Dtos Fundamentais
Dtos Fundamentais
Dtos Fundamentais
DIREITOS FUNDAMENTAIS
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Não obstante ser a razão divina a origem da lei, a filosofia da lei atrás exposta não
sustenta uma normatividade abstracta, sistemática e legalmente determinada. Se o
direito (natural) é o pressuposto e fundamento (constitutivo) da validade das leis, não
significa isto a dispensa da determinação e explicitação na comunidade concreta do
sentimento normativo-material histórica e socialmente adquado.
Se, com fundamento na sua pressuposta racionalidade, a lei humana se funda numa
teleologia onto-axiológica que a transcende, ela é em si mesma a conveniente
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determinação histórica do justo racional. Tal com refere Castanheira Neves, a lei
positiva será constituída por uma razão material e prudencial; razão material, porque
assumindo na sua intencionalidade e orientando-se no seu critério por aquela teleologia
que lhe vai pressuposta e no sentido da qual se há-de determinar; razão prudencial,
porque é chamada a pronunciar, ainda que em termos prescritivos, sobre a validade
prática, sobre o justo ou o injusto de comportamentos e situações humano-sociais
postulados como objectos de uma intenção prático-judicativa.
È a essa razão material e prudencial que se dirigem os elementos formais da
generalidade, os quais mais não são do que tópicos instrumentais de uma normatividade
material referenciada ao nem comum: "como a lei humana se ordena ao bem comum,
deve atender mais ao comum que ao particular, e segundo as pessoas, os negócios e
os tempos", pois importa que as leis humanas sejam proporcionadas ao bem comum; e,
sendo "nula a utilidade da lei se não abarcar mais do que um caso singular", o juízo
prudencial pode legitimar a dispensa e o privilégio - excepção da lei, aquela,
prerrogativa legal, este, quando ditados pelo bem comum e pela equidade. S. Tomás de
Aquino subscreve, assim, uma noção de igualdade em sentido material.
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Se, no sistema pré-moderno, o direito era tido por superior à lei e a esta transcendia - o
que implicava não ser o poder político o titular constitutivo do direito -, o pensamento
moderno vai converter a lei no constituens do direito e o poder político vai definir-se
como criador do direito num sistema político constituído juridicamente como Estado
de legislação.
Abrangendo, porém, esta fase da teoria da lei o período do século XVI ao século XVIII,
comporta concepções de lei que, irmanadas na recusa de uma ordem teológico-
metafísica naturalmente transcendente, concebem, no entanto, os fundamentos da nova
ordem jurídica de modo diverso. Se a autonomia individual é agora o pressuposto e a
razão do jusnaturalismo, os fundamentos imediatos da racionalidade normativa vão
sofrer uma complexa evolução cujas fases mais marcantes aparecem associadas a quatro
pensadores e das quais se pretende, agora, dar conta.
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entre os homens. Para este autor, a lei deve ser vista como uma forma do poder político
manter a paz e a segurança; há, assim, um corte radical com a noção de busca
metafísica (S. Tomás de Aquino).
O ponto de partida deste autor (que vive, justamente, no período em que tem início a
contestação aos regimes absolutistas) é o jusnaturalismo; ou seja, da autonomia
individual ilimitada, como dado inicial desprendido de qualquer preocupação
teleológico-metafísica, faz Hobbes o seu ponto de partida. A esse estado de liberdade
absoluta, de direitos individuais ilimitados, em que cada um tem direito a tudo,
inclusive à vida dos outros, chama o autor estado de natureza. Isto significa guerra de
todos contra todos no exercício do direito, o qual, por definição, é poder ilimitado: o
estado de natureza é o verdadeiro estado de direito. Por imperativo da razão, o homem
sente necessidade de acatar regras tendentes à salvaguarda da paz e da segurança.
Tais regras derivam imediatamente da razão ordenada à paz civil, e, em razão disso,
renunciará o homem ao seu "direito a tudo". Destas regras gerais da razão retira Hobbes
as leis naturais limitativas do direito. As leis naturais, como exigências da razão em
ordem à paz, são, assim, em Hobbes, contrapostas ao direito: a lei (law) é obrigação,
vinculação; o direito (right) é liberdade, poder. Em ordem à paz e à segurança, a lei
natural exige que o homem renuncie ao seu direito natural. Deste modo, a lei converte-
se em negação do direito: onde há direito não há lei; onde há lei, faltam o direito e a
liberdade.
As regras ditadas pela razão são, no entanto, insuficientes para garantir a paz e a
segurança entre os homens. É que o conteúdo de tais regras é indefinido e de
interpretação diversa, consoante as distintas concepções acerca da equidade e da justiça.
A garantia da paz e da segurança vai, por isso, necessitar de determinações precisas
que são as actually Laws, mandatos do soberano, que constituem o civil Law. O poder
do Estado, assim, como o poder soberano de ditar leis, assenta, em Hobbes, em bases
contratualistas consubstanciadas ao contrato de sujeição. Diferentemente, porém, das
teorias contratualistas medievais, em que o monarca era parte do pactum subjectionis,
em Hobbes o soberano é o destinatário do contrato. Cada cidadão renuncia ao direito
de determinar-se por si mesmo e cede-o ao soberano, sob condição de que todos os
outros cidadãos cedam também esse direito e o coloquem nas mãos do soberano. Em
virtude deste contrato colectivo, os cidadãos renunciam aos seus direitos liberdades e
conferem o poder de soberania a um "terceiro" - o soberano. Nasce, deste modo, o
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Leviathan (principal obra política de Hobbes, na qual o autor exprime o seu pensamento
político definitivo), o Deus mortal.
Os indivíduos integram-se na sociedade política e submetem-se ao poder do soberano
por meio de um pacto realizado exclusivamente entre eles pelo qual "renunciam a favor
do amo a todo o direito e a toda a liberdade capazes de prejudicar a paz. Eles ficam
obrigados; o amo a quem eles se deram, não. Hobbes escapa deste modo ao que
constituía a grande debilidade do dualismo medieval anterior: um gérmen de conflito
inevitável entre os direitos da colectividade erigida em pessoa, em povo, e o soberano,
órgão da personalidade do Estado. Longe de debilitar o poder, Hobbes reforça-o
ilimitadamente".
De entre os poderes de soberania, que foram transferidos para o soberano pelo contrato
político de sujeição, destaca-se o de legislar. Pelas leis (civil laws) exerce o soberano
um poder supremo e ilimitado: a ele compete ditar as leis, modificá-las e aplicá-las. Se
as regras da lei natural limitavam já os direitos do indivíduo, as leis civis acentuam essa
limitação. O âmbito da liberdade individual é, deste modo, delimitado pelas imposições
legais, constituindo um espaço não sujeito à "justiça legal"; mas, onde esta se
estabelece, é irrecusável, porquanto é o único instrumento de salvaguarda da paz.
