Comigo Ninguém Pode - Valentina K Michael
Comigo Ninguém Pode - Valentina K Michael
Comigo Ninguém Pode - Valentina K Michael
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia por escrito da autora, sejam
quais forem os meios empregados.
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança dos fatos aqui narrados com pessoas, empresas e acontecimentos da vida real é
mera coincidência. Em alguns casos, uma notável coincidência.
Ao fogo que só um bom churrasqueiro brasileiro sabe proporcionar.
Saúde!
Contents
Copyright
Dedication
Prólogo
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Vinte e oito
Vinte e nove
Trinta
Trinta e um
Trinta e dois
Trinta e três
Trinta e quatro
Trinta e cinco
Trinta e seis
Trinta e sete
Trinta e oito
Trinta e nove
Quarenta
Epílogo
Voltaremos em breve
Prólogo
CATARINA
— Por que não me contou algo tão importante, porra? — berrei para
Ravi, novamente dentro do banheiro presa com ele.
— Eu meio que falei...
— Não. Você apenas disse que era vegetariano, não vegano, e que isso
tinha te dado uma qualidade de saúde melhor. — Surtada, apontei para a
porta. — Você viu a cara de vencedor dele?
— Não confronta Gedeon, é isso que ele quer.
— Eu não estou confrontando. Mas como vou reagir se ele me trata
com toda essa desconfiança, como se eu fosse uma bandida e ele estivesse
prestes a me pegar no pulo? Você quer a noiva, você precisa da noiva, então
você vai enfrentar seu irmão e não permitir que ele destrua o seu
relacionamento.
— Ok, escuta... — Veio em minha direção, mas dei um passo para trás.
— Me conta. Que merda é essa? Você come carne?
— Eu tive um problema intestinal. Se eu comer carne vermelha, meio
que não me cai bem. E desde então, vi que minha qualidade de vida
melhorou muito depois de tirar a carne da minha vida.
— Porra, Ravi.
— Roxy.
— Para de me chamar de Roxy, vai acabar deixando escapar num
momento que não deve. — Apesar do sermão, falei de forma compassada.
Não queria brigar com ele.
— Tem razão. Cate.
— Cate?
— De Catarina. — Sorriu, e acabei sorrindo um pouquinho também.
— Me chame de amor. É mais convincente. E por que me fez ser
vegetariana?
— Ideia do Juliano. Ele achou que meu irmão não poderia ter qualquer
aproximação com alguém que não come a maior especialidade dele, já que
a derradeira namorada minha foi atraída justamente com o maravilhoso
churrasco.
Essa merda nem fazia sentido. Como eles queriam enganar a família se
me treinaram da pior forma possível?
— Qual é o próximo passo dele? O que ele vai fazer para tentar me
desmoralizar?
— Ele só vai te ouvir, te analisar com calma. Mas vai apontar qualquer
inconsistência, se perceber. Vamos sobreviver a esse almoço. O vovô gostou
de você, temos meio caminho andado.
Depois do almoço, que estava uma delícia, mesmo que o meu prato e
de Ravi fosse vegetariano, nos sentamos em um círculo em uma área plana,
debaixo de árvores, para conversar e fazer a digestão da comida.
Logicamente, eu era o foco. Todos queriam saber sobre a minha vida
perfeita em Nova Iorque.
Contei sobre morar com uma amiga, o que era meio verdade. Minha
colega de apartamento fazia programas quando ofereciam um bom dinheiro.
Porém, na história que contei para a família Barreto, ela era uma brilhante
advogada.
— Não mostrou ainda o anel que o Ravi te deu — Viviane, a esposa de
Rony, disse bem alto, chamando a atenção de todos. E pelo interesse
estampado nos rostos, acho que era algo que todo mundo queria ver.
— Bem lembrado. — Cassandra logo se animou, de olhos saltados. —
Queremos ver o anel de noivado.
— Cassie, a Catarina não gosta muito dessa... exposição. — Ravi,
meio tímido ainda tentou conter os ânimos.
— Está tudo bem, amor — sussurrei para ele. — É mesmo algo lindo e
simboliza nossa união. — Dei um selinho nos lábios dele, e quando olhei
para a plateia em torno, Gedeon estava com a pior cara do mundo. Parecia
sentir repulsa enquanto me fitava sem piscar.
Eu me levantei, saltitando como uma princesinha meiga, e passei
diante de cada membro da família mostrando o anel em meu dedo.
— Barbaridade! — Marilia exclamou segurando minha mão — Que
bom gosto o meu filho tem. Olha isso, pai. — Mostrou ao seu Alberto,
sentado do lado.
— Esse guri é um verdadeiro Barreto. Marcou logo a sua prenda.
Gostei de ver.
Continuei mostrando a cada um deles, inclusive as crianças, que já me
chamavam de prima. Até chegar ao último do ciclo.
— Quer ver também? — Bem cara de pau, surgi na frente de Gedeon,
mostrando o anel na minha mão estendida.
— Muito sortuda, você — ele disse, sem nem olhar o anel, os olhos
malignos cravados nos meus.
— Eu sou. Ravi é uma pessoa maravilhosa.
— E herdeiro.
— Detalhe indiferente diante das qualidades dele.
— Qualidades não compram um anel tão lindo.
— Mas fazem uma mulher feliz e realizada. — Pisquei sutilmente e
me afastei, voltando a me sentar ao lado de Ravi.
— Você gosta do perigo, amor — Ravi sussurrou. — Você é teimosa.
— Bueno, vou preparar um mate dos bons. — Gedeon levantou-se, e
isso atraiu Ravi.
— Venha, vamos assistir como se prepara um autêntico chimas. —
Nem tive tempo de recusar, fui puxada até a cozinha, onde Gedeon
ostentava sua cara de poucos amigos.
— Irmão, deixa ela ver como se prepara. Tentei mostrar um dia, mas a
erva esparramou tudo.
— Tu sempre foi péssimo em preparar chimarrão, Ravi — Gedeon
disse e escolheu uma cuia grande dentre várias. Inclusive tinha até cuia
personalizada de time, do Grêmio, que provavelmente era o dele. — Se
aproxime, Catarina, fique do meu lado para não perder nenhum detalhe —
convidou, se fazendo de gentil. E eu me aproximei, me colocando ao lado
dele.
— Qual é o melhor horário para tomar o chimarrão? Perguntei.
— O horário que a pessoa quiser. — Gedeon falou. — Às vezes eu
tomo umas cinco vezes por dia.
— Cinco vezes? — Presta atenção. Erva mate na cuia. Preencha até
chegar nessa curvinha da cuia — começou a explicar enquanto ia fazendo,
usando um tom baixo e suave na minha direção, como se só nós dois
estivéssemos na cozinha.
Ravi, à nossa frente, assistia.
— Agora tu vira a cuia meio deitada e ajeita a erva com a mão ou
com esse círculo aqui, que uns chamam de vira-cuia. Vai ficar esse buraco
na erva e tu coloca água morna, só um pouco, e espera a erva absorver.
— Eu faço diretamente com água fervendo — Ravi falou.
— Por isso o teu não presta. Fica com gosto de erva queimada. Ajeita
a bomba dentro, dessa forma, com o dedo na ponta, para prender o ar. E
finaliza com água quente até preencher.
Quase soltei um riso por causa do sotaque de Gedeon, que eu achava
interessante, bem mais intenso do que o de Ravi. A entonação da letra ‘e’
no final das palavras dava personalidade à fala.
Ele levou o canudo de ferro aos lábios, chupou um pouquinho e deu
uma piscadinha para mim.
— Está pronto.
Voltamos para o pátio, onde as pessoas esperavam. Sentamo-nos junto
aos demais no círculo, e Gedeon entregou a cuia para Ravi. Pelo jeito era
costume do lugar, fazer roda de gente para beber chimarrão. Gedeon até
trouxe a garrafa térmica para continuar acrescentando.
— Faça as honras, Ravi. Deixe que tua noiva prove primeiro.
Ravi pegou a cuia e passou para mim.
Eu sabia o que era, tinha lido sobre, tinha assistido vídeos de como
tomar, mas ainda não tinha provado. Não foi um vacilo não ter provado
antes, Ravi disse que minha reação deveria ser real diante de todo mundo ao
provar um chimarrão pela primeira vez.
— Suga um pouquinho e não precisa mexer na bomba — instruiu e,
com cuidado, suguei para saborear a tão famosa bebida gaúcha. Então
chupei com força, e minha boca inundou de líquido quente e muito forte.
Porra, desculpa, mas era ruim. Estava amargo, mesmo que não
estivesse tão quente. Senti minha mão tremer, e uma lágrima quase desceu
do olho. Era o maior vexame da minha vida. Eu cuspi chimarrão na frente
de uma roda de gaúchos.
— Ai, porr... por... por Deus! Me desculpem. Foi o reflexo.
As pessoas não pareciam se importar, estavam rindo e falando que era
assim mesmo, que sempre ocorria com quem não tinha costume.
— Você vai se casar com um gaúcho, e nunca tinha provado um
chimarrão? — Era Gedeon, tentando me pressionar de novo. Eu poderia
perder a cabeça ou me fazer de sonsa. Escolhi a segunda opção.
— Não. Ele já fez para mim. Só não estou acostumada mesmo. Mas
vou tentar novamente, me dá isso aqui. Não sou uma donzela sensível.
— É isso aí! — Marilia e as outras mulheres aplaudiram.
Dessa vez, um pouco mais preparada, suguei pouco e fiz questão de
olhar para o “dono do mundo” enquanto fingia saborear.
— Hum... parece sim algo que dá para se apaixonar. O amargor é
viciante. Hum... seu chimarrão é uma delícia, Gedeon — eu disse,
agradando todo mundo. Menos alguém que me olhava com muita seriedade.
****
I'm too classy for this world, forever I'm that girl
Feed you diamonds and pearls, ooh, baby[2]
Decidi não contar a Ravi que Gedeon me flagrou dançando. Era bem
capaz do meu noivo falso dizer que eu fui meio culpada por estar fazendo
na sala dele o que deveria fazer só no palco.
Como eu não vi esse cara me espiando enquanto rodopiava feito uma
doida pela casa? Teve uma hora que até subi no balcão e fiz pose com a
bunda virada para a porta, onde com certeza ele estava parado me vendo.
Que ódio!
Ravi chegou antes do almoço, para me buscar para almoçar com ele, o
avô e o primo. Eu me senti orgulhosa: ele informou que o avô insistiu para
que ele viesse me buscar. Sinal de que outros membros da família gostavam
mesmo de mim, inclusive o avô, que era, na minha opinião, mais
importante que o Gedemônio.
Quando contei para Ravi que o irmão esteve aqui, ele pareceu não se
importar muito. Estava preocupado com algo referente a Juliano. O boy
dele se irritou por ter sido deixado de lado. Juliano deveria ser o primeiro a
entender a situação, mas vinha na contramão, cobrando alguma reação de
Ravi.
Mais tarde, descemos e jantamos com Gedeon. Ele ia viajar mais tarde,
pois ainda tinha algumas coisas para resolver. E tudo que eu queria era vê-
lo partir logo.
Durante o jantar, que estava delicioso, ele foi bastante cordial,
principalmente comigo.
— Tomei cuidado em pedir um menu vegetariano para vocês —
informou ao nos apresentar porções de suflê de espinafre, arroz frito com
abobrinha e espaguete com cogumelos. Tudo estava muito bem preparado,
o sabor era deliciosamente requintado. Eu me senti em um restaurante de
luxo.
No entanto, eu salivava mesmo era pelo prato dele, que era nada mais
nada menos que um magnífico hambúrguer de picanha assada na brasa.
Gedeon escutava Ravi conversando enquanto saboreava o hambúrguer,
lambuzando a boca de molho picante e ketchup, e eu observando feito um
cachorrinho faminto espiando um forno com frango assado.
Logo o assunto se voltou para mim.
Falei sobre as noites em Nova Iorque em que Ravi e eu saímos para
assistir a algum musical ou visitar alguma exposição de arte, coisa que
jamais aconteceu. E Gedeon assentia, mirando meu rosto enquanto
saboreava sua refeição.
Ravi contou sobre seu dia a dia e sobre o curso de aprimoramento que
estava fazendo para conseguir a vaga na diretoria da empresa do avô. E
Gedeon calado, só comendo.
— E como era sua vida aqui, Catarina? — perguntou, limpando os
lábios com um guardanapo. — Antes de ir embora?
— Bom... eu estudei até o ensino médio, fazia balé e achava que essa
era a minha carreira. Dançarina. — Sorrindo, olhei diretamente para
Gedeon, tentando explicar por que estava dançando quando ele me
encontrou mais cedo. — Morava com meus pais. Minha mãe faleceu, mas
continuei com meu pai, e...
— Eu sinto muito — Gedeon interrompeu — pela sua mãe. O que seu
pai fazia?
— Ele era... contador. — Abaixei o rosto em direção ao prato. — Em
uma empresa... Lá na minha cidade.
— Hum... não é mais?
— Não. — Sorri, incomodada com medo de ser pega na mentira. —
Ele precisou se aposentar.
— Motivo de saúde?
Porra, o homem era uma máquina de perguntas. Deveria ser
investigador da polícia.
— Sim... meu pai... começou a ter... episódios de ansiedade.
— Ela não gosta de falar do pai — Ravi interveio rapidamente, o que
eu quase agradeci com um suspiro.
— Ah, desculpa. Mas ele está bem, não é?
— Sim. Está. Ele mora com um tio meu.
— Que bom. Foi em Nova Iorque ou ainda aqui que você optou pelo
vegetarianismo?
— Aqui — falei no ato, e minha mente elaborou, com rapidez, uma
historinha. — Em uma aula de biologia percebi que o ser humano pode
viver sem ter que se alimentar de outras espécies.
— Eu discordo. Mas todas as escolhas devem ser respeitadas.
— Sim. Melhor ainda que isso me deu um pontinho a mais em comum
com meu amor. — Sorri para Ravi, e quando voltei a fitar o outro lado da
mesa, Gedeon nos encarava, nem um pouco feliz e com o nariz franzido.
Ele pediu licença, se despediu e disse que ia se preparar para viajar. E
isso aconteceu bem rápido. Estávamos na sala de televisão quando ele
apareceu já pronto, lindo de doer, com uma bolsa a tiracolo, fazendo as
últimas recomendações.
Disse que teríamos uma cozinheira disponível, que Ravi já conhecia,
além de outros funcionários que já estavam avisados sobre nossa
permanência. E que qualquer coisa que precisássemos, era só falar.
Fomos até a porta, acenamos para ele enquanto entrava no carro com
um dos peões e enfim foi embora, nos deixando sozinhos.
— Livres! — Ravi berrou, me agarrando e me girando ali na sala
mesmo. — Agora vou tomar um banho, me preparar, pois minha noite
promete.
— Não demore, por favor. Vou ficar presa na sala assistindo televisão
até você voltar.
Livre do julgamento constante do churrasqueiro, me joguei na cama,
peguei o meu celular e liguei para minha amiga em Nova Iorque, enquanto
Ravi corria para o banheiro.
Nove
CATARINA
Ravi fez questão de avisar a um funcionário — aparentemente um
segurança ou algo do tipo — que ia dar uma saída rápida para buscar algo
que esqueceu no apartamento dele, e de lá ia passar na casa do seu guarda-
costas particular para resolver algumas questões. E na tentativa de parecer
mais coerente, fingindo que era um homem protetor, ainda pediu que ficasse
de olho, pois eu ia ficar sozinha em casa.
Já passava das onze. Eu tinha na cabeça que essa escolha de Ravi não
tinha sido a melhor. Mas o problema era dele, quem precisava enganar a
família era ele. Eu não estava lidando com uma criança; era um homem que
sabia dos perigos de suas decisões.
Às onze e meia, o tédio bateu, além da fome, já que eu tinha jantado às
sete da noite. Impressionantemente, a fome era a primeira ação do corpo
quando o tédio chegava.
Por isso é costume da humanidade abrir a geladeira para pensar.
Sentada no sofá, cansada de navegar pelos canais da televisão,
tamborilei os dedos, olhando para a porta. Provavelmente eu estava sozinha
na casa, já que Gedeon não disse se algum funcionário dormia aqui dentro.
Era reconfortante ao mesmo tempo que era amedrontador saber que estava
sozinha em uma mansão em uma fazenda.
Descalça, caminhei até a porta e abri, espiando o corredor.
Apenas silêncio.
— Olá! — gritei, parecia até com aqueles filmes de terror. — Tem
alguém na casa? — Nada. Cheguei à conclusão de que não seria problema
descer e assaltar a geladeira.
Na ponta dos pés, atravessei o corredor e observei a ala de Gedeon em
completo silêncio. Como deve ser feito, apenas ignorei aquela parte, indo
em direção a escada, descendo degrau por degrau, ainda chamando por
alguém. Nada. Eu estava mesmo sozinha.
Então relaxei, dando tempo para bisbilhotar as coisas da sala, que não
parecia tão fria. Tinha muita coisa íntima que contava a história do dono.
Gedeon era um homem de posses, além de ser rodeado de pessoas que o
amavam. Dava para ver nas fotos, nos prêmios de competição de polo e na
sua grande paixão, o churrasco.
Não pude deixar de me perguntar por que um homem com todos
aqueles predicados estava sozinho. A opção gay estava riscada. Eu sabia
que ele era mulherengo.
Será que a desconfiança impedia o homem de ter uma esposa e
constituir uma família?
Cheguei à cozinha, decidindo deixar acesas apenas as luzes laterais.
Ao abrir a geladeira, encontrei, logo de cara, um belo hambúrguer igual ao
que ele tinha comido no jantar.
Estava repousado em uma redoma de vidro, como se esperasse
alguém. Minha boca salivou junto com o ronco do estômago. Tinha Coca-
Cola também, e mesmo que houvesse sobrado parte do nosso jantar
vegetariano, era o hambúrguer que chamava a minha atenção. Fazia tempo
que eu não provava um bom lanche brasileiro.
Mas antes eu precisava armar um plano para encobrir meu roubo, já
que tinha dois vegetarianos na casa, então alguém teria de levar a culpa pelo
sumiço da carne.
— Vou dizer que fui tentar pegar algo, a vasilha com o lanche caiu e
precisei jogar fora.
Com o álibi em mente, cortei metade do hambúrguer, coloquei em um
prato e enfiei no micro-ondas.
— Vai, vai. Rápido. — Eu ia pegar e sair correndo para comer no
quarto. E quando o aparelho apitou, informando que estava pronto, tirei o
prato incapaz de me conter, aspirando o cheiro saboroso.
Era simplesmente impossível, meu estômago estava controlando a
minha mente. Então dei uma mordida farta, soltando um sonoro gemido de
satisfação no processo.
— Assaltando minha geladeira? — Ouvi atrás de mim e quase tive um
treco. A boca estava cheia, nem podia gritar. Então me virei, escondendo o
prato às minhas costas e parando de mastigar, com a mão na boca.
Ao olhar para o lado, vi ninguém menos que Gedeon, bem ali, na
passagem da porta da cozinha, me assistindo. De onde esse capeta surgiu?
O homem era como um encosto, uma assombração.
Sorrateiramente, ele se aproximou. Vestia apenas bermuda e camiseta
regata. Ficou tão perto, que conseguiu aniquilar qualquer reação minha. Eu
não passava de uma boneca inanimada, sem respirar, fitando-o de olhos
saltados, enquanto o bocado de hambúrguer continuava inerte na boca.
