2019 MarianaAguiarVieira TCC
2019 MarianaAguiarVieira TCC
2019 MarianaAguiarVieira TCC
Faculdade de Direito
BRASÍLIA
2019
13/0033111
BRASÍLIA
2019
Mariana Aguiar Vieira
3
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Wilson Roberto Theodoro Filho
Universidade de Brasília
(Orientadora)
______________________________________
Profa. Dra. Gabriela Garcia Batista Lima Moraes
Universidade de Brasília
(Avaliadora)
_____________________________________
Prof. Dr. Henrique Smidt Simon
Universidade de Brasília
(Avaliador)
4
RESUMO
ABSTRACT
The study of Law and Literature aims interpret legal questions from their representations on
literary texts. The dialogue between these two areas of knowledge, because of their similar
characteristics as well as their differences, has the objective of provoking reflections when
the legal theory is put under different optics. With this intent, this essay promotes the meeting
between the fantastic universe created by J.K. Rowling in the Harry Potter books and the
political theory of Carl Schmitt. The idea is to analyze fictional structures with the author’s
concepts about Exception State, sovereignty, dictatorship and democracy, seeking to reveal
nuances and questions that may arise in this dialogue.
Keywords: Law and Literature; Carl Schmitt; Sovereignty; Exception State; Harry Potter
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………………….07
1.3. Quinto, sexto e sétimo livros: mudanças na ordem política dos bruxos……………...23
2.1. Soberania……………………………………………………………………………………...32
4. Considerações Finais………………………………………………………………………...66
Referências…………………………………………………………………………………….69
7
Introdução
Por certo que Ost não propõe uma fusão entre o direito e a literatura, nem que
um tenha grau de importância superior ao outro. Ao contrário: Ost deixa claro que
não segue a orientação norte-americana de considerar o direito como “narração”,
ou de defender que a literatura dita o direito, mas de identificar o direito existente
na literatura, como forma de exemplificação do próprio imaginário jurídico que
acaba por influenciar o imaginário social de uma comunidade política. Nesse
1 TRINDADE, André Karam. Kafka e os paradoxos do direito: da ficção à realidade. Revista Diálogos do
Direito. 2017. p. 138
2 Ibid., p. 147-150.
3 Ibid, p. 148
8
4 DE MIRANDA, Roberta Drehmer. François Ost e a hermenêutica jurídica – um estudo de Contar a Lei.
Direito & Justiça - Revista de Direito da PUCRS. 2011. p. 32.
5 POTTERMORE. 500 million Harry Potter books have now been sold worldwide. [S.I] 2018. Lista de
títulos da série, por data de publicação: Harry Potter e a Pedra Filosofal (1997); Harry Potter e a Câmara
Secreta (1998), Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (1999); Harry Potter e o Cálice de Fogo (2000);
Harry Potter e a Ordem da Fênix (2003); Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2005); Harry Potter e as
Relíquias da Morte (2007).
9
podem ser fantasia, mas o que eles realmente fizeram foi levar a literatura infantil para o
reino do realismo emocional”6.
Assim, pode-se afirmar que grande parte da popularidade da série advém do fato
que, apesar de ambientada em um universo fantástico, ela perpassa diversos assuntos
bastante reais, inclusive relacionados ao direito e à política. E, considerando que a
literatura tem um papel na formação do imaginário coletivo do direito, uma obra como
Harry Potter, com tamanho alcance popular e tamanha relevância em seu gênero literário,
certamente passa a compor esse imaginário coletivo, e, portanto, merece ser analisada
sob a ótica do Direito e Literatura.
O cenário fictício da saga apresenta uma estrutura governamental, chamada
Ministério da Magia, que será o foco das análises deste trabalho. Esta instituição é
mostrada, ao longo dos livros, em diversos momentos políticos, criando um cenário rico
para análise sob vários campos da teoria jurídica e política. No presente estudo, foi feita
a escolha de realizar esta análise a partir dos conceitos de Estado, ditadura, soberania e
democracia trabalhados por Carl Schmitt.
A escolha deste autor foi feita por seu enfoque no estudo do Estado de exceção,
que se faz relevante na política conturbada do universo fictício. Seus modelos de ditadura
e suas concepções sobre democracia, que percebem a ordem estatal como prevalente à
ordem jurídica, podem ser usados como lentes para observar o autoritário governo fictício
da obra de J.K. Rowling. Com isso, o objetivo deste trabalho é provocar questionamentos
e reflexões a partir do choque entre o mundo da literatura e a teoria política.
Para atingir este objetivo, dividiu-se o trabalho em três partes. O primeiro capítulo
dedica-se a explicar o universo de Harry Potter, focando nas questões políticas e nas
estruturas de suas instituições governamentais, apresentando o contexto da trama na
medida de sua relevância para a compreensão dessas questões. O segundo capítulo
apresenta os conceitos de Schmitt que serão trabalhados, buscando compreender sua
argumentação. Primeiramente, a definição de soberania, que é fundamental para a
compreensão dos dois modelos de ditadura, comissária e soberana, que são mostrados
em seguida, e ao fim algumas considerações sobre a democracia, a divisão de poderes
6 BEARN, Emily. Harry Potter at 20: how the series rewrote the book on children's literature. The
Telegraph, junho de 2017. Texto original: “The Potter books may have been fantasy, but what they really
did was to bring children’s books into the land of emotional realism.”
10
Harry Potter é uma série de sete livros, ambientada na Inglaterra, em que se conta
a estória de um menino que descobre possuir poderes mágicos e vive uma sequência de
aventuras ao encontrar seu lugar na sociedade bruxa. Ele entra para uma escola de
magia, chamada Hogwarts, e cada livro se passa no decurso de um ano escolar, de modo
que o leitor acompanha o crescimento do protagonista, que começa como uma criança e
a termina com dezessete anos. E, como os livros seguem sua perspectiva, o leitor
descobre o universo fantástico ao mesmo tempo que Harry.
A saga mostra uma sociedade mágica que vive escondida em meio à sociedade
não-mágica, chamados de “trouxas”. Os bruxos britânicos se organizam politicamente no
Ministério da Magia, um órgão que aparece na estória como bastante burocrático,
hierarquizado, mas nem sempre eficiente. O Ministério é dividido em Departamentos, que
são apresentados ao leitor no quinto livro da série, quando o protagonista visita pela
primeira vez o local onde este funciona.
Estes departamentos são: Departamento de Execução das Leis da Magia,
Departamento de Acidentes e Catástrofes Mágicas, Departamento para Regulamentação
e Controle das Criaturas Mágicas, Departamento de Cooperação Internacional em Magia,
Departamento de Transportes Mágicos, Departamento de Jogos e Esportes Mágicos.
Além destes, o prédio abriga o gabinete do Ministro da Magia; o Departamento de
Mistérios, que parece ser um local para pesquisas e testes de magias experimentais; e
no último nível há salas nas quais acontecem julgamentos da Suprema Corte dos Bruxos
7.
7ROWLING, J.K. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p.
108-113.
12
internet afirma que a Suprema Corte dos Bruxos funciona como uma combinação de
Judiciário e Parlamento.8
A vida jurídica da comunidade bruxa parece acontecer primordialmente através do
Ministério da Magia, que é introduzido aos leitores pela primeira vez logo no começo do
primeiro livro da saga, no seguinte trecho:
Apresentando dessa forma, a autora deixa claro para os leitores que a principal
função desta instituição é manter sua sociedade em segredo dos trouxas, aqueles que
não possuem magia. Além disso, ela já introduz no texto críticas dos personagens à forma
como o Ministério é administrado, e ao longo dos livros essas críticas se fazem cada vez
mais presentes.