Por definição, toda a lei ditada pelo Leviathan é justa e obriga, independentemente do
seu conteúdo ou estrutura. É certo que Hobbes fala numa vinculação do soberano às leis
naturais, mas tal vinculação só respeita à relação do soberano com Deus, pois, no que
respeita aos homens, o dever de obediência às prescrições do soberano é absoluta. Por
outro lado, Hobbes vê nas civil laws uma expressão-determinação da lei natural -
realidades com um conteúdo substancial firmado pelo pensamento ocidental europeu
com propensão a uma validade universal. Atendendo a esse património comum dos
povos civilizados, fala Hobbes em leis boas e más, daí não retirando todavia
consequências quanto à obrigatoriedade das leis, nem quanto à sua justiça. A distinção
entre leis boas e más estabelece-se sobre a conformidade ou não com a tradição
jusnaturalista, mas tal só constitui parâmetro de avaliação interna para o Leviathan e
seus conselheiros. É que a "justiça" da lei é pragmatizada à manutenção da paz no
Estado, que só a vontade eficaz do Leviathan pode assegurar. Assim, entende Hobbes,
que são legítimas todas as possíveis formas de expressão dessa vontade: mandatos a
todos os súbditos, ou restritos aos de uma província, classe ou grupo, ou
particularizados a um ou vários súbditos. É questão de pura conveniência e
oportunidade, que apenas ao soberano diz respeito, o dirigir-se a todos os súbditos
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através de uma lei geral ou só a alguns através de leis individuais; e se o soberano pode
ditar uma lei particular e privar um determinado súbdito de mais liberdade que outro,
também pode excepcionar a aplicação das leis através de privilégios. Admite, no
entanto, Hobbes que o comando do soberano seja normalmente uma lei geral. São,
contudo, razões técnicas que a tal aconselham: como o Leviathan não pode decidir só
por si todos os casos particulares, necessita de funcionários (juizes) que garantam,
seguindo as suas directivas, a paz e a segurança em todo o caso concreto. A lei geral
estabelece essas directivas. Sendo, no entanto, a lei um instrumento em ordem à paz e à
a segurança, a generalidade é preterida se, por um juízo de oportunidade política do
Leviathan, tais "valores" aconselham os mandatos individuais. A salvaguarda da paz e
da segurança jurídicas são, deste modo, as causas da lei; causas meramente formais,
conquanto na auctoritas se racionalizam.
O critério racional-finalístico da "justiça material" que em S. Tomás de Aquino
aconselhava à estrutura geral da lei como a melhor forma de assegurar a universalidade
material da lei, é substituído em Hobbes pelo critério racional-finalístico da
salvaguarda da paz e da segurança. Como, porém, para Hobbes o essencial para
assegurar a paz não é a "causa justa" da lei, mas a sua efectividade, ou seja, o poder
sancionador que lhe é ínsito, a lei não encontra critérios de normatividade fora da
auctoritas e, assim, a ratio da lei é a própria vontade soberana. A lei tem, agora, no
poder político o seu constituens, embora, diferentemente de Locke, ou de Rousseau,
Hobbes não assimile a lei ao direito, antes entenda este como espaço da autonomia
individual livre da legalidade.
Resta dizer que assim se compreende a razão pela qual Hobbes é um tenaz defensor da
monarquia absoluta, podendo, no limite, afirmar-se que a sua visão político-
tecnocrática da lei apresenta algumas semelhanças com o que se passa actualmente, ao
menos naquilo que hoje se traduz pela busca de uma justificação política da lei. è neste
sentido que parece haver um certo retorno ao conceito de lei em Hobbes.
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1. A DOUTRINA DUALISTA
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uma lógica legitimista dessas várias Casas Reais, não obstante a crescente influência da
Revolução Francesa, designadamente ao nível das constituições desses principados
(exemplos: as Constituições de Weimar de 1816, da Baviera e de Baden de 1818 e de
Wurttemberg de 1819).
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equilíbrio. Por outro lado, esse equilíbrio satisfazia a ideologia liberal dominante ("o
Estado de Direito, antes de tomar posições criativas no processo político, foi garantia
do ordenamento social existente"). Na verdade, o ponto central no qual conjugavam e
culminavam todas as ânsias e ideais políticos do movimento constitucional era o ideal
jurídico-natural da autonomia individual. Nele radicavam a soberania popular, a ideia
do Estado-Nação, o ideal da liberdade e igualdade e a exigência estrutural de limitação
do poder estatal. Estas representações da autonomia individual marcaram
decisivamente o quadro constitucional liberal e não contradiziam, antes pugnavam por
uma separação profunda entre Estado e Sociedade.
A sociedade liberal não era entendida como comunidade, mas como uma soma de
indivíduos, ou seja, como o somatório das vontades individuais. Ora, se a sociedade é
esse somatório, em última análise, é o próprio homem individual que procura
determinar a sua posição perante o Estado, que a ele se opõe como poder exterior,
impondo a razão da sociedade à ética do Príncipe. O critério e o impulso desta nova
orientação provinham, nomeadamente, da ideia da razão do iluminismo colocada
agora ao serviço da posição defensiva da sociedade contra o absolutismo. Em
primeiro plano, era a liberdade individual e a propriedade que se pretendia
salvaguardar da interferência do poder. Estas exigências dirigiam-se contra o Estado: a
liberdade era entendida como libertação do Estado, como dispensa da tutela estatal. A
função do Estado deveria restringir-se à garantia e permanência da ordem jurídica,
segundo o ideal jurídico kanteano que se propunha garantir a cada indivíduo a
liberdade como homem, a igualdade como súbdito e a independência como cidadão.
As forças que impulsionavam o movimento liberal constitucional não aspiravam, com
efeito, a fundamentar um Estado que representasse uma "forma de integração da
sociedade". Era a um Estado-aparelho, e não a um Estado-comunidade, que se
dirigia a Constituição. O ideal burguês não exigia a limitação do poder estadual e a
participação na soberania estatal para dirigir o Estado em cooperação com o Monarca,
mas para assegurar e garantir o âmbito da liberdade individual. O Estado aparecia
estritamente controlado, como mero servidor da sociedade, submetendo-se a um sistema
acabado de normas jurídicas, ou simplesmente identificado com esse sistema de normas,
não sendo mais então que norma e processo. Isso, de resto, estava de acordo com
"aquela contenção de finalidades que corresponde ao ideário liberal".
Garante desse posicionamento do Estado era a participação da Representação popular
no poder estatal. Antes da época constitucional, todo o poder soberano estava no
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Aí ganha voz aquela concepção sociológica-substantiva que Lorenz Von Stein havia
já contraposto ao logicismo formalista de Laband. Na verdade, Stein, na sua obra
Actualidade e Futuro da Ciência do Direito e do Estado na Alemanha, enuncia uma
teorética constitucional em grande medida oposta ao logicismo jurídico de Laband. No
seu entendimento, o conteúdo do direito não é direito. Ou seja, tudo o que se ensina
conceitualmente, o que aparece como regra de direito ou como sentença, é produto
daquelas forças que, como sujeitos ou objectos, o criam. Neste sentido, o que nos
aprece como direito não é um conceito científico, mas uma situação económica e
social da humanidade. E exemplifica: o conceito dogmático-orgânico da personalidade
tem que ser eternamente o mesmo; no entanto em toda a personalidade há vida e, na
medida em que existe vida, a personalidade não pode permanecer igual, pelo que vai
necessariamente transformar-se o direito em não direito e este último em direito. Este
processo aplica-se à personalidade do Estado. Aí existe também um processo vital de
desenvolvimento da personalidade, sendo o direito (vigente) a expressão vital desse
processo. Por isso, o direito é uma manifestação do Estado enquanto expressão de
uma dada situação económica e social num processo em que a vontade do Estado se
produz numa relação intensa com a economia e a sociedade. O direito é, assim, uma
expressão objectiva, um acto de vontade, ou seja, a legislação, a lei. Este é o direito
positivo ou vigente: puro conceito jurídico de uma personalidade no acto de regulação
de uma determinada situação económica ou social. Se se pretende, porém, conhecer a
essência do direito positivo, ele tem de ser compreendido como consequência
(produto) de determinadas forças que o produziram.
Também Rudolf Smend caracteriza o Estado e o Direito como "formas espirituais
colectivas", ou seja, como "unidades de sentido de realidade espiritual". O Estado não é
um fenómeno natural que deva ser simplesmente constatado, mas uma realização
cultural que, como realidade da vida do espírito, é fluída, necessitada continuamente
de renovação e desenvolvimento, posta continuamente em dúvida. Deste modo, o
Estado não se constitui como um pressuposto de referência das leis, das sentenças ou de
actos administrativos; pelo contrário, o Estado realiza-se e existe graças a essas
manifestações, que, em si mesmas, são a actualização funcional dum processo de
integração, o qual é o núcleo substancial do ser do Estado.
