Rock My Art

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS


INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
MESTRADO EM ARTES VISUAIS

LEONARDO AZEVEDO FELIPE

ROCK MY ART
OU
O NOVO ESTETICISMO DE PORQUÊ CHORAS?
OU
O DIA EM QUE EDU K ENTROU PARA A HISTÓRIA DA ARTE

PORTO ALEGRE
2013
1

Leonardo Azevedo Felipe

ROCK MY ART
ou
O novo esteticismo de Porquê Choras?
ou
O dia em que Edu K entrou para a História da Arte

Dissertação apresentada como requisito parcial para a


obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Área de concentração: História, Teoria e Crítica da Arte.

Orientadora: Prof. Dra. Daniela Pinheiro Machado Kern

Porto Alegre
2013
2

Leonardo Azevedo Felipe

ROCK MY ART
ou
O novo esteticismo de Porquê Choras?
ou
O dia em que Edu K entrou para a História da Arte

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre,


pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Área de concentração: História, Teoria e Crítica da Arte.

Data de aprovação: 18 de novembro de 2013.

Orientadora: Prof. Dra. Daniela Pinheiro Machado Kern

Banca examinadora:

_________________________________________________________________________
Prof. Dra. Mônica Zielinsky (PPGAV/UFRGS)

___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Elaine Tedesco (PPGAV/UFGRS)

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Mário Celso Ramiro de Andrade (PPGAV/USP)

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. João Carlos Machado (Centro de Artes/UFPEL)
3

Para o “novo esteta” Edu K.


4

AGRADECIMENTOS

À Mariana Xavier e Maria Helena Bernardes, pela orientação no pré-projeto.

Aos amigos Giancarlo Lorenci e Zeca Azevedo, pela leitura prévia (e pelos elogios
incentivadores).

Aos artistas Rogério Nazari e Telmo Lanes, por generosamente me permitirem


vasculhar seus arquivos e a memória de tempos passados.

A Carlos Palombini, Caroline Coon, Nicholas Rombes, Simon Reynolds e Karen


Pinkus, por responderem às minhas tolas questões com tanta inteligência.

Aos integrantes da banca examinadora, os doutores Mônica Zielinsky, Elaine Tedesco


Mário Ramiro e Chico Machado, pelo carinho e pelos bons conselhos.

À orientadora Daniela Kern, pela confiança depositada e a leveza na orientação.

A Homero Pivotto Jr., pela dica no último minuto.

Aos queridos colegas da turma 19, pela cumplicidade.

À minha implicada/amada Garcinha (Marcela Leal), pelo amor e pela paciência (e as


traduções).

À mana Flavinha, pelo help na edição de imagens.

Ao Defalla.
5

Várias motivações podem levar à escolha de um tema e à delimitação de um


feixe de interesse: motivações ideológicas, estéticas e até afetivas.
Evidentemente existe uma combinação desses fatores, mas, talvez o mais
importante seja mesmo a identificação afetiva através da empatia com a obra e
o processo criativo de alguns artistas.
Renato Cohen (1989, p. 19)
6

RESUMO

A partir do estudo de um caso específico – a performance Porquê Choras?, de


Rogério Nazari e Telmo Lanes, ocorrida em 14 de agosto de 1985, em Porto Alegre, e que
contou com a participação do grupo de rock Defalla – este trabalho busca narrar uma História
(Roqueira) da Arte, apontando momentos no século XX em que o campo das artes visuais foi
cruzado com o da cultura popular massiva representada pelo rock. Em paralelo, esta pesquisa
também propõe reflexões acerca do fazer da própria história da arte e das maneiras de
produção da chamada pós-crítica.

Palavras-chave: Rock. Esteticismo. Punk. Performance. Pós-modernismo.


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ABSTRACT

From the study of a specific case – the performance Porquê Choras?, by Rogerio
Nazari and Telmo Lanes, which occurred on August 14, 1985, in Porto Alegre, and had the
participation of the rock group Defalla – this paper seeks to narrate a Rock My Art Story,
pointing moments in the twentieth century that the field of visual arts has crossed with pop
culture represented by rock’n’roll. In parallel, this research also proposes reflections on the
making of the history of art and on the ways of production of the so called post-criticism.

Keywords: Rock. Esteticism. Punk. Performance. Post-modernism.


8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Filipeta (frente e verso) ........................................................................................... 21


Figura 2 – Programa ................................................................................................................. 22
Figura 3 – Início da performance ............................................................................................. 26
Figura 4 – Desenho escultórico ................................................................................................ 27
Figura 5 – Defalla ..................................................................................................................... 28
Figura 6 – Missa ....................................................................................................................... 28
Figura 7 – Richard Hamilton – “The Beatles” (1968) .............................................................. 51
Figura 8 – International Times – “Yoko at Indica” (1966) ...................................................... 51
Figura 9 – Andy Warhol – “The Velvet Undergorund and Nico” (1967) ................................ 58
Figura 10 – CBGB (1986) ........................................................................................................ 58
Figura 11 – Raymond Pettibon – “Six pack” (1981) ................................................................ 66
Figura 12 – John Heartfield – “Adolf Der Übermensch” (1932) .............................................. 72
Figura 13 – Linder – “Orgasm addict” (1977) ......................................................................... 72
Figura 14 – Jamie Reid – “God save the Queen” (1997) ......................................................... 74
Figura 15 – COUM Transmissions – “Prostitution” (1976) ..................................................... 82
Figura 16 – Gee Vaucher – “Bloody revolutions” (1980) ........................................................ 82
Figura 17 – Hélio Oiticica e Neville D’Almeida – CC5 Hendrix War (1973)......................... 91
Figura 18 – Manifesto Porquê Choras? ................................................................................... 98
Figura 19 – Estudos ................................................................................................................ 107
Figura 20 – Fotolito Jesus....................................................................................................... 108
9

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
2 RESGATANDO PORQUÊ CHORAS? .............................................................................. 18
2.1 DE VOLTA PARA O FUTURO: A DÉCADA DE 1980 .............................................. 29
3 ROCK MY ART (1955 A 1980) ............................................................................................ 44
3.1 PUNK ............................................................................................................................. 59
3.2 O JARDIM ELÉTRICO DE HO .................................................................................... 85
4 O NOVO ESTETICISMO .................................................................................................. 94
4.1 NEW WAVE: A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA ......................................................... 101
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 119
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 124
APÊNDICES ......................................................................................................................... 133
APÊNDICE A – Entrevista com Telmo Lanes .................................................................. 133
APÊNDICE B – Entrevista com Edu K ............................................................................. 139
APÊNDICE C – Entrevista com Caroline Coon (Tradução: Marcela Leal) ...................... 142
APÊNDICE D – Entrevista com Simon Reynolds ............................................................. 148
APÊNDICE e – Entrevista com nicholas rombes .............................................................. 151
APÊNDICE F – Registro da Performance Porquê Choras? .............................................. 154
10

1 INTRODUÇÃO

Esta não é uma pesquisa convencional de história da arte. Talvez lhe falte aquela frieza
de inventário, a obsessão em levantar e catalogar todos os documentos e escrutiná-los
seguindo a ortodoxia metodológica imposta pela disciplina. Nesse sentido, fui um pesquisador
falho. Temo não ter esgotado todas as fontes de informação sobre meu caso em estudo, não
fui a arquivos de velhos jornais e tampouco folheei antigas revistas de crítica de arte. Além
disso, minhas anotações não foram transpostas para tabelas e planilhas, expedientes
notadamente objetivos para a apresentação de dados. Talvez esta pesquisa se aproxime mais
de uma investigação de teoria da arte, já que conceitos associados ao meu objeto de estudo,
teorias que tentam dar conta dos fenômenos históricos, artísticos e sociais, foram importantes
materiais de trabalho. Tanto quanto fatos e documentos, também me interessavam as
consequências e razões, as perguntas que eu poderia formular sobre esse material.
Não é um trabalho convencional de história da arte porque observa o objeto dessa
história, a própria arte, a partir de outras disciplinas, posicionando-o na esfera maior da
cultura e em relação a fenômenos de ordens que extrapolam o artístico: sociais,
comportamentais, políticos e econômicos. Alguns dos principais autores usados como
referência para este trabalho sequer pertencem ao campo da Arte, eles vêm de áreas como
História, Sociologia, Antropologia e a crítica musical. Parte da razão desse desvio, um
desenquadramento da moldura da história da arte, usando a metáfora de Hans Belting (2006),
talvez se deva à minha própria formação como comunicador social e jornalista: há na pesquisa
um declarado interesse pela chamada cultura de massas e em seus meios de difusão, cuja
influência inescapável foi capaz de alterar a própria concepção do objeto artístico e seus
modos de apresentação. Usando um clichê do campo, esta pesquisa se posiciona em certa
medida em um entre-lugar, conforme o conceito de Homi K. Bhabha (1998) para definir
essas zonas intersticiais de fluxos, identidades complexas e interface entre campos distintos.
O entre-lugar é o local favorecido do hibridismo, das trocas e da mistura. Nesta pesquisa, ele
se articula entre as esferas da arte e da cultura pop, do entretenimento e do experimentalismo,
da resistência e da cooptação.
Falta a esta pesquisa, ao fim, um tanto da tal objetividade científica, o distanciamento
sugerido pelo bom senso para que possamos observar algo adequadamente. A relação entre
pesquisador e objeto é aqui – e desde o princípio – declaradamente apaixonada. Isso decorre
do lugar de onde o autor fala, de sua trajetória e posição dentro da própria cena que busca
11

entender. Há pelo menos 20 anos estou envolvido profissionalmente com a cena underground
de Porto Alegre, tendo participado de bandas, promovido eventos e festas, divulgado e
pensado a produção musical contemporânea da cidade. De certa forma, sinto-me parte de uma
herança da contracultura: nos anos 1990, fui proprietário de um bar e casa de shows que foi
para a Porto Alegre dos anos 1990 um território de liberdade, permissividade, transgressão e
experimentação1.
Para que pudesse articular meu background favorecendo uma contribuição para um
outro campo: o da arte – arte como uma disciplina a ser pesquisada de forma séria e
metodológica, arte enquanto teoria, história e crítica entendida pela academia – eu precisava
escolher um objeto de estudo que estivesse relacionado a este background, ao meu passado e
presente como agente da cena cultural, como roqueiro diletante e profissional dos meios de
comunicação.
Após inúmeras revoluções e rupturas, a arte chegou a um ponto de liberdade total. Se
no princípio ela só poderia tratar de divindades e das forças misteriosas da natureza, com o
passar do tempo, foi incorporando novos temas e interesses: primeiro os santos e depois os
reis e depois as paisagens e depois os objetos mortos e depois o homem comum e depois as
formas abstratas, até que, com a chegada do século XX, com os experimentos praticados por
Marcel Duchamp e outros posteriores a ele, a arte enfim alcançou uma autonomia curiosa: a
de questionar seu próprio sentido, sua singularidade e função. A partir daí, qualquer assunto
tornou-se digno de tratamento pela arte e ela dissolveu-se nos limites da própria cultura,
contaminando-se por outras disciplinas e outras atividades humanas. O rock, gênero musical
surgido em meados do século XX como mercadoria de consumo popular e, após processos
sociais complexos, tornado um ramo da cultura com sua própria estética e história, não
poderia passar incólume pela influência e o interesse da arte. Artistas, em meio à total
liberdade de escolha da matéria-prima para sua criação, também acabaram por se interessar
por esse ruidoso fenômeno musical e cultural.
A intenção primeira desta pesquisa foi escrever uma, na falta de forma mais adequada
de nomeação, História (Roqueira) da Arte, introduzir dois parênteses dentro de uma história
maior, construir uma digressão que trata de um lugar bastante específico dentro desta grande
narrativa: esse entre-lugar no qual convergem a arte e a cultura pop, representada pelo rock.
Uma história cujo marco está no advento da pop, nas colaborações entre artistas e músicos da

1
O bar se chamava Garagem Hermética e foi fundado em 1992. Após tê-lo vendido, em 2000, o espaço
funcionou até 2013, quando foi fechado. A memória deste tempo está contada no livro A Fantástica Fábrica,
deste autor, ainda no prelo.
12

Swinging London e, principalmente, na relação entre Warhol e o grupo Velvet Underground,


traçada a partir da arte pop nos anos 1960. Essa nova tradição pode ser remontada, no entanto,
a experimentos pioneiros das vanguardas históricas e a partir da pop estabelece diálogos com
movimentos como conceitualismo, tropicalismo e punk. Esse último mereceu atenção especial
neste trabalho. O punk, pensado aqui como um movimento artístico de vanguarda, pode ser
considerado o apogeu dessa narrativa que atravessa arte e cultura pop.
Por cultura pop, entenda-se uma derivação da noção de cultura, esse conceito da maior
complexidade que, para não retardar a leitura em excessivas teorizações preliminares, será
posto aqui conforme a definição do teórico inglês Raymond Willliams: como a conjunção
entre um modo de vida particular e os processos gerais de descoberta e esforço criativo que
contribuem para o desenvolvimento humano (STOREY, 1998). Cultura pop seria uma cultura
globalista de mercado indissociável aos meios de comunicação massivos, “um grupo de
objetos culturais voltados à disseminação midiática”, (SILVEIRA, 2013, p. 10), ligados ao
hedonismo, à diversão e ao consumo fácil e fortemente vinculados à cultura jovem urbana. No
conjunto de itens da cultura pop (seus filmes, novelas, histórias em quadrinhos, comerciais de
televisão, bandas, sucessos radiofônicos e artigos da moda), o rock tem um lugar especial. Por
motivos que serão expostos no segundo capítulo, essa mercadoria cultural se tornou símbolo
de rebeldia e religião da juventude, aspirando por fim a um lugar dentro da própria história da
arte, à medida que ela ampliou sua moldura em busca de um objeto que se desterritorializava.
Ainda que hoje o rock não pertença mais aos jovens e enfrente um processo irreversível de
institucionalização, ainda que seja mera mercadoria integrante da lógica da diversão da
Sociedade do Espetáculo, ele mantém paradoxal ligação com um ideal utópico de rebeldia e
resistência.
Usando um tipo de referência, um objeto do qual estamos próximos e podemos em
relação a ele estabelecer a medida das coisas distantes, tive o privilégio de descobrir um
interessante estudo de caso local através do qual pude analisar de forma mais delimitada, mais
clara, algumas questões da pesquisa que se mostravam abstratas e distantes. Um evento
esquecido na história da arte brasileira que poderia perfeitamente caber na minha História
(Roqueira) da Arte, já que era fruto do cruzamento dos mundos da arte e do rock.
Legitimando sua relevância, havia a participação de seus criadores com desdobramentos do
mesmo trabalho na 19ª Bienal de São Paulo. Além disso, o grupo de rock envolvido no evento
era conhecido como dos mais vanguardistas do rock nacional. Porquê Choras? (sic) ocorreu
na noite de 14 de agosto de 1985, na Sala Álvaro Moreyra do Centro Municipal de Cultura,
em Porto Alegre, e apresentou performance, instalação e pinturas dos artistas Telmo Lanes e
13

Rogério Nazari, além da música de Carlos Palombini e de um grupo recém formado por três
jovens roqueiros: o Defalla. A descoberta desse evento, o acesso facilitado aos documentos e
aos depoimentos de seus protagonistas possibilitou que eu refletisse sobre o próprio fazer
histórico, à medida que manuseava o precioso material que os artistas deixaram sob meus
cuidados.
Antes de prosseguir, é necessário justificar algumas escolhas narrativas e
metodológicas. Optei por traduzir as inúmeras citações estrangeiras usadas na dissertação.
Parte considerável da bibliografia desta pesquisa foi publicada somente em língua inglesa e a
tradução das citações possibilitou uma leitura muito mais fluída do texto. Não pude evitar
algumas generalizações como, por exemplo, no uso da palavra punk. Esse é um termo que
designa um fenômeno complexo que carrega mais de um significado. Entretanto, se a cada
vez que o usasse (e serão inúmeras) tivesse que interromper a argumentação com ressalvas
explicativas, a leitura se tornaria enfadonha e truncada. Punk, além de se referir a um tipo de
música, é também uma subcultura e também algo ainda mais abstrato: uma estética com suas
características próprias e valores. É geralmente a essa abstração, a esse estilo que perpassa
tanto a música quanto a subcultura, a uma generalização de algo concreto (as bandas punk e
os fãs de sua música), que me refiro no texto. Outro uso que merece explicação está
relacionado à própria palavra arte. Não cabe aqui defini-la, o que necessitaria uma dissertação
própria, mas é preciso explicar que decidi tratá-la sem os adjetivos visual ou plástica, por
acreditar que, após o seu processo de desmaterialização, a ideia estrita de visualidade ou
plasticidade é reducionista demais para abarcar a abrangência da experiência artística e da
natureza (i)material de muitos de seus produtos e práticas.
Quanto às referências, elas vieram de diversas áreas do conhecimento. Usei
Hobsbawm para fundamentar os processos históricos que deram origem ao rock. Hebdige
para as teorizações sociológicas acerca do punk. Adorno e Debord forneceram a crítica de viés
marxista aos processos da cultura sob a égide do capitalismo. As ideias de Jameson,
Hutcheon, Lyotard e Foster foram exploradas quando tratei da pós-modernidade, questão
suscitada pelos desdobramentos da pesquisa. O tema foi tratado sob o aparato teórico
produzido na época do acontecimento de nosso estudo de caso. Não tratei da pós-
modernidade, esse assunto tão complexo, usando as teorias disponíveis hoje, trinta anos
depois do apogeu acadêmico do fenômeno. As teorias sobre o pós-moderno servem para
explicarmos o contexto em que nosso evento ocorre. O campo específico da arte forneceu um
importante suporte nos escritos do artista e teórico Dan Graham, que até os anos 1980
publicou muito material crítico sobre temas da cultura popular massiva como o rock e o punk.
14

Com suas teorias sobre o fim da arte e o fim da história da arte, respectivamente, Arthur
Danto (2006) e Hans Belting (2006) contribuíram sobremaneira para a construção desta
história que só é possível de ser contada hoje, depois que antigas narrativas se viram
desacreditadas. Do historiador da arte sonora Alan Litch (2007) tomei um conceito que se
provou muito eficaz para dar luz às relações entre arte e música pop: o de pop envy, a inveja
pop que faz com que muitos músicos e artistas cruzem as fronteiras entre seus campos de
atuação. Da área da crítica musical, John Savage e Simon Reynolds forneceram importantes
subsídios em suas respectivas pesquisas e histórias do punk e pós-punk britânico.
Servi-me da larga experiência de mais de uma década como jornalista para realizar
algumas entrevistas que foram feitas com dois grupos: 1) os agentes envolvidos em Porquê
Choras?, entre os quais entrevistei os artistas Telmo Lanes (duas vezes), Rogério Nazari e os
músicos Carlos Palombini e Edu K (duas vezes), esses dois últimos, em entrevistas realizadas
por correio eletrônico (os outros integrantes do Defalla à época não foram entrevistados: Biba
Meira afirmou não ter recordações do evento e Carlo Pianta se recusou a responder às
perguntas, alegando que suscitavam questões muitos complexas); 2) estudiosos do punk, entre
os quais enviei perguntas para Simon Reynolds, Nicholas Rombes, Karen Pinkus e a
jornalista e artista Caroline Coon, que acabou responsável por levantar uma interessante
discussão feminista – uma denúncia contra a valorização do elemento masculino na narrativa
punk, oriundo de uma visão que considera típica da esquerda pessimista. Por serem
documentos preciosos sobre proposições teóricas do Brasil nos anos 1980, textos do
performer e pesquisador Renato Cohen e do jornalista e sociólogo Juremir Machado da Silva
foram considerados fontes primárias que contribuíram para a recriação do envoltório da
década, conforme o termo usado por Cohen (1989), do qual me aproprio. Do mesmo modo,
Silva (1991), com seu estudo sobre as tribos urbanas do bairro Bom Fim, traz um conceito
que ajuda a nominar esta pesquisa: o de novo esteticismo, a postura estética e comportamental
da pós-modernidade.
As vozes desses teóricos e artistas são reunidas a de outros – Andy Warhol, Hélio
Oiticica, Patti Smith, John Lennon, David Byrne, Caetano Veloso, Waly Salomão –
decorrendo em uma narrativa que valoriza a polifonia, o ritmo e até certa musicalidade, uma
vibração captada da música das dezenas de gravações a que tive acesso ou dos inúmeros
videoclipes, documentários e filmes de ficção aos quais assisti. Mais do que apenas resgatar
um objeto esquecido para dentro de uma nova história da arte e compreender seu contexto,
mais do que o trabalho arqueológico de escavar as camadas de teoria ao redor dele, esta
pesquisa pretende ser uma nova experiência em relação a seu objeto de estudo, uma narrativa
15

que, de algum modo, busca recuperar o espírito, o estilo, a estética daquilo que ela própria
representa. Um texto crítico que quer reproduzir formalmente o que critica, tornando forma e
conteúdo inseparáveis. A partir dessa perspectiva, podemos entender a recusa do
pesquisador/narrador em usar autores canônicos em estudos no campo da arte, um gesto que
faz eco à rebeldia tola do rock. Justifica-se também o uso de um historiador “maldito” como
Stewart Home, um pesquisador da vanguarda do pós-guerra que se recusa a dobrar-se às
regras acadêmicas.
A orientação formal que tende a aplicar na construção do texto crítico características
observadas na própria matéria criticada, fazendo da representação crética um simulacro do
representado, levou-me a recorrer à colagem, procedimento muito importante nesta pesquisa:
ela é o paradigma do contemporâneo, o momento no qual a arte encontra o rock; ela é a
expressão visual máxima do punk e a linguagem principal do estudo de caso Porquê Choras?.
O texto que o leitor encontrará entre esta introdução e a conclusão foi montado a partir de
trechos retirados da produção textual do autor praticada durante as disciplinas do curso de
mestrado e também de depoimentos de entrevistados e citações bibliográficas. Trata-se de
uma grande colagem, cuja criação é favorecida pelos meios digitais de produção, em que a
tesoura e a cola são substituídas pelos comandos das teclas do computador. Aqui é preciso
mencionar a influência das ideias e práticas do escritor beat Wiliam S. Burroughs acerca do
método literário do cut up. Não por acaso, Burroughs pode ser considerado um mentor
filosófico do punk. Há também no texto um forte aspecto imagético, cinematográfico, afinal a
montagem, processo fundamental na construção narrativa do cinema, é um derivado da
colagem e dos processos de assemblagem. A narrativa também é construída através de
“movimentos de câmera e lentes” como travellings, panorâmicas e zooms.
Minhas pretensões narrativas puderam ser corroboradas a partir de um conceito que,
dessa forma, tornou-se essencial para esta pesquisa: o de pós-crítica. Em 1983, Hal Foster
organizou uma coletânea de artigos com alguns dos maiores pensadores da, à época tão
propalada, pós-modernidade. The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture reúne
ensaios de luminares como Habermas, Baudrillard, Said, Jameson, Krauss, Crimp, Owens, o
próprio Foster, além de dois autores menos conhecidos no Brasil – um deles o estadunidense
– Gregory L. Ulmer, que apresenta o ensaio “The Object of Postcriticism”. Ulmer
problematiza a produção da escrita teórica contemporânea, tendo como foco principal a crítica
literária. Segundo o autor, a pós-crítica deve pôr em crise a forma de representação do objeto
crítico, do mesmo modo que a literatura e as artes se transformaram mediante as experiências
das vanguardas do século passado:
16

O que está em jogo na controvérsia que rodeia a escrita crítica


contemporânea resulta mais fácil de compreender quando se situa no
contexto do modernismo e pós-modernismo nas artes. O problema é a
“representação”, de maneira específica, a representação do objeto de estudo
em um contexto crítico. A crítica se transforma agora da mesma maneira que
a literatura e as artes se transformaram mediante os movimentos de
vanguarda nas primeiras décadas deste século. A ruptura com a “mimese”,
com valores e suposições do “realismo”, que revolucionou as artes
modernistas, está agora em movimento (tardiamente) na crítica, cuja
principal conseqüência é, naturalmente, uma mudança em relação do texto
crítico com seu objeto... (ULMER, 1998, p. 125).

A tarefa da pós-crítica é, para Ulmer, “pensar as consequências para a representação


2
crítica dos novos meios mecânicos de reprodução” (ULMER, 1998, p. 137), os mesmos
meios massivos dos quais a cultura pop não pode ser dissociada. O instrumento da pós-crítica,
a expressão crítica da pós-modernidade, é aquele “predominante e presente nas artes do
século XX” (ULMER, 1998, p. 127): a colagem, procedimento que permitiria capturar a
simultaneidade, a fragmentação e a natureza relativa da realidade contemporânea3. A pós-
crítica é uma escrita “bissexual” (ULMER, 1998 p. 135), parasitária, que recorre
constantemente à citação e à apropriação. “Os pós-críticos escrevem com o discurso dos
outros” (ULMER, 1998, p. 144). A citação, segundo Ulmer, é a forma pela qual a colagem se
faz presente. Ele pergunta:

Será admitida a revolução da colagem/montagem na representação no ensaio


acadêmico, no discurso do conhecimento, substituindo a crítica “realista”
baseada nas noções de “verdade” como correspondência ou reprodução
correta de um objeto de estudo referente? (ULMER, 1998, p. 129-130)

Os procedimentos da pós-crítica estabelecem uma nova relação entre sujeito e seu


objeto, concebida “não desde o ponto de vista de sujeito-objeto, senão de sujeito-predicado”
(ULMER, 1998, p. 130). Sabemos pela gramática que um predicado é tudo o que se declara
sobre o sujeito, componente da frase estruturado em torno de um verbo. Ulmer está mostrando
que o fazer crítico, teórico ou histórico é um trabalho essencialmente subjetivo e que nunca

2
E o que dizer das consequências dos meios digitais, praticamente onipresentes na vida contemporânea? É fácil
compreender porque Ulmer é hoje professor de linguagens eletrônicas e cibermídias na European Graduate
School, na Suíça. Ele também leciona inglês na Universidade da Flórida. Hipertexto e linguagens multimídia são
os focos de sua pesquisa.
3
Ulmer utiliza o aparato teórico fornecido por Walter Benjamim em seus estudos da influência da
reprodutibilidade técnica sobre a criação artística e da importância da montagem conforme vista no teatro de
Brecht. Também encontra suporte na análise que o filósofo alemão faz da alegoria e utiliza conceitos de Barthes
e Derrida, além da produção do artista John Cage, para fundamentar suas ideias sobre a pós-crítica. Não irei
explorar os conceitos desses autores, cito-os para situar as referenciais de Ulmer.
17

podemos deixar de relevar as questões do próprio sujeito que estuda o objeto. O fazer crítico
torna-se também uma declaração sobre o sujeito, sobre o lugar de onde ele olha seu objeto,
um olhar não sem isenção em relação aos fatos e documentos. Estruturado em torno de um
verbo, o predicado também contém uma ação. Ao estudar um objeto, agimos sobre ele,
dando-lhe novos sentidos, fazendo-o existir, legitimando-o. Escrever uma história da arte é,
literalmente, inventá-la.
Não apenas naquele momento no passado, há quase trinta anos, quando uma banda de
rock participou de uma experiência artística em outro campo, o dia em que Edu K entrou para
a História da Arte é também o momento no qual o pesquisador resgata o objeto esquecido e
desimportante e o insere na história. Ao adotar uma estratégia característica da pós-
modernidade – a ironia – para conceber o título de minha pesquisa não pretendo afrontar a
autoridade desta academia, mas propor uma sutil reflexão sobre o próprio fazer da história da
arte.
O dia em que Edu K entrou para a História da Arte é hoje.
18

2 RESGATANDO PORQUÊ CHORAS?

Em fevereiro de 2011, fui ao encontro de Telmo Lanes, com quem havia marcado uma
entrevista. Lanes, que encerrara sua carreira artística nos anos 1990, participara ativamente do
grupo Nervo Óptico, do qual também fizeram parte Vera Chaves Barcelos, Mara Alvares,
Carlos Pasquetti, Carlos Asp e Clóvis Dariano. O grupo de artistas, fundado em 1976, fora o
primeiro no Estado a entrar em sintonia com tendências que questionavam a concepção
tradicional de objeto artístico ocorridas nos centros, pelo menos, desde a década anterior
(ARAÚJO, 1999). Eu também sabia da paixão de Lanes (Telmo, como eu o chamava) pela
música, porque o conhecia através de amigos em comum. Se houvera, naquela remota Porto
Alegre dos anos 1980, alguma experiência no cruzamento entre as artes visuais e o rock – essa
expressão musical popular tão importante para o século XX – ele deveria saber, poderia me
dar alguma pista.
A busca de uma conexão local entre esses dois campos não era movida pelas razões
ufanistas que geralmente alimentam muitos dos discursos relacionados a este lugar em
particular, situado no Sul do Brasil. As questões da identidade do gaúcho – e de seu folclore –
nada me interessavam. Ao contrário, eu buscava um elemento urbano e, em certa medida,
internacional, algum tipo de conexão entre a produção artística dessa cidade periférica e
experiências e eventos ocorridos em outros lugares do mundo. Queria verificar, não sem um
olhar crítico, como este fenômeno de ordem artística, cultural e social que eu me propusera a
estudar, a saber, a relação entre a arte e o rock, havia se dado próximo a mim, com
personagens que eu talvez conhecesse, em uma cena que me era familiar e acessível. O lugar
de onde eu procurava falar em minha pesquisa sempre fora o “dentro”. Seu ponto de partida
havia sido minha relação pessoal e passional com o objeto de estudo, pois só mesmo a paixão
poderia me mover em tão árduo caminho. Desde que começara a pesquisar os exemplos de
inteiração entre os campos, sentia falta de informações sobre a cultura brasileira. A
bibliografia estrangeira – especialmente estadunidense e inglesa, em virtude de serem esses
dois países, Estados Unidos e Inglaterra, dois pólos de produção, tanto de arte quanto de
música pop – era farta, mas pouco havia sobre os artistas brasileiros, suas experiências
contemporâneas de tradução da cultura alienígena, prática já consagrada pelo modernismo
nacional através da antropofagia de Oswald de Andrade. Além do mais, o rock brasileiro da
década de 1980 havia sido um fenômeno por demais massivo para passar desapercebido
mesmo no ambiente muita vezes autorreferente das artes visuais. Aqueles eram os anos 1980,
19

a década definitiva das chamadas práticas pós-modernas de rompimento entre alta e baixa
cultura, da apropriação e do pluralismo.
Com o gravador digital ligado em cima da mesa da sala de Telmo Lanes, fiz a
pergunta: daquela época do Nervo Óptico, você se lembra de algum artista, algum trabalho
produzido por aqui que tivesse alguma relação com o rock? Ele respondeu:

“Uma relação direta eu não me lembro. O Dariano era baterista de uma banda,
eles e os amigos dele. Tinha uma relação nesse sentido. Eram uns caras daquela
época, uns cabeludões, ano 75, por aí. Uma das bandas era Gertrudes, aquelas
coisas assim meio de garagem, tipo progressivo. Eles gostavam de Frank Zappa.
Era Zappa, Eric Clapton, por aí. Ele tinha o universo dele de som, o Pasquetti
também tinha outro universo de som, então as pessoas tinham essa relação com o
gosto musical. Mas do pessoal do Nervo Óptico em si, nada diretamente. Nas
performances geralmente se usava música. Tu fazias uma ação teatral e escolhia
uma trilha que podia ser uma coisa clássica ou rock’n’roll, uma certa relação
com a música, a performance teve, era pra dar um tom. Até porque era aquela
chatice: um cara pelado, rolando no chão por meia hora.”4

Após rir um pouco do próprio comentário, subitamente, como se tivesse recordado (ou
omitido até então), Lanes disse:

“Fiz com o Nazari uma coisa que tinha música forte. A gente começou a pintar,
em 80 e poucos, tínhamos algumas afinidades. Resolvemos fazer uma pintura
mais dark, mais escura, mais romântica. A gente ouvia Depeche Mode, Siouxsie
and The Banshees, Echo and The Bunnymen, toda aquela turma. Era uma trilha
sonora para pintar. Nossos temas eram os clássicos românticos, cruz, rosas,
montanhas, referências ao cristianismo, cultura ocidental e épica. E um dia a
gente quis mostrar os nossos trabalhos. Então a gente fez uma performance-
vernissage pra mostrar essas coisas. Reservamos a Álvaro Moreyra, ali no Atelier
Livre, pra fazer a demonstração-performance. A gente colocou as telas e
colocamos uma cortina preta sobre elas. Começamos a fazer uma performance,
montando objetos, desde toras de madeira velha, correntes, um tronco, machado,
coisas desse universo. Rosas e pão. E no fim a gente distribuía um bolo marrom,
preto, de chocolate, com uma cruz. Era para todo mundo o bolo. E a gente não
queria fazer a coisa em silêncio, obviamente. Então a gente contratou o Carlos
Palombini mais o Defalla. O Palombini fez uma base, ele é um compositor
erudito, um cara que estava na nossa roda, estudava música erudita
contemporânea. Botamos ele com o Defalla, ao vivo, tocando, enquanto fazíamos
a performance. No fim a gente abriu a cortina e mostrou as pinturas.”5

Uma surpresa. No princípio, Lanes negara a existência de qualquer relação entre a


produção dos artistas da época, exceto a participação de algum deles em bandas e seus gostos

4
LANES, Telmo. Entrevista I. [fev. 2011]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2011. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico.
5
Idem.
20

musicais (o que, na verdade, já se configuraria em alguma relação), mas, em seguida, admitia


que sua própria produção artística já havia cruzado com o rock. Não só era revelada uma
conexão, mas ela parecia acontecer em dois momentos distintos, sugerindo certa
complexidade. Na produção de uma série de pinturas, o rock gótico (ou dark, como foi
chamado no Brasil), era citado como servindo de “trilha sonora para pintar”, compartilhando,
inclusive, os mesmos assuntos românticos e sombrios com as telas. No segundo momento, o
rock aparecia através da participação do recém-formado Defalla, grupo que se consagraria
como um dos mais vanguardistas e imprevisíveis do pop brasileiro. A presença do grupo,
naquela época também imerso na subcultara dark, quebrava o silêncio da performance que
antecipava a apresentação das pinturas e parecia, de alguma maneira, encerrar um ciclo que
começava e terminava com música. Os campos estavam cruzados. Eu parecia ter encontrado
um estudo de caso em que podia verificar de perto as implicações desse cruzamento. O
resgate de Porquê Choras? (sic), evento ocorrido na Sala Álvaro Moreyra do Centro
Municipal de Cultura de Porto Alegre, na noite de 14 de agosto de 1985, uma ação de mídias
mistas proposta pelos artistas Telmo Lanes e Rogério Nazari que inclui performance e
instalação, música e pintura, e trazia personagens do rock e das artes visuais, poderia me
ajudar a formular (e a tentar responder a) algumas perguntas acerca da relação entre arte e
rock.
A sensação de que eu havia encontrado uma espécie de Santo Graal do historiador de
arte aumentava à medida que via Lanes retirando de uma pasta de plástico várias fotografias,
algumas anotações e impressos como o programa do espetáculo6 e as filipetas de divulgação,
um material muito bem conservado. Ironicamente, as pinturas, que pareciam ter sido a razão
da existência do evento, se perderam no tempo, destruídas pela falta de cuidados. Em
compensação, a farta documentação incluía um tesouro especial: duas fitas VHS registrando
toda a performance em vídeo, uma delas com as imagens em plano aberto feitas pela câmera
no tripé e a outra, com os planos fechados da câmera na mão. As imagens e os sons –
capturados pelas câmeras dos fotógrafos Julio Spier e Alex Sermambi, com direção de Carlos
Gerbase e produção de Luciana Tomasi, todos no início de suas carreiras profissionais – se
revelaram um documento precioso. Nas semanas seguintes, dediquei-me a catalogar o
material e a digitalizar parte dele. Também iniciei uma série de entrevistas com os principais

6
O programa informava os elementos que seriam usados na performance: algodão, carvão, madeira, ferro,
granito. Eles aparecem descritos acima do “primeiro ato”, chamado “O joio e o farrapo, com as cenas: I) A
picareta e o manto; II) A corrente e o martelo; III) O pão e a pá e IV) Rosas e cravos. Lê-se também os títulos
das pinturas, que vão do metafísico ao pop: “O vaso da espera”, “Porquê choras?”, “Striped hyena” e “A
transfiguração da porta”. Há também um ato final: “Comunhão” e o programa traz ainda a ficha técnica do
evento.
21

envolvidos, alguns deles com pouquíssimas (ou nenhuma, como no caso da baterista Biba
Meira) lembranças guardadas desse evento até então também esquecido na história da arte
local. Mais do que a fala dos participantes, contaminada por camadas de memória, afetada por
circunstâncias e substâncias, eram as imagens do vídeo que me possibilitariam vislumbrar os
eventos daquela noite distante.

Figura 1 – Filipeta (frente e verso)

Fonte: Arquivo Telmo Lanes


22

Figura 2 – Programa

Fonte: Arquivo Telmo Lanes


23

Descritos a seguir, esses eventos foram observados partir da fita número 2, com
imagens e sons captados pela câmera “solta”, operada por Alex Sernambi. No início da
filmagem, é Gerbase quem segura a câmera, enquanto Sernambi, na cabine de luz, parece
ajustar a câmera fixa que registrará a performance em plano aberto. A escolha da fita a partir
da qual realizei a descrição dos acontecimentos reforça o lugar do qual pretendo falar. No
plano aberto, em uma sequência de pouco mais de 50 minutos sem cortes – a duração da ação
– vemos, além dos músicos e dos artistas, um outro elemento humano: é Sernambi, que opera
sua câmera literalmente dentro da instalação que se forma no palco. Ele está junto de Lanes e
Nazari, próximo aos músicos, e também improvisa os movimentos à medida que percebe a
ação transcorrer, apontando seu dispositivo para o que lhe parece mais relevante no momento.
É esse olhar subjetivo que interessa ao pesquisador, como se ele próprio (eu) estivesse lá. Mas
não na platéia que olha para o palco na posição da câmera do plano aberto, com
distanciamento. Procuro estar em um lugar mais próximo da criação. Dentro dela, se possível.

