CRC - Filosofia Da Linguagem
CRC - Filosofia Da Linguagem
CRC - Filosofia Da Linguagem
FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Caderno de Referência de Conteúdo
Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2012 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013
149.94 K91f
ISBN: 978-85-67425-59-7
CDD 149.94
Preparação Revisão
Aline de Fátima Guedes Cecília Beatriz Alves Teixeira
Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
Patrícia Alves Veronez Montera Eduardo de Oliveira Azevedo
Rita Cristina Bartolomeu Joice Cristina Micai
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Simone Rodrigues de Oliveira Luis Antônio Guimarães Toloi
Raphael Fantacini de Oliveira
Bibliotecária Tamires Botta Murakami de Souza
Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11 Wagner Segato dos Santos
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer
forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na
web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do
autor e da Ação Educacional Claretiana.
CRC
Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A importância do estudo da linguagem na Filosofia. Esclarecimento de termos cen-
trais na pesquisa filosófica que estão envolvidos com obscuridades e paradoxos,
com base na análise da linguagem. Auxílio da análise da linguagem na dissolução
de pseudoproblemas filosóficos. Exame dos critérios de significatividade. Análise
da relação que se estabelece entre linguagem e metafísica, bem como entre lin-
guagem e ciência.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
1. INTRODUÇÃO
A Filosofia enfrenta vários problemas no que se refere ao
uso da linguagem. A Metafísica, por exemplo, vale-se da lingua-
gem para representar objetos ideais, como, por exemplo, o bom
enquanto considerado em-si-mesmo, Deus, a liberdade, o belo
etc. Ludwig Wittgenstein colocava assim a questão:
Se vocês estivessem em meio a uma tribo estrangeira, cuja língua
desconhecessem totalmente, e desejassem saber quais palavras
correspondentes a "bom", "lindo", etc., que é que procurariam?
(1970, p. 15).
10 © Filosofia da Linguagem
Abordagem Geral
Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-
tudado neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos
principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportu-
nidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade.
Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conheci-
mento básico necessário a partir do qual você possa construir um
referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para que,
no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com competên-
cia cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos começar nossa
aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos que
fundamentam este CRC.
Nada melhor para começarmos o nosso estudo filosófico
sobre a linguagem que colocar a pergunta: o que é a Filosofia da
Linguagem? Na área da Filosofia, a reflexão analítica sobre a lin-
guagem é ainda bastante obscura. Todavia, temos de deixar bem
claro que, em todos os ramos da Filosofia, a linguagem é aspecto
principal e imprescindível para a transmissão de ideias e conceitos
filosóficos.
Segundo Willian P. Alston (2010), o campo da atuação da Fi-
losofia da Linguagem é de difícil distinção da investigação linguísti-
ca realizada pelas outras ciências, tais como a Filologia, a Psicolo-
gia e a Antropologia.
Falta ainda um critério rigoroso que possa descrever com
propriedade a preocupação filosófica sobre a linguagem. Contudo,
é possível identificar vários pontos da investigação filosófica em
que o problema da linguagem e a sua análise se tornam impres-
cindíveis.
Na metafísica, por exemplo, destacam-se claramente as
questões ligadas à linguagem, uma vez que o seu funcionamento
© Caderno de Referência de Conteúdo 13
Exemplo 1––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Pedro é motorista do diretor das Casas Bahia.
Pedro compra seus imóveis sempre das Casas Bahia.
Portanto, Pedro não só é motorista do diretor das Casas Bahia, como também é
cliente das Casas Bahia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O segundo exemplo é bastante semelhante ao primeiro, po-
rém, não tem o mesmo valor de validade que o primeiro. Observe,
a seguir, o Exemplo 2:
© Caderno de Referência de Conteúdo 15
Exemplo 2––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Alguém é motorista do diretor das Casas Bahia.
Alguém compra seus imóveis sempre das Casas Bahia
Portanto, alguém não só é motorista do diretor das Casas Bahia, como também é
cliente das Casas Bahia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Com base nos exemplos citados, podemos observar que o
Exemplo 1 é logicamente válido, enquanto o Exemplo 2, ao contrá-
rio, é logicamente inválido.
A Epistemologia, junto da Metafísica e da Lógica, também de-
dica atenção especial aos problemas da linguagem, principalmen-
te no que diz respeito ao enunciado de juízos que não provêm da
experiência, com efeito, os juízos a priori. Nesse caso, levanta-se a
seguinte reflexão: se o conhecimento não deriva da experiência, lo-
gicamente não terá nenhuma referência à experiência e, portanto,
nenhuma correspondência entre símbolo linguístico e fatos expe-
rimentais. Assim, a ausência de verificação experimental levanta a
dúvida sobre a veracidade das significações estabelecidas.
Nietzsche, por exemplo, em seu ensaio Sobre verdade e
mentira em um sentido extra-moral, afirma que, entre duas es-
feras totalmente distintas, como é o que ocorre no caso entre o
sujeito e o objeto, não há nenhuma relação causal que comprove a
necessidade absoluta dos enunciados. Segundo Nietzsche, a solidi-
ficação desses conceitos e os conhecimentos enunciados por eles
ocorrem por meio de persuasão. Com efeito, um criador de lingua-
gem cria um determinado conceito e, pela força retórica, convence
os outros a utilizá-lo no mesmo sentido, assim que, retomado pela
tradição e depois de um longo uso, ele parece fixo, vinculativo. Por
esse processo, surge a "verdade". Sobre essa concepção crítica de
Nietzsche, falaremos mais adiante, na Unidade 5.
A análise filosófica sobre a linguagem envolve, também, o
problema da possibilidade de a linguagem comunicar experiên-
cias místicas, intuitivas e transcendentes, que vão para além da
realidade pelos símbolos linguísticos que correspondem a esta.
Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rápi-
da e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom
domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhe-
cimento dos temas tratados neste Caderno de Referência de Conteú-
do Filosofia da Linguagem. Veja, a seguir, a definição dos principais
conceitos:
1) Categorias: segundo Legrand (1983), para Aristóteles, as
categorias representam diferentes classes de seres. Os
"diversos sentidos que podem assumir o sujeito e o atri-
buto de uma proposição lógica" (LEGRAND, 1983, p. 72)
podem ser agrupados em nove categorias: "substância,
quantidade, qualidade, relação, posição, ação, paixão,
lugar e tempo" (LEGRAND, 1983, p. 72).
2) Conceitos: "é, em princípio, o produto da abstracção e
da generalização a partir das imagens ou dos objetos
particulares; exprime-se por uma palavra, geralmente
um nome" (LEGRAND, 1983, p. 86).
3) Discurso: "Encadeamento de conceitos e de noções,
apresentando-se notavelmente sobre a forma de juí-
zos, que constitui a expressão do pensamento racional".
Nesse sentido, pode-se dizer que o discurso é a expres-
são do logos e que ele está de acordo com uma forma de
ver o mundo de maneira organizada que é a do Cosmo,
que se diferencia daquele discurso que fala do mundo
entendido como Caos (desorganizado).
4) Doutrina oficial: um dos nomes dados por Ryle à filoso-
fia cartesiana, dada sua grande aceitação.
5) Eliminativista: o eliminativismo é uma tendência em fi-
losofia da mente que nega a existência dos estados men-
tais e busca somente explicações provenientes dos pro-
cessos neurofisiológicos que ocorrem no cérebro.
6) Essência: "Do latim essentia, termo traduzido por Cícero
para traduzir do grego ousia" (LEGRAND, 1983, p. 152).
Na escolástica, representa uma das divisões do ser a qui-
didade. Para Platão, eram as ideias imutáveis; para Aris-
tóteles, as formas inteligíveis. A essência é aquilo que faz
© Caderno de Referência de Conteúdo 19
Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma
forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a re-
solução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará
se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além
disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhe-
cimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profis-
sional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari-
to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas de múltipla escolha.
Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.
Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do curso de Graduação na modalidade
EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu
caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão ser
utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produções científicas.
© Caderno de Referência de Conteúdo 29
1
1. OBJETIVOS
• Conhecer a problemática fundamental da Filosofia da Lin-
guagem.
• Compreender a importância da linguagem para todas as
esferas da atividade humana em geral e, também, a liga-
ção íntima entre a linguagem e a especulação filosófica
em particular.
• Investigar sobre a natureza, a formação e a essência da
linguagem.
2. CONTEÚDO
• Sobre a natureza da linguagem.
• Texto complementar.
32 © Filosofia da Linguagem
Humberto Eco
Pensador, comunicador e escritor italiano, considerado
como um dos intelectuais mais relevantes da Europa na se-
gunda metade do século 20 e começo do 21. [...]; o mundo
do teatro, da televisão, da banalização midiática, da cultura
popular e outros aspectos serviram de argumento a textos
como Apocalípticos e integrados ante la cultura de ma-
sas, El superhombre de masas, Retórica e ideología en la
novela popular etc. A comunicação, incluído o despertar da
internet, está não só em sua obra escrita, mas, também, em
sua permanente presença pública, em conferências, arti-
gos periódicos, intervenções acadêmicas (INFOAMÉRICA,
Figura 1 Humberto Eco 2011, tradução nossa).
1) Portador de signo.
2) Designado (objeto designado).
3) Interpretado (a imagem mental do designado).
4) Intérprete (sujeito que utiliza o signo).
A partir dessa distinção, não será difícil esclarecer o caráter
relacional do signo, isto é, que o significado do signo é justamente
a informação fixada pelo designado, que é possível por meio do
sujeito em relação na semiosis e que, por assim dizer, se prende ao
portador do signo. Como resultado disso, o signo assume o esta-
tuto de expressão sintética da unidade dos principais aspectos da
semiosis e, com isso, torna-se o fator principal de cada ato comu-
nicativo. Em outras palavras, o signo objetivado (o nome) adquire
o poder de representar ou substituir o objeto representado no ato
da comunicação. Esta, por sua vez, se realiza somente por meio de
um sistema rigorosamente organizado de signos, de acordo com
determinadas regras. Tais regras são seguintes:
1) Regras sintáticas (formais) – para a formação de cons-
tructos de signos.
2) Regras semânticas (conteúdo) – para a significabilidade
dos signos e de constructos de signos.
3) Regras pragmáticas – para a utilização dos signos e dos
constructos de signos.
Agora, podemos descrever, de modo mais exato e mais bre-
ve, a erística do método semiótico na concepção da natureza e
do funcionamento da linguagem em geral. Antes de tudo, temos
de deixar bem claro que cada linguagem possui o caráter de de-
terminado sistema de signos. Simultaneamente, devemos desta-
car que nem toda aglomeração de signos possui a qualidade de
linguagem. Um aspecto fundamental dessa explicação possui a
noção de interpretação. Por essa noção, podemos fazer a dife-
renciação entre dois grupos de signos: interpretados – aqueles
que possuem sentido, e não interpretados, ou seja, aqueles que
não possuem sentido. Grosso modo, trata-se, por um lado, de
sistemas de signos com sentido e estrutura semânticos e, por ou-
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 37
5. TEXTO COMPLEMENTAR
Tomo o termo "gramática" no seu sentido mais lato, a ponto de incluir, ao lado de
uma sintática e uma semântica, também uma série de regras pragmáticas. Não
pretendo interrogar-me, neste momento, sobre a possibilidade e os limites de uma
ciência humana, mas parece-me que as semióticas específicas mais maduras
podem aspirar a um estatuto científico, incluindo-se aí a capacidade de prever
os comportamentos semióticos "médios" e a possibilidade de enunciar hipóteses
falsificáveis. É óbvio que estamos diante de um campo muito vasto de fenômenos
semióticos, e que existem sensíveis diferenças entre um sistema fonológico, que
se organizou por sucessivas acomodações estruturais e que é realizado pelos fa-
lantes de acordo com uma competência não explicitada, e um sistema de sinais,
imposto por convenção explícita, e cujas regras de competência são claras para
seus executores. As mesmas diferenças, entretanto, poderiam ser encontradas no
continuum das ciências naturais e todos nós sabemos o quanto a capacidade de
predizer da física é diferente daquela da meteorologia, como já dizia Stuart Mill.
Estou falando de semióticas específicas e não de semiótica aplicada: a semiótica
aplicada representa um campo de limites vagos, e neste caso falaria de práticas
interpretativo-descritivas, como acontece com a crítica literária de cunho ou de
inspiração semiótica, para a qual, creio eu, é necessário colocar problemas não de
caráter científico, mas de persuasão retórica, de utilidade para fins de compreen-
são de um texto, de capacidade de tornar o discurso sobre um determinado texto
intersubjetivamente controlável.
De 1978 em diante, havia-se estabelecido um debate cordial entre mim e Emilio
Garroni (desde Ricognizione della semiotica, de sua autoria, até sua recente parti-
cipação no livro de entrevistas organizado por Marin Mincu, La semiotica letteraria
in Italia), no qual podia parecer que ambas as posições eram muito rígidas. De um
lado, Garroni, que, desconfiando das várias aventuras das semióticas específicas,
conclamava ao dever de uma fundação filosófica; de outro, eu, que convidava
aos riscos da exploração empírica, adiando para mais tarde o problema filosófico.
Segundo o que estou afirmando, a oposição devia parecer mais nuançada. Estou
convencido de que às semióticas específicas devem colocar-se as mesmas ques-
tões epistemológicas internas, isto é, reconhecer e denunciar as próprias metafísi-
cas implícitas, visto que, por exemplo, não podemos delinear em qualquer sistema
(ou texto) traços "pertinentes", sem colocarmos o problema epistemológico de uma
definição de pertinência. Mas este é um problema comum a toda ciência, e não
creio que seja irresponsável afirmar que, às vezes, uma investigação científica
pode avançar muito nas próprias explorações sem interrogar-se sobre os próprios
fundamentos filosóficos. A interrogação poderá ser colocada justamente pelo fi-
lósofo, ou pelo cientista mesmo ao filosofar sobre o próprio procedimento, mas
não são raros os casos de investigações filosoficamente ingênuas que, todavia,
revelaram fenômenos e projetos de leis que outros depois sistematizaram de forma
mais rigorosa.
