MARISA - ASSUNCAO - TEIXEIRA - Aquisição Da Escrita - D
MARISA - ASSUNCAO - TEIXEIRA - Aquisição Da Escrita - D
MARISA - ASSUNCAO - TEIXEIRA - Aquisição Da Escrita - D
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
São Paulo
2013
MARISA ASSUNÇÃO TEIXEIRA
Versão corrigida
São Paulo
2013
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer
meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que
citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Aprovado em:
Banca Examinadora
Profª Drª Claudia Rosa Riolfi Instituição: Fac. Ed. da Universidade de São Paulo
Julgamento: _________________ Assinatura: ______________________________
Profº Drº Émerson de Pietri Instituição: Fac. Ed. da Universidade de São Paulo
Julgamento:__________________ Assinatura: _______________________________
Profº Drº Rinaldo Voltolini Instituição: Fac. Ed. da Universidade de São Paulo
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________________
Profª Drª Andressa Cristina Coutinho Barboza Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto
Julgamento: _________________ Assinatura: ____________________________
Esta tese compõe o conjunto de pesquisas coordenadas pelo projeto coletivo “Movimentos do
Escrito”, desenvolvido pelo Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise
(GEPPEP). Alinha-se àqueles estudos que compreendem a escrita alfabética e a escrita do
inconsciente como duas ordens que se correlacionam e se influenciam reciprocamente, se
apresentando como um processo que não é linear, mas envolve enigmas. Tem como objeto de
estudo cenas escolares envolvendo crianças em impasse na etapa de alfabetização. Os
objetivos são: 1) examinar em que medida as vicissitudes da pulsão na criança têm relação
com o acesso aos objetos de conhecimento; 2) como o professor pode estabelecer uma
parceria produtiva com o aluno para a aprendizagem da leitura e da escrita. Nossa tese é a de
que: 1) é possível correlacionar a dimensão pulsional com o acesso à escrita, na medida em
que as vicissitudes da pulsão oferecem a chave da entrada no mundo da escrita, e a quebra do
narcisismo (tratar o próprio corpo como objeto sexual e parâmetro de um ideal de
completude) possibilita a abertura para o aprendizado da escrita alfabética; 2) o professor
pode exercer grande influência para potencializar este processo, caso não incorra em
cristalização dos papeis sociais de aluno e de professor. Para sustentá-las tomei como base a
leitura da obra freudiana feita por Jacques Lacan. Procurou-se construir uma interlocução
entre os estudos da educação, da linguística e da psicanálise tendo como eixo a noção de
linguagem. A metodologia de trabalho está fundamenta na pesquisa psicanalítica, a partir da
qual se fez uma construção do caso, apresentado em narrativas organizadas em excertos. Foi
também utilizada uma transcrição de uma interação dialógica. As duas ferramentas compõem
os corpora desta investigação. Com relação à pergunta que tentava investigar em qual
momento da articulação pulsional a criança se lança em direção à aprendizagem da leitura e
da escrita, a análise do material dos informantes possibilitou averiguar que é aquele em que a
criança consegue ultrapassar a completude da imagem idealizada do corpo (narcisismo) para
fazer uso do material linguístico-discursivo para produzir efeitos de sentido. Contudo, trata-se
de uma dinâmica singular, que não pode ser generalizada. No que diz respeito ao professor, a
análise do material permitiu identificar que a alternância entre posições enunciativas
(reprodução, trabalho e inventividade) favorece a produção da criança. Nesta conjuntura,
também se trata de uma lida singular por parte do professor.
TEIXEIRA, M. A.. Acquisition of writing: desire bordering the enjoyment. A study from the
perspective of psychoanalysis. 2013. 248 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Quadro 1 - Equivalência das nomenclaturas das operações de linguagem em Saussure e Jakobson ..51
Quadro 2- Descrição dos conteúdos dos CD-R audiovisuais com clipes de filmes ............................78
Quadro 3 - Descrição do CD-R com as atividades gráficas digitalizadas ..........................................78
Quadro 4 - Descrição do CD-R com o relatório da professora ..........................................................79
Quadro 5 - Cenas do vídeo clipe ........................................................................................................80
Quadro 6 – Movimentos do jogo do Fort Da .....................................................................................99
Quadro 7 – Exemplificação da formação de uma cadeia simbólica a partir do jogo “Cara ou coroa” –
1ª sequência .......................................................................................................................................111
Quadro 8 - Exemplificação da formação de uma cadeia simbólica a partir do jogo “Cara ou coroa” – 2ª
sequência ............................................................................................................................................112
Quadro 9 – Exemplificação de construção de uma estrutura simbólica elementar ...........................112
Quadro 10 - Exemplificação da formação de uma cadeia simbólica a partir do jogo “Cara ou coroa” –
3ª sequência .......................................................................................................................................112
Quadro 11 – Movimentos que caracterizam a ordem simbólica .......................................................115
Quadro 12 – Transcrição do vídeo clipe ...........................................................................................125
Quadro 13 – Componentes da pulsão ................................................................................................136
Quadro 14 – Os destinos das pulsões ................................................................................................136
Quadro 15 – Relação das pulsões com seu objeto, “objeto a” ..........................................................141
Quadro 16 - Como o inconsciente opera sob o regime do significante ............................................148
Quadro 17 – Correlação entre posição enunciativa e posição subjetiva ...........................................2123
Quadro 18 – Jeito de o Carlos funcionar em relação ao conhecimento ............................................2134
Quadro 19 – Jeito de a professora operar ..........................................................................................220
Quadro 20 – Jeito de operar de P2 ....................................................................................................220
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
PARTE I - O IMPACTO DA INSTÂNCIA PULSIONAL E DAS FORMAÇÕES DO
INCONSCIENTE NA ESCRITA ALFABÉTICA
1. APONTAMENTOS A RESPEITO DAS ACEPÇÕES DE LINGUAGEM ....................... 36
1.1. Elementos mínimos da construção da noção de “linguagem” para a linguística moderna 36
1.1.1. Aportes Saussure ........................................................................................ 37
1.1.2. Aportes de Jakobson ................................................................................... 47
1.1.3. Aportes de Benveniste ................................................................................ 53
1.2. Uma proposta curricular sem uma teoria da linguagem apoiada na linguística..............61
1.3. A noção de linguagem pelo aporte de Vigotski .............................................................. 63
1.4. As acepções de linguagem que incluem o sujeito e o equívoco constitutivo .................. 68
1.5. Considerações a respeito das acepções de linguagem apresentadas no capítulo.............73
2. PESQUISA EM PSICANÁLISE: RELATO DE UM PERCURSO ................................... 77
2.1. A composição dos corpora ............................................................................................. 77
2.2. Ferramentas metodológicas ............................................................................................. 84
3. A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA E PELA LINGUAGEM ...................................... 91
3.1. O encontro de Freud com a linguagem ........................................................................... 91
3.2. O inconsciente lacaniano como discurso do outro ........................................................ 104
3.3. Lacan e seu aforismo: o inconsciente é estruturado como uma linguagem .................. 106
3.4. A ordem simbólica ........................................................................................................ 108
3.5. A articulação entre simbólico, linguagem e inconsciente ............................................. 114
3.6. Ian: tentativas de operar na linguagem .......................................................................... 119
4. CORPO E LINGUAGEM .................................................................................................. 132
4.1. Nos meandros da pulsão................................................................................................ 132
4.1.1. O conceito de pulsão em Freud .................................................................................. 132
4.1.2. A retomada do conceito de pulsão por Lacan ............................................................ 139
4.2. A pulsão e sua relação com o significante .................................................................... 146
4.3. Articulação entre pulsão e desejo .................................................................................. 152
4.3.1. A acepção de desejo em Freud ................................................................................... 152
4.3.2. A acepção de desejo em Lacan .................................................................................. 156
4.3.3. Considerações preliminares referentes ao capítulo ...................................................161
5. FORMAÇÕES NARCÍSICAS .......................................................................................... 162
5.1. A gênese do eu pela formulação de Lacan .................................................................... 162
5.2. O eu narcísico: construções freudianas ......................................................................... 164
5.3. Impasses do estádio narcísico: o silêncio de Maria Isabela .......................................... 166
6. REAL, SIMBÓLICO, IMAGINÁRIO ............................................................................... 179
6.1. O nó borromeano e a tríade freudiana “inibição, sintoma e angustia” .......................... 180
PARTE II - AS PARCERIAS PARA A AQUISIÇÃO DA ESCRITA
1. SUBJETIVIDADE, REAL E ESCRITA ........................................................................... 184
1.1. O inconsciente escreve .................................................................................................. 184
1.1.1. A escrita e a instância pulsional ................................................................................. 187
1.2. A escrita em Lacan ........................................................................................................ 189
1.2.1. Transmissão oral e gozo ............................................................................................. 189
1.2.2. Escrita e real ............................................................................................................... 190
1.2.2.1. Aproximações de Lacan com a acepção de escrita “que resulta do que poderia ser
chamado de uma precipitação do significante” .................................................................... 190
1.2.2.2. A escrita “sinthoma” ............................................................................................... 192
2. PARCERIAS PARA A AQUISIÇÃO DA ESCRITA ....................................................... 196
2.1. A noção de parceria para a escrita ................................................................................. 196
2.2. A parceria para a aquisição da escrita ........................................................................... 197
2.3. A articulação da relação do sujeito com o Outro: alienação e separação ..................... 198
3. PROFESSOR E ALUNO: LAÇO EDUCATIVO EM MOVIMENTO ............................ 200
3.1. Influência da instância pulsional na aquisição de conhecimento .................................. 200
3.2. Efeitos do narcisismo na iniciação à escrita .................................................................. 201
3.2.1. A força presente no silêncio de Carlos ....................................................................... 201
3.2.2. A produção de Carlos ................................................................................................. 210
3.3. Movimentos de alternância nas posições subjetivas ..................................................... 211
4. OS MOVIMENTOS DE APRENDIZAGEM COMO EFEITO DO MANEJO DO
PROFESSOR .......................................................................................................................... 216
4.1.O desejo como mola mestra no ensino e na aprendizagem ............................................ 216
4.2 O desafio de ensinar na contemporaneidade .................................................................. 235
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 237
13
INTRODUÇÃO
Portanto, vou em direção de argumentar que cabe ao professor encarar a sua prática a
partir do ponto de honra (RIOLFI; BARZOTTO, 2012, p. 11) do desejo para que possa
mobilizar seu saber artesanal, responsabilizando-se pela construção de um jeito de ensinar que
lhe seja própria.
Assim sendo, a reflexão que me proponho empreender focaliza a produção de crianças
que estão embaraçadas na apropriação da leitura e da escrita apesar dos anos de estudo, ou
aquela que sequer chegará um dia a ler e escrever. Também ressalto que os informantes
selecionados para a construção dos corpora são, em sua maioria, crianças que não verbalizam
oralmente, seja por causa orgânica, seja por motivo de recusa. Mas, lembrando a advertência
de Freud (1974b [1914], p. 98), são as distorções e os exageros, e acrescento as restrições, que
nos permitem alargar a visão a respeito daquilo que parece tão simples nos fenômenos
normais.
A perspectiva insere-se no horizonte de trabalho do “Grupo de Estudos e Pesquisa
Produção Escrita e Psicanálise” (GEPPEP), sob a coordenação dos pesquisadores Profª Drª
Claudia Rosa Riolfi e Profº Drº Valdir Heitor Barzotto, que tem como finalidade elucidar as
novas demandas que recaem sobre os modos de ler e escrever na atualidade, bem como os
efeitos destas práticas para o sujeito e para a produção de conhecimentos e, a partir disso,
buscar novas formas de conduzir a formação para a leitura e a escrita.
Mais especificamente, esta tese é fruto do projeto de pesquisa coletivo “Movimentos
do Escrito” (2009 a 2012), o qual consiste em tomar como objetos de análise as produções
gráficas e os textos escolares e acadêmicos, visando mostrar que do ponto de vista de quem
escreve e de quem lê, um texto pode gerar movimentos e mudanças.
Para desenhar o cenário que aguçou minhas interrogações, passo a situar o lugar de
onde, como pesquisadora, extrai o material dos informantes e a minha função neste lugar, a
qual me possibilitou ter acesso à coleção das produções das crianças. Também situo como se
deu a alternância de uma função institucional para uma posição não instituída e que se refere
às ocasiões em que intervi diretamente com os alunos, e que estou designando de “adulto na
posição de professor”.
Estou como psicóloga integrante do quadro de orientação técnica de um sistema de
ensino municipal, e a minha atuação está voltada para a formação permanente dos educadores,
por meio de estratégias que contribuam para alargamento de sua compreensão acerca da
dinâmica psicológica do educando (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 1998). Quando vou à
escola, sou considerada como uma especialista a respeito do processo de aprendizagem e do
comportamento das crianças.
17
É por esse motivo que a autora valoriza o estudo das produções espontâneas das
crianças, tomando-as como indicadores das explorações realizadas para compreender a
natureza da escrita. Pensa que os aspectos gráficos de tais produções são menos importantes
do que os aspectos construtivos, que podem ser subdivididos em três grandes períodos: 1)
distinção entre o modo de representação icônico e não icônico; 2) construção das formas de
diferenciação; e 3) processo de diferenciação dos elementos e relações.
Antes de chegar à escrita alfabética, a criança passaria, portanto, por diferentes
refinamentos do processo de diferenciação dos elementos e relações, como por exemplo, o
chamado “período silábico”, que se funda na seguinte premissa: “uma sílaba por letra, sem
omitir sílabas e sem repetir letras”.
Assim sendo, consoante com as formulações cognitivistas de Ferreiro, a proposta
curricular de São Bernardo do Campo evoca um aluno atuante sobre a língua, cujas hipóteses
e regras são fruto de sua análise, reflexão e generalização.
De outro lado, referenciada na psicanálise, eu estava advertida que na aquisição do
conhecimento nem tudo está relacionado à cognição, e que existem fenômenos que
repetidamente aparecem e que escapam aos educadores e que só podem ser apreendidos pela
pressuposição de outros atos para os quais a consciência não oferece explicação. São ideias,
como dizia Freud (1974c [1915]), que assomam ao nosso pensamento vindas não sabemos de
onde, e com conclusões que alcançamos não sabemos como. Vou designar, grosso modo, de
fenômenos inconscientes.
Vale dizer que essa dimensão desconhecida para o ser humano não tem nada a ver
com a volubilidade emocional da pessoa, com seus sentimentos e afetos, posto que temos
consciência dessas manifestações, sabemos de algum modo o que estamos sentindo.
Volto, então, ao que imaginariamente era esperado da intervenção do psicólogo na
educação: que ele pudesse com o seu saber de especialista contribuir para pensar alternativas
que minimizassem no plano do aprendizado a interferência dos comportamentos destoantes e
dos sentimentos e emoções exorbitantes.
Uma peculiaridade do trabalho do psicólogo, em voga na ocasião, envolvia que as
demandas vindas das escolas obedecessem a determinados procedimentos. Dentre eles, que os
casos envolvendo os alunos fossem problematizados com as equipes gestoras e não
diretamente com o professor, pois se considerava que era o coordenador pedagógico e o
diretor quem deveriam assumir a responsabilidade pela tarefa formativa na escola. Assim, o
psicólogo tinha acesso à queixa escolar indiretamente, a partir da leitura do relatório do
professor, da consulta ao projeto pedagógico educacional, das vistas ao caderno ou portfólio
20
alfabeto de letras móveis, números móveis, dinheiro fantasia, jogo de dominó), uma ou duas
revistas e panfletos de supermercado.
Com o tempo, aprendi a deixar esses materiais de lado e passei a aproveitar o exercício
que o professor tinha proposto para a classe e acompanhava ou mesmo fazia a atividade junto
com o aluno. Isto porque quando eu usava com o aluno o material que tinha levado, eu criava
uma situação artificial, além de muitas vezes constrangê-lo por estar fazendo algo muito
diferente dos demais. Este formato de atuação acabava se assemelhando a uma avaliação
psicológica individual.
Ao passo que usando a mesma atividade que a professora dava, eu tinha a
oportunidade de verificar mais pontualmente o raciocínio feito pela criança, suas hipóteses
sem prova lógica, bem como as lacunas com relação ao conteúdo ensinado. A partir desta
minha intervenção e das observações acumuladas eu podia oferecer subsídios para a
professora reorientar seu trabalho com aquele aluno em particular.
Raras vezes a minha intervenção focou apenas o aluno objeto da queixa; na maioria
das ocasiões, os vizinhos de carteira se aproximavam, palpitavam ou aproveitavam para fazer
seus exercícios no grupo que se formara ao meu redor. Agindo assim eu deixava de me
ancorar no meu título de psicóloga e passava a assumir-me e, sobretudo, ser reconhecida pelo
aluno (s) como se fosse uma professora. Ainda mais porque os alunos estão habituados a ter
mais de um professor em classe para dar apoio ao ensino e à aprendizagem em situações
específicas.
É esta intervenção direta com o aluno não baseada na minha função de psicóloga, mas
em um lugar suposto como sendo o de professora que estou denominando por posição no
discurso (tema tratado no capítulo 2), a qual eu designei por “adulto na posição de professor”.
Portanto, nesta investigação os meus esforços de análise incidem sobre os efeitos
provocados pela minha atuação em algumas situações como psicóloga educacional e em
outros eventos por aquele chamado de “adulto na posição de professor”, dependendo da
característica do material que está sob o foco da análise.
Vou recorrer aos excertos 1 e 2, na sequência, para apresentar os efeitos de interações
pedagógicas ocorridas em aulas de língua portuguesa referidas ao “adulto na posição de
professor”. Vou refletir acerca destas interações a partir de fundamentos teóricos advindos da
psicanálise para poder evidenciar o caminho percorrido até a elaboração das perguntas de
pesquisa.
Este excerto apresenta uma situação típica de sala de aula que expõe os diferentes
tempos da iniciação das crianças na escrita: o Sérgio que usava as letras móveis e o material
dourado à maneira de um pequeno escultor, dando-lhes formas condizentes com as suas
experiências culturais, e o grupo de crianças que começava a se deparar com as diferenças
fonéticas e de sentido de uma mesma palavra.
Contudo, o motivo do pedido de acompanhamento pela psicóloga deveu-se à
dificuldade de aprendizagem do menino Sérgio. Para os professores brasileiros, formados
dentro das concepções das teorias psicológicas que se disseminaram a partir do início dos
anos de 1980, a noção de etapas cronológicas do desenvolvimento está grandemente associada
à noção de dificuldades de aprendizagem, quando os alunos não atingem o nível esperado
para sua faixa etária.
Piaget (1896-1980), um dos nomes identificados a esta perspectiva, entende que a
linguagem é um “sistema de signos coletivos” que se expressa verbalmente e que é adquirido
“numa certa idade e não noutra, segundo uma certa ordem e não uma outra” (PIAGET, 1978,
p. 10-13).
Existem diferentes justificativas para este descompasso; para os professores está
relacionado à falta de estrutura familiar e às questões comportamentais e afetivo-emocionais;
para muitos da academia, bem como para os formuladores de políticas em educação, está
ligado à precariedade da difusão dos métodos de ensino e/ou à insuficiência ou ausência de
vivências de letramento das crianças.
Esta investigação segue outro caminho apoiada, principalmente, no psicanalista
Jacques Lacan na medida em que, sem menosprezar o aspecto cronológico, procura
privilegiar o tempo lógico.
Abro parênteses para apresentar o conceito de tempo lógico para depois relacioná-lo
com a situação aqui discutida. Freud (1974c [1915], p. 214) ao investigar os fenômenos do
inconsciente, deparou-se com características dos processos do sistema Ics que ele chamou de
intemporais, ou seja, não são ordenados temporalmente, não se alteram, não sofrem desgaste
com a passagem do tempo. A afirmação causou mal entendidos na comunidade de
psicanalistas, levando a uma concepção unidimensional do tempo. Um exemplo desta
concepção é o tempo de duração fixo das sessões determinada em cinquenta minutos.
25
Jacques Lacan atentou para o fato de que a fixidez do tempo de duração das sessões
impedia a apreensão sincrônica do inconsciente no exato momento em que este se
manifestava, como irrupção inesperada em meio ao obscurecimento da consciência. Entre as
consequências desta descoberta, destaca-se o manejo da transferência com a prática das
sessões cortadas. Baseia-se no raciocínio de que o sintoma exprime uma relação do sujeito
com distintas coordenadas temporais: o antes/depois (sucessão), o agora (sincronia), e além
destas Lacan acrescentou uma nova dimensão temporal, a pressa. Colocou estas três
coordenadas temporais em um esquema composto pelo instante de ver, o tempo para
compreender e o momento de concluir (LACAN, 1998a [1945]). Nessa tríade, a pressa é a
precipitação do sujeito em concluir num momento de obscurecimento da consciência,
mostrando um atraso do seu raciocínio em relação ao momento em que tinha de fazê-lo (o
antes).
Pensemos nas manifestações de déjà vu (já vi isto): ai o problema vem do fato de o
sujeito não ter se dado conta do que viu no momento em que tinha de fazê-lo (o primeiro
tempo); é o instante de ver. O segundo tempo não é em si mesmo o fato visto ou a palavra
dita, porque já passou, mas é a revivescência sob a forma de realidade imaginária; é o tempo
para compreender, para estabelecer relação com o que foi visto anteriormente. Quando aquilo
que estamos falando ou fazendo num determinado momento abre brecha sem mais nem
menos nessa realidade imaginária, pegando a pessoa desprevenida, essa emergência se
apresenta como sendo da ordem da certeza, como se efetivamente a pessoa tivesse estado lá,
vivido aquilo sem nem se lembrar. Esta irrupção de algo que aparece como certeza é o
momento de concluir. A essa certeza Lacan chamou de verdade do sujeito. Por fim, deu o
nome de tempo lógico a essa precipitação da certeza enquanto a verdade do sujeito, porque a
lógica se ocupa dos valores de verdade.
Vou retomar o raciocínio que eu vinha fazendo antes destes parênteses. Considerando
a cena apresentada no excerto 1, eu dizia que ela expunha os diferentes tempos em que cada
criança daquela classe se encontrava em relação à apropriação da escrita. Também dizia que
existiam justificativas para explicar esse descompasso entre o que a criança conhece e faz e
aquilo que é esperado para sua faixa etária. E que estas justificativas estavam baseadas numa
noção de tempo cronológico, aquele feito de etapas que seguem um sentido ascendente,
portanto, unidimensional. Quando esta correspondência cognitiva entre o objeto de
conhecimento (letras e números) e a idade ou nível escolar não acontece, diz-se que a criança
tem dificuldades de aprendizagens.
26
Por fim, afirmei que este estudo, sem desconsiderar o tempo cronológico, procura
privilegiar o tempo lógico, considerado a precipitação da certeza como a verdade do sujeito.
O tempo lógico é uma das coordenadas temporais que age por retroação, volta para trás, se
enganchando em experiências antigas e que passaram despercebidas, e salta para frente,
ignorando sequência ou sucessão, extraindo conclusões singulares, que não estão
referenciadas àquilo que é esperado cronologicamente. Diferentemente do tempo
unidimensional, o tempo lógico opera de maneira pluridimensional. Por isso Freud dizia que o
sistema Ics era intemporal, ou seja, não era ordenado temporalmente no sentido de uma ordem
de sucessão (do mais antigo para o mais contemporâneo).
A implicação de tratar a aquisição da escrita pela criança do ponto de vista do tempo
lógico é a de substituir a noção de dificuldade de aprendizagem pela de impasse ou embaraço
com relação à articulação particular que a criança faz dos tempos (ver, compreender,
concluir). Era o tipo de embaraço em que Sérgio se encontrava quando da sua iniciação na
escrita.
Uma exemplificação de como funciona o tempo lógico (o momento oportuno de
concluir) pode ser acompanhada pelas elaborações feitas pela menina no excerto 1. Ela havia
pedido ao “adulto na posição de professor” (P2)1 que lesse uma das perguntas do
questionário: “qual é o nome dos seus pais?”. P2 retrucou e solicitou à garota que lesse o que
estava escrito. A garota soletrou em voz alta as sílabas. E P2 em voz alta foi juntando as
sílabas para formar a frase. A partir da impressão acústica que a criança teve da entonação que
P2 deu à palavra “pais”, a menina respondeu “Brasil”. Espantada e sem conseguir explicar as
regras da língua, P2 tentou argumentar a partir de sua experiência de falante e afirmou que a
resposta para [pa´is], com risquinho no i seria Brasil. Mas aquele [´pajf] não tinha risquinho,
era um plural, e queria dizer o nome do pai e da mãe. Quando a menina se expressa com um
“Ah!” que não é seguido de nenhum outro comentário ou pergunta, este “Ah!” se configura
como a irrupção da verdade do sujeito, é o momento de concluir.
Não temos qualquer ideia do que desencadeou esse “Ah!” ou porque ele próprio se
bastou e não foi sucedido de perguntas; quais foram as relações que a menina fez com as aulas
da professora, com os sotaques ouvidos da boca das pessoas, enfim, com uma infindável lista
de possibilidades. O que o sujeito (e não a menina) fez foi expressar a sua verdade, a sua
certeza, a sua conclusão. Estou deixando em suspenso aqui a noção de sujeito em psicanálise
para não me alongar nesta parte introdutória.
1
Daqui em diante vou me referir ao “adulto na posição de professor” pela sigla P2.
27
paninhos, bichinhos e objetos de estimação que a criança carrega e que têm valor de amuleto
para garantir proteção, como se fossem equivalentes à segurança propiciada pela claridade.
(POMMIER, 1996, p. 55 e 64).
Como resultado da transição de uma civilização regida pelas imagens antropomórficas
para uma respaldada em outro parâmetro de autoridade, no caso, um deus com nome
irrepresentável (Atón), Pommier vislumbrou a entrada dessa cultura num registro simbólico,
conforme se pode ler no seguinte trecho:
[...] o totem cai em desuso; apenas sua potência pode ser simbolizada graça
ao Nome [...], cuja transmissão será a metáfora do falo. Nesta operação
simbólica não se tratará do teu nome, do seu nome, do meu ou de qualquer
outra denominação, senão somente a força metafórica do nome, com
independência do que significa. (Ibid., 1996, p. 65).
imagem. E ao se agarrar às letras pela forma sugeria estar usando-as como escudo contra a
angústia de desaparecimento da imagem do corpo, à espécie das pictografias das antigas
civilizações. Apresento o argumento que Pommier (1996, p. 204) faz a respeito das letras
tomadas com valor de imagem, como o fez Sérgio:
Se as letras se enlaçam entre si para constituir vocábulos, formam uma
significação a serviço da repressão. Quando, ao contrário, são isoladas e
desenlaçadas, retomam seu valor de imagem, de figuras que já não
significavam nada mais que seus próprios contornos, e nesta medida serão
adequadas para o retorno do reprimido.
Dito de outro jeito, Sérgio ocupava um lugar habitado por imagens (expectativas) em
relação ao seu próprio corpo. Agia como se estivesse sozinho, fechado em si, como se essa
ilusão de corpo total lhe bastasse.
Retomemos as peripécias da turminha que já conseguia dar conta da leitura e da
escrita, mas tropeçava na atribuição de sentidos (interpretação) para a palavra “pais”. Com o
meu conhecimento de psicóloga cheguei a dizer para alguns professores à época que o fato da
criança privilegiar a imagem visual da palavra ou destacar a imagem auditiva tinha estreita
conexão com os sentidos do corpo e passei a chamar esses fenômenos de porta de entrada
para o conhecimento. Pommier (1996, p. 9) desenvolveu hipótese semelhante ao referir que as
crianças inventam por si próprias a chave da escrita (seu modo singular de abrir as portas para
o mundo das letras) e se ela não fizer essa descoberta sozinha não haverá jeito de iniciá-la nas
formalizações gráficas da sua cultura.
Diferentemente do Sérgio, que pareceu estar enclausurado numa espécie de angústia
de desaparecimento do corpo físico, as crianças mencionadas tinham atravessado a operação
de recalcamento da imagem do corpo e o que sobrou de resíduo neste processo acabou por
investir partes de seu corpo. Para a menina tratou-se de investir a parte do ouvido (ouvir
[pa´is] ao invés de [´pajf]); para os dois meninos o resíduo do recalcamento fixou-se no olho
(reconhecer [´paj] ao invés de [´pajf]).
A respeito do recalcamento, Pommier (1996, p. 105) escreveu que “a característica da
letra, nem visual nem auditiva, depende de seu lugar de origem, a repressão, e de sua forma,
isto é, do retorno do que se reprimiu do gozo do corpo. As qualidades auditivas ou visuais da
letra são somente consequências destas características”. Arrisco a dizer que a forma como as
três crianças vão lidar com o conhecimento desse ponto para frente estará para sempre ligada
a esta matriz originária do tipo de uma chave que abre portas.
Este raciocínio, portanto, pressupõe a noção de pulsão e requer, num plano maior, que
se evidencie como as formações do inconsciente impactam a aquisição da escrita alfabética.
30
Este é um tema que será tratado na parte I do presente estudo. No momento, volto ao cenário
que me serviu de base para problematizar a aquisição da escrita.
O excerto 2 apresenta um relato envolvendo um aluno com deficiência física para o
qual foi solicitada a minha intervenção como psicóloga educacional. Pela narrativa pode-se
também acompanhar a minha alternância do lugar institucional de psicóloga para o de “adulto
na posição de professor”.
Em 2004, fui acorrer à professora Maria José, numa classe de 2º ano do ciclo I.
A professora estava aflita porque quase todos seus alunos produziam textos escritos,
porém, Jonathan não conseguia nem traçar as letras iniciais do seu nome.
O menino tinha sofrido uma paralisia cerebral quando era pequeno, o que
resultou em verbalização lenta e truncada, movimento restritivo das mãos, imobilização
das pernas com necessidade de usar cadeira de rodas e sequelas na visão, compensada
por óculos de grau. Sentada ao lado do garoto, pedi que me mostrasse seu caderno.
Depois de lutar com os materiais guardados sob a carteira, colocou
desajeitadamente o caderno sobre o tampo, derrubando para fora da mesa seus outros
pertences. Pedi-lhe que folheasse o caderno e me mostrasse suas lições. Com
precariedade de movimentos, Jonathan foi virando as folhas. Deparei-me com
atividades de escrita mimeografadas em tinta azul desvanecida, cheias de detalhes
gráficos, coladas nas folhas do caderno e rabiscadas; figuras para colorir também
rabiscadas e, possivelmente, tomadas como indício de que não sabia desenhar. Para
alguém que tinha restrições visuais o material em nada ajudava.
Apesar da minha presença, o menino prestava atenção na aula da professora e
respondia às perguntas que ela fazia sobre o entendimento de um texto lido
anteriormente. Era bastante participativo e em dado momento, a professora teve que
pedir que ele deixasse outro aluno fazer uso da palavra.
Quando a professora escreveu na lousa e pediu a leitura do que tinha escrito,
Jonathan se adiantou ao grupo e leu a primeira sílaba em voz alta, tentando adivinhar o
restante da sentença. Não acertou, mas o fato me chamou a atenção. Ele parecia ter
conhecimentos das letras e do seu arranjo, e como seguia atentamente a exposição da
professora, extraiu dali o contexto para dar sentido, por inferência, às palavras e à
sentença.
Livrei a mesa dos objetos e abri a caixa de letras móveis, organizadas em
sequência. Destaquei da fala da professora a palavra cavalo e pedi que Jonathan a
escrevesse usando as letras móveis. Com lentidão e desajeitamento o menino arranjou
as letras da palavra sobre a carteira. Como acertou, imaginei que aquela devia ser a
escrita de uma palavra memorizada. Então lhe pedi que abrisse seu livro e ele
argumentou que precisava prestar atenção na professora, que estava dando outra coisa.
Atenta à minha intervenção, Maria José se ajeitou para utilizar um dos livros didáticos
e assim eu pude convencer o aluno a ler algumas palavras do livro.
A princípio, considerei que fosse tarefa difícil pelo fato da letra de impressa
destoar da letra bastão, usada no início da alfabetização. Jonathan descobriu-se
silabando as palavras simples que eu lhe apontava. O contentamento que ele expressou
31
A lida com alunos que tinham limitações motoras e que se viam impedidos no ato de
escrever, a exemplo de Jonathan, e que levavam os professores a pensar em dificuldade de
aprendizagem, me conduziram na direção de conjecturar se haveria nessas crianças algum tipo
de via facilitadora particular a cada um (a porta de entrada dos sentidos) que pudesse ser
potencializada para a iniciação na escrita.
Seguindo a elaboração de Pommier (1996), Jonathan parecia mostrar que, apesar de
possuir um corpo físico com bastantes limitações (ao contrário de Sérgio, o aluno do excerto
1) conseguiu atravessar com relativo sucesso o recalcamento da imagem do corpo para se
encontrar nas letras. O que sobrou como resíduo dessa dinâmica investiu de energia a parte do
seu corpo relacionada ao olho, como atestou a descoberta de que a chave da escrita para ele
estava ligada à leitura. Foram observações como estas que me fizeram antever a possibilidade
de a dinâmica da pulsão estar implicada neste processo.
O conceito de pulsão (tradução do alemão trieb, ou do inglês drive) foi utilizado por
Freud (1974a [1915]) para designar a energia fundamental de uma pessoa. Refere-se,
portanto, à força vital necessária para o funcionamento de alguém. Dado o caráter
multifacetado desta energia, o mais comum é que esta palavra apareça no plural (pulsões).
Esta escolha aponta para as principais formas do advento desta energia, sempre ligadas
ao que, outrora, foi uma função biológica do corpo do bebê, ou seja, surgiu de dentro do seu
próprio organismo. Dessa forma, não há como fugir desta força e ela é a base para se
distinguir entre um “de fora” e um “de dentro”, fazendo com que o pequeno Ser empreenda
32
atividades complexas e interligadas para que o mundo externo se mobilize para proporcionar
satisfação à sua fonte interna de estimulação.
Tais atividades complexas e interligadas fazem com que as pulsões estejam
organizadas por um princípio regulador maior, mais comumente, o complexo de Édipo, que as
subordina às leis da cultura. E ao contrário, as pulsões também podem funcionar em curto-
circuito, quando, então, deixam a pessoa à mercê de sua ação livre.
Sob esse prisma, o corpo enquanto organismo deixa de ser um dado bruto, natural e
passa a ser um corpo investido de energia (erotizado) e marcado pelas vicissitudes das
pulsões. A psicanálise vai falar de um corpo pulsional, que funciona de acordo com uma
variedade de arranjos e onde as pulsões atuam independentes umas das outras, até poderem
alcançar uma síntese que, via de regra, passa pela resolução edípica. Esta perspectiva é
contrária às da biologia e da medicina, que tomam o corpo como materialidade unificada e
organizada, submetido a leis específicas de desenvolvimento e maturação.
Em vista disso, as pulsões podem ser agrupadas em: a) oral – concernente ao impulso
de sugar e ser sugado; b) anal – ligada ao impulso de expulsar e ser expulso; c) escópica –
relacionada ao impulso de olhar e ser olhado; d) invocante – ligada ao impulso de escutar e
ser escutado.
Construído este panorama, cabe esclarecer quais os objetivos com este estudo. Como
geral, examinar, primeiramente, em que medida as vicissitudes da pulsão na criança exerce
influência no acesso aos objetos de conhecimento; especialmente a escrita; depois, abordar o
que se pode esperar de uma parceria produtiva entre professor e aluno para a consecução da
entrada no processo de alfabetização. Como específico, a partir da análise de cenas extraídas
da conjuntura escolar, circunscrever as operações necessárias por parte da criança para a sua
iniciação no universo da escrita, partindo do pressuposto do sujeito tomado como ser de
linguagem.
