Artigo Letra Magna Alexandra Lucas Coelho

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Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura

Ano 16 - n.26 – 2º semestre– 2020 – ISSN 1807-5193

A OUTRA FACE DA MEDUSA OU QUANDO “O CORPO ESTOURA NO AR”: UMA


LEITURA DE O MEU AMANTE DE DOMINGO, DE ALEXANDRA LUCAS COELHO

Jorge Vicente Valentim


Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Professor Associado do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Literatura, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), SP, Brasil.

RESUMO: Pretende-se, nesse ensaio, abordar alguns aspectos da escritura feminina, a


partir dos postulados de Hélene Cixous, e suas reverberações na ficção portuguesa
contemporânea, tendo como suporte o romance O meu amante de domingo (2014), de
Alexandra Lucas Coelho. Com uma proposta rasurante no tocante à representação do
corpo feminino de uma protagonista madura, a obra em questão realiza um recorte
marcadamente ácido e irônico da vida privada portuguesa, num feixe centrípeto do corpo
social ao corpo da personagem e, por fim, ao corpo do próprio texto.

PALAVRAS-CHAVE: Escritura feminina. Corpo feminino. Ficção portuguesa


contemporânea. Alexandra Lucas Coelho.

ABSTRACT: In this essay, we intend to address some aspects of female writing, based
on the postulates of Hélene Cixous, and their reverberations in contemporary Portuguese
fiction, supported by the novel O meu amante de domingo (2014), by Alexandra Lucas
Coelho. With a striking proposal regarding the representation of the female body of a
mature protagonist, the work in question makes a markedly acidic and ironic cut of
Portuguese private life, in a centripetal beam from the social body to the character’s body
and, finally, to the body of the character text itself.

KEYWORS: Female writing. Female body. Contemporary Portuguese fiction. Alexandra


Lucas Coelho.

Esse texto é para Vivian Leme Furlan, que me fez olhar um outro horizonte, sem
deixar que eu me perdesse, mas que nele pudesse também me encontrar.

Escrevo isto como mulher para as mulheres. Quando digo “a mulher”, falo da
mulher em sua luta inevitável com o homem clássico; e de uma mulher-sujeito
universal, que deve levar as mulheres até sua(s) consciência(s) e sua história.
(Hélène Cixous. O riso da Medusa, 1975)

Tudo começaria com uma narradora que decide escrever depois de se apaixonar por
um impostor. Eu não revelaria o que pusera fim abrupto à relação. Importante era a
fúria, a luta armada, a pulsão de vida contra os filhos da puta.
(Alexandra Lucas Coelho. O meu amante de domingo, 2014)

No seu conhecido ensaio-manisfesto O riso da Medusa (1975), a ensaísta francesa


Hélène Cixous marca definitivamente o seu nome nos estudos feministas, ao defender a
presença de uma escritura feminina como instrumento de uma resistência rasurante ao
domínio masculinista e patriarcal. Com uma proposta contundente ao pensar os caminhos da
cultura e da arte, seu texto vai na contramão de uma história que sempre procurou contemplar

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unicamente a perspectiva e o viés masculinos, relegando as mulheres a um papel de


subalternidade, subserviência e sufocamento de sua voz.
A forma incisiva com que conclama o protagonismo feminino nesse cenário de lutas e
embates, como é o caso específico da década de 19701, tanto na esfera político-social, quanto
na acadêmica, demonstra a sua atitude de recusa a uma normatividade que, já naquele
momento, considerava inadequada e caduca. A prerrogativa incontornável de a mulher
escrever para e sobre si, a ponto de trazer outras mulheres para o universo da escrita, reforça a
necessidade e a emergência do exercício criador e artístico para extirpar a alienação imposta
aos agentes femininos, bem como os sentimentos de desconstrução do obscurantismo e do
autodesprezo, perpetrados pelo “punho parental-conjugal-falogocêntrico” (CIXOUS, 2017, p.
130).
Sem deixar de lado questões cruciais, tais como a ruptura de uma continuidade do
pensamento conservador que insiste em “confundir o biológico e o cultural” (CIXOUS, 2017,
p. 129) e a violência instituída não apenas sobre as mulheres, mas também sobre os cidadãos
do continente africano, a ensaísta francesa não abre mão de sustentar a emergência de uma
écriture féminine, enquanto “escrita subversiva como fator libertário que possibilite
transformações de ordem sócio-culturais” (DEPLAGNE, 2017, p. 158). Para tanto, o gesto de
descensurar o corpo feminino numa visível rasura do código falocêntrico da história, em que a
sua sexualidade constitui um elemento chave para a efetiva libertação do seu fôlego e de sua
fala (CIXOUS, 2017, p. 135-136) torna-se o ponto de partida para uma escritura feminina de
fôlego, capaz de deixar as suas marcas nas mais diversas esferas da vida pública e cultural.
Não à toa, a afirmação de Hélène Cixous é categórica: “Escreve-te: é preciso que teu corpo se
faça entender” (CIXOUS, 2017, p. 136; grifos meus).
Por isso, a ideia de descentralizar o discurso masculinista, que impõe sobre o corpo
feminino atributos que não correspondem à sua efetividade física, incide sobre o
desenraizamento da fetichização mutiladora a partir de uma compreensão outra do mito da
Medusa. Ao contrário daquela versão tradicional e “reprodutora dos velhos esquemas,
ancorados no dogma da castração” (CIXOUS, 2017, p. 143), onde se persiste na sua

1
Sobre as lutas e as conquistas dos movimentos feministas na década de 1970, tais como as reverberações das
principais pensadoras da Segunda Onda Feminista, a vitória no direito ao voto em alguns países europeus
(nomeadamente a Suíça), o desencadear de ideias sobre lécriture féminine de Luce Irigaray e Julia Kristeva,
dentre outras, consultar os ensaios inclusos no 5º volume da História das Mulheres, sob a direção de Françoise
Thébaud (1995).

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fatalidade e na necessária decapitação por um semideus (Perseu), a Medusa de Cixous não


tem os cabelos representados por serpentes, seus olhos não petrificam e suas feições não
reiteram uma entidade-monstro. Ao contrário, a compreensão da multiplicidade e
heterogeneidade do universo feminino passa necessariamente por uma confrontação direta
desses modelos, como forma de desconstrução de valores condicionados: “Basta olharmos a
Medusa de frente: e ela não é mortal. Ela é bela e ri” (CIXOUS, 2017, p. 143).
A Medusa que encanta e seduz, não no seu sentido negativo e castrador, mas no de
desconstrução de discursos repressivos, consiste exatamente nesse exercício libertador de uma
escritura desafiadora de códigos e faz com que a mulher “escreva pelo seu corpo, que invente
a língua inexpugnável que rompe as clausuras, classes e retóricas, receitas e códigos”
(CIXOUS, 2017, p. 144; grifos meus). Ou seja, a demanda da escritura feminina vincula-se a
uma requisição da liberdade do seu próprio corpo, um não está desligado do outro: “Em
corpo: mais que o homem, convidado às conquistas sociais, à sublimação, as mulheres são o
corpo. Quanto mais corpo, então, mais escritura” (CIXOUS, 2017, p. 145).
Não me parece, no entanto, que tal ligação seja obrigatoriamente realizada na ordem
exclusiva de uma expressão intimista, antes, importa a interação desse micro-corpo unitário
em trânsito livre junto com outros nas mesmas condições, para a composição de um macro-
corpo social. Não à toa, Hélène Cixous defende as particularidades individuais de “cada corpo
[que] distribui de modo singular, sem modelo, sem norma, a totalidade não acabada e mutante
dos seus desejos” (CIXOUS, 2017, p. 152). Somente com a tomada de atitude radical em
recusar e desfetichizar a anatomia política masculinista, onde o “sistema falocêntrico”
(CIXOUS, 2017, p. 140) dita as normas, cada um desses corpos femininos, a seu modo, pode
reiterar a presença revolucionária da participação ativa das mulheres a partir de tessituras
escritas nas mais diversas esferas do saber.
Nesse sentido, a lição deixada pela ensaísta francesa irá encontrar ecos futuros, tanto
na dimensão da escritura de uma nova história, onde os corpos femininos ressurgem como
“sujeitos que rompem os automatismos, os corredores da orla que não são subjugados por
nenhuma autoridade” (CIXOUS, 2017, p. 140), quanto no tocante à crítica feminista e suas
implicações sobre a presença do corpo na produção de mulheres escritoras, dando visibilidade
ao “transbordar de suas espumas”, num nítido gesto de divergência e impugnação sobre “a
língua dos homens e sua gramática” (CIXOUS, 2017, p. 146).

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Tanto assim acontece que, anos mais tarde, em 1979, Catherine Clément parece ir ao
encontro dessa emergência do redimensionamento da produção intelectual, quando propõe
uma outra história da ópera, agora, sob a ótica daquelas que sempre foram apagadas das
principais cenas e subjugadas a finais marcados ora pelo castigo e pelo desencontro trágico,
ora pelo desencanto, engano e morte. Com L’Opéra ou la défaite des femmes (A ópera ou a
derrota das mulheres, [1979]1993), Clément revigora a presença das personagens femininas e
sua importância nos contextos das tramas, além de apontar para o espelhamento das peças
musicais com os cenários políticos de suas origens, enquanto “sombras de uma sociedade”
(CLÉMENT, 1993, p. 9).
Se a ópera, enquanto espetáculo encenado, tem o seu sucesso (bem como o seu
infortúnio) marcado pelo elenco de divas que interpretaram os mais diversos papéis ao longo
da história, como deixar que as suas intérpretes, as suas criaturas e as suas tramas sejam
integralmente contadas pela versão castradora da pena masculina? Segundo Catherine
Clément, as mulheres constituem muito mais que um simples enfeite ou um ornamento
indispensável à cena operística, na medida em que “elas cantam. Mais do que isso, elas
ocupam a cena: sem cantora, não há ópera. Mas o papel de enfeite, de objeto decorativo não é
o principal papel; e as mulheres no palco da ópera cantam invariavelmente a sua derrota”
(CLÉMENT, 1993, p. 12).
O que poderia parecer uma assunção de subserviência e subalternidade femininas, ao
sublinhar a reiterada desgraça das heroínas nas produções operísticas, na verdade, constitui a
sua revolta e a sua vitória sobre a discursividade falogocêntrica. Ou seja, Catherine Clément
aposta num outro sorriso da Medusa, ao encarar e rever a história cultural e musical desses
papéis relegados ao sofrimento, a partir de suas próprias construções musicais, sem perder de
vista a potencialidade revolucionária que uma outra concepção, agora, sob o signo de um
olhar descentralizador e desfetichizador, pode produzir:

O canto das mortas e das cantoras alimenta as formas de uma criação que desdobra
ao infinito a longa história de suas paixões. Esse é o começo do percurso de onde é
preciso, finalmente, sair. [...] Assim canta a voz que se eleva em agonia, perdida, e
mesmo assim mais poderosa e perturbadora do que nunca, nestes tempos em que as
ilusões – todas – nos revelam suas faces tristes (CLÉMENT, 1993, p. 20).

Se na história, a escritura feminina ganha espaços cada vez mais relevantes, não
menos no campo da produção crítica. Basta lembrar, por exemplo, de Elaine Showalter (2002)

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e o seu conhecido ensaio de 1981, “A crítica feminista no deserto”. Ainda que a ensaísta
estadunidense reconheça as flutuações e os questionamentos do conceito de escritura feminina
(écriture féminine), ela não se esquiva em reiterar a sua incontornável credibilidade, na
medida em que fornece “um modo de falar sobre a escrita das mulheres que reafirma o valor
do feminino e identifica o projecto teórico da crítica feminista como a análise da diferença”
(SHOWALTER, 2002, p. 47).
Talvez, por isso, o seu conceito de “ginocrítica” (SHOWALTER, 2002, p. 45)
consolida-se como uma possibilidade a mais dentro do repertório analítico de linhas
investigativas feministas. Não à toa, as suas interrogações surgem ao lado de abordagens de
caminhos da crítica, quando esses incorporam os vieses biológico (ou orgânico), linguístico (e
textual), psicanalítico e cultural.
No mesmo ano (1981), Ann Rosalind Jones retoma essa discussão, ao acrescentar à
questão da livre relação da mulher com o seu próprio corpo, e como essa se instaura no
exercício de criação literária, outras de ordem social, onde os contextos precisam ser
repensados e profundamente questionados. Segundo ela, “a escrita das mulheres será mais
acessível tanto a escritoras como leitoras se a reconhecermos como uma resposta consciente a
realidades socioliterárias, em vez de aceitar como um extravasar da comunicação não mediada
de uma mulher com o seu corpo” (JONES, 2002, p. 94-95).
Na verdade, gosto de pensar que todas essas interrogações já se encontram ensaiadas
nas indagações de Hélène Cixous (2017), na medida em que não deixa de questionar e de
dialogar com as questões de gênero e suas referencialidades culturais, bem como as
reivindicações das feministas negras e a necessária interseccionalidade entre gênero e raça.
Basta uma leitura atenta de O sorriso da Medusa (1975) para perceber que a autora não se
esquiva desses pontos. No entanto, interessa-me nesse ensaio perceber como, quase 40 anos
depois de sua publicação, a reverberação desse encarar de uma Medusa, que sorri, é mortal e
bela, atinge outras nuances em outros universos literários, sem perder de vista as ligações
ampliadas e articuladas com o seu respectivo contexto sociocultural.
Para tanto, tomo como ponto de partida para as minhas reflexões o romance da
escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, O meu amante de domingo (2014), onde sua
protagonista, uma mulher de meia idade (por volta dos seus 50 anos), expõe de forma

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absolutamente despudorada e descomplexada as vivências com o seu corpo e com o projeto


de escrita de um romance, bem como os seus planos de assassinar um dos amantes que a traiu.
A percepção de uma mulher em livre trânsito, seja no seu sentido espacial, porque
transita do interior para a capital e vice-versa, seja nas vivências amorosas que acumula, em
virtude da apropriação e da posse do corpo masculino – “O meu amante de domingo fez uma
tatuagem na cadeia. É a cara de uma santa, no peito oposto ao do coração. Ele tem peitos
duros, pontudos, ela está entre o mamilo e a axila, quando ele baixa os braços é como se a
protegesse” (COELHO, 2014, p. 15) –, aparece logo na abertura da trama, quando a
narradora-protagonista descreve o alvo das suas atenções e o objeto que dá nome ao romance.
Afinal, esse amante de domingo é um mecânico que a auxilia no reparo do seu carro, “Um
Lada Niva de 1994” (COELHO, 2014, p. 16), quando chega a Lisboa.
Gradativamente, o leitor vai se dando conta de que a trajetória dessa personagem
incide numa obsessão: inventar uma série de possibilidades e formas de matar um rapaz, a
quem ela sempre se refere como “o caubói” (COELHO, 2014, p. 16), em virtude da estreia de
um texto deste que, somente nos momentos finais da trama se descobrirá, expõe as
intimidades e os dramas particulares vividos entre o casal. Portanto, a partir dessa disposição,
não deixa de ser interessante observar o deslocamento irônico proposto pelo título da obra,
posto que esse amante de domingo não se refere ao homem que desencadeia toda a
inquietação e a raiva da personagem principal (e o consequente desejo de expurgar tais
sentimentos, a partir da escrita de um romance), mas ao mecânico, que servirá como
motivação para a consolidação do seu projeto.
A partir desse mote, toda a trama de O meu amante de domingo envereda pela
exposição e pelas digressões da protagonista que não aceita a maneira como a ruptura entre
ela e o caubói acontece. Mas não se deve pensar que tal artimanha propõe uma exposição de
traumas e recalques, na medida em que a efabulação não se enquadra num intimismo
exclusivamente psicológico, ainda que este seja um instrumento na consecução do projeto de
escrita da personagem. Afinal, ela também, uma revisora e uma escritora, se sente encorajada
a levar a cabo o seu projeto de produção e acabamento de um romance, também alcunhado de
“O meu amante de domingo”2.

2
Para evitar problemas de compreensão e diferenciação entre os dois textos, sempre que se referir à obra,
enquanto fruto do exercício de criação da narradora-personagem, o título aparecerá entre aspas. Quando se tratar
do romance de Alexandra Lucas Coelho, ele virá grifado em itálico.

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Já, aqui, percebe-se uma bem urdida composição, em que uma narrativa encaixada
invade o corpo do romance de Alexandra Lucas Coelho. Vide, nesse sentido, que a sua
inclusão fica demarcada por uma grande caixa cinza na página do texto, tal como se tentasse
representar especularmente a tela de um computador, onde a narradora-protagonista (e
escritora) vai anotando, acrescentando, apagando e refazendo as páginas desse possível
“romance” dentro do romance. Micro-texto (a obra ficcional da protagonista) que ajuda a
compor o macro-texto (o resultado final e acabado da figura autoral empírica), esse projeto
textual e suas inserções acabam por ganhar uma figuração corpórea dentro da obra, na medida
em que a sua consecução expurga e exorciza um desejo de vingança da personagem principal.
Tal como postula Pedro Schacht Pereira, trata-se de “um impulso criativo como resposta à
fúria da descoberta da despossessão de si mesma, encenada ficcionalmente no marco de uma
relação amorosa marcada pela traição” (PEREIRA, 2017, p. 114).
Essa “fúria da descoberta” e a subsequente vontade de revanche residem no fato de o
caubói, um dos seus amantes descritos ao longo da trama, reunir, numa espécie de dossier,
fotografias de partes específicas do corpo dessa mulher, além de anotações com detalhes dos
encontros amorosos, das discussões, dos diálogos e das trocas de ideias, muitas delas,
inclusive, divergentes em virtude das suas diferentes concepções de mundo. Tudo isso
compõe o monólogo do caubói, um drama a ser lido numa seção pública.
A grande questão da problemática desse processo (da reunião de papéis à sua
montagem e a sua posterior apresentação) incide no roubo e na apropriação indébita do caubói
sobre a protagonista, já que ela não participa da criação desse texto de forma consensual,
muito pelo contrário. Tudo foi recolhido e montado na surdina, sem a sua autorização prévia,
e exposto numa leitura pública, onde ela se encontrava presente:

eu era uma pesquisa, desde a cena das fotografias que isso era tudo o que havia a
ver, eu era a merda de uma pesquisa, e só ali sentada na plateia é que eu via,
estupidamente sentada numa plateia por causa de um cabrão que passara um mês
na minha cama, um mês a foder e a falar, oh, claro, agora eu entendia todas as
perguntas, desde quando a menstruação não veio, e o médico disse aquilo, e aquilo
queria dizer que eu não podia engravidar, e eu tinha quinze anos, caralho, e o que
é que isso quer dizer aos quinze anos, e quando pela primeira vez fui para a cama
com um gajo e aquilo não me podia acontecer, e todas as raparigas só queriam que
aquilo não acontecesse, e eu só queria ser como todas as raparigas, porque era a
diferença entre não querer uma coisa então e não poder querê-la nunca, [...] e não
é que o cabrão pôs tudo na porra do monólogo, os meus quinze anos, o meu
folhetim de alcova, o que chorei com a filha do nelson rodrigues, como o abracei
por causa disso, o cabrão gravou as minhas palavras, escreveu como se as
gravasse, as minhas palavras a dizer eu, um monólogo inteiro a dizer eu, o cabrão

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do filho da puta não achou melhor para um monólogo sobre o tempo do que passar
um mês no gamanço, melhor do que poder dizer, a mulher de cinquenta anos sou
eu, voilà, e o próprio do flaubert seria ele, imagino a plateia com os seus botões,
foda-se, como este gajo se meteu na cabeça de uma gaja de cinquenta anos, tanto
trabalhinho, sim, confirmo, um mês de trabalhinho ali a foder, e na fase da
conversa com a plateia ainda teve a lata de dizer que tudo começara no balzac,
quando nunca lera balzac na puta da vida dele até me conhecer, [...] o cabrão nem
teve consciência de que o belo marido carreirista da mulher de trinta anos do
balzac era tão cheio de si e tão oco quanto ele, mas não fiquei para ouvir mais
porra nenhuma, sai dando graças por estar numa ponta da plateia, e sabe-se lá
como conduzi até carnide, e quando parei à porta tive um ataque de choro tal que
pensei, preciso de ajuda, caralho, preciso de ajuda, e liguei à minha amiga no rio, e
depois à minha melhor amiga, e acabei por atravessar outra vez a cidade para ir
dormir a casa dela na sé, não me aconteceu muitas vezes na vida, pensar que não
podia mesmo ficar sozinha, mas até às cinco da manhã, que foi quando adormeci,
o cabrão do filho da puta não disse nada, nem uma mensagem, zero de zero de
zero, que era quanto afinal eu valia, [...] oh, sim, eu teria falado com ele, pelo
menos explodido com ele. se ele não tivesse sido cada vez mais cabrão primeiro o
falso apaixonado que vai dar de frosques depois o carteirista que usa a paixão para
um fim, e finalmente o cobarde que finge que não houve paixão alguma como
tudo é fácil para um tal triatleta, ao fim de um més tem um texto de carne-e-osso
que sou eu, e se precisou de sair de lisboa para isso é porque não via o mistério
que tinha ao lado, apenas a imagem melhorada de si mesmo, e portanto não lhe
interessava a rapariga de trinta anos agora

três da manhã, foda-se

talvez escrever (COELHO, 2014, p. 161-164)

Toda essa longa citação compõe o capítulo “Insónia”, onde, num fluxo contínuo e
frenético, com uma pontuação completamente desapegada de qualquer tipo de pausa,
Alexandra Lucas Coelho lança mão de uma linguagem impregnada de raiva e revolta,
revelando detalhes da intimidade entre a protagonista e o caubói, e a fúria – a que a narradora
irá chamar de “estranha forma de vida” (COELHO, 2014, p. 39) – em ver-se estampada a
partir de um olhar masculino, sem a sua autorização. Roubada na sua privacidade, num longo
fluxo de consciência, a protagonista expõe a sua imediata insubmissão e rebelião ao desenho
perfilado pelo outro e tornado público num “texto de carne-e-osso”, que era ela própria.
Não poderia, portanto, ser outra a linguagem por ela utilizada se não essa, clivada de
palavrões, onde, em cada um deles (e na sua sistemática repetição), pode se vislumbrar a
consciente rebelião de um sujeito feminino que não admite a sua figuração como corpo-
objeto, desprovido de vontade e de autonomia. Ora, ao defender que “todo o palavrão tem
arte” (COELHO, 2014, p. 88), aqui, a personagem coloca em prática esse artifício estético ao
realçar nessa escolha vocabular a sua indignação e revolta. “Merda”, “foder”, “caralho”,
“filho da puta”, “foda-se” e “porra”, por exemplo, podem ser compreendidos como elementos

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constituintes de uma arte obscena, cuja consecução revela a marca da diferença entre aquele
texto – o monólogo do caubói –, desprovido de originalidade, e o seu, com a sua marca, com a
sua impressão digital.
Visto por essa ótica, o romance de Alexandra Lucas Coelho não deixa de revelar a
face feminista que alicerça o seu projeto de criação, na medida em que, tal como ensina
Deborah Cameron,

[...] as mulheres são e devem ser tratadas como sujeitos sexuais autônomos, não
objetos a serem usados para o prazer e o lucro de outras pessoas. As mulheres
devem ser livres para expressar sua sexualidade, sem serem reduzidas a ela ou
definidas exclusivamente em termos sexuais. Seus desejos devem ter importância e
seus limites devem ser respeitados. Por mais básicas que essas demandas possam
parecer, são demandas radicais mesmo agora (CAMERON, 2018, p. 102, tradução
minha).

No caso específico de O meu amante de domingo, tal assertiva pode ser percebida na
reação da mulher de 50 anos ao contemplar no monólogo do caubói uma perspectiva falhada,
monolítica e deturpada. E mesmo como obra, como produto escrito finalizado e acabado,
constata um “texto de carne-e-osso” com particularidades muito mais suas e com as quais o
autor não tinha a menor intimidade. Daí que as referências nesse monólogo a Balzac e a
Nelson Rodrigues, por exemplo, não sejam efetivamente dele, mas da protagonista, que
percebe o poder de usurpação do outro num projeto autoral espoliador.
Ora, nesse sentido, fico a me interrogar se, aqui, O meu amante de domingo não põe
em prática – ou se, pelo menos, não abre um espaço para se pensar num diálogo – com aquela
ideia de Helene Cixous, em que “um texto feminino não pode deixar de ser mais do que
subversivo”, posto que “se ele se escreve, é levantando, vulcanicamente, a velha crosta
imobilizante, que carrega investimentos masculinos” (CIXOUS, 2017, p. 147)? Não à toa,
contra uma economia imobilizadora do corpo feminino, a escrita de Alexandra Lucas Coelho
se insurge de forma incisiva ao operar, na sua articulação, uma corporificação da mulher sem
os essencialismos e os atavismos patriarcais.
Todo o conflito entre a personagem central e o caubói é desencadeado por causa dessa
exposição pública, a ponto de as aventuras, anteriores e posteriores ao encontro com o jovem
dramaturgo e ao evento de publicização da vida amorosa, virem à tona, motivadas por um
desejo desenfreado de vingança. Aliás, a própria narradora confessa explicitamente essa

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vontade, ao se autodenominar uma serial killer, não no sentido de intentar matar vários
homens, mas apenas um e de várias maneiras:

Eu quero trincar-lhe o coração cru, não menos do que um rei já fez, extrair o
tubérculo peniano, triturá-lo picadinho. Quantos dias não me lembrei daquele
cabrão? Nenhum, diria o corvo, em vez de dizer Nunca mais. O dispêndio de
tempo com um cabrão é o que distingue uma pessoa no meu estado, embora eu
não tenha nome para esse estado, além de assassina em série. Sou uma assassina
em série porque quero matar o cabrão muitas vezes. Odeio-me pelo tempo que
perdi a odiá-lo, e odeio-o pelo tempo que perdi a odiar-me. Uma pessoa no meu
estado não fode um mecânico ou um futuro Nobel porque se esqueceu de um
cabrão, ou para o esquecer. Uma pessoa no meu estado fode um mecânico ou um
futuro Nobel por se lembrar de um cabrão, e lembrando-o. Um dia, um pouco
antes do apocalipse, alguém há-de calcular o dispêndio de tempo com cabrões na
cabeça de quem fode (COELHO, 2014, p. 119).

Assim, com uma linguagem livre de convencionalismos e rasurando um


conservadorismo na articulação da semântica narrativa, todo o fluxo irrompe marcado por um
ódio desmedido em relação à traição alheia, cuja satisfação só encontra respaldo nas formas
imaginadas de eliminar definitivamente o algoz que a traiu. No entanto, isso não basta para
que a protagonista seja entendida como uma personagem puramente psico-sociopata. Na
verdade, essa vontade de assassinar o outro não acontece ipsis literis, porque o expurgo e o
exorcismo desse incontido desejo de vingança se realizam ora nas cenas de sexo com o
mecânico – “O mecânico seria a punção que fura o abcesso. E aí o cabrão do caubói
começaria a morrer” (COELHO, 2014, p. 56) –, ora na verbalização do texto que escreve e
onde elimina o outro – “Eis o que dava um mecânico somado a um futuro Nobel, três garrafas
de alvarinho e cinco cafés: O Meu Amante de Domingo começara a brotar aos borbotões,
naquela noite em que eu voltara de Nafarros” (COELHO, 2014, p. 104).
E se a narradora-protagonista assim sucede na consolidação do seu projeto, na
verdade, o romance de Alexandra Lucas Coelho não deixa também de compartilhar essa
recusa da ordem masculina, na medida em que expõe uma personagem fora dos padrões
convencionais por alguns motivos bem demarcados. Um deles pode ser lido explicitamente na
sua corporalidade e como esta própria se enxerga. Sem rodeios, a protagonista autodescreve-
se, declarando, inclusive, aquilo que a faz desejar o corpo masculino:

Gostei das mãos, da voz, da massa. Sou aquilo a que se chama mignone, cinquenta
quilos aos cinquenta anos, e gosto de gajos maciços, que pesem até eu quase
sufocar, o contrário do que acontecia com o caubói. Demasiado novo e demasiado
leve, duplo erro que dava para ver desde o começo, além de todo o resto que foi
dando para ver (COELHO, 2014, p. 23).

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Ao comparar, portanto, o mecânico com o caubói, essa mulher de meia idade, na faixa
dos 50 anos (espécie de releitura contemporânea do modelo balzaquiano?), solteira,
economicamente independente, com autonomia de trânsito e de ações, dona dos seus projetos
e do seu próprio corpo, lembra o cabrão traidor e, ao mesmo tempo, busca inventar novas
fórmulas de o matar. Nesse sentido, cada uma das suas aventuras amorosas mobiliza esse
planejamento.
O jovem oriental, antes do seu casamento, que remete intertextualmente à trama de O
amante, de Marguerite Duras – “Como desperdiçar a oportunidade de ter um amante
vietnamita?” (COELHO, 2014, p. 108); o mecânico de Lisboa, homem casado, com quem ela
mantém uma aventura tórrida e calorosa, e a quem se refere como uma figuração “clichê do
pornô” (COELHO, 2014, p. 18); o “futuro Prémio Nobel” (COELHO, 2014, p. 67), espécie
de caricatura do homem intelectual português, muito mais preocupado com o saber do que
com o prazer do seu próprio corpo; e o “Apolo”, rapaz alto e careca que conhece na piscina e
com quem engata rapidamente.
Interessante observar que todos esses corpos masculinos são descritos e manipulados
pela narradora-protagonista sem qualquer tipo de ponto de vista marcado pelo recato. Aqui,
acredito, encontra-se uma das melhores artimanhas de Alexandra Lucas Coelho na
composição do seu romance. Isto porque, para cada um deles, a autora portuguesa vai
estabelecendo um diálogo intertextual, mantendo assim uma rede capilar de referências
literárias e culturais, que vão desde Sade (capítulo XVII: “Isto não é sobre amor”) a Balzac
(capítulos XXVI, XXVIII e XXXVIII: “Balzaquiana”, “Além-túmulo” e “A rapariga de trinta
anos”, respectivamente), de Flaubert a Nelson Rodrigues (capítulos II e XVI: “Nelson
Rodrigues encontra o cão” e “PAHHHHHH”, respectivamente), de Bernardim Ribeiro
(capítulo VI: “Menina e Moça”) a Euclides da Cunha (capítulo XI: “Euclidiana”), de Camões
a Machado de Assis (capítulo XIX: “Anunciação”), de Oscar Wilde a James Joyce (capítulos
XX e XLI: “Está a falar comigo?” e “O olho do louco”, respectivamente), de Shakespeare
(capítulo XXIII: “Diálogo com a caveira”) a Marguerite Duras (capítulo XXI: “Flashback de
um engate”), de Dostoievski a Sarah Kane (capítulo IX: “Um beijo no paço”), além das
citações explícitas de Zeca Afonso (capítulo VII: “Nêsperas em maio”), de Janis Joplin
(capítulo III: “O mecânico iminente”), da banda de rock alternativo Elbow (capítulo I: “A

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avaria”), de Caetano Veloso (capítulo XVI: “PAHHHHHH”) e do funk carioca de MC Katatal


(capítulo XXXIII: “A vuvuzela da verossimilhança”).
Ou seja, o corpo do romance de Alexandra Lucas Coelho (O meu amante de domingo,
2014) vai sendo construído e montado numa rede de referências intertextuais explícitas, onde
a metatextualidade (com o livro planejado pela narradora-protagonista e autora de “O meu
amante de domingo”) surge como uma das componentes desse jogo lúdico da linguagem
literária – “Já não era o libro por vir, era o livro vindo, desde o título. Sim, O Meu Amante de
Domingo parecia-me bem, assim posto na página” (COELHO, 2014, p. 91) –, sem perder de
vista uma nítida perspectiva estética que não se desvincula de um projeto político assumido:

Tudo começaria com uma narradora que decide escrever depois de se apaixonar
por um impostor. Eu não revelaria o que pusera fim abrupto à relação. Importante
era a fúria, a luta armada, a pulsão de vida contra os filhos da puta. O livro seria
uma espécie de antropofagia, ela comendo o inimigo para ficar mais forte, como
uma tupi portuguesa no Verão de 2014 (COELHO, 2014, p. 91).

Ora, fico a me interrogar se não será a prática composicional da escritora portuguesa


também uma forma de deglutir todas aquelas citações e alusões? Como uma espécie de
devoradora de registros textuais, Alexandra Lucas Coelho fornece pistas, nos gestos de sua
protagonista, de que igualmente o seu romance “seria uma espécie de antropofagia”, onde ela
(a autora) comeria todas as referências para deslindar um gesto feminista.
Ao que tudo indica, o pendor feminista da obra de Alexandra Lucas Coelho sobressai
na sua criatura, bem como na obra em si, confirmando as suas reivindicações. Numa crônica
esclarecedora, em 2016, a autora afirma: “Aos 18 anos, eu achava que era pós-feminista.
Trinta anos depois, sou feminista, mais a cada dia, e não será por acaso que ouço cada vez
mais mulheres declararem-se feministas” (COELHO, 2016). Ou seja, no romance de 2014, é
possível detectar essa visão de mundo, posto que a protagonista de O meu amante de
domingo executa um exercício donjuanesco de encontros e conquistas amorosas, onde a
mulher deixa de ser objeto e assume o protagonismo, enquanto sujeito ativo e atuante nas suas
aventuras. E não será isto uma forma de empoderamento feminino a partir da disposição e da
vivência do seu corpo, além de assumir um ponto de vista feminista para escrever a sua
própria história? Não será essa atitude autoral um gesto explícito de um “feminismo
assumido”, em que há, sim, uma “consciência expressa de que se defende o feminismo”
(TAVARES, 2010, p. 651)?

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No meu entender, a metáfora do caruncho, do corpo de inseto que penetra em


substâncias sólidas, corroendo-as e transformando-as em ruínas de pó, tal como apresentada
no capítulo XIX (“Anunciação”), aponta para essa autorreferencialidade feminista da
efabulação, que tanto alimenta o projeto de escrita da narradora-protagonista, quanto também
parece habitar nas malhas narrativas do romance de Alexandra Lucas Coelho. Efeito
especular, certamente, que poderá ser entendido como aquela “tradução, na linguagem da
ficção literária, desse discurso e dessa intervenção política, mas com um alcance muito mais
vasto”, em virtude da articulação e da “escolha da temática amorosa, da traição e do erotismo
visto a partir de uma perspectiva feminina como foco diegético” (PEREIRA, 2017, p. 116;
grifos meus):

ESCREVE COMO SE ESTIVESSES MORTA. Ao fim de uma noite em que um


exército de carunchos me roeu o cérebro, esta frase apareceu entre mim e o tecto,
género Anunciação. Considerai o caruncho, as suas asas coriáceas, os seus quase
três olhos no tórax. Tal como a vingança, o caruncho é muito subestimado até se
manifestar, geralmente no Verão, geralmente no tecto. A trave é a sua treva, o
Verão, o nosso inferno. A minha casa no Campo Arqueológico é daquelas com
traves de pinho no tecto. Agora que sei do que falo, em verdade vos digo: deixai
os pinhos no campo. Pois não há nada que um caruncho aprecie mais do que um
pedaço de pinho, como o meu amante de domingo diria que eu aprecio o sexo. A
não ser que andeis pensando dar cabo de um filho da puta, no Alto Alentejo e com
gerúndio. Aí, sim, de uma boa trave infestada pode vir a revelação, foi o que
descobri de madrugada (COELHO, 2014, p. 93, destaque do original).

Se a imagem do inseto roedor pode ser compreendida como uma construção


intertextual com aquela ideia machadiana do narrador-defunto, aqui, também, a proposição de
uma escrita corrosiva, enquanto perspectiva estética vinculada a um projeto político, se
consolida, seja no ímpeto da vingança, que estimula a protagonista na concretização da escrita
do seu texto (e vale lembrar o fundo cinza que remete à tela do computador onde o corpo da
obra vai tomando forma e crescendo), seja na forma com que a própria Alexandra Lucas
Coelho tece as artimanhas para a conclusão de sua trama ficcional.
E vale frisar que um detalhe não se desvincula de outro, na medida em que as próprias
personagens surgem destituídas de nome, sem qualquer prejuízo na sua composição
identitária. Tanto assim parece ser que a protagonista pensa, planeja, executa e sente prazer
nas suas conquistas amorosas, demonstrando a adesão dessa mulher a uma normatividade
muito sua, muito particular aos seus princípios de conquista. Seu modus vivendi e seu modus
operandi indicam que é ela, na verdade, quem dita as normas e como os encontros se

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sucedem, numa espécie mesmo de reverberação do conhecido mote do feminismo


contemporâneo: “Meu corpo, minhas regras”.
Nesse ímpeto, por exemplo, as suas aventuras são marcadas pela necessidade de foder,
verbo tantas vezes articulado e conjugado ao longo da narrativa, sem qualquer tipo de
preocupação censorial. Não se trata de fazer amor (ainda que, algumas vezes, os dois atos
coincidam), nem de fazer sexo ou de copular, expressões que facilmente comportariam o
sentido pretendido. Antes, trata-se mesmo de foder, de experimentar o prazer de formas
variadas pelo encontro com o corpo do outro, onde o orgasmo e suas formas de o atingir
seriam o ápice das descrições. Nesse sentido, gosto de pensar que o romance de Alexandra
Lucas Coelho encara a realização sexual como uma Medusa, que, na verdade, ri e seduz, mas
que não transforma o outro em pedra, antes, no lugar da petrificação, concede-lhe uma
dinâmica reorganizadora do caos. Afinal, é a própria narradora a concluir tal tese: “A outra
conclusão de tudo isto é que nada como foder para organizar a vida” (COELHO, 2014, p. 56).
Assim, por exemplo, é o que ocorre quando a protagonista descobre as fotografias
tiradas pelo caubói de partes do seu corpo, ao lado de anotações do monólogo. Numa espécie
de consecução violenta de um kama sutra muito pessoal, a protagonista expõe como os corpos
em convulsão vulcânica conseguem atingir o clímax do prazer e da liberdade:

Afastei a pilha de livros, Os papéis eram impressões de fotografias minhas a


dormir, pés, mãos, braços, ombros, mamilos, barriga, púbis, coxas, nádegas.

Quando o caubói saiu do quarto eu estava no meu melhor humor assassino.


– O que é isto?
Ergui as folhas e o sorriso dele desapareceu
– Caralho, não me lembrava que tinha ficado aí
– Caralho digo eu. O que é esta merda?
– Ehhhh, que tom é esse, minha?
De repente ele ficara furioso. Já estávamos os dois de pé, frente a frente.
– Que tom é este? Que merda de fotos são estas sem eu saber? E o que é que
fazem aqui? Estás a pensar projectá-las no teu monólogo? [...]
– Queres saber que merda de fotos são estas? Era uma cena que eu ia fazer
para te dar. Um filme com estas fotos, outras fotos e um texto que eu ia escrever
pra ti, foda-se.

Um, dois, três, quatro, cinco.

Eu disse foda-se e atirei com as folhas, ele disse foda-se, não confias em mim?,
eu disse foda-se, desculpa, ele disse, foda-se, achas que sou o quê?, eu disse foda-
se, desculpa, desculpa.

Um, dois, três, quatro, cinco.

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Aproximei-me, meti as mãos no cabelo dele, ele disse, minha, voltou a abanar
a cabeça, depois agarrou-me o pescoço como no primeiro beijo, mas agora com
força, porque já estava certo do que então adivinhara.

Foi-me empurrando até à parede. Era uma parede de pedra calcária, senti as
arestas quando ele me esmagou contra elas, mantendo a mão direita no meu
pescoço, enquanto com a esquerda desapertava o cinto. O pau cresceu na minha
barriga, ligeiramente oblíquo, cada vez mais duro. Fitávamo-nos de bocas coladas,
respiração na respiração, um, dois, três, quatro, cinco. Seis seria o beijo, eu ia
fechar os olhos, mas de repente ele forçou-me a rodar, retirando a mão do pescoço
até poder apertar a nuca, e me esmagar de novo contra a parede. Senti as arestas
nos mamilos, a areia na cara. Agora o pau dele estava nas minhas vértebras, e as
mãos dele nas minhas nádegas, depois o pau desceu entre as nádegas, forçando o
tecido das cuecas a baixar, e ele passou a mão esquerda entre as minhas pernas,
enfiou um, dois, três dedos, porque não havia atrito, tudo era líquido, quente,
cheio, irrigado. Então, mantendo os dedos enfiados até à palma da mão, ele
agarrou no pau com a mão direita e introduziu-o entre as nádegas. Eu sussurrei,
devagar, ele repetiu, devagar na minha orelha, mordeu a orelha, enfiou a língua
nela, tirou e voltou a enfiar os dedos, tirou, enfiou, rodou, eu voltei a cara para o
outro lado, tentando achar um pouso sem arestas, sem areia, ele mordeu essa
orelha, enfiou a língua nela, tirou e voltou a enfiar os dedos, tirou, enfiou, rodou,
senti a ponta do pau abrir o esfíncter, a propagação nervosa através do períneo
(raízes, ramos, canais, terminais), eu repeti, devagar, ele desceu a língua, cravou
os dentes na nuca, e o pau entrou de um golpe (COELHO, 2014, p. 130-132).

Toda a sequência revela já uma fúria que extrapola a pele e os poros, num gesto de
recusa da protagonista em higienizar ou minimizar a forma de narrar o ato sexual entre ela o
caubói. Se a narrativa ganha, aqui, ares de um teor “pornográfico”, porque tece de forma
direta e crua as relações sexuais entre os seus agentes, acredito que O meu amante de
domingo, de Alexandra Lucas Coelho, traz uma contribuição significativa nesse sentido, já
que a liberdade sexual – termo, aliás, distintivo de pornografia, tal como Jorge de Sena (1977)
já o havia explicado – coincide com essa exposição frontal de corpos na sua nudez pujante.
Nesse sentido, o ponto de vista feminista e libertário demonstra que certos “conceitos
e controlos falogocêntricos podem ser examinados e desmontados, não só em teoria mas na
prática” (JONES, 2002, p. 77). Um deles, com certeza, é o que diz respeito às diferenças
físicas componentes dos corpos e a linguagem, enquanto corpo, que as expressa. Não será à
toa, portanto, que, no capítulo V, sintomaticamente intitulado “Observação do volume”, o
órgão sexual masculino será o ponto central das digressões da narradora: “A posição do pau
de um mecânico no horizonte não varia em relação a um beto de Cascais. [...] Numa
linguagem que não ofenda a velhinha do rés-do-chão, poderíamos definir o pau como a
intersecção das linhas do horizonte de um gajo” (COELHO, 2014, p. 33). Do mesmo modo,
no capítulo XXXI (“Apolo na piscina”), toda a reflexão se desenvolve em torno da diferente
terminologia para designar o órgão sexual feminino: “Buceta é um óptimo nome para cona.

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Aliás, portugueses e brasileiros poderiam resolver assim as suas diferenças, caso a literatura
não funcione. Português, conheça a buceta. Brasileiro, conheça a cona. Pronto, ide como
irmãos, e que a paz vos acompanhe” (COELHO, 2014, p. 135).
Observa-se, portanto, aqui, numa obra do século XXI, que todas as relações sexuais
bem como as descrições narrativas são verbalizadas a partir de uma perspectiva feminina e
feminista. Ou seja, aquilo, que dentro da tradição patriarcal sempre foi uma apanágio
masculino, nas mãos de uma escritora inteligente e criativa como Alexandra Lucas Coelho,
torna-se uma bem urdida artimanha na construção romanesca, porque põe em xeque a própria
assertiva do caráter pornográfico que o texto poderia ter. Afinal, por revelar e descortinar
frontalmente os papéis e as atuações sexuais, bem como as particularidades dos corpos,
poderia O meu amante de domingo ser considerado pornográfico?
Questões como essa, muitas vezes suscitadas em sites de venda e divulgação de livros,
não deixam de ser interessantes, porque revelam um puritanismo hipócrita e execrador na
percepção do romance de Alexandra Lucas Coelho3. De minha parte, acredito que este
aspecto seja o menos importante, na medida em que, conforme bem ensinou Jorge de Sena, “o
corpo humano não é nem deixa de ser indecente” (SENA, 1977, p. 286), apenas porque surge
exposto na sua frontalidade crua. E, ao contrário de certas mentalidades hipocritamente
puritanas, “o sexo não é uma vergonha, nem pode ser um pecado” (SENA, 1977, p. 279).
Na minha concepção, vergonha, pecado ou indecente é negar a necessidade do prazer
do corpo na sua materialização sexual. Aliás, a narradora-protagonista por diversas vezes
adverte, ensina e defende a sua motivação: “Dai-me um homem que não pense. Um homem
de pau duro que eu queira beijar, porque sem beijar não dá. Não amará e nem será amado. E

3
No site www.wook.pt, um dos principais pontos portugueses de venda on-line de livros, dentre os muitos
comentários a favor do texto de Alexandra Lucas Coelho, duas se destacam exatamente pela sua insatisfação
com o estilo e a forma de narrar da autora. Numa delas, intitulada “A banalidade das frases curtas”, o assinante
Paulo André declara: “Como é que um livro cuja escrita é a banalidade no seu estado puro consegue atrair
muito público? Eis a questão que se deve formular sobre este livro. Quer a conceptualização da história, quer a
coerência narrativa, quer ainda a linguagem são, neste livro, um exemplo claro do que os jovens escritores
devem evitar. Se pretendeis ser escritores, não pegueis neste livro. Como não se pode dar menos de uma
estrela, fica aqui a opinião que é abaixo de zero”. Uma outra, assinada por Romeu Pereira, declara: “Se
pretende ler um bom livro, este é certamente o livro que deve evitar. Apesar das boas críticas da crítica (vá-se
lá saber porquê - ou daí até se sabe, não fosse a autora jornalista), e de ter recebido o prémio APE (como foi
possível?), o livro é um chorrilho de calão e de lugares-comuns, ao estilo Margarida Rebelo Pinto. Dir-se-ia
que Alexandra Lucas Coelho está para a primeira metade do século XXI o que a Margarida Rebelo Pinto
esteve para a última década do século passado”. Se ambas as opiniões não constituem a maioria no site, não
deixam elas de registrar a incompreensão do público (masculino? Afinal, são duas pessoas que assinam com
nomes de homens!) português diante da visualização libertária do sexo a partir de uma perspectiva feminina
(cf. https://www.wook.pt/livro/o-meu-amante-de-domingo-alexandra-lucas-coelho/16025084).

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dirá: posso beijá-la?” (COELHO, 2014, p. 30). Talvez, por isso, o papel tradicional da
maternidade aparece, em O meu amante de domingo, profundamente questionado, posto que a
mulher de 50 anos revela a sua impossibilidade em ser mãe, mas não faz dessa incapacidade a
fonte de um discurso vitimista ou panfletário. Ao contrário, não deixa de estabelecer uma
rasura à função condicionada pela lógica patriarcal, afinal, se, tal como aponta Catherine
Clément (1993), as mulheres, “quando contrariam sua função familiar e ornamental, acabam
punidas, decaídas, abandonadas ou mortas” (CLÉMENT, 1993, p. 14), essas fatalidades não
atingem a protagonista do romance, antes, observa-se uma forma de rejeitar essa
subalternidade, sobretudo, na liberdade com que expressa a sua sexualidade e como faz dela
uma arma pujante para confirmar o seu corpo como um espaço de liberdade por excelência.
Ora, aqui, mais uma vez, acredito que o romance de Alexandra Lucas Coelho
apresenta caminhos possíveis de diálogo com o pensamento de Hélene Cixous, pois
concede o protagonismo a uma mulher, muito próxima daquele elenco composto por “as
que não serão domésticas nem enganadas, as que não terão medo do risco de ser mulher”
(CIXOUS, 2017, p. 154)4. Adotando, portanto, uma perspectiva feminina/feminista, O meu
amante de domingo desnuda a história de uma mulher pela sua forma de ver, ser e estar no
mundo, não apenas no seu sentido físico e íntimo, mas também na sua dimensão política.
Ao inserir um texto homônimo na trama, fruto do desejo de vingança de sua criatura, a
escritora portuguesa aposta numa possibilidade de inscrever trajetórias femininas, antes
silenciadas por um discurso masculinista. Por isso, não gratuitamente, a protagonista sai do
papel de revisora, ou seja, de quem simplesmente corrige um produto já feito, e entra no
universo da sua própria criação ao colocar em prática o seu projeto de escrita de um
romance, também intitulado “O meu amante de domingo”.
Assim, fico a me interrogar se não será essa a forma de compreender o romance de
Alexandra Lucas Coelho como locus da diferença, onde é possível desmistificar o sexo
como aquele exercício que objetifica e petrifica e encará-lo como uma dinâmica de prazer e

4
Parece-me pertinente esclarecer que a minha leitura comparativa é motivada pela atual pesquisa de doutorado
de Vivian Leme Furlan, desenvolvida na UNESP/FCLAr com Bolsa FAPESP, cujo eixo central gira em torno do
pensamento matrista de Natália Correia, enquanto uma forma peculiar de expressar o pendor feminista da autora,
e as ressonâncias dessa linhagem em algumas escritoras portuguesas da atualidade. Tal aspecto já aparece
ensaiado num recente artigo seu (FURLAN, 2018), onde procura destacar a força literária e política nos textos
natalianos. Desse modo, abre-se um espaço frutífero para reflexões sobre os diálogos entre as principais
intelectuais das diferentes correntes feministas e uma boa parte da produção literária contemporânea, o que, de
certo modo, venho tentando desenvolver ao longo deste trabalho.

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realização? Se assim é, realmente, O meu amante de domingo encara essa Medusa que ri e
seduz e revela a sua beleza sem medos e sem rodeios. E não será isto uma efetiva “clareza
de percepção e uma vitalidade que pode pôr por terra montanhas de ilusões falocêntricas”
(JONES, 2002, p. 83)? Não será essa vontade de saber do corpo da protagonista uma “fonte
directa da escrita feminina, um poderoso discurso alternativo”, que “aparece como possível:
escrever a partir do corpo é recriar o mundo” (JONES, 2002, p. 83)?
Gosto de pensar que sim. Por isso, se a concretização da vingança, do assassinato do
outro não surge como um fato per se, mas como uma morte simbólica e reiteradamente
irônica, afinal, a narradora-protagonista pode manipular os destinos dos corpos na tela do
computador, ao iniciar, deletar e reconstruir a sua narrativa. Aliás, ao contrário do
monólogo do caubói, marcado por um congelamento de atos realizados na privacidade, o
“romance” da protagonista surge como um corpo dinâmico que pode ser cortado,
acrescentado, alterado, diminuído e realçado de acordo com a sua vontade.
Se o texto escrito pela protagonista pode ser entendido como espaço onde “se desdiz,
se desmonta, se desnomeia. E se constroem novas imagens do corpo”
(AMARAL, 2017, p. 66), não apenas os dos seus amantes, mas o seu próprio, também a
dimensão corpórea da personagem surge, nas páginas de O meu amante de domingo, como
uma espécie de locus, onde a mulher é dona dos seus desejos, das suas conquistas amorosas,
das narrativas desses encontros e das consequências. Deixa, portanto, de ser mero objeto
manipulado pela imagética e descrição masculina e torna-se ela própria, agente de
“reivindicação do desejo e da inscrição desse desejo num corpo de mulher fortemente
erotizado, que assim se faz representar no corpo textual” (AMARAL, 2017, p. 66).
Tal como a metáfora do balão, é preciso “chegar ao ponto em que o corpo estoura no
ar” (COELHO, 2014, p. 29), recusando discursos cerceadores e censoriais. Talvez, por isso,
em O meu amante de domingo, a mulher madura rechaça o monólogo do caubói e a forma
como este se concretiza, porque percebe naquele texto a representação de uma dominação
masculina, em que a insere num “permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de
dependência simbólica” (BOURDIEU, 2010, p. 82). Daí, a necessidade de expurgar e
exorcizar aquele corpo masculino pela morte simbólica do outro, reiterada no seu projeto de
escrita. Assim, a protagonista molda a sua forma de ser e de estar no mundo, porque não só

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rejeita o estatuto de subalternidade, como também advoga e reivindica o seu papel ativo nas
relações:

De modo que, kaput, recomecemos. Vou apagar tudo menos a última página do
livro, escrita desde a noite do caruncho, porque desde o princípio achei que no fim
haveria um belo de um apache a despachar um monte de filhos da puta. Depois da
matança, ele diria: perderam, caubois. E caminharíamos para o pôr-do-sol em cima
dos nossos fiéis alazões.

Afinal essa página era a primeira, portanto assim será.

Caminhamos para o pôr-do-sol em cima dos nossos fiéis alazões. Atrás de nós o
céu está vermelho-sangue, aves de rapina sobrevoam a matança, redemoinhos de
pó sobem no ar. À porta do saloon, Nelson Rodrigues fala de coiotes com Quentin
Tarantino quando se aproxima Johnny Guitar, melancólico, a enrolar um cigarro.
E então, pelo arco entre as pernas dele, avisto o filho da puta, dilacerado, exangue,
já pitéu de abutres, mas ainda capaz de ver, quando eu me voltar pela última vez,
que este dedo do meio é para ele (COELHO, 2014, p. 175, destaque do original).

Ora, diante da recusa do texto e do corpo do caubói, diante das rasuras construídas
por um projeto de escrita, movido pelo gesto corrosivo do caruncho, nada mais justo de o
encerramento da trama se dar com o gesto performatizado pela protagonista, ao levantar o
dedo médio. No fundo, parece ser uma resposta à altura aos padrões conservadores e
machistas que ainda teimam em reconduzir a mulher a um papel de objetificação e
subserviência. Se a narradora-protagonista prefere ela própria escrever o seu romance, numa
artimanha metatextual e especular, Alexandra Lucas Coelho dá vasão a uma visão de mundo
onde é possível não apenas encarar algumas Medusas, mas contemplar o seu sorriso e
corresponder ao seu sedutor convite sem sofrer os efeitos colaterais de uma possível
petrificação.
Na verdade, em O meu amante de domingo, os corpos escritos do mecânico, do
caubói, do futuro Nobel, do amante vietnamita, do Apolo na piscina e, agora, “um belo de
um apache” (COELHO, 2014, p. 175) pela pena feminina e o da personagem central
propõem uma encenação, onde a linguagem exerce uma função física de libertação e rasura
de modelos. Se “escrever toca no corpo, por essência” (NANCY, 2000, p. 12), tal como
sugere Jean-Luc Nancy, essa obra de Alexandra Lucas Coelho reivindica o espaço da escrita
como o local onde a mulher pode não só escrever e reinscrever o seu corpo dentro de uma
lógica feminista, como pode também criar e inventar dimensões outras para outros corpos,
incluindo os masculinos. Não será, na verdade, esse exercício uma instigante forma de criar
corpos que se expandem em liberdade a ponto de estourarem no ar?

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REFERÊNCIAS

AMARAL, Ana Luísa. Arder a palavra e outros incêndios. Lisboa: Relógio d’Água,
2017.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. de Maria Helena Kühner. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CAMERON, Deborah. Feminism. London: Profile Books, 2018.

CIXOUS, Hélène. “O sorriso da Medusa”. In: BRANDÃO, Izabel et al. (org.). Traduções da
cultura. Perspectivas críticas feministas (1970-2010). Trad. de Luciana Eleonora de Freitas
C. Deplagne et al. Maceió: EDUFAL; Florianópolis: Editora da UFSC, 2017, p. 129-155.

CLÉMENT, Catherine. A Ópera ou a derrota das mulheres. Trad. de Rachel Gutiérrez. Rio
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