— Abre a boca. — Ordenou bem perto de mim. Apesar da voz ser
compassada, os olhos mostravam dureza.
Tentei escapar, mas ele me agarrou.
— Abre. A. Boca. — Tornou a mandar em um sibilo próximo. Não
abri, então ele me prendeu contra a bancada, segurou com força meu queixo
e forçou até minha boca abrir. — Bah, que tri safada! Comendo um bom
hambúrguer de picanha — zombou maldosamente — Eu sabia que ia
descobrir algo com meu plano da falsa viagem, só não imaginava que seria
isso.
Dei um solavanco, empurrando-o, e com a mão na boca, terminei de
mastigar e engoli. Estava tão desconcertada, que não sabia onde enfiar
minha cara. Gedeon se afastou um passo, me libertando de sua altura
intimidante.
— Por que está fingindo para meu irmão que é vegetariana? — A
arrogância de sua vitória estampada em seu rosto me incomodava. Eu dei a
ele exatamente o que queria: comprovação para suas indagações
estapafúrdias.
— Eu não... você não pode...
— Não posso o quê? Responde!
Na verdade, eu não tinha nada para contestar. Não tinha pontos fortes
para minha defesa. Ele me pegou no flagra, e a sensação era terrível.
— Fala! — rosnou, ameaçador — Por que está mentindo para ele e por
que ontem no almoço mentiu para minha família?
— Tá. Tá bom. — Eu o empurrei afastando uns passos ficando de
costas enquanto meu coração quase saia pela boca. — Eu... estou no
processo... de ser vegetariana por causa dele. Eu quero agradar o seu irmão,
e por isso... achei que teríamos pontos em comum se eu tivesse os mesmos
gostos que ele. É isso.
— Percebi ontem no almoço o olho gordo que tu colocaste na costela.
E à noite, fiz um hambúrguer só para tirar a prova. O que mais está
escondendo?
— Nada. Você que é um... dissimulado. Fez o seu próprio irmão achar
que você ia viajar só para descobrir algo de mim? Como diz que o ama se
não confia nele?
— Não tente virar esse jogo. — Cruzou os brações enormes e ficou na
minha frente, bloqueando o meu caminho. — Eu não confio é em você. Se
você é capaz de enganar seu noivo com essa ladainha de vegetarianismo, o
que mais não é capaz de esconder?
Ele teria um treco se descobrisse que o único a ser enganado aqui é ele,
e não Ravi.
— Eu não estou escondendo nada. Ravi me conhece muito bem, e
você não deveria ficar se intrometendo no relacionamento alheio, ele é um
homem adulto...
— E vai querer me dizer no que eu tenho e não tenho que me
intrometer? Ravi é bobinho, estou protegendo guri de interesseiras.
A raiva só aumentava conforme eu era pressionada e não via qualquer
meio de fugir daqui sem antes passar pelo troglodita. Dei uma boa olhada
nele, e não conseguia entender como meu corpo ainda sentia qualquer
atração por um cara que evidentemente me irritava. Eu passei a minha vida
sendo criteriosa com homens, e muitos deles cativaram meu desprezo
fazendo menos do que Gedeon fazia.
— Por que não vai procurar alguém para você? — eu alfinetei,
perdendo o medo do perigo. — Acho que é disso que está precisando.
Parece que tem inveja do que o seu irmão conquistou.
De uma forma surpreendente, minha flechada o atingiu em algum
ponto que não era do meu conhecimento. Quando a mandíbula enrijeceu, eu
soube que o feri.
— Inveja? Eu? Gedeon Barreto, o rei do churrasco, com inveja do meu
irmão mais novo? Você é uma piadista, Catarina.
Não é o que sua cara diz.
— Você é mal-amado — acusei em voz alta. — Ele tem um amor. É
disso que você tem inveja. — Eu estava atirando no escuro, rezando para
atingi-lo.
— Barbaridade, que grande amor esse, hein? Um amor que mente para
ele? Fosse eu, queria era distância.
— Não é uma mentira grave. Eu fiz isso para agradá-lo.
— Se precisa mentir para agradar o seu amor, então parece que não
sou eu o mal-amado.
— Vá se foder — saiu rápido, sem que o filtro pudesse impedir. Tentei
escapar com agilidade, quase correndo, mas o homem me segurou, me
jogando contra a bancada, e se posicionou quase em cima de mim. Fez
questão de pressionar seu corpo contra o meu.
— Ah, a bela e conservadora Catarina, que frequenta igreja, fala em
“foder”? Mas pelo que vejo, foder não é algo que Ravi faça tão bem com
você.
— Você tem que me respeitar. Eu sou a sua cunhada.
— Não ainda. Eu que vou decidir isso. Vamos, me mostre suas
asinhas.
— Você quer é palco. — Mais uma vez eu o empurrei, batendo a mão
no peitoral. — E eu não vou te dar o que você quer.
— É uma pena. Pois se você me desse o que eu realmente quero, eu
iria comer com força até você aprender a não mexer mais com a família
Barreto. Voltaria assada para Nova Iorque. Do jeito que um bom
churrasqueiro sabe fazer.
Chocada com as palavras, eu o observei se afastar de mim. Pegou o
prato com a metade do sanduíche que esquentei e o colocou ao meu lado no
balcão.
— Coma enquanto ele não volta. Será nosso segredinho. — Virou-se e
saiu da cozinha dizendo: — Estou te vigiando, Catarina. Estou te vigiando.
Ravi chegou pouco depois. Eu o ouvi conversar com Gedeon, que
deveria estar na sala aguardando. Se eu não estivesse tão tensa, teria
apreciado os dois irmãos mentindo um para o outro.
De um lado, Ravi dizendo que tinha esquecido a bolsa do notebook nas
coisas de Juliano, seu segurança particular. E que teve de esperar ele chegar,
pois não estava no apartamento. Meu noivo falso foi bem convincente.
Do outro lado, Gedeon mentia dizendo que nem chegou a sair da
cidade, pois não precisavam mais da presença dele, e que como amanhã ele
teria coisas importantes para fazer aqui, decidiu vir dormir em casa.
Eles se despediram, deram boa noite e, minutos depois, Ravi entrou no
quarto.
— Meu irmão está aí — de olhos saltados, anunciou.
— Eu vi. E me flagrou comendo um hambúrguer roubado e descobriu
que eu não sou vegetariana.
— Porra, Cate. Sério? Com tanta coisa na geladeira, foi comer justo
carne?
— Não me julgue, você inventou essa merda de ser vegetariana.
— O que ele fez? Você parece tensa...
— Aquele homem é um demônio. Ele me encurralou, abriu minha
boca à força e verificou. Então inventei uma história de que estava me
tornando vegetariana para te agradar.
— Ele caiu? — Com as mãos na cintura, Ravi estava regado de
expectativa, me olhando.
— Não sei. Mas tentou me humilhar e...
— E...? — A testa franziu conforme ele arrastou a vogal.
— E jogou indiretas bem pervertidas. Ele praticamente disse que quer
transar comigo, vê se pode?
E talvez eu desça a um nível decadente e queira também.
— Eu sabia. — Com o punho, bateu na palma da mão. — Percebi no
jeito que ele te olha. Você tem que ser forte, não pode ceder, está ouvindo?
— É claro que não vou ceder. Eu estou com raiva dele.
— Raiva e tesão andam juntos. Cuidado. Só tenha cuidado. — Sentou-
se na cama, começando a tirar os sapatos.
— E você tente não me deixar sozinha de novo, porra. — Saí da cama,
andando pelo quarto, odiando ainda estar mexida com as palavras de
Gedeon — Que merda. Esse mês vai demorar um ano para passar.
— Falamos disso amanhã. Estou exausto. Vou tomar um banho e cair
na cama.
— Ao menos está satisfeito?
— Demais. Estou destruído. — Arrancou a camisa, indo para o
banheiro. — Juliano não pegou leve.
— Seu pervertido!
Com uma risada, ele fechou a porta, e eu caí de costas na cama,
olhando para o teto e imaginando o churrasqueiro maldito não pegando leve
comigo.
Dez
GEDEON
E não deu outra, eu estava certo. O lado bom de ser racional, sem a
porra do coração metido no meio, é que a intuição sempre está certa. Na
primeira noite, já consegui descobrir coisas valiosas.
Eu a peguei com a boca na botija. Catarina: gostosa e mentirosa.
Estava enganando meu irmão com a história do vegetarianismo.
Minha vontade era de expor tudo para ele naquele momento.
Desmascará-la e arrastá-la para longe de nossas vidas, como eu deveria ter
feito com outra no passado. Mas havia um pequeno problema que não
cheguei a mencionar ainda.
Não paro de pensar em como seria tri gostoso poder dar um puxão na
cabeleira dela, colocá-la diante dos meus olhos e mostrar quem manda.
Tenho sede de ver aqueles olhos vívidos assustados em minha direção, por
ela saber que seu destino está em minhas mãos. Tenho desejo de ter aquela
sem-vergonha mentirosa nua, debaixo de mim, enquanto geme de modo
safado.
Eu a flagrei dançando, e aquilo foi o fim para mim. Eu vi aqueles
seios, um com piercing inclusive, eu vi aquelas curvas enquanto ela se
mexia de modo sensual, aquela bunda pidona exigindo uns tapas. Aquele
olhar de santinha que provavelmente ficaria minutos de joelhos na minha
frente.
Então percebi que o alerta de Santiago fazia sentido: o perigo maior
não era Ravi ser enganado. O perigo maior era meu pau e minha mente
serem arrastados pelo caminho da perdição. O perigo maior era ser traído
pelo meu próprio desejo.
Agora, estou aqui, investigando minha provável cunhada, querendo
desvendá-la ao mesmo tempo que seus lábios cínicos moram em meus
pensamentos. Eu vou virar o cão se tiver de bater uma em homenagem a
ela.
Mulher ruim a gente não homenageia, coloca para correr.
Se ela mexia tanto comigo, não deveria ser uma integrante da família
Barreto. Eu tinha de mandá-la embora.
Não tinha dado nem sete da manhã, e eu voltava para casa depois de
fiscalizar o transporte de alguns animais, quando o telefone tocou. Sobre o
cavalo, atendi, fazendo o animal diminuir os galopes.
Era o João Bento, um dos amigos — meu melhor amigo na verdade —
que coloquei para investigar a vida de Catarina.
Inicialmente resisti em investigá-la. Não parecia uma ação justa. Mas
depois de todas as implicações, eu tinha de saber quem estava dentro da
minha casa, com quem eu estava lidando. E como Bento era delegado, as
coisas ficaram mais fáceis.
— Bueno, Gedeon. Não encontrei nada tão forte, por enquanto.
— O que descobriu?
— É meio difícil, pois a vida dela está em outro país, e você não me
deu muitos detalhes. Mas descobri que ela abriu as redes sociais
recentemente. Se tu vir o Instagram dela, ele se tornou público há pouco
menos de um mês, justamente quando ficou noiva do seu irmão.
— Ok. Como está o Ig dela?
— Catarina Maria 25. Tudo junto.
— Certo. Vou olhar depois. Amigo, vê se consegue algum contato em
Nova Iorque para nos ajudar. Algum amigo do meu irmão, qualquer pessoa
que possa averiguar se a história dela é real.
— Tu vai enlouquecer com a vida dos outros, tchê. Relaxa.
— Eu te contei que a sujeita estava metida dentro do meu quarto
futricando minhas coisas, além de ficar exibindo anel caro e mentir que é
vegetariana. Preciso ter certeza.
— Vou ver o que consigo, e você vai ficar me devendo essa. Se tudo
estiver certo com ela, posso dizer que o seu irmão escolheu muito bem,
hein? Essa é tri gostosa.
Ouvir isso me deu uma espécie de lapso de raiva que fez o corpo
ferver.
— Se recomponha, porra. Respeita a mulher do próximo.
— Como se você não pensasse o mesmo, Barreto. Volto a te ligar
assim que tiver novidades.
Não que Ravi não pudesse se proteger, mas eu, como irmão mais velho
que já passou dobrado por causa de peste de mulher interesseira, tinha
obrigação de não só o proteger como proteger nossa irmã e o resto da
família de contratempos desnecessários.
As interesseiras tinham um método: iludiam o cara, depois faziam da
vida dele um inferno, tentando arrancar até as cuecas do sujeito.
Foi isso que fizeram comigo. Era isso que poderiam fazer com meu
irmão, bem menos experiente do que eu. E talvez o coração bondoso de
Ravi não fosse forte o suficiente para aguentar.
É triste quando o coração de um homem empedra por consequência da
morte do seu amor. O meu se tornou rocha cedo demais. Não havia chances
de reverter.
Deixei o cavalo com um peão e segui a pé até a casa. Após tirar as
botas, verificando que eu precisava de um banho, sentei em um banco da
área externa para espiar o celular. A curiosidade era tanta, que não
conseguia esperar.
Entrei no perfil da sujeita, e lá estavam as fotos dela. Bento estava
certo, era bonita mesmo, e disso eu já sabia. Parei alguns segundos,
admirando uma foto em que usava um vestido de alças finas, cabelos ao
vento, braços abertos, com a Estátua da Liberdade ao fundo. Fiquei tempo
demais preso ali, observando aquele sorriso, tentando sentir raiva, quando
na verdade sentia outra coisa.
Segui olhando as demais fotos e lendo cada uma das legendas,
enquanto ignorava duas fotos recentes em que ela estava com meu irmão.
Simplesmente não queria ver, meu coração disparando meio
insatisfeito toda vez que via os dois juntos. E eu julgava que era sentimento
de revolta por ver que talvez ele estivesse sendo enganado.
Terminei de bisbilhotar o perfil de Catarina vergonhosamente de pau
duro.
Maldizendo, tirei a camisa e me levantei, entrando na casa portando
uma senhora ereção. Como já deveria esperar das peripécias do destino,
quase topei de frente com a inspiração para meu pau duro. Catarina. Bela e
perigosa pela manhã. Vestida como uma professora boazinha de colegial;
vestido florido, sapatos vermelhos e uma faixa também vermelha nos
cabelos.
E não estava sozinha, minha mãe a acompanhava.
— Ah, Gedeon. Vim assim que soube que Ravi e Catarina vieram
pousar aqui na fazenda.
— Bom dia, mãe. — Recebi o beijo dela enquanto escondia o volume
na calça, que não passou despercebido pela minha cunhada. Levemente
perplexa, ela deslizou os olhos pelo meu corpo, parando por milésimos de
segundos na minha calça. E eu tirei a mão mesmo, para ela ter uma visão
completa.
Minha mãe falava pelos cotovelos já na cozinha, enquanto no meio da
casa Catarina e eu duelávamos com olhares. Nem pisquei enquanto a
encarava.
— Catarina, anjo, quer me ajudar a preparar o café? Acho que
Veridiana não vem hoje — minha mãe gritou, tirando a peçonhenta do
transe. Ela engoliu a saliva e falou:
— Bom dia, senhor Barreto.
— Sou senhor agora?
— Para mim, sempre foi. Quero pedir desculpas pelo inconveniente
ontem à noite.
— Qual o inconveniente? Ter roubado meu hambúrguer ou ter mentido
para meu irmão?
— Não acho que o senhor vá fazer conta de um hambúrguer...
— Eu preparei com muita dedicação. Talvez eu queira cobrar por ter
desperdiçado.
— Me cobrar por um hambúrguer? — Deu uma risada áspera.
— E por ter mentido para meu irmão. — Meus olhos fuzilavam o rosto
belo e cínico dela.
— Você não está se importando com nenhum dos dois. Quer apenas
afagar o seu ego.
A resposta estava subindo na minha garganta até sermos
interrompidos.
— Amor? — Ravi desceu a escada, olhando torto para nós dois, e eu
me afastei um passo. — Me abandonou sozinho na cama. — Aproximou-se
e abraçou Catarina por trás, deixando-me inexplicavelmente desconfortável.
Que maldita sensação era essa? Eu estava incomodado com meu irmão
abraçando a própria noiva? Só podia ser brincadeira.
— Bueno, mano. — Ainda abraçado com ela, olhou para mim.
— A mãe está aí. Vou tomar um banho e desço logo para tomar o café
da manhã com vocês.
Apaixonado. Burro. Enfeitiçado. Era assim que eu estava na época em
que pedi a mão de Nívea em casamento.
Mas quem diabos era a Nívea? Na opinião emocionada do Gedeon de
25 anos, era a mulher mais bonita que havia passado em frente aos seus
olhos.
Enquanto ensaboava meu corpo e ignorava a presença da ereção que
clamava por Catarina, me esbaldei em julgamentos impiedosos para a
minha versão jovem que deixou uma mulher chamada Nívea destruir para
sempre meu senso de confiança em outras mulheres.
Eu a conheci no Centro de Tradições Gaúchas, quando ela estava
turistando aqui com um bando de amigos, e seu ruivo ondulado — que
mais tarde descobri não ser natural — me instigou a tentar uma
proximidade. Porém, devido à minha aparência de jovem adulto ainda não
lapidada, não fui tão bem recebido.
Lembro do riso cruel que ela soltou quando perguntei se “a guria ruiva
queria provar um churras” da barraca de churrasco que eu trabalhava.
Paulista, era estudante de odontologia, mas não por paixão, tinha de
fazer algo por pressão dos pais. Amava festas, cinema e conhecer lugares.
Corria durante a manhã e adorava ver o sol se pôr. Tudo que se poderia
fazer fora de casa, Nívea apreciava. Ela definitivamente não era uma
mulher caseira. E isso não me incomodava, pelo contrário, me fez querer
viver com ela uma vida não tão introspectiva.
Fiquei enfeitiçado. Era a mulher que pedi a Deus. Eu ia lutar por ela.
Uma batalha que se mostrou vazia quatro meses após o casamento,
quando aspectos de minha vida se tornaram defeitos para Nívea.
Ela odiava meu dialeto gaúcho e se enveredou em uma missão de
tentar aniquilar esse traço da minha fala.
Ela odiava o modo como eu me vestia, porque parecia matuto demais.
Ela odiava que eu me interessasse tanto por churrasco.
Em uma carta, endereçada para um ex-namorado, mas que foi uma
facada para mim, li a confissão de que Nívea só aceitou se casar comigo
quando soube que eu era herdeiro de uma poderosa construtora.
Eu lembro de ter chorado, algo que hoje tenho vergonha de ter feito.
Ela estava me traindo com o ex-namorado toda vez que ia a São Paulo
fingindo que ia visitar os pais.
E eu? Bom, eu fui resumido a uma galinha de ovos de ouro que falava
estranho e tomava chimarrão, mas que não deu certo.
Meu coração acabou de se despedaçar quando a confrontei e ouvi
gritos revoltados por eu ter lido o que não era da minha conta. Mas já que
eu tinha descoberto, ela terminou de atirar sem pena palavras duras. E
concluiu que não tinha saído de São Paulo para ser mulher de pobre coitado
sem ambição.
Terminei o banho sem o pau duro e me sentindo mais intransigente em
relação à Catarina. Eu não era do tipo que reprimia lembranças ruins, ao
contrário, eu sempre as deixava me possuir, para endurecer ainda mais meu
coração, como uma forma de me alertar para não ser mole com pessoas
estranhas. Não ia me abaixar para qualquer um. E protegeria não só a mim,
como também os meus irmãos, de futuras Níveas.
