Monica, 16b-Artigo15
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Recebimento: 14/09/2020
Aceite: 17/10/2020
Abel Cassol1
Letícia Paludo Vargas2
Mario Duarte Canever3
Resumo
O artigo apresenta as principais transformações geradas pela pandemia da Covid-19 na agricultura
familiar na região sul do RS. O objetivo é analisar como os agricultores familiares têm sido afetados
e têm respondido às crises sanitária, econômica e alimentar resultantes das transformações
profundas e imediatas trazidas pelo novo coronavírus. O argumento defendido é o de que os efeitos
gerados pela pandemia podem abrir a oportunidade de retomada dos territórios como principal
dimensão para os processos de desenvolvimento rural. A coleta dos dados foi realizada a partir de
21 entrevistas semiestruturadas com atores vinculados à agricultura familiar. Apesar das
dificuldades impostas à saúde, produção, comercialização e consumo de alimentos, os dados
demonstram haver um protagonismo dos atores e organizações locais no enfrentamento da
pandemia. Especialmente, verifica-se como esses atores, estão construindo um conjunto de práticas
e processos que tem contribuído na coesão do tecido social, na manutenção do dinamismo econômico
do território e, principalmente, na garantia do acesso aos alimentos e da segurança alimentar e
nutricional dos seus habitantes. Contudo, para que essas ações perdurem no longo prazo e
efetivamente sejam institucionalizadas é preciso que elas sejam conectadas a uma nova agenda de
desenvolvimento territorial que intersecione o debate sobre sustentabilidade com os sistemas
alimentares locais, conforme se apresenta nesse trabalho.
1
Doutor em Sociologia (UFRGS). Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS - Brasil. E-mail:
abelcassol@hotmail.com
2
Doutora em Extensão Rural (UFSM). Professora da Universidade do Contestado (UnC). Canoinhas – SC, Brasil. E-mail:
letipvargas@gmail.com
3
Doutor em Administração (Wageningen University). Professor da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas - RS, Brasil. E-
mail: caneverm@gmail.com
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Abstract
The article presents the main changes generated by the Covid-19 pandemic in family farming in the
southern region of RS. The objective is analyze how family farmers have been affected and have
responded to the health, economic and food crises resulting from the changes brought about by the
new coronavirus. The argument defended is that the effects generated by the pandemic may open
opportunity for the resumption of territories as the main dimension for rural development processes.
Data collection was based on 21 semi-structured interviews with actors linked to family farming.
Despite the difficulties imposed on health, production, marketing and consumption of food, the data
show a leading role of local actors and organizations in facing the pandemic. In particular, shows
how these actors are building a set of practices and processes that have contributed to the cohesion
of the social ties, in maintaining the economic dynamism of the territory and, mainly, in the access
to food and nutritional security for its inhabitants. However, for these actions effectively be
institutionalized in the long term, they need to be connected to a new territorial development agenda
that intersects the sustainability debate with local food systems, as presented in this work.
Introdução
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4
Uma das dimensões mais visíveis dessa crítica são as inúmeras iniciativas de reestruturação dos sistemas alimentares locais
que surgem no âmbito do processo conhecido como quality turn. Para uma boa revisão de suas diferentes abordagens
consultar Blay-Palmer et al. (2018).
5
Em virtude da sua origem no campo da geografia, a depender da abordagem o termo território é utilizado seja como conceito
teórico e heurístico, seja como unidade de referência empírica e normativa (SCHNEIDER, 2004). No campo das políticas
públicas, há uma tentativa de sintetizar essas divergências por meio do uso do território como ferramenta para pensar o
planejamento, a intervenção e o desenvolvimento das comunidades em alguma escala (local, regional, intermunicipal, etc.).
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construídos que incluem atores, estruturas e instituições. Isto é, não se limitam a regiões geográficas
e/ou físico-biológicas; b) as economias rurais são setorialmente diversas, incluindo outras atividades
primárias além da agricultura, tais como serviços, manufatura e pequenas indústrias; c) os espaços
rurais necessitam ser analisados a partir de suas relações com o urbano, pois há uma
interdependência entre ambos; d) as estratégias e políticas de DTR têm de ser realizadas “desde
abaixo”, incorporando e dando poder de decisão aos atores locais, ainda que as relações com as
políticas nacionais sejam relevantes para o sucesso de longo prazo do DTR; e) as políticas de DTR
necessitam construir um “ator territorial coletivo”, isto é, uma coordenação de ações que abarque
os interesses individuais e setoriais dos espaços rurais em uma perspectiva coletiva (BERDEGUÉ;
FAVARETO, 2020).