Em uma leitura mais atenta da forma como o personagem se refere ao cargo ser
oferecido a alguém, percebe-se que a escolha do Ministro da Magia não parece ser feita
por meio de eleições. Outro conteúdo que a autora publicou em sua página da internet
afirma que o Ministro da Magia é eleito democraticamente, exceto em tempos de crise10.
11
Idem, Harry Potter e a Câmara Secreta. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 16-17
12 Idem. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 130
13 Ibid., p. 20
14 Ibid., p. 21
14
15
Ibid., p. 28
16 Ibid., p. 34
17 Ibid., p. 70
18 Ibid., p. 168
15
19 ibid., p. 90
20 Ibid., p. 195-196
16
objeções contra essa medida, mas seus protestos não são levados em conta, e fica claro
que este assunto está fora de sua competência21.
É também neste livro mencionada pela primeira vez a prisão dos bruxos, Azkaban,
mas apenas no terceiro livro o sistema prisional bruxo entra em evidência. Neste volume,
porém, já começa a ficar bastante visível o quanto a administração do Ministério é volúvel
e dependente da opinião pública. Não há nenhuma evidência de quem seria o
responsável pelos ataques que têm acontecido na escola, mas ainda assim um
personagem é levado pelo Ministro e mantido sob custódia, simplesmente porque o
Ministério precisa ser visto fazendo algo.
O Ministro admite que está realizando essa espécie de prisão preventiva apenas
para manter a aparência de que o Ministério está tentando resolver o problema, mas nada
é feito para realmente resolver alguma coisa. O Ministério dispõe de aurores, o
equivalente à força policial bruxa, mas nenhuma equipe desses bruxos é colocada nos
terrenos da escola para investigar os ataques, e não parece ser instaurado nenhum tipo
de processo que legitime a prisão de Hagrid. Mais tarde, Harry fica sabendo que ele
passou dois meses em Azkaban, até que o atacante verdadeiro fosse descoberto23.
21 Ibid., p. 196-197
22
Ibid., p. 195
23
Idem, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p.
34.
17
crime24. Neste livro, são introduzidos os guardas da prisão dos bruxos: Dementadores,
criaturas mágicas que sugam a felicidade de todos à sua volta, e são capazes de sugar
a alma de uma pessoa para sempre. Essa é a punição mais severa existente no mundo
bruxo, descrita como algo pior que a morte25. Todos os encontros do protagonista com
Dementadores são descritos como uma experiência horrível, e ao longo da saga é
mostrado que é comum prisioneiros enlouquecerem e morrerem dentro da prisão.
Tendo isso em vista, aprisionar alguém em um lugar cheio dessas criaturas é uma
punição bastante severa, e não parece razoável que alguém em prisão preventiva passe
dois meses ali, especialmente na situação do livro anterior, em que não houve nenhum
tipo de investigação ou qualquer indicação de um devido processo. No livro seguinte, é
revelado que Sirius Black também foi preso sem julgamento, e que isso não foi uma
prática incomum no período de sua prisão26.
Ao fim do terceiro livro, os heróis descobrem que Black era inocente, e havia sido
incriminado pelo verdadeiro culpado. Quatro testemunhas presenciaram o momento em
que o verdadeiro culpado foi encontrado e confessou seu crime, antes de fugir. Ainda
assim, Sirius Black foi capturado novamente e nenhuma das testemunhas foi ouvida: três
delas eram crianças de treze anos, e a quarta era um lobisomem, raça que é tratada com
extremo preconceito e desconfiança dentro da sociedade bruxa. Uma única pessoa
acreditou neles, Dumbledore, o diretor de Hogwarts, e como uma figura proeminente na
política bruxa, membro da Suprema Corte dos Bruxos, ele teria capacidade de atuar
juridicamente a favor da inocência de Sirius Black27.
No entanto, Dumbledore optou por deixar que o Ministério continuasse acreditando
que ele era culpado e entregou um objeto mágico de viagem no tempo a duas crianças e
as enviou para libertá-lo ilegalmente28. Sua motivação para agir à margem da lei não fica
explícita no texto, mas é possível observar durante toda a saga que os heróis têm pouca
confiança na capacidade ou interesse do Ministério de resolver seus problemas, e em
vários momentos a história ressalta a falta de idoneidade da instituição como um todo.
24 Ibid., p. 33-34
25
Ibid., p. 184
26 Idem, Harry Potter e o Cálice de Fogo. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 417
27 Idem, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, 2000. p. 270-288
28 Ibid., p. 289
18
Neste mesmo livro, há uma trama que ilustra muito bem essa postura do Ministério,
e é também muito interessante do ponto de vista jurídico. Ocorre um acidente durante
uma aula em que uma criatura mágica, denominada hipogrifo29, ataca um aluno30. O
garoto feriu-se apenas superficialmente, mas seu pai apresenta uma queixa ao conselho
diretor da escola31. O professor responsável pelo hipogrifo não é culpado pelo incidente,
mas o conselho acolhe a reclamação do pai do aluno e encaminha o caso para a
Comissão de Eliminação de Criaturas Perigosas32.
Uma audiência é marcada para decidir o destino do hipogrifo, e durante os
capítulos seguintes, os protagonistas acompanham esse processo e ajudam o professor
a preparar a defesa. A audiência não é mostrada no texto, mas o professor sai perdendo
e seu hipogrifo é condenado à execução. No diálogo em que isso é exposto, os
personagens alegam que Lucius Malfoy, o pai do garoto que foi ferido pela criatura,
provavelmente manipulou a comissão para obter esse resultado. Contudo, ainda há a
possibilidade de recurso, e novamente os protagonistas ajudam a pesquisar casos
anteriores que lhes fossem favoráveis33.
O julgamento do recurso, que se passa já com a presença do carrasco designado
para executar o hipogrifo, também resulta na condenação do animal, e os personagens
comentam que a decisão já estava previamente tomada e havia sido manipulada ou
subornada34. Essa trama ressalta bem duas críticas à vida jurídica no mundo bruxo: a
falta de idoneidade do Ministério, e a ironia presente no fato de que um animal
aparentemente teve mais direito à ampla defesa e devido processo legal, por mais
parciais que sejam, do que tanto Hagrid quanto Sirius Black, ambos personagens
inocentes que foram presos injustamente em um lugar que literalmente enlouquece as
pessoas que permanecem ali.
Quanto ao aspecto político, é interessante notar que todo esse processo
aparentemente jurídico, o único mostrado na série que conta com audiências e recursos,
29 Uma criatura com o corpo, as patas traseiras e a cauda de cavalo, e a parte dianteira do corpo lembra
uma águia gigantesca, com garras, bico e asas. (Ibid., p. 87)
30 Ibid., p. 90-91
31
Ibid., p. 95
32 Ibid., p. 162-163
33 Ibid., p. 216-217
34 Ibid., p. 233
19
é conduzido por um órgão administrativo do Ministério. Esse fato traz novamente à tona
o questionamento se há ou não alguma separação dos poderes no governo bruxo.
Além disso, é novamente abordada a questão da relativa independência da
administração da escola em relação ao Ministério da Magia. Com a trama da fuga de
Sirius Black, o Ministério coloca Dementadores, os guardas da prisão dos bruxos, nos
arredores da escola e no vilarejo vizinho, à procura do prisioneiro. Durante o livro, é
mostrado que o Ministério gostaria de alocar esses guardas dentro do terreno da escola,
mas é impedido pelo diretor35.
