ABNeves - Legítima Defesa Putativa e Excesso
ABNeves - Legítima Defesa Putativa e Excesso
ABNeves - Legítima Defesa Putativa e Excesso
ao Juiz Conselheiro
António Henriques Gaspar
apoios pessoais:
ANA MARIA BARATA DE BRITO
ANABELA MIRANDA RODRIGUES
ANTÓNIO AMARO ROSA
ANTÓNIO BRITO NEVES
ARMANDO DIAS RAMOS
CARLOS LOPES DO REGO
CARLOS PINTO DE ABREU
JOÃO VALENTE CORDEIRO
JOSÉ BRAZ
JOSÉ DUARTE NOGUEIRA
LUÍS AZEVEDO MENDES
MANUEL GUEDES VALENTE
MÓNICA BASTOS DIAS
SALVADOR DA COSTA
VÂNIA COSTA RAMOS
apoios institucionais:
Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra
Estudos em Homenagem
ao Juiz Conselheiro
António Henriques Gaspar
2019
Coordenadores
António Amaro Rosa
Armando Dias Ramos
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO
ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
coordenadores
António Amaro Rosa
Armando Dias Ramos
editor
EDIÇÕES ALMEDINA, S.A.
Rua Fernandes Tomás, nºs 76, 78 e 80
3000-167 Coimbra
Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901
www.almedina.net · editora@almedina.net
design de capa
FBA.
pré-impressão
EDIÇÕES ALMEDINA, S.A.
impressão e acabamento
Novembro, 2019
depósito legal
….
Aos autores foi dada liberdade quanto à adoção do Novo Acordo Ortográfico.
CDU 34
Legítima defesa putativa e excesso*
António Brito Neves
Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Introdução
77
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
1
Nada sendo indicado em contrário, todos os artigos referidos pertencem ao Código Penal
português (CP).
78
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
2
Quer isto dizer que não teremos em conta, por ex., posições que se valham da consideração
da consciência da ilicitude como parte do elemento intelectual do dolo [cf., por ex., Eduardo
Correia (2010: 374, 408 e 415)], ou que sustentem que a ausência inevitável daquela
imporá em todos os casos a negação global do juízo de culpa [entre muitos outros, Welzel
(1955: 208; 1969: 164 e 168), K aufmann (1955, passim; 1974: 396) e Hirsch, (2003:
106)], já que, independentemente da (in)sustentabilidade no plano teórico-construtivo,
elas não parecem compaginar-se com as disposições do CP português (nomeadamente,
com os artigos 16.º, n.º 2, e 17.º).
3
V., por ex., Taipa de Carvalho (2016: 349). Não obstante invocar outrossim a teoria
limitada da culpa, diferente é a equiparação que faz Faria Costa (2017: 453), uma vez que
este autor arruma o dolo do facto na categoria da culpa (idem: 402).
4
Cfr., sustentando a doutrina dos elementos negativos do tipo, Schröder (1953: 205);
K aufmann (1954: passim; 1964: 52); Engisch (1958: 583); Schaffstein (1960: 386).
79
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
2009: 415 ss.). Cfr. Gallas (1955: 4689; 1979: 170 ss.); Pereira (2004:
140 e 145); Palma (2017: 407 ss., em especial 412-414]5.
Esta via tem o mérito de explicar a negação da punição a título de
dolo evitando a crítica acabada de apontar à primeira hipótese de solu-
ção. Com efeito, ela permite, por um lado, manter a afirmação do dolo do
tipo, como nos parece inescapável. Não deixa, por outro, de fazer actuar
a valoração positiva que há-de merecer, pelo menos em certa medida, a
posição subjectiva do agente: os termos da responsabilidade são condi-
cionados pela impossibilidade de partida de se divisar um facto doloso
censurável.
Cremos, ainda assim, que também esta proposta se sujeita a críticas que
a revelam improcedente.