A partir desses pontos de convergências, os territórios podem ser resumidamente definidos
como espaços de interação entre sociedades humanas e ecossistemas por meio da coordenação entre
diferentes formas de organizações sociais, atores econômicos e instituições políticas que possuem
uma história própria relacionada ao seu lugar (ABRAMOVAY, 2003). No caso das áreas rurais, essa
definição implica na pressuposição do rural enquanto espaço multifuncional, intersetorial e
pluriativo. Desse modo, o DTR vincula-se indubitavelmente às discussões sobre agricultura familiar
e seu papel para o desenvolvimento rural (FAVARETO, 2020).
Essa visão ampla e diversificada dos processos de desenvolvimento pautadas pela sua
dimensão territorial foi a responsável pela implantação de um conjunto de políticas públicas de
desenvolvimento rural em diferentes países latino-americanos que tiveram como principal resultado
o fortalecimento da agricultura familiar. Mais do que isso, essas iniciativas foram as responsáveis
pelo desenvolvimento econômico e a transformação produtiva das áreas rurais com menores
vantagens comparativas em relação aos mercados internacionais, contribuindo para a redução da
pobreza dessas regiões. Finalmente, as iniciativas de DTR, em alguns casos, foram capazes de
construir novos arranjos institucionais mais democráticos, transparentes e participativos, dando voz
aos atores sociais locais (BERDEGUÉ; FAVARETO, 2020).
No caso brasileiro, conforme atestam Delgado e Leite (2015), o aspecto fundamental da
adoção das políticas de desenvolvimento territorial rural esteve atrelado a uma tentativa de
consolidar a democracia nas regiões rurais por meio de uma nova cultura política, a qual tinha como
viés gerar maior autonomia aos agricultores familiares, assentados de reforma agrária e populações
tradicionais.
Apesar desses pontos positivos, as iniciativas de DTR não foram capazes de concretizar
aquilo que delas se esperava. Dentre os cinco principais limitantes identificados para consolidação
das abordagens territoriais, as falhas de coordenação entre os diversos atores (públicos, privados,
não governamentais), entre os distintos níveis de governo (federal, estadual, municipal) e as
diferentes atividades (agrícolas e não agrícolas); assim como o poder limitado dado aos atores locais
nas tomadas de decisões (impedindo com que se rompesse o viés setorial das políticas agrícolas), são
aqueles que mais bem explicam o enfraquecimento do enfoque territorial nos últimos anos,
especialmente no campo normativo das políticas públicas (BERDEGUÉ; FAVARETO, 2020) 6.
Apesar da fragilidade dos territórios e das políticas territoriais decorrentes de tais
limitações, o advento da pandemia do novo coronavírus tem recolocado a dimensão regional/local no
centro do debate, especialmente na discussão sobre produção e abastecimento alimentar. Todavia,
essa retomada se dá com baixa presença do Estado e com protagonismo da sociedade civil e de suas
organizações (FAO, 2020).
É dos territórios e dos atores locais que brotam diversas iniciativas – tais como organização
de entregas de cestas básicas para vulneráveis; entregas de alimentos em domicílio; compras via
redes sociais, aplicativos e plataformas digitais – que tem sido bem sucedidas para amenizar os
impactos negativos da Covid-19 (PREISS et al., 2020).
No caso pesquisado, essas respostas locais têm sido desenvolvidas pelos agricultores
familiares da região sul do RS, que além da pandemia, se confrontaram com uma das mais graves
estiagens dos últimos anos, impactando diretamente nas suas dinâmicas produtivas. Essas iniciativas
têm gerado novas dinâmicas de comercialização e consumo, as quais tem privilegiado a dimensão
Especificamente para o caso do DTR, algumas dessas abordagens podem ser consultadas em Pérez (2001), Schejtman e
Berdegué (2003), Perafán e Schneider (2020).
6
No caso brasileiro, esse enfraquecimento faz parte de um conjunto mais amplo de desmantelamento das políticas públicas
voltadas para a agricultura familiar, que vem ocorrendo desde 2014 e que foi acentuado a partir de 2016 com as crises
econômica e política ainda presentes (PIRAUX; CANIELLO, 2019).
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territorial e aberto espaço para a readequação dos territórios sob uma nova agenda que integre a
busca pelos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) e os sistemas alimentares locais.
