo real da vida de
onde elas brotam. Coi ificar I ra seria retirá-Ia da dinâmica
164

história onde a contraditoriedade pousa. Em parte, a arte se separa do vigente


e instaura wn novo reino que promete realizar - esta tensão entre o que é e o
que poderia ser é seu fermento crítico. Todavia, a arte está atrelada ao existente
- em parte, e a idéia de uma "pureza" da cultura apartada do desconcerto que
se expande sobre a totalidade dos setores da existência, para Adorno, é wn
modo de neutralizar e reificar a cultura. E, também, wn modo de querer negar à
arte sua função de intervir na prática social. Junto a esta idéia, que costuma
estar perto de quando e onde se junta ao termo cultura o adjetivo popular,
acontece de se separar o espírito e as condições materiais. Separa-se objeto do
homem que o cria.

o processo material da vida é o próprio conteúdo da cultura,


que tem seu substrato material como se um certo peso específico a imantasse
ao solo do existente, em que pese os vôos que ela realiza no reino do que
poderia ser. Vê-se aí lUna recusa ao que Adorno chama de fetichização da
esfera do espírito. Para ele, dialético significa intransigência contra toda e
qualquer forma de reificação.

Queria, apenas, ao contrário, "situar" as obras de arte em seu


sentido de re-elaboração das representações de mundo feitas pelo grupo
hegemônico, Não se quer ver os objetos de arte popular como algo que
"aparece" na Escola, como o gênio da lâmpada de Aladim, que se põe em
I

nossa frente. Quer-se ancorar esse fazer no seio do povo que o elabora e, em o
fazendo, reler os significados que estão à sua disposição na leitura de mundo.
Estes significados têm núcleos abastardados, mas têm núcleos de reelaboração
e resistência.

o bordado que algumas meninas ainda fazem - "tia, eu faço


porque a mãe ensina mas tem uma mulher que pega e leva para vender na
Beira-Mar' - mostra bem esta r ionalização por que passa o objeto criado.
De um fazer 'que ajuda a .a e que pod r-se-ia dizer que
165

apenas ampara o cotidiano mais duro do trabalho, vê-se que sai um objeto que
vai ser estetizado para consumo, geralmente do turismo. O objeto artesanal
criado na escola parece-me situar-se nesta região de algo quase casual, furtivo,
mais que já se lhe põe no fazer a idéia de que pode ser consumido
esteticamente, "pode também dar um dinheirinho, tia".

A desvalorização do que é feito com as mãos é assumida, eu


diria até, com consciência .

... "o sujeito pode até se entreter com essas COIsasmas para se
ocupar, porque tudo que se faz tem sua valia e ainda mais uma coisinha dessas
que serve para quem queira ... mas isso num deve distrair os meninos do estudo
não ..." e, depois, "dessa escravidão de trabalhar com as mãos eu já vim. Na
idade o negócio é ter cabeça boa para coisa de livro, que aí você pode arrumar
um emprego melhorado. Nunca ... nem nunca ... como o deles lá ... mas
melhorado. Já num é aquele cativeiro sem fim das mão na palha".

o depoimento dessa mãe aponta para um "fabricado", no


interior, diverso do da cidade. O "fabricado" no interior era um "cativeiro" ... na
idade, há a possibilidade de ascensão social, elas crêem. De fato, a mobilidade
ocial é menor no interior, nesses setores onde a mão-de-obra, sobretudo a
eminina, luta c.om um "fabricado" artesanal. A Escola, então, é esse espaço de
possibilidade, crêem, de fuga desta determinação tão explícita.

A transformação dos objetos que, no interior, eram feitos para


uso e, na cidade, adquirem valor de troca e, até, estético, parece ser percebida
na fala da professora:

" ... muitas dessas coisas que a gente faz assim de criação, com
ucata, com materiais ... pobre, é .... muitas delas já sabiam fazer. Para uso
assim, de casa mesmo, como ma coisa que passava de pai e mãe
166

para filho, como um conselho. Hoje os meninos já vêem que aquilo ali tem um
valor, e até dá wna renda, um dinheiro, ouviu? Sempre eles sabem que na
EMCETUR, na Beira-Mar, por aí... tem gente que acha lindo aquilo e compra.
Alguns fazem essas coisas para ajudar, então, no sustento. Mas aí o bordado, a
palha, aqueles enfeitinhos são feitos já para isso".

° contexto em que eram feitos os trabalhos artesanais mudou.


Fica, contudo, a desconfiança de que o saber das mãos não têm a valia do saber
dos livros. Porque a escola é esse espaço marcado por essa luta pelo saber dos
livros, o que "distrair" vai ser considerado perda de tempo ou, no máximo, algo
que serve "porque ocupa". Nesse "porque ocupa" poderíamos ver o
aprendizado das regras do mundo do trabalho neste contexto de sacrificio: um
ocupar-se intransitivo. Não se lhe quer não monotono, não se lhe pergunta o
para quê nem o por quê, nem se lhe confere dignidade ou prazer. A experiência
de um fazer que é trabalho, diversa desse modelo de sacrificio, oferecida
decerto pela feitura do objeto artístico, não parece importar, numa cultura da
necessidade. Adorno diz que "o contato produtivo da obra de arte é trabalho
intrisecamente prazeroso, pennite vislumbrar a utopia do trabalho não -
compulsivo e do prazer não - culposo (ADORNO, 1994:21). Certamente que,
como também acreditava Adorno, não só a possibilidade objetiva, também a
capacidade subjetiva para a felicidade só se dá na liberdade.

No entanto, há que se romper com esse modo da consciência se


achar idêntica ao real. A obra de arte, em algum nível, "quebra" esta
"continuidade" mas, tampouco, fica pairando nwna esfera autônoma,
desvinculada de seu tempo e espaço, de suas detenninantes culturais. Sem a
ingenuidade de não vermos que este "fabricado" é mercadoria. É wna
mercadoria que, ao mudar de contexto, modifica seu valor e, até, adquire
significações em acréscimos. ão se nega, contudo, que um determinado nível
de elaboração estética é subtraído do objeto pela indústria cultural, que lhe
determina o e tilo como na ..' ... .ri - esta mesma ordem que lhe
167

cobra a estesia. Uma estese que tudo quer transformar em espetáculo: os


objetos, de Ciça do barro cru, como as praias do Paracuru, como urna
cerimônia como a Missa do Vaqueiro, como as grutas de Ubajara. Esta
"espetacularização" da arte tem uma característica singular: reduz homem,
objeto, cerimonia a "espetáculo" para consumo efêmero.

o que não se costuma considerar é que, contudo, há


"transações" (conteúdos que transitam) entre as classes, há apropriações e re-
elaborações do capital cultural a que tiveram acesso, diferentemente. Em
linguagem gramsciana, se poderia dizer que, sorrateira e despretensiosamente
(talvez), aí se gesta uma contra-hegemonia também.

o mundo simbólico, timidamente, se põe no canto da sala dos


professores, meio perdido, meio "gauche" na vida, quase engolido pelo mundo
sistêmico. Todavia a relação professor - aluno e o coletivo ( esse Outro
precioso da sala de aula) chama novamente essa ação instrumental que se
ensaia nesse "ocupar-se" contínuo das tarefas escolares para wn respeito aos
fins, para a esfera intersubjetiva. E, na esfera intersubjetiva, a convivência com
a diferença enriquece a polissemia desses objetos que "fogem" de umas mãos
que "se ocupam" e instauram umas "mãos que criam" também. O fazer estrito
'liberta" algo que apenas na aparência é um fabricado mas que é seu Outro: o

.
espírito. Esse mesmo que se supunha em retirada e volta, ainda, para ser
perseguido. Vejamos como Adomo se expressa sobre o que vinha alinhavando:

"A metafisica da arte gira, hoje, em tomo da questão sobre


como pode ser verdadeiro algo de espiritual, que é fabricado e, segundo a
linguagem da filosofia, "simplesmente posto". Trata-se não da obra
imediatamente presente, mas do seu conteúdo. A questão, porém, da verdade
e algo de fabricado é apenas a da aparência e da sua libertação como
aparência do erdadeiro. O on údo de erdade não pode ser algo de
abricado. Todo o fazer da art . r o úni o para dizer o que não seria o
168

"fabricado" em si mesmo e o que a arte não sabe: é justamente o seu espírito".


Aqui tem o seu lugar a idéia da arte como reconstituição da natureza oprimida e
implicada na dinâmica histórica. A natureza, cuja imago a arte segue de perto,
ainda não existe, ela é verdadeiramente na arte um não-ente. Trata-se, para a
arte, daquele Outro para o qual a razão identificadora, que o reduziu a material,
possui a palavra natureza. Este Outro não é unidade e conceito, mas uma
pluralidade. Assim, o conteúdo de verdade apresenta-se na arte como uma
plural idade, não como termo genérico, abstrato, das obras de arte. A
subordinação do conteúdo de verdade da arte às suas obras e a multiplicidade
do que depende da identificação harmonizam-se entre si. De todos os
paradoxos da arte, o mais profundo é que só mediante o "fazer", a elaboração
de obras mais particulares, em si específica e fatalmente organizadas, jamais
por um vislumbre direto, é que ela apreende o não-fabricado, a verdade.
(ADORNO, 1970:153).
169

Ritual IV

Fundo de Quintal - O Lugar da Cena IV

Aqui se brinca de faz-de-conta. Vale imaginar que as folhas são


comidinha e os tijolos o fogo de aquecê-Ias. Cada canto do chão ou no galho
das árvores pode ser um refúgio de guerra, um edificio de cidade ou um
acampamento de ciganos no subúrbio. A goiabeira - debaixo dela - é o espaço
onde se começa esse jogo ou esse conto ou esse faz-de-conta. Aí, pode-se ser o
que se quer. Em grupo, todo o mundo aceitando combinadamente os papéis, se
vai inventando (e sendo) estórias. Os papéis do sonho, como aqueles da coxia,
de bombons, com que a gente olhava o sol para a cor do mundo ficar diferente,
são jogados como quem ri. Como um discurso que se articula, e não se julga
que é sério e não se lhe julga para que não perca o encanto, que é sua
gratuidade.

O exercício gratuito de ousar o que não se é. Ou de ir


misturando Imagens sonhadas, ansiadas, desentendidas para serem
experimentadas e compreendidas na gravidade do ensaio.

A experiência da opressão é aí reproduzida: a empregada


judiada, ferida? é experienciada. A ferocidade do "marido" para com a
"esposa" só é suplantada pela ... do patrão. Ou do policial - esse filho da classe
operária encharcado pelo aprendizado do fascismo na sua cultura institucional.
A agressividade sai do pensamento e vira ação, combate ferino. Briga "de
vera" de facções opostas, rua de cima e rua de baixo, no fundo de quintal na
guerra com caroços de mamona. A experiência do furto das mangas verdes ou
das cajaranas, roubadas do quintal vizinho, é repartida em culpa e risco. A
batalha feroz e calada das meninas contra o domínio (e fascínio) dos meninos é
encetada nas espadas de galho e o )à ezes com alguma quantidade mesmo
de e pinho. ão mata ma wna canção popular. Aí também as
170

primeiras brincadeiras de médico ou a de melancia, e o contato dos corpos se


faz mais íntimo, se descobrindo. Desejo e monnaço grudavam-se à terra mal
varrida dos quintais.

o Tempo

o tempo do quintal é confuso. Parece não ter fim: - "Essa


brincadeira não tem fim" ... dizem as mulheres, reclamando a falta dos deveres
da escola, o estudo. "Vocês perdem a cabeça, nessa brincadeira" - diz-se.
"Essa menina está ariadinha" - ouve-se. No quintal, perde-se a hora das coisas.
"Vocês perderam a hora do ..." No quintal também "passa-se" da hora. "Vixe!
Já passou a hora do ..." Por perder-se a hora, por passar a hora e não se ver,
nunca se diz que "vai-se ao quintal em cima da hora". Diz-se que: "é uma
loucura essa perda de tempo" - falam os adultos. Parece que se perde o tempo
porque ele passa e não se vê. No quintal a gente perde o tempo e ele passa .
. Quando se volta à casa, faz-se as coisas "em cima da hora".

No quintal diz-se: "Vou ser a Remédio quando perdeu o


menino ..." E esse já sido volta e é presente agorinha. E por se ser um já havido
(ou um nem sido) diz-se ser jogo. No jogo, o tempo do quintal é passado que se
traz para viver de novo. Quando se traz, porém, é uma recapitulação mas é

presente também. Certamente por isso o tempo ali parece confuso. Nesse jogo
vai-se reviver (e viver ainda) o que ficou "enganchado na goela". Puro jogo de
"assimilação", diz Piaget: os conteúdos que não foram digeridos como que
ficam sendo mastigados, ruminados, botando-se fora uns, revivendo-se outros.
A encenação dos dramas da dor e do prazer num espaço nem tão ameaçador.
Sob as sombras das mangueiras ou não.

Talvez por não e as amarras todas da racionalidade, aí irrompe


o desejo. Coi arando as o idiano o de ejo em aos jorros:
171

como esse passado que não se entendeu e que volta para ser reencenado como
jogo. O espaço protegido do jogo trazendo o difícil, o susto para ser revisitado
no presente.

A Cena IV ou Ritual IV

A Cena IV não acontece na Escola. Ela é mencionada na Escola


como o lugar onde "se faz brincadeira de teatro". As crianças dizem: - "É uma
beleza, tia, cada um vira uma coisa. Inventa. E vai sendo aquilo, só por ser".
Outra diz: "- Não é para apresentar não mas é teatro. É para a gente mesmo". E
também: "É escondido, tem de ser escondido. Porque tem até estória de amor
que a gente inventa e faz, nesse teatro da gente. Imagina o povo vendo ...
Seria ... Ah! É coisa só da gente". E, ainda: "- As estórias que a gente vive
nessas horas são coisas da vida mesmo, que a gente viu ... Mas a gente na hora
ali, quando começa a brincadeira, sai cada coisa que a gente nem tinha pensado
antes" ...

- "Vai acontecendo tudo ali, aquela história, como um sonho


meio acordado. O legal é que a gente vai fazendo a história na hora. A história
é a brincadeira toda". E outra: "- Como se a gente tivesse encantada. Depois
desencanta. Como é encantada? É faz-de-conta. O príncipe virando sapo e o

sapo virando príncipe, é isso. Uma coisa virando outra". E wna delas
encomprida:

"A estória que eu mais gostei na brincadeira de teatro foi


brincar de cabana. Cabana era uma casa que a gente fez. Aproveitou o tronco
do pé de goiaba, os galhos, cobriu a casa, botou umas madeiras, uns panos
velhos e ficou uma cabana de erdade. A gente era assaltante ... De coisa
paraguaia ..." (Outra menina int rrompeu): - ão, tia, cigano. Que compra umas
coisa e vende outra. E lê ão. ~
172

"- Eu tava falando. Sou eu. Tinha uma vida aSSIm igual.
Comidinha, a gente fazia. As "mulher". Os "homem" iam fazer coisa nas
árvores. Para lá.
(A outra interrompendo) : "- Caçar, porque a cabana era no fim
da cidade. Já quase mata. Ficava perto da mata".

"- Eles brigavam lá, tinham a guerra deles. E tinha a guerra


com a gente. Homem contra mulher. Sem esse negócio de dizer 'a bichinha ...'
de verdade."

(A outra, interrompe de novo) : "- Com pancada e tudo. A gente


se defendia ... E também dava neles. Depois ..."

"- ... Tinha a outra hora. (Riem, fazem fita para dizer, suspense
e mudam o tom de voz): - A que a gente ficava de bem. Cada uma ficava com
um. E aquele que a gente pegou ia ser o macho da gente, tia.

(A outra, interrompendo): "- Fala assim, não ... Não é assim ..."

"- A mãe quando fala assim diz macho. Ele não "tando", a gente
fala assim. Na presença dele é o nome dele. Eu vejo que é..."

- " ... Teve beijo na boca. E eu queria aquilo. Eu queria. Quem


tava querendo era eu, não era só da brincadeira, não ..."

Pois bem. Continuando: essa é a Cena IV: a cabana no fundo do


quintal e todos sendo meio assaltantes, meio ciganos e, num momento qualquer,
cada um ia viver o seu desejo do outro com seu par. Certamente vemos, no
jogo dramático do fundo de quintal, a interminável posse do ser por Ananke e
Eros - a necessidade e o d s jo, mos que o fundo do quintal é uma espécie
de repouso da fadiga de s da hora - lá as horas se perdem e
173

ninguém trata de achá-Ias. A paixão toma sua posse e sonha acordada. "Vai
acontecendo tudo ali..."

Não há pedaços, no faz de conta, que são escolhidos ou


recortados como mais nobres do que outros. Parece que não se escolhe um fio
de verdade para ser história. Lá, "a história é a brincadeira toda". Haveria já
quase consciente uma ponta de desconfiança de que o signo esconde? De que
se escolhe o que se conta e - talvez que para as crianças - o melhor da
brincadeira fica por trás do que aparece? A parte que não se conta da história é
o coletivo da parte que, como pessoa, vai sendo o que não é só por parecer.
Parece, então, que há na mente das crianças um modo de ir "sendo aquilo, só
por ser" e , pelo jeito, ela conta com um "ser por parecer". A pressão dos
papéis sociais, da fôrma da socialidade se faz sentir nesse "ser que não é só por
ser", que é pensado por nós a partir desse "ser aquilo, só por ser" que ela diz
ser a graça do faz de conta? Há um "imagina o povo vendo ... seria ..." que corta
esse" teatro da gente" que "é coisa só da gente". (Do grupo ali). Haveria
mesmo algo que apartava a infância como possibilidade de se "ir sendo aquilo,
só por ser" do resto de um mundo, fora do fundo de quintal.