O caso de uma semiótica geral é diferente. A meu ver, ela é de natureza filosófica,
porque não estuda um determinado sistema, mas estabelece categorias gerais à
luz das quais sistemas diferentes podem ser comparados. E para uma semiótica
geral o discurso filosófico não é nem aconselhável nem urgente: é simplesmente
constitutivo.
Como proceder nesta interrogação filosófica? Há pelo menos dois caminhos. Um
é o que tem sido tradicionalmente trilhado pelas filosofias da linguagem (e não
vou dizer por causa disto que atualmente, em muitas universidades americanas,
ca revisitá-lo, não apenas para entender o que efetivamente foi dito, mas o que
poderia ter sido dito, ou, pelo menos, o que se pode dizer atualmente (talvez só
atualmente) ao reler tudo o que havia sido dito antes.
E assim, creio, deve-se fazer com o conceito central de todo pensamento da se-
miose, isto é, o conceito de signo.
Antes de mais nada, deve-se dizer que a semiótica contemporânea parece tomada
de angústia diante de uma alternativa. O próprio conceito fundamental é o signo
ou a semiose? Não é uma diferença pequena e, no fim, a alternativa repropõe a
escolha entre pensamento do έργον (érgon) e pensamento da ενέργεια (enérgeia).
Relendo a história do nascimento do pensamento semiótico deste século, digamos
do estruturalismo genebrês aos anos sessenta, parece que no início a semiótica se
apresenta como pensamento do signo; depois, cada vez mais, o conceito entra em
crise, dissolve-se, e o interesse desloca-se para a geração de textos, para a sua
interpretação, e para a variação das interpretações, para as pulsões produtivas,
para o próprio prazer da semiose.
Vamos dizer desde já que este livro procura superar a alternativa, voltando exa-
tamente às origens do conceito de signo, para mostrar como a alternativa surgiu
muito tarde e por uma série de fatores que serão discutidos no primeiro capítulo.
Em poucas palavras e para não repetir o que iremos dizer em seguida, trata-se
de redescobrir que a idéia primeira de signo não estava baseada na igualdade,
na correlação fixa estabelecida pelo código, na equivalência entre a expressão e
conteúdo, e sim na inferência, na interpretação, na dinâmica da semiose. O signo
das origens não corresponde ao modelo "a = b", mas ao modelo "se a, então...".
Remetendo-me às afirmações de Peirce, é verdade que a semiose é uma "ac-
ção ou influência, a qual é, ou implica uma cooperação de três sujeitos, o signo,
seu objeto e seu interpretante, de modo que esta influência relativa não pode de
forma alguma resolver-se em ações entre duplas" (CP 5.484). Esta definição de
semiose, no entanto, opõe-se à de signo só se esquecermos que, quando neste
contexto Peirce fala de signo, não o entende em absoluto como entidade biplanar,
mas como expressão, como representamen, e, por objeto, não entende apenas
o objeto dinâmico, ou seja, aquele a que o signo se refere, mas também o objeto
imediato, aquele que o signo expressa, ou seja, seu significado. O signo, portan-
to, acontece só quando uma expressão é imediatamente envolvida numa relação
triádica, na qual o terceiro termo, o interpretante, gera automaticamente uma nova
interpretação, e assim até o infinito. Por isto, para Peirce, o signo não é apenas
alguma coisa que está no lugar de alguma outra coisa, ou seja, está sempre, mas
só sob alguma relação ou capacidade. Na realidade, o signo é aquilo que sempre
nos faz conhecer algo a mais (CP 8.332).
É neste sentido que, nos capítulos deste livro, podemos encontrar o objeto «sig-
no», central em toda especulação semiótica do passado, mas indissoluvelmente
ligado ao processo de interpretação [...].
4
Neste ponto, uma semiótica geral (e aqui temos que assumir, a responsabilidade
de afirmar que eIa se propõe como a forma mais madura de uma filosofia da lin-
guagem, como o foi para Cassirer, Husserl ou Wittgenstein) tem precisamente o
dever de elaborar categorias que lhe permitam ver um único problema lá onde as
aparências encorajam a ver muitos e irredutíveis problemas.
À objeção comum dos filósofos da linguagem que sofrem de miopia (e alguns de-
les são citados neste livro, mas segundo o critério econômico da parte pelo todo)
de que uma nuvem não significa do mesmo modo como significa uma palavra,
responderemos que uma semiótica geral não parte absolutamente da convicção
de que os dois fenômenos são da mesma natureza. A revisitação histórica do pro-
blema, ao contrário, nos dirá exatamente que foram necessários muitos séculos,
de Platão a Santo Agostinho, para ousar afirmar, sem rodeios, que uma nuvem
(a qual, sob a espécie do índice, significa a chuva) e uma palavra (a qual, sob
a espécie do "símbolo", significa a própria definição) podiam ser reconduzidas à
categoria mais ampla de signo. O problema está exatamente em entender por que
chegamos neste ponto e por que, como veremos, sempre nos afastamos nova-
mente dele, numa dialética contínua de aproximações totalizadoras e fugas parti-
cularizadoras.
É banal dizer que uma nuvem é diferente de uma palavra. Mesmo uma criança
sabe disto. É menos banal perguntar-se, nem que seja apenas a partir de alguns
usos lingüísticos comuns irredutíveis, ou de algumas obstinadas e seculares reite-
rações teóricas, o que é que poderia estabelecer parentesco entre elas. [...] (ECO,
1991, p. 9-14).
........................................................................................................
6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, da Filosofia da Linguagem como disciplina filo-
sófica, da problemática envolvida entre a linguagem e o discurso
filosófico etc.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em
responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-
dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que
você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-
cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma
cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-
bertas com os seus colegas.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 43
Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.
2) b.
3) a.
4) c.
5) a.
7. CONSIDERAÇÕES
Como você pôde acompanhar, os problemas que a Filoso-
fia da Linguagem enfrenta estão em íntima relação com aspectos
fundamentais da Filosofia, como a Metafísica, a Lógica e a Teoria
do Conhecimento. No entanto, na contemporaneidade, essa disci-
plina vem adquirindo um campo de especulação próprio que, em
seu próprio desenvolvimento, abre caminho para novas especula-
ções filosóficas que ainda não haviam sido tratadas na história da
Filosofia, ou, se foram tratadas, não foram pela mesma perspecti-
va. De maneira geral, nesta unidade, você pôde vislumbrar quais
são os principais problemas da Filosofia da Linguagem, como, por
exemplo, a pretensão da linguagem natural ou científica em ex-
pressar de maneira correta o mundo ao nosso redor.
8. E-REFERÊNCIAS
ALSTON, W. P. O que é filosofia da Linguagem? Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.
br/~wfil/alston.htm>. Acesso em: 11 nov. 2010.
INFOAMÉRICA. Humberto Eco: perfil biográfico e acadêmico. Disponível em: <http://
www.infoamerica.org/teoria/eco1.htm>. Acesso em: 1 mar. 2011.
Lista de Figuras
Figura 1 Humbero Eco. Disponível em: <http://www.rochester.edu/news/photos/hi_res/
hi218.jpg>. Acesso em: 01 mar. 2011.
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Metafísica. Bauru: Edipro, 2006.
ECO, H. Semiótica e a filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991.
HUMBOLDT, W. von. Sobre a natureza da língua em geral. Tradução de Paulo Oliveira.
In: HEIDERMANN, Werner; WEININGER, Markus J. (Orgs). Wilhem von Humboldt –
Linguagem, Literatura, Bildung. Florianópolis: UFSC, 2006. p. 2-19.
______. Carta a Schiller: Sobre língua e poesia. Tradução de Izabela Maria Furtado
Kestler. In: HEIDERMANN, Werner; WEININGER, Markus J. (Orgs.). Wilhem von Humboldt
– Linguagem, Literatura, Bildung. Florianópolis: UFSC, 2006. p. 180-197.
KRASTANOV, S. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco, 2011.
NIETZSCHE, F. Acerca da verdade e da mentira. Tradução de Heloísa de Graça Burati. São
Paulo: Rideel, 2005.
EAD
Primeiros Problemas
Filosóficos Sobre a
Linguagem
2
1. OBJETIVOS
• Compreender a importância da linguagem para a configu-
ração do pensamento e do discurso filosófico.
• Analisar a passagem do mito ao logos, isto é, o surgimen-
to da Filosofia como um problema fundamental diante da
linguagem.
• Estudar as reflexões sobre a linguagem na fase inicial do
pensamento filosófico a partir do diálogo Crátilo.
2. CONTEÚDOS
• Introdução.
• Surgimento do logos.
• O problema da linguagem em Platão.
• Texto complementar.
48 © Filosofia da Linguagem
Platão (427 – 347 a. C)
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nesta unidade, você terá a oportunidade de se familiarizar
com os problemas em torno da linguagem em sua fase inicial. Com
efeito, o processo de gradativa passagem da representação mito-
lógica à conceitual coincide com a passagem do mito ao logos e
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 49
5. O SURGIMENTO DO LOGOS
A verdadeira história do logos incorporado na linguagem
coincide perfeitamente com aquele evento marcante conhecido
como surgimento da Filosofia, ou seja, quando, gradativamente,
o mito cede lugar ao logos, e a representação mitológica, à repre-
sentação conceitual.
Essa é a época em que a linguagem começa a configurar
mais definitivamente a vida dos homens, da sociedade, da econo-
mia, da política e do direito. As palavras como expressões do logos
cada vez mais se materializam como ordem e domínio, como meio
de comunicação e transmissão de saberes e experiências. Para ex-
plicitar devidamente esse fenômeno cultural embasado no logos,
faremos uma breve análise das duas visões dominantes no mundo
antigo: a visão mitológica e sua expressão metafórica e a visão
filosófica e a sua expressão conceitual.
Até o século 6º a.C., a visão mitológica dominou por completo
a consciência humana. As tentativas dos homens de explicar o mun-
do que os circunda e os fenômenos da natureza, cujos efeitos ele so-
fre, resultam em criações de mitos. É bem verdade que a explicação
mitológica é precária e ingênua; todavia, é uma explicação e é bem
melhor do que a falta de explicação. Os primeiros protagonistas des-
se anseio por respostas são Homero e Hesíodo. Os poetas contado-
res de fábulas constroem uma mundividência mitológica habitada
por deuses, monstros, heróis e simples mortais.
A principal ferramenta dessa construção é a metáfora. Seja
oralmente transmitida, seja por meio da escrita, a metáfora é uma
7. TEXTO COMPLEMENTAR
A fim de que você possa aprofundar seu conhecimento sobre
os problemas da linguagem no diálogo Crátilo, de Platão, apresen-
tamos, a seguir, um artigo a respeito da posição platônica sobre a
linguagem.
do diálogo O Sofista. Sem essa clareza, o texto pode levar, como de fato levou, a
interpretações diferentes e até mesmo contraditórias de seu conteúdo.
Pode-se estabelecer, no Crátilo, uma primeira análise, em duas partes, de acordo
com o interlocutor de Sócrates. São dois: Hermógenes, um discípulo seu, e Crátilo,
pensador de vertente heraclitiana. O primeiro participa com Sócrates na maior par-
te do diálogo (Crat., 383a-427d) e o segundo apenas no quarto final (Crat., 427d-
440e). É possível também subdividir a parte inicial em três seções.
Primeiramente temos uma introdução (Crat., 383a-384e) onde Hermógenes expõe
a Sócrates resumidamente as posições que se confrontam quanto à questão do
fundamento da linguagem. Em resumo, para Crátilo "cada coisa tem por natureza
um nome apropriado, e que não se trata da denominação que alguns homens
convencionaram dar-lhes" (Crat., 383a), o que está de acordo com a teoria na-
turalista dos nomes, segundo a qual as palavras têm sentido certo e sempre o
mesmo. Para Hermógenes, ao contrário, os nomes das coisas são estabelecidos
por convenção humana. Essa questão tomou em geral o nome de controvérsia
physis-nomos ou physis-thesis. Colocado diante dessas duas posições, Sócrates
aceita examiná-las.
Começa primeiramente pela tese admitida por Hermógenes e a parte 384e-387d
do diálogo será a sua crítica, uma vez que a sua conseqüência mais imediata seria
a total impossibilidade de conhecimento através da linguagem, devido ao seu ca-
ráter completamente arbitrário, dando nesse caso razão aos sofistas, para os quais
basta falar para dizer a "verdade".
Sócrates procura reduzir essa arbitrariedade, primeiramente ressaltando o caráter
coletivo da convenção, que se opõe ao particular subjetivo. Em seguida, já que
Hermógenes, como seu discípulo fiel, aceita que a relação entre Linguagem e
Mundo possa ser verdadeira ou falsa, e que, portanto, os nomes, enquanto par-
tes de proposições verdadeiras, devem ser necessariamente verdadeiros, limita a
convenção a convencionar o verdadeiro. Esta conclusão favorece o afastamento
de Sócrates, na obra, de posições sofísticas.
Finalmente, como Hermógenes ainda resiste, Sócrates critica a tese de Protágoras
da não-existência nas próprias coisas de uma essência de algum modo permanen-
te, sendo a verdade, o real, a opinião de cada um segundo as coisas lhe pareçam.
Para Protágoras não há essência, só aparência, não há verdade absoluta, todo o
conhecimento é pessoal e particular. Refuta também a tese de Eutidemo, segundo
a qual "as coisas são semelhantes e sempre para todo o mundo" (Crat., 386a).
Para Sócrates "as coisas devem ser em si mesmas de essência permanente, não
estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser desloca-
das em todos os sentidos por nossa fantasia, porém existem por si mesmas, de
acordo com sua essência natural" (Crat., 386d-e).
Assim, o Mundo, sejam os objetos, sejam as ações, tem uma organização per-
manente. A diferença necessária entre o bom e o mau, o judicioso e o insensato,
a razão e a sem-razão, diferença esta herdada por Platão do socratismo puro,
implica nisso.
Da mesma forma que a natureza de um corte depende da natureza do objeto
cortante e da natureza do objeto cortado, o dizer humano deve procurar recortar o
Mundo segundo a natureza desse mesmo Mundo. Toda técnica humana, techne,
se apóia na physis e age conforme sua própria natureza.
