A Polifonia Contemporânea
A Polifonia Contemporânea
A Polifonia Contemporânea
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Universidade de Brasília (UNB).
porque cada um de nós individualmente faz uso de discursos múltiplos. Nosso nome é legião,
porque são vários os discursos e devires que nos atravessam.
A subjetividade monolítica que está na base da visão moderna de mundo parece
incompatível com a pluralidade do mundo contemporâneo, que admite a pluralidade como uma
característica humana e não como um problema a ser resolvido. Em cada um dos meus discursos,
equilibro várias das minhas personas: o Professor, o Advogado, o Filósofo, o Amante, o Artista.
Engano é pensar que um juiz decide apenas como Juiz, que o professor fala como Professor, que
a tese acadêmica é escrita pelo Cientista.
Não podemos misturar o personagem conceitual2 com o sujeito real, pois o primeiro é
um arquétipo e o segundo e uma pessoa, incoerente e múltipla como todos nós feliz ou
infelizmente somos. É claro que esses arquétipos são importantes para a estruturação e
compreensão dos discursos e que a introdução de um novo personagem conceitual pode ter
consequências revolucionárias (como a invenção grega do Filósofo), mas não pretendo repetir
aqui o esquecimento moderno do sujeito, reduzido ao arquétipo do indivíduo racional egoísta.
Tudo bem que todo discurso tem seus esquecimentos, suas zonas de silêncio e
obscuridade, que o constituem tanto quanto as zonas de iluminação. Não posso pretender que o
meu não as tenha. E é por isso que me incomoda o discurso pretensamente objetivo da
modernidade, construído sobre bases pouco transparentes para a própria obscuridade. E a
obscuridade pode ser transparente (a afirmação do vazio e do mistério), assim como a claridade
pode ser opaca.
Edgar Alan Poe conta a história de um sujeito que, ao saber que sua casa ia ser revistada,
escondeu uma carta colocando-a no lugar mais evidente, e por isso mesmo menos propenso a ser
identificado por quem procura elementos ocultos3. Na modernidade, por exemplo, os valores
ideológicos são escondidos no conceito mais evidente: o de Razão. E esse simples procedimento
torna tão difícil tal percepção que muitos não vêem, por exemplo, que tanto a razão transcendental
kantiana quanto a razão comunicativa habermasiana contêm um elemento ético em sua própria
conformação. E a igualdade colocada como um imperativo racional, e não como um imperativo
ético, dificilmente é identificada como tal.
Essa mistura entre valores e razão, contudo, só é um problema para quem pretende atuar
de maneira neutra. Para quem postula uma razão neutra a valores (e, portanto objetiva), esse é um
problema sério. Porém, toda teoria crítica é fundada na afirmação de um critério de legitimidade,
que não pode deixar de ser valorativo. Assim, é da estrutura dos discursos críticos a sua não-
neutralidade, a sua parcialidade, o fato de estar ligada a posições valorativas que não são
impessoais. E a alternativa à criticidade de uma teoria não existe, pois mesmo o positivismo
realiza uma espécie de sacralização da neutralidade, e a neutralidade não deixa de ser um valor.
Portanto, não há um lugar neutro para falar de uma teoria. O enfoque externo não é um
enfoque imparcial e nunca faz justiça às concepções teóricas descritas. Isso ocorre especialmente
porque todo teórico engajado (isso é, todo teórico) concorda com algumas poucas tendências e
discorda de todas as demais, e normalmente falamos das ideias que nos desagradam oferecendo
uma versão enfraquecida, útil apenas para a crítica que a ela faremos em seguida.
Construímos estereótipos para guerrear contra eles e, com isso, atacamos inimigos
imaginários. Travamos assim uma batalha fácil e cuja vitória pode ser bastante útil, na medida
em que todos querem estar ao lado dos vencedores. Quando não é signo de simples ignorância,
esse tipo de pseudo-vitória, tão característica das academias, revela uma espécie de covardia
intelectual. Mas o normal é que ele seja apenas fruto da nossa visão distorcida das ideias que não
são as nossas e que, por isso, são erradas.
Convencidos pela modernidade de que a verdade é una, não podemos chamar senão de
falso tudo o que colide com as nossas crenças. E, com isso, a descrição externa de uma teoria que
não é nossa perde justamente o que essa teoria tem de mais importante: a capacidade de seduzir.
2
O conceito de personagem conceitual eu tomo emprestado de Guattari e Deleuze.
Vide DELEUZE e GUATTARI, O que é a filosofia?, p. 10.
3
POE, A carta.