7
A erradicação da pobreza (ODS 01), a diminuição da fome (ODS 02), igualdade de gênero (ODS 05), gestão sustentável e uso
eficiente dos recursos naturais (ODS 12) e suas metas, dentre outros, são destacados como alguns dos ODS que somente
seriam alcançados por meio da contribuição do rural e, especialmente da agricultura familiar (BERDEGUÉ; FAVARETO,
2020).
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De acordo com os autores, há quatro componentes que apontam para essa integração entre
DTR e sistemas alimentares sustentáveis (tendo a agricultura familiar como ator chave): a)
necessidade de padrões mais saudáveis e sustentáveis de produção e consumo alimentares; b)
modelos produtivos ecologicamente sustentáveis; c) mitigação dos efeitos da mudança climática; e
d) reconhecimento dos territórios rurais nas dinâmicas atuais de desenvolvimento (PERAFÁN;
SCHNEIDER, 2020).
Portanto, percebe-se a pertinência do DTR para a consolidação de processos sustentáveis de
produção, comercialização e consumo de alimentos que sejam geridos e governados pelos próprios
atores locais. Os territórios são um espaço privilegiado de ação e intervenção política que podem
contribuir sobremaneira para o enfrentamento dos desafios ao desenvolvimento contemporâneo,
notadamente aqueles que se impõem com a pandemia da Covid-19, conforme veremos adiante.
Metodologia
Os dados aqui apresentados fazem parte do projeto de extensão Observatório da
Problemática da Seca e da Covid-19 na Agricultura Familiar da Região Sul do Rio Grande do Sul.
Com o advento da pandemia da Covid-19 no país e a suspensão das atividades docentes no início do
mês de março/20, alguns dos professores vinculados ao Departamento de Ciências Sociais Agrárias
da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel, na Universidade Federal de Pelotas
(DCSA/FAEM/UFPel) resolveram criar o referido projeto 8.
Seu objetivo principal está na avaliação e compreensão de como as transformações
repentinas geradas pela pandemia têm afetado as dinâmicas produtivas, comerciais e de consumo
dos agricultores familiares e dos habitantes urbanos da região delimitada. Tais transformações
foram acompanhadas por um período histórico de estiagem que acometeu todo o território do RS,
agravando os efeitos gerados na agricultura regional.
O projeto teve início na segunda semana do mês de abril e mantem-se ativo até o momento.
Em virtude do distanciamento social, as atividades desenvolvidas são realizadas através de reuniões
semanais virtuais. Nesses encontros, são definidos os temas que serão abordados na semana, quais
atores serão entrevistados e quais ferramentas de coleta de dados.
O método de pesquisa utilizado é o qualitativo. A coleta dos dados primários é feita através
de entrevistas semiestruturadas com questões abertas. Para isso, foram utilizados aplicativos de
trocas de mensagens instantâneas e chamadas de voz, com possibilidade de gravação e transcrição
de áudios, para posterior análise dos dados. Apenas as entrevistas realizadas junto aos produtores e
consumidores das feiras agroecológicas foram feitas presencialmente.
Até o momento foram realizadas 21 entrevistas 9 com agricultores familiares, extensionistas
rurais, movimentos sociais, secretários de agricultura e prefeitos de diversos municípios,
consumidores e outros atores envolvidos com a agricultura familiar da Região Sul do Rio Grande do
Sul10.
Os temas abordados referem-se a seis eixos analíticos estruturantes do projeto: saúde,
produção, comercialização, consumo, articulações e políticas públicas e perspectivas de futuro. Para
cada um desses eixos, buscam-se compreender como os eventos da crise sanitária e da seca
impuseram a necessidade de novas articulações, mobilizações e ações aos atores sociais vinculados
ao setor da agricultura familiar da região e as perspectivas que os mesmos projetam a partir desse
cenário.
Finalmente, é importante registrar que parte desses dados e análises foram divulgados
através de informes quinzenais produzidos pelo projeto 11. Tais informes, que não possuem caráter
científico, têm como objetivo permitir aos agricultores familiares da região divulgar seus novos
canais de comercialização; aos gestores públicos dos municípios terem acesso ao que as cidades do
território estão fazendo para amenizar a pandemia e a seca; assim como informar aos atores locais o
conjunto de políticas públicas territoriais e nacionais que estão sendo implementadas e que podem
ser por eles acessadas.
8
No momento, o projeto também conta com a participação de alunos de pós-graduação e pesquisadores de entidades de
extensão rural da região.