Cabine de luz onde está Sernambi. Voz de Carlos Gerbase (em off):
– Alex, abana pra câmera, Alex. Manda beijinho.
Sernambi abana.
Voz de Gerbase (brincando com as origens de Sernambi):
– Alô, Belém do Pará!
Biba Meira está montando seu kit de bateria. Lanes, Nazari e Djalma Correia (que
fotografará a performance) supervisionam a preparação. Os dois artistas estão de roupas
pretas. Nazari veste jaqueta de couro com rebites nos ombros e Lanes está usando uma camisa
de mangas curtas, com um crucifixo prateado pendurado no peito. A iluminação está sendo
testada. Nazari abre a cortina verificando as pinturas por detrás dela. Gerbase brinca em frente
à câmera. Um monitor de tevê em cima de um amplificador mostra o enquadramento da
segunda câmera, com o palco visto em plano aberto. Ao som das notas do contrabaixo sendo
afinado, o público começa a entrar no teatro, sentando-se nas cadeiras. Vestem roupas de
inverno. Edu K dedilha a guitarra. Os músicos estão sentados com seus instrumentos. Edu K
ri para a câmera, está vestido de preto e usa pingentes de crucifixo. A câmera realiza uma
panorâmica pelo teatro a partir dos músicos. Carlos Palombini está de pé atrás do teclado. Na
platéia, as cadeiras estão ocupadas. Objetos, como pedras e toras de madeira, estão na lateral
do palco. A câmera realiza o movimento circular inverso, passando pelo público. Ruídos
sequenciais agudos produzidos pelo sintetizador são ouvidos. É o início da performance.
24

Carlos Palombini está manipulando o som de seu sintetizador. Os demais músicos


estão imóveis, sem tocar. Os sons do teclado intensificam-se e param. Lanes e Nazari entram
e estendem um tecido retangular branco que ocupa a principal área do palco. Os sons
produzidos pelo teclado retornam como timbres industriais e contínuos. Munidos de pás,
Lanes e Nazari formam linhas com carvão nas extremidades do tecido, desenhando uma
moldura. O carvão é retirado de uma pilha na lateral do palco. Os artistas parecem
compenetrados. Aos sons do teclado, que parecem agora emular o vento, somam-se notas do
contrabaixo, produzidas em improviso. O baixista Carlo Pianta toca sentado em uma cadeira.
Lanes e Nazari seguem o trabalho com as pás. O som sibilante da guitarra é ouvido.
Um pequeno monte de carvão é formado no centro do tecido. Os artistas colocam toras
de madeira sobre o pequeno monte. O bumbo da bateria começa a marcar o ritmo. Com o
auxílio de pedras e madeiras de apoio, uma viga de concreto é colocada verticalmente e os
artistas enrolam arame farpado nela. Os músicos dedilham seus instrumentos e a composição
feita pelos artistas espalha-se pelo tecido branco. Palombini produz sons sintetizados após os
outros músicos terem parado de tocar, até que ele também para.
O teclado retorna produzindo uma breve melodia. Após um curto silêncio, enquanto os
artistas carregam uma pesada pedra, a guitarra recomeça, estridente e arrastada, como um
lamento. A bateria entra marcando um ritmo tribal. Os artistas ajeitam com cuidado uma
pedra em cima do pano. Mais tocos e pedras são colocados e depois alguns galhos
espinhentos. Os músicos seguem improvisando. Nazari coloca um fardo de gravetos na
composição. Na lateral do palco, ele e Lanes conversam e apontam para a instalação. A banda
improvisa um funk, com o baixo slap e guitarra wah-wah. Lanes e Nazari desenrolam arame
farpado sobre a instalação e depois espalham grandes pregos pelo tecido. Ao lado de um toco
de madeira, é posicionada uma picareta. Tufos de palha são amarrados com cordas.
Depois de conversarem brevemente, Lanes e Nazari colocam um pano vermelho sobre
o toco e Lanes o perfura com um golpe de picareta, a qual fica cravada na madeira. A melodia
de teclado retorna e a banda a acompanha. Usando uma pedra retangular como base, os
artistas golpeiam os elos de uma corrente com um prego de ferro e marretas pesadas. Ambos
seguram a corrente, Nazari apoia o prego e os dois golpeiam alternadamente. A música segue
crescendo, épica. Após a ação, deixam a corrente em torno da pedra. Lanes traz um pão que é
deixado em cima de uma tábua. Nazari o corta com um golpe de pá. Os artistas trazem rosas e
cravos que são pregados nas tábuas. Mais flores são espalhadas. Uma rosa clara é colocada na
viga de concreto, no centro da composição.
25

Lanes e Nazari colocam uma mesa retangular em frente ao palco. A mesa está coberta
com uma toalha negra. Trazem um bolo negro, em forma de cruz, decorado com confeitos de
flores em branco e rosa, e o colocam no centro da mesa. A banda improvisa freneticamente e
os artistas abrem as cortinas negras ao fundo do palco. Fixadas e apoiadas na parede branca
estão quatro pinturas. Numa delas, em forma de losango, vemos uma hiena de cor clara à
beira de um abismo. Numa outra, um quadro retangular estreito e horizontal, a representação
do coração de Cristo com uma cadeia de montanhas ao fundo.
Os artistas começam a servir o bolo em pratinhos de papel que entregam para a plateia.
O Defalla para de tocar e somente Palombini segue com seu teclado emitindo um acorde
sintético que logo cessa. Os artistas continuam servindo as fatias de bolo e, após alguns
instantes de silêncio, o público aplaude efusivamente.
A câmera vai até o fundo, registrando as pinturas. Além das duas já descritas, vemos a
que está no chão, apoiada na parede. É uma paisagem, com uma pedra tumular em primeiro
plano. A outra, retangular e horizontal, é de uma cruz. O público e os músicos comem o bolo,
ouvem-se conversas e risadas.
Voz de Nazari:
– Todos vão comungar da nossa comida.
Gerbase olha para a câmera
– Tá cansado, Alex?
Pergunta para a atriz Patsy Cecatto o que ela achou do evento.
Cecatto:
– Tô completamente fascinada, acho que foi um passe geral, com as pessoas que eu
adoro.
Biba Meira, ao fundo, ri.
O ator Pedro Santos e Edu K se abraçam.
Voz de Gerbase
– São dois rock stars!
26

Figura 3 – Início da performance

Crédito: Djalma Souza Correia


Fonte: Arquivo Telmo Lanes
27

Figura 4 – Desenho escultórico

Crédito: Djalma Souza Correia


Fonte: Arquivo Telmo Lanes
28

Figura 5 – Defalla

Crédito: Djalma Souza Correia


Fonte: Arquivo Telmo Lanes

Figura 6 – Missa

Crédito: Djalma Souza Correia


Fonte: Arquivo Telmo Lanes
29

2.1 DE VOLTA PARA O FUTURO: A DÉCADA DE 1980

Como todos os acontecimentos, Porquê Choras? é fruto de seu tempo. O Brasil de


1985 viu o fim do regime militar com a posse de José Sarney, em 22 de abril, após uma
massiva (e frustrada) campanha popular pelas eleições diretas ocorrida no ano anterior, que
contou com apoio de diversas camadas da sociedade, incluindo intelectuais e artistas, mas que
foi largamente ignorada por meios de comunicação como a Rede Globo, em sua fase de maior
poder midiático. Candidato a vice, Sarney, ex-governador e ex-senador biônico do Maranhão,
presidente da Arena, o partido da situação, fiel representante do coronelismo nordestino e dos
setores mais reacionários da sociedade brasileira, chegara à presidência após a morte de
Tancredo Neves, eleito de forma indireta em janeiro. A democracia no Brasil reinicia
canhestra, atrelada aos mesmos setores que haviam sustentado a ditadura. Como herança do
endividamento do período militar e do crescimento estagnado, o país mergulha em sucessivos
e esdrúxulos planos econômicos sem, no entanto, conseguir saldar suas dívidas, crescer
economicamente ou conter a inflação hiperbólica. No fim da década, é promulgada a
constituição vigente (1988), que garante conquistas democráticas como as eleições diretas. No
ano seguinte, a população elege Fernando Collor de Melo, “o caçador de marajás”, um jovem
político de discurso moralizante que, ao chegar ao poder, confisca bens da população e
mergulha seu governo em corrupção, até sofrer o impeachment no início da década seguinte.
Collor, no entanto, abriu o país comercialmente para o mundo.
No âmbito internacional, a abertura também estava em pauta com a Glasnost e a
Perestroika do presidente soviético Mikhail Gorbachev. Afundada em corrupção, a União
Soviética iniciava seu processo de esfacelamento em meio ao delírio da Guerra Fria. O
pesadelo belicista é alimentado pelos mass media, com transmissões via satélite da conquista
do espaço, além da criação de produtos culturais, como filmes, baseados no medo da bomba
nuclear e o fim da raça humana. Nos Estados Unidos, a Era Reagan representou o triunfo do
consumo e da subserviência absoluta às leis do mercado, ultra-aquecido pela especulação
financeira. Wall Street vivia seu auge. No âmbito social, foi marcada pelo conservadorismo
político e pela negação dos direitos das minorias que, em contrapartida, cada vez mais se
organizavam politicamente. O feminismo e o movimento gay se fortalecem, esse último
apesar (e talvez por causa) da devastação provocada pelo vírus da AIDS, isolado em 1983. A
epidemia afetou o mundo da arte sobremaneira. O presidente Reagan, todavia, só mencionou
a doença publicamente no fim de seu segundo mandato, em 1987, quando milhares de
30

pessoas, principalmente homossexuais, haviam morrido nos Estados Unidos. Após a guerra, a
Inglaterra, ainda uma potência econômica e cultural, havia se tornado um aliado subserviente
à política internacional de sua antiga colônia. O thatcherismo também levava a consequências
extremas o laissez-faire do jogo econômico, desprezando as políticas sociais do welfare state
e deixando as camadas populares completamente desassistidas, a ponto de a primeira ministra
Maragreth Thatcher, eleita em 1979, ter afirmado que não havia sociedade, apenas indivíduos.
O país também enfrentava altos índices de desemprego em virtude da crise energética
internacional. Ao final da década, todos esses eventos culminariam na queda do Muro de
Berlim e a reunificação da Alemanha: o triunfo do liberalismo, saudado apressadamente por
Fukuyama e seus seguidores como o “Fim da História”.7
O triunfo absoluto do individualismo e do consumo; o medo da bomba constantemente
alimentado pelo cinema e pela televisão; a falência das utopias que transformariam o homem,
tragadas pelo dinheiro; o recomeço democrático farsesco, que opera a mudança para que tudo
permaneça igual. Um “certo pessimismo” é sentido entre artistas e intelectuais:

Os anos 80 estão envoltos em dúvidas quanto à capacidade do homem para


projetar-se renovado e vigoroso em novas aventuras. Um certo pessimismo
denunciou o desencantamento e a despolitização. Seria o fim. Fim da
história, das fantasias, do movimento e da ambição de felicidade. Será
mesmo? (SILVA, 1991, p. 18)

Em meio a tantas incertezas, muitos se vêem completamente alheios às discussões


políticas e se voltam às experiências das micro-revoluções comportamentais, que não visam
mais a transformação de mega-estruturas, mas sim de pequenas e banais relações cotidianas
de poder. A máxima punk do no future, para além do universo musical, informa toda uma
geração. Com sua ordem niilista, representa o oposto da utopia, já que não permite sequer a
possibilidade do futuro onde a esperança se constrói. Ela é tópica, tendo, portanto, uma
estreita relação com o espaço. Ironia e cinismo são suas ferramentas. Como escreveu
Frederico Morais no catálogo da emblemática mostra Como Vai Você, Geração 80?, realizada
na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, em 1984:

Diferentemente das vanguardas dos anos 60 (artísticas e políticas), que


sonhavam colocar a imaginação no poder, que acreditavam ser a arte capaz
de transformar o mundo, que se iludiam com as utopias sociais, os jovens
artistas descrêem da política e do futuro. (MORAIS, 1991, p. 14).

7
Cf. FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o Último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
31

O desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação de massa permitirá uma


atualização mais eficaz de novas tendências de pensamento e consumo. A indústria cultural
está em ascensão no Brasil, com a hegemonia da Rede Globo e o fenômeno do rock nacional
– em 1985, o festival Rock in Rio, transmitido ao vivo pela emissora, consolidaria a cultura
juvenil como bem de consumo altamente rentável. Essa conjuntura política, social e
econômica, somada ao progresso da comunicação, irá se refletir na produção artística do
período. Em sintonia com os conceitos do pós-moderno, baseados no redirecionamento crítico
do passado, a pintura então voltará, após vinte anos de desmaterialização da arte,
manifestando o interesse renovado no produto, que pode ser facilmente comercializado (não
podemos esquecer que os anos 1980 são também a época dos yuppies, os young urban
professionals, jovens profissionais urbanos, frutos do capitalismo especulativo, consumistas e
cheio de ambições, para quem a arte, além de símbolo de distinção e decoração ideal para
grandes salões, é investimento financeiro). No Brasil, a produção dos anos 1980 também é
fundamentada em uma concepção de arte que privilegia o objeto artístico, após uma década de
experimentos com a desmaterialização desse objeto. E a pintura também volta, quem a saúda
é, novamente, Frederico Morais:

À pintura, pois. Para o que der e vier. De preferência sem dor. Com prazer e
paixão. A pintura está aí, entrando pelos poros, pelo nariz, pelos ouvidos,
indo direto ao coração antes mesmo de passar pelo cérebro. A pintura voltou
a ser um vale-tudo. Ótimo. Dizem que é bad painting, eu a vejo linda. Dizem
que é feia, ultrajante, eu a sinto sensualíssima. Tem seis dedos, um olho só e
manca de uma perna. I love her (MORAIS, 1991, p. 13).

A pintura que volta, ultrajante e irreverente, despreza o academicismo das belas artes,
deforma a figura, incorpora as referências à sociedade de consumo herdadas da arte pop. Ela
chega dos Estados Unidos, onde a curadora Marcia Tucker cunha o termo bad painting (má
pintura), conforme o título de sua exposição coletiva de 1978, no New Museum, em Nova
Iorque. Uma pintura figurativa (ainda que a figura esteja deformada), dotada de uma
sensibilidade romântica e expressionista que intencionalmente ignora os cânones do bom
gosto e a qualidade dos materiais, e brota de uma tradição de iconoclastia que desafia as
conquistas do minimalismo. Uma pintura, eu arriscaria dizer, punk. Chega da Alemanha com
o neoexpressionismo político de Kiefer, Immendorff e Baselitz e a revisão dos traumas da
grande nação seduzida pelo veneno nazista. Vem da Itália, acompanhada dos textos e
curadorias do crítico Achille Bonito Oliva, que irá chamá-la de transvanguarda, uma
transgressão da vanguarda utópica fundamentada no desencantamento e no pluralismo, focada
32

no lugar do homem, seu gesto e corpo. O caminho da ideologia, avistado de uma torre de
onde o artista planeja o mundo, leva a um beco sem saída. Ele deve descer da torre de
controle para adquirir um “ponto de vista móvel” (OLIVA, 2000, p. 34). “Si no hay
parâmetros para dar um juicio sobre el mundo, tampoco existen ópticas privilegiadas que
permitan elegir entre vanguardia e tradición”, afirma o crítico (OLIVA, 2000, p. 38). A
transvanguarda recorre à história de forma transversal e eclética, juntando a alta cultura da
tradição das vanguardas históricas com a baixa cultura dos ícones de massa (CANONGIA,
2010). Nesse cenário relativista, como um objet trouvé, todos os estilos de pintura são
recuperados, mas fora de seu contexto original. Todavia, quando a pintura volta, ela não está
incólume às questões da arte conceitual contra a qual se opusera.
No Brasil, a Bienal de 1985, A Grande Tela, com curadoria de Sheila Leirner, vai
coroar o que Frederico Morais chamou de “o auge da euforia pictórica” (op cit., p. 13). O
crítico aponta como, a partir desse momento, absorvida pelo mercado, a onda pictórica perde
sua força, dando espaço para meios como instalação e objeto. Os Salões de Arte se constituem
os espaços privilegiados para a veiculação da maioria dos trabalhos da Geração 80. Mesmo
afastada dos grandes centros, a produção no Rio Grande do Sul também está alinhada a essas
questões. Ana Lúcia Araújo (1999) considera que o termo Geração 80, apesar de cunhado
para referir-se a uma geração de artistas que atuava basicamente no eixo Rio-São Paulo, serve
também para a produção local, em virtude das semelhanças de ordem temporal e formal .
Baseada em uma concepção de arte que privilegia o objeto artístico, a produção da década em
Porto Alegre pode ser dividida em dois grupos: o primeiro mais voltado à pintura (Lambrecht,
Frantz, Heuser, Chapman) e o segundo com enfoque no objeto e na escultura (Lia Menna
Barreto, Moreira, Fuke). Conforme observa Evelyn Berg no artigo A Pintura no Rio Grande
do Sul – Anos 80: “mudanças significativas se operam ao longo da década (...). O suporte
expande-se em renovada variedade (...). Ao abandonar o chassis, a pintura perde os limites
invadindo o espaço e vindo a configurar-se como instalação e objeto, obedecendo assim a
uma tendência mais pluralista e universal das artes” (BERG, 1991, p. 23).
É curioso notar que nosso objeto de estudo, ocorrido no mesmo ano da Bienal da
Grande Tela, trate de pintura, mas também introduza elementos como instalação e
performance, como se apanhado no meio do caminho. Porquê choras? é uma ampliação da
pintura para o tridimensional, um modo de materializar um pensamento sobre a pintura,
conforme explica Telmo Lanes:
33

“É uma maneira de pensar as pinturas. As pinturas são o grande lance, tanto é


que elas ficam lá, são o ápice do acontecimento. O que se inventou, eu acho que é
acender mais faróis sobre a pintura. Se ampliou a pintura com isso aí. Além da
pintura, tu via uma outra coisa: uma postura. E é uma coisa muito simples. A
gente começou a curtir materiais como pedras, troncos velhos, arame farpado. A
gente começou a curtir esse tipo de materiais também porque a gente pintava
nossos quadros com esses materiais. A gente juntava isso no meu ateliê, umas
coisas que estavam lá já. A gente começou a curtir essa coisa da escultura,
montagem de elementos que formavam uma cruz, simboliza a marreta, o prego,
tinha ícones bíblicos também ali, um monte de coisas. Por quê? Fazer um
cerimonial, um culto, uma cerimônia, uma performance meio cerimonial. É muito
desenho, o pano branco, pega o carvão, faz a borda, é mais para um desenho do
que uma performance corpo, ação, respiração, alguma emoção. A gente estava
montando um desenho escultórico ali”.8

Mesmo não focando as questões geralmente associadas à prática da performance – por


exemplo, o posicionamento do corpo do artista como elemento central da obra – Porquê
Choras? apresenta elementos dessa modalidade artística. Em Performance como Linguagem
(1989), primeira obra crítica a estudar a performance no Brasil, Renato Cohen conecta a
produção performática com a movimentação cultural detonada pelo punk. Cohen observa,
logo na introdução de sua pesquisa, como ele e sua geração acompanharam “também, com o
devido retardo e filtro, comum às informações que vêm de fora, a passagem de inúmeras
“ondas” e estéticas (...) mais recentemente o movimento punk-new wave com todos seus
desdobramentos” (COHEN, 1989, p. 20). O artista e pesquisador Cohen identifica-se com a
cultura underground, o “’envoltório’ para onde estão apontadas as antenas.” (p. 144). O termo
é uma adequação de environment, referindo-se “ao clima, ao envolvimento, ao meio
ambiente. Seria uma espécie de cor de fundo, não no sentido de uma mera referência estética
e sim como uma “energia” que está no ar, (...) poderia ser traduzido por astral (...)
consequência de fatos, comportamentos e, talvez, de um fator destino que é captado.” (p.144).
O envoltório dos anos 1980 traz o resgate do passado, esse museu de grandes novidades,
alimentando desdém pelo canônico e celebrando o pluralismo.

Os anos 80 são marcados pela releitura: cria-se a estética do new wave, do


pós-moderno, que vem a ser uma retomada, um remix, embalado por uma
tecnologia eletrônica que não existia na época, de tudo o que se produziu em
termos de arte neste século: surrealismo, kitsch, expressionismo,
ultrarrealismo etc. (COHEN, 1989, p. 146).

8
LANES, Telmo. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice A desta dissertação.
34

Porquê Choras? é o remix criado por Lanes e Nazari, ele está sintonizado com o
envoltório dos anos 1980: inclui referências à subcultura dark, refletindo o pessimismo da
década; retoma a pintura ao mesmo tempo que a expande para o tridimensional da instalação;
dialoga com o rock, podendo ser considerado um dos desdobramentos do punk e da new wave
– como veremos no capítulo seguinte. Antes de trabalhar em dupla, uma parceria que
produziu cerca de 30 pinturas (a grande maioria hoje perdida), os artistas já vinham
experimentando coletivamente em iniciativas que se tornariam marcos da arte contemporânea
local, experiências pontuais e isoladas em meio a uma produção mais tradicional, que
colocaram a cidade em diálogo com o que acontecia em outros centros (ARAÚJO, 1999).
Lanes havia integrado o Nervo Óptico, o coletivo que, em dezembro de 1976 tornou público
um manifesto em que atacava o dirigismo mercadológico que orientava a arte brasileira9.
Além do manifesto, o grupo inaugurou a mostra-relâmpago Atividades Continuadas, no
Museu de Arte do Rio Grande do Sul, com duração de apenas um dia. As ações haviam sido
arquitetadas em oposição a um projeto do chamado Grupo de Bagé, que reunia artistas
representantes do rançoso modernismo gaúcho, tais como Glauco Rodrigues, Danúbio
Gonçalves e Carlos Scliar10. Em disputa, dois modelos artísticos que refletiam posturas
políticas e econômicas:

Um dos posicionamentos propugnava a adesão e a incorporação das


novidades da sociedade de consumo, reconhecendo-as como irreversíveis.
Outro tentava preservar valores da sociedade rural em retração ante os
valores da cultura de massas. (BULHÕES, CATTANI, 2013, p. 148).

No ano seguinte, o grupo começou a editar uma série de cartazetes reproduzindo os


experimentos fotográficos de seus integrantes. Foram 13 edições, entre abril de 1977 e
setembro de 1978. A produção do periódico era acompanhada de reuniões na casa de Clóvis
Dariano, onde se experimentava em suportes como fotografia e filme Super-8. Paralelamente,
os artistas seguiam com suas explorações e carreiras individuais (a de Telmo Lanes remonta
ao início dos anos 1970). Experiências de ruptura, tais proposições eram uma

(...) tentativa de conferir legitimidade a uma concepção partilhada entre


aqueles artistas sobre o que poderia ser entendido como arte: arte como

9
Sobre o grupo Nervo Óptico e o espaço N.O., consultar: CARVALHO, Ana Maria Albani de. Nervo Óptico X
Espaço N.O.: conexões nervosas. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
10
Sobre o Grupo de Bagé, consultar: PIETA, Marilene Burtet. A pintura no Rio Grande do Sul: 1958-1970.
1988. 447 f. Tese (Curso de Pós-Graduação em história da Cultura Brasileira), Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, 1988.
35

experimental, não restrita a um determinado suporte ou material, nem a uma


determinada opção formal. (ALBANI, 2004, p. 34).

Expandindo os formatos de circulação da obra de arte, esses artistas investiam em


redes de relacionamento que extrapolavam o regional, conectando sua produção ao que se
passava no mundo. Essas redes, uma das principais características da produção
contemporânea (CAUQUELIN, 2005), seriam fortalecidas com a criação do Centro
Alternativo de Cultura Espaço N.O., desdobramento do Nervo Óptico, inaugurado em outubro
de 1979. O projeto, que trazia em sua criação dois remanescentes do coletivo, Vera Chaves
Barcellos e Telmos Lanes, além de um grupo de alunos do Instituto de Artes, tinha como
objetivo

(...) criar em Porto Alegre um lugar destinado à veiculação de variadas


manifestações artísticas – seja no campo das artes visuais, através da arte-
postal, arte-xerox, performances e instalações, em música, teatro, dança e
literatura – promovendo intercâmbio com outros centros, organizando
cursos, encontros e palestras sobre arte contemporânea. (ALBANI, 2004, p.
49).

Localizado em uma loja da Galeria Chaves, no Centro de Porto Alegre, o Espaço N.O.
abrigou, em seus três anos de existência, dezenas de eventos de natureza multidisciplinar.
Rogério Nazari foi um dos integrantes do projeto, contribuindo principalmente com sua
conexão com o circuito internacional de arte postal11, modalidade cujo fundador é o
estadunidense Ray Johnson (HOME, 1999), artista ligado ao grupo Fluxus. A primeira
exposição do N.O. foi uma mostra de arte postal com trabalhos do pernambucano Paulo
Bruscky, sendo que o espaço abrigou outra exposição dessa modalidade artística, a Mostra
Internacional de Arte Postal, organizada em 1981 por Nazari, Mário Röhnelt e Milton Kurtz.
Essas mostras indicam a orientação não comercial do projeto. Veículo da antiarte e do
ativismo, a arte postal reforça o conceito de rede, dando ênfase a aspectos informativos e
comunicacionais da arte e subvertendo a noção da autoria. Muitos dos adeptos da mail art
usavam uma nova mídia emprestada do mundo corporativo e da comunicação que propunha o
fim da aura da obra de arte: a máquina de xérox. Integrante ativo dessas redes, Nazari também
vinha experimentando com a arte xérox, em trabalhos cujo enfoque era a exploração do
imaginário da cultura gay em sua expressão política. Veiculados pelo circuito de arte postal,

11
Sobre arte postal, consultar: NUNES, Andreia Paiva. Todo lugar é possível: a rede de arte postal, anos 70 e
80. 2004, 207 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais), Instituto de Artes, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2004.
36

esses trabalhos driblavam a censura que vigiava a cultura brasileira, refém do


conservadorismo dos militares. Arquiteto de formação, Nazari estudava artes na Feevale e
frequentava o Atelier Livre, importante espaço da criação e discussão artística na época, onde
realizava gravuras. O interesse pelos experimentos em xérox veio através da prática da
gravura.
Após o fechamento do N.O., mantido de forma cooperativa pelos participantes, Lanes
e Nazari, que já se conheciam por frequentar as mesmas rodas boêmias do Bom Fim,
passariam a travar um intenso diálogo que culminaria nas experiências de criação em dupla.
De certa forma, a abordagem multidisciplinar e coletiva praticada no Espaço N.O. antecipa os
experimentos entre música e artes visuais vistos em Porquê Choras?. Nosso objeto é,
portanto, uma extensão daquelas proposições. Em seu depoimento para o livro de Albani
Nervo Óptico x Espaço N.O.: conexões nervosas, Lanes diz:

Foi um meio que encontramos para explorar novos conceitos e dizer que
uma onda estava vindo, uma maneira diferente de se fazer arte. Mostrávamos
para o mundo que em Porto Alegre viviam artistas que também pensavam de
um modo novo. Queríamos ir além das fronteiras. (ALBANI, 2004, p. 20).

Rompida a tradição regional, estabelecido o diálogo com o mundo, cruzadas as


fronteiras, Lanes e Nazari começam a trabalhar em dupla, surfando na onda que leva em
direção à pintura. Estão conectados ao espírito da Geração 80, porém, em oposição às
correntes neo-expressionistas vindas da Alemanha, da Itália e dos Estados Unidos. Lembra
Nazari:

“Telmo e eu resolvemos debochar, entre aspas, desse tipo de coisa, fazendo um


trabalho que fosse bem ao contrário disso. Resolvemos fazer um trabalho de
pintura bem refinada, mas com uma temática contemporânea. Era uma pintura
muito escura, punk, falava dessa hecatombe mundial, da coisa deprê dos darks. E
a gente estava muito envolvido com o rock, os novos grupos que tinham também
essa postura muito intimista, meio eve of destruction.”12

A decisão de trabalhar em dupla, segundo Nazari, parte da observação da experiência


dos músicos de rock, que criam conjuntamente. Este tipo de autoria coletiva percebida no
rock também apresenta semelhanças com as práticas do circuito de arte postal, do qual Nazari
é integrante. Outro ponto importante na fala do artista é a questão do “deboche”, esse

12
NAZARI, Rogério. Entrevista sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2013]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
37

afrontamento ao sistema das artes que é manifesto, não sem humor, na adoção da pintura
como linguagem, o definitivo produto artístico dos 1980, ainda que na contramão de um estilo
dominante, no caso, o expressionismo. Como nota Araújo (1999), uma importante parcela da
produção pictórica do Estado apresentava ligações com uma tradição de expressionismo
iniciada com os primeiros modernistas gaúchos, imigrantes alemães influenciados por esta
escola. Ao “debochar” da veia expressionista, Lanes e Nazari estão marcando uma posição de
isolamento diante da produção local. Além disso, ao associar o assunto dessas pinturas com o
universo apocalíptico dos darks e à sua música estridente e hipnótica, os artistas combinavam
um fazer artístico secular ligado à alta cultura a elementos pertencentes à cultura popular. A
pintura da dupla possui um incontido pendor kitsch: é figurativa, repleta de simbolismos e
referências religiosas, executada com precisão acadêmica em materiais que vão da lona ao
papelão barato. O movimento do pincel é ritmado pela linha do baixo marcante do pós-punk,
especialmente o rock gótico (aqui chamado dark) que fez muito sucesso no país naquela
década. Os assuntos são as paisagens desoladas de abismos e cemitérios, signos católicos,
bestas e feras. Lanes explica:

“Eu vinha das performances e dos conceituais e aí queria fazer umas coisas
diferentes. A tendência era o neo-expressionismo, da tinta, ação e ação e ação.
Eu não curtia muito isso. Ok que na época de 50 foi importante, mas eu
desprezava um pouco isso. Essa coisa do Iberê, acho meio over. Sem o motivo,
sem ser um Jackson Pollock, com um motivão, pá! Daí cada cidadezinha tem seu
Iberê, tem seu gestual anos 50, tudo parecido. E eu comecei a pensar: bom, agora
é pintura figurativa, ninguém está fazendo mais figurativo. Eu gostava de fazer.
Vou para a acadêmica, já gostava muito de paisagem, pronto: vou para a
natureza. Pintura acadêmica da natureza. Uma linha de raciocínio que eu tirei
não sei da onde. E foi nesse sentido. Daí um ou outro começou a pintar alguma
coisa e a gente viu que não estava sozinho, tinha alguma coisa assim também no
mundo, principalmente na Itália, a tal da Pintura Culta, que eram pintores que
tinham como tema alguma coisa clássica, uma filosofia, alguma ideia mais
clássica e pintavam figurativamente. Alguns mais realistas, menos realistas, mas
tudo com figuras, como se fosse quase que uma pintura antiga mesmo, italiana,
francesa, coisa assim. A gente viu, legal isso, e a gente colocou uma coisa que a
gente gostava muito, o tal do gótico, da cultura cristã muito forte, a coisa niilista,
aquelas coisas de pintar cruz. Já andávamos de preto, corrente, cruz e coisinhas
assim do pós-punk, juntamos com essa coisa da pintura e começamos a fazer
pinturas com alguns temas históricos. Aí começamos um pouco mais fundo nessa
coisa de Jesus e gótico. Tanto é que esse convite de Porquê Choras? é Jesus. O
nome também é bíblico.”13

13
LANES, Telmo. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice A desta dissertação.
38

Os trabalhos são criados, com o pós-punk como trilha sonora, no ateliê de Telmo,
localizado no bairro Bom Fim, “o campo primordial das aventuras de jovens inconformados
com o establishment ou simplesmente desejosos de experimentar uma estética existencial fora
dos parâmetros do ‘bom comportamento’” (SILVA, 1991, p. 22). Com a presença do Parque
da Redenção e de um campus da Universidade Federal; da Lancheria do Parque e dos cinemas
Baltimore, cujas fachadas ainda brilhavam na Avenida Osvaldo Aranha, além dos vários bares
que abrigavam os boêmios, o Bom Fim era o epicentro da vida cultural da cidade nos anos
1980. Em seu coração, na esquina da Osvaldo com João Teles, está o Bar Ocidente, um dos
redutos da contracultura porto-alegrense, fundado em 1980. Lanes e Nazari integram o que
um pequeno grupo de amigos, frequentadores do bar, boate, casa de espetáculos e restaurante
vegetariano chama de “A Seita”: a tribo local dos darks.
Em sua tipologia da fauna boêmia do Bom Fim, A Miséria do Cotidiano, fruto de uma
pesquisa antropológica que visou identificar o que o autor chama de “energias utópicas” em
um espaço urbano que é ao mesmo tempo moderno e pós-moderno, Juremir Machado da Silva
descreve, entre tantos outros, o subgrupo dos darks, pertencentes ao grupo dos pós-modernos:
supostamente despolitizados, narcisistas e descrentes das utopias transformadoras.
Frequentadores do Bar Lola e do Ocidente: “reintroduziram o culto do tédio. Vestiram-se de
preto e adotaram um ar existencialista. Chegaram a pintar seus quartos de preto.” (SILVA,
1991, p. 51). É curioso que o ato de pintar esteja presente na descrição dessa subcultura14,
com qual a pintura da dupla compartilha temas e sensibilidades. Ambas – pintura e subcultura
– são geridas no underground e ajudam a formar o que Silva chama de “novo esteticismo”,
paradigma utópico pós-moderno que redimensiona “trabalho, religião, família, amor, cultura,
consumo e ideologia” (SILVA, 1991, p. 18) e está baseado em um tipo de revolução de ordem
comportamental que implica na estetização do próprio comportamento. Silva identifica esses
novos estetas como adeptos das micro-políticas, avessos aos projetos, céticos e cínicos
(ceticismo e cinismo seriam para eles traços comportamentais superiores).
De fato, diferente do punk que tem uma origem muito mais proletária no Brasil, a tribo
dos darks está associada a grupos de jovens de classe média letrados, conforme observou
Helena Wendel Abramo, no pioneiro estudo Cenas juvenis (1994).

14
Subculturas juvenis tem uma tradição de estudos na Inglaterra, berço de tantas delas a partir do pós-guerra,
onde seu caráter desviante de delinquência e recusa deixou uma marca na cultura popular. Com seus modos
próprios, repudiando os valores hegemônicos, a subcultura se apresenta pela negação. É caracterizada pela
homologia dos itens que definem seu estilo próprio, expresso nos gestos corporais, vestimenta, gírias e,
especialmente, música, “elemento centralizador de suas atividades e da elaboração de sua identidade.”
(ABRAMO, 1994, p. 46)
39

Do meio universitário e colegial de São Paulo acabou por surgir uma tribo,
articulada em torno de bandas que ficaram conhecidas como rock paulista e
que desenvolveram um estilo posteriormente batizado de dark. Esse grupo
ganhou razoável influência nos meios culturais juvenis da cidade e apareceu
como uma das mais significativas expressões da postura de desencanto
juvenil com a sociedade e com seu futuro (ABRAMO, 1994, p. 85).

Para Abramo, esse grupo, detentor de um universo cultural amplo, opõe-se aos modos
de atuação da geração universitária anterior. É herdeiro do punk e, como tantos outros, “tem a
música como elemento centralizador de suas atividades e da elaboração de sua identidade” e
investe “na construção de um estilo de aparecimento como sinalizador de sua localização e
visão de mundo” (ABRAMO, 1994, p. 46). A autora considera que a atuação deste grupo
esteja centrada na distopia, uma negação do estado das coisas fundada na ampliação de traços
e princípios negativos. As posturas apocalípticas que povoam o imaginário dark são, para
Abramo, encenações distópicas que funcionam como uma crítica ao status quo. Não
representam morbidez, mas espetáculo, uma visão crônica da realidade.
O nome dark foi cunhado pela imprensa paulista e talvez possuísse conotações
pejorativas. Ele não vem, portanto, de dentro, mas acabou, não sem resistência, assumido pela
turma que se vestia de negro e era ávida consumidora de um gênero musical que chegara ao
Brasil impulsionado pelo sucesso de grupos como The Cure, Bauhaus e Sisters of Mercy.
Originalmente chamado de goth rock ou rock gótico, está fortemente associado a um estilo
subcultural correspondente, marcado, como em toda subcultura, pela reunião de indivíduos
com interesses e práticas comuns, códigos de vestimenta e gostos musicais específicos, nesse
caso, as roupas pretas, os crucifixos, a maquiagem pesada e a predileção por um tipo de pós-
punk soturno surgido na Inglaterra nos fins dos anos 1970. O goth é influenciado pelas
experimentações do rock de vanguarda que tem suas origens no The Velvet Underground e se
desdobra no glam rock teatral e travestido de David Bowie. É caracterizado por composições
sombrias e introspectivas, de ritmo repetitivo, baixo marcante, adornada por efeitos
eletrônicos, combinando imagens góticas vindas da literatura “(castelos medievais lúgubres,
vampiros etc.) com uma visão negativa da sociedade contemporânea” (SHUKER, 1999, p.
149). O clube Madame Satã foi o templo dark de São Paulo, onde aconteciam os shows das
bandas new wave, as exibições dos vídeos importados e as performances estudadas (e
praticadas) por Renato Cohen15. Até o Rio de Janeiro, com seu calor tropical e praias
deslumbrantes, teve representantes do “movimento” que se reuniam na boate Crepúsculo de

15
Cohen foi diretor do grupo Orlando Furioso, fundado em 1986. O grupo é pioneiro na investigação entre arte e
tecnologia no Brasil.
40

Cubatão. Em Porto Alegre, o Ocidente e, logo depois, o Taj Mahal, foram os principais clubes
noturnos, além do salão de cabeleireiros Scalp, outro local de encontro da Seita.
Na cena roqueira da cidade, um dos grupos mais identificados com os darks era um
trio formado em 1984 pela baterista Biba Meira, o baixista Carlos Pianta e, na guitarra e
vocais, um adolescente vindo de Foz de Iguaçu chamado Eduardo Dornelles e de nome
artístico Edu K. O Defalla (antes chamado Fluxo) já havia lançado duas fitas demo e logo
seria selecionado pela gravadora RCA, que lançaria no ano seguinte a coletânea Rock Grande
do Sul16, com duas faixas do grupo: “Você me disse” e “Instinto sexual”. Carlo Pianta sairia
antes do lançamento do primeiro álbum, em 1987, gravado com aquela que ficou conhecida
como a formação “clássica” da banda: Edu, Biba, o baixista Flávio “Flu” Santos e o
guitarrista Castor Daudt. Com sonoridade e formações cambiantes, mas (quase) sempre
mantendo o líder Edu K17, o Defalla se consagraria nas próximas três décadas como “a banda
definitiva em termos de influência e sedimentação do lado vanguardista e esquisito do rock
gaúcho” (FARIA, 2001, p. 296). O grupo alcançou apenas breve sucesso comercial no início
do ano 2000 com o hit “Popozuda”, – um funk obsceno aos moldes do batidão carioca –
depois de ter experimentado com os mais diversos gêneros, do pós-punk ao rap, do heavy
metal ao emocore. Essa experimentação estilística é fruto da inquietação de seu irreverente e
imprevisível líder, um artista que jamais abdicou de sua liberdade criativa, pagando por isso
um alto preço. Muito estimado pela crítica, no entanto, o Defalla exerceu influência em
importantes artistas do rock brasileiro, como Fred 04, do Mundo Livre S/A, um dos artífices
do manguebeat pernambucano, e a turma do Planet Hemp. O trabalho do grupo expressa uma
vontade de “transgredir limites e abrir novos espaços” (PEDROSO, 2009, p. 123). “A
inconstância, a falta de interesse em afirmar identidades, a transgressão pela apropriação de
vários elementos e recursos, a ausência de discursos políticos, o ruído” são características do
grupo, que aposta em um inconformismo “ligado a outras formas de práticas sociais diferentes
daquelas dos jovens da década de 1970” (PEDROSO, 2009, p. 22).
É importante lembrar que o rock brasileiro dos anos 1980 foi um fenômeno cultural e
econômico de grande impacto social, impulsionando a indústria fonográfica de uma forma
sem precedentes no país. Em busca de novos talentos que pudessem repetir o sucesso de
vendas de grupos como Blitz, Kid Abelha, Ritchie e RPM, e salvar as finanças em tempos de
crise, as gravadoras voltaram seus caça-talentos inclusive para cidades periféricas como Porto

16
Participaram também do disco Os Engenheiros do Hawaii, Os Replicantes, TNT e Garotos da Rua.
17
Em 1995, Tonho Crocco assumiu temporariamente os vocais do grupo que lançou, com o nome de D.Fhala, o
álbum Top hits.
41

Alegre, onde uma juventude urbana, a exemplo dos grandes centros inundados pela ética faça
você mesmo do punk, também montava seus próprios grupos e ensaiava nas garagens. Assim
nascia o chamado rock gaúcho, favorecido pela tradição roqueira da cidade18 e pelo apoio da
mídia local através de emissoras como a rádio Ipanema FM. O termo teria sido cunhado pelo
músico e produtor Carlos Eduardo Miranda, no intuito de criar um movimento musical que
desse visibilidade nacional à produção local. Na época de Porquê Choras?, Miranda integrava
outro expoente vanguardista do rock local: o Urubu Rei19.
Na fértil cena sulista, na qual são ouvidos vários subgêneros do pop, o Defalla, em sua
primeira encarnação e desde cedo com aspirações experimentais, está conectado com a
subcultura dark e a música associada a ela. Edu K confessa:

“O dark foi nosso pão e nossa água na fase inicial, tanto em termos de visual
como em termos musicais – Porto Alegre foi a Londres brasileira nos anos 80!
(risos) Mas também em termos de imagens e texto: sempre curti muito Poe e
gostava dessa visão soturna e pesada do dark.”20

Vestido de preto, lendo contos de mistério de Edgar Allan Poe, circulando nos bares e
ruas do Bom Fim, passando noites despertas na pista do Ocidente, Edu pertence àquela
geração que foi chamada de desencantada, pessimista em relação ao futuro e descrente das
utopias. Lanes e Nazari, um pouco mais velhos, são artistas que compartilham dessa mesma
visão soturna de mundo, antenas do envoltório que atraem a atenção do jovem músico:

“Lembro muito de um quadro do Nazari, um óleo sobre tela com um crânio em


cima de umas pedras. O Telmo e o Nazari eram meus heróis absolutos do gótico
nessa época! Como a gente (eu, em especial) andava sempre junto deles foi
natural o convite.”21

Lanes vinha contribuindo para a rede de produção cultural independente da cidade,


criando material gráfico, filipetas e cartazes para bandas e filmes de curta-metragem. Ele
desenhara o logotipo do Fluxo e, de alguma maneira, já estabelecera um diálogo criativo com

18
Nos anos 1960, grupos de jovem guarda como Os Brasas e Os Cleans, e o tropicalista Liverpool foram
formados na cidade. Bixo da Seda, Almôndegas e Hermes Aquino são representantes dos anos 1970.
(ALEXANDRE, 2013)
19
Marcado pela sonridade new wave, apresentações perfomáticas e o humor dadaísta – a exemplo do próprio
nome da banda, emprestado do personagem de Alfred Jarry –, o Urubu Rei trazia entre seus integrantes as atrizes
do grupo teatral Balaio de Gatos, Patsy Ceccato e Luciane Adami.
20
K, Edu. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [maio 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo
Felipe. Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no
Apêndice B desta dissertação.
21
Idem.
42

os jovens músicos. Edu K, interessado em “todos os aspectos da arte, o visual, as linguagens


não verbais, o show de rock como espetáculo teatral”, também frequentava os encontros no
apartamento de Lanes, no andar térreo de um prédio na Rua Fernandes Vieira, um ponto de
convergência de artistas e outros criativos, onde ele e Nazari pintaram diversas de suas telas.
O grupo incluía o músico Carlos Palombini, um compositor e barachel em direção teatral,
dono de um cobiçado teclado Roland Juno-60. Palombini foi peça fundamental na construção
de Porquê Choras?, um forte elo entre a arte de Lanes e a música, além de diretor musical da
performance. Articulado, Palombini, hoje um professor de musicologia, foi um entrevistado
disposto a relembrar os episódios do passado, conforme se percebe pela riqueza de detalhes
do seu relato:

“Eu convivia com Telmo. Acho que o conheci na primeira exposição do Nervo
Ótico, naquele prédio horrível da Independência. Ele expunha uma de suas
obras-primas: um postal do Pão de Açúcar com o teleférico transformado num
varal. Passei a frequentar suas sucessivas moradias, ir a festas com ele etc.
Quando comecei a tocar meu próprio repertório, em 1983, ele passou a fazer
cartazes, programas, a divulgação de minhas apresentações. À época da
instalação, ele fazia a produção de dois recitais na Sala Álvaro Moreira.”22

Interessado no que chama de “pop experimental”, Palombini escuta nos encontros no


apartamento de Lanes essa música estrangeira, vinda especialmente da Inglaterra, marcada
pelo uso de sintetizadores. Ele não se sente atraído pelo imaginário apocalíptico do dark, mas
por sua sonoridade sintética.