É significativo que em nenhum dos autores revistos apareça um tratamento autónomo e
desenvolvido quer da função legislativa quer da lei. A lei intui-se aí como uma
manifestação existencial do Estado e, tal como este, é definida numa perspectiva de
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"inovação do direito natural foi a forma pela qual as classes que se rebelavam contra a
ordem existente conferiram legitimidade a um direito que se não apoiava na tradição
ou em normas religiosas positivas"; num segundo momento, todavia, "o direito natural
converteu-se na forma específica de legitimidade do ordenamento jurídico
revolucionariamente criado".
Como em todo o processo revolucionário, à medida em que se vão estabelecendo, as
novas instituições tendem a alhear-se da sua base ideológico-axiológica. Assim, o
carácter negativo-material e instrumental da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 converteu-se rapidamente em construção jurídico-formal
constitutiva, elevada a ideal atemporal, o que acarretou a formalização da "base
cultural" de que partira, o que, por sua vez, haveria de significar a sua negação.
Desta forma observa-se, no campo das ciências do direito, a progressiva eliminação das
bases jusnaturalistas. As razões político-jurídicas são, no fundo, o temor pela perda da
segurança de posições conquistadas. É que o recurso a um direito suprapositivo
contém sempre uma dupla ameaça: ameaça política, enquanto questiona continuamente
situações e posições, e pode legitimar mudanças que se não desejam; ameaça jurídica,
porque questiona os próprios fundamentos das soluções que a dogmática jurídica tem
por adquiridas. É curioso, de resto, observar a marcha dos interesses, e da sua
fundamentação, que triunfaram com o constitucionalismo: primeiro, invoca as
supremas razões do direito natural, depois, solidificadas as posições, refugia-se num
positivismo jurídico, que é a negação de qualquer ideia de direito suprapositivo. A
esta evolução presidia a tradução política dos interesses reinantes expressa na situação
de uma burguesia que, começando por surgir em oposição ao Estado do anciem régime,
se vê, depois, consolidada a sua hegemonia política, confrontada com as
reivindicações do quarto estado, procurando então utilizar o Estado contra a exigência
democrática e impedir que se passe do estádio da democracia governada para o da
democracia governante.
Ganha, assim, relevo uma concepção de Estado de Direito (de legalidade), que,
pressupondo o reconhecimento dos direitos individuais, considerava como dimensão
determinante ou exclusiva da racionalização do Estado as próprias técnicas de garantia
daqueles direitos, concebidas agora como valores autónomos. A consolidação do Estado
liberal de Direito foi disso exemplo. Apartando-se da perspectiva ética que o
justificou, materializou-se na legalidade vigente, a partir do momento em que esta
garantia uma determinada estrutura social, ou seja, a estrutura da propriedade
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justo título, na comunidade, mas de conhecer os seus limites, isto é, de reduzir o seu
papel a termos mais modestos de que aquele que pretendiam as teses do racionalismo
metafísico, que estão na base do legalismo decisionista - legalismo que, como já
apontamos, tem, de facto, uma metafísica, e mesmo uma mística, tão transcendente
como a do jusnaturalismo mais dogmático. Trata-se simplesmente de recordar que o
Direito excede necessariamente a lei, e isto, mais que uma questão de princípio ("de
ciência"), é um facto da comum experiência da vida jurídica real; esse facto elementar e
incontroverso desmonora, sem mais, a construção positivista e remete,
inapelavelmente, o critério do Direito para princípios supralegais.
Os juristas devem trabalhar "para servir a vida", e não para merecer o predicado
"ciência". "Se os homens que participam numa determinada comunidade histórica
convergem em certos valores, valores convocados a fundamentar e a dar sentido à sua
prática comungada, que importa que esses valores fundamentais não possam
demonstrar-se teorético.cientificamente ?". É que, como refere BAPTISTA
MACHADO, "quem não acede `ideia de que aquela função originária ("natural") do
acto comunicativo está para além de todas as estratégias humanas (não é "disponível"
por estas sem desnaturação), escapa a todas as teorizações da razão e se impõe como
"transcendentalmente originária", não compreenderá o carácter suprapositivo de certos
princípios ético-jurídicos.
Neste sentido, o poder constituinte aceitará determinados princípios superiores, cuja
validade pressupõe fundada a um outro nível que não o da mera legalidade das
normas constitucionais que os recolhem, nem da própria decisão do poder
constituinte. É a esta heterolimitação decorrente do Direito que designamos por
reserva do direito. Colocando-nos perante a Constituição Portuguesa de 1976,
interrogamo-nos se a decisão constituinte consciencializou tais limites, como que se
autolimitando no seu acto constitutivo.
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da GG). Deste preceito - que, além de ter sido inovador enquanto direito positum,
continua a ser dos mais explícitos dos seus congéneres das Constituições do após-guerra
- retiraram a doutrina e a jurisprudência alemãs a existência e o carácter preceptivo de
uma ordem de valores anterior ao direito positivo. A partir desta ideia se passou a
aceitar uma prevalência axiológica a todo o direito positivo; tratam-se de direitos
inerentes ao homem que, em circunstância alguma, poderão ser questionados.
A doutrina alemã vê neste preceito a aceitação de um princípio de direito natural,
princípio ético do qual radiam os Elementarrechte (direitos elementares). Como
princípio de direito suprapositivo, tem carácter pré-estadual hierarquicamente
superior às normas constitucionais constitutivas. Por esta razão, vincula o poder
constituinte e qualquer norma positiva ordinária ou constitucional.
A jurisprudência constitucional alemã subscreveu em diversas decisões este
entendimento. São especialmente significativas as seguintes passagens do tribunal
Constitucional Bávaro entre 1950 e 1952: "A Constituição reconhece a dignidade da
pessoa humana e o princípio da igualdade, num sentido de justiça, como direito
humano, isto é, como direito anterior ao direito positivo. É convicção do mesmo
constituinte que ele não criou estes direitos, mas que eles são anteriores a ele. Por
isso, reconhece, ao mesmo tempo, os princípios básicos do direito, que são também
elementos essenciais da ideia do Direito, a saber: o respeito e protecção da dignidade
das pessoas e o princípio da igualdade, em sentido de justiça material, limitam a
soberania do poder constituinte e do poder do Estado".
Entre nós, já antes da Constituição de 1976, três autores defendiam a necessidade da
fundamentação valorativa da lei a princípios naturais: CASTANHEIRA NEVES,
CABRAL MONCADA E BAPTISTA MACHADO. No entanto, deve notar-se que
estes autores entendiam que, mesmo a este nível pré-jurídico, essa fundamentação era
tida como positivada e passível de ser entendida como plenamente funcional a nível
histórico. Nesta lógica, o princípio da dignidade da pessoa humana não é uma mera
abstracção, não vale como pura idealidade. Na sua qualidade de princípio jurídico,
vigora, em regra, através das normas positivas e realiza-se mediante o consenso social
que suscita, projectando-se na consciência jurídica geral. Isto é, não se referiam aqueles
autores a estádios valorativos unicamente abstractos e transcendentes, mas antes a
valores que nasciam e se moldavam no decurso da própria evolução social.
Não nos preocupa aqui - porque não é esse o problema da reserva do direito, mas da
sua actualização - o perigo que representa a adesão "a uma ordem de valores mítica,
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presunção é, porém, ilidível se se provar que essa decisão foi abusiva, ou seja, foi uma
"imposição" (se não uma vindicta) de uma força que historico-politicamente triunfou,
sendo em si mesmo um factor de arbítrio político, porque a "consciências jurídica
geral" não ilicitava tais condutas.
De tudo aquilo que foi sendo dito nesta análise, entende MANUEL VAZ que, partindo-
se de uma pré-compreensão jurídica que reconhece uma reserva do Direito,
autónomo do direito positivo, é irrecusável a aceitação da possibilidade teórica de
normas formalmente constitucionais, mas materialmente inconstitucionais se
violadoras de princípios jurídicos fundamentais que dão expressão à heteronomia
do Direito.