Por sair "cada coisa que a gente nem tinha pensado antes", vê-
se que é jogo, o espaço onde o imaginário faz e acontece. O desejo de viver no
jogo as "coisas da vida mesmo, que a gente viu" mostra os conteúdos psíquicos

inquietantes querendo ser elaborados na ação de se ir sendo só por ser. A
ultrapassagem da fronteira do bom e mau, do que é prazer e do que é guerra - a
transgressão do que é costumeiramente vivido, sendo o encantamento mesmo
do jogo. Poderíamos ver aí uma distinção feita, sem a consciência dela, do que
é individualidade e subjetividade? O "ser para o povo ver", o ser tenso, cindido
por um aparecer social que o constrange não seria uma crítica à mediação feita
pelo sistema capitalista aos processos de desejo enunciados pela infância? Vê-
se claro aí a pretensão do ego de tentar nos papéis sociais que deixam
174

constrangimento a outro tipo de desejo. Esse ego poderia estar funcionando


como redutor da inteireza que o desejo obrigava a fazer o ser comportar.

Enveredemos um tanto mais nesta ordem de considerações.


Sabe-se que o sistema capitalista produz, tanto quanto o controle das relações
sociais e de produção, subjetividade. Como vimos falando, portanto, a

problemática da micro-política dá-se no nível da produção da subjetividade. Há

toda uma produção de modelos - uma "modelização" - que é a matéria-prima


do sistema de produção capitalista. Esta produção da subjetividade funciona no

próprio modo de se perceber, de se articular afeto e relação social, tecido

urbano e processos de produção no trabalho, sensibilidade e linguagem.

Guattari pensa que a noção de ideologia não dá conta da

profundidade desses processos de produção da subjetividade:

"A noção de ideologia não nos permite compreender essa

função literalmente produtiva da subjetividade. A ideologia permanece na


esfera da representação, quando a produção essencial do capitalismo mundial

integrado não é apenas a da representação mas a de uma modelização que diz

respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às

relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas imaginários, etc".

.
(GUATTARI e ROLNIK, 1986:28) .

Dentro dessa fala vê-se como é fundamental que nós vejamos

como se dá essa economia coletiva e essa semiotização do desejo. Para

Guattari, o que é produzido pela linha de montagem da subjetividade

capitalística, não é apenas uma transmissão de idéias, não se reduz à produção

de modelos de identidade mas trata-se de "sistemas de conexão direta entre as


grandes máquinas produti as. as grandes máquinas de controle social e as
instâncias psíquicas que d fin a an ira de perceber o mundo"(ibidem, p.

2 ).
175

A subjetividade capitalista, portanto, tem esse aspecto de ser


produzida de um modo coletivo e serializado - aspecto diverso do modo como
esses processos de subjetivação são encarnados por cada corpo (indivíduo) nos
seus processos de individuação. Para o sistema capitalista, o indivíduo é uma
espécie de terminal onde chega o consumo e se realiza o ato de consumir. Em
linguagem de informática, Guattari diz que "o indivíduo existe enquanto
terminal: esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de
subjetividade". (ibidem, p. 32).

Poderíamos partir da idéia de que a subjetividade é algo


essencialmente social mas "acontece" em processos de individuação.

Para não simplificarmos o que ele concebe por indivíduos


vamos considerar pelo menos a amplitude de alguns de seus processos de
individuação, senão vejamos:

"O indivíduo, a meu ver, está na encruzilhada de múltiplos


componentes de subjetividade. Entre esses componentes alguns são
inconscientes. Outros são mais do domínio do corpo ... Outros são mais do
domínio daquilo que os sociólogos americanos chamam de "grupos primários"
... Outros, ainda, são do domínio da produção do poder. .. Minha hipótese é que
existe também uma subjetividade ainda mais ampla: é o que chamo de
I

subjetividade capitalística" (ibidem, p. 34). Portanto, esse seu conceito de


subjetividade aponta para uma espécie de modelização do ser, que acontece em
escala mundial e que se toma um dado de base na formação da força coletiva
de trabalho e da força de controle social coletivo. É como se houvesse uma
linha de montagem de subjetividades ftmcionando como indústria de base do
sistema capitalista (ou do socialista burocrático, diz ele). Parte do processo
maquínico da produção capitalista constitui-se dessa produção subjetiva e
monta-se sobre relações de dep dê ia e complementaridade sociais entre as
diferente lasses e categorias - a a diluindo as alianças de classe.
176

Essa produção atua até nas representações inconscientes, fabricando uma


relação do homem com seu passado, como o futuro, com o outro e consigo
mesmo.
Todavia, essa formação da subjetividade capitalística encontra
fatores de resistência, que Guattari chama de Revoluções Moleculares: são os
"

processos de singularização subjetiva. O que vai caracterizar esses processos


de singularização é o fato, sobretudo, de que eles acontecem em grupos
automodeladores, que constróem suas próprias referências práticas e teóricas.

Essa experiência que Guattari nomeava de "experiência de


!:,1fUpO
sujeito", subverte os processos de serialização das subjetividades. Nestas
experiências de grupo sujeito, a aventura de se viver processos de
singularização se dá num colo que é o grupo, onde se parte na direção de se
trabalhar toda a riqueza da expressão e da sensibilidade. Estes processos de
singularização estão jungidos ao caminho de autonomização do grupo. Seria
bem essa função de autonomização a que caracteriza os grupos sujeito, que
vivenciam esta subversão à modelização das subjetividades. É importante frisar
que essa espécie de reterritorialização do desejo, feita em grupo, não flutua
livremente, mas inscreve-se no contexto das detenninantes de classe e das
forças sociais em jogo.

Essa
, espécie de "escuta" do grupo aos seus processos, de
desvestiduras (a partir do trabalho crítico) das "camadas" que se depositam no
er, formando a socialidade capitalista, se efetiva quando o grupo vive seu
processo de autonomização.

Nesse processo, ele gesta e interpreta seu desejo. Desenlinha os


fios que constróem essa teia da subjetividade capitalística, em um certo nível,
desvelando as formas das modelizações e, ao mesmo tempo, instaurando os
caminhos do seu desejo.
177

Guattari, falando da função de autonomização que caracteriza


estes grupos sujeitos, assim se expressa:

"A função de autonomia num grupo corresponde à capacidade

de operar seu próprio trabalho de semiotização, de cartografia (dos seus


desejos), de se inserir em níveis de relação de força local, de fazer e desfazer
alianças, etc ... " (ibidem, p. 46).

Esses processos de singularização podem se dar no indivíduo,

no modo como ele se relaciona com a vida ou com aspectos desta. Guattari diz

serem "os pontos de singularidade, os processos de singularização as próprias

raízes produtivas da subjetividade em sua pluralidade" (ibiem, p. 52).

Quando Benjamin faz a crítica e fala do empobrecimento da

experiência na modernidade, parece referir-se também à possibilidade de se

reagir a esse processo de homogeneização, que é agravado de um certo modo

pela cultura de massas. Parece propor que a categoria da Infância, por exemplo,
poderia fornecer elementos para se pensar a possibilidade do resgate do sentido

e do não empobrecimento da subjetividade ante os processos maquínicos da

modernidade.

Na
, escola, por exemplo, vemos que a infância (como algo não

tomado demais por esta subjetividade dominante), aliada a processos de

marginalização inscritos na pobreza, "estranha" essa produção de sentidos

modelizados. A peça "Fiapo", encenada cerca de cem vezes, por todo o ano de

1994, nos encontros de professores e discussões sobre educação no interior do

Estado, mostra bem esse olhar enviesado ao convívio com a escola. Fiapo é

uma personagem do teatro de bonecos, que representa uma criança da classe

popular que, no decorrer de toda a encenação, tenta se ajustar à escola, que ela
ão compreende.
178

o conflito, então, se estabelece. Em sua casa todos dizem, cada


um a seu modo: "- A Escola é o futuro, Fiapo"... E aí lê-se: a única
possibilidade de ascensão social, segundo diz o senso COlTImTI.
Fiapo vai
percebendo a falácia desse "rito de passagem" do mundo em que se aprende o
quão sacrificante é o trabalho e se domestica o trabalhador para o mundo do
trabalho, onde se é trabalhador explorado. Fiapo, com seus olhos de menina,
percebe que sua cultura toda, seu modo de ser por inteiro é um "não saber" e
uma "falta" (de educação). Mas também, sendo mulher e "sem jeitosa, feiosa",
"tinha de se arrumar com coisa de livro"- diz-lhe o pai. Fiapo socorre-se com
uma professora que conseguia percebê-Ia e a seus conflitos. Pedindo algo
abstrato e incomensurável como quem desesperadamente tenta um modo de
salvar-se mas desejando isso com a inocência de quem pede um lápis, Fiapo
articula tremulamente para a professora: "- Tia, me arranje outro futuro ... Este
tá tão dificil!" (LINHARES, 1994).

Difícil, atar-se bem nesse universo escolar em que a cultura de


seu meio e de seu grupo doméstico é uma "falta" enorme (de educação). Difícil
atar-se em meio a códigos de comportamento tão diversos do seu. O medo de
Fiapo se transformará nwn misto de soluço ou tique ("essa novata parece que
engoliu um apito", diz a professora), motivo de zombaria da parte dos meninos
e de irritação, da parte das professoras. O espectador vai vivendo a tudo como

.
se, desde o início, o ponto de vista da criança fosse seu olhar - o que confere o
estranhamento desejado. Façamos mn parêntese.

Na verdade, é só a partir do século XVII e durante o XVIII,


com a consolidação do capitalismo, que a "escola" passa a ser a instituição que
chama a si a tarefa da educação das suas crianças e jovens.

Antes VIa-se a cnança como um adulto em miniatura e o


convívio com o adulto é que ia fom c ndo insumos para as aprendizagens. A
escola ao in titucionaliz.ar a a ::: rd seu caráter imediato e passa
179

a organizar o saber sistematizado para socializá-Io. Esta socialização, como


vimos, adquire os contomos da estrutura de classes da sociedade maior. No
entanto, é um aprendizado em reclusão, que incorpora aspectos de dominação,
domesticação e de resistência, estas coisas mesmas se mesclando sem
maniqueísmos, amalgamadas, assumidos preto e branco em seus tons de cinza.
De um lado da moeda se se vê a criança como um "preparar-se sem presente"
(um "vir a ser" adulto), também se vê embutido nesta idéia seu reverso: a idéia
de um adulto que pára de crescer. É compreensível que se veja a fase adulta
corno época de maturidade, e que se veja a infância e adolescência como
formação para isso. Todavia, costuma-se cristalizar a visão do adulto como
alguém que está acabado.

Menos que a idéia de um evolver constante, no entanto,


gostaríamos de ressaltar a idéia de que nossas reflexões esquecem de ver a
cnança em sua condição humana. Benjamin anota esta exclusão, senão
vejamos:

"Descobrimos tardiamente que as crianças não são homens e


mulheres em escala reduzida ... Às vezes, parece que o nosso século foi ainda
além e, longe de ver nas crianças pequenos homens e mulheres, nem sequer
está inteiramente disposto a considerá-Ios pequenos seres humanos ... Pintores
como Klee apanharam o aspecto despótico e inumano das crianças. Elas
aparecem rígidas e alijadas do mundo". (OLIVEIRA, 1986:66).

Se a criança e o adolescente estão no seu "preparar-se para o


undo", a hipertrofia do ter, da dimensão instrumental de um homem que se
eduz ao "homo ceconornicus", desde aí se manifesta. O modo de se lidar com
brinquedo e a brincadeira, passa a ter esse vinco do ter, que faz com que o
divíduo manipule seu poder sobre coisas e, por causa deste, sobre pessoas. O
rinquedo industrial é protótipo de te modo de utilizar coisas e nunca de criá-
180

Ias. Roland Barthes mostra o Vll1CO desta forma de poder atrelada à


propriedade, nos termos:

" perante este uruverso de objetos fiéis e complicados, a


criança só pode assumir o papel de proprietário, ou daquele que usa e nunca o
do criador; ela não inventa o mundo, utiliza-o: os adultos preparam-lhe gestos
sem aventura, sem espanto e sem alegria ... nunca há um caminho a percorrer".
(ibidem, p. 69).

No teatro de fundo de quintal poder-se-ia dizer que se inventa o


mundo. Não no sentido de ser aí a pura utopia que vira caco de telha, flor,
folha, areia, muros, árvore. Os motivos da criação dos papéis e das vivências
dos grupos no fundo de quintal estão prenhes muito mais de conteúdos de
realidade que se "engancharam na goela", se assim se poderia dizer. O jogo
que se dá é muito mais uma tentativa de assimilação de conteúdos, de
laboração num atuar onde se garante o espaço do desejo, que de explicitação,
m atos, de algo já organizado, elaborado. Essa "água da experiência", material
dos jogos dramáticos, parece-me todavia que é considerada muito pelo seu
spaço como experiência e, após, joga-se-Ihe fora. Esse material entretanto, é o
próprio linho se fazendo o bordado do labirinto - ainda linha e já desenho,
eitura. É a matéria-prima da arte. Ou seja: o espaço em que não se lisa as
oisas e pessoas, apenas, mas se as transmuda. O que há é que aí, um outro

pecto (dimensão) do ser se expande e, desta expansão, não se pode analisar,
onsiderar como ganho do desenvolvimento apenas o que foi "pensado" nos
odelos lógicos da inteligência. Vejamos algo mais sobre essa ordem de
uestões.

O "pensamento simbólico é a única tomada de consciência


ssível da assimilação propriamente dita aos esquemas afetivos". Isso
.gnifica que na brincadeira imbólica - e os jogos dramáticos, como os de
do d quintal ão d a u mas afeti os êrn à tona através
181

de imagens do inconsciente que vão se debruçar no consciente. "Só quando a


assimilação prevalece grandemente sobre a acomodação atual é que o
simbolismo inconsciente emerge através de imagem, sendo a única forrna que
as associações afetivas encontram para tomar uma conscientização do eu"
(PIAGET, s/d, p 271). Piaget coloca o jogo simbólico como um tipo de
pensamento que tem a especificidade de ter o processo de assimilação
exacerbado, muito embora diga-lhe que obedece às leis do pensamento em
geral. Os símbolos, portanto, fazem as estruturas do pensamento chegar à
consciência e, também, por ser o inconsciente cristalizando-se em imagens, traz
sua carga afetiva. A idéia de assimilação como uma exploração e vivência de
conteúdos e ensaios de ação ainda não bem integrados pelo ego, parece ter em
Piaget uma ênfase excessiva em aspectos não lógicos. Em certa medida, fica
parecendo que Piaget vê esse "viver" (atuar) em jogo dramático como algo que
é essencialmente e quase que totalmente escape e não reorganização. Vejamos:

:z::
" Fenomenismo e egocentrismo, tais são os dois aspectos a::l
indissociados da consciência elementar, por oposição à objetividade
xperimental e à dedução racional ulteriores.

Assentado isso, o jogo infantil é simplesmente a expressão de


uma das fases dessa diferenciação progressiva: é o produto da assimilação
dissociando-se ,da acomodação antes de se reintegrar nas formas de equilíbrio
permanente que farão seu complemento, no nível do pensamento operatório ou
racional. É nesse sentido que o jogo constitui o pólo extremo da assimilação do
real ao eu, tanto como participante quanto como assimilação, daquela
imaginação criadora que permanecerá sendo o motor de todo pensamento
lterior e mesmo da razão" (ibidem, p. 207). E, mais além:

"O símbolo lúdico é ele também, imagem e conseqüentemente,


ambém imitação e, portanto a omoda ão. as a relação entre assimilação e a
a omodação apresenta- ar a man ira que na representação
182

propriamente adaptada ou cognitiva, uma vez que, precisamente, o jogo é LUTI

primado da assimilação e não mais um equilíbrio entre essas duas funções"


(ibidem, p. 210).

Vê-se aí que Piaget coloca o jogo simbólico como o momento


extremo da prevalência da assimilação (da exploração dos conteúdos de
realidade no nível simbólico) sobre a acomodação (que é um modo de
reorganização e readaptação do eu à realidade). O que é problemático, parece-
me, é que algumas leituras podem resvalar para se ver no jogo simbólico uma
espécie de imaturidade do pensamento racional, cuja função vai sendo aos
poucos substituída pelo tipo de pensamento operatório, fase em que há certo
equilíbrio entre acomodação e assimilação. É problemático porque o próprio
Piaget coloca o pensamento criador como motor do pensamento lógico e
racional. Gardner (GARDNER, 1994:250) vai propor outros tipos de
inteligências a considerar, que supõe não ter os mesmos caminhos de
desenvolvimento que os da inteligência lógico matemática. Ao considerar os
achados da biologia com os da antropologia, Gardner afirma que, além de
considerações culturais dever-se-ia contar com o fato de que "até mesmo
quando são tratados das maneiras mais adequadas e equivalentes, os indivíduos
dentro de uma cultura, ainda diferirão significativamente entre si - em forças
intelectuais, na capacidade de aprender, no uso final das suas faculdades, em
originalidade e criatividade". (ibidem, p. 250).