Foi tomado como norte para esta pesquisa a seguinte pergunta:
1) Em que momento da articulação pulsional a criança se lança em direção à
aprendizagem da escrita?
Contudo, como o deslocamento da criança em termos de aprendizagem acontece
dentro um laço social – o vínculo educativo regulado por meio da linguagem – a intenção
secundária é a de identificar as posições subjetivas assumidas pelo professor que tendem a
favorecer ou obstaculizar a produção da criança.
33
PARTE I
O IMPACTO DA INSTÂNCIA PULSIONAL E DAS
FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE NA ESCRITA
ALFABÉTICA
36
de maneira diversa com relação à dicotomia língua\fala introduzida por Saussure por ocasião
de seus cursos.
Em termos abrangentes, os três linguistas aqui destacados deram o tom para a atual
diversidade teórica na qual, de um lado encontram-se os pesquisadores interessados nos
mecanismos inerentes à língua em nível stricto sensu – uma linguística da língua – e, de outro
lado, aqueles que concebem a língua como heterogeneamente constituída, estatuto este no
qual se insere a linguística da enunciação (FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 12). Ambas as
perspectivas, segundo Flores e Teixeira, com quem estou de acordo, são complementares,
respondendo por momentos distintos de análise da linguagem.
decorrentes da união de um conceito com sua imagem acústica, formando o signo linguístico,
com suas duas partes igualmente psíquicas”2 (Ibid., p. 92).
Do seu lado, a linguista Silvia Cardoso (2003, p. 9) afirma que o projeto científico da
linguística só pôde se realizar graças à marginalização da fala e da linguagem, objetos
individuais e subjetivos, sendo que subjetivo para a autora quer dizer “dependente da vontade
e da inteligência do indivíduo”.
Seguindo a argumentação de Saussure na primeira parte do “Curso” é fácil concordar
com Cardoso a respeito de a linguagem ter ficado à margem da linguística, mas, se formos
para a segunda parte, no capítulo sobre “Relações sintagmáticas e relações associativas”,
vamos reencontrar a linguagem na conceituação de língua como um sistema de valor.
Talvez o que podemos inferir sobre a tentativa de colocar a linguagem à margem, seja
a compreensão de linguagem identificada com os campos da psicologia e da sociologia (em
torno da ideia de comunicação), pois na parte que Saussure comenta sobre a fala, ele introduz
um elemento terceiro. Ou seja, para garantir a articulação entre a língua e a fala é necessário
“uma faculdade de associação e de coordenação; esta faculdade é a que desempenha o
primeiro papel na organização da língua como sistema” (SAUSSURE, 1945, p. 40). Após este
enunciado saussuriano, o leitor é remetido às páginas que tratam do valor da língua.
Vejamos, então, o conceito de língua relacionado a duas das formulações presentes no
“Curso”, que serão importantes para este estudo: a de signo linguístico pela díade significado
e significante e como valor.
Na primeira parte do “Curso”, Saussure define língua como “um sistema de signos no
qual é essencial a união do sentido com a imagem acústica” (SAUSSURE, 1945, p. 42). A
noção de signo não era nova, tendo sido engendrada pela escola filosófica dos estoicos. O
linguista a reformulou e ao fazê-lo promoveu um corte com a tradição filosófica e linguística
desde a Antiguidade.
O signo desde aquela época era compreendido como uma entidade constituída por três
elementos: significado, palavra e referente (a forma das coisas materiais). De acordo com
Cardoso, faltou ao signo uma nomenclatura única e universalmente aceita entre os estudiosos
do tema, porém a tripartição acima descrita atravessou os séculos. As divergências podiam ser
2
Embora Silva (2012, p. 32) tenha feito distinção entre psíquico (imagem sensorial) e psicológico (imagem
cognitiva), a um leitor graduado em psicologia, como esta pesquisadora, os dois termos são análogos.
41
qualquer ordem que não seja linguística” (Ibid., p. 33). Esses dois elementos são o conceito e
a imagem acústica, que posteriormente foram transformados em significado e significante.
c) Significado e significante
Desde o início do “Curso” Saussure faz uma distinção entre duas zonas diferentes da
realidade, a linguística e a extralinguística (CARDOSO, 2003, p. 14). Assim, o significado,
identificado como conceito, não representa a coisa. O significado é interior ao signo. Mas o
que dizer da outra parte, o significante? Por estar relacionado ao som, que por sua vez tem
interfaces física e fisiológica (fonação e audição), não estaria fora da ordem da linguística?
Aqui novamente uma distinção: no arcabouço saussuriano, não é o som enquanto realidade
física e fisiológica, mas é a imagem acústica (sensorial, testemunho dos sentidos) que entra na
relação com o conceito. Por esse motivo, para Saussure tanto o conceito/significado quanto a
imagem acústica/significante são partes psíquicas, isto é, interiores ao signo, uma realidade
linguística.
Para Saussure, substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e
significante tem a vantagem de assinalar a oposição que os separa, seja entre os dois termos,
seja da totalidade da qual fazem parte (o signo), conforme figura 1.
O signo linguístico assim definido possui dois princípios: o primeiro, diz respeito ao
laço arbitrário que une o significante ao significado. Mas arbitrário não deve dar a ideia de
que o significante depende de livre escolha do falante; é antes de tudo imotivado, arbitrário
com relação ao significado, com o qual não mantém nenhum laço natural (SAUSSURE, 1945,
43
p. 94). Se a ligação entre significante e significado é imotivada, ela não depende de ter
qualquer apoio fora da ordem da língua (laço natural).
Explorando essas ideias saussurianas, Silva (2008, p. 44) argumenta que se o signo é
efetivamente arbitrário, o seu valor é determinado pelas relações negativas e diferenciais
existentes dentro do sistema da língua. É pela sua característica de arbitrário que o signo “não
existe senão graças à associação do significante e do significado” (SAUSSURE, 1945, p.
127). Sob esse prisma, Silva menciona que Saussure faz um importante deslocamento em
relação à tradição anterior, ou seja, passa a considerar não a representação assimétrica, mas a
associação recíproca; um modelo de signo que se distancia da representação. Cito Silva (2008,
p. 48):
Configura-se, então, uma profunda alteração no modo de conceber os
fenômenos linguísticos: Saussure desloca a problemática da representação
para a associação. Esse deslocamento em prol da associação recíproca entre
significado e significante, a qual ocorre num sistema em que esses elementos
são valores linguísticos, permite a Saussure conceber o pensamento – visto
como atividade mental, como faculdade da linguagem – enquanto condição
essencial para a linguagem e a linguagem enquanto condição para o
pensamento: esta é uma relação não causal entre um elemento e outro, mas
associativa entre duas instâncias que se complementam.
pode ser expressa na seguinte questão: até que ponto o linguista conseguiu afastar o terceiro
termo da tríade do signo, o referente (a forma das coisas do mundo)? Não é meu objetivo
desenvolver esta discussão, mas sim extrair dela aqueles elementos que podem contribuir para
a definição de linguagem distanciada das concepções da psicologia e da sociologia, visada
esta que começa a se esboçar com Saussure.
Assim, é o momento de abordar o segundo princípio do signo a que se referia o autor
porque ele também oferece pistas para o delineamento da concepção de linguagem enquanto
estrutura.
O segundo princípio é o caráter linear do significante. Por ser acústico, os elementos
significantes se desenvolvem no tempo ao se apresentarem um após o outro, formando uma
cadeia. A linearidade é o que permite distinguir as sílabas pelo contraste entre consoantes e
vogais. O caráter linear se torna evidente na escrita, quando a sucessão no tempo dos
elementos do significante dá lugar à linha espacial dos signos gráficos.
d) Valores e relações
Essas ideias de Saussure, consideradas como o ponto cardeal de sua obra foram
elaboradas nas aulas do último curso de 1911 (SILVA, 2008, p. 53). Na publicação impressa
tais elaborações são apresentadas na segunda parte. Ali se pode ler que “a língua não pode ser
outra coisa que um sistema de valores puros”, “onde todos os termos são solidários e onde o
valor de cada um não resulta senão da presença simultânea dos outros” (SAUSSURE, 1945,
p. 136-138).
45
Para começar a definir valor, o linguista começa pela unidade ou pela palavra isolada.
Mostra que os valores são regidos por dois princípios: a) um elemento diferente suscetível de
ser trocado por outro. Usando o exemplo de Saussure, uma moeda de cinco francos pode ser
trocada por uma quantidade determinada de uma coisa diferente dela: pão; b) um elemento
semelhante possível de ser comparado com outro dentro do mesmo sistema, por exemplo,
uma moeda de um franco com uma moeda de um dólar. Da mesma forma uma palavra pode
ser trocada por alguma outra diferente ou semelhante, porém, o seu valor não estará fixado
enquanto não estabelecermos que troca se possa fazer com tal ou qual conceito, comparando-a
com palavras com valores similares e com outras palavras que são opostas.
No estado sincrônico da língua (a língua em funcionamento) não se trata mais da
palavra isolada, mas de relações e de diferenças que se desdobram em duas esferas distintas,
cada qual geradora de certa ordem de valores: as relações do eixo sintagmático e do eixo
associativo.
e) Relações sintagmáticas
São aquelas específicas ao discurso, à fala corrente; são relações que estão presentes
numa série efetiva. Nesta, as palavras contraem relações fundadas no seu encadeamento linear
que impossibilita pronunciar dois elementos a cada vez. Os elementos se alinham um atrás do
outro, formando combinações que se apoiam na extensão; são chamadas de sintagmas.
O sintagma se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas, formando uma
extensão no tempo em que um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou
que lhe sucede, ou a ambos. Por exemplo: Na frase “hoje faz bom tempo”, a palavra faz (uma
flexão verbal do tempo presente) só aparece porque a palavra que lhe é anterior é o advérbio
“hoje” (dia presente). Se fosse outro advérbio, o tempo verbal seria outro.
f) Relações associativas
São aquelas que acontecem fora do discurso. Neste eixo, as palavras que têm algo em
comum se associam na memória individual de maneira inconsciente (Saussure, p. 147),
formando grupos de palavras nos quais reinam relações muito diversas e que não se baseiam
na extensão, como no primeiro eixo. “Formam parte deste tesouro interior que constitui a
língua de cada indivíduo” (Saussure, p. 148).
46
Porém, não é somente o que as palavras têm em comum que põe em movimento as
conexões associativas; elas também advêm a partir da captação da natureza da relação. Por
exemplo, na analogia de significação (ensino, instrução, educação) ou na semelhança das
imagens acústicas (bato, pato; lança, balança). Na presente tese, um exemplo que demonstra
esse processo é dado na seção que trata do lapso verbal de Freud.
de todo o restante, mantendo com os demais sistemas de signos (como o gesto, a pictografia)
algumas semelhanças e diferenças não menos notáveis (JAKOBSON, 1964, p. 11).
No tocante à linguagem e à linguística, Jakobson se interessou, sobretudo, pela
investigação dos fenômenos fônicos. Veja-se como ele mesmo se manifestou: “Por anos e
décadas, temos lutado no sentido de anexar os sons da fala à linguística, constituindo assim a
fonologia” (JAKOBSON, 1964, p. 33). Ou seja, recupera o que Saussure deixou de lado, a
fala, fazendo uso das mesmas operações propostas pelo linguista genebrino (combinação e
diferenciação), mas desdobrando-as em outras formulações. A fonologia passa a ser o estudo
linguístico (a mesma chave de leitura que a proposta para a língua) do fonema (um segmento
fônico que possui função distintiva).
Jakobson parte da pergunta: na comunicação, qual é a função dos sons cuja
combinação constitui a extensão (frase) falada? Tomados isoladamente estes sons não são
portadores de significação. Sua função é possibilitar a distinção de unidades que, elas sim, são
dotadas de significação. Por exemplo, o som [a] da palavra em francês bas (baixo) em si
mesmo não tem significação, mas se presta a diferenciar este som de bu, beau, bouef. São os
valores distintivos agrupados em feixes simultâneos denominados fonemas. Por outro lado,
existem aqueles sons que não contam como distintivos, mas somente como variantes ou
aproximações de sons fundamentais.
código, ele a interpreta. Em suas palavras, “é a partir do código que o receptor compreende a
mensagem” (JAKOBSON, 1964, p. 23). Esta é a posição defendida pela psicologia ao analisar
os processos de codificação e decodificação.
Para a linguística a comunicação se afigura de outra maneira. Segundo Jakobson
(Ibid., 1964, p. 23), “a posição de um linguista que decifra uma língua que não conhece é
diferente. Ele tenta deduzir o código da mensagem”. Ele não é um decodificador; é um
criptanalista. O decodificador é um destinatário virtual da mensagem. Por seu turno, o
linguista se parece com o espectador exterior e se comporta como um criptanalista, “que
recebe mensagens das quais não é o destinatário e cujo código não conhece. Ele procura
decifrar o código pelo exame das mensagens” (Ibid., 1964, p. 79).
O pesquisador russo quando fala acerca do contato proveitoso entre a linguística e a
teoria matemática da comunicação não entra na complexa polêmica da absorção ou
transformação de conceitos de um domínio do conhecimento para o outro, porém aqui começa
a se explicitar a opção pela via das matemáticas para pensar a linguagem do ponto de vista
estrutural. Cito o autor:
Hoje, no que respeita ao tratamento dos problemas de codificação na teoria
[matemática] da comunicação, a dicotomia saussuriana entre langue e parole
pode ser reformulada de maneira muito mais precisa, o que lhe dá um novo
valor operacional. Reciprocamente, na Linguística moderna, a teoria da
comunicação pode encontrar informações esclarecedoras sobre a estrutura
estratificada do intrincado código linguístico em seus vários aspectos
(JAKOBSON, 1964, p. 77).
b) A fala
3
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas.
51
Saussure Jakobson
Coordenação (relativo à língua) Combinação (relativo à língua e também à
fala)
Associação (relativo à fala) Seleção (relativo à fala)
Jakobson ainda chega à outra conclusão a partir das ideias saussurianas, a saber: que a
operação de combinação (coordenação) aparece in praesentia, conectando dois ou mais
termos presentes dentro da série de signos; a operação de seleção (associação) une os termos
in absentia, como membros de uma série mnemônica virtual. No seu raciocínio, isto quer
dizer que “a seleção concerne às entidades associadas no código mas não na mensagem” (no
momento presente), enquanto que na combinação (coordenação), as unidades linguísticas
estão relacionadas tanto no código (virtual) como na mensagem ou somente na mensagem
(JAKOBSON, 1964, p. 40).
E continua a desenvolver suas reflexões: os elementos constituintes da sequência
temporal (combinação/coordenação) estão num contexto e tem um estatuto de contiguidade.
Por sua vez, os elementos do grupo de seleção (substituição/associação) estão ligados entre si
por diferentes graus de similaridade. De maneira que essas duas operações oferecem duas
possibilidades de interpretar o signo: uma que se refere ao código (virtual) e outra ao contexto
(momento presente, mensagem).
c) Metonímia e metáfora
Assim, Jakobson chega aos dois tipos fundamentais de afasia, conforme a deficiência
resida na seleção/substituição ou na combinação/contexto. Não é meu intuito discutir neste
52
espaço a questão das afasias, apenas a de demonstrar como o linguista russo construiu a sua
argumentação até chegar às duas operações essenciais de linguagem: metonímia e metáfora.
A metonímia funciona no eixo sintagmático, dentro da mesma sequência temporal ou
contexto, isto é, no plano da contiguidade. A metáfora funciona paradigmaticamente, fora do
eixo do sintagma, em outro plano ou domínio, por associação/substituição que leva em conta
diferentes graus de similaridade. Ambos os processos estão constantemente em ação na fala e,
“sob a influência dos modelos culturais, da personalidade e do estilo verbal, ora um, ora outro
processo goza de preferência” (JAKOBSON, 1964, p. 56).
Um exemplo de Jakobson facilita a compreensão destas duas operações na fala:
Uma das respostas dadas ao estímulo choupana foi queimou; outra, é uma
pobre casinha. As duas reações são predicativas; mas a primeira cria um
contexto puramente narrativo, ao passo que na segunda há uma dupla
conexão com o sujeito choupana: de um lado, uma contiguidade posicional
(vale dizer, sintática); de outro, uma similaridade semântica. (Ibid., 1964, p.
56).
em que cada um emitia uma nota diferente, como as tantas variantes de um mesmo e único
fonema (JAKOBSON, 1964, p. 16).
d) A noção de linguagem
A partir das anotações anteriores, chega-se a uma definição de linguagem sob a visada
estrutural. A linguagem é um sistema de signos linguísticos que implica dois eixos: o dos
encadeamentos, concatenação, coordenação (sintaxe ou relação dos signos entre si) e o das
substituições, associações (semântica ou relação dos signos com os contextos, com aquilo que
é denotado) (JAKOBSON, 1964, p. 20). O linguista oferece o seguinte exemplo: na frase
falada "o pai tem um filho", as relações entre "o", "pai", "tem", "um". e "filho" se situam no
nível da cadeia verbal, são relações sintáticas. Quando se compara os contextos — "o pai tem
um filho", "a mãe tem um filho", "o pai tem uma filha", "o pai tem dois filhos" — a
substituição de certos signos por outros provém de relações tanto linguísticas quanto
sintáticas. A concatenação implica a substituição.
As relações acima mencionadas supõem um sujeito (pessoa) capaz de operar a
linguagem, capaz de falar e de ter diferentes atitudes em relação aos contextos. Operar a
linguagem é uma faculdade particular, uma convocação à subjetividade, isto é, um
chamamento à pessoa que põe a língua em uso, que a interpreta e reconstrói sentidos. Em que
pese Jakobson ter sido um dos primeiros a tratar da vinculação língua e fala, é Benveniste, o
autor que comparece na sequência, que ficou conhecido pela proposta de incluir os estudos da
enunciação, e por intermédio deles os da subjetividade, no objeto da linguística, tendo por
base o mesmo estruturalismo saussuriano (FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 30).
Em sua ótica, para estudar a língua, um estruturalista tem primeiro que constituir um
corpus, uma coleção de materiais passível de ser analisado, como um livro, um texto, etc.,
pois “todo homem inventa sua língua e a inventa durante toda sua vida. E todos os homens
inventam sua própria língua a cada instante e cada um de uma maneira distintiva, e a cada vez
de uma maneira nova” (BENVENISTE, 1989a, 18). Como equacionar estas ideias com a
noção saussuriana de língua como um conjunto de convenções adotadas pelo corpo social, um
produto que o individuo registra passivamente (SAUSSURE, 1945, p. 41)?
Com esta colocação Benveniste entra no terreno da dicotomia que Saussure fez entre
língua e fala e procura dar contornos a um objeto que não está nem somente do lado da língua
nem do lado da fala, mas que estabelece um vínculo entre os dois polos. Este novo objeto tem
um nome: enunciação (FLORES et al., 2009, p. 20). Estudar as manifestações da linguagem
do prisma de uma teoria da enunciação é estudar o sentido, é conceber o “homem na língua”
(FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 30). A inovação do linguista francês é a de supor sujeito
(pessoa) e estrutura articulados (Ibid., 2005, p. 30).
impossível: uma aptidão para formular e interpretar um signo que remete a uma certa
realidade, a memória da experiência e a habilidade para decompô-la.
Contudo, a mensagem das abelhas apresenta duas diferenças em relação à ordem
humana: 1) a comunicação é somente gestual, por intermédio da percepção visual sob a luz do
dia (através da dança, do toque entre as antenas), sem a intervenção de um aparelho vocal; 2)
a mensagem das abelhas não provoca nenhuma modificação no ambiente, apenas uma certa
conduta que não é uma resposta.
Porque não há diálogo entre as abelhas, a comunicação se refere apenas a certo dado
objetivo; não há comunicação relativa a um dado linguístico, no qual a resposta também é
uma manifestação linguística. Em outros termos, a mensagem da abelha fica extremamente
limitada porque não pode ser reproduzida por outra abelha que não tenha visto ela mesma os
fatos que a primeira anuncia. A abelha não constrói uma mensagem a partir de outra
mensagem, ou seja, esta se refere sempre e somente a um dado fixo, o alimento.
Diferentemente da comunicação animal, o caráter da linguagem é o de propiciar um
substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no
espaço. E esta substituição que se faz através de um símbolo, em geral, não configura os
dados da experiência em termos de uma relação necessária entre a referência objetiva e a
forma linguística.
Um último aspecto da comunicação das abelhas que se opõe fortemente a linguagem
humana é o de que a mensagem daquelas não se deixar analisar. É um conteúdo global e a
única diferença se refere à posição espacial onde o alimento pode ser encontrado. É
impossível poder decompor esse conteúdo nos seus elementos formadores. Ao contrário, a
linguagem humana se caracteriza justamente por permitir decompor seus elementos, combiná-
los segundo regras definidas, de modo que um número bastante reduzido de morfemas
(unidades mínimas de significação) permite um número considerável de combinações. Daí
nasce a capacidade da linguagem de dizer tudo.
O linguista explicita o processo de comunicação tal qual o das abelhas afirmando que
se trata de um código de sinais4, cujas características são: fixidez do conteúdo, invariabilidade
da mensagem, referência a uma única situação, tem a característica de a mensagem ser
indecomponível e a transmissão unilateral.
4
Falando de sinais, é interessante acompanhar o raciocínio de Jakobson, destacado da obra de Pierce, segundo o
qual existe diferenças manifestas na relação entre o significante e o significado, permitindo discernir três
variedades de signos: a) o ícone que opera pela semelhança de fato entre significante e significado; b) o índice
que opera pela contiguidade entre significante e significado; e c) o símbolo que opera por regras, na qual a
relação entre significante e significado não depende da presença ou da ausência de qualquer similitude ou
contiguidade de fato (JAKOBSON, 1964, p. 101).
56
b) Sentido
c) Enunciação
enunciação; o termo tu, o indivíduo que está presente como alocutário. Os pronomes pessoais
e demonstrativos aparecem como classes que enviam sempre e somente a indivíduos (pessoas,
momentos, lugares) por oposição aos termos nominais, que remetem sempre e somente a
conceitos. O estatuto desses “indivíduos linguísticos” nasce de uma enunciação; eles são
engendrados de novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo
novo.
VII. Temporalidade: os tempos verbais se determinam em relação a “eu”. O tempo
presente coincide com o momento da enunciação. O presente formal (do verbo) serve para
explicitar o presente inerente à enunciação, e a partir deste presente contínuo, coextensivo à
própria presença do indivíduo, imprime a percepção denominada tempo. O presente da
enunciação delimita, por referência interna, o que é presente e o que já não o é mais.
VIII. Quadro figurativo da enunciação: como forma de discurso, a enunciação coloca duas
figuras, uma na origem e a outra no fim da enunciação, na posição de parceiros
alternativamente protagonistas da enunciação. Portanto, a enunciação tem a estrutura do
diálogo.
Vale lembrar, que as características da enunciação apresentadas acima não são
unívocas em Benveniste, mas foram reinterpretadas ao longo dos quarenta anos em que se
dedicou à pesquisa linguística. Ele encerra o artigo dando vistas a um problema que se abre
para outras veredas.
d) O limite do diálogo
O linguista vai dizer que os exemplos citados por Malinowski estão “no limite do
diálogo”, em que “a enunciação se volta sobre si mesma, se satisfaz em sua realização, não
comportando nem objeto, nem finalidade, nem mensagem, pura enunciação de palavras
combinadas, repetidas por cada um dos enunciadores” (BENVENISTE, 1989a, p. 90). E
conclui afirmando que a análise dessa forma de troca linguística ainda está por fazer.
Esse posicionamento de Benveniste ao final do artigo sugere que seu rigor teórico
reconheceu que nem tudo na enunciação faz emergir os índices de pessoa (eu-tu). E que
estavam diante de um tipo de enunciação que se satisfaz apenas com a realização, sem
finalidade, sem reflexão. É uma abordagem que vai ser retomada por Jacques Lacan, no
âmbito da psicanálise.
Vou voltar para a figura do locutor para abordar o estatuto linguístico de pessoa e a
noção de subjetividade em linguística.
e) Subjetividade em linguística
aparece de maneira privilegiada como aquilo que articula o âmbito psicológico e o social,
principalmente em torno da noção de comunicação e das regras de interação social,
pretendendo deduzir daí as propriedades das línguas.
Parece-me, então, que a perspectiva acima predomina na proposta curricular como
objetivo geral pertinente, principalmente, às áreas do conhecimento de língua portuguesa,
matemática e artes, através das concepções sociointeracionistas de Vigostki.
Já com relação propriamente ao ensino de língua portuguesa, especialmente na etapa
de alfabetização, a abordagem declarada na proposta curricular é a de Emilia Ferreiro, como
já tive a oportunidade de comentar, cabendo neste momento uma retomada.
Segundo as reflexões de Ferreiro a alfabetização inicial é um processo ternário, no
qual entra em jogo o objeto de conhecimento que é o “sistema de representação alfabética da
linguagem”, as concepções que os aprendizes (as crianças) têm deste objeto e as concepções
que aqueles que ensinam (os professores) têm deste sistema.
Ferreiro constrói suas formulações interessada em revelar os mecanismos cognitivos
relacionados à aprendizagem da leitura e da escrita. No trecho em que ela discorre sobre
“sistema de representação alfabética da linguagem”(FERRREIRO, 1986, p. 9) encontram-se
duas especificidades: primeiro, ela omite o conceito de língua e o troca por linguagem, como
se fossem análogos. Segundo, o sistema de representação alfabética mencionado pela
pesquisadora é a escrita, considerada como uma representação da linguagem.
Nesta mesma publicação, a menção à leitura é feita enquanto uma polêmica a respeito
da ordem em que as atividades de leitura e de escrita devem ser introduzidas. Existe a tradição
pedagógica na qual a leitura precede regularmente a escrita, como a norte americana;
enquanto na América Latina a tradição tende a introduzir as duas atividades simultaneamente.
A autora considera que dissociar o ensino da leitura e da escrita “carece totalmente de
sentido”, pois para a criança trata-se de compreender “a estrutura do sistema de escrita” e para
tanto realiza, ao mesmo tempo, atividades de interpretação como de produção (FERRREIRO,
1986, p. 35). Contudo, o que se nota na prática de sala de aula da rede em questão, é a ênfase
nas atividades de produção (a escrita), reduzindo a leitura às atividades de interpretação,
desconsiderando-se que ela própria se constitui uma área específica de investigação, ensino e
aprendizagem.
Embora Ferreiro cite autores tais como Saussure, Benveniste, Cohen e Gelb, acaba
minimizando a discussão entre escolas e domínios à noção de representação. Segundo seu
ponto de vista, qualquer sistema de representação da linguagem envolve um processo de
63
diferenciação e seleção dos elementos e das relações entre estes que serão retidas na
representação.
A proposta curricular mencionada dá vistas a esta noção representacional, tal como
aparece no fragmento abaixo:
[...] para que o aluno se aproprie do sistema de escrita, ele precisa construir
um conhecimento de natureza conceitual – ou seja, ele precisa compreender
não só o que a escrita representa, mas também de que forma ela representa
graficamente a fala (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2007, p. 16-17).
alcançar o objetivo que me proponho neste capítulo, que é o de fazer apontamentos sobre a
noção de linguagem.
Vigotski, advogado e filólogo, iniciou sua carreira como psicólogo após a Revolução
Russa, portanto, era mais do que esperado que suas investigações e seus ensaios estivessem
alinhados às ideias marxistas com vistas a contribuir para a solução de problemas práticos da
realidade do país. Assim, as concepções de Engels a respeito do trabalho humano e de como
ao usar os instrumentos de produção o homem transformava a natureza e a si mesmo teve
influência decisiva em Vigotski, que estendeu a ideia de mediação homem-ambiente pelo uso
de instrumentos (plano da ação) para o uso de signos (plano da linguagem e do pensamento)
(VIGOTSKI, 1998, p. 9).
c) A fala
consideraram o uso de signos pela criança como descoberta espontânea e não como
reconhecimento de que esses signos verbais têm significado (VIGOTSKI, 1998, p. 31)5.
Um esquema sobre a mediação pela palavra (signo) está exposta na Figura 2.
S_____ ___________R
Fonte:Vigotski (1998)
5
Vale lembrar que essa noção de que o signo porta significado é distinto da visão saussuriana, para a qual o
signo porta uma significação, que é a associação (união) entre significante e significado.
68
série de propriedades e leis específicas, que não podem ser descobertas nas formas naturais do
pensamento e da linguagem” (VIGOTSKI, 2000, p. 149).
Para concluir esta seção, vale retomar que para Vigotski a linguagem tem uma raiz
biológica semelhante aos animais, como ele procurou expor com o exemplo do chimpanzé.
Essa raiz biológica diz respeito aos estados emocionais, não objetivos. Contudo, à medida que
a criança avança no seu desenvolvimento adquirindo a aptidão de usar a fala (signo), o plano
biológico cede lugar para o histórico-social. No registro histórico-social a essência do uso dos
signos é a possibilidade de afetar o comportamento de forma objetiva.
Feitas estas observações sobre a concepção de linguagem e de signo em Vigotski,
localizo nesse referencial a baliza de algumas das intervenções pedagógicas no sistema
educativo que me serve como fonte de pesquisa, entre elas a mediação, a comunicação, a
intencionalidade e a resolução de problemas.
Algo equivalente ao tagarelar sem finalidade aparente foi o que Freud foi conduzido a
descobrir na fala da histérica como aquilo que expressava o seu desejo. Esse caminho fez da
análise uma experiência de discurso (HENRY, 1992, p. 155).
antigos criptogramas, que “só tem todas as suas dimensões quando é o de uma língua perdida”
(Ibid., 1998c, p. 514). O inconsciente seria esta “língua perdida”.
Pode-se, ainda, encontrar a recorrência a conceitos advindos da linguística, agora se
tratando da linguística da enunciação, quando Lacan aborda a “estrutura do que se chama uma
interpretação” (LACAN, 1992, p. 34), a qual é um instrumento que faz parte de um conjunto
maior que é o trabalho do analista. A interpretação é um semi dizer, um dizer incompleto, que
pode se estabelecer em dois níveis: como enunciação e como enunciado.
A interpretação como enunciação é colhida na trama do discurso do analisante, de
modo que o analista, na posição de intérprete, não pode nunca completá-la por si mesmo. O
arranjo que Lacan faz com o conceito de enunciação é o de equipará-lo a um enigma, ou seja,
um saber que emerge das cogitações do analisante e do qual o analista se torna penhor.
A interpretação enquanto um enunciado se apoia na solidez de um nome que faz parte
do universo discursivo. Lacan faz equivaler o enunciado a uma citação feita pelo analista, em
que o analisante preenche com seu sentido, abrindo espaço para certa movimentação.
Um exemplo deste segundo nível de interpretação e resguardadas as diferenças
conjunturais, pode ser identificado no que segue. Em certa ocasião, em um pátio escolar, eu
fiz valer a posição de analista a partir de um enunciado com peso de citação. Um menino saia
para a área aberta do parque e da quadra misturado com uma multidão de crianças. Vinha com
os seus tênis desamarrados que prenunciavam um desastre. Com certeza já tinha sido alertado
pela sua professora, pela inspetora de alunos e por outros adultos com os quais havia cruzado
no percurso, sem que se produzisse efeito na sua postura. Eu interceptei seu caminho e lancei
a pergunta: – Você conhece o Kaká? –. O menino respondeu: – Mas é claro! – Eu emendei: –
Profissional do jeito que Kaká é, ele jamais jogaria com suas chuteiras desamarradas. – Sem
dizer palavra, o menino se abaixou sobre seus pés e amarrou seus tênis. Ato contínuo,
desviou-se de mim e saiu correndo para o recreio. A citação do nome de Kaká vinculado a
certo discurso magistral fez ressoar algo no menino que não passou pelo circuito
compreensivo. Se fosse este o caso, os possíveis alertas anteriores dos adultos que apelaram
para o bom senso teriam surtido êxito imediato.
As breves anotações que acabo de fazer acerca das conexões e das torções entre
linguística e psicanálise não esgotam outras interpretações, apenas retratam os recortes de
uma determinada leitura vinculada a esta investigação.
O sujeito do inconsciente é esta fenda por onde algo de não sabido – de inconsciente –
se abre e se fecha assim que é apreendido pela consciência. Não se trata do sujeito
substancial, empírico; é sujeito que é momento de eclipse que se manifesta num equívoco da
fala.
Dizer “sujeito” é considerar que a experiência do equivoco, do tropeço será feita por
um ser falante, que se interroga a partir da linguagem sobre a existência de “eu”. Para o “eu”
que fala, o sujeito do inconsciente é um “ele”, um “isso”. O sujeito é a própria divisão entre o
“eu” e o “isso”. Para a psicanálise, o sujeito é efeito de linguagem.
c) Fala e verdade
A fala não se reduz aos fatos linguísticos, mas é o meio pelo qual o sujeito se endereça a um
ouvinte para fazer passar uma mensagem que vai para além do que se pretende dizer.
Para dar conta desses dois níveis da experiência analítica através do discurso – daquilo
que se fala no aqui e agora e da mensagem que ultrapassa o que é falado – o psicanalista
distinguiu entre fala vazia e fala plena. A fala vazia é imaginária e se refere ao sujeito como
eu, portanto, é através dela que o analisante mantém contato com o sofrimento do seu sintoma
e o transmite ao analista. A fala plena é realização processual, na medida em que a
rememoração possibilitada pela análise traz à tona as conjecturas que o sujeito faz sobre a sua
própria história que, caso contrário, permaneceria marcada por um branco ou ocupada por
uma mentira.
Nas palavras de Lacan, a fala confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo
é o do discurso concreto; suas operações são as da história. A fala constitui a emergência da
verdade no real (LACAN, 1998b, p. 259-260).
Na segunda clínica – a do real – a partir dos anos de 1970, observa-se Lacan
distanciando-se dos aportes oferecidos pela linguística, tal como aqueles encontrados nos seus
textos da década de 1950, e voltando-se para os próprios fundamentos da psicanálise,
notadamente aqueles balizados na descoberta freudiana da pulsão de morte. A fala que faz
passar a verdade do sujeito já não mais se refere ao sentido, à história, mas a um ato de não
sentido (pas de sens) (LACAN, 1992, p. 43; 53), que é a própria realização pulsional,
denominada de gozo. Assim, na segunda clínica lacaniana o significante se introduz como
aparelho de gozo (Ibid., 1992, p. 46) enquanto verdade do sujeito dividido e não mais como
busca de sentido.
Com esta exposição do olhar da psicanálise sobre a linguística no tocante à linguagem,
à fala e ao sujeito falante, pretendi mostrar que para a psicanálise o equívoco (erros,
hesitações, esquecimentos, sobreposições de lugares, tempos e pessoas, lapsos, perdas,
trocadilhos, homofonias) é constitutivo da linguagem, se prestando à própria revelação do
sujeito do inconsciente, ou dito de outro modo, o inconsciente age no discurso corrente. No
subcapítulo seguinte procuro extrair algumas reflexões sobre o que foi apresentado até aqui.
Além disso, os autores aqui apresentados abordam o elo entre linguagem e o sujeito
também de pontos de vista heterogêneos. Para a linguística estrutural que estuda as leis e
propriedades da língua, o interpretante realiza operações de significação, isto é, trabalha a
relação dos signos entre si a partir de valores e posições. Para as teorias da enunciação que
investigam a língua em ação, a relação entre as ideias expressas na frase e a situação de
discurso é definidora do sentido (FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 32). Para a psicologia
sociohistórica, o signo verbal possui significado, cria novas relações a nível individual que é
fruto da história de cada um. Para a psicanálise, os equívocos que irrompem na materialidade
do discurso revelam a verdade do sujeito. Portanto, considerar o elo entre linguagem e o
sujeito a partir das ordens da significação, do sentido, do significado ou da verdade têm
implicações não somente epistemológicas, mas, sobretudo, no campo do ensino da língua na
direção de potencializar a apropriação do conhecimento pelo aprendiz.