É também no terceiro livro que ocorre a segunda ocasião em que o protagonista
viola o Estatuto de Sigilo em Magia. Harry perde o controle de sua magia quando uma
suas tias, que não é bruxa, fala mal de seus pais falecidos, e involuntariamente faz essa
tia inflar como um balão e sair voando pela vizinhança. Ele fica imediatamente apavorado
com as consequências de seus atos, afinal, no ano anterior tinha sido avisado que seria
expulso da escola se mais alguma magia fosse detectada no local de sua residência36.
O personagem então foge dali para uma pousada bruxa, mas assim que chega
em seu destino se depara com o Ministro da Magia esperando por ele. Em vez de lhe
informar sobre sua punição, como Harry imaginava que ele faria, o Ministro apenas lhe
informa que o Ministério já resolvera o problema de sua tia, fazendo-a voltar ao normal e
apagando sua memória. Quando Harry questiona se não seria castigado pela violação, o
Ministro responde que as circunstâncias haviam mudado37:
– Eu desobedeci à lei! – disse Harry. – O decreto que proíbe o uso da magia aos
menores!
– Ah, meu caro menino, nós não vamos castigá-lo por uma coisinha à toa como
essa! – exclamou Fudge, agitando o pãozinho com impaciência. – Foi um
acidente! Nós não mandamos ninguém para Azkaban por fazer a tia virar um
balão!
Mas isto não batia com os contatos que Harry tivera anteriormente com o
Ministério da Magia.
– No ano passado, recebi uma notificação oficial só porque um elfo doméstico
largou um pudim no chão da casa do meu tio! – disse ele a Fudge, franzindo a
testa. – O Ministério da Magia disse que eu seria expulso de Hogwarts se
acontecesse mais um caso de magia por lá!
A não ser que os olhos de Harry o enganassem, Fudge de repente parecia pouco
à vontade.
35 Ibid., p. 152
36 Ibid., p. 26-28
37 Ibid., p. 37
20
Nessa cena, Harry, com apenas treze anos, começa a perceber incoerências na
administração do Ministério. A infração ao decreto cometida nesse livro deveria ser mais
grave que a anterior, não apenas pela reincidência, mas por ter exposto trouxas a magia
de forma mais significativa. Pela lógica, ele deveria ter sido punido de alguma forma. E o
Ministro justifica a falta dessa punição dizendo apenas que as circunstâncias mudaram.
Interessante notar que não foram as normas que mudaram, e sim as
circunstâncias. O Estatuto de Sigilo e o decreto que proíbe uso de magia por menores,
até onde podemos saber, permanecem inalterados, mas outros fatores levaram o Ministro
a ignorar essas normas e não punir Harry. Um pouco adiante na história, é possível
entender o motivo: todos pensam que Sirius Black, o prisioneiro cuja fuga move a trama
deste livro, tem como objetivo matar o protagonista. E, como Harry é uma figura famosa
no mundo bruxo, por ter sido ainda bebê responsável pela queda de Voldemort, o grande
vilão da saga, a fuga de Sirius Black compele o Ministério a ter um grande interesse em
proteger o garoto.
O quarto livro da saga traz mais algumas nuances ao funcionamento da vida
jurídica bruxa. Neste livro, os leitores podem ter uma visão um pouco mais aprofundada
do que aconteceu no passado, durante a ascensão de Voldemort, o vilão da história,
primeiramente através do relato de Sirius Black, que destaca alguns detalhes muito
interessantes:
38 Ibid., p. 38
21
Essa é uma visão muito interessante, e pode levantar várias questões jurídicas e
morais acerca do combate ao crime, mas neste trabalho será explorado o enfoque político
dos conceitos Schmittianos sobre exceção e soberania. Além desse relato, no quarto livro
também são mostrados três julgamentos realizados no passado, pouco depois da queda
de Voldemort, em que vemos com mais detalhes os procedimentos penais desse período
conturbado descrito acima.
Os três julgamentos mostrados parecem ser excepcionais, cada um de sua
maneira, confirmando o relato acima de que a maioria das prisões feitas na época não
passavam por julgamento. O primeiro foi uma audiência de delação, em que o réu já
havia passado algum tempo na prisão e tentava reduzir sua pena. O segundo, uma forma
de legitimar a absolvição de um esportista famoso e popular. O terceiro era o julgamento
do próprio filho de Crouch, o que não parece ter representado nenhum impedimento para
ele presidir a sessão, e é descrito que ele apenas realizou este julgamento para
publicamente renegar seu filho pelos crimes que cometera40.
As audiências são conduzidas pelo chamado Conselho das Leis da Magia, órgão
que apenas é citado nesse momento da narrativa e do qual não se tem mais informações.
Nenhuma dessas audiências parece realmente imparcial, e o procedimento não fica claro
em nenhum momento. Não aparece neles nenhuma figura de acusação nem de defesa,
mas como é mostrada apenas uma parte de cada audiência, não é possível afirmar muito.
Há um júri, mas não é possível saber como é feita sua composição ou a que regras ele
obedece, apenas que seus votos são individualmente computados no momento do
julgamento, apenas levantando a mão aqueles que concordam com a sentença.
1.3. Quinto, sexto e sétimo livros: mudanças na ordem política dos bruxos
O quinto livro da saga explora mais a fundo dois aspectos políticos e jurídicos do
mundo mágico. O primeiro deles surge logo no início do livro, em que Harry viola o
Estatuto de Sigilo da Magia pela terceira vez, forçado pelas circunstâncias a
conscientemente utilizar um feitiço no meio de uma vizinhança trouxa, para defender a si
mesmo e a seu primo, que não possui magia, de um par de Dementadores que os atacou.
As únicas testemunhas foram o próprio primo, que já sabia da existência do mundo
mágico, e uma vizinha que também fazia parte da comunidade mágica41. Considerando
isso, e o fato de que o feitiço foi utilizado em legítima defesa, essa deveria ser uma
infração relativamente mais leve que a anterior.
Contudo, as circunstâncias haviam mudado novamente. O Ministério, que dois
anos antes precisava ser visto protegendo Harry, agora estava empenhado em manchar
a imagem do herói. Isso porque, ao fim do livro anterior, o vilão Voldemort volta à vida, e
Harry foi o único a presenciar este acontecimento. Ele e seus aliados tentam alertar a
comunidade bruxa do perigo, mas o Ministério da Magia não está receptivo a essas
notícias, pois queria evitar o pânico e instabilidade que certamente acompanharia o
retorno do bruxo das trevas. O Ministério tenta ignorar o problema, e, portanto, se
empenha para desacreditar Harry e seus aliados, manipulando a imprensa para manchar
sua reputação42.
Assim, quando ele pratica novamente magia em frente a trouxas, o Ministério tenta
efetivar imediatamente sua expulsão e confiscar sua varinha mágica, mas Dumbledore
consegue impedir a ação imediata e garantir que a situação seja resolvida em uma
audiência no Ministério43. Antes da audiência, os aliados de Harry lhe dizem que “a lei
está ao seu lado” e que mesmo menores de idade têm permissão para usar magia em
legítima defesa44.
Ele é informado de que a audiência será na sala da Chefe do Departamento de
Execução das Leis da Magia, que seria a responsável por interrogá-lo. Quando chega ao
Ministério, porém, recebe a notícia de que o horário da audiência foi adiantado, de modo
que o garoto chega atrasado, e sua localização havia mudado para uma sala de tribunal
usada nos julgamentos penais que foram mostrados no livro anterior. E, em vez de ser
entrevistado pela chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia, ele foi julgado
pela Suprema Corte dos Bruxos, presidida pelo próprio Ministro da Magia45.