“O dark não me interessava absolutamente como movimento, mas como


sonoridade. Eu ouvia bastante no apartamento de Telmo. Estava sim interessado
no pop, particularmente no synth pop, que eu ouvia naquele apartamento, junto
com outras coisas: Echo and the Bunnymen, Depeche Mode, Duran Duran, Talk
Talk, Siouxsie and the Banshees, The Cure, Frankie Goes to Hollywood,
Eurythmics.”23

O imaginário e as sonoridades da cultura popular de massas alimentam a criação


artística. A arte que se pratica (e discute) em espaços como o Ocidente ou o apartamento de
Telmo Lanes é pop, mas também experimental, flerta com o underground; é multidisciplinar e
colada à vida, da qual não se separa. Porquê Choras? é um produto dessa arte que expressa
um modo de perceber o mundo e de estar nele, a postura dos artistas diante não só da pintura,

22
PALOMBINI, Carlos. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2012]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
23
Idem.
43

mas de todas as coisas. Antes de Lanes e Nazari, muitos outros, geralmente a partir do
underground – o submundo no qual se articulam as ações fora do circuito comercial –
combinaram experimentalismo e pop, cruzando fronteiras disciplinares da arte e da música
popular e estabelecendo diálogos entre campos distintos, diálogos que derrubaram a barreira
entre alta e baixa cultura.
No próximo capítulo, procurarei traçar esta que chamo de (na falta de melhor
denominação), História (Roqueira) da Arte, na qual está inserido nosso objeto de pesquisa.
Trata-se de uma série de práticas inauguradas na arte pop, mas que remetem à antiarte dos
dadaístas e se desdobra no conceitualismo e no punk – que deve ser visto aqui, mais do que
como gênero musical, subcultura ou estilo, mas como um verdadeiro movimento artístico. A
arte se encontra com o rock – expressão muito específica da música popular massiva – quando
ela já se colou à vida e libertou-se de suas amarras históricas. Por outro lado, o rock se
encontra com a arte quando já atingiu sua maturidade estética e poética, após ter se tornado a
expressão cultural de uma nova classe, grupo que transformou a estrutura social do século
XX.
44

3 ROCK MY ART (1955 A 1980)

Não seria uma falha editorial a ausência do termo rock no índice remissivo de Era dos
extremos: o breve século XX, a grande análise histórica de Eric Hobsbawm sobre o século que
passou? O uso da pequena palavra estrangeira é recorrente pelo historiador, especialmente no
capítulo que dedica à chamada Revolução Cultural ocorrida na metade do século XX, quando
essa música desempenhou papel importante em termos sociais, culturais e econômicos. A
revolução cultural da qual fala o historiador é fruto de mudanças na estrutura das relações
entre os sexos e as gerações no mundo ocidental, possibilitadas a partir de avanços
tecnológicos e científicos, desenvolvimento econômico e quebra de dogmas religiosos. Nesse
cenário, Hobsbawm descreve o surgimento de uma nova classe social, nascida após as
privações e os terrores da II Guerra Mundial, em um período de fartura e aceleração da
economia: os jovens. Autoconsciente e despreocupada, essa geração, que naquele momento
vai da puberdade até a metade da casa dos vinte, nada produz, apenas consome, e acaba por
tornar-se um agente social forte o bastante para alterar a própria estrutura da sociedade. A
cultura jovem torna-se a matriz da revolução cultural. Ela surge nas economias desenvolvidas
e, difundida pelos meios tecnológicos massivos, torna-se global, atestando a hegemonia
cultural dos Estados Unidos. Simbolizando a nova autonomia social da juventude, ocorre um
fenômeno sem paralelos, segundo Hobsbawm, desde a era romântica do início do século XIX,
a idealização do “herói cuja vida e juventude acabam juntas” (1995, p.318). Antecipado pela
figura do astro James Dean, morto prematuramente no auge da carreira, esse ideal típico
acabou por tornar-se “a expressão cultural característica da juventude – o rock” (1995, p.318).

No início dos anos 1950, mudanças econômicas no mercado mundial


trouxeram uma nova categoria de consumidor, o adolescente, e uma nova
ideologia, o rock’n’roll. Dentro da esfera da produção crescentemente
automatizada, jovens não eram mais requisitados a juntar-se à força de
trabalho logo após o fim da escola. Eles tornaram-se, efetivamente, uma
nova classe: consumidores educados com alto poder aquisitivo e pouca
responsabilidade para com a ética protestante de trabalho de seus pais. Essa
nova classe adolescente foi explorada e ganhou uma falsa consciência de
liberdade. Entretanto, à medida que o lazer total tornou-se tédio, o
entendimento adolescente de “liberdade” levou à revolta – ou ao menos
pseudo-revolta – alimentada em parte pelo rock. A despeito de suas objeções
a essa nova música, os adultos tiveram que ser tolerantes pelo simples fato
de que os jovens e o rock estavam impulsionando a economia (GRAHAM,
2009, p. 169).
45

O rock vai alimentar a revolta adolescente diante do tédio do lazer total. O sociólogo
alemão Theodor Adorno– juntamente com Max Horkheimer – cunhou, nos anos 1940, o
termo indústria cultural, referindo-se ao estado da arte e da cultura na sociedade capitalista,
transformadas em mercadoria. Pensador marxista, Adorno considerava lazer e diversão
extensões do trabalho no capitalismo tardio, uma apologia da sociedade, fruto do alheamento
dos processos sociais (ADORNO, 2010). Erudito saudoso do passado cultural europeu,
Adorno acreditava que “divertir-se é estar de acordo” (p. 41). Assim, o rock, produto da
indústria cultural, alimenta a revolta contra a sociedade ao mesmo tempo em que a reforça, já
que é parte importante de seu sistema produtivo. O rock também é um exemplo notável da
guinada popular nos gostos das classes alta e média no mundo ocidental. Na década de 1950,
a juventude anglo-saxônica aceitou a música, a vestimenta e a linguagem das classes baixas,
apropriando-se delas a ponto de as tornarem suas. Das classes baixas negras, é importante
ressaltar. O rock’n’roll, antes de ganhar sua plateia branca e seu nome, dado pelo radialista
estadunidense Alan Freed, no início dos anos 1950, a partir da apropriação de um termo de
conotações sexuais, era chamado de rhythm and blues, um tipo de música dançante destinada
aos negros pobres dos Estados Unidos, criado a partir da eletrificação e da aceleração do
blues24. Um processo semelhante já havia ocorrido com o jazz que, ao popularizar-se entre a
classe média branca nos anos 1930, havia ganhado o nome swing.25 E se esse tinha seu rei
branco (Benny Goodman), o rock também deveria ter o seu, figura encarnada por Elvis
Presley. Elvis é o branco de alma negra, sensual e viril conforme ordena o estereótipo do
negro. Ao som de sua guitarra e movimento de sua pélvis, a juventude foi erotizada e liberada
sexualmente em um momento em que o conservadorismo dos puritanos ditava a tônica
política e comportamental nos Estados Unidos.
Elvis é um novo pregador no que o artista e teórico Dan Graham chama de “religião da
juventude”26. O interesse de Graham por aspectos da cultura popular e da relação entre
produção artística e realidade social o levou a pensar e escrever sobre temas como rock’n’roll
e punk, além de produzir o filme Rock my religion (1984), em que conecta rock e religião na
cultura contemporânea e propõe que o primeiro seja considerado uma genuína forma de arte.
Sob a forma de colagem audiovisual, reunindo imagens de arquivo e textos, Rock my religion
24
Para mais informações sobre as origens do rock’n’roll, consultar o Vocabulário de música pop, de Roy Shuker
(1999).
25
O jazz é outro exemplo marcante da popularização dos gostos. Nos anos 1930, Adorno o considerava um
produto vulgar da sociedade capitalista, música dançante para as massas. Passado quase um século – e que
pesem todas as inovações do jazz moderno e para além dele – esse estilo musical de origem popular tornou-se
sinônimo de refinamento.
26
Sobre os jovens e o surgimento da juventude, consultar História dos Jovens (1996), de Jean-Claude Schmitt e
Giovanni Levi (orgs.) e A criação da juventude (2009), de Jon Savage.
46

estabelece relações entre a seita religiosa estadunidense Shakers, com suas práticas coletivas
de dança em transe, e a cultura roqueira da juventude americana. Para Graham, o rock é a
nova religião dos jovens, ele dá poder aos adolescentes, possibilitando que eles desafiem a
lógica protestante dos pais, baseada em repressão sexual, casamento e trabalho. Concertos e
clubes são como missas e igrejas, cultos proibidos para os adultos, onde a estrela do rock
empunha sua guitarra em “posição de sacrifício contra o regime do trabalho”. Ele sacrifica seu
corpo vivendo no limite e transcendendo “os valores da rotina diária” (GRAHAM, 2009, p.
106). Graham sugere que a transcendência é atingida com o sacrifício da habilidade em se
tornar adulto e, para tal, o roqueiro deve morrer ou cair no ostracismo, da mesma maneira que
James Dean, Ziggy Stardust27 ou tantos outros rock stars de morte prematura.
Nos anos 1970, artistas que exploravam os caminhos abertos por experiências que
ampliaram o conceito de arte, levando-a para além dos domínios da estética, questionando sua
singularidade, expandindo seu campo, desmaterializando seu objeto, corporificando-o,
transformando-o em escultura social, ligando-o ao cotidiano de onde aparece transfigurado do
banal, tinham diante de si uma nova tradição. Graham escolhe a cantora, compositora, poeta e
artista visual Patti Smith como exemplo de um artista inserido nessa nova tradição, alguém
que elegeu, entre todas as formas de arte, o rock como expressão.

Nos anos 1970, a religião da cultura adolescente dos anos 1950 e da


contracultura dos anos 1960 foi adotada por artistas pop que propõem o fim
da crença da “arte pela arte”. Patti Smith levou este passo adiante: ela viu o
rock como uma forma de arte que poderia substituir a poesia, a pintura e a
escultura. Se a arte é apenas um negócio, como sugeriu Warhol, então a
música expressa uma emoção mais comunal, mais transcendental, que a arte
agora nega. Por algum tempo, durante os anos 1970, a cultura do rock se
tornou a religião da vanguarda do mundo da arte (GRAHAM, 2009, p.113).

A arte deve se ligar ao cotidiano, tratar das relações entre as pessoas e dessas com as
coisas, não apenas dos processos dela própria, deve também pensar a cultura urbana do novo
mundo. Uma arte místico-erótico-política que tome suas formas da linha da própria vida, e se
misture com a sujeira, e seja cômica (ou violenta), e evolua sem saber que é arte, tendo a
chance de começar do zero, como escreveu Claes Oldenburg no manifesto Sou a favor de uma
arte... (FERREIRA, 2009, p.67). Misticismo, erotismo, política. Os atributos da nova arte da

27
Em The rise and fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars (1972), o músico britânico David Bowie
encarna o personagem de um alienígena caído na terra, que encanta as plateias com seu traseiro e sua guitarra.
Acompanhado da banda “As Aranhas de Marte”, Ziggy acaba sucumbindo aos excessos da vida do showbiz e
termina o disco, como na cena final de um filme, tragando do último cigarro e cogitando o suicídio. O álbum
tornou-se um “clássico” do glam rock.
47

qual Oldenburg é a favor não seriam também elementos presentes na cultura do rock? Patti
Smith encontrou nele o veículo para sua arte, algo que pudesse “compreender poesia,
escultura e pintura” e ainda fosse “sua própria forma de política revolucionária” (GRAHAM,
2010, p. 212). O rock torna-se um ramo da cultura com sua própria estética e história e com o
desenvolvimento da crítica musical especializada, acelerado após o fenômeno do punk, ganha
respeitabilidade acadêmica. “Ainda acho que as pessoas têm uma abordagem tão antiquada.
Elas separam a arte do rock’n’roll”, disse Patti Smith em uma entrevista, em 1976 (apud
ROMBES, 2009, p. 286).
Surgido como produto da indústria cultural, como mercadoria, o rock tornou-se
expressão cultural máxima de um grupo social, sua “religião”, preencheu de refrões os sonhos
inconformistas da contracultura e, finalmente, se transformou em forma de arte. É curioso
notar como o seu desenvolvimento coincide com o da arte contemporânea. Quando, em 1956,
morria o pintor Jackson Pollock, um dos últimos gigantes modernistas e, ao mesmo tempo,
um artista de transição cujo gesto abriu a arte para a entrada do corpo, Elvis Presley havia
lançado, há apenas alguns meses, seu primeiro álbum28. Alguns anos depois, quando a arte
começava a se desmaterializar, dando origem ao minimalismo, pop, conceitualismo e tantas
outras manifestações definitivas para a produção contemporânea, os Beatles conquistavam a
América impulsionando a chamada Invasão Britânica, fenômeno que transformaria a música
popular internacional. No final da década, quando artistas buscavam radicalmente romper
com o sistema das artes, o rock – através de nomes como Bob Dylan, Jimi Hendrix, Pink
Floyd, The Doors, The Rolling Stones e, novamente, The Beatles – atingia sua maturidade
poética e musical e ajudava uma geração inteira a “cair fora”. Ao lado das drogas alteradoras
da consciência, das manifestações pacifistas contra a guerra do Vietnã, das lutas por direitos
civis, o rock foi emblema sinalizador de uma nova sociedade e a trilha sonora da
contracultura.

No fim dos anos 1960, a cultura do rock tanto na Grã-Bretanha quanto na


América fundiu-se com a arte pop (os Beatles foram influenciados por
Richard Hamilton, o Velvet Underground foi produzido por Andy Warhol) e
com a arte conceitual (Yoko Ono colaborou com John Lennon, Art &
Language fez gravações de rock). A apresentação dos Beatles feita por
Epstein foi influenciada pelas estratégias da arte pop... (GRAHAM, 2009, p.
211).

28
Elvis Presley (1956).
48

As estratégias da arte informam o rock. Graham observa que o empresário Brian


Epstein fez com os Beatles o mesmo que Warhol fez a si mesmo: a criação de uma
personalidade forjada deliberadamente para aparecer para a mídia, evitando assim
apropriações indesejadas de sua imagem. Warhol – assim como os Beatles – é uma imagem
autoconstruída para o estrelato, feita para o uso dos meios massivos de reprodução. Graham
observa que Warhol tornou-se o assunto de sua arte, a estrela que inventou a si mesma. Ele
literalmente incorporou a arte pop. Assim como os Beatles incorporaram a música pop. O
momento inicial da convergência entre arte e rock se dá, portanto, na celebratória fusão de
alta e baixa cultura da arte pop. Seu contexto é o mesmo do surgimento do que o filósofo
Arthur C. Danto chamou de arte pós-histórica29, cujo marco foi a exposição realizada por
Warhol em 1964, na Stable Gallery, em Nova Iorque, quando apresentou, pela primeira vez,
suas “Brillo Boxes”, esculturas idênticas a caixas de sabão ordinárias que punham em xeque a
distinção entre obra e mercadoria e, segundo o autor, libertaram a arte de grilhões estéticos.
Para o crítico, ali iniciava uma forma de arte que se desenvolveria para além do domínio da
história, à margem da lógica evolutiva das grandes narrativas estéticas e avessa à pureza.
Danto enquadra esse episódio crítico, quando a arte começa a se soltar de suas amarras
históricas, no “verão da liberdade” de 1964, com os movimentos libertários explodindo nos
Estados Unidos, animados por um novo conjunto estrangeiro que fazia sua primeira aparição
em cadeia nacional. Começava a Invasão Britânica, quando dezenas de bandas do Reino
Unido “invadiram” rádios, vitrolas, televisores e palcos da América, afetando a economia e os
costumes.

(...) 1964 foi o ano da liberação. E não se pode esquecer que os Beatles
fizeram a sua primeira apresentação ao vivo nos Estados Unidos no show de
Ed Sullivan, em 1964, e foram emblemas e facilitadores do espírito de
liberação que varreu o país e, na hora certa, o mundo. A pop se enquadra
inteiramente nisso. (DANTO, 2006, p. 140)

Nos anos 1960, observa Danto30, “as coisas comuns do mundo comum subitamente
tornaram-se o alicerce da arte e da filosofia” (2006, p. 144). Em sua transfiguração em arte
dos emblemas banais da cultura popular, a pop encerra uma grande narrativa da arte, fazendo
da banalidade um dos alicerces da filosofia dessa nova arte que pergunta: isso é arte, por quê?
Não pretendo aprofundar o debate sobre a teoria do fim da arte de Danto, e nem as razões que

29
Em Após o fim da arte o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história (2006).
30
Filósofo de origem estadunidense, Danto parece eleger 1964 em detrimento a 1968, um ano muito importante
na década das contestações, porém, ligado a um episódio marcante ocorrido na França.
49

não o fazem considerar Duchamp como um artista que já havia, antes de Warhol,
transformado a arte em uma questão filosófica, questionando sua singularidade. O ponto aqui
é perceber que há, claramente, uma ruptura ligada a um movimento maior de transformações
que “rejeitavam a ordenação histórica há muito estabelecida das relações humanas em
sociedade, que as convenções e proibições sociais expressavam, sancionavam e
simbolizavam” (HOBSBAWM, 1995, p. 327). As convenções da arte são também ordenações
a serem rejeitadas.
O movimento da pop art é um fenômeno norte-americano protagonizado por nomes
como Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist, cujas obras
extraíam da vida industrial e urbana da América seus principais temas. A origem da pop está
no trabalho de artistas como Jasper Johns e Robert Rauschenberg, que, em meados dos anos
1950, resgataram o corriqueiro e o acaso para o fazer artístico, associando a ele novos
materiais e técnicas, muitas vezes apropriadas da cultura de massas. Uma postura aprendida
do dadá, que ironizava as emoções exacerbadas do expressionismo, a tendência dominante da
arte. Cunhado pelo crítico Lawrence Alloway, o termo pop art também vinha sendo usado em
referência ao trabalho de artistas britânicos como Richard Hamilton, Eduardo Paolozzi e Peter
Blake, cuja sensibilidade também era influenciada por objetos da sociedade moderna, revistas,
estrelas de cinema, parques de diversão e o próprio rock’n’roll. Outro grupo de artistas ligado
ao Royal College of Art também explorava os mesmos temas e tratamentos, entre eles Allen
Jones e David Hockney (ARCHER, 2008).
“Estilo, imagem, auto-consciência”, essa foi a contribuição dos ingleses à história da
música pop do pós-guerra, segundo o crítico Simon Frith, “uma atitude em relação ao que a
música comercial poderia e deveria ser” (1988, p. 1). Uma lição, talvez, aprendida do mundo
da arte. Com forte tradição no ensino artístico, a Inglaterra (especialmente Londres) abrigou
“legiões” de bandas formadas em escolas de arte31 durante os anos 1960 (REYNOLDS,
2008). As conexões entre as escolas de arte e o rock britânico explicam, para Frith, o
extraordinário impacto internacional do brit rock. No modo como se apresentavam e
embalavam seus discos, os jovens músicos aplicaram ideias aprendidas nas escolas de arte em
um suporte da cultura de massas.
Um dos produtos mais evidentes do cruzamento entre a arte e o rock são as capas de
disco. Foi a partir da década de 1940 que o conceito de capa passou a existir – até então, a

31
Alguns roqueiros britânicos que frequentaram escolas de arte: John Lennon, Pete Townshend, Eric Clapton,
Keith Richards, Brian Eno, Brian Ferry, Syd Barret, Ray Davies, Jimmy Page, Freddie Mercury, Mick Jones e
Paul Simonon (The Clash), Andy Gill e Jon King (Gang of Four).
50

embalagem era apenas um papel pardo com a abertura circular exibindo o selo do vinil. Nos
anos 1950, com o objetivo de ampliar formatos de reprodução, foi criado o LP (long play).
Frank Sinatra é o primeiro a juntar dez ou doze canções em dois lados de aproximadamente
20 minutos de duração cada um. Ele também subverte o conceito das capas da década anterior
ao apresentar-se como personagem de um filme, capturado em still, ao invés do tradicional
retrato. Designers e fotógrafos passam a criar para selos e gravadoras.32 Reproduções de arte
abstrata tornam-se comuns em capas de álbuns de jazz. Com o advento da arte pop, artistas
passam a envolver-se com os músicos na criação dessas embalagens. Mais uma vez, os
Beatles fornecem produtos perfeitos da interação entre musical, visual e objeto. A capa do
mais famoso álbum do grupo, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) é uma bem-
humorada compilação dos heróis da banda33, criada pelo casal de artistas Peter Blake e Jann
Haworth, sob direção do marchand Robert Fraser, figura influente na cena londrina. O álbum
seguinte (The Beatles, 1968) ganharia uma capa criada pelo pioneiro da pop Richard
Hamilton34, uma peça branca minimalista que contrasta com a heterogeneidade quase caótica
de estilos musicais presentes no disco duplo.

32
Andy Warhol, quando trabalhou como desenhista gráfico, produziu ilustrações para selos como RCA e Blue
Note; ele faria durante sua carreira cerca de 50 capas de discos.
33
Entre eles: o ocultista Aleister Crowley; as atrizes Mae West, Marilyn Monroe e Shirley Temple; os atores
Fred Astaire, Tony Curtis, Marlon Brando, Tyrone Power, Johnny Weissmuller; os comediantes W. C. Fields,
Lenny Bruce, Laurel e Hardy, o compositor Stockhausen, o psiquiatra Carl Gustav Jung, o escritores Edgar
Allan Poe, Aldous Huxley, Terry Southern, Dylan Thomas, William S. Burroughs, James Joyce, H. G. Wells,
Oscar Wilde, Stephen Crane, Lewis Carroll, T. E. Lawrence; o dramaturgo George Bernard Shaw; o explorador
Livingstone, Kennedy, Bob Dylan, Marx, além dos artistas (!) Wallace Berman, Richard Merkin, Richard
Lindner, Larry Bell e H. C. Westermann.
34
Da mesma época é a pintura de Hamilton, Swingeing London, baseada na prisão por posse de drogas de Mick
Jagger e de seu amigo marchand Robert Fraser.
51

Figura 7 – Richard Hamilton – “The Beatles” (1968)

Fonte: <http://beatlesblogger.com/tag/white-album/>
Figura 8 – International Times – “Yoko at Indica” (1966)

Fonte: <http://www.internationaltimes.it/archive/index.php?year=1966&volume=IT-Volume-
1&issue=2&item=IT_1966-10-31_B-IT-Volume-1_Iss-2_004>
52

É na Swinging London – tão bem capturada no filme Blow up (1966), de Michelangelo


Antonioni – que a pop inglesa floresce. Na biografia escrita por Barry Miles, Many Years
From Now (2008), o músico Paul McCartney relembra sua relação com o circuito de arte
londrino e a atuação como cliente e apoiador da Indica Books and Gallery. Localizada no
bairro de Westminster, a Indica fora concebida, em 1965, pelos amigos John Dunbar, Peter
Asher e o próprio Miles, todos do círculo íntimo de McCartney. A galeria ficava no porão da
livraria. A Indica comercializava itens apreciados pelos contracultos, como a literatura beat de
Allen Ginsberg e William Burroughs, além de obras do Surreliasmo ou a arte cinética de
artistas como Carlos Cruz-Diez, Liliane Lijn e Mark Boyle. Desenvolvidas a partir do
Construtivismo e alheias à influência das descobertas de Duchamp, a arte cinética e sua
“prima” op art fundamentavam-se nos conceitos da persistência retiniana, explorando forma e
cor e simulando movimento ao observador. Essas obras proporcionam experiências óticas tais
quais as obtidas em shows de luzes ou com o uso do LSD, ambos associados à cultura
psicodélica dos 1960.
Foi na Galeria Indica, em fins de 1966, durante a exposição Yoko at Indica, também
conhecida como Unfinished Paintings and Objects, que John Lennon conheceu Yoko Ono. A
artista conceitual japonesa, integrante do movimento internacional de vanguarda Fluxus, teria
grande influência no processo criativo e produtivo do músico, ele próprio um ex-aluno de
escola de arte, levando-o a interessar-se por happenings e música experimental. O interesse
foi recíproco já que Ono iria lançar-se, a sua maneira, em uma duradoura carreira na música
pop. Acompanhadas por Lennon, suas primeiras incursões no campo do rock produziram três
álbuns que o crítico Simon Reynolds define como “arte conceitual forjada com som” (2008, p.
81): Unfinished music #1: Two virgins (1968), Unfinished music #2: Life with the lions (1969)
e Wedding album (1969). Nos anos 1970, ela formaria com Lennon a Plastic Ono Band e, se
no início da carreira predominava a abordagem gutural, a partir de seu álbum solo Fly (1971),
Ono começaria a cantar. Ela foi pioneira em levar ideias do campo da arte para o da música
popular massiva. Estudou música em Nova Iorque, no início dos anos 1950, e sua atuação no
Fluxus incluía a promoção de happenings de música experimental, poesia e performance,
eventos simples e lúdicos que tinham seus predecessores nos programas dadaístas e seratas
futuristas. Sua discografia possui ao menos vinte títulos.
O impacto das ideias de Ono no trabalho de John Lennon foi enorme. No depoimento
dado à revista Rolling Stone, em 1972, um egocêntrico e irônico Lennon comenta as
experiências artísticas, um “exercício intelectual” compartilhado com Ono que ele compara ao
uso de drogas alucinógenas, experiências que podem alterar a forma de criar e viver.
53

Nós estamos mostrando nossas experiências um ao outro. (...) Precisei me


abrir. Tive de me afastar das noções do que queria ouvir para aceitar a
música e a arte abstrata. Ela precisou fazer o mesmo com o rock’n’roll. É
um exercício intelectual, porque todos nós somos fechados. (...) e alguém
tem de vir e abrir a nossa cabeça para que outras coisas consigam entrar! A
droga pode abrir, o ácido escancara a cabeça... Alguns artistas também
podem, mas em geral precisam estar mortos há duzentos anos. Tudo que
aprendi na escola de artes foi de Van Gogh e de não sei mais quem. Não
ensinaram nada sobre alguém que estivesse vivo agora! Nunca falaram nada
de Marcel Duchamp, o que é motivo para detestá-los, e a Yoko me ensinou
sobre Duchamp. É genial! Pega uma roda de bicicleta e diz: ‘Isto é arte, seus
imbecis!’ Ele não é o Dalí. Dalí é legal, mas é como o Mick. (WENNER,
2001, p. 139)

A crítica Anne Cauquelin (2005) usa o termo “embreante” para definir o artista francês
Marcel Duchamp (assim como Warhol e o marchand Leo Castelli), um agente cultural que
revela em sua produção, atuação e pensamento indícios da mudança de um regime, modo de
produção ou cultura, no caso, da arte moderna para a arte contemporânea. Duchamp separou a
arte da estética, fazendo daquela um sistema de signos cujo motor passa a ser a linguagem.
Ele integrou a esfera da arte a outras atividades humanas. Ao cunhar o termo readymade para
descrever objetos banais por ele designados arte, Duchamp sugeria que o que faz de um
objeto arte não é nada intrínseco a ele, mas o sistema em que está inserido. Ao artista cabe
apenas eleger esses objetos, dando-lhes nova função e valor. A produção de sentido se dá
então a partir do questionamento do estatuto da obra e da própra arte diante de sua esfera de
consumo e circulação.
O trabalho de Marcel Duchamp, fundamental para os desdobramentos da arte
contemporânea, ficaria apagado na história oficial do modernismo, um gesto isolado que
levou quase 50 anos para ser notado. Suas ideias foram resgatadas por uma geração de artistas
comprometidos em romper com um modelo de “arte pela arte”, como Ono e outros
integrantes do Fluxus, entre eles Wolf Vostell, Dick Higgins, Nam June Paik, Joseph Beuys,
John Cage (seu mentor) e George Maciunas (seu fundador). Como Duchamp, o lituano
Maciunas havia imigrado para a cidade de Nova Iorque, o novo pólo mundial da produção de
arte, onde, juntamente com outros jovens artistas, nativos ou imigrados, formara o Fluxus. A
antiarte do grupo “visava reconectar a arte com a vida num sentido plenamente político”
(ARCHER, 2008, p. 116), relacionava-se com o concreto, afastando-se da artificialidade da
abstração em que mergulhara a arte moderna, abraçando a indeterminação e o improviso.
Conforme escreveu Maciunas, a antiarte foi criada para melhor abordar a realidade concreta,
atacando “a arte enquanto profissão, a separação artificial do artista e do público”, propondo
54

ao homem “a experiência do mundo” (MACIUNAS, 2009, p. 80). Ela está ligada à revolução
comportamental que sacudiu os anos 1960. Para Yoko Ono, a transmissão das ideias
libertárias de Duchamp ao companheiro Lennon, um dos maiores astros do rock de todos os
tempos, integra um programa político. Através da abrangência massiva da música pop, as
ideias da vanguarda podem ganhar o grande público, e, popularizadas, reconectar arte e vida,
possibilitando ao homem sua experiência do mundo.
As proposições de outro artista chamado por Cauquelin de embreante inauguram um
novo grau de interação entre os campos da arte e do rock com a associação de Andy Warhol
ao grupo The Velvet Underground – ainda que, conforme aponte Alan Licht (2007), tal ação
diga mais sobre o desejo de Warhol de expandir para o mundo do entretenimento do que
propriamente para o da música. Licht usa o termo “pop envy” [inveja pop] (p. 151) para tratar
daqueles artistas que cruzam o campo da arte rumo ao do entretenimento – e são bem-
sucedidos – como é o caso da performer Laurie Anderson que, em 1981, atingiu o segundo
lugar nas paradas britânicas com o single “O Superman”. É a inveja que a arte tem do pop por
sua massiva penetração. Mas o termo sugere uma inveja de mão dupla: também do pop pela
arte por sua respeitabilidade, sua distinção. Ao convidar artistas para assinar capas de discos,
o músico parece afirmar que sua produção é mais do que um mero produto de consumo
popular: ela é também uma obra de arte.
Outra inovação de Warhol está no deslocamento da arte para o contexto da discoteca.
Na década de 1940, o músico John Cage já havia feito o movimento inverso, levando a
música de seu contexto regular (as salas de concerto) para galerias de arte e museus: “John
Cage foi o primeiro compositor da história da música que levantou implicitamente a questão
de que a música talvez pudesse ser uma forma de arte em vez de uma forma musical”
(FELDMAN apud ROSS, 2011, p. 301). Desde os anos 1930, Cage vinha experimentando
com preparação de instrumentos e ruídos. Seu interesse nos sons cotidianos fornecera uma
resposta do mundo da música às questões propostas por Duchamp (LICHT, 2007). Teórico do
acaso e da indeterminação, adepto de práticas multidisciplinares, lecionou em um dos lares da
vanguarda americana, o famoso Black Mountain College, na Carolina do Norte, influenciando
toda uma geração de artistas. As abordagens de Cage, para quem “todos os sons são música”
(LICHT, 2007, p. 144), iriam permitir a atuação de não músicos no campo. Ele é figura
destacada entre um grupo de artistas que transitará entre a música experimental e a arte, e que,
após o processo chamado pela crítica Lucy Lippard de desmaterialização do objeto artístico35,

35
LIPPARD, Lucy. Six years the dematerialization of art object from 1966 to 1972. Berkeley: University
California Press, 2001.
55

já não pode mais ser chamada apenas de visual. Na década de 1990, será cunhado o termo
sound art para definir esta nova modalidade, que, para Licht, estaria mais relacionada a
questões expositivas, espaciais e reprodutivas. O autor defende que a maioria dos sons
produzido por artistas não pode ser classificado como arte sonora por ser mais orientado em
direção à performance, categoria artística distinta.
Entre os pioneiros de experiências performáticas sonoras estão o futurista Luigi
Russolo e os dadaístas Marcel Duchamp, Kurt Schwitters e Hugo Ball, que buscaram no som
“um fórum adicional para o seu trabalho criativo” (LICHT, 2007, p. 142). O dadaísmo surge
em Zurique, em 1916, de onde se irradiou para o planeta, em “um breve interlúdio de
confusão geral, um parêntese entre dois sistemas dogmáticos” (RESTANY, 1979, p. 70). Em
Berlim, tornou-se mais político, adotando a ideologia bolchevique. Em Nova Iorque,
Duchamp tratou de amenizar sua ira política. O movimento atacava a guerra, a burguesia
capitalista e sua arte elevada, em busca de maior abertura entre as formas de expressão,
aproximando o público da atividade artística. Niilistas, irônicos e provocadores, os dadaístas
veem os artistas como mediadores dos processos sociais. A música, principalmente através da
performance, é usada – assim como as artes visuais, literatura, desenho gráfico, teatro – na
“ruidosa batalha para romper com a arte tradicional” (GLUSBERG, 2009, p. 12) e impor
novas formas do fazer artístico. Na tradição dadá, o Fluxus explorou a música como mais um
desdobramento de suas proposições lúdicas de experiências do mundo. Na criação de “objetos
próprios (tíquetes, brinquedos, móveis etc.), assim como filmes, livros, impressos, poesia e
pinturas, foi inevitável que a música não se tornasse outro desses produtos” (LICHT, 2007, p.
144). O pintor francês Yves Klein, associado ao grupo dos novos realistas, herdeiros europeus
do legado duchampiano, também realizaria um experimento marcante entre música,
performance e pintura. Trata-se da Anthropométrie de l’Époque bleue, apresentada em março
de 1960, na Galerie Internationale d’Art Contemporain, em Paris, em que usou modelos nuas
como pincéis entintados com um pigmento criado por ele próprio, enquanto uma orquestra e
um coral executavam sua Symphony Monotone-Silence, o equivalente musical de suas
pinturas monocromáticas. A lista de artistas que, no século XX, transitou entre os campos da
arte e da música é extensa e não é o objetivo explorá-la aqui, além de alguns exemplos
pontuais, especialmente os que dizem respeito à relação arte e rock, para qual a “inveja pop”
de Warhol é paradigmática.
Andy Warhol vinha procurando uma banda com a qual se associar, quando, em fins de
1965, seu colaborador Gerard Malanga o apresentou ao Velvet Underground. O grupo
realizava uma temporada em um café no Greenwich Village e era formado por Lou Reed
56

(guitarra e voz), John Cale (contrabaixo, órgão e viola), Sterling Morrison (guitarra) e
Maureen Tucker (bateria). O escultor Walter de Maria havia sido baterista na primeira
formação do grupo, chamada The Primitives. Na persistente adoração de Warhol pelo
estrelato, a associação a um grupo de rock apresentou-se como uma oportunidade de adentrar
o showbiz. Sua aversão à pureza possibilitou que considerasse o rock um suporte tão legítimo
quanto a pintura, a fotografia ou o cinema. Como escreveu o pintor Gary Indiana: “a arte de
Andy Warhol abrange toda a gama de mídias tecnológicas disponível em seu tempo”
(INDIANA, 2010, p. 83).

A ideia pop, no fim das contas, era de que qualquer um poderia fazer
qualquer coisa, então naturalmente estávamos todos tentando fazer de tudo.
Ninguém queria ficar em uma categoria, queríamos todos diversificar em
tudo que fosse criativo. Por isso encontramos o Velvet Underground no final
de 1965, estávamos todos dispostos a entrar na cena musical também.
(WARHOL, 1989, p. 20)

Mestre manipulador da imagem, Warhol incorporou ao grupo a modelo alemã Nico,


uma de suas superstars fabricadas. A presença germânica de Nico com sua voz grave acabou
emprestando ao Velvet uma dose adicional de exotismo. Nico era uma das tantas personagens
que circulavam na Factory, o estúdio de Warhol, onde “se encontravam todas as espécies de
subculturas, a contracultura, o pop, superstars, todo o jet set e as estrelas fabricadas”
(CAUQUELIN, 2005, p. 118). Warhol também criou o evento multimídia Exploding Plastic
Inevitable (EPI), que reunia performance, projeção de filmes, luzes e a música do Velvet
Underground. Uma colagem “dadaísta e decadente” (HEYLIN, 2005, p.5), como definiu um
espectador à jornalista do New York Times na primeira matéria sobre o espetáculo, publicada
em janeiro de 1966. Uma impactante colagem total, não pictórica, que se assemelha aos
environments em sua atitude plástica multiforme e ao happening pela espontaneidade. “A arte
chegou à discoteca e nunca mais será a mesma” (HEYLIN, 2005, p. 10), anunciou na época a
imprensa underground nova-iorquina. A experiência proposta por Warhol potencializava as
possibilidades midiáticas da produção artística, embaralhando os circuitos de arte, música e
entretenimento, ao qual o artista trouxe elementos da vanguarda internacional. À porta dos
sombrios anos 70, as EPI também anunciavam o fim do sonho hippie, com suas imagens de
sexo e violência. Mestre da ironia, Warhol apresentaria os Velvets ao mundo em janeiro de
1966, em uma convenção psiquiátrica no luxuoso Hotel Delmonico, em Nova Iorque36. O

36
A apresentação foi registrada pelo cineasta Jonas Mekas, que a incluiu em cenas do filme Cenas da vida de
Andy Warhol: Amizades e Intersecções (1965-82/1990).
57

evento foi o embrião das EPI, que iriam percorrer cidades como Boston, Chicago e Los
Angeles (e seriam registradas em filme pelo cineasta Ronald Nameth). No ano seguinte, o
grupo lançaria um álbum produzido por Warhol37, cuja capa, literalmente assinada pelo
artista, é considerada, por muitas publicações especializadas, como a “maior de todos os
tempos”38. O disco, um dos mais influentes da história do rock, exercerá enorme impacto nas
gerações seguintes e terá em sua estética crua e agressiva um gérmen do punk. Para Licht, o
legado do Velvet Underground será transmitido às cenas novaiorquinas do punk e da No
Wave, nas quais poetas, pintores e artistas do teatro passarão a se interessar pelo rock como
suporte alternativo e pelo clube noturno como espaço viável de exibição de arte, dotado de
uma vibração que o sistema das galerias desconhecia.

37
The Velvet Underground and Nico (1967).
38
Segundo edição especial da revista Bizz: “100 maiores capas de discos de todos os tempos” (São Paulo, maio
de 2005, p. 76-77). Curiosamente, outra forte concorrente é também uma capa de Warhol, dessa vez para o
álbum Sticky fingers (1971), dos Rolling Stones, conforme eleita pelo canal VH1, em 2003. Ambos os projetos
gráficos originais traziam imagens fálicas e propostas interativas. O álbum dos Velvets trazia na capa um adesivo
em formato de banana que, quando “descascado”, revelava o interior da fruta em sugestiva cor rosada. No disco
dos Stones, havia um zíper verdadeiro, aplicado à imagem de uma pélvis masculina em calças jeans apertadas,
supostamente a de Mick Jagger.
58

Figura 9 – Andy Warhol – “The Velvet Undergorund and Nico” (1967)

Fonte: <http://www.verbo21.com.br/v6/index.php/fevereiroresenhas/109-o-visual-do-vinil-the-velvet-
underground-nico-jose-mauricio>

Figura 10 – CBGB (1986)

Fonte: http://weber-street-photography.com/2012/07/28/cbgb-the-bowery-1986/cbgbs-palace-1986-
copy/ Matt Weber
59

3.1 PUNK

O legado da arte pop – somado à herança radical de movimentos de vanguarda como


dadá, futurismo e situacionismo – irá informar uma das expressões mais importantes dessa
História da Arte que queremos contar. O punk nasceu da falência dos sonhos transformadores
da década de 1960, em um mundo que “perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade
e a crise” (HOBSBAWM, 1995, p. 393). Sua aparição ocorreu em um período de recessão
econômica, desemprego, deterioração dos grandes centros urbanos e crise energética, além da
forte guinada politicamente conservadora que culminaria na escalada de Ronald Reagan e
Margareth Thatcher frente às duas maiores nações do mundo ocidental naquele momento. A
ideologia do movimento surge em oposição ao liberalismo hedonista e aos excessos dos
hippies, sua correção política exacerbada e tendência ao messianismo. Prega violência e
disfuncionalidade, pede a guerra, não a paz, canta o ódio ao invés do amor. Cultua o tédio,
desmascarando (na trilha de Adorno e dos situacinonistas) a armadilha da diversão. O punk
expressa o dissenso e “as realidades de terror urbano e fascismo reprimido do período pós-
Vietnã” (GRAHAM, 2009, p. 56), convertendo “os materiais crus do colapso econômico em
arte” (ROMBES, 2009, p. 121). Nicholas Rombes, um pesquisador do cinema e autor de
livros sobre o punk, considera este fenômeno uma rejeição estética ao mito que se tornou os
anos 1960. “O punk é, acima de tudo, uma postura, uma maneira de estar no mundo, uma
performance.” (ROMBES, 2009, p. 55). A expressão, que aqui uso de forma genérica,
designa: 1) um gênero musical caracterizado pelo resgate da visceralidade e a simplicidade
original do rock’n’roll; 2) uma subcultura, grupo social organizado em torno de interesses e
práticas comuns (entre eles, o punk rock); 3) uma estética ou estilo visual manifesto,
sobretudo, na moda, mas também em peças gráficas, vídeos, fotografias, filmes, pinturas e
colagens, entre outros.
Suas origens musicais podem ser remontadas à rebeldia e à crueza do rock’n’roll dos
anos 1950 (Chuck Berry, Little Richard, Jerry Lee Lewis); ao som distorcido das bandas de
garagem (Seeds, Troggs, Sonics); à sonoridade e o visual escandaloso do glam rock (New
York Dolls, David Bowie, Roxy Music); ao assalto sonoro e subversivo do hard rock de
Detroit (Stooges, MC5) ou ao niilismo disfuncional dos grupos de Ohio (Devo, Electric Eels e
Rocket From The Tombs). No entanto, é no amálgama de surf music primitiva, poesia maldita
e experimentos vanguardistas, no visual agressivo e anti-hippie, na escolha da alienação como
tema de várias canções (uso de drogas, práticas sexuais perversas etc.), no trânsito pelo lado
60

selvagem – é no Velvet Underground que o punk tem sua maior herança. Mas os Velvets,
dissolvidos em 1970, são punk avant la lettre, pois o termo só seria usado para definir o
gênero musical e sua subcultura a partir de 1975, com a criação da Punk Magazine, por John
Holmstrom, Ged Dunn e Legs McNeil. Até então, a palavra designava alguém que fora
violentado na prisão ou um vagabundo. A expressão punk rock também já vinha sendo usada
com conotações musicais por críticos como Lenny Kaye, Dave Marsh e Lester Bangs, desde o
início dos anos 1970, referindo-se ao som cru e sujo das bandas de garagem. Difundido pela
Punk Magazine em suas fotonovelas e entrevistas, o termo passou a ser usado por músicos,
fãs e críticos para definir a cena em torno (além da sonoridade) das bandas que se
apresentavam regularmente em um “inferninho” chamado CBGB, localizado na vizinhança
conhecida como Bowery, os arredores da infame rua homônima localizada ao sul de
Manhattan. Originalmente dedicado à apresentação da música folclórica norte-americana
(country, bluegrass e blues), o espaço passou a receber shows das novas bandas a partir de
1974. “O punk (...) era mesmo uma confusa conglomeração”, observou o crítico Carlo
McCormick (2007, p. 75). Não havia um estilo comum no núcleo inicial de bandas do CBGB:
Patti Smith e seu grupo criavam temas épicos e poéticos; Blondie emulava o pop açucarado
dos grupos femininos dos anos 1960; Television produzia um rock barroco de longos
improvisos; os Ramones parodiavam o som de garagem, reduzindo-o a seus atributos mais
básicos e os Talking Heads eram responsáveis por um rock dançante, limpo, de letras
intelectualizadas. O que unia esses grupos era a vontade de uma “ressurreição das formas
mais primais do rock” (McCORMICK, 2007, p. 75), que desprezava o virtuosismo e a
suavidade emotiva da música dos anos 1970. Outro termo usado para definir a mesma cena,
talvez com uma conotação mais abrangente, é new wave. Ainda que alguns autores
considerem esse termo uma amenização da ferocidade original do punk visando à exploração
comercial, ele é adequado para nomear a postura distanciada e irônica e a sonoridade mais
leve de grupos como o Talking Heads.
David Byrne (guitarra e vocal), Tina Weymouth (baixo) e Chris Frantz (bateria),
formaram-no como The Artistics enquanto estudavam na Rhode Island School of Design.
Ciosos de sua imagem, os Heads não se vestiam como delinquentes em couro e jeans
rasgados, seu visual era limpo, quase sóbrio, de camisas abotoadas e bem passadas. O
conteúdo das letras de Byrne poderia ser resumido pelo título do segundo álbum da banda
Songs about buildings and food (1978), canções que não falavam nem do amor partido nem
da expansão da consciência, grandes temas das décadas anteriores, mas de assuntos prosaicos
como prédios e comida. Vestidos como funcionários, cantando banalidades, evitando o
61

virtuosismo dos longos solos, Byrne e seus colegas respondem esteticamente à mitologia dos
anos 1960, representada pela figura do rock star. O meio de expressão usado e os modos de
apresentação reforçam, portanto, o próprio conteúdo musical e poético.
Egressos do mundo da arte, os integrantes do Talking Heads precisam explicar de
forma recorrente porque decidiram formar uma banda. Em uma entrevista (GANS, 1985),
Byrne reconhece haver um aspecto geracional que fez com que muitos de seus conhecidos
pensassem em montar uma banda. E o baterista Chris Frantz afirma que, para um jovem
artista, o rock parecia um campo mais aberto que o restrito clube da arte. Em outra entrevista,
concedida para o centro de estudos Sproul Plaza, da Universidade de Berkeley, Byrne, depois
de um longo silêncio revelando certo constrangimento, responde à pergunta:

Entrevistador: O que fez você decidir colocar sua arte na música e nas letras,
ao invés da pintura ou mídias mistas?
Byrne: Parecia mais real, mais vital, mais excitante. Parecia ir de encontro a
um número maior de pessoas (TALKING HEADS: CHRONOLOGY.)