E mais: "A nosso ver, grande parte do que é característico em


relação à cognição humana e ao processamento de informações envolve o
desdobramento destes vários sistemas de símbolos (musicais, corporais,
espaciais e pessoais). É pelo menos uma questão aberta, uma questão empírica,
se o funcionamento de um sistema de símbolos, como a linguagem, envolve as
mesmas competências e processos que sistemas cognatos como a música, o
gesto, a matemática ou o d o. E tá igualmente aberto se informações
183

encontradas em um meio (digamos, filmes), são as "mesmas" informações


quando transmitidas por outro meio (digamos, livros)" (ibidem, p. 20).

Estes domínios, hoje considerados "singulares" (por serem


áreas de habilidade de um grupo), em uma dada cultura, historicamente se
transformam em domínios "universais". Feldman, Olson, Gavriel Salomon,
Gardner tentam reconciliar uma abordagem pluralística da cognição ao
esquema de desenvolvimento unilinear (voltado ao domínio lógico-matemático)
piagetiano, propondo a teoria das inteligências múltiplas.

Para os objetivos destas reflexões que ora faço, queria apenas


assentar a idéia de que o pensamento criador, nos estudos piagetianos, refere-se
essencialmente ao domínio da inteligência lógico-matemática. A sua obra genial
ateve-se a esses "universais" - estratos básicos do desenvolvimento, presentes
em indivíduos do mundo inteiro. Foi sua proposta: fonte hoje das pesquisas das
mais proficuas em educação, psicologia e desenvolvimento. Todavia, por isto
mesmo - pelo recorte do seu objeto de investigação - o pensamento criador em
outros domínios simbólicos como o gestual, o musical, o espacial, etc. estão em
aberto. Seria importante considerarmos não só o pensamento lógico-
matemático na Escola, já que o sujeito epistêmico não pode apartar-se do
sujeito que deseja. Além do mais, a dimensão desejante está sendo igualmente
colonizada por todo um processo
I
que se vai chamar de produção da
subjetividade capitalística.

Não é casualidade que o lugar onde se colocou o jogo dramático


foi fora da Escola. O jogo simbólico, se é predominantemente assimilação,
exploração de conteúdos não elaborados (ou em elaboração) pelo eu, é também
uma dimensão - um domínio de inteligência - que não é o lógico-matemático, a
dimensão hipertrofiada na escola. Dimensão hipertrofiada por conectar-se ao
modo de legitimação do apitali o. Un pensam", outros "fazem" - uns
"dirigem' ,outro aprend m a - r ., - desde a E cola. Sobretudo
184

na Escola. Já vimos também como a ciência alijou outras dimensões - como a


ética, etc. - também por conveniência: um certo modo de compreender e operar
com a ciência colabora com a conformação social que se tem hoje. A infância -
terreno ainda aberto às possibilidades - vai "jogando fora" tudo o que não é o
"ler e escrever" stricto sensu (em que pese a reconhecida importância e
primazia, até, que achamos válido ressaltar, desse tipo de trabalho com a
inteligência na Escola). Na verdade, desse tipo de trabalho com um celio tipo
de inteligência. O modo de se tratar a infância, na Escola, precisa ser revisto -
como também o modo de se considerar um homem que é apenas o "horno
eeconomicus", atrofiado pela unilateralidade do desenvolvimento que o reino da
necessidade obriga às classes trabalhadoras.

E no mundo adulto - haveria a irrupção do desejo, o


xtravasamento de que muros?

No mundo adulto dir-se-ia que o fundo de quintal não acontece


desse modo em suas vidas. A modelização das subjetividades assume um
aráter consumista, fetichizador, como já analisei, aguçado pela forma como a
ultura de massas se instala neste estágio do capitalismo. Os processos de
singularização, de indivíduos e de grupos, é que vão realizar esta espécie de re-
erritorialização do desejo, re-investindo sua afetividade e potência no seu vir-
-ser singular . .
Nos grupos de minorias, por exemplo, de negros, mulheres, etc.
nos caminhos de singularização que se permitem aos artistas (caminhos
manipulados, claro, pela indústria cultural) realiza-se essa espécie de contra-
investimento nos processos maquínicos capitalísticos e atua-se criando e
preservando frestas de contestação e autonomia que qualificam seu devir
singular. Os processos de singularização são como que revoluções moleculares
que frustram a capacidade manipulatória e a interiorização dos valores
apitalísticos, proporcionan o a ·etores novos de construção da
185

subjetividade. Esses grupos ou esses processos de singularização em indivíduos


encarnam a possibilidade dos microprocessos revolucionários por reagirem à
homogeneização maciça da cultura. E tanto por eles passam projetos que dizem
respeito às condições da vida coletiva como processos da sua relação com a
própria vida e o Outro, com a sua capacidade perceptiva ou a sua sensibilidade.
Há umas espécies de vasos comunicantes que faz com que o que é psíquico e
privado seja inscrito no continente do que a razão concebe como um devir
coletivo.

O problema é que o mundo sistêmico - esse continente, de que


falei - engloba também o mundo da vida. E se parece estar propondo como
possível, no caso das revoluções moleculares de Guattari, uma separação entre
o mundo dos fenômenos, no qual se exerce a técnica, e o mundo do ser, espaço
onde a dimensão estética pulsa e acorda. Usemos uma imagem sobre isso.

Em mTI trabalho feito sobre a Romaria da Terra, no Maranhão,


podemos observar como as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) atuavam
bem com pequenos grupos e, ainda, como respeitavam especificidades
advindas sobretudo do modo de subsistência do trabalhador. Assim é que, eles
faziam grupos com as quebradeiras do coco babaçu, as mulheres
marginalizadas (prostituídas), os pescadores, etc. Os grupos pequenos

.
abrigavam o desejo de pertencimento e de identidade, eram menos propensos a
manipulações de líderes que tomavam o espaço de fala e de singularização de
cada um. Todavia, por ocasião da Romaria, momento em que todos os grupos
se encontravam, as questões agrárias, sindicais e o enfrentamento dos
problemas com os grandes projetos (Carajás, Vale do Rio Doce, etc.) não eram
tratados minimamente. À parte análises sobre o oportunismo de determinadas
facções políticas ou religiosas ou o receio de perda da hegemonia, viu-se que
havia dificuldades, da parte dos setores mais progressistas da Igreja, de aceitar
o Partido em sua função de edu ador oleti o. Apenas quero usar essa imagem
para que ejam as difi I alho nos pequ nos grupos (como
186

os das CEBs) tem para transpor esse estágio de politização que atinge a esfera
do mundo da vida e tenta perfurar a esfera sistêmica. Para que, então, esses
processos de singularização não acabem funcionando com o espírito de
grupelho, com o fanatismo ou o separatismo dos guetos, e também não sejam
racionalizações de um psiquismo que se atrofia, é necessário, talvez, que se
atente para o seu potencial revolucionário. Acordar esta potência revolucionária
é certamente deixar que estes processos de grupo sujeito deságüem numa
práxis social efetiva nos movimentos sociais e que, por sua vez, esta prática se
alimente da esfera do mundo da vida. Caso não haja canais de expressão dessa
ordem de contribuições expressa pelos processos de singularização, por
exemplo, dos grupos de minorias (que, no geral, são maiorias), eles redundam
numa sementeira de formas moleculares destrutivas que Guattari chama de
microfascismo.

Não se nega, por exemplo, a legitimidade do desejo de justiça e


a violência que é a fome, que faz com que os "flagelados" do sertão cearense,
meses a fio, em hordas que avançam por supermercados inteiros das cidades do
interior, "avancem" na propriedade que é "comida" e saciem a fome. Se se
armam com paus, machados e foices e, no seu desespero, investem contra o
que for, é que parecem dizer com corpo e ato: se vida é isso, que venha a
morte. Ou: na insânia da fome e da injustiça, que morte não seria legitima, se a

.
forma que se pôde ou soube para negar a insânia?

Não estamos querendo com ISSO fazer a apologia de


etenninadas forma de ação revolucionária - nem também um libreto de
ondenações contra seu potencial fascista. Queremos dizer, sim, que estas duas
alavras que estão juntas - revolucionário (potencial) e destrutivo (ato),
portam-nos a uma análise do fenômeno em sua complexidade.

Sigamos a análi e! de Rolnik., do quebra-quebra que os


avelados do Rio realizavam 9 ~ r o fato assim se pronuncia ela:
187

" O efeito disruptor estava também na quebra de uma certa


concepção de luta política que a reduz ao confronto polarizado e entre
interlocutores reconhecidos e autorizados por uma máquina estatal. O efeito
disruptor estava, acima de tudo, no "desmame" - desgarrar-se do Estado como
provedor universal, interlocutor privilegiado, tradutor juramentado de todos os
desejos. O efeito disruptor estava, exatamente, na quebra dessa posição
dependente e reivindicadora.

No roldão do quebra-quebra, o que se rompia, o que se


desmanchava era, fundamentalmente, o modo de produção da subjetividade que
caracteriza as sociedades industriais contemporâneas. Mas se há nesse
fenômeno, sem dúvida alguma, uma corajosa afirmação da vida, ele é também
portador de um grande perigo: o desmanchar-se, ao invés de condição de
criação de novos agenciamentos sociais - sinais de um processo de
singularização que se prepara - pode vir a ser finalidade em si mesma. Não terá
sido a primeira vez que nos dizemos: "se é para viver assim, tão precariamente,
melhor sermos autores de nossa própria morte". Ou mesmo, sem dizê-lo, não
sido a primeira vez que sucumbimos ao fascínio da destruição levada às últimas
conseqüências, em face da violência cometida contra a vida no Inundo em que
vivemos. Esse perigo é o que Guattari chama de "micro-fascismo"
(GUATTARRI e ROLNIK, 1986:63).

Poderíamos ler a práxis dos grupos negros da Bahia,


atualmente, o "Olodum", por exemplo, o "Escambo" (de Natal, Rio Grande do
Norte), o "Laborarte", do Maranhão, como tentativas de singularização, de
reapropriação de caminhos da subjetividade que não estejam totalmente
"tomados" pela subjetividade assentada na industrialização mundial com base
capitalística (ou socialista burocrática).

O modo como pos negros se reapropriam dos rítmos e


dos comportamento eul \.:·I(lLSSI~, ra a, de ua matriz baiana e, até,
188

africana é uma tentativa de resistência à padronização no campo da alie e da


vida. Na prática, eles cavam uma brecha no sistema de produção da
subjetividade (e no mercado) dominante. Em parte anunciam uma lógica
subjetiva diversa, em parte atuam canalizando sua atuação e seus processos
singulares, seu potencial de resistência, para uma ação no conjunto do sistema.
O avesso disso seria cair no "gulag" ou implodir? - pergunta-se Guattari e
indica a urgência de atuação nos espaços onde o capitalismo reina, contra-
investindo a subjetividade dominante a partir da anunciação de processos
singulares.

Com Benjamin, vê-se a urgência de se trabalhar a infância como


categoria epistemológica. Voltemos a ela. A experiência de arte-educação que
se dá nos corais infantis do "Um Canto em Cada Canto", poder-se-ia dizer que,
como não tem os compromissos da escolaridade formal, vive processos que a
põe em contato de um modo mais vivo com a infância. Vivo no sentido que
vinhamos tentando articular: no sentido de auscultar (ou permitir respirar um
pouco) esse pulsar que se quer alegria. Pode-se dizer, de cara, que a música
traz alegrias por ser música. Também. Mas há como que categorias (essa
palavra nunca se usou lá, eu me sinto até traindo por pronunciá-Ia, por medo de
não ser fiel, não por medo de teorizar sobre o vivido) que são mestras nossas
de cada dia: a Alegria, o Riso, o Brincar e a Brincadeira, o Brinquedo, o
Trabalho com outras formas expressivas: o teatro, as artes plásticas, a literatura

e a dança, o grupo como espaço de fala, o grupo em seu momento de amor, o
anto sentido e falado com o corpo e o canto mesmo ele só, a experiência e seu
ontar, a estória e o conto, a liberdade e o limite, a auto gestão do grupo, a
ducação política e a ética.

Dessas eu pinçaria as primeiras: a Alegria, o Riso, o Brincar, o


rinquedo e a Brincadeira. Elas dão ao grupo um alimento permanente de
pontaneidade, riqueza e..pr a, crítica e vitalidade. Por esses canais a
en e e eu a um tanto a aI ar ( cantar) na gente. Por estas alas
189

vai-se ver o que a classe popular se envergonha de ser, dizer e sentir e que é
sua mina de poesia. Até a nossa tristeza, secura, falta.... é digna de ser
assumida. É a partir de se assumir o que nos constrói na nossa singularidade
que nós vamos aprendendo a ousar o que não se é ainda. E vamos incluindo
esse singular no mundo, no movimento do rnundo, nos movimentos sociais de
emancipação. Rejeitar a unitotalidade do capitalismo na conformação que ele
tem hoje, no Terceiro Mundo, não é render-se à segmentarização dos grupos e
colocar-se impotente diante das mudanças que hão de ser feitas de um modo
coletivo, em escala mundial.

É, antes, reconhecer as instâncias várias em que essa luta


acontece e se perceber lutando como um sujeito mais inteiro nelas.

Os processos de singularização não constróem circuitos


paralelos de energia mas ao contrário, desobstruem e, assim, re-energizam os
canais do sistema como WTI todo. Esse trabalhinho de formiga, se assim se
poderia dizer, converge e está dentro do todo e não fora dele, insulando-se.

Vejamos o que diz "Guattari":

"Para que se efetivem os processos de reapropriação da


ubjetividade - tais como os de um grupo de psiquiatrizados; de um grupo de
I

essoas que querem organizar sua vida de um outro modo; de uma minoria
ocial que quer se desfazer dos sistemas de coação que tendem a modelizá-las;
um grupo de mulheres que, mesmo em pequena escala, querem se libertar do
istema opressivo de que são objeto há milênios; de um grupo de criadores que
uerem se livrar dos sistemas padronizados em seu campo, ou até de crianças
que se recusam a aceitar o sistema de educação e de vida que lhes é proposto -
ara que esses processos se efeti em eles devem criar suas próprias
rtografias, de em in entar s a ráxi d modo a fazer brechas no sistema de
ubj ti idade dominem e" G 1986:50), E ainda mais além: A
190

maneira de evitar expressões mortíferas do desejo.... "consiste, SIm, em


instaurar dispositivos que articulem os modos de expressão dissidentes aos
modos de expressão dominantes, dando-lhes um certo poder nas reais relações
de força. Ao invés de urna espécie de rolo compressor fascista, teríamos assim
a criação de modos de conexão e de articulação rizomáticas. Teríamos também
o aprofundamento de processos em sua singularização, sem que, por isso, eles
se tornassem impotentes nas relações de força reais". (ibidem, p.66).

o "grupo H20", que é uma espécie de movimento de direção das

gangues suburbanas de Fortaleza, lida com esse impasse: como diluir o


potencial destrutivo das gangues, seu culto habitual à violência (ainda que
como reação à violência instituída, que nega à sua miséria os direitos mínimos à
vida)? Como transformar esse potencial constestador em algo que não seja o
alvo das balas do sistema repressivo dominante?

Sonhos: que a carne dos dias tenha por dentro a água dos
sonhos. O sonho, porém, é de uma matéria que, para não ser sombra, precisa se
plantar na vegetação da vida, dos corpos, da existência concreta mesmo. O
sonho seria como uma planta que parasita a vida: se alimenta dela e salta nela
para viver. Mas a vida também precisa dessa alma estranha dos dias. Um e
outro - sonho e vida - têm esse consórcio etemo mas, cada um habita um
mundo e funciona de um modo bem diverso um do outro. Por isso fica o
I

problema: que ação revolucionária pode dar à essa pulsão de Eras, à potência
revolucionária das gangues do subúrbio (as também chamadas "turmas de trás"
das Escolas Públicas da periferia) de Fortaleza, o espaço para a construção de
devires singulares? Como construir esses veios na Escola - onde o desejo
escorre? Onde então se lhe estanca o que deveria verter?!