Em primeiro lugar, ela parece introduzir uma incoerência sistemática
quando atendemos à parte final do artigo 16.º, n.º 1. Com efeito, se enten-
dermos que o erro «sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente
indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do
facto» exclui o dolo do tipo, e que esta solução se explica justamente pela
circunstância de, em virtude do erro, não se terem reunido as condições
imprescindíveis para que o agente tivesse a oportunidade de orientar
correctamente a consciência da ilicitude [Dias, (2007: 363 ss.; com maior
desenvolvimento, 2009: 392 ss.)], não vemos porque há-de ser diversa a
consequência do erro em casos de justificação putativa, visto que também
aí – mesmo se com base em suposição errónea e já não em desconhecimento
– poderemos afirmar que o agente não teve condições para poder orientar
a consciência da ilicitude como esperado6.
Em segundo lugar, uma outra perspectiva comparativa permite divisar
nova incoerência de ordem sistemática introduzida por esta proposta.
Tem sido aceite que a ausência da representação, por parte do agente,
5
A solução tem também alguma popularidade na jurisprudência: v. a título ilustrativo, o
acórdão da Relação de Coimbra de 18-05-2010 (Mouraz Lopes). Se bem que por vezes ela
surja entranhada em algumas confusões: tome-se por ex. o acórdão da Relação de Coimbra
de 2011-05-18 (José Eduardo Martins), onde se afirma, por um lado, que «o erro sobre os
pressupostos fácticos de uma causa justificativa deve considerar-se erro sobre a factualidade
típica», e, por outro, que nos casos previstos no artigo 16.º, n.º 2, primeira parte, «o tipo
incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este (...) actua sem culpa dolosa.»
6
Argumentando também por comparação com o artigo 16.º, n.º 1, parte final, se bem que
em termos diversos, Taipa de Carvalho (2016: 352).
80
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
7
Esta solução só está legalmente prevista para o consentimento (no artigo 38.º, n.º 4), mas
tem sido defendido o seu alargamento, com variações, às restantes causas de justificação:
cfr., entre outros, Andr ade (2004: 522); Pereir a (2004: 149); Dias (2007: 391); Palma
(2017: 400). No StGB não se prevê sequer tal indicação, mas a doutrina tem maioritariamente
seguido idêntico caminho: Frisch (1987: 137); Rönnau e Hohn (2006: 546); Roxin
(2006: 644); Str atenwerth e Kuhlen (2011: 154); Kühl (2017: 129). Cfr. Welzel
(1969: 83); Hirsch (2003: 142).
81
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
8
Se enquadrada nestes termos, cremos estar em sintonia com a formulação simples e
expressiva de Str atenwerth e Kuhlen (2011: 158): «[A]uch wer in Notwehr tötet, tötet
willentlich. (...) Wohl aber wird der sonst durch den Vorsatz begründete Handlungsunwert aufgeho-
ben, wenn der Täter von einer rechtfertigenden Sachlage ausgeht. Ebenso wie die objektiven Elemente
der Rechtfertigung den Erfolgsunwert ausschließen oder aufwiegen (…), so die subjektiven Elemente
der Rechtfertigung den Handlungsunwert (des Vorsatzdeliktes).»
82
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
ao Direito. Em suma, parece-nos que, agora sim, este erro exclui o dolo
da culpa9-10.
9
Não vai sem implicações práticas esta divergência nas consequências apontadas aos erros
do artigo 16.º, n.º 2 – negação do desvalor da acção doloso em resultado do erro referido
na primeira parte, e da culpa dolosa na sequência do erro previsto na segunda. Pense-se
no significado que ela assumirá em problemas de comparticipação (atendendo, nomeada-
mente, às exigências de acessoriedade qualitativa na participação) ou até em questões de
teor processual (veja-se, v. g., o artigo 167.º, do Código de Processo Penal, a fazer depender
a proibição de valoração, como meio de prova, de reproduções mecânicas da ilicitude penal
das mesmas).