No divórcio, Nívea não levou só metade dos meus bens. Levou um
pedaço do meu coração. Levou a parte boa.
Tomei café de pé, recostado na bancada, fitando de modo cortante a
mentirosa se fazendo de santa. O fingimento de Catarina despertava minha
revolta — como cutucar um leão com uma vara curta. Fiquei em posição de
alerta ao assistir a facilidade com que enganava minha mãe e meu irmão
com seu jeitinho meigo, quando na verdade era uma cobra na minha
presença.
Mas eu ainda não tinha nada suficiente contra ela, e se eu implicasse
assim, só com suposições, Ravi poderia se espinhar contra mim.
Santiago era a mente sensata do grupo, ele estava certo quando dizia
que precisava ter evidências robustas, e eu não tinha isso ainda contra
Catarina.
Depois de tomar café, pedi a Ravi para me acompanhar numa volta a
cavalo enquanto Catarina decidiu ajudar minha mãe na cozinha. Veridiana,
a cozinheira, tinha acabado de chegar e estava contando para elas o que
pretendia fazer para o almoço.
Lado a lado, cada um sobre um cavalo, Ravi e eu adentramos pelos
limites da fazenda, que estava tri bela, completamente verde-vivo por causa
da chegada da primavera. Os cavalos iam devagar, apenas trotando pelo
caminho que rodeava o curral.
— E então, como foi todo esse tempo que passou nos Estados Unidos?
— perguntei a Ravi, mesmo já sabendo, afinal a gente se comunicava
sempre por telefone durante a temporada que ele passou por lá para se
aprimorar. Ravi tinha força de vontade, e ia ser burrice se nosso avô não lhe
desse a direção da empresa. Ou ao menos parte dela.
— Foi bom. Novos ares, novos costumes. E você? — Olhou para mim
por baixo do chapéu. — Preso aqui, na Barretão, como sempre?
— A conversa não é sobre mim, sabe disso. Eu estou bem.
— Aos quarenta anos. Sozinho nesse palácio rústico... — instigou,
disposto a fugir mesmo da minha pontaria.
— Sozinho uma porra. Essa fazenda é mais frequentada que um
albergue. Já teve até suruba aqui.
— Você não tem jeito. — Riu da minha fala. — Espero não estar
tirando sua privacidade. Você que teimou para eu vir.
— Não está. É sua casa também.
Eu gostava que ele estivesse aqui, debaixo do meu teto. Eu me sentia
como uma galinha mantendo os pintinhos protegidos debaixo das asas.
Ravi foi quase como um filho que eu criei, pois quando o nosso pai
morreu, ele tinha só dez anos e colou em mim. Mesmo tendo a mãe, era eu
o homem adulto mais próximo. E ela tinha a Cassie, que era uma bebezinha
de três anos.
Sempre bem tímido e retraído, ele encontrou em mim apoio irrestrito.
Eu o ensinei a cavalgar, o ensinei a preparar churrasco, o ensinei a dirigir.
Além de todas as conversas e conselhos masculinos que sempre estavam
disponíveis para ele.
Era de um jeito, que, durante o colégio, ele preferia que eu fosse às
reuniões de pais. Por isso eu sabia que a minha opinião sobre seus
relacionamentos seria muito importante para ele.
Apenas o som dos cascos dos cavalos no chão embalava nosso passeio,
até ele me olhar por trás dos óculos escuros.
— Quer falar sobre minha noiva, não é?
— Você me conhece mesmo. Sim, quero. Ainda não tivemos
oportunidade de conversar sobre ela. — E pela postura relaxada de Ravi, eu
sabia que não era problema para ele.
— E o que quer saber? — Parou o cavalo debaixo de uma árvore, e eu
parei junto.
— Como é isso? É sério mesmo? — Desci do cavalo, ele desceu
também, e nos aproximamos da cerca que separava o pasto do gado.
Debruçamo-nos ali, lado a lado.
Dei tempo para ele, mas nem precisou, porque respondeu de prontidão:
— É, porra, é sério. Já coloquei um anel no dedo dela e a trouxe para
conhecer a vocês.
Era profundo para ele. Catarina tinha de ser boa gente, senão doeria
nele e em toda a família.
— E confiança? — Olhei na direção dos olhos dele, e mesmo estando
de óculos escuros, Ravi virou o rosto, observando o horizonte.
— Catarina é uma pessoa maravilhosa. Ela é engraçada, gentil e me
ouve. Ela me apoia nas minhas falhas.
— Desculpa dizer. Pareceu tudo tão falso... artificial, do jeito que ela
contava. Tudo tão perfeito. Gosta de arte, gosta de musical, frequenta igreja,
é vegetariana...
— O pior que é tudo verdade.
Não tudo. Eu sabia e fiquei com o coração apertado por ele. Queria
sacudir meu irmão e dizer que a flagrei dançando e comendo carne.
— Será que ela não armou essas coisas... essas qualidades, só para
tentar te agradar?
— Gedeon, por favor, vou te pedir aqui. — Ravi colocou a mão no
meu ombro enquanto olhava no meu rosto — Não se intrometa nesse
relacionamento. Os outros, eu não me importei, você provou seu ponto, e
foi até bom mostrar que aquelas outras só queriam meu dinheiro. Foi um
livramento.
— E essa não pode ser igual?
— Não. Não é. Catarina é uma boa mulher e quero ver se vamos dar
certo, sim. Não procure coisinhas mínimas sobre ela, eu não vou querer
saber. Me prometa.
Pensei por alguns segundos e assenti, sorrindo.
— Eu prometo, meu guri.
***
CATARINA
No sábado, eu sofri um grande desaforo quando fui retirada à força da
cama em plena seis da manhã, pois era dia de jogo de polo, algo muito
importante na família, e eu deveria estar lá para prestigiar o meu noivo, um
dos jogadores. Além dele, também havia o irmão e o primo dele, e mais um
monte de homem que eu não conhecia ainda, mas que certamente eram
iguais ou piores que Gedeon.
De mau humor, me arrumava em frente ao espelho quando Ravi saiu
do banheiro prestes a se vestir. Eu nem ia dizer que era um desperdício um
homem desse ser gay, porque, de qualquer forma, alguém estava
aproveitando. Só não me parecia justo que esse alguém fosse o chato do
Juliano.
Gedeon deveria era interferir no namoro deles e procurar um homem
melhor para o irmão dele, isso, sim.
— Eu queria matar quem inventou essa tradição de jogar polo em um
sábado tão cedo — murmurei, tentando tirar a aparência de morta-viva do
meu rosto com uma leve maquiagem. O pincel deveria ser uma varinha
mágica.
— Meu avô. Você terá a chance de assassinar ele hoje, se assim ainda
desejar.
Droga.
— Desculpa, falei achando que tinha sido um antepassado longínquo
seu. — Fiz silêncio enquanto pincelava a maçã do meu rosto com blush,
gostando do tom donzela-enrubescida-natural. — Você gosta disso? De
polo?
— Prefiro ir a um desfile de moda. — Ravi andou de cueca pelo
quarto, a bunda era uma atração à parte. — Mas gosto, não porque quero
agradar alguém, mas porque acho diferente.
— Bem diferente mesmo. Montar em cavalos e correr atrás de uma
bola segurando um taco. Só homem mesmo para inventar esses esportes
sem sentido.
Optei por usar uma calça de sarja belíssima que Gus me fez trazer,
camisa de botão, por baixo de uma jaqueta, botinhas de salto médio e, para
arrematar o look, prendi os cabelos em um rabo de cavalo baixo com um
chapéu por cima.
Ravi estava muito gato usando calça própria para o esporte, bem
agarrada ao corpo, além de camisa polo que dava uma visão avantajada de
seus bíceps. Eu não tinha atração nenhuma pela aparência do meu falso
noivo, mesmo que ele fosse lindo de morrer. Mas meus pensamentos
estavam prevendo a aparência do irmão, que certamente estaria usando uma
roupa igual.
Podia não parecer, mas eu estava levemente preocupada. Não contei
nada a Ravi. Gedeon saiu quinta-feira à noite, parecia apressado, e até
comentou com Ravi que estava indo rapidinho à casa de um amigo dele. Foi
algo que poderia ter passado despercebido, mas na sexta-feira quando eu o
revi, soube, pelo olhar, que algo tinha mudado.
O homem simplesmente estancou na cozinha, parecendo uma estátua
de um touro bravo, me olhando com rudeza na expressão, sem esconder que
atirava em mim o seu olhar de raiva. Não que antes ele tivesse sido mais
receptivo, porém aquele olhar era diferente de tudo que eu já tinha
presenciado.
E desde então, não o vi mais.
Ravi e eu descemos para tomar café antes de ir. Gedeon não estava
mais em casa, o que foi um alívio para mim. Consegui comer com
tranquilidade, escutando Ravi explicar tudo sobre o polo. Um esporte que
não necessariamente é uma tradição do estado, mas era da família Barreto.
O seu Alberto, avô dele, sempre amou esse tipo de esporte, por ter sido
atleta profissional na juventude. E em parceria com Gedeon, eles montaram
o Polo Barreto, time que ia competir no primeiro amistoso com times da
América do Sul, no ano seguinte.
Mas o jogo que veríamos hoje era apenas tradição da família, que
passou do avô para os netos. Uma tradição que apenas ricos poderiam
usufruir, concluí depois que soube, chocada, do preço da manutenção de
cavalos, campo e treinadores.
— Então o time é do seu avô? — indaguei.
— Sim. Mas hoje não iremos jogar com o time profissional. É só uma
diversão em família, amigos e simpatizantes.
— Seu pai jogava?
— Sim. Todo homem da família jogava. Só o meu padrasto que não
conseguiu se adaptar. Ele não é chegado a montar a cavalos.
Algo me veio à mente, um assunto que mal falamos desde que nos
conhecemos. E não acho que havia barreiras entre nós dois, sobre o que
poderia ou não perguntar.
— Como era sua relação com o seu pai?
Pelo jeito que parou de comer para me olhar, pareceu um assunto
inesperado para ele. Ainda assim, não havia sinais de censura.
— Não precisa falar... se não gostar.
— Não tenho problema em falar. Eu tive uma relação boa com ele. —
Ravi deu uma olhada em volta, como se para se certificar e voltou a falar
em um tom mais baixo: — Se estiver perguntando por causa da minha
sexualidade, ele não teve tempo de descobrir. Na verdade, nem eu me
entendia direito. Eu tinha só dez anos quando ele faleceu.
— Eu sinto muito.
— O Gedeon teve mais tempo com ele. Viveu longos vinte anos tendo
um pai. E pelo que sei dele, são bem parecidos. Acho que por isso meu
irmão tem toda essa obsessão por proteger a nossa família. Penso que ele
tem medo de que algo aconteça e o deixe com a sensação de que falhou
com nosso pai.
Entretida com o assunto, mas não relapsa, foi a minha vez de olhar em
volta antes de sussurrar para ele:
— Por que você acha que sua família te rejeitaria? Todos parecem tão
unidos e parecem amar uns aos outros incondicionalmente. — Ravi não
sabia o que era uma rachadura familiar. No meu caso, tinha sido uma
cratera irreversível. Todavia, não havia possibilidade de medir a experiência
dos outros usando a minha como base.
— Porque eu sei o que esperam de mim. — Seus punhos fecharam
sobre a mesa, não de raiva, parecia apreensão — Que eu tenha uma esposa,
que eu seja pai, que eu dê prosseguimento ao legado dos Barreto. E
infelizmente não poderei dar isso a eles.
— Dar prosseguimento ao legado não é necessariamente ter filhos,
ainda que você possa os ter mesmo não sendo hétero. — As mãos de Ravi
relaxaram quando me olhou. — Você pode fazer a sua própria história, e
assim, quando você se for, poderão dizer: aquele era Ravi Barreto, ele
deixou uma história, um legado. E muita gente poderá se inspirar no que
você deixou registrado. Elvis Presley não é lembrado por causa de sua filha,
mas sim por sua música.
Ravi colocou a xícara no pires enquanto me fitava meio surpreso, ao
mesmo tempo que a felicidade brilhava em seu semblante. Então ele sorriu
e assentiu.
— Belas palavras, Cate. Não tinha pensado por esse lado. Estou
gostando de ter uma amiga-psicóloga-stripper.
— Cala essa boca. — Eu me inclinei de volta na minha cadeira,
terminando o conteúdo de minha xícara enquanto escondia o sorriso.
— E você? Qual legado quer deixar? — perguntou.
— Não sei qual será, mas vou deixar algum. — Joguei o rabo de
cavalo de um lado para o outro — Um dia, um sábio me disse: vá e faça
geografia, mas eu estou aqui prestes a fazer história.
Ele gargalhou com minha fala e disse em meio à risada:
— Você é a minha diva pop preferida.
— Sei que sou. Agora vamos ver esse jogo e torcer para tudo sair
como nos nossos planos.
— Você vai torcer em segredo para que Gedeon caia de um cavalo, não
é?
— Você me conhece tão bem, amor. — Peguei no braço dele, e
caminhamos juntos em direção à saída, onde o carro nos esperava.
— Espere só até conhecer o amigo inseparável dele — Ravi falou e
terminou cochichando em meu ouvido: — João Bento, o delegado mais
gostoso que você vai ver em sua vida.
— Ah, que merda. É horrível ser santa e comprometida.
***
Chegamos ao clube, que era tão extenso, que me fez pensar que talvez
fosse do tamanho de uns dois campos de futebol; verde e plano, bem
semelhante aos campos de futebol. Fui recebida por olhares curiosos das
pessoas que eram convidadas para assistir ao jogo. Ravi tinha me avisado
de que eu era o assunto mais falado nas rodas da sociedade, por isso não
estranhei e me senti a própria celebridade.
Abraçando o meu corpo, como se me protegesse da tensão, admirei por
alguns segundos o verde a perder de vista da grama devidamente podada do
campo onde os cavaleiros disputariam a bola.
De um lado ficava a arquibancada onde as pessoas se sentavam para
assistir, e do lado oposto, os carros estavam estacionados de forma que
muita gente assistiria ao jogo sentada na carroceria de suas caminhonetes.
Para mim, tudo era uma novidade deslumbrante sobre as tradições da
família Barreto. Eles estavam me dando a minha primeira ligação positiva
com o Brasil, que não tinha sido um país amigável desde o meu nascimento.
Não construí tradições familiares e muito menos tradições com o estado
onde nasci, pois tudo que fiz foi sobreviver.
— Parece que a mulher de Rony não gosta de mim — sussurrei para
Ravi, agarrada à mão dele como se fosse um amuleto. — Virou a cara na
hora e fingiu que estava brincando com a criança.
— Ela tem um ciúme forte por esse homem. Relaxa, daqui a pouco ela
se acostuma.
— Já eu acho que ela nos vê como ameaça ao cargo do marido dela.
— Pode ser também. Rony já era considerado presidente da empresa
até eu anunciar que ia disputar a vaga também e que tinha uma noiva.
Respira fundo, meu irmão tá vindo.
E ele apareceu.
Engoli em seco quando vi Gedeon caminhar em nossa direção. Assim
como diziam minhas previsões, ele estava um arraso de gostoso na roupa
que marcava ainda mais o corpão de macho alfa.
Senti meu corpo gelar, as pernas fraquejarem, enquanto o coração se
dobrava para trabalhar.
Eu me empertiguei, ficando séria. Não queria graça com esse homem.
— Pode me ajudar? — Foi logo falando com Ravi, ignorando minha
existência bem ao lado.
— Claro. — Meu noivo encarou o irmão de modo prestativo, sem nem
saber do que se tratava. — O que houve?
— O carro do Bento deu tranco logo agora. Você pode ir buscá-lo?
Não vou porque estou recepcionando...
Aquele pedido me acendeu a desconfiança na hora. Como assim um
delegado não tinha um meio de vir sozinho até aqui?
— Claro. Vou, sim. — Ravi se prontificou sem pensar. Agarrada ao
braço dele, nem me abalei. E quando estava prestes a sair com meu noivo,
Gedeon me deteve.
— Fica aqui, cunhada. Vou apresentar o campo a ti, o local do jogo.
Estamos felizes que você vai presenciar um jogo da família.
— Ah... eu. — Porra, ele me pegou desprevenida e estava sendo gentil.
Ravi e eu trocamos um olhar. Eu queria que ele teimasse e dissesse que a
noiva dele ia com ele, mas sabia também que Ravi não ia rebater o irmão
em algo tão trivial.
— Está tudo bem para você? — perguntou para mim.
— É claro que está. — Gedeon quem respondeu, rindo mais falso que
nota de três. — Olha o tanto de gente aqui, ninguém vai roubar ela não.
Com o olhar, eu implorava para meu amigo não me deixar a sós com o
diabo.
— Tá bom. — Ravi concordou fitando meus olhos. — Volto logo, se
cuida.
Restou-me apenas sorrir educadamente para ele, acenando. E assim
que Ravi se afastou, não era mais o Gedeon simpático ao meu lado, era o
cão ameaçador que vi ontem.
— Você vem comigo — disse apenas e caminhou. Contei até cinco
buscando paciência e o segui, acenando para Marilia, que estava na
arquibancada com a irmã dela.
— Vem aqui depois — ela gritou. E eu respondi que ia.
— Bem grande o campo, não é? — falei com Gedeon, lutando para
acompanhar suas passadas. Eu tinha de tentar manter alguma civilidade
com ele. Se ele quisesse brigar, que brigasse sozinho. Eu não ia perder meus
dólares nem fodendo.
— É. — Rosnou. — Vamos andar no campo, cunhada, para alongar as
pernas. — Não estava sorrindo, mas sua proposta parecia inofensiva diante
de tanta gente de testemunha. Ele não ia tentar nada, apenas jogaria um
pouco de veneno, talvez.
Eu poderia me questionar se estava imune a qualquer veneno de
Gedeon, mas a resposta era óbvia: nunca estive imune. Em minha defesa,
gosto de usar a cartada da idade que cobria a minha experiência de vida.
Eram vinte e cinco meus contra quarenta dele.
Aceitei a proposta, caminhando ao lado de Gedeon, que diminuiu a
velocidade das passadas, me dando uma chance de acompanhá-lo sem
precisar correr. Fingindo-se despreocupado, dava um passo por vez,
chutando um montinho de grama aqui, outro ali.
Olhei para sua bota com cara de nova e ergui o olhar em direção aos
olhos que me fitavam. Mordi o lábio, atraindo peso daquele olhar todo para
minha boca. Então decidi nos distrair.
— Aqueles são os cavalos? — Apontei para o celeiro, mesmo de longe
dava para ver que estava repleto de animais.
— Sim.
— São muitos — falei o óbvio, sem parar de olhar naquela direção, o
que era mais cômodo do que olhar para senhor-desconcertante-Gedeon.
— Cada jogador precisa de pelo menos cinco cavalos — adicionou a
curiosidade.
— Nossa. Por quê?
— Os cavalos precisam ser trocados a cada intervalo de tempo, mesmo
que estejam bem, é a regra. Mas cada tempo dura em torno de sete minutos.
E nos distanciamos mais das pessoas, ao mesmo tempo que todos
poderiam nos ver andando lado a lado no meio do campo vazio. Era,
inclusive, um acaso estarmos no meio de um campo como duas pedras de
xadrez prontas para duelar. Eu ia evitar uma guerra, mas venceria caso
entrasse nela.