O projeto Aché, que atua com os chamados "meninos e meninas


de rua" de Salvador (eu diria "meninos e meninas das classes exploradas")
parece apontar para experiê e eio na arte popular, geralmente
191

de origens expressivas ligadas à cultura negra. A capoeira, o maculelê, a dança


afro sob variados matizes são espaços de atuação que geram encontros de
expansões que favorecem o alimento dos grupos em processos de
singularização. A arte, todavia, não é um que fazer capaz de gerar facilmente
condições de sobrevivência a curtíssimo prazo (afinal, come-se todo dia, não é
mesmo?), e esse é um ponto de estrangulamento que paralisa como dor. E os
meninos e meninas têm pressa com isso, muita pressa. Isso de arranjar um jeito
de sobreviver. Na verdade, eles dizem que "se arranjam nos improvisos da
vida", como eles dizem. (Uma menina referia-se à prostituição em que vivia
como um "improviso da vida"). As representações que fazem de futuro são
algo mágico: um casamento, um marido bom, bonito e rico, filhos e... O modo
como elas pensam "vir até a si" (é essa a impressão) esse futuro é que é
mágico. Aparece de repente - como nos contos tradicionais. Diz-se dos contos
fantásticos, do maravilhoso das estórias de fada, que foram criados ao tempo
do feudalismo, em tal sistema de servidão, que as soluções dos impasses e das
lutas só podiam ser concebidas como algo miraculoso. O sistema casta-plebe
era de tal modo rígido, estratificado, o controle da subjetividade dos servos tão
completo que uma mudança só poderia ser pensada como algo miraculoso,
inusitado. Assim também são os projetos de futuro desses meninos e meninas:
um mosaico de super-heróis ou super-ídolos televisivos, junto ao modelo de
felicidade pessoal da novela das 8:00 na Globo. O sentir-se sujeito da própria
história pessoal e coletiva ... O estabelecer (e viver) pequenos projetos, em

grupo, que funcionassem como pontos de luz para se traçar referências novas
capazes de balizar projetos de futuro não mágicos - esse o desafio. Enquanto se
tenta o rompimento (o contra-investimento, no sentido freudiano) com esta
subjetividade capitalística, produz-se os processos de singularização. Pode-se
produzí-Ios? Pode-se proporcionar uma leitura da sua história pessoal,
situando-se as condicionantes sócio-políticas ( e as familiares, afetivas) que
falaram por mim", "me fazendo quem sou". "Onde está o meu desejo, minha
fala nisso que foi construído por mim também (sobre mim)?" Essa vivência é
muito pouco -erbal - m - - -o básicos para uma construção de
192

cotidiano com cnanças e adolescentes das classes populares com


"comportamentos de transgressão". O difícil, como eu ia dizendo, é se calçar
um cotidiano grupal num tecido expressivo (a arte popular, como venho
falando, tem aspectos importantes para dar esse suporte) e que, também,
inclua-se num construto que eu digo ser Educação Política, onde se discuta o
mundo do trabalho. Durante esse percurso, contudo, vive-se (e estuda-se)
experiências de trabalho (gradativamente mais consistentes). Essa discussão,
sobre trabalho portanto, inclui uma relação de determinado tipo da teoria com a
prática e questiona o trabalho no mundo como sacrifício e não prazer.

A prática de trabalho, contudo, apesar de ter um produto final


(concreto) deve vincular-se aos conteúdos teórico - método lógicos que lhe dão
substrato. O aspecto educativo, portanto, deve ser proeminente, em que pese a
urgência da sobrevivência tão gritada nos trabalhos com as classes populares.
O trabalho da arte tem seu contributo de prazer e (também) discute o não
prazer. Claro que a Escola Pública não tem pensado ao modo da pedagogia
socialista, no que diz respeito à relação trabalho e educação e, especificamente,
no que se refere à relação teoria e prática na escola. As situações - limite (que
são as dos "meninos e meninas de rua"), no entanto, exigem que se considere
esta questão. As experiências, no Nordeste, com os estratos negros da
população e, no Ceará, a experiência com o Circo, da Barraca da Amizade, dão
conta dessa ordem de problemas: uma construção de subjetividade não

maquínica, num projeto de educação político-estética, montado numa escuta (e
leitura) dos símbolos e gestos da cultura de classe (e local). Estes devires
singulares trabalhados como construção grupal e, ainda, plantado mun
cotidiano que tenta (a difícil, quase impossível) relação educação-trabalho. Na
erdade, um trabalho que se quis prazeroso, significativo com a arte. É possível
evitar uma implosão desses grupos, causada pela dificuldade de se manterem
sobreviverem) fazendo um tipo de trabalho que tenha seu contributo de prazer
e significação para suas projetos govemamentais reafirmam a
subje i idade capitalí ti a r 1 arizar as gangu s e os 'meninos
193

e meninas" de rua, prostituídas e em situações semelhantes. (Guattari falaria em


termos de "japonizar a classe operária" - integrá-ia cada vez mais no processo
de produção de subjetividade serializada e alienada. Como fizeram os
japoneses, e como estão exportando (esta modelização) -- diz Guattari).

A Escola Pública tem se surpreendido com o fato de ser


subitamente assaltada por uma população crescente de gangues de subúrbio.
Oscilando entre duas ordens de representações (na fala dos professores com os
quais convivi nas três escolas observadas), vê-se:

- "Eles não querem nada. E atrapalham os outros".

- "Deviam fazer uma Febemce só para eles. A gente tem de


escolher: ou cuida da escola ou vai lidar com eles. As duas coisas não dão
certo. E eu acho mesmo que o lugar deles não é aqui. É na Febemce ou coisa
desse tipo. Uma ... escola especial. Nós não temos estrutura de nenhum jeito
para dar conta disso. E cada dia aumenta o problema".

- "Eles vêm com essa de gangue e querem ficar baldiando por


aqui, na classe. Mais cedo ou mais tarde são expulsos e ficam por aí "bolando".
Como bolando? Em outras escolas até que ... vai ficando por isso e aí... O resto
odo o mundo sabe". (Cadê os sonhos, os versos da juventude - ou de amor à
I

juventude - que sangravam inestancados em páginas de história? Por que o


desejo dos meninos e meninas - esse que faz transbordar a taça da
racionalidade - embriaga-se de paixão e, dessa forma, atira a taça no rosto dos
onvivas?).

Quando a arte que poderia estar na escola foi se refugiar no


fundo do quintal, o que se pode inferir do desejo das crianças? Por que ele foi
instalar-se e fazer sua cabana em outro lugar? Recomeçaríamos tudo por outro
ugar: um drama popular.
194

Poderíamos contar uma estória de desejo. E de como, no


imaginário do povo, ele subverte a tradição, a autoridade, o costume, a
propriedade. É a estória que alguns dizem ser a mais antiga do bumba-meu-boi
e que se deu no sertão do Ceará, quando por aqui havia escravidão. Pai
Francisco era o chefe dos escravos de uma fazenda, e Catirina, a mulata,
cozinheira da fazenda: os dois se namoravam e, tempos depois, ela engravidou.
O desejo de Catirina, então, passou a ser comer um pedaço do fígado de boi -
mas só servia se fosse o do boi Barroso, o boi mais estimado do coronel da
fazenda. O desejo de Catirina de comer do figado do tal boi foi se avolumando
como sua barriga - e ela se dizia prestes a perder o culumim. Pai Francisco não
resiste e, um dia, mata o boi. Daí para a frente, duas versões vão resolver o
conflito de modo extremamente curioso:

- Na primeira versão, não ocorre delação alguma - diz-se que o


boi morreu e todos choram essa perda. Dividem as partes do boi, Catirina sacia
seu desejo e, ao fim, após tentativas de variadas formas, o boi ressuscita. Todos
dançam nessa festa.

- Na outra versão, vê-se o desejo exemplarmente castigado. O


coronel da fazenda persegue e acha Pai Francisco, por fim prendendo-o. Os
escravos fazem festa e o coronel gosta muito de ver o inssurreito Pai Francisco

.
zangado, dizendo que, se se soltasse daria uma surra na Catirina. E a cada
junho a tal festa se repete do mesmo modo: o Pai Francisco amarrado, sendo
alvo da chacota (e perversidade) dos outros escravos, para regozijo do coronel,
que a tudo assiste deliciado. Nesta segunda versão, há o seguinte detalhe: Pai
Francisco confessa, logo que foi capturado pelos escravos, que tudo fizera para
satisfazer o desejo de Catirina e por medo de que ela perdesse a criança que
esperava.

o conflito básico é comum: há um coronel, dono de escravos e


bi ho. d toda a terra do ·0 d uma mulher quer contrapôr-se
195

ao modo de ser das coisas do lugar. Ela quer comer a carne do boi de
estimação do coronel. O boi é propriedade e a propriedade uma lei do lugar. Há
duas situações que ainda são dados importantes sobre a história:

- Catirina tem um homem e seu filho é fruto desse amor;

- O desejo de Catirina é um "desejo de grávida" - dentro da


cultura nordestina, esse é um imperativo biológico.

Estas duas situações, se caracterizassem outro tipo de desejo de


uma mulher de outra classe social, seriam suficientes para "santifícá-Io". Como
é uma mulher do povo que é a actante do desejo, ele é considerado algo
"espúrio". Ou no mínimo, estes detalhes não funcionam como atenuantes
quando o desejo perfurar o cimento da racionalidade (digo, da propriedade,
cimento dela) do lugar.

A pnmeira versão do Boi resolve o desejo aceitando-o e


cumpliciando com suas conseqüências. Há a farsa toda: a procura de ressuscitá-
10 e a festa pela sua ressurreição.

Na segunda versão, ocorre a costumeira "conversão" à

racionalidade dominante: a delação pelos iguais, a transgressão punida, sem


atenuantes e à vista dos iguais (os outros escravos) como modo de "instruí-Ios"
e atemorizá-Ios. Não se sabe o que Catirina faz após tudo isso e, ainda o que se
infere é que ela havia debochado com o preto Francisco e, depois de feito o
estrupício, se omitido. Na sequência, todos os comportamentos que, em
nenhum momento, questionam a racionalidade, a propriedade, a socialidade do
lugar. O desejo da mulher, de comer o boi, parece funcionar, na trama, como
n modo de desencadear a exemplaridade do castigo pela transgressão que
ou e em realizá-Io.
196

Já na primeira versão, há um compactuar, de todos, com o


desejo da grávida de comer o boi.

Poderíamos dizer que a racionalidade que sustenta a


propriedade (dos latifúndios no Nordeste) foi afrontada por algo que é da
ordem da sensibilidade. Por wna dimensão que se insurge: a desejante. Não há
um confronto argumentativo da ordem do verbal e do intelectual mas da ordem
da paixão. Da ordem do desejo.

A encenação pode matizar o processo argumentativo que se


explicita como da ordem da dimensão desejante, conferindo à personagem
Catirina uma ironia permanente, que ora explode em xiste, ora em deboche, ora
em puro humor e alegria. É a Catirina às vezes interpretada por homem vestido
de mulher, pintado de preto, como nos maracatus de Fortaleza - o que dá à
personagem, ainda mais, esse acento de irreverência, e humor.

É, portanto, no campo de outra dimensão, a desejante (esfera da


estética, da ética, da moral) o lugar do enfrentamento por onde vai sair o
questionamento ou, no mínimo, a "rachadura" no cimento da racionalidade
dominante.

Só a modernidade, após fazer a crítica da religião, do Ego e da



ociedade (respectivamente por Nietzache, Freud e Marx, de modo mais
agaz) , vai criticar também as bases da racionalidade que a sustenta. O temor
e cair no mítico, que Adorno critica, redunda no próprio mito da ciência que,
ificada, passa a funcionar como antes a religião funcionava.

A religião, hoje, sobretudo no Terceiro Mundo, passa a


erguntar de todos os modos pelo sentido. Certamente que, como no conto
pular que acabamos de comentar, do Burnba-rneu-boi cearense, essa
rgun a 'ai ser feita co fi d argumentação. As dimensões
197

sacrificadas, compartimentalizadas, que são caladas pela racionalidade


instrumental, manipuladora vão insurgir-se como o desejo de Catirina, Na
verdade, estão a insurgir-se. Dimensões esquecidas (e eu incluo a espiritual
como uma dimensão fundamental do ser) passam a exigir serem escutadas. Para
escutá-Ias não se pode, contudo, abrir mão de categorias fundamentais, que
foram conquistadas (apesar de tudo) na modemidade: a de sujeito, a
historicidade, a própria idéia de razão sob outra perspectiva. A idéia de
racionalidade não pode ser identificada com modernização, progresso, ao invés
de ocupar-se primeiramente do sujeito e do sentido. E esse esforço de pensar o
microcosmo e o macrocosmo, o psiquismo e a vida social de relação, enfim,
esta tentativa de se pensar sujeito e ator social é uma conquista. Pode-se não se
ter respondido à equação do sujeito que se quer resistindo à reificação, à
mercadoria, à técnica e às linguagens difundidas em massa. A pergunta que ele
faz, todavia, exige que se lhe dê o papel de ator principal que põe tudo em
movimento, sob o signo da esperança. Não colocando mais o sujeito fora do
mundo, coloca-o (a modemidade) na história. Agora, começa-se a ver este
sujeito inteiro (não se deixa trancadas as dimensões que o fazem humano).
Ainda: este retorno ao sujeito ao mesmo tempo que é reconhecimento do Outro
e um Outro que é o coletivo), é reconhecimento de si mesmo (esse clamor que
o oriente aponta).

O desencantamento
I
do mundo, tema que se canta sobre a
odernidade, pede uma nova relação com o mundo. Não pede que se negue o
undo. Assim também, a racionalidade é uma aquisição - pede-se que se veja
sujeito dela e, nele, um ser inteiro. E não se jogue a água suja do banho com
criança dentro.
198

Ritual V: A Rua

o Tempo

o tempo na rua é a história. Fala-se nas ruas: "no meu tempo


tinha pastoril. Partido encamado e partido azul, as pastoras, a Diana, a Mestra
e a Contra-Mestra e a dança das pastoras. Era uma paixão, esse tempo". A
linguagem da história é múltipla. Alma das etnias. Esta polissemia é uma
história sem fim que escorre pelas ruas e, nas ruas, nos devolve nossa
humanidade. Por isso, às vezes, diz-se que o tempo nas ruas se conta por
gerações: "- Na minha geração, a gente fazia movimento político e isso era
junto de se cantar em festivais, de se fazer um bloco ou uma serenata, de se
sentar nas calçadas para se compor e tocar ...".

A outra, ajunta: "Tudo bem, hoje tem o forró. Pode até ser.
Mas parece mais um desses enlatados como a lambada ... Porque era uma coisa
de rua mas quando vem para nós vem com o rótulo como ... qualquer outro
produto novo". E outra professora: "O lugar da arte é nas ruas. Nas coxias,
para se ser sincera. Beirada de rua, de estrada, de casa (margem). Tinha uma
convivência, a infância, a juventude. Aconteciam coisas, dramas, estórias,
paixões. Era como uma quadrilha: o amor, os pares, os amigos, o "drama" se

.
misturando às realidades ... e tinha a revolta. Tinha ..."

E os memnos: "- Tem o 'funk'. O 'break'. A dança baiana.


Percussão e gingado, balanço, agito. Isso tudo acontece na rua. Na escola é
'fuleragem'. Na rua é outra estória ... Onde as gangues se encontram .... Gangue
ão é pauleira não. Nem sempre. Às vezes é só um jeito de dividir para
ominar melhor o pedaço ali. Ter o nosso dominiozinho naquele campo ... A
_ente faz que é feroz para melhor passar mas é a vida aí que tá feroz. A gente
mesmo só faz o arremedo. E nem incha' ...
199

E, outro, conclui:

"O tempo que a gente vive na rua é juventude. É lá que tá a


arte. O corpo, a música afro, nossa ... a pancada. A pancadaria. Os gritos, os
"pega", a paixão virando ódio e desvirando. A tia fala aqui na Escola em
adolescência e eu olho desconfiado. O que a Escola sabe disso da gente? Era
comigo, aquilo? Na rua, a "galera" fala juventude e eu sei o que é. É um
contra ... Contra muito ... Muito de tudo. A Escola não tem quem possa ... Até as
palavras que eles escolhem é... o que eles querem que seja aquilo, as coisas,
entende? E não é".

O tempo na rua parece costurar as contas de muitas estórias. E


ainda tem a rua, um fio que as W1e.Às contas desse rosário. Conta-se ou canta-
se, esse rosário?

o espaço - nas Ruas

O espaço nas ruas é quase o mundo. Tinha um tempo de


convivência, que às vezes se fazia coxia. No espaço das coxias (os fios de
pedra das calçadas) vê-se as coisas de viés. Como quem está de fora da casa
(e, de fato, na coxia se está fora das casas). Daí se estranha o que acontece sob

.
as luzes e sombras que se sabe de fora como são .

"Quando se está em casa se é um. Quando se está na rua, a


turma leva a gente a olhar o que é nosso feijão com arroz de todo dia, com
outros olhos. Dá revolta. De dentro de casa, a gente parece feito daquela
parede ali, que se planta e assiste tudo. Do lado de fora, na rua, o feitio é
outra espécie. É de pedra de quina. De atirar".

E outro m nino: .. a rua a gente se vê que é mais um. Ou


no um. Tan o faz. as a nte e vê como um qualquer.
200

Por isso que dá revolta. Porque a gente vê os outros e a gente ... Na mesma.
Essa coisa de ser povo, será que é isso"?

o espaço nas rua ainda era íntimo. Tinha os palhaços das mas,
as doidas, os amores conhecidos e os secretos (aqueles a que não se concedia
legitimidade mas que todos sabiam).

A ma é a eterna província de "Amacord", de Fellini. Também o


lugar onde se aprende o fascismo e a mediocridade, a religiosidade tacanha e a
insurreição grosseira e incendiária. O outro lado da província idílica dos
"recuerdos". Onde se tecia (e vivia) histórias. E as pessoas teciam também suas
redes de intrigas e afetos, numa intimidade exposta e crua.

Uma menina disse, timidamente: "No monnaço da calçada, tia ...