9
Esse número de entrevistados refere-se ao período de 10/04/20 a 09/07/20.
10
Os municípios pesquisados até o momento foram os seguintes: Arroio do Padre, Canguçu, Capão do Leão, Cerrito, Cristal,
Morro Redondo, Pedro Osório, Pelotas, Rio Grande, São José do Norte, São Lourenço do Sul e Turuçu.
11
Até o momento foram produzidos 09 informes, os quais têm sido publicados em mídias digitais e no site do Observatório.
Para mais informações: https://wp.ufpel.edu.br/dcsa/observatorio-do-dcsa/informes/
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12
Ressalta-se que os efeitos causados pela seca, que são anteriores à pandemia e foram somados a ela, serão analisados de
maneira secundária nesse artigo, aparecendo quando considerados relevantes.
13
Destaca-se a Resolução 02/2020 do Ministério da Educação (MEC) que autorizou a destinação dos alimentos adquiridos por
meio do PNAE às famílias dos alunos. A Medida Provisória nº 957 que liberou R$ 500 milhões ao Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA) para compras da agricultura familiar. A oferta de crédito na ordem de R$ 65 milhões para cooperativas
investirem e a extensão do prazo de financiamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF) e Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (PRONAMP).
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Combate a Fome de Pelotas, em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) o Quilombo do Algodão e cooperativas regionais, o Coletivo Tranca Rua e o Centro Regional
de Cuidados Paliativos da Universidade Federal de Pelotas (CuidATIVA/UFPel).
Verifica-se que os agricultores familiares mais dependentes de mercados externos, tais como
os produtores de grãos (milho, soja) e de produção animal (bovinocultura de corte e leite, tabaco)
sentiram mais os impactos da Covid-19 e, especialmente, da seca. O fato de estarem voltados para
mercados não territoriais, mais voláteis, também contribui para isso.
Essas evidências aparecem na fala de um representante do sindicato rural do município de
Canguçu, que argumenta que
As cadeias comerciais mais curtas foram favorecidas (como exemplo, cebola e feijão). E
cadeias que dependem da aquisição da indústria, como o tabaco desfavorecidas. (...). O tabaco está
sendo comercializado de forma mais lenta, apenas por algumas empresas. Já os produtos
alimentícios, como exemplo, feijão, a venda [está] restrita a vizinhos, sem comercialização para fora
devido ao COVID-19. (Representante STR e agricultor. Entrevista realizada em 14/04/20).
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14
Auxílio-merenda e cestas básicas: veja como prefeituras e estados estão compensando ausência de alimentação nas escolas.
G1, 2020. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/04/13/auxilio-merenda-e-cestas-basicas-veja-como-
prefeituras-e-estados-estao-compensando-ausencia-de-alimentacao-nas-escolas.ghtml. Acessado: 13/04/20.
15
https://bit.ly/2XtLndL
16
http://www.minhafeiraemcasa.com
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Tais constatações são encontradas em outras pesquisas sobre o tema. Verifica-se aumento
geral do consumo de frutas, legumes e verduras na pandemia. Todavia, tal crescimento é puxado
pelas classes mais abastadas e escolarizadas. Entre os mais pobres e menos escolarizados, houve
aumento do consumo de ultraprocessados (OPINION BOX, 2020; USP, 2020).
Em relação aos preços dos alimentos, ambos os estratos afirmam perceber aumento dos
valores dos produtos in natura, ainda que não vejam riscos de desabastecimento causados pela
pandemia. Cabe destacar que dentre os consumidores que disseram manter a ida às feiras locais não
há relatos de aumento dos preços dos alimentos. Finalmente, a maioria dos consumidores
entrevistados relata diminuição expressiva das refeições fora do lar, suspendendo a ida a
restaurantes e padarias, por exemplo. Portanto, verifica-se como o consumo das famílias tem se
transformado em decorrência dos efeitos gerados pela pandemia.
Os dados apresentados acima demonstram a capacidade dos atores e organizações
enfrentarem as crises geradas pela pandemia da Covid-19 em nível territorial. Apesar das
dificuldades impostas à saúde, produção, comercialização e consumo de alimentos, é possível
verificar que os atores vinculados à agricultura familiar da região sul do RS, articulam-se na garantia
de manutenção da oferta de alimentos, do acesso aos mercados e da salvaguarda da segurança
alimentar e nutricional da população local.