— Tá gostando da recepção que minha família está fazendo para ti? —
Gedeon perguntou.
— Sim. — Eu mentiria se falasse que não. O meu calor familiar
morreu quando eu tinha dez anos. De lá para cá, minha única família tinha
sido as meninas da boate de Gus. Eu gostava de estar com Ravi e a família
dele, quase me fazia sentir parte disso tudo, até eu lembrar que aquilo era
somente um negócio. — São pessoas maravilhosas. — Sorri cordialmente
para ele, que não me retribuiu.
— Gosta do que vê? — Parou de andar e apontou para tudo em volta.
O clube onde estávamos era simplesmente gigantesco. — Toda essa
opulência, todo esse poder. Aqueles cavalos são bem caros e até o time
inteiro é da família Barreto. Sabia disso?
— Ravi comentou — falei, tentando prever qual era a armadilha que
ele estava tramando. Não parecia uma conversa trivial.
— Mas nada disso é dele. — Cravou o olhar mortal em mim.
— O que está querendo dizer? — Parada no meio do campo junto a
ele, cruzei os braços, fitando-o.
— Que o time é meu em parceria com meu avô. Os cavalos que os
jogadores vão usar são meus. Eu não só faço churrasco, embora seja a
minha paixão. Sou um dos maiores criadores de cavalo de raça do país.
Ravi não tem nada aqui, ele depende do nosso avô.
Olhei para a grama, buscando controle para minha respiração. Eu sabia
o que ele estava tentando fazer, me fazer desistir do noivado ao mostrar que
o irmão não teria poder nem tanto dinheiro como muitos achavam.
— Não vai dizer nada, Catarina?
— E, ainda assim, ele parece bem feliz. — Cravei os olhos nos de
Gedeon. — Só quero que ele realize os sonhos dele. Não é o que queremos,
Gedeon? Afinal, nós dois amamos o Ravi.
— É. Amamos. — Riu cinicamente enquanto mantinha o lábio inferior
preso aos dentes. — Sabe, tchê, mudando de assunto, eu tenho uma égua
que está ficando na minha fazenda... — Voltamos a caminhar devagarinho.
O vento batia teimoso nos cabelos dele, desalinhando-os.
— E não trouxe ela para correr? — transpareci curiosidade, o cenho
franzido.
— Não. Ela não é de correr. Ela é mais de ficar na sombra e água
fresca. Ela gosta do bem-bom. Essa égua é indomável e também
manipuladora.
— Manipuladora? Com tantos atributos, você deveria levá-la a um
show de animais talentosos.
— É, estou pensando no que vou fazer com ela. Mas já tenho um nome
para dar, quer ouvir e dar uma opinião?
— Tem um nome? E qual seria?
— Roxy. — Seu semblante inteiro mudou para ameaçador ao falar o
nome. — O que você acha desse nome, Catarina, para a égua dissimulada
que está na minha fazenda?
Doze
CATARINA
Ele sabia. O desgraçado descobriu. Meu mundo caiu, e foi Gedeon
quem o derrubou.
Quase caindo dura aos pés dele, ainda fui forte para manter a pose
sofisticada, enquanto fingia absurdamente, mesmo que fosse impossível
ocultar o susto inicial. Eu não podia me entregar tão fácil, ia só negar até
meu último suspiro. Se ele tivesse alguma prova, eu ia retrucar dizendo que
era montagem.
Hoje, na era da tecnologia, tudo poderia ser explicado com uma
montagem.
Eu passei por trancos e barrancos durante minha adolescência, depois
fui obrigada a namorar um coiote xexelento para poder atravessar a
fronteira de graça. Tudo isso para agora perder para um cão gaúcho? Essa
vergonha não ia fazer parte da minha biografia jamais.
Empinei o queixo diante dele.
— Hum... Roxy. Parece tão requintado... Não achei que a tal égua seria
assim.
— Ela acha que é requintada. Mas é só uma fodida qualquer — foi
cruelmente escroto, me desafiando.
Quase saí da personagem, com vontade de apontar o dedo na cara dele
e pedir para me respeitar. Eu não podia tomar as dores de uma suposta égua.
E graças aos céus, fomos interrompidos. Cassandra nos viu de longe e
estava vindo em nossa direção.
Sorri, bem sonsa para Gedeon.
— Enfim, desejo tudo de bom para você e a égua, e que ela consiga o
que sempre quis. — Fiz uma carícia de leve no bíceps dele, e, porra, era
bem grosso e duro. Gedeon olhou surpreso para meu gesto. — Vou
andando, quero dar um olá para minha amiga Marilia.
— Sua cínica do cacete, se afaste da minha mãe. — Agarrou com força
meu braço, rosnando bem pertinho da minha nuca. Arrepiou tudo que tinha
poro em meu corpo. Um homem desse era castigo, não benção.
— É minha sogra — respondi de volta sem conseguir me calar.
— Te aguardo segunda-feira em meu escritório às nove da manhã.
Temos negócios a tratar. — Soprou no meu ouvido e se afastou de imediato,
usando uma máscara de bom moço só porque a irmã chegou.
— Oi, Catarina. — Usando botas, saia longa e um agasalho bonitinho,
Cassie estava fofa em plena manhã fria de sábado. Seu cabelo era mesmo
um espetáculo de cachos amarronzados esvoaçantes. Recebi seu abraço, e
ela logo olhou para o irmão.
— Onde está Ravi? — Seu olhar, carregado de desconfiança, pulou de
mim para ele.
— Foi buscar o Bento. O carro dele deu pau. Vamos para lá?
— Meu irmão não estava sendo um chato com você, fazendo um
questionário, não é? — Cassie abraçou o meu braço, e seguimos juntas em
direção à arquibancada.
— Sim, estava — confirmei, rindo.
— Eu sabia. Deixa de ser um chato de galochas, Gedeon! — ela gritou
para ele, que já se afastava da gente. — Eu sabia que ele ia fazer isso. Não
te deixou desconfortável, não é?
— De maneira alguma. Ele é assim com seus namorados também?
— Pelo menos se eu conseguisse chegar na fase de namoro... — falou
em meio a uma risada, tratando o assunto com humor. Mas eu sabia que, no
fundo, ela sofria por não ter liberdade de poder ficar com quem quisesse. Se
Gedeon pudesse, provavelmente teria enfiado a irmã em um convento.
***
***
Bento: é sério?
Nero: agora sim vai ter briga. Era o que eu precisava para meu fim de
domingo.
Santiago: injúria o cacete. Eu vi. Só não sei seus motivos, mas vi. A
música era essa.
Bento: ele quer comer a noiva do Ravi. Ele estava dançando a música
que falava com ele mesmo.
Santiago: Meu chapa, bota na tua cabeça, ela é tipo seu pavê
Só para vê, não pode comer.
Santiago: O rei do drama começou cedo. Se você mexer mais uma vez
na estrutura do nosso grupo, a intimação vai comer bonito.
E, para completar, Bento teve a cara de pau de mandar um meme que
ele mesmo editou. Era uma imagem do Dick Vigarista, com a legenda: “Oi,
irmão, gostaria de saber se sua noiva está solteira”
Silenciei o grupo para tentar me concentrar no dia que estava por vir,
quando eu precisaria erguer mais ainda as minhas defesas e fazer o favor ao
meu irmão.
Dezoito
CATARINA
— Essa é a pior ideia que você já teve em sua vida.
Terminava de passar hidratante no rosto antes de ir para a cama onde
Ravi já estava. Olhei para ele sem sentir raiva, mas nutrida de algum
sentimento que não era agradável. Ravi não podia ter ido pedir um absurdo
desses a Gedeon sem ter conversado previamente comigo. Só depois que
teve a cara de pau de me avisar.
Ele estava me entregando de bandeja para uma fera.
— E o que você tinha em mente? Deixar que meu irmão te
pressionasse amanhã? — Ravi contestou. — Eu o ouvi falando com Bento
ao celular e decidi intervir...
— E como isso pode ajudar? Fazer com que ele seja a minha sombra...
Eu te contei que é perigoso, pois inevitavelmente há atração entre nós dois.
Decidi omitir um monte de coisas para Ravi. Não contei do beijo na
sacada, nem da queda na piscina e muito menos do outro beijo na pista de
dança. Apenas contornei por alto dizendo que Gedeon parecia mesmo
interessado em mim.
— É óbvio que pedir a ele um favor meio que vai prendê-lo. Gedeon
tem um forte senso de cuidado comigo, por isso que ele queria te expulsar
durante o meu expediente, para eu não sofrer tanto.
— Então você acha que, para te agradar, ele vai desistir de me expulsar
e aceitar ser meu guia por aqui?
— Eu tenho certeza.
Sentada na cama, olhei para meu falso noivo se acomodando melhor
contra os travesseiros, achando uma posição boa, pronto para dormir.
Respirei pesadamente. Eu ia entrar em um espiral de tentação sem fim, que
seria praticamente impossível de resistir.
Não parava de pensar no beijo de ontem.
Gedeon sabia jogar as cartas. E mesmo que eu fosse bem esperta, não
chegava perto da sua experiência.
Meu corpo me traiu duas vezes na noite passada, e se Gedeon forçasse
um pouco mais, meu corpo me trairia quantas vezes fosse possível.
Antes de dormir, pensei na Shelly do filme A Casa das Coelhinhas e
em como tinha sido fácil para ela deixar a vida de coelhinha da Playboy de
lado, pois sua nova motivação era ajudar as novas amigas.
Eu queria deixar tudo da Roxy para trás enquanto tentava ajudar Ravi
e, consequentemente, ajudar Maria Catarina.
***
Ao acordar, Ravi já tinha saído. Algo que era bem ruim devido às
circunstâncias que me aguardavam para o dia. Ele era o meu escudo aqui, o
irmão mais velho não tentaria nada se eu estivesse à sombra do meu falso
noivo.
Eu me vesti adequadamente, como mandava o manual de instruções
para noivas modelo comportadas, usando desde presilhas laterais nos
cabelos a sapatos de salto Anabela. Junto do vestido romântico, o look me
fazia parecer fofa e inofensiva.
Eu sentia que essa fantasia talvez estivesse sufocando Roxy cada dia
mais.
A casa estava silenciosa, o que era normal para uma segunda-feira às
oito da manhã, quando todo mundo já estava em sua devida função.
Desci a escada, um tanto cautelosa, como se algo pudesse me
surpreender a qualquer momento. E esse algo tinha nome. Eu estava com
receio de um reencontro com Gedeon depois da nossa noite ontem. Apesar
do beijo, não acredito que tenha acabado positivamente para ele.
E, para meu alívio, encontrei a cozinha completamente vazia e
silenciosa. Na mesa havia todo tipo de delícias convidativas para o café.
Sem titubear, sentei em uma cadeira para comer, pois, diferente de muita
gente, eu sempre acordava com um buraco gigantesco no estômago. E era
bom aproveitar enquanto tudo estava à minha disposição, sem ninguém por
perto para observar.
Alegria de pobre dura pouco. Gedeon brotou na cozinha uns dez
minutos depois. Eu ainda estava na fase da degustação antes de decidir o
que de fato ia comer.
Hoje, sim, ele parecia um legítimo milionário.
Calça preta evidenciando as pernas fortes, camisa de tecido escuro,
habilidosamente dobrada nas mangas, deixando à mostra os belos
antebraços e o relógio grande e caro. A camisa lhe caía com perfeição,
contornando o corpo forte, bem ajustada para dentro da calça. E os óculos
escuros estavam enganchados na gola.
Era completamente chocante como uma peça tão comum poderia
elevar o sex-appeal de um homem à décima potência. Ou pelo menos
aqueles como Gedeon.
— Você vem comigo — rosnou, sem parar de caminhar. Levantei-me
rápido da mesa, mal tendo tempo de limpar os lábios.
— É a tal reunião no seu escritório? — Corri atrás dele pela casa.
— Não se faça de desentendida — disse, sem parar de caminhar, a voz
reverberando pela casa. — Sabe que meu irmão veio me pedir um favor,
provavelmente depois que você o manipulou.
— Nunca achei que o grande Barreto poderia tirar um segundo do seu
tempo para...
Enfim parou de andar e se virou, quase me fazendo topar nele.
Estanquei, fitando os olhos vorazes do Gedemônio, que especialmente hoje
parecia mesmo o próprio demônio. Vi quando seu olhar deslizou
rapidamente pelo meu corpo. As sensações dessa encarada foram capazes
de endurecer a mandíbula e afinar os lábios, com direito a tudo se
intensificar quando os olhos fizeram o caminho de volta para meus lábios e
por fim pararam nos meus.
— Para ficar de olho em uma trambiqueira? Sim, eu posso. Esse é o
lado bom de ser bilionário. Eu posso tirar folga quando quiser.
— Como também não precisa fazer sacrifícios. Eu posso muito bem
me virar sozinha ou você pode pedir a um de seus funcionários para me
guiar.
— Ah-há...! — soltou uma imitação de riso de forma maldosa. — Vai
sonhando que vou te deixar ao deus-dará. Vamos.
— Para onde?
Não respondeu, voltou a andar em direção a porta da frente, me
deixando parada sem resposta no meio da sala ampla.
— Estou vestida adequadamente? Gedeon...! — Idiota do cacete. —
Vou pegar minha bolsa! — gritei, revirando os olhos antes de subir para o
quarto a fim de pegar uma bolsa.
***
“Trabalhando pesado”
Ela me respondeu logo:
“Lucky bitch[8]”
***
***
***
CATARINA
Falei com Ravi para seguir com Catarina em um carro para a casa da
nossa mãe, onde um jantar nos esperava, eu apareceria por lá depois.
Inventei um monte de compromissos que não poderiam esperar, justificando
assim a minha recusa de ir com eles.
Como se fosse um guri de treze anos, eu estava me esquivando de
ficar próximo ao casal por mera dificuldade em ser maduro o suficiente
para apenas ignorar.
Na teoria era simples: ignorar uma mulher que despertava desejos
pervertidos. Porra, eu já tinha feito isso outras vezes. Meus amigos faziam
isso sempre.
A gente queria, mas se não podia, tocava o barco adiante. Vida que
segue.
Quem nunca quis alguém que não pode ter?
Todavia, com ela a banda tocava diferente. O sentimento não era
mais só desejo pervertido, tinha subido um degrau — perigoso pra cacete,
eu sei —, parecia me ferir como um ferro quente de marcar gado.
Terminei de me vestir, optando por uma roupa mais aprumada. Era
um jantar na casa da minha mãe, mas talvez eu pudesse sair com Bento pela
noite para tentar limpar esses pensamentos ruins.
Escolhi uma calça de alfaiataria cinza-escuro, uma peça que tinha
ficado reservada apenas para ocasiões mais formais, afinal eu não era fã
delas. Camisa simples preta por dentro da calça, o que dispensava cinto e
sapato de couro.
Que guapo, porra, pensei em frente ao espelho antes de sair do
quarto. Tomara que Catarina pense o mesmo.
Mas ao chegar à casa da minha mãe, aparentemente não foi só
Catarina que pensou o mesmo.
Era uma cilada. Minha própria mãe armou uma armadilha para mim.
Minha irmã parecia tensa, e quando nosso olhar trombou, havia um
claro pedido de desculpas por provavelmente não ter me avisado. Nossa
mãe deve ter impedido Cassie de dar com a língua nos dentes.
Donato, o padrasto, deu um olhar de revesgueio[11], tirando o corpo
fora.
Ravi parecia levemente compadecido, e Catarina estava pálida feito
papel, além de não esconder o desespero nos olhos saltados.
— Aí está ele. — Minha mãe veio logo ao meu encontro. — Hum,
está lindo e cheiroso, sabia que tu não ia decepcionar — sussurrou apenas
para que eu ouvisse, me levando pela sala até estar de frente para as visitas.
Era uma pretendente para mim. E estava acompanhada do pai e da
mãe.
Um breve parênteses para explicar por qual motivo uma mãe arma
um jantar de encontro às cegas para o filho de quarenta anos que tem toda
uma vida independente.
Dona Marilia tinha colocado na cabeça que era vergonhoso, tanto
para mim como para ela, um homem bem-sucedido sem uma mulher ao
lado. E mesmo que eu tenha explicado os meus pontos, parecia um
fracassado na concepção dela por ainda não ter lhe dado netos.
O outro ponto é que ela queria uma nora que fosse de uma família
amiga. Voltamos então ao presente, comigo usando minha máscara de
gentileza para cumprimentar Luana Maia, a bela pretendente filha de um
casal de amigos de minha mãe.
Luana não era culpada disso tudo. Quem sabe um pouco culpada,
porque ela me queria e nunca conseguiu esconder. Se eu investigasse mais a
fundo, quiçá descobriria que ela estava por trás da armação desse jantar.
Com vinte e seis anos, cursando medicina e vindo de uma família
tradicional, Luana era, sem dúvida, o sonho de nora para minha mãe. Além
de ser disputada por grande parte da classe masculina.
E se não fossem inúmeros motivos, eu até a levaria para transar
depois desse jantar.
Mas não tinha como fazer isso. Tudo que meu corpo captava era a
presença de Catarina na mesma sala que eu.
— Filho, abra o vinho para a gente e nos sirva. — Minha mãe se
sentou ao lado do meu padrasto. Ela poderia ter pedido a ele, que é o dono
da casa, mas queria me exibir como se eu fosse o objeto de um leilão.
Quem dava mais pelo churrasqueiro quente feito fogo e que sabia
usar o espeto como ninguém?
A sala de estar da minha mãe era bem grande, tinha sido projetada
pelo meu pai, que sempre gostou de receber amigos para jogar baralho nas
noites de sexta-feira. E agora havia lugar para todos sentar e jogar conversa
fora até o jantar ser servido.
— Luana, querida, ajude meu filho com as taças. Ele é melhor nos
espetos, por isso precisa da delicadeza feminina.
Porra, ela é o cão. É minha mãe, mas é o cão.
Ouvi os saltos atrás de mim me seguindo para a cozinha.
— Ela é uma figura. — Luana riu docemente.
— Bah, e como é.
Entrei na copa, adorando o cheiro bom da comida. Minha mãe
sempre gostou de cozinhar, assim como meu pai, que era um ótimo
churrasqueiro. Eu tive a quem puxar.
— E como você tem passado, Gedeon? — Luana me perguntou
enquanto eu procurava um saca-rolhas.
— Bueno. Pode pegar as taças naquele armário? — indiquei, e assim
que ela se virou, dei uma olhada no traseiro dela para conferir.
Luana pegou as taças, colocando uma por uma na bandeja.
— Então seu irmão vai se casar. Adorei a noiva dele.
Eu também adorei.
— É, talvez.
— Talvez?
— Ninguém sabe o dia de amanhã, não é? — Sorri para ela.
— Pura verdade, por isso temos que aproveitar cada dia sem se
importar com o que o amanhã vai nos trazer. — Gostei das palavras nível
“status de Facebook” que ela soltou. Até parei para observá-la, mas a
realidade veio logo em seguida, com um assunto tão raso quanto piscina de
plástico.
— Percebi que você não me segue no Instagram, pode me seguir de
volta?
— Agora?
— Trocar follow é um dos primeiros sinais.
