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Território

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APRESENTAÇÃO

Manuel Jacinto Sarmento


(Instituto de Educação – Universidade do Minho)

A cidade constitui um dos objetos mais importantes no que respeita à investigação mais
recente no campo dos estudos sociais da infância. Vários congressos internacionais
sobre o tema têm-se vindo a realizar com uma frequência impressionante, em vários
pontos do globo. Sucedem-se os dossiês em revistas internacionais e nacionais. Tem
vindo a crescer o numero de teses e dissertações que focam a vida das crianças na
cidade, em vários dos seus aspetos, dos lugares de brincar às representações sociais da
criança, da autonomia de mobilidade às “affordances”, das políticas urbanas
geracionalmente orientadas às condições de acesso à habitação e à educação. Os
municípios têm estado a organizar-se em torno de grandes programas ou plataformas
internacionais como as Cidades Educadores, as Cidades Amigas das Crianças, ou a
Cidade da Criança (Citá dei Bambini). As redes internacionais de pesquisadores e
ativistas (como Child in the City, por exemplo) intensificam a sua ação.

Há boas razões para que isso aconteça.

Em primeiro lugar, porque a imensa maioria da população do mundo – e, portanto,


também a população infantil – vive em cidades. Depois, porque as cidades sintetizam
muitos dos problemas e das tensões que atravessam a sociedade contemporânea – como
têm demonstrado plenamente cientistas sociais como Sassia Saken, Manuel Castells,
David Harvey, entre outros – e, naturalmente, compreender a infância contemporânea
implica analisar as relações que se estabelecem entre as políticas públicas urbanas, as
instituições para crianças e as ações quotidianas das crianças, da mobilidade à segurança
e dos equipamentos ao acesso às instituições urbanas que fazem a provisão de serviços
de educação, habitação, saúde, lazer, cultura, etc.

Mas há razões específicas, próprias do campo dos estudos da infância, também, para
que a relação entre as crianças e as cidades sejam objeto de uma especial atenção e
visibilidade contemporânea.

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Desde logo, os estudos da criança na cidade põem em destaque o facto de ser impossível
identificar, interpretar e compreender,a partir de um ponto de vista monodisciplinar, as
subtis relações que se estabelecem entre o que as cidades possibilitam e o que as
crianças fazem, na sua relação com os outros e com o mundo, e como aquilo que elas
fazem é por elas interpretado e dotado de sentido. Os estudos da infância encontram
neste topus um excelente motivo de incorporação de um conhecimento
multi/interdisciplinar (utilizamos esta expressão, por prudência analítica e concetual;
com efeito, apesar de almejada, nem sempre a interdisciplinaridade é efetivamente
alcançada, ficando, muitas vezes, os estudos pela convocação de olhares de diferentes
disciplinas, sem efetiva articulação conceptual e analítica), dado que o que se encontra
em causa mobiliza saberes de proveniência tão distinta como a psicologia, a geografia, a
sociologia, a história, a arquitetura e o urbanismo, as ciências da educação, a filosofia e
a ciência política, pelo menos. Não é possível de outro modo interpretar os complexos
processos em que se enovelam os fios interpretativos das relações entre a organização
do espaço e as políticas, entre as perceções e os sentimentos e afetos, por um lado, e as
oportunidades de usufruto do ambiente e dos equipamentos sociais, por outro, entre a
autonomia da mobilidade e a a regulação do espaçotempos das crianças, entre a
paisagem urbana e a criatividade pessoal, entre os laços de solidariedade ou de
vizinhança e as pertenças culturais, entre, enfim, as memórias do passado
patrimonialmente registadas e as perspetivas do presente e do devir. Poderíamos
exponenciar quase ao infinito os temas e problemas equacionáveis nas relações entre
infância e cidade e daí deduzir da inevitabilidade do cruzamento de saberes, segundo
lógicas fundadas em princípios de afinidade e coerência concetual e teórica, sem
ecletismos, portanto. As diferentes proveniências disciplinares dos artigos integrantes
do presente dossiê e os cruzamentos interdisciplinares que no interior de cada um deles
se realiza, testemunham bem esta caraterística epistemológica, em boa parte induzida
pelo tema, mas substancialmente enraizada nos pressupostos do próprio campo dos
estudos da infância.

Mas o tema da criança na cidade ganha também importância e espessura no interior do


referido campo de estudos, pelo facto de que a vida urbana das crianças exprime a
condição da infância contemporânea. Retiradas das ruas, confinadas ao espaço
doméstico, integradas compulsivamente na instituição escolar, as crianças como que

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“desapareceram da cidade”, deslocando-se entre ilhas do arquipélago urbano: a casa, a
escola, o parque infantil ou o shopping no fim de semana. Esta forma de delimitação da
autonomia espacial das crianças é convergente com o refinamento de procedimentos de
controlo sobre os quotidianos infantis, que passam pela rotinização, padronização de
comportamentos, regulação dos espaços e institucionalização. As cidades são
organizadas, no que às crianças diz respeito, por estes procedimentos de controlo: da
localização das escolas, aos circuitos dos transportes escolares; da construção
estereotipada dos brinquedos dos parques infantis, à organização dos serviços e
indústria de produtos culturais para as crianças (lugares de atendimento durante os
tempos livres, promoção das festas de aniversário, programação cultural para públicos
infantojuvenis, etc.); das merendas escolares nas escolas municipais, às atividades
festivas do município que envolvem crianças; do urbanismo dos bairros e das praças
(mais ou menos atento ao facto de que aí vivem crianças, que necessitam de passeios,
árvores, lugares livres, passarelas e passagens seguras para pedestres, sinais e indicações
topográficas e informação patrimonial, etc.) à estruturação dos espaços verdes, jardins e
parques urbanos; das políticas de inclusão no espaço e na circulação urbana de crianças
com necessidades especiais, às formas de intervenção (confirmatória ou transformadora)
da estratificação social do espaço – toda a cidade apresenta “bolsas de exclusão” e
territórios exclusivos (condomínios fechados, por exemplo).