A escolha pela música parece advir de sua possibilidade de alcance massivo, a mesma
inveja pop de que fala Licht, a vontade de comunicação bem sucedida com um público amplo.
Byrne comenta como já vinha trabalhando em suas investigações artísticas com
“questionários e pesquisas”, práticas características da arte conceitual que já sinalizariam,
para ele, uma vontade de comunicação em larga escala. Simon Reynolds aponta como as
ideias do conceitualismo tiveram força nos anos 1970, influenciando o trabalho de muitos
grupos de múscia pop. De natureza não-comercial, a arte conceitual surgira a partir das
possibilidades abertas por Duchamp quando demonstrou que o objeto da arte são os signos:
desmaterializada, ela passa a existir como ideia. A execução dos objetos deriva apenas de
procedimento secundário. O entendimento do que é a arte passa de um conjunto de produtos
(pinturas, esculturas etc.) para um processo “que coincide, temporalmente, com a vida do
artista e, espacialmente, com o mundo que esta vida é vivida” (ARCHER, 2008, p. 73). Os
produtos tornam-se documentos do processo. As trajetórias de Byrne na música e nas artes
visuais poderiam, sob essa perspectiva, pertencer a um mesmo processo. O depoimento do
guitarrista e tecladista dos Talking Heads, Jerry Harrison, parece confirmar esse ponto de
vista:

Há uma espécie de mito em torno de nós como artistas que puseram de lado
seus pincéis e pegaram guitarras. Não é o caso. Tocamos há tanto tempo
quanto somos interessados em artes visuais – o que acontece é que é mais
divertido e gratificante de certa forma. De vez em quando encontro artistas
62

que dizem, “acho brilhante usar o rock como forma de arte”, acho isso
repulsivo. Se há alguma coisa em que o rock pode se encaixar é na visão
proletária de arte, isso é uma das coisas que fazem o punk rock tão poderoso:
ele é como uma revolta da feiura contra o elitismo da beleza estética. (apud
GANS, 1986, p. 64)

A Downtown novaiorquina, reduto do punk visto como forma de arte – apesar do


desgosto de Jerry Harrison –, é um local sujo, decadente e ainda livre da exploração
imobiliária que tornaria aqueles metros quadrados alguns dos mais caros do planeta. Bêbados
vagavam pelas ruas e, nos espaçosos lofts (muitos sem água encanada), artistas encontravam
onde viver e criar sua arte – teatro, dança, literatura, música, cinema, artes visuais –
descompromissada com a história, híbrida e experimental. O encontro entre arte e rock parece
determinado por relações interpessoais em um espaço compartilhado, no atrito entre artistas
que formam uma cena. Bares e casas noturnas como o Max’s Kansas City e o Mudd Club39
abrigavam pinturas em suas paredes e performances em seus palcos; espaços de arte como o
Mercer Arts Center e o The Kitchen40 incluíam o rock em sua programação. O punk de Nova
Iorque é desde cedo familiar ao submundo artístico da cidade. Batizada de No Wave, a
segunda onda de bandas da cena de Downtown está totalmente inserida no mundo da arte.

Bastante apropriadamente, o que seria mais tarde seria chamado de No Wave


foi inaugurado, não num bar desleixado ao estilo do CBGB, mas no Artists
Space, um espaço “alternativo” de galeria sem fins lucrativos no SoHo. A
No Wave foi decididamente punk em suas posturas, superfícies e aparências,
apesar do fato de que um significante número de integrantes das bandas
viessem do mundo da arte – poetas, cineastas experimentais, dramaturgos
avant-garde, artistas visuais, escultores e compositores autorais. A No Wave
tomou uma explícita postura vanguardista, conduzindo ao extremo os
aspectos de vanguarda sempre presentes na própria música punk – ruído e
choque, minimalismo e amadorismo intencional – mas nunca completamente
explorado de forma consciente (GENDRON, 2007, p. 57).

39
Max Kansas City’s: restaurante e boate, fundado em 1965, frequentado pelas maiores celebridades da arte de
Nova Iorque. Foi o ponto favorito da entourage de Andy Warhyol, que tinha mesas reservadas no fundo da casa
permanentemente. Lou Reed fez sua última apresentação com o Velvet Underground lá, onde o grupo também
gravou um álbum ao vivo. O Mudd Club foi fundado, em 1978, por Steve Mass, Anya Phillips e pelo curador
Diego Cortez. Seu sistema de som foi desenhado por Brian Eno. Foi lá, em 1979, na festa de aniversário de
Frank Zappa, que a fotógrafa Nan Goldin mostrou, pela primeira vez, sua icônica série The ballad of sexual
dependency, ode à vida boêmia do Lower East Side apresentada na forma de instalação com 700 slides e trilha
sonora.
40
Localizado em um antigo hotel da Broadway na região do Village, o Mercer Arts Center, uma espécie de
complexo cultural dedicado à arte da performance, incluindo teatro, dança e vídeo, abrigou, em 1973, uma
temporada de shows dos New York Dolls, evento seminal na fundação do punk. Fundado sem fins lucrativos por
Steina e Woody Vasuska na cozinha do Mercer Arts Center, The Kitchen era originalmente dedicado a videoarte
e logo se tornou multidisciplinar. Em 1974, o espaço foi relocado para o SoHo e hoje está localizado no Chelsea.
As principais bandas da cena No Wave se apresentaram no The Kitchen, cujo primeiro diretor musical foi o
compositor Rhys Chatham.
63

Parafraseando Warhol que parafraseia Marx, é possível ser ao mesmo tempo pescador,
expressionista abstrato, realista, caçador, crítico ou músico punk. E, para isso, já não é
necessário sequer conhecer a técnica: a ética do do it yourself (faça você mesmo), adotada
pelos não-músicos da No Wave, combate o elitismo corporativista do rock progressivo41,
exortando o artista a criar e difundir seu trabalho com seus próprios meios, sem autorização
de especialistas. Não por acaso, o autodenominado não músico Brian Eno, um artista cuja
obra também pode ser posicionada entre os campos da arte e da música, produziu uma sessão
antológica (No New York, 1978) compilando quatro bandas da cena No Wave: Teenage Jesus
and the Jerks (liderado por Lydia Lunch), James Chance and the Contortions, Mars e DNA
(de Arto Lindsay).
O inglês Eno já havia integrado (ao lado de Brian Ferry, um ex-aluno de Richard
Hamilton) um dos grupos seminais do chamado art rock, o Roxy Music. Após ser expulso da
banda pelas inclinações cada vez mais vanguardistas, Eno seguiria como um dos grandes
experimentalistas da música pop, além de prestigiado produtor musical. No desenvolvimento
de seu processo criativo, elaborou, em 1975, com o pintor Peter Schimdt, as chamadas
Oblique strategies (Estratégias oblíquas). Trazendo o subtítulo Over one hundred worthwile
dilemmas (Mais de cem dilemas úteis), trata-se de um jogo de cartas com instruções de como
proceder diante de impasses ou bloqueios criativos, no qual uma sugestão tirada ao acaso
fornece soluções para o problema. As sugestões geralmente levam a desvios que valorizam
erros, pensamentos descartados, subtração ou repetição de elementos42. O procedimento
remete aos jogos e instruções do grupo Fluxus (práticas, por sua vez, diretamente
influenciadas pelo mentor do movimento, John Cage, em suas consultas ao I Ching). Muitos
músicos (David Bowie, Talking Heads, Devo e até U2) estiveram em sessões de gravação
coordenadas por Brian Eno e talvez tenham se beneficiado desse procedimento de tons
dadaístas.43

41
Consequência da evolução do rock psicodélico, o rock progressivo é baseado em instrumentação virtuosa,
sonoridade épica e teatralidade. O estilo origina-se na Inglaterra no final dos anos 1960 diretamente influenciado
pelo álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, quando também era chamado de art rock, um
subgênero de aspirações vanguardistas e influência maior da música clássica e da literatura do que propriamente
das artes visuais. Soft Machine e Pink Floyd são duas bandas pioneiras do gênero. O termo art rock também é
usado para designar a música de grupos e artistas de forte caráter performático como Roxy Music, David Bowie
e Peter Gabriel.
42
Alguns exemplos: “Honra teu erro”; “O que manter?”; “O que você não faria?”; “Somente um elemento de
cada tipo”; “Faça uma pausa”; “Refaça seus passos”; “Autoindulgência disciplinada” etc.
43
Outra influência do procedimento poderia ser encontrada nas práticas do grupo Oulipo. Abreviação para
Ouvroir de littérature potentielle (algo como, “workshop de literatura potencial”), o grupo foi fundado na
França, em 1960, pelos escritores Raymond Queneau e François Le Lionnais. Através da aplicação de regras da
chamada escrita constrita, inspiradas em problemas matemáticos, palíndromos, lipogramas (em que uma
64

As primeiras figuras a trazer ideias da arte direto para o coração de sua


criação musical foram Yoko Ono e Brian Eno. Ainda que ambos tenham
feito seu trabalho mais importante no fim dos anos 1960 e início dos 1970,
sua influência verdadeira surgiu mais fortemente durante o período pós-punk
no final dos anos 1970 (REYNOLDS, 2008, p. 81).

Eno foi pioneiro no uso de sintetizadores, criou música ambiental e experimentou com
gravadores e outros processos de estúdio, a ponto de considerá-los instrumentos. Com suas
estratégias de não músico “foi figura chave na emergência de uma abordagem pictórica em
gravações” (p. 83). Com a introdução de efeitos de estúdio, Eno aproximou seu processo de
fazer música ao processo de pintar. (LICHT, 2009) e seguiu os passos de John Cage em sua
abordagem da música através das artes visuais. Outra influência de Cage está no
reconhecimento do valor do acaso e da indeterminação no processo de criação. Para Eno, os
erros do artista são mais importantes que suas intenções e a arte seria o campo no qual eles
são permitidos, onde sua ocorrência não prejudica a vida dos homens, já que ela, a arte, não
tem a menor importância para o mundo prático. A arte, como definiu Cage, esse tipo de
estação experimental onde se testa viver.
Após a rigidez do formalismo dos primeiros anos do punk, principalmente na
Inglaterra com sua ortodoxia insular (conforme veremos a seguir), ideias heterodoxas como as
de Eno puderam enfim vingar. Pintores e fotógrafos formam seus próprios grupos (Robert
Longo e Richard Prince criarão o Menthol Wars; Jean-Michel Basquiat, o conjunto de punk
jazz Gray; David Wojnarowicz, o 3 Teens Kill 4; e o alemão Martin Kippenberger, o Luxus).
Artistas como Laurie Anderson, Talking Heads e Suicide incorporam em seus trabalhos o
vídeo e a performance. Dos metrôs do Bronx, Brooklyn e Queens, o grafitti chega às galerias
de arte. Curada por um dos idealizadores do Mudd Club, Diego Cortez, em 1981, a mostra
New York/New Wave reúne no MoMA P.S.1 grafitti, punk rock e trabalhos de artistas como
Keith Haring, Basquiat e Robert Mapplethorpe, capturando o espírito de uma arte impura e
diletante. Subertendo o uso da tecnologia, o artista Christian Marclay passa a usar o
tocadiscos como instrumento de produção ao invés de reprodução de sons, dando início a uma
bem sucedida série de experimentações entre os campos. Imersos na adoração futurista do
ruído, Theoretical Girls (liderada por Glenn Branca) e Sonic Youth se tornam expoentes da
cena No Wave. Ao longo de quarenta anos de atuação, o Sonic Youth será fundamental na
consolidação do chamado rock alternativo americano, um gênero profundamente relacionado
à filosofia DIY. O grupo jamais escondeu as pretensões artísticas, fazendo das capas de seus

determinada letra do alfabeto é suprimida), os procedimentos do grupo buscavam romper com as formas
tradicionais do fazer literário no uso de novos padrões e estruturas de criação.
65

álbuns “uma espécie de galeria” (LICHT, 2006, p. 154), com trabalhos de James Welling,
Dan Graham, Gerhard Richter, Joe Brainard, Richard Prince, Christopher Wool, Mike Kelley
e Raymond Pettibon – os dois últimos, figuras representativas da cena punk californiana:
Mike Kelley com seu coletivo/banda Destroy All Monsters, e Raymond Pettibon, criador das
primeiras capas do selo de hardcore SST, além do logo da banda Black Flag.
Na costa oeste, impactada pelo lançamento do primeiro álbum dos Ramones, surge
uma geração de grupos que explora ainda mais a atitude niilista e acelera o ritmo da música,
transformando-a no hardcore. Um dos artistas associados à cena californiana é Winston
Smith, autor das capas do grupo Dead Kennedys e do material gráfico do selo Alternative
Tentacles, baseado em São Franciso. Nesta cidade, The Residents, formado em fins da década
de 1960, prossegue suas experimentações unindo música, vídeo e performance em peças
ruidosas e muitas vezes paródicas. Mantendo a identidades de seus integrantes na obscuridade
há quatro décadas – especialmente com o uso das características máscaras de globo ocular – o
grupo tem uma extensa discografia, somando mais de cinquenta títulos. O escritor William S.
Burroughs será o grande guru dessa geração. Expoente da chamada beat generation e um dos
pilares da contracultura, Burroughs sempre foi um crítico feroz à autoridade e suas formas de
poder e controle, além de artista profundamente comprometido com a exploração dos limites
do homem e da linguagem, em constante trânsito para além das margens da sociedade – daí a
homossexualidade, o crime, o uso de drogas. Sua literatura, confessional e delirante,
comprometida em contestar a verdade naturalizada, a autoridade e as noções de sujeito e
realidade, será produzida a partir de procedimentos experimentais como o cut up, que consiste
em atacar o verbo na materialidade da própria página: cortá-lo, retirá-lo de seu contexto,
recombinando sentenças e liberando assim camadas ocultas de significado.44 Burroughs viveu
na Downtown nova-iorquina no apogeu do punk. Muitas fotografias capturam-no nos clubes
da cena, ao lado de músicos e artistas, “um cínico e cômico padrinho dos punks da Nova
Iorque dos anos 1970” (GOFFMAN, 2004, p. 243).

44
Conforme explicado pelo escritor em "The Cut Up Method" (JONES, Leroi. The Moderns: An Anthology of
New Writing in America, 1963). A principal obra produzida por Burroughs através do método cut up é sua
Trilogia Nova, constante das novelas The soft machine (1961), The ticket that exploded (1962) e Nova
Express (1964), até hoje sem tradução no Brasil.
66

Figura 11 – Raymond Pettibon – “Six pack” (1981)

Fonte: <http://urbanhonking.com/plazm/2012/11/28/raymond-pettibon-punk-years-exhibit-in-
portland/>

Impulsionada pela popularização das máquinas copiadoras, a arte postal, inaugurada


pelo Fluxus, se estabelece como, conforme definiu Paulo Bruscky, uma “saída mais viável
para a arte: antiburguesa, anticomercial, antissistema” (FERREIRA, 2009, p. 374). Os
fanzines, produto da ética DIY – e da máquina de xérox –, originam “o artigo definitivo da
literatura punk” (BESTLEY; OGG, 2012, p. 118), modo preferido de comunicação e fórum
para troca de ideias dentro da comunidade – além de uma das principais expressões do design
gráfico rudimentar – ou anti-design – caracteristico do movimento, criado através de materiais
acessíveis como canetas, velhas máquinas de datilografar, Letraset (nos mais sofisticados),
revistas e jornais e, principalmente, tesoura e cola. “Veículo de comunicação das tribos
urbanas (...), o ‘zine’ é uma forma popular de publicação, acessível por seu baixo custo e
facilidade de produção/reprodução” (AYALA, 2012, p.1). Este tipo de publicação ajudará a
formar uma geração de críticos musicais. É que desde seu nascimento, o punk surge como
prática e teoria. A construção estética, ética e ideológica que o transformou de gênero musical
e subcultura em movimento artístico foi feita em coautoria entre aqueles que criavam e os que
pensavam e escreviam sobre a criação. Em Rip it up and start it again (2005) a extensa
pesquisa de Simon Reynolds sobre o pós-punk, o autor observa como o conceito do DIY
67

espalhou-se de forma viral, instigando as pessoas a lançar seus discos e fanzines, a organizar
shows em espaços alternativos criados por eles próprios. É nesse cenário que surgirá o punk
da segunda geração, também chamado pós-punk, abraçando o pluralismo e detonando o
formalismo minimalista dos três acordes ao contaminar-se com ritmos como reggae, funk e
disco. Para Reynolds, o pós-punk nasce da ruptura da frágil união entre juventude de classe
operária e a boemia classe média de aspirações artísticas que caracterizou os primeiros dias do
movimento. A primeira irá radicalizar-se em gêneros populistas como Oi! e hardcore; a
segunda, na vanguarda do que veio a ser conhecido como pós-punk, tão radical em suas
concepções políticas quanto a outra, mas diferentemente daquela, radical também na forma. O
crítico John Savage (1992) divide os dois grupos entre “realistas sociais” e “artísticos”.
A ideia de um “elemento arte” presente no punk foi expressa pela cineasta e jornalista
Mary Harron no livro de Savage, England’s Dreaming: Anarchy, Sex Pistols, Punk Rock, and
Beyond, a mais completa pesquisa sobre o punk britânico. Nos anos 1970, Harron havia sido
colaboradora da revista que emprestou seu nome à geração, tendo realizado algumas de suas
entrevistas mais marcantes. Na obra de Savage, ela afirma: “Havia algo sobre ele [o punk] que
era muito rigoroso. Sempre houve um elemento arte nele” (SAVAGE, 1992, p. 133). No
verão de 2011, escrevi a alguns teóricos que estudam as implicações sociais e o significado
estético e cultural do fenômeno punk, perguntando-lhes que elemento arte seria esse a que
Harron se refere. Nicholas Rombes, professor da Universidade Detroit Mercy e autor do livro
A cultural dictionary of punk, identifica um pensamento da arte conceitual na construção do
punk: a adesão a uma ideia única. Um conceito que é anterior ao produto. “Há um enorme
senso de formalismo no punk. Especialmente em bandas como Wire, Ramones, Pere Ubu, The
Slits, [em que] a música é quase estrutural. A adesão a uma única ideia”45. Rombes também
vê traços do minimalismo, “especialmente em termos de repetição”, e do situacionismo, além
da influência de poesia (em Patti Smith e Richard Hell) e do cinema de cortes abruptos da
Nouvelle Vague “de onde, alguns dizem, a música new wave tirou seu nome.” Caroline Coon,
artista, feminista, que trabalhou na imprensa musical (em revistas como Melody Maker e
Sounds) e foi das principais críticas a escrever sobre o movimento46 diz:

45
ROMBES, Nicholas. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice E desta
dissertação.
46
Atribui-se a Coon, em artigo publicado em 1976, a aplicação do termo do it yourself à cultura juvenil,
exortando uma geração inteira a criar por seus próprios meios. A expressão vem dos anos 1950, relacionada ao
uso de ferramentas e aparelhos domésticos para a melhoria da vida urbana.
68

“Arte é sinônimo de rigor. A presença da arte na música, nas roupas, nos


pôsteres, nas capas de discos e etc. é o que deu impacto ao punk. As pessoas
ainda estão discutindo o punk há trinta e seis anos, desde que o movimento
eclodiu em nossa cultura, exatamente porque a arte era fundamental para como
os jovens músicos se apresentavam. Muitas pessoas, como eu, que trabalharam
juntas para criar o movimento punk rock, haviam frequentado escolas de arte e
foram movidas pelo desejo de mostrar o que quer que fizessem com arte,
coerência e estilo. Músicos do movimento punk rock eram muitas vezes alinhados
ou inspirados por arte política do passado – arte da Revolução Russa, o
Movimento das Mulheres, Vorticismo, Situacionismo, Movimento Hippie – que é
uma das razões por terem sido bem sucedidos em criar seu próprio estilo original
e identificável.” 47

As ideias da vanguarda modernista, seus expedientes radicais, expressões da tradição


utópica do século XX que despreza a vida burguesa, não são estranhas aos criadores do punk,
conforme também nota Simon Reynolds:

“Havia muitos estudantes de arte envolvidos e até pessoas que não frequentaram
escolas de arte crescendo interessados nessas ideias, você saberia sobre
dadaísmo, surrealismo e coisas do tipo. Eu certamente sabia – sabia de dadaísmo
antes mesmo de saber do punk. Creio que ocorreram grandes exposições daquele
tipo de arte na Grã Bretanha no final dos anos 1960 e início dos 1970. O
dadaísmo também era conhecido por causa de coisas como Monty Python48, que
foi algo tremendamente significante no Reino Unido – um tipo de Beatles da
comédia. E a música dos anos 1960 em si mesma tinha um elemento dadaísta –
pense em "I Am The Walrus”49. Então não eram coisas particularmente obscuras
e algumas das pessoas envolvidas com o punk conscientemente sabiam daquela
história e como poderia relacionar-se com certos aspectos do que estavam
fazendo. Os futuristas eram um pouco mais obscuros, mas, novamente, se você
fosse um estudante de arte, como muitos punks eram, poderia muito bem ter
sabido sobre os futuristas.”50

Karen Pinkus, professora da Universidade de Cornell, autora do artigo “Futurism:


Proto-punk?” (2011), considera o movimento italiano fundado por Filipo Marinetti um
precursor do punk, graças ao desdém à alta cultura boêmia e o desprezo contra a letargia
47
COON, Caroline. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice C desta dissertação.
48
Grupo de comédia britânico formado por Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry
Jones e Michael Palin. Criadores da série Monty Phynton’s Flying Circus. O programa, transmitido pela BBC
entre 1969 e 1974, popularizou o humor surrealista do grupo na Grã Bretanha. O grupo também produziu uma
série de filmes que lhe traria fama internacional como Monty Python and the Holy Grail (1974), Monty Python's
Life of Brian (1979) e Monty Python's The Meaning of Life (1983).
49
Canção composta por John Lennon em 1967 e presente no filme para televisão (e depois álbum) Magical
Mystery Tour, exemplar da fase psicodélica dos Beatles em seus versos nonsense. Seu título faz referência a um
poema do escritor Lewis Carroll.
50
REYNOLDS, Simon. Entrevista I. [abr. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice D desta
dissertação.
69

burguesa e a nostalgia51. O futurismo foi o primeiro modelo intelectual para várias escolas
artísticas e literárias e forneceu um dos acontecimentos fundadores do modernismo, um
manifesto escrito por Marinetti, em 1909. Louvando a liberdade, o progresso tecnológico e a
anarquia, o movimento tem em sua base “uma exigência metafísica de transformação do
humano”, que contém uma atitude contraditória: “por um lado, a confiança no produto
burguês em sua formação irrompente; por outro, a rebelião aos esquemas desta mesma
construção burguesa” (BERNARDINI, 1980, p. 17). A contradição da vanguarda – confiando
e rebelando-se simultaneamente com a modernidade burguesa – é semelhante a do punk que
confronta o sistema dentro dele próprio, impulsionando sua lógica voraz de consumo que
empacota até mesmo a rebelião. Haveria outras características comuns entre punk e futurismo:
o aspecto multidisciplinar (com presença marcante da música); valoração do ruído; exaltação
da velocidade; impulso destruidor; atitude beligerante; exploração midiática. Ambos também
possuem uma aproximação ambígua com o fascismo. Explica Pinkus:

“Futurismo e fascismo desenvolvem-se juntos, organicamente, na Itália. A


relação entre os dois é absolutamente entrelaçada, mesmo que haja momentos de
negação de ambos os lados (...), certamente o futurismo "explorou" a mídia para
ganhar fama, principalmente em suas produções efêmeras, como suas seratas e
performances. O interesse do punk no fascismo foi, em parte, "projetado" para
chocar, mas o elemento projetado do punk não serve para o movimento como um
todo, entretanto, ele é idealizado historicamente. O interesse do punk no fascismo
é também altamente estético. Vestes apertadas, cabelos curtos, estilo militar,
roupas em contraste com frouxidão e cabelos longos, por exemplo. A violência
frequentemente tem sido parte da música ou da arte performática.”52

Na Inglaterra, as origens do punk estão carregadas da influência destes movimentos


transgressores, como aponta o crítico Stewart Home, autor que escreve uma história “maldita”
da arte e da cultura do século XX em livros como Assalto à Cultura – Utopia, subversão,
guerrilha na (anti) arte do século XX (1999). Para Home, um agitador da antiarte, integrante
da rede subcultural conhecida como neoísmo53, o punk se inscreve em uma tradição artística

51
Pinkus parece ignorar a importância da nostalgia no punk. A “nostalgia dos anos 1950”, como coloca Nicholas
Rombes (2009), está muito presente no imaginário dos anos 1970, exemplificado em filmes como American
Grafitti (1973), Grease (1978) e em muitas canções da década. No punk, ela aparece no resgate da figura do
delinquente juvenil, personificada anteriormente no cinema por Marlon Brando e James Dean. Os jeans
apertados e a jaqueta de couro dos Ramones, a música do grupo, um rock básico, minimalista e acelerado; a
escolha de temas dos anos 1950 em vários covers dos Sex Pistols; o fascínio do produtor do grupo Malcom
McLaren pela cultura rockabilly são exemplos da presença da nostalgia no punk.
52
PINKUS, Karen. Entrevista I. [abr. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico.
53
Coletivo internacional de aspirações neodadá radicais, criado a partir de uma rede de arte postal, em meados
dos anos 1970. As práticas experimentais do grupo incluíam a adoção de múltipla identidade, pseudônimos,
70

(ou antiartística) que remete às heresias medievais em sua contestação do status quo. Essa
linhagem passaria pelos pensadores da chamada tradição do Livre Espírito54, por escritores
“malditos” como Sade, Lautreamont e Jarry, atravessaria correntes modernistas utópicas
como futurismo, dadá, letrismo, surrealismo, situacionismo, Fluxus, arte postal, neoísmo,
chegando até movimentos anarquistas contemporâneos. Home, no entanto, reconhece certa
fragilidade na correção histórica de sua perspectiva, o que não o impede de formulá-la. Para
ele, o que une essas correntes é o desejo, não apenas de integração entre arte e vida, mas de
“todas as atividades humanas” (HOME, 1999, p. 16).

Embora a teoria specto-situacionista fosse conhecida de alguns indivíduos do


movimento punk original, a influência do futurismo, do dadá, dos
Motherfuckers55, do Fluxus e da mail art é mais óbvia e importante. Artistas
da mail art (...) envolveram-se com a música punk em seus primeiros
estágios. Foi através destes artistas que a influência do Fluxus se espalhou.
(...) Através das escolas de arte membros de bandas como o The Clash e
Adam and The Ants foram expostos à influência do futurismo e do dadá. O
aspecto retrógrado das escolas de arte britânicas, ambiente do qual emergiam
muitos dos punks originais, resultou numa familiaridade com as primeiras
manifestações da vanguarda utópica, assim como a ignorância de seu
desenvolvimento no pós-guerra (HOME, 1999, p. 126).

Outro autor que traçou conexões entre as vanguardas utópicas do século XX e o punk
foi o crítico musical Greil Marcus, ainda que, para Home, as teorias de Marcus sejam mais
uma construção fictícia do que uma pesquisa histórica. Lipstick traces: a secret history of the
twentieth century (2011) é a história secreta do punk, traçada com um batom de linhas
marcantes, mas facilmente apagáveis. Marcus observa que

(...) a teoria formal dadá de que a arte pudesse ser feita a partir de qualquer
coisa combinava com a teoria formal punk de que qualquer um pudesse fazer
arte. A lógica dadaísta de ater-se a toda trivialidade, ao lixo e às sobras do
mundo e então marcar um novo sentido na assemblagem (...) estava lá tanto
na música quanto no regime indumentário punk. (...) uma jaqueta punk de
Londres, 1977, podia parecer igual a uma colagem dadá de Berlim, 1918
(MARCUS, 2011, p. 186).

A herança do futurismo chega com a ira destrutiva e o apreço pelas sonoridades


metálicas. Os slogans contundentes têm sua inspiração no situacionismo. Dadá empresta a
colagem. As vanguardas da antiarte armam o cenário para o espetáculo punk, tendo em

plágio e pequenas ações subversivas de terrorismo lúdico, como “pegadinhas” e contrainformação (cf. HOME,
Manifestos neoístas/Greve da arte, 2004).
54
Segundo o autor, “as mais diversas heresias cristãs surgidas a partir do século XIII” (HOME, 1999, p. 18).
55
Grupo anarquista fundado em Nova Iorque, em fins dos anos 1960.
71

comum as palavras de ordem, o aspecto de contestação e negação ao consenso, a aproximação


com o cotidiano e o uso da colagem como linguagem que produz a crítica política.
Se musicalmente o gênero está associado à simplicidade dos três acordes e à
sonoridade distorcida, visualmente é a colagem que melhor traduz sua crueza e urgência.
Baseada no princípio da assemblagem, na combinação de objetos encontrados, a colagem foi
definida por Max Ernst como “o encontro de duas realidades distantes em um plano estranho
a ambas” (apud DANTO, 2007, p. 7). Apesar de praticada desde a invenção do papel, a
colagem irá ser associada com mais força ao século XX e às práticas de cubistas e dadaístas56.
Podemos considerá-la um dos primeiros gestos no sentido de aproximar o cotidiano da arte,
através do uso em colagens pioneiras de objetos banais como os tíquetes e as manchetes de
jornal. Com o desenvolvimento e a popularização das mídias impressas, a colagem tem à
disposição a produção visual massiva de revistas, jornais e impressos de publicidade com suas
imagens de poder: governantes, religiosos, marcas coorporativas, produtos de consumo.
Assim, ela se torna veículo privilegiado da crítica social, conforme provou o dadaísta John
Heartfield com suas potentes imagens que denunciam o elo entre capitalismo e nazismo na
Alemanha do entre guerras. As mutações da colagem – os objets trouvés dos surrealistas, a
Merz-bau de Schwitters, os eventos de Cage, as combine paintings de Rauschenberg – vão
permitir o nascimento da arte performática, conforme observa Glusberg (2009): da colagem
parcial e pictórica (imagens), passando pela colagem total e não-pictórica (assemblagens e
environments) e a colagem de mídias (eventos).

56
KRAUSS, Rosalind. In the name of Picasso. October, Vol. 16 (1981), p. 5-22.
72

Figura 12 – John Heartfield – “Adolf Der Übermensch” (1932)

Fonte: <http://www.johnheartfield.com/JOHN-HEARTFIELD-ART/MONTAGE/heartfield-adolf-the-
superman.html>

Figura 13 – Linder – “Orgasm addict” (1977)

Fonte: <http://www.goodbadmusic.com/2010/02/08/buzzcocks-orgasm-addict-7-uar-uk-1977/>
73

A colagem é o meio para a destruição criativa do punk, que desde a sua origem deseja
participar da cultura espetacular do entretenimento57, ainda que para subvertê-la, através do
choque, do horror e da abjeção. Mas a colagem necessita do corte antes de se realizar como
assemblagem, carregando em si um ato de destruição que precede o da criação, e nada poderia
ser mais punk: destruir para criar. Um desejo de “converter a arte em ação”, declarou o
agitador Malcolm McLaren (BOVE, 2010, p. 32), o produtor da banda Sex Pistols, através de
sua maneira de criar “destruindo coisas” (p. 42). Acionar a realidade através de uma ação
destrutiva, ou “construir pela destruição”, como chamou Tassinari (2006, p. 26) o
empreendimento moderno de estilhaçar progressivamente o naturalismo com seu “impulso
negativo” (p. 25), impulso que aparece também nas palavras de Richard Huelsenbeck, no
primeiro manifesto dadá alemão, quando exclama Não! Não! Não! contra o expressionismo
em sua incapacidade de expressar as preocupações vitais do artista moderno. O niilismo da
vanguarda está presente no gesto de corte da colagem, bem como no lema punk que conclama
a destruição.
Uma artista que representa bem a imagética punk na colagem é Linder Sterling. Ligada
à cena de Manchester, onde integrou a banda Ludus e criou a arte de discos e cartazes do
grupo Buzzcocks, Linder discute a condição da mulher na sociedade capitalista através de
criações que misturam imagens oriundas da pornografia e das revistas femininas com sua
publicidade de utensílios domésticos. As figuras femininas de Linder criticam a fetichização
da mulher diretamente, a partir de um deslocamento mínimo: a cabeça de uma modelo nua é
substituída por um eletrodoméstico e a mensagem está transmitida, inequivocadamente.
Pelos situacionistas, o procedimento foi chamado de détournement, um desvio de
elementos estéticos preexistentes, recolhidos a partir de apropriação, visando à construção de
novos sentidos. A crítica Ariella Yedgar analisa a aplicação do método em um “clássico” do
desenho punk, a arte para o single “God save the Queen” (1977), da banda Sex Pistols, uma
apropriação do retrato da rainha Elizabeth II feito pelo fotórafo Cecil Beaton. A imagem traz
os lábios da rainha perfurados pelo alfinete de segurança, violação ao símbolo mais
importante do Império (o single foi lançado durante as comemorações do Jubileu da rainha).
O alfinete se tornaria o ícone punk definitivo, uma peça tão pequena e, contudo, tão rica em
significados, expressando a repulsa, a recusa, a intrusão e a condição espiritual de arremedo
de toda uma geração.

57
Muito diferente da geração hippie, para quem o dinheiro representava o inimigo, os punks não parecem se
envergonhar da cobiça material.
74

As ideias da Internacional Situacionista tiveram grande influência em


estudantes de arte como Jamie Reid, Malcolm McLaren e John Stezaker. As
hoje icônicas primeiras colagens criadas por Reid para as capas dos Sex
Pistols foram o trabalho de um verdadeiro détourneur que redireciona
poderosos símbolos existentes em direção a uma leitura subversiva e assim
expõe a natureza ideológica do imaginário da cultura de massa e a usurpa
para objetivos críticos (SLADEN, YEDGAR, 2007, p. 173).

Figura 14 – Jamie Reid – “God save the Queen” (1997)

Fonte:< http://www.1stdibs.com/furniture/wall-decorations/prints/jamie-reid-god-save-queen-print/id-
f_853257/>
75

O escritor John Savage (1992) observa como as teorias situacionistas foram recebidas
na Inglaterra, uma década após serem germinadas na França, em fins dos anos 1950, como um
tipo de uma atualização filosófica e política da arte pop. Os primeiros textos do movimento
foram publicados em língua inglesa, em 1974, no livro Leaving the 20th century, com projeto
gráfico daquele que forjaria o desenho gráfico oficial do punk britânico, Jamie Reid, designer
dos Sex Pistols. Seguindo a tradição da vanguarda francesa de Baudelaire e dos surrealistas,
baseada “no inesperado, no bizarro, nos aspectos mágicos da condição moderna” que podem
ser experimentados “como revelações para aqueles que sabem como ler a cidade moderna”
(HARRISON, WOODS, 2011, p. 701), a Internacional Situacionista foi formada em 1957 e
teve seu ápice nos acontecimentos da Paris de maio de 1968. A partir de uma crítica
neomarxista, o grupo – usando de expedientes como o détournement, a deriva e atividades de
agitprop – buscava “a virada das condições sociais contra elas mesmas a fim de revelar seu
verdadeiro caráter” (ARCHER, 2008, p. 34). Para combater o que chamava de Sociedade do
Espetáculo, a sociedade do lazer que aprisiona o homem, Guy Debord, o principal teórico do
situacionismo, defendia uma teoria da não separação: entre as disciplinas, entre palco e
platéia; entre a vida e a arte. Só assim o homem romperia a identificação psicológica com o
herói, o que o levaria à atividade, à conquista da capacidade de revolucionar sua própria vida.
Em um dos inúmeros textos publicados na revista Internacional Situacionista, que teve 12
edições, Debord escreveu:

Antes de tudo acreditamos que o mundo deve ser mudado. Queremos a


mudança libertadora da sociedade e da vida em que nos encontramos
confinados. Sabemos que essa mudança é possível através de atitudes
apropriadas. (DEBORD, 2011, p. 701).

Cabe aos situacionistas usar os meios adequados e descobrir outros novos para sua
ação subversiva. Eles estão nos domínios da própria cultura (os veículos de massa, por
exemplo), mas sofrerão um desvio (détournement) e serão usados em favor da revolução.
Desde o fim dos anos 1960, as proposições situacionistas ecoavam na Inglaterra,
materializadas na criação de grupos como o King Mob, uma agremiação anarquista que
fetichizava violência revolucionária e cultura pop. As táticas de assalto midiático usadas com
os Sex Pistols pelo empresário Malcolm McLaren podem ser vistas como aplicações das
teorias situacionistas. Sua estratégia era o choque. Em visita à Nova Iorque, em 1974, quando
trabalhou para o New York Dolls (vestindo o grupo de vinil vermelho e associando-o ao
comunismo), McLaren foi profundamente impactado pela cena punk. De volta à Inglaterra,
76

explorou o estilo no contexto político da sociedade inglesa – mesmo em sua aproximação com
a arte, o punk britânico é político.
É importante lembrar que o movimento se insere em uma tradição de subculturas
juvenis, urbanas e proletárias que se sucederam na Inglaterra após a II Guerra Mundial (sendo
seus antecessores teddy boys, mods e skinheads), de alguma forma resumindo-as, conforme
apontou o sociólogo Hebdige, no seminal estudo Subculture: the meaning of style (1987).
Essas subculturas, cuja característica básica é a homologia, processo que concede
determinados valores a um grupo de objetos, devem ser “reinterpretadas como uma sucessão
de diferentes respostas à presença da imigração negra na Grã-Bretanha a partir dos anos
1950” (HEDDIGE, 1987, p. 29).

A sucessão de formas subculturais brancas pode ser lida como uma série de
adaptações estruturais profundas que simbolicamente acomodam ou
expurgam a presença negra na comunidade anfitriã. É no plano estético: nas
roupas, na dança, na música; em toda retórica do estilo, que encontramos o
diálogo entre negro e branco muito sutilmente e compreensivelmente
registrado, embora em código (HEBDIGE, 1987, p. 44-45).

A estética punk pode ser lida, para Hebdige, como fruto de uma relação racial, trata-se
de “uma tradução branca da etnicidade negra” (HEDDIGE, 1987, p. 64), uma resposta
codificada à cultura (ao patoá, à música, ao gestual) dos imigrantes negros, principalmente os
oriundos das Antilhas, das quais faz parte a Jamaica. Os imigrantes deste país que chegaram à
Inglaterra massivamente a partir do início dos anos 1950 trouxeram com eles sua cultura (a
religião rastafári – ela própria de caráter sincrético –, o consumo de ganja e os ritmos como
rock steady, ska e reggae) que rapidamente ganhou penetração entre jovens proletários
londrinos, sendo recodificada, dentre outros, no estilo punk.