A mãe diz: "Não vai para o mormaço, que faz mal. Tu gripa. Coisa de mãe. A
gente vai. Fica cochichando, rindo, ali na calçada quente. Lá eu até ... Nem
devia dizer... Até ... faço poesia. É poesia? Eu acho que é".

Cena V: O Canto e a Dança na Rua

Não se sabe ao certo quantos são, mas são muitos. Uma espécie
de bando de garotos (já rapazes), com peitos nus cantam e dançam capoeira. É
capoeira? Maculelê? "Funk"? "Break"? Têm acompanhamento: violões
(acústicos) e percussões. Também se escuta um berimbau e uma flauta de
madeira. Passa-se na ma, essa cena. De início parece algo em surdina que vai
crescendo. Depois, eles ganham o calçamento e encorpam canto e voz, e vêm
risos fortes, como se fizessem um levante popular. Uns são meninos ainda,
outros já homens feitos. Em certo momento, no rítmo com que o berimbau
marcava a capoeira, todos cantam os versos de Caetano Veloso, "Cajuína":
201

"Existirmos: a que será que se destina?


Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que
Se acaso a sina
Do menino infeliz
Não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos - intactas retinas
A cajuína cristalina em Teresina".
(Letra de Caetano Veloso )

o monnaço é o espaço da convivência ainda possível, nas ruas.


Envolve um estar com o Outro em grupo, longa e pausadamente, como se se
mastigasse poesia. Uma ruminação meio proibida, para as meninas - pode fazer
mal, o mormaço - e que, furtivamente, dá poesia (será? - ela pergunta,
encantada, a menina). Esta ruminação alia os iguais e, aí, se «estranha" a casa,
o muro das coisas plantadas, consentidas, conformadas, comportadas. Saltando
esse muro dá-se no embrião dos ritmos: capoeira, maculelê, "funk" ... Ainda nus
ou travestidos de indústria cultural, com aquela sonoridade pasteurizada das
mercadorias.

O tempo comportava convivência e, nela, intimidade. Estórias


cruzando-se, contando-se, cantando-se como as públicas serenatas de amor (e
dor).

Ainda não há aí a errância nas passagens das galerias, imagem


(a do passante, do flâneur, nas galerias mármore e vidro das capitais modernas)
que serviu a Benjamin para um estudo da modemidade. Aquela escritura
modemosa não engana a Baud laire o homem que, em sua poesia, segundo
Benjamin. mo tra a upre sã do indivíduo na multidão da cidade
202

grande. É na multidão que se espraia o amor que foge ao poeta Baudelaire, em


seu soneto "A Uma Passante". Indo mais longe, Baudelaire fala do conteúdo
social dessa condição de vida na modernidade.

"O que são os perigos da floresta e da pradaria comparados


com os choques e conflitos diários do mundo civilizado? Enlace sua vítima no
bulevar ou traspasse sua presa em florestas desconhecidas, não continua sendo
o homem, aqui e lá, o mais perfeito de todos os predadores"? (BENJAMIN,
1991:37).

O flâneur - passante nas multidões, o homem das multidões - faz


seu caminho no asfalto das cidades. Seus caminhos são os das galerias das
cidades. E, nestas passagens, se vê um mundo em miniatura. Se antes sentia o
pavor nas selvas, o homem, hoje, o sente na sociedade, onde vira mercadoria e
busca na multidão, o refúgio que não encontra.

Este "lugar arriscado" que é a cidade é diverso da "ferocidade"


de que fala o garoto cearense, ao refletir-se aos tempos de hoje? O tom de
multidão aliado ao de conspiração silenciosa, ofuscamento, perca de
singularidade e errância na desumanidade das galerias mostra, segundo
Benjamin, uma visão do homem empobrecido em experiência e humanidade.

"A multidão não é apenas o mais novo refúgio do proscrito; é


também o mais novo entorpecente do abandonado. O flâneur é um abandonado
na multidão. Com isso, partilha a situação da mercadoria. Não está consciente
dessa situação particular, mas nem por isso ela age menos sobre ele. Penetra-o
como um narcótico que o indeniza por muitas humilhações. A ebriedade a que
e entrega o flâneur é a da mercadoria em tomo da qual brame a corrente dos
fregueses". (ibidem, p. 52).
203

Esta forma de "ser multidão", aqui revela nuanças diferentes.


Quando se diz: "Na rua a gente vê que é mais um. Ou menos um. Tanto faz ..."
parece que se vê a idéia de se "valer" pouco. Como dizia uma operária
castanheira, de wna peça que escrevi: "a vida da gente vale mesmo pouca
castanha" ... (LINHARES, 1991). A música que eles cantam reitera: a matéria
vida é tão fina! E tem a lágrima nordestina: constante, cristalina, como uma
pedra de sal transparente e lúcida. Luciferinamente atenta à dor dos iguai s:
"Quando se está em casa se é um. Quando se está na rua, a turma leva a gente
a olhar o que é nosso ..."

E, noutra voz, a perplexidade:

"Essa coisa de ser povo, será que é isso?" Ainda não ensaiaram
as linguagens comuns, de um dado jeito, de um determinado modo de se lidar
com a racionalidade? No entanto, de corpo inteiro, estavam em grupo,
ensaiando uma luta que é canto que fica travesti do de briga, ora de arte. A
mistura herdada do negro: mestiçagem e Quilombo.

Se o ser "qualquer um" ou o "valer" "mais um" ou "menos wn"


indica um ser que se vê ter pouca valia, poder-se-ia inferir que ele percebe o
processo de ir se tomando coisa, mercadoria. Percebe-se, na saída da casa para
a rua, o movimento próprio do que Hegel chama ser característico do sujeito.
I

Segundo ele, o Espírito faz-se outro num movimento de alienação. Produz, a


partir de si mesmo, o mundo em que é efetivo. É o processo pelo qual um ser
sai de si e toma-se para si, para retomar a si pela mediação do que não é si. A
realidade efetiva, sendo também o movimento das coisas tomado em seu devir.
Eu diria: como se a realidade estivesse prenhe de futuro. Permanentemente
prenhe de futuro. As coisas somente são nesse tornar-se, diz Hegel. Por isso se
diz que, na rua, se olha as casas 'de viés". Esse estranhamento recusa a
onfonnação absoluta do muro asas parece-nos dizerem os garotos.
Com a aí. o pro o auto-renexao n d toda art . E te
204

processo se move na direção do momento do negativo, o momento que perfura


o real existente (a casa?) e estranha (busca?) e desbrava (poesia?) o que não
pode ser ainda. E as expressões na arte vão se orientando dentro da negação do
mundo existente mas, ao mesmo tempo, não sendo só negação. Como também -
fazendo wna analogia - as obras de arte, ao formarem-se aparição, apontam
para o que não são, e transcendem. Adorno coloca como o espírito sobrevém
aos instantes sensíveis e à sua configuração objetiva. Assim:

"O espírito das obras de arte transcende ao mesmo tempo a sua


coisidade e o fenômeno sensível e só existe enquanto essas duas coisas são
momentos. Isso exprime negativamente que, nas obras de arte, nada é literal,
menos ainda as suas palavras; o espírito é o seu éter, o que através dela fala ou,
mais rigorosamente, delas faz uma escrita". (ADORNO, s/d, p. 105).

Na modernidade a dor cósmica, o espanto primordial, antes


contracenado com a natureza, agora desloca-se para o mundo - daí a
comparação baudelairiana. O "estranho" olhar dos garotos e das menmas
reagem à "petrificação" do cotidiano e da "casa". E sua arte, nas ruas faz a
mimese da ferocidade que percebem no mundo.

O diferente é que, no Terceiro Mundo, ainda a experiência é

.
nca, a intimidade entre os iguais, na rua, fá-los pertencer a um rosário de
estórias e vida que os singulariza. Se são mercadoria - e de pouca valia, como
percebem - ainda se permitem ao canto e à poesia das coxias, à dança que é
briga travestida de arte, nas ruas. É aí, no coração das ruas, que mora a
juventude, eterna província da alma?

Discorramos um tanto mais sobre esta categoria da juventude.

Em Pasolini. no li po ma para o Brasil intitulado


"Hi rarquia" ve- e como, cazm n o measta p r quivo os d
205

classe que fazem de um homem do povo um soldado ou, também, um


comunista ou delinqüente. E, acima de tudo, a juventude e os jovens como
categoria central do seu pensamento. Perpassando todo o poema (que não vou
transpor na íntegra), vê-se como percebe a hierarquia imposta pelo Velho
Mundo, em contraponto à vitalidade, a poesia do povo e, também, como situa
o brasileiro como um incauto. Senão vejamos:

" ...quem passeia às quatro da tarde ao longo dos canteiros


cheios de árvores e pelos bulevares de uma cidade desesperada onde europeus
pobres vieram recriar um mundo à imagem e semelhança do deles, troçados
pela pobreza a fazer de um exílio a vida?

De olho no meu trabalho, nos meus deveres. Depois, nas horas


vagas, começa minha busca, como se também ela fosse uma culpa - a
hierarquia está porém bem clara na minha cabeça.

Não há Oceano que resista.

Dessa hierarquia os últimos são os velhos. Sim, os velhos, a


cuja categoria começo a pertencer..."

.
E, mais adiante, contrapõe velhos a jovens, novamente:

"Brasil, minha terra, terra dos meus verdadeiros arrugos, que


não se ocupam de nada ou se tomam subversivos e como santos ficam cegos.
No círculo mais baixo da hierarquia de uma cidade imagem do mundo que de
velho se faz novo, coloca os velhos, os velhos burgueses ..."

Depois:
206

"Voltemos à Favela onde as pessoas ou não pensam em nada


ou querem se tomar mensageiros da cidade. Ali onde os velhos são filo-
amencanos Dentre os jovens que jogam bola com bravura em frente a
cumeeiros encantados sobre o frio oceano, quem quer alguma coisa e sabe que
quer, foi escolhido por acaso.

Inexperientes em imperialismo clássico, em qualquer delicadeza


para com o velho Império a ser desfrutado, os Americanos separam uns dos
outros os irmãos supersticiosos, sempre aquecidos por seu sexo como bandidos
por uma fogueira de sarças.

É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e um outro


subversivo; aquele que arranca os olhos pode ser tomado por aquele a quem se
arrancam os olhos ...

"Ó Brasil, minha desgraçada pátria, devotada sem escolha à


felicidade (de tudo o dinheiro e a came são donos, enquanto tu és assim tão
poético) dentro de cada habitante teu, meu concidadão, existe um anjo que não
sabe nada, sempre debruçado sobre seu sexo, e, velho ou jovem, se apressa a
pegar em armas e lutar, indiferentemente, pelo fascismo ou pela liberdade.

Ó Brasil, minha terra natal, onde as velhas lutas - bem ou mal já



venci das - para nós, velhos, voltam a fazer sentido - respondendo à graça dos
delinqüentes ou dos soldados à graça brutal. (LAHUD, 1993:127-128-129).

Parece que, em toda a obra de Pasolini, os jovens encarnam as


possibilidades de não conformação ao posto como racional e moderno. Esta
categoria que poderíamos chamar de 'jovens" ou "juventude" simboliza a
resistência aos mecanismo de sujeição e integração dos indivíduos ao poder,
em suas múltiplas formas.
207

Pasolini, em carta de 1960, propunha distinguir a


"irracionalidade em geral" da irracionalidade do decadentismo advinda com um
determinado estágio do capitalismo. Esclarecia Pasolini: "Respondendo a uma
carta que pedia minha opinião sobre um certo moralismo excessivo da imprensa
de esquerda C .. ), eu dizia que wna das lacunas do pensamento marxista, no
momento atual de sua evolução, é a de não afrontar, com seus instrumentos
ideológicos e racionais, o problema da racionalidade (ibidem, p. 25).

Segundo Lahud, Pasolini não queria propriamente "recusar os


procedimentos analíticos do velho marxismo, mas estendê-Ios a um domínio
que, abandonado a si próprio, representava uma perigosa ameaça à autonomia e
às liberdades humanas. Não ceder, em nome do reconhecimento de uma
irracionalidade fundamental no homem, às suas pressões próprias, mas tentar
ao contrário, dominá-Ias com o único meio poderoso e eficaz, COnf0l111e
insistia
Pasolini, disponível na realidade: a força da razão, com a coerência e a
resistência física e moral que ela confere. É com ela que devemos lutar, sem
perder um só golpe, e sem desistir jamais (ibidem, p. 25).

Vê-se aí uma insistência em apontar que a crítica da


racionalidade que agora adquiria nítidos contomos de irracionalidade se fazia
urgente. Essa irracionalidade, assenhoreava-se de todos os domínios da vida no
capitalismo e encontrava um seu ninho através do consumismo, travestido de
I

moda cultural.

Certamente que Pasolini percebia o que poderíamos dizer ser


uma estetização da vida modema em domínios novos. Para ele, "existem certos
loucos que observam as caras das pessoas e o seu comportamento. Mas não
porque sejam epígonos do positivismo lombrosiano (...) mas porque conhecem
a semiologia. Sabem que a cultura produz certos códigos; que os códigos
produzem certo comportamento' que o comportamento é uma linguagem; e que,
num momento histórico e ~ ~em verbal é inteiramente convencional e
208

esterilizada (tecnocratizada), a linguagem do comportamento assume urna


importância decisiva" (ibidem, p. 46).

Por ter vindo a indústria cultural colonizando domínios novos e,


o que antes era a esfera da interioridade, hoje é invadida e contratada, como
uma linha de montagem, (como numa linha de montagem), é que há que se ver
o sensível não corno limite mas como elemento de composição de lima nova
racionalidade. E também corno espaço que está sendo estetizado, ao modo do
consumismo e da alienação capitalista. Poder-se-ia fazer movimentos de crítica
desse processo?

Num sistema em que se fabrica em série a subjetividade


capitalística, a qualidade viva do real parece esgarçar-se. Pasolini menciona
que a linguagem do ter passa a interiorizar-se e instalar-se nos corpos.

Por isso, para ele, o cinema e a poesia (extensivamente, a arte)


deveriam trazer essa experiência direta com o real, dramática, existencial,
corpórea, que se desvela como mil exercício de decifração dos vários signos da
realidade. É a valorização da experiência, trazida em suas várias formas
expressivas, para o trabalho de crítica da realidade. Poder-se-ia, por esse
caminho da arte, entrarmos na Escola? E rompermos esse modo de forjar
subjetividade, alimentando-a com outras matrizes?
I

Para Pasolini, comenta Lahud, através do neocapitalismo, a


burguesia estava se transformando, por assim dizer, na própria condição
humana.

De fato, com a industrialização fulminante da Itália nos anos 60,


a cultura hedonista e consurnista da burguesia ascendente passou a ser
secretada e difundida com a m . a eficiência tecnológica, contaminando
assim. pro essi 'amen o iais cujas ulturas próprias e
209

diferenciadas podiam até então representar formas autênticas de oposição à


ideologia burguesa.

Verdadeiro genocídio, como dirá mars tarde Pasolini, este


cometido pela civilização industrial de consumo, que aniquilando o pluralismo
fulgurante dos arcaísmos populares, o substitua por uma cultura monolítica de
massa.

Ora, contra o racionalismo pragmático do capitalismo industrial


e sua ideologia do progresso e da produção, Pasolini passaria então a elaborar
uma verdadeira ética da recusa (ibidem, p. 71)

E essa ética, essência de sua estética, vai ser montada no desejo


de "não ser consumível" de sua arte. A partir de uma linguagem particular e
preciosa (por muitos considerada hermética) tentava escapar ao materialismo
consumista da cultura de massas. E os códigos da juventude, seus processos de
recusa, pareciam-lhe nichos de vitalidade e esperança, capazes de gerar
mudanças no consumismo galopante que exauria as possibilidades da diferença
cultural e da singularidade pessoal, acrescentaríamos. O consumismo, ápice de
um processo que soava-lhe como um verdadeiro cataclismo, para Pasolini
adquiria foro de tragédia. Eu diria: etnocídio. Extermínio das possibilidades da
diferença nas culturas humanas. Pasolini: "... eu vivo, existencialmente, esse

cataclismo ... eu o vivo no meu dia-a-dia, nas formas da minha existência, no
meu corpo.

" ... Enquanto transformação (por ora degradação) antropológica


das pessoas, o conswnismo é para mim uma tragédia" (ibidem, p. 51).

Por receio da unitotalidade do neocapitalismo (que saíra de uma


fase de capitalismo rnonopoli a para um capitalismo tecnológico), recusava-se,
até a pen ar em termo o de superação. Dizia ele que a tese
210

e a antítese coexistiam com a síntese, verdadeira trindade do homem, nem pré-


lógico, nem lógico, mas real. E concluía: "sou mesmo tão metafisico, tão
mítico, tão mitológico que não me arrisco a dizer que o dado que ultrapassa o
precedente o incorpora, o assimila dialeticamente. Eu digo que eles se
justapõem".