Exemplificando: se uma tesoura corta uma folha de papel, é porque a folha é "cor-
tável", isso faz parte de sua natureza. O Mundo também, "se é recortado" pela
linguagem, o é devido a sua natureza, da qual faz parte ser recortável assim, ou
dizendo o mesmo de outro modo, "conjuntizável" assim, já que o que existe é uma
única operação: separar-reunir. Mas isso não significa que o seja de qualquer ma-
neira. O Mundo não admite qualquer sentido.
Neste século, as análises semânticas de línguas de povos indígenas, com concep-
ções radicalmente diferentes das categorias européias tradicionais, favoreceram
a noção de um certo relativismo de base lingüística, para o qual não haveria um
Mundo, mas sim vários, tantos quantas fossem as estruturas lingüísticas existen-
tes. O exemplo da diversidade de organização do campo semântico das cores foi
repetido várias vezes como um paradigma incontestável. De fato, temos línguas
em que o que nós discernimos pelos nomes de amarelo e verde, são represen-
tados por apenas um nome. Ou, ao contrário, o que nós chamamos de azul, seja
claro ou escuro, para certas línguas tem dois nomes diferentes e não são encara-
das como sendo a mesma cor. Mas o que é esquecido nesses casos é que se são
apresentadas várias organizações possíveis é porque há um substrato físico que
as permite, mas não a todas as organizações ou recortes. Assim, por exemplo, não
há línguas que agrupem sob um mesmo nome o branco e o preto.
É o continuum físico, real, do espectro luminoso, que orienta a diversidade de pos-
sibilidades de se dar nomes às cores.
Para Platão, da mesma forma, essa ordem fundamental do Mundo impõe um limite à
arbitrariedade da linguagem. Essa arbitrariedade só se manifesta no que chamaría-
mos hoje de significante do signo lingüístico. O onoma, geralmente traduzido por nome
em Platão, antes do diálogo O Sofista, é instrumento para informar a respeito das coi-
sas e para separá-las de acordo com sua natureza, pois só enquanto de alguma forma
ligada ao Mundo, a linguagem, sendo uma techne, poderá operar sobre ele.
Quem tem o conhecimento para julgar a adequação dos nomes criados é o dia-
lético, que os usa para interrogar e responder. A justeza (orthotes) do instrumento
só patentear-se-á no contato com o Mundo, para o qual e a partir do qual foi feito.
Esse o motivo de Platão criticar a teoria convencionalista na sua versão mais radi-
cal, pois dessa forma estaria excluída, por sua total arbitrariedade, qualquer utiliza-
ção filosófica da linguagem. "Privarmo-nos disso", isto é, do discurso, "com efeito,
seria desde logo — perda suprema — privar-nos da filosofia" (Sof., 260a).
Na terceira parte do diálogo Crátilo (387d-427a), Hermógenes apresenta uma certa
resistência à crítica de Sócrates e pede uma demonstração da natural exatidão dos
nomes. Sócrates corrige essa formulação dizendo que os nomes não são exatos,
mas que têm uma "certa" correção (physei te tina orthoteta echon — Crat., 391a-b).
Assim, concluindo que há algo de certo no que Crátilo diz, ou seja, que "os nomes
das coisas derivam da sua natureza" e que "nem todo homem é demiurgo de no-
mes", pergunta-se que orthotes, que justeza é esta, a dos nomes.
Paradoxalmente, o que Sócrates irá demonstrar nessa parte central do diálogo,
pela aplicação da posição de Crátilo a aproximadamente 140 nomes, é que o mé-
todo etimológico é apenas uma engenhosidade humana, com um caráter muitas
vezes derrisório. O que mais propriamente faz é parodiar o método etimológico,
expondo suas falhas e levantando conexões com doutrinas filosóficas certamente
criticáveis para Platão. Essa exposição clara do método, levando-o até o seu fun-
damento que é, como veremos, a imitação da essência das coisas por meio de
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 59
sons e sílabas, assumida pelo próprio Sócrates, e que ocupa uma grande parte do
diálogo, é fundamental para problematizar o naturalismo lingüístico. Ao que pare-
ce, Crátilo, assim como Heráclito, é um tanto obscuro na expressão (bem no início
do diálogo, Hermógenes pedira a Sócrates para "interpretar o oráculo de Crátilo").
Sem essa "exposição", esse "desvelamento" do procedimento etimológico, não
seria possível criticá-lo de uma maneira completa.
Assim, Sócrates começa mandando Hermógenes procurar um sofista para apren-
der com ele a exatidão dos nomes, mas como seu discípulo não tem dinheiro para
pagar as aulas indica-lhe o exame de Homero, como se este fosse uma espécie de
"sofista dos pobres". Nos poemas homéricos distingüem-se nomes dados por deu-
ses e dados por homens, como no caso do rio Xanto Escamandro, ou diferentes
nomes dados ao mesmo referente, como por exemplo Astianax-Escamandrio para
o filho de Heitor. Nesse exame etimológico, Sócrates propõe o princípio diretor de
que é certo dar o mesmo nome ao pai e ao filho.
Novo sinal de que durante essa parte do diálogo as coisas não são como parecem,
o que não impediu alguns comentaristas da obra de tomarem a sério as palavras
de Platão, é o pequeno aviso que Sócrates dá a Hermógenes e indiretamente o
autor desse diálogo dá aos seus leitores: "Mas, acautela-te, para que eu não faça
alguma tramóia contigo". Ao dizer isto, e neste contexto, de que o gerador e o ge-
rado devem ter o mesmo nome, Sócrates brinca com o nome de Hermógenes, o
qual logo no início do diálogo confessou-se intrigado porque Crátilo lhe havia dito
que, conforme a sua teoria, os nomes Sócrates e Crátilo, que por sinal têm em
comum a palavra kratos (poder, força), eram naturais, mas o de Hermógenes não.
Como Crátilo guardasse para si o sentido irônico dessa afirmação, Hermógenes
pede a ajuda de Sócrates, que diz tratar-se de uma brincadeira de Crátilo, "talvez
com isso queira insinuar que desejarias ser rico, porém nunca chegas a adquirir
fortuna, por não ser de fato filho de Hermes", como seu nome sugeriria e muda de
assunto. O sentido, no entanto, parece ser outro. De fato, Hermes é por excelência
o "fornecedor de bens", mas outra característica sua é ser, como o chama Mircea
Eliade, um trickster, isto é, um trapaceiro, um velhaco, caracterizado por sua as-
túcia. É nesse sentido que Hermógenes não é Hermógenes, pois é, ao contrário,
ingênuo. Será, entretanto, o próprio Sócrates que assumirá temporariamente esse
parentesco com Hermes.
Hermógenes terá um papel útil, a partir daqui, no diálogo, que visa, sobretudo Crá-
tilo — diríamos um "inocente útil" no confronto agônico entre duas "forças".
Útil porque acompanhará e concordará com Sócrates em qualquer ponto, fazendo
o movimento dialético fluir, mesmo sendo previamente avisado de que será des-
viado do caminho correto.
Platão enfatiza o caráter excepcional dessa incursão etimológica. Hermógenes
será finalmente útil no final do diálogo, como exemplo vivo e presente de que o
método etimológico é falho. É através do próprio ser do seu interlocutor, seja sua
docilidade, seja sua insubmissão, seja o seu próprio nome, que Sócrates conduz
o método dialético.
Essa tramóia de Sócrates, assumindo aqui uma postura que critica, não é simples,
não se dá pela simples dicção do falso no lugar do verdadeiro. Há, na verdade,
uma mescla. Por entre as 140 etimologias, encontram-se críticas a Heráclito, cuja
doutrina Platão aprendeu do próprio Crátilo na juventude. Mas, mesmo no caráter
falho desse método, alguma verdade se manifesta. Assim, desde a primeira eti-
mologia que associa theoi (deuses) a thein (correr), é o mobilismo heraclitiano que
entra em cena. Esse mobilismo não é negado por Platão de uma forma total, já que
em O Sofista o movimento é considerado como um dos gêneros fundamentais,
mas juntamente com o repouso. Caso contrário, nenhum conhecimento verdadeiro
seria possível, já que o Mundo seria apenas um fluxo permanente, onde nenhum
objeto estabilizar-se-ia o suficiente para ser conhecido ou mesmo denominado.
O que Platão evidencia nessas etimologias é a incongruência do método, já que um
mesmo onoma pode, por natureza, nos levar à idéia do movimento e do repouso (como
a palavra episteme, por exemplo), sendo que para Platão esses dois gêneros podem
estar em comunhão com os seres, mas não entre si, pois isto significaria o aniquilamen-
to de ambos. Já para Heráclito, ao contrário, justamente o fato de episteme levar tanto
ao repouso como ao movimento seria uma evidência de que os nomes existem "por
natureza", pois manisfestar-se-ia nesse nome o princípio da unidade dos opostos.
Voltando ao texto: Sócrates começa a aplicar o princípio de que cada ser deve receber
o nome do gênero a que pertence para que seja correto, justo. Sendo assim, começa a
escalar uma linha genealógica ascendente, evidentemente patrilinear, que vai de filho
a pai, de heróis a deuses, apresentando o sentido etimológico de cada nome próprio:
Orestes = caráter feroz e selvagem, asperezas das montanhas
Agamêmnon = admirável em persistência
Atreu = obstinado, intemerato, funesto
Pélops = só vê o que se encontra próximo
Tântalo = o mais infeliz dos homens
Zeus = causa da vida
Cronos = pureza, limpidez de entendimento
Urano = que olha para cima
Hermógenes mostra-se admirado por essa ascensão ao mundo divino que o méto-
do proporciona. Sócrates diz ser um conhecimento que caiu sobre ele não se sabe
de onde, como uma espécie de inspiração, provavelmente influência da conversa
pela manhã com o advinho Eutífron. Diz ele: "É bem possível que seu entusiasmo
não somente me tivesse deixado os ouvidos cheios com sua sabedoria, como tam-
bém apoderou-se de minha alma" — e em seguida, "aproveitemos neste resto de
dia essa influência para concluirmos o que falta dizer sobre os nomes".
Essa referência a Eutífron só pode ser interpretada como pura ironia socrática,
já que no diálogo homônimo ele é apresentado como um fanático religioso que
considerava ser piedoso acusar o próprio pai do assassinato de um escravo, es-
cravo este que era assassino por sua vez, sem contar o fato de o pai de Eutífron
tê-lo matado por descuido. A aproximação do método etimológico com a inspiração
divinatória evidencia a falsa postura de Sócrates e o caráter insuficiente da teoria
naturalista dos nomes. Quanto à influência de Eutífron, ela será transitória, como
podemos observar logo em seguida: "mas amanhã, caso estejas de acordo, expul-
semo-la por meio de esconjuros e purifiquemo-nos, se por ventura encontrarmos
alguém que entenda de purificação, quer seja sacerdote ou sofista".
Como os nomes de heróis e de homens em geral propiciam o engano, a inves-
tigação recairá sobre nomes relacionados com as coisas eternas (aei ontá) e a
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 61
tantes são o objeto real e conhecível (to auto) e o conhecimento psíquico (lie epis-
teme) e que nome, definição e imagem apresentam variabilidade e contradição,
é sem dúvida por meio do penoso contato com esses elementos auxiliares, em
certas condições favoráveis, que pode o filósofo alçar-se até o inteligível. A imper-
feição dos onomata, enquanto participantes da natureza da mimesis, não permite
o seu desvinculamento da questão da verdade, como defende a tese convencio-
nalista, nem o seu vínculo necessário com o eidos, a Forma, enquanto instrumento
de uma techne (técnica) justa, que o identifica plenamente com a physis e o torna
o único método verdadeiro de conhecimento, segundo a tese naturalista.
Concluindo, a posição de Platão nessa controvérsia contrapõe-se, assim, a uma os-
cilação entre dois extremos que as teorias gregas da linguagem manifestam: ou uma
extrema confiança em que o nome diz a verdade (Heráclito e as primeiras tragédias),
ou uma extrema desconfiança, em que os nomes são nada mais do que nomes (Par-
mênides, Demócrito e sofistas), identificando linguagem, opinião e verdade.
Para Platão, o discurso é de "natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tem-
po" (Crat., 408c) como Pan, não por acaso filho de Hermes: "o que nele há de
verdadeiro é macio e divino e reside no alto com os deuses, por outro lado, o que
há de falso mora em baixo, com a multidão dos homens". Na visão platônica da
palavra, na sua função de representação do inteligível, mesmo que um tanto de-
gradada, as duas teses contrárias convergem e são superadas, tendo ambas algo
do verdadeiro eidos do onoma.
Desse modo, a linguagem, enquanto instrumento, tem o seu papel no aprimora-
mento do intelecto e é um meio na busca do conhecimento da essência, nesse ir e
vir entre onoma, logos, eidolon e to auto, mas devido a sua imperfeição enquanto
imitação é ao mesmo tempo um obstáculo à intuição pura das Formas Eternas
pela alma imortal, que não admitiria nenhuma mediação.
Em geral as interpretações dos historiadores da Lingüística sobre o Crátilo apresentam
uma abordagem ingênua em relação ao texto. Sem dar ouvidos aos avisos que Platão
tantas vezes, como vimos acima, coloca na boca de Sócrates, levam a sério seu longo
exercício etimológico, que nada mais é do que a desmontagem desse método, e con-
cluem que o autor ao final não toma qualquer partido na controvérsia physis-nomos.
Discordamos, portanto, que este diálogo em particular tenha um caráter aporéti-
co como os primeiros, de simples negação de teses opostas, demonstrando sim-
plesmente a sua imperfeição. Há algo positivo sendo enunciado: os nomes são
simultaneamente por natureza e por convenção. Sendo os nomes, nessa fase do
pensamento lingüístico de Platão, a essência do dizer, da linguagem, esse é o
pressuposto necessário implicado pelo dogma platônico de que o conhecimento
humano é possível e de que a linguagem tem propriedades que permitem ao mes-
mo tempo a enunciação do verdadeiro e do falso (PIQUÉ, 1996, p. 139-157).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.
2) a.
3) d.
4) a.