10
Cremos satisfazer com esta solução a preocupação legitimamente manifestada por
Fernanda Palma (2017: 413) quando questiona se a solução global de exclusão do dolo
no artigo 16.º não traduzirá uma equiparação indevida das várias modalidades de erro aí
previstas. Note-se que a via da exclusão da culpa dolosa em todo o artigo 16.º, n.º 2, só em
parte responde à inquietação, visto que mantém uma equiparação entre os dois erros deste
dispositivo – a nosso ver indevida, pois faz equivaler na consequência aquilo que é proble-
maticamente diverso e merece, em correspondência, valoração material divergente. A via
por nós seguida no texto, pelo contrário, diferencia o tratamento dos erros do artigo 16.º em
três planos, possibilitando uma resposta mais adequada ao particularismo problemático de
cada um. Resta saber, aliás, se a análise – equivalente à que fazemos no texto para os erros
do n.º 2 – do erro sobre a proibição previsto no artigo 16.º, n.º 1, parte final, não levará a
concluir igualmente, com recurso a argumentação parcialmente semelhante, pela rejeição
do desvalor da acção doloso, deixando intocado o dolo do tipo. Por escapar ao âmbito do
presente texto, deixaremos esta questão em aberto.
83
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
11
É por simplificação que assim nos exprimimos, dado que pode bem suceder que a dispo-
sição anímica do agente o levasse a praticar o facto do mesmo modo ainda que não tivesse
errado na representação da realidade (ou seja, mesmo que soubesse ter ao dispor arma com
dardos tranquilizantes, teria igualmente utilizado a arma de fogo). A solução não será, em
princípio, diversa em tal configuração, pois a dimensão subjectiva da justificação por legí-
tima defesa basta-se com a consciência dos elementos objectivos, não devendo exigir-se, para
lá disso, qualquer específico animus defendendi: Zielinski (1973: 230 e 233); Carvalho
(1995: 375); Rönnau e Hohn (2006: 545); Roxin (2006: 719). Na jurisprudência, v.,
por ex., o acórdão da Relação de Coimbra de 17-09-2003 (Oliveira Mendes). Cfr. Palma
(1990: 611; e 2017: 392) [seguindo esta posição, acórdão da Relação do Porto de 11-12-2013
(Eduarda Lobo)]. Nesta linha, o tratamento a dar à representação errónea da necessidade
do meio será encontrado com independência de o erro ter sido causal para esse excesso ou
não – a solução poderá não variar, portanto, ainda quando se comprove que o excesso se
verificaria igualmente se o erro não houvesse tido lugar.
12
Continuamos a recorrer a simplificações. Das circunstâncias concretas do caso pode
resultar que A teria, ainda assim, a hipótese de avisar antes de disparar, disparar um tiro
de ameaça, etc.
84
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
13
Advogando a aplicação analógica do § 33 do StGB (que regula os casos de excesso legítima
defesa) nestes termos, Schonke e Schröder (1974, § 53, n. m. 36).
14
Não são iguais, contudo, os regimes do artigo 33.º do CP e do § 33 do StGB. Nos termos
deste último, o agente deixa de ser punido quando o excesso se deva a perturbação, medo
ou susto, não se condicionando esta consequência, por um lado, à eventual censurabili-
dade da reacção, nem se prevendo, por outro, a possibilidade da atenuação da pena para
os restantes casos.
85
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
15
No caso português, esta incongruência resultaria da contraposição entre os regimes dos
artigos 16.º, n.º 2 (dado que este carece de ser conjugado com a ressalva da punibilidade da
negligência na formação do erro prevista no n.º 3), e 33.º, n.º 2, no âmbito do qual, limitando-
-se a avaliação à componente emocional do excesso, ignorar-se-ia a censurabilidade do erro,
de modo que o agente acabaria sempre absolvido quando se aplicasse o artigo 33.º, n.º 2,
independentemente de o seu erro merecer censura ou não.
86
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
16
Jakobs (1991: 585) vai ao ponto de aplicar directamente o § 33 nos casos em que o erro
seja provocado pela simulação prévia de agressão por parte da vítima, por entender que a
agressão aparente constitui verdadeira agressão para efeitos de legítima defesa.