Dumbledore aparece como sua “testemunha de defesa”, apesar de agir como um
advogado durante a audiência, o que é interessante, uma vez que nenhum dos
julgamentos mostrados no livro anterior mostrou qualquer figura com esse papel. No
42
Ibid., p. 64-65
43 Ibid., p. 27-32
44 Ibid., p. 103
45 Ibid., p. 112-115
24
diálogo, fica implícito que o Ministro não esperava que Dumbledore comparecesse,
dando a entender que a mudança de horário tinha este propósito46.
Quando Harry conta sua versão dos fatos, o Ministro nem sequer tenta esconder
sua parcialidade, desdenhando o depoimento do garoto e acusando-o de estar apenas
buscando atenção da mídia. Dumbledore, contudo, apresenta uma testemunha, a vizinha
que presenciou o fato. O Ministro tenta impedir a oitiva da testemunha, dizendo que não
tem tempo para mais lorotas, mas Dumbledore argumenta que a Carta de Direitos da
Suprema Corte garante ao acusado o direito de apresentar testemunhas de defesa47.
Mesmo após ouvir a testemunha, o Ministro permanece tentando invalidá-la,
questionando a veracidade de seu relato. Em seguida, passa a atacar diretamente a
reputação de Harry, acusando-o de inventar histórias fantásticas para encobrir suas
infrações anteriores ao Estatuto de Sigilo, mas quando Dumbledore aponta testemunhas
que poderiam comprovar a veracidade das alegações de Harry, o Ministro recusa-se a
ouvi-las48. Ele prossegue tentando imputar mal comportamento ao garoto, e o seguinte
diálogo ocorre:
46
Ibid., p. 116-117
47 Ibid., p. 119
48 Ibid., p. 122-124
49 Ibid., p. 125
25
50
Ibid., p. 179
51 Ibid., p. 222-223
52 Idem, Harry Potter e o Cálice de Fogo, 2001. p. 410
53 Idem, Harry Potter e a Ordem da Fênix, 2003. p.603
26
54
Ibid., p. 255-257
55 Ibid., p. 291-474
56 Ibid., p. 507-508
57 Ibid., p. 484-485
27
Além disso, com o boato de que Harry, de acordo com as profecias, seria aquele
com poder de deter Voldemort, o novo Ministro da Magia tenta abordá-lo e pedir para que
ele apareça algumas vezes entrando e saindo do prédio do Ministério, para parecer que
está colaborando com eles nos esforços para capturar os bruxos das trevas. O Ministro
afirma que não faria diferença se Harry seria de fato destinado ou não a destruir o vilão,
58 Idem, Harry Potter e o enigma do Príncipe. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 18
59 Ibid., p. 36-38
60 Ibid., p. 259-260
28
contanto que isto fornecesse esperança às pessoas para pensar que ele estaria
trabalhando com o Ministério61.
Já no sétimo e último livro da série, logo em seu início, Voldemort executa um
golpe de estado, assassinando o Ministro da Magia e tomando controle do Ministério62.
Neste livro, o foco da narrativa é a tarefa que Harry possui de destruir o vilão, de modo
que pouca atenção é dada ao Ministério. Contudo, nos momentos em que ele é mostrado,
fica aparente que pouca coisa mudou de fato em sua organização. Em uma passagem
em que os protagonistas invadem o prédio do Ministério, é mostrado que a estrutura de
departamentos e suas funções permaneceram inalteradas63. O relato de um personagem
sobre a situação política pode confirmar esta ideia:
Isso mostra que não houve uma revolução de fato, nenhuma mudança no sistema
político, apenas em como ele era administrado. O Ministério continua manipulando a
imprensa, realizando prisões sem julgamento, e monitorando os meios de transporte e
de comunicação mágicos, com a única diferença de que essas estruturas de poder
passam a ser usadas pelo grupo que, anteriormente, elas tentavam combater.
A mudança mais relevante na ordem jurídica, ao que tudo indica, foi a criação de
uma Comissão de Registro de Nascidos Trouxas, que tinha o propósito de confiscar as
varinhas mágicas dos bruxos que não forem capazes de comprovar possuir ao menos
um ascendente bruxo. Essa comissão era justificada pela ideia de que os verdadeiros
bruxos eram apenas aqueles com ascendência mágica, e foi oficialmente apresentada
uma descoberta “científica” para corroborar essa ideia65.
61 Ibid., p. 268-273
62 Idem, Harry Potter e as Relíquias da Morte. Tradução: Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
p. 129
63 Ibid., p. 193-195
64 Ibid., p. 166
65 Ibid., p. 167
29
66 Ibid., p. 204-208
30
Horizonte, Dez./2008. p. 402. Como exemplos de ambas as condutas, o autor cita, respectivamente,
Carles Yves Zarika e Julien Freund.
69 Ibid., p. 402
70 Ibid., p. 403.
31
vida e a obra de Schmitt permanece aqui como uma questão a ser considerada, e que
pode lançar uma perspectiva interessante à análise da obra literária, mas que não tomará
a frente da discussão.
Neste trabalho, buscamos os conceitos schmittianos de soberania e Estado de
exceção, assim como seus modelos de ditadura, comissária e soberana. Para isso, o
estudo concentrou-se nos textos Teologia Política e La Dictadura, buscando também
alguns outros autores que comentaram essas obras. Além disso, foram feitos alguns
apontamentos sobre “A situação intelectual do sistema parlamentar atual”, em que o
autor explora algumas questões sobre seu conceito de democracia e pontua questões
interessantes sobre separação de poderes, que podem acrescentar algumas nuances à
análise da obra literária. Ao fim, um ponto relevante do “Conceito do Político” é levantado,
amarrando as ideias anteriores.
2.1. Soberania
A ideia clássica de soberania, elaborada por Jean Bodin no século XVI e ainda
relevante, define a soberania como o poder perpétuo e absoluto. O poder soberano não
é derivado de nenhum outro, e, sim, é dele que os outros poderes derivam. Isso quer
dizer que o soberano não é necessariamente o governante, por maiores que sejam seus
poderes, mas aquele de quem o poder do governante deriva. “O soberano é o povo, ou,
na monarquia, o príncipe”71.
Como exemplo disso, Schmitt menciona o ditador romano, que não era soberano
pois sua função lhe era conferida para cumprir um objetivo específico, como reprimir uma
rebelião ou conduzir uma guerra, e uma vez cumprido o objetivo sua função se extinguia.
Também uma assembleia constituinte não seria soberana, porque apesar de ter
prerrogativa de alterar toda a ordem política e jurídica do Estado, seu poder se extingue
uma vez promulgada a Constituição. Ambas essas situações, tanto da ditadura romana
quanto da constituinte, serão trabalhadas de forma mais extensa nos próximos tópicos,
71
SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta
la Lucha de Clases Proletaria. Trad.: José Díaz García. Madrid: Alianza Editorial, 2003. p. 58.
32
servindo aqui apenas para ilustrar a ideia de que o soberano é aquele do qual o poder do
Estado deriva.
Schmitt toma como base esta definição ao apresentar seu conceito de soberania
como o poder de decidir sobre o Estado de Exceção. Com tal associação, ele define a
soberania como um conceito-limite, ou seja, um conceito que não surge da normalidade,
mas de uma situação limite, uma situação extrema, sendo o Estado de exceção este caso
limite72. Ele argumenta que a ordem jurídica pressupõe um estado homogêneo de
normalidade, ou seja, primeiramente é necessário haver uma ordem para que o direito
possa existir, pois não seria possível aplicar norma alguma no caos. O soberano,
portanto, é quem decide se essa situação de normalidade se faz de fato presente73.