Contudo, com relação à linguagem existe um ponto de convergência entre os quatros
autores, que se refere à questão da alteridade – o posicionamento em relação ao outro –. É
sempre o “outro” entendido seja como fato social, cultura, pessoa ou ordem simbólica que
oferece a contrapartida constitutiva da linguagem. Este “outro” pode aparecer nas diferentes
semiologias autorais enquanto um sistema estabelecido historicamente, diálogo, intercâmbio
ou alienação.
Para finalizar este capítulo e esclarecer minha opção neste estudo pela ênfase na
abordagem estrutural da linguagem, eu vou me valer dos comentários de Jakobson em sua
conferência de 1952, “Linguagem comum dos linguistas e dos antropólogos” (JAKOBSON,
1964, p. 15). Nela, o linguista fez um levantamento dos problemas trazidos à baila e referidos,
principalmente, à linguística estrutural, os quais tomavam grande parte das preocupações à
época. Dizia que um dos traços mais sintomáticos daquela conferência era o surgimento das
“questões de sentido”, tema que seria inimaginável alguns anos antes. A seu ver, isso foi útil
porque os “problemas impõem seu próprio calendário. Não podemos abordá-los todos ao
mesmo tempo” (Ibid., 1964, p. 28).
Da mesma forma, entendo que quando se trata da aquisição da escrita e dos impasses
dai decorrentes, estamos no domínio da apropriação particular que cada criança faz das
operações básicas de linguagem (coordenação e associação, tal qual anunciada por Saussure)
e por isso a precedência da perspectiva estrutural em relação aos aspectos de produção do
sentido, os quais são mais condizentes com a etapa de consolidação da alfabetização. Se a
criança se embaraça neste estádio primordial será pouco provável que consiga adquirir fala
76
fluente e ascender à escrita e, assim, se lançar a outras operações de linguagem de grau maior
de complexidade, como é o caso da vertente de enunciação.
Em se apropriando dessas operações fundamentais, ou na terminologia lacaniana, se
alienando na linguagem, o próximo desafio que se impõe à criança com relação à aquisição da
escrita é o de como romper a estrutura da linguagem, possibilitando a emergência de algo
mais que se opõe à estrutura. O objetivo desta primeira parte é, então, o de investigar o
impacto da instância pulsional e das formações do inconsciente na escrita alfabética,
começando pelo relato dos problemas que se impuseram a esta pesquisadora ao pretender
enveredar pela pesquisa em psicanálise.
77
Quadro 2- Descrição dos conteúdos dos CD-R audiovisuais com clipes de filmes
Data Conteúdo
14/03/2005 Não especificado
15/03/2005 Não especificado
20/03/2005 Não especificado
28/03/2005 Desenho espontâneo
Não especificada Árvore
Não especificada Não especificado
Não especificada Matemática
Não especificada Não especificado
Não especificada Não especificado
06/11/2006 Matemática: soma
06/11/2006 Não especificado
79
Data Conteúdo
07/11/2006 Língua Portuguesa: o rei leão
13/11/2006 Língua Portuguesa: a onça e a raposa
13/11/2006 Não especificado
13/11/2006 Língua Portuguesa: lista de animais silvestres
23/11/2006 Língua Portuguesa: inferir informações em texto não verbal,
escrever um texto curto com as informações inferidas.
30/11/2006 Ciências
30/11/2006 Ciências: água
Não especificada Natal
Não especificada Língua Portuguesa: colagem “o leão está dormindo”
Não especificada Língua Portuguesa: colagem
Não especificada Língua Portuguesa: imagem desenhada “o leão ficou preso”
Não especificada Língua Portuguesa: imagem desenhada “ratinho ficou com
pena”
Não especificada A maçã é vermelha
Data
N Conteúdo
º 21/06/2007
2 Relatório escrito pela professora de atendimento
educacional especializado (AEE)
que embasou a passagem da fala para o transcrito, cuja finalidade foi analisar a interação entre
professora e seu aluno.
Para esse intuito, vou me valer das elaborações de Flores (FLORES, 2006, p. 62) para
quem a transcrição é considerada “como um ato de enunciação, portanto, como algo da ordem
da singularidade”. O autor discorre sobre os poucos estudos a respeito da metodologia dos
procedimentos de transcrição dentro do escopo da linguística da enunciação, destacando que
para tanto o pesquisador deve tomar posição em relação ao sujeito que enuncia, segundo duas
direções: 1) considerar “como marcas delimitadas no sistema linguístico”, por exemplo, com
o aporte conceitual de linguistas como Jakobson, Benveniste e Culioli; ou 2) como “instância
de fala não redutível às marcas linguísticas mesmo que não prescinda delas” (FLORES, 2006,
p. 62), nesta situação ancorado em abordagem exterior à linguística, qual seja, a psicanálise
lacaniana. Este trabalho se vale da segunda vertente.
Dessa forma, a transcrição é tomada ela mesma como um ato de enunciação em que “o
dado a ser transcrito tem seu estatuto enunciativo alterado”, ou seja, é “uma enunciação sobre
outra enunciação”. Para Flores (2006, p. 62) esse processo se caracteriza pelos tempos do
mostrar e do dizer. Assim, através do uso de diferentes sistemas (esta tese usa o sistema de
notação da língua), primeiramente, o procedimento de transcrição mostra a cena, a qual, num
segundo momento, se transforma numa outra enunciação; em algo que é da ordem do dizer.
Todavia, entre a cena propriamente dita e a sua transformação em sistema de notação sobra
um tanto que escapa à formalização. Nas palavras do linguista (Ibid., 2006, p. 73-74, grifos do
autor), “a transcrição, além de ser da ordem do mostrar é também da ordem do dizer [...]. Em
ambas [...)] há o resto que não cabe no ciframento, é o que permanece no objeto transcrito; há
o resto que não cabe no deciframento, é o que permanece na transcrição [...] à moda de um
recalcamento”.
Portanto, a transcrição do vídeo clipe deve ser tomada como outro dizer sobre o objeto
(a cena) dentro da perspectiva de construção do caso, ferramenta metodológica que será
abordada na seção seguinte.
Outro recurso privilegiado neste estudo é o da narrativa, por intermédio de diferentes
procedimentos. O primeiro é através da incorporação dos eventos da experiência tendo como
fonte pequenas anotações feitas informalmente, que funcionavam mais como lembretes ou
questões que me mobilizavam. Um exemplo está retratado na Figura 3.
82
b) O procedimento da narrativa
6
A semiologia (estudo dos signos e dos sistemas de sinais) está associada às teorias da linguagem.
84
7
Dunker está abordando a questão da referência em termos daquela formulada pelos estoicos e que adentrou até
o período Clássico, conforme já foi apresentada no Capítulo 1 deste trabalho.
85
a) A construção do caso
Na continuidade, Freud refere que a “construção” abarca uma realidade psíquica mais
abrangente e articulada, enquanto que a “interpretação” é condizente com algo que se faz a
algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia (Ibid., 1975
[1937], p. 295).
Além disso, dentro da concepção de “construção” Freud acrescentou o aspecto da
transferência, referindo que o trabalho do analista levava vantagem sobre o do arqueólogo,
pois diferente deste, aquele dispunha de material que se repetia e do mecanismo da
transferência que possibilitava essas repetições. Mas logo esta vantagem se anulava porque o
material psíquico era incomparavelmente mais complexo do que os objetos materiais do
arqueólogo (FREUD, 1975 [1937], p. 294).
Antes de avançar no raciocínio, é preciso definir, em poucas palavras, o conceito de
transferência. Na análise, Freud descobriu que uma parte dos impulsos eróticos do paciente
achava-se à disposição da consciência deste, até fazendo parte do seu jeito de ser. Outra parte
destes impulsos mantinha-se afastada da consciência, impedida de expansão ulterior, exceto
na fantasia ou então permanecendo no inconsciente, totalmente desconhecida pela pessoa.
Quando o objeto dos impulsos eróticos coincidia com a figura do médico/analista, um tipo de
ligação primeva com estes objetos acabava por se repetir de acordo com a atemporalidade do
inconsciente, transferindo estes impulsos para o médico/analista. Estes impulsos são o amor
de transferência. É importante destacar que a transferência não deve ser atribuída à
psicanálise, mas sim à própria neurose (FREUD, 1974d [1912]).
Voltando à questão da “construção” como proposta por Freud, temos duas
características: (a) a partir do material psíquico substituto trazido pelo paciente (b) o analista
extrai inferências segundo a dinâmica de transferência.
A noção de “construção”, tomada aqui como “construção do caso” é a base das
narrativas que compõem os excertos referentes especificamente aos informantes Maria Isabela
e Carlos. Nestas, a narradora a partir do material empírico trazido pela criança, pela
professora e por outros agentes, bem como pela transferência instaurada no processo, extrai
inferências, seleciona aspectos, destaca falas e ações para compor, construir a cena por
escrito. Lembrando que, como mencionou Freud, a transferência não é uma característica da
psicanálise, mas da própria neurose, do jeito da pessoa de lidar com seus impulsos
desconhecidos. Portanto, a transferência pode se instaurar em outra conjuntura para além de
um dispositivo analítico.
87
b) A transferência de trabalho
produção escrita dos estudantes da educação básica e do ensino superior. De maneira que os
textos selecionados e apresentados nos corpora atende uma posição desejante da pesquisadora
de conectar a sua experiência no grupo de pesquisa com a sua experiência com as crianças
com as quais ela se deparou e que se encontravam num momento de impasse em relação à
iniciação na escrita.
Como antecipei em parágrafos anteriores, a mesma pessoa nomeada Marisa ocupa a
posição de narradora e de pesquisadora. A intenção agora é a de distinguir entre as duas
posições. Para tanto, vou me guiar pela estrutura do discurso tal como Lacan a concebeu.
c) A posição discursiva
A produção dos quatro discursos foi formulada por Lacan nos anos de 1969-1970 e foi
apresentado na publicação “O avesso da Psicanálise” (LACAN, 1992 [1969]). Estas
elaborações permitem entender como se institui o sujeito em sua relação com o outro.
O discurso na concepção lacaniana é um dispositivo da linguagem que instaura certo
número de relações fundamentais e estáveis no interior das quais se inscreve algo mais amplo
e que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas; de forma que pode ocorrer sem
palavras (LACAN, 1992, p. 11).
Enquanto estrutura, os quatro discursos focam as posições ocupadas pelas pessoas em
determinadas relações. Os quatro lugares do discurso são agente, outro, verdade e produto.
Estas posições são fixas e não devem ser entendidas em termos de positiva, negativa ou de
importância de uma sobre outras. Dentro destas posições há o rodízio de quatro termos:
I. S1: significante mestre; aquele que dá o tônus da relação;
II. S2: a cultura; o conhecimento partilhado;
III. a: aquilo que está fora do processo de simbolização; o que excede à linguagem;
relacionado à instância pulsional;
IV. $: o sujeito do desejo inconsciente, efeito de articulação do significante, que é
distinto da instância do eu.
A Figura 4 demonstra as posições no discurso:
Pela rotação dos termos nos lugares em um quarto de giro para a esquerda são
formulados os quatro discursos, o do mestre, da histérica, do analista e da universidade, que
correspondem, respectivamente, ao governar, interrogar, silenciar e educar.
A ideia central é a de que o sujeito pode ocupar diversos lugares, conforme se ponha
sob um ou outro desses significantes (LACAN, 2008, p. 204).
Retornando à narradora e à pesquisadora, elas ocupam posições distintas se
considerarmos esta estrutura de discurso. Nos excertos, uma das posições ocupadas pela
narradora é a de “adulto na posição de professor”, designada pela sigla P2. Assim, P2 ocupa
na cena escolar a posição equivalente à do analista no dispositivo clínico. O lugar do analista
é o de escuta e, sobretudo, de causa para o desejo do sujeito. Ocupando a posição de analista,
P2 abre o espaço do silêncio. O silêncio deve ser entendido como se esquivar de dar respostas,
pareceres, julgamentos e orientações, para deixar vir à tona a fala do sujeito, reconhecendo
neste a potência de conduzir-se em seu próprio saber. Na cena escolar, na posição equivalente
à de analista, P2 assume o lugar do professor que se desprende das teorias pedagógicas, dos
métodos de ensino para seguir a lógica da criança, e, por meio de uma escuta cria meios para
que a produção da criança faça laço com a cultura.
A outra posição ocupada pela narradora é a de especialista em aprendizagem e
comportamento, via seu título de psicóloga. Esta posição se insere no discurso da
universidade, o qual parte de um conhecimento cristalizado pela cultura, colocando o outro na
posição de objeto, alienando-o da produção de seu próprio saber. O sujeito nesta posição é
efeito do conhecimento vigente (nesta conjuntura, o conhecimento psicológico), tendo que se
submeter a esse conhecimento.
Já a pesquisadora ocupa nesta estrutura discursiva o lugar da histérica. Esta posição
está associada a um movimento interrogante do que foi dado por conhecido e verdadeiro.
Ocupando a posição da histérica na estrutura discursiva, a pesquisadora faz valer a
transferência de trabalho, se liga a um problema a ser desvelado e que faz parte do escopo de
trabalho de um grupo de estudos e pesquisa, culminando na construção deste trabalho.
90
Como fundador da psicanálise no início do século XX, o nome de Freud está ligado à
sexualidade, à pulsão e ao inconsciente. Mas, curiosamente, em uma de suas primeiras
produções teóricas, de 1891 – “A interpretação das afasias” – e em uma das últimas, pouco
antes de sua morte, em 1939 – “Moisés e o monoteísmo” – pode-se acompanhá-lo
percorrendo os meandros da linguagem (FREUD, 1977 [1891]; 1974 [1939]).
O jovem Freud interessou-se pelos fenômenos da linguagem ao se deparar com
doentes com perturbação da fala atendidos nos laboratórios de pesquisa frequentados por ele,
logo após sua graduação em medicina. Tais fenômenos são abordados dentro da acepção de
aparelho da linguagem. Vale destacar que a noção de aparelho é própria do pensamento
científico e usada para nomear uma complexidade que não se visualiza, mas que dela se tem
notícia por seus efeitos ou por seus sintomas. Essa significação de aparelho comparece no
texto freudiano da seguinte forma:
Mas o aparelho da linguagem dispõe de uma tal riqueza de expressões
sintomáticas que só dele podemos esperar a revelação, através do tipo de
perturbação funcional, não só da localização mas também da natureza da
lesão. Talvez então consigamos um dia distinguir clinicamente entre afasias
de hemorragia e afasias de amolecimento, e reconhecer numa série de
perturbações da linguagem a característica de processos específicos do
aparelho da linguagem (FREUD, 1977 [1891], p. 41, grifos meus).
92
Freud fez a revisão crítica das doutrinas que, até então, tratavam por afasia os diversos
casos de perturbações funcionais da fala, em consequência de lesões orgânicas no córtex
cerebral. Retomando os diversos casos de afasia estudados por médicos, entre eles, Wernick,
Lichtheim, Broca e Grashey, o jovem neurologista procurou discriminar nas perturbações da
fala aquilo que teria uma origem orgânica de outro tipo de manifestação vinculada ao aspecto
psicológico, que ele considerou como perturbações no nível da representação.
Nesta época em que está à volta com a hipótese de que um dos tipos de perturbações
da fala está ligado à psicologia, a linguística ainda não tinha se firmado como área do
conhecimento científico, o que levaria mais uns vinte anos. Em suas palavras:
Para a Psicologia, a unidade da função de linguagem é a “palavra”, uma
complexa representação que se apresenta composta de elementos acústicos,
visuais e cinestéticos. [...] Devemos à patologia o conhecimento desta
composição: ela indica-nos de facto que no caso de lesões orgânicas do
aparelho da linguagem se verifica uma desmontagem do discurso segundo
esta composição. Encontramo-nos assim preparados para considerar a queda
de um destes elementos da representação da palavra como a marca essencial
que nos permite deduzir a localização da lesão. Geralmente são mencionadas
quatro componentes da representação da palavra: a “imagem acústica”, a
“imagem visual de uma letra”, a “imagem motora da linguagem” e a
“imagem motora do escrever”(FREUD, 1977 [1891], p. 67).
Percebe-se pelo fragmento que Freud está falando do signo linguístico quando usa o
termo “palavra”, porém de uma das partes do signo – o significante – quando menciona os
componentes da representação da palavra (imagem acústica, visual e motora). Contudo, o seu
parâmetro é a linguagem reduzida à realidade psicológica.
Mais adiante na sua argumentação com relação à afasia, o autor vai mobilizar outro
conceito que é objeto de minha análise: o simbólico.
Chegamos assim a aventar a hipótese de dois grupos de perturbações da
linguagem: uma afasia de primeira ordem, ou seja, uma afasia verbal, em
que apenas são perturbadas as associações entre cada um dos elementos da
representação da palavra, e uma afasia de segunda ordem, ou afasia
simbólica, em que é perturbada a associação entre a representação da palavra
e a representação do objecto (FREUD, 1977 [1891], p. 72).
O trecho que acabo de transcrever sugere que a noção de simbólico está ligada à
possibilidade de representação, portanto, a uma relação de semelhança entre dois termos. Sua
concepção, como não poderia deixar de ser já que ele desenvolveu tais ideias no fim do século
XIX, se relaciona ao paradigma da representação, tal como era entendido na idade clássica.
Outra noção importante que aparece na “A interpretação das afasias” (FREUD, 1977
[1891]) é a de aparelho de linguagem. A ideia de aparelho abre um espaço não material entre
a localização cerebral das funções de linguagem – espaço no qual ocorrem os fenômenos de
93
seu colega tinha dito a respeito da importância que os bosnianos atribuem aos prazeres
sexuais, e que um de seus pacientes tinha assim se manifestado: – Sabe, Herr, se isso acabar,
a vida não vale mais nada. – Mas ao tentar relembrar estas histórias na viagem para
Herzegovina, acabou por suprimir a parte da sexualidade e logo depois o nome Signorelli
escapou e apareceram como substitutos Botticelli e Boltraffio.
Conclui que a influência que recalcara o nome Signorelli só podia proceder da história
suprimida que atribuía valor à morte e ao gozo sexual. Parte, então, para descobrir a afinidade
com as ideias intermediárias que serviram para ligar os dois temas. Freud descarta a conexão
mais aparente: o “Juízo final” com a morte e a sexualidade. Passa a procurar a ligação entre os
nomes. Relaciona a palavra Signor à Herr (Senhor), e Herr está também no nome
Herzegovina. Além disso, os dois comentários lembrados continham um Herr como maneira
de se dirigir ao médico. Extrai daí que a tradução de Signor por Herr foi o meio pelo qual a
história suprimida arrastara consigo para o recalcamento o nome Signorelli.
Contudo, ainda havia que decifrar os dois nomes dos artistas que surgiram em
substituição. Freud menciona que a orientação do deslocamento fora dada pelos nomes
contidos no tema recalcado (morte e sexualidade). Boticelli contém as mesmas sílabas finais
que Signorelli. Portanto, as sílabas finais tinham retornado, mas a influência do nome Bósnia
dirigiu a substituição para dois nomes de artistas que começavam com a mesma sílaba “Bo”:
Botticelli e Boltraffio. Verifica-se, assim que o esquecimento do nome Signorelli sofreu a
interferência do tema que estava por trás dele, no qual apareciam os nomes Bósnia e
Herzegovina.
O lapso verbal surgiu de algum outro lugar que não o da fala consciente; surgiu do
inconsciente e obedeceu a certas determinações, no relato, o recalcamento de temas de morte
e sexualidade. Cito o autor:
Devemos, antes, presumir que o próprio tema estivesse também intimamente
ligado a fluxos de representações em mim presentes em estado de recalque –
isto é, fluxos de representações que, a despeito da intensidade do interesse
nelas depositado, deparassem com uma resistência que os impedisse de
serem elaborados por uma dada instância psíquica, e portanto, de se
tornarem conscientes (FREUD, 1986, p. 262).
uma propriedade dos sistemas abertos como o dos seres vivos, que são auto-organizadores. Os
seres vivos em sua interação com o meio operariam “a produção-de-si e a reorganização-de-
si” (PAIVA; NASCIMENTO, 2009, p. 525) através de sua característica mais importante que
seria operar em um padrão de rede.
Novamente, temos aqui o homem colocado ao nível dos seres vivos em geral, e desta
vez não somente entre os animados, e o mecanismo associativo, que é uma das propriedades
da linguagem, ser explicado pela biologia. O que me leva a concordar com Freud e citá-lo
quando ele se referiu ao tratamento elétrico que era dado aos pacientes com distúrbios
funcionais que sofriam de paralisias do corpo: “todo aquele que se tenha esforçado por
cumprir as instruções pormenorizadas de Erb [1882], tem de maravilhar-se com o espaço que
a fantasia pode ocupar mesmo naquilo que professa ser uma ciência exata” (FREUD, 1976a
[1923], p. 240).
Volto às construções freudianas a respeito da atividade associativa imputada ao modo
de operar do inconsciente. Em “A interpretação dos Sonhos” (FREUD, 1987b), publicação de
1900 e que marca o nascimento da psicanálise (FREUD, 1976a [1923], p. 239), Freud se
detém detalhadamente sobre o processo onírico. É uma publicação que permite várias chaves
de leitura. Destaco o aspecto da associação devido a sua ligação com uma das propriedades da
linguagem. Nos sonhos os elementos fonéticos, imagéticos e semânticos se combinam por
meio de movimentos de deslocamento e condensação, e apresentam-se ao sonhador como
manifestações disfarçadas e ininteligíveis, a exemplo do que ocorrem com os lapsos no
cotidiano das pessoas.
Vou fazer uma parada neste ponto para retomar as noções desenvolvidas pelo linguista
Jakobson a respeito do processo de deslocamento e condensação. Ele estudou o texto “A
interpretação dos sonhos” e colocou o problema de saber se nos sonhos os elementos que
apareciam se baseavam em contiguidade (deslocamento e condensação), como o próprio
Freud afirma, ou em similaridade (substituição), respectivamente as operações de metonímia e
de metáfora. É uma discussão posta e não conclusiva. No entanto, comparando a metonímia e
a metáfora, Jakobson menciona duas questões: a) A similitude relaciona um termo metafórico
com o termo a que substitui, por conseguinte, a pessoa que constrói metáforas dispõe de
meios mais homogêneos para fazer relações. b) A metonímia que se relaciona com a
sequência temporal ou o contexto e tem um princípio diferente da metáfora no sentido de se
valer de mecanismos mais heterogêneos, coloca um desafio à interpretação (JAKOBSON,
1964, p. 61). Se tomarmos o exemplo concreto do lapso verbal anteriormente descrito,
podemos acompanhar as reflexões de Jakobson. Freud recusou duas associações aparentes
97
(similares): a dos temas de morte e sexualidade com a pintura que retratava o Juízo Final e a
relação do fone [Bo] com Botticelli e Boltraffio, conduzindo-se por vias muito menos
evidentes, tal qual a relação que ele faz com o fone [lli] de Botticelli com o fone [lli] de
Signorelli para deduzir o lugar Bósnia, onde aparecia o tema da sexualidade. Em outras
palavras, Freud descreveu uma operação metonímica. Estes problemas levantados por
Jakobson levam a refletir que o trabalho do sonho funciona preferencialmente por metonímia
(deslocamento e condensação), por isso seu caráter enigmático que desafia a interpretação.
É também com a “A interpretação dos Sonhos” (FREUD, 1987b [1900]), que Freud
explicita a sua opção por abandonar a teorização da linguagem para adotar a perspectiva
psicológica, mesmo que para inscrevê-la como algo que ultrapassaria a própria psicologia,
isto é, uma metapsicologia: “um novo método de investigação psicológica que prestara
excelentes serviços na solução das fobias, obsessões e delírios, etc. Desde então, sob o nome
de ‘psicanálise’, ele encontrou aceitação por toda uma escola de pesquisadores” (FREUD,
1987c [1900], p. 572).
A adesão à perspectiva psicológica para pensar processos de linguagem tal qual o
autor havia feito dez anos antes em “A interpretação das Afasias” (FREUD, 1977 [1891])
pode ser encontrada no seguinte fragmento:
Os sonhos, portanto, pensam predominantemente em imagens visuais – mas
não exclusivamente. Utilizam também imagens auditivas e, em menor grau,
impressões que pertencem aos outros sentidos. Além disso, muitas coisas
ocorrem nos sonhos (tal como fazem normalmente na vida de vigília)
simplesmente como pensamentos ou representações (FREUD, 1987b [1900],
p. 79).
Na transcrição, percebe-se mais uma vez Freud mencionando a parte do signo relativa
ao significante (imagens auditivas e impressões de outros sentidos) e atrelado à noção de
representação.
O aspecto desconcertante é que esses pensamentos ou representações assemelham-se a
alucinações (FREUD, 1987b [1900], p. 79) ou fantasias (FREUD, 1987c, p. 537) e, nessa
direção, ultrapassam o campo da racionalidade, da atenção e da consciência, objetos de estudo
da psicologia, conforme se lê no trecho seguinte:
Ao abrir caminho pelas áreas obscuras da Psicologia, parecemos
atormentados por nova contradição. Por um lado, supusemos que os
pensamentos oníricos surgem através de uma atividade mental inteiramente
normal, mas, por outro, descobrimos diversos processos de pensamento
bastante anormais entre os pensamentos oníricos [...]. Tudo o que
descrevemos como ‘trabalho do sonho’ parece afastar-se imensamente
daquilo que reconhecemos como processos racionais de pensamento. [...] O
máximo que podemos concluir daí é que isso prova que as mais complexas
98
Freud descobriu que essa expressão sonora verbalizada pela criança significava a
palavra alemã fort, que quer dizer “ir embora”. O garoto fez o mesmo com um carretel de
madeira amarrado com um pedaço de cordão. Ao invés de puxar o carretel atrás de si, como
se fosse uma carroça, ele arremessava o carretel por sobre o berço encortinado, de modo que o
objeto desaparecia entre as cortinas. Enquanto fazia isso, o menino proferia seu “o-o-o-ó” e
por meio do cordão puxava o carretel para fora do berço, momento em que “saudava o seu
reaparecimento com um alegre da (‘ali’)” (FREUD, 1976b [1920], p. 26). Nas palavras do
autor:
A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande
realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à
satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar.
Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o
desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance
(Ibid., 1976b [1920], p. 27).
Neste trecho, Freud está descrevendo uma operação que caracteriza o simbólico que
Benveniste colocou nos seguintes termos: a possibilidade de construir uma mensagem a partir
de outra mensagem. Mas vejamos como Freud, sem o aparato da linguística, vai rodeando o
problema.
O simbólico aqui não é uma representação que se configura como relação direta com o
referente (o objeto), caso em que o carretel e a linha seriam tomados como algo próximo a
puxar uma carroça ou segurar um cavalo pelas rédeas, muito mais próximos da vivência do
menino. É mais do que isso; é uma intrincada manobra que combina dois movimentos. O
primeiro, de substituição imaginária, que possui resquícios de analogia: “quando a criança
passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência
desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e [...] vinga-se num substituto”.
(FREUD, 1976b [1920], p. 29). O segundo – apenas descrito, mas não nomeado por Freud –
aquele movimento cuja essência é uma forma de agir sobre o mundo a partir da relação entre
pares de diferença ou assimétricos: presença e ausência, atirar e puxar. A seguir, apresento
uma sistematização da leitura que fiz do jogo do Fort Da:
Quando não confio em minha memória [...] posso suplementar e garantir seu
funcionamento tomando nota por escrito. Nesse caso, a superfície sobre a
qual essa nota é preservada, a caderneta ou folha de papel, é como se fosse
uma parte materializada de meu aparelho mnêmico que, sob outros aspectos,
levo invisível dentro de mim. Tenho apenas de guardar em mente o local
onde essa ‘memória’ foi depositada e então posso ‘reproduzir’ a qualquer
hora que quiser, com a certeza de que terá permanecido inalterada e assim
escapado às possíveis deformações a que poderia estar sujeita em minha
memória (FREUD, 1974e [1924], p. 285).
8
A célula “mundo das coisas” está em branco porque é o ponto zero do processo de simbolização, aquele em que
as coisas apenas exibem sua matéria.
101
Por fim, fecho essa seção referindo-me aos últimos escritos do autor editados em 1939
– “Moisés e o monoteísmo”(FREUD, 1974e) – os quais se prestam a várias leituras e a que
destaco aqui é aquela relacionada à universalidade, tema que ocupou Freud ao longo da sua
produção, comprometido que estava em encontrar espaço para a psicanálise no patamar das
ciências.
Nesse sentido, a minha intenção é a de mostrar de que maneira as noções de simbólico
e de linguagem, retomadas em uma nova figuração que enlaça pela tradição oral o indivíduo e
a organização social, ofereceram mais argumentos para relacionar inconsciente e linguagem.
Também é um texto base utilizado por Pommier em defesa de suas teses, algumas delas
citadas na parte introdutória deste trabalho.
Nos ensaios, Freud está à volta com a hipótese de que “o homem Moisés, o libertador
e legislador do povo judaico, não era judeu, mas egípcio” (FREUD, 1974d [1939], p. 30) e
que a religião monoteísta e abstrata que ele ajudou a consolidar pode ter sido a religião de
Akhenaten, faraó que tentou apagar a crença politeísta do povo egípcio e introduzir a doutrina
de um deus único e universal (Ibid., 1974d [1939], p. 38).
Com uma descrição detalhada, ele procura estabelecer conexões entre o Moisés do
Egito e o Moisés de Canaã (correspondente à área atual do Estado de Israel), com um
intervalo de séculos entre os dois. O obscuro desaparecimento de Moisés, supostamente por
causas violentas e nada nobres, leva Freud a argumentar que aquilo que teve de ser deformado
ou suprimido na escrita para parecer heroico (recalcamento) é preservado na tradição oral e
transmitido através das gerações, originando os mitos e as epopeias (simbolismo).
A história de Moisés oferece elementos para se estabelecer uma similaridade de
padrão entre o processo de construção da cultura – a monoteísta – e a constituição do
psiquismo do indivíduo, com suas marcas traumáticas (respectivamente, a violência das
disputas religiosas e a sexualidade) que nunca são esquecidas e que exercem maior pressão
para se tornarem conhecidas quanto mais longínquas estão em relação ao tempo presente,
embora possam sofrer deslocamentos e distorções para conseguir escapar ao seu destino
comum: a repressão.
Se, do ponto de vista do homem, o sintoma, o lapso, o chiste e o sonho são formas de
passar para a consciência esses rastros de memória, da parte da cultura, a tradição, entendida
pelo autor como transmissão oral entre gerações, é a grande responsável por manter
preservados intactos os acontecimentos históricos chocantes. Cito o autor:
Trauma primitivo – defesa – latência – desencadeamento da doença
neurótica – retorno parcial do reprimido: tal é a fórmula que estabelecemos
103
A citação transcrita permite inferir que um indivíduo tem a sua história duplamente
determinada: além de ser submetido às suas pulsões, está também sujeitado à cultura por
intermédio da linguagem na sua forma oral, ao lhe transmitir a tradição das gerações que o
precedeu. Em outras palavras, o que faz marcas na vida de um indivíduo inclui muito mais do
que aquilo que ele próprio experimentou, “coisas que estão inatamente presentes nele, quando
de seu nascimento, elementos com uma origem filogenética – uma herança arcaica” (Ibid.,
1974d [1939], p. 119). Não se trata apenas de uma herança das disposições instintuais,
biológicas, “mas também um tema geral: traços de memória da experiência de gerações
anteriores” que chegam até a contemporaneidade como se fossem naturais (Ibid., 1974d
[1939], p. 120).
Destaco o indício de que essa herança ancestral não seria transmitida pela via da
comunicação, mas, até pela ausência de outros parâmetros com os quais estivesse
familiarizado, Freud atribuiu essa transmissão à influência da educação, conforme suas
palavras:
Refletindo mais, tenho de admitir que me comportei, por longo tempo, como
se a herança de traços de memória da experiência de nossos antepassados,
independentemente da comunicação direta e da influência da educação pelo
estabelecimento de um exemplo, estivesse estabelecida para além de
discussão. Quando falei da sobrevivência de uma tradição entre um povo ou
da formação do caráter de um povo, tinha principalmente em mente uma
tradição herdada desse tipo, e não uma tradição transmitida pela
comunicação (FREUD, 1939, p. 121).
9
Apesar de Freud não ter citado nomes, tratava-se das teorias de Lamarck (1744-1829) e Darwin (1809-1882).
104
Vou tomar o ditado popular “falem mal, mas falem de mim” para iniciar esta seção
que apresenta a proposição de Lacan “o inconsciente do sujeito é o discurso do outro”
(LACAN, 1998b [1953], p. 266). A dramaticidade do dito popular vem referendar que o
10
Uso a expressão outro/Outro, pois elas têm significados distintos: outro (com “o” em letra minúscula) refere-se
ao indivíduo, à pessoa (pai, mãe, etc.); Outro (com “o” em letra maiúscula) por ora está significando cultura;
mais adiante será entendido como linguagem. Assim, um bebê é falado por sua mãe (outro) que através da sua
fala transmite a herança (a lei) do pai e da comunidade em que eles estão inseridos (Outro).
105
homem encontra o seu lugar no mundo pela fala do outro; o contrário é estar fadado à
inexistência. A cena construída no Excerto 3 pretende exemplificar essa ideia.
Relato essa experiência em que atuei feito uma ventríloqua, supondo emoções, ideias e
argumentos no bebê, para mostrar que antes mesmo de poder falar uma criança é falada. Mas
ela não é falada de um modo qualquer; a fala do outro (pessoa) é uma fala carregada de
aposta, de expectativa, do reconhecimento de um semelhante; uma fala que coloca a criança
no circuito do desejo, que humaniza.
Compreendo que essa cena se contrapõe a uma abordagem psicológica tal qual a de
Vigotski para quem no estádio de vida inicial de um bebê humano a linguagem – entendida
como comunicação das vontades e emoções – tem raiz genética e só depois de transcorrido
um determinado período de desenvolvimento do intelecto transforma-se em conquista sócio
histórica.
Considerando o aforismo lacaniano, ao contrário, desde o princípio o bebê se depara e
recebe a marca do desejo do outro (mãe, pai etc), desejo este que é engendrado num universo
simbólico que funciona com as propriedades estruturais da linguagem. Cito Lacan (LACAN,
1998b [1953], p. 269):
[...] em parte alguma evidencia-se mais claramente que o desejo do homem
encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as
chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido
pelo outro.
106
Vejamos como o psicanalista francês nos anos da sua primeira clínica – conhecida
como a clínica do significante – absorveu o conceito de estrutura para ler a obra de Freud,
tendo como seus interlocutores principais o antropólogo Lèvi-Strauss e o linguista Saussure
para, numa manobra radical, expor a sua invenção do sujeito do inconsciente, “o isso” que
rompe com a estrutura.
Quando Lacan iniciou sua carreira neuropsiquiátrica no início de 1920, a psicanálise
se introduzia na França pelas vias da medicina, com sua visão estritamente terapêutica.
Paralelamente, acontecia o movimento artístico e literário, que se assenhoreou da teoria
freudiana da sexualidade ao modo de um ideal de libertação do desejo e das pulsões mais
arcaicas do ser humano, traduzido, principalmente nas artes plásticas, por uma interpretação
delirante da realidade.
