Entendendo o Processo Molecular Da Tumorigênese
Entendendo o Processo Molecular Da Tumorigênese
Entendendo o Processo Molecular Da Tumorigênese
da Tumorigênese atualização
ABSTRACT
O CÂNCER COMO DOENÇA AMBIENTAL Como é que as agressões ambientais, químicas, físicas
e biológicas causam danos às nossas células? Uma
grande parte de conhecidos agentes carcinogênicos
Embora o risco de desenvolver alguns poucos tipos de
sofre uma bio-transformação para compostos que são
neoplasia tenha diminuído, a prevalência das formas convertidos em metabólitos não-tóxicos que podem
mais significantes de câncer se tornou nitidamente ser excretados facilmente pelo organismo humano. A
mais elevada em todos os países que se industri- eficácia das vias metabólicas que atuam neste processo
alizaram nas últimas décadas. Cânceres como de pul- de detoxificação pode, portanto, determinar o dano
mão, mama, próstata e colo têm se tornado mais fre- inicial causado por um determinado carcinógeno ao
um evento relativamente raro. Isto ocorre porque a com CDKs. Este grupo de enzimas, por sua vez, fos-
célula necessita romper uma série de barreiras fisiológi- forila uma série de substratos-chave que permitirão a
cas para se tornar cancerígena. As barreiras mais pri- progressão de uma fase a outra do ciclo celular, como
márias são os próprios pontos de controle do próprio exemplificamos através de esquema na figura 2 (16).
ciclo celular. Na figura 1, esquematizamos alguns des- Por outro lado, um grupo de inibidores do ciclo atuam
tes pontos de controle. impedindo ou regulando negativamente as vias sinali-
Esta seqüência de fases, com seus respectivos zadoras de tal progressão no ciclo de divisão celular. À
pontos de controle, permite que a célula complete seu semelhança dos fatores estimuladores que levam à pro-
ciclo normal, replicando-se sem dar origem a células dução de ciclinas/CDKs, os reguladores negativos ati-
anormais. A divisão celular normal é positivamente varão inibidores dos CDKs: os CDKIs. Podemos dis-
regulada ou estimulada através de vias sinalizadoras. tinguir duas famílias de CDKIs, de acordo com seu
Estas vias respondem a fatores extracelulares, os quais mecanismo de ação, homologia e CDK alvo: 1) o gru-
agem através de uma seqüência de proteínas - por po do p21, p27 e p57 e 2) o grupo do p16, p15, p18
exemplo: receptores → proteína G → proteíno-quina- e p19 (16). Este circuito de indutores e de bloquea-
ses → fatores de transcrição. A progressão pelo ciclo dores do ciclo celular está representado na figura 3.
celular a seguir é, em parte, controlada, por uma série Anormalidades tanto nos genes estimuladores
de proteínas chamadas “quinases dependentes de cicli- de divisão celular (chamados de oncogenes), como nos
nas” (CDKs), particularmente nas transições de fases, protetores ou bloqueadores do ciclo celular (chamados
tanto de G1 para S quanto de G2 para M (16). Os de genes supressores tumorais), podem conferir a uma
níveis de ciclinas oscilam durante as fases do ciclo, célula vantagens de crescimento e desenvolvimento
determinando o momento apropriado de sua ligação sobre as células normais. Cada uma das proteínas
envolvidas no ciclo celular é codificada por um gene.
Mutações nestes genes podem levar à desregulação do
ciclo celular. Os genes que atuam de forma positiva,
induzindo ou estimulando a progressão do ciclo, são
chamados proto-oncogenes pois ao sofrerem mutações
se tornarão oncogenes, cuja ação permitirá ganho de
função à célula mutante. Ao contrário, as proteínas
envolvidas no controle negativo do ciclo celular são
codificadas pelos assim chamados genes supressores
tumorais. Mutações neste grupo de genes se manifes-
tarão pela sua falta de ação mas o efeito final será simi-
lar: perda dos mecanismos controladores do ciclo celu-
lar normal (17). Já se sabe há muito tempo que
Figura 3. Fatores de estímulo e bloqueio do ciclo celular. As ciclinas são reguladoras das sub-unidades das CDKs. Diferentes
ciclinas se associam a diferentes CDKs, podendo associar-se a mais de uma CDK nas diferentes fases do ciclo celular. A
atividade ciclina/CDK é bloqueada por uma série de inibidores específicos. Eles podem ser agrupados em famílias como a
do p21/p27/p57, que bloqueia múltiplos complexos ciclina/CDKs e na família p16/p15/p18/p19, que inibe os complexos
CDK4/CDK6. Alguns fatores podem parar o ciclo em G1, como os danos causados ao DNA que, ativando o p53, induzem
a produção de p21. Outros fatores podem atuar através de diferentes grupos de inibidores do ciclo, como TGF-b que induz
produção tanto de p15 como de p27.