9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde acompanhar como a questão lin-
guística acompanha a Filosofia desde seu nascimento na Grécia
Antiga no século 6º a.C. Viu, também, que, com Platão, a investi-
gação racional da qual ele é o grande defensor, naquele período,
exigiu uma profunda investigação sobre a natureza da linguagem e
sua capacidade de comunicar a "verdade" expressa pelo logos em
seu diálogo Crátilo.
10. E-REFERÊNCIAS
DUCLÓS, M. Platão: bigrafia e pensamentos. Disponível em: <http://www.consciencia.
org/platao.shtml>. Acesso em: 1 mar. 2011.
Lista de figuras
Figura 1 – Platão: disponível em: <http://www.consciencia.org/platao.shtml>. Acesso
em: 1 mar. 2011.
3
1. OBJETIVOS
• Estudar o problema da linguagem durante a Idade Média
a partir da discussão dos universais.
• Compreender os argumentos das partes antagônicas des-
sa discussão: realistas e nominalistas.
• Analisar as soluções teóricas dos pensadores mais fluen-
tes dessa discussão, tais como Porfírio, Boécio, Abelardo
e William de Occam, entre os outros.
• Entender a importância da discussão sobre a linguagem e
suas implicações ontoteológicas.
2. CONTEÚDOS
• O problema da linguagem e a discussão medieval dos uni-
versais.
• Boécio e o problema dos universais.
68 © Filosofia da Linguagem
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, vimos como foram tratadas as questões
que giram em torno da linguagem na Antiguidade, dando ênfase
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 69
O conceitualismo de Abelardo
Segundo Abelardo, os termos gerais não podem ser coisas
(res), porque a sua função lógica é serem predicados da proposi-
ção, isto é, que se referem a muitas coisas individuais. Portanto,
os universais são palavras ou nomes. Colocando-se na posição do
nominalismo, Abelardo, todavia, distingue-se completamente do
verbalismo de Roscelino, afirmando que tais nomes não são sim-
plesmente palavras, mas noções – portadoras de significado lógi-
co. Tais noções constituem o conteúdo do nosso pensamento. Elas
se formam pela abstração.
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 77
6. TEXTO COMPLEMENTAR
O texto a seguir tem o propósito não apenas de enriquecer o
seu estudo sobre a Filosofia da Linguagem, mas também de enfati-
zar a sua importância no contexto filosófico da Idade Média.
Os universais–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A Idade Média parte de uma posição extrema, o realismo, e termina na outra so-
lução extrema e oposta, o nominalismo. O nominalismo é decerto antigo, quase
tanto quanto o realismo, e a história de ambos apresenta várias complicações e
distintos matizes; mas a linha geral do processo histórico é a que acabamos de
indicar. O realismo, que está em pleno vigor até o século XII, afirma que os univer-
sais são res, coisas. A forma extrema do realismo considera que estão presentes
em todos os indivíduos que neles se incluem e, portanto, não há uma diferença
essencial entre eles, diferem apenas por seus acidentes; são anteriores às coi-
sas individuais (ante rem). Em essência haveria apenas um homem, e a distinção
entre os indivíduos seria puramente acidental. Isso corresponde à negação da
existência individual e beira perigosamente o panteísmo. Por outro lado, a solução
realista era de grande simplicidade, e além disso prestava-se à interpretação de
vários dogmas, por exemplo o do pecado original; se em essência existe apenas
um único homem, o pecado de Adão afeta, naturalmente, a essência humana, e
portanto todos os homens posteriores. O realismo está representado por Santo
Anselmo e, em forma extrema, por Guilherme de Champeaux (séculos XI-XII).
Mas logo surgem adversários da tese realista. A partir do século XI aparece o
que se chamou nominalismo, principalmente com Roscelino de Compiègne. O que
existe são os indivíduos; não existe nada na natureza que seja universal; este exis-
te apenas na mente, como algo posterior às coisas (post rem), e sua expressão
é a palavra; Roscelino chega a uma pura interpretação verbalista dos universais:
nada mais são senão sopros da voz, flatus vocis. Mas essa teoria é também muito
distingue dos demais homens; isso é uma distinção formal a parte rei, o que Duns
Escoto denomina, com um termo próprio, haecceitas ou "hecceidade". A haeccei-
tas consiste em ser haec res, esta coisa. Em Pedro e em Paulo está toda a essên-
cia humana; mas em Pedro há uma formalitas a mais, que é a petreidade, e em
Paulo, apaulidade. Esse é o princípio da individuação em Duns Escoto, que não é
apenas material, como na metafísica tomista, mas também formal.
A posição de Duns Escoto abre caminho para o nominalismo. A partir de então, e
em especial no século XIV, vão se multiplicar as distinções e vai-se afirmar cada
vez mais a existência dos indivíduos. Já em Duns Escoto, sem excluir a forma es-
pecífica, são formalitates. Ockham dá um passo a mais e nega totalmente a exis-
tência dos universais na natureza. São exclusivamente criações do espírito, da
mente; são termos (daí o nome de terminismo dado também a essa linha). E os
termos são simplesmente signos das coisas: substituem na mente a multiplicidade
das coisas. Não são convenções, mas signos naturais. As coisas são conheci-
das mediante seus conceitos, e esses são universais; para conhecer um indivíduo
preciso do universal, da idéia: quando, com Ockham, os universais passam a ser
entendidos como meros signos, o conhecimento passa a ser simbólico. Ockham é
o artífice de uma grande renúncia: o homem vai renunciar a ter coisas e se resig-
nará a ficar só com seus símbolos. Será isso que tornará possível o conhecimento
simbólico matemático e a física moderna, que nasce nas escolas nominalistas, so-
bretudo de Paris. A física aristotélica e a medieval queriam conhecer o movimento,
as causas mesmas; a física moderna se contenta com signos matemáticos de tudo
isso; segundo Galileu, o livro da natureza está escrito com signos matemáticos; te-
remos uma física que mede variações de movimento, mas renuncia a saber o que
o movimento é. Vemos como a dialética interna do problema dos universais, assim
como a da criação, leva o homem do século XV a voltar os olhos para o mundo e
fazer uma ciência da natureza. A terceira grande questão da filosofia medieval, o
problema da razão, centrará definitivamente o homem nesse novo tema que é o
mundo (MARÍAS, 2004, p. 143-147).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Referente à discussão dos universais, no que diz respeito aos gêneros e às
espécies, podemos definir a sua problemática assim:
a) A questão é saber se os universais são realidades em si mesmas ou ape-
nas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam realidades
substanciais, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, são separadas
ou se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes.
b) A questão é saber se os universais são realidades em si mesmas ou ape-
nas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam simples
concepções do intelecto, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, são
separadas ou se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes.
Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.
2) c.
8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você teve a oportunidade de conhecer como
o problema da linguagem suscitou grande interesse por parte dos
filósofos e teólogos medievais. A discussão sobre os gêneros e as
espécies, ou melhor, sobre os universais, foi a grande questão das
discussões filosóficas da Idade Média. Apesar de não se tratar de
uma Filosofia da Linguagem, como a entendemos contemporane-
amente, temos de estar atentos para o fato de que é a linguagem
que, como pano de fundo de uma discussão ontoteológica, faz sur-
gir as grandes questões que causaram perplexidade aos espíritos
mais eruditos do período medieval.
Assim, a proposta foi conhecer o problema da linguagem du-
rante a Idade Média a partir da discussão dos universais. Para isso,
tivemos de compreender os argumentos das partes antagônicas
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 83
9. E-REFERÊNCIAS
DUCLÓS, M. Aristóteles: biografia e pensamentos. Disponível em: <http://www.
consciencia.org/aristoteles.shtml>. Acesso em: 1 mar. 2011.
MARÍAS, J. Os grandes temas da Idade Média (I): Os universais. Disponível em: <http://
sumateologica.wordpress.com/2010/04/14/os-grandes-temas-da-idade-media-i-os-
universais/>. Acesso em: 12 jan. 2011.
SANTOS, B. S. Antologia de textos. Disponível em: <http://www.bentosilvasantos.com/
cms/index.php?Dep._de_Filosofia:Projetos_de_Pesquisa>. Acesso em: 23 fev. 2011.
Lista de Figuras
Figura 1 Aristóteles. Disponível em: <http://www.consciencia.org/aristoteles.shtml>.
Acesso em: 1 mar. 2011.
4
1. OBJETIVOS
• Compreender as preocupações dos filósofos modernos, em
especial de Locke, em busca de uma linguagem legítima e
adequada.
• Conhecer a crítica russeauniana sobre a linguagem con-
ceitual e as suas implicações para a vida humana.
2. CONTEÚDOS
• Locke e a Filosofia da Linguagem.
• Rousseau e a linguagem romântica.
• Texto complementar.
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você teve a oportunidade de estudar as
principais concepções dos realistas e nominalistas que configuram
a grandiosa discussão dos universais. Nesta unidade, você estudará
algumas concepções sobre a linguagem a partir da modernidade,
entre as quais cabe destaque as concepções de Locke e Rousseau.
A modernidade, em busca de uma rigorosidade científica, influen-
ciada pelo significativo progresso das ciências modernas, coloca
o problema da linguagem como um dos aspectos fundamentais
desse anseio de rigor. Todavia, entre a busca desenfreada de ri-
gor linguístico, encontram-se posições opostas, tal como é a de
Rousseau, que inclina a um retorno ao romantismo linguístico que
possa acessar as paixões dos ouvintes.
7. TEXTO COMPLEMENTAR
Rousseau relata, na referida obra, que é a linguagem que diferencia os homens dos
animais [1]. Ela, além de ser expressão do pensamento humano, pode dividir-se ba-
sicamente em duas formas: através dos gestos (artes pictóricas, símbolos, gesticula-
ções etc.) ou da articulação de diferentes sons (a voz). Ambos – os gestos e os sons
– podem ser detectados também nos animais, mas estes seguem uma determinação
natural, pois a linguagem dentro de uma espécie, aparentemente, não muda.
Os homens, por outro lado, desenvolveram o que Rousseau chama de linguagem
de convenção [2] (gestos e palavras), que, embora sirva muitas vezes de empe-
cilho para a sua comunicação, possibilita que haja progresso na língua, já que a
mesma não está delimitada pela predeterminação natural, mas é desenvolvida e
aprimorada ao longo dos tempos. Por conseguinte, Rousseau passou a especular
sobre o motivo pelo qual o homem desenvolveu a sua linguagem de convenção, já
que ela é unicamente dele.
Com efeito, tanto os animais quanto os homens possuem praticamente as mes-
mas necessidades físicas. Por isso, estas não poderiam ser a causa determinante
da linguagem de convenção. Rousseau, contudo, apresenta uma faculdade que
é, de certa forma, própria do homem: os sentimentos [3]. Estes possibilitaram o
desenvolvimento daquela linguagem, pois as primeiras línguas certamente tinham
o intuito de falarem de sentimentos, como os usados no ato de expulsar um intruso,
de repelir uma injusta acusação, ou seja, de expressar os anseios de qualquer con-
vívio social. As necessidades físicas repeliam os homens (fome, frio, sede, etc.),
mas os sentimentos os reuniam, pois era necessário um convívio social para supe-
rar as dificuldades da natureza [4].
Além disso, Rousseau observava uma diferença entre as línguas do hemisfério
norte e as do sul: estas eram pronunciadas por homens que não enfrentavam co-
mumente as dificuldades da natureza e, por causa disso, elas teriam uma sonorida-
de macia, melodiosa, calma e amigável; já os homens que habitavam o hemisfério
norte, enfrentavam pesadas intempéries naturais (frio, gelo, rigorosos invernos) e,
por isso, tinham uma linguagem mais áspera e maior necessidade de convívio so-
cial. Consequentemente, as línguas do norte tenderiam a se desenvolverem mais
eficazmente para serem mais exatas e atenderem as exigências da comunicação
que aumentavam de acordo com a expansão do convívio social [5].
Do mesmo modo, Rousseau acreditava que, no princípio da humanidade, foi ne-
cessário que o homem reconhecesse o seu semelhante para ter sentimentos de
empatia e criar vínculos afetivos que fossem além dos familiares [6]. Por isso,
quando os homens tiveram consciência dos seus semelhantes, puderam racio-
cinar sobre o convívio social (o outro com os mesmos sentimentos que eu) e se
associarem para superarem as adversidades da natureza [7]. Foi desse modo,
enfim, que a língua falada se desenvolveu até ser inventada a língua escrita, criada
para facilitar a comunicação, tornando-a mais objetiva e clara (aperfeiçoamento
da gramática e da lógica, pois se fala de sentimentos, mas se escrevem idéias).
Observa-se ainda que tanto a escrita quanto a fala estão em constante mudança,
já que ambas têm o escopo de atender à comunicação, que é dinâmica [8].
Tendo em vista toda a trajetória feita pela linguagem, Rousseau conclui que o
progresso dessa se deu sobretudo de acordo com as necessidades ligadas aos
sentimentos do homem [9], além da mesma nascer com a liberdade dos homens
em se expressarem, visto que os mesmos eram livres para se comunicarem. Não
obstante, Rousseau, no último capítulo da referida obra, decidiu analisar qual a
relação entre a linguagem, sociedade e governo.
De fato, segundo Rousseau, num estado tirânico, não há espaço para a liberdade.
A linguagem que se originou na forma de um instrumento para a livre comunicação,
foi substituída pela força repressiva e pela corrupção. O homem se tornou alienado
e sua língua passa a ser apenas "sussurro dos sofás" [10] e estranha para si e para
os seus próprios concidadãos.
Nos estados despóticos, a única linguagem que prevalece é a repressiva e alienante,
uma vez que o discurso que pode ser dito é o sermão, ou melhor, os discursos autoritá-
rios. Desse modo, um orador pode proclamar a sua fala durante horas, mas a maioria
das pessoas ali presentes não sabe a respeito do que foi dito, pois as suas palavras
eram vazias de conteúdo, não expressavam o verdadeiro sentimento que havia no
povo reprimido: a ânsia por liberdade. Por isso, quando as línguas são ditas de forma li-
vre, multidões ouvem atentamente os oradores. Porém, em um contexto de repressão,
as palavras dos déspotas se tornam infrutíferas e inaudíveis pelo povo [11].