A tese apresentada em 1932, que versava sobre a psicose paranoica acerca da história
de Marguerite Pantaine, surgiu dentro deste cenário. Tratava-se de estudo teórico da clínica
psiquiátrica que fazia uso de conceitos freudianos no tocante ao narcisismo e às ilusões do eu,
dentro de um tipo de leitura tributária da psicanálise do eu.
107
Durante o período de sua análise pessoal empreendida a partir de 1932, dentro dos
cânones didáticos da “International Psychoanalytical Association” (IPA), Lacan frequentou
os debates da “Sociedade Psicanalítica de Paris” (SPP), mas também deu continuidade aos
seus estudos fora da comunidade psicanalítica, dirigindo seu interesse para a filosofia e a
lógica. Em seu retrato sobre a vida e o pensamento de Lacan, Roudinesco (1994, p. 102)
entende que a formação intelectual externa do então neuropsiquiatra foi marcante na releitura
de Freud, e sem ela o seu ensino teria ficado prisioneiro da apreensão médica e acadêmica das
formulações freudianas. Neste percurso de contato com outras áreas do conhecimento que não
apenas a prática médica, o psicanalista francês encontrou-se com as ideias do antropólogo
Lévi-Strauss e do linguista Saussure.
Já na década de 1940, as divergências de Lacan com as proposições das instituições
oficiais da psicanálise se acentuaram e culminaram em confronto, enquanto os estudiosos que
seguiam seu ensino aumentavam em número, comparativamente a outros psicanalistas que
atuavam na França.
Por esta época, ele se dedicou a construir um sistema de pensamento que “concedia
um privilégio absoluto à elucidação da relação do sujeito com a verdade” (ROUDINESCO,
1994, p. 216). Isso somente poderia ser feito a custa de tomar o sujeito do desejo, relacionado
na abordagem psicanalítica ao sujeito do inconsciente – invenção tipicamente lacaniana –
como ponto de partida e de chegada. Qual seria, então, o estatuto desse sujeito que transita
entre as identificações imaginárias e simbólicas oferecidas por outrem e a sua verdade, de
onde extrai um jeito de ser no mundo? Na passagem que segue, datada do seminário de 1955,
temos uma das tantas formas do autor colocar suas interrogações:
Trata-se para nós de saber onde se situa o sujeito da relação analítica. É
preciso precaver-se contra a atitude ingênua – o sujeito, pois bem, é ele, ora
essa! – como se o paciente fosse algo de unívoco, como se o próprio analista
se resumisse a uma determinada soma de características individuais. Quem é
o sujeito? Eis a questão que manipulamos aqui em todas as suas
manifestações. [...] Nós a seguimos em todos os pontos em que se reflete, se
refrata, estoura. É assim que esperamos fazer sentir o ponto em que se situa
exatamente e que não pode ser atacado de frente, já que atacá-lo é atacar-se
as próprias raízes da linguagem (LACAN, 1985ª [1955], p. 172-173).
11
Jean Hyppolite (1907-1968) filósofo francês.
110
Na prática clínica, o analista se depara com aquilo que é próprio do imaginário e faz
parte do eu (uma multiplicidade de aspectos psicológicos, pessoais, interpessoais), ligado às
captações das formas e das sensações tão essenciais à atração sexual que garante a
manutenção da vida das espécies (inclusive a humana). Mas também na análise aparecem
fenômenos que estão acima e além da mera função imaginária, apesar de dela não poder
prescindir, “uma perturbação profunda da relação vital” (LACAN, 1985b [1954], p. 54), um
algo a mais que é fabricado como lei para determinado agrupamento e é genuinamente
humano. Por essa época, o psicanalista nomeava o algo mais como símbolo.
Para não se furtar à polêmica de que outras espécies fora do domínio humano também
possuiriam rudimentos simbólicos, ele começa citando o exemplo das andorinhas cujos rituais
comportamentais dão a impressão de se tratar de operação com símbolos. O contra argumento
do psicanalista é o de que esses rituais estão enclausurados em um tempo presente e sem
contrastes, no aqui e agora da espécie e, a bem da clareza, deveriam ser considerados como
sinais e não símbolos. Outro exemplo é o do rato-lavador que quando tem fome procura o
objeto que satisfaça sua necessidade fisiológica. Diferente é o que acontece com o homem
que, quando está com fome, escolhe o que quer comer e até quanto quer pagar pela
preferência.
Acrescenta, com relação aos humanos, dois outros exemplos que não têm nada em
comum senão a característica simbólica. O primeiro é sobre as aventuras dos antigos povos
navegantes, os quais com as trocas de objetos para outros usos que não os utilitários,
possibilitaram inventar a exploração do homem pelo homem. Aqui se trata de contrapor a
beligerância dos daneses com o pacifismo dos argonautas. O segundo é a brincadeira do Fort
Da, abordada em seção anterior, um manejo infantil para suportar a alternância da mãe entre
presença e ausência. O comum nos dois casos é conjugar elementos que se contrastam, se
alternam ou se opõem, cifrando12 um símbolo que, doravante, substitui o objeto ou o
acontecimento em si, de uma forma tão descolada do original que, no mais das vezes, se lhe
perde o rastro.
No texto “Apresentação da sequência”, de 1955, que sucede ao seminário sobre “A
cata roubada” (LACAN, 1998d), Lacan encontrou na formalização da matemática um modelo
para ilustrar o processo de simbolização.
A partir de um ponto zero do desejo, no caso de um recém-nascido, onde o sujeito
propriamente dito ainda não existe e sim um pequeno organismo, o autor desdobra o destino
12
Bruce Fink faz coincidir a cifração com a noção de distorção, empregada por Freud (FINK, 1998, p. 217).
111
estrutural do ser humano, exemplificando com o jogo cara ou coroa. Nele se pega uma moeda
sem estar viciada e a joga para cima, de forma que não há como prever se o resultado será
cara ou coroa. Tomando os sinais + e – para anotar a sequência aleatória de resultados das
jogadas é possível se chegar a um resultado que permite demonstrar “as mais estritas
determinações simbólicas” (LACAN, 1998c [1956], p. 53).
Para ilustrar a operação se poderia pegar qualquer ação ou fala da mãe em atendimento
à demanda de um bebê. Em termos fictícios, vou tomar a alternância entre o choro e o silêncio
de um neonato para apresentar como o contraste entre ausência e presença de som possibilita
construção de sentidos para a mãe que, combinando os eventos do filho por retroação,
responde para o bebê segundo o que ela pôde entender das pistas que ele lhe ofereceu e este,
por seu lado, combina as respostas contrastantes da mãe (amamentação, troca de fraldas,
acalanto), também por retroação, para aperfeiçoar as pistas sonoras que vai oferecer para dar
sentidos a uma diversidade de eventos cada vez mais complexos.
A alternância entre choro e silêncio equivalerá às jogadas da moeda que podem
resultar em cara (+) ou coroa (-). O texto lacaniano agrupa os lances em trincas. Fink (FINK,
1998, p. 35) propõe o mesmo exercício agrupando as jogadas em pares; faço uma adaptação
da proposta deste último, conforme segue:
Portanto, a cadeia formada pelo agrupamento das jogadas proíbe e permite certas
combinações. Neste exemplo, a matriz numérica 1 (choro estridente/fome) proibiu o
aparecimento de 1 (choro estridente/fome) na sua sequência, porque a mãe deu uma resposta
que atendeu a demanda do filho, ou seja, percebeu que era fome e o alimentou. A combinação
1 só vai reaparecer quando for dada a repetição do par ++ (choro estridente/fome), o que não
ocorreu neste exemplo devido ao número de jogadas até 9. Essa cadeia simbólica também
apresenta permissões. Por exemplo, a matriz numérica 2 (resmungo/xixi, sede) aparece em
seguida ao 1 (choro estridente/fome). Quer dizer que o bebê depois de alimentado pode
resmungar por desconforto porque está molhado ou com sede, o que é uma condição bastante
viável na realidade. Outra permissão é a matriz 3 (silêncio/conforto) estar na sequência da 2
(resmungo/xixi, sede) se o recém nascido foi trocado ou acalantado, situação em que a
resposta oferecida em troca é o relaxamento da tensão da criança.
Além disso, a cadeia acompanha o movimento de seus componentes anteriores. Por
exemplo, se na sequência da matriz 1 (choro estridente/fome) aparecesse outra matriz 1
quando esta deveria ser proibida, isso geraria uma outra configuração e poderia se dizer que a
cadeia possivelmente estaria em crise. Isto porque a resposta que veio do outro materno não
foi eficaz para produzir uma interdição na resposta do bebê e ele continuou com seu choro
estridente. São as rupturas a que se referiu Lacan logo acima, quando falava das estruturas
elementares de parentesco mais ou menos viáveis, e esta sequência vai ter impacto na
estrutura do sujeito em advir.
Outro aspecto fundamental é que a estrutura simbólica, mesmo aquela elementar
construída aqui com fins ilustrativos, possui uma memória que não é biológica; ao contrário
do que se tem na biologia e na psicologia. É uma memória histórica porque relacionada
internamente ao seu primeiro componente e que dele extrai nas combinações subsequentes
uma regra, um traço, uma matriz, uma lei (LACAN, 1998b [1953], p. 257). Como discorre
Lacan: “desde a primeira composição consigo mesmo do símbolo primordial [...] uma
114
estrutura, por mais transparente que seja ainda para seus dados, faz aparecer a ligação
essencial da memória com a lei” (LACAN, 1998c [1956], p. 55).
Também é característico do simbólico operar em um movimento de reciprocidade: por
um lado, o símbolo é produto da cifração realizada pelo homem sobre sua própria ação, como
vimos na matriz acima, legitimando seu lugar de fundador; por outro lado, o homem se
constitui enquanto homem na ordem desta cifração, sujeitando-se a ela, subjetivando-se.
Eis o simbólico: um conjunto de elementos cuja combinação gera leis que não
existiam antes, derivadas, portanto, de uma composição primordial dos elementos, criando um
tipo de memória que permanece gravado na própria cadeia.
No modo de uma formalização matemática, Lacan dá a ver o funcionamento da
herança ancestral a que se referia Freud em “Moisés e o monoteísmo”, ou seja, através da fala
dos pais e familiares recorta o sujeito em advir do mero organismo vivo e o introduz dentro de
uma totalidade (um universo) e é exatamente esta operação que humaniza como se pode ler
abaixo:
Os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão total
que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo ‘em
carne e osso’; [os símbolos] trazem em seu nascimento [...] o traçado de seu
destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado [...], ali
onde ele ainda não está e para-além de sua própria morte (LACAN, 1998b
[1953], p. 280).
Contudo, a elaboração que eu conduzi até aqui (a estrutura simbólica) ainda deixa
pendente a ligação do simbólico com a linguagem. Este é um salto que me proponho na seção
seguinte.
Começo com uma pergunta que o próprio Lacan se fez: basta existir o objeto
simbólico para encontrar nele a linguagem? A resposta é: talvez ainda não. Para que o
símbolo, liberto de seu uso, se transforme em palavra libertada da efemeridade da matéria
sonora (a fala), ele deve encontrar seu ser evanescente na permanência do conceito (LACAN,
1998b [1953], p. 277).
É dessa forma que se pode entender o jogo do Fort Da como tendo as mesmas
propriedades estruturais da linguagem. Neste, a criança de uns poucos meses – que apenas
balbuciava – conseguiu operar com rudimentos de coordenação e associação ao ligar as
115
impressões acústicas de fort [o-o-o-ó], que em alemão tem o sentido de “ir embora” e de da,
que em alemão tem o sentido de “ali”, com a ideia da saída de sua mãe fora do seu campo de
visão e do retorno dela num ponto em que poderia vê-la, vivenciando através de ações
(brincadeira) os conceitos de presença e ausência. Não fosse por isso, a vivência desta criança
em nada diferiria da vida das gaivotas nem das andorinhas. Os conceitos de presença e de
ausência, não importa a língua em que são falados ou escritos, trazem embutido, num modo
desidratado de temporalidade e de pessoalidade, toda gama de experiências que afetou
sucessivas gerações de um jeito tal que se considerou que era preciso lhes atribuir marcas com
letras, um nome.
O conceito torna-se o elo entre filogênese e ontogênese. Conforme Lacan: “Por aquilo
que só toma corpo por ser o vestígio de um nada, e cujo suporte desde então não pode alterar-
se, o conceito, resguardando a permanência do que é passageiro, gera a coisa” (LACAN,
1998b [1953]. Talvez se pudesse fazer um ajuste neste enunciado e dizer que a coisa
permanece como tal, fora da nomeação; por sua vez, o conceito, salvando o que é transitório,
engendra o objeto.
Nessa perspectiva, o simbólico entendido como um sistema de relações (como as
apresentadas no jogo do “Fort da”) não pressupõe a presença dos objetos, posto que o
conceito fixa, conserva, torna permanente e tem a característica de ser universal.
Para ilustrar o raciocínio feito até agora, retomo o quadro 6 (Movimentos do jogo do
Fort Da) e acrescento um terceiro movimento que institui o conceito, configurando a ordem
simbólica propriamente dita.
significante sobre significado para redigir o signo, e adverte que o algoritmo não se
reduz “estritamente a essa forma em nenhum dos numerosos esquemas [...] do curso”
(LACAN, 1998d [1957], p. 500). Isto porque Lacan dá primazia ao significante, colocando-o
sobre o significado, invertendo a fórmula saussuriana. Considera significante e significado
“como ordens distintas e inicialmente separadas por uma barreira resistente à significação”
(Ibid., 1998d [1957], p. 500). A barra indica uma brecha, um espaço, que comporta a vivência
da verdade do sujeito (Ibid., 1998d [1957], p. 503) e que faz com que a significação seja
sempre escorregadiça, incerta.
O significante não tem uma existência empírica; é uma instância (SILVA, 2012, p.
55). Uso o exemplo de uma anedota que Lacan conta para ilustrar como o significante
funciona.
Um menino e uma menina, irmão e irmã, estão sentados um de frente ao outro dentro
de um trem, do lado em que a vidraça dá para o exterior e descortina a visão da plataforma.
Olham através da vidraça para a plataforma e distinguem as palavras (significantes)
“Homens” e “Mulheres”. O irmão fala: – Chegamos a Mulheres! A irmã responde: – Imbecil,
nós estamos em Homens! Na experiência dos irmãos era factível considerar as placas
“Homens” e “Mulheres” como nome da estação, o que tem a ver com um sentido próprio a
cada um, e não com o fato de ser designativo de uma regra social. Não importava que ali
118
existisse uma incongruência, ou seja, uma mesma estação não poderia ter dois nomes. É
quando o significante é equívoco. (LACAN, 1998d [1957], p. 504).
No exemplo dado, a transferência de sentido para os objetos e situações do mundo não
é uma relação direta, mas “só pode revelar uma estrutura de significante” (Ibid., p. 504). E “a
estrutura do significante está [...] em ele ser articulado, [...] suas unidades estão submetidas à
dupla condição de se reduzirem a elementos diferenciais últimos e de os comporem segundo
as leis de uma ordem fechada”. Os elementos diferenciais são os fonemas (Ibid., p. 504) ao
nível sonoro e as letras que se materializam nas inscrições “Homens” e “Mulheres”, e a ordem
fechada aqui se refere à significação que corresponde a uma regra de segregação (Ibid., p.
504).
O psicanalista chega assim à mesma proposição saussuriana da teoria do valor, com
uma distinção fundamental: se na linguística se rejeita o sujeito e a fala, ficando no domínio
da língua, a psicanálise de Lacan os resgata, embora num primeiro momento em uma forma
objetivada, alienada às “correlações do significante com o significante” (LACAN, 1998d
[1957], p. 505), que sobredeterminam o rumo da história de cada um.
O significante tem as mesmas propriedades da linguagem, ou seja, designa uma lógica
subjetiva que tem a ver com correlação e doravante, na semântica da psicanálise lacaniana,
ocupará o lugar de termos como “símbolo”, “conceito”, “palavra” e “sintoma”, termos estes
ligados a outras tradições epistêmicas os quais o psicanalista deliberadamente distanciou de
seu universo conceitual.
Agora, podemos retomar o lapso verbal e o jogo do Fort Da como escolhi apresentar
neste capítulo, e, sobretudo o trabalho do sonho, para verificar nesses eventos associativos a
primazia da instância do significante que, em seus deslocamentos e condensações, serve para
presentificar o inconsciente. Trata-se de uma nova elaboração a respeito do inconsciente,
tomado não mais como tópica ou dinâmica entre os três sistemas – id, eu e supereu – mas o
inconsciente estruturado como linguagem. Nas palavras de Lacan (LACAN, 1998d [1957], p.
498):
[...] é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre
no inconsciente. Pondo desde logo o espírito prevenido em alerta, porquanto
é possível que ele tenha de reavaliar a ideia segundo a qual o inconsciente é
apenas a sede dos instintos.
De outro lado, tal formulação projeta-se numa posição radical de que o sujeito é servo
da linguagem. Mas Lacan se preveniu de um fim tão determinista. Em um de seus seminários
de 1954, em que esteve presente Lévi-Strauss, ele comentou com sua assistência o titubeio do
antropólogo em sustentar, até a última consequência, que as relações de parentesco estão
submetidas à estrutura do símbolo: “[Lévi-Strauss] não quer que o símbolo, e nem mesmo sob
a forma extremamente depurada com a qual ele mesmo o apresenta a nós, seja apenas uma
reaparição de Deus por detrás de uma máscara” (LACAN, 1985b [1954], p. 52).
Já precavido, Lacan não pretendia se render ao imperativo do inconsciente estruturado
como linguagem, de maneira que a autonomia da linguagem adquirisse a face de um Deus que
determinasse para todo o sempre a vida do sujeito. Um destino de “servidão e grandeza em
que se aniquilaria o vivente”, se o desejo e as pulsões não rompessem o muro de linguagem
para fazer passar a verdade do sujeito (LACAN, 1998b [1953], p. 280).
Na continuidade, apresento o excerto 4 a respeito do informante Ian e a transcrição de
um fragmento da gravação para analisá-los à luz das operações de linguagem.
1) Acontecimentos de 2007
Conheci Ian em 2007, aos oito anos de idade, quando ele cursava o 2º ano do
ciclo I pela segunda vez. Ele andava sem firmeza pelo pátio da escola e atrás dele,
segurando por baixo de seus braços, Alice, estagiária de pedagogia, procurava apoiar
sua caminhada como se fosse uma bengala humana. Ian se esquivava e empurrava o
braço da sua acompanhante. Ela insistia para que ele caminhasse para determinado
local. Ele girava o corpo em direção oposta. Usava uma espécie de capacete na cabeça.
120
anterior, o de 2006.
Naquele ano, os professores haviam tido uma experiência mal sucedida com
comunicação alternativa, isto é, uso de um conjunto de signos não linguísticos
(fotografias e figuras) para significar momentos específicos da rotina, como a hora do
lanche, a transição de um tipo de aula para outra, a vontade de ir ao banheiro, outros
espaços escolares como a sala de informática. Inclusive utilizou-se a abordagem em
algumas atividades pedagógicas, uma vez que com ela se pode prescindir da fala e da
escrita e apostar na percepção visual. Contudo, os professores alegaram não perceber
indicações de que o garoto entendia e se apropriava desse modo de interação.
A professora da época, juntamente com a fonoaudióloga e a psicóloga que
acompanharam Ian em 2005 e 2006, planejaram uma aula na qual a comunicação
alternativa pudesse ser experimentada pelo garoto. A aula foi gravada, originando dois
compact discs (CD).
A primeira gravação apresentava uma atividade na aula de língua portuguesa
para todos os alunos. A letra da música “A Casa”, de Vinicius de Moraes, foi escrita na
lousa em letra bastão. Os alunos foram incitados a ler a letra e depois cantar a música.
Foram preparadas algumas figuras que correspondiam às principais palavras que
davam suporte ao enredo da música e após a identificação destas figuras pelos alunos,
elas eram ordenadas sequencialmente na mesa, diante do Ian.
Por exemplo, no trecho que correspondia à estrofe “era uma casa muito
engraçada”, a palavra escolhida para ser representada em imagem foi “engraçada”. A
figura que correspondia ao adjetivo era uma carinha estilizada e sorridente. O vídeo
mostra os alunos cantando a música enquanto a estagiária pega na mão direita de Ian,
fazendo-o acompanhar a melodia apontando para cada uma das figuras. Aparentemente
ligado à sonoridade da música e aos movimentos na classe, Ian não foca as imagens,
desviando o olhar e mirando-o em outra direção. Está com o capacete de proteção.
A segunda gravação é uma continuidade da mesma aula.
Após ler a história “O leão e o rato” em voz alta, a professora distribuiu aos
alunos uma folha com ilustrações feitas à mão que representam passagens da história e
que deveriam ser recortadas e ordenadas numa sequência começo-meio-fim. A
estagiária pegou na mão de Ian para recortar as figuras.
Em seguida a professora sentou-se à direita dele para ajudá-lo a fazer a tarefa.
Ela tenta fazê-lo escolher entre uma figura e outra e colar na sequência da história.
Observa-se Ian emitindo algumas vocalizações e interessado em manipular a cola sobre
os recortes. A professora persiste no seu objetivo de ordenação da sequência e o
resultado da tarefa é uma justaposição de figuras sem coerência narrativa.
Essas gravações compuseram o portifólio de Ian de 2006. Apesar de ter sido
oferecido a comunicação alternativa para o menino, nenhum progresso foi verificado,
como relataram as professoras (titular e de educação especial) do ano de 2007.
3) Voltando a 2007
participação na atividade.
fenômenos relacionados a tomar o corpo prioritariamente como objeto de usufruto (até porque
foi um corpo tutelado pelos adultos até os oitos anos de idade), e que essa experiência jubilosa
fazia barreira para que o menino se interessasse por outras atividades que envolviam
disciplinamento do corpo.
Foi com o intuito de investigar esses fenômenos e ver se, de algum modo, a elucidação
deles pudesse ajudar a afetar a relação de Ian com o conhecimento, que a psicóloga foi
admitida na posgraduação com um projeto composto pela coleção de materiais deste aluno. O
título do projeto apontava a direção do desejo investigativo da psicóloga: “O corpo e a
aquisição da escrita: fronteiras entre gozo e desejo”.
a) Ian e a linguagem
carteiras, encontrava-se a mesa do professor ocupada por uma pessoa. Ian usava capacete.13
Após ler em voz alta a história “O leão e o rato”, a professora distribuiu aos alunos uma folha
com ilustrações14 feitas à mão de cenários e personagens da história, as quais deveriam ser
recortadas, ordenadas na sequência dos acontecimentos e coladas em uma folha de papel. Pelo
fato de Ian não ter adquirido habilidade de manusear a tesoura (seu braço esquerdo não
possuía tônus), a estagiária tentou treiná-lo, firmando a tesoura na mão direita dele e
segurando-a com sua própria mão. Não conseguindo adesão de Ian à tarefa, ela mesma
efetuou os recortes, chamando constantemente a atenção do menino para o que fazia. No
momento da atividade de ordenar as sequências, a professora conduziu a intervenção. No
quadro 12 apresento a transcrição da cena.
P. (Professora) I. (Ian)
1. P. puxa para sua carteira uma folha em branco e 2. I. acompanha com o olhar os movimentos da
a pilha de recortes com as ilustrações dos P., que está separando a folha em branco e os
personagens e cenários da história O leão e o rato. recortes.
3. P. Separa os recortes, olhando para cada um e 4. I. ajeita o braço esquerdo sobre a mesa com a
ordenando-os em linha horizontal, na parte de ajuda da mão direita, olha em frente e faz um
cima da mesa. P. fala para I.: – Vamos começar a esgar com a boca. Aparecem dois dentes da
história. frente, não alinhados. (O esgar com a boca
Uma outra aluna da sala se aproxima da P. pelo lembra um sorriso. A articulação fonológica de
lado direito. P. lhe diz: – Lá pra professora que tá Ian seria influenciada pelo desalinhamento dos
vendo, tá? dentes?)
5. P. pega uma figura da mesa e a aproxima dos 6. I. põe a língua para fora duas vezes, emitindo
olhos de I. e diz: – Le Le [e]
7. – Olha o que tá aqui. (As falas da P. são quase 8. I. emite um som. (O som vocálico emitido por
inaudíveis, pois há ruído de vozes). I. se parece com o som [a] ou [ta]. Lembra o som
de [ta’ki] falado por P.)
9. – Le... Leão. 10. I. olha a figura e faz o movimento de pôr a
língua para fora da boca duas vezes.
(O movimento que I. faz, de pôr a língua para
fora duas vezes, posicionando-a sobre o lábio
inferior, lembra a emissão [e] duplicado. Seria
uma imitação da P. em Le... Leão? É visível que
a criança sofre de restrições fonológicas, mas isso
não a impede de emitir sons.)
13
O capacete destinava-se a proteger a cabeça de Ian quando acometido por crises convulsivas.
14
Deduz-se que são oito ilustrações.
15
A professora será designada por P. e Ian por I. Foram adotadas três marcações: a) fonte padrão para descrição
das cenas; b) fonte itálica para discurso direto; c) fonte padrão entre parênteses para os comentários
interpretativos da pesquisadora. Os dados foram organizados em colunas: à esquerda mantém-se a descrição das
ações e falas da professora e à direita, a descrição das ações de Ian. É importante mencionar que esta disposição
tem fins didáticos, pois nem sempre as ações e reações de Ian são uma resposta direta às perguntas da professora.
A separação das informações em células numeradas também atende ao critério didático de facilitar sua retomada
no momento de análise.
126
P. (Professora) I. (Ian)
11. P. aproxima a figura do rosto de I. de supetão 12. I. afasta o rosto imediatamente.
e fala algo incompreensível (acredita-se que seja
“olha o que tá escrito aqui”.)
13. – Le... leãããooo. 14. I. vira o rosto totalmente para a sala às suas
costas, enquanto faz movimentos com a língua.
(Com o movimento de virar o rosto, I. escapa da
ação da P. Os movimentos com a língua lembram
[ea]).
15. P. vira o rosto dirigindo o seu olhar 16. I. pega a figura da P. com sua mão direita e a
brevemente à frente. Troca a figura de mão. coloca sobre a mesa. Depois bate sobre a figura
Estende sua mão direita sobre a mesa. Esboça um quatro vezes com a mão direita espalmada. (O
movimento com a boca. Recua o corpo para trás, movimento que I. faz lembra o jogo de bater
na cadeira. figurinhas com a mão).
(P. dirigiu seu olhar para uma pessoa posicionada
à frente das carteiras. Seu movimento de boca
lembra um meio sorriso. Parece comunicar com o
olhar a mensagem: “tá vendo como é difícil?”). P.
passa a figura da mão esquerda para a direita: – E
esse, I.? Leããoo, né?
17. P. tira a figura sob a mão de I. – Vamos 18. I. pega a primeira figura e faz tentativa de
começar a história. Foi aqui? – e balança a figura colocá-la mais acima na mesa. Ele emite [a]
que estava com I., colocando-a sobre a mesa. – enquanto balança a cabeça para cima e para
Ou foi aqui? – e puxa outra figura na direção de baixo. (Seu movimento de cabeça lembra o sinal
I., que estava ordenada na parte superior da mesa. de concordância ou “sim”).
19. Com a mão esquerda, P. segura o braço direito 20. I. pega uma das figuras com a mão direita e a
de I., retira-lhe a figura da mão e pega outra coloca sobre a mesa, à sua direita. (I. parece ter
figura, aproxima-a de I. e depois coloca sobre a seguido a comanda da P para pegar o leão. A
mesa. – leão está cansado, tão... Quem é o leão? espessura fina do papel parece dificultar o
Pega o leão. (A segunda parte da frase está movimento de I).
inaudível. Parece ter dito “o leão está cansado, tão
passado. Quem é o leão? Pega o leão”).
21. – Vamos colar o leão? – P. afasta-se 22. I. põe a mão no braço esquerdo da P. e faz um
levemente da frente de I, destaca de um bloco uma esgar com a boca. (O esgar de I. com a boca
folha de papel pautada e instrui: – Vamos colar? lembra um sorriso. Sugere que ele está se
Onde vamos colar o leão? – Enquanto faz estas divertindo com a situação).
perguntas P. coloca a folha destacada à frente de I.
e empurra um pouco para cima, com a mão direita
segura no ombro direito de I. e o empurra para
trás e com a mão direita afasta o braço de I. em
direção ao corpo do menino. Murmura: – Pé... xá
ó... (Parece que a intenção da P é deixar espaço na
mesa para a tarefa de colagem das figuras. O
murmúrio parece significar: “péra, deixa a pro
afastar você”).
23. – Onde nós vamos colar? Qual você vai colar 24. I. aponta com o dedo indicador a figura e
aqui? emite uma vocalização longa com som de [a].
(como se copiasse com um único som a
expressão verbal comprida usada pela
professora).
(O movimento de apontar não é totalmente
identificável no conjunto da cena, sugerindo que
I. não tem o controle perfeito do movimento da
127
P. (Professora) I. (Ian)
mão direita. Também lembra atividade de leitura
apontando com o dedo, feita com I. anteriormente
a esta).
25. – Cadê o leão? – Pega o leão e dá duas 26. I. traz a folha de papel para perto do corpo e a
batidinhas sobre uma das figuras. prende com o braço esquerdo. Levanta a cabeça e
Com a mão direita, P. dá dois tapinhas na mão olha em frente. Dá duas batidas na folha de papel
direita de I. (como para lhe prender a atenção) I., sobre a mesa. (I. parece ter assimilado a instrução
pega o leão. dos adultos de usar a mão ou o braço esquerdo,
que não possui movimentos, para segurar o papel.
Dirige seu olhar a alguém que está a sua frente.
Ele parece imitar P. no sentido de dar batidinhas
nas figuras).
27. P. abre e fecha a mão direita duas vezes, 28. I. põe a língua para fora e emite um som
gesticulando com os dedos: – Leããão – (parece vocálico de [ε:a] e pega uma das figuras e a
estar imitando a garra do leão com a mão). entrega na mão da P. (O som vocálico lembra o
som de “leão”).
29. P. pega a figura que I. lhe entrega e 30. I. balança a cabeça para cima e para baixo. (O
colocando-a à frente de seu rosto lhe pergunta: – movimento da cabeça parece ser de concordância
É este o leão? Mostra pra mim o leão. – (A e em resposta à pergunta da P. sobre se a figura
pergunta da P. sugere que I. não pegou a figura do era a de um leão).
leão). I. puxa a figura da mão da P e a entrega para a
pessoa que está em frente das carteiras. A pessoa
pega a figura e a recoloca na mesa à frente de I.,
dizendo: – Deixa aqui que você vai usar depois.
31. P. pega outra figura de sobre a mesa e a 32. I. vira o rosto para a sala às suas costas.
posiciona à frente do rosto de I. – Olha... vendo...
esse o leão? (Parece que P. está perguntando:
“olha, tá vendo que é esse o leão?”, e não a figura
que I. tinha dado como sendo a do leão).
33. P. coloca a mão esquerda sobre o ombro de I. 34. I. balança a cabeça para cima e para baixo.
– Vamos colar o leão? – Coloca a figura na folha
de papel à frente de I.
35. P. pega o frasco de cola e pergunta: – Vamos 36. I. pega o frasco de cola da mão da P. e vira o
colar? Colar? – P. vira a figura à frente de I para bico no centro da figura.
que ele aplique a cola em seu verso. P. apoia o
bico do frasco de cola com a mão. Segura na mão
de I. que está segurando o frasco de cola. (P.
parece cuidar para que I. não faça sujeira com a
cola).
esperasse que ele falasse o restante da palavra “leão”. A partir do oferecimento pela
professora dessas duas possibilidades, desenrola-se, invisivelmente, uma combinatória.
Ian parece privilegiar o som da palavra (6 e 10) em detrimento da imagem leão. Em 6,
8, 10, 14 e 28 o garoto faz vocalizações que lembram [e], [a], [ta’ki], [ε:a], de um jeito que
parece estar reproduzindo os fonemas mais destacados da verbalização da professora. Tais
vocalizações lembram o diálogo de um bebê com sua mãe, de modo que se pode acompanhar
Ian esforçando-se em corresponder aos turnos da conversa, reproduzindo a sonoridade das
palavras proferidas pela professora, ainda fora do ordenamento da língua que se faz pelo uso
do conceito ou da palavra.
Em (14) Ian chega a virar totalmente o rosto, quando a professora estica as sílabas da
palavra “leão” e põe ênfase no [ãw] (13). O mesmo movimento se repete em 32, quando a
professora repete duas vezes a palavra “leão” (31). Comporta-se como se estivesse se
esquivando do animal. Esse trecho oferece um indício relevante da relação que Ian estabelece
com a linguagem, na medida em que: a) esforça-se em corresponder aos turnos do diálogo e
b) é afetado pela verbalização da professora e reage (esquiva) a partir do que a palavra “leão”
parece lhe evocar (perigo). Sugere que está associando os fonemas da palavra “leão” com a
imagem estampada na figura e com a convenção cultural (leão é perigoso e dele temos de
fugir). Percebe-se, então, que o menino está fazendo relações entre os fonemas distintivos da
fala da professora, a imagem do objeto (figura do leão) e o conceito (leão é animal perigoso) e
ao fazê-lo, Ian oferece pistas de como esse processo ocorre com uma criança na etapa pré
verbal. Se é verdadeiro que Ian está operando com conceito, ele está tornando presente o
ausente, nessa situação o animal perigoso leão.
Esse episódio vem ao encontro à afirmação de Lacan (LACAN, 1998b[1953]) de que a
fala tem a propriedade “de fazer ouvir o que ela não diz”, no caso a fala da professora, e isso
restitui “à fala seu pleno valor de evocação”. A mesma passagem também suscita outra
conclusão, a de que Ian está imerso na língua por estar trabalhando com o conceito, nesse
caso, o conceito de “leão é perigoso”. Se for esse o caso, poderíamos observar o surgimento
de operações rudimentares no eixo sintagmático (da língua), tal qual faria um bebê no início
da aquisição da fala de palavras isoladas.
Podemos acompanhar em (19, 25 e 33) que a professora usa do artifício de tocar Ian
no corpo para trazê-lo de volta à atividade. Isso sugere que a professora interpretou a reação
de afastamento físico de Ian como sinal de dispersão, contudo, desperta a atenção o fato dela
ter tocado a criança ao invés de chamá-lo pelo nome.
129
mais toleráveis para a professora no sentido de lhe dar um retorno positivo da aprendizagem,
não valorizam o esforço do garoto em fazer uso da linguagem e da língua.
Ian privilegia o som através dos fonemas distintivos (o significante) entre os elementos
linguísticos que lhe são oferecidos, o que parece confirmar, pela ótica lacaniana, a primazia
do significante sobre o significado.
Lacan (LACAN, 1998b [1953], p. 278) refere que a linguagem é imperativa em suas
formas, mas inconsciente em sua estrutura, o que faz pensar que rastrear a gênese da
preferência de Ian pela sonoridade seria desperdiçar trabalho. Mas teria feito diferença nas
aprendizagens do menino se os educadores estivessem atentos à via sonora como facilitadora
do fazer pedagógico. Na Figura 6 encontra-se o resultado da atividade de colagem das
sequências de imagem.
Para afirmar que Ian está na linguagem seria preciso identificar as operações de
coordenação (sequência temporal) e associação (com outras informações, pensamentos e
131
acontecimentos). Este recorte de cena sugere que a coordenação, bastante limitada, está no
esforço do menino em manter reciprocidade nos turnos do diálogo. Ian não deixou nenhuma
fala da professora sem retorno e nem se sobrepôs à fala dela, esperando o seu tempo de entrar
na situação de intercâmbio.