CAPÍTULO VI - A RESERVA DA CONSTITUIÇÃO
Vimos que à lei era atribuída, na significação oitocentista, a função garantística dos
valores do direito e da individualidade. A lei do "Estado de Direito" representava o
direito perante o Estado. À lei, e só á lei, era confiada a necessária determinação
defensiva do espaço civil da livre afirmação pessoal. A reserva da lei tinha, aí, o
sentido dessa contraposição da sociedade ao Poder, que era também a contraposição do
indivíduo ao poder. A função unívoca da lei na tarefa de limitação do poder fazia
sentido nessa conjugação demo-liberal, que dava por excluído que se pudesse encontrar
no Parlamento uma maioria para uma lei que limitasse a liberdade dos cidadãos, ou que
contrariasse os princípios de direito universalmente válidos. A lei, enquanto expressão
valorativa de uma social homogeneidade estimativa, era necessariamente o direito justo
(recta ratio), pelo que representava aquela unifuncionalidade de garantia material do
direito.
A perda desta unifuncionalidade da lei vimo-la já expressa no surgimento da
Massendemokratie, enquanto processo de manifestação da vontade de cidadãos
agrupados e representados em interesses, partidos e ideologias diversificados, ou
mesmo opostos. A mudança da função da lei implicou o trânsito das leis-garantia para
as leis constitutivas ou conformadoras; de uma legislação jusracionalisticamente
inspirada ou dogmatizada passa-se para uma legislação "social-reformística", "social-
tecnológica" e "social-informática". A confiança depositada na lei e no legislador
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d) Artigo 18º, nr.3 - as leis restritivas de DLG tem de revestir carácter geral e
abstracto.
e) Artigo 18º, nr.3 - as leis restritivas de DLG não podem diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Há, assim, uma reserva constitucional de conteúdo dos "direitos, liberdades e garantias,
expressa nos próprios preceitos constitucionais que os consagram. Este âmbito de
conteúdo, sendo de competência exclusiva do poder constituinte, pode, sob condições,
ser objecto de uma intervenção legislativa dispositiva (restritiva), constitucionalmente
autorizada, pelo que designamos de "reserva relativa da Constituição". O legislador
constituinte determina, porém, que há um "conteúdo essencial" dos preceitos
constitucionais que consagram "direitos, liberdades e garantias" em que cessa toda a
autorização de disponibilidade legislativa. A esse âmbito de conteúdo designámo-lo de
"reserva absoluta da Constituição".
Dito de outro modo, podemos afirmar que nos DLG há um conteúdo essencial que em
caso algum pode ser objecto de intervenção do legislador ordinário; a CRP não autoriza,
por isso, que, nesse último reduto, possam ter lugar leis restritivas (conceito de reserva
absoluta da Constituição). Pode, contudo, haver lugar a restrições no âmbito dos DLG,
nos termos e limites definidos pela CRP, quando esteja em causa, unicamente, o
conteúdo normal (nunca o essencial) desses mesmos DLG (conceito de reserva relativa
da Constituição).
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NOTA:
As normas constitucionais dividem-se em normas-princípio e normas-preceito (ou
regras, para o Prof. Canotilho); estas últimas tem um carácter completo (por isso, se
dizem preceptivas) e não necessitam de qualquer concretização por parte do
legislador. As normas-preceito dividem-se, ainda, em normas exequíveis por si
mesmas e normas não exequíveis por si mesmo; estas últimas, embora imbuídas de
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A aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais que dela sejam portadores fica, no
entanto, enfraquecida sempre que o poder constituído não tome essas medidas. Exemplo
vivo, entre nós, de tal circunstância é o que decorre do DLG emergente do artigo 29º,
nr.6 da CRP: direito à ser indemnizado por danos daqueles que sejam injustamente
condenados. O tribunal Constitucional decidiu que, embora reconhecendo a
aplicabilidade directa do preceito em apreço, na ausência de lei regulamentadora de tais
indemnizações, a solução seria declarar a inconstitucionalidade por omissão. Mas é
sabido que tal faculdade, nos termos constitucionais, não está na disponibilidade dos
cidadão que sejam objecto daquela "injustiça". Aqui reside o enfraquecimento deste
DLG. Justamente para evitar estas situações de inaplicabilidade de preceitos
constitucionais elevados ao nível de DLG, certos ordenamentos jurídicos, consagraram
já certos mecanismos de salvaguarda dos DLG. É o caso das conhecidas figuras do
recurso de amparo (em algumas Constituições sul americanas) e da queixa
constitucional (constituição alemã). A (recente) Constituição brasileira de 1988
consagrou, por sua vez, o chamado mandado de injunção, nos termos do qual é
atribuído aos órgãos constituídos, o poder de criar uma norma que viabilize a
exequibilidade de um DLG que não se consiga efectivar por si mesmo. Entre nós, ainda
não foi possível atingir tais patamares, ainda que na recente Revisão de 1997 se
tenham elaborado alguns projectos que visavam a criação de uma espécie de recurso de
amparo. Contudo, não se chegou a um entendimento quanto á formulação de um
possível enunciado, com base no argumento de que o tribunal Constitucional está já
bastante sobrecarregado com os casos emergentes da fiscalização concreta. Todavia,
deu-se um pequeno passo nesse sentido: artigo 20º, nr.5, que preconiza a celeridade
dos procedimentos judiciais em matéria de defesa dos "direitos, liberdades e garantias"
dos cidadãos.
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Não é necessário, pois, existir legislação sobre os "direitos, liberdades e garantias" para
que tais direitos sejam exercitados ou se afirmem como direitos com base directa e
imediata no preceito constitucional e, com base nele, sejam justificáveis. Na falta de
lei, com efeito, o princípio da aplicabilidade directa vale como indicador de
exequibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se a sua "perfeição",
isto é, a sua auto-suficiência baseada no carácter líquido e certo do seu conteúdo. A
norma constitucional constitui-se em medida e garantia do direito do cidadão, impondo
aos juizes e aios demais operadores jurídicos o dever de aplicarem os preceitos
constitucionais e de os interpretarem nos termos gerais da aplicação de normas
jurídicas. O princípio significa, aqui, fundamentalmente, que os poderes públicos não
podem invocar a falta de regulamentação legal para proibir ou recusar o exercício
desses direitos pelos cidadãos. Nem há aqui problemas de grande especificidade, para
além daqueles que decorrem da interpretação de normas mais ou menos densas: por um
lado, os preceitos constitucionais são de facto imediatamente exequíveis, isto é, os
direitos podem ser exercitados sem necessidade de uma intervenção legislativa prévia,
pelo que o problema se coloca ao nível da interpretação-concretrização da norma
constitucional; por outro lado, a concretização dos preceitos nesta matéria, apesar das
formulações vagas e abertas, cabe, em última instância, ao juiz, como em qualquer
outra norma, já que o juiz, enquanto aplicador directo ou enquanto instância de
controlo, é a entidade adequada para determinar o sentido dos preceitos.
Já alguns problemas surgem quando os preceitos, embora "direitos, liberdades e
garantias", não são exequíveis por si mesmos, pois dependem da intervenção de órgãos
estaduais, nomeadamente do legislador, para organizar o processo e os meios de acção
pública. Tendo em conta, todavia, que os preceitos são directamente aplicáveis, o
conteúdo do direito é no essencial determinável, ao nível constitucional, por via da
interpretação, pelo que a prestação legislativa é unicamente necessária para tornar
exequível tal conteúdo. A mediação legislativa é, pois, vinculada a um conteúdo
constitucional e existirá, sem especiais resistências, dado o carácter primacial das
matérias, o qual impõe uma necessidade fáctico-política de regulamentação. Mas, a não
existir legislação, a aplicabilidade directa de tais preceitos constitucionais implica que o
juiz pode conhecer (incidentalmente) a existência constitucional do direito individual
e o Tribunal Constitucional ser chamado a apreciar e verificar "o não cumprimento
da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar
exequíveis as normas constitucionais". São porventura débeis as garantias
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(privados) que se relacionam numa lógica de igualdade ("entre iguais"). A solução há-
de buscar-se na conciliação entre, por um lado, o princípio da aplicabilidade directa,
e, por outro lado, pelo princípio da autonomia privada e liberdade contratual.