Portanto, Rousseau encontra uma relação entre costumes e atitudes de um povo
com a sua respectiva língua, relação essa que se origina na condição livre do
homem. A linguagem expressa, enfim, a liberdade: se o homem for reprimido de
forma autoritária, a sua linguagem será vazia, monótona, própria de alguém que
tem medo de exprimir a sua opinião; por outro lado, se o homem tiver condições de
se expressar sem receios, ele certamente terá uma linguagem aberta e eloqüente,
própria do ser humano livre e responsável pelo seu pensar e seu agir [12]".
Referências
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: vol. II, de Spinoza a
Kant. São Paulo: Paulus, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre o entendimento das línguas. 2.ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).
1 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 159.
2 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 163.
3 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 163.
4 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 180.
5 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 184-185.
6 No início da humanidade, a organização social se limitava ao círculo fami-
liar. Não havia a idéia de nação ou tribo formada por diferentes famílias.Cf.
ROUSSEAU,1978, p. 183.
7 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 181.
8 Houve uma passagem do homem caçador para pastor e deste para agricultor
(deixou de ser nômade). Ao mesmo tempo, o homem desenvolveu sua capacidade
de comunicação, passando de uma linguagem simplesmente sonora para uma
mais complexa, perpassando pela criação de uma linguagem escrita e lógica. Da
relação entre diferentes povos, as línguas primitivas se fundiram com o objetivo
de se aprimorarem e se tornarem mais claras e abrangentes dentro de um círculo
social. Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 170-171.
9 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 198.
10 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 199.
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 99
8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Qual das afirmações que se seguem é de Locke? Assinale a alternativa cor-
reta.
a) Não existe íntima relação entre ideias e palavras. As nossas ideias abstra-
tas e as palavras gerais não tem relação entre si e não é impossível falar
clara e distintamente sobre o nosso conhecimento – todo ele constituído
por proposições – sem considerar, em primeiro lugar, a natureza, o uso e
a significação da linguagem.
b) Existe uma tão íntima relação entre ideias e palavras As nossas ideias
abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão constante entre si
que é impossível falar clara e distintamente sobre o nosso conhecimen-
to – todo ele constituído por proposições – sem considerar, em primeiro
lugar, a natureza, o uso e a significação da linguagem.
c) Existe uma correspondência fictícia entre ideias e palavras. As nossas
ideias abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão inconstante
entre si que é impossível falar clara e distintamente sobre a nossa cons-
ciência – toda ela constituída por ideias simples – sem considerar, em
primeiro lugar, a natureza, o uso e a significação da linguagem.
d) Existe uma tão íntima relação entre ideias e palavra. As nossas ideias
abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão constante entre si que
é impossível falar clara e distintamente sobre o nosso conhecimento –
todo ele constituído por ideias complexas – sem considerar, em primeiro
lugar, a natureza, o uso e a significação da linguagem.
2) Rousseau apresenta-nos uma concepção evolucionista sobre a linguagem,
conforme a qual:
a) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades teóricas às neces-
sidades tecnológicas.
b) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades de acordo entre
as pessoas para acabar com a guerra de todos contra todos.
c) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades de sobrevivências
às necessidades de entretenimento.
d) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades naturais de co-
municar sentimentos, emoções, dores e pedir socorro até a necessidade
de expressar conceitos e ideias abstratas.
Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.
2) d.
9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, foi proposto um estudo sobre os problemas
da linguagem na modernidade, em que foi uma preocupação cons-
tante dos filósofos a busca por uma linguagem científica. Nesse
sentido, você pôde compreender as preocupações dos filósofos
modernos, em especial de Locke, em busca de uma linguagem le-
gítima e adequada. Além de conhecer a questão da linguagem de
Locke, conheceu, também, a crítica rousseauniana sobre a lingua-
gem conceitual e as suas implicações para a vida humana.
Na próxima unidade, você irá conhecer a crítica de Nietzsche à
linguagem conceitual e o retorno à linguagem poética que a compre-
ensão heideggeriana da metafísica tradicional suscitou. Acompanhe!
10. E-REFERÊNCIAS
CAMPOS, B. V. A linguagem em Rousseau: sua origem e sua finalidade como expressão
da liberdade humana. Disponível em: <http://pensamentoextemporaneo.wordpress.
com/2009/06/20/a-linguagem-em-rousseau-sua-origem-e-sua-finalidade-como-
expressao-da-liberdade-humana/>. Acesso em: 4 fev. 2011.
DUCLÓS, M. John Locke: biografia e pensamentos. Disponível em: <http://www.
consciencia.org/locke.shtml>. Acesso em: 2 mar. 2011.
PIROLA, da G. R. ... um pouco de Jean-Jaques Rousseau. Disponível em: <http://www.
unicamp.br/~jmarques/cursos/rousseau2001/mgrp.htm>. Acesso em: 2 mar. 2011.
Lista de figuras
Figura 1 John Locke. Disponível em: <http://www.constitution.org/img/john_locke.jpg>.
Acesso em: 2 mar. 2011.
Figura 2 Jean-Jaques Rousseau. Disponível em: <http://faculty.isi.org/media/images/
originals/JeanJacques_Rousseau.jpg>. Acesso em: 2 mar. 2011.
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 101
2. CONTEÚDOS
• Nietzsche e a crítica da metafísica a partir da linguagem.
• Linguagem e poesia: Heidegger.
104 © Filosofia da Linguagem
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você tomou conhecimento sobre os
anseios modernos de uma linguagem legítima e exata a partir de
Locke. Viu, também, a concepção oposta a esse anseio que rein-
troduz o romantismo da linguagem a partir de Rousseau.
Nesta unidade, você terá a oportunidade de estudar a po-
sição crítica referente à linguagem metafísica e científica a partir
de Nietzsche e Heidegger. Com Nietzsche, você apreenderá que
há um vínculo estreito entre conceito, verdade e moral, por um
lado, e entre metáfora e arte, por outro. Heidegger, por sua vez,
com sua crítica à metafísica, mostrará que nem a linguagem lógica,
Caso não haja uma relação causal entre os dois polos do conhe-
cimento, então o conceito não passa de uma criação arbitrária que,
por meio do esquecimento do homem "enquanto sujeito criador", por
meio da renúncia à sua natureza poética e inventiva, a validez univer-
sal do conceito vem à tona. Mas para que serve essa universalidade e
que função ela cumpre? Ordenar, classificar, calcular e dominar a vida
conforme o critério da "segurança" revela a intenção mais íntima do
impulso ao conceito (impulso ao conceito alude impulso à verdade
uma, vez que o conceito enuncia a verdade). O seu artífice é o intelec-
to, que "desdobra suas forças mestras no disfarce" (NIETZSCHE, 1991,
p. 53) e cuja missão suprema é produzir a consciência moral.
Pressupondo que toda linguagem é retórica e composta por
tropos, Nietzsche recusa a possibilidade de uma linguagem exata
e pura, isto é, uma linguagem natural que retrate as coisas. Isso
não é possível porque o homem não apreende coisas, apenas estí-
mulos nervosos provocados por tais coisas. Seus nomes, portanto,
nada mais são do que produtos dessa irritação nervosa, logo, algo
puramente subjetivo e arbitrário, embora a diferença entre os es-
tímulos nervosos subjetivos e as suas causas (coisas) seja insupe-
rável. O estímulo nervoso exterioriza-se a partir de uma imagem
sonora e, portanto, não é cabível atribuir a ela uma correspondên-
Texto complementar
Devido ao fato de que a nossa análise sobre a crítica nietzs-
chiana da linguagem conceitual gira em torno do ensaio Sobre ver-
dade e mentira num sentido extra-moral, achamos indispensável,
para o seu estudo mais consistente, a inserção dessa breve obra
na íntegra.
Para que você tenha acesso às notas de rodapé desse texto, con-
fira-o na íntegra no site disponível em: <http://operigodobelo.files.
wordpress.com/2008/03/nietzsche-verdade-e-mentira.pdf>. Aces-
so em: 13 jan. 2011.
e seus pensamentos.
É admirável que o intelecto seja responsável por esta situação, ele a quem todavia
não foi dado senão servir precisamente como auxiliar dos seres mais desfavoreci-
dos, mas vulneráveis e mais efêmeros, a fim de mantê-los na vida pelo espaço de
um minuto — existência da qual eles teriam todo o direito de fugir, tão rapidamente
como o filho de Lessing, não fosse esta ajuda recebida. Este orgulho ligado ao
conhecimento e à percepção, névoa que cega o olhar e os sentidos do homem,
engana-os sobre o valor da existência, exatamente quando vem acompanhada da
avaliação mais lisonjeira possível com relação ao conhecimento. O seu efeito mais
comum é a ilusão; mas seus efeitos mais particulares implicam também qualquer
coisa da mesma ordem.
O intelecto, enquanto meio de conservação do indivíduo, desenvolve o essencial
de suas forças na dissimulação, pois esta é o meio de conservação dos indivíduos
mais fracos e menos robustos, na medida em que lhe é impossível enfrentar uma
luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais
carnívoros. É no homem que esta arte da dissimulação atinge o seu ponto culmi-
nante: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, a calúnia, a ostentação, o fato de
desviar a vida por um brilho emprestado e de usar máscaras, o véu da convenção,
o fato de brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, em suma, o
gracejo perpétuo que em todo lugar goza unicamente com o amor da vaidade,
são nele a tal ponto a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível do que o
aparecimento, nos homens, de um instinto de verdade honesto e puro. Eles estão
profundamente mergulhados nas ilusões e nos sonhos, seu olhar somente desliza
sobre a superfície das coisas e vê apenas as "formas", sua percepção não leva
de maneira nenhuma à verdade, mas se limita a receber as excitações e a andar
como que às cegas no dorso das coisas. Além disso, durante a vida toda, o ho-
mem se deixa enganar à noite pelos sonhos, sem que jamais o seu sentido moral
procure impedi-lo disso, embora deva haver homens que, por força da vontade,
tiveram sucesso em se livrar do ronco. Mas o que sabe o homem, na verdade, de
si mesmo? E ainda, seria ele sequer capaz de se perceber a si próprio, totalmente
de boa-fé, como se estivesse exposto numa vitrine iluminada? A natureza não lhe
dissimula a maior parte das coisas, mesmo no que concerne a seu próprio corpo,
a fim de mantê-lo prisioneiro de uma consciência soberba e enganadora, afastado
das tortuosidades dos intestinos, afastado do curso precipitado do sangue nas
veias e do complexo jogo de vibrações das fibras? Ela atirou fora a chave; e infeliz
da curiosidade fatal que chegar um dia a entrever por uma fresta o que há fora
desta cela que é a consciência e aquilo sobre o que ela está assentada, e desco-
brir então que o homem repousa, a despeito da sua ignorância, sobre um fundo
impiedoso, ávido, insaciável e mortífero, agarrado a seus sonhos assim como ao
dorso de um tigre. Nessas condições, haveria no mundo um lugar de onde pudes-
se surgir o instinto de verdade?
No estado de natureza, na medida em que o indivíduo quer conservar-se diante
dos outros indivíduos, ele não utiliza sua inteligência o mais das vezes senão com
fins de dissimulação. Mas, na medida em que o homem, ao mesmo tempo por
necessidade e por tédio, quer viver em sociedade e no rebanho, necessário lhe é
concluir a paz e, de acordo com este tratado, fazer de modo tal que pelo menos o
aspecto mais brutal do bellum omnium contra omnes desapareça do seu mundo.
Ora, este tratado de paz fornece algo como um primeiro passo em vista de tal enig-
mático instinto de verdade. De fato, aquilo que daqui em diante deve ser a "verda-
de" é então fixado, quer dizer, é descoberta uma designação uniformemente válida
convenção estabelecida, mentir como rebanho e num estilo obrigatório para todos.
Na verdade, o homem esquece que é assim que se passam as coisas. Ele men-
te portanto inconscientemente, tal como indicamos, conformando-se a costumes
seculares... e é mesmo por intermédio dessa inconsciência, desse esquecimento,
que ele chega ao sentimento da verdade. Ao experimentar o sentimento de estar
obrigado a designar uma coisa como vermelha, outra como fria, uma terceira como
muda, ele é seduzido por um impulso moral que o orienta para a verdade e, em
oposição ao mentiroso a que ninguém dá crédito e que todos excluem, o homem
é persuadido da dignidade, da confiança e da utilidade da verdade. Enquanto ser
racional, deve agora submeter seu comportamento ao poder das abstrações; não
suporta mais ser levado pelas impressões súbitas e pelas intuições, mas genera-
liza em primeiro lugar todas as impressões em conceitos mais frios e mais exan-
gües, a fim de atrelar neles a condução da sua vida e do seu agir. Tudo o que eleva
o homem acima do animal depende dessa capacidade de fazer desaparecer as
metáforas intuitivas num esquema ou, em outras palavras, dissolver uma imagem
num conceito. Sob o domínio desses esquemas, é possível ser bem sucedido em
relação àquilo que jamais se alcançaria submetido às primeiras impressões intuiti-
vas: edificar uma pirâmide lógica ordenada segundo divisões e graus, instaurar um
novo mundo de leis, privilégios, subordinações e delimitações, que se opõe desde
logo ao outro mundo, o mundo intuitivo das primeiras impressões, como sendo
aquele melhor estabelecido, mais geral, melhor conhecido, mais humano e, por
esta razão, como uma instância reguladora e imperativa. Enquanto toda metáfora
da intuição é particular e sem igual, escapando sempre portanto à qualquer clas-
sificação, o grande edifício dos conceitos apresenta a estrita regularidade de um
columbário romano, edifício de onde emana aquele rigor e frieza da lógica que são
próprios das matemáticas. Aquele que estivesse impregnado desta frieza hesitaria
em crer que mesmo o conceito — duro como o osso e cúbico como um dado e
como ele intercambiável — acabasse por ser somente o resíduo de uma metáfora
e que a ilusão própria a uma transposição estética de uma excitação nervosa em
imagens, se não era a mãe, era entretanto a avó de tal conceito. Mas nesse jogo
de dados dos conceitos, chama-se "verdade" o fato de se utilizar cada dado segun-
do a sua designação, de computar exatamente seus pontos, de formular rubricas
corretas e de jamais pecar contra o ordenamento das divisões ou contra a série
ordenada das classificações. Assim como os romanos e os etruscos dividiram o
céu segundo linhas matemáticas estritas e destinaram este espaço assim delimita-
do para templum de um deus, assim também todo povo possui um céu conceitual
semelhante a que está adstrito; a exigência da verdade significa então para ele que
todo conceito, a exemplo de um deus, somente deve ser procurado na sua própria
esfera. Bem poderíamos, a respeito disso, admirar o homem pelo fato de ser ele
um poderoso gênio da arquitetura: ele conseguiu erigir uma catedral conceitual
infinitamente complicada sobre fundações movediças, de qualquer maneira sobre
água corrente. Na verdade, para encontrar um ponto de apoio em tais fundações,
precisa-se de uma construção semelhante às teias de aranha, tão fina que possa
seguir a corrente da onda que a empurra, tão resistente que não se deixe despe-
daçar à mercê dos ventos. Enquanto gênio da arquitetura, o homem supera em
muito a abelha: esta constrói com a cera que recolhe da natureza, o homem o faz
com a matéria bem mais frágil dos conceitos que é obrigado a fabricar com seus
próprios meios. Nisso, o homem é bem digno de ser admirado — mas não por seu
instinto de verdade ou pelo conhecimento puro das coisas. Se alguém esconde
algo atrás de uma moita e depois a procura exatamente nesse lugar acabando por
encontrá-la aí, não há nenhum motivo para a glorificação dessa procura e dessa
descoberta. Mas é todavia isso o que ocorre com a procura e a descoberta da
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 127
real. Mas a cristalização e a esclerose de uma metáfora não daria nenhuma garantia
quanto à necessidade e à legitimidade exclusiva desta metáfora.