Sinal de que, porra? Da chegada do apocalipse? Pois só isso me
salvaria dessa saia justa.
— Bah... — A contragosto, peguei o celular, mas antes de realizar
qualquer movimento, ela tomou da minha mão, entrou no perfil dela,
seguindo-o e ainda curtiu o último post. Então, com o mesmo sorriso doce,
me entregou o aparelho. Olhei para meu celular, surpreso com o que acabou
de acontecer, e o guardei de volta.
— Antigamente, na sua época, era troca de telefone fixo, não é? —
Ela riu parecendo se divertir. — Ou eram os bilhetinhos?
Ela estava tripudiando da minha cara?
— Não sou tão velho assim.
— Bom, quarenta anos, então você viveu os anos oitenta e noventa.
Viveu toda a ascensão da tecnologia. É bem velho, sim. Mas acho legal, e
sexy. — Deu uma piscadinha maliciosa. — Você é um daddy, Gedeon. E eu
amo um daddy.
— Daddy?
— Papai em inglês. — Ergueu os ombros orgulhosamente, algo que
me irritou.
— Eu sei o que a palavra significa, só não acho legal ser chamado de
papai por alguém que pretende chupar meu pau.
Ela enrubesceu no mesmo instante, se calando. Gostava de zoar de
um quarentão, mas não aguentava o tranco de volta. Catarina teria me
respondido na mesma moeda.
— Ah... vamos levar o vinho, não é? — sussurrou, quase sem voz.
— Toma. Leva a garrafa, e eu levo as taças.
Comecei a servir o vinho, e minha mãe fez o maior espetáculo para
que Catarina provasse um suco que ela tinha preparado em vez do vinho.
Atitude bem estranha que a fez ficar confusa e sem graça, aceitando
substituir o vinho só para experimentar o tal suco que minha mãe tinha
feito.
E durante o jantar, ela continuou no papel de apresentadora da noite,
expondo minhas qualidades e quase dando o lance inicial para começar o
leilão.
— Gedeon é independente e gosta de ter as próprias coisas dele
desde pequeno — explicou para as pessoas à mesa, que a princípio
pareciam mais preocupadas em se deliciar com o banquete. — Tanto que
recusou entrar na briga pela direção da empresa de papai.
— Então você... não tem qualquer envolvimento com a construtora?
— O pai de Luana me olhou com curiosidade. Todo mundo sempre se
surpreendia com isso, como se o caminho para ser rico fosse apenas por
meio de herança.
Eu assava carne, tchê, picanha e costela da melhor qualidade, e
parecia que as pessoas não enxergavam isso.
— Talvez se um dia houver uma partilha, eu deva receber alguma
porcentagem conforme manda a lei. A não ser isso, não tenho nada a ver
com a construtora.
— Então seus negócios te deixam seguro a esse ponto? — o pai de
Luana insistiu.
— Eu não asso picanha só por diversão — respondi, arrancando
umas risadas no mesmo instante que trocava um olhar com Catarina. Ela me
fitava com um puta olhar de orgulho.
— A vida dele é a churrascaria. — Minha mãe tomou a palavra. — E
morre de ciúme dos seus negócios, tem capricho com tudo, como se fosse
um filho, até entra em qualquer briga para defender a marca dele.
— A minha marca é minha filha — concordei, limpando os lábios
antes de tomar um gole de vinho.
— Você deveria ter uma filha real, de carne e osso. Estou implorando
por um netinho há anos. Mas acho que vou pedir ao meu outro filho, que já
tem meio caminho andado.
As palavras dela causaram susto em mim a ponto de deixar meu
corpo inteiro travado. Foi Cassie quem indagou no meu lugar:
— Meio caminho andado? — O tom de Cassie foi desconfiado.
Notei que seu olhar passeava entre Catarina e Ravi.
— Porque eles já estão noivos, bah — minha mãe respondeu.
— Já tem planos para o casamento? — a mãe de Luana perguntou, e
Ravi pigarreou, pronto para responder. Meu coração acelerou enquanto os
segundos corriam, minha visão não desgrudava de Catarina.
— É um assunto que vamos tratar com calma. — Ele se limitou a
responder algo básico, o que me agradou. Tranquilizado, voltei a comer,
escutando a conversa à mesa que, ainda bem, não estava mais focada em
mim ou no casamento de Catarina.
E mesmo assim minha inquietação só estava começando nesse
inferno de noite. Após o jantar, Ravi teve a brilhante ideia de levar Catarina
para ver o antigo quarto dele de solteiro, que minha mãe ainda mantinha
quase do mesmo jeito por puro saudosismo.
Eu imaginava que eles não iam olhar quarto coisa nenhuma, iam dar
um amasso na cama de solteiro dele.
Então mais que depressa, na tentativa de impedir que ele tocasse na
própria noiva, pedi licença, subindo atrás, não dando nem cinco minutos de
folga para os dois.
O meu caso parecia obsessão, os caras chamariam de doença.
— Tudo tão lindo, Ravi. — Era a voz de Catarina. — Pelo que vejo,
você era um jovem fofo...
— O Ravi sempre foi muito organizado — falei, brotando na porta
do quarto e dando um susto nos dois.
— Ela queria ver seu quarto, mas não existe mais nada — Ravi disse,
tranquilo com o fato de eu ter aparecido. Enquanto Catarina exibia surpresa,
quase evoluindo para irritação.
— Não fazia sentido a mãe manter meu quarto. — Com as mãos nos
bolsos, eu me aproximei deles. Ravi estava sentado na antiga cama dele, e
Catarina, embravecida, permaneceu recostada na escrivaninha.
— Por que não fazia sentido? Era um quarto muito visitado pelo
gênero feminino. É por isso que sua mãe não queria essa lembrança?
Ravi gargalhou diante da alfinetada.
Ah, entendi. Sabia por que ela estava brava. Estava com ciúme por
causa da Luana. Gostei de saber que não era só eu nesse maldito barco.
— Não. Eu me casei cedo e a trouxe para morar aqui. Era um quarto
que não trazia boas lembranças para todos.
Catarina desarmou no mesmo instante, ficando sem resposta. Mas
nossa troca de olhar dizia tudo. Era incrível como eu poderia olhar para ela
a noite toda. Apenas olhar.
Olhar... só olhar e não cansar.
E depois tocar.
Porque era como um ímã me atraindo.
Eu queria cheirá-la. Queria que ela brigasse comigo. Queria que ela
risse de alguma merda que eu dissesse.
E isso me dava medo, porque parecia mais do que sexo pervertido.
— O que foi, cunhado? Perdeu algo na minha cara? — ela falou,
toda malcriada e debochada.
— Acho melhor a gente voltar — Ravi disse. — Daqui a pouco sua
pretendente vem te procurar, Gedeon.
E ela veio mesmo. Ouvimos a voz de Luana nos chamando enquanto
se aproximava. Catarina deu um sorriso meio vitorioso e se afastou,
abraçada a Ravi.
Não posso dizer que dormi feito um anjo, porque a maldita imagem
de Gedeon e Luana se beijando não saía da minha cabeça. A cena me
infernizou por tempo o suficiente para começar a me irritar.
Acho que não dormi mais do que quatro horas. A impressão é que
tinha acabado de sucumbir ao sono quando Ravi me despertou.
— Cate, amore, você ainda quer ir comigo? — Ele já estava de pé e
arrumado.
— Oi... que horas...?
— Já são seis. Temos que sair agora.
— Claro. Eu vou. — Levantei num pulo, afastando cobertores e
recebendo o ar frio cortante da manhã do sul.
Em quinze minutos me preparei, escolhi uma bolsa maior e coloquei
algumas coisas que seriam possivelmente necessárias, como uma muda de
roupa para eventuais desastres.
Estava de calça e tênis, o que garantia mobilidade e conforto, já que
ia visitar uma obra. E era mais fácil para pisar leve no chão de madeira,
assim evitava fazer qualquer barulho que pudesse acordar o demônio.
Se é que ele já não estivesse acordado.
E por isso meu coração batia descompassado, imerso em tensão, até
entrar na segurança do carro de Ravi e sair da propriedade de Gedeon sem
ser vista.
Queria ser uma mosca para ver a reação dele quando fosse me
procurar e encontrasse apenas vento.
***
GEDEON
Minha mãe achou que era uma ótima ideia destruir a minha paz
ontem à noite. Não satisfeita com o jantar, ela me seguiu e jogou a guria nos
meus braços praticamente. Antes de ir embora, ainda resmungou algo do
tipo: “seja homem e cumpra seu dever”.
Eu fiquei bem furioso com ela, de um jeito como nunca tinha ficado
antes. Não são só os filhos que devem respeito irrestrito aos pais. A
reciprocidade é necessária para a boa convivência familiar. Estar na posição
de mãe não lhe dava o direito de passar com um trator por cima da minha
vontade.
Eu tinha a opção de mandar um funcionário levar Luana para casa ou
engolir o vulcão de raiva, fazer das tripas coração e recepcioná-la com
simpatia.
Eu devia ter escolhido a primeira opção, pois a guria era uma pirada.
No entanto, quem construiu um triplex na minha cabeça foi Catarina.
Nem dormi direito à noite depois do desaforo dela quando me bloqueou.
Ela vai me pagar. Ah, se vai!
Eu rolei de um lado para outro na cama, que começou a parecer
grande demais só para mim, como se faltasse algo. Algo que nunca esteve
nela além de mim, ainda assim, eu me senti solitário.
Ia dar seis da manhã quando acordei antes do despertador realizar
sua função básica que era me acordar.
Eu me sentia sonolento e de pau duro. E a cama ainda parecia
gigante demais.
Tinha alguns compromissos durante o dia, principalmente na
churrascaria a qual lamentavelmente vinha recebendo minha negligência
por esses dias. Mas tudo que me preocupava era a conversa que eu teria
com Catarina às oito.
Enquanto a água do chuveiro caía sobre o meu lombo, minha mente
fazia festa com todas as suposições do que eu poderia fazer com Catarina
no nosso encontro logo mais às oito.
Eu mal podia esperar.
Era seis em ponto quando desci com uma bolsa de academia nas
costas, pois antes de iniciar a labuta do dia, havia um encontro com os caras
no treino de Muay Thai. Tínhamos acabado de chegar aos quarenta, não
dava para acomodar. E como Bento já fazia esse tipo de luta, por causa da
profissão, ele nos convenceu a participar.
— A guria me pediu para seguir a porra do perfil dela — relatei para
os três que se preparavam para o treino. Sentado ao meu lado, Bento
enrolava as faixas nas mãos. Nero chegou mais cedo, com o intuito de
despejar sua revolta cotidiana no saco de pancadas.
Era capaz de amassar uma frigideira na mão se fosse enfrentar a
cozinha sem antes extravasar o nervosismo.
— Agradeça por ela só pedir isso e não exigir que tu dançasse um
TikTok — Bento zombou.
— Está cada vez mais difícil comer boceta da geração Z hoje em dia
— Nero reclamou, chegando mais perto da gente e ficando de pé ao meu
lado.
— Z de que? De zumbi?
— Pior que é um bom nome — ele concordou, rindo. — É quem
nasceu de noventa e cinco para cá. É a geração da internet e que chama a
gente de tiozão.
— Ela me chamou de daddy.
— Eu amarrava no pé da cama e ensinava a respeitar os mais velhos.
— Santiago se aproximou, dando sua cartada de bizarrice. A gente nunca
sabia se ele fazia essas merdas mesmo ou era só conversa fiada.
— Eu não fico com mulher com menos de trinta nem fodendo —
Bento ficou de pé, se alongando. — A não ser que já tenha uma maturidade
para a idade. Não tenho mais paciência para ensinar, gosto de chegar e já
começar a brincadeira com quem sabe das regras.
— Tipo a cascavel de farda? — Santiago alfinetou.
— Quer perder esse narizinho bonito, Santiago? — Foi o que Bento
respondeu, indicando o tatame em um claro convite para um duelo.
— Vamos. Vou te ensinar a respeitar uma autoridade. — Santiago já
caminhou em direção ao tatame, demostrando indiferença à ameaça que era
João Bento.
— Eu também sou autoridade, caralho — Bento reclamou, pegando
pilha com a fala de Santiago.
— Eles vão se matar — Nero observou.
— Aposto em Bento — Eu me aproximei para ver o treino dos dois.
— Olha o tamanho dele.
— Aposto em Santiago — Nero falou. — Perde na altura, mas ganha
no sadismo.
— Ei, amigos, isso aqui é treino, não é para resolver pendências não
— o instrutor veio logo avisando, mas Bento e Santiago já estavam
centrados nos golpes.
— Deixa os dois, tchê. — Eu o cutuquei com o cotovelo. — Vamos
nos divertir um pouco.
***
Passava das oito quando consegui escapar da academia e voltei para
casa usando toda velocidade que podia. Eu ainda não sabia o que ia dizer,
só queria que ficasse tudo bem, porque já começava a sentir sintomas de
dependência. Entrei na cozinha, esperando encontrar Catarina tomando
café, mas não estava lá.
— Bom dia, Veridiana.
— Bueno, meu filho. Acabei de coar um cafezinho.
— Viu se a Catarina já se levantou?
— Tô aqui há mais ou menos uma hora, e ela não desceu ainda.
Ótimo. Eu vou pegá-la na cama mesmo.
Subi quase voando em direção ao quarto deles. Dei uma batidinha na
porta antes de girar a maçaneta e empurrar.
— Catarina?
Ninguém na cama.
— Catarina? — Entrei e me deparei com silêncio. Pé ante pé, fui até
a porta do banheiro.
Vazio.
No quarto, havia sinais de que eles tinham se trocado. Saí rápido, já
fervendo por dentro. Com o celular na orelha, esperei que ela atendesse.
— Oi, amiga. — Atendeu, me chamando assim porque
possivelmente Ravi devia estar por perto.
— Onde você está? — De olhos fechados, recostei na parede.
— Ah, eu dei uma fugidinha com meu noivo. Vamos passar o dia
juntos curtindo em outra cidade.
— Que porra você está falando? Ravi está na empresa. Onde você
está?
— Beijos, querida, me ligue depois. — E desligou na minha cara.
Passar o dia juntos? Foi uma facada certeira no meu coração. Para
averiguar, liguei para Rony. E ele confirmou que Ravi não tinha ido
trabalhar.
Ao menos me deu mais informações. Tinha ido para uma cidade
próxima resolver um problema com um cliente.
Trinta e dois
CATARINA
O lugar era lindo. Era um paraíso ao pé da serra, com um delicioso
clima frio propício a noites agradáveis ao pé da lareira, com um bom vinho,
uma companhia gostosa ou um bom livro.
Era tentadora a ideia de vir para cá para tentar reconstruir a minha
vida, quando Ravi alcançasse o seu objetivo.
Não queria sair do Rio Grande do Sul. Esta vila doce era o lugar
perfeito para que eu curasse minhas feridas de anos.
— Quando reformar tudo isso... vai ficar muito lindo — comentei
com Ravi ao meu lado, que também admirava a beleza do lugar. As
construções estavam bem deterioradas, mas nada que um bom projeto não
resolvesse.
— Eu me apaixonei assim que vi, e agora desejo mais do que tudo
vencer a disputa para assinar o projeto. Isso se o cão soberbo permitir. E por
falar nele...
— Meu Deus — sussurrei ao me deparar com o homem que andava
em nossa direção. Era mesmo tudo que Ravi tinha comentado, o tipo que
atraía olhares e que não se importava com isso. Demétrio era um homem
mais velho e discreto, que nem imaginava que seu jeitão rústico era tão
interessante.
Ou talvez imaginasse e se fingisse de bobo.
— Me entende agora? — Ravi cochichou.
— Completamente. Quem não ficaria mexido com esse nobre senhor
gostoso?
— Ravi Barreto. — Demétrio foi logo falando e apertando a mão de
Ravi, que tomado pela atração, não conseguiu esconder o rubor que o
tomou.
Notei que meu amigo até enrijeceu a postura, a fim de reafirmar a
masculinidade. Demétrio não pareceu captar a reação que provocou em
Ravi e logo se virou para mim.
— Senhorita.
— Esta... é... Catarina, minha noiva — Ravi apresentou.
— Seja bem-vinda, Catarina. — Franziu o cenho para mim. —
Nunca achei que esse guri estivesse prestes a se casar.
— Bueno, Demétrio, eu não sou mais um guri, e como prova estou
aqui representando a empresa com um relatório...
— Não quero falar de negócios. — De soslaio, fuzilou Ravi com o
olhar. — Vocês sempre com o mesmo disco arranhado. Por que não mostra
o lugar para sua noiva e fala sobre a beleza disso tudo sem que envolva
valores e propostas?
— Mas...
— Bah, tu tem um projeto pelo menos?
— Ainda não, mas... tenho a proposta que meu avô mandou...
— Não quero ver — interrompeu Ravi com sua voz grossa. — Pode
ir embora.
— Certo, o que tu pretende então? — Ravi suspirou, lutando para ser
paciente.
— Tu passou algumas horas aqui, e agora não sabe o que eu
pretendo?
— Não, não sei. Não leio mentes. Não estou aqui para passear, estou
aqui a trabalho. Se você deseja um ouvinte, contrate um psicólogo.
— O que disse, guri?
— Ok, rapazes. — Dei um passo, entrando entre eles. — Tudo bem,
a gente pode resolver isso sem estresse. Ravi, vamos sentir o que o lugar
quer nos dizer, o que você acha?
— É disso que eu tô falando. — Como se tivesse recebido uma
resposta divina, Demétrio comemorou. — Obrigado, Catarina. Já vi quem
vai ser a mente pensante nesse casamento.
— O senhor não precisa me desrespeitar...
— Te apura, guri. E não me atucana. — E já virou as costas para a
gente, deixando Ravi bufando enraivecido.
— O que ele quis dizer? — sussurrei para Ravi, seguindo Demétrio
que já tinha tomado distância com suas passadas largas.
— Te apura é algo como “se apresse”. E não me atucana é algo
como... “não me incomode”.
— Você está excitado, não está? — cochichei, cutucando-o.
— Cala essa boca, Catarina.
Ravi estava sofrendo com uma atração indesejada, e embora
caçoasse dele, eu sabia perfeitamente o que estava se passando. Atração
indesejada era justamente como ser contaminado com um vírus que você
lutou para se proteger. Uma vez no organismo, pode até tomar os remédios
para combater, porém os sintomas vão logo começar.
Eu não queria lembrar de nada que envolvesse Gedeon, queria
expurgá-lo do meu organismo, queria tomar um antibiótico bem forte para
que ele não tivesse mais efeito em mim.
No entanto, bastou vê-lo para saber que eu estava completamente
perdida no ninho de gavião que ele armou para mim.
Gedeon era um vírus sem cura.
Estávamos visitando a vila que necessitava de restauração, ouvindo
Demétrio explicar sobre a história do lugar, quando um carro parou,
acabando com minha paz.
Minha paz é igual calcinha, não é qualquer um que tira.
Gedeon conseguia tirar as duas.
Ele estava detestavelmente gato, com jeans, camisa polo e botas.
Tirou os óculos escuros e sorriu assim que nossos olhares se cruzaram.
— Droga, será que aconteceu algo? — Ravi questionou, cheio de
temor ao ver o irmão chegar do nada.
— Não aconteceu nada, ele só é exibido mesmo.