17
Encontramos também quem defenda que tal aplicação será possível quando o erro tenha
sido inevitável para o agente ou não tenha havido negligência da parte deste: Steinberg,
Wolf e FüLlsack (2016: 487). Mas é comum os autores que o sugerem expressarem
dúvidas a respeito: v., nomeadamente, Kühl (2017: 438); cfr. Roxin (2006: 1004).
87
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
sem dúvida protecção. Mas não vemos que tal seja posto em causa pela
convocação do regime do excesso. Operando-se aqui, com efeito, no plano
da culpa, não é questionado o carácter ilícito da actuação do agente – pelo
que a vítima não perde o direito de legítima defesa (nem terceiros perdem
a possibilidade de a defenderem).
Temos assim que a protecção da vítima não resulta significativamente
prejudicada pela abertura da possibilidade da desculpa do agente – não
só porque tudo se decidirá noutro plano que não o do injusto, como
igualmente porque no âmbito da culpa – provavelmente com ainda maior
clareza que no da ilicitude –, o exame pelo julgador há-de atentar em
todas as variações que o caso apresente respeitantes ao empenhamento
pessoal do agente no facto, de modo a determinar se e até que ponto ele
deve ser alvo de censura. De resto, merece-nos reprovação mais gené-
rica a pretensão de recorrer a considerações de prevenção geral aí onde
deve um juízo de censura pessoal decidir sobre a inexigibilidade de outro
comportamento18.
Quanto à incongruência indicada, ela existe, mas não a encontramos em
todas as teses dos autores que defendem a aplicação do regime do excesso.
No caso da posição de Fernanda Palma (2017: 297-298), na verdade, ela
desaparece. Defende a autora, com efeito, que num caso em que o excesso
não possa explicar-se pelo erro (sendo então impossível aplicar o artigo
16.º, n.º 2), restará a possibilidade de aplicar o artigo 33.º por analogia. Se,
no entanto, tal caminho conduzir à desculpa do agente, não significa isso
a automática absolvição deste. Uma vez que não estamos perante caso de
excesso propriamente dito, mas sim um em que apenas a consideração do
erro por parte do agente sobre os pressupostos daquele explica a relevân-
cia da dimensão emocional da motivação do comportamento para efeitos
de desculpa, resta ainda averiguar se na origem do acontecimento não se
poderá identificar uma falta de cuidado por parte do agente, caso em que
poderá ter lugar a punição da negligência19.
18
Não cremos, como se vê, que seja de adoptar a categoria da responsabilidade proposta
por Rox in (2006: 851). Cfr. A n dr a de (1992: 201); Di as (2007: 606); Ca rva lho
(2016: 465).
19
Diferente é o pensamento de Taipa de Carvalho (1995: 367; e 2016: 512). Arrancando
da ideia de que é preciso autonomizar a questão do erro sobre os pressupostos da legítima
defesa e a questão do excesso na reacção à agressão imaginada, o autor prossegue configu-
rando diversas hipóteses de combinação entre erro e excesso, consoante estes, analisados
88
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
isoladamente, sejam ou não censuráveis. Discordamos desta posição desde logo no seu
ponto de partida. Nos casos que vimos analisando, assentamos – como em geral se assenta
– no pressuposto de haver somente um comportamento criminoso (e isto acontece, aliás,
nos exemplos oferecidos por Taipa de Carvalho). Poderá haver mais que um em certas
hipóteses de excesso extensivo, quando a agressão para lá da defesa (putativa) já tenha
perdido qualquer conexão normativa com esta. Nas restantes hipóteses – aquelas em que
se está geralmente a pensar –, pode bem suceder (como explicamos a seguir no texto) que
sejam identificáveis desvalores diversos (um, negligente, revelado pela falta de cuidado na
origem do erro, e outro, doloso, traído pelo ataque doloso aos bens jurídicos da vítima em
si mesmo). Mas eles referem-se a (aspectos diversos d)a mesma actuação, à mesma ofensa
a bens jurídicos. Qualquer solução que passe por cumular penas aplicadas ao crime negli-
gente com penas aplicadas ao crime doloso violará então o princípio ne bis in idem, visto
que, na verdade, está em causa exclusivamente um crime. Por isto, a apreciação do desvalor
negligente só terá lugar se e quando a responsabilidade dolosa for impossibilitada pela
aplicação do artigo 16.º, n.º 2.