Todo homem familiarizado com tais considerações experimentou evidentemente
uma desconfiança profunda a respeito de todo idealismo desse tipo, a cada vez
que se mostrou claramente persuadido pela lógica, pela universalidade e pela infa-
libilidade eternas das leis da natureza, e disso tirou a seguinte conclusão: aí tudo é
certo, elaborado, infinito, regrado, desprovido de falha até onde pode levar o nosso
olhar — graças ao telescópio apontado para as alturas do mundo e graças ao mi-
croscópio dirigido para as suas profundezas. A ciência terá sempre material para
explorar com êxito este poço e tudo quanto ela puder encontrar concordará sem se
contradizer. Quão pouco se assemelha isto a um produto da imaginação, pois, se
assim o fosse, seria todavia necessário que algo da ilusão e da irrealidade que lhe
são próprias se revelasse. Ao contrário, é preciso dizer primeiramente o seguinte:
se tivéssemos em cada parte nossa uma percepção sensível de natureza diferen-
te, poderíamos perceber ora como um pássaro, ora como um verme de terra, ora
como uma planta; ou, se um de nós percebesse uma excitação visual como ver-
melha, se outro a percebesse como azul ou se, para um terceiro, fosse uma exci-
tação auditiva, ninguém diria que a natureza é regida por leis, mas contrariamente
a conceberíamos somente como uma construção altamente subjetiva. Assim: o
que é então para nós uma lei da natureza? Ela não nos é conhecida em si, mas
apenas nos seus efeitos, ou seja, nas suas relações com outras leis da natureza
que, por sua vez, somente são conhecidas enquanto relações. Portanto todas as
relações nada fazem senão remeter-se umas às outras e nos são absolutamente
incompreensíveis quanto à sua essência. Unicamente o que aí colocamos, o tem-
po e o espaço, quer dizer, as relações de sucessão e os números, nos é realmente
conhecido. Mas tudo o que precisamente nos surpreende nas leis da natureza, que
reclama nossa análise e que poderia nos levar à desconfiança do idealismo, reside
de fato e unicamente no rigor matemático, unicamente na inviolabilidade das re-
presentações do tempo e do espaço, e não em outro lugar. Ora, produzimo-las em
nós e projetamo-las fora de nós segundo a mesma necessidade que leva a abelha
a tecer sua teia. Se somos obrigados a conceber todas as coisas apenas sob tais
formas, então não há nada de admirável em captar sob estas mesmas formas o
que verdadeiramente procuramos nas coisas. De fato, todas elas necessariamente
se referem às leis do número, e o número é justamente o que há de mais surpre-
endente nas coisas. Toda presença das leis que se nos impõe sobre o curso dos
astros e sobre os processos químicos coincide no fundo com aquelas proprieda-
des que acrescentamos às coisas para assim darmo-nos respeito a nós mesmos.
Disso resulta, sem dúvida nenhuma, que esta criação artística de metáforas que
marca em nós a origem de toda percepção pressupõe já aquelas formas nas quais,
por via de conseqüência, ela se efetua. É apenas a persistência invariável dessas
formas originais que explica a possibilidade que permite assim construir um edifício
conceitual apoiado novamente sobre as próprias metáforas. Este edifício é com
efeito uma réplica das relações de tempo, espaço e número, reconstruído sobre a
base das metáforas (NIETZSCHE, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Depois de ter acompanhado os problemas referentes à lin-
guagem na filosofia de Nietzsche, você irá acompanhar, no tópico
a seguir, como o ilustre filósofo alemão Heidegger, encontrou na
linguagem poética uma forma mais adequada de linguagem, em
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 129
Texto complementar
O ser era o eu, o "eu" tornava-se um "rei" das pressuposições filosóficas, a medida
de todas as coisas. O filósofo alemão refutou a coroação do eu e procurou o ser
essencial, que não é o eu nem o outro, mas somos nós, e nós "não somos de fato
eus cartesianos auto-encerrados e autocentrados, mas aberturas receptivas volta-
das para o mundo" (Rée 1999: 45)
O ser heideggeriano só pode ser encontrado pelo Dasein e no Dasein ou "ser-
aí": "O Dasein é o ente que compreende o ser, o que significa entendê-lo em sua
existência e entender a existência como possibilidade sua, de ser ou de não ser si
mesmo, com a qual está concernido" (Nunes 2002: 12).
Por Dasein devemos entender nós mesmos quando estamos à procura do ser,
mas não nos enganemos: "nós mesmos" significa a existência humana, o homem
enquanto tentado a revelar-se a si mesmo, não uma consciência subjetiva, um
raciocínio ou um corpo humano: "mas como Daseins não somos nada além de
nossas compreensões e incompreensões do mundo e do lugar que nele ocupa-
mos, e de nossas mais ou menos claras compreensões e incompreensões dessas
próprias compreensões, e assim por diante, interminavelmente. (Rée 1999: 16).
Apenas partindo do "ser-aí" (Dasein) é que nos é possível chegar à descoberta do
ser, visto que o primeiro compreende o segundo. Mas o "ser-aí" não é uma entida-
de virtual, um exemplo do ser que só existe para ilustrar a filosofia heideggeriana:
ele é o ser vinculado ao mundo. E mundo para o filósofo não é o que sempre
entendemos como tal (Universo, globo terrestre, espaço), ele abrange muito, é
geografia, sociedade, economia, e principalmente história.
Afonso de Castro, estudioso da poesia de Manoel de Barros, analisou a obra do
poeta à luz da filosofia de Heidegger no livro A Poética de Manoel de Barros. Sua
definição do mundo heideggeriano pareceu-nos bastante adequada e elucidativa.
Castro escreveu que mundo, para Heidegger, é a totalidade em que o ser humano
está imerso.
Ele pré-existe a qualquer noção de sujeito objeto. O mundo é algo pressuposto, já
dado. O mundo sendo algo já dado, englobante, está sempre presente e resiste a
qualquer tentativa de objetivação.
O mundo dá-se a perceber somente junto com as entidades que surgem nele. A
compreensão ocorre através do mundo. Segundo Heidegger, mundo e compreen-
são são partes inseparáveis da constituição do Dasein. (1992: 85)
O mundo é com o Dasein, quando Afonso de Castro aponta que o mundo permite a
compreensão, quer dizer que ele se abre no Dasein, por isso não há uma objetiva-
ção, mas uma figuralidade do mundo, ele acontece como. Ao contrário da filosofia
platônica, em que o mundo existia "antes", como essência, na filosofia heidegge-
riana, o mundo existe sempre sendo e acontecendo.
Quando dissemos que o ser não é tratado como uma subjetividade, abrimos já
uma fenda para falar do .ser-aí. e do mundo: o ser no mundo é um "ser-com", pois
sua totalidade só se dá na convivência com outros seres. O Dasein não é o homem
sozinho, e para entendermos o ser, devemos enxergá-lo no mundo compartilhado.
Mas enquanto o ser se revela no "ser-com" como um ser no mundo, ele principia o
seu encobrimento, a sua ocultação, pois a relação com os outros leva o homem à
vida cotidiana, que por sua vez, o leva à inautenticidade.
É importante que entendamos a inautenticidade para que cheguemos à verdade, à
obra de arte e à poesia. Ela é o homem afastado de tornar-se si mesmo e de reco-
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 137
nhecer o ser primordial dentro de si. Na sua vivência cotidiana, o homem acostu-
ma-se com o mundo e vive em um profundo estado de esquecimento. Ele encobre
o Dasein, tornando-o oculto e não se dá conta do seu esquecimento, procura ser
autêntico e "dono de si", na trivialidade da vida. O esquecimento promovido pela
vida cotidiana é o mesmo proporcionado pela tradição filosófica, ele não deixa que
o ser e o ente sejam o que eles realmente são, Heidegger fala dele em A Origem
da Obra de Arte: "O que nos parece natural é unicamente o habitual do há mui-
to adquirido, que fez esquecer o inabitual, donde provém. Este inabitual, todavia,
surpreendeu um dia o homem como algo de estranho, e levou o pensamento ao
espanto" (Heidegger 1990: 17).
E a respeito da força que o cotidiano tem em trazer o esquecimento e a ocultação
do ser do ente, o filósofo escreve em "Sobre a essência da verdade": O homem se
limita à realidade corrente e passível de ser dominada, mesmo ali onde se decide
o que é fundamental. E se ele se decide alargar, transformar, se apropriar e as-
segurar o caráter revelado do ente nos domínios mais variados de sua atividade,
ele, contudo, procura as diretivas para tal nos estreitos limites de seus projetos e
necessidades correntes. (Heidegger 1979c: 142)
É também de "Sobre a essência da verdade", que tiramos as considerações do filó-
sofo alemão a respeito da verdade do ser e do ente. Os filósofos gregos deixaram
uma herança de pensamento sobre a verdade desde Platão, que a considerava
imutável e eterna como parte da essência do ser, e Aristóteles, que a pensou como
uma correspondência entre juízos e objetos. Sendo pensada assim, na relação
sujeito/ objeto, a verdade, segundo Heidegger, perdeu seu sentido original. Ele vai
pensá-la enquanto relacionada à existência do ser.
A concepção de verdade heideggerina inverte as idéias tradicionais de "adequa-
tio" da enunciação, não é porque um enunciado está adequado ao ente que ele
é uma verdade, mas o ente já trazia essa verdade, ela já se encontrava em seu
comportamento. Assim, a verdade tem uma estrutura de evento; a verdade, para
Heidegger, acontece. O acontecimento da verdade dá-se no "deixar-ser" do ente,
que, por sua vez, só é possível pela liberdade. Heidegger vai dizer que a essência
da verdade é a liberdade, pois ela permite que cada ente seja o ente que é e que
assim, a verdade aconteça, e usa então a palavra grega "alétheia", que tem seu
sentido mais puro em "desvelamento", para definir a verdade: A liberdade assim
compreendida, como deixar-ser do ente, realiza e efetua a essência da verdade
sob a forma do desvelamento do ente. A "verdade" não é uma característica de
uma proposição conforme, enunciada por um "sujeito" relativamente a u "objeto" e
que então "vale" não se sabe em que âmbito; a verdade é o desvelamento do ente
ao qual se realiza uma abertura (Heidegger 1979c: 139)
O Dasein velado, esquecido e escondido só pode existir como abertura. É a verdade
acontecendo entre o ente e o ser-aí, que abre a clareira em que os dois podem acon-
tecer e se revelar. A clareira, segundo Heidegeer, é essa abertura do Dasein ao ser.
Como já dissemos, o Dasein caiu no esquecimento e na inautenticidade e só através
do acontecimento da verdade é que ele volta à sua origem, ou seja, ao seu ser.
Todas as reflexões sobre a verdade como desvelamento do ser e do ente Heide-
gger vai retomar em "A origem da obra de arte", texto que, aliado a "Hölderlin y
la esencia de la poesía", nos oferecerá o verdadeiro caminho de nosso trabalho,
aquele que nos levará à questão da poesia na filosofia heideggeriana.
A LINGUAGEM
Por que a própria linguagem é Poesia? Aqui, nos deparamos com um outro ele-
mento importante da filosofia heideggeriana e por isso teremos que nos dedicar a
ele: a relação entre o ser e a linguagem. Ela é o início, a possibilidade maior de
algo ser e existir, ela mostra algo, através dela, o ser se manifesta. Nas palavras
do próprio Heidegger: "A linguagem não é apenas e não é em primeiro lugar uma
expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em
palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a linguagem é o que
primeiro traz ao aberto o ente enquanto ente" (Heidegger 1990: 59).
gem não é possibilitada pelo científico ou pelo usual que acabam embaciando a
verdadeira linguagem original: a Poesia.
é o poetizar de si mesma.
No texto "Hölderlin y la esencia de la poesia", Heidegger ainda nos mostra que a
poesia erige um mundo:
La poesia no es un adorno que acompaña la existencia humana, ni sólo una pa-
sajera exaltación ni un acaloramiento y diversión. La poesía es el fundamento que
soporta la historia, y por ello, no es tampoco una manifestación de la cultura, y
menos aún la mera "expresión" del .alma de La cultura. (1958: 108).
Como fundamento da história, a poesia cria um mundo; tratada desse modo, ela se
afasta das definições estéticas que a vêem como o expoente de uma cultura, pois
tal visão inverte a definição heideggeriana: produto de uma cultura, a poesia seria
então conseqüência do mundo.