— Bueno dia, pessoal — Gedeon cumprimentou cheio de simpatia,
que lamentavelmente não era forçada. Ele tinha um carisma natural.
Demétrio sorriu na hora e foi na direção dele.
— Seu Gedeon Barreto. Que honra tu por aqui. Sou Demétrio,
proprietário do lugar.
— Fiquei sabendo brevemente do seu trabalho aqui e fiquei
orgulhoso de sua atitude, Demétrio.
— Aconteceu algo? — Ravi indagou, desconfiado.
— Não. Eu acabei encontrando o Rony e ele comentou sobre esse
lugar, disse que você tinha vindo e eu fiquei curioso para conhecer.
Mentiroso safado. Olhei bem para a cara de sonso dele, me irritando
mais ainda, porque lembrei do que vi na noite passada. Ele que fosse atrás
da pretendente.
Gedeon ficou com a gente o tempo todo enquanto Demétrio
mostrava, com orgulho, cada parte da vila, indicando o que esperava da
restauração. O vinhedo acima, as casas abaixo, e até uma pracinha com uma
igreja.
Aqui teria armazém, pronto-socorro e uma linha de ônibus que
levaria até a cidade.
Ravi anotava tudo com atenção, e até deixou as provocações de lado
para conversar com Demétrio sobre os planos para o projeto.
Os dois iam à frente, falando sobre os projetos, quando senti a
presença ao meu lado.
— Gosto de ver meu irmão trabalhar. Ser independente, profissional
— comentou. De braços cruzados, indicando estar fechada para conversa,
continuei observando Ravi e Demétrio.
— O que está fazendo aqui? — Fui direto ao ponto. — Veio tentar
acabar com o meu dia com o meu noivo?
— Quase isso. Vim ser inconveniente mesmo, segurar vela para
vocês, me intrometer para impedir que ele toque no que é meu.
O arrepio no meu corpo foi incontrolável.
— Seu? — Ri secamente. — Eu não tenho cara de Luana. Ela é que
é sua.
— Ela me pegou desprevenido e me agarrou, se é que importa para
você — salientou com voz baixa.
— Não, não me importa. Você é solteiro, faz o que quiser da sua
vida. Eu sou comprometida com seu irmão. — Levantei a mão para ele,
mostrando a aliança de noivado que hoje fiz questão de colocar.
Não olhei, mas era bem possível haver desconforto no rosto de
Gedeon.
— Não pensou nisso quando estava gemendo no meu pau, não é?
— A sua atitude ontem me fez rever algumas coisas.
— Então está mesmo com ciúme pelo beijo. Se eu quisesse aquela
guria, nada me impediria, nem você, nem ninguém. Foi algo acidental, sem
qualquer importância.
— Ok. Eu já entendi. Ainda assim, em mim você não toca mais.
— Catarina...
Eu me afastei, indo na direção de Ravi.
Demétrio levou a gente para conhecer o vinhedo que ele pretendia
reativar com uma nova safra de uvas a ser plantada em breve, com isso
levaria trabalho para as pessoas que ainda moravam na vila.
Pensar em vir morar aqui, sozinha, reconstruindo a vida, me trazia
dois sentimentos: alívio, por enfim encontrar a paz, e desalento, por estar
sozinha.
Não dava para imaginar uma vida com o homem que mexia com meu
coração. Ele era imune a relacionamentos, e se um dia optasse por um, não
seria com uma mulher como eu. Por isso era melhor cortar desde já
qualquer interação entre a gente, qualquer aproximação que pudesse me
machucar mais tarde.
E o fato de Gedeon ter vindo só para se certificar que eu não ia ficar
com ninguém me deixava ainda mais encucada.
E não só ter vindo, ele estava se sentindo como se de fato fosse o
meu namorado ou noivo.
Demétrio era cortês, apesar de rude, o que fazia parte do seu charme.
E isso parecia incomodar Gedeon.
Demétrio serviu espumante para todos, bebida que, segundo ele, foi
de uma safra produzida nesse vinhedo. Ele me deu a taça primeiro, para que
eu experimentasse, e esperou minha opinião.
E então ouvi Gedeon alertar Ravi com seu sotaque acentuado:
— Este cara tá de olho grande para cima de Catarina, não tá vendo?
Tome uma providência, tchê.
Eu quis rir, porque na realidade ele que estava de olho em mim
enquanto Ravi lutava contra a atração pelo xucro.
— Não, mano — Ravi desconsiderou na hora. — Não acho.
E Gedeon ficou mais desconfortável ainda por ser apenas o cunhado,
sem poder interferir em nada.
Ou quase nada.
Ninguém podia com aquele homem. Mostrando do que era capaz,
fingiu se perder no casarão do vinhedo, me levando junto
compulsoriamente.
Ele fez tudo de modo bem rápido e eficiente.
Só precisou de um segundo de distração de Ravi para me arrastar em
direção a uns corredores em ruínas, me encurralando quando tentei escapar.
Gedemônio me encurralou com o corpo contra uma parede e,
tampando minha boca com a mão, pegou o celular e ligou para o irmão
dele.
— Me perdi, Ravi. Tô no segundo pavimento, em uns corredores
abandonados.
— Catarina está com você?
— Não — mentiu, olhando nos meus olhos.
— Tá bem. Demétrio vai te buscar.
Gedeon desligou, enfiando o celular no bolso, mas não se afastou de
mim.
— Eu já desconfiava que você era louco, mas... — comecei a falar e
fui interrompida por um beijo aniquilador. Eu seria hipócrita se dissesse que
não estava com saudade da boca dele.
Ainda assim, tive força para empurrá-lo bruscamente.
— Não vai tocar em mim, eu já disse.
— Por causa de um beijo ontem, Catarina? O que quer que eu faça?
Que ajoelhe e te peça perdão?
— Não quero que faça nada, porra. Você faz o que quiser da sua
vida...
— Eu não quis beijar a guria.
— Bem intrigante que um homem do seu tamanho consiga ser
dominado por uma franguinha igual a ela.
— Bah, tchê. — Esfregou a mão na barba, completamente
impaciente. — Ok, a surpresa me paralisou, e eu não reagi de imediato.
— Ainda assim, não quero mais nada. Não quero mais enganar meu
noivo, e seria melhor que você seguisse sua vida.
— Não vou seguir nada quando tem uma pilantra interesseira
tentando cravar as unhas no meu irmão.
— Já que sou uma pilantra interesseira, o que veio fazer aqui, atrás
de mim?
— Porque mesmo gostando de planejamento e controle, sou viciado
em provar um pouco de impulsividade. Eu mal dormi essa noite, Catarina...
— Não é problema meu.
— É, sim. Porque eu quero minha vaquinha interesseira de volta. E
quero só para mim.
Antes que ele pudesse me beijar novamente, Demétrio surgiu no fim
do corredor, nos obrigando a nos afastar um do outro com um pulo.
Olhei sem graça para o homem, que percebeu na mesma hora que
algo estava acontecendo.
— Ah... venham por aqui. Só me seguir — ele disse e se virou,
deixando que a gente o seguisse.
Voltamos para casa mais cedo do que o esperado. Demétrio tinha um
compromisso e não poderia mais nos recepcionar. No entanto, eu achava
que tinha a ver com o flagra que ele deu.
Talvez fosse muito rígido com infidelidade e não queria mais olhar
para minha cara.
E como forma de manter Ravi e a mim por perto, Gedeon convidou o
irmão para dar um pulo na churrascaria, dizendo que era para eu conhecer
um dia de trabalho dele.
E Ravi aceitou, sem perceber quais eram as segundas intenções do
irmão.
Chegamos à cidade no ponto alto do almoço, seguindo direto para a
churrascaria, que impressionantemente estava lotada.
E diferentemente da que eu visitei com Gedeon em Gramado, essa
era simplesmente um exagero de tão grande e bonita.
— Puta que pariu. — Fiquei admirada diante da fachada. — Não
achava que era tão bonita assim.
— O palácio precisa estar à altura do rei — Gedeon respondeu.
A churrascaria ficava em um lugar privilegiado, com uma estrutura
imponente de dois pavimentos, desenhada para trazer conforto aos clientes.
Não adiantava comer o melhor churrasco em um lugar decadente.
Por dentro, detalhes em madeira, clara e escura, predominavam.
Ravi ia explicando que o irmão quis colocar um toque rústico ao
ambiente, sem perder o visual elegante e bem iluminado à noite. Os lustres
pretos pendentes combinavam com as cadeiras de madeira, ao mesmo
tempo que trazia o contraste fascinante com toda a parede de vidro com
vista para o lago.
O bar ficava na área com a claraboia. Vidro no teto proporcionando
claridade natural durante o dia e um belo céu estrelado à noite. E quando
chovia, era ainda mais fascinante assistir à chuva na claraboia.
Havia as mesas da área externa, ao ar livre, tanto no primeiro como
no segundo pavimento. Ravi disse que esse era o espaço mais disputado,
por ter uma vista magnífica do lago; o anoitecer daquele ponto era quase
um cartão-postal.
As pessoas pareceram atônitas e felizes com a chegada da estrela do
churrasco. E mesmo que eu já tivesse visto Gedeon comandar uma
churrasqueira, não pude deixar de ficar fascinada com sua habilidade na
cozinha.
E a gente nem ficou lá dentro. Era proibido a presença de visitas
durante o serviço. Preferimos escolher uma mesa para almoçar e observar o
churrasqueiro dar o seu show.
— Os clientes pagam mais caro para isso, sabia? Para que ele vá
pessoalmente à mesa — Ravi informou, assistindo maravilhado enquanto
Gedeon servia uma costela assada em uma mesa. Era incrivelmente
habilidoso, tirando os ossos limpos da costela tão bem assada, que dava
água na boca só de olhar.
Depois ele usava a garra para segurar a peça e fatiar, para que as
pessoas na mesa pudessem se servir.
E tudo isso sob câmeras de celular apontadas para ele.
Gedeon passou por entre as mesas, voltando para a cozinha com dois
ajudantes atrás; teve ainda a ousadia de lançar um meio sorriso com uma
piscadinha para mim.
— Meu irmão tá muito a fim de você. — Ravi riu, degustando seu
vinho. — Ainda acho milagre que ele não tenha tentado nada muito sério
até agora.
— Ontem ele estava com Luana. Não acho que me queira —
desdenhei.
— Gedeon não a quer. Ele detesta mulheres como ela, você o instiga.
— Mulheres como ela...?
— Luana é controlada pelos pais, mimada e não consegue esconder
que só está atrás dele porque ele tem tudo isso aqui. Quando nosso acordo
finalizar, se você quiser investir nele, eu posso ajudar.
Não respondi. Não havia nada que pudesse ser feito depois que o
acordo acabasse. Gedeon iria descobrir a verdade, o que me tornaria a
última pessoa no mundo que ele iria querer ver.
Trinta e três
GEDEON
∞∞∞
CATARINA
— Ei, olha para mim. A gente vai dar um jeito. — Segurei Ravi, que
atormentado andava de um lado para outro na sala da cobertura dele.
Interessantemente, descobrimos que o problema do banheiro já tinha sido
resolvido, mas não nos informaram.
Ainda assim era um detalhe sem importância no momento.
— Que jeito, Catarina? — Sentou-se desolado no sofá. No olho, um
hematoma quase tão grande como minha aflição. — Minha família já sabe,
todo mundo acha que você é vadia e estão com raiva de nós dois por quase
matar o vô. Tia Marlene me falou barbaridades, disse que se o vô morrer ela
vai me processar.
Me sentei ao lado dele, com o meu alerta ligado. Eu estava no modo
batalha, disposta a lutar contra o que viesse para vencer, da forma que lutei
quando a patrulha da imigração matou Peterson na minha frente.
Nada de emoção agora. A frieza era necessária para limpar a merda
que ajudei a criar.
— Ravi, eu sobrevivi a coisas que você não imagina. Nem que eu não
ganhe um centavo, mas não saio dessa cidade antes de te ajudar.
— Está fazendo isso como uma forma de se redimir da culpa? —
limpando uma lágrima, disparou leve rancor para mim. Não permiti que seu
olhar me machucasse. — Transou com Gedeon e nem me contou?
— Eu ia te contar hoje. Fui para a cama com ele, tive momentos ótimos
com ele, e quase me convenci de que estava apaixonada por seu irmão.
— E está?
— Se houver a possibilidade de se apaixonar em dez dias, acho que é
provável que eu esteja.
A resposta pareceu o incomodar, algo que não fazia sentido já que ele
mesmo disse que poderia me empurrar para o irmão dele. Ravi levantou-se
e deu alguns passos indecisos pela sala, aparentemente refletindo sobre
algo.
Então direcionou para mim um olhar que ele daria a uma sabotadora e
não a uma aliada.
— Eu gostaria de ficar sozinho.
— Ravi.
— Por favor, Catarina. Você agiu como uma aproveitadora às minhas
costas e ainda brincou com os sentimentos do meu irmão.
— Não brinquei com os sentimentos dele.
— Me deixe sozinho, por favor. E fique tranquila, pelo menos metade
do valor que combinamos você receberá.
Ele não ia se virar contra mim justo agora. Ainda que eu tivesse
mesmo uma parcela de culpa por esconder dele o meu caso com Gedeon.
— Não venha me colocar nesse papel de interesseira, Ravi.
— E por qual motivo você está aqui, se não pelo dinheiro? Hein? Foi a
minha proposta que te trouxe para cá. Não precisamos fingir.
— Vou para o quarto de visitas, não discutirei. Mas entenda que você e
sua família só serão de fatos realizados quando parar de achar que todo
mundo quer o dinheiro de vocês. — Peguei meus sapatos e a bolsa indo em
direção ao quarto.
— Quem é você para falar isso? O que você entende de família para vir
dizer algo sobre a minha?
— Eu não sou ninguém! E não tenho ninguém! — Girei-me
bruscamente nos calcanhares — E talvez por isso eu queira tanto ajudar
você a consertar essa cagada, porque eu vi como é precioso e lindo o amor
que essa gente tem por você e cada um tem pelo outro. Você, Gedeon e
Cassie tem histórias lindas de pai e mãe, tem amigos, primos, tios e avôs.
Vocês têm tudo que o dinheiro nunca poderá comprar. Tem tudo que eu
jamais terei, vendendo a imagem do meu corpo.
— Eu não quis dizer que...
— Vim para cá por dinheiro mesmo, Ravi. Pois diferente de você, essa
é a minha única chance de ter uma mínima vida digna e cumprir a promessa
que fiz a minha mãe que eu seria feliz. — Deixei uma lágrima rolar em
minha bochecha ao mesmo tempo que sorri para ele: — Um sábio me disse
uma vez para fazer geografia e aqui estou eu tentando fazer história.
— Catarina, me desculpa.
— Agora eu que preciso ficar sozinha.
∞∞∞
Revirei os olhos ao perceber que agora eu estava bloqueada por
Gedeon em todos os aplicativos possíveis. Eu não ia julgar os sentimentos
dele e nem chorar um pingo. Minha cota de choro já tinha sido preenchida
hoje quando me debulhei em lágrimas no banho antes da festa.
O momento requeria cabeça fria para bolar estratégias.
Sabia que não dava mais para sustentar o noivado falso, e como seu
Alberto estava hospitalizado, a direção da construtora passava
automaticamente para Rony, um grande pé no saco. Eu quase podia apostar
que Rony permitiu a entrada de Juliano na festa só para provocar a confusão
que aconteceu e assim eliminar concorrência.
Essa era a minha luta antes de me resolver com Gedeon; se é que
pudesse resolver.
E corroborando minha tese de que seria bem difícil colocar tudo em
pratos limpos com Gedeon, recebi uma ligação de um número
desconhecido.
Era Bento. Cumprimentou frisando a formalidade. Eu quis ser
antipática com ele pelo que fez com Cassie, todavia eu precisava de notícias
de Gedeon; só por isso engoli meu ranço.
— Oi, Bento, tudo bem? Aconteceu algo? Ele está bem? — Nem
consegui me sentar, caminhei nervosa pelo quarto.
— Gedeon está bem. Ele ficará uns dias fora da cidade…
— Onde?
— É uma informação que você não precisa saber. Ele pediu que você
fosse à casa dele buscar todas as tuas coisas.
— Olha, tudo foi um grande mal-entendido. Poderei me explicar…
— Catarina, sinceramente? Não tente. Ele não quer nada contigo, nunca
quis. Tu não passou de diversão.
— Ele te falou isso?
— Falou. Siga tua vida. — E desligou.
Que puto malcriado!
Ok, não ia surtar. Jamais iria surtar. Embora me subisse o desejo de
falar poucas e boas para os dois. Nunca precisei de ninguém para
sobreviver. Um coração ferido de paixão seria só mais uma ferida junto às
várias que carrego.
Não dormi nada durante a noite. As cenas da confusão na festa eram
desastrosas e barulhentas demais para deixar minha mente apagar.
Depois que Juliano expôs tudo sendo retirado pelos seguranças, Ravi
passou segundos, feito estatua, como se tivesse medo de olhar para os lados.
Entre os gritos de desespero pedindo ambulância para seu Alberto,
ouvi burburinhos enquanto olhares de choque e julgamento eram disparados
contra Ravi e eu.
— Mãe…! — Ravi sussurrou tentando chamar atenção de Marilia, que
não se movia. De pé, olhava para o pai caído no chão sendo socorrido por
outras pessoas. — Mãe… eu não queria…
Marilia fitou Ravi, em seguida correu os olhos na minha direção. Sem
ódio, sem julgamento, apenas choque. Então se virou e caminhou ereta na
direção oposta.
Além disso, teve Rony e sua mãe gritando acusações contra Ravi e eu.
Santiago interveio tirando nós dois do olho do furacão, mandando a gente
vir para casa.
Agora, no quarto, essas cenas na minha cabeça pareciam mais um
filme do que a realidade. Andei, deitei, falei com minha amiga que até
tentou me convencer a voltar para Nova Iorque nem que fosse escondida
em um porta-luvas de um carro.
Essa não era mais uma opção para mim.
Tomei um banho. Pensei em vários caminhos para ajudar Ravi, não
chegando a nenhuma ideia promissora, até ver o sol nascer, sentada no chão
da varanda enrolada em um cobertor muito fofo, imaginando como se fosse
o abraço do miserável pelo qual me apaixonei.
A gente nem chegou a dormir juntos. Droga, eu não tive a
oportunidade de experimentar uma conchinha com Gedeon Barreto, o rei do
churrasco. Isso era injusto em níveis…
Antes que Ravi acordasse, eu já estava deixando a cobertura.
Botas brancas lindas que combinavam com minha jaqueta quentinha.
Blusa e calça pretas dando um tom bem sério com os óculos escuro e rabo-
de-cavalo. Eu parecia importante indo resolver um assunto importante.
Pedi um Uber direto para a propriedade Barretão. Nem quis pensar que
provavelmente seria a última vez que entraria ali.
Ninguém tentou bloquear minha entrada, indicando assim que já
tinham recebido ordens do dono para liberar minha passagem para a casa
encoberta de frio e silêncio. Era uma casa arejada, com direito a jardim
interno e portas laterais que levavam ao gramado bem cuidado, por isso era
tão gelado e cheirava a natureza crua.
— Bom dia, dona Veridiana. — Cumprimentei entrando na cozinha. A
senhora, rezando um terço, ocupava uma cadeira diante da mesa. Ela olhou
para mim e quase sorriu, mas lembrou-se de alguma coisa e enrijeceu.