89
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
Solução adoptada
Encontramos esse critério no artigo 16.º, n.º 2, segunda parte, onde se prevê
o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a culpa do agente.
Esta disposição permite dar conta do que reconhecemos correcto em cada
uma das posições que identificámos, sem derrapar onde elas escorregavam.
Os autores que rejeitam por princípio a aplicação do regime do excesso,
sem oferecerem solução genérica de absolvição ou atenuação da respon-
sabilidade, têm razão em destacar a ausência dos elementos da legítima
defesa. Tal ausência, porém, não constitui óbice à aplicação do artigo 16.º,
n.º 2 – pelo contrário, é pressuposto da mesma.
Quem defende a aplicação analógica do regime do excesso revela a
preocupação certeira de dar conta daquilo que na dimensão subjectiva da
actuação do agente em erro merece efectivamente consideração no plano
da culpa – ponto em que nos parece fraquejar a postura anterior (que limita
a referida consideração por recurso a condicionantes apertadas, relaciona-
das, nomeadamente, com o papel da vítima ou a invencibilidade do erro).
Ora, a disposição apontada obriga justamente a analisar o comportamento
tendo em vista a valoração que ao mesmo caberia no caso de se verificar
verdadeiro excesso de legítima defesa – levando, quando a resposta seja a de
que operaria a desculpa do agente, à consequente negação da culpa dolosa.
Por fim, àqueles que optam por recorrer ao § 35 (2) do StGB reconhe-
cemos o mérito de situarem a problemática num âmbito onde a orientação
normativa se faz por referência ao erro do agente, permitindo simultane-
amente guiar a discussão por considerações com sede no plano da culpa.
Também aqui, de todo o modo, apresenta vantagens a convocação do artigo
16.º, n.º 2, do CP em face da referida disposição da lei alemã. Em primeiro
lugar, enquanto nesta a rejeição da culpa ou a atenuação da pena vão dirigi-
das ao (erro sobre o) estado necessidade desculpante (pois remete-se para
o dispositivo imediatamente anterior, onde encontramos essa figura), na
disposição portuguesa, ao invés, a (hipotética) exclusão da culpa do agente
vai referida sem menção a qualquer figura específica do catálogo daquelas
por mediação das quais tal conclusão poderia ser obtida – nada obsta, por-
tanto, a incluir no seu âmbito problemático a hipótese do artigo 33.º, n.º 2 20.
Crê, no entanto, Figueiredo Dias (2007: 619-620), ser «difícil (ou impossível) excogitar a
20
hipótese de um erro (...) sobre o excesso não culposo de legítima defesa». Não descortinamos,
90
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
contudo, tal dificuldade: basta tomar, em primeiro lugar, qualquer caso que se entenda
apresentar um exemplo de excesso de legítima defesa asténico e não censurável; em segundo
lugar, acrescentar que os pressupostos da legítima defesa (a própria agressão, por exemplo,
ou o cariz ilícito) afinal não se verificam, tendo o agente errado quanto à sua existência
– porque, v. g., a agressão foi simulada ou praticada em direito de necessidade sem que o
agente em erro disso tenha dado conta.
91
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
Conclusões
21
Note-se ainda que a extensão da atenuação tem de estar cerceada pela moldura penal
do crime negligente correspondente – mais concretamente, pela concreta medida de res-
ponsabilidade negligente na formação do erro –, sob pena de o agente receber benefício
injustificado. De resto, sem o cerceamento apontado, tal benefício implicaria violar o
princípio da igualdade, bastando, para o comprovar, a comparação com a situação de erro
em que é excluído o dolo da culpa por aplicação do artigo 16.º, n.º 2, com a subsequente
aplicação do n.º 3.