Mundo e terra revelam-se na poesia por meio da linguagem e só no olhar atento
sobre cada palavra de um poema é que podemos descobrir o ser profundo e es-
quecido de cada ente. Na análise que Heidegger faz sobe a obra de Höderlin, cada
palavra, uma a uma, traz à luz uma verdade; o olhar sobre cada palavra desoculta
algo que só tendo em mente a filosofia heideggeriana (elementos como Dasein,
mundo, terra e alétheia), seríamos capazes de pensar.
Segundo Afonso de Castro, há três etapas a serem cumpridas na análise de um
poema ao modo heideggeriano: a primeira constitui a procura de um sentido atra-
vés do edifício das palavras (tal sentido revelaria o ser do poema), a segunda
etapa é a de verificação da .área que o poema abriu. (1992: 89), acontecimento
que o autor não explica de maneira abrangente, mas pensamos ser essa área o
lugar onde o mundo se revela; finalmente, a análise proposta busca aquilo que
está mais escondido no poema, a origem do que se oculta e se desoculta em todo
o poema.
Para uma análise como essa, o conhecimento da filosofia heidegerriana é impres-
cindível, assim como é importante que se tenha em mente o papel da linguagem
nessa corrente de pensamento. Outra corrente de pensamento sobre a literatura.
O estruturalismo - também viu no trabalho com a linguagem o caminho para se es-
tudar um poema, porém a linguagem focada nos trabalhos estruturalistas não tem
o mesmo sentido que a heideggeriana. Neles, a linguagem é uma matéria, o rigor
científico e a obediência à lógica devem ser o meio de analisá-la. Não por acaso,
em grande parte desses trabalhos, gráficos e tabelas são utilizados. Pensar a lin-
guagem para Heidegger é livrar-se de conceitos pré- estabelecidos e deixar que
novas verdades aconteçam. É por isso que o método de análise proposto pelo filó-
sofo alemão é como um filosofar, nele, poetar e filosofar se confundem, enquanto
a linguagem é ao mesmo tempo (no pensamento tradicional) "sujeito" e o "objeto"
da análise, em uma fusão em que não existem sujeito e objeto, não há metafísica
e a compreensão existencial tem a possibilidade maior de acontecer.
Enfim, com o pensamento de Martin Heidegger, poesia e filosofia travam uma re-
lação em que são quase indissociáveis, uma precisa da outra. A poesia pensada
pelo filósofo não poderia ser visitada pelos Estudos Literários sem o conhecimento
da ontologia do Dasein e todos os elementos que a envolvem.
Usando tal reflexão, a análise literária ganha muito, pois ela pede um pensamento
apurado sobre as palavras no poema e sua relação com a existência do poético.
Em uma análise heideggeriana, ao edificarmos as palavras do poema, estamos
procurando a palavra original, aquela que se desdobrou em todas as metáforas do
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 143
7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Leia a frase:
Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer
conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas,
Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.
2) c.
8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você conheceu as posições dos filósofos con-
temporâneos Nietzsche e Heidegger sobre a linguagem. Há algo
comum na análise desses filósofos sobre a linguagem, uma vez que
ambos criticam a linguagem conceitual como forma de apresenta-
ção da "verdade" e veem na metáfora, na linguagem poética e no
mito presente, também presente no pensamento pré-socrático,
uma experiência linguística mais autêntica à condição do homem.
Nesse sentido, foi preciso compreender como a Filosofia contem-
porânea, a partir de Nietzsche e Heidegger, se configura como crí-
tica total da metafísica tradicional e como nessa crítica o problema
da linguagem assume uma importância fundamental. Na próxima
unidade, você irá estudar os problemas que a linguagem suscitou
aos lógicos contemporâneos. Vamos lá?
9. E-REFERÊNCIAS
DUARTE, A. Rüdiger Safranski 2000: Heidegger – um mestre da Alemanha entre o bem
e o mal. Natureza Humana, São Paulo, jan-jun. 2001. Disponível em: <http://pepsic.
homolog.bvsalud.org/pdf/nh/v3n1/v3n1a07.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2011.
HADDOCK-LOBO, R. Otobiografias de Nietzsche em Derrida. Disponível em: <http://
revistaitaca.org/versoes/vers13-09/8-27.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2011.
NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira num sentido extramoral. Disponível em:
<http://operigodobelo.files.wordpress.com/2008/03/nietzsche-verdade-e-mentira.
pdf>. Acesso em: 13 jan. 2011.
Lista de figuras
Figura 1 Friedrcih Nietzsche. Disponível em: <http://static.newworldencyclopedia.
org/2/23/Nietzsche1882.jpg>. Acesso em: 3 mar. 2011
2. CONTEÚDOS
• A linguagem como problema filosófico.
• Frege e a questão semântica.
• Russell e a teoria do atomismo lógico.
• Wittgenstein: linguagem como figuração e como instru-
mento.
• Gilbert Ryle e linguagem como forma de dissolver pseu-
doproblemas filosóficos.
148 © Filosofia da Linguagem
Gottlob Frege
Nasceu a 8 de novembro de 1848 em Wismar, Merklenberg
Schwerin (actualmente Alemanha). Estudou na Universidade
de Jena (1869-1871) e na Universidade de Gottingen (1871-
1873), dedicando-se à Matemática, à Física e à Química.
Ensinou na Universidade de Jena no departamento de Ma-
temática onde permaneceu o resto da sua vida profissional.
Inicialmente, ensinava qualquer ramo da matemática, mas
as suas publicações eram fundamentalmente no campo da
lógica.
Os seus estudos em Filosofia da Lógica, Filosofia da Mate-
mática e Filosofia da Linguagem fazem de Frege um dos
Figura 1 Gottlob Frege. maiores matemáticos, lógicos e filósofos de sempre.
Frege queria mostrar que a aritmética era idêntica à lógica e pode-se dizer que
recriou a disciplina da lógica ao construir o primeiro «cálculo de predicados». Um
cálculo de predicados é um sistema formal constituído por duas componentes:
a linguagem formal e a lógica (disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/
opombo/seminario/fregerussel/biografia_frege.htm>. Acesso em: 15 mar. 2011).
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 149
Bertrand Russell
A vida de Bertrand Russell abrange um período enorme,
quase um século, estendendo-se da Inglaterra Vitoriana à
era Espacial. Como o próprio Bertrand Russell costumava
dizer, ele é uma espécie de relíquia vitoriana... Mas não é
nossa intenção considerá-lo como tal nesta página.
O fascínio que Russell exerceu sobre o público dependeu
de numerosos factores. Para além da sua longevidade,
há muitas outras facetas que o tornam único. Grande
matemático e filósofo, apóstolo da paz e discutida figura
política, Bertrand Russel alcançou um enorme prestígio
mundial. Era o nonagenário que cativava os mais novos
e inspirava os mais velhos; o aristocrata que desprezava
Figura 2 Bertand Russell.
a Câmara dos Lordes e se arriscava a ser preso; o anar-
quista por temperamento que desafiava o poder constituído; o ateu que traçou armas
contra o dogma religioso e a moral convencional; o matemático e lógico cujas equa-
ções destronaram Euclides; o filósofo que procurou tornar a filosofia acessível aos
leigos; finalmente, o galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, cuja elegância
de estilo, agudeza de ironia e destreza mental remontam a uma época em que se
cultivava a arte de conversar e de escrever cartas (disponível em: <http://www.educ.
fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/russell/index.htm>. Acesso em: 15 mar. 2011).
Ludwig Wittgenstein
Jovem prodígio austríaco, muda-se para a Inglaterra
para estudar. Após passar pela faculdade de Engenharia,
decide dedicar-se à Filosofia. Em Cambridge, conhece o
filósofo Bertrand Russell, que, admirado com as teorias
originais do jovem, o proclama o mais talentoso pensador
de sua geração. Depois de lutar como voluntário na
Primeira Guerra Mundial, Ludwig retorna a Cambridge,
agora como professor (disponível em: <http://www.
dignow.org/post/menino-de-15-anos-far%C3%A1-
faculdade-de-matem%C3%A1tica-na-universidade-de-
Figura 3 Ludwig Wittgenstein cambridge-229794-54698.html>. Acesso em: 15 mar.
2011).
Gilbert Ryle
Gilbert Ryle é conhecido principalmente pela sua crítica do dualismo cartesiano (es-
tabelecido por René Descartes e Christian Von Wolff, é o sistema filosófico que admi-
te como explicação primeira do mundo e da vida, a existência de dois princípios, de
duas substâncias ou duas realidades irredutíveis entre si, inconciliáveis, incapazes
de síntese final ou de recíproca subordinação). Ryle mostra que a tarefa da Filosofia
seria trazer a clarificação. Existem expressões enganadoras. Os enigmas filosóficos
surgem quando a substituição de termos não resulta em um absurdo óbvio, neces-
sitando de uma análise. Seus estudos vão chegar à análise dos conceitos mentais,
combatendo o mito cartesiano (consiste em aceitar apenas aquilo que é certo e irre-
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
O papel da Filosofia da Linguagem no âmbito próprio da Filo-
sofia pode ser duplamente caracterizado: a Filosofia da Linguagem
auxilia nas questões em torno das áreas clássica da Filosofia, como,
por exemplo, a Teoria do Conhecimento, a Ética e a Lógica, bem como
oferece um tratamento filosófico às questões relacionadas à própria
natureza da linguagem, investigando questões como o problema do
significado, os critérios de significatividade, entre outras questões.
Nesta unidade, vamos nos concentrar em analisar a Filosofia
da Linguagem como área que deseja pensar os problemas advin-
dos da própria ordem linguística. Admitindo que a linguagem se
apresente como fundamento para toda a produtividade humana,
seja sob a forma verbalizada ou artística, está presente a carga sim-
bólica que justifica o estudo da linguagem por parte da Filosofia.
A investigação dessa carga simbólica pode ser pensada, portanto,
como a estrutura necessária para a construção de todo conheci-
mento humano, requerendo uma análise filosófica apropriada.
Você iniciará seu percurso conhecendo as teses centrais acer-
ca da linguagem do alemão Gottlob Frege (1848-1925); em seguida,
conhecerá a Filosofia do atomismo lógico de Bertrand Russell (1872-
1970); depois, analisará a teoria pictorial da linguagem presente na
primeira Filosofia do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951);
por fim, aprenderá como a análise da linguagem pode ser emprega-
da para dissolver clássicas questões filosóficas. Acompanhe!
ou em referência relacional.
Dentro dessa temática, é importante informar que Frege não
tratou somente da distinção entre o sentido e a referência dos no-
mes, mas estendeu sua reflexão para o universo da Lógica, em que
reflete sobre os elementos constituintes da linguagem, a saber, os
próprios predicados e as frases expressivas.
Frege entende que o sentido de uma frase se deve modifi-
car quando as suas partes são substituídas por outras partes com
sentido diverso. Em consonância a essa realidade, é importante
elencar que, embora modificados, devem ainda adquirir a mesma
referência. Assim, podemos pensar a expressão "a estrela da ma-
nhã é a estrela da tarde" como a ser subentendida pelo próprio
pensamento que é expresso, ou seja, a ideia que é admitida como
verdade ao seu significado indicativo.
Para bem entender essa reflexão, é importante elencar que,
quando Frege se utiliza da palavra "pensamento", quer afirmar
essa palavra como referente, preposição ou enunciado. Conse-
quentemente, é o pensamento o grande portador da verdade e da
mentira, isso porque, quando indicamos uma determinada expres-
são como verdadeira ou falsa, na verdade, não indicamos inicial-
mente a frase ou a sua referência, mas o seu próprio sentido, isto
é, o pensamento que indica, desse modo, a presente análise dessa
expressão passa sobre o campo do sentido para o campo objetivo
no que tange à sua referência.
Para você aprofundar seu estudo sobre o problema semânti-
co em Frege, leia, atentamente, o texto do Professor Abílio Rodri-
gues Filho, exposto no tópico a seguir.
Texto Complementar
gem, tal como ela foi feita no século XX e ainda hoje. Isso, entretanto, não torna
Frege um filósofo da linguagem no sentido de alguém preocupado em resolver
problemas relativos à estrutura e ao funcionamento da linguagem em geral. Para
Frege ser considerado um filósofo da linguagem, é necessário que os problemas
que ocuparam e ocupam aqueles que fazem o que chamamos de filosofia da lin-
guagem sejam os mesmos problemas que ocuparam Frege.
A filosofia da linguagem agrupa um tipo de investigação filosófica que vai desde
investigações acerca da linguagem propriamente dita até investigações filosóficas
em geral que utilizam a análise da linguagem como ferramenta. Mas o ponto
a ser enfatizado aqui é que o problema do significado é sempre central para a
filosofia da linguagem. E esse problema ou inclui a linguagem natural como um
todo, ou procura delimitar e formalizar um fragmento da linguagem natural com
o objetivo de eliminar problemas como vagueza e ambiguidade. Em ambas as
alternativas está em questão de que modo a linguagem que usamos para falar do
mundo se conecta com o mundo. E é precisamente esse o ponto que estava fora
dos interesses de Frege.
A distinção de Frege entre o sentido e a referência, tema do artigo "Sobre o sentido
e a referência" (SSR) de 1892 é considerada uma importante contribuição para
uma teoria do significado em sentido amplo, que inclui a linguagem natural. É certo
que um sem-número de importantes investigações acerca do funcionamento da
linguagem foram motivadas pela distinção sentido/referência. Mas será que essa
era a intenção de Frege? Vou argumentar aqui que a resposta a essa pergunta é
negativa. Pretendo mostrar que os interesses de Frege eram muito diferentes da-
queles que motivaram as investigações sobre a linguagem, realizadas, sobretudo
no decorrer do século XX. Mais especificamente, Frege não estava interessado no
funcionamento da linguagem natural e no modo pelo qual as expressões linguís-
ticas se conectam com o mundo. Em outras palavras, Frege não tinha o menor
interesse em construir uma teoria semântica aplicável à linguagem natural. Por
essa razão, Frege não foi um filósofo da linguagem.