Pasolini parecia chamar-nos a atenção para os sulcos profundos


na personalidade: o pensamento selvagem - mítico, mitológico, metafisico.
Poderíamos dizer que estes sulcos que iam ter com o mítico, o místico, o
mitológico coexistiam com outra espécie de racionalidade? Afirmar o amor por
essas culturas sobreviventes - como ao Brasil, por exemplo, seria um modo de
apostar na esperança, nas possibilidades de diferenciação do racionalismo
burguês? Seria um modo de escapar ao consumismo, que instaurara esse
"cataclismo antropológico"- como ele dizia? " De tudo o dinheiro e a carne são
donos, enquanto tu és assim tão poético" - dizia Pasolini no seu poema ao
Brasil.

Penso que, certo é que o processo do consumo penetra


recônditos que um bom ficcionista não imaginaria, até há bem pouco tempo.
Essa nova colonização da alma humana - a insana religião da modemidade? -
todavia, parecia ainda ter redutos não totalmente devassados. Foi o que se quis
apontar, ao pensarmos os modos de ser da cultura da juventude das classes
I

populares, sobretudo determinados estratos vinculados ao fenômeno das


gangues da periferia urbana. Vê-se que o contato grupal é intenso, profundo,
capaz de alimentar movimentos de singularização importantes. A experiência
não é tão individualizante, junto aos códigos da rapaziada e suas vivências são
ricas, apesar de serem "mais um" na selva das mercadorias, não terem um
projeto de futuro como coletividade e serem alvo também da indústria cultural.
A "recusa", todavia era essa arma de dois gumes, como vimos.
211

Em "Il Vangelo secando Matteo" vemos como Pasolini


expressava esse seu respeito pelo mítico e pelo metafísico, que ele recolhia dos
escombros da modernidade. Reconhecendo - se constituído de cristianismo,
afirmava que toda cultura é entretecida de sobrevivência. Até na versão de sua
Medéia, Pasolini explicita esta catástrofe espiritual de mundos em justaposição.
O mundo de Medéia era religioso, subproletário, protótipo do mundo feminino,
que Pasolini criticava por ser tão facilmente negado, em nome de um mundo
personificado por Jasão, o amado de Medéia, dinâmico, prático, leigo. O amor
de um pelo outro era, portanto, a impossibilidade de esses mundos serem
redutíveis, transfonnáveis, capazes de uma síntese. Para desespero de Pasolini,
era um amor exteriormente inconciliável, como as justaposições do mítico e do
pragmático, do metafísico e do profano, do arcaico e do moderno .. E, talvez
que, certamente (para ele), do feminino e do masculino.

Creio ver no que Pasolini pensava como a justaposição do


mítico, do arcaico, do religioso, junto ao pragmático, moderno, leigo, como
fendas no edifício de wna racionalidade que não quer amparar dimensões
excluídas, compartimentadas, não integradas. Se se vê a modernidade como um
desencantamento do mundo e, hoje, já se fala em um re-encantamento do
mundo (como Mafesoli) através de retornos ao mítico e a formas de pensar
tidas como parte do pensamento selvagem, eu gostaria de insistir na idéia de

.
que é necessário re-pensar e integrar num ser inteiro dimensões esquecidas ou,
ainda, não vistas antes com a complexidade que os novas contribuições das
ciências hwnanas e sociais trouxeram.

"Tia, eu morria sem ter cantado ..."

(Frase de wna menina que escapara da morte, por Viver em


condições difíceis e que, só hoje, participava da experiência dos corais infantis
do "Um Canto em Cada Can o") Como seus olhos diziam ter sido custoso
'er e a e. p n Ia..__-'E o um pedaço de mim donnisse -
212

disse uma outra. E wna professora vinda do interior do Estado, preocupada:


"Eu tenho a impressão que a gente arranca alguma coisa nas crianças que
prepara para o mundo do trabalho, na Escola, mas desprepara para o amor. Eu
digo amor querendo dizer essa coisa que nos faz humanos. Todo o mundo hoje
tem medo de falar de Deus, da transcendência mas eu acho que educação tem
parte com coisas que a gente não toca. Até ... até ... Nem tudo é o real. Por que
tem de ser? Nem tudo é o concreto. Por que tem de ser? Sair da materialidade
pura não quer dizer cair no absurdo, na irrealidade. Reduzir o mundo ao que eu
toco e, hoje, posso analisar e conhecer é muito pouco. E quase causar uma
mutação na alma humana".

E outra: "Assim como se temia o diabo, na Idade Média, hoje se


tem medo do nome de Deus. Se teme buscar uma nova compreensão de Deus e
da dimensão espiritual por elas fugirem do que se pensa ser racionalidade hoje.
Também essa parte que toca os sonhos, a fantasia parece que está indo junto
com essas negações todas". "(Ter-se-ia que ir buscar esse fio de Ariadne para
consturar esses pedaços (dimensões) recusados?)

Fellini coloca com simplicidade e, como sempre, com sua lente


penetrante, essa questão. A uma pergunta sobre como veria a reforma da
escola, responde ele: "Não tenho filhos, apenas sobrinhos que quase não vejo,
e porque estou ,sempre ocupado fazendo filmes, não sei como é a escola hoje.
Imagino que, afora um certo verniz de fachada, um maior relaxamento na
disciplina, ela não esteja muito diferente da do meu tempo. Pouco propensa,
isto é, pouco empenhada em assumir a responsabilidade da formação do aluno.
Quero dizer que a criança chega à escola numa idade em que os limites entre a
imaginação e a realidade, entre o mundo da consciência, que está apenas no
início, e aquele mais amplo e sem contornos, do irracional, do sonho, da
comunicação profunda, ão muito tênues, separados por uma membrana muito
fina que conserva um ai n o o . rificam desvios, osmoses, infiltrações
impr ; as. E a a qu p d d saparecer
213

rapidamente com o passar dos anos, em vez de ser reconhecido e protegido


como uma coisa preciosa, como um depósito áureo da consciência, da
dilatação da capacidade vital, na escola é programado para ser ignorado, quase
visto com suspeita, desconfiança, se vai interferir com a ordem convencional na
qual a criança deve ser enquadrada. Não é culpa de ninguém, faz parte da
preguiça mental, da incapacidade com que geralmente encaramos os problemas
da educação, a total desatenção que dedicamos ao mundo da infância,
convencidos que estamos que a criança é um ser totalmente errado que se deve
consertar. Na verdade, em vez disso, trata-se de um personagem estranho,
insólito, que dispõe de meios ainda rudimentares, mas intocados, para entrar
em contato com a realidade, e que, como os elementos da natureza, conserva a
consciência que já perdemos, sabe tantas coisas por nós esquecidas, suprimidas
à força.

Se eu tivesse um filho procuraria, acima de tudo, aprender com


ele". (GRAZZINI, 1986:21).

Aprender com a Infância, que sabe tantas COIsas por nós


"esquecidas, suprimidas à força", não é, certamente, reafirmar o
espontaneísmo, conforme algumas interpretações feitas sobre Rousseau. É
reconhecer que há "modos de contato com a realidade" que nós perdemos. Há,
inclusive, .
"elementos da consciência" que já perdemos. Que nós já
"suprimimos à força", como diz Fellini. Há um mundo da consciência e há
outro mais amplo e sem contornos que ficam misturados e, ter atenção à
infância seria considerar a formação desse todo, sugere o cineasta. O contrário
é enquadrar a criança numa ordem convencional e ver este universo áureo que
lhe caracteriza como algo suspeito e a ser "consertado". Esse "conserto" seria
diferente do real cuidado com o mundo da infância e os problemas da educação
- enfim, uma verdadeira responsabilidade com a formação do aluno, diz Fellini.
214

CONCLUSÃO

o nascimento das estruturas de consciência modernas começou


com o desencantamento do mundo. Chamava-se encantamento uma maneira de
se pautar diante da natureza e da sociedade, como poderes estranhos ao
homem, enquanto o religioso e o metafisico eram vistos sem conexão com o
mundo. O pensamento racional iluminista da modemidade tentou, de início,
devolver ao homem sua potência enquanto sujeito da sua história. Não é à toa
que Hegel como que chora, vendo ruir o Estado alemão mas, ao mesmo tempo,
aposta na razão como modo de construir a felicidade da cidade terrestre, pela
liberdade. A servidão a uma religiosidade que alienava o homem de si e de sua
tarefa de construção histórica ruía com a Prússia, sua terra Natal e, no seio
deste tipo de pensamento religioso que fenecia, postava-se a urgência de deixar
nascer um novo mundo, obra da razão.

o mundo grego legara ao homem seu destino de cidadão da


pólis. A idéia da unidade viva da cidade, todavia, teve necessidade de, com o
cristianismo, fazer comportar também o momento da subjetividade. O
cristianismo deixara-nos esta consciência profunda da irredutibilidade da
subjetividade humana ao momento do coletivo. A consciência deste mundo
cindido (subjetividade e pólis) levava, porém, Hegel ao encontro da realidade e

.
da história, para superar as contradições que se punham na casa do mundo. A
razão ficava a fazer sua ponte sobre esta dilaceração percebida no mundo.

Adorno e Benjamin vão se desencantar ainda mais com o


homem e a sociedade que ele construíra. Tendo vivido ambos ao tempo da II
Guerra Mundial (Benjamin chegou a morrer quando tentava uma fuga pela
fronteira), vão tentar enxergar que filigranas de aço construíram aqueles canais
na consciência profunda dos sujeitos, que faziam com que o real antagonístico
e a consciência reificada alim ntas em mutuamente. O iluminismo aço dava o
progre oa u o t mpo. E r zava na cartilha
215

da fé cega a uma ciência que, agora, revestia-se do poder de verdade única em


sua enceguecida práxis de ser a extensão do corpo do homem, em sua sanha de
domínio. Rever o que hoje se faz da razão e do esclarecimento pareceu, aos
frankfurtianos, uma das tarefas da educação que tem como divisa "para que
Auschwitz não se repita".

o programa de luta era amplo: a não regressão à barbárie, que


ameaçava as estruturas do mundo da vida no seu leito mais íntimo, a
subjetividade, e as do mundo sistêmico, em seu anseio totalizador. O desafio:
como buscar conhecer as relações profundas entre estas estruturas profundas da
personalidade e as estrutura societárias? Como retomar dimensões esquecidas
da razão? Como recolocar a discussão sobre a Arte como crítica imanente,
reflexão do espírito sobre a vida real?

Nesta dissertação, ao buscar "o lugar onde se dizia que estava a


arte na Escola", deparamo-nos com vestígios de dimensões silenciadas. Com a
lente dos frankfurtianos vimos que, na Escola, também se observava um modo
de se tomar conhecimento e processos de conhecer, advindos de um modo de
se tomar razão e ciência na modemidade. Poderíamos dizer, então, que um
certo modo de se tomar a ciência (o conhecimento e seus processos) e a razão,
isolando-os de molduras afetivas e de seus condicionantes sócio-econômicos e
culturais é a fôrma do modo (também) de se fazer Escola .

Tratar os fenômenos da realidade como "coisas" e lidar com


eles de um modo instrumental, isolando-os de seus fins, como se estes
conhecimentos e sua manipulação fossem algo neutro, colocou fora de cena os
atores dela. Como nas fábulas infantis, estes sujeitos viraram estátuas, ao entrar
na trilha do que se tomou por razão na modemidade.

Uma das ~ aridades deste sujeito que entra na Escola é a


ua .tal nec ida sentido orientadore de ua ação no
216

mundo. Estes sentidos migram, têm muitas vozes - mas necessitam ter seu lugar
de expressão, de elaboração e interação com os outros. Buscar o humano - este
paradigma que se pergunta - nas ciências é não reduzir o que se toma por razão
à sua dimensão instrumental. A arte tem essa função de dar sentido humano ao
mundo, na imaginação, ao expressá-Ia e reorganizá-Ia numa obra feita. Mas
este ser criador, onde? Conhecer envolve criação. E nas formas da arte as
pessoas experimentam os sentidos da vida. Poderíamos dizer que no campo dos
desejos passeia a errância dos sentidos.

Na escola também este modo de se lidar com a inteligência que


exclui a esfera dos desejos, dos afetos, dos valores, da estética, da ética
também reproduz no seu mundo miúdo esta mutilação de um ser que se devia
considerar por inteiro. Já aí colocamos a necessidade da interdisciplinaridade
não como modo de se superpôr profissionais de áreas diversas mas como um
modo de, partindo desta cisão feita no próprio real antagonístico, tentar-se sua
crítica e superação, considerando-se a criança na escola como um ser inteiro.

Se vemos na ciência o único modo de conhecer (é, certamente,


o modo único de conhecer de certo modo), se ao modo positivista,
desconsideramos as verdades parciais e as contradições na realidade, em seu
movimento vivo (como o faz a dialética), estaremos longe de admitir a
necessidade da arte. Pois, nela, pulsa a ruptura mas também continuidade e

contiguidade ao existente. Como, de resto, a formação cultural e a cultura, não
tem lógica autônoma; está ligada ao processo material da vida. Retém, porém,
como sombras turvas o aceno dos devires. É o trágico rosto da história em
ruínas e, por isso mesmo, remete a um futuro que o supere. A arte é necessária
.
no processo de conhecer porque também é necessária ao conhecimento a utopia
que ela chama a si. Chamando o campo expressivo dos sujeitos da escola, o
trabalho com ela devolve a potência de se dizerem. E de viverem vicariamente
o papel do outro. Por i o e diz que o campo lúdico é um campo de jogo:
porque in lui o O .O '-'u~.v ementa de mediação fundamental na
217

produção de sentidos na escola ou é um conjunto amorfo, tratado de modo


maciço como a clientes ou usuários de um "local" público?

Como orientadora do campo de Estágio, ao longo do tempo


desta pesquisa, vi como a arte entra também desse modo instrumental na
Escola. Não é uma dimensão que "faz falta" ao educador mas uma atividade
que "acontece" em dado momento.

"- Faz um arranjo ali comigo?"

"- Você podia vir ajudar na festinha das mães? A gente fazia
uma fiores ..."

"- Se você quiser ensaiar os menmos, você pode fazer uns


números na festa de meio de ano. Você pode escolher os mais bonitinhos e
comportados, para não dar muito trabalho ..."

"- As mães estão reclamando que as estagiárias estão cantando


muito com os meninos. Esse modo de dar aula com muitas brincadeiras, os pais
não aceitam. As professoras das classes vizinhas também se aborrecem com o
barulho. As estagiárias devem tentar ver o jeito da escola levar as coisas e fazer
seu estágio. Também o que adianta mexer numa coisa se elas vão sair logo,
I

logo?"

"- Eu quena que você me ensmasse umas técnicas novas.


Outras. Aquela dos bonecos foi ótima! Eles fizeram os bonecos, as estórias, foi
uma surpresa tudo para mim. Agora eu quero outra coisa".

o nome certo: coisa. Uma coisa para botar ali num lugar entre.
Entre um de er e outro. Entre. Como se faz com a música, por exemplo. A
música é a que e oi a e outra. A música ali ai entrando
218

"entre" momentos de aprender algo "de escola mesmo". Entre: a aula e o


recreio, entre a chegada e o início das aulas; entre a exaustão das tarefas e o
continuar das tarefas, para relaxar um pouco; entre os discursos no pátio, para
dar o vemiz de ensinamento e o relato das normas vigentes no estabelecimento;
entre a sala e a merenda; entre ...

Óbvio que sempre estamos "entre" dois momentos - um anterior


e um posterior (para nos atennos a uma visão euclidiana do tempo). Todavia,
este "entre" significa: .. - "Enquanto a gente não faz as tarefinhas, vamos
cantar?".

Ou:" Vocês estão tão cansados e desatentos: vamos cantar


para animar?"

Em que pese o respeito que temos por algo dessas visões das
qUaIS depreende-se certo apreço pelo potencial lúdico da arte, constata-se,
porém, o modo instrumental de tomá-Ia na Escola.

"A triste ciência, da qual ofereço algo a meu amigo ..." diz
AdoTIlO na dedicatória que faz a Max Horkheitner, do seu livro "Mínima
Moralia - reflexões a partir da vida danificada", esta triste ciência, digo, funda
um modo de relação com a realidade e o Outro coisificante. O que se conhece

na Escola são "coisas". Então o professor me convida: - "Bota uma coisa ali
naquele lugar?"

A plurivalência social do signo é condição de existência da obra


de arte. É porque a há possibilidade de se distribuir (e criar) sentidos múltiplos
que se pode falar em arte. E, porque o signo é polivalcntc, é importante
proporcionar-se o diálo o entre os ários sentidos e os vários atores destas
ozes.
219

"O sentido é, de fato, esse elemento de liberdade que traspassa


a necessidade. Sou determinado enquanto ser (objeto) e livre enquanto sentido
(sujeito). Calcar as ciências humanas sobre as ciências naturais é reduzir os
homens a objetos que não conhecem a liberdade. Na ordem do ser, a liberdade
humana é apenas relativa e enganadora mas na ordem do sentido ela é, por
princípio, absoluta, uma vez que o sentido nasce do encontro de dois sujeitos, e
esse encontro recomeça eternamente. O sentido é liberdade e a interpretação é
o seu exercício: este parece realmente ser o último preceito de Bakhtin.
(Prefácio de Tzvetan Todorov Barkhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal.
São Paulo: Martins Fontes, 1992:20.).

A monovalência do sentido tem seu séquito de interesses.


Interessa a quem quer fazer escorrer um pensamento dominante como único. E
a ideologia ainda levanta a pretensão de coincidir com o real. Já a possibilidade
dos múltiplos sentidos abre-se aos possíveis, ao invés de reduzir o real ao
âmbito da ideologia.