Ademais, o estudo das crianças na cidade traz para a atualidade alguns dos temas que
são mais prementes nos estudos da infância. Desde logo, as caraterísticas comuns à
geração infantil e os fatores de desigualdade entre crianças, no quadro da espacialização
e estratificação social do espaço (bairros pobres versus bairros ricos, asfalto versus
favela). Como se conjuga tudo isto: precisamos de ter uma política de infância na
cidade: como conjuga-la com as desigualdades e a diversidade? Mas, também, a
questão do digital e do acesso a dispositivos de comunicação que caraterizam muito do
nosso tempo, no que respeita ao acesso à informação e à comunicação interpessoal
(crescentemente virtual e a distância). A “geração digital” está particularmente apta para
lidar com o que se vem convencionado designar por “smart cities”, antecipando, de
algum modo, nos seus comportamentos e ações, formas de sociabilidade antecipatórias
do que será o usufruto e conformação tecnológica do espaço urbano do futuro. A
relação com a natureza e com os animais constitui um outro tópico muito atual nos

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estudos da infância; sem raízes próximas no espaço rural, conhecedoras do que é um
frango pelo que vêm nas prateleiras dos supermercados, não socializadas na distinção
ente uma andorinha ou uma rola, um abeto ou uma araucária, as crianças confrontam-se
com a privação de um direito que, apesar de não estar expressamente consagrado na
Convenção sobre os Direitos da Criança, nem por isso é menos relevante e decisivo,
mesmo, na sua formação e desenvolvimento: o direito ao ar livre, à água, à natureza e
ao cuidado das espécies animais e florestais. A questão do clima na cidade e da oferta
ao usufruto (ou ao invés, da rarefação) dos espaços naturais constitui um dos aspetos
mais importantes no conhecimento e defesa da infância. Que o tema não é secundário,
mostra-o o movimento universal, promovido por crianças e adolescentes pela defesa do
clima, expresso na greve às aulas contra a degradação climática., realizada em cidades
de mais de cem países no mundo, no dia 15 de março de 2019. Todos estes temas são
centrais nos estudos da infância e encontram-se, por vezes de forma direta, outras vezes
de forma mais alusivam, presentes nos textos deste dossiê.

Mas há, finalmente, uma questão central na relevância da cidade para os estudos da
infância. As cidades são o lugar político por excelência, a polis, onde se estabelecem as
condições da decisão coletiva sobre a vida em comum e se estruturam os laços sociais
pautados por valores partilhados. São, outrossim, o espaço onde as controvérsias pelo
devir das comunidades se exprimem em opções politicamente geríveis. As cidades
possibilitam a civilidade, enquanto atitude de reconhecimento e de respeito pelo outro.

Ora, as cidades, são também o lugar de afirmação possível da condição política das
crianças, enquanto seres sociais plenos e cidadãos. Não que, à semelhança das escolhas
feitas pelos adultos para os representantes parlamentares e governamentais, os
municípios possam ser espaços de mobilização para as lutas partidárias das gerações
mais jovens. Nada há de mais sinistro do que a endoutrinação e adestramento de
crianças nos exércitos partidários, projeto que, como sabemos, foi sempre prosseguido
pelas ditaduras. Ao invés, o que está em causa é a possibilidade da expressão da voz das
crianças na construção das opções possíveis, face às oportunidades e dilemas que se
colocam na construção da cidade.

As formas democráticas de expressão da voz das crianças dispensam as estruturas


representativas e ecoam no modo direto em que elas se exprimem sobre as políticas
urbanas. Movimentos como o orçamento participativo das crianças ou a organização dos

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conselhos e assembleias infantojuvenis, bem como a estruturação das cartas de
cidadania, põem em destaque a possibilidade da participação das crianças e a sua
influência nas decisões políticas. É claro que isto só se torna viável se os adultos
constituírem não apenas contextos e oportunidades de participação da infância, mas se
estiverem disponíveis, no domínio das decisões formais, para fazerem também suas as
propostas e as causas comuns que as crianças originariamente formularam. É neste
domínio do enfoque da condição política das crianças que os estudos da infância
encontram a possibilidade de se desenvolver para iluminar essa condição oculta da
capacidade política das crianças, mas também, por efeito reverso da sua influência no
real, alimentar as políticas efetivas de promoção da cidadania infantil.

Um dossiê formado por artigos tão diversificados na abordagem, tão rigorosos no modo
como mobilizam os conceitos, tão atentos às ações das crianças e à expressão das suas
perceções, representações e sentimentos e tão implicados na promoção da cidadania da
infância, como este que aqui se apresenta, exemplifica e, simultaneamente, fortalece o
campo dos estudos da infância num tema, afinal, tão decisivo para a compreensão da
condição social contemporânea das crianças e, sobretudo, para a luta pela realização dos
seus direitos e bem-estar social e pessoal.

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