expressão imprópria de fatores de crescimento ou de tipo maligno. Assim, os genes supressores tumorais
seus receptores contribui para o desenvolvimento de atuam de forma recessiva, isto é, ambos os alelos
neoplasias. Mais recentemente, demonstrou-se que devem estar perdidos ou não-funcionantes (19). O
hiper-expressão da ciclina D1 induz progressão de exemplo clássico do gene supressor tumoral é o gene
hiperplasia a carcinomas em camundongos (16). defeituoso herdado no retinoblastoma familiar. Da
Amplificações da ciclina D1 também foram encon- observação de famílias portadoras de retinoblastoma,
tradas em tumores primários e linhagens celulares Knudson desenvolveu uma explicação para a ocor-
tumorais (16). No ser humano, medidas indiretas rência de tumores familiares que se tornou um para-
baseadas na prevalência de tumores em diferentes digma na compreensão do câncer (20). Mesmo
faixas etárias, permitem inferir que são necessárias quando não se herdou um dos alelos do gene Rb ou
cerca de cinco a seis mutações sucessivas para que uma se herdou um alelo não-funcionante, o alelo normal
célula se torne maligna e agressiva (18). restante do gene supressor tumoral é suficiente para
As mutações envolvendo oncogenes são mu- proteger o organismo do desenvolvimento de um
tações ativantes e podem ocorrer por uma série de câncer. Este só se manifestará por perda ou inativação
mecanismos: translocação cromossômica, amplifi- deste alelo normal, ocorrência eventual durante a
cação gênica, inserção retroviral, mutação pontual proliferação celular, particularmente porque a heran-
(17). Os produtos resultantes da ativação destes genes ça deste alelo anômalo causa instabilidade do genoma
atuam de forma dominante, isto é, a mutação de um ou induz fenômenos epigenéticos, como veremos
único alelo poderá ser suficiente para conferir à célula mais adiante (20). Esta é a base da teoria dos 2 golpes
uma vantagem em termos de crescimento ou trans- de Knudson: um primeiro golpe seria a herança do
formação, levando à neoplasia em uma série de teci- gene supressor defeituoso ou perdido e um segundo
dos humanos. A primeira identificação de tal ação golpe envolveria a perda do segundo alelo levando à
oncogênica foi na leucemia mielóide crônica (LMC) formação do câncer.
onde Nowell e cols. mostraram que uma translocação Os GST são os mais freqüentemente mutados
9:22 faz com que se forme um gene fundido bcr-abl na maior parte das neoplasias humanas, com a notável
e uma proteína, uma tirosino-quinase, cuja função exceção dos cânceres de linhagem hematológica. Os
fosforiladora contribui para a sobrevida e o fenótipo exemplos mais conhecidos de genes supressores
neoplásico das células da LMC (18). tumorais são os genes p53 e Rb que exercem um es-
Os genes supressores tumorais, ao contrário, treito controle interligado da divisão celular, como
agem inibindo ou prevenindo a expressão do fenó- demonstramos na figura 4.
Figura 4. Parada do ciclo celular para reparo de danos ao DNA. O painel A mostra o ciclo celular prosseguindo normalmente
sob a vigilância passiva de p53 cujos níveis se mantém baixos. No painel B, mostramos como, detectando um dano ao
material genético, imediatamente os níveis de p53 se elevam, induzindo expressão de p21 e de uma série de outros pro-
dutos gênicos que impedirão a ligação ciclina-CDK. Conseqüentemente, Rb não será fosforilada, impedindo assim a libera-
ção do fator de transcrição formado pelo complexo E2F-DP1 que não poderá ativar os genes essenciais para a progressão
na fase S. Com isso, a célula pára no ciclo de divisão celular permitindo o reparo adequado do material danificado.
produção de produtos gênicos truncados, ou encurta- preconizou em sua teoria dos dois golpes (20,30,31).
dos, enquanto que as trocas de bases alteram a seqüên- Anormalidades de metilação também podem levar a
cia de aminoácidos do produto gênico ou também aumento na expressão de proto-oncogenes aumen-
resultam em produto truncado. Mutações externas à tando a freqüência de mutações e a instabilidade ge-
região codificadora podem afetar a transcrição, a nômica (31). Outra alteração epigenética é o im-
tradução e o splicing do RNA mensageiro e seu pro- printing genômico, uma modificação do DNA rever-
cessamento. Assim, existe uma relação entre o agente sível que causa expressão diferente de genes homólo-
causador deste dano e o grau de heterogeneidade do gos herdados da mãe ou do pai (30-32). A perda do
clone celular que se desenvolverá, o que, por sua vez, imprinting fisiológico faz com que genes que não
guarda estreita relação com a capacidade de algumas deveriam estar normalmente expressos possam estar
destas células adquirirem resistência terapêutica e, por- ativados produzindo substâncias vantajosas para o
tanto, definam pior prognóstico ao tumor (29). A vari- crescimento celular ou, ao contrário, genes supres-
abilidade encontrada nas células tumorais é resultado sores tumorais que deveriam ser normalmente trans-
da instabilidade genômica que usualmente ocorre no critos sejam silenciados, permitindo a progressão de
processo de tumorigênese. Estas anormalidades, quan- ciclo celular anormal (31,32).