O soberano, portanto, é aquele que traça o limite entre normalidade e exceção. A
decisão soberana define a existência e a essência da situação de normalidade sobre a
qual a ordem jurídica irá se estabelecer, em que circunstâncias e de que forma o direito
será aplicado nessa normalidade. E, por conseguinte, define também o que foge a essa
normalidade, ou seja, quando e como a ordem jurídica perde sua aplicabilidade, e o que
deve ser feito para retornar à normalidade. Ou seja, o Estado de exceção seria aquele
em que a ordem jurídica recua para preservar a ordem, e o soberano é aquele que decide
sobre este afastamento.
Diante de um caso extremo ela [a jurisprudência] se sente confusa, pois nem toda
atribuição excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial policial é um
Estado de exceção. É preciso muito mais do que isso para a atribuição de um
poder em princípio ilimitado, isto é, capaz de suspender toda a ordem vigente.
Assim que essa condição se instala, torna-se claro que o Estado continua
existindo, enquanto o direito recua. Como o Estado de exceção ainda é algo
diferente da anarquia e do caos, no sentido jurídico a ordem continua subsistindo,
mesmo sem ser uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém, nesse
caso, uma indubitável superioridade sobre a validade da norma jurídica. A
decisão liberta-se de qualquer ligação normativa e toma-se, num certo sentido,
absoluta. No caso da exceção o Estado suspende o direito em função de um, por
assim dizer, direito à autopreservação74 (grifo nosso)
72 SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. Trad.: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996. p.
87
73 Ibid., p. 93
74 Ibid., p. 92
33
75Ibid., p. 93
76THEODORO FILHO, Wilson Roberto. O Abandono da Constituição: Soberania e Poder Judiciário no
paradigma biopolítico. Tese (Doutorado em Direito) - UnB. Brasília. 2011.
77
SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. Trad.: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996. p.
96
78 Ibid., p. 70
34
enxerga que o Estado e sua Constituição são uma coisa só, que representa a unidade
da ordem jurídica. Seguindo parecido raciocínio, Krabble conclui que o direito, e não o
Estado, é soberano79. Segundo ele, essa seria a ideia moderna do Estado, ter um poder
intelectual no lugar de um poder pessoal. Estas teorias defendem a impessoalidade e
objetividade, e defendem que nenhuma pessoalidade deve fazer parte do conceito de
Estado, para que subjetivismo não tome o lugar da norma válida objetivamente80.
Já Otto von Gierke, fundador da teoria da sociedade corporativa, vê Estado e
direito como fatores distintos que, por mais que se relacionem, não são dependentes
entre si. Ou seja, direito e Estado são independentes, porém, simultâneos, um não existe
sem o outro, mas eles não se confundem conceitualmente, não existe uma relação de
subordinação e nenhum dá origem ao outro. Há aqui, portanto, uma diferenciação entre
direito e Estado, em oposição ao conceito puramente jurídico, pois Gierke afirma se o
Estado for “um mero arauto declaratório” do direito, então ele não seria soberano81.
Já Wolzendorff afirma que o Estado e o direito precisam um do outro, e que o
direito vincula o Estado, limitando-o à função reguladora, enquanto o Estado deve garantir
o direito82. Schmitt coloca lado a lado todas essas teorias, que ilustram bem como a
relação entre direito e Estado pode ser entendida de maneiras muito diversas. Há sempre
alguma tensão entre esses conceitos, seja pela perspectiva de que um prevalece sobre
o outro, seja pela visão de que eles devem se equilibrar ou que são uma coisa só. A raiz
dessa tensão revela a oposição conceitual de que a decisão, o poder estatal, leva a um
poder personalista, enquanto a norma leva a um poder objetivo, impessoal.
Para Schmitt, “Não é com a ajuda de uma norma que se confere competência a
alguém, mas o inverso; é a partir de um ponto de imputação que se determina o que é
norma”83, ou seja, não é o direito que determina quem detém o poder, e sim este que
determina o que é o direito. Em outras palavras, a decisão cria a norma. Essa ideia, bem
representada por Hobbes quando ele postula que é a autoridade, e não a verdade, que
79 Ibid., p. 99
80
Ibid., p. 104
81 Ibid., p. 101
82 Ibid., p. 102
83 Ibid., p. 106
35
faz as leis, se opõe ao conceito voltado para o campo jurídico de que Estado e o direito
são uma unidade.
Em Schmitt, portanto, prevalece a ideia de que o direito advém do Estado. Ou, até
mesmo, do Estado de exceção e, portanto, do soberano. Segundo Bignotto, Schmitt trata
como análogas a figura do legislador e a figura do soberano, fundindo ambas as ideias
em uma só84. Em suma, Schmitt vê como soberano aquele de quem advém o poder de
decidir sobre o Estado de exceção e, portanto, quem define a ordem jurídica e quando
ela será válida.
84 BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. In: Kriterion. nº118, Belo
Horizonte, Dez./2008. p. 414
85
SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía hasta
la Lucha de Clases Proletaria. Trad.: José Díaz García. Madrid: Alianza Editorial, 2003. p. 34
36
liberdade. O ditador não estaria sujeito a nenhuma outra instância de poder, o que o
permite tomar decisões e executá-las rapidamente. Ele não tem, contudo, faculdade
legislativa, ou seja, não pode criar ou alterar leis, nem modificar a ordem Constitucional
ou a organização dos poderes. Portanto, as instituições regulares continuavam existindo
durante a ditadura, e funcionavam como uma espécie de controle em relação ao ditador,
de acordo com Maquiavel86.
A atividade do ditador é voltada para atingir um determinado fim, resolver a
questão excepcional que deu razão à sua instituição. Assim, livre de limitações jurídicas,
o ditador pode fazer tudo que a situação de necessidade exija. Nesse contexto, se uma
medida é correta ou errada, isso se refere somente a ela ser ou não adequada para atingir
o fim a que se propõe, sem ter que levar em consideração os direitos envolvidos que
possam se interpor ao objetivo. Essa ideia forma uma concepção absolutamente técnica
e objetiva do Estado87.
Temos, assim, no pensamento de Maquiavel, o racionalismo e o tecnicismo, dois
aspectos da ditadura que dizem respeito a essa necessidade da decisão racional e
técnica da parte do ditador, livre de amarras morais ou jurídicas, voltada apenas para o
cumprimento de seu objetivo. E, desses aspectos, advém um terceiro, a executividade,
que diz respeito à necessidade de que, dentro do executivo, as ordens sejam obedecidas
de forma imediata e sem fricção88:
Esta tripla direção para a ditadura (aqui se emprega esta palavra no sentido de
uma espécie de ordenamento que não se faz depender por princípio do
assentimento ou da compreensão do destinatário nem espera seu
consentimento), integrada pelo racionalismo, pelo tecnicismo e pela
executividade, marca o começo do Estado moderno.89
Na sequência de seu raciocínio, Schmitt afirma que no século XVII ocorreu uma
fissão no direito natural, separando-o em dois sistemas distintos90. Essa fissão seria entre
o direito natural da justiça e o direito natural científico. O primeiro deles parte da ideia de
um direito com um conteúdo determinado, anterior à existência do Estado, de acordo com
86 Ibid., p. 37
87
Ibid., p. 42
88 Ibid., p. 43
89 Ibid., p. 43-44
90 Ibid., p. 52
37
alguma concepção de justiça, enquanto o segundo se baseia na ideia de que não havia
nenhum direito anterior ao Estado, e que, portanto, o direito é qualquer coisa que o
Estado determinar que ele seja. Em resumo, o primeiro sistema parte de certas ideias de
justiça que levam ao interesse pelo conteúdo da decisão, enquanto no segundo sistema
o interesse é apenas em que se adote uma decisão, independente de seu conteúdo91.