Verificada que está a desinserção da lei de uma das funções que na doutrina da "reserva
da lei" lhe estava cometida - a de garantir os direitos de autonomia individual perante o
poder (função esta, hoje confiada à reserva de constituição) -, não se pense, todavia, que
a lei se converteu num facto espúrio na matéria dos "direitos, liberdades e garantias".
Se a lei não é um requisito necessário para a determinação do direito, sendo até
dispensável qualquer mediação do legislador naquelas normas constitucionais
"exequíveis por si mesmas", ela não é excepcional, pois a lei pode revelar-se necessária
para conformar os preceitos constitucionais, e é a forma, quando autorizada
constitucionalmente, de restringir o conteúdo constitucional dos direitos.
Aquela necessidade de conformação legislativa expressa-se na concretização dos
preceitos constitucionais ou na sua regulamentação em ordem à "boa execução" dos
preceitos. Com este sentido, a conformação legislativa exprime uma conformação
extrínseca, ou seja, meramente concretiza ou regulamenta os preceitos constitucionais.
Diferentemente, a lei restritiva não trata de conformar preceitos constitucionais, mas de
os restringir.
A intervenção concretizadora é uma tarefa de interpretação dos limites imanentes do
direito fundamental impressos (expressa ou implicitamente) no preceito constitucional.
Nada acrescenta ou tira ao conteúdo constitucional, mas explicita-o e clarifica o seu
conteúdo. Esta intervenção do legislador, não sendo restritiva, não precisa de ser
expressamente permitida pela Constituição, colocando-se o legislador na função de
intérprete da Constituição. Só que o legislador não pode fazer uma interpretação
autêntica, pois ele não tem autoridade nem domínio sobre a norma, pois esta constitui
um nomos de autoridade constitucional (esta intervenção do legislador não ´+e
materialmente distinta da actuação do juiz que procura, por interpretação, os contornos
da norma constitucional quando tem de a aplicar a um caso concreto).
Para além da concretização dos limites imanentes, a intervenção legislativa pode ter um
sentido de organizar e regular a efectividade do exercício dos "direitos, liberdades e
garantias". Nestes casos, estamos perante leis regulamentadoras que organizam e
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constituinte entende poder garantir a todos, pois ele vai já valorado na relação que, em
geral, mantém com outros valores (direitos e interesses) constitucionais. Não é, assim, o
âmbito "natural" do direito que encontra consagração, mas um âmbito do direito já
integrado e conciliado naquele sistema de valores jurídico-políticos expressos na
Constituição. A consagração constitucional introduz, deste modo, limites ou restrições
ao conteúdo "natural" do direito. Verdadeiramente, aquilo que se designa de limites
imanentes são restrições constitucionais (expressas ou implícitas) ao conteúdo
"natural" do direito, decorrentes da própria configuração constitucional do direito. O
próprio legislador constituinte, ao consagrar determinado DLG, fê-lo já numa lógica de
acomodação e de conciliação com outros valores constitucionais igualmente
protegidos. Vejamos o esclarecedor exemplo que emerge do artigo 45º, nr.1 da CRP:
os cidadãos tem o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares
abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização. O próprio DLG aqui
previsto (direito de reunião e de manifestação) surge já imbuído de uma restrição ao
seu estado mais absoluto (que seria a liberdade absoluta de reunião e de manifestação),
na medida em que o poder constituinte se encarregou já de delimitar aquela liberdade
extrema, restringindo-a a reuniões ou manifestações pacíficas e sem armas. É a
Constituição que fornece a medida e o conteúdo do "direito, liberdade e garantia".
Não se adopta, neste Curso, a técnica que, sob a designação genérica de restrições, trata
num mesmo plano, as hipóteses de limites imanentes, de colisões de direitos e de
restrições legais dos direitos (posição aparentemente defendida por JORGE
MIRANDA). Na verdade, segundo a perspectiva de MANUEL VAZ, não pode ter o
mesmo tratamento lógico-constitucional aquela hipótese em que um direito, que se quer
ver protegido, caia fora do âmbito preceptivo do direito e aquela outra hipótese em que
o direito, de que o cidadão se arrogue, tenha cobertura constitucional preceptiva, mas
esteja em colisão com outro direito ou esteja legalmente excepcionado.
Naquela primeira hipótese, o "direito" não existe enquanto dimensão constitucional
protegida, pelo que não chega a levantar problemas de restrição legal ou de colisão de
direitos. Pense-se, por exemplo, na invocação do direito de reunião previsto no artigo
45º como fundamento para invadir um edifício privado; colocará tal hipótese ao
proprietário, ao agente administrativo, ao juiz, problemas de conciliação entre o direito
de propriedade (artigo 62º) e o direito de reunião ("colisão de direitos"), ou de procura
na lei de uma restrição do direito de reunião, para negar tal dimensão do direito de
reunião ? É indubitável que não. Só que a clareza da resposta depende de uma
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de primazia do indivíduo face á sociedade): por maior necessidade que haja para
impor uma lei restritiva tendente a assegurar a igualdade, nunca se poderá abolir a
liberdade pessoal do indivíduo (último reduto).
5) Dimensão da reserva do Direito - corresponde ao conteúdo essencial de um
círculo de direitos elementares do homem que o poder constituinte se impôs,
mesmo perante o perigo da dissolução do seu poder. Como vimos, esta dimensão do
"direito" não se justifica por razões de poder, mas por razões de não-ponder
perante o direito, pelo que verdadeiramente não é uma dimensão da reserva da
Constituição, mas de reserva do Direito. Dito de outro modo, esta quinta dimensão
diz respeito ao artigo 19º, nr.6 da CRP: mesmo nos estados de anormalidade
constitucional (estado de emergência e estado de sítio), certos "direitos, liberdades
e garantias" (os previstos no referido artigo 19º, nr.6 da CRP) permanecem
vigentes, dado que o conteúdo mínimo e essencial desses direitos elementares
possuem anterioridade e prevalência em face do Estado (princípio de primazia do
indivíduo em relação ao Estado).
2.3. A generalidade como requisito constitucional das leis restritivas de "direitos,
liberdades e garantias" -
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liberdade à generalidade da lei. É que aquela vontade do homem, pela qual este se
manifestava livre e autónomo, impunha-se uma importante exigência de forma - a
exigência do modus racional. O conteúdo, a matéria normativa, impunha-o livremente a
vontade, mas havia de prescrevê-lo sob a forma racional que exigia o "geral" como
critério de correcção (de "justiça") da "volonté générale". A correcção imanente da lei
(da "volonté générale") criteriza-se, assim, em ROUSSEAU, como, depois, em KANT,
na estrutura geral da lei. Nesta representação, a lei geral é justa, e é justa porque é
geral (racional), ou seja, a justiça material realiza-se na estrutura formal da
generalidade. Quer isto dizer que o pensamento jurídico moderno-iluminista, pelo seu
voluntarismo racionalista, conduziu a um sentido da lei que, necessariamente, a teria de
identificar com o direito. È que o direito não existe em si, mas constitui-se numa
vontade que é a razão, sendo esta "vontade racional" - que não podia deixar de ser
"geral" - a lei.