Contudo, verificam-se desigualdades importantes entre os agricultores familiares no
enfrentamento da pandemia. Percebe-se que aqueles que já acessavam políticas públicas e mercados
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locais e trabalhavam de modo cooperativo tem se saído melhor que aqueles com baixa organização
coletiva e consequente dificuldade no acesso às políticas e aos mercados locais.
Tais desigualdades poderiam ser amenizadas se o governo federal tivesse garantido uma
renda básica emergencial às famílias rurais. Aprovada na câmara e no senado, o Projeto de Lei
735/20 foi vetado pelo presidente da república, impossibilitando aos agricultores familiares o acesso
a esses recursos17.
Finalmente, para que as ações territoriais e coletivas construídas na região sejam bem
sucedidas no longo prazo e efetivamente alcancem processos de desenvolvimento rural, novas e
melhores políticas públicas precisam ser construídas. Com ampliação da ação do Estado e tendo
como base a agricultura familiar e os sistemas locais de abastecimento, essas novas políticas
alimentares podem contribuir para uma economia mais diversa, redistributiva e territorial
(MORAGUES-FAUS et al., 2020).
17
Em um cálculo aproximado realizado pelo projeto do Observatório, estimamos em cerca de R$ 27 milhões o volume de
recursos mensais que deixou de circular no território com a negativa de acesso dos agricultores ao auxílio emergencial de R$
600,00.
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geralmente, operam por meio de relações precárias e predatórias de trabalho (GRISA; NIEDERLE,
2020).
As ações propostas acima podem contribuir na retomada do papel do Estado nas políticas
alimentares, tendo como foco a dimensão territorial do desenvolvimento a partir da uma nova
agenda. No longo prazo, essas iniciativas consolidariam processos mais diversos e redistributivos
que tenham na agricultura familiar e na alimentação seus principais elementos balizadores
(MORAGUES-FAUS et al., 2020).
Considerações finais
Os dados preliminares da pesquisa demonstram haver um protagonismo dos atores e
organizações locais no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Esse destaque abre a oportunidade
de retomada dos territórios como centrais ao debate das políticas sobre desenvolvimento sustentável.
Especialmente, verifica-se como os atores e organizações do território da região sul do RS vinculados
à agricultura familiar, estão construindo um conjunto de práticas e processos que tem contribuído
na coesão do tecido social, na manutenção do dinamismo econômico do território e, principalmente,
na garantia do acesso aos alimentos e da segurança alimentar e nutricional dos seus habitantes. Esses
elementos são fundamentais na gestão e superação das crises que estamos vivendo.
Desta forma, para que essas práticas e processos perdurem no longo prazo e efetivamente
sejam institucionalizadas no território – indo além do seu caráter assistencial atual – é preciso que
elas sejam conectadas de modo mais efetivo ao debate sobre desenvolvimento sustentável e sistemas
alimentares locais. A esfera municipal, por meio da construção de uma nova agenda alimentar, torna-
se essencial nesse sentido.
Há ainda dois pontos sobre os quais é necessário avançar. O primeiro refere-se à retomada
de uma maior presença do Estado, hoje praticamente ausente, das proposições de desenvolvimento,
especialmente em âmbito federal. Diante dos graves efeitos gerados pela pandemia, uma gestão
integrada, clara e articulada faz-se necessária para a melhoria dos processos de produção,
comercialização e consumo de alimentos, notadamente para que não sejam perdidas as experiências
exitosas criadas para o combate à pandemia.
O segundo ponto refere-se ao tema da governança. Há uma histórica incapacidade de
articulação das políticas públicas entre os entes federativos no país, as quais foram expostas de modo
claro no atual contexto. Essa falta de governança no campo das políticas públicas acaba gerando
ineficiências tais como desperdício de recursos, dificuldades de acesso às políticas existentes e,
principalmente, incapacidade em propor novas agendas e políticas. Completa o quadro a falta de
espaços democráticos de deliberação, as dificuldades de articulação entre os atores estatais e a
sociedade civil e, no caso da agricultura familiar, a desestruturação dos órgãos de extensão rural.
Uma saída para superar essas limitações encontra-se no estímulo à construção de políticas
alimentares territoriais que estejam conectadas aos processos e demandas locais dos atores.
Conforme demonstramos ao longo do artigo, os tecidos sociais territoriais, apesar de todas as
dificuldades, possuem capacidade de organização coletiva em momentos críticos como os que
estamos vivendo. O que falta é o reconhecimento público dessa capacidade e o estímulo ao seu
desenvolvimento.
Referências
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