É destacada a visão de Pufendorf de que não importa o conteúdo da decisão, não
importa o fim, importa apenas a decisão dos meios para chegar a esse fim e quem tem a
palavra final nesta decisão. Isso porque, em princípio, todos afirmam representar o bem,
mas “um Estado não deixa de ser monarquia absoluta porque o príncipe, ao tomar posse
do governo, prometa velar pelo bem do povo”.92
Quanto a Bodin, Schmitt afirma que ele não faz distinção entre a soberania do
Estado e a soberania do titular do poder estatal, ou seja, soberano é aquele que detém
poder absoluto. Contudo, como já foi mencionado, este titular não é necessariamente o
governante, e sim a fonte do poder deste. E, por isso, o ditador para Bodin não seria
detentor de soberania, mas meramente um comissário do soberano93.
Nesse ponto, torna-se relevante a distinção que Bodin apresenta entre funcionário
e comissário, que seriam dois tipos de exercício de poder estatal, e Schmitt esquematiza
suas diferenças. O funcionário tem seu fundamento na lei, e seu cargo possui caráter
permanente, mesmo que o titular do cargo mude com frequência, o cargo em si é
permanente, e só pode ser deposto pela lei, de modo que o funcionário possui uma
espécie de direito ao cargo, que tem que ser prestado durante certo tempo e não pode
ser destituído discricionariamente. Assim, o conteúdo da atividade do funcionário, quanto
ao lugar e ao tempo, está previsto na lei para que o funcionário tenha uma certa margem
de ação para sua discrição e interpretação94.
O comissário, por sua vez, tem seu fundamento em uma decisão (ordenanza),
portanto sua atividade não tem caráter ordinário, é situacional, extraordinário, e termina
com a execução do negócio. Assim, o comissário não tem direito ao cargo, sua função
pode ser revogada a qualquer momento e depende sempre do comitente, e, portanto, o
91
Ibid., p. 53
92 Ibid., p. 54-55
93 Ibid., p. 58
94 Ibid., p. 65
38
conteúdo de suas atividades depende de suas instruções, sua discrição é limitada pelo
comitente, embora este possa lhe dar maior margem de ação95.
Vale ressaltar que, segundo Schmitt, Bodin não trabalha com a distinção entre lei
no sentido formal e material como faz a teoria positivista do Estado, e ele criticava o
tecnicismo de Maquiavel, rejeitando a possibilidade de o soberano promulgar qualquer
arbitrariedade como lei96. E, apesar do comissário ter mais liberdade de ação no sentido
de que sua atividade não é delimitada pela lei como a do funcionário ordinário, o
funcionário tem mais liberdade por exercer sua atividade independente do soberano, pois
essa é definida pela lei e o soberano não pode interferir nela a não ser que modifique a
lei, enquanto o comissário é dependente da vontade do soberano.
Schmitt diferencia tipos de comissários por suas funções, classificando-os como
comissários de serviços (inspetores, comissários policiais, cargos administrativos, cuja
atividade é determinada ou determinável por disposições gerais, e quase se confundem
com funcionários ordinários), comissários de negócios (como embaixadores) e o que ele
denomina comissário de ação, sendo o ditador o comissário de ação absoluto97.O que
caracteriza o ditador, distinguindo-o dos demais comissários, é que, no caso dele, o
interesse em cumprir o objetivo de sua existência é tão grande que, para isso, ele pode
ignorar barreiras jurídicas e direitos de terceiros. Não se revogam as leis, apenas pode-
se atuar no caso concreto sem considerá-las.
95
Ibid., p. 65
96 Ibid., p. 67
97 Ibid., p. 71
98 Ibid., p. 71
39
caráter perpétuo, e com isso ele se tornaria soberano, e deixaria de ser ditador, uma vez
que Bodin não reconhece o conceito de ditadura soberana99.
Em resumo, a ditadura comissária é um Estado de exceção, em que um ditador é
autorizado pelo soberano – quer constitucionalmente, quer não – a agir de forma absoluta
e unilateral para resolver uma crise. Sua comissão é limitada temporalmente, e tende a
ter fim com a resolução da crise que motivou sua existência. O ditador comissário não
detém a soberania do Estado, pois seu poder deriva de outrem, portanto não tem o poder
de legislar, apesar de possuir a prerrogativa de ignorar o direito para atingir seus
objetivos, agindo de acordo apenas com a necessidade da situação concreta. Em outras
palavras, a ordem jurídica é suspensa, no sentido de que não vincula as ações do
comissário, mas não cessa de existir e não pode ser modificada por ele.
Para adentrar no conceito de ditadura soberana, Schmitt inicia com uma análise
da monarquia absolutista francesa, que governava através de poderes intermediários
(pouvoirs intermédiaires), cargos comissariados para administrar regiões em nome do
monarca, um instrumento burocrático do poder centralizado. Schmitt coloca que, na visão
de Montesquieu, estes poderes intermediários seriam essenciais para impedir a
arbitrariedade do Estado, pois funcionam como freios para a “onipotência estatal”100.
A onipotência estatal não deve poder intervir nunca com toda a plenitude de seu
poder efetivo em um ponto qualquer, mas sempre deve intervir tão somente
mediada, intermediada, por um órgão competente com uma competência fixa,
por um poder limitado, que junto a outros poderes igualmente mediados, tenha
uma competência que não se possa anular por capricho. Também os poderes
supremos, o legislativo e o executivo, devem limitar-se reciprocamente em sua
força. O resultado é que a liberdade civil fica protegida da onipotência do Estado
por uma rede de competências firmemente limitadas. 101
99 Ibid., p. 72
100 Ibid., p. 137
101 Ibid., p. 140
40
O contraponto que Schmitt apresenta para essa ideia vem das críticas de Malby,
segundo o qual o homem é naturalmente mau, e, portanto, aqueles colocados para
governar também o são, de modo que é preciso limitar ao máximo o poder do Estado,
dividindo o Executivo em diversas atribuições administrativas para evitar o acúmulo do
poder105.
Schmitt afirma que o conceito de ditadura soberana começa a ser trabalhado de
fato com Malby, que vê a ditadura como um poder pleno que faz cessar as funções dos
demais magistrados, cuja permanência, para Maquiavel, representa precisamente a
garantia contra o abuso do ditador comissária.
105
Ibid., p. 152
106 Ibid., p. 153-154
107 Ibid., p. 158
108 Ibid., p. 159
42
da vontade geral, que é vista pelo autor francês como mais que a soma das vontades
individuais, pois os homens, individualmente, podem estar equivocados ou dominados
por suas paixões, de modo que não estariam necessariamente de posse de sua vontade
livre. Consequentemente, os indivíduos que tenham suas vontades corrompidas têm de
ser reconduzidos de volta à vontade geral pelo Estado. E, se é possível que a maioria
dos indivíduos seja corrompida e só uma minoria tenha a “vontade justa”, então essa
minoria teria o direito de sobrepor sua vontade109:
Somente quem é moralmente bom é livre e tem o direito de ser chamado de povo
e a identificar-se com o povo. A consequência adiante é que só quem tem virtude
tem direito de participar das decisões e assuntos políticos. O inimigo político é
moralmente corrompido, é um escravo, que deve ser feito inofensivo. Se
demonstra-se que a maioria caiu em corrupção, então a minoria virtuosa pode
empregar todos os meios de poder para a virtude triunfar. O terror exercido por
tal minoria não pode ser qualificado de coação, é tão somente um meio de
proporcionar ao egoísta não livre sua verdadeira vontade própria110
109
Ibid., p. 162
110 Ibid., p. 164
111 Ibid., p. 164
112 Ibid., p. 173
43
113
Ibid., p. 182-183
114 Ibid., p. 193
115 Ibid., p. 193
116 Ibid., p. 197
44
ditadura entre si, uma vez que a ditadura comissária se justifica na eliminação de uma
crise que ameaça a ordem vigente, enquanto a ditadura soberana se fundamenta na
eliminação da própria ordem vigente. Enquanto a ditadura comissária suspende o direito
para que o ditador possa agir sem considerá-lo, mas não o modifica, a ditadura soberana
é o próprio poder constituinte.