do grosseiras, são chamadas de instabilidade cro-
mossômica e podem ser evidenciadas por estudos cito-
genéticos, corando-se o cromossoma com compostos PERSPECTIVAS DIAGNÓSTICAS E TERAPÊUTICAS
fluorescentes (FISH), por hibridização genômica com-
parativa (CGH) ou por métodos baseados na com- A possibilidade de identificar células neoplásicas usan-
paração entre seqüências normais e tumorais amplifi- do técnicas de genética molecular foi inicialmente
cadas por PCR (reação em cadeia da polimerase). demonstrada por Sidransky e cols. em 1991, através da
Estudos baseados na perda de heterozigose (LOH), detecção de células em urina de pacientes com câncer
isto é, na perda de segmentos cromossômicos em teci- de bexiga que tinham uma mutação de p53 similar à
dos tumorais em relação ao tecido normal de frag- detectada nas células do tumor primário (33). Desde
mentos repetitivos de seqüências espalhadas pelo então, sucederam-se inúmeros estudos mostrando
nosso genoma, chamadas microssatélites, têm permiti- detecção de câncer através de pesquisa em plasma, sali-
do identificar uma série de genes supressores impor- va, fezes, líquido peritoneal e virtualmente qualquer
tantes como o p53, APC, DPC4 e p16, no processo amostra de secreção ou tecido humano, delineando-se
carcinogênico de diversos tecidos (29). um painel crescente de marcadores moleculares de
diagnóstico e detecção precoce (34). De forma similar,
temos marcadores moleculares capazes de propor-
ALTERAÇÕES EPIGENÉTICAS cionar detecção precoce, numa fase pré-clínica de
doença ou mesmo antes de seu aparecimento. A
Embora menos compreendidas, alterações epigenéti- própria mutação de p53 em células coletadas na urina
cas também devem ser importantes no processo de pode aparecer anos antes do câncer de bexiga (35). De
tumorigênese. Alterações epigenéticas são anormali- forma similar, mutação no gene K-ras detectada em
dades hereditárias da função gênica que são mediadas suco pancreático pode preceder o adenocarcinoma
por outros fatores que não as alterações que ocorrem pancreático e mutações oncogênicas em lavados
primariamente na seqüência do DNA. Um exemplo é colônicos podem predizer risco para câncer de cólon
a metilação do DNA na região promotora, um fenô- (30). A identificação de mutações pode determinar
meno que pode alterar a expressão de um determina- uma vigilância maior com detecção mais precoce e
do gene. Genes que são ativamente transcritos ten- conseqüente melhor prognóstico para alguns tipos de
dem a ter baixos níveis de metilação das suas regiões tumores, como os genes BRCA1 e BRCA2 que iden-
promotoras enquanto que genes silenciosos, isto é, tificam pacientes de risco para os cânceres de mama e
que não se expressam em determinados tecidos ou ovário (36). Talvez o mais importante exemplo de
circunstâncias, têm sua região promotora altamente como tal previsão de risco de malignidade pode causar
metilada (30,31). Existem evidências de que a meti- impacto no prognóstico de um indivíduo seja a
lação do DNA pode ser um mecanismo não-muta- mutação do gene ret. A identificação de mutações per-
cional pelo qual a função de genes supressores mite identificar indivíduos de risco para desenvolvi-
tumorais fica desregulada, predispondo à perda de mento de carcinoma medular da tiróide (37). Estes
função do segundo alelo protetor, como Knudson indivíduos podem ser tiroidectomizados e jamais virem
a apresentar este tipo de câncer agressivo e potencial- aumentar antigenicidade da célula tumoral, introdução
mente letal (10). de genes virais nas células tumorais para matá-las e
Não apenas identificamos grupos de risco para muitas outras estratégias deverão estar ao nosso
câncer, como, traçando o perfil genético de um deter- alcance.
minado tumor, podemos classificá-lo e delinear dife-
rentes estratégias de tratamento. Assim, o câncer de REFERÊNCIAS
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A decorrência natural da genética molecular é o
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