No tocante à associação, percebe-se que o garoto tenta fazer relações com o conceito
“o leão é perigoso”, com acontecimentos vividos tais como o jogo de figurinhas (quando bate
a figura entregue pela professora com a mão em concha) e quando aponta o dedo para as
figuras (um procedimento de leitura usado com as crianças no início da alfabetização para
localizar e ajustar as letras da palavra e que tinha sido usado com ele em momento anterior a
este exercício). Porém, há que se levar em conta que são apenas inferências possibilitadas pela
análise das informações obtidas com a transcrição.
Para concluir, a análise da transcrição desta cena bastante pontual sugere que Ian está
fazendo um empenho para se inserir na linguagem. Todavia se depara com os equívocos de
interpretação de sua professora e os seus próprios. Tais equívocos poderiam ser minimizados
se a professora recorresse de forma insistente aos instrumentos de regulação e controle neste
que é um diálogo muito principiante. Por exemplo, quando o menino reproduzia os fonemas
mais destacados da verbalização da professora, entre eles [ε:a], poderia ter dito: – Você tá
falando leão, né? – De forma que ela pudesse confirmar seu entendimento (regulação e controle) e
com a nomeação da ação de Ian oferecer contexto de produção do discurso. A professora também
poderia ter agido do mesmo jeito quando Ian vira o rosto diante do som enfático da palavra “leão”.
Nesse momento, ela poderia ter dito – Você virou a cara porque tá com medo do leão, né? – Ao invés,
ela considerou o movimento de esquiva como falta de atenção. Observa-se uma intervenção dela nessa
direção na célula (29), quando pede: “Mostra pra mim o leão”.
Se a professora tivesse tido tais precauções, ela poderia ter instituído uma efetiva situação de
diálogo, suportando desvios de rotas, incongruências e novas suposições de sentido na intenção de
seguir os labirintos do raciocínio do garoto. Mas, ao contrário, ela se fechou numa proposta de
pergunta e resposta com um gabarito predefinido.
Tais embaraços do discurso que a condição de não falante de Ian revela em nível
exponencial, me levam a levantar a hipótese de que a ausência de mecanismos de produção de
contexto e de regulação e controle do que é falado, no caso do garoto, bem podem ter
provocado desistência dos protagonistas e obstaculizado uma apropriação mais eficiente das
propriedades da linguagem. Na sequência, partindo da perspectiva freudiana do conceito de
pulsão serão abordadas as ligações entre corpo e linguagem.
132
4. CORPO E LINGUAGEM
16
Na Edição Standard Brasileira o termo utilizado é “instinto”.
134
internas, como se pode verificar no seu texto de 1905 – “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”, como forma de diferenciá-las do estímulo, que é produzido por excitações
isoladas vindas de fora (FREUD, 1989, p. 157). Neste texto, além da fonte endógena, Freud
expõe duas outras propriedades que distinguem as pulsões entre si (fome, sede, energia
sexual): o objeto que a satisfaz e o alvo, que é aquilo que propicia a descarga da tensão.
Baseado nos casos desviantes de sua clínica, o autor desvenda que, diferentemente de
outras pulsões como a fome, o objeto da pulsão sexual não mantém ligação com a própria
pulsão; ao contrário, a pulsão sexual é independente, admitindo ampla variação de seu objeto
e de seus encantos (Ibid., 1989, p. 139).
A pulsão sexual também se diferencia das outras em relação ao alvo. Para esclarecer
este ponto, Freud toma como medida o alvo sexual normal que consiste na união dos genitais
no ato do coito, considerando que aqui ocorrem desvios de toda sorte. São as transgressões
anatômicas (designadas de perversões) quanto às regiões do corpo destinadas à união sexual.
A propagação do interesse sexual para outras partes do corpo que reivindicam ser
consideradas e tratadas como genitais vai garantir a característica parcial da pulsão sexual. As
partes do corpo que funcionam como uma parte do aparelho sexual é referida como “zona
erógena”. Todas estas especificidades dão um caráter multifacetado à pulsão sexual, sendo
mais próprio falar no plural, em “pulsões sexuais”.
Os germes de todas as pulsões sexuais parciais somente são demonstráveis na criança
e respondem pela fórmula freudiana de que “os neuróticos preservaram o estado infantil de
sua sexualidade ou foram retransportados para ele” (FREUD, 1989, p. 161). A sexualidade
infantil não se confunde com prazer genital, em outros termos, a pulsão não está dirigida para
outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é autoerótica (Ibid., 1989). As zonas erógenas
preponderantes na sexualidade infantil estão vinculadas à atividade oral e à anal (pulsões oral
e anal). Contudo, Freud destaca que apesar da preponderância das zonas erógenas, desde o
início da vida infantil aparecem componentes que envolvem outras pessoas como objetos
sexuais. São as pulsões do prazer de olhar e de exibir que compõem a pulsão escópica e as
pulsões de crueldade, na qual a pele diferencia-se dos órgãos sensoriais e se transmuda em
mucosa ((FREUD, 1989, P. 158).
No decorrer do desenvolvimento sexual infantil erguem-se forças que colocarão
entraves no caminho da pulsão sexual, estreitando o seu livre curso. Tais resistências vão se
colocar a serviço do recalcamento. São os sentimentos de asco, vergonha e as exigências dos
ideais estéticos e morais.
135
Retomo o aforismo de Freud com o qual iniciei esta seção: “a pulsão nos aparecerá
como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático” (Ibid., 1974a
[1915], p. 142). Com isso, o autor pretendeu nomear algo que fica no entremeio, o que não é
nem um estímulo endógeno nem representação psíquica (ou ideação, ou imagem), mas uma
composição nova entre os dois polos, uma inscrição do estímulo no aparelho psíquico: a
pulsão.
Também sintetizo as propriedades das pulsões a partir do que foi apresentado
anteriormente: a) origens e alvos muito numerosos; b) contentam-se com alvos parciais; c) são
independentes umas das outras e coexistem sem se influenciarem reciprocamente, estando
isentas de contradição; d) têm a capacidade de substituição, isto é, agir uma no lugar da outra
ou mudar prontamente de objetos; e) alcançam uma síntese provisória (ancoragem na
dialética) em etapas posteriores da vida do indivíduo; f) possuem destinos diversos, conforme
o arranjo particular a cada sujeito.
A pulsão não tem qualidade e só ganha sentido quando se atrela a uma história, ao
campo da linguagem. A história é que recobre a ação da pulsão, fazendo com que o sujeito se
fixe em determinados elementos. Dai Freud falar em destinos, trilhas que a pulsão percorre na
história do sujeito.
Embora nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” o autor tenha apresentado os
três componentes da pulsão (objeto, fonte, alvo) e introduzido superficialmente a questão da
pressão, é este último aspecto – o de força/exigência constante – que Freud recupera para
argumentar sobre as quatro vicissitudes da pulsão. A pressão é uma tensão que não cessa de se
apresentar, de pressionar, mesmo quando é descarregada, posto que nem tudo na pulsão é
136
circunscrito por uma representação, sempre deixando em seu rastro algo perdido. A
constância da pulsão também inviabiliza assimila-la a uma função biológica, a qual tem
sempre um ritmo.
No quadro seguinte encontram-se os componentes da pulsão, tal como Freud os
sistematizou em 1915:
É essa complexidade fenomenológica que fez Freud constatar que as pulsões são
inteiramente inabordáveis e que delas temos notícias tão somente por suas finalidades, ou
seja, pelas vias de satisfação que se dá em cada sujeito. A “reversão ao seu oposto” e o
“retorno em direção ao eu” são modalidades de defesa pelo deslocamento. A sublimação é um
modo de descarga pulsional que não produz sintoma, é a solução mítica encontrada por Freud.
Se o caminho da pulsão é inibido, a energia se fragmenta e trilha outros caminhos que
produzirão uma satisfação parcial. O recalque é o ponto fundamental para abordar o
inconsciente e vai responder pela elaboração futura do conceito de “pulsão de morte”.
Nesses anos de 1915, Freud tinha em mente que a satisfação da pulsão dava-se
segundo um binômio prazer/desprazer. Essa ideia é anterior a ele e surgiu no século XIII, com
a filosofia das Luzes. É uma visão que associa o bem ao prazer e o mal ao sofrimento e
encoraja o homem a progredir no bom senso. De maneira que a cada vez que o homem fizer o
mal, ele deve pagar com o sofrimento dosado e justo para se por novamente nos eixos
(MILLER, 2005). É este gradiente prazer/desprazer que está na base do recalcamento das
pulsões sexuais, o mecanismo que engendra as neuroses e os sintomas.
O recalcamento não está presente desde o início; ele “só pode surgir quando tiver
ocorrido uma cisão marcante entre a atividade consciente e a inconsciente” (FREUD, 1974f
[1915], p. 170). Para o Freud desta época, o recalque funda o inconsciente uma vez que, como
pressão vinda das proibições da sociedade, amortece a pressão da pulsão, mas não impede que
a pulsão continue a existir no inconsciente, “se organize ainda mais, dê origem a derivados, e
estabeleça ligações” (Ibid., 1974f [1915], p. 172).
O modelo explicativo de Freud, baseado principalmente na eficácia do recalque contra
o funcionamento indisciplinado da pulsão, está baseado na metáfora do Complexo de Édipo,
que promove a castração simbólica e introduz o sujeito na via do desejo. A via do desejo se
configura de diferentes maneiras para a criança pequena, a criança grande e para o jovem na
puberdade. Para a criança pequena predominam as pulsões parciais e o pluralismo das
correntes pulsionais; para a criança grande ocorre uma interrupção brusca do interesse na vida
sexual (período de latência) e para o jovem as pulsões parciais ficam subordinadas à
finalidade da reprodução, sendo que o jovem renuncia a seus primeiros objetos de amor – os
pais – em favor dos parceiros amorosos.
É, portanto, um modelo de sociedade “pai orientada”, onde os modelos de
identificação se referem à figura paterna.
sucessivo impacto, o organismo cria uma crosta, uma parte morta. Assim, o inanimado
garante a existência da vida.
Em seguida, Freud traça um paralelo com o ser humano. Neste caso, o escudo protetor
seriam os órgãos do sentido, que têm a função de filtrar os estímulos agressivos vindo do
ambiente. Mas quando a força do trauma é incomensurável, invadem através dos órgãos do
sentido o aparelho mental, desorganizando-o. Este se vê a mercê de um processo de descarga
que não passa pelo circuito da regulagem do princípio do prazer (recalque) que mantém a vida
e o desenvolvimento, mas numa tentativa de voltar a um estado de ausência de tensão. Freud
designou este processo de pulsão de morte.
Procurando ligar todas essas peças do quebra cabeças, principalmente em relação à
sexualidade infantil, de onde partiu primeiramente a noção de princípio de prazer, Freud
conclui que o maior trauma que gera um processo de excitação que não consegue se vincular
a outras energias é quando a criança se depara com a sexualidade do adulto, e não consegue
associar às suas teorias explicativas. Tem algo na pulsão sexual que não se submete à
produção de sentido (associação com ideias, interpretação) e continua insistindo visando uma
descarga repetida que obtém satisfação por intermédio do desprazer. É a pulsão de morte
funcionando independente, não vinculada, sem controle, para além do princípio do prazer.
Neste ensaio de 1915, Freud introduz a oposição entre a pulsão de morte e a pulsão de
vida, na medida em que esta última organiza a tensão em sua relação retrospectiva com o
inanimado. De outro lado, nenhuma experiência permite apreender a ação da pulsão de morte
em estado puro, com exceção talvez da epilepsia. Pode-se ter um alcance da pulsão de morte
quando ela se fusiona à pulsão de vida, sob a forma da pulsão de agressão. Seu caráter
composto revela duas tendências opostas: a) a de se apropriar do objeto, pertencente ao
registro da pulsão de vida, pois visa a unir-se a ele; b) e a de destruir o objeto que pode ser o
“eu” ou o outro/mundo externo.
Para finalizar esta seção, pode-se dizer que Freud apresenta a vida psíquica regida por
um dualismo pulsional, em que as pulsões sexuais (de vida) e as pulsões de morte encontram-
se sempre amalgamadas em proporções diferentes.
17
O objeto é um dos quatro componentes da pulsão (fonte, alvo, objeto, pressão). Lacan introduziu a letra “a”
após a palavra “objeto” (objeto a) para designar um objeto qualquer que o sujeito elege como causa do desejo e,
141
(objeto qualquer, causa do desejo para o sujeito), nunca o alcançando efetivamente, porque se
trata de um objeto perdido, e retorna para a superfície que é o verdadeiro alvo. O alvo não é
outra coisa senão esse retorno em circuito, que se satisfaz com a repetição (LACAN, 2008, p.
176). Lacan ilustra esta dinâmica referindo-se à pulsão oral, cuja fonte/borda é a boca. Aqui
não se trata de alimento, de lembrança de alimento, nem de cuidado da mãe, mas do seio na
condição de causa do desejo (objeto a). A pulsão contorna o objeto perdido seio, se
reencontrando repetidamente (pressão) nas tantas imagens e hábitos socialmente aceitos que
envolvem a boca, num retorno da pulsão para a própria zona erógena que se satisfaz (alvo)
pela fantasia ou alucinação da satisfação primordial. Eis o paradoxo da pulsão: busca a
realização, mas a cada vez se depara com o impossível.
O quadro a seguir apresenta a relação das pulsões parciais com seu objeto (a):
O que resta fora da borda do corpo pulsional, do corpo marcado pela linguagem é o
inassimilável, o obstáculo ao princípio do prazer, o trauma, o choque; é o real que só pode se
apresentar como ação, enquanto gozo. Cito Lacan (2008 [1964], p.165):
O real é o choque, é o fato de que isso não se arranja imediatamente. [...] O
real se distingue, como eu disse da última vez, por sua separação do campo
do princípio do prazer, por sua dessexualização, pelo fato de que sua
economia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossível.
Então, o gozo como real é proibido ao ser falante. Este é o período clássico do ensino
de Lacan que gira em torno do axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
A pulsão possui as seguintes formas de regulação: a) é modelada a partir da palavra (no
dispositivo da clínica); b) a significação é fálica; c) o querer gozar se manifesta sob a forma
de um querer dizer.
também para designar este objeto como perdido, ausente, primordial ao qual o sujeito retorna pela via da
fantasia.
142
a) O gozo
lado, o sujeito goza pelo seu desejo recalcado, através do sintoma. O Outro goza porque é
tributário da ordem, da lei, da autoridade, todas essas imposições que fazem o desejo do
sujeito recuar, ser recalcado.
A partir dos anos de 1970, a última década de seus seminários, Lacan se vê diante de
impasses clínicos e teóricos. Tais impasses estão ligados às novas configurações sociais que
surgem a partir da década dos setenta. Atualmente, existem indícios de que estamos vivendo
em uma sociedade que não é única e exclusivamente organizada em torno do complexo de
Édipo e novas formas de gozar estão surgindo. Nessa conjuntura, Lacan inaugura sua segunda
clínica: a do real.
b) O mais de gozar
Excerto 3 – Lucas
Lucas é um menino de doze anos de idade que estuda num 2º ano do ciclo II (4ª
série), não sabe ler nem escrever e identifica apenas algumas letras do seu nome; se sai
melhor nas contas de adição e subtração simples que lhe são oferecidas na forma de técnica
operatória; quando se depara com o enunciado de um problema, recusa-se a prosseguir no
exercício. Suas recusas não são simplesmente evasão ao desafio, seja de matemática, de
língua portuguesa ou nas atividades e brincadeiras de grupo, mas se apresentam sob a forma
de acessos de fúria.
Nessas ocasiões, parte para cima dos adultos e das crianças, perdendo o controle e
colocando-se a si e aos outros em risco. É preciso mais de um adulto para conter o menino e
eles saem da confusão com marcas de chutes e arranhões. Passado o episódio crítico,
percebe-se um mesmo roteiro: algumas vezes ele fica abatido fisicamente, como se suas
energias tivessem se esvaído; outras, ele consegue pedir desculpas a quem ofendeu e agrediu;
e mais frequentemente, desaparece por dias da escola.
Não se vincula a nenhuma professora; não se intimida diante dos educadores homens;
sua vontade é soberana.
É uma cena que se repete para o desespero de professores, educadores e alunos, mas
não para ele, que age como se não tivesse acontecido nada. E de fato, como nós educadores
144
não conseguimos, nem para nós mesmos, nomear o que se passa, Lucas escapa de todos os
pontos de ancoragem, de todas as nossas tentativas de colocar em palavras, para ele
inclusive, do que se trata.
linguagem, não quero dizer que a empreguemos. Nós é que somos seus empregados. A
linguagem nos emprega, e é por aí que aquilo goza” (LACAN, 1992 [1970], p. 62).
Dito de outro jeito, não comparece o sujeito do desejo para romper os muros da
linguagem, fazendo intervir o sentido através de metáforas de felicidade, do perigo, do prazer,
do desprazer18. Ao invés, surge um ser sujeitado a um gozo que é pura ação. Um gozo que
excede o corpo pulsional (do desejo) e por isso está além do principio do prazer; um mais de
gozar.
O mais de gozar equivale à ideia freudiana de desfusão pulsional ou à ação livre da
pulsão de morte. Freud já tinha dado notícias desta peculiaridade quando abordou “Nos três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” a pulsão de crueldade ou de agressão, a qual se
diferenciava dos órgãos sensoriais para se transformar em mucosa. Posteriormente, ao falar do
amálgama entre pulsão de vida e pulsão de morte no caso do par de opostos sadismo e
masoquismo, o autor mostra o caráter composto da pulsão de agressão cujo alcance se
evidencia nos casos graves da neurose obsessiva. Já Lacan, em um relatório apresentado em
congresso de 1948, tinha tratado da agressividade como um fenômeno que comparece na
experiência analítica através de imagens de desmembramento corporal, mutilação,
desagregação, explosão do corpo, devoração, castração, que ele reuniu sobre a rubrica de
“imagos do corpo despedaçado” (LACAN, 1998f, p. 107). Nas palavras do autor, a
agressividade é a tendência de um modo de identificação narcísico. Nesses anos, o corpo
estava sendo entendido como projeção de superfície, muito ligado ao imaginário, à fantasia,
mas também com liames no simbólico, pois se podia falar dessas imagens projetadas do corpo
numa análise, de modo que o sujeito podia inseri-las numa cadeia significante, por exemplo.
Na contemporaneidade, fatos encontrados na clínica e no dia a dia se contrapõem à
hipótese de articulação entre as pulsões de vida e de morte. Tais fenômenos sugerem que o
corpo passa a ser tomado como uma entidade superficial próxima da anatomia, do inanimado,
sujeito à ação livre da pulsão de morte, com predominância de vivências de despedaçamento e
de destruição do outro. Nesse sentido é que a pulsão de morte, agindo independemente das
pulsões sexuais, tem equivalência com o mais de gozar. Contrastando com as pulsões sexuais,
tem-se a seguinte configuração para a pulsão de morte enquanto mais de gozar:
18
A discussão do gozo do neurótico como gozo que supõe diversas imagens (morte, felicidade, loucura) é
encontrada em Nasio, (1993).
146
É como mais de gozar que se pode abordar o jeito de funcionar do menino Lucas
apresentado no excerto 5. Primeiro, o garoto não se vincula às figuras das professoras,
transferindo para elas e para os objetos de conhecimento (escrita e leitura) as pulsões
amorosas comumente dirigidas à mãe; tampouco vê nos educadores homens figuras de
autoridade que possam se assemelhar ao pai, de forma que por temor de uma castração
simbólica consiga refrear seus acessos de raiva. O garoto não constituiu um desejo de saber e
o simbólico fica esburacado. É o indício de uma desorientação pulsional.
Segundo aspecto, os acessos de fúria do Lucas colocam literalmente seu corpo físico e
o dos outros em risco de vida. É pura ação sem intencionalidade. A pulsão de agressão age de
forma desvinculada e não se endereça a um objeto, que poderia ser o outro ou seu próprio
corpo como imagem narcísica.
Terceiro, depois das descargas o garoto age como se nada tivesse acontecido,
mostrando que não existe simbolização, sentido, imagens de sofrimento.
Já em Ian (excerto 4) o trauma produzido pela paralisia cerebral e as consequentes
sequelas que resultaram, entre outras limitações, em sucessivas crises de epilepsia é uma
vivência de morte, análoga a descrita por Freud a respeito dos acidentados de guerra. A morte
continuou rondando Ian mesmo quando ele entrou para a escola, contudo, sem o peso
destrutivo em relação ao outro, conforme indiciado em Lucas. A compulsão à repetição pode
ser evidenciada na fixidez do circuito da pulsão, preponderantemente na parte do corpo
relativa ao ouvido (som, voz), resistindo à sua ligação na cadeia significante. Ian também não
conseguiu produzir sentidos; tornou-se um corpo superfície que se expressa pela ação, pelos
gestos. A insistência da pulsão de morte está na impossibilidade dele ascender ao simbólico, à
leitura e à escrita.
Esta seção procura apresentar em termos gerais as ideias de Freud com respeito à
dinâmica pulsional que oscila entre noções advindas da física (catexia), como apresentados
pelos textos de 1915 – “Repressão” e “O inconsciente” – e acepções oriundas do campo da
147
O autor dizia que mesmo no inconsciente uma pulsão recalcada deveria estar ligada a
um estado afetivo (uma catexia), caso contrário nada se poderia saber sobre ela. Catexia é a
energia libidinal (pulsão sexual) investida num objeto, portanto, diferente de figuração. E
mesmo quando ele se refere a afetos e emoções, que poderiam, plausivelmente, possuir “uma
cara”, uma imagem, uma figuração, ele o faz do ponto de vista de “processos de descarga”
(FREUD, 1974f/1915, p. 204), ou seja, de uma energia que pressiona para sua realização, para
o seu esgotamento.
Na repressão, a catexia (energia libidinal) se apega a uma energia substitutiva, que se
relaciona àquela que foi rejeitada; e em vista da distância com a energia repudiada – um
substituto por deslocamento – consegue passagem para o nível da consciência (FREUD,
1974c/1915, p. 209), através, por exemplo, de um sintoma.
Freud constatou essa dinâmica pulsional que atua por disfarce, por substituição, tanto
nas manifestações patológicas (nos sintomas histéricos) quanto no dia a dia corriqueiro das
pessoas (nos sonhos, nos lapsos, nas pilherias), consolidando o seu argumento do inconsciente
como um sistema de validade universal, para todos os indivíduos e não somente os neuróticos.
b) Deslocamento e condensação
o caso de Lacan ter tomado os mecanismos do processo primário descritos por Freud
(condensação e deslocamento), onde o inconsciente encontra seu regime, como efeitos da
linguagem, principalmente a metáfora e a metonímia.
Em outros termos, os efeitos de substituição e de combinação do significante nas
dimensões sincrônica (presente) e diacrônica (no tempo), tal qual eles aparecem no discurso
corrente e no pensamento consciente funcionam de acordo com as propriedades da metáfora e
da metonímia. Por exemplo, voltando ao lapso verbal de Freud, a dimensão sincrônica (atual)
é a conversa dele com outro médico no trem, quando ele esquece o nome do artista sobre o
qual comentavam, imediatamente depois de terem falado sobre a sexualidade e o respeito
devido aos médicos pelos turcos da Bósnia. A dimensão diacrônica (evento passado) é a
relação com o nome esquecido do artista: Signorelli
d) Subjetividade em psicanálise
Em 2009, Paulo Eduardo estudava no 1º ano do ciclo I e não tinha completado 7 anos
no mês de março, quando fui chamada pela equipe escolar para discutir e prover
encaminhamentos para a situação.
Os educadores traziam as seguintes queixas: Paulo Eduardo não se submetia às regras
da escola e não cumpria os combinados da sua classe; xingava, cuspia e dava pontapés nos
adultos, apenas preservando sua professora desses ataques; em classe fazia uma espécie de
arrastão com o material dos outros alunos; não permanecia sentado na carteira; recusava-se a
fazer registros e rasgava o que tinha feito; apenas ouvia a aula e participava das atividades
oralmente; não tinha caderno; conseguia ficar dentro da classe até o horário de recreio,
quando então escapava da sala sem pedir permissão para a professora; já fora da classe,
corria pelos corredores e demais espaços e, numa das ocasiões, os educadores tiveram que
buscá-lo para além dos muros da escola.
No mês de março, as sondagens feitas pela professora acerca dos conhecimentos de
língua portuguesa e matemática indicavam que o aluno não conhecia as letras do alfabeto e
não identificava os números. Segundo observação da professora, Paulo Eduardo resistia a
entrar no espaço da biblioteca escolar, mas tinha muita informação de letramento. Algumas
vezes conseguia reparar seus atos, pedindo desculpas para algumas pessoas que julgava ter
ofendido.
A família e a criança eram assistidas por uma rede de proteção social, jurídica e de
saúde mental devido à condição de vulnerabilidade e risco a que estavam expostos. A esta
150
Analisando a figura, pode-se dizer que as duas escritas do menino (do lado direito e
esquerdo da folha) são dois significantes e, por isso, vazios de significação. Contudo não dá
para ignorar que o nome “Paulo” escrito do lado direito da margem, em oposição à forma
convencional da escrita alfabética, que ele conhecia como bem avisou sua mãe (“Escreve
direito, Paulo. Você sabe escrever”), era a manifestação irrefletida de um sentido do qual
nenhum de nós, nem mesmo ele, tinha acesso. O nome “Paulo” espelhado era um “isso”; era a
precipitação do sujeito do inconsciente na materialidade da escrita. Um efeito de surpresa que
aparece na brecha dada pelo pretenso discurso racional; digo “pretenso” porque os adultos
estavam ali “batendo cabeça” para compreender a situação que fazia com que o menino agisse
daquele jeito desregrado e, quando muito, consideraríamos aquele “Paulo” escrito do avesso
como erro.
Se considerarmos que o sentido aparece na combinação entre os elementos sincrônico
e diacrônico, a situação atual era a de um garoto que quebrava regras, avançava sobre as
pessoas e se colocava como “do contra”. Acerca dos acontecimentos pretéritos (diacronia) não
tínhamos notícias. A possibilidade de fazer a ligação entre o significante do aqui-agora e o
significante da “outra cena” escapou. Nos anos posteriores, Paulo Eduardo se tornou um
152
escravo de forças destrutivas, um menino da “pá virada”. Não conseguiu aprender a ler nem
escrever com fluência – uma alfabetização esburacada, funcional – e sua relação com as
pessoas das escolas por onde andou e com o conhecimento foram permeadas de embates
determinados, ao final das contas, pelo predomínio do gozo sem limites, pura ação; um mais
de gozar.
19
A concepção de formações narcísicas é encontrada em “O instinto e suas vicissitudes”, (FREUD, 1974a, p.
153).
153
recalque traz alívio e satisfação, mas, também conflita com as aspirações morais e estéticas do
eu, causando desprazer.
É condição do recalque que as forças motoras do desprazer tenham mais vigor do que
o prazer obtido da satisfação, isto é, que se estabeleça uma renúncia à fruição (FREUD,
1974f/1915, p. 170). E por que a exigência pulsional concederia fazer uma renúncia ao
princípio de prazer? A resposta adiantada é: obtendo algo em troca, mas um algo que é apenas
a sombra da satisfação obtida com o objeto primordial. Esta trama é apresentada no complexo
de Édipo.
a) Complexo de Édipo
Para dar conta de sustentar o caráter determinista que as pulsões sexuais desempenham
na constituição da subjetividade, Freud recorreu a uma peça de teatro da tradição cultural –
Édipo rei – que coloca em cena o desejo sexual pela mãe e o desejo assassino pelo pai rival.
Ele viu nesta tragédia o destino universal da sexualidade infantil e designou de complexo de
Édipo20 o conjunto das fantasias e dos afetos (descargas) inconscientes em que a criança se
enreda com as figuras parentais, no qual incide a forma primordial do desejo infantil.
Freud também encontrou na mitologia menções fartas ao valor dado ao órgão genital
masculino, o que o levou a construir sua formulação de complexo de castração 21, uma fantasia
infantil de ameaça (para os meninos) e de concretização da perda do pênis (para as meninas),
que impele as crianças a frearem suas pulsões dirigidas ao casal parental, provocando uma
interdição.
A consequência de tal interdição é a reorientação pulsional que segue duas direções: a)
para objetos substitutos de satisfação por meio de identificações dessexualizadas e
sublimadas; b) recalcamento dos impulsos (FREUD, 1976 [1924], p. 221).
A pulsão redirecionada para objetos quaisquer do mundo em troca de uma promessa
de satisfação dá origem ao desejo: um conjunto prenhe de expectativas e fantasias que pode
assumir qualquer feição na ordem simbólica (sintoma, sonho, escrita) ou na imaginária
(prestígio que advém com as posses materiais).
20
Segundo o editor inglês Alan Tyson o termo complexo de Édipo aparece pela primeira vez em 1910, no ensaio
“Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do amor)”(FREUD, 1970,
p. 154).
21
O termo complexo de castração é discutido no ensaio “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”,
de 1910 (FREUD, 1970b, p. 88).
154
dois movimentos: a) trocar de objeto pulsional, da mãe para o pai, e b) se identificar com a
castração materna. Assim, nas palavras de Freud, a menina “aceita a castração como um fato
consumado, ao passo que o menino teme a possibilidade de sua ocorrência” (FREUD, 1976
[1924], p. 223). Se o temor da castração está excluído para a menina, cai também um motivo
poderoso para o estabelecimento de um supereu que limita e proíbe o livre fluir da pulsão. De
outro lado, a ferida narcísica da menina desliza simbolicamente num tipo de compensação que
consiste em ser um dia a mãe de um menino que lhe restitua a potência (o falo). Por isso o
conflito edípico na mulher tende a se prolongar e, às vezes, nem se resolve. No caso de um
desenlace promissor, a menina se identifica com a mãe castrada sem desmerecer essa
condição e procura uma compensação dirigindo suas pulsões não diretamente para o pai
(porque como castrada sabe que ele é da mãe), mas para objetos valorizados por ele.
Mesmo com todo rigor e minúcia epistemológicos de Freud, ainda assim, diante da
diversidade de arranjos parentais nos dias de hoje, sua construção teórica apresentada numa
escrita quase etnográfica, em que o masculino prevalece na organização da sexualidade e do
devir humanos, soaria como fabulação. Lacan tratou de reler o complexo de Édipo e o
complexo de castração a partir de uma dimensão metafórica que é ela própria função de
linguagem. E o primeiro passo foi o de substituir a figura encarnada do pai por uma lógica de
função paterna.
Antes de abordar a função paterna vou retomar as crianças apresentadas no excerto 1
para fazer algumas inferências a partir das formulações freudianas acerca da resolução
edípica.
c) Os informantes do excerto 1
Nele, relatei uma situação na qual um grupo de crianças, entre elas uma menina, já
dominava o código alfabético, mas tropeçava no entendimento do conceito “pais”. Eu
conjecturei que as crianças tinham logrado atravessar a operação de recalcamento e o que
sobrou de resto não simbolizado fixou-se em partes do corpo (olhar, ouvido), prevalecendo no
momento da significação da palavra.
Agora se pode acrescentar outro ingrediente à façanha das crianças, mas um que lhe é
anterior: o cerceamento da pulsão, transformada em desejo, e a sua substituição sublimada
pela escrita. De algum modo, num caminho absolutamente singular e do qual só conseguimos
ter visibilidade pelos efeitos, cada um dos meninos e a menina conseguiu resolver o complexo
de Édipo, através dos caminhos apontados por Freud. No âmbito do prognóstico apenas, se o
156
processo for “idealmente levado a cabo”, a menina vai buscar ser reconhecida pela sua
esperteza, inteligência, dedicação aos estudos; o menino vai usar o conhecimento como sua
potência, assumindo-se sabido.
E se nos lançarmos a especulações é curioso notar, no caso da menina, a derrapada em
relação ao significante “pais”, o que parece exemplificar a ambiguidade da adesão da mulher
à lei, pois ela deriva para o sentido de território, nação, algo que abarca e contém, como um
ventre materno (figura com quem meninas se identificam). Já para os meninos a palavra é
diretamente ligada ao nome do pai (figura com quem meninos se identificam).
No que segue, apresento as formulações de Lacan acerca do desejo.
Para substituir a figura encarnada do pai por uma lógica de função22 paterna, Lacan faz
dois movimentos: primeiro, com a expressão “função paterna” não importa se o pai está
presente ou não, se tem ou não qualidades, o essencial é a sustentação simbólica feita por
qualquer pessoa (outro) da proibição da realização da pulsão no real (lei geral da cultura).
Segundo, com a noção de metáfora, enquanto um significante que substitui outro significante,
Lacan troca a importância do materno pela prevalência do paterno como condição exclusiva
da constituição da subjetividade (a cadeia significante), metáfora que ele designa de nome do
pai. Cito suas palavras: “[...] O pai é um significante que substitui outro significante. [...] A
função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro
significante introduzido na simbolização, o significante materno” (LACAN, 1999 [1958], p.
180).
Dito de outro jeito, mesmo que uma criança não tenha um pai de carne e osso, se a
mãe (ou qualquer outra pessoa que ocupar seu lugar) se perceber castrada, incompleta, sem
por isso se desmerecer, e for capaz de abrir mão do filho ou da filha como objeto que a
complete, buscando a sua satisfação em outros objetos, ela se colocará como uma mulher que
transmite a palavra do pai, que honra o seu nome, uma mãe que exerce a função paterna.
Quando se diz que a mãe procura satisfação para suas pulsões em outros objetos ela
toma como medida de sua falta ou de sua incompletude algo bem concreto que marca a
22
Função é um conceito da matemática. A função é definida por ter leis generalizadas e propriedades
específicas. Conforme enciclopédia livre virtual Wikipedia.
157
diferença com o sexo oposto, o pênis. Se ela for uma mulher que está inserida na estrutura da
linguagem (que se institui por pares de diferença) e, portanto, opera com metáforas, o órgão
genital masculino será substituído por um símbolo qualquer de potência. Esse símbolo é
encontrado nas diversas culturas, e por isso sua característica universal, na forma de
protuberâncias enrijecidas – o falo. De maneira que o falo se torna ao mesmo tempo um
símbolo e objeto do desejo.
Poderíamos raciocinar: fica claro porque a mulher se põe a procurar o falo como
objeto de desejo; ela não tem um pênis e vai ter de se satisfazer com algo ortopédico. Mas o
que dizer do homem que já nasce com um pênis, o que é que ele tem de procurar? É aí que
entra a lógica lacaniana. Não é porque o homem tem um pênis que ele possui um falo, a
potência, o poder, a força23. Então, o que o menino tem de procurar é o objeto causa do desejo
da mãe. Por isso Freud e Lacan afirmaram taxativamente que a resolução edípica no menino é
mais complicada do que na menina. Vale ler o que Lacan escreveu sobre isso:
A pergunta é: qual é o significado? O que quer essa mulher aí? Eu bem que
gostaria que fosse a mim que ela quer, mas está muito claro que não é só a
mim que ela quer. Há outra coisa que mexe com ela – é o x, o significado. E
o significado das idas e vindas da mãe é o falo. (LACAN, 1999 [1958], p.
181).
23
É ilustrativa uma série animada da década dos 1980, chamada He-man e She-ra. Quando estava prestes a se
transformar em poderoso, He-man dizia: “Pelos poderes de Grayskull! Eu tenho a força!”, ou seja, mesmo sendo
um menino/homem que nasce com o genital visível, ele não era potente o tempo todo e precisa evocar a força
brandindo uma espada. Já She-ra quando se transformava em toda poderosa disparava: “Pela honra de Grayskull!