117 SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. Trad.: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996.
p.4
118 Ibid., p. 11
119 Ibid., p. 26
45
dessa forma? Schmitt responde que a democracia se define por uma série de
identidades.
Primeiramente, ele afirma que a validade da democracia viria da vontade do povo,
retornando à ideia Rousseauniana de vontade geral. De tal argumento desenrolam-se
uma série de identificações, a partir da identidade entre governantes e governados. Esta
se manifesta na identidade entre o Estado e o eleitor, e se relaciona com a identidade do
Estado com a lei e, por conseguinte, do povo, ou da maioria, com a lei concreta120. A
democracia, portanto, tem sua estrutura construída sobre estas identificações.
120 Ibid., p. 27
121 Ibid., p. 29
122 Ibid., p. 34
46
123
Ibid., p. 38
124 Ibid., p. 39
125 Ibid., p. 46
126 Ibid., p. 8
47
130 TRINDADE, André Karam. Kafka e os paradoxos do direito: da ficção à realidade. 2012. p. 150.
131 SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. 1996. p. 26
132
Ibid., p. 11
133 ROWLING, J.K. Harry Potter e a Ordem da Fênix. 2003. p, 611.
134 Idem. Harry Potter e a Pedra Filosofal. 2000. P. 50.
135 Idem. Harry Potter e a Ordem da Fênix. 2003. p. 74
50
que é possível perceber, é voltada para a manutenção desse sigilo e, em certa medida,
para a proteção dos trouxas contra bruxos e suas magias, como uma política de não
interferência. O Ministro da Magia comunica-se com o Primeiro Ministro trouxa, e sua
relação parece uma cooperação entre dois governos distintos, que mantém uma relação
pacífica. É uma situação estranha, por serem dois governos no mesmo território, mas
parece bem claro que os trouxas não compõem a sociedade bruxa, nem como cidadãos
nem como uma classe marginalizada, mas praticamente como membros de outra nação,
por assim dizer.
Com isso, é possível afirmar que as ideias que Schmitt faz de democracia se
alinham com as práticas do mundo bruxo. O Ministério da Magia legitima-se através da
identificação da comunidade bruxa, homogênea pela exclusão do diferente, com seu
governo. E, segundo Schmitt, com o domínio sobre a força militar e política, sobre a
opinião pública e sobre a educação, é possível moldar a vontade do povo da qual a
identificação democrática emana. O autor afirma que a questão prática da democracia é,
portanto, sobre quem possui os meios de formar a vontade pública136.
Dentro do universo de Harry Potter, essa questão pode ser respondida a partir de
um olhar atento sobre o Ministro da Magia. Identificando o domínio sobre a força militar,
o domínio sobre a imprensa e o domínio sobre a educação como o cerne do que o autor
coloca como meios para se moldar a vontade do povo, podemos analisar como cada um
deles se dá dentro da obra literária. Primeiramente, o controle militar, ou das forças
armadas e policiais como um todo. O Ministério da Magia possui, até onde podemos
saber com as informações contidas nos livros, três tipos de agentes com algum tipo de
poder militar ou policial.
Mencionado poucas vezes durante a saga, há um Esquadrão de Execução das
Leis da Magia, que é descrito como uma força policial137, mas parece tratar de casos mais
corriqueiros, são mencionados realizando uma prisão, entregando uma intimação a um
bruxo que violou o Estatuto de Sigilo138 e realizando patrulhas para capturar bruxos que
usam indevidamente a magia. Fazendo um paralelo com a realidade, esse Esquadrão se
assemelha ao oficial de justiça, que exercem uma atividade burocrática com algum poder
de política, e um grau de periculosidade menor139.
As atividades policiais com maior complexidade são, no mundo bruxo, exercidas
pelos aurores, descritos como uma força policial de elite, especializada em capturar
bruxos das trevas140. Por fim, há os Dementadores, que possuem a função primordial de
carcereiros e carrascos, mas também foram usados pontualmente como segurança
pessoal do Ministro141 e como patrulhas na ocasião da fuga de um prisioneiro. Eles
seriam, de modo geral, os encarregados pela execução das penas.
Tanto os aurores quanto o Esquadrão de Execução das Leis da Magia estão sob
o Departamento de Execução das Leis da Magia. Estruturalmente, cada uma dessas
instituições possui um chefe142, que estaria subordinado ao chefe do departamento, e
este ao Ministro da Magia. Quanto aos Dementadores, é dito explicitamente na obra que
eles recebem ordens somente do Ministro da Magia143. Assim, é possível afirmar que o
Ministério possui domínio sobre a força policial e/ou militar.
O segundo ponto colocado por Schmitt para moldar a vontade do povo é o controle
da propaganda e da opinião pública. No universo da obra literária, a comunicação de
massa é feita primordialmente através da mídia impressa, e o jornal de maior circulação
é o chamado Profeta Diário, havendo poucas menções a outros periódicos, com a
exceção de uma revista de pouca credibilidade chamada O Pasquim. Os livros mostram
que há um viés do Profeta Diário em apoiar o Ministério da Magia, e isso fica
especialmente evidente durante o quinto livro da saga, em que vemos o jornal buscando
denegrir a imagem do protagonista e negar o retorno do vilão, de acordo com o interesse
do Ministério144. E, quando O Pasquim passa a publicar matérias de oposição ao
Ministério, é promulgado um Decreto Educacional proibindo alunos de possuírem a
revista, deixando explícita uma tentativa de censura.
A terceira ferramenta para formar a vontade pública seria o controle sobre a
educação. Este, dentro do mundo mágico, já se mostra mais delicado, pois como vemos,
Além da forma como molda a vontade do povo, é possível observar também que
não há uma separação de poderes clara na estrutura do Ministério da Magia. Um único
órgão, a Suprema Corte dos Bruxos, atua simultaneamente como Judiciário e Legislativo,
e quando a vemos em cena ela é presidida pelo próprio Ministro da Magia, o chefe do
que se aproxima mais de um poder Executivo. O processo jurídico mais extenso mostrado
na saga, que seria o julgamento do hipogrifo, é conduzido também por um órgão do
Ministério. No material que publicou sobre os ministros da Magia, a autora afirma também
que “todos os assuntos relacionados à comunidade mágica britânica são gerenciados
unicamente pelo Ministro da Magia, e ele possui jurisdição exclusiva sobre seu
Ministério”149. Temos, assim, o cenário de um governo centralizado nas mãos do Ministro
da Magia.
Os diversos departamentos e suas subdivisões representam poderes
intermediários, de competências limitadas, que teoricamente limitam os poderes do
Ministro, na visão que Schmitt apresenta das ideias de Montesquieu. Contudo, ao menos
uma vez na saga o Ministro passa por cima desses poderes, notadamente em ambas as
situações em que Harry reincide em sua violação do Estatuto de Sigilo: no terceiro livro,
ele interfere pessoalmente para impedir que o protagonista seja punido, e no quinto livro
vemos o que deveria ser uma audiência pequena e burocrática com a chefe de um
departamento se transformar em um julgamento da Suprema Corte presidido pelo
Ministro. Assim, os poderes intermediários, por mais que existam, não parecem frear de
fato a ação onipotente do poder central.