A própria psicanálise mostra que o consciente é apenas a ponta


do iceberg das geleiras do inconsciente e que a cadeia de significantes insiste
na busca de significações, para o sujeito, na cadeia de significados. Todavia,
não há uma correspondência biunívoca entre significante e significado, como se
imagina comumente. O significante funciona em cadeia - os significados
I

também. E há uma falta primordial que faz migrar o desejo e, também, os


sentidos.

Não há, portanto, uma correspondência termo a termo entre o


conceito e a realidade, o nome e a coisa nomeada, entre o ponto e o onto, como
diz Lacan, referindo-se à letra e ao ser.

Aqui é oportuno um parêntese. O significante não se alia ao


significado numa correspondência rmo a rIDO. Ele d liza - o significado -
220

sob o significante. Poder-se-ia dizer que, como num jogo de bilhar, ao bilar
(tocar) uma bola, esta impulsiona outra tantas, como campos de significado que
se reorganizam em novas configurações, a partir de reordenações do
significante. Por isso os lapsos de linguagem, ao acontecerem, fazem com que
essa bola (significante) vá "bilar" (tocar) outras bolas (significantes) e, ao
fazer emergir uma cadeia delas, está-se na possibilidade de se ter nova
configuração de significados. Claro que esta cadeia trazida pelo significante (de
outros significantes) não é casualmente constituída. O significante que rompe
suas defesas (do inconsciente) e vem "espiar" neste buraco do lapso, por
exemplo, faz parecer fortuito o que é fio de uma longa estória inscrita na came
dos dias. As conexões de significantes, portanto, aportam via o "buraco" da
falta (exposto em lapsos, sonhos, etc.) por onde o desejo mostra sua cara e
realiza sua busca.

A obra de arte é, também, um meio por onde o inconsciente


insiste em falar, já mesclado de consciente. Como vimos antes, os signos não
verbais banham-se no discurso e não podem dele ser apartados. E mesmo os
Sif,'110S não verbais, são abordados verbalmente pela consciência.

Queria com isso mostrar que, também por considerarmos que o


inconsciente e o consciente se entrelaçam e os sentidos migram, trabalhar a
polissemia dos signos com a arte é também considerar essas dimensões.
I

A possibilidade de os vários textos dialogarem, os personagens


do texto com seus autores e leitores, e estes todos com outros contextos e
personagens da história reveste-se, para a construção de significações, de
importância ímpar, pois detona um material que será tratado como uma
multiplicidade de vozes. Estas pautas de diálogo são polifônicas assim como o
discurso do significante o é.
221

"Não há, com efeito, nenhuma cadeia significante que não


sustente como pendendo na produção de cada uma de suas unidades tudo o que
se articula de contextos atestados, na vertical, por assim dizer, desse ponto".
(LACAN, Jacques: "A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão deste
Freud", in Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978:234) ..

Por essas razões, que venho comentando, eu poderia dizer que


faria uma analogia e iria propor os vários tipos de textos (filme, música, poema,
etc.) como espécies de significantes que, ao serem "bilados" (tocados, ao se
confrontarem uns com os outros) poderiam perfazer novos campos de
significações. A arte, na Escola, poderia mirar isso, pois essas significações,
trabalhadas nas várias formas expressivas, como dissemos, são dimensões que
se expandem no ser.

Seria básico considerar esses sujeitos, na Escola, falantes, como


narradores, autores de seus textos, leitores de vários tipos de texto. E como, na
Escola, o Outro é uma mediação fundamental, também por isso se
proporcionaria o diálogo entre estes produtores de sentido. Estaríamos dando
um tratamento, no concreto, à assertiva de que é condição de existência da arte
que seu signo seja polivalente.

.
Portanto, admitir este deslizamento do significado é contar com
a dimensão do inconsciente nos vários textos que dialogam com esses sujeitos,
também narradores, é contar com este abeirar-se permanente do desejo em sua
errância. Na relação dialogal que se estabelece entre esses intertextos dos
outros e os nossos, deixa-se que um ego ponha-se a espiar o seu desejo.
Porque, como venho dizendo, na Escola há uma hipertrofia do superego. Por
isso insisto em não deixar a libido calar o poder de autonomia e de consciência
do ego, pelo superego do professor.
222

A intertextualidade e seu trabalho atende com fidelidade às


virtualidades do real, já que este é irredutível ao nome. O nome, como disse,
desliza e faz deslizar significados.

O modelo literário proposto por Bakhtin faz apossarmo-nos da


I

potência que têm as várias formas expressivas na arte, para falar do real. A
visual idade - o trato com imagens - é algo avassalador hoje. Esse trato mudou,
por exemplo, ao longo da história do cinema, como também mudaram as
funções da arte ao longo da história. Poder-se-ia apontar para investigações
sobre as especificidades desses meios expressivos vários, como sobremaneira
importantes. No entanto, por ora interessa-me propor a potência desses textos
para falar das virtualidades do real e dar conta de se porem a dialogar uns com
os outros, considerando esta pauta polifônica (das vozes dos sujeitos) e
polissêmica (das multiplicidades de sentidos) que têm.

Volto, porém, a inserir minha análise no construto da instituição


Escola. Vejamos porque é tão profunda a dificuldade de percepção da
necessidade de colocarmos os sujeitos, na Escola, dessa forma pluridimesionsal
de que venho falando, e se pondo como construtores de sentido.

Por que a lógica da vida não atropela a lógica do sacrificio e da


dor?

A professora, cansada - o tempo depois do recreio era calor


aumentado, após a correria e, ainda mais com a falta d'água - eu ia dizendo que
a professora estava cansada. E intrigou-se com a menina que estava lá atrás, e
num canto, com a carteira quase virada de costas para a professora. Sobre W1S

pés enérgicos e rijos, a menina viu a professora. Olhou-a pelos pés. Melhor:
adivinhou-a. A professora a an ou no segredo ... e quase matou a esperança,
aquele insetinho erde de e fininhas. A um olhar surpreso da professora, a
223

menina quis um sorriso que não saiu. A professora insistiu: - Tá vendo? O que
significa isso? O que você estava fazendo com isso?

E a menina: - Eu olhava.

E poderia ter dito: eu brincava. Ou: eu sonhava. Ou: eu pensava.


Seria a mesma coisa. Uma outra lógica furando a idéia de que só se está a fazer
algo se se tomar as coisas para si. Melhor: se se tomá-Ias como instrumento.
Ou: a vida "se contando" e pedindo passagem entre.

No mesmo dia, na sala dos professores, por longas horas um


menino ali. Em pé.

- Por que você está aqui assim? - perguntei.

- Porque eu ri - disse ele. E riu.

O vice-diretor, chegando por trás de onde eu estava, explicou:

- É um cínico. Ri muito".

.Como ter ainda um olhar que, de repente, em meio ao avesso,


pára a um canto e... olha? Como ter ainda um menino que ri?

É a esse olhar que se quer acudir. Começando pelo nosso. Para


que olhe estranhando. Desabitue-se do que parece comum e natural e queira
enxergar de outro modo o que parece ter existido sempre. Esse construir e
desconstruir os ritos e fatos comuns da cultura, em seus gestos e símbolos, é o
caminho de uma alfabetização estética.
224

Vimos como a nossa cultura se envergonha de si. Vimos como


se reduzem as capacidades humanas, a possibilidade de chegada à
omnilateralidade dos sujeitos, em que suas dimensões estão desabrochadas, à
unilateralidade do "homo ceconomicus". A obsedante práxis da Escola como
ante-sala do mundo do trabalho, que reifica consciências e relações humanas,
vai desvitalizando os centros expressivos e criadores de sentidos capazes de se
interpôr à esse processo.

Seria uma espécie de lobotomia cultural, em que se retira, ao


invés dos centros da agressividade do cérebro, os centros expressivos e
criadores dos sujeitos. Esta redução das subjetividades ao seu substrato
maquínico e serializador nega o multi-culturalismo. Os processos de
singularização das individualidades e dos grupos sujeitos interceptam a
reprodução totalizadora que quer fazer coincidir a organização do mundo
sistêmico e sua ideologia, com as subjetividades e suas expressões.

Essa redução das subjetividades ao seu substrato maquínico e


serializador começa por reduzir o tratamento da dimensão simbólica e
imaginária ao exercício mecânico da lecto-escrita. Se não há um trabalho que
atinja os âmbitos expressivos vários, vai-se estar a determinar sentidos para
serem apreendidos, ao invés de se trabalhar sua produção e diversidade. Como
se, para ser mais eficaz neste domínio, se tivesse de pôr "de molho" todas as

outras linguagens expressivas com a forma particular com que evocam
realidades. É também curioso como se tenha perpetuado por tanto tempo uma
visão de linguagem (e aí também incluimos a visão que se tem de todos os
campos expressivos da Arte: música, literatura, artes plásticas e cênicas) que a
põe como veículo de um sentido já pronto, ao invés também de colo do novo
sentido. Esses campos expressivos, a despeito de querermos ou não, de fato em
algum nível dialogam entre si. Apenas nós ignoramos esse fato e não damos
oportunidade sistematicamente para o trabalho com estes textos e significantes
diversos, na E cola. te trabalho como há proce sos de
225

apreensão diversos nesses campos, os modos discursivos e os apresentativos


lidando diferentemente com as virtualidades do real - um apreendendo-o de
modo mais linear e o outro de modo mais globalizador, gestáltico. Vimos
também como sensibilidade não seria um nicho de irracionalidade e de pura
emoção, afetividade e abstração mas vimos como há sempre uma inteligência
que dialoga com o desejo, ainda que nem tudo do inconsciente chegue à
consciência.

Ainda, do ponto de vista epistemológico, estou a pôr um sujeito


que deseja e um que conhece, como se o desejo não fosse em parte uma
inteligência e a inteligência também, em parte, um desejo. Por isso também,
com a melhor das boas intenções a professora diz: - "Agora vamos brincar".
Ou: "Agora vamos trabalhar com teatro ou com pintura. É uma forma de passar
a emoção, o que a criança sente ..."

Claro que é. Todavia, ela diz depois: - "Agora vamos à aula. A


gente tem de fazer as "duas" coisas, educar a inteligência e o nosso corpo".
Como se o corpo e seu desejo não tivesse sua inteligência e a inteligência sua
afetividade e seu desejo.

Um parêntese para duas Imagens que situam no concreto


algumas questões importantes .

Em um exercício dramático, com minhas alunas, estávamos a


trabalhar a versão simbólica das suas experiências. Nelas, passa-se a ver o que
é que reproduzimos como constitutivo da natureza humana e o que é histórico.
A encenação de certo dia foi um conflito em um ônibus. Uma mulher
desmaiava, para inspirar pena ao trocador, e este deixá-Ia passar sem pagar. O
estado de desespero e desamparo da mulher sem dinheiro, usando um tipo de
recurso como e se contrasta a com o modo indiferente dos outros passageiros
diante da i ão.
226

Vivenciando-se alternativas de ações mesmo com este registro


de social idade fomos desvestindo este habitual de sua moldura de natural. O
que se revestia da crueldade comum dos dias era re-enquadrado num construto
histórico, mutante, crítico. A dimensão dramática, portanto, desabituava nossos
corpos do que era feito sem reflexão, na medida mesmo em que colocávamos
numa moldura estranha o que era feito de modo automatizado.

Outra cena: uma mulher flagra seu marido com outra, traindo-a.
A partir de situações dramáticas semelhantes, como uma cadeia de
significantes a quem se vai perquirir os significados, passa-se a estudar o que
foi aprendido sobre o que é ser mulher. Como se sentiu e se leu este sentimento
advindo da situação de flagrante - e das outras semelhantes. Até que ponto
você foi ensinada sobre isso: que construção social gestou este modo de agir?
O que importa imensamente trabalhar é a confluência dos processos de
socialidade com a expansão da nossa singularidade. Desvestir os processos de
reprodução de subjetividades serializadas é ir tentando ver no que foi aprendido
nos processos sociais, o que pode ser rompido ou continuado.

O pensamento vivo de Brecht, na navalha afiada da sua língua,


propõe que se estude, até no nível da corporeidade (é que ele atua com a
dimensão dramática), como estes processos de socialidade criam o nosso ser
social. Para isso também se dramatiza o não sido ainda, como o existente,
retirando-os da sua capa de permanência.

N a verdade, há também através da arte, a oportunidade de se


viver vicariamente o Outro. Este exercício de enxergar com os olhos do Outro,
se pôr na pele do herói, poderíamos dizer, configura no concreto o próprio
descentramento progressivo do Eu.

Vale clarificar que a arte, ainda, é a elevação desses materiais


, .
e .pre 'o a ru 1 a que
IIJV,.u •••• obr \'0 m o chão do
227

realismo estrito. É que, se o real é matéria-prima da arte, é obra feita a partir


dele: ficciona, estranha, descola, torce, desfigura, se toma uma espécie de
Outro do Real, para melhor contar do real. Ou do que podia ser o real - a
dimensão negativa da razão.

Muitas das chamadas ações pontuais, onde se disse que estava a


arte da Escola, são colocadas como "técnica" ou "dinâmica" - algo como uma
fórmula que não deve desalinhar o cotidiano instituído. "Me arruma uma
técnica de arte que eu quero fazer o pessoal viver algo diferente hoje". Isso eu
entendo - essa sede, que se quer represar desse modo já dimensionado no
tempo. No entanto, onde fica esse processo de construir esse "olhar
ensonhado", esse olhar que se desabitua da crueldade comum dos dias (Adorno
e Benjamin diriam "da barbárie") e esse, ainda, rir?

Há, a esse respeito, uma certa confusão em alie-educação, que


desloca esta questão, polarizando-a nos termos: deve-se enfatizar o processo de
fazer arte ou o produto? Eu diria que, anterior é a dificuldade de que não há
processo, há ações pontuais, que fazeres tomados como "coisa" que "se bota
ali naquela hora".

Ao se pôr sobre alguém sentidos já prontos, não houve

.
processos de experimentação e criação de sentidos que, no próprio ato de irem
se fazendo obra vão se configurando. Na doação ou estabelecimento de
sentidos (ou nem isso) há uma mecânica que simula o utilitarismo fabril
dominante. A arte na educação vai sucumbindo ao medo de produzir e
experienciar sentidos, ensaiarem-se obras.

Outra imagem.

Em outra exp ri ência que ti e de capacitação de educadores de


cnan a e adol rua". propúnhamo utamo por
228

um ano) uma alfabetização através da arte. Eramos uma equipe inter-


disciplinar. Sob minha coordenação, havia: dois artistas plásticos, um músico,
um psicodramatista e alguns pedagogos. Partíamos da idéia de Foucault de que
há toda wna "teia de verdades" construída nestas instituições (de abrigo,
punição ou reeducação) sobre as verdades dos meninos e meninas. Ao dannos
oportunidade a uma fala expressiva dessas crianças e adolescentes (em artes
plásticas, teatro, música), estávamos tentando que eles elaborassem seus
sentidos. Novos? Submersos? Sufocados?

Todas essas coisas. Esse movimento se dava também na sua


contra-mão: ia-se desvelando "o que diziam que eles eram".

o que se dizia deles. Os sentidos construí dos sobre eles, a


despeito deles e aprisionados no seu corpo, expressão e voz.

Quando havia componentes desafiadores no processo de


crescimento grupal (isto após um certo lastro de amorização do f,'TUpO)e quanto
mais a situação de aprendizagem fugia da configuração clássica de Escola,
menos dificil se tomava essa "aula diferente" ser vivida. Ser narradores,
autores, criar (e experimentar) sentidos ao fazer a obra, expressar-se em vários
textos artísticos, fazendo-os dialogarem entre si e consigo também, e no grupo -
seria isso tão dificil na Escola?
I

Polifonia - esta multiplicidade de vozes da cultura - e polissemia


- esta multiplicidade de sentidos, no estudo que fizemos dos rituais (onde se diz
que a arte está na Escola), nesta nossa pesquisa pularam os muros da Escola.
Esta pluralidade de vozes e de sentidos contradiz a monovalência do discurso
do professor: o superego que, também hipertrofiado, aliena de si suas
dimensões de desejo e possibilidades de autonomia. Se a reflexão dos
profe or não part ua ri ên ia, d sua identidade e elevando-se a
nívei n o r dim n ões. mo chegar a
229

pôr em contato com os textos, as autorias, as narrativas dos alunos, se as suas


próprias estão ausentes nas suas falas?

o que tem acontecido na Escola parece mostrar que a lógica da


vida é atropelada pelos rituais que reproduzem as relações de produção vazias
de sentido, coisificantes, negadoras do papel de sujeito aos trabalhadores. Toda
uma mimetização do mundo e das relações humanas reificadas é reproduzida
quando se nega a professores e alunos a capacidade de dialogarem com textos
diversos, de produzirem seu próprio texto e se sentirem e exercerem a potência
de narradores de suas experiências, criadores de sentidos finais para seus
fazeres.