Eu sou She-ra!”, isto é, seu ser no mundo era sustentado pela honra de portar o nome do pai, empunhando a
espada mágica.
158
Nesse aspecto, o desejo é sempre inalcançável porque nunca se tem muita clareza
sobre que tipo de reconhecimento satisfaz a mãe.
b) O desejo de saber
É possível concluir que Lacan radicaliza a posição de Freud, colocando o falo como o
significante mestre da cadeia simbólica – porque ele se impõe como diferença – e faz o
objetivo primordial da tópica do supereu (interdição do incesto) se transformar em campo da
linguagem (impossibilidade lógica).
É a função metafórica da linguagem (cadeia significante), única para cada sujeito, que
constitui o saber inconsciente. Por isso o desejo é, também, um desejo de saber, de decifrar o
que o outro/Outro deseja do sujeito.
Na continuidade, vou retomar os excertos 2 e 4, respectivamente o de Jonathan e o de
Ian para fazer inferências acerca do desejo, como em Freud, e da causa do desejo, em Lacan.
Começo por Jonathan – o garoto que teve paralisia cerebral e não andava,
movimentava as mãos com precariedade e tinha verbalização lenta – e cujos embaraços com a
leitura e a escrita puderam ser contornados com algum atraso.
Jonathan ilustra uma resolução edípica tomada como operação de linguagem, a qual
introduz o sujeito no circuito desejante. Quando o menino conseguiu se perceber lendo e
escrevendo, ali na nossa frente, ele, enfim, se conectou com a causa do desejo de sua mãe, um
desejo que lhe ofertou uma potência fálica com o qual ele se identificou em substituição a
uma impotência motora concreta, resultante de um trauma real.
O garoto precisou para isso da ação do outro encarnado que ocupasse o lugar
simbólico de alguém que desejasse por ele, alguém que apostasse, ocupando o lugar do desejo
da mãe. Essa posição foi assumida por P2.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que Jonathan se esforçava em assumir-se potente
na leitura e na escrita, deixando a sua impotência física eclipsada. É desse patamar que se
podem entender todas as suas tentativas em participar da aula, responder às questões da
professora, inclusive passando à frente dos colegas de classe e não se deixando distrair pelos
interesses de P2, a não ser quando ela também empunhou o objeto de seu desejo: as letras.
159
Já para Ian a situação é totalmente oposta e apesar de ter passado pelo trauma real da
paralisia cerebral, pelo menos em nomenclatura semelhante ao de Jonathan, a consequência
no seu desenvolvimento foi a não aquisição de fala, ficando toda a apropriação de
conhecimentos, incluindo a escrita, inviabilizada. O trauma orgânico cujo desfecho interferiu
na possibilidade de aquisição da fala acabou por desarranjar as posições na dinâmica familiar,
podendo se conjecturar que Ian não encontrou o seu lugar em relação à causa do desejo da
mãe.
A partir da análise do material, pode-se concluir que Ian não constituiu inconsciente;
não passou pela trama edípica que causa o desejo. Ficou estagnado num tempo anterior ao
complexo de Édipo, preso na rede exclusivamente imaginária do outro materno que não
conseguiu, ele próprio, ultrapassar o nível ambientalista, concreto, para operar no campo da
linguagem com a função da metáfora paterna.
Esta conclusão parece contrariar o achado anterior na análise da transcrição (Quadro
12) em que se observava o garoto fazendo tentativas rudimentares de operar na linguagem.
Entre elas: manter reciprocidade nos turnos do diálogo, seguir as pistas dos significantes,
associar as atividades do momento com experiências recentemente passadas, estabelecendo
vínculo temporal, distinguir entonações de interrogação. Parece-me, portanto, que aquela
centelha inicial para associar e coordenar eventos, informações, sons, entonações, ação, de
alguma forma se perdeu.
E se Ian não conseguiu operar no plano da linguagem, articulando língua e fala, seria
impossível mesmo que ele adquirisse a escrita. Para explicitar esta noção, faço um
paralelismo. Pode-se adquirir a escrita sem se fazer uso do ato da fala, como atesta uma
pessoa surda que se torna muda, se expressa por gestos ou por língua de sinais e consegue
aprender língua portuguesa escrita. Isto porque, de alguma forma, ela conseguiu operar com
as propriedades estruturais da linguagem (coordenação e associação).
Ian está imerso em um discurso invariável, onde ele é tão somente falado; falado por
outro que só tem a ecoar o horror, aquilo que não tem nome e está fora da linguagem.
Levando em consideração o conjunto das informações, é doloroso sustentar, mas não
dá para ignorar: Ian permaneceu no nível de comunicação própria das espécies naturais, o
qual funciona mediante uma correlação fixa entre os sinais e a realidade que eles expressam.
Não é o puro orgânico, porque antes do acontecimento traumático o menino foi abarcado
dentro de expectativas parentais com intenções simbólicas, mas sim, na modalidade do sinal,
daquilo que Lacan chama de símbolos petrificados e que têm raízes naturais.
160
Por isso Ian se saia bem com o uso dos gestos (ação) para sinalizar e ignorava o que
era apresentado até mesmo no concreto ou literal – o próprio objeto, fotografia. E nós
educadores entendíamos que era resistência, birra, má vontade. Tratava-se de uma falta
estrutural, a falta da lógica de linguagem.
No entanto, era possível identificar que algo animava Ian, o empurrava para a ação;
esse algo era o som em seus diversos matizes – voz, música, prosódia – e parece que, de fato,
havia uma predominância da pulsão invocante. Contudo, a pulsão não se enlaçou aos
significantes para constituir um “eu”; ao invés, cristalizou-se como gozo no corpo físico, à
semelhança da prematuridade psicofisiológica vivida por um bebê.
5. FORMAÇÕES NARCÍSICAS
Em 1936, Lacan fez sua primeira exposição em um congresso da IPA com “O estádio
do espelho”, apresentando conceitos extraídos dos estudos de Henri Wallon (1879-1962),
filósofo e médico francês, contemporâneo do psicanalista, que também fez carreira como
psicólogo e educador. O estádio do espelho se configurou como a primeira intervenção de
Lacan na teoria psicanalítica.
O estádio do espelho se relaciona aos seguintes tópicos: a) situa-se no período infantil
de seis a 18 meses; b) antes de a criança utilizar a linguagem, num tempo pré verbal; c)
consiste numa antecipação da aquisição da unidade funcional do corpo do infante captada na
relação intersubjetiva.
Em um trabalho de descrição minuciosa, Wallon investigou o comportamento da
criança diante de sua própria imagem refletida em um espelho. Tal experiência permitiria à
criança unificar seu ser físico e adquirir a noção do próprio corpo, segundo um processo de
substituição progressiva das imagens do ponto de vista sensório motor por representações
virtuais. Para a criança de até um ano, a ação de “multiplicar, por intermédio das
representações, o jogo cada vez mais diferenciado das distinções e das equivalências” é o
163
24
Num bebê cego, por exemplo, essas imagens são refletidas principalmente pela voz; num bebê surdo, ao
contrário, predominantemente pelo olhar.
164
mais uma variedade de gestos, num jogo sucessivo revelador de um dinamismo libidinal. É
lembrar o bebê Cauê (excerto 3) que eu encontrei na unidade básica de saúde. Seus
movimentos espontâneos captaram minha atenção e me fizeram dirigir-me até ele. Coloquei-
me na altura do seu olhar e juntando com a melodia da minha voz eu criei um campo de
atração mútua no qual permanecemos em júbilo por um tempo, numa espécie de espelho
virtual.
Este processo de identificação é o único capaz de explicar o reconhecimento pela
criança de sua unidade corporal. A partir dele, a experiência especular se inscreve no
inconsciente, e a posição de alienação da criança em relação à sua imagem determinará nela a
aspiração a uma imagem ideal (eu ideal), por detrás da qual se reconhece as feições do
supereu.
A identificação com o olhar do outro dirigido para si, com seus efeitos de boa ou de
má imagem, determinará a problemática narcísica.
Portador ao mesmo tempo da marca do imaginário e da marca da exterioridade, o eu
especular dá origem ao drama humano de escapar da armadura assumida de uma identidade
alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o desenvolvimento posterior (LACAN,
1998a [1949], p. 100).
O termo narcisismo se origina na psiquiatria por volta de 1899 em função dos estudos
da sexualidade humana. O termo narcisismo em psicanálise designa uma atitude pelo qual um
indivíduo ama a si mesmo, trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o corpo de um
objeto sexual é comumente tratado. O narcisismo se definiria como ser apaixonado por si
mesmo, segundo o mito grego do jovem Narciso, fascinado pela própria imagem.
De forma que narcisismo indicará: a) uma fase necessária da evolução da libido25,
antes que o sujeito se volte para um objeto sexual externo; b) um estádio intermediário do
desenvolvimento da libido entre o autoerotismo e a escolha de objeto; c) a constituição da
imagem de si mesmo.
25
O termo libido advém da literatura latina de inspiração erótica. Na abordagem freudiana a noção sofre
desenvolvimentos ao longo do tempo. Num primeiro momento, a libido é o resultado do processo de elaboração
da excitação orgânica em excitação psíquica.
165
a) Autoerotismo
b) Escolha objetal
A escolha objetal é de algum modo uma escolha narcísica, pois leva em conta a
semelhança que o objeto guarda com a pessoa. Ela se dá a partir de diferentes dinâmicas para
o menino e para a menina.
O indivíduo do sexo masculino, pela sua condição de possuidor da potência (o pênis)
se imagina supervalorizado e transfere essa valoração sexual primeiramente para a mulher que
cuida dele, isto é, para um objeto de amor e, posteriormente, para a sucessão de substitutos
que tomam o seu lugar; é o estado da pessoa apaixonada (FREUD, 1974b [1914], p. 91).
O indivíduo do tipo feminino, por não possuir a potência do órgão sexual, transfere a
libido para o conjunto do seu corpo, com a consequente intensificação do narcisismo.
166
Diferente do homem que procura um objeto de amor, a mulher acaba se colocando como
objeto de amor, em posição de ser amada.
Os deslocamentos da libido do eu para o objeto, e vice-versa, cujos efeitos atingem
principalmente a criança e contra os quais ela procura proteger-se de acordo com os
mecanismos de que dispõe, pode ser isolada sob a forma do “complexo de castração” (nos
meninos, a ansiedade em relação ao pênis, nas meninas, a inveja do pênis) (FREUD, 1974b
[1914], p. 109). Este momento está ligado ao complexo de Édipo e aos destinos daí
decorrentes, com a entrada da criança na dialética do desejo.
A seguir no excerto 7 apresento uma narrativa que envolve a informante Maria Isabela
para examinar os impasses do estádio narcísico.
desconhecido por mim, achei prudente me munir de algum conhecimento teórico que
pudesse orientar minha investigação. Retomei a leitura de um caso de mutismo, da
psicanalista Maud Mannoni, a respeito de um menino de quatro anos e meio que, segundo
hipótese da analista, estava ligado a conteúdo de morte.
Foi burilando essas ideias que conheci Maria Isabela, primeiro no refeitório da escola,
quando observei o seu comportamento à distância. Ela estava à mesa com um pequeno grupo
de meninas. Ao fim de um tempo, levantou-se e foi sozinha para o banheiro. Na saída deste,
algo na sua postura atraiu meu olhar: ela parecia andar nas pontas dos pés, como alguém que
não quisesse fazer barulho; ideia essa minha um tanto despropositada, uma vez que o barulho
que ela fizesse não iria fazer diferença na algazarra da hora do lanche. Terminado o
intervalo, subi para sua sala de aula26. Levava comigo meu caderno e uma caneta
esferográfica azul. Sentei-me no corredor entre as fileiras de carteiras, do lado esquerdo da
menina, que fazia dupla com Rafaela. Maria Isabela não recusou o contato comigo, mas não
me respondia às perguntas, sorrindo a cada uma delas. Rafaela era sua porta-voz e me
informou que a amiga não gostava de falar e que só falava com ela.
Pedi para Maria Isabela me mostrar seu caderno, ela o abriu e me mostrou. Pedi-lhe
para virar as folhas para que eu pudesse ver as lições. A menina atendeu minha solicitação,
mas o caderno estava em branco, com um rabisco ou outro pelas folhas. Pedi-lhe para
cochichar o seu nome no meu ouvido, ela sorriu e não me atendeu. Perguntei-lhe se o gato
tinha comido a língua dela; ela apenas sorriu. Então lhe ofereci o meu caderno e a minha
caneta para escrever o meu nome (Marisa)27.
Escrevo a letra m e, na continuidade, Maria Isabela faz um rabisco parecido com a
letra a em maiúscula. Escrevo r e a menina completa com três garatujas, a última semelhante
a um i. Escrevo o s e ela completa com nova garatuja (1). Quando lhe peço para escrever o
seu próprio nome, ela faz dez garatujas, todas semelhantes (2).
Maria Isabela pega um lápis verde e aproveito para pedir-lhe para desenhar uma
boneca. Pergunto: – Você tem boneca? – Ela faz um movimento com a cabeça como se
dissesse “não”. Coloco seu gesto em palavras: – Então, você não tem boneca! – Ela balança a
cabeça afirmativamente. Diante da contradição das respostas, faço a mesma pergunta
novamente, ela confirma com a cabeça e para eu sair do embaraço, lanço outra pergunta: –
Você tem cachorro? – Maria Isabela balança a cabeça numa negativa. Então peço para ela
desenhar uma boneca. Ela começa com um círculo pequenino com dois círculos dentro. Falo:
– É a cabeça da boneca. Ela se entusiasma e faz um traço vertical. Falo: – Você tá
desenhando o corpo. E assim sucessivamente, até ela colocar um círculo naquilo que eu tinha
chamado de pernas. Digo: – Você tá botando o pé da boneca. Ela demonstra contentamento.
E do lado da boneca (3), desenha espontaneamente outra estrutura, que se me assemelhou a
uma figura humana, apenas com as partes da cabeça, dos olhos e da boca visíveis. O restante
do “corpo” não tem organização. Vira-se para mim e diz: – Menina (4). Falo: – Você se
desenhô? Ela sorri satisfeita.
Observei que o desenho da boneca, apesar de rudimentar, mostrasse maior integração
do traçado do que o desenho de si própria, com as partes bem desconectadas, como se não
tivesse construído um esquema integrado do próprio corpo.
Depois dos desenhos, um grupo de crianças aproximou-se para escrever no meu
caderno. Enquanto eu estava intertida com eles, Maria Isabela riscou por cima do desenho da
boneca e disparou a fazer pequenos borrões com o lápis verde e depois com o rosa. Cutucava
o meu braço e apontava para os borrões. Eu falava: – Você tá desenhando! E voltava a minha
atenção para os outros alunos, ela me cutucava novamente, demonstrando um ativismo e uma
26
A narração que segue é uma construção a partir do relatório técnico sobre Maria Isabela, datado de 14/4/2010.
27
A produção gráfica de Maria Isabela está ao fim deste trecho da narrativa, com a respectiva notação numérica
da sequência dos grafismos.
168
iniciativa bastante intrigantes para uma menina que tinha se colocado muito passiva diante
das minhas solicitações.
Entre os borrões, um do lado inferior direito despertou meu interesse. Eu não tinha
pedido para desenhá-lo nem percebi o momento em que foi feito. Eu visualizei ali uma figura
com um manto e um capuz (5). Pensei que pudesse ser algo que estivesse a espreitá-la. Por
prudência não fiz menção desse borrão no relatório técnico nem do que ele se assemelhou
para mim.
Por fim, sobre o caderno de Maria Isabela apareceu uma fôrma plástica de moldar
massinha. Falei para ela: – Faz o contorno da forminha. Com a minha caneta ela traçou a
borda, mas, sem conseguir unir as pontas. Percebi que a menina tinha entendimento das
minhas solicitações, pois o enunciado “fazer contorno” era bem vago e isso me tranquilizou.
Para a análise desse material, vou designar o adulto na posição de professora de P2.
169
Do ponto de vista escolar, Maria Isabela poderia estar dominando a escrita das letras,
pelo menos as do seu nome, mas não está atrasada em relação ao que se espera no segundo
mês letivo do 1º ano.
Pela sua produção gráfica percebe-se que ela formula hipóteses sobre a escrita, por
exemplo, distingue entre desenho e letras; usa garatujas para escrever nomes na direção da
esquerda para a direita; na escrita do nome “Marisa” fez garatujas variadas, como se
compreendesse que precisaria de letras diferentes para escrevê-lo; na escrita de seu próprio
nome repetiu várias vezes uma mesma garatuja como se entendesse que o nome tem vários
sons de /a/. Parece também entender que seu nome é bem grande, pela quantidade de garatujas
que fez. Essas hipóteses de escrita que eu menciono são tidas como indícios de como a
criança pensa sobre o sistema de escrita a partir da abordagem do construtivismo, a qual era
usada pela professora Rosana. O que leva a conjeturar que apesar de não falar oralmente,
Maria Isabela prestava atenção nas aulas, de maneira que conseguiu reproduzir no caderno da
psicóloga o jeito da professora ensinar.
No entanto, fica evidente que seu desempenho gráfico-motor é precário bem como o
arranjo espacial dos itens é disperso. Se, como diz Pommier, desenhar é um ato de esperança
de que o corpo exista para além da repressão de sua imagem, os desenhos de Maria Isabela
com suas formas que não se unem e não se integram mostram um vacilo. Apresenta
localização desordenada dos grafismos, a despeito dos anos de escolarização.
Para manter o contato com Maria Isabela sem a exigência da fala, P2 propõe à menina
que desenhe uma boneca logo após perceber que ela estava com um lápis de colorir na mão.
Segue-se uma tentativa de P2 de saber se “boneca” fazia parte do repertório de conhecimentos
da criança e para tanto lança mão de perguntas. A menina corresponde ao turno de diálogo
com movimentos de cabeça, confirmando e ao mesmo tempo negando. Diante disso, P2 opta
por dar uma instrução diretiva, a de desenhar a boneca.
Maria Isabela começa o desenho com um círculo pequeno com dois círculos dentro
(3). P2 nomeia como cabeça da boneca. A menina continua fazendo pequenos borrões e P2
vai nomeando-os por corpo e pés da boneca. Em seguida, do lado direito do desenho da
boneca, Maria Isabela desenha outra estrutura sem organização (4) e diz para P2 a palavra
“menina”. Novamente P2 nomeia o desenho como sendo a própria Maria Isabela, fazendo a
pergunta “você se desenhou?”
Evidencia-se que a ação de nomear as partes do corpo da boneca teve o efeito de fazer
com que Maria Isabela desenhasse a si mesma e se dirigisse oralmente a P2. Isso sugere que a
nomeação deu uma significação para o que estava fora da ordem da linguagem, o que ainda
170
não tinha contornos. A nomeação também provoca um ativismo na criança que passa a
desenhar borrões coloridos, como se estivesse tentando construir formas, corpo.
O interessante é que Maria Isabela mantém uma divisão no caderno entre a parte que
continha letras e a parte que continha os desenhos, como se fosse uma denotação do sujeito
dividido.
Entre todos os significantes espalhados pelo caderno, P2 opta por destacar o borrão do
lado inferior direito (5), que havia aparecido sem sua intervenção. A apreensão deste
significante em particular mostra que P2 assumiu uma posição de escuta, ou seja, não
interrogou a criança quando sentiu curiosidade sobre o desenho, mas também não o descartou
como um algo à toa, sem valor. Vamos acompanhar o desenrolar dos eventos no excerto 8.
28
A narração que segue é uma construção a partir do relatório técnico sobre o encontro com Maria
Isabela e sua mãe, datado de 05/5/2010.
171
caiu da cadeira. Revendo o acontecido, porque na hora não me dei conta, penso que este foi o
jeito que ela arranjou de sair da sala ou, talvez, de dramatizar um desmaio, como os que ela
tivera.
Para ajudar a menina a manter-se em estado de alerta, lhe entrego umas canetas e uma
folha de papel. A criança passa da sonolência para um estado de animação e começa a fazer
garatujas parecidas com a sílaba “ma”. Enche a folha de garatujas, como se fosse uma
rubrica, cortando com um traço a letra “M” (recusa em ascender às letras?), conforme a
Figura 9.
Fiel à minha leitura de Mannoni, eu tento sondar algum conteúdo de morte e fico
sabendo que a avó paterna morava junto com a família e tinha morrido há três anos. Pergunto
se Maria Isabela tem boneca e a mãe diz que não, como também não tem cachorro, mas tem
uma gata e dois filhotes. Ao ouvir sobre os animais, a menina se anima ainda mais, sorri e
balança a cabeça em sinal de afirmação. Ela começa a tocar no meu braço a fim de me alertar
para o que estava fazendo. Percebi umas formas arredondadas e interpretei-as como desenho
de gatos. Pergunto: – Você está desenhando os gatinhos? – Ela balança afirmativamente a
cabeça e sorri. Faço algumas anotações próximas aos desenhos e, num deles, peço para ela
colocar o rabo do gato, de acordo com a Figura 10.
172
Paula volta a falar dos ataques da filha. Às vezes com a convulsão a menina acordava
com crise de pânico, como se tivesse visto alguma coisa. Mas a mãe pensava que era por
causa dos remédios. Enquanto isso, Maria Isabela segue fazendo traçados nas folhas do meu
caderno. Rabisca uma figura ocupando o espaço inteiro da folha. O desenho ampliado me
lembra da figura desenhada no primeiro dia e que me pareceu sinistra. Por isso eu digo para
ela que a imagem parece um fantasma. Maria Isabela se mostra animada e coloca dois
círculos que nomeio como os olhos do fantasma. Está retratado na Figura 11.
Percebo que Maria Isabela se engata na tarefa e para mantê-la produtiva comento
sobre sua trança; quem responde é a mãe. Faço nova tentativa de incluir a menina
perguntando se ela quer cortar o cabelo curto como o meu. A garota ri e desenha uma forma
que no alto tem uns rabiscos e para meu espanto me diz: – Essa menina é você. – Falo: – Ah,
você está desenhando o meu cabelo! Os meus óculos! – E a partir daí começa conversar
comigo em tom muito baixo, de tal forma que fico sem entender. O desenho encontra-se na
Figura 12.
Paula volta a falar que tem muita paciência com a filha, mas que esta é muito nervosa
em casa. Peço para me explicar como é esse nervosismo e ela comenta que Maria Isabela
briga com os irmãos, quer tudo do jeito dela. Digo para a menina que ela é briguenta em casa
e na escola é um anjo. Ela me faz uma careta e ao mesmo tempo diz: – não brigo. – Continuo
tentando saber com quem em casa a criança se relaciona melhor e vou anotando os nomes.
Maria Isabela pega uma borracha da mesa e vai apagando no meu caderno os nomes
das pessoas da família. Ao lado do nome “Roger” ela assina uma garatuja, que é sua marca
registrada (MA).
Digo para a criança que é hora de voltar para a classe e ela começa a choramingar;
pergunto-lhe se sabe voltar para a sala sozinha e ela se encosta à Paula, dizendo: – minha pro.
– Percebo nesse instante uma satisfação de estar com nós duas, protegida, e um receio de
circular pelo ambiente escolar.
Tomo a criança pela mão e peço para ela me levar até sua classe, uma vez que eu
desconhecia a localização. Percebo que a menina se localiza muito bem no espaço. Ao
chegar à frente da sua sala a porta está trancada e ela diz: – Minha pro não tá. – Pergunto: –
Como você sabe disso? – Ela: – Pro saiu – e roda a chave na fechadura da porta. Eu: – Onde
sua pro tá? – Ela: – Lá embaixo. A pro tá no parque –
Descemos e ela me conduz para o parque. Chegando lá, ela percebe de imediato que a
professora não se encontrava. Um menino nos informa que a professora Rosana está no andar
superior. Maria Isabela me dirige pelas escadas até o refeitório, quando imediatamente
reconhece a sua professora.
Deixo a garota sob seus cuidados e retorno para finalizar o encontro com Paula,
quando ela conta que a filha em casa não é independente na higiene nem na alimentação (ao
contrário do que acontecia na escola) e a única menção ao pai aparece quando eu pergunto da
176
relação dele com os filhos. Diz de forma lacônica que a relação de pai e filha é boa e que ele
lhes dava pensão alimentícia. Em seguida, combino com a mãe alguns encaminhamentos
pedagógicos.
anima e faz dois círculos na parte superior do rabisco, que P2 nomeia como “os olhos do
fantasma”. O episódio sugere que P2 consegue através da nomeação explicitar, dar corpo aos
temores da menina.
Após o desenho do fantasma, para manter a menina produzindo P2 menciona partes do
corpo da garota (o cabelo). Em seguida, Maria Isabela faz uns borrões na cor laranja, sem
contornos e diz para P2 “essa menina é você” (Figura 12). P2 fica surpresa com a reação da
fala, mas não dá indícios para a garota; ao invés, P2 retroage ao assunto do cabelo falado
anteriormente e nomeia os borrões por “meu cabelo” e “meus óculos”. Esta passagem sugere
que Maria Isabela presenteia P2 duplamente: ao desenhá-la e ao se dirigir a ela oralmente.
Em seguida, Maria Isabela chama P2 com um “Oh! Boneca!” e mostra a estrutura de
linha com um círculo na parte superior (Figura 13, lado esquerdo). É um desenho que ocupa
toda a página do caderno, que mantém limpa de outros rabiscos ou borrões. O desenho sugere
ser uma aproximação com o desenho do corpo próprio. Fora a cabeça, não tem outras partes.
P2 acompanha a mãe intervir no desenho da filha, dizendo que era para fazer “como a
mamãe te ensinou” e dá exemplo à filha desenhando na página que Maria Isabela tinha feito
os gatos. O desenho da mãe é esquemático e está no plano horizontal, com a diferença que
tem “braços” e “pernas”. Diferente de P2, a mãe não aceita o que vem de produção da criança
e age corrigindo a partir de um modelo idealizado. Maria Isabela desenha a boneca, mas o faz
usando uma linha reta e agora dois círculos (em cima e ao meio da linha). O desenho sugere
que a menina conseguiu colocar uma trava entre a cabeça e o restante do corpo.
Depois disso, a menina intervém nas anotações que P2 faz em seu caderno, apagando
os nomes dos membros da família e colocando a rubrica “MA” ao lado do nome “Roger”. A
criança volta para as letras. P2 dá por encerrado o encontro, a menina resiste e P2 a
acompanha pelos espaços da escola. A partir daí a garota começa a falar pequenas frases com
P2.
Os excertos apresentam uma situação em que um trauma do outro materno que abala a
imagem que ele fez da criança influencia o estado narcísico de Maria Isabela. Parece que a
menina estava presa na imagem idealizada refletida pelo discurso da mãe, imagem esta
anterior ao trauma das convulsões. A figura sinistra pode muito bem indicar a severidade da
imagem do supereu de Maria Isabela.
Por outro lado, não ser reconhecida pela mãe como menina castrada, imperfeita e
problemática que era – uma criança que precisava de remédios e correr para médicos para
controlar as convulsões, uma criança que dava trabalho na configuração familiar porque a
178
qualquer momento podia surpreender para pior – era o drama que Maria Isabela vivenciava e
que a fazia ratear, se esconder no silêncio e no atraso nas aprendizagens.
A ação de P2 de nomear o que não tinha forma assegura para a criança que aqueles
rabiscos, com organização muito incipiente, significavam não o horror nem o inominável,
mas, sim nomes e desenhos – de boneca, de gatinhos, do fantasma, de P2 e por fim da própria
menina – o que, de algum jeito, devolveu potência a menina ao ser reconhecida pela sua
produção. De outro modo, a nomeação ofereceu forma, corpo, significação a um algo que
ainda não estava dentro do registro linguagem e da língua. A significação deu oportunidade à
Maria Isabela de transpor o imaginário, aguentar o medo de desaparecer (morte). Faltava
agora ela dar o passo seguinte: assumir-se como imperfeita e procurar buscar ser reconhecida
nos objetos de conhecimento, se arriscando efetivamente no simbólico.
O capítulo subsequente aborda os três registros da experiência humana tal como
proposto por Lacan (real, simbólico e imaginário) a partir da topografia do nó borromeano e
procura fazer uma aproximação com os impasses das crianças até aqui relatados.
179
29
Lacan poupou com suas críticas à Melanie Klein e sua noção de posições (LACAN, [cópia reprográfica], p.
28).
30
A noção de campo em matemática é dada como um conjunto de pontos expressáveis em termos de distância
ou ângulo na relação uns com outros. Conforme enciclopédia virtual Wikipedia.
31
Os anéis são associados à família dos Borromeos da Itália do século XV; foram incorporados à teoria
matemática dos nós e apresentados à Lacan por Guilbaud em 1969 (GONÇALVES, [S.d.]).
32
As transformações podem ser: esticar ou alargar a superfície ou parte dela; encolher ou entortar a superfície ou
parte dela (PINTO, 2004).
180
Simbólico: a linguagem
Imaginário: o semblante, a figuração do corpo como unidade, a imagem idealizada. A
Figura 14 apresenta a topologia
A principal característica mostrada pelo grafo é a de que os três anéis formam uma
cadeia tal, que o rompimento de apenas um deles torna os outros dois livres um do outro
(LACAN, 1975/2007, p. 20). O buraco central na intersecção dos anéis é conotado objeto a, o
advento do sujeito-enigma.
Ainda mais, em razão dos três anéis estarem atados desse jeito, cada um dos três
termos é estritamente equivalente aos dois outros. Com essa assertiva desfaz-se a
interpretação acerca da primazia ou prioridade de qualquer um dos registros assentada na
ordem em que foi alvo do interesse do psicanalista. Cito Lacan (LACAN, [cópia
reprográfica], p. 18):
Freud não tinha ideia do Simbólico, do Imaginário e do Real, mas tinha
todavia uma desconfiança, fato é que pude extrair isso para vocês [...], que
eu tenha começado pelo Imaginário e, em seguida, precisado um bocado
mastigar essa história de Simbólico com toda essa referência linguística
sobre a qual não encontrei tudo aquilo que me teria facilitado. E depois, esse
famoso Real, que acabei por lhes apresentar sob a forma mesmo do nó.
O jeito que Lacan sugere para, a partir deste novo arranjo, reconectar com Freud é pela
tríade inibição, sintoma e angustia.
Em seu artigo de 1926, Freud (1976b) caracteriza as três concepções:
a) Inibição: é uma restrição normal de uma função, nesta situação, restrição de uma
função do eu. Os exemplos são as paradas momentâneas, as restrições impostas às funções
sexuais, do comer, do locomover e do trabalho laboral, entre outras que envolvem a
coordenação voluntária dos órgãos físicos.
b) Sintoma: não pode ser descrito como um processo que ocorre dentro do eu ou que
atua sobre ele; é mais um substituto (uma transformação) de uma satisfação da pulsão que
passou pelo processo de recalcamento. O sintoma persiste e se apresenta como uma formação
do inconsciente.
c) Angústia: está na fronteira da fisiologia enquanto precipitados de experiências
traumáticas, sendo que a primeira é a do nascimento; é entendida como a manifestação não
transformada da castração.
A relação entre a topologia dos nós e a tríade freudiana dá-se da seguinte maneira:
a) Inibição: relativa à função do eu e este na proposição lacaniana está ligado à
unidade do corpo, então é um corpo pulsional que cessa de funcionar, cessa de produzir
sintomas, deixa de se imiscuir no simbólico (LACAN, [cópia reprográfica, p. 7]). Assim, a
inibição é a exacerbação do imaginário que se introduz na forma de parada no campo do
simbólico; na topologia dos nós, localiza-se no espaço de intersecção entre I e S.
b) Sintoma: signo de algo que não vai bem no real; é efeito do simbólico no campo
do real; situa-se na intersecção R e S.
c) Angústia: algo que parte do real e vai se precipitar sobre a superfície imaginária
do corpo; localiza-se no espaço de conexão entre R e I.
O nó borromeano acaba sendo uma leitura mais versátil sem que se precise lançar mão
de classificações construídas no âmbito da psicopatologia e torna possível interpretar os
fenômenos e embaraços da escolarização como arranjos variados que expressam a
subjetividade.
forma que não conseguia sequer materializar a imagem unificada de corpo num desenho; o
que não se nomeia é a morte; nesse aspecto a menina estava tomada pela pulsão de morte.
A recusa em verbalizar sugere uma restrição, uma inibição que o imaginário impôs a
fim de assegurar narcisicamente um esquema corporal obtido em um tempo anterior ao
choque, um tempo em que ela não tinha que se haver com os limites (a castração) impostos
pela sua doença. Para sair desse círculo era preciso incitar a menina a produzir sintoma, de
maneira que o simbólico através da linguagem fosse dando bordas ao real. E uma das formas
que tem relação com sua idade é envolver-se no aprendizado da leitura e da escrita. Nesse
aspecto, a intervenção de um terceiro é fundamental. Portanto, a segunda parte deste trabalho
versará sobre as parcerias para a escrita.
183
PARTE II
33
Banca examinadora formada por Michel Arrivé, Jean-Claude Coquet e Jacques Anis (1996).
185
a) Decifração
34
Scriptológico é um neologismo derivado do termo latino scriptura, cuja significação é “escrita”.
186
compreender que ele decifra: o que distingue de decodificar pelo fato de que
um criptograma só tem todas as suas dimensões quando é o de uma língua
perdida (LACAN, 1998c [1953], p. 514).
b) Cifração
era a médica, mas a popular, por mais que ainda estivesse semi-envolta na
superstição (FREUD, 1987 [1900], p. 572).
Nesta citação, mesmo sem as ferramentas da linguística, Freud aponta que a visão
médica dos sonhos era uma espécie de codificação, enquanto a popular relacionava os sonhos
com um enigma.
Em outra passagem de “A interpretação dos sonhos”, no capítulo “O trabalho do
sonho”, no qual é tratado sobre o trabalho de condensação e o trabalho de deslocamento,
Freud refere-se ao rebus como uma escrita pictográfica que tem a estrutura de um quebra
cabeças. Cito o autor:
Suponhamos que eu tenha diante de mim um quebra-cabeças feito de
figuras, um rebus. [...] Obviamente, porém, só podemos fazer um juízo
adequado do quebra-cabeças se pusermos de lado essas críticas da
composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso, tentarmos substituir
cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada
por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas
já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de
extrema beleza e significado. (FREUD, 1976c [1900], p. 270-271).
Assim sendo, baseada nas várias maneiras de Lacan se referir ao significante e tendo
em consideração aquilo que Freud chamou de trabalho do sonho, eu argumento que o trabalho
do significante35 equivale à escrita do inconsciente.
Sustento essa argumentação apoiando-me no seminário “O sinthoma”, de 1976, no
qual Lacan refere que há duas acepções de escrita:
1) Uma escrita que é um fazer que dá suporte ao pensamento;
2) Uma escrita que resulta do que poderia ser chamado de uma precipitação do
significante. (LACAN, 2007 [1976], p. 140).
A segunda acepção dá ensejo às aproximações da escrita com o real.
A primeira concepção – escrita que é um fazer que dá suporte ao pensamento – é
concernente às pulsões em sua relação com o corpo, estando sustentada em uma noção de
inconsciente que se apoia precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso
corpo (LACAN, 2007 [1976], p. 145); um não saber em relação aos objetos e ao destinos das
pulsões que nos animam.