Descrevendo, interpretando e decifrando estes códigos, podemos construir


uma oblíqua contagem das trocas ocorridas entre as duas comunidades.
Podemos assistir, encenadas nas superfícies carregadas das culturas
proletárias juvenis britânicas, uma história fantasmagórica das relações
raciais desde a guerra (HEBDIGE, 1987, p. 45).

Ao lado dos Sex Pistols, o grupo The Clash é um dos mais significativos expoentes da
subcultura punk que emergiu em Londres em fins dos anos 1970, ela própria uma versão de
um movimento estético, musical e comportamental que vinha acontecendo no submundo
artístico de Nova Iorque desde o início da década. Na canção “White riot”, primeiro single do
grupo, lançado em março de 1977, o vocalista Joe Strummer clama por sua própria revolta
branca, em referência aos conflitos raciais que haviam tumultuado o carnaval caribenho de
77

Notting Hill, no verão londrino do ano anterior, quando foliões iniciaram os tumultos,
provocados pela presença ostensiva da polícia. A canção foi interpretada por nacionalistas
neonazis como apologia da raça branca, mostrando o quanto a relação do punk com o
fascismo é cercada de ambiguidades. Para Dan Graham, ele “foi desenhado para aparecer para
a mídia liberal (primeiramente) como (ambiguamente) ‘fascista’” (2009, p. 57). A violência
das letras, música e dança, o uso da suástica e das botas militares; no ataque à hipocrisia do
liberalismo hippie, nada mais eficaz do que a adoção de símbolos e métodos fascistas.
Nicholas Rombes reconhece uma vontade de provocar a geração dos hippies, mas posiciona o
culto à violência como parte de um amplo cenário cultural de canalização dos sintomas da
recessão econômica (que poderia ser verificado em filmes como Desejo de matar e O
massacre da serra elétrica, ambos de 1974). Rombes pontua que “apesar de não possuir
temática nazista, a violência e o anti-humanismo desses filmes vem das mesmas condições
que deram expressão aos modos fascistas de algumas bandas punk”58. Reynolds encara a
adoção desses símbolos e gestos como expressão de choque e recusa:

“Uma expressão de traição, de aliar-se com o inimigo. Quando cresci, nos anos
1960 e 1970, filmes da II Guerra Mundial estavam constantemente na TV. A Grã
Bretanha era o herói, lutando contra os nazistas. Ao menos houve um tempo
quando nós, a brava pequena nação ilha, salvamos o mundo. Então, usar um
símbolo nazista era a coisa mais ofensiva que alguém poderia fazer em termos de
gesto, para a geração de seus pais, que havia vivido durante a guerra, perdido
parentes em combate, escondera-se no porão embaixo da cozinha durante os
bombardeios – este era o maior gesto de rebeldia, ofensa e repulsa que poderia
ser feito. Dick Hebdige argumenta que era uma falta de significado que pretendia
comprometer o poder de todos os símbolos e índices. Mas eu não acho isso, o
significado da suástica era muito fixo e deliberadamente exercido. Queria dizer
que você rejeitava os sacrifícios da geração da guerra, você rejeitava o orgulho
britânico em estar do lado certo da única Guerra Boa. Era traição.”59

No punk, que “nasce de um movimento de afastamento do consenso” (HEBDIGE,


1987, p. 132), a dissidência é radicalizada em resistência e recusa, atributos básicos de toda
subcultura, que, apesar disso, não está imune a posteriores diluições, incorporações e
(re)traduções. Um grupo assimila os códigos da cultura alienígena e os traduz, isolando-se em
um estilo de vida que, em um primeiro momento, não pode ser compreendido pelos grupos

58
ROMBES, Nicholas. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice E desta
dissertação.
59
REYNOLDS, Simon. Entrevista I. [abr. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice D desta
dissertação.
78

hegemônicos (pais, escola, polícia), que o condenam. Na etapa posterior, graças ao papel dos
veículos de comunicação de massa, o estilo transgressor vai sendo categorizado e diluído à
medida que sua imagem é cada vez mais difundida e explorada. Esse é o processo de
incorporação que, segundo Hebdige, acontece sob duas formas: (1) mercadológica: quando os
signos subculturais (roupas, música etc.) são convertidos em objetos de consumo de massa;
(2) ideológica: quando o comportamento divergente é categorizado pelos grupos dominantes,
seja a polícia, a mídia ou o judiciário (HEBDIGE, 1987). Passado o choque inicial, o punk é
enquadrado, estampa os jornais e gera notícias de TV (sua exportação mundial como
fenômeno juvenil só foi possível graças à cobertura massiva recebida na Inglaterra, país onde
a imprensa tem forte tradição tanto de excelência quanto de sensacionalismo), é transformado
pela indústria fonográfica em franquia de rebeldia, vira sucesso de vendas. No campo
ideológico “subsequentemente, o punk moveu-se em direção a uma aceitação intelectual, de
classe média alta. Logo, ele foi chamado ‘new wave’” (GRAHAM, 2009, p. 59). Para
Graham, a new wave é extensão e diluição do punk: signo subcultural convertido em
mercadoria (discos, hits radiofônicos, notícias, videoclipes) que irá ganhar o mundo para
chegar às margens onde novamente será traduzido.
John Savage observou como o consumo é a maneira pela qual os britânicos absorvem
as culturas juvenis, cultuando objetos específicos (o disco de 45 rotações, a botina, a jaqueta
de couro etc.) e fazendo das lojas os novos templos, o que ajuda a entender porque Malcolm
McLaren, antes de se lançar como produtor musical, foi proprietário de uma loja em King’s
Road, empreendimento mantido com a estilista Vivianne Westwood. De fato, a moda é uma
expressão que parece representar com precisão o estilo punk. Sartorial correctness (algo
como, “correção no vestir-se”), eis um dos lemas do punk londrino. A boutique de McLaren e
Westwood (que teve os nomes Let it rock; Too fast to live too young to die; SEX e
Seditionaries) contribuiu também para a associação do punk ao agressivo visual
sadomasoquista, criando o que Caroline Coon chamou de estilo punk rock arte.

“A estética coerente do que chamo de estilo punk rock arte é em função do fato,
frequentemente ignorado, de que foi criado por um ex-estudante de arte [Malcolm
McLaren] em oposição ao estilo hippie dos anos 1960. Adolescentes em Londres,
em 1976, consideraram que o movimento hippie tinha falhado, e o estilo que eles
inventaram era anti-hippie: tecido sintético, não orgânico; alfinetes, não
bordados; calças sob medida, não jeans; calças justas, não boca-de-sino; urbano,
não étnico; pesado, não leve; rígido, não fluido; e o mais significante, não Paz e
Amor, mas sim Ódio e Guerra! O estilo visual do punk é uma expressão de seu
contexto social. As condições sociais da época levaram ao pessimismo e
desespero juvenil. Observe a autodestruição, a vulnerável body art, os cortes e
79

piercings, o sangue como “decoração” da vestimenta e você vislumbrará a raiva


e a perda de esperança que o movimento punk tão corajosamente confrontava e
expressava!”60

Para realizar a rejeição estética ao mito dos 1960, expressando a crise e a perda de
referências, a geração punk adota, sobre roupagem sexualmente agressiva e chocante, uma
postura assexuada, constrição em oposição ao vale-tudo do amor livre. Os artigos fetichistas e
as suásticas, ambos característicos da moda punk, sofrem um processo de esvaziamento61.
Tais itens, imagens de violência, são devolvidos à mídia, forçando-a a expor sua natureza
conservadora, um movimento que “procura deliberadamente solapar as presunções liberais da
sociedade” (Graham, 2009, p. 57), “citando, de forma cartunesca, as imagens midiáticas, logo
representando violência e fascismo de segunda mão” (GRAHAM, 2009, p. 194). De fato, há
um distanciamento assexuado na maneira com que os trajes fetichistas são usados, uma frieza
calculada, “sentimento de que era tempo de rigor e clareza, disciplina e unidade”, como
definiu Simon Reynolds62.
Para Caroline Coon, a moda punk pode ser analisada como uma estratégia de
negociação e confrontação em relação ao poder. Feminista, Coon observa o fenômeno pela
ótica da diferença sexual.

“Como você acha que mulheres adolescentes poderiam confrontar a indignação


de sempre e somente serem consideradas "objetos sexuais"? Parte do paradoxo
da assexualidade versus sadomasoquismo é a função da ambivalência dos jovens
sobre sua própria sexualidade enquanto amadurecem à fase adulta – é um
aspecto da estratégia necessária para negociar e confrontar o patriarcalismo e a
misoginia.”63

O depoimento da artista revela mais uma camada na arqueologia do punk: sua


narrativa feminista, que Coon acredita ter sido “quase que totalmente ignorada pelos homens
brancos acadêmicos”.64 Desde os anos 1960, a segunda onda do feminismo vinha discutindo a
questão da mulher como indivíduo secundário na sociedade. O movimento ampliara as lutas

60
COON, Caroline. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice C desta dissertação.
61
Não é por acaso que essa geração tenha sido chamada de Geração Vazia, a Blank Generation, título de uma
canção de Richard Hell.
62
REYNOLDS, Simon. Entrevista I. [abr. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice D desta
dissertação.
63
COON, Caroline. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice C desta dissertação.
64
Idem.
80

focadas inicialmente no aspecto jurídico, em relação aos direitos legais das mulheres, para a
denúncia da opressão vivida por elas na quase totalidade de suas vidas: dentro do núcleo
familiar, nas relações de trabalho e na própria sexualidade. A arte (na qual o corpo feminino
vinha sendo exposto há 500 anos) e sua história também se apresentavam como locais de
confronto. Nos anos 1970, conforme colocou a crítica Griselda Pollock, “dois paradigmas
históricos se chocaram frontalmente: a modernidade e o feminismo”, expondo a “mentira
liberal” plasmada pelo movimento moderno que, “em busca de verdades universais, de
valores absolutos e da pureza estética”, havia julgado irrelevantes “o sexo e todas as restantes
formas de postura social” (POLLOCK, 2000, p. 322). Para as mulheres, todavia, “o sexo era a
coluna vertebral que sustentava as hierarquias sociais” (POLLOCK, 2000, p. 323) e o
feminismo propunha, através de arte e política sexual, sua repolitização, segundo a autora,
uma série de teorizações da diferença sexual com o objetivo de romper com os sistemas que
operam em conformidade com o uso explícito do sexo como eixo de hierarquia e poder.
O feminismo deve lançar um novo olhar para a História, para todas as coisas e suas
representações. Para a Teoria e a Crítica. É o que faz Caroline Coon ao confrontar a narrativa
do que ela chama de “esquerdismo pessimista do homem branco”, presente em muitas
abordagens do punk.

“A maioria das décadas capitalistas tem sido marcadas por críticas


subculturais que acarretam mudanças – cada crítica subcultural
torna-se uma inspiração e uma força propulsora para a crítica de
subcultura da próxima geração. O punk está muito vivo como agente
provocador de mudanças. A esquerda valoriza o elemento masculino
do punk, pois a narrativa masculina do punk é pessimista, o que
reflete o esquerdismo pessimista do homem branco exemplificados
nos escritos de Dick Hebdige. Na verdade, a narrativa feminista do
punk é quase que totalmente ignorada pelos homens brancos
acadêmicos. Por quê? Poderia ser o movimento de Libertação da
Mulher como expresso na narrativa feminista do punk uma revolução,
um acontecimento altamente bem sucedido, otimista e
esperançoso”?65

No punk, a repolitização do sexo é aparente na crítica à representação feminina na


indústria do entretenimento. O rock havia sido por duas décadas “uma afirmação ritualística
da identidade sexual do homem adolescente” (GRAHAM, 2009, p. 129), um terreno de

65
COON, Caroline. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice C desta dissertação.
81

machismo e misoginia66. Até a chegada do punk, à jovem mulher restava somente identificar-
se com a estrela de Holywood, objeto passivo para a contemplação masculina. Na Londres de
1977, as integrantes das bandas Slits, Raincoats, Delta 5, X-Ray Spex e Essential Logic
subvertem o papel da cantora sensual e passiva, com aspereza e agressividade raramente
associadas ao senso comum sobre o feminino. Elas tocam os instrumentos e cantam em
bandas que “desdenham o canto harmônico e propositadamente escolheram não ter um cantor
principal em favor de linhas vocais polivalentes e intercambiáveis divididas por todos no
grupo” (GRAHAM, 2009, p. 149).
A discussão da diferença social iniciada no feminismo mostrou que “o gênero, a
divisão do mundo em oposições antropologicamente estabelecidas entre homem e mulher,
suprime muitas outras formas de diferença” (POLLOCK, 2000, p. 326). Essas discussões
abordam o corpo como um espaço político, revelando a ficcionalidade das ordens sexuais e a
hipocrisia da moral convencional. Também podem subverter o sexo como eixo de hierarquia e
poder e, como em um détournement, transformá-lo em arma de choque contra as formas de
controle. Os discursos repolitizantes do sexo, somados à tradição da performance e da body
art – que vinha explorando o corpo como linguagem artística desde fins da década – e à
contracultura radical em sua aversão completa ao controle originaram um dos marcos
artísticos da era punk: a exposição Prostitution, do coletivo COUM Transmissions. O grupo
foi fundado pelo multi-artista Genesis P-Orridge (nascido Neil Andrew Megson), um ativista
adepto das estratégias de choque contra a moral convencional, através de performances
escatológicas e pornográficas, herdeiras da iconoclastia de dadá, da traquinagem do Fluxus e
do ritualismo dos acionistas. Tal qual o vienense Herman Nitsch, que encenava rituais
envolvendo corante vermelho e estripação de animais, o COUM Transmissions propunha
experiências totais que estimulavam os sentidos, uma forma de terrorismo estético baseada na
oposição violenta ao elitismo da arte elevada e consumista. P-Orridge também formaria as
bandas de Throbbing Gristle e Psychic TV.

66
Apesar do número considerável de mulheres em bandas, da presença de garotas na plateia e das ideias e
práticas feministas, a subcultura punk é também marcada pelo sexismo, não devemos nos iludir.
82

Figura 15 – COUM Transmissions – “Prostitution” (1976)

Fonte: <http://60yearscurating.wordpress.com/about/sex-sells-erotic-experience-and-controversy-as-
curatorial-method/>

Figura 16 – Gee Vaucher – “Bloody revolutions” (1980)

Fonte: <http://store.boo-hooray.com/product/gee-vaucher-crass-bloody-revolutions-unfolded-posters >


83

Montada no Institute of Contemporary Arts, em Londres, em outubro de 1976,


Prostitution apresentava instalações com absorventes internos usados, stripper e travestis e
páginas de revistas pornográficas com fotos da artista Cosey Fanni Tutti – registros de suas
performances. O Throbbing Gristle fez sua primeira apresentação na festa de abertura da
exposição. O som industrial da banda – pioneira no uso de maquinaria e aparato eletrônico
como instrumentação – foi descrito como “lixo pós-psicodélico” (REYNOLDS, 2006, p.
225). A moral liberal era afrontada de forma extrema em Prostitution e a opinião pública
condenou a exposição, causando um debate no Parlamento britânico sobre a questão do
financiamento público para as artes e inaugurando “a retórica da Nova Direita sobre decência
e os valores da classe média que dominaria a arena social nos próximos anos” (SAVAGE,
1992, p. 253). Savage vê Prostitution como um das primeiras exposições públicas das teorias
radicais em torno da arte da performance.
Outra teoria radical cuja exposição massiva aconteceu devido ao punk foi o
anarquismo. Baseada na liberdade humana irrestrita, essa doutrina utópica que advoga o fim
do Estado e das hierarquias sociais teve na figura do filósofo francês do século XIX Proudhon
seu primeiro grande divulgador. Anarquistas participaram de importantes lutas sociais e
políticas do século XX, combatendo o fascismo e a exploração capitalista. Na arte, o
movimento animara o surrealismo e o futurismo e nos momentos mais libertários da
contracultura dos 1960 está presente um inegável caráter anárquico. Mas foi um single
lançado em 26 de novembro de 1976, a estréia em vinil dos Sex Pistols, que popularizou
massivamente a ideia de anarquia. Anarchy in the UK não foi exatamente um sucesso de
vendas, mas, graças à exposição midiática promovida pelo empresário Malcolm McLaren e os
escândalos perpetrados pelo grupo67 a mensagem niilista da música espalhou-se entre a
juventude da Inglaterra, na qual o movimento nasce como produto do sistema de classes,
muito diferente da versão americana burguesa de rock como forma de arte. Muitos punks
ingleses viam com desconfiança um conteúdo musical que não fosse “propaganda direta,
realista e social” (GRAHAM, 2009, p. 70). Diferente de outras subculturas juvenis proletárias
ou da contracultura burguesa, muitos punks rejeitavam o comunismo e a tradicional forma de
governo das democracias de esquerda, bem como o capitalismo, recorrendo ao anarquismo

67
Para divulgar o primeiro single, os Sex Pistols, acompanhados do Bromley Continget (o Contingente de
Bromley, afastado subúrbio londrino que forneceu aos Pistols sua primeira base de fãs – o nome da gangue foi
dado por Caroline Coon), foram atração do programa Today, no canal Thames, em 1º de dezembro de 1976.
Após ser provocado pelo apresentador Bill Grundy, o guitarrista Steve Jones proferiu uma coleção de ofensas e
palavrões. O episódio daria início a uma série de banimentos e escândalos envolvendo os Sex Pistols,
irresistíveis para a imprensa sensacionalista britânica, que os explorou, um a um, ajudando a divulgar o punk em
todo o Reino Unido e de lá para o mundo.
84

como a única forma de pensamento político viável (O’HARA, 1999). O Crass é o melhor
exemplo do subgênero que ficou conhecido como anarcopunk. O grupo, formado em
Londres, em 1977, promovia as ideias anarquistas como forma de resistência, condenando as
práticas coercivas da direita e da esquerda. Ao recusar o controle, o indivíduo teria que tomar
a responsabilidade pela própria vida, criando uma ordem pessoal que recusa a noção popular
de anarquia como caos. A ação direta, envolvendo ambientalismo e direitos dos animais, e a
ética DIY, manifesta nos modos de apresentação, produção e distribuição das obras, estão
fortemente presentes na abordagem do Crass. Um dos alvos da crítica do grupo era o próprio
punk rock que, na escalada rumo ao sucesso comercial, compactuava com a ordem capitalista
da indústria do entretenimento. A artista Gee Vaucher é a criadora do design do grupo:
imagens em preto e branco carregadas de força política que estão entre as mais icônicas do
imaginário punk.
Não apenas na utopia anarquista a subcultura punk irá espelhar-se. As questões
políticas ao seu redor são complexas e mereceriam um estudo próprio. Para além da mera
estetização do fascismo, o punk moveu-se para a extrema direita, principalmente com sua
versão mais acelerada e violenta, o hardcore68, sendo associada ao neonazismo e a outros
movimentos xenófobos. À esquerda, uma gama de bandas de reputação neomarxista, como
Gang of Four e Scritti Politti, usaram a forma do rock’n’roll para expressar ideias políticas à
maneira do détournement situacionista. O tédio, uma temática bastante explorada pelos punks,
era também o assunto de muitas músicas do Gang of Four. Divertir-se é estar de acordo,
dissera Adorno (2010). A frase podia ser lida nas entrelinhas das canções de Entertainment!, o
primeiro álbum do grupo, lançado em 1979. Formado em Leeds por estudantes de arte e
associado ao selo Rough Trade, o Gang of Four cantava o vazio da existência no mundo do
consumo sobre base sincopada e crua de guitarra, baixo e bateria: Karl Marx encontra James
Brown que encontra Sex Pistols.
Bandas como o Gang of Four atacam o que Simon Reynolds chama de rockismo, a
postura macho-alfa heróica do rock – a mesma postura confrontada pelos Talking Heads ou
por bandas feministas como The Slits. Reynolds relaciona a aguda autoconsciência desta
geração de músicos com a “sensibilidade radicalmente autocrítica da arte conceitual dos anos
1970, em que o discurso acerca do trabalho é tão importante quanto os próprios objetos
artísticos” (2005, p. xxvi). Se as ideias da arte conceitual influenciam uma geração de
músicos, o próprio formato do rock seria explorado nas pesquisas de um dos grupos seminais

68
O hardcore, uma radicalização dos atributos originais do punk (velocidade, agressividade e crueza), também é
visto como uma resposta à diluição, multiplicação de estilos e exploração comercial da new wave.
85

do conceitualismo, o Art & Language, fundado no Reino Unido por Terry Atkinson, David
Bainbridge, Michael Baldwin e Harold Hurrell. O grupo editava um jornal de mesmo nome
cujo primeiro número foi publicado em 1969 e teve contribuições dos artistas americanos Sol
LeWitt, Lawrence Weiner e Dan Graham. Em fins dos 1970, o Art & Language retomou a
linguagem pictórica através de um viés conceitual e começou a lançar uma série de álbuns
com a banda Red Crayola (ou The Red Krayola), fundada por Mayo Thompson, no Texas, em
meados dos anos 1960. Corrected Slogans (gravado em 1973 e lançado em 1976) é o
primeiro da série. No disco, uma música rudimentar fornece o pano de fundo para longas
declamações teóricas sobre política e filosofia, slogans ativistas e citações. Se os Talking
Heads haviam atacado o rockismo despindo-se da vestimenta heróica e sexualizada do
roqueiro, livrando-se dos solos e cantando banalidades e o Gang of Four o havia feito ao
aplicar em sua música teorias marxistas que discutiam o próprio produto e os meios de sua
veiculação, nas experiências do Art & Language já não existe qualquer resquício de rock: não
há canção, refrão ou melodia, apenas improvisação e repetições, muitas vezes conduzidas de
forma amadora; não há canto, apenas um discurso crítico monótono; não há versos de amor
como I wanna wold your hand, mas aforismos estruturalistas como Language belongs to the
managers. A parceira entre Art & Language e Red Crayola, além dos álbuns, produziria os
vídeos And Now for Something Completely Different e Nine Gross and Conspicuous Errors
(ambos de 1976), esse último um karaokê com integrantes do coletivo e participantes
anônimos, citando Marx e Wittgenstein sobre a base de guitarra e baixo.

3.2 O JARDIM ELÉTRICO DE HO

Se há artistas e músicos que desconstroem o mito do rock, existem aqueles que se


interessam justamente por sua natureza mitológica. Nessa segunda categoria, um nome que se
destaca é o do artista Hélio Oiticica, através do qual nossa História (Roqueira) da Arte chega
ao Brasil. Até aqui, detive-me principalmente nos cenários dos Estados Unidos e da
Inglaterra, países profundamente associados à produção do rock. Devido, sobretudo, aos
interesses econômicos das grandes gravadoras que irão exportá-lo aos quatro cantos do
mundo, esse gênero musical também chegará ao Brasil, onde, graças às nossas características
culturais particulares, sofrerá processos específicos de tradução. Um deles é a Tropicália que,
intimamente relacionada com a cultura do rock inglês, é vista pelos apreciadores desse tipo de
86

música não como uma representante da chamada world music, mas saudada como uma escola
de vanguarda dentro da longa história do gênero (DUNN, 2007).
Em seu retorno ao Brasil depois de anos no exílio, Hélio Oiticica irá participar do
evento coletivo Mitos Vadios, organizado por Ivald Granato em um terreno baldio da Rua
Augusta, em 1978. No delírio ambulatório de Oiticica – vestido de sunga, peruca e camiseta
dos Rolling Stones – está a busca pela mesma suprassensação também encontrada na
performance dos roqueiros. Oiticica se identifica com essas figuras heróicas que vivem no
limite69. A produção de HO é determinante não só para a arte brasileira, mas para um dos
grandes movimentos de nossa música popular: o tropicalismo. E, se no início, nas subidas ao
morro da Mangueira, foi o samba que cativou o artista, com a mudança para o exterior o rock
seria adotado como elemento de sua criação. O apreço pelos movimentos sensuais do corpo,
as sensações exacerbadas e a marginalidade levou Oititica ao rock, ele o usou em seus
trabalhos e escreveu sobre ele70. HO comprova a natureza cíclica dessa relação.
Imerso na abstração geométrica do construtivismo, Hélio Oiticica integrou o
movimento concretista com o Grupo Frente até a cisão com a ala paulista. Os neoconcretos,
representantes do triunfo da sensibilidade sobre o racionalismo, realizam o que o crítico
Ronaldo Brito chamou de vértice e ruptura da consciência construtiva brasileira. A partir
deste ponto, Oiticica expandiu as aspirações formais do construtivismo para a sensorialiedade
do corpo, arrastando a pintura para o espaço com seus bólides, capas, penetráveis e ambientes,
e chamando o espectador para a participação, colocando-o como co-autor da obra.
Acompanhando sua produção experimental que trata de questões profundas da cultura
brasileira postas em diálogo com as práticas da vanguarda internacional, Oiticica produziu
muita teoria, foi um erudito, um escritor compulsivo cujas ideias até hoje balizam a arte e a
cultura brasileira. HO foi influenciado pelo avô anarquista, um apaixonado pela
marginalidade heróica dos que vivem fora do sistema, desafiando seu poder. Em interlocução
com a artista Lygia Clark e o crítico Mário Pedrosa e tomando os conceitos da fenomenologia
e do não-objeto71, o objeto especial que sintetiza as experiências sensoriais e mentais, corpo
transparente ao conhecimento fenomenológico, Oiticica percebeu que o corpo é o veículo no
qual transitam o pensamento e a arte, sem ele nada disso haveria. Afirmava que o que fazia
69
Para mais informações sobre a relação entre HO e o rock, escutar o arquivo em áudio da série “Tubo de
Ensaio”, produzida pelo Instituto Moreira Salles: O pensamento-rock de Hélio Oiticica, em que o crítico de arte
e doutor em história da arte Sérgio Bruno Martins discorre sobre o tema. O material pode ser acessado através do
link: <http://www.radiobatuta.com.br/Episodes/view/365.>
70
Alguns escritos de HO sobre o rock podem ser encontrados nos arquivos do Programa Hélio Oiticica, do Itaú
Cultural.
71
Teoria do não-objeto, texto de Ferreira Gullar publicado no Jornal do Brasil na ocasião da II Exposição
Neoconcreta, em novembro de 1960. Oiticica integrou o grupo a partir de 1959.
87

era música, síntese da consequência de sua descoberta do corpo. Daí o interesse no samba que
ouvia nas subidas ao morro da Mangueira, a favela onde Oiticica vislumbrou seus ambientes e
criou sua estética baseada na sensorialização das formas. Foi passista da escola de samba e
com profunda indignação viu seus colegas barrados na abertura da exposição Opinião 6572, no
MAM-RJ. Protestou com uma manifestação coletiva às portas do museu onde os sambistas
vestiram os Parangolés, obras emblemáticas de sua produção. Para o catálogo da exposição
Nova Objetividade Brasileira73, realizada em 1967 no mesmo museu, produziu um texto
crítico em que traçou o esquema geral da nova objetividade: 1) vontade construtiva; 2)
tendência ao objeto; 3) participação do espectador; 4) tomada de posição política; 5) tendência
pós-moderna; 6) reformulação do conceito de antiarte74 (FERREIRA, 2009, p. 154). Foi nessa
exposição que apresentou a obra “Tropicália”, um labirinto que continha dois de seus
Penetráveis. O termo seria sugerido pelo cineasta Luiz Carlos Barreto a Caetano Veloso para
título de uma das canções de seu álbum75 e acabaria por denominar um dos movimentos mais
importantes da cultura brasileira.
As ideias de HO fizeram eco em uma produção artística muito mais ampla, integrando
“a formulação de um movimento de vanguarda no Brasil” (BASUALDO, 2007, p. 12) e um
processo de revisão cultural que se desenvolvia desde o início dos anos 1960 e incluía as
experiências teatrais do Grupo Oficina de José Celso Martinez Corrêa em sua perseguição da
suprateatralidade, superação do racionalismo e síntese de todas as artes e não artes; o Cinema
Novo de Glauber Rocha, inimigo da estética folclorizante da esquerda ortodoxa; a ruptura
marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, que substitui a narrativa pelo estado de
delírio; a poesia da contracultura de Waly Salomão e Torquato Neto, conjugando filosofia e
popularesco; e, amplificando o pensamento de HO por cinco mil alto-falantes como só a
música poderia fazê-lo, as novas canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Essas obras
propunham uma “suma cultural de caráter antropofágico” (FAVARETTO, 2000, p. 26). A
antropofagia, essência da cultura popular brasileira, conforme já observado por Oswald de

72
Participaram da exposição, além de Oiticica, Antonio Dias, Carlos Vergara, Rubens Gerchamn, Roberto
Magalhães, Ivan Freitas, Adriano de Aquino, Pedro Escosteguy, Waldemar Cordeiro, Ivan Serpa, José Roberto
Aguilar e Flávio Império.
73
Com, além de Oiticica, Antonio Dias, Carlos Vergara, Rubens Gerchamn, Lygia pape, Lygia Clark, Glauco
Rodrigues, Carlos Zilio, Mário Pedrosa, Maurício Nogueira Lima, Sério Ferro, Waldemar Cordeiro, Flávio
Império, Geraldo de Barros, Nelson Leirner, Marcello Nitsche, Mona Gorovitz, Alberto Alberti, Ivan Serpa,
Sonia Von Brüsky.
74
Por tais proposições Hélio Oiticica não poderia também ser considerado um embreante? Perguntaria eu a
Anne Cauquelin se um dia tivesse a oportunidade.
75
Caetano Veloso (1968).
88

Andrade: uma forma de apreender, interpretar e reformular as informações que circulam no


mundo (BASUALDO, 2007).
Celso Favaretto, no estudo Tropicália: Alegoria, Alegria, aponta como a nova música
de Caetano e Gil, apresentada pela primeira vez no III Festival da Música Popular Brasileira,
da TV Record de São Paulo, em outubro de 1967, impactou o público de universitários que
não reconhecia uma postura política clara nas canções. Alegria, alegria, de Caetano, e
Domingo no parque, de Gil, que a tocou acompanhado por um trio de jovens roqueiros, Os
Mutantes, eram ambíguas e ainda incorporavam um instrumento proibido para a música
popular: a guitarra elétrica. Após o golpe de 1964, a música popular se tornara o veículo da
dissensão e expressão de um ideal nacional baseado na revalorização do folclore. Guitarras
elétricas eram símbolos do imperialismo. O trabalho dos tropicalistas, com sua “sensibilidade
moderna, à flor da pele, fruto da vivência urbana de jovens imersos no mundo fragmentário de
notícias, espetáculos, televisão e propaganda” (FAVARETTO, 2000, p. 22), visava articular
uma nova linguagem da canção a partir da tradição da música popular brasileira e da
modernização tecnológica, desarticulando as ideologias que tentavam interpretar a realidade
nacional e produziam uma arte panfletária, atenta no político-social, mas desinteressada na
experimentação.
A integração de recursos não musicais na forma e apresentação da música tropicalista
– letras, roupa, dança e o próprio corpo codificados na canção – torna-se essencial para o
projeto e provém, para Favaretto, “do trabalho conjunto que os tropicalistas realizaram com
Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Lygia Clark, José Celso” (FAVARETTO,
2000, p. 36). O tropicalismo nasce, segundo o próprio Caetano, das trocas com esses artistas e
a insistente tentativa de superar o subdesenvolvimento brasileiro, que acaba fundindo o cafona
ao tecnológico (FAVARETTO, 2000, p. 28). No livro de memórias Verdade Tropical, o
músico fala da relação entre músicos e artistas no Brasil do final dos anos 1960, em meio à
antropofagia revivida em pop dos tropicalistas.

Nara Leão (...) encomendou-nos, a mim e a Gil, uma música que tivesse
como tema ou inspiração um quadro do pintor Rubens Gerchman chamado
Lindonéia (...). Gil fez a música – um bolero entrecortado de iê-iê-iê – e eu
fiz a letra da canção (...). O quadro de Gerchman, por ser uma espécie de
crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalinguístico,
tinha parentesco direto com o tropicalismo musical, e a canção, nós
supúnhamos realimentaria sua carga poética. O quadro não fora o resultado
de uma influência do tropicalismo sobre o pintor: este havia chegado ali
resolvendo seus próprios problemas, dialogando com a arte pop. (...) Claro
que Tropicália, o nome, tinha vindo de Hélio Oiticica, com quem a essa
altura já tínhamos contato pessoal; e conhecíamos Antonio Dias, que fizera a
89

capa de PanAmérica de Agrippino e colaborara com Rogério na feitura da


capa do disco de Gil.76 (...) No auge do Tropicalismo, nossas relações com os
pintores foram fragmentárias e dispersas. (...) Assim, a sugestão de Nara
forçou uma espécie de parceira interdisciplinar curiosa, sem precedente no
tropicalismo. (VELOSO, 1997, p. 274)

A arte pop, tida geralmente como apolítica, não fica imune ao subdesenvolvimento e,
no Brasil, ela olha para o consumo de forma crítica. Rubens Gerchman e Antonio Dias,
criando imagens irônicas de figuras que parecem extraídas das histórias em quadrinhos, não
fogem da crítica social. Assim como não o faz José Agrippino de Paula, cujo livro
PanAmérica, uma epopéia contemporânea do império americano, apresenta uma mitologia
estereotipada, baseada nas estrelas de cinema, semelhante ao estrelato criado por Warhol, mas
com um viés subversivo e anti-imperialista. Oiticica, outro interessado nas mitologias
contemporâneas, sabe que a tomada de posição política é fundamental para a arte na América
Latina, aqui a vanguarda deve construir a transformação social. Seu estandarte “Seja
marginal, seja herói”, com o retrato do bandido morto pela polícia Cara de Cavalo, um
perspicaz comentário sobre a radicalização política que se instaura no Brasil, é usada no
cenário do famoso show de Caetano e Gil na Boate Sucata, em 1968, no Rio, fechada pela
polícia no auge da ditadura militar. O estandarte foi o estopim para a perseguição política que
levaria Caetano e Gil ao exílio. Em Londres, a dupla de baianos reencontraria Oiticica,
presente na cidade para a montagem de sua primeira exposição solo77. Lá o artista conhece o
escritor Jill Drower e outros integrantes do coletivo Exploding Galaxy. O grupo, herdeiro de
experiências artísticas coletivas como o Living Theatre78 ou a Factory de Warhol, era uma
comuna hippie multimídia “com ênfase na arte como parte de uma ambiência total”
(SALOMÃO, 2003, p. 82). Fundado em 1967 pelo artista filipino David Medalla79, o
Explondig Plastic apresentava seus happenings de música, dança e poesia em parques e no
circuito de clubes noturnos, locais como o UFO Club, templo do underground londrino, lar do
Pink Floyd de Syd Barret. A utopia hippie da Londres psicodélica e a construção da sociedade
76
PanAmérica (1967) é o segundo livro de José Agrippino de Paula, escritor, diretor de teatro e cinema e figura
lendária da contracultura brasileira. Gilberto Gil (1968) é segundo álbum do músico, acompanhado pelos
arranjos de Duprat e Os Mutantes em alguns rocks. A capa do álbum traz Gil de uniforme militar sobre faixas
coloridas psicodélicas, em clara referência aos Beatles de Sgt. Peppers. Rogério Duarte é um artista gráfico e
intelectual muito influente no tropicalismo. É autor dos cartazes, hoje “clássicos”, de Deus e o diabo na terra do
sol e Terra em transe, de Glauber Rocha. Organizou com Hélio Oiticica, em 1968, o evento “Apocalipopótese”,
realizado no Aterro do Flamengo, no Rio.
77
HO viajou na companhia do poeta tropicalista Torquarto Neto, embarcando em um navio no Cais Mauá 10
dias antes da instauração do AI-5. The Whitechapel Experience aconteceu entre fevereiro e abril de 1969, na
Whitechapel Gallery, com curadoria do crítico Guy Brett.
78
Companhia de teatro experimental fundada em 1947, em Nova York, por Judith Malina e Julian Beck.
79
Antes do Exploding Galaxy, Medalla esteve envolvido na Signals Gallery, um espaço dedicado à arte cinética
que apresentara, em 1965, a primeira exposição de Lygia Clark em Londres.
90

alternativa era traduzida na experiência do Exploding Galaxy. O corpo descoberto de HO não


poderia encontrar melhor lugar para se aninhar. Seu conceito de Barracão, “encontro para a
troca de ideias através da vivência comunal, ecoou nas próprias experiência e potências
criativas diversas do Galaxy nos campos da arte, teatro, dança e vestimenta” (ASBURY,
2007, p. 35). Como colocou HO, há uma semelhança comportamental, “o descrédito da ‘obra’
como algo estático ou mesmo objetal”, na experiência total a que ambos se entregam (apud
SALOMÃO, 2003, p. 83).
Outro fator comum nos projetos de HO e do Exploding Plastic é o interesse no
suprassensorial. Na cultura psicodélica ele aparece no uso de drogas visando à expansão da
consciência. Oiticica havia escrito, em 1967, um ensaio tratando do aparecimento do
supressensorial através de propostas artísticas baseadas na percepção total que o levariam à
arte ambiental. A suprassensação seria o dilatamento das capacidades sensoriais habituais
para a descoberta do centro criativo interior do indivíduo, sua espontaneidade expressiva
adormecida, condicionada ao cotidiano (SALOMÃO, 2003). Para Oiticica, os estados
alucinógenos são equivalentes à supressensação. Eles são alcançados pelo uso de drogas ou
por expedientes como a redescoberta do ritmo, da dança e do corpo, um retorno ao mito. Há
aqui uma sintonia entre a sensibilidade à flor da pele de Hélio Oiticica e rock com sua
mitologia do corpo e da dança, seu sacrifício ritualístico da vivência limítrofe.
Em Londres, Hélio Oiticica se familiarizou com o mundo do rock, frequentando
clubes da cena underground na companhia de Caetano e Gil. De volta ao Brasil, trabalhou na
cenografia de um show de Gal Costa, projeto abandonado quando ganhou bolsa da Fundação
Guggenheim. Ainda assim, compôs a capa do álbum Le-Gal, criando, no lugar da exuberante
cabeleira da cantora, uma fotomontagem em que vemos imagens de Caetano, Gil, Macalé,
James Dean, Lygia Pape, entre outras. Expôs no MoMA, na exposição Information e mudou-
se para Nova Iorque, onde viveu por oito anos80. Segundo Waly Salomão, a cidade
representou para o artista “a liberdade de afirmar e reafirmar” que o que fazia era música.

Mantendo simultaneamente seu ouvido coladinho nas estações de rádio e


saracoteando acelerado no gargarejo dos concertos de rock (“experiência
coletiva livre”) no lendário Fillmore East na Segunda Avenida, a um passo
de seu apartamento, ou no Madison Square Garden: “JIMI HENDRIX,
DYLAN e STONES são mais importantes para a compreensão plástica do
que qualquer pintor depois de POLLOCK!” (SALOMÃO, 2003, p. 29)

80
Para cronologia da vida de HO, consultar o sítio do Projeto Hélio Oiticica, através do link:
<http://www.heliooiticica.org.br.>
91

Figura 17 – Hélio Oiticica e Neville D’Almeida – CC5 Hendrix War (1973)

Fonte: <http://dailyserving.com/2010/08/liberated-women/benevento-eg-7/>

Como aponta Celso Favaretto em A invenção de Hélio Oititica, “tendo chegado ao


‘limite de tudo’”, HO aninha-se na Nova Iorque da Factory de Warhol e do cinema radical de
Jack Smith81, onde “leva ao extremo a marginalidade do experimental” (1992, p. 205). É lá
que o rock e as figuras de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Mick Jagger começam a ser
incorporados à sua própria mitologia. Em seu ninho-apartamento-babilônia em Christopher
Street, no West Village, concebe a ideia de um evento chamado “rock-dia”, acontecimento
que teria a medida do dia e incluiria a música de Alice Cooper, Elton John, Jimi Hendrix e
Rolling Stones. Nessas anotações, escreve que o rock não é mais um gênero de música, mas
um apelo à apoteose. No mesmo apartamento, fotografou personalidades em revistas e capas
de discos cobertas com linhas de cocaína, criando a série Cosmococas, em parceria com o
cineasta Neville D’Almeida, que chamou o programa de “quasi-cinema”: filmes não
narrativos projetados em slide em ambientes sonorizados e equipados com redes, colchões ou
81
Pioneiro do cinema underground norte-maericano. Diretor de Flaming Creatures (1963).
92

até piscina – pioneiras instalações. A cultura roqueira está presente na série: na música, na
imagem e na atitude escapista e socialmente alternativa de “estar se lixando” para as regras da
sociedade. As imagens nas Cosmococas incluem a do músico Jimi Hendrix, na capa do álbum
War Heroes (1972) e “CC5 Hendrix War” tem como trilha-sonora o mesmo álbum de
Hendrix. O disco de Frank Zappa Weasels Ripped My Flesh (1970) aparece na primeira
Cosmococa “CC1 Trashiscapes”, Yoko Ono é citada em “CC2 Onobjetc”, em que se pode
ouvir o rock furioso de “Midsummer New York” (do álbum Fly) e “CC6 Coke’s Head Soup”,
proposta com Thomas Valentim, parodia ao título do álbum dos Rolling Stones, Goat’s Head
Soup (1973). As Cosmococas também são uma derivação do uso de drogas, um meio de
acesso ao suprassensorial em que Oiticica “propõe novas formas de comportamento ligadas
ao cotidiano para liberar os indivíduos do que reprime suas possibilidades” (BERENSTEIN
JACQUES, 2001, p. 112). É um movimento semelhante ao “escancarar a cabeça” para fugir
do isolamento que Lennon encontra no LSD ou nas ideias de Marcel Duchamp. É a procura
pela abertura suprassensorial que une Oiticica ao músico e à plateia de rock, fazendo dele um
legítimo representante da contracultura.