Gostaria de utilizar duas cenas. A primeira fala de um momento


de certo modo inconc1uso. A experiência teve outros êxitos mas a idéia da
frustração na tentativa de fazer um matador real do presídio dialogar com o
texto de um matador personagem de Guimarães Rosa é que me move a usar
esta imagem. A segunda imagem mostra também uma dificuldade de fazer
, perceber a idéia de construção de sentidos como processo continuado ao longo
da aprendizagem, através de um trabalho com narrativas de vida como
exercício de autoria e criticidade. É que, neste trabalho, como nos que utilizam
também a dimensão dramática, a linguagem artística central que utilizo, sempre
com apoio na literária, ora uma prevalecendo sobre a outra, fica evidente a
I

dificuldade com a percepção de um continuum que é produção de sentidos


experienciados nas várias modalidades expressivas. O trabalho artístico é visto
como "técnica", à qual se acrescentam adjetivos como inovadora, de animação,
dinâmica e outros sucedâneos. Poderíamos, para usar uma imagem
contundente, chegar a dizer que não há processo de produção de textos (nas
linguagens e expressões várias na arte) porque não há sujeitos criadores de
sentido.

Façamos oarenteses a qu aludimo.


230

A primeira cena conta que, um dia, um professor que ministrava


aulas de alfabetização em tun presídio (ele também presidiário), combinou
comigo, trabalhadora da Fundação Educar, que o orientava à época, um sistema
de correspondência. Os internos presidiários se corresponderiam com algumas
pessoas de fora do presídio, interessadas em responder-lhes.

Eu e um dos internos, aluno da alfabetização, iniciáramos o


combinado. A partir do interesse do aItulO, interno no presídio, por literatura,
todo um trabalho de conversar com o professor sobre os textos e seus
personagens, e de respondê-los, escrevendo, foi deslanchado com uma
intensidade surpreendente. O diálogo veemente do presidiário com os
personagens literários desaguou também na nossa tentativa de correspondência.
Frustrada, pois eu acabara de escrever-lhe uma carta falando-lhe de "A Hora e
a vez de Augusto Matraga", (a estória de um matador que muda seu destino,
escrita por Guimarães Rosa), quando meu correspondente foi quase morto no
presídio.

Um ócio maciço, tão desestruturante quanto as parcas


experiências de trabalho explorado em seu grau mais aviltante - e de fio a pavio
a idéia era punir. Lembro do meu susto ao saber que todos os textos dos livros
haviam sido danificados. Por quê? - perguntei eu, tentando adivinhar alguma
revolta. Não: é que as grades das celas, com seus quadrados largos, expunham

os presos, em suas relações sexuais (quando da visita das suas mulheres) à
chacota e zombaria dos policiais. A nudez das grades (e as suas próprias) eram
então cobertas com as "folhas" dos livros que eu lhes mandara. Desde então,
me pergunto porque um espaço de reeducação como os presídios não são
pensados por educadores. Porque a idéia é puni-los e não se crê que há
conhecimentos capazes de pensar sua reeducação. Muito tempo depois, ao
trabalhar com educadores de crianças e adolescentes de instituições totais,
comecei a er e e dar como desde o modo de tratá-Ios como
indi -idualidad iza o oletivo. ob a máscara da justiça',
1

despojava-se-lhes qualquer singularidade. Tratava-se de negar-lhes 0-

mecanismos de identificação. mais primários. As crianças e adolescente .


ensinadas por esses mecanismo perversos, também os reproduziam, chamando-
se de apelidos agressivos e do número dos artigos de suas infrações. Tempo e
espaço controlados por outro, de modo rígido e, em tudo, o despossuí-los de
seu espaço de fala, da pergunta dos sentidos do que se estuda ou faz, da
submissão indiscutida à autoridade e disciplina sem razões, da negação dos
espaços expressivos para suas narrativas e suas autorias.

Daquela pnmeira dor me ficou a imagem de um matador,


aprisionado por um sistema penal que entende reeducação como punição
totalizadora e que, munido de livros e escrita, reconstruía sua liberdade no seu
diálogo com os personagens dos textos e consigo próprio, em seus exercícios
de produção de sentidos e narrativas.

Tempos depois - essa é a segunda cena - ainda na Fundação


Educar, agora no Maranhão, prossegui com um trabalho com narrativas de
vida. As histórias de vida se contavam em papelotes que se abriam como uma
sanfona. Como a caixa de Pandora, dali saltavam duendes, cantadores, casos,
sonhos, imagem e texto de sujeitos sendo. A idéia era a de que, em variados
momentos, ao longo de todo o processo de alfabetização, este exercício de
autoria das próprias narrativas se expressasse em texto palavra e imagem
(pintura, recorte-colagem, desenho). No processo alfabetizador trata am-se
temas que eram motes para, a partir deles, os falantes dialogarem e exercitarem
suas narrativas pessoais - e a história de vida engordava suas páginas com
experiência e o ensonhado,

A partir deste reler e debruçar-se sobre suas próprias


experiências e seu próprio texto em diálogo, também ali se aprofundava o olhar
para os gestos e os ritos da cultura. Ao fim de um tempo tem- um livro. Um
li TO com os 'bran o .. - 1 as o rfilando-
232

como recordações de mortos. Presença em espírito, ausências de came.


Vejamos como nesta fala se explicita o embate do aluno com sua dificuldade
de nomear um hoje sem invemos, como ele diz:

- "Eu olhando o que eu fiz estes dias vejo que quando eu falo da
infância, olha aqui, no começo da minha história, eu falo muito ... É cheio de
açude, de cheia, tem até invemo, olha aí...

o mundo todo, olhando bem, parecia um mverno só. Agora


quando eu tou no hoje, para cá, olha aí... É uma secura só. Não tem cor, figura,
assunto, letra ... Olha aí o brancão ...

Eu preciso enfrentar esse branco que dá quando eu vou falar do


hoje ...

Tenho de sair do branco ... senão como eu vou enfrentar essa


secura?

Olha, se eu não conseguir dizer essa ... esses ... essa ... Eu posso
botar meu sonho, não é?".

.
A fantasia: o Outro do existente. A travessia fácil para o invemo
sonhado. Se mun momento é um ponto de fuga, noutro pode ser um dos
possíveis.

Aos poucos destacando-se do mundo de que falam, as formas


expressivas vão suscitando um outro universo, com essência própria.
Descolando-se do real, a liberdade da fantasia aponta uma tensão como o
mundo de secura que ela quer sobrevoar. Por isso se diz que é trabalho em algo
que resiste.
233

Quanto maior o esvaziamento do sujeito, feito ao despossuí-lo


também de sua potência expressiva, mais se evidenciam os "brancos": nas
dramatizações, como nas pinturas. Os sentidos que conferem à realidade
também são esvaziados e a sensação que temos é a de chamar a uma porta em
que o dono da casa custa a acudir.

As histórias podem estender-se para os jogos dramáticos. O que


é mister anotar é que, além de modos de ser, está-se a aprofundar, pondo-os em
movimento, processos de pensamento e ação sociais. O levantamento dos ritos,
gestos e palavras da cultura, em diálogos com a versão simbólica das
experiências desses sujeitos autores, criam (explicitam) tensão entre os
modelos de socialidade vigentes (as condicionantes sociais) e os processos de
singularização (os processos de negação das subjetividades serializadas).

Isso deve tender para níveis de elaboração poética crescentes,


as referências novas das linguagens e expressões artísticas entrando para
potencializar o sujeito e não para sufocar sua fala expressiva. Tais diálogos de
intertextos inscrevem-se num construto que eu digo de educação da
sensibilidade. Poder-se-ia também dizer que aí estão postos elementos para
iniciarmos uma discussão (e encetarmos atuações) no sentido de uma
alfabetização estética, no 10 Grau. Foge aos objetivos deste trabalho, porém,
um detalhamento . desses ângulos, aqui em feixes dispersos ao longo da
dissertação.

Por enquanto, tentamos a escuta do onde a arte da Escola e


deparamo-nos com os limites extensos, duros, que acabei de apontar. A
dornesticação, na Escola, dirigida para o mundo do trabalho, na conformação
em que ele é posto para as classes trabalhadoras, alcança forjar as finas fibras
das subjetividades.
234

(O mundo do trabalho necessita de uma ante-sala - a Escola -


que inscreva na came e no espírito a idéia de se ser uma multidão sem face nem
nome).

Há matrizes nessa produção de subjetividade. Retomemos o


mosaico que venho desenhando.

Nas relações sociais na educação, vê-se um isomorfismo com as


relações de produção capitalista, como mostra Enguita.

A obsessão pela ordem, o modo de atacar-se os "fora de faixa"


e as "gangues", a montagem das restrições e penalidades, em nome de razões
"técnicas", de controle e ditas em consonância com ordens da administração
superior, tudo exercita a invocação de uma autoridade fora do grupo, a quem se
deve submeter. Assim, o professor passa a agir como com uma multidão sem
face.

"Tudo isso porque, quando deixar de ser Pedrinho para ser


Pedro, um trabalhador adulto terá que estar preparado para ser tratado como
assalariado, como votante, como usuário dos transportes públicos, etc., antes
que como Pedro, fora das relações familiares e de amizade. Se se converte em
garçom, será tratado como tal embora seja um grande conhecedor da filosofia
I

alemã ou guarde em casa um título de engenheiro; se ingressa no cárcere será


tratado como recluso embora possua urna alma sensível; se sobe no ônibus, terá
que pagar o preço da passagem embora por isso já não possa comprar pão.

Aprender a ser tratado com critérios 'universalistas' e


'específicos' é também aprender a tratar os demais com esses mesmos
critérios. O professor é o professor, não o pai de alguém; sua autoridade deve
s r respeitada, me mo que ci õ nao sejam as mai acertadas. Porque,
na ida aUUJI~u... . mbora ja um r tino, e é
235

garçom só servirá algo a quem possa pagá-Io e o pague, sem fazer descontos
aos amigos nem praticar a caridade com os que tem sede mas não dinheiro.
(ENGUITA, 1989: 169).

Assim também inscreve-se nos corpos a determinação dos fins


do trabalho por mna vontade alheia - a falta de pergunta pelos sentidos, a falta
de sentido e de pergunta. Submete-se o aluno às vontades alheias, o professor
sendo a própria norma, negando-se-Ihes ao mínimo seu poder organizativo. (As
Escolas que observei não mais tinham Grêmios). Um texto monovalente cresce
na relação com o conhecimento que é derivada desta forma de submissão e
ausência de sentidos para as atividades diárias. Assim, a aprendizagem da
alienação com relação ao processo de trabalho é exercida desde as primeiras
letras. Onde o ensaio dos grupos sujeitos em seus processos de singularização?
Onde processos de singularização? Onde a reflexão sobre o caminho do desejo
e a tarefa de pensar o pensamento? A aprendizagem assim passiva prepara este
mundo do sacrifício para o mundo do trabalho do modo como ele se dá para as
classes populares: exercício de se pôr diante do mercado como coisa. Esse
exercício de trabalho, com todas as características do trabalho forçado e
explorado do mundo adulto, é o modelo eleito nas práticas pedagógicas na
Escola. Nesse contexto, que dicotomiza trabalho e atividade livre, o que pode
entrar que remeta a um outro modelo de relações sociais?

Se o sistema disciplinar baseia-se em diagnósticos


individualizados (aí sim, abandona-se o tratamento maciço), onde se confere ao
fracasso escolar o tom de sina pessoal, inaptidão, inépcia - como fazer
funcionar um exercício de diálogo entre textos, entre texto pessoal e história,
entre os modos de ser da cultura expressos nas várias modalidades artísticas?

Como fazê-los sentir o prazer de expressar-se no grupo, de


ensaiar uma obra, de e rp rimentar o sentido em sua polissemia, em meio à
p lifonia das voz a e io e alegria é noutro lugar? (A rígida
236

dicotomia, antecipada desde já, entre tempo livre e trabalho? Se o mundo do


trabalho é sem sentido, não gratifica e a Escola é a preparação para ele, como
considerar neste sujeito que aprende dimensões silenciadas pela unilateral idade
desse "homo ceconomicus" coisificado? Para onde se deslocarão os conflitos da
organização do trabalho e das relações de produção, das finalidades do que se
produz e como? Para o mundo do consumo.

Assim como, na Escola, não se tomam as dimensões do sujeito


que aprende como expansões que gratificam, o gozo pula os muros e sai às ruas
e quintais, como vimos nos rituais. As motivações, o prazer de conhecer o
mundo é retirado do processo de aprendizagem e colocado noutro lugar. As
motivações no longe do futuro, o prazer no extramuros. A estetização vai para
a esfera do consumo, aonde a indústria cultural narcotiza as possibilidades de
formação de subjetividades não maquínicas, não serializadas.

Não é coincidência que o surgimento da chamada sociedade de


consumo se deu no mesmo período em que o desenvolvimento das forças
produtivas chegava ao auge da produção em série e da alienação no processo
de trabalho. O mimetismo dessa ordenação do trabalho escolar com o sistema
produtivo vai sedimentando representações que se tornam forças vivas, reais.

.
Já se alinhou, ao longo deste texto de dissertação, quão
insidiosas são estas formações culturais e sistêmicas, que chegam a imiscuir-se
mesmo na estrutura mais profunda das subjetividades. A minha própria
produção cultural, nesse período do estágio, transbordou para as margens: o
musical "Míria ou Lá se Vem a Lua, Quem te disse que Ela é Tua" e a peça
para atores e bonecos "Fiapo - a silenciosa canção das coxias" alentaram meu
coração dos ensonhados nunca tidos. Nesse campo crestado de fogos tão
vários, entretanto, a necessidade da arte fala seu incansável amor pelos
possí eis. Eu ainda escuto essa música. É através do esforço de enxergar essas
23

dimensões silenciadas que se toma mais premente o desejo e a ação de mudá-


Ias.

Afinal, a formação cultural, devendo ser um antídoto para a


reificação da consciência, não pode passar a ser um tóxico lesivo.

Admitir o campo do desejo, e essas dimensões represadas nele,


tomando consciente os mecanismos da libido, é não deixar que essas forças
cegamente nos devolvam à barbárie. Desconstruir a personalidade autoritária e
os mecanismos institucionais, que a alimentam e sustentam na Escola é
desbarbarizar o indivíduo e o coletivo. Restabelecer o caminho da autonomia,
da educação como esclarecimento e crítica autoreflexiva da violência
camuflada de ideologia é romper com o consciente coisificado e recolocar o
sujeito pensante no centro de seu processo de fonnação cultural.

A arte pode deixar ouvir essas dimensões esquecidas e, através


da obra, fazer falar o que a ideologia oculta.

Ela pode proteger a película fina que protege a Infância e a


abriga no seu direito de expandir-se, ser e sonhar.

.
A arte que estaria também na Escola migra para as ruas e os
fundos de quintais - porque para lá também se vão dimensões silenciadas.

De sujeitos das nossas histórias, narradores e personagens que


dialogam com outros textos, passamos a ir calando nossa potência de
sabedoria. Walter Benjamin diz que aconselhar é menos resposta a uma
pergunta que estímulo, sugestão para a continuação da história e de outras
narrações, que história é um jeito inventado de pensar e contar coisas que
caminham.
2

... "O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se


'dar conselhos' parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão
deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos
nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuidade de uma história que está
sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a
história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida
em que verbaliza a sua situação).

O conselho tecido na substância da existência tem um nome:


Sabedoria." (BENJAMIN, 1987:131).

Agora um caminho encontra o outro e aí se fundem: conhecer é


situar-se na cultura. A sensibilidade sendo este tortuoso e doce caminho que se
faz entre sujeito e obra, num mesmo mar de águas diversas.

o caminho da sensibilidade, hoje, deve confrontar-se com os


dois rios sinuosos por onde correram os discursos sobre estética: um, alocava-
se no artefato e socorria-se das investigações sobre formas e materiais; outro
alentava-se com o estudo da psique do criador ou do receptor. Penso ser
necessária a ponte sobre os dois rios de águas turvas. A ponte: estas vozes da
obra e da história, dos ouvintes, dos autores, dos heróis, e dos leitores que
I

dialogam. Polifonia de vozes suscitando e deixando deslizar os sentidos em


suas migrações. Em sua plurivalência - condição para a obra de arte existir. O
diálogo entre os textos - significantes diversos - poderia morar nessa ponte
sobre águas: homem e obra.

Como diz Bakhtin:

A signifi a ão ão e tá na palavra nem na alma do falante nem


da do in riocutor. É o ereno p or ó a torren da
2"9

comunicação verbal fomece à palavra a luz da sua significação" (BAKHT


1988: 138). Essa análise estética da criação verbal, polifônica, dialógica
poderia ser uma referência para subsidiar as relações do criador e receptor com
a obra de arte. Autores e textos (nas várias linguagens e modalidades da arte)
dialogando com a história, entre si e os sujeitos da prática educativa na Escola.
Pronto: daí tiraremos o ponto do arremate. Sujeito.

Na verdade, vejo que, ao final desse percurso, pareço advogar


menos urna nova concepção de arte na Escola (embora pareça-me que demos
elementos neste sentido), que uma nova concepção de Criança. Creio mesmo
que, ao levantar o lugar onde a arte está na Escola acabei por chegar a pensar
uma nova concepção de sujeito das práticas educativas. Ao pensar o caminho
tortuoso e doce da sensibilidade tentei trazer a centralidade da noção de sujeito
(omnilateraI) às práticas educativas da Escola. Seria isso possível?
240

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