A ideia de corpo relaciona-se com o “eu”. Se o “eu” consciente é dito narcísico é
porque, primeiro e acima de tudo, é uma superfície corporal que, também, suporta o corpo
como imagem dessa superfície (FREUD, 1976e [1923], p. 40).
A escrita enquanto processo engendrado dentro do primado pulsional vai ser efeito das
vicissitudes do eu narcísico e da pressão das pulsões que incidem sobre ele. E a feição que a
escrita tomará para cada sujeito ficará na dependência da própria regulação dessa pressão
pulsional que é dada segundo o ordenamento da escolha de objeto dentro dos parâmetros do
porta voz cultural do complexo de Édipo.
De modo que se pode rearranjar o enunciado no seguinte dizer: “uma escrita que é um
fazer que dá suporte ao eu”.
É o que pressupõe esta tese quando defende o impacto da instância pulsional e das
formações do inconsciente no processo de aquisição da escrita ao procurar analisar a
particularidade deste processo em cada informante.
No que segue, apresento alguns delineamentos que marcam a transição no pensamento
de Lacan de uma via do significante para outra da escrita.
35
A expressão “trabalho do significante” foi utilizada também por Bosco (1999).
189
Lacan não desenvolveu especificamente uma noção de escrita; não seria do seu feitio.
No entanto, a partir dos anos de 1970, verifica-se a transição no seu ensino de uma lógica do
significante para a da marca da escrita. É o que se pode depreender de sua acepção de escrita
“que resulta do que poderia ser chamado de uma precipitação do significante”. De qualquer
modo, é uma escrita esvaziada da pressão pulsional e descolada da imagem do corpo.
O caminho que fez para chegar a tal proposição foi deslindando a sua própria relação
com seus seminários e com seus “escritos”. Sob esse aspecto, um percurso que se assemelha
em muito ao de Freud, que para falar dos sonhos tomou os seus próprios como elementos de
análise.
Por este contraste entre os grafos e a fala, Lacan começa a esboçar a ideia de que o
“significante é a causa do gozo” (LACAN, 1985d [1972], p. 36) e sem o significante não se
aborda o corpo. De maneira que o significante se situa “no nível da substância gozante”
(1985b [1972], p. 36); no nível do corpo material. Dito de outra forma, Lacan fazia valer sua
potência através da sua engenhosidade, argúcia, sabedoria e inventividade extravasada pela
fala oral presencial.
Portanto, pela fala oral, no caso do psicanalista, toda uma cadeia significante se
colocava em movimento e se tornava presente em seus semidizeres: “que se diga [o isso, o
sujeito do inconsciente] fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve” (LACAN, 1985b
[1972], p. 26). A mesma relação entre fala e gozo aparece quando comenta que “o sujeito não
é aquele que pensa. O sujeito é propriamente, aquele que engajamos, não [...] a dizer tudo, –
não se pode dizer tudo – mas a dizer besteiras, isso é tudo” (Ibid., 1985b [1972], p. 33).
Para dar consequência a sua proposta de forjar uma nova palavra que se distinguisse
do discurso científico da linguística, a partir dos anos de 1970, no que se designa como a
segunda clínica, Lacan começou a fazer articulações da escrita com o registro do real. O que
se segue procura esboçar esse momento de transição.
As aproximações de Lacan com a acepção de escrita “que resulta do que poderia ser
chamado de uma precipitação do significante” deram-se em torno da sua própria produção dos
grafos, das topologias, dos esquemas.
Então, voltemos aos grafos e a dificuldade de entendimento que eles trazem. Em 1971,
num seminário em que trata do escrito e a fala, Lacan anuncia a sua relação particular com a
escrita em duas passagens. A primeira, quando refere que alguns dos grafos que ele produziu
desde o início de seu ensinamento circulavam entre as pessoas, graças ao trabalho de alguém
que elaborou um índice comentado com sua autorização. A segunda, quando comenta que não
acumulou muitos escritos e que foi preciso eles lhes ser arrancados, quando se viu
impossibilitado de se fazer entender pelos psicanalistas (LACAN, 2009 [1971], p. 74).
Nesse mesmo seminário de 1971, Lacan anuncia que “se a escrita pode servir para
alguma coisa, é justamente na medida em que é diferente da fala”. E que se ele conseguiu
deixar os “Escritos” parar nas mãos daqueles que se interessavam pelo que ele dizia, era
porque já tinha um “comecinho de ser-ai ausente” (LACAN, 2009a [1971], p. 73, 75).
Os grafos que dão suporte à fala deram à Lacan o “comecinho de ser-ai ausente”. Ele
diz: “a matemática pela lógica nos deu pouco a pouco, o que chamamos uma topologia. Não
há topologia sem escrita” (LACAN, 2009 [1971], p. 76).
Em seminário de 1973, Lacan vai comentar que “a escrita não é de modo algum do
mesmo registro, da mesma cepa se vocês me permitem esta expressão, que o significante”
(LACAN, 1985a [1973], p. 42). Seus “Escritos” (o nome da coletânea) que lhes foram
arrancados, à semelhança dos grafos, “não se leem facilmente” (LACAN, 1985ª [1973], p.
38). Este dizer pode ser apreendido da seguinte forma: se o significante permite uma
decifração (leitura); a escrita exige outra operação.
Ainda na mesma sessão, Lacan acrescenta: “o escrito, não é algo para ser
compreendido. É mesmo por isso que vocês não são forçados a compreender os meus. Se
vocês não os compreendem, tanto melhor, isto lhes dará justamente oportunidade para
explica-los” (Ibid., 1985a [1973] p. 48). Esse dizer dá margem para inferir que a operação
exigida pela escrita é a de o sujeito poder se infiltrar nela, colocar algo de si.
E colocar algo de si não se faz sem riscos. Nas palavras do autor:
É o de que garanto para mim, quando, o que não faço jamais sem
tremer, retorno ao que, no tempo, eu proferi. Isto me dá sempre um
santo medo, medo justamente de ter dito besteiras [...] algo que [...] eu
pudesse considerar como não podendo se manter (Ibid., 1985a [1973],
p. 39).
192
a) Sinthoma
Porém, Lacan também faz outra associação para justificar a diferença. A propósito de
comentar o distanciamento de Joyce para com a política, ele faz um trocadilho com a palavra
inventada sint´home rule, separando sint – parte do termo sintoma – de home rule – expressão
que em inglês significa “governo próprio” – para destacar que “sinthoma” se refere à
autonomia. Nas palavras de Lacan: “trata-se [...] do sinthoma que rola, o sinthoma com
rodinhas que Joyce junta com o outro”, o sintoma, dando-lhe o nome merecido ao deslocar a
ortografia.(LACAN, 2007 [1975], p. 15, 16).
Fica-se sabendo por Lacan que Joyce vem de uma família irlandesa insignificante,
com pai bêbado e fanático, e tinha tudo para ser mais um qualquer, no entanto, soube usar a
escrita como fiadora da sua potência fálica; a maneira singular dele honrar o nome do pai.
(LACAN, 2007 [1975], p. 16). Em um trecho da sessão “o espírito do nós” pode-se ler:
“Joyce, através de sua arte [...] não apenas faz sua família subsistir, como vai torná-la, se
podemos dizer assim, ilustre” (Ibid., 2007 [1976], p. 23).
Contudo, essa escrita incomum de Joyce, que modifica a escrita da língua inglesa, é
deliberada, resultado de uma escolha em que o ego tem uma função particularíssima
(LACAN, 2007 [1976], p. 146). O incomum vem do fato dela estar esvaziada da sua relação
com o corpo, ou melhor, com a imagem do corpo num amálgama narcísico.
Para ilustrar o que seria este estado, Lacan conta um episódio que metaforiza a relação
de Joyce com seu próprio corpo. O escritor pediu aos colegas que lhe dessem uma surra.
Depois dessa aventura Joyce não guardou rancor porque o acontecimento se esvaiu, “como
uma casca”. O eu não funcionou prontamente, mas apenas um tempo depois, no momento em
que Joyce testemunha não manter mais nenhum reconhecimento pelos que lhe deram a surra
(LACAN, 2007 [1976], p. 148, p. 148).
Na maioria de nós, o ego é narcísico e está ligado à dimensão do imaginário; é o
suporte da imagem de corpo próprio, da ilusão de perfeição e completude, de forma que toda
intervenção num texto ou em algo que consideramos que tem a nossa cara, que é semblante,
nos leva a reagir com emoções relacionadas à revolta, desvalorização, desmerecimento,
194
impotência. A questão que se coloca é: seria possível produzir uma escrita que não fosse
imaginária, que não fosse semblante?
Lacan pensa que Joyce conseguiu na sua obra se livrar das impregnações imaginárias e
“ter relação com o próprio corpo como estrangeiro” (LACAN, 2007 [1976], p. 146), com
distanciamento. Isso se evidencia na medida em que a desarticulação da língua que ele
promove o faz resvalar para fora do campo da significação, o que pode ser tomado como uma
tentativa de tocar o real.
Portanto, esta escrita “sinthoma” ao fazer buracos na significação deixa brechas para
que o leitor se ocupe dela naquilo que ela lhe ressoa. Uma escrita assim significa alguma coisa
pelo que tem de enigma, que pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes
(LACAN, 1973/1985a, p. 52).
e) O escritor deve procurar um lugar singular para si, de modo a fundar uma
tradição epistêmica
Segundo Lacan, não bastava a Joyce inovar na literatura, ele queria que os
universitários se ocupassem dele “nomeadamente por trezentos anos”. No dizer do
psicanalista, “escrever sobre Joyce é, aliás, um modo de entrar na universidade”. Contudo,
esta condição requer que o dizer ressoe, “é preciso que o corpo lhe seja sensível” (LACAN,
2007 [1976], p. 17, 18 ).
g) Os escritos de Lacan
195
O presente capítulo tem o propósito de averiguar como o aluno pode ser mobilizado
para a aquisição da escrita pelas operações que o professor realiza. Está dividido em duas
partes. Na primeira, discorre a respeito da noção de parceria para a escrita. Na segunda,
aborda como o sujeito se apropria dos sentidos oferecidos pelo Outro, operação designada por
“alienação”, para posteriormente esvaziá-los, na operação de “separação”. A ideia é mostrar
que na aquisição da escrita prevalece a primeira operação.
Este trabalho da escrita possui uma especificidade que o torna diferente das demais
manifestações da linguagem, pois resulta na construção de uma ficção textual. Para além de
encontrar boas ideias, de planejar recursos expressivos para bem expressá-las e encontrar
modos de realizar uma interação eficaz com o outro por meio do texto, é preciso ler o que não
sabia que ia escrever, dando a ver a sequência na qual diversos fragmentos (textos lidos,
experiências vividas, aulas, rumores, falas escutadas) comparecem para formar as ideias que
compuseram a ficção textual (RIOLFI, C. R. ANRADE, 2009).
Da parte do orientador/professor é imprescindível realizar operações que visem
assegurar a sujeição da produção escrita aos cânones científicos e provocar o pesquisador a
colocar algo de si, alternando em diferentes posições enunciativas, tais como: diretor de
trabalhos; leitor; coautor; revisor e agente do real. (RIOLFI, C. R.; ANRADE, E., 2009).
Estas proposições foram pensadas especificamente em relação à escrita acadêmica.
Contudo, a parceria para a escrita também pode ser estendida para a criança que está em vias
de aprender a ler e a escrever.
As modalizações nas posições subjetivas podem ser encontradas tanto na criança que
está em vias de aprender a ler e escrever quanto nos textos acadêmicos e literários que
circulam nas comunidades discursivas.
A seguir apresento as operações que articulam o vínculo do sujeito com o Outro (a
linguagem), tal como formulado por Lacan.
Nos anos de 1964, Lacan coloca a disposição outra ferramenta de análise que permite
abordar o advir do sujeito em relação a sua dependência significante ao lugar do Outro. Esse
desenvolvimento é especialmente interessante para o propósito de tratar dos movimentos
subjetivos na escrita, visto que permite ao sujeito “ocupar diversos lugares, conforme se o
ponha sob um ou outro desses significantes” (LACAN, 2008 [1964], p. 204).
De modo que são duas as operações que articulam a ligação do sujeito com o Outro. O
primeiro tempo, essencial, é aquele que funda o sujeito e a operação de que se trata é a de
alienação. O Ser absolutamente impotente vem ao mundo e pela antecipação dos significantes
– um nome, no mínimo – se funde com o desejo do Outro. A alienação condena o sujeito a
aparecer produzido pelo significante (LACAN, 2008 [1964], p. 206). Em outras palavras, este
Ser que vem ao mundo se apropria do sentido oferecido pelo Outro.
No entanto, este Ser também demanda do outro/Outro – através do grito, do choro – e
ai já começa a se estabelecer uma dialética da pulsão com quem encarna o outro/Outro. Mas
na ligação desse Ser com o outro/Outro muito dos eventos escapam ao sentido, à
possibilidade de ter contornos pela linguagem, de onde desponta o não senso. O não senso
nada mais é do que esvaziar-se do sentido atribuído pelo outro/Outro, quando advém o
enigma que constitui o sujeito do inconsciente. Essa segunda operação, tão fundamental
quanto à primeira, é a separação.
Para tratar destas operações, Lacan utilizou a lógica combinatória dos conjuntos
(lógica simbólica) e as operações de reunião e intersecção, exemplificadas na Figura 15.
A ideia expressa pela figura é que enquanto o sujeito é engendrado pelo significante
do Outro (o primeiro tempo), a operação está fundamentada na reunião; o segundo tempo está
fundamentado na intersecção ou produto. O produto é o sujeito do inconsciente (não senso),
porque na operação de intersecção (separação) o “isso” se apaga, se eclipsa, e neste nível “o
sujeito terá que se procurar” (LACAN, 2008 [1964], p. 209) no enigma do desejo do adulto.
Lacan adverte que “o único objeto que está ao alcance do analista é a relação
imaginária que o liga ao sujeito como eu, e, na impossibilidade de eliminá-la, é-lhe possível
servir-se dela para regular o afluxo de seus ouvidos [...], para fazer a detecção do que deve ser
ouvido” (LACAN, 1998c [1953], p. 255). Da mesma forma, é dado que aquilo que liga um
professor ao aluno é a relação imaginária. Diante disso, o professor pode servir-se dela para
mobilizar o aprendizado do aluno de forma produtiva.
O relato do excerto 9 procura refletir sobre a questão.
Excerto 7 - Carlos
1) Na sala de aula:
36
Designo de P2 o “adulto que ocupa a posição de professor”.
202
Entrei numa classe de 2º ano do ciclo II (antiga 4ª série) para ter observáveis sobre as
aprendizagens de um aluno que tinha como queixa de seus professores (o de ensino comum e
o de educação especial) o fato de, nas palavras deles, não estar alfabético. Logo na entrada, a
professora me apresentou o aluno em questão e mais outro, que não estava nos meus
objetivos para aquele dia: o Carlos. Sobre ele, a professora se expressou assim: “ele também
tem problemas, não fala”.
O aviso da professora me colocou em alerta e de imediato recuperei minhas anotações
para descobrir que o Carlos havia sido a primeira criança que a equipe escolar havia trazido
para discussão, logo no início do ano letivo, embora eu não tivesse dado importância ao caso.
Talvez pela forma como a situação me fosse apresentada, eu tenha identificado um problema
mais da ordem dos equívocos da gestão escolar do que de embaraços na aprendizagem.
Nas minhas anotações de 16/02/12 constavam: “Faz AEE [atendimento educacional
especializado] desde 2008, sem diagnóstico. Reunião com a mãe apontou questões de
comportamento e ideias fixas. Está alfabético inicial e não está registrado no sistema Gdae
(Gestão Dinâmica de Administração Escolar do Estado de São Paulo)”.
Explico: o AEE é um recurso da educação especial para alunos com deficiência os
quais, para finalidade de cômputo no censo escolar, devem ser cadastrados no Gdae segundo
a categoria de deficiência ou transtorno. Como o Carlos não tinha um diagnóstico médico
que atestasse suas limitações, não deveria estar sendo assistido pela professora de educação
especial, evidenciando, no meu entendimento, decisões equivocadas por parte da equipe da
escola. De forma que eu acabei me apegando a este viés da situação, que me pareceu o mais
crítico, para decidir tirá-lo do meu horizonte de intervenção. Com algumas orientações dadas
à coordenadora pedagógica e à professora de educação especial, eu tinha dado o assunto por
encerrado.
Já na sala de aula, quando eu percebi que as preocupações da professora priorizaram o
Carlos eu mudei o meu foco principal de atenção.
Aproximei-me do Carlos, sentado na primeira carteira à frente da mesa da professora
e encostada na parede com janelas, e puxei uma cadeira no corredor. Observei que Carlos
não tinha caderno nem atividade sobre a carteira. Perguntei: – Você me mostra as suas
lições? – Carlos balançou negativamente a cabeça. O aluno da carteira do lado avisou: – Ele
não fala, é mudo. Insisti: – Você não quer a minha ajuda pra fazer a lição que a professora tá
dando? – Carlos balançou negativamente a cabeça.
A recusa do Carlos me paralisou momentaneamente. Na tentativa de ganhar tempo
para me organizar, dirigi-me ao menino do lado e passei a interagir com ele. Fiquei um
tempo com este garoto e, posteriormente, me dirigi para o aluno que era o objetivo de minha
entrada em classe.
Nesse ínterim, a professora Julieta mudou de atividade, entregando a todos os alunos
uma cópia do texto “Uma história eu vou contar”, de Orígenes Lessa. A instrução foi a de
que os alunos lessem o texto e respondessem as questões de compreensão de leitura (Figura
16).
Vi uma cópia do texto sobre a carteira do Carlos e ele com os braços cruzados sobre
ela e com a cabeça baixada sobre os braços. Ele havia mexido com os meus brios e pensei
comigo: “Esse menino não vai dar um nó em mim”. Movida por este pensamento e sem parar
para refletir na minha ação, aproximei-me novamente do menino e sentei-me no corredor ao
seu lado. Disse:
– Carlos, você não precisa falar nada, eu falo no seu lugar. Vamos fazer essa lição
aqui. – E puxei o texto em sua direção.
– Vou falar uma palavra que está no texto e você descobre onde está escrito e faz um
círculo. Faz um círculo na palavra “cavalo” que está no primeiro parágrafo. Carlos passou o
dedo pelo texto, indeciso. Pareceu-me que não tinha noção do que era parágrafo. Então falei:
– Vou dar outra dica: a palavra “cavalo” está na primeira linha, no meio. Levou alguns
segundos para ele identificar a palavra e circulá-la. Assim mesmo, deixou a sílaba “lo” de
fora. Falei: – Ficou faltando o “lo” que ficou de fora. – Carlos puxou o círculo incluindo o
“lo”.
– Outra palavra. Você vai achar a palavra “cabo”. Também está na primeira linha. Foi
com o dedo até o final da linha e não localizou a palavra. – “Cabo” começa com “ca”, igual a
palavra “cavalo”. Veja se você acha nessa linha outra palavra que começa com “ca”. Carlos
achou a palavra e circulou-a. Eu disse:
– Agora você vai circular uma palavra mais difícil. É a palavra “árvore”. Está na
terceira linha do texto. – Carlos passeou o dedo pelas linhas, demonstrando insegurança.
Pareceu-me que não tinha noção de ordem (terceira linha). Falei: – Conta três linhas e você
205
Carlos acertou todas as questões. Então falei: – Esse exercício está muito fácil pra
você, quero ver como você faz essas aqui. E apresentei as questões da página 24, dando-lhes
as seguintes instruções:
– Só que você vai ler para você as questões e responder no quadrado. Não precisa ler
206
Então, eu lhe disse – Carlos, eu leio [casoro] e é [cachorro]. Tem que trocar o so por
cho, não sei te explicar porque, mas essa sílaba é com ch. Carlos apagou o s e trocou por ch,
como se pode verificar pela rasura no exercício. Emendei: – Também não sei explicar, mas
207
esse [ro] é com dois [erres]. Arruma ali. – Carlos colocou um r na frente do outro r.
Disse-lhe que ele tinha acertado e que eu ia ler outra questão para ele responder. Li: –
eu adoro comer – e parafraseei: “O que você gosta de comer?” Carlos ficou parado. Tentei
estimulá-lo: – Arroz com feijão? – Ele balançou negativamente a cabeça. – Bife? Essa é fácil
de escrever! – Ele balançou negativamente a cabeça. – Claro! Macarrão! – Ele balançou
negativamente a cabeça. Eu disse:
– Nossa você não gosta de comer nada? Não sei, que outra comida eu consigo pensar?
Já sei, ovo! Ovo frito! – Carlos balançou negativamente a cabeça.
– Nem de ovo você gosta? – Ele deu um meio sorriso.
– Num sei ... que outra comida que tem que você gosta? – Por frações de segundos eu
pensei comigo mesma que ele estava me enrolando e que não estava a fim de escrever. Sendo
assim, eu poderia dizer qualquer “abobrinha”, que não faria diferença. E falei em voz alta:
– Ó, só se for abobrinha. Imediatamente Carlos escreveu a palavra, colocando dois b e
apagando um deles.
Surpresa com o ocorrido, ainda falei: – Tem certeza que você gosta de abobrinha? –
O menino balançou afirmativamente a cabeça com um meio sorriso.
Queria ter feito a mesma intervenção na leitura e reescrita da palavra, mas percebi
uma movimentação da classe para sair para o recreio. Então disse: – Olha, vou escrever aqui
embaixo a palavra abobrinha correta. Ele até tentou prestar a atenção, mas o liberei da
atividade. Ele se apressou e saiu da classe.
À saída da sala de aula, encontrei-me com a coordenadora pedagógica que me
perguntou se eu também tinha conhecido o Carlos, ao que lhe respondi que sim, e que estava
um bocado preocupada com o menino. A coordenadora informou que havia conversado com
a mãe dele, a qual relatou que uma vez havia chegado a casa, vinda do emprego, e tinha
encontrado o fogão ligado com panelas vazias sobre o fogo, mas que não acreditava que
aquele acontecimento tivesse sido obra do Carlos. De imediato relacionei esse comentário
casual da coordenadora ao jogo da criança para escrever a palavra referente à comida que
mais gostava.
inclusive, e lhe perguntei de onde vinha essa ideia dela, Guiomar respondeu: – “O que faz eu
falar errado é eu falar, então, é melhor eu ficar quieta”.
Ela conta que viveu na roça, numa cidade da Bahia, e não frequentou escola; não
sabia ler nem escrever e estava estudando na Educação de Jovens e Adultos, mas estava
pensando em desistir porque era muito difícil. Fala que o marido também não fez escola, mas
aprendeu a ler sozinho quando veio para São Paulo; pegava os jornais que jogavam nas casas
ou que se usava para embrulho.
Fala a palavra envergonhada diversas vezes ao contar sobre a sua vida na roça, no
casamento e na mudança para São Paulo.
Pergunto a repeito do que o Carlos fazia com independência em casa e ficamos
sabendo que ele gostava de dormir, tomava banho e se arrumava sozinho. Mas era ruim de
comida. Disse que o Carlos almoçava na escola [um desencontro de informações, pois
segundo a professora ele não comia nada ali]. A curiosidade da coordenadora pedagógica a
leva a perguntar qual comida o menino mais gostava. A mãe responde que era arroz com
feijão e salada (repolho, alface, tomate). A coordenadora pergunta se o garoto conhecia
abobrinha e a mãe, sem dar ênfase à resposta, diz que ele conhecia sim.
Fala que Carlos é muito perguntador, do tipo: “como criança cresce na barriga?”;
“Como nasce?”; “Homem também ganha nenê?”
Também comenta que em casa o filho é normal e igual aos outros filhos dela. Acha
que o Carlos não aprende porque não se interessa e não acha que ele tenha alguma coisa que
faz com que ele não aprenda. Acrescenta que o menino tem preconceito de cor [de pele] e de
cabelo [tipo]. Se vir alguma pessoa mastigando com a boca aberta, levanta e sai da mesa.
Fala que o filho não vai ao banheiro da escola porque tem vergonha e às vezes chega a casa
com a barriga dura.
No excerto 9, pelo relato salta à vista que de alguma forma o aluno passou pelos crivos
dos educadores. Foi trazido só tardiamente para discussão com a psicóloga e quando isso
ocorreu, o menino passou-lhe despercebido.
a) Na classe
Já na sala de aula, a atitude de controle de Carlos ao se negar mostrar suas lições para
P2, mobilizou os brios dela, o seu orgulho de especialista em educação e de pessoa tarimbada
209
em construir vínculos com os alunos. Mexeu com seu narcisismo. Para ganhar tempo e fazer
nova abordagem, dirigiu-se a outros alunos.
A professora Julieta mudou de atividades, entregando para Carlos a mesma atividade
dada aos demais. Não tentou fazer adaptações. O exercício estava muito além das
possibilidades de realização do menino.
Para poder novamente se assumir como um adulto que tem como ponto de honra
introduzir as novas gerações na ordem simbólica, P2 retorna à carteira de Carlos, anunciando
“você não precisa falar nada, eu falo no seu lugar”. P2 não confronta a recusa do menino em
falar e nem dá a ele liberdade para fazer o quiser. Ao invés, ela lhe acena como uma
negociação. Uma atitude que poderia ser considerada como autoritária ou invasiva com o
dizer “eu falo no seu lugar”, porém, pelo efeito de movimento obtido, Carlos escutou a
proposta de forma não ameaçadora.
Nesse espaço de tempo, a professora Julieta continuou com a aula, fazendo
intervenções e solicitando a participação oral. A atitude da professora de algum modo
confrontava o sintoma de Carlos, se instaurando uma disputa entre ambos, a qual evidencia
um fechamento para as trocas recíprocas. É o primado de uma posição narcisista de um lado e
do outro.
Já ao lado da carteira de Carlos, P2 faz uma adaptação improvisada do exercício de
interpretação de texto, solicitando leitura de palavras através do procedimento de circulá-las.
P2 nota o esforço e o empenho que o garoto faz para dar conta da tarefa. O retorno positivo
dado pelo aluno a faz mudar de exercício antes que ele desista. P2 pega um livro didático que
trazia consigo relativo ao primeiro ano inicial.
P2 apresenta a Carlos um desafio maior (ele teria que ler), mas cuida de dosá-lo
(leitura silenciosa). Novamente, nota-lhe o esforço e o empenho e muda de estratégia. Faz a
leitura dos enunciados e pede ao menino a escrita.
Carlos mostra-se produtivo. P2 obtém informações sobre a sua leitura e escrita, faz as
correções ortográficas. Até que o menino começa a jogar com ela. De início, acha que ele está
de gozação, até que aparece a palavra “abobrinha”. P2 considera a palavra despropositada
dentro do contexto e a capta como um enigma. Carlos mostra-se disposto a fazer a correção da
palavra “abobrinha”, mesmo depois de ouvir o sinal de recreio. E só sai quando P2 o libera. A
professora Julieta não se aproximou nenhuma vez.
Para Carlos a atitude narcisista se tratava de defender com unhas e dentes (literalmente
recusa em escrever e falar) a sua imperfeição, a sua falta de potência. Para a professora o
narcisismo se referia à falta de abertura para a investigação, para a curiosidade e para propor
210
As informações que P2 obtém dos educadores envolvidos com Carlos, juntamente com
o fato de ter ficado impressionada com a erupção da palavra “abobrinha” a fazem solicitar
uma entrevista com a mãe do garoto.
O que Carlos mostrou com a produção escrita das palavras “cachorro” e “abobrinha”?
Do ponto de vista escolar, o menino evidenciou ter conhecimentos sobre a língua muito
aquém do que seria esperado para sua faixa etária e seu nível de ensino (equivalente à 4ª
série). Para Carlos, parece ter sido a possibilidade de sair de uma posição ensimesmada e
aceitar envolver-se com um adulto e com a tarefa proposta.
No entanto, causou impacto em P2 o jogo que o menino fez com ela até se dispor
escrever a palavra “abobrinha”. Levando em conta os comentários da coordenadora e das
professoras a respeito de situações que remetiam à comida, levanto a hipótese que o
surgimento ao acaso do significante “abobrinha” se reporte ao trabalho daquele saber que não
se sabe (LACAN, 1992 [1969], p. 32).
Por outro lado, considerando o funcionamento da língua pelas operações de
coordenação (eixo sintagmático) e associação (ordens para além da língua) e a primazia do
deslocamento do significante, levanto a hipótese de que a palavra imprevisível “abobrinha”
pode ser potencialmente reveladora da relação do sujeito com a língua.
Defendo que a singularidade dessa emergência faz parte do jogo associativo
(operações de linguagem de seleção e substituição), pelos seguintes indícios:
1) A palavra “abobrinha” não foi escrita como uma resposta à questão “eu adoro
comer”, caso em que ele teria prontamente escrito algum tipo de alimento, a exemplo do que
foi feito com o primeiro item (cachorro), mas surge em resposta a uma outra solicitação
subentendida, como, por exemplo, quando P2 parece dizer a Carlos: “Eu não sei do que se
trata, por que você não me mostra”?
2) Se fosse uma resposta reflexiva ao exercício, a escrita das palavras “bife” e “ovo”,
pela simplicidade das sílabas, não seriam empecilho para uma criança que já tinha escrito a
palavra “cachorro”.
Conjecturamos que a emergência do significante “abobrinha” colhida como enigma na
trama que se desenrolou entre Carlos e P2, teve o efeito para o menino de uma descoberta que
provocou outros movimentos. A exemplificação prática eu faço no capítulo 4, com a
apresentação e análise de excertos relativos ao Carlos.
O intuito é dar contornos à ideia de que para uma parceria produtiva na aquisição da
escrita é imprescindível que o professor alterne nos lugares que ocupa em relação à alteridade,
lançando mão de operações que engendrem movimentos no aluno.
Para Carlos, a posição enunciativa “Eu sei tudo, o que não sei, não existe” é uma
posição subjetiva narcísica baseada na completude imaginária de um corpo unificado que não
tem orifícios (boca, olhos, ouvidos, ânus).
Pode-se dizer que a recusa em fazer as atividades diferenciadas daquelas propostas
para os demais alunos é uma forma imaginária, fantasiosa de não mostrar que não sabe
escrever nem calcular. Não quer quebrar a sua imagem de sabido, de potente, ou ilustrando
com um dito popular, “não quer sair mal na foto”. Todavia, é um expediente que surte
resultados no outro. Por exemplo, quando o Carlos se recusou a ter a intervenção de P2, o
colega do lado não disse algo como “ele não sabe ler nem escrever”, mas disse “ele é mudo”,
como se o dito isentasse Carlos de sua responsabilidade. É o mesmo Carlos, porém o estatuto
da pessoa Carlos nos enunciados “ele não sabe ler nem escrever” e “ele é mudo” são
absolutamente distintos.
Não falar na escola também é um jeito de não mostrar que não sabe ler. Aqui, o
menino parece usar o mesmo expediente que sua mãe – se quando fala, fala errado, é melhor
214
não falar. Novamente o que está em jogo é não mostrar as insuficiências, bem a propósito do
dito popular “em boca fechada não entra mosquito”.
Veja-se uma possibilidade do jeito de operar da professora Julieta.
Para a professora, a posição enunciativa “Eu sei tudo, o que não sei, não existe”
corresponde a uma posição subjetiva narcísica que leva ao fechamento do seu jeito de dar
aulas, usando basicamente a participação oral e escrita, os dois grandes entraves de Carlos.
Por outro lado, aquilo que ela não entendia no comportamento do jovem não lhe colocava
inquietações com relação à sua prática docente, era mais visto do prisma da dificuldade de
aprendizagem. Ela esperava que um terceiro, no caso a psicóloga, pudesse diagnosticar o
problema e lhe oferecer subsídios de como lidar com o garoto.
Por último, o quadro apresenta o jeito de operar de P2:
Por seu lado, P2 movida pelo orgulho do adulto que não se rende às vontades
excêntricas da criança, adotou uma posição enunciativa do tipo “Eu trabalho”. Equivale
assumir a posição subjetiva de se identificar com a outorga simbólica que lhe foi conferida
por ser adulta e tomar para si a responsabilidade de provocar movimentos em Carlos.
Ela estava menos preocupada em fazer o menino falar do que interessada em que ele
percebesse o que ela tinha podido ver: o esforço, o empenho, que ele podia ler (mesmo que
fosse para si próprio) e escrever, enfim, que o garoto pudesse se reconhecer potente. É o que
Riolfi e Barzotto (2012) designam de ponto de honra do desejo.
P2 se afasta das nomenclaturas e explicações e se coloca na posição de quem está de
frente para um enigma, como se dissesse para Carlos: “Eu não sei do que se trata, não tenho a
mínima ideia. Por que você não me conta?” Além disso, o que P2 também faz é encontrar um
lugar para o garoto, lhe mostrar as suas responsabilidades na condição de criança e estudante,
como se dissesse: “falar e aprender é condição para você estar entre nós humanos e nós vamos
encarar essa empreitada juntos”. E Carlos deu a ela um voto de confiança. Estava estabelecido
o vínculo entre o menino, P2 e o conhecimento.
Para concluir o raciocínio desenvolvido nesta seção, sustento que alternar nas posições
enunciativas que equivalem à reprodução, trabalho e inventividade é condição para se instituir
uma parceria produtiva para a aquisição da escrita. Pelo lado do professor, identifico como
movimentos facilitadores os seguintes:
1) Intervir segundo uma postura ética que incida sobre a relação da criança com o
conhecimento.
2) Reconhecer o seu não saber, que é da instância do inconsciente, e se dispor ao
desconhecido.
Contudo, isto não quer dizer que o professor possa dispensar o conhecimento das
disciplinas, elemento imprescindível, mas sim ressaltar que se o fim é a aprendizagem do
aluno, os métodos e os recursos de ensino vão se construindo no vínculo, não devendo ser
colocados a priori, sob pena de impasse e insucesso.
Se até aqui eu abordei os movimentos dos agentes, na sequência procuro examinar os
movimentos de aprendizagem correlacionando-os com as intervenções da professora.
216
Este capítulo que encerra o presente estudo está dividido em duas partes. Na primeira,
eu demonstro os movimentos de aprendizagem do informante Carlos a partir das intervenções
da professora. Procuro explicitar que os resultados alcançados foram frutos de uma parceria
de trabalho entre os educadores e o aluno. Na segunda, tendo por base os resultados das
investigações do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise (GEPPEP) eu
procuro apontar possibilidades consequentes no vínculo entre o aluno contemporâneo e aquele
que o forma.
Na seção anterior eu procurei evidenciar que confrontar um sintoma não contribui para
uma criança avançar nas suas aprendizagens, e que a ideia era encontrar trilhas mais seguras
para a criança poder expressar substitutivamente, em objetos valorizados socialmente, sua
relação com a instância pulsional. No caso de Carlos, o domínio incipiente da escrita
ameaçava a sua potência fálica.
Este subcapítulo procura evidenciar a importância de uma experiência de parceria de
trabalho entre quatro educadoras e um aluno, num formato muito diverso daquele que é
proposto ao nível da formação continuada de professores.
Os excertos a seguir apresentam a experiência e os efeitos de aprendizagem.
Excerto 8 – A situação de Carlos com relação à aquisição da escrita no segundo semestre de 2012
Continuação na Figura 21
219
Verônica relata que precisava descobrir se ele lia, então preparou uma atividade que
tinha frases e pediu para ele desenhar o que estava escrito. A atividade era de 25 de agosto de
2012. Acima da instrução “leia e desenhe” tinha espaço para colocar o nome e a data. O
nome completo de Carlos é composto por dois nomes e dois sobrenomes. Carlos escreve
ortograficamente somente o primeiro nome e o último sobrenome. Nos nomes e sobrenomes
do meio ele omite letras (vogal e consoante, respectivamente). A data ele anota no formato
correto. A Figura 22 mostra sua produção.