Hélio tornou-se uma espécie de happening ambulante. Isso era bem o


espírito da época: lembremos Agrippino e Rogério [Duarte] querendo ser
personagens e não meros autores de uma obra genial; lembremos que o neo-
rock’n’roll inglês dos anos 60 e o próprio tropicalismo tinham muito dessa
ambição, e que a própria política “narcisista” de ideologizar a intimidade e
sexualizar os julgamentos dos atos públicos era algo da mesma natureza.
Mas Hélio levou isso a consequências extremas. (VELOSO, 1997, p. 426)

O extremismo de HO é a busca pela arte total, suprassensorial, colada à vida como em


um happening ambulante, sem limites ou categorizações, tão imaterial quanto a própria
música. Em entrevista a Aracy Amaral, em outubro de 1977, em Nova Iorque, o artista reflete
sobre os “blocos-experiências”, Ninhos e outros projetos de penetráveis que estava elaborando
na cidade:

Agora, a coisa para a Judite, eu disse assim um negócio que ela quase caiu
dura: “Ah, e você chamaria de que? De arte environmental?” Aí eu digo:
“Não. Pra mim, é música.” (...) eu disse isso pra alguém que chegou no
Brasil e disse que eu tava , “Ah, agora ele disse que estava fazendo música”.
Mas eu não tô. Eu disse assim: “Na realidade, a coisa que eu sei que é, é
música, não é mais como essa divisão de arte de músico, não sei quê, não sei
quê, isso não existe mais. Agora, eu... isso é música. Eu sei que a única coisa
que eu vejo relação com isso é música.” (OITICICA, 2009, p. 149-150)
93

Logo depois, de volta ao Brasil, no delírio ambulatório de Mitos Vadios82, com Mick
Jagger estampado na camiseta, talvez Oiticica encenasse gestos de recusa em aceitar aquele
país escatológico que encontrava ao voltar, gestos semelhantes à violência alienada das
danças dos punks. Aqui, o movimento começava a ser retraduzido nas realidades locais de
cidades como Brasília, através de filhos da elite com acesso a viagens e disco importados, e
São Paulo, onde uma juventude nascida no ABC paulista, filha de operários, viu na revolta
crua e violenta do punk uma forma de expressão. Com o fenômeno comercial do rock
brasileiro, a new wave chegava aos lares brasileiros através dos primeiros videoclipes exibidos
no Fantástico, na nova década que começava depois da abertura lenta, gradual e segura do
general Geisel.
Deu pra ti, anos 197083.

82
Evento organizado por Ivald Granato, na Rua Augusta, em São Paulo, em 1978. Participaram Hélio Oiticica,
Claudio Tozzi, Ana Maria Maiolino, José Roberto Aguilar, Antonio Manuel, entre outros.
83
Título de um filme dirigido por Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, em 1981, em Porto Alegre. Rodado em
Super 8, o longa retrata o cotidiano de jovens portoalegrenses nos anos 1970. Seu título foi inspirado em um dos
grafites surgidos nos muros da cidade.
94

4 O NOVO ESTETICISMO

Deu pra ti, anos 70.


A frase pichada nos muros da Porto Alegre de 1980 acenava para os novos tempos,
mostrando vontade de superar o passado. No Brasil, a década de 1970, além de ser o período
em que o governo militar sufocou com mão de ferro o gesto desesperado da guerrilha urbana,
está associada ao desbunde, fenômeno que é tanto uma resposta à violência repressiva do
Estado quanto consequência da politização apartidária e comportamental da Tropicália, do
hedonismo suprassensorial de Oiticica e dos excessos da contracultura. Diante do acirramento
da repressão política, restou o escapismo. O desbunde é a tradução do ideário hippie da
sociedade alternativa para o Brasil. Em virtude da situação política de exceção a partir da
instauração do AI-5, com o subsequente fechamento do congresso, institucionalização da
tortura e impossibilidade da organização coletiva – somada à defasagem das informações – o
que havia acontecido em centros da Europa e dos Estados Unidos em meados dos anos 1960
iria ocorrer no país quase dez anos depois. Dizer, portanto, que os anos 1970 enfim acabaram,
além de expressar o anseio pela abertura política, é também dizer que a era hippie acabou.
O Bom Fim, por onde circulam os protagonistas da nossa história – Lanes e Nazari,
Palombini e o Defalla – é o território das tribos urbanas de uma nova era, conforme o termo
cunhado por Michel Maffesoli (1998) para descrever os grupos com interesses e afinidades
comuns que vivem nas metrópoles. Hippies desbundados, emblemas da década anterior,
convivem com os novos habitantes da cena urbana, muitos deles herdeiros subculturais da
geração seguinte, a dos punks. A Miséria do Cotidiano, de Juremir Machado da Silva, é um
interessante documento histórico e teórico sobre essas disputas ideológicas e comportamentais
no bairro boêmio durante a década de 1980. O autor realizou um trabalho etnográfico,
perambulando pela geografia noturna do bairro, entrevistando muitas de suas figuras mais
singulares. Para o pesquisador, “o exame de um objeto tão pequeno, território e microscópico,
apresenta em plano condensado as grandes mudanças e os magníficos dilemas ocidentais das
últimas décadas” (SILVA, 1991, p. 35). As mudanças e dilemas a que Juremir Machado da
Silva faz referência dizem respeito à transformação de paradigmas históricos com o
surgimento do que foi chamado de pós-modernidade, um conceito que norteou o debate
crítico do período. O autor argumenta que o território bonfiniano dos anos 1980 é um reduto
da nascente pós-modernidade, na qual podemos verificar uma mudança de paradigmas
relacionada ao esgotamento das energias utópicas de referenciais marxistas. A pós-
95

modernidade redimensionaria nosso cotidiano, englobando uma mudança do reino do


universal ao do relativismo, terreno das negociações. Trata-se de uma modalidade
comportamental multifacetada, em uma época em que a informação ocupa o centro de todas
as práticas. Cada uma das tribos urbanas do Bom Fim de fins dos anos 1980, com seus estilos
de vida, práticas comportamentais e discursos específicos, representa, para o autor, exemplos
de novos e antigos paradigmas ideológicos e comportamentais. Os “modernos” são herdeiros
das utopias holistas e libertárias e acreditam na politização partidária; os freaks são apegados
ao desbunde e ao mito hippie dos anos 1960. Já a turma pós-moderna, frequentadora do Bar
Lola84 e do Ocidente, “dessacraliza velhos ídolos, despolitiza relações, abandona
ideologizações partidárias, investe na micrologia dos grupos e aposta na performance visual”
(SILVA, 1991, p. 44). Talvez Lanes, Nazari e Edu K não gostassem de se ver tipificados de
forma tão simplificadora, mas eles pertencem, sem dúvida, ao último tipo.
Não quero aqui apurar a pertinência histórica das ideias que formam o corpus teórico
da chamada pós-modernidade. Não pretendo questionar sua (já frágil) existência. Tampouco
abraçar suas teorias como absolutas, o que iria de encontro à própria natureza cética de sua
insistente dúvida da verdade. Tratar da pós-modernidade, esse conceito que hoje suscita cada
vez mais dúvidas e novas teorizações, ler os autores que a teorizaram, faz parte do processo
de entendimento de um contexto, da recriação do envoltório em que nosso objeto ocorreu. Ao
identificar algumas ideias relacionadas ao pós-moderno e sobrepô-las ao objeto desta
pesquisa, percebo que há uma singular identificação. Nos anos 1980, intelectuais e artistas
procuravam decifrar esse mundo que passava por uma revolução tecnocientífica, na qual a
utopia socialista fracassara; o consumismo se tornava a nova religião e a moral das massas; no
campo da teoria, o pós-estruturalismo ganhava terreno com sua desconfiança diante das
estruturas do poder e o feminismo fundia teoria e prática em uma luta que se tornou de todos
os seres humanos, e não apenas das mulheres. A arte, rompida com o dogmatismo histórico,
corrompida pelo mercado, multiplicada pelos meios tecnológicos, a arte onipresente, como
definiu Hobsbawm (1995), vai celebrar a morte da vanguarda. O debate crítico da década de
1980 foi alimentado por teorias de autores como Baudrillard, Foster, Habermas, Jameson,
Krauss, Owens, Said85, sem esquecer as obras dos artistas que materializaram essas mesmas
ideias. Difundidos pela indústria cultural através de livros, reportagens televisivas, matérias

84
Boteco que existia na Avenida Osvaldo Aranha, quase no cruzamento da Rua João Teles, servindo de posto
avançado, de ponto de encontro da fauna do Ocidente. Para entender o clima da espelunca, consultar conto deste
autor (FELIPE, Leonardo. Lola. In: Auto. Porto Alegre: Ideias a Granel, 2004, p. 51-56).
85
Textos importantes desses autores foram compilados por Hal Foster, em 1983, em The anti-aesthetic: essays
on postmodern culture, livro que se tornou referência no tema pós-modernismo (FOSTER, Hal. La
posmodernidad. Barcelona: Kairós, 1998).
96

em jornais, esses conceitos e práticas ultrapassaram a esfera acadêmica e ganharam as ruas,


tornado-se senso comum. Nominada, a pós-modernidade tornou-se um estilo de vida,
cotidiano revestido de uma nova qualidade crítica. Vivem-na nossos protagonistas, como
observou Silva a respeito do performático líder do grupo Defalla:

Edu K, 19 anos, guitarrista e vocalista do Defalla, é um símbolo da pós-


modernidade bonfiniana (...). Em termos de conteúdo, esses garotos do
Ocidente querem cor, sexo explícito, pornografia total, desobediência a tudo,
implosão de qualquer moral, iconoclastia religiosa. Destruir é a tarefa do
Defalla. Recomenda-se em letras beijar a serra elétrica86, pois o importante é
“chocar para revitalizar” (SILVA, 1991, p. 44).

É curioso pensar que estratégias de choque tão caras à vanguarda modernista possam
pertencer aos expedientes de um símbolo da pós-modernidade como Edu K. No processo de
revisão do passado, tudo é passível de reapropriação. Assim como os signos cristãos da
pintura figurativa e romântica que povoam as telas em Porquê Choras?. Esse evento
desimportante e esquecido borra fronteiras entre os mundos da arte e da música, reúne erudito
e pop, pintura e punk, maneirismo pictórico e performance; é impuro e pluralista. A
simbologia religiosa é esvaziada de qualquer sentido místico, retirada de seu contexto
original, retorna como kitsch e pop: o próprio pastiche, uma marca pós-moderna. Tal
procedimento, segundo Hal Foster, confirmaria a natureza neoconservadora do pós-
modernismo que “priva os estilos não só de seu contexto específico, mas também de seu
sentido histórico” (FOSTER, 1996, p. 37). Pensador de esquerda, Foster ecoa a voz de Fredric
Jameson (1997) em sua tese do pós-modernismo como expressão cultural do capitalismo
tardio. Ele contrapõe o pós-modernismo neoconservador à versão pós-estruturalista,
posicionada corretamente à esquerda, como sua escrita parece sugerir, em que o pastiche é
substituído pela desconstrução do objeto transformado em texto. Apesar das possíveis
diferenças ideológicas, nas duas abordagens a meta pós-moderna permanece a mesma: por em
xeque o “status do sujeito e sua linguagem, da história e sua representação” (JAMESON,
1997, p. 180). Um museu imaginário está à disposição de Nazari e Lanes: transpostos para um
cenário punk, os signos religiosos reaparecem descontextualizados, contaminados pela cultura
de massa em uma roupagem new romantic. Jameson caracteriza o pastiche como uma paródia
neutra, que perdeu seu senso de sátira e, de fato, não parece haver espaço para o humor em
Porquê Choras?, ele quebraria a frieza solene da apresentação. Com seu culto ao tédio e à
tragédia, a própria subcultura em torno do rock gótico – o darkismo que alimentava o

86
Referência à canção “Kiss the chainshaw”, do segundo disco do grupo, Defalla (1988).
97

imaginário dos artistas –, quando transposta para a condição social solar brasileira, carrega em
sua tradução um irreparável senso de pastiche.
Em um texto87 jamais publicado que visava apresentar o novo trabalho realizado em
conjunto pelos artistas, um papel datilografado em máquina de escrever contendo rabiscos e
correções à mão, podemos ler que os artistas decidiram “realizar um trabalho sobre um
suporte formal construído por meio dos ícones próprios da pintura”, a partir “da consciência
da perda dos valores básicos da arte, que foram deixados em meio ao nomadismo estético do
pós-modernismo”. A escrita tem o tom de um manifesto, e há uma inegável ironia no fato de
os artistas recorrerem a um meio tipicamente moderno para apresentar sua obra, uma resposta
ao pós-modernismo que condenam. Na transcrição do texto que chamei de Manifesto, os
trechos assinalados entre o sinal “~” indicam as anotações realizadas a lápis entre as linhas
datilografadas; já aqueles colocados entre parênteses são trechos datilografados que depois
foram rasurados, ideias descartadas pelos artistas.

87
LANES, Telmo; NAZARI, Rogério. Texto (“Manifesto”), 1985 (Fonte: arquivo Telmo Lanes).
98

Figura 18 – Manifesto Porquê Choras?

Fonte: Arquivo Telmo Lanes


99

Apartir [sic] da consciência da perda dos valores básicos da arte, que foram
deixados em meio ao nomadismo estético do pós-modernismo, procuramos
(materializar) ~ realizar um trabalho sobre um ~ suporte formal (a nossa
mensagem), construído por meios dos ícones próprios da pintura ~
assimilados pela ~ cultura ocidental e sua (relação com o reflexo) ~ extensão
no contexto ~ nacional. A busca de um discurso objetivo, poético e anônimo
em sua concepção, nos levou a pesquisa e o desenvolvimento de uma técnica
pictórica ~ de óleo sobre tela ~ de aparência maneirista. Tudo em função do
apelo visual desejado ~ e suas implícitas citações simbólicas na
determinação de [ininteligível] presente.

Assim transportamo-nos por referências intuitivas e diversas, da mitologia


individual justaposta a própria história da arte ~ na geral e intencionalmente
voltada a especulações contemporâneas da arte ~ Absorvido pela cultura de
massa ~ Usamos o conhecimento visual desenvolvido para formação de
imagens evocativas ~ por criação de ~ uma atmosfera emocional. A
recuperação da figura e todo seu potencial representativo ~ (significativo), ~
bem como o ~ valor projetual da composição.
(Arquitetamos) ~ Com ~ uma proposta de pintura cujo assunto é (passagem
do homem através) ~ a própria pintura como reflexo e instrumento ~ do
tempo, (e suas relações simbólicas que a arte desenvolveu) ~ para ver a si
mesmo num ciclo ad infinitum de reflexo.

Nossa pintura é figurativa, de (forte ideal) ~ espírito ~ naturalista, onde


cultuamos ~ todas as nuances ~ dos valores românticos até o grotesco, e com
liberdade expressiva para inclusão de visões e conceitos contemporâneos.
Fazemos na tela (uma superfície do inconciente [sic] social) um jogo
combinatório de imagens para a construção de idéias.

~ Apoiamos o entretimento de nosso discurso no conhecimento visual


absorvido pela cultura de massa, na reprodução foto mecânica, e com isto na
construção de uma atmosfera emocional para o assunto em questão na obra.

O que Lanes e Nazari não parecem perceber, revelando certa ingenuidade, é que o
saudosismo do suporte formal perdido na desmaterialização da arte, o retorno à pintura que
leva ao desenvolvimento de uma “técnica pictórica de aparência maneirista” que visa
conquistar o “apelo visual desejado”, a mitologia individual justaposta à história da arte, o
conhecimento visual absorvido pela cultura de massa, o culto ao romântico e o grotesco com
liberdade expressiva para inclusão de visões contemporâneas, tudo isso, essas ideias confusas
que emanam do palavrório, são todas elas formas do nomadismo estético nessa arte em que
tudo é permitido. Tais concepções e práticas integram um empreendimento pós-moderno: o
próprio pastiche da história. Procurar o suporte da pintura depois das experiências radicais da
arte com o corpo, a política, o espaço, depois de sua desmaterialização, voltar-se depois disso
à pintura, uma pintura de estilo que resgata seus próprios ícones passados é justamente
realizar a revisão histórica que permite o redirecionamento crítico da tradição. Sem perceber,
ao revisar o passado resgatando os ícones pictóricos, ao misturar pop e erudito e se deixar
100

absorver pelas referências da cultura de massas, a dupla está praticando alguns postulados do
pós-modernismo.
No campo da arte, o termo diz respeito especialmente a uma determinada leitura
reativa do modernismo (FOSTER, 1996), que se opõe a uma visão estabelecida, acima de
todos os críticos, pelo estadunidense Clement Greenberg, criador de “um paradigma de arte
apolítica, inflexivelmente ligado à alta cultura, que deslocou a ‘essência’ discursiva do
modernismo a partir do utopismo e da transgressão para a pureza estética” (p. 177). Erigido
no período da Guerra Fria, o discurso crítico que subtrai a política da arte, elitizando-a e a
reduzindo à pura forma, não poderia ser mais político: ele integra uma construção imperialista
que chega a partir dos Estados Unidos buscando a hegemonia também no campo da arte e da
cultura – seu objetivo: consagrar o expressionismo abstrato e a “arte americana” – e faz parte
de uma estratégia de dominação ideológica que vai incluir ainda o aparato da indústria
cultural. É contra uma narrativa de hegemonia que a leitura pós-modernista reage. Conforme
observou Linda Hutcheon (1991), o “modelo paradoxal do pós-modernismo é coerente com a
própria denominação, pois o pós-modernismo indica sua contraditória dependência em
relação ao modernismo, que o precedeu historicamente e, literalmente, o possibilitou” (p. 43).
A contraditória dependência baseia-se no fato de que, não houvesse a narrativa hegemônica,
não haveria talvez pós-modernismo, porque muitas das práticas a ele relacionadas já haviam
sido observadas na vanguarda do século XX, mas foram ignoradas em sua versão triunfante.88
Talvez o pós-modernismo não seja uma nova forma da prática artística, mas “um
redirecionamento crítico da tradição baseado no entendimento revisado do passado imediato”
(HARRISON, WOOD, 2011, p. 1014), uma maneira diferente de enxergar o passado, uma
atividade, sobretudo, crítica.
O conceito de pós-moderno já fora usado por Mário Pedrosa nos anos 1960 para
denominar a arte que, a partir da pop, encerrava o ciclo da arte moderna e cuja vocação
antiarte extrapolava o puramente artístico e avançava na esfera da cultura (FERREIRA,
2006), a exemplo das proposições de Oticica. O termo ganhou notoriedade em 1979, quando o
filósofo Jean-François Lyotard publicou A Condição Pós-Moderna (2009), um estudo sobre o
estatuto do saber nas sociedades desenvolvidas. Para Lyotard, essa condição se baseava na
incredulidade em relação aos metarrelatos que, nos tempos modernos, haviam construído as
grandes narrativas de heróis e perigos em que se sustenta a civilização. A própria ciência é um
desses discursos legitimadores (de verdade, bondade, justiça e beleza) que agora passavam a

88
Apenas um exemplo: a apropriação não deve sua existência ao ready-made de Duchamp?
101

ser encarados com desencanto, em um processo que levaria ao desmascaramento do


autoritarismo eurocêntrico imbricado na razão iluminista. Na arte (outro discurso
legitimador), o pós-modernismo não apenas sucede o modernismo, ele o confronta,
traduzindo a revolta contra o elitismo e a pureza e propondo a abolição do binarismo entre
alta e baixa cultura; celebra o kitsch, o pluralismo e o simulacro. Suas características são
ironia, pastiche e apropriação. O novo conceito é desenhado em um cenário no qual as
certezas da modernidade caem por terra, todos os estilos são permitidos e a obra de arte, que
chega à era do vídeo e da fotografia, perde enfim sua aura, como já vislumbrara Walter
Benjamin.89

4.1 NEW WAVE: A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA

O crítico literário marxista Fredric Jameson descreveu o pós-modernismo como a


expressão cultural do capitalismo tardio, terceiro estágio na evolução do capital. Relacionando
a mudança histórica do modernismo à mudança do capitalismo clássico para o capitalismo
globalizado das multinacionais, da tecnologia da informação e do consumo massivo, Jameson
aponta que a quebra radical que decreta o fim da ideologia, da arte e das classes “é muito
frequentemente relacionada com o atenuamento ou extinção (ou repúdio ideológico ou
estético) do centenário movimento moderno” (JAMESON, 1997, p.27). Categorizada pela
academia e explorada pelo mercado, a experiência vanguardista se exaure. Em uma cultura
sem absolutos, não há como determinar uma tradição, não havendo tradição, a existência da
vanguarda perde o sentido, pois são várias as direções para onde apontar.

Assim, a enumeração do que vem depois se torna, de imediato, empírica,


caótica e heterogênea: Andy Warhol e a pop art, mas também o
fotorrealismo e, para além deste, o “novo expressionismo”; o momento, na
música, de John Cage, mas também a síntese dos estilos clássico e “popular”
que se vê em compositores como Phil Glass e Terry Riley e, também, o punk
rock e a new wave (os Beatles e os Stones funcionando como o momento do
alto modernismo nessa tradição mais recente e de evolução mais rápida)
(JAMESON, 1997, p.27).

89
Em 1936, Benjamim escreveu o artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em que
identificava em formas de arte como a fotografia, passível de reprodução e, portanto, sem oferecer distinção
entre original e cópia, uma perda da “aura”. A aura estaria relacionada à singularidade, à inacessibilidade, à
distinção e às potencialidades rituais da obra artística. Cf. BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of
Mechanical Reproduction. In: HARRISON, Charles; WOOD, Paul (org). Art in theory 1900-2000. 13. ed.
Oxford: Blackwell Publishing, 2011, p. 520-526.
102

Por que Jameson escolheu o punk e a new wave como representantes pós-modernos da
recente tradição da música pop? Não seria uma música como o rap, que é baseada na técnica
de apropriação do sampling para a construção de suas bases rítmicas, um gênero musical mais
claramente relacionado às práticas tidas como pós-modernas como o pastiche e a colagem?
Como procurei demonstrar no capítulo anterior, o punk pode ser percebido como um
desdobramento da vanguarda utópica modernista, com seus condicionantes éticos e estéticos,
impulso negativo e estratégias radicais de choque. Além disso, enquanto gênero musical, ele
está profundamente ligado a noções de autenticidade, um valor que pode ser remontado ao
romantismo90. Jameson não explica as razões que o levaram a tais escolhas91. De toda forma,
gostaria de propor um exercício, uma espécie de digressão: em que medida o punk poderia ser
considerado pós-moderno?
Em um período de crises sociais, políticas e econômicas, o punk vai surgir em
metrópoles do mundo ocidental desafiando o mito da era hippie, cujo sonho transformador de
paz e amor fracassara. E assim como a vanguarda modernista fora absorvida pela própria elite
que procurava confrontar, o movimento hippie seria cooptado pelas grandes corporações e
ajudaria a esconder muitas das reais inquietações dos 1960, que são tanto sobre armas quanto
sobre flores – a violência da década diluída em uma bruma pacifista flower power. A
hipocrisia das presunções liberais da sociedade que camufla as formas de controle é desafiada
pelo punk: se ela é tão liberal quanto se apresenta, deverá tolerar o visual agressivo, o ruído da
música, a violência da dança. O punk é sincrônico à onda neoconservadora que levaria ao
poder Ronald Reagan e Margaret Thatcher, ele é fruto do mesmo ambiente social de
frustração, paranóia e individualismo. E a despeito da ligação com a modernidade
transgressora e utópica, esse fenômeno surgido nas ruas sujas do Bowery como uma
brincadeira de artistas e depois traduzido para a insulabridade britânica, na qual germinou na
tradição de subculturas juvenis e foi espalhado ao mundo através da mídia sensacionalista,
expressa em algumas de suas características a própria condição pós-moderna.
A começar pela relação com o passado; o olhar irônico com o qual ele é revisado. O
punk (assim como a new wave) vai resgatar dos anos 1950, de forma paródica e exagerada, a

90
Cf. TRILLING, Lionel. Sincerity and authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1972.
91
Talvez o racismo explique a escolha. Contemporâneo do punk, o rap (ou hip hop) surgiu, não em um ambiente
boêmio e intelectualizado de classe média branca como a Downtown de Nova Iorque, mas em zonas pobres da
cidade, habitadas por hispânicos e negros. Não quero sugerir que Jameson seja racista, mas que os processos de
exclusão e preconceito por quais passam os negros devem ter obscurecido o impacto desta música, que é tão
grande – ou talvez ainda maior – que o do punk. O rap parece ter levado mais tempo para conquistar
respeitabilidade acadêmica.
103

imagem do roqueiro rebelde. Esse resgate é contaminado com um olhar crítico que não
permite a adoração heróica e mitológica. Nicholas Rombes (2009) observa que estratégias
deste tipo foram adotadas no movimento como uma nova norma: a ironia em substituição à
sinceridade machista do rock progressivo e seu discurso pretensioso, virtuosístico. O
messianismo da era hippie é consequência de um levar-se a sério em demasia; a ironia
desmonta a pretensão do especialista, erode a seriedade que o poder sempre ostenta. “A
retórica punk foi calcada na ironia”, afirma Hebdige (1987, p. 63). Para o sociólogo, ela está
no cerne do discurso punk, na forma como ele ama ser odiado e no modo que percebe o
fracasso como um sucesso. O autor também destaca como os punks parecem ter parodiado a
alienação e o vazio com as danças mecânicas e descoordenadas, os acordes simplificados e a
apropriação dos símbolos de poder. De forma semelhante pensou o artista e crítico Dan
Graham (2009), quando afirmou que o punk respondeu ao ataque da mídia “literalmente
citando, de forma cartunesca, as imagens midiáticas, logo representando violência e fascismo
de segunda mão” (p. 194). Em uma estratégia semelhante à paródia dos personagens dos
quadrinhos feita por Lichtenstein, o punk faz a “representação da representação” (p. 193). Da
mesma forma, é com uma ironia distanciada que os Ramones cantam suas versões do inocente
rock’n’roll dos anos 1960, impassíveis e entediados diante da atmosfera de diversão dessas
canções.
Outro aspecto comum é que, pela ótica pós-moderna, o humanismo pode ser visto
como uma forma de manutenção de valores ocidentais homogeneizantes que sufocam as
diferenças; a sociedade igualitária e fraternal é uma ilusão inalcançável que disfarça uma
forma de controle sutil, já que muitos objetivos humanos são descentrados, provisórios e
heterogêneos (HUTCHEON, 1991). Em certa medida, o punk também contesta o humanismo
liberal ao questionar a ilusória noção de consenso. A adoção dos símbolos nazistas por muitos
punks é uma afronta à tradição humanista da Europa, uma traição inadmissível que revela a
dificuldade (impossibilidade?) do consenso liberal. O punk político, que combate
radicalmente tanto a esquerda quanto a direita, acaba por deflagrar um dos problemas centrais
levantados pelo pluralismo: a sociedade democrática e liberal deve realmente dar voz a toda
expressão cultural? Em um mundo pluralista até mesmo os nazistas têm o direto de se
expressar e todas as vozes, mesmo as mais abjetas, podem cantar. Isso é o que parece nos
dizer o punk. A ética DIY, que desafia os meios de produção e distribuição do capitalismo
corporativo, também traz em seu amadorismo pró-ativo uma expressão autêntica de
pluralismo, marca pós-moderna: qualquer um pode fazer qualquer coisa, basta desafiar a
excelência. A atitude desafiadora à autoridade intrínseca à ética DIY poderia também ser
104

comparada à descrença dos relatos edificantes da pós-modernidade. Para o punk, “o


amadorismo honesto é preferível ao profissionalismo corporativista” (GRAHAM, 2009, p.
75). De forma amadora, o punk produz seu ingresso na sociedade espetacular, desprezando o
academicismo e a técnica. O desafio à ordem simbólica se dá pelo ruído, seja na distorção das
guitarras ou no rasgo da colagem. Faça você mesmo, o gesto desinibido e invasivo que
provoca a rasura na escrita da narrativa oficial.
O teórico Hans Belting (2006) aponta como “o fim da história da arte” a falência dessa
narrativa mestra e unificadora – tal qual um dos metarrelatos apontados por Lyotard – em dar
conta da multiplicidade da produção contemporânea e de suas novas e simultâneas narrativas.
O fim da história da arte não significa o fim da arte, mas trata-se da observação de que na arte
e em sua história delineia-se o fim de uma tradição. A história da arte vê desintegrar sua
própria lógica interna, descrita a partir do estilo de uma época e de suas transformações, à
medida que a arte se dissolve no campo da cultura. Belting chega a falar de uma “história da
arte na época da cultura de massas” (p. 110), em que a arte disputa espaço com a publicidade
na estetização de nosso ambiente: a cultura massificada não é apenas um tema da arte, mas
sua rival. Surgem assim diversas histórias da arte, tão variadas quanto as formas artísticas
contemporâneas. Nesses novos tempos, desaparece também a formação intelectual e a
paciência para o exercício cultural obrigatório e

(...) surge o desejo pela cultura como entretenimento, que deve causar
surpresas em vez de ensinar, que deve desencadear um espetáculo no qual
participamos de algo que não mais compreendemos. Os artistas ajustam-se a
esse desejo, segundo o “do-it-yourself”, e apresentam inclusive a história da
arte, segundo a palavra de ordem do remake, tão jocosamente e sem respeito
que desaparece aquela timidez surgida diante da fisionomia
irrevogavelmente histórica dela (BELTING, 2006, p. 26).

Artistas ajustados ao desejo de participar da cultura através do do it yourself, o lema


filosófico do punk. A história da arte reapresentada de maneira irônica, sem reverência pela
tradição. A criação de uma mitologia individual justaposta à história da arte e impregnada da
cultura de massas. O novo paradigma cultural que Belting vê surgir parece, de alguma forma,
dar conta da experiência desta pesquisa. Quero crer que a nova tradição sobre a qual escrevo,
olhando retrospectivamente do punk para as práticas da vanguarda e, a partir dele, para as
implicações da contaminação da arte com a cultura de massas e da contestação da história e
sua representação, essa revisão crítica do passado, pode incluir nosso objeto de estudo, este
desimportante evento.
105

Não seria a apropriação dos ícones românticos e grotescos da pintura em Porquê


Choras? o próprio remake da história? Uma busca por temas heróicos ou mitológicos, a
figuração eloquente que alude às representações do passado, questão fundamental da pintura
que retorna na década de 1980 (CANONGIA, 2010). Reproduzidos à maneira acadêmica,
usando materiais nada nobres (papelão, piche, tinta esmalte e PVA) em pinturas que parecem
debochar da herança modernista de genialidade individual, afinal foram criadas em dupla, os
símbolos românticos (manto vermelho, rosas, corrente, pregos e martelo) são “remixados”,
saem do bidimensional, viram objetos, gestos, ambiente, desenho escultórico, cerimônia. “E a
gente não queria fazer a coisa em silêncio, obviamente”92. A música chega como mais um
elemento nessa enorme colagem viva. A colagem que já foi chamada aqui de expressão visual
do punk e paradigma do contemporâneo é também a linguagem principal de Porquê Choras?.
O procedimento inaugurado por Picasso e Braque paradoxalmente fundamenta a produção
pós-moderna (TASSINARI, 2006): a mais importante criação da arte moderna é o conceito
principal da arte que vem depois dela, expondo a contraditória relação de dependência.
A colagem é também, segundo Renato Cohen (1989), a linguagem usada pela
performance, produzindo o que o autor chama de anti-Gesamtkunstwerk. Diferente da obra de
arte total de Wagner, em que os elementos são agregados de forma harmônica, a performance,
através da colagem, opera por justaposição, revertendo a proposta wagneriana original da
interdisciplina como caminho para uma arte total. Não há “uma retórica do contínuo ou do
linear: vários programas podem acontecer simultaneamente” (GLUSBERG, 2009, p. 64). É
essa simultaneidade que vemos em Porquê Choras?. Ainda que o projeto tenha a pintura
como foco e não interesse a Lanes e Nazari as questões do corpo visceral, a performance –
através da colagem – é o meio que permitirá a materialização dos ícones próprios da pintura
de modo a expandi-la; que possibilitará a adição da música e a participação do público no rito
final no qual, ao invés do pão, é servido um bolo de chocolate ornado com flores açucaradas
(e nada poderia ser mais kitsch). Diferente da obra de arte total, no entanto, com sua
ordenação harmônica de elementos sonoros, textuais e visuais, a totalidade da performance
não é coreografada, há espaço para o improviso e a construção de sentido que se articula com
a justaposição dos elementos é menos determinada, mais aberta.
A performance vai irromper no Brasil93, com o devido atraso, sob condições
semelhantes ao surgimento do punk, ambos são frutos de desencantamento e compartilham o

92
LANES, Telmo; NAZARI, Rogério. Texto (“Manifesto”), 1985.
93
Cabe lembrar o trabalho de pioneiros como Flávio de Carvalho com suas experiências urbanas e sociais
realizadas em fins dos anos 1950; os happenings do Grupo Rex de Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Carlos
106

mesmo sentido de resistência. A performance é, para Cohen (1989), a canalização no teatro –


disciplina de onde ele a aborda – “do pensamento estético-filosófico” que se irradia do
movimento punk e da new wave (COHEN, 1989, p. 154). Quando essa modalidade de arte
começa a impor-se no país como linguagem há, para o autor, uma identificação com a cultura
underground e a contracultura, uma tentativa do teatro de romper com a representação e se
aproximar da vida. Cohen posiciona a performance no limite entre as artes plásticas e cênicas.
Nos anos 1980, no Brasil, ela se apresenta como uma consequência do happening de Kaprow,
entretanto com um aumento da preparação em detrimento do improviso e da espontaneidade
(COHEN, 1989). Aguillar e a Banda Performática, Ivald Granatto (organizador do evento
Mitos Vadios), Guto Lacaz, Otávio Donasci (com suas emblemáticas videocriaturas) são os
artistas que, naquela década, passam a explorar a performance a partir do campo das artes
plásticas. Denise Stocklos, os grupos Ornitorrinco e Manhas e Manias e o próprio Cohen o
fazem a partir do teatro. Em 1982, Cohen integrou a equipe piloto de “animadores culturais”
(COHEN, 1989, p. 21) que faziam a programação do recém-criado Sesc Pompéia, quando foi
lançado o I Evento de Performances e o I Festival Punk de São Paulo94. Em 1983, promoveu
um show punk na festa do diretório acadêmico da ECA, onde também apresentou sua Dr.
Jericko em performance. O clube noturno Madame Satã, palco principal da cena dark
paulistana, abrigou muito dessa movimentação, assim como os espaços Carbono 14 e
Napalm, onde “assiste-se a performance, videoclipes e aos grupos de rock new wave
tupiniquins” (COHEN, 1989, p. 32). Em 1984, a performance está incorporada ao cenário
artístico brasileiro, “o eixo Rio-São Paulo”, tendo virado “uma espécie de moda” (COHEN,
1989, p. 33). A partir daí, Cohen observa que ela é absorvida pelas formas artísticas mais
tradicionais.
Isso é o que parece ter ocorrido com nosso objeto de estudo. Em Porquê Choras? a
performance é um veículo para chamar a atenção para a pintura, uma forma muito mais
tradicional de arte. É uma ampliação dos ícones da pintura, mas também um modo de
apresentação dela própria que literalmente a amplifica. Pense nas notas amplificadas da

Fajardo, José Resende, Frederico Nasser, nos anos 1960; as investigações sobre o corpo de Antônio Manuel e
Hudinilson Jr., nos 1970 – além do interesse pela arte processual de Lygia Clark, os experimentos sensoriais de
Oititica e a atuação política de Arthur Barrio. Cf. SANTOS, José Mário Peixoto. Breve histórico da
“Performance art” no Brasil e no Mundo. In: Revista Ohun, ano 4, n. 4, p. 1-32, dez. 2008.
94
O festival também foi organizado pelo escritor Antônio Bivar e o músico Callegari, guitarrista da banda
Inocentes. Apelidado de “O início do fim do mundo” (ALEXANDRE, 2002, p. 72), esse “grande festival punk
multimídia” (idem) apresentou shows de vinte bandas (dez da capital e dez do ABC), exposição de fotografias,
mostra de fanzines, exibição dos documentários, venda de discos e o lançamento do livro O qué é punk, de Bivar.
O evento, em que compareceram “três mil garotos do subúrbio” (ALEXANDRE, 2002, p. 72), terminou
marcado pela violência de brigas e prisões.
107

guitarra de Edu K, tocadas simultaneamente à construção dos ícones pelos artistas, ícones que
são transpostos do bidimensional da tela para o tridimensional da escultura e do objeto. Além
do mais, há um aspecto celebratório e espetacular nesse evento que pretende apresentar à
sociedade – o pequeno underground da cidade – a nova produção em dupla dos artistas. Uma
ironia se pensarmos que o sofrimento de Cristo é um dos temas principais do evento. Nesse
aspecto, há uma identificação direta entre os praticantes da performance da geração de Renato
Cohen e nossos artistas. Uma mesma visão romântica do mundo que também os coloca lado a
lado com os punks, que naquele momento são os que melhor captam o “astral” (COHEN,
1989, p. 144), usando a mesma gíria datada do autor para se referir ao envoltório de
desesperança dos anos 1980, marcado por niilismo, esquizofrenia e ruído.
Ou como colocou o teórico Nicholas Rombes: “o punk é, acima de tudo, uma postura,
uma maneira de estar no mundo, uma performance” (ROMBES, 2009, p. 55). A ideia de
Rombes pode ser justaposta ao depoimento de Telmo Lanes sobre a razão de Porquê
Choras?:

Figura 19 – Estudos

Fonte: Arquivo Telmo Lanes


108

Figura 20– Fotolito Jesus

Fonte: Arquivo Telmo Lanes

É uma maneira de pensar as pinturas. As pinturas são o grande lance, tanto é que
elas ficam lá, são o ápice do acontecimento. O que se inventou, eu acho que é
acender mais faróis sobre a pintura. Se ampliou a pintura com isso aí. Além da
pintura, tu via uma outra coisa: uma postura.”95

Um pensamento materializado sobre a pintura. Uma postura: tomada de posição diante


dos problemas da pintura que ressurge impregnada pelas questões da arte conceitual; diante
das limitações do sistema das artes local e da condição cultural periférica em um mundo
acelerado pela rapidez da informação circulante. Além disso, uma postura que também visa
colocar a vida em estado de arte perpétuo, um fenômeno mais que artístico: filosófico, erótico
e social. O apagamento das linhas entre os campos da pintura, do teatro, da escultura e da
música só é possível porque antes já foi apagada a linha que separa a arte da própria vida, já
foi realizada a live-art, arte ao vivo e arte viva que estimula o espontâneo e busca resgatar

95
LANES, Telmo. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice A desta dissertação.
109

características rituais, tirando a arte dos “espaços mortos” como os museus, “um movimento
de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética”
(COHEN, 1989, p. 38).

“Eu e Telmo estávamos fazendo um trabalho que agradava a um público jovem,


esse público sedento por coisas novas, de novidades na música, nas artes, nosso
trabalho se encaixava. As pessoas gostavam muito porque a gente fazia uma
crítica a determinados valores, uma forma de sair daquela coisa determinada e
de se rebelar, um pouco da rebeldia. Não tínhamos uma filosofia, era uma
atitude. E por conseqüência, veio a coisa do rock, de um clima deprê daquela
época. A gente andava muito de preto. Tinha um modismo da época, os punks e os
góticos emergindo em algumas partes do mundo e agente entrou nessa
corrente.”96

Rogério Nazari fala de sua arte como uma forma de crítica aos valores da moralidade
da classe média, uma forma de ação, uma atitude (sinônimo de postura) sem pretensões
filosóficas que está conectada a estilos emergentes internacionais de comportamento e
consumo, reflexos do envoltório daquele tempo. Um desejo de comunicar com algo que está
fora, um ato de marcar uma diferença, de discordar. Assim, a arte dessacralizada que não é
mera estética se torna um meio de estar no mundo. A crítica à ordem é expressa no
comportamento, não está no nível macroscópico da política organizada, mas no diminuto
espaço das relações sociais e afetivas. Uma política de transgressão cotidiana “de quem não
aceita o compromisso com a linearidade comportamental. Ou vive à superfície” (SILVA,
1990, p.51). Não se trata de política tradicional, partidária, participativa e profunda, mas de
uma política de ambições microscópicas e individuais. E, paradoxalmente, com a arte tendo
superado a estética, o cotidiano estetiza-se. É disso que trata o relato etnográfico de Silva pelo
Bom Fim quando se refere ao grupo que o autor chama de pós-moderno.