— Bom dia, Catarina. Gedeon pediu para você pegar suas coisas e ir
embora. — Seus olhos me fitavam com pena.
— Sim, recebi esse recado. Estou aqui para isso.
— Ele não... deixou recomendação se você podia ou não comer, por
isso quero te oferecer uma boa uma cuca. Se tu quiser.
Um sorriso espontâneo esticou meus lábios.
— Obrigada, eu quero sim. Só pegarei minhas coisas e desço.
Subi sozinha para o quarto. Não imaginei que poderia. Saí da cobertura
de Ravi imaginando que teria seguranças na minha cola para não me deixar
roubar nada de Gedeon. Ele era um cão quando queria ser.
Antes de ir para nosso quarto, joguei para trás a prudência, desfrutando
de ousadia em cada passo em direção ao quarto de Gedeon.
Empurrei a porta deparando-me com a cama ainda desarrumada com
vestígios de nossa paixão desenfreada ontem, denunciando assim que ele
não dormira aqui. O papel do bombom ainda estava ali no pé da cama.
Abaixei, peguei-o e juro que quase vacilei em choro.
Quando foi que um homem se lembrou de algo que eu gostava e trouxe
especialmente para mim? Nunca.
E agora eu tinha a sensação de que havia perdido tudo. Mesmo que, na
verdade, nunca tivesse sido meu.
Saí do quarto dele e antes de chegar ao que eu dividia com Ravi, minha
atenção foi atraída para uma porta entreaberta. O quarto onde Ravi, nos
últimos três dias, vinha trabalhando no projeto da vila e vinhedo.
O ar gelado me recebeu quando empurrei a porta. A janela aberta trazia
vento frio da manhã.
Sem vacilar um passo sequer, aproximei da mesa deparando com
rascunhos do trabalho dele ainda ali na escrivaninha.
Em três dias ele havia executado boa parte de um projeto para mostrar
a Demétrio. Eu era leiga no assunto, mas achei excelentes as ideias de Ravi.
Não eram os originais, pois certamente estavam no computador, ainda
assim, tudo que consegui ver, era perfeito. Uma ideia brotou em minha
mente.
Mas antes eu estava faminta e teria que saborear uma deliciosa cuca
feita por Veridiana.
Trinta e sete
GEDEON
Não quero nem lembrar que chorei. E não era para Bento ter visto. Não
era para ninguém ter visto minha vulnerabilidade tão exposta. Por isso corri
em direção ao ermo da fazenda, para ter a minha privacidade garantida na
noite escura, para que eu não precisasse ser uma rocha forte que sempre
sustentou a família.
A vida foi uma cadela da pior espécie ultrapassando o limite comigo.
Me pisoteou bonito e apreciou a minha queda.
Depois colocarei a culpa no álcool. Dizer que bebi demais no baile do
vô, por isso chorei. Então tocarei o barco fingindo que nada aconteceu.
Serei um bom tio para o filho de Ravi e Catarina.
Vou fingir muito bem a cada evento de família que a gente se
encontrar.
E por dentro eu desejarei que ela se foda.
E odiarei bombom Caribe para sempre.
Meio infantil, mas que se foda. Só eu saberei.
Vou trepar com todas que me quiserem, mas sem dar moral. Mulher
nenhuma terá chance comigo. Fui apunhalado por duas, não sou trouxa de
dar oportunidade para uma terceira fazer o mesmo.
Terminei o preparo de um chimarrão e me sentei numa cadeira de
balanço no terraço do rancho de Santiago, para assistir o pôr do sol. Estou
há um dia metido no galinheiro, sendo um frouxo escondendo-me de não-
sei-o-que.
Os demônios estão aqui comigo, nem me deixaram dormir. Pensei a
noite toda quase explodindo a cabeça. Portanto, do que eu me escondia
afinal? Da realidade?
Sorvi o líquido quente suspirando por ter meu coração aquecido pelo
mate.
Um gaúcho com seu chimarrão não quer guerra com ninguém.
Um gaúcho sem sua paixão perde o ânimo.
Rosnei um xingamento para minha mente e aproveitei o fim do dia, na
calmaria, sem celular, pois fiz questão de desligar o meu; sem qualquer
problema para resolver. O mundo não ia acabar se eu ficasse um tempo
sumido. Então ouvi atrás de mim:
— Porra, que susto. Você está aqui?
Era Santiago. Parecia que tinha acabado de sobreviver a um acidente.
Fiquei de pé para olhar o homem que arrancava a roupa preta do tipo que
parecia um agasalho de manga longa e gola alta.
Ao ver o corpo dele, estranhei ainda mais. Detectei hematomas e
arranhões. E eu sabia que não eram do treino de muay thai. Ninguém se
machucava assim treinando numa academia. Mesmo quando ele e Bento
resolviam se enfrentar.
— Barbaridade, tchê! Tu está todo esgualepado*. O que houve?
Machucado, ferido*
— O que você está fazendo aqui, Barreto? — Se esquivou de minha
pergunta jogando outra para mim.
— Passando um tempo. Estava treinando? — O observei despencar,
parecendo cansado, em um banco. Usava calça tática, estilo militar e botas.
Não parecia mesmo roupa de treinar muay thai.
— É. Foi isso. — Deu um breve sorriso sem credibilidade — Fui
inventar de treinar com uns caras clandestinamente.
— Um juiz lutando clandestinamente? Cuidado, porra.
— Pode deixar, mamãe, anotei o seu conselho. Agora me diga, o que
faz aqui?
Voltei a me sentar disposto a deixar a vida alheia de lado. Antônio
Santiago era adulto, eu já tinha problema demais para preocupar.
— Precisando de um tempo sozinho, para espairecer as ideias. Ontem a
noite a coisa não ficou boa para mim, me arranquei da festa cego de raiva.
— Sobre o seu avô?
— Meu avô? Não, a Catarina…
— O que houve com ela?
— Bah... — Soltei todo o ar do peito em uma soprada, olhando para
meus pés. — Ela está grávida, do meu irmão... e pior que eu estava
começando a...
— Espera. Grávida? Do Ravi?
— Sim.
— Algo não está bem contado nessa história. — Santiago se
empertigou no banco e interessado, mirou-me — Ontem teve o maior
quebra pau na festa, pois, um cara apareceu, agrediu Ravi e contou para
todo mundo que eles são namorados.
Dei um pulo, me levantando de novo, e passei um minuto encarando
Santiago esperando que ele soltasse uma risada sarcástica enquanto
revelava estar debochando da minha cara. Mas continuou sério aguardando
minha reação.
— Que porra… como assim…?
Santiago notou que talvez eu não soubesse mesmo a informação,
assumindo uma postura cautelosa, ficou de pé diante de mim.
— Pelo que foi revelado ontem, Ravi é gay.
— Mas... ele tá noivo.
— O cara que invadiu a festa ainda revelou que Catarina é só noiva de
fachada do Ravi. E aí seu Alberto não aguentou e desmaiou. Agora se
encontra hospitalizado.
— O vô está hospitalizado?
— Porra, Barreto, achei que você estava metido aqui fugindo disso
tudo.
∞∞∞
Tentava falar com minha mãe enquanto dirigia quebrando recordes de
velocidade. Ela não atendia o celular de forma alguma. E minha paciência
se esgotava diante do desespero inundando meu coração e mente.
Diferente da minha mãe, Donato atendeu de imediato.
— Gedeon?
— Onde está minha mãe? O que aconteceu?
— Tchê, as coisas não estão nada bem, viu? Marlene acabou de sair
daqui e falou umas poucas e boas com tua mãe. Onde tu se meteu?
— Estou chegando, precisei resolver uns problemas. E o meu vô?
— Ainda no hospital. Foi só um mal súbito, agora está de observação.
— E o Ravi?
— Preso na cobertura dele. Não quer ver ninguém. Rony veio aqui e
disse que seu irmão não pode mais ter um cargo alto na empresa.
— Daqui a pouco apareço aí.
Jurei que o mundo não ia desabar se eu ficasse um tempo sumido. Foi
só virar as costas que o diabo fez festa. Antes de ver minha mãe ou o vô, eu
tinha que conversar com Ravi para entender melhor que porra é essa de ser
gay nessa altura do campeonato.
Ou será que sempre foi, mas fui relapso demais para não ter auxiliado
o meu irmão?
Fui direto para a cobertura de Ravi, onde Donato disse que ele estava.
Além de que eu tinha deixado ordens para os dois saírem da minha
casa. Arrependo de ter feito isso, mas agora não era momento de chorar o
leite derramado.
Ravi permitiu minha entrada e quando saí do elevador entrando no hall
da cobertura, ele me esperava de pé no meio da sala, bem assustado.
Usando pijama, cabelos assanhados e o rosto marcado por hematomas.
Ele deu um passo para trás praticamente indicando estar com medo de mim
e isso quase me matou.
O meu irmão achava que eu tinha vindo lhe fazer mal?
Foi só agora que a ficha caiu para mim. Gay. Meu irmão era gay. E eu
não pude perceber mesmo batendo no peito que era o protetor supremo dele
e de Cassie. O olhar assustado dele implorava para que eu não o odiasse e
não o maltratasse.
Me veio à mente o menino pequeno sem pai que ajudei nossa mãe a
criar. Percebi que o amor que sinto é tão grande que o fato de ele preferir
homens, não faz a mínima diferença para mim.
Caminhei até ele, Ravi se encolheu e acho que até parou de respirar.
Então eu o abracei sem dizer nada.
Seu corpo estava rígido, mas acabou cedendo e retribuindo o abraço
enquanto chorava no meu ombro.
— Achei que tu nunca fosse... me perdoar.
Me afastei do abraço, segurei com força seus ombros, obrigando-o a
me olhar.
— Acho que errei contigo, meu irmão, na tua criação.
Ravi limpou os olhos e afastou-se de mim.
— Por favor, Gedeon, não venha com essa balela se perguntando onde
foi que você errou para eu ter me tornado um gay. Eu sempre fui. Apenas
aprendi a esconder melhor do que a maioria.
— Bah, eu estaria me perguntando onde errei se tu estivesse assaltando
gente ou matando. Errei em não ter te dado confiança o suficiente, para que
não se sentisse amedrontado, achando que eu te faria mal. Me entristece
saber que tu pensou que eu iria te bater ou te jogar os pés. Errei quando não
demostrei a ti que não era tudo só proteção, era amor mesmo e você poderia
ter contado comigo.
Ravi estava abismado me fitando. Então deu um grande sorriso e
suspirou aliviado. Aproximei dele novamente para segurar seu ombro.
— É uma novidade para nós, tenha paciência com tua família. Com o
tempo a gente vai se acostumar. E não deixarei ninguém te azucrinar por
causa disso.
— Obrigado. — Voltou a me abraçar, agora bem mais aliviado e falou
baixo:
— Desculpe por… ter armado todo esse circo, com a Catarina. — Foi
só tocar no nome dela que meu coração pulou ensandecido. Empurrei Ravi
mirando seus olhos.
— Me conte isso direito.
Ele sentou-se e eu fiquei de pé, pois a ansiedade era demais para me
deixar relaxar. Ravi contou em detalhes sobre um amigo americano que tem
uma boate, e por intermédio dele, conheceu uma brasileira que dançava nos
palcos.
Como ela tinha necessidade de voltar para o Brasil e se estabelecer
aqui, Ravi fez a proposta:
Duzentos e cinquenta mil dólares para que ela fosse a noiva perfeita,
enganasse o meu avô para que Ravi ficasse com a direção da construtora.
Eles me enganaram muito bem. E agora todas as peças se encaixavam
e fazia sentido. Por isso ela foi para a cama comigo, ela não estava traindo o
noivo.
Em meio a tanta confusão, um golpe de felicidade. Não havia gravidez,
tudo não passou de um mal-entendido de nossa mãe.
— Catarina não é uma interesseira. — Ravi disse. — Ela é uma mulher
corajosa e resiliente, tudo que ela sabe é lutar e sobreviver. Me deu apoio de
todas as maneiras possíveis. O azar dela foi não conseguir superar a paixão
que sentia por você. E isso ela me contou.
— Ela… disse que sente paixão por mim?
— É. Me falou ontem depois da festa. Que se for possível se apaixonar
em dez dias, então ela estava apaixonada.
— E onde ela está? — Olhei em volta como se pudesse vê-la espiando
em algum canto.
— Não sei. — Ravi deu de ombros. — Quando acordei, ela não estava
mais em casa. E até agora não apareceu. Tentei ligar, mas o celular dela está
fora de área.
— Onde você acha que ela foi? Será que está na minha fazenda?
— A gente discutiu... e ela ficou meio magoada. Eu a chamei de
interesseira e disse que ela não tinha uma família para tentar falar da minha.
Puta que pariu.
Agora, sim, aflição insuportável tomou conta do meu coração.
Minha mãe, meu avô e Ravi estavam bem. Mas e Catarina? Não ia
conseguir me perdoar se algo acontecesse com ela.
Trinta e oito
GEDEON
Eram seis e meia da manhã quando tirei meu irmão da cama, fiz com
que se vestisse em dez minutos saindo correndo atrás de mim sem ter
muitas explicações.
— Você vai assim do nada para uma localização que te mandaram por
mensagem? E se for golpe? — Ravi balbuciou ainda meio grogue ao meu
lado no carro, sendo incapaz de furar minha bolha de otimismo.
— Não é. Eu confio nela.
Ele colocou óculos escuros e se acomodou melhor no banco do carro,
pronto para dormir.
— Mas e se alguém a sequestrou e está te atraindo até ela?
— Aí, eu vou ter que matar quem pegou a minha mulher.
Virou-se para mim com brusquidão.
— Ah, agora ela é sua mulher?
— Sim. Sempre foi. — Apesar da confiança, lancei um pingo de dúvida
em um olhar semicerrado — Só para saber... vocês não chegaram a...
— Tu sabe qual a definição de ser gay.
— Ótimo. — Sorri amplamente — Tri legal.
— Tá feliz por eu ser gay?
— Sim. Estou muito feliz.
No fundo, eu sabia que a preocupação de Ravi tinha um fundo de
coerência, talvez fosse uma cilada. Pensei em mil coisas ruins que poderiam
estar nos esperando, mas a curiosidade e a vontade de ver Catarina eram
bem mais fortes.
Além de que eu conhecia a localização que ela me mandou e foi
justamente isso que me deixou ainda mais de orelha em pé. O que essa
mulher fora fazer justo naquele lugar?
Acho que nunca tinha sentido tanto desassossego até chegar ao
vinhedo de Demétrio, onde parei o carro de qualquer jeito e nem esperei por
Ravi.
— Gedeon, espera. — Ele gritava, mole feito uma tartaruga para
caminhar, bem atrás de mim.
Uns homens que estava ali, possivelmente funcionários, disseram que
eu poderia entrar, Demétrio estava nos fundos nos aguardando.
Cheiro de café recém-coado dava boas-vindas, trazendo um pouco de
vida para o casarão em ruínas.
Fui cego de ansiedade na direção que me foi informada, ouvindo os
passos rápidos de Ravi bem perto de mim, e eu sabia que ele estava
disposto a tentar me segurar se caso precisasse.
E quase precisou.
Paralisei ao ver a cena de Catarina toda faceira tomando café com
Demétrio.
— Me chamou aqui para que, Catarina. — Não consegui controlar a
rispidez. Os dois pararam de conversar, olharam para mim e ambos ficaram
sérios no mesmo instante.
Cadê as risadinhas que eu estava vendo antes? Podem continuar com
o café da manhã descontraído.
— Bueno dia, Ravi. — Demétrio cumprimentou meu irmão primeiro e
em seguida estendeu a mão para mim. — Bueno, Gedeon.
— Bueno. — Peguei rápido na mão dele, pois também não era nenhum
malcriado. — E então, Catarina, diz logo o que quer, sou um homem
ocupado.
— Vocês podem ir para o terceiro piso. Terão privacidade. — Demétrio
informou e já olhou para meu irmão mudando o semblante na mesma hora,
para algo mais agradável. — Ravi, que bom que veio. Podemos falar sobre
negócios?
— Ah... não sei se ainda estarei na construtora.
— Venha, pegue um pouco de café, vamos conversar.
Deixei os dois na cozinha improvisada e subi calado com Catarina.
Apenas nossos passos rangendo no assoalho velho de madeira. Deixei que
fosse um passo na minha frente, até chegarmos ao terceiro piso. Ela
empurrou uma porta e me deixou passar.
Não tinha móveis no quarto, mas era um cômodo melhor que o resto
da casa. Possuía cortinas desbotadas e uma porta que parecia ser de um
banheiro. Havia um colchão no chão, sapatos dela e a bolsa.
— Você dormiu aqui? — Fui logo perguntando.
— Sim. — Caminhou até a outra extremidade do quarto cruzando os
braços enquanto me fitava.
— Dormiu aqui, com esse cara?
— Por quê? — Fez uma careta com ar atrevido — Tem algum
problema com isso?
— Sim, Catarina, eu tenho muitos problemas com isso. Você
simplesmente some e o primeiro lugar para onde corre é a casa de um
solteiro que evidentemente está salivando por você.
— Salivando por mim?
— Esse cara se faz de vesgo para mamar em duas tetas, Catarina.
Percebi logo de cara.
Ela levantou o dedo e abriu a boca prestes a discutir, mas tomou fôlego
e se acalmou.
— Eu só vou aturar esse chilique sem sentido, porque eu me sinto em
dívida com você e sua família. Acho que já deve saber sobre Ravi e eu.
— É, eu sei. Você foi paga para enganar a mim e minha família.
— É por aí. Quero te pedir desculpas por isso, apesar de não me
arrepender. E desculpas também pelo que aconteceu na festa que fugiu do
meu controle.
Enquanto ela se vestia de humildade, meu sangue borbulhava quente.
Eu queria reação, queria chumbo trocado para ter a chance de acertar os
ponteiros ardentemente.
— Me chamou aqui só para me pedir desculpas? — Retruquei chutando
as desculpas dela — Podia ter feito isso pelo celular.
— Porra, você está extremamente insuportável. Que droga de homem
chato. — Catarina perdeu a compostura na hora. Assim que eu gostava.
Queria intensidade. E era incrível como a gente combinava tão bem. Um dia
cheguei a pensar que morreria velho rabugento sozinho, pois nenhuma
mulher conseguia me deixar interessado por mais de alguns dias.
Todas pareciam iguais e enfadonhas ao tentar de tudo para me agradar.
Todas que entravam em minha vida, pareciam preocupadas em serem
perfeitas para mim.
E então chega Catarina com sua petulância, seu charme, esperteza e a
fraca atuação em tentar se passar por mocinha. Ela era a tampa da minha
panela que nem se importou em tentar se adequar a mim, e ainda assim,
coube perfeitamente ao meu redor desde o primeiro momento.
— Por que você está rindo…? — Indagou e eu nem percebi que sorria
para ela.
— Estou rindo, pois no final de tudo, eu que ganhei. — Aproximei-me
dela encurralando-a entre meu corpo e a parede.
— E o que você ganhou, Gedeon? — Foi seca, ainda tentando ser
indiferente, mesmo que seu corpo a entregasse reagindo facilmente a mim.