Esta identificação da lei à estrutura formal da generalidade, se foi e é teoricamente
sustentada como único critério de assegurar a justiça e a igualdade, cedo veio a
conflituar com os pressupostos e exigências das estruturas constitucionais mais
concretas. É, assim, de notar, desde logo, que as dogmáticas constitucionais, quer da
tradição dualista quer da tramitação monista, não converteram a generalidade no
elemento essencial da lei. O conceito de lei material da construção dualista germânica
não se entendia, essencialmente, como norma geral e abstracta. Na verdade,
contrariamente à lição filosófica do racionalismo iluminista rousseauniano e ao
racionalismo kantiano, a generalidade não era o elemento decisivo da regra de direito
(Rechtssatz). Assim, na lógica dualista germânica, ainda que a generalidade apareça
como característica natural da lei, não é um elemento essencial, pois o conceito de lei
não exclui a possibilidade de uma lei estabelecer uma disposição aplicável a um único
facto ou destinada a regular uma relação jurídica individual.
Também a corrente do legalismo estatista, assente na lógica do "monismo parlamentar",
se veio a desinserir das categorias normatológicas. Assim, o expressa, CARRÉ DE
MALBERG, para quem a função material da lei é, primeiro, imprimir um valor
superior às prescrições que emana, fazendo-as depender da exclusiva vontade do
corpo legislativo, único que poderá modificá-las ou revogá-las; segundo, a função da lei
é estatuir, quer a título de regra geral quer a título de disposição particular, sobre
todos os objectos que, ao terem sido prescritos pela legislação vigente, não podem ser
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Ganha deste modo sentido a expressa exigência de uma estrutura geral e abstracta
constitucionalmente imposta às leis restritivas de "direitos, liberdades e garantias"
(artigo 18º, nr.3 CRP). A generalidade é, aqui, por força da Constituição, um
elemento essencial da validade constitucional da lei. Não significa isto uma
apriorística associação da generalidade à igualdade e à justiça - pois que não se dispensa
a lei geral do controlo da igualdade na lei -, antes, significa que à exigência de uma
justiça material (igualdade material) se associa uma exigência de justiça formal
(igualdade formal). A razão mais transparente desta essencial associação constitucional
diz-nos que o Legislador constituinte entendeu que, em matéria de restrições aos
"direitos, liberdades e garantias", as leis não gerais encerram um especial perigo de
desrespeito pela igualdade material, num domínio em que os direitos são
essencialmente "direitos de iguais" em posição de "defesa do Estado". A estrutura
geral da lei é, deste modo, um reforço adicional - irrenunciável em matéria de "direitos,
liberdades e garantias" - à proibição geral do arbítrio.
Acresce, porém, uma outra razão de lógica sistemática do regime constitucional dos
"direitos, liberdades e garantias" já anteriormente abordada a propósito da distinção
entre restrição legal e colisão de direitos. Na lógica constitucional, como então se disse,
não cabe uma medida legislativa para decidir um caso concreto onde conflituem
normas constitucionais respeitantes a "direitos, liberdades e garantias". Dado o carácter
preceptivo de tais normas constitucionais, a intenção legislativa nesse caso era
desnecessária e contrária às finalidades da autorização constitucional das leis
restritivas. Seria desnecessária, porquanto o aplicador do direito tem diante de si
preceitos constitucionais que lhe permitem solucionar o caso (a colisão de direitos);
seria contrária ao sentido da autorização constitucional e a todo o regime jurídico-
constitucional das leis restritivas, porque, na coerência global de tal regime, a lei
restritiva só faz sentido como solução genérica e precedente de conflitos de direitos, ou
de um direito e de um interesse, consignados preceptivamente em normas
constitucionais. O legislador tem unicamente um mandato constitucional para
antecipar-se à probabilidade dos conflitos (que o próprio legislador constituinte
anteviu, tendo, por isso, expressamente consentido na intervenção legislativa) e
conciliar genericamente os normativos preceptivo-constitucionais. Na falta, porém, da
mediação legislativa, porque não autorizada constitucionalmente (ou, se autorizada, não
exercida), os casos de conflito resolvem-se por interpretação directa dos preceitos
constitucionais.
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Assim se acentua a ideia de que as colisões de direitos são pensáveis como situações de
vida, "casos anómalos" porventura irrepetíveis, que não suscitam, todavia, em matéria
de "direitos, liberdades e garantias", a necessidade de uma "lei-medida", pois que o
aplicador do direito pode e deve resolver o caso directamente e por interpretação-
aplicação dos preceitos constitucionais. A intervenção legislativa restritiva só se
justifica quando, por expressa autorização constitucional, o legislador introduz uma
mediação valorativa para a resolução de conflitos previsíveis e padronizáveis,
antecipando-se à repetibilidade das situações e dando-lhes uma solução uniforme
legalmente valorada. O carácter geral e abstracto da lei restritiva é, deste modo, um
correlato da virtualidade hermenéutica que o princípio da aplicabilidade directa
reconhece aos preceitos respeitantes aos "direitos, liberdades e garantias".
Deste modo, a mediação legislativa em matéria de "direitos, liberdades e garantias"
não pode deixar de ser norma, dado que ao intervir no conteúdo constitucionalmente
protegido de um direito "para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos", o que verdadeiramente procura é estabelecer critérios
legais para dirimir conflitos entre normas de conteúdo constitucionalmente
determinável, ou seja, constitucionalmente reservado. O carácter "geral e abstracto"
de tal intervenção legislativa impor-se-ia sempre, ainda que a Constituição o não
dissesse expressamente, pois do carácter preceptivo das normas constitucionais em
causa retirar-se-ia já que a lei não é chamada a resolver um (aquele) conflito (colisão)
de direitos (que o juiz sempre resolveria por aplicação directa das normas
constitucionais), mas a fixar a valoração geral que o legislador tem por mais
adequada para solucionar os previsíveis (e, por isso, objecto de uma autorização
constitucional) conflitos de confluência de conteúdos normativos constitucionais.
A conjugação as exigências da igualdade, no seu enunciado materialmente normativo, e
da generalidade podem exprimir-se do seguinte modo: O desrespeito pelo carácter geral
e abstracto, no caso da lei restritiva de "direitos, liberdades e garantias", liberta o órgão
de fiscalização da constitucionalidade do dever de indagar da legitimidade de
tratamento diferenciado, pois a exigência constitucional da generalidade, nessa
matéria, o faz concluir, sem mais, pela inconstitucionalidade da lei. O facto de a lei
ser geral e abstracta, não o dispensa, porém, de indagar do respeito pelo princípio da
igualdade, dado que a lei geral é ainda sindicável quanto à sua conformidade à
igualdade material.
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Não sendo uma lei restritiva de "direitos, liberdades e garantias", ela não precisa de ser
geral e abstracta, mas é ainda sindicável ao nível do princípio da igualdade, vista esta
no seu enunciado materialmente normativo, sendo esta observância particularmente
exigente no caso das leis-medida; é que a generalidade e abstracção eram uma forma
instrumental de assegurar a justiça, na medida em que se a lei é para todos, então ela
é justa.
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portadores dos seus programas de acção. Tais direitos, ainda que enunciados
constitucionalmente como direitos fundamentais, são direitos de realização social.
Assim a distinção útil, para efeitos de regime jurídico-constitucional na matéria dos
direitos fundamentais, demarca um conjunto de preceitos constitucionais que
estabelecem um direito, uma liberdade ou uma garantia com reserva normal de
conteúdo constitucional - atrás designada por "reserva relativa da Constituição" - de
um outro conjunto de preceitos constitucionais que enunciam o direito como
fundamental, mas não preceituam a medida constitucional do direito, antes incumbem
o Estado de promover a sua realização, ou seja, de conferir, expansivamente, a medida
de protecção jurídica desse direito.
Os direitos e deveres económicos, sociais e culturais (habitualmente conhecidos pela
expressão de "direitos sociais") não observam, assim, o critério da determinidade
constitucional, pelo que não tem aplicabilidade directa. São normas que dependem
duma actuação dos poderes constituídos, normas sob reserva de uma condição de
possibilidade. Carecem, por isso, de opções ordinárias, tomadas em face de diferentes
quadros político-económicos e em observância de distintas doutrinas político-
partidárias. Ao contrário dos "direitos, liberdades e garantias" que, tratando-se de
normas que se reconduzem a posições jurídicas subjectivas (e, por isso, não
susceptíveis da gestão de recursos públicos), a sua violação acarreta a reparação do
próprio Estado, os ditos "direitos sociais" já pertencem a uma segunda geração que
presssupõe a intervenção do legislador ordinário.