92
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
93
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
Bibliografia
Andr ade, Manuel da Costa, 2004 – Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo
para a fundamentação de um paradigma dualista), reimpressão da edição de 1990,
Coimbra Editora, Coimbra.
Andr ade, Manuel da Costa, 1992 – «A “dignidade penal” e a “carência de tutela
penal” como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime»›, in Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, 2 (2), pp. 173-205.
Carvalho, Américo Taipa de, 1995 – A Legítima Defesa – Da Fundamentação Teorético-
Normativa e Preventivo-Geral e Especial à Redefinição Dogmática, Coimbra Editora,
Coimbra.
Carvalho, Américo Taipa de, 2016 – Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais.
Teoria Geral do Crime, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, Porto.
Correia, Eduardo, 2010 – Direito Criminal, vol. I (colabor. de Figueiredo Dias), reim-
pressão da edição de 1963, Coimbra, Almedina.
Costa, José de Faria, 2017 – Direito Penal, Imprensa Nacional, Lisboa.
Dias, Jorge de Figueiredo, 2007 – Direito Penal – Parte Geral, tomo I (Questões fundamen-
tais – A doutrina geral do crime), 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra.
Dias, Jorge de Figueiredo, 2009 – O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal,
6.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora.
Engisch, Karl, 1958 – «Tatbestandsirrtum und Verbotsirrtum bei Rechtfertigungs-
gründen – Kritische Betrachtungen zu den §§ 19 und 40 des Entwurfs 1958», in
ZStW, 70 (4), pp. 566-615.
Fr is ch, Wolfgang, 1987 – «Grund- und Grenzprobleme des sog. subjektiven
Rechtfertigungselements», in Küper, Wilfried / Puppe, Ingeborg / Tenckhoff, Jörg
(ed.), Festschrift für Karl Lackner zum 70. Geburtstag am 18. Februar 1987, de Gruyter,
Berlin/Boston, pp. 113–148.
Gallas, Wilhelm, 1955 – «Zum gegenwärtigen Stand der Lehre vom Verbrechen»,
in ZStW, 67 (1), 1955, pp. 1-47.
Gallas, Wilhelm, 1979 – «Zur Struktur des strafrechtlichen Unrechtsbegriffs», in
Arthur Kaufmann et al. (ed.), Festschrift für Paul Bockelmann zum 70. Geburtstag am 7.
Dezember 1978, Beck, München, pp. 155-179.
Gropp, Walter, 2015 – Strafrecht – Allgemeiner Teil, 4.ª ed., Springer, Berlin/Heidelberg.
Hardtung, Bernhard, 1996 – «Der Irrtum über die Schuld im Lichte des § 35 StGB»,
in ZStW, 108 (1), pp. 26-60.
Hirsch, Hans Joachim, 2003 – Comentário prévio aos §§ 32 e ss., in Burkhard Jähnke
/ Heinrich Wilhelm Laufhütte / Walter Odersky (ed.), LK – StGB, 11.ª ed., vol. II
(§§ 32-60), Berlin, de Gruyter, pp. 101-252.
Hruschk a, Joachim, 1988 – Strafrecht nach logisch-analytischer Methode – Systematisch
entwickelte Fälle mit Lösungen zum Allgemeinen Teil, 2.ª ed., Berlin/New York, de
Gruyter.
Jakobs, Günther, 1991 – Strafrecht – Allgemeiner Teil: die Grundlagen und die Zurechnungslehre.
Lehrbuch, 2.ª ed., de Gruyter, New York.
94
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E EXCESSO
95
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
Jurisprudência citada22
22
Todos as decisões elencadas encontram-se disponíveis em www.dgsi.pt.
96
Índice
Apresentação 7
PARTE 1
RETRATO E TESTEMUNHOS
PARTE 2
DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL
485
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO JUIZ CONSELHEIRO ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR
PARTE 3
DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL
486
ÍNDICE
PARTE 4
DIREITO FISCAL E DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
PARTE 5
HISTÓRIA E HISTÓRIA DO DIREITO
487