Mas se isso é verdade, por que há quem considere Frege um filósofo da lingua-
gem? SSR contém de fato importantes análises da linguagem natural. Mas se
lermos SSR tendo em perspectiva o seu lugar na obra de Frege como um todo,
percebemos que as análises ali apresentadas, antes de terem a estrutura e o fun-
cionamento da linguagem como foco, têm antes o objetivo de justificar modifica-
ções na linguagem formal de Frege a ser utilizada na realização do projeto ao qual
Frege dedicou praticamente toda a sua carreira acadêmica, a saber, provar que a
aritmética é um ramo da lógica. Mais especificamente, em SSR, Frege tinha dois
problemas a resolver: o funcionamento do signo de identidade de conteúdo e o va-
lor semântico de sentenças. Tanto o problema da identidade que abre SSR como
também a tese de que a referência de uma sentença é o seu valor de verdade têm
origem em problemas técnicos da linguagem formal que Frege apresentou na obra
Conceitografia (CG), de 1879.
Meu objetivo aqui é mostrar como os problemas do signo da identidade de con-
teúdo e da noção de conteúdo conceitual, tais como foram apresentados em CG,
determinaram as alterações na linguagem formal de Frege, motivando a introdução
da distinção entre o sentido e a referência, o abandono do signo de identidade de
conteúdo, da noção de conteúdo conceitual e, sobretudo, a tese segundo a qual a
referência de uma sentença é o seu valor de verdade. Esse objetivo será alcançado
por meio de uma análise do caminho que começa em 1879 na CG e termina na
Em 1884, Frege lançou Fundamentos da aritmética (FA) (1980), em que são apre-
sentados de maneira informal, os argumentos em defesa da tese logicista. Ao con-
trário de CG, FA não é um livro predominantemente técnico, mas, sim, de caráter
explicitamente filosófico. Entretanto, embora em FA encontremos indicações me-
todológicas que vão ao encontro do modo de se fazer filosofia característico da
filosofia da linguagem contemporânea, FA trata de um problema que pertence à
filosofia da matemática.
Entre 1891 e 1892, Frege lançou três artigos: "Função e conceito" (FC), "Sobre o
sentido e a referência" (SSR) e "Sobre o conceito e o objeto" (SCO). Esses textos
não são predominantemente técnicos. Pelo contrário, são considerados, junto com
FA, os textos de Frege de caráter mais filosófico. Neles, encontramos importantes
reflexões sobre a linguagem. Mas o ponto que precisa ser enfatizado aqui é que
a função principal desses textos no projeto de Frege, especialmente FC e SSR, é
consertar a linguagem formal de Frege, evitando os problemas da CG já mencio-
nados, e também apresentar de modo informal, na forma de elucidações, noções
centrais necessárias para a realização do seu projeto. Tais elucidações não per-
tencem à teoria propriamente dita, mas têm caráter propedêutico. Nelas, Frege
frequentemente faz uso de exemplos da linguagem natural, como na apresentação
da distinção sentido/referência. Entretanto, o ponto de tais explicações informais
não é uma análise da linguagem natural, mas, sim, explicar, de fora do sistema,
noções técnicas do sistema de Frege.
Em 1893, logo após a publicação desses artigos mencionados, Frege lançou o
primeiro volume das Leis básicas da aritmética (LBA) (1964), obra que deveria ser
o ponto culminante de toda uma carreira acadêmica. Mais uma vez, o livro não foi
muito bem recebido pelos contemporâneos de Frege, o que atrasou a publicação
do segundo volume, lançado dez anos depois, em 1903. Mas, como já foi mencio-
nado, o sistema de LBA era inconsistente e o projeto de Frege fracassou.
É importante aqui observar que o projeto de Frege era, sem dúvida, um projeto filo-
sófico não apenas por ter um caráter epistemológico, mas também por se colocar
em uma postura crítica e em relação aos fundamentos da aritmética. Entretanto,
trata-se claramente de uma investigação restrita à filosofia da matemática (RODRI-
GUES FILHO, 2011).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como você pôde perceber, Frege foi um pioneiro nas questões
da Filosofia da Linguagem. Entretanto, algumas de suas teses eram
controversas. Coube a outros filósofos, como Russell, por exemplo,
que estudaremos a seguir, procurar resolver os problemas que as
teses desse filósofo apresentavam. Vamos conhecê-los!
Texto Complementar
Para que você se aprofunde em seus estudos, não deixe de
ler o texto a seguir.
teorema dessa teoria. No entanto, tal proposição é independente dos demais axio-
mas (supostos consistentes), como mais tarde se demonstrou. Assim, o uso do
ε confina a matemática a determinados desenvolvimentos somente (consoantes
com o Axioma da Escolha), impedindo a consideração de vários outros campos
da matemática atual. Teoria das Descrições significa esse indivíduo, ou seja, para
Russell, um nome tem um significado, a saber, o próprio objeto que designa. (Ele
mudou de idéia por um tempo, mas depois voltou a sustentar essa posição, que
assumiremos). Uma descrição definida, no entanto, não é um nome, algo que
denota diretamente um objeto. Pensemos na frase "Hilbert é careca." A palavra
(nome próprio) "Hilbert" designa um particular indivíduo, e tem uma função lógica
diferente da descrição "o grande matemático alemão que escreveu Grundlagen
der Geometrie", que descreve Hilbert. Suponha entretanto que alguém descubra
que não foi Hilbert quem escreveu os Grundlagen, mas outra pessoa. Neste caso,
a descrição e o nome não mencionariam o mesmo indivíduo. Logo, eles não têm a
mesma função lógica. Com efeito, tomemos a expressão
Hilbert = o grande matemático alemão que escreveu Grundlagen der Geometrie.
Neste caso, o nome "Hilbert" é, como diz Russell, um objeto simples, significando
o indivíduo que nomeia (no caso, Hilbert), designando esse indivíduo diretamente.
Quando as descrições são usadas como nomes, elas podem ser intersubstituídas
de forma a se preservar as regras da lógica clássica. No entanto, quando usa-
das não como nomes, mas como descrições estrito senso, é outra. Para entender
isso, lembremos que as propriedades fundamentais (postulados) da identidade (ou
igualdade, simbolizada por "="), são os seguintes:
(Refl) (Lei Reflexiva da Identidade, ou Princípio da Identidade)
∀x(x=x).
Informalmente, "Todo objeto é idêntico a ele mesmo".
(Subst) (Lei da Substitutividade, ou Princípio da Indiscernibilidade dos Idênticos)
∀x∀y(x=y → (A(x) → A(y))),
onde A(x) é uma fórmula que tem x como variável livre, A(y) é a fórmula que resulta
de A(x) pela substituição de x por y em algumas das ocorrências (livres) de x, sen-
do y uma variável distinta de x.
Informalmente, Subst. diz que "coisas iguais" podem ser substituídas em qualquer
contexto (aqui, fórmula) preservando-se a verdade (ou salva veritate, como dizia
Leibniz). A lei Subst. é por muitos chamada de Lei de Leibniz. Por exemplo, em
2+3=5, podemos substituir 2 por 1+1 "salva veritate", obtendo (1+1)+3=5. Será
que isso vale quando há descrições envolvidas? Para ver isso, vamos usar um
exemplo do próprio Russell.
Sabemos hoje que o novelista escocês Sir Walter Scott (também autor de Ivanhoé,
Rob Roy e de uma vasta obra) era o autor das novelas Waverley, mas este fato
não era conhecido à época em que George IV era o rei a Inglaterra (de 1820 a
1830). Então, se "Sir Walter" e "Scott" (que são nomes da mesma pessoa) são usa-
das como nomes, isto é, fazendo referência direta ao célebre novelista escocês, a
lei Subst. pode ser usada. Assim, usando a partícula "é" no sentido de identidade
(mais abaixo veremos o seu uso como existência), então
Scott é Scott
verdade, como dizer que A∨B tem um? Da mesma forma, se A não tem valor de
verdade, como pode ¬A ter um? Assim, alguns filósofos defendem que a lógica dos
objetos fictícios deve ser não clássica (ver mais abaixo).
Um terceiro tipo de análise é possível. A expressão "denotar aquilo que não existe"
tem pelo menos dois sentidos: (1) significa não ter qualquer referência e não deno-
tar nada, e (2) denotar uma entidade não existente. Se optarmos por (2), podemos
relegar todo o discurso sobre entidades fictícias como dependentes de um opera-
dor "dentro da ficção" (como apontado por Engel no seu artigo supra citado). Des-
se modo, podemos dizer (dentro da ficção): "O Saci Pererê é um moleque que pula
em uma perna só." Esses enunciados podem então ser verdadeiros ou falsos, mas
somente 'dentro da ficção'. Porém, se interpretarmos o mundo das ficções como
sendo efetivamente um mundo de entidades, voltamos a uma espécie de concep-
ção meinonguiana. A mesma estratégia é adotada quanto aos objetos possíveis:
dizemos que certos enunciados são verdadeiros em certos mundos possíveis, mas
não em outros, o que nos reporta a considerar as modalidades (necessário e pos-
sível) e a semântica dos mundos possíveis (de Saul Kripke).
Porém, seria unicamente a referência a "em um mundo possível" suficiente para
nos fazer aceitar enunciados cujos sujeitos são unicamente possíveis? A semân-
tica da lógica modal de Kripke fornece condições de verdade para enunciados
envolvendo as modalidades 'necessário' e 'possível', mas não resolve o proble-
ma ontológico acerca da natureza dos objetos possíveis. Mesmo quando filósofos
como David Lewis sustentam que existem os mundos possíveis contendo os ob-
jetos possíveis e que eles são tão reais como é o mundo real relativamente aos
objetos reais, mostra-se aí uma nova volta aos objetos não existentes de Meinong
(KRAUSE, 2011, p. 24-36).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como você pôde verificar, a Filosofia da Linguagem lida com
problemas não só lógicos, mas, também, ontológicos. Nesse senti-
do, ela se preocupa não só com o valor de verdade de uma propo-
sição, mas com a existência em um mundo real daquilo que está se
afirmando – como no exemplo do "atual rei da frança é calvo".
No tópico a seguir, você irá conhecer as propostas do grande
e importantíssimo filósofo Ludwig Wittgenstein. Vamos lá?
9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Frege é considerado o sistematizador da moderna lógica matemática. Ao re-
fletir sobre os fundamentos da aritmética, ele tenta encadeá-los à lógica. Ele
foi muito admirado e estudado por pensadores como Russell e Wittgenstein,
que procuraram, cada um à sua maneira, responder às questões legadas por
Frege acerca da linguagem natural e de sua relação com as linguagens for-
mais. Uma das principais contribuições de Frege para o estudo da linguagem
consiste em sua tentativa de elaborar uma teoria semântica. Queremos sa-
ber: quais as categorias fundamentais que são apresentadas por Frege para
lidar com o problema semântico?
a) Objeto e referente.
b) Sentido e referente.
c) Mundo e signo.
d) Signo e significado.
2) A compreensão que Russell faz acerca do significado é diferente da que Fre-
ge admitia. Para Russell, o significado é justamente aquilo a que ele se refe-
re. De outro modo, o significado de um termo está relacionado, em última
instância, ao objeto a que o termo se refere. Para que essa teoria semântica
funcione, Russel elabora a chamada Filosofia do:
a) Idealismo Semântico.
b) Reducionismo Semântico.
c) Formalismo Semântico.
d) Atomismo Lógico.
3) Segundo alguns críticos, a teoria da linguagem, presente na primeira filoso-
fia de Wittgenstein, pressupõe uma autêntica metafísica da linguagem, pois
as expressões de linguagem natural, quando analisadas como parte consti-
tutiva das expressões elementares, passam a significar, representar e refletir
o mundo real. Para bem compreender essa relação entre as expressões da
linguagem natural e o mundo, Wittgenstein propõe uma:
a) Teoria matemática da linguagem.
b) Teoria referencial da linguagem.
c) Teoria pictorial da linguagem.
d) Teoria ordinária da linguagem.
4) O filósofo Ryle, em seu trabalho The Concept of Mind, fez uso da linguagem
como forma de dissolver um clássico problema filosófico: dualismo mente/
corpo. Ele procura, por intermédio de uma análise dos argumentos empre-
gados por Descartes nas Meditações, empreender a dissolução do dualismo.
Sua pretensão com essa estratégia é:
a) Estabelecer uma teoria funcionalista acerca do mental.
b) Propor uma teoria eliminativista.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 177
Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.
2) d.
3) c.
4) c.
5) a.
guagem que se inicia com Platão têm uma íntima relação com a
preocupação de essa linguagem, o discurso racional, significar cor-
retamente o mundo. Essa preocupação no período medieval se
torna uma preocupação de ordem teológica e, na modernidade,
com Locke, um problema do conhecimento humano.
Analisando as propostas de Nietzsche e Heidegger, você
pôde fazer um contraponto entre a linguagem conceitual e discur-
siva e a linguagem metafórica e poética como expressão fidedigna
em relação ao Ser.
Esperamos que você tenha gostado das reflexões aqui apre-
sentadas e que os conteúdos deste Caderno de Referência de Con-
teúdo tenham despertado em você o interesse de aplicar suas re-
flexões filosóficas nos problemas da linguagem.
Desejamos a você um bom curso e boa sorte!
11. E-REFERÊNCIAS
KRAUSE, D. Tópicos em ontologia analítica. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.
br/~dkrause/pg/cursos/2010/Topicos(LaTeX)Rosto.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2011.
MARQUES, J. O. A. Pensar o sentido de uma proposição. Disponível em: <http://www.
unicamp.br/~jmarques/pesq/Pensar_o_sentido_de_uma_proposicao.pdf>. Acesso em:
4 fev. 2011.
RODRIGUES FILHO, A. Frege e a filosofia da linguagem. Disponível em: <http://www.ufsj.
edu.br/portal2-repositorio/File/vertentes/Vertentes_33/abilio_rodrigues.pdf>. Acesso
em: 4 fev. 2011.
Lista de figuras
Figura 1 Gottlob Frege. Disponível em: <http://www.nyu.edu/gsas/dept/philo/courses/
language04/>. Acesso em: 15 mar. 2011.
Figura 2 Bertand Russell. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/
seminario/russell/index.htm>. Acesso em: 15 mar. 2011.
Figura 3 Ludwig Wittgenstein. Disponível em: <http://www.ufpi.br/eticaepistemologia/
materias/index/mostrar/id/4100>. Acesso em: 15 mar. 2011.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 179