— Minha felicidade de volta, tchê. Em dez dias uma guria fez meu
coração balançar novamente após quase vinte anos endurecido. Foi como se
ela fosse o desfibrilador que o fizesse reviver. E agora tudo que penso é em
passar meu tempo com ela, conhecer tudo sobre ela, ser o motivo dos
sorrisos dela.
Mesmo com uma lágrima despontando, evidenciando a emoção dela,
Catarina suspirou tentando parecer durona.
— Desculpe... é tudo que uma mulher gostaria de ouvir. Mas não estou
pronta, eu não sou o tipo de mulher ideal para ser a companheira
perfeitinha.
— Para com esse tipo de merda. Eu não quero companheira perfeitinha,
quero você.
Impaciente, Catarina limpou os olhos e tentou escapar da barreira entre
meu corpo e a parede. Não permiti.
— Gedeon... eu não posso ser o que quer que você esteja propondo. Eu
era ilegal nos Estados Unidos...
— Foda-se, na minha propriedade tu é legalizada.
— Eu menti sobre meu pai. Ele era um estúpido e me agredia após a
morte de minha mãe, então fugi de casa aos quinze anos para me virar por
conta própria. Não tenho uma história bonitinha de família estruturada.
— Por mim tudo bem. Posso sobreviver ao fato de que tu não tem
família, só não quero viver sem ti. E eu posso ir atrás desse seu pai e dar
uma surra nele, mesmo se tu não quiser.
— Cacete, me escute. Eu não sou a mulher boazinha que Ravi tentou
pintar para sua família.
— E ele não conseguiu. Na hora que te vi percebi que não era flor-que-
se-cheire. Estava mais para uma... “comigo ninguém pode”.
— Ok. Eu não sou fã de jazz e nem pinturas famosas. Não frequento
igreja e prefiro filmes de comédia aos clássicos. Jogo dominó e não sou
vegetariana. Posso ser debochada, não fujo de uma briga, posso ser má às
vezes, dançava numa boate, gosto de beber cerveja e adoro sexo depravado
com você.
— Deus, eu pedi um simples alimento e tu me deste um banquete? —
Segurei o seu rosto limpando mais uma lágrima com meu polegar. —
Acabou para ti, Catarina. Acabou a luta pela sobrevivência. Tu acaba de
encontrar o seu lar.
E ela não aguentou, depois de um sorriso, pulou em mim envolvendo
meu pescoço com os braços de uma maneira tão forte que era como tentasse
nos fundir. Meus braços a acolheram na mesma intensidade, rodeando seu
corpo, erguendo-a do chão.
— Só não me machuque nunca, pois estou depositando tudo que tenho
em você. Na verdade, você, agora, é tudo que eu tenho.
Afastei do abraço para olhar no rosto dela.
— Prometo a ti, minha guria. — Falei antes de beijá-la vorazmente,
como se fosse água para minha sede.
Trinta e nove
CATARINA
Deliciosamente preenchida. No coração, na alma e na boceta. O pau de
Gedeon ainda pulsava dentro de mim após nós dois atingirmos o gozo
perfeito que foi como a cereja do bolo para o melhor sexo de reconciliação
da vida. O melhor e único, afinal eu nunca tive sexo de reconciliação com
ninguém.
Soltei o corpo, deitando-me sobre seu peito ainda ofegante, após a
minha longa cavalgada da paixão.
Transar apaixonada, após receber uma declaração de amor? Não havia
dinheiro que pudesse pagar.
Ainda podia sentir cada gota de êxtase em minhas veias quando o pau
deslizou para fora de mim. Não consegui conter o sorriso de satisfação.
— Ah... — gemi, evolvendo-o com braços e pernas. — Como eu
precisava disso.
— O amor é mais gostoso depois que se deita e abraça. — Respondeu
cantando e eu levantei o rosto do seu peito para fitá-lo.
— O quê?
— Uma música do Baitaca que me veio em mente. — Gedeon apertou-
me com mais força girando no colchão e jogando-me por baixo dele,
acomodando seu corpo incrivelmente gostoso sobre o meu.
— Do churrasqueiro, tu sempre prefere o espeto, não é?
Após a gargalhada, concordei.
— Com certeza. — Ergui a mão acariciando seu rosto. — Temos que
descer. Seu irmão nos espera. Estamos aqui em cima há quarenta minutos.
— Eles já imaginam o que estamos fazendo.
— Vou ficar com muita vergonha quando vocês forem embora, eu ficar
com o...
— Que conversa doida é essa? — Gedeon interrompeu-me na hora —
Não vai voltar conosco?
— Bom, eu estava para te falar. Talvez eu fique por aqui... algum
tempo.
Surpreso, Gedeon interrompeu o abraço saindo de cima de mim para se
sentar.
— Aqui onde?
— Aqui, Gedeon. Vim dos Estados Unidos, por isso, não tenho onde
morar. Não tenho casa, então comentei com Demétrio e ele disse que eu
poderia ficar aqui.
— Mas beeem capaz.
Gedeon saiu rapidamente do colchão e em dois segundos vestiu cueca
e calça. Sentei-me também puxando o lençol para me cobrir.
— Gedeon…
— Acabou de aceitar minha proposta. Já era, bah, não tem mais volta.
Eu não imaginava que ia receber um pedido de namoro de um
churrasqueiro famoso de quarenta anos que tinha alergia a relacionamentos.
Por isso aceitei o convite de Demétrio para trabalhar aqui com ele.
Eu teria enfim minha vida e meu dinheiro, sem depender de ninguém.
E nem precisaria me esconder.
— Mas isso não vai interferir em nada. São poucas horas de viagem e
você pode vir sempre me ver. — Opinei. Ele continuou se vestindo
raivosamente.
— Tchê, quer saber? Não quero nem pensar que tu esteja levando a
sério esta bobagem. Aquiete o facho, arrume tuas coisas, pois voltará
comigo.
— Demétrio me ofereceu um emprego…
— E vai morar onde, Catarina? Me responda isso.
— Aqui. — Mostrei em volta.
— Morar sozinha numa casa com um cavalo daquele tamanho...
solteiro, e distante de mim? Nem se me matar que tu consegue isso, bah.
Fiquei de pé, ainda enrolada no lençol, e mesmo que eu não fosse lutar
por essa vaga de emprego — afinal as coisas não são mais iguais eram
horas atrás — tinha que deixar algo bem claro:
— Não serei uma encostada. Mulher–troféu de homem rico.
— Posso te oferecer um emprego.
— E o que seria?
Ele aproximou-se silencioso feito uma águia.
— Sei lá, qualquer coisa. Dançarina particular talvez? E o pagamento
será em pica e Caribe, o que acha? — Piscou de forma safada, arrancando
um sorriso de mim.
— Está me fazendo te detestar. — Sorri, já nos braços dele.
— Eu sei. Por isso a gente dá certo. Se vista logo — tapa na minha
bunda — senão vou ter que descer baixo nível e armar um sequestro contra
você.
∞∞∞
Eu não ia aceitar que Ravi fosse derrotado. E conforme meus
pensamentos se encaixavam, mais ainda tinha certeza de que Rony quis que
houvesse a confusão na festa para que seu maior oponente, fosse
aniquilado.
Por causa disso, tive a ideia de trazer os esboços da ideia de Ravi antes
que a construtora fechasse negociação com Demétrio, sem Ravi presente
para chefiar a obra.
Demétrio gostou dos esboços que viu e após saber de toda história,
inclusive sobre o noivado falso, aceitou dar a oportunidade exclusivamente
ao projeto de Ravi.
Então eu tinha um trunfo contra qualquer imposição de Rony ou de seu
Alberto — que, atualmente, não apitava nada.
Tudo que eu precisava era de uma voz poderosa para falar por Ravi.
Nada melhor que Gedeon, sempre respeitado por toda a família e
principalmente pelo avô.
Então o chamei no vinhedo apenas para tentar convencê-lo a ajudar o
irmão. Não fazia ideia de que eu ia voltar para casa com um namorado a
tiracolo.
Foi terrivelmente satisfatório ir até a empresa falar com Rony. Ele já
estava na sala da presidência, se sentindo o CEO, quando aceitou receber
Ravi.
E antes que Ravi pudesse se defender, Rony em seu terno
estupidamente caro, cabelos bem penteados e postura prepotente, foi
taxativo dizendo que não iria ficar bem para a empresa tendo alguém como
Ravi em um cargo alto, uma vez que a construtora presava pela tradição e
moralismo.
E foi então que Gedeon entrou dando o seu show.
— Primo, o Ravi vai ficar no cargo dele e tu ficará quietinho no cargo
anterior até que o novo presidente seja escolhido. E quem está dizendo isso
é alguém que tem mais ações do que você aqui dentro.
— Gedeon, desculpe, não quero pegar peleia* contigo. Só estou
cumprindo a vontade de nosso avô.
— Eu sei, também não quero briga. Gedeon apoiou as duas mãos na
mesa enfrentando Rony — Isso é uma conversa de família.
Rony olhou para mim, como se quisesse apontar que eu não era da
família, mas acho que não teve coragem de expressar os pensamentos.
— Gedeon, eu estou apenas tentando estancar o sangramento. Ravi se
meteu em um caso chamativo, saiu até na impressa nacional. Não é de bom-
tom que ele continue em um cargo alto, ou a frente de obras de relevância.
E nem pode ser cogitado para assumir a presidência da construtora.
— O caso é o seguinte, Rony. Se eu souber que estão impedindo meu
irmão de exercer um cargo o qual ele é capacitado, devido à sexualidade…
— Não é por isso, Gedeon. — elevou o tom de voz — É uma tática
para estancar o escândalo que Ravi criou quando aquele cara fez aquelas
declarações na festa.
— Então entramos no nosso segundo ponto. — Gedeon interpelou
cheio de confiança deixando Rony mais nervoso — Tenho imagens das
câmeras de segurança do clube que mostram a ti deixando o Juliano entrar.
Quem foi que provocou o escândalo então?
— Está disposto a sujar a empresa de sua família?
— Foda-se, eu tenho a minha, não dependo disso aqui. Mas meu irmão
ama, é isso que ele quer, e eu farei de tudo para que ele seja realizado aqui
dentro.
— Obrigado, mano. — Ravi falou e deu um passo na direção de Rony
— E por derradeiro, e não menos importante, Demétrio Montebelo assinou
um contrato de exclusividade com o meu projeto. — Com calma,
saboreando o momento, Ravi empurrou sobre a mesa a pasta com a
proposta para Demétrio. — Se eu sair daqui e for para uma concorrente,
posso levar Demétrio e o projeto da vila, o qual era o grande objetivo do vô.
Rony estava derrotado. Respirando pesado, olhou para a pasta diante
dele sem nem ter coragem de tocar e virou-se para Gedeon.
— Quando o vô voltar...
— Ele não vai mais voltar para cá. — Gedeon deixou claro — Quando
o vô melhorar, encontrará a ti e Ravi, juntos a frente da empresa. Os dois
primos trabalhando felizes, para que eu não tenha que interferir novamente.
Está tudo bem, primo?
Após puxar o ar com força, ele meneou a cabeça forçando um sorriso.
— Está. Ravi, você pode voltar para o seu cargo e chefiar a obra da
vila.
Ao saímos do prédio monumental da construtora Barreto, deslizei
minha mão pelo braço de Gedeon até encontrar a mão dele e agarrá-la
entrelaçando nossos dedos.
— Você foi magnífico. Fez o Rony até sorrir.
— Gostou?
— Estou tremendo de tesão por você. — Confessei, sussurrando para
ele.
— Hoje você não dorme, minha putinha. — Retrucou arrancando uma
risada de mim.
Levamos Ravi até a casa de Marilia. E dessa vez, ela não fugiu da
realidade. Exibia olhos inchados de tanto chorar por causa de algo que nem
ela e nem ninguém tinha controle. E que não era da conta de ninguém
exceto de Ravi.
Ela o abraçou, chorou mais um pouco e quis escutar dele cada
momento em que ele passou escondido dentro de si com medo da
repreensão da família.
Gedeon me puxou, cochichando que era um momento deles e por isso,
fomos embora os deixando a sós enquanto reviviam todas as fases da vida
de Ravi.
— Eu não sei se quero ficar aqui com você. — Falei, entrando na casa
dele, agora como namorada. Gedeon já se virou puto.
— Bah, que guria chata de galocha. Aceitou ser minha mulher, mas não
quer ficar na minha casa?
— Namorados não moram juntos, Gedeon. O que as pessoas da sua
família vão dizer?
— Fodam-se as pessoas? Que vantagem tem em estar namorando e não
poder segurar seus peitos quando eu for dormir?
— Meu Deus, homem!
Veio até mim, agarrando-me pela cintura.
— Catarina, tu não tem casa, não tem para onde ir, e eu possuo essa
casa desse tamanho. A gente já juntou os trapos e tu nem se deu conta
ainda.
— E se a gente cansar um do outro muito rápido?
Jogou a cabeça para trás rindo.
— Porra, tu não se deu conta ainda de onde se meteu, né? Venha,
vamos conhecer seu novo quarto.
∞∞∞
Naquela noite eu estava no quarto de Gedeon não mais como uma
intrusa ou visitante. Ele me fez sentir parte daquele ambiente, me fez
entender que meu lar agora era onde ele estivesse. E tudo que passei a vida
procurando, acabara de encontrar.
Minha mãe estaria feliz e enfim poderia descasar pela eternidade por
eu encontrar o meu porto seguro com segurança.
Não era ainda o meu final feliz, mas eu torcia com todas as minhas
forças para que fosse o início. Para que meu destino fosse ao lado do
homem mais original e excitante que pude conhecer.
Gedeon fugia de todos os estereótipos clichês, e ainda assim conseguia
a façanha de ser o candidato perfeito a marido e futuro pai de meus filhos.
Nessa noite dormimos juntos pela primeira vez.
Tinha banheira na suíte dele onde pude realizar minhas fantasias de
sexo safado sem limites. Depois do banho, fomos para a cama.
Deitamos de frente um para o outro, ocupando um travesseiro apenas.
Tão pertinho que dava para sentir as respirações se encontrando.
Parecíamos pombinhos bobos e apaixonados.
Apesar de minha vida dura, nunca fui descrente com amor e
sentimentos de afeto entre pessoas. Ao contrário, eu adorava admirar casais,
adorava admirar famílias felizes fazendo compras de Natal ou Ação de
Graças; uma data muito importante nos Estados Unidos.
Nada de inveja, apenas fascínio por algo que eu sabia que existia, mas
não fazia parte de minha vida.
E hoje, parecia que o destino estava me dando de presente a semente
para eu conseguir a minha própria família.
— O que está pensando? — Ele indagou baixinho.
— Que sou trouxa por ficar com o homem que me chamava de puta e
interesseira.
— Não era puta, era putinha. Tinha carinho adicionado. — Ele se
desculpou rindo.
— Na minha cabeça eu te chamava de Gedêmonio.
Deu uma sonora gargalhada enquanto afastava para pegar o celular ao
lado.
— Tchê, dei uma gaitada daquelas. — Ele falou rindo, mexeu em algo
no celular e me mostrou. — Olha como salvei seu nome.
Peguei o celular dele caindo na risada ao ler CataPuta.
— O que é isso? Catarina com puta?
— Putinha. — Tentou tomar o celular da minha mão, mas me sentei e
aproveitei para entrar no Instagram dele.
— O que está fazendo? Me dá isso aqui, Catarina. — Tentou tomar, no
entanto, fui mais rápida afastando o aparelho das garras dele.
— Você seguiu aquela lambisgoia no dia do jantar. Eu vi.
— Estava bisbilhotando minhas redes?
— Claro. — Encontrei o perfil de Luana e dei unfollow na hora. Em
seguida, fui ao meu perfil, o qual ele já seguia, e curti as minhas últimas
fotos.
— Para que isso?
— Dando sinais de que logo a gente vai anunciar que estamos juntos.
Gedeon arrancou o celular da minha mão, jogou do lado e me puxou
para si. Aninhei em seu corpo seminu com a perfeição de uma luva
encaixando na mão.
— Sim, estamos juntos. E eu não canso de ficar feliz. Bendita hora que
Ravi te trouxe para mim.
— Ele não me trouxe para você.
— Trouxe sim.
Estávamos deitados de frente um para o outro, abraçados
confortavelmente. A mão dele desceu pelas minhas costas encontrando
minha bunda.
— Quase vinte anos sozinho, é porque eu estava esperando por você.
— Passei quase a vida toda fugindo até encontrar aqui o meu abrigo. —
Sussurrei como resposta recebendo o beijo dele.
Quando acordei ainda estávamos abraçados, dessa vez, numa
conchinha perfeita. De olhos abertos, ouvi o canto dos pássaros, senti o
cheiro da manhã junto ao conforto gostoso da cama e dos braços de
Gedeon.
Sorri ao lembrar que ele detestava a ideia de ter um relacionamento
aberto e agora eu entendia perfeitamente. Morreria, mas não o dividiria com
ninguém. Ele e o seu amor bastavam para mim.
Quarenta
GEDEON
∞∞∞
— Como estou? — Quis saber minha opinião após se vestir para uma
noite especial que teremos no restaurante Costello, do meu amigo Nero. Ele
mesmo fez o convite deixando Catarina ansiosa para conhecer o lugar.
O vestido que ela me mostrava era muito decotado, vermelho, colado
ao corpo e de cumprimento talvez um pouco curto. Sexy de doer. Minha
mulher foi desenhada especialmente para mim. E esse era o problema, só eu
queria ter o privilégio de ver.
— Barbaridade! Acho que vou arrumar uma boa briga no restaurante
chique do meu amigo. Pois vou querer bater em qualquer um que te olhar.
— Me olhar? — Ela deu um giro em frente ao espelho. — Estou tão
gostosa e chamativa assim?
— Sim, Catarina. Já sinto palpitação só em pensar naquele tanto de
olho gordo em cima de ti. Que bunda gostosa, meu Deus.
Ela riu da minha aflição e para pirraçar, correu os dedos pelos seios ao
mesmo tempo que mordia o lábio em um sorriso safado.
Sem sutiã? O piercing, que era minha propriedade, aparecendo?
— De maneira nenhuma! Isso só quem vê sou eu. Pode me chamar de
tóxico, mas vai ter que trocar esse pedaço de pano que você chama de
vestido.
Ela gargalhou enlaçando meu pescoço, gesto que era estranho, afinal,
não estava brigando por eu ter pedido para trocar de roupa.
— Do que está rindo?
— Eu usava esse vestido quando era Roxy. Lógico que não vou a um
restaurante de luxo usando isso.
— Porra, que cagaço eu tive viu. — Suspirei com alívio observando-a
voltar para o closet, com aquela maldita bunda empinada. — Não teria uma
roupa bem evangélica aí não?
— Não, Gedeon.
∞∞∞
Levei Catarina pela primeira vez no Centro de Tradições Gaúchas, e
fui, como sempre, ao estilo gaúcho tradicional, usando pilcha com direito a
chapéu e lenço no pescoço. Mas não me limitei a ficar só na barraca do
churrasco Barretão.
De mãos dadas com minha prenda, andei por ali cumprimentando as
pessoas, apresentado ela a alguns conhecidos, mostrando a Catarina a
tradição gaúcha no melhor lugar que havia para se deliciar com a
regionalidade do estado.
E então topei com alguém que jamais imaginei ver novamente.
Era Nivea