O apelo estético está em cada gesto. A arte bonfiniana é performática. Vale o


happening, a inserção da vida no artístico, a representação de cada ato, a
negação da divisão palco/platéia. A contracultura dos 1960, nessa ótica, foi
tomada pelo establishment, por isso já não serve. O momento é de
incorporação da informática, do digitalismo dos signos, onde tudo se articula
(SILVA, 1991, p. 46)

É no Bom Fim que Silva irá encontrar os praticantes do que chamou de novo
esteticismo, os que carregam o apelo estético em cada gesto, que redimensionam o cotidiano

96
NAZARI, Rogério. Entrevista sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2013]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
110

miserável, recusando o institucional. Naquele espaço, naquele tempo, Nazari, Lanes,


Palombini e o Defalla conectaram-se na criação artística por compartilharem a mesma visão
punk sobre a vida e a arte: irônica, dessacralizada, superficial, antimetafísica. O território do
Bom Fim – do ateliê de Lanes, o Lola e o bar Ocidente, espaços de criação, diálogo,
intoxicação – foi onde nossos personagens foram observados por Silva para comprovar sua
tese sobre os novos paradigmas que se estabeleciam. Todavia, o conceito de novo esteticismo
empregado para definir a aspiração existencial dos pós-modernos, seu modo de realizar a live-
art, não é claramente explicado no livro. Silva o utiliza brevemente em um capítulo no qual
recorre à transcrição de depoimentos e há pouco espaço para explanações teóricas justo no
ponto em que apresenta o conceito que tomo emprestado. Mais de trinta anos após a
publicação de A Miséria do Cotidiano, entrevistei seu autor pedindo que esclarecesse como
havia cunhado o termo novo esteticismo:

“Isso tinha um pouco a ver com as leituras de alguns escritores que iam da
Virginia Woolf, passando pelos pré-rafaelitas ingleses, toda uma turma que tinha
feito uma reflexão sobre o esteticismo. Uma concepção esteticista da vida, a
forma como algo fundamental na vida, a estética como um valor de organização
da vida. Então era mais uma vez um pólo de tensão com os modernos que só
pensavam o ideológico e que de certa maneira desprezavam o estético. O estético
era visto como frivolidade, como uma coisa pequeno-burguesa menor. A
influência era mais essa coisa do esteticismo inglês, teorizado por uma série de
grandes escritores e até de economistas, como John Maynard Keynes, que era do
grupo da Virginia Woolf.97 Eles tinham grandes discussões sobre o valor estético.
Eu não desenvolvi suficientemente. A ideia é que esse esteticismo pós-moderno
que acontecia ali, não era um esteticismo consequente, para toda a vida, era uma
coisa que tinha a ver com a pós-modernidade. Na pós-modernidade, o estético é
muito importante, mas é uma estética fugaz. Um estilo de se vestir, um estilo de
até mesmo de falar, as gírias de cada grupo. Eu estava tentando caracterizar esse
esteticismo como uma coisa nova, um esteticismo fugaz, que valorizava o frívolo,
todo o tipo de experiência. Mas não mais como as vanguardas modernas. As
vanguardas modernas no fundo, no fundo, elas ainda eram prisioneiras da
identidade. Elas queriam a revolução emancipadora, permanente. Queriam mais
fundamento. Este esteticismo pós-moderno não tinha fundamento nenhum, era
trivial, sem metafísica nenhuma.”98

Como em uma apropriação típica da pós-modernidade em que resgatamos os signos e


conceitos da história colocando-os em novo contexto, Silva retoma ideias de artistas e
intelectuais ingleses do século XIX e XX para criar seu conceito insuficientemente

97
O Bloomsburry Group, grupo informal de amigos, todos intelectuais ingleses que viviam na região de
Bloomburry, em Londres, na primeira metade do século XX.
98
SILVA, Juremir Machado da. Entrevista sobre “Miséria do Cotidiano” [mar. 2013]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
111

desenvolvido. A Irmandade Pré-Rafaelita citada pelo autor, grupo fundado na Inglaterra em


1848 por pintores que propunham uma arte baseada em premissas medievais de pureza divina
e verdade que são anteriores ao estilo grandiloquente da pintura renascentista de Rafael
Sanzio, era, ela mesma, uma adepta das práticas revisionistas do passado que, ironicamente,
marcam também a pós-modernidade. Mas foram as propostas de seus contemporâneos
franceses (personificados por Millet e Courbet) que se tornariam relevantes na gestação da
arte moderna, artistas também preocupados com a sinceridade e que se opunham ao
preciosismo da arte oficial. Ao contrário do enfoque nas representações de imagens bíblicas
dos vitorianos, eles eram praticantes de uma abordagem realista da arte (GOMBRICH, 1999).
Os pré-rafaelitas, apropriando-se de uma temática própria do período gótico e levando-a para
um contexto histórico distinto, poderiam ser chamados de pré-pós-modernos, sem nunca
haverem sido modernos. Mas os pré-rafaelitas não são pós-modernos avant la lettre porque
lhes falta a consciência de que o esforço em recuperar um estado original é absolutamente
vão. O retorno do passado, esse pastiche, será sempre farsesco e paródico e o desencanto
estará sempre presente na apropriação pós-moderna.
O novo esteticismo é um esteticismo fugaz que valoriza todas as experiências, é
superficial e frívolo, utiliza imagens e conceitos apropriados da história, retirados de seu
contexto sem respeito pela sisudez da tradição, se contamina pela moda e os produtos da
cultura pop, opera a partir da ética do do it yourself, desprezando os valores acadêmicos. No
seu cerne está a proposta de participação ativa nos acontecimentos sociais, não de forma
política e partidária, mas uma participação estética que faz dos “novos estetas” atores nesse
grande espetáculo. Diz Silva:

“Na época eu ainda não era um leitor apaixonado de Guy Debord, A Sociedade
do Espetáculo. Se eu tivesse lido Debord na época, meu olhar teria sido um
pouquinho até mais, digamos assim, intenso sobre aquilo. Por que eu acho que ali
todo mundo queria fazer de sua vida uma obra de arte. Era visceral. O que
Debord faz de mais interessante é o que ele chama de crítica da separação.
Separação de tudo, por exemplo, entre alta e baixa cultura, palco e platéia,
produtor e seu produto, a vida do homem comum e a arte. E eu acho isso
fundamental. Debord é o crítico da contemplação. Ele acha horrível que alguém
fique contemplando o outro viver. É uma crítica da contemplação radical. E ali
todo mundo fazia isso, ninguém queria ser coadjuvante, ninguém queria ser
platéia. Ali todo mundo estava no palco. O pós-modernos iam ali para apresentar
sua performance. O Edu K é isso, ele estava sempre em cena, a própria arte
cotidiana, antiarte.”99

99
SILVA, Juremir Machado da. Entrevista sobre “Miséria do Cotidiano” [mar. 2013]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.
112

O espetáculo – monólogo laudatório da ordem atual, relação social mediada por


imagens, instrumento de unificação social – é, para Debord (1997), aquilo “que domina os
homens vivos quando a economia já os dominou totalmente” (p. 17). A separação, alfa e
ômega do espetáculo, nasce da “ordem mítica de que todo poder se cerca desde a origem” (p.
21) e está presente de forma generalizada entre o trabalhador e o que ele produz. A feroz
crítica cultural dos situacionistas descende da mesma ideologia marxista aplicada pela Escola
de Frankfurt, mas se da leitura de Adorno ecoa um lamento saudoso da Europa pré-industrial,
em Debord os ecos são gritos convocando à ação. Os situacionistas entendem que é preciso
usar do aparato espetacular do próprio sistema para agir em resposta a ele. Desde que foi
publicado, em 1967, A Sociedade do Espetáculo tem incendiado o imaginário da juventude, a
exemplo dos acontecimentos de Paris, em 1968, e da gestação britânica do punk, quase dez
anos depois. Não creio que o jovem Edu K, então um adolescente chegado de Foz do Iguaçu a
Porto Alegre, tivesse conhecimento das teorias de Debord. Consciente ou não, Edu K desafia
a ordem da Sociedade do Espetáculo ao encarnar a arte em cada gesto, sua performance é
perpétua, seus pés pisam constantemente o palco. Mais velhos, Lanes e Nazari são como “pais
espirituais” do músico.
“Muito do lance gótico do Defalla inicial”, revela Edu, “comigo, a Biba e o Carlo,
vem deles. Foram anos de formação e experiências incríveis que mudaram a minha vida”.
Lanes nota que o grupo do jovem músico estava aberto a experimentações, o que facilitou a
parceria. E Nazari lembra que

“(...) o Defalla era uma banda muito original, tinha muita irreverência. Eu tinha
extrema simpatia principalmente pelo Edu K que convivia com a gente nesse
mesmo tempo, nesses mesmos espaços. Tinha uma coisa de geração, pessoas que
estavam também em busca de alguma coisa diferente.”100

Edu K faz parte do público jovem a quem comunica as imagens de Lanes e Nazari, a
temática conectada ao estilo das subculturas emergentes no envoltório da época. A
fragmentação estilística do punk em pós-punk e new wave, reflexo do esteticismo fugaz, vai
gerar o rock gótico e uma subcultura ligada à alienação, ao romantismo e à teatralidade
performática. Conforme aponta o crítico musical Simon Reynolds (2006), esse grupo que
cultua o tédio e as sombras irá surgir em oposição a subgêneros mais politizados do punk. Os

100
NAZARI, Rogério. Entrevista sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2013]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
113

processos de tradução cultural parecem indecifráveis e ilógicos, mas tanto na São Paulo
industrial quanto no ensolarado Rio de Janeiro ou na remota Porto Alegre, os darks (como são
chamados no Brasil), foram tão populares quanto crisântemos em cemitérios. O imaginário
desses jovens, povoado por imagens oriundas da literatura romântica, foi sonorizado pelo rock
sombrio de grupos britânicos como The Cure, Bauhaus, Sisters of Mercy, Depeche Mode,
frutos da explosão comercial do punk inglês. O darkismo ilustra a despolitização pós-
moderna: “o interesse do gótico no atemporal poderia ser visto precisamente como isso – uma
recusa do temporal, do tópico, das urgências cotidianas. (...) como uma evasão apolítica do
‘real’” (REYNOLDS, 2006, p. 424). Juremir Machado da Silva também descreve o subgrupo
dark que transita pelo Bom Fim como apolítico, individualista e superficial. O novo
esteticismo dark portoalegrense inclui as danças solitárias, o uso dos crucifixos e das cores
pretas, dos ritos religiosos descontextualizados, expressões opostas aos modos politizantes da
década anterior. Com uma atitude escapista, esse grupo parece recusar a imagem típica e
ensolarada de Brasil tropical e renegar qualquer noção de folclore, conectando-se a expressões
urbanas do mundo industrial ameaçado pelo fim das utopias e pela hecatombe nuclear. Seus
modos de ação, discurso e apresentação integram um código de conduta herdeiro do niilismo
do punk. Lanes relembra:

“Era um código, a gente usava esse código pra brincar também. Aquela coisa do
sombrio. Um quadro que marcou forte foi esse do jardim, foi um dos primeiros
que a gente fez junto, que deu origem a essa coisa. Depois um outro quadro que a
gente fez junto foi emblemático. A gente pintou com marrom e preto, até piche a
gente usou. Não existe mais porque os ratos comeram, um quadro com uma
paisagem apocalíptica, umas montanhas, uma cruz voando. E em cada canto
tinham rosas. Então o signo da rosa, o espinho, a cruz, o apocalipse. A gente
curtia isso na realidade, que era uma mensagem niilista das bandas, das coisas
da época.”101

As pinturas da dupla, que são criadas no ateliê de Lanes enquanto os artistas


consomem a música dark produzida na fria Inglaterra, captam a “atmosfera emocional”
daquele momento. “A pintura como reflexo e instrumento do tempo”, na qual o homem
enxerga a si próprio, redigem os artistas em seu manifesto. A pintura é escolhida pelos artistas
para produzir seu discurso sobre o mundo contemporâneo. Há no trabalho uma curiosa
mistura de esferas: por um lado, da arte e sua história, com os problemas específicos da
pintura diante das questões dela própria e, por outro, da relação com a cultura popular massiva

101
LANES, Telmo. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice A desta dissertação.
114

– os produtos da indústria cultural, como canções pop, que, assim como a pintura, podem ser
“reflexo e instrumento do tempo”.
Um estudo mais centrado em aspectos musicológicos poderia estabelecer relações
entre o improviso comandado por Palombini e o desenho escultórico que Lanes e Nazari
formam no palco do teatro; o modo como esse desenho é pontuado com deixas que parecem
criar tensão e drama e, por fim, o clímax que é atingido com ajuda da música, uma música que
dificilmente poderia ser classificada como rock, mas que, em alguns momentos, flerta com o
groove áspero de Jimi Hendrix, graças à guitarra funky de Edu K, cujos timbres são afetados
pelo uso do pedal wah-wah. No entanto, são os sons do teclado Roland Juno-60 que dão o
tom principal da música, conforme explica Carlos Palombini:

“A performance foi totalmente improvisada. Utilizei a idéia de ruídos brancos


filtrados, criando uma textura que progredia do esparso e piano ao denso e forte,
culminando na repetição de um encadeamento básico de acordes tonais, que era
quando o Defalla entrava, e o volume crescia mais.”102

Após Porquê Choras?, o músico colaboraria ainda mais uma vez com os artistas em
um trabalho que é um dos tantos desdobramentos desta experiência inugural. Lanes e Nazari
expuseram no III Salão Paulista de Arte Contemporânea (1985), em São Paulo; no ano
seguinte, cerca de oito telas foram apresentadas em Porto Alegre na Galeria Tina Presser
(atual Tina Zapoli), além de uma grande pintura no MARGS (em julho), segundo Lanes:
“uma tela de 2,50 x 5 metros, óleo, piche, areia e uma grande cruz como uma nave mãe”,
exibida em uma das Salas Negras do museu acompanhada de pesados granitos dispostos no
chão. Finalmente, uma instalação montada na 19ª Bienal de São Paulo, de 1987, com 25
pinturas e uma performance sonora inaugural foi o auge de um processo que havia começado
com as primeiras telas realizadas no ateliê de Lanes, ao som do pós-punk inglês. “Produzimos
bastante, foi febre. Acho que mais de 30 trabalhos”, ele recorda:

“Esse ano a Bienal tinha aberto umas 20 vagas pra mandarem dossiês.
Estávamos com o trabalho na cabeça pronto, botamos no papel e mandamos o
nosso projeto. Os caras toparam. Nós tínhamos já bastante pinturas, uma série
boa. Era um bom espaço, um retângulo, e a gente evoluiu isso aí. O Palombini
estava em Londres, estudando música, a gente pediu pra ele compor uma música
para a Bienal, a gente replicou Proquê Choras? mais sofisticadamente. Ele fez
uma trilha que ficava em loop o tempo todo e tinham umas 15 ou 20 pinturas. A
gente terminou fazendo núcleos, por exemplo: os jardins. E aí tinham 4 ou 5
102
PALOMBINI, Carlos. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2012]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
115

pinturas e cada grupo fazia um tema. Fizemos uma coisa no chão também.
Mostramos as pinturas com objetos, coisas. Fizemos uma cortina de teatro
vermelha, aberta, tu entrava num ambiente que exibia as pinturas. Tem a ver com
igreja, alguma coisa de ritual, um altar, uma pintura principal, essa linguagem. E
sempre com temas assim: a vida, a morte, a existência, aquelas coisas.”103

Em Londres, Palombini compôs a peça A morte de madame Amedée (aprés une


lecture de Proust), que foi executada por sonorização mecânica na abertura e, em loop, tocada
até o fim da mostra. No catálogo da exposição está reproduzido um trecho do artigo “Pintura
culta”, da crítica de arte Eunice Gruman, publicado no Jornal do Comércio, de Porto Alegre,
em 1986: “O figurativismo de Lanes e Nazari não representa, significa. Para isso, eles se
valem de signos universais, puxando não apenas pela imaginação do observador, mas também
pelo seu background cultural”104. O figurativismo praticado pela dupla “puxa” o observador
que compartilha do mesmo background cultural. A ligação com o imaginário da tribo urbana
dos darks e com a postura niilista dos punks parece explicitada na colocação de Gruman, ela
sabe a que grupo pertence os artistas. A figuração de Lanes e Nazari, além de representar os
antigos ícones da pintura, significa uma condição contemporânea de apropriação de signos
remixados através do imaginário pop, significa o novo esteticismo da moda fugaz, significa a
recusa de uma arte politizante que trate de temas nacionais ou folclóricos. Apresenta ícones
antigos da própria pintura em sua histórica secular, mas que são impregnados de uma
sensibilidade urbana, cor de piche. Uma pintura tão urbana quanto a música dos grupos de
rock que se apresentavam no palco do Ocidente. “A gente não fazia música”, observa Nazari,
“então resolvemos fazer uma coisa que fosse tão interessante quanto, que rendesse mídia, que
chamasse a atenção”105, trata-se da mesma inveja pop observada por Alan Litch que faz com
que os artistas se aproximem da música e de seu alto poder de comunicação. A música ajuda a
apontar os holofotes para a pintura.
Apesar da visibilidade alcançada, Nazari julga que havia desconfiança da parte do
círculo da arte local: “as pessoas não entediam, era uma coisa muito anacrônica, elas não
tinham parâmetros para analisar aquilo, os trabalhos provocavam muitas dúvidas”. Assim, a
associação a um grupo de roqueiros parece reforçar a postura de oposição. Ainda que seja
apenas uma mercadoria, parte da máquina de consumo, o rock, representado menos pela

103
LANES, Telmo. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice A desta dissertação.
104
GRUNAM, Eunice. In: Catálogo da 19ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal,
1987, p. 215.
105
NAZARI, Rogério. Entrevista sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2013]. Entrevistador:
Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
116

música do que pela figura de Edu K e sua banda, fornece um código para a rebeldia. É o que
Nazari confessa, orgulhoso de sua condição marginal, mas também revelando algum rancor
pelo que julga um desprezo de sua importância como artista:

“Eu fiz esse trabalho tão forte, com tanto rigor de me expor, numa tentativa de
fazer uma coisa que fosse ser interessante, mas a gente não aconteceu. Não
somos considerados, somos marginais até hoje. Nosso trabalho é considerado
marginal, embora a gente tenha recebido todos os louvores, principais salões,
Bienal etc. Infelizmente a arte é uma coisa muito elitista. A gente nunca foi aceito.
Achavam que era um deboche, que a gente estava pirando. A gente tinha um
código da rebeldia e esse é o grande link: o pop e a rebeldia.”106

A dupla seguiu trabalhando em conjunto por um curto tempo e as carreiras artísticas


individuais de Lanes e Nazari também não avançaram muito mais. Pelo início dos anos 1990,
ambos praticamente haviam encerrado suas produções e passariam a trabalhar com cinema e
publicidade, o que deve ter contribuído para o afastamento de seus nomes do circuito local e
nacional de arte. Lanes admite:

“Eu nunca consegui entrar no mercado, na fatia certa, no ângulo certo, na hora
certa, sabe? Aí você tem uma ideia maravilhosa, mas não é o momento, não é o
lugar. É uma combinação de fatores que te faz ser relevante naquele momento,
mas de repente tu não é mais relevante mais. Eu cansei. Fiz várias coisas,
vendemos quadros, não muitos, mas vendemos alguns quadros. Mas não o
suficiente pra viver disso. Quando era mais conceitual era impossível, daí foi pra
pintura e veio algum retorno. Fiz duas ou três exposições, foi razoável, mas
parou. O mercado te puxa. Hoje em dia até dá pra viver sem mercado, mas
geralmente tem que ter um pé na vida acadêmica.”107

A escolha acadêmica levou Palombini a seguir suas pesquisas que tratam da relação
entre música e sociedade. Hoje ele estuda o funk carioca proibidão, estilo musical que chama
de contra-hegemônico. Naqueles anos 1980, um pouco depois de Porquê Choras?, Palombini
embarcou para Londres, onde vivenciou o nascimento da cultura rave no chamado segundo
Verão do Amor108. Em Porto Alegre, Lanes e Nazari também iriam aderir a essa subcultura
nascente e sua música, comprovando a tese de Silva sobre a fugacidade dos novos estetas.

106
Idem
107
LANES, Telmo. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A
entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice A desta dissertação.
108
Período do final dos anos 1980, na Inglaterra, marcado pela ascensão da cultura rave e o surgimento de uma
nova subcultura juvenil adepta da música acid house, que misturava batidas eletrônicas a climas psicodélicos, e o
uso de drogas alucinógenas como o ecstasy. O primeiro Verão do Amor ocorrera em São Francisco, nos anos
1960, e também estava ligado a uma música (o acid rock) e droga (o LSD) específicas.
117

Esse fato – o envolvimento de nossos personagens com a cultura da música eletrônica


dançante – comprova que o relato de Silva sobre as tribos urbanas que observou no Bom Fim
dos anos 1980, ainda que esquemático, revela um acurado senso de percepção. É dessa forma
que o autor encerra sua curta descrição sobre o pós-moderno grupo dos darks:

Nessa época resolveram inverter tudo rapidamente. Abriram-se ao colorido.


Escancaram sorrisos e não mais permitiram a hegemonia do grupo inglês
Sister of Mercy (sic). Aderiram ao ecletismo. E resolveram apostar na
sexualidade, pregar a infidelidade e sensibilizar-se com os sons dos negros
de Chicago. Descobriram o branco. Radical inversão de parâmetros de que
não aceita o compromisso com a linearidade comportamental. Ou vive à
superfície (SILVA, 1991, p. 51)

Os sons negros de Chicago são a house music, a música eletrônica dançante dos DJs,
que Lanes, Nazari, Palombini e tantos outros passam a ouvir, apostando no hedonismo e nas
cores. A referência dark torna-se modismo ultrapassado, comprovando a falta de
comprometimento dos novos estetas com a linearidade comportamental. Ou com a fixação de
um estilo definido, como reforça a trajetória camaleônica de Edu K, que antes mesmo de ver
encerrada a década de 1980 já se revelaria o grande artista que é.
Iconoclasta, adepto das estratégias chocantes do punk, imprevisível quanto aos estilos
e referências que adota e descarta ininterruptamente e, sobretudo, a partir da profunda
influência de outra vertente da música eletrônica, o rap, Edu K criaria com o Defalla alguns
dos álbuns mais influentes do rock brasileiro, discos de música pop que seguem uma tradição
de vanguarda e ruptura. A música do Defalla, fundindo a agressividade do punk e do heavy
metal aos ritmos marcantes do funk, operando através da apropriação de fragmentos, por
colagem, rompeu com a sonoridade limpa da new wave brasileira. A carreira errática do
grupo, na maioria das vezes mais aplaudida pela crítica que pelo público, forneceu-nos obras-
primas do rock de vanguarda, momentos controversos de superexposição televisiva e até
tentativas debochadas de atingir o sucesso comercial, tudo realizado com a coragem e a falta
de pudor de seu líder Edu K. Atualmente o grupo começa a ter sua memória resgatada em um
projeto na internet, o arquivo Defalla.org, quando também retorna aos palcos com sua
formação mais aclamada, com Biba, Castor, Flu e Edu. Mantendo carreira solo desde o fim
dos anos 1990, Edu K é um prestigiado produtor e DJ, e tem se apresentado em eventos ao
redor do mundo com sua nova música, agora fortemente influenciada pelo mesmo funk
carioca pelo qual Palombini se interessa. Mas é, acima de tudo, na imagem que construiu de si
mesmo, uma imagem que define a fugacidade do novo esteticismo, imagem-mutante que
118

muda a cada nova moda, mantendo os traços da irreverência escandalosa e da inquietude de


seu criador, é na imagem – mais que no som – que Edu K imprime sua marca de artista:

“Arte para mim é tudo, em todos os sentidos. Sempre encarei minha vida como
se, esta sim, fosse minha obra: só estará completa no dia em que esgotar todas as
possibilidades de diversão e expressão neste ciclo e partir pra azucrinar em
outro! A arte sempre me interessou e em suas diversas manifestações: pintura,
cinema, comic books, moda, teatro, literatura, escultura, paisagismo, decoração,
cultura de rua etc. Muitas vezes flertei com as artes plásticas e com artistas da
área, em vários projetos e parcerias. E, claro, a imagem e a manipulação das
coisas através da mesma é uma constante em minha "obra". Sempre tive interesse
agudo no assunto, inclusive até mesmo maior do que na própria música, uma
área pela qual sou mais conhecido. Na verdade, é um movimento perpétuo, uma
coisa sempre influenciando a outra: não foram poucas vezes em que tinha já em
mente um tipo de look, uma capa de disco, até mesmo nomes de músicas antes de
ter as músicas prontas de fato. Além do que, cresci nos anos 1980, sou parte da
geração que previu e formatou o conceito "MTV" e a idéia de que a imagem vem
antes de tudo, de que se pode fazer arte com o próprio corpo, de que se pode
exprimir ideias através do que se veste, de como se veste, de como a pessoa, no
caso, o "ator", se relaciona e influencia as coisas e pessoas à sua volta. Enfim, a
arte em sua forma mais urgente e pungente, exprimindo e expondo o turbilhão
que gira ensandecido dentro de mim, direto na sua cara, goste ou não.”109

109
K, Edu. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [ago.2013]. Entrevistador: Leonardo Azevedo
Felipe. Porto Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.
119

CONCLUSÃO

Como concluir um trabalho que se pretende um primeiro olhar sobre um tema, um tipo
de pesquisa fundadora que mapeia possibilidades de caminhos a serem trilhados? Como
esgotar em algumas linhas uma experiência que parece ter apenas começado? Esta conclusão
será obrigatoriamente inconclusa. Ela só poderá concluir parcialmente, pois se refere a algo
que está “vivo”, em permanente construção e reformulação: a própria história da arte. Ou
melhor: uma das tantas e possíveis histórias da arte, anacrônicas, simultâneas e transversais,
que se aproximam da mesma matéria por lados diferentes, como observou Hans Belting
(2006). Novas narrativas que formulam perguntas para as questões de sentido e função da arte
a partir de uma “visão retrospectiva acerca da unidade maior da cultura”, que obriga a
disciplina a “rever a sua maneira de colocar os problemas” (p. 172). A história da arte é assim
ampliada, sai de seu terreno e torna-se componente inseparável da história e da cultura.

A oposição entre arte e vida, da qual a arte retirou suas melhores forças,
dissolve-se hoje no momento em que as artes plásticas perdem seus limites
assegurados diante de outros meios e sistemas de compreensão simbólica
(BELTING, 2006, p. 173).

Afirmou Belting, pondo em xeque o futuro dessa disciplina que ironicamente havia
justificado a si mesma pela delimitação de seu objeto. Se o próprio objeto artístico já foi
dissolvido nos limites da cultura, a sua história precisa também ser dissolvida.
A aproximação desse objeto de estudo poderia ter sido feita por outros caminhos.
Porquê Choras? suscita, por exemplo, muitas questões acerca da pintura que voltou nos anos
1980, sobre o modo como os artistas, integrando um espírito geral de revisão do passado,
opuseram-se a correntes dominantes como o expressionismo. Poderíamos também abordar
esse trabalho através da iconologia, desvendando os significados dos ícones românticos
reapropriados. Ou ainda pela relação com os materiais (algodão, carvão, ferro, madeira,
granito) que tridimensionalizam os ícones pictóricos, formando o “desenho escultórico”.
Questões como essas renderiam, tenho certeza, uma complexa pesquisa, apesar da dificuldade
que o pesquisador enfrentaria na impossibilidade de acesso ao material, as pinturas que foram
destruídas, deterioradas com o passar dos anos pela falta de cuidados, comidas por ratos em
um final legitimamente punk. Optei por abordar meu objeto de estudo pelo viés social e
comportamental da cultura, entendida aqui conforme as acepções propostas por Raymond
120

Willliams: tanto como processo geral de desenvolvimento de ordem intelectual, espiritual ou


estética quanto como modo de vida particular (STOREY, 1998). Assim, levando em conta
minha posição, meu background na cena contracultural da cidade e a compreensão de alguns
de seus meandros – o que me possibilitaria observar o objeto de um ponto privilegiado –,
ocupei-me de um detalhe que talvez não chamasse a atenção de outro pesquisador: a presença
daqueles três roqueiros na performance de apresentação da pintura culta da dupla. Mais que a
música produzida por eles, me interessava sua presença, uma imagem.
Diante da ruptura dos limites narrativos da história da arte após as proposições
desterritorializantes da arte pelos próprios artistas (BELTING, 2006), me senti livre para
também romper a moldura e escrever minha própria versão de uma possível história da arte da
cultura de massas, usando o termo empregado por Belting para tratar da disciplina nesses
novos tempos. Minha arrogância era fundamentada pela crença de que, hoje, tanto a pintura
quanto a canção pop podem servir de “reflexo e instrumento do tempo”, como na declaração
do artista Telmo Lanes – reflexo por multiplicar os problemas e questionamentos de passado,
presente e futuro, comentando-os e respondendo-os; instrumento por influir nos modos de
pensar e agir que moldarão as próprias relações sociais, a história e as representações que
temos dela. A arte desterritorializada para a qual não há mais um tema ou suporte prioritário
tem diante de si outros meios e sistemas de compreensão simbólica, tão eficazes quanto ela
própria para refletir e instrumentalizar o tempo. Após o longo processo que culminou em sua
desterritorialização, a arte tornou-se onipresente.

“Arte para mim é tudo, em todos os sentidos. Sempre encarei minha vida como
se, esta sim, fosse minha obra (...). A arte sempre me interessou e em suas
diversas manifestações: pintura, cinema, comic books, moda, teatro, literatura,
escultura, paisagismo, decoração, cultura de rua etc.”110

No depoimento final sobre a importância da arte em sua vida, vida que acaba sendo a
própria obra, corporificação das aspirações vanguardistas que perseguiram uma arte total, Edu
K mostra que para o artista de hoje, de fato, não parece mais haver separação. Na era da
informação e do consumo, potencialmente todos meios e todas as disciplinas estão à
disposição do artista. A indústria cultural aqui não deve ser percebida somente como um
braço maligno do capitalismo, mas também como uma instituição responsável pelo registro da

110
K, Edu. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [maio 2012]. Entrevistador: Leonardo
Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na
íntegra no Apêndice B desta dissertação.
121

cultura e pela circulação que vai permitir as trocas de informação e a consequente criação de
novos estilos e linguagens. Não há lugar para maniqueísmos e demonizações, entretanto é
preciso que estejamos cientes do movimento de entrar e sair das estruturas, conforme postulou
Caetano Veloso (SÜSSEKIND, 2007) acerca da estratégia dos tropicalistas diante da relação
entre vanguarda e cultura de massas, a constante dialética que observamos quando tratamos
de música pop e arte. Entrar e sair de estruturas é uma das formas de responder à sociedade do
espetáculo, de romper com a lógica do lazer, uma preocupação aparente em Adorno, Debord e
nos punks. Aprender a usar as mesmas engrenagens do sistema para alterar o seu andamento,
desestabilizá-lo.
Discípulo das estratégias de manipulação deliberada da imagem experimentadas por
Andy Warhol ou Malcolm McLaren, ambos desafiados em produzir arte na era do consumo
massivo, Edu K é a personificação do novo esteticismo, o esteticismo fugaz de quem recusa o
institucional e traz em cada gesto um apelo estético. O novo esteticismo é consequência de
uma reformulação crítica do cotidiano forçada após a mudança dos paradigmas que foi
chamada de pós-modernidade, esse longo processo de revisão dos princípios da própria
modernidade. Em 1985, dando seus primeiros passos na carreira artística, articulando seu
projeto de vida/obra, Edu e sua recém-formada banda participaram de uma performance de
dois artistas que queriam apresentar ao público mais que uma nova pintura, uma nova postura.
Postura diante do retorno à cena do objeto artístico, dos problemas lançados pela pós-
modernidade que pautavam o debate crítico, do inevitável revisionismo histórico e de uma
tendência expressionista dominante.
O primeiro aspecto que possibilitou esse diálogo criativo, o cruzamento de fronteiras
entre arte e música pop, foi mesmo territorial, a existência de um espaço onde um
determinado grupo pode estabelecer suas relações de trocas. Esse território foi o Bom Fim,
com seus lugares de trabalho, lazer e embriaguez: o apartamento de Lanes, o bar Ocidente, o
Lola e outros pontos menos lembrados. Assim, o Bom Fim ocupa o mesmo lugar mitológico
da Downtown novaiorquina ou da Londres swingante. Pode parecer ingênuo comparar uma
periferia cultural e econômica como Porto Alegre a centros tão portentosos, mas acredito que
há nesses espaços uma semelhança: a existência de um underground, esse local subterrâneo
imaginário onde a arte encontra a marginalidade e suas expressões urbanas. A mesma
atividade subterrânea de resistência à cultura de massas na qual a arte está engendrada que
Hélio Oiticica entendia como necessária para vencer a repressão, a paranóia e a impotência,
atividade que não se limita à arte, que é comportamental, não condicionada e enfatizada por
posições globais (SÜSSEKIND, 2007).
122

Outro aspecto, relacionado às articulações que acontecem nesse subterrâneo, diz


respeito ao envoltório da época, uma identificação com posturas e pensamentos que negam as
utopias totalizantes e os modos de atuação política coletiva das gerações passadas, sinalizando
um desejo de romper com a defasagem cultural da qual são vítimas os habitantes das zonas
periféricas (lembremos que eram dias pré-internet, em que a circulação da informação pelos
meio eletrônicos apenas ensaiava suas potencialidades), de comunicar com correntes
internacionais, deixando de lado os temas nacionalistas que tanto ocuparam o imaginário
artístico e social dos brasileiros nas décadas anteriores. O darkismo expresso no uso das
roupas pretas, no gosto pelo pós-punk inglês e na adoção da temática romântica é um código
que une artistas e músicos que integram a mesma “seita”, compartilhando uma visão de
mundo atormentada pelo sentimento de que, como clama o punk, não há futuro. Nesse cenário
niilista assumido, as referências estéticas tornam-se valores organizacionais para a vida111.
Finalmente, há o aspecto intencional. Qual a intenção de Lanes e Nazari ao colocar
músicos da cena do rock em sua performance? E por que o Defalla aceitou participar?
Suponho que Edu e sua banda tenham participado de um projeto de “artes plásticas” devido
àquilo que o músico chama de “o interesse nas mais diversas manifestações da arte”, o
entendimento de que para a construção de uma carreira artística na música pop há um
elemento muito importante que não é de ordem sonora ou musical: a percepção da
importância da imagem para a música pop. Ao agregar à imagem de sua nova banda uma
“imagem da arte”, ou seja, a alguns dos valores simbólicos ligados à arte (por exemplo:
valores modernistas de experimentação, choque, radicalismo e busca pelo novo), Edu K está,
já desde o princípio, firmando sua posição no meio musical brasileiro, lançando as bases que
iriam sedimentar seu “lado vanguardista e esquisito” (FARIA, 2001, p. 296), posicionando o
Defalla como uma proposta que visaria além do pop, permitindo ao artista entrar e sair das
estruturas para melhor executar seu programa de ação no qual a estética cumpre um papel
central. Não é de estranhar que o grupo tenha obtido muito mais reconhecimento por parte da
crítica do que do público.
De forma semelhante, ao incluir os jovens músicos em seu trabalho, os artistas
enfatizam uma determinada postura diante do campo da arte, um campo que está aberto a
práticas revisionistas que remixam os elementos de sua história no envoltório contemporâneo.

111
Aqui cabe uma ressalva acerca da participação de Palombini. Diretor musical de Porquê Choras?, o músico
afirma jamais ter se interessado pela subcultura dark enquanto movimento, apenas o interessava a sonoridade
sintética do rock gótico tão apreciada também por Lanes e Nazari. Apesar da participação fundamental no
evento, Palombini será menos tratado nesta conclusão, mais interessada em Edu K e no Defalla, por pertencerem
ao universo musical específico do rock.
123

Uma postura pop desavergonhada de referências e modismos em busca da comunicação


ampla, geracional. Mas também uma tomada de posição, atitude (por sinal, atributo principal
de qualquer roqueiro) de enfrentamento e rebeldia. Imagine o cenário das artes visuais na
Porto Alegre de trinta anos atrás, onde as primeiras experiências de uma arte pós-moderna,
usando o termo conforme colocado por Mário Pedrosa, arte de vocação antiartística que
avança na esfera da cultura e questiona concepções tradicionais do objeto de arte, haviam
ocorrido tardiamente em relação aos grandes centros; onde vingava uma tradição
expressionista de herança alemã com forte influência modernista em sua preocupação com
questões da identidade regional; uma cidade provinciana de médio porte em dias quando a
informação ainda não circulava na mesma velocidade de hoje. Agora pense em Lanes e
Nazari, em jaquetas de couro e crucifixos pendurados do pescoço, pintando quadros
maneiristas de temática romântica e kitsch, manuseando materiais como piche e carvão,
apresentando sua produção pictórica em um evento que inclui a presença de quatro músicos,
com seus instrumentos produzindo sons sintéticos e ritmados, entre eles integrantes de um
novíssimo grupo de rock.
O rock, esse tipo de música popular massiva tornado cultura que hoje cada vez mais se
institucionaliza112, o rock, produto da indústria cultural, é o elemento usado pelos artistas para
marcar sua posição de rebeldia e diferença. Como colocou Nazari: “A gente tinha um código
da rebeldia e esse é o grande link: o pop e a rebeldia”. Pop e rebelde: acessível, popular,
ligeiro, ao mesmo tempo, resistente, desafiador, que não quer se enquadrar. O rock significa,
apesar das visíveis contradições, ambas as coisas. Com suas próprias contradições (os
fenômenos contraditórios são os mais interessantes de serem estudados), o rock, uma das
grandes expressões culturais do século XX, tem sua história atravessada pela recente história
da arte. Essa nova história que começo a contar, apesar de recente, torna-se hoje complexa,
fragmentada e múltipla, e daí a escolha em terminá-la nos anos 1980, década em que
encontramos nosso estudo de caso. O cruzamento, provocado por processos sociais e
tecnológicos tão complexos quanto o próprio capitalismo que engendra arte, cultura e
controle, obriga a disciplina da história da arte a se desenquadrar, retirando sua pesada
moldura, para assim seguir o movimento dos artistas para quem não há mais barreiras ou, caso
haja, torna-se imperativo transpô-las, alargando o sentido de liberdade que é um dos
fundamentos da própria arte.

112
O crítico Simon Reynolds aponta que o rock nas últimas décadas tornou-se cada vez mais nostálgico,
elemento central na nova cultura de obsessão pelo passado vivida pelos consumidores da música pop. Para
Reynolds, o rock estaria posicionado como a retaguarda da cultura, já que há muito deixou de exercer sua função
de inovação estética e crítica aos costumes (SILVEIRA, 2013).
124

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íntegra no Apêndice C desta dissertação.
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FIGUEIREDO, Luciano. Figueiredo revê Oiticica, Torquato e a Tropicália. [22 novembro


2010] Entrevistador: Régis Bonvicino. Disponível em: <http://sibila.com.br/arte-
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Entrevista concedida à Revista Sibila.

__________ . Entrevista I. [Ago. 2013] Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto


Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.

K, Edu. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [maio 2012]. Entrevistador:


Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio
eletrônico e encontra-se transcrita na íntegra no Apêndice B desta dissertação.

LANES, Telmo. Entrevista I. [fev. 2011]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto
Alegre, 2011. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.

____________. Entrevista II. [nov. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto
Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita na
íntegra no Apêndice A desta dissertação.

NAZARI, Rogério. Entrevista sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2013].


Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2013. A entrevista foi realizada por
correio eletrônico.

PALOMBINI, Carlos. Perguntas sobre a performance “Porque Choras?”. [jun. 2012].


Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por
correio eletrônico.

PINKUS, Karen. Entrevista I. [abr. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto
Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.

REYNOLDS, Simon. Entrevista I. [abr. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe.


Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico e encontra-se transcrita
na íntegra no Apêndice D desta dissertação.

ROMBES, Nicholas. Entrevista I. [mar. 2012]. Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe.


Porto Alegre, 2012. A entrevista foi realizada por correio eletrônico.

SILVA, Juremir Machado da. Entrevista sobre “Miséria do Cotidiano” [mar. 2013].
Entrevistador: Leonardo Azevedo Felipe. Porto Alegre, 2012.

Vídeos e filmes

DEPOIS daquele beijo (Blow up), Direção: Michelangelo Antonioni (Reino Unido, 1966).
São Paulo: Warner Brothers, 2004, widescreen, som, color.

DOWNTOWN 81. Direção: Edo Bertoglio (Nova Iorque, 1981). Nova Iorque: Zeitgeist
Video, 2002 (72 min), full screen, som, color.
131

GERAÇÃO Punk (Blank Generation). Direção: Ulli Lommel (Nova Iorque, 1979). São
Paulo, 2004. 1 DVD (85 min), full screen, som, color.

JUBILEE. Direção: Derek Jarman (Reino Unido, 1978). Nova Iorque: The Criterion
Collection, 2002. 1 DVD (100 min), full screen, som, color.

PUNK: attitude. Direção: Don Letts (Reino Unido, 2005). São Paulo: Focus Music, 2005. 2
DVDs (224 min), full screen, som, color.

SID and Nancy. Direção: Alex Cox (Reino Unido, 1986). São Paulo: Cooperdisc, 2002. 1
DVD (112 min), full screen, som, color.

TALKING Heads: Chronology. Produção: Rosie Holley. São Paulo: ST2 Vídeo, 2011. 1
DVD (109 min), full screen, som, color.

THE CLASH: Westaway to the world. Direção: Don Letts (Reino Unido, 2000). São Paulo:
Sony Music, 2001. 1 DVD (110 min), full screen, som, color.

THE RED Krayola with Art & Language. Gross and Conspicuous Erros #8. Reino Unido,
1976 (3’45 min). Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=gSJ7XwawZOc. Acesso em: 10/06/2012.

CDs

BYRNE, David; ENO, Brian. My life in the bush of ghosts (1981). Produtores: David Byrne e
Brian Eno. Nova Iorque: Sire, 1998 (39’40 min).

TALKING Heads. More song about building and food (1978). Produtor: Brian Eno. Nova
Iorque: Sire, 1998 (41’30 min).

THE BEATLES. The Beatles (1968). Produtor: George Martin. Londres: Apple/Capitol, 1997
(94 min).

_____________. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Produtor: George Martin.
Londres: Apple/Capitol, 1997 (40 min).

THE SEX Pistols. Never mind the bollocks, here’s The Sex Pistols (1977). Produtor: Chris
Thomas. Londres: Warner Bros, 1999 (39 min).

THE VELVET Underground. The Velvet Underground and Nico (1967). Produtor: Andy
Warhol. Nova Iorque: Polydor, 1996 (49 min).

Acervos digitais

HÉLIO Oiticica. Disponível em: <http://www.heliooiticica.org.br> Acesso em: 14 ago. 2012.


132

PROGRAMA Helio Oiticica. Disponível em:


<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=docume
ntos&cod=205&tipo=2>. Acesso em: 10 jun. 2012.
133

APÊNDICES

APÊNDICE A – ENTREVISTA COM TELMO LANES

Artista, integrante do grupo Nervo Óptico. Trecho de entrevista realizada em novembro de


2012, na cidade de Porto Alegre.