148
SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. 1996. p. 29
149
ROWLING, J.K. Ministers for Magic. Texto original: “All matters relating to the magical community in
Britain are managed solely by the Minister for Magic, and he has sole jurisdiction over his Ministry.”
54
150
SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía
hasta la Lucha de Clases Proletaria. 2003. p. 141
151 SCHMITT, Carl. A Crise da Democracia Parlamentar. 1996. p. 92-93
152
SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía
hasta la Lucha de Clases Proletaria. 2003. p. 34
153 pág. 20
55
das Leis da Magia quanto os aurores, Crouch seria o responsável pelo efetivo comando
do poder de polícia dentro do Ministério. Segundo o relato dos livros, ele passou a
executar medidas mais severas para lidar com a situação, autorizando que os aurores
matassem suspeitos em vez de capturá-los, além de realizar diversas prisões sem
julgamento.
Mesmo após a queda de Voldemort, a situação de crise permaneceu, pois a maior
parte de seus seguidores ainda estava à solta. Os três julgamentos mostrados no quarto
livro da saga se passarem nesse período, com Crouch ainda à frente do Ministério da
Magia, mas não há nenhum marco temporal claro delimitando quanto tempo teria durado
a busca pelos seguidores de Voldemort liderado por Crouch. Esse período parece se
encaixar muito bem à definição que Schmitt faz de ditadura comissária.
A ditadura comissária, como visto, é configurada como uma comissão de ação
absoluta, mas limitada temporalmente, advinda de um poder constituído. Isso significa
que o poder soberano, ao declarar a exceção, entrega ao ditador comissário poderes
para agir de acordo com a necessidade para lidar com uma perturbação da ordem
vigente. Sua capacidade de ação pode suspender o direito, mas não de alterá-lo154.
Pelas informações que temos na narrativa, é possível afirmar que havia uma
situação de exceção, e que Crouch exerceu seus poderes de forma absoluta e unilateral
para sanar a crise. A suspensão do direito fica clara quando são mencionadas prisões
sem julgamento e autorização para a força policial/militar executar suspeitos. Não é
possível saber como era a situação de normalidade antes dessa primeira crise, e,
portanto, não podemos determinar se os poderes de Crouch estavam dentro das
faculdades de sua função como chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia,
ou se esses poderes lhe foram concedidos especialmente para lidar com a exceção. No
entanto, o relato de Sirius Black destaca estas ações tomadas por Crouch de modo que
leva à interpretação de que elas não eram comuns no período de normalidade que se
antecedeu.
Não há como determinar se Crouch era impedido de legislar devido à sua posição,
mas também não há qualquer evidência que ele tenha legislado, de modo que esse ponto
154
SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía
hasta la Lucha de Clases Proletaria. 2003. p. 34-72
56
O relato apresentado na obra literária sobre como Crouch deixa o poder é atrelado
à nomeação de um novo ministro. Sirius Black afirma que, após resolver a crise dos
seguidores de Voldemort, Crouch tinha grandes chances de se tornar Ministro da Magia,
isso apenas não aconteceu devido ao escândalo que a prisão de seu filho causou, e
então Cornélio Fudge se tornou ministro e Crouch foi movido para outro departamento155.
No primeiro livro da saga, também num trecho transcrito no presente trabalho156, outro
personagem afirma que o cargo de Ministro da Magia foi oferecido a Dumbledore, mas
ele recusou e por isso Fudge ficou com o cargo.
Em ambos os relatos, fica a impressão de que o cargo de ministro foi entregue a
Fudge, sem passar por uma eleição e, no artigo que a autora escreveu sobre os ministros
da Magia, ela afirma que essa prática existe na instituição, em momentos de crise. Em
primeiro lugar, essa afirmação chama atenção pela sua similaridade com o próprio
conceito da ditadura comissária, em que um cargo de poder máximo é entregue pelo
poder soberano para sanar uma crise. No entanto, é dito pelos personagens que Fudge
se tornou Ministro após a queda de Voldemort e subsequente prisão de seus seguidores,
ou seja, não haveria mais uma crise.
157 SCHMITT, Carl. La Dictadura – Desde los Comienzos del Pensamiento Moderno de la Soberanía
hasta la Lucha de Clases Proletaria. 2003. p. 142-143
158
BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. In: Kriterion. nº118, Belo
Horizonte, Dez./2008. p. 404.
58
159 pág. 24
160 ROWLING, J.K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. 2007. p. 248.
59
não possuir um equilíbrio entre os poderes e nem uma autovinculação do Estado para
com o direito. Assim, a ditadura diferencia-se de outras formas centralizadas e autoritárias
de exercício de poder a partir da identificação de uma crise que dá origem ao Estado de
exceção.
Isso não quer dizer, contudo, que as características despóticas presentes no
governo de Fudge não sejam heranças de uma ditadura prévia. Como exposto, não
podemos saber quando exatamente o Ministério da Magia tomou a forma em que se
apresenta durante a história. Mas, como podemos identificar que existiu pelo menos um
período de exceção em sua história, no qual é possível caracterizar uma ditadura
comissária, não é infundada a dedução de que a forma de governo instituída durante um
período de exceção tenha se prolongado para além dele.
uma ameaça constante, até em seu efetivo retorno, no quinto e sexto livros. E, durante o
último volume da série, quando Voldemort toma o poder, a figura do inimigo público passa
a ser Harry Potter e os trouxas em geral.
Como visto, Schmitt considera a separação entre amigo e inimigo como uma
faceta da própria definição do Estado como soberano e como político. O Estado, portanto,
residiria tanto na decisão sobre a homogeneidade interna, que define o povo de uma
nação e coloca a si mesmo no polo do amigo, quanto da decisão de apontar um inimigo
como a iminência de um conflito, que ameaça a ordem164. Essa separação é um dos
únicos conceitos que permanece claro em todos os momentos em que o Ministério da
Magia é mostrado na saga.
Enfim, vemos que a situação política do Ministério da Magia, durante os eventos
da história, nem sempre se encaixa perfeitamente em algum dos modelos de ditadura
descritos por Schmitt. Ainda assim, várias semelhanças podem ser pontuadas, e o
objetivo deste trabalho é buscar essas semelhanças e diferenças e provocar reflexões
nesse sentido.
4. Considerações Finais
relação direta de causa e efeito entre vida e obra do autor, é importante lembrar que não
é possível dissociar completamente a teoria do contexto em que foi produzida. Ao analisar
as correspondências entre os conceitos schmittianos e o governo bruxo da obra literária,
é interessante ter em mente a relação entre o autor e o regime político talvez mais
perverso da história da humanidade. Afinal, o Ministério da Magia é também envolto por
críticas, tanto pelos personagens dentro da própria história quanto pelo leitor ao analisá-
lo.
A literatura, por sua natureza, favorece a plurissignificação, a imaginação, a
interpretação e a dúvida, seu valor está mais nos sentidos implícitos que nos explícitos,
e muito de sua beleza está na singularidade da experiência e da interpretação de cada
leitor. Ao provocar um choque entre uma obra literária popular e uma teoria política, abriu-
se um leque de interpretações, significados e dúvidas. E, seguindo o exemplo da
literatura, fechamos este trabalho instigando questões, muito mais que as respondendo.
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