O exercício nos deixou bem animadas, pois mostrava que ele conseguia ler frases
impressas. Mas comparando com a produção escrita do mesmo mês, a escrita de palavras
ainda não estava consolidada. No exercício seguinte, encontra-se uma lista de palavras
escritas a partir da leitura da instrução. Sua realização foi feita vinte dias antes da atividade
apresentada na Figura 22.
Verônica relata que precisava “conversar” muito com o Carlos para que ele fizesse as
atividades diferenciadas. Quando ela dava um ditado ou pedia a escrita de um texto, Carlos
fazia questão de fazer a mesma atividade. Quando eu olhei para estes textos maiores, já
realizados no segundo semestre, me bateu uma desesperança e eu perguntava para as duas
colegas: “como a gente pode sustentar a vontade do Carlos de ir para a 5ª série com esta
222
Este exercício é suposto ser do dia 30 de julho. Com muito esforço se consegue ler as
linhas iniciais: “[...] tava passeando: viu menino passeando e falou? Me dá um copo de água?
[...] bateu cabeça no [...] ele falou (após, usa um sinal que se assemelha a um travessão e
escreve um enunciado)”. O restante não se compreende, exceção à fiei” ao final do texto,
numa alusão a “fim”. Observa-se o uso de sinais de pontuação sem nexo (ponto final,
interrogação, dois pontos). Exceção feita ao sinal suposto como travessão, após o qual foi
escrito um enunciado. Pela alusão a “fim” se deduz que é uma reescrita de fábula. Verifica-se
que ele conhece minimamente a estrutura de uma fábula e o texto está bem menos extenso,
com onze linhas.
Esta segunda atividade é datada de setembro; é uma produção extensa, em que Carlos
escreve seu nome completo, mas no penúltimo sobrenome omite a consoante n e espelha a
consoante s. Se compreende o que está escrito nas linhas primeira e segunda: “resumo do
filme” e “meu malvado favorito”. Também se entende algumas frases nas linhas iniciais: “o
malvado favorito [...] pegou a bexiga assoprou? Deu a bexiga para o menino, pegou,
estourou. Foi embora? Quando chegou, [...] cachorro no sofa e mordeu, a mulher dele ligou
TV e: [...] falou que era médico”. Depois o texto fica ilegível com as palavras “menina”,
“menino”, “cachorro”, “casa” dispersas pelo texto. Verifica-se o uso de alguns sinais de
pontuação sem nexo (vírgula, interrogação, dois pontos, travessão).
Retomo com a professora Verônica, comentando que ela deveria dizer ao menino que
apesar dele se esforçar em escrever, e ele de fato chegou a escrever duas páginas inteiras, não
se compreendia o que ele escrevia. E também explicar para o Carlos que ele deveria ser
capaz de ler a própria escrita.
A professora não se sentiu confortável em fazer tal intervenção e me perguntou: “E
seu eu falar isso pra ele, e ele deixar de produzir? Ele fica tão contente, é aplicado, não falta
nas aulas”. Eu retruquei: “Mas, Verônica, alguém tem de dizer pra ele que o que ele escreve
não se entende, e isso deve ser feito por você que tem vínculo com ele ou pela [falei o nome
224
Quando Carlos entrou na sala, nós adultos trocamos de lugares. A professora sentou-se ao
lado da coordenadora de frente para mim, tendo Carlos ao meu lado esquerdo. Eu dei início à
seguinte conversa:
– Oi Carlos, eu sou Marisa e a gente já se conhece porque outro dia eu entrei na sua
classe e você fez essas lições comigo (e apresentei as páginas do livro com os exercícios). Eu
também já conversei com sua mamãe. Eu sou psicóloga e venho na escola discutir sobre as
lições das crianças. E eu tenho visto todas as suas lições (e mostrei-lhe o pacote de atividades
que estavam sobre a mesa). Eu sei que você tem vergonha de falar. Então eu vou te contar
um caso que aconteceu comigo. Eu também morro de vergonha de falar pra muita gente.
Outro dia, onde eu estudo, eu tava numa reunião com um montão de pessoas e a gente tava
falando sobre um assunto que eu entendia. Eu ouvia as pessoas falarem, às vezes elas
falavam umas bobagens que não tinha nada com nada, às vezes falavam coisas legais. E eu
tava doida pra falar uma ideia que eu tinha tido, mas a fala não saia da minha garganta. Ficou
lá, enroscada. Eu até tentei, mas não tive coragem. Fui pra casa sem dizer um “a”. Tive um
pesadelo e acordei sufocada, como se tivesse com coisa entalada na garganta. Mas eu sou
adulta e me viro. Então, a gente tem que conversar sobre essa sua vergonha.
Nenhuma reação verbal do garoto. Apenas o balançar das suas pernas mostravam o seu
desconforto. Continuei:
– A professora Verônica, a coordenadora e eu estamos preocupadas com você. Fiquei
sabendo que você quer ir pra 5ª série, é isso mesmo? – Carlos balançou afirmativamente a
cabeça.
– Pois é, se aqui você tem vergonha de falar com a professora Verônica, como você vai
fazer quando tiver sete professores? Como você vai fazer para pedir ajuda pro professor,
dizer que você não entendeu o que ele explicou? – Silêncio.
– Vou te perguntar uma coisa, você não precisa me responder agora, vai pra casa e pensa
e depois dá a sua resposta pra professora. Eu posso pedir que uma psicóloga do posto de
saúde receba você pra você falar dos seus medos, dessa coisa de que você não conversa na
escola, também não come aqui, não vai no banheiro, né professora Verônica? A professora e
a coordenadora acham que a psicóloga pode te ajudar. – Carlos se remexeu todo na cadeira.
– Tem mais, a professora disse que você quer ir pra mesma escola em que estuda seus
irmãos. – Carlos balançou afirmativamente a cabeça.
– Só que para ir pra 5ª série você precisa saber contas de mais, de menos, de vezes e de
dividir, resolver problemas, saber horas, contar dinheiro, ler e escrever. E você sabe que está
225
aprendendo a fazer isso agora, com a professora Verônica. A gente tá em setembro, e faltam
dois meses pra terminar as aulas. Falta muita coisa pra você aprender e fazer sozinho, ainda
mais se a gente não sabe se você vai conseguir pedir ajuda pros professores.
A coordenadora interveio: – Você tá entendendo o que a Marisa tá falando, Carlos? – O
menino balançou a cabeça afirmativamente.
Peguei o exercício “Leia e desenhe” e mostrei para ele: – Ó, você desenha muito bem. E
leu as frases direitinho e desenhou certo. Só que além de ler estas letras de forma, você
precisa conseguir ler o que você escreve. – Separei do monte de exercícios algumas
produções e apresentei a ele.
– Nessa aqui, você escreveu um montão, deu duas folhas, mas não dá para entender o que
você escreveu. Você consegue ler alguma coisa daí? – Ele olhou para a atividade e ficou em
silêncio.
– Aqui eu só consigo entender “menino” o restante não dá pra entender. – Mostro a
palavra do lado de “menino” e digo: – Aqui eu leio [padere]. Eu não entendo o que quer dizer
isso. É isso que você queria escrever ou era outra palavra? Era a palavra “pai”? – Continuava
observando os locais onde eu apontava.
– Carlos, você precisa conseguir ler o que escreve, separar as palavras, você gruda tudo,
daí a gente não entende. Você come letras (esboçou um sorriso), ó aqui, você comeu as letras
de “madrasta”, ó como você escreveu “arroz”, trocou tudo as letras de lugar. Como é que fica
a 5ª série desse jeito? As contas aqui, você só consegue fazer com a ajuda da professora.
Você tem que saber fazer conta sozinho.
– Olha, você vai pensar com calma nas seguintes coisas pra depois dar a sua opinião.
Sobre você ir pra psicóloga falar do seu medo, da sua vergonha. – Balançou negativamente a
cabeça várias vezes. – Você não quer ir pra psicologia, não é? – Nova negativa. – Então,
professora e coordenadora, com psicóloga nada feito.
– A outra coisa é sobre a 5ª série. Pra gente poder começar a pensar nisso, até o fim do
ano, e olha, faltam dois meses, você tem que conseguir separar as palavras, escrever frases,
ler o que você escreveu, ler em voz alta em casa e fazer contas, mesmo usando os dedos da
mão. Você sabe usar os dedos da mão pra contar? – Balançou negativamente a cabeça. –
Professora Verônica, ensina ele a contar nos dedos, é base dez, vai ajudar ele aprender a se
virar.
– Ah, mais uma coisa. A professora disse que você gosta de fazer as mesmas lições que
as outras crianças. Só que elas já sabem escrever e ler e você tá começando agora. Então,
você tem que conseguir fazer as lições que a professora prepara para você.
Verônica interveio: – Mas ele pode às vezes fazer também o que os outros fazem, né?
– Pode sim, professora, só que para ele ao invés de ir para outra atividade, você devolve
para ele corrigir o que escreveu. Faça-o fazer a correção do texto. Coisa que você,
certamente, faz com seus outros alunos. – Ela concordou, dizendo que sempre fazia as
crianças elaborarem rascunhos.
– Ficamos combinados Carlos? – Aquiesceu com a cabeça. Encerramos nossa reunião ali.
Com a professora e coordenadora ficou combinado que nos próximos meses seria focado
prioritariamente o que tinha sido contratado com o menino, como forma de potencializá-lo
para enfrentar uma 5ª série. A professora também cuidaria de que o menino fizesse pequenos
textos, preferencialmente que não fossem narrativos para ele não se perder nas ideias.
exercícios preparados individualmente para o garoto, alguns vinculados aos temas trabalhados
com os alunos do 2º II, outros de acordo com seu grau de compreensão, e todos realizados
pelo aluno.
Ela começa deixando Carlos fazer as atividades de língua portuguesa do jeito dele,
linhas e mais linhas de letras que não formavam sentido. Logo percebe que precisa assumir o
comando da situação. E ao invés de insistir na escrita, ela ousa levar suas dúvidas em outra
direção: “será que ele lê?” E é desta direção que ela extrai seus trunfos.
Verônica não faz exigências orais ao menino, pesquisa e prepara uma atividade que
lhe permite inferir sua capacidade de compreensão de enunciados curtos. A boa receptividade
e o capricho mostrado pelo garoto na tarefa evidenciam que nela atuou um saber artesanal, do
inconsciente, que ultrapassa o que se aprende nos espaços de formação e de educação
continuada. Ela consegue captar que para o garoto imagem e texto ainda são um o suporte do
outro e oferece uma atividade que mantém esta ligação. No portifólio tinham vários exercícios
de leitura de estilo igual. Da mesma forma, ela começou a valorizar os desenhos do garoto.
O obstáculo com o qual a professora Verônica se deparava procedia dela própria, eram
os momentos em que ela oscilava para uma posição narcísica. Nessas ocasiões, ela não
conseguia refrear o gozo de Carlos com a escrita sem sentido porque barrá-lo era correr o
risco de deixar de ser querida pelo garoto. Esse indício sai na sua fala: “E se eu falar isso pra
ele, e ele deixar de produzir?”.
Também estava em jogo a imagem de Verônica diante da coordenadora como aquela
professora que finalmente tinha despertado o interesse de Carlos na escrita. Isso vem de
encontro à discussão anteriormente feita a respeito da configuração do desejo na mulher no
campo da neurose, pois é somente se colocando numa posição de quem deve ser reconhecida,
querida é que ela encontra a sua potência. Como pontuava Freud, a mulher tende a ficar
enquistada na sedução do seu próprio corpo para conseguir ser amada e assim o estado
narcísico acaba se tornando quase que uma “segunda pele”.
Ainda mais, a grande quantidade de exercícios, todos realizados pelo menino, que
possivelmente demandou horas de trabalho de pesquisa e preparação muito além das horas de
trabalho remunerado, também estavam a serviço de um gozo, de um excesso que não tinha
ponto final. Como Verônica poderia, então, ajudar Carlos a pontuar sua escrita, colocar ponto
final no gozo dele, se ela própria não conseguia fazê-lo consigo, pondo um limite para o seu
trabalho? Seria muito fácil ela fazer isso. Bastaria não dar novas atividades e fazer o garoto
retrabalhar as atividades antigas o que daria muitas outras possibilidades de intervenção.
227
Atitude esta que ela tinha com seus demais alunos, principalmente fazendo com que eles
fizessem autocorreção dos textos escritos, os rascunhos.
Com relação ao Carlos, na atividade em que ele escreve duas páginas com letras sem
sentido (Figuras 20 e 21), pode-se levantar algumas características. Na segunda página, na
linha 15 consegue-se inferir a leitura de “comeram brigadeiro” [camieu p ubncadirero]. A
palavra “casa” se repete várias vezes, mas é impossível inferir algum sentido, pois a
composição de letras que deveria formar as palavras vizinhas não possibilita leitura. A
produção apresenta algumas rasuras nas páginas um e dois, mas estas se concentram nas três
primeiras linhas da página um. Não dá para compreender as substituições que ele faz ao
apagar o que tinha escrito e fazer nova reescrita. Não tem sinais de pontuação. As letras são
grafadas em bastão, de maneira bastante legível, no que costuma ser considerada como “boa
letra”. Sem dúvida a tarefa exigiu esforço físico e tempo. No conjunto, visualmente, à espécie
de uma tela, é uma produção “limpa”.
A escrita funciona para Carlos, nesse momento, como mera descarga; é gozo. Porém,
uma descarga que forma uma totalidade, como se fosse um quadro, ou como ficamos sabendo
depois, um desenho. Uma escrita desenho que duplica materialmente a imagem unificada do
corpo.
Portanto, a professora Verônica realmente capta esse momento de impasse do Carlos
entre a imagem de completude do corpo e a escrita, e lhe oferece a atividade de leitura das
frases com a instrução de fazer o desenho correspondente (Figura 22). O resultado é o
capricho e a seleção criteriosa dos elementos a desenhar que demonstram uma estética
nascente. Por exemplo, na frase “a peteca da Roberta é colorida”, Carlos pinta todo o espaço
do quadrado de preto, deixando um pequeno espaço retangular no sentido vertical o qual
pintou de vermelho. O desenho revela planejamento, remete à frase, mas não porta obviedade.
De fato, a potência fálica de Carlos está no desenho. Falando e escrevendo ele tem que se
haver com sua imperfeição, com os erros, com a incompletude do não saber. Como trocar o
certo pelo incerto? É nisso que reside o trabalho do professor quando eu afirmo que ele é o
porta voz da alienação na linguagem, mas uma alienação consentida, pactuada em torno do
desejo.
Na atividade de listas de palavras (Figura 23), notam-se marcas de oralidade, portanto,
a presença do corpo, por exemplo, em “arroz” como se dissesse [arroze], “mexerica” como se
falasse [misirica]. A professora escreveu do lado quando a palavra destoava muito da
ortografia correta, como em “bolo” e “maçã”. No caso de “patê”, que está escrita
ortograficamente parece que a estranheza partiu da professora. Na terceira linha, as cinco
228
letras (abura) não formam palavra, mas passou despercebida à correção da professora. Seria
“abobrinha”?
As duas outras produções (Figura 24 e 25) mostram Carlos tentando corresponder às
expectativas da professora. Na primeira (24), o mais notável é a sua pretensão de pontuar o
texto, possivelmente um tema que a professora estava trabalhando no momento do exercício.
Além disso, o menino faz uma redução notável do número de linhas usado para escrever
(onze linhas). Verifica-se também o esforço de construir uma narrativa pela utilização de
verbos no gerúndio e no pretérito (passeando, falou) e a utilização de ponto de interrogação.
Contudo, do meio em diante, Carlos, que tinha começado com um esboço de narrativa,
desanda e o texto volta a apresentar as mesmas características de totalidade sem sentido das
produções analisadas nas Figuras 20 e 21. A outra produção (Figura 25) é mais extensa, mas
comparativamente com a produção anterior (julho), esta desenvolve melhor uma incipiente
característica narrativa. Assim, além de ser possível fazer a leitura de frases compostas por
duas ou mais palavras, pelo menos nas oito linhas inicias, também se verifica o uso de verbos
no tempo pretérito (assoprou, chegou, foi, ligou) acrescidos de advérbios (quando, embora). O
uso da pontuação também pode ser observado. Do meio em diante, o texto fica ilegível, mas
os sinais de ponto final continuaram sendo usados.
Uma vez mais, Verônica pareceu captar a precisão do garoto em fazer paradas no texto
para extrair algum sentido e acaba trabalhando pontuação. Por seu lado, Carlos se agarra a
essa oportunidade e ensaia cortes e paradas com o uso dos sinais e seu texto ganha uma “cara”
narrativa. Mas a sua façanha nestes textos, principalmente o primeiro, foi ter conseguido
reduzir expressivamente a quantidade de linhas escritas, em outros termos, foi capaz de
restringir os efeitos de gozo.
Por último, P2 assume a responsabilidade pela castração simbólica ao explicitar para o
garoto que ele escrevia, mas não se conseguia entender. Ela procura quebrar a imagem que ele
tinha de que estava escrevendo só pelo fato de usar letras. P2 também procura oferecer
parâmetros sobre o que era esperado de um aluno numa 5ª série e procura implicá-lo na
consecução de sua vontade em ser promovido ao lhe dar objetivos para serem atingidos até o
final do ano.
Contudo, não acabou ai a história com o Carlos. No final de novembro, a
coordenadora solicitou nova reunião para amadurecer o destino escolar do garoto. A cena
encontra-se descrita no excerto 11.
2) “ele foi na casa buscou papel e tesoura graveto e começou a fazer”; 3) “[...] levantou e
correu para soltar pipa”; 4) Ele ficou soltando pipa empinou e ficou [...] foi para casa”. Todas
as frases têm ponto final. Boa parte das palavras estão segmentadas; algumas ainda
apresentam aglutinações de duas palavras. Usa gerúndio e pretérito para sustentar a narrativa.
Os dois quadros iniciais apresentam rasuras e se a atividade foi feita sem auxílio, o garoto se
deu conta de alguma improcedência. O exercício tem, digamos assim, uma “pegadinha”. Para
se escrever o que acontece no primeiro quadrinho, tem-se que ter a noção da sequência, uma
vez que o primeiro não apresenta informações explícitas. Assim, a partir de informações
explícitas do último quadradinho tem-se que retroagir e reconstruir passo a passo a historieta
para conseguir formular a primeira frase. Abaixo do exercício a professora registrou a
observação: “realizou a atividade sem intervenção”.
O Carlos efetivamente tinha cumprido a sua parte do trato. A questão era que,
mesmo assim, era insuficiente para uma 5ª série. Eu era de opinião que aquela escola não
tinha mais nada para oferecer para ele e que deveríamos deixar que ele assumisse a
responsabilidade pelo seu aprendizado. Este era um ano de remoção dos quadros escolares,
então não se garantiria a permanência das professoras, da coordenadora nem da psicóloga e
todo o drama que envolveu este quinteto (incluindo o Carlos e a professora de educação
especial) cairia no vazio. E mesmo que alguma de nós permanecesse na escola, como encarar
um menino que tinha feito a sua parte do combinado e para quem nós nos negávamos a
cumprir com a nossa?
A coordenadora mencionou a não concordância com a promoção do garoto vinda da
parte da orientadora pedagógica, a autoridade supervisora da escola. Também receava que o
coordenador pedagógico da outra escola criasse caso com a promoção do Carlos tendo o
domínio de tão poucas habilidades de leitura, escrita e na resolução de problemas
matemáticos. Lembrando que o ensino fundamental II é de competência do governo do
Estado.
Combinei com a coordenadora que, qualquer que fosse a decisão tomada, ela teria
de ser feita com a presença do Carlos, para que cada um pudesse argumentar com relação aos
prós e contras e assumir no ano seguinte a sua cota de responsabilidades. Ela pediu que eu
estivesse presente na reunião. Deixei uma data agendada e finalizamos aquele que seria o
nosso último encontro.
Vou começar a análise deste excerto novamente pela professora Verônica. Ela volta a
assumir a posição de “Eu trabalho”. Algo da nossa conversa em trio e depois com a presença
do Carlos, ressoou nela. E de forma magistral ela conseguiu prescindir das impregnações
imaginárias de uma “professora super dedicada” e assumiu uma posição de escuta. Escuta
sensível que se vê na escolha dos exercícios, garantindo o delicado equilíbrio subjetivo de
Carlos – entre a imagem de corpo e o texto –.
No primeiro exercício (Figura 26) que, sem dúvida, tem sua intervenção do começo ao
fim (na segmentação das palavras, na coesão da pontuação, na reescrita das palavras
complexas, na coerência descritiva da situação, no enxugamento textual), Verônica faz com
234
que Carlos se depare no texto com o seu próprio falo, a sua potência que vai mais além da sua
competência no desenho. E comparando com a pintura da ilustração logo abaixo, pode-se
dizer que são duas produções que estão de igual para igual.
No exercício da Figura 27, Verônica pesquisa e chega a propor uma atividade que – ao
contrário daquela anteriormente analisada que partia do texto para o desenho – parte da
ilustração para o texto. Com essa intervenção, ela força Carlos a se descolar deliberadamente
da imagem e entrar na escrita, a depuração de toda a imagem, e aguentar a imperfeição que se
sobressai numa coesão titubeante.
No terceiro exercício (Figura 28), ainda usando o suporte da ilustração, a professora
prepara uma atividade em que obriga o aluno a recolher informações explícitas no último
desenho da sequência para dar corpo escrito às imagens do quadrinho 1 e 2, que não possuíam
informações explícitas. É um exercício que articula os eixos sintagmáticos e paradigmáticos.
A escrita do nome da professora Verônica, neste que é um exercício que antecede em menos
de uma dezena de dias o final do ano letivo, é uma declaração de amor. Assemelha-se a uma
carta endereçada contando uma história com final feliz.
Voltando à maestria da professora Verônica, é um algo que faz parte do saber
inconsciente, artesanal, aquele que o sujeito não sabe que possui, mas que de fato está ali,
perscrutando a espera de um momento de se apresentar. Um saber que não se aprende nos
bancos da graduação nem se encontra nos artifícios da formação continuada, mas que, por
outro lado, não pode prescindir do outro, de uma parceria como aquela que foi estabelecida
entre as quatro profissionais envolvidas.
Faço um adendo neste momento. Como procurei mostrar a posição de escuta assumida
pela professora Verônica, de fazer valer seu saber artesanal – posição esta que é intermitente e
não se exerce o tempo todo – pode parecer que este movimento teria mais valor do que outro
pautado no narcisismo e nas certezas que se tem sobre os fenômenos e os objetos do mundo.
Nas duas posições não se trata de qualidade, mas de fluidez, de não se fixar exclusivamente
numa perspectiva, num ponto de vista, mas de alternar de lugar segundo o problema que a
situação impõe.
A respeito do Carlos, muito já foi dito no resumo do excerto. Agora, é possível afirmar
que a aquisição da escrita lhe equivaleu a uma jornada dolorosa, com impacto no próprio
corpo (mutismo, prisão de ventre, restrição na alimentação). Um corpo pulsional que resistiu
o quanto pode à iminência do risco de desaparecer nas letras.
Nesse sentido, o exercício da Figura 27 (completar os balões da história em quadrinho)
é bem ilustrativo desta batalha. Ali se pode ver Carlos partindo de imagens, construindo
235
diálogos muito pouco elaborados, depois redigindo uma frase curta, mas razoavelmente
coerente, e por último novamente um desenho que guarda semelhança com os quadrinhos de
origem, mas mesmo assim, é outro desenho. Se estivéssemos no plano da língua, diríamos que
era outra enunciação. Parece que quando Carlos se depara com a frase que ele próprio
escreveu isso lhe suscita um temor tal de se perder da imagem, que ele volta a desenhar uma
reinterpretação do quadrinho. É o jeito que ele encontra para suportar o descolamento, a
passagem, a possibilidade de o corpo e sua imagem portentosa desaparecer na aridez das
letras.
Quanto a P2, ela não tinha mesmo um corpo, não tinha nada para perder, talvez por
isso tenha conseguido exercer a função de castração simbólica. Ela era apenas uma posição
enunciativa que deixou de existir no exato momento que este texto começou a ser escrito.
Para dar existência temporária a P2, esta pesquisadora usou toda a experiência vivida no
decorrer da posgraduação e na sua participação no GEPPEP. Na contramão, a experiência de
habitar alternadamente a pele de P2 fez com que essa pesquisadora desse corpo a presente
tese.
Para finalizar essa seção, que tentou mostrar com um exemplo prático as vicissitudes
do desejo no processo de aquisição da escrita, eu relato o meu último contato telefônico com a
coordenadora, dois dias antes do final do ano letivo. Carlos foi reprovado. Não passou pela
deliberação do Conselho de Ano/Ciclo. O voto desfavorável veio da professora Verônica, da
diretora, das demais professoras do 2º ano do ciclo II comparando com os resultados obtidos
pelos seus próprios alunos, da sinalização da orientadora pedagógica.
Encaminhar um menino tal como Carlos para outro sistema de ensino não seria o
imperativo de ter de lidar com a impotência, a falta, a castração, a impossibilidade, tudo isso
que concerne ao desejo? Ao invés, talvez os educadores tenham tido o entendimento de que
tal iniciativa equivaleria a escancarar o fracasso. Nesse sentido, não seria melhor continuar
todos muito seguros no reino da imagem?
Na última sequência eu traço um panorama do desafio de ensinar no século atual e
sobre uma e outra perspectiva que se nos afigura no horizonte.
Sintetizo aqui, ao fim desta minha jornada acadêmica, algumas ideias que foram
construídas coletivamente no âmbito do GEPPEP em parceria com profissionais de diversos
domínios do conhecimento do Brasil e do exterior.
Todos nós conhecemos muito bem os efeitos das transformações sociais e políticas das
duas últimas décadas na educação: as ações mediadas pela palavra deixaram de ser
predominantes e passaram a ser comandadas pelo movimento. Na sala de aula de uma escola
de educação básica, o movimento se sobrepõe à palavra: o professor é constantemente
interrompido, os alunos se levantam das carteiras, circulam pela sala, fazem seus exercícios
em pé, em grupos, conversam e as conversas têm o mesmo nível de importância que a
explicação do professor. E com essas mudanças radicais costumam vir queixas derrotistas e
prognósticos sombrios.
O grupo de pesquisa do qual faço parte compõem com todos aqueles que trabalham
para a superação dos impasses que impactam a formação das novas gerações, opondo-se à
disseminação e ao reforço de queixas que muitas vezes são socialmente legitimadas (RIOLFI;
BARZOTTO, 2012). Uma das nossas questões pode ser assim colocada: “Será mesmo que,
para inovar, colocar no mundo algo de si, um professor precisa encenar algum tipo de
figuração contra o sistema ou a cultura?”
Nossas investigações sinalizam que a inovação tecnológica, o método que o professor
utiliza ou o personagem que encarna não são os únicos responsáveis para ensinar as novas
gerações. Antes de tudo, o profissional da educação precisa tomar em suas mãos a
responsabilidade de auxiliar o estudante a traçar seus passos entre a aquisição do
conhecimento e da criação.
Não se pode desaminar frente a este novo cenário. Muito pelo contrário, mais do que
nunca o fazer pedagógico deve ser inovador, criativo, rigoroso e teoricamente fundamentado.
Cabe ao professor assumir-se como aquele que coloca em jogo uma experiência que toca o
estudante, que possa nele ressoar (LACAN, 2007, p. 18). E um dos modos é fazer uso de
recursos linguísticos e extralinguísticos, de maneira que se traga a dimensão corporal ao
diálogo (RIOLFI et al., 2008). Um bom exemplo foi o que fez a professora Verônica que, com
o seu saber, o seu trabalho, o seu desejo, sustentou o precário equilíbrio de um aluno seu entre
os tantos outros de sua classe, garantindo que na passagem para o mundo das letras, o corpo
não sucumbisse.
Na sequência, passo para as considerações finais.
237
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se para Jacques Lacan uma carta sempre chega a seu destino, a primeira coisa a se
perguntar quando uma tese chega ao fim talvez seja a natureza do desejo que moveu seu autor
ao longo do processo de sua confecção. Em outras palavras, o que desejei saber? Duas
grandes respostas podem ser dadas de início:
Posto isto, retomo o percurso de sua construção como se fosse uma carta que eu
endereço a você, leitor, dando notícias acerca das minhas descobertas sobre o meu próprio
trajeto de escrita desta tese e, na sequência, dos principais achados aos quais fui conduzida
pelos alunos e professores que me serviram de informantes.
Como membro do GEPPEP faço parte da investigação coletiva que se esforça por
achar respostas para a questão de como escrever textos acadêmicos se apropriando do legado
que precede o pesquisador e ao mesmo tempo conseguindo, nas palavras de Lacan, “colocar
algo de si”. Nesse sentido, como afirma Riolfi (2012a, p.93) aprender a escrever um relatório,
um trabalho de conclusão, uma dissertação ou uma tese é tarefa central, pois além da operação
mencionada acima, é preciso que o pesquisador em formação consiga publicar aquilo que
colheu como fruto do seu trabalho e, na mesma direção, seja legitimado por seus pares.
37
(LACAN, 2009b, p. 107).
238
não for possível eliminar as construções do imaginário – como de fato não é e nem é salutar
que o seja – ouça com “ouvidos para não ouvir” (LACAN, 1998b), para detectar o que deve
ser ouvido. Lembrando que uma posição de escuta equivale a não intimidar o outro com
nossas certezas e esperanças idealizadas (LACAN, 1998f).
Ao longo do trabalho, procurei defender a tese de que há uma correlação entre a
instância pulsional e o processo de aquisição da escrita pela criança ou pelo jovem. Para
sustentá-la tomei como base a leitura da obra freudiana feita por Jacques Lacan, pois inclui
efeitos que são frutos da leitura que este fez da linguística, entre eles, o trabalho minucioso
para dar contornos à ordem do simbólico, na qual se insere o campo da linguagem.
Dando continuidade a esta proposta, procurei desdobrar a noção lacaniana de
subjetividade percorrendo os meandros do circuito pulsional, desde a gênese do “eu”,
passando pelo narcisismo, seguindo as pistas do desejo de saber para, finalmente, chegar à
escrita como sintoma (escrita do inconsciente), uma escrita que dá suporte ao pensamento.
Um segundo argumento que procurei defender foi o de que é fundamental a instalação
de uma parceria de trabalho para a aquisição da escrita. Tomei os conceitos consolidados em
outros estudos sobre “trabalho da escrita” e “parcerias para a escrita” e desenvolvi a
fundamentação de que para instaurar uma parceria que gere movimentos no aprendiz, cabe ao
professor assumir distintas posições enunciativas segundo as contingências, que destaquei
como sendo ocupar o lugar da reprodução, do trabalho e da inventividade. Alternar nas
posições enunciativas é um imperativo para quem se propõe a dirigir o seu fazer docente.
À pergunta que procurava investigar em que momento da articulação pulsional a
criança se lança em direção à aprendizagem da leitura e da escrita, eu procurei responder com
o último excerto a respeito do informante Carlos. É o momento no qual a criança consegue
ultrapassar a completude da imagem idealizada do corpo (narcisismo) para fazer uso do
material linguístico-discursivo para produzir efeitos de sentido. Contudo, se é possível
localizar o momento, as características dessa dinâmica são sempre singulares e não podem ser
generalizadas. Os demais excertos serviram para melhor discutir noções específicas, como por
exemplo, “o inconsciente é o discurso do outro”, significante, mais de gozar, antecipação de
sujeito, narcisismo. Com os informantes Ian, Maria Isabela e Carlos eu procurei me aproximar
mais dos efeitos visíveis que as intervenções educativas provocaram.
Também com as três referidas crianças eu tentei identificar quais posições subjetivas
assumidas pelo professor facilitariam ou colocariam obstáculo à produção da criança. Os
excertos referentes ao informante Carlos apontam a operação de alternar entre posições,
240
evitando cristalizações. Lembrando que nesta conjuntura, também se trata de uma lida
singular por parte do professor.
Volto a cada um dos três alunos para tecer alguns comentários. Quando fui admitida
no doutorado com um projeto alicerçado no informante Ian, eu tinha uma crença em relação
ao menino de que com intervenções adequadas por parte dos professores, principalmente
incidindo sobre as operações de linguagem (coordenação e associação) ele pudesse ascender,
senão à escrita, pelo menos nas manifestações gráficas.
Foi com uma espécie de abalo, ao analisar o material de que eu dispunha e observar
concretamente o que ele tinha conseguido após cinco anos de ensino fundamental, que eu
cheguei à conclusão de que se podia ver Ian como um proto sujeito, excluído da linguagem,
fadado a ser mais falado do que, talvez, um dia se tornar um falante na acepção que Lacan dá
ao termo. Ali um mau encontro entre o real do trauma orgânico, as impregnações imaginárias
e o gozo do Outro/outro com aquilo que nunca conseguiu ter significação cobraram o seu
preço. Faltou uma ação que enganchasse o real e o imaginário aos significantes, ao simbólico.
A questão é que dadas as circunstâncias, isso é mais fácil de falar do que fazer.
Do seu lado, Maria Isabela, premida pela angústia de uma imagem de corpo idealizada
que não condizia com o real das convulsões e dos terrores noturnos, desenvolve uma inibição
em relação às atividades escolares, algo que Lacan designou como parada de funcionamento.
Essa parada se desfaz – a menina passa a conversar com o interlocutor adulto – quando, de
jeito incipiente, algo do simbólico é introduzido na forma de um faz de conta, de uma
substituição – garatujas que ela rabiscava agora tinham nomes, estavam atadas a uma
significação compartilhada, tais como gatos, menina, boneca, fantasma, P2. A menina
consegue se reconhecer no olhar de reconhecimento do adulto em posição de professor (P2),
um olhar não intimidador. Em recompensa à P2, a quem Maria Isabela se dirige com um
“toma para ti essa dor que pesa sobre meus ombros” (LACAN, 1998f), ela oferece a dádiva:
passa a conversar de forma permanente com sua professora.
Com Carlos temos um sintoma, um substituto, um enigma. Esse enigma envolvia a
incerteza com relação à sua potência fálica – vergonha por não ter conseguido aprender ler e
escrever quando era esperado que assim o fizesse – de forma que a saída encontrada foi
narcísica, deixar de falar para não mostrar sua fragilidade fálica, algo como “em boca fechada
não entra mosquito”.
Na medida em que P2 e, posteriormente, a professora titular que assumiu o lugar
ocupado pela primeira professora (uma docente substituta) foram testemunhando as
conquistas, incentivando a reprodução de textos (através de ditados, reescrita de fábula
241
pelas crianças não quer dizer dar explicações para os tropeços e impasses. Muito ao contrário,
envolve domínio de sua área de conhecimento e trabalho árduo de escuta e de inventividade.
No final desse trabalho, ainda fica uma questão que permanece em suspenso e está
relacionada com a dialética do desejo. Se o desejo enquanto busca pela potência fálica, que no
universo docente consiste em se assegurar do próprio conhecimento e de como transmiti-lo
para as novas gerações, como ficam as iniciativas de formação continuada que, como adverte
Voltolini (2001) propõem soluções que recalcam o jeito singular que cada sujeito tem de
encarar o problema? Arrisco-me a conjecturar que é sempre este círculo vicioso que coloca a
máquina educacional para funcionar de maneira a encobrir a subjetividade, nos levando a
persistir no mais de gozar, que responde pelos percalços que a educação enfrenta
cotidianamente.
243
REFERÊNCIAS38
CATACH, N. Para uma teoria da língua escrita. São Paulo: Ática, 1996.
38
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