Vocês estavam nesse lance da Pintura Culta, o que era isso?

Não sei como começou primeiro... Eu vim das performances e dos conceituais, né, e aí eu
queria fazer umas coisas diferentes. A tendência era o neoexpressionismo, da tinta, ação e
ação e ação. Eu não curtia muito isso, OK que na época de 50 foi importante, mas eu
desprezava isso um pouco, essa coisa do Iberê, acho meio over. Sem o motivo, sem ser um
Jackson Pollock, com um motivão, pá! Acho muito foda. Mas daí cada cidadezinha tem seu
Iberê, tem seu gestual anos 50, tudo parecido. E eu comecei a pensar: bom, agora é pintura
figurativa, ninguém tá fazendo mais figurativo. Eu gostava de fazer. Vou pra acadêmica, já
gostava muito de paisagem, pronto: vou pra natureza. Pintura acadêmica da natureza. Uma
linha de raciocínio que eu tirei não sei da onde. E foi nesse sentido. Daí um ou outro começou
a pintar alguma coisa e a gente viu que não estávamos sozinhos, tinha alguma coisa assim
também no mundo, principalmente na Itália, a tal da Pintura Culta essa aí, que eram pintores
que tinham como tema alguma coisa clássica, uma filosofia, alguma ideia mais clássica, e
pintavam figurativamente, alguns mais realistas, menos realistas, mas tudo com figuras, como
se fosse quase que uma pintura antiga mesmo, italiana, francesa, coisa assim. A gente viu,
legal isso, e a gente colocou uma coisa que a gente gostava muito, o tal do gótico, da cultura
cristã muito forte, a coisa niilista, aquelas coisas de pintar cruz, já andávamos de preto,
corrente, cruz e coisinhas assim do pós-punk, juntamos com essa coisa da pintura e
começamos a fazer pinturas com alguns temas históricos. Aí começamos a estudar a pintura,
né, a pegar livros e estudar a pintura. O grande valor da paisagem, tinha um livro só sobre
paisagem que a gente gostava muito. Porque a paisagem começou atrás dos retratos. Tu ia
pintar o rei e lá atrás, a paisagenzinha não existia como pintura (digressão sobre a paisagem).
Outro tema que a gente reviveu foi o jardim (digressão sobre a paisagem). Esse tema do
jardim a gente explorou muito lá na Tina Festa, a primeira exposição que a gente fez. Tinha
134

uma fonte, uma criança, os jardins se compõem de animais, pássaros, fera, água, a dama, a
criança. E vai montando a cena. Foi um tema clássico que a gente reproduziu também. Aí
começamos um pouco mais fundo nessa coisa de Jesus e gótico. Tanto é que esse convite de
Porquê Choras? é Jesus, o nome também é bíblico.

Mas vocês estavam mesmo dentro da religião, tinha uma espiritualidade verdadeira,
rezavam?

Não. Era um código, a gente usava esse código pra brincar também. Aquela coisa do sombrio.
Um quadro que marcou forte foi esse do jardim, foi um dos primeiros que a gente fez junto,
que deu origem a essa coisa assim. Depois um outro quadro que a gente fez junto também,
que foi emblemático, foi um quadro enorme, aí aquelas coisas megalomaníacas de tamanho,
fizemos umas quatro pranchas de um metro e meio por três, era uma parede inteira isso.

E onde era o estúdio?

Era na minha casa ali no Bomfim, eu morava no térreo e gente conseguia ter esse espaço,
claro, convivendo com a sala e tudo. Então esse era um grande quadro que tinha uma cruz
voando. Então era uma paisagem bem apocalíptica, bem apocalíptica, montanhas. A gente
pintou com marrom, com preto, até piche a gente usou. Aí fizemos um quadro que não existe
mais porque os ratos comeram, um quadro todo com uma paisagem apocalíptica, umas
montanhas, uma cruz voando e em cada canto tinham rosas. Então o signo da rosa, o espinho,
a cruz, o apocalipse. A gente curtia isso na realidade, que era uma mensagem niilista das
bandas, das coisas da época.

E porque a decisão de exibir as pinturas dessa forma no Porquê Choras?

Invencionice na realidade. Era uma forma diferente de fazer a exposição.

Por que ela é uma performance, mas, por exemplo, não tem essa preocupação com o
corpo...

Não, não, é uma maneira de pensar as pinturas. As pinturas são o grande lance, tanto é que
elas ficam lá, são o ápice do acontecimento. O que se inventou, eu acho que é acender mais
135

faróis sobre a pintura. Se ampliou a pintura com isso aí. Além da pintura, tu via uma outra
coisa, uma postura. E é uma coisa muito simples. A gente começou a curtir materiais como
pedras, troncos velhos, arame farpado. A gente começou a curtir esse tipo de materiais
também porque a gente pintava nossos quadros com esses materiais. A gente juntava isso no
meu ateliê, umas coisas que estavam lá já, a gente começou a curtir essa coisa da escultura,
montagem de elementos que formavam uma cruz, simboliza a marreta, o prego, tinham ícones
bíblicos também ali, um monte de coisas. O porquê? Fazer um cerimonial, um culto, uma
cerimônia, uma performance meio cerimonial. É muito desenho, o pano branco, pega o
carvão, faz a borda, é mais para um desenho do que uma performance corpo, ação, respiração,
alguma emoção. A gente estava montando um desenho escultórico ali.

E você me falou da primeira vez: “a gente não queria fazer no silêncio e resolveu botar a
banda”. Foi bem isso?

Olha, não dá pra lembrar exatamente o porquê, mas isso tinha muito a ver com as músicas que
a gente escutava na época, o movimento pós-punk que a gente curtia. Eu circulava com o
Palombini, circulava com o Edu, tudo muito próximo dessas pessoas também. Então a coisa
foi meio que curtindo, um ia na casa do outro, sabe? A gente estava junto, então não sei por
que a gente resolveu fazer isso daí ficar desse tamanho.

E como foi a repercussão?

Foi ótima. Encheu, lotou o lugar, a gente mesmo convidou as pessoas. E as pessoas ficaram
de boca aberta com a situação. Não sabiam o que dizer. Uma sobreposição de coisas: tinha um
som bacana e original, tinham as pinturas, a performance. E é um tema que não é muito
comum mesmo. Então é isso, aconteceu.

Teve algum tipo de ensaio?

Não, a gente fez um roteirinho. E a gente pensou as coisas, não ensaiamos, não. O Palombini
coordenou, começou aos pouquinhos e era improvisação mesmo.

O Ocidente era o ponto de encontro?


136

Era Bom Fim e Ocidente. Porque tinha mais coisas: o Lola, o Bar João, os barzinhos ali da
Vasco. O Ocidente sempre foi meio permanente na situação toda. Mas todo mundo tinha a ver
com o Bom Fim, todos circulavam ali. Não se andava em outro lugar em Porto Alegre de
noite, só se ia no Bom Fim.

E a história do bolo, é o ritual?

Missa. Missa total.

E os discos que vocês ouviam, algum em particular?

Depeche Mode, “Black celebration”, Talk Talk, o primeiro disco, Echo and The Bunnymen, o
The Cure. Siouxisie, muito. Eu tinha ido num show dela em Buenos Aires. O The Cure fez
dois shows aqui, não sei se antes ou depois, mas foi por aí. Eu sempre gostei de músicas mais
alternativas, ou eruditas, de improviso, free jazz, essas coisas assim. O Palombini tinha
começado a tocar teclado, ele tocava piano, mas pegou essas influências e comprou um puta
de um Roland.

Acontecia muita performance em Porto Alegre?

Não, não. Performance começou a surgiu mais recentemente.

E só poderia ser o Defalla?

O Defalla estava começando, eles estavam abertos pra esse tipo de coisa. Isso foi logo depois
do Fluxo. Eu tinha feito um flyer pro Fluxo, com logotipo, coisas assim, tinham essas
cruzadas. Coisas pros outros, gráficas, cartazetes pra curta-metragem, aí eu conheci as
pessoas.

Tu fez alguma capa de disco?

Eu fiz pro Replicantes. A capa que eles estão na Mário Quintana... Mas na real as pessoas não
entendiam muito. Essa coisa gótica era um questionamento meio assim, os cultos da época, as
pessoas deviam ficar assim: “o que é isso, que absurdo é esse?”. A gente ia de coturno pra
137

praia. Usava coturno no verão, tinha esse folclore. E outra coisa que é legal é que é efêmero,
uma noite e foi.

E depois teve a Bienal...

Esse ano eles tinham aberto umas 20 vagas pra mandarem dossiês. Estávamos com o trabalho
na cabeça pronto, botamos no papel e mandamos o nosso projeto. Os caras toparam. Nós
tínhamos já bastante pinturas, uma série boa. Era um bom espaço, um retângulo, e a gente
evoluiu isso aí. O Palombini estava em Londres, estudando música, a gente pediu pra ele
compor uma música para a Bienal, a gente replicou isso aí mais sofisticadamente. Ele fez uma
trilha que ficava em loop o tempo todo e tinha umas 15 ou 20 pinturas. A gente terminou com
os núcleos, por exemplo: os jardins. E aí tinha 4 ou 5 pinturas e cada grupo fazia um tema. Foi
a mesma coisa, fizemos uma coisa no chão também. Fizemos as pinturas e um despacho.
Mostramos as pinturas com um engorde, objetos, coisas. Na Bienal a gente fez uma cortina de
teatro vermelha, aberta, tu entrava num ambiente que exibia pinturas. Tem a ver com igreja,
as pinturas, alguma coisa de ritual, um altar, uma pintura principal, essa linguagem. E sempre
com temas assim: a vida, a morte, a existência, aquelas coisas. Na Bienal também tinha esses
tecidos, a gente fez uns quadrados de tecido e colocamos uns objetos em cima.

Vocês seguiram trabalhando em dupla?

Um pouco mais.

E vocês eram depressivos ou era só pela imagem?

É um discurso, um símbolo.

E por que tu desistiu, Telmo, de ser artista?

Não é que eu desisti. Eu nunca consegui entrar no mercado, na fatia certa, no ângulo certo, na
hora certa, sabe? Aí você tem uma ideia maravilhosa, mas não é o momento, não é o lugar. É
uma combinação de fatores que te faz ser relevante naquele momento, mas de repente tu não é
mais relevante mais daqui a 5 anos, né? Eu cansei. Fiz várias coisas, vendemos quadros, não
muitos, mas vendemos alguns quadros. Mas não o suficiente pra viver disso. Quando era mais
138

conceitual era impossível, daí foi pra pintura e veio algum retorno, fiz duas ou três
exposições, foi razoável. Mas parou. O mercado te puxa. Hoje em dia até dá pra viver sem
mercado, mas geralmente tem que ter um pé na vida acadêmica. Porque tem um ganha-pão
ali, uma coisa mais contínua, consegue estar no meio e tem um ganho. Ou dá sorte, faz uma
exposição, o mercado te adora, é tua linguagem, tua adora fazer aquilo, pronto.
139

APÊNDICE B – ENTREVISTA COM EDU K

Músico, integrante do grupo Defalla. Entrevista realizada por correio eletrônico em maio de
2012.

Quais suas lembranças deste fato. Como surgiu o convite. Por que a banda aceitou.

Putz, pra te falar a pura verdade não me lembro de quase nada! hahahaha! Essa época é meio
que um fog na minha cabeça...hehehe! Mas me lembro muito de um quadro do Nazari, um
óleo sobre tela com um crânio em cima de umas pedras: o Telmo e o Nazari eram meus heróis
absolutos do gótico nessa época! Como a gente (eu, em especial) andava sempre junto deles
foi natural o convite. Mas, do show, da performance em si, não lembro de NADA! haha

Como era a relação do Defalla (e a sua particularmente - todos dizem que você fazia
umas colagens massa...) com o circuito das artes visuais e com os artistas, havia diálogo?
Estava a banda interessada em apresentar sua música num contexto diferente do da
música pop?

O Defalla SEMPRE foi interessado em todos os aspectos da arte. Pra mim, o visual, as
linguagens não verbais, o show de rock como espetáculo teatral, sempre foi de suma
importância! E, Porto Alegre nos anos 80 era uma maravilha: todo mundo, de todas as áreas,
faixas sociais, gostos e tudo o mais estava misturado e operando em conjunto. Eu mesmo me
iniciei em MUITAS COISAS, ehhe, no ap do jornal Folha De Bar (não tenho certeza
ABSOLUTA se era exatamente esse o nome do jornal - mas era um jornal em forma de toalha
de mesa, plastificado, que era distribuído gratuitamente nos bares da cidade, e que reunia
todos os movers and shakers (ui, que Júpiter isso, haha) da POA pensante dos anos 80): lá
comecei a fazer colagens e bonecos de massinha (e a aprender TUDO sobre cinema) com o
Alex Sernambi, por exemplo. E tinha altas discussões cabeça-políticas com outros dos
moradores célebres, como o cientista maluco social, Jacaré, irmão da Polaca e primo da Biba.
Além disso, sempre foi tradição também transitar no meio do povo do teatro, desde o Urubu
Rei com suas performances em conjunto com o grupo Balaio De Gatos, de onde saíram Jaime
Ratinecas, Castanha, Patty Cecatto e Luciena Adami.
140

Se havia, onde o diálogo e as interações aconteciam? Como era o contexto daquele 1985.
.
Principalmente na rua, nos bares, botecos. Mas também em reuniõezinhas regadas a ácido nas
casa das pessoas (coisa da qual sinto saudades nesse famigerado mundo moderno das redes
sociais): por exemplo, foi na casa do Telmo, com a presença do Nazari que ouvi pela primeira
vez na vida o Axis Bold As Love, do Jimi Hendrix e, digamos que com o aditivo certo na
mente! hahhaah! Foram anos de formação e experiências incríveis que mudaram minha vida!
Tenho o Telmo muito como um pai espiritual mesmo!

Como foi o processo de criação musical para a performance. Houve interação com os
artistas? A banda conhecia as pinturas da dupla, elas influenciaram na criação dos
temas musicais ou foi pura improvisação? No momento da execução, os atos dos
performers coreografavam a música?

Cara, como já disse antes: infelizmente não me lembro de nada, ehhehe! Mas eu era muito fã
deles já na época. E dá pra dizer que os dois eram uma puta influência pra mim. Muito do
lance gótico do Defalla inicial, comigo, a Biba e o Carlo, vem deles.

A performance Porquê Choras? baseia-se em questões da pintura, do desenho, da


colagem. É possível criar música usando pensamentos de pintura, desenho e colagem? O
Defalla estava interessado neste tipo de questionamento em seu processo criativo ou era
simplesmente a força visceral do rock atuando?

Absolutamente! Eu sempre criei coisas de um ponto de vista visual. Depois com o advento do
computador e dos programas tipo Logic e Live ficou mais fácil ainda visualizar isso tudo: tais
programas criam, em termos de imagem da música, uma espécie de Lego musical, hehe. Mas,
sim, sempre fomos muito influenciados por arte em geral, pintura, colagem, filmes,
quadrinhos, livros - as vezes até mais do que por música em si. E, claro, a influência do hip-
hop e da música eletrônica e do uso dos samplers, levou o lance da colagem a extremos nunca
dantes vistos.

A subcultura gótica (dark, no Brasil) teve grande influência na obra de Lanes e Nazari,
refletindo-se principalmente na adoção de uma simbologia mística cristã e seus rituais.
Como o dark influenciou o Defalla?
141

O dark foi nosso pão e nossa água na fase inicial, tanto em termos de visual como em termos
musicais. POA foi a Londres brasileira nos anos 80, né? HAHAHA! Mas também em termos
de imagens e texto: sempre curti muito Poe e gostava dessa visão soturna e pesada do dark.
Tínhamos uma música que se chamava “Banshee” e falava sobre o medonho bicho que vinha
berrar à sua janela numa madrugada fria de fog que a morte estava por perto, hahaha.
142

APÊNDICE C – ENTREVISTA COM CAROLINE COON (Tradução: Marcela Leal)

Artista e jornalista, entrevista concedida por correio eletrônico em março de 2012.

De acordo com o Wikipedia, “the phrase ‘do it yourself’ came into common usage in the
1950s in reference to home improvement projects which people might choose to
complete independently”. Apesar disso, desde meados dos anos 1970, a expressão tem
sido fortemente relacionada ao movimento punk. Graças a você. Como essa associação
lhe veio à cabeça?

A associação do "do it yourself" como slogan não veio a minha mente especificamente em
relação ao que eu chamava de movimento punk – eu estava apenas afirmando o óbvio que
deve ter sido afirmado por pessoas empreendedoras desde o desenvolvimento da linguagem!
Quando exortei adolescentes a “fazerem eles mesmos”, estava tentando disseminar a
expressão que sabia – aqueles jovens criativos não precisam de "permissão" de adultos ou
muito dinheiro para ter iniciativa e criar. "Doing it yourself" é intrínseco ao rito de passagem
da dependência da infância à liberdade da fase adulta e tem relação com o que eu esperava
como um movimento de contracultura em desenvolvimento. Senti que era necessário afirmar
que adolescentes poderiam e estavam criando música popular e sua "cena" sem a necessidade
de equipamentos caros, gerentes ou grandes contratos com gravadoras.

O punk britânico parece esteticamente muito mais coerente que seu “primo”
novaiorquino pluralista (se pensarmos na cena do CBGB, onde as bandas pareciam ter
musicalmente muito pouco em comum). Por quê?

Aos meus ouvidos, as bandas no CBGB's tinham muito em comum - um típico som trash rock
de garagem! Se pensarmos no início da cena punk americana, tem uma coerência, uma
estética muito americana de fronteira nela - um 'estilo de fronteira' que associa-se à espacos
abertos, roupas de trabalho e falta de prumo, um visual desalinhado e cabeludo, um visual que
na música popular percorre do cantor folk andarilho branco até o grunge e som de garagem
americanos. Muito do que é considerado punk americano é o que eu chamaria de "música de
garagem". O punk 'arte' de bandas como de Patti Smith, Television, Blondie e Talking Heads
são outro assunto. A estética coerente do que chamo de estilo punk rock arte é uma funcão do
143

fato, frequentemente ignorado, de que foi criado por um ex estudante de arte em oposicão ao
estilo hippie dos anos 60. Adolescentes em Londres, em 1976, consideraram que o
movimento hippie tinha falhado, e o estilo que eles inventaram era anti-hippie: tecido
sintético, não orgânico; alfinetes, não bordados; calcas sob medidas, não jeans; calcas justas,
não boca-de-sino; urbano, não étnico; pesado, não leve; rígido, não fluido; e o mais
significante, não Paz e Amor, mas sim Ódio e Guerra! Pelo Reino Unido ser uma ilha
pequena, o impacto de um "novo" desenvolvimento ou estilo é contido e amplificado,
diferentemente dos EUA, onde enormes distâncias geográficas diluem e dispersam qualquer
'novidade'. Além disso, o Reino Unido tem um generoso Estado-Providência que dá às
pessoas criativas, na maioria jovens, a liberdade de estarem "desempregados" e vivendo do
capital que o Estado-Providência os provê sem a necessidade de ganhar dinheiro ou lucros
com sua criatividade. Para se ter lucros com a criatividade, normalmente é necessário ser
blando. Nos EUA, a pressão sob os jovens para serem blandos e "comerciais"pode inibir a
criatividade e experimentacão.

O punk despreza o passado, mas é bastante calcado na nostalgia dos anos 1950; começou
confrontando o sistema mas acabou como uma mercadoria cultural; é assexuado (de
acordo com Poly Styrene), mas sua moda é repleta de figurinos do sadomasoquismo e
sexo extremo. As copntradições são o combústivel principal do punk?

Dado que nao existe uma narrativa punk, não posso concordar com a afirmacão que o "punk
despreza o passado" ou "é muito baseado na nostalgia dos anos 50". Não conheco nenhuma
referência que possa confirmar tais afirmacões. Por favor, questione a afirmacão "comecou
confrontando o sistema e acabou virando uma mercadoria cultural". O que comecou aqui?
Desde quando algo não é uma mercadoria? Teóricos que demonizam o risco da
mercantilizacão parecem analfabetos econômicos. Pessoalmente, sempre fui muito grata por
existirem pessoas criativas que fazem livros, arte, música e moda que posso comprar
(normalmente muito menos do que realmente custou ao artista para criar e produzir).
Esperancosamente, uma porcão do dinheiro que gasto nos produtos de cultura, voltará aos
ótimos produtores criativos que poderão, então, continuar sua criatividade e viver com os
ganhos de seu treabalho criativo! A menos que acadêmicos entendam o contexto social e
político dos anos 1970 em que uma geracão de adolescentes emergiu, qualquer comentário
sobre ser assexuado (segundo Poly Styrene) será sem sentido. Para entender a adocão do
S&M como estilo ao se vestir para algumas mulheres punks, acadêmicos precisam examinar a
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reacão contra a segunda leva feminista que confrontou as adolescentes mulheres nos anos 70.
Como você acha que adolescentes mulheres poderiam confrontar a indignacão de sempre e
somente serem consideradas "objetos sexuais"? Parte do paradoxo da assexualidade contra
S&M é a funcão da ambivalência dos jovens sobre sua própria sexualidade enquanto
amadurecem à fase adulta – é um aspecto da estratégia necessária para negociar e confrontar o
patriarquismo e a misoginia. Contradição não é específico o suficiente para o punk. Considero
seu principal combustível o Pessimismo ou então, uma vez que a maioria dos punks foram
conscientemente raivosos com o mundo em que foram forçados a viver, Raiva, que pode ser
considerada como principal combustível do punk.

Para o crítico Fredric Jameson, o pós-modernismo é a expressão do capitalismo tardio.


Ele também considera o punk um exemplo de música pós-moderna. Logo, podemos dizer
que o punk é uma expressão do capitalismo tardio?

Desde que obviamente não estamos em um período de 'capitalismo tardio' - capitalismo é um


sistema sempre em desenvolvimento que é assunto de responsabilidade, regulamentacão e
melhorias - então qualquer teoria que diga que o punk é "um exemplo típico de música pós-
moderna" e "uma expressão do capitalismo tardio" é obviamente errada, ou pelo menos muito
contenciosa. Tal teoria como a de Jameson pode parecer separada da prática criativa atual e
ter pouco fundamento, na verdade. O que exatamente é 'pós-moderno' em música popular?
Não é possível desafiar acadêmicos cujas teorias foram provadas estarem erradas ou então
parar de citá-los?

No livro de Jon Savage England’s dreaming, a cineasta Mary Harron coloca que “havia
algo sobre ele [o punk] que era muito rigoroso, teve um elemento arte nele, sempre”. Em
sua opinião que rigor é este a que Harron se refere? E que elemento arte poderia ser
este?

Mary Harron, com quem trabalhei no final dos anos 70, foi uma das mulheres com massa
crítica habilitada pelo seu próprio talento e pela segunda leva do feminismo que fez seu lugar
num âmbito de trabalho dominado pelos homens. Ela entende o que é preciso para ser
criativa, por isso mesmo, está absolutamente certa por ter identificado o "elemento arte muito
rigoroso" no punk que tornou o movimento internacionalmente tão persistente e bem
sucedido. O "rigor" a que Harron refere-se, é a eliminação da indulgência e a habilidade
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necessária para se produzir boa arte. O mito foi disseminado, não menos pelos próprios
adolescentes, que nenhuma habilidade ou técnica era necessária para compor ou tocar música
popular. Esta "habilidade não exigida" era a bravata da juventude, uma fachada na qual
poderiam se esconder por trás enquanto as habilidades necessárias eram alcançadas. Os
músicos punk que sobreviveram e tornaram-se mundialmente famosos o fizeram, pois quando
subiram ao palco, trabalharam muito, praticaram e ensaiaram para tornarem-se tecnicamente
proficiente e até mesmo grande músicos. Arte é sinônimo de rigor. É a presença da arte na
música, nas roupas, nos posteres, nas capas de discos e etc. que deu impacto ao movimento
punk rock.

Podemos considerar o punk um movimento artístico, por quê?

As pessoas ainda estão discutindo o “punk” há trinta e seis anos desde que o movimento
eclodiu em nossa cultura, exatamente porque arte era fundamental para como os jovens
músicos se apresentavam. Muitas pessoas, como eu, que trabalharam juntas para criar o
movimento punk rock, haviam frequentado escolas de arte e foram movidas pelo desejo de
mostrar o que quer que fizessem com arte, coerência e estilo. Músicos do movimento punk
rock eram muitas vezes alinhados ou inspirados por arte política do passado – arte da
Revolucão Russa, o Movimento das Mulheres, Vorticismo, Situacionismo, Movimento
Hippie – que é uma das razões por terem sido bem sucedidos em criar seu próprio estilo
original e identificável. O estilo visual do punk é uma expressão de seu contexto social e, por
pensar ou considerar o punk como um "movimento artístico", é possível identificar as
questões sociais e políticas que muitos adolescentes da geracão punk aderiram. As condicões
sociais da época levaram ao pessimismo e desespero juvenil. Observe a auto-destruicão, a
vulnerável body art, os cortes e piercings, o sangue como 'decoracão' da vestimenta e você
vislumbrará a raiva e a perda de esperanca que o movimento punk tão corajosamente
confrontava e expressava!

O crítico Mark P. afirmou que o punk morreu no dia em que o The Clash assinou com a
gravadora CBS. Podemos considerar esse fato como uma das duas formas de
incorporação das subculturas que Dick Hebdige menciona em seu “Subculture; the
meaning of style” (a forma mercadológica). Você concorda com Mark? Ou, apesar de
sua incorporação, o punk ainda vive?
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Foi o entendimento político ingênuo de Mark P. (era jovem e iletrado) que, em um momento
de desilusão, levou-o a dizer que o "punk morreu no dia em que The Clash assinou com a
CBS". Obviamente o punk não morreu! Além disso, dado que subculturas como o punk
existem por causa de uma cultura dominante opressiva, e dado que subculturas normalmente
existem para desafiar e contestar a cultura dominante opressiva, o fato de que algumas das
solucões para as queixas da subcultura são 'incorporadas'à cultura dominante deveria ser
motivo de celebracão. Quando as contestacões subculturais tornam-se mainstream ou são
'incorporadas', então, na maioria dos casos, a cultura foi aprimorada. Um dos principais
motivadores da subcultura é o desejo pela mudanca. É sempre uma boa idéia analisar o que
muda para a cultura a proposta da subcultura. Em subculturas capitalistas democráticas
expandidas e aliadas à liberdade de expressão, eles são os grupos sociais aprimorados que
propulsam a contínua mudanca do capitalismo. A maioria das décadas capitalistas tem sido
marcadas por críticas subculturais que acarretam mudancas - cada crítica subcultural torna-se
uma inspiracão e uma forca propulsora para a crítica de subcultura da próxima geracão. O
punk está muito vivo como agente provocador de mudancas. A esquerda valoriza o elemento
masculino do punk, pois a narrativa masculina do punk é pessimista, o que reflete o
esquerdismo pessimista do homem branco exemplificados nos escritos de Dick Hebdige. Na
verdade, a narrativa feminista do punk é quase que totalmente ignorada pelos homens brancos
acadêmicos. Por quê? Poderia ser pelo movimento de Libertacão da Mulher como expressa na
narrativa feminista do punk ser uma revolucão em acontecimento altamente bem sucedida,
otimista e esperançosa?

Nos últimos anos você tem trabalhado com coagens, uma forma de arte bastante punk.
Qual a influência do punk em seu trabalho?

O punk certamente usou a colegem como elemento de sua estética – mas, para mim, o método
da colagem antecede o punk por décadas. Na verdade, o desejo de fazer narrativas complexas
em uma superfície lisa dentro de uma moldura simples é tão velho quanto a própria arte –
observe as pinturas de parede egípceas de 5000 a.C. ou a tapeçaria Bayeux, de 1070 d.C..
Imagens impressas baratas que emergiram no século XIX tornaram a narrativa da colagem e
da fotomontagem mais fácil. Desde minha adolescência tenho usado a colagem em minha
prática artística, inspirada por artistas como Hannah Höch, Pauline Boty e Colin Self. O
“estilo” punk não teve influência em meu trabalho – meu trabalho que teve alguma influência
no estilo punk. O que me influenciou do punk foi a “atitude”. Com o punk – e a primeira vez
147

em que vesti uma jaqueta perfecto de couro preta – encontrei uma maneira de ser assertiva! O
estilo “durão” do punk, o fato de que nós mulheres podíamos usar botas Doc Martin com
nossas microssaias, era muito libertador. O punk ajudou a construir minha auto-confiança
como artista.
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APÊNDICE D – ENTREVISTA COM SIMON REYNOLDS

Crítico musical, entrevista realizada por correio eletrônico, abril de 2012.

No livro de Jon Savage England’s dreaming, a cineasta Mary Harron coloca que “havia
algo sobre ele [o punk] que era muito rigoroso, teve um elemento arte nele, sempre”. Em
sua opinião que rigor é este a que Harron se refere? E que elemento arte poderia ser
este?

Acho que ela está se referindo a uma política atual ou a uma teoria crítica de arte derivadas de
políticas radicais ou escolas e universidades de arte. Havia idéias Situacionistas no ar entre
McLaren e Jamie Reid. Penso que Bernie Rhodes teve um passado político de esquerda bem
pesado. Mas isto era apenas um lado do punk. Tinha um outro lado muito mais politicamente
incoerente, mais a ver com a fúria da classe trabalhadora e um prazer delinquente em
barulheira e violência, o que levou ao Oi!.

O rigor no punk britânico, para mim, está muito relacionado à rigidez ou fanatismo – meio
que um desejo por poder e uma visão categórica e absoluta das coisas – que foi uma mudança
de sensibilidade, uma reação contra a suavidade hippie, liberalismo lento e tolerância. Havia
um tipo de limite não-liberal no punk e um desejo por clareza e divisão. Daí a famosa
camiseta "um dia você acordará e se dará conta de em que lado da cama tem dormido", feita
por McLaren e Bernie Rhodes, que dividiu o mundo entre bom e mau. Tinha os amigos da
revolução em um lado, e os contra-revolucionários (incluindo muitos ex heróis que eram
vistos como liquidados, como Bryan Ferry).

O punk britânico parece ser esteticamente coerente mais que sua versão novaiorquina e
pluralista (especialmente se pensarmos na cena do CBGB, onde as bandas parecem ter
pouco em comum). Por quê?

Acho que no início, havia meio que uma vontade de união, uma força centrípeta. Quanto mais
definido for o estilo de uma subcultura ou de um movimento - em termos de roupas, cabelos,
design gráfico dos discos, filipetas e pôsteres e em termos musicais também – mais ela se
sobressairá contra o pano de fundo cultural. Então, no início, estavam indo em direção à
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união, depois, as pessoas começaram a rejeitar aquela uniformidade e partiram para trajetórias
artísticas mais individualistas – que foi o que aconteceu com o pós-punk.

Hoje podemos estabelecer uma certa tradição anti-arte do futurismo e do dadaísmo até
o punk. Mas os punks originais estavam cientes disso ou é um tipo de criação crítica?

Alguns sim. Havia muitos estudantes de arte envolvidos e até pessoas que não frequentaram
escolas de arte crescendo interessados em idéias, você saberia sobre Dadaísmo, Surrealismo e
coisas do tipo. Eu certamente sabia – sabia de Dadaísmo antes mesmo de saber do punk. Creio
que ocorreram grandes exposições daquele tipo de arte na Grã Bretanha no final dos anos 60 e
início dos 70. O Dadaísmo também era conhecido por causa de coisas como Monty Python,
que foi algo tremendamente significante no Reino Unido – um tipo de Beatles da comédia. E
a música dos anos 1960 em si teve um elemento dadaísta – pense em "I Am The Walrus".
Então não eram coisas particularmente obscuras e algumas das pessoas envolvidas com o
punk conscientemente sabiam daquela história e como poderia relacionar-se com certos
aspectos do que estavam fazendo. Os Futuristas eram um pouco mais obscuros, mas,
novamente, se você fosse um estudante de arte, como muitos punks eram, poderia muito bem
ter sabido sobre os Futuristas.

Há um tipo de mentalidade, entre os espertos, jovens autodidatas, que amam este estridente
movimento artístico e a idéia do manifesto. O Dadaísmo, em particular, é uma combinação
irresistível de alto intelectualismo e da ânsia adolescente por vandalismo, perversidade e
travessuras. O livro Metroland, de Julian Barnes, tem uns jovens garotos suburbanos
crescendo no início e no meio dos anos 1960 que estão sempre tentados a épater la bourgeois
– chocar a classe média. A mesma classe média em que cresceram fazendo parte.

De acordo com o artista e escritor Dan Graham, o punk foi “desenhado para parecer
para a mídia liberal como (ambiguamente) fascista” com o objetivo de
“deliberadamente minar as presunções liberais da sociedade”. Você concorda com a
posição de Graham? Por que o punk é tão fascinado pelo fascismo?

Puramente para chocar, creio. E isso é uma expressão de traição, de aliar-se com o inimigo.
Quando cresci, nos anos 1960 e 1970, filmes da II Guerra Mundial estavam constantemente
150

na TV. A Grã Bretanha era o herói, lutando contra os nazistas. Este tipo de filme, em preto-e-
branco, a maioria originalmente feita nos anos 1950, passavam bastante na TV e penso que
eles eram um tipo de consolação pela perda do Império. Ao menos houve um tempo quando
nós, a brava pequena nação ilha, salvamos o mundo. Então, usar um símbolo nazista era a
coisa mais ofensiva que alguém poderia fazer em termos de gesto, para a geração de seus pais,
que na verdade havia vivido durante a guerra, perdido parentes em combate, tivera que
esconder-se embaixo no porão da cozinha durante os bombardeios – este era o maior gesto de
rebeldia, ofensa e repulsa que poderia ser feito.

Dick Hebdige argumenta que era uma falta de significado que pretendia comprometer o poder
de todos os símbolos e indicadores. Mas eu não acho isso, o significado da suástica era muito
fixo e deliberadamente exercido. Queria dizer que você rejeitava os sacrifícios da geração da
guerra, você rejeitava o orgulho britânico em estar do lado certo da única Guerra Boa. Era
traição.

Também conectou-se, creio eu, à linha não-liberal no punk, essas tendências anti-hippie, anti-
amor e anti-tolerância; o interesse pelas roupas sadomasoquistas e fetichistas; um sentimento
de que era hora para rigor e clareza, disciplina e união.

A cena gótica (que aqui foi chamada de dark) teve muita influência no Brasil nos anos
1980. Como uma subcultura como essa pode ser tão bem sucedida em um país como o
Brasil?

Não sei. Acho que talvez se você for muito alienado de sua sociedade, então vestir-se de preto
no calor é ainda mais apelativo. Existem muitos fãs de Death Metal e Black Metal na Flórida,
que é algo semelhante. Você está vivendo no estado ensolarado, que gira tudo em torno da
praia, do turismo e das palmeiras, então como rebelar-se? Você veste-se de preto, a pior cor
para se usar quando o sol está brilhando.
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APÊNDICE E – ENTREVISTA COM NICHOLAS ROMBES

Estudioso do punk, entrevista realizada por correio eletrônico, março de 2012.

1) O punk despreza o passado, mas é calcado na nostalgia dos anos 1950; começou
confrontando o sistema, mas terminou como uma mercadoria cultural; é assexuado
(conforme a cantora Poly Styrene), mas sua moda é repleta de figurinos de sexo extremo
e sadomasoquismo. A contradição é o combustível principal do punk?

Talvez, mas somente até um ponto. Não creio que bandas como os Ramones viam qualquer
contradição no que faziam: eles genuinamente amavam a música powerpop bubblegum dos
anos 1950 e queriam trazê-la de volta à vida, ainda que à maneira minimalista deles próprios.
A contradição estava em como o punk era percebido, porque itens de fetiche como o couro
negro, por exemplo, não foram uma introdução de algo novo e chocante, mas principalmente
uma recuperação de modas desviantes do passado (Marlo Brando no filme O Selvagem, de
1953, ou os delinqüentes chapados em A Marca da Maldade, de Orson Welles)

2) Para o crítico Fredric Jameson, o pós-modernismo é a expressão do capitalismo


tardio. Ele também considera o punk um exemplo de música pós-modernista. Logo,
podemos dizer que o punk é uma expressão do capitalismo tardio?

Eu estaria mais inclinado a considerar a música que conta com sampling e mixagem (certas
vertentes de hip-hop, eletrônica etc.) como expressões do capitalismo tardio maiores que o
punk, que é muito ligado a noções de “autenticidade” e um tipo de ética de trabalho industrial.
A valorização do aspecto DIY do punk esbarra em uma tradição musical bastante antiga (o
blues etc.) que evita a tecnologia pós-moderna (por exemplo: não há sintetizadores). Ao
contrário, o punk é profundamente enraizado em uma tradição humanista. É também
interessante notar que, em Pós-modernismo ou A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, a
única banda punk que Jameson cita pelo nome é o The Clash, grupo cujo explícito e “sincero”
posicionamento político o coloca muito mais na careta tradição da música de protesto dos
anos 1960, do que no niilismo apolítico do punk.
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3) No livro de Jon Savage England’s dreaming, a cineasta Mary Harron coloca que
“havia algo sobre ele [o punk] que era muito rigoroso, teve um elemento arte nele,
sempre”. Em sua opinião que rigor é este a que Harron se refere? E que elemento arte
poderia ser este?

Harron está certa. O rigor, acredito, é o senso de formalismo do punk. Especialmente em


bandas como Wire, Ramones, Pere Ubu, The Slits, a música é quase estrutural. A adesão a
uma única idéia. Em termos de elementos artísticos, houve muitos. Certamente o
minimalismo, especialmente em termos de repetição. E também (como Greil Marcus mostrou
muito bem) o Situacionismo. E com as bandas de NY como Patti Smith e Television
(principalmente com Richard Hell) houve uma forte ligação com a poesia, especialmente
Rimbaud e Robert Bly. E certamente o cinema da Nouvelle Vague francesa (de onde, alguns
dizem, a música new wave tirou seu nome) e os filmes de Godard e Truffaut (Richard Hell
cortou e espetou seu cabelo para imitar Antoine de Os Incompreendidos).

4) O punk britânico parece ser esteticamente mais coerente, mais ortodoxo, que sua
versão pluralista de Nova York. Por quê?

Esta é realmente uma boa questão. Creio que uma razão é absurdamente simples: a existência
do [bar] CBGB e [seu dono] Hilly Kristal. O CBGB foi notavelmente aberto para todo o tipo
de bandas, com estilos abrangendo bluegrass country, punk, eletrônica (por exemplo:
Suicide), power pop (Blondie, The Marbles), hard rock (AC/DC tocou lá em 1977) e a
emergente new wave. A “cena” era – ao menos entre 1974-77 – notavelmente aberta e fluida
em grande parte pelas preferências de Kristal serem tão vastas.

5) Hoje podemos traçar uma linha do futurismo e do dadaísmo até o punk,


estabelecendo uma certa tradição antiartística. Todavia, estavam os punks originais
cientes destas conexões? Ou isto é um tipo de criação crítica?

Não creio que seja uma criação crítica, apesar do próprio punk – como qualquer movimento
estético – ser sempre uma co-criação daqueles que o documentam e escrevem sobre ele. No
lado britânico, Malcolm McLaren era mergulhado no movimento Situacionista, e consciente e
deliberadamente empregou suas estratégias provocadoras/táticas de choque, quando foi
empresário dos New York Dolls e, logo depois, dos Sex Pistols. E seu compatriota, o artista
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Jamie Reid (que fez capas e pôsteres dos Sex Pistols), posicionou a colagem Situacionista no
primeiro plano, criando a assinatura “visual” do punk britânico. Os integrantes individuais das
várias bandas foram parte de tudo isso; eles não poderiam evitar.

E nos Estados Unidos, pessoas como Patti Smith, Richard Hell, David Thomas (do Pere Ubu)
foram altamente inspirados e conscientes da influência do Simbolismo francês, Dadaísmo, o
método cut-up de William Burroughs, a Nouvelle Vague francesa etc. Até mesmo Tommy
Ramone havia realizado filmes de vanguarda antes dos Ramones (há algumas citações dele
sobre isso no livro de Clinton Heylin From the Velvets to the Voidoids).

6) De acordo com Dan Graham punk foi “desenhado para aparecer para a mídia liberal
(primeiramente) como (ambiguamente) ‘fascista’” para “solapar as presunções liberais
da sociedade”. Você concorda com a posição de Graham? Por quê o punk é tão
fascinado pelo fascismo?

Penso a fascinação pelo facismo (há!) como parte de uma tendência maior que possuiu duas
partes. De um lado, houve um simples desejo de muitos jovens de espetar e chegar sob a pele
da geração anterior. Isso ficou cristalizado no punk, mas estava presente em outras formas de
cultura popular, em filmes como The Boys from Brazil (1978), um suspense/fantasia sobre a
ressurreição do Terceiro Reich, ou o filmes de exploitation como Ilsa, She Wolf of the SS
(1974). Anterior a isso, há um uso aberto da iconografia e dos símbolos nazistas (na comédia,
é claro) em produções totalmente mainstream como de The Producers (1968), de Mel Brooks,
e sua peça dentro da peça, “Primavera para Hitler.”

Mais sombriamente, a terrível recessão econômica de meados dos anos 1970 foi canalizada
em cultura popular de outras maneiras, como nos filmes de vigilantes como Death Wish
(1974) e na hiper violência (para a época) de filmes como The Texas Chain Saw Massacre
(1974) e The Last House on the Left (1972). Apesar de não possuir temática nazista, a
violência e o anti-humanismo desses filmes vem das mesmas condições que deram expressão
aos modos fascistas de algumas bandas punk.
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APÊNDICE F – REGISTRO DA PERFORMANCE PORQUÊ CHORAS?

Câmera 1- http://www.youtube.com/watch?v=60IqDboTCYs

Câmera 2 - http://www.youtube.com/watch?v=lVW4X6wBsu0

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