Ainda que o legislador ordinário possa ser responsabilizado pelo não "prevenir",
"ordenar", "criar" ou "promover" a realização do direito, a medida de apropriação
jurídica do direito só se determina na lei, dado que a própria estrutura da norma é
essencialmente impositiva da acção legislativa e não proibitiva dessa actuação.
É que, contrariamente aos direitos constitucionais - direitos, liberdades e garantias de
reserva constitucional -, a actuação legislativa nos "direitos sociais" não está balizada
por uma dimensão de reserva constitucional de conteúdo. Nos direitos
constitucionais, com efeito, a intervenção legislativa, quando autorizada a dispor do
direito, tendo um sentido regressivo, ou seja, comprime a expressão constitucional do
direito, pelo que não é a lei que define o direito: verdadeiramente o que lhe cabe definir
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deixa de ser uma medida constitucional de titularidade individual autónoma para ser
uma imposição constitucional a um terceiro (o legislador), deixando o indivíduo de ser
o destinatário directo da norma constitucional. A medida do direito sai da autoria
constitucional para a esfera da disponibilidade do legislador, ainda que vinculado por
um mandato constitucional de "acção".
Significa isto que, nos direitos constitucionais, o direito subjectivo é objectivado na
Constituição; nos "direitos sociais", o direito subjectivo é objectivado na
legislação. E se um direito não é objectivado na Constituição, não há reserva de
Constituição, pois não é aí que se encontra a medida da sua a positivação jurídica.
Em conclusão, podemos resumir esta distinção nos seguintes termos: os direitos
constitucionais tem um conteúdo definido pela própria CRP, nos quais a intervenção do
legislador, quando constitucionalmente autorizada, tem apenas carácter regressivo ou
restritivo (exemplo: artigo 62º, nr.2 CRP); nos direitos sociais, em regra, os preceitos
tem uma parte negativa (exemplo: artigo 58º, nr.1 CRP: todos tem o direito ao
trabalho, a aceder ao trabalho, a poder trabalhar) e uma parte positiva no âmbito do qual
comportam um programa normativo (o Estado deve realizar as tarefas que visam
assegurar que todos tenham trabalho). Nos direitos constitucionais falta este carácter
programático, na medida em que a CRP já lhe forneceu uma estrutura completa; as
normas que encerram "direitos sociais" não permitem ao cidadão arrogar-se detentor de
um direito subjectivo directamente sindicável no plano judicial.
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Pela própria arquitectura do due process verifica-se que este, hoje, assume duas
vertentes: por um lado, encerra um direito de defesa antes os tribunais e contra actos
dos poderes públicos; por outro lado, abrange um direito de protecção do particular
através dos tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos
eus direitos por terceiros (dever de protecção do Estado e direito do particular a exigir
essa protecção).
Assim, uma primeira e irrefutável dimensão deste direito à tutela jurisdicional consiste,
justamente, na protecção jurídica individual: o particular tem o direito fundamental de
recorrer aos tribunais para assegurar a defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos (artigo 20º, nr.1 CRP).
Ao lado desta, uma outra dimensão deste direito de acesso aos tribunais é a que se
traduz numa verdadeira garantia institucional, na medida em que exige uma
organização jurisdicional dirigida àquela protecção. Ou seja, é uma obrigação do Estado
a criação dessa garantia jurisdicional de via judiciária, dado que o próprio Estado
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monopolizou (chamou a si) a gestão dos conflitos judiciais. Por isso, o direito de acesso
aos tribunais é um direito fundamental formal que carece de densificação através de
outros direitos fundamentais.
O direito de acesso aos tribunais implica o direito ao processo entendendo-se que este
postula um direito a uma decisão final (material e não meramente formal)incidente
sobre o fundo da causa sempre que se hajam cumprido e observado os requisitos
processuais da acção ou recurso. Por outras palavras, no direito de acesso aos tribunais
inclui-se o direito de obter uma decisão fundada no direito, embora dependente da
observância de certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente consagrados.
Por isso, a efectivação de um direito ao processo não equivale necessariamente a uma
decisão favorável; basta uma decisão fundada no direito quer seja favorável quer
desfavorável às pretensões deduzidas em juízo.
Compreende-se, pois, que o direito ao processo implique o cumprimento de certos
pressupostos constitucionais materialmente adequados como, por exemplo, a
proibição de requisitos processuais desnecessários, a exigência de fixação legal prévia
dos requisitos e pressupostos processuais dos recursos e das acções e a sanação de
irregularidades processuais.
A protecção jurídica através dos tribunais implica também a garantia de uma protecção
eficaz e temporalmente adequada. Significa isto, por um lado, que ela engloba a
exigência de uma apreciação, pelo juiz, da matéria de facto e de direito, objecto do
litígio ou da pretensão do particular, e a respectiva "resposta" plasmada numa decisão
judicial vinculativa e, por outro lado, ao demandante de uma protecção jurídica deve
ser reconhecida a possibilidade de, em tempo útil (ideia der adequação temporal), obter
uma sentença executória com força de caso julgado. GOMES CANOTILHO refere
ainda, a este propósito que uma protecção judicial em tempo adequado não deve
significar "justiça acelerada": a "aceleração" da protecção jurídica nunca se pode
traduzir em diminuição de garantias processuais e materiais.
A existência de uma protecção jurídica eficaz pressupõe o direito à execução das
sentenças dos tribunais através dos tribunais (ou de outras autoridades públicas),
devendo o Estado fornecer todos os meios jurídicos e materiais necessários e adequados
para dar cumprimento às sentenças do juiz. Esta dimensão da protecção jurídica é
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NOTA: esta matéria está mais desenvolvida no capítulo seguinte relativo às garantias
dos administrados.
O artigo 268º, nr.4 da CRP garante aos particulares a tutela jurisdicional efectiva dos
seus direitos ou interesses protegidos. Trata-se de uma concretização da garantia de
acesso aos tribunais (artigo 20º CRP), pois é configurada como garantia de protecção
jurisdicional (dirige-se à protecção dos particulares através dos tribunais), e possui, ela
própria, a qualidade ou natureza de direito análogo aos "direitos, liberdades e
garantias" (artigo 17º da CRP). O texto constitucional, na redacção que se segue à
Revisão de 1997, fornece a abertura inequívoca para processos de justiça administrativa
relativamente aos quais a doutrina, o legislador e jurisprudência se mostram reticentes:
acção para a prática de actos administrativos legalmente devidos e adopção de
medidas cautelares adequadas. Para GOMES CANOTILHO, o legislador deve dar
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Uma das mais importantes inovações introduzidas pela revisão de 1997 consistiu na
criação de procedimentos judiciais céleres e prioritários (artigo 20º, nr.5 CRP) de
modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações de "direitos,
liberdades e garantias". O preceito constitucional em causa constitui, desde logo, uma
imposição constitucional no sentido do legislador ordinário conformar os vários
processos (penal, administrativo, civil) no sentido de assegurar por via preferente e
sumária a protecção de "direitos, liberdades e garantias". A consagração de
procedimentos judiciais céleres e prioritário não significa (para GOMES
CANOTILHO) a introdução de uma acção de recurso de amparo especificamente
dirigida á tutela de "direitos, liberdades e garantias", mas de um direito constitucional
de amparo de direitos a efectivar através das vias judiciais normais. Por outro lado, há
quer ter presente a ideia segundo a qual a justiça tardia pode significar denegação da
justiça. Há quem defenda, tendo em vista a obtenção de uma justiça mais eficaz, que
todas as decisões judiciais deviam ser susceptíveis de recurso (princípio do duplo grau
de jurisdição); contudo, o Tribunal Constitucional tem vindo a recusar que tal ideia
vigore a título de princípio geral (entende o TC que há processos de tal forma simples e
leves que não justificam um novo grau de recurso).
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O direito de resistência (artigo 21º da CRP) é a última ratio do cidadão ofendido nos
seus "direitos, liberdades e garantias", por actos do poder público ou por acções de
entidades privadas. O recurso a este direito apenas tem lugar quando esteja esgotada a
via de recurso às autoridades públicas que, nesta matéria, detém o monopólio de
acção.
O artigo 271º, nr.3 da CRP consagra um direito de resistência passivo, ao afirmar que
cessa o dever de obediência para os funcionários e agente do Estado, sempre que lhes
sejam emanadas ordens ou instruções que impliquem a prática de um qualquer crime.
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De um modo geral, entende-se por direito de petição (artigo 52º, nr.1 da CRP) a
faculdade reconhecida a indivíduo ou grupo de indivíduos de se dirigir a quaisquer
autoridades públicas apresentando petições, representações, reclamações ou queixas
destinadas á defesa dos seus direitos, da constituição, das leis ou do interesse geral. Esta
faculdade tanto se faz sentir junto dos órgãos de soberania (artigo 52º, nr.1 CRP) como
do Provedor de Justiça (artigo 23º da CRP).
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Tudo o que disse até agora tem especial aderência no quer toca aos chamados "direitos,
liberdades e garantias", dada a determinidade constitucional de que as respectivas
normas constitucionais estão eivadas. Os "direitos sociais" são, como vimos já" direitos
a prestações estaduais, embora possam encerrar, negativamente, a lógica subjacente aos
"direitos, liberdades e garantias". Coloca-se também o problema de saber se os direitos
sociais exigem a garantia de um núcleo essencial como condição do mínimo de
existência. Para GOMES CANOTILHO, o Estado deve assegurar um standard
mínimo que assegure a tutela dos "direitos sociais", fundando a sua ideia no facto da
Revisão de 1997 ter (intencionalmente) modificado a epígrafe do artigo 63º da CRP
para Segurança social e solidariedade (antes era apenas Segurança social). Diz este
Autor que os "direitos sociais" realizam-se através de políticas públicas orientadas
segundo o princípio básico e estruturante da solidariedade social. A natureza destas
normas-tarefa apontam para um verdadeiro dever do legislador de dar operacionalidade
prática a estas imposições sob pena de inconstitucionalidade por omissão (artigo 283º
da CRP). Note-se, como vimos já anteriormente, esta posição não é sufragada pela
generalidade da doutrina, designadamente por MANULEL VAZ.
Nos casos mais significativos em que o Tribunal Constitucional foi chamado a
pronunciar-se sobre "direitos sociais" em sede de fiscalização abstracta - Caso do
Serviço Nacional de Saúde (Acórdão 39/84), Caso do Direito à Habitação (Acórdão
151/92) e Caso das Propinas Universitárias (Acórdão 148/94) - considerou sempre que
as normas consagradoras de "direitos sociais" podem e devem servir de parâmetro de
controlo judicial, mas elas ficam dependentes, na sua exacta configuração e
concretização, de uma intervenção legislativa conformadora e concretizadora, só
então adquirindo plena eficácia e exequibilidade.
Para GOMES CANOTILHO esta jurisprudência não é de todo aceitável: as
concretizações legislativas de direitos derivados a prestações indissociáveis da
realização efectiva dos "direitos sociais" assentam, na prática, em critérios de
oportunidade técnico-financeira e política. Na perspectiva deste Autor, o Tribunal
deve, por um lado, controlar se a actuação legislativa socialmente densificadora de
"direitos sociais" se pauta por critérios reais de realização graduação e não meros
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indicadores de iniciativas legislativas e, por outro lado, o Tribunal não pode abster-se
de um controlo jurídico de razoabilidade fundado no princípio da igualdade.
4. PROTECÇÃO INTERNACIONAL -
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nos termos do artigo 17º da CRP, o regime daqueles "direitos, liberdades e garantias"
aplica-se, não só aos enunciados no título II, bem como aos demais direitos
fundamentais de natureza análoga. Ora, justamente, os direitos e garantias emergentes
do artigo 268º da CRP, quer para a jurisprudência constitucional quer para a
jurisprudência administrativa, configuram aquela natureza análoga, na medida em que a
estrutura preceptiva da norma em apreço possui determinidade constitucional, ou
seja, o legislador constituinte entendeu que os cidadãos são, desde logo, os seus directos
destinatários.
São as seguintes as posições subjectivas reconhecidas aos administrados no artigo 268º
da CRP:
a) Direito à informação sobre o andamento dos processos em que sejam directamente
interessados, bem como o direito a conhecer as decisões que lhes digam respeito;
b) Direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (princípio do arquivo
aberto);
c) O dever de notificar e fundamentar os actos administrativos;
d) A garantia de impugnação de actos administrativos que lesem direitos ou
interesses, independentemente da sua forma;
e) A plenitude de acesso à justiça administrativa, com o direito ao reconhecimento
dos direitos ou interesses legalmente protegidos, a determinação de prática de
actos, a impugnação de normas administrativas e a adopção de medidas
cautelares.
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Os cidadãos não tem, pois, ao seu alcance um mecanismo directo de tutela autónoma
dos seus direitos. Dispõem apenas do mecanismo da fiscalização concreta que, pelas
regras processuais estabelecidas, lhes poderá permitir aceder ao tribunal Constitucional
em busca de amparo. Todavia, tal implica a existência de um processo judicial
concreto em tribunal em que possam - se for relevante para a decisão da questão de
fundo - levantar a questão de inconstitucionalidade e, por via de recurso fazer intervir
o Tribunal Constitucional. na doutrrina portuguesa, vozes autorizadas como VIEIRA
DE ANDRADE, CARDOSO DA COSTA e BARBOSA DE MELO sustentaram que
tal recurso assumiria a natureza de um "recurso de amparo", fundando as respectivas
teses na motivação subjacente a tal recurso: a violação de "direitos, liberdades e
garantias" dos cidadãos. GOMES CANOTILHO manifestou-se contra esta opinião,
sustentando que se tal fosse a intenção do legislador constituinte, então o texto
constitucional haveria de ter consagrado, não um recurso no âmbito de um processo de
fiscalização concreta de normas jurídicas, mas um genuíno processo directo e que
abrangesse, à semelhança de outras ordens jurídicas já aqui citadas, os demais actos
públicos lesivos de direitos do cidadão. JORGE MIRANDA sustenta uma posição
intermédia, defendendo o "carácter misto" do referido recurso. Salienta, em
consequência, a coexistência das funções de defesa de direitos - função subjectiva - e a
defesa da integridade da ordem jurídica.
Porém, o Tribunal Constitucional dispõe de outros mecanismos de fiscalização da
constitucionalidade. Não serão os que, de mais perto, tutelarão as posições subjectivas
individuais, mas atingirão ainda esse objectivo, conquanto de forma indirecta.
Referimo-nos aos processos de fiscalização sucessiva abstracta e por omissão. Como
salienta VIEIRA DE ANDRADE, é "no campo da fiscalização sucessiva abstracta que
se opõem frontalmente a legitimidade da justiça constitucional e a legitimidade da
maioria legislativa", sendo certo que os poderes do Tribunal Constitucional, nesta sede,
são "poderes de destruição maciça".
Assim sendo, ainda que indirectamente, também se poderá estar a proteger os direitos
fundamentais, ao retirar da ordem jurídica, de forma definitiva, normas que possam
constituir ameaça para tais direitos.
NOTA: para um estudo mais profundo deste capítulo relativo aos direitos e garantias
do administrados, consultar o artigo da Dra. Raquel Carvalho, no Livro Juris et de
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JANEIRO DE 2000
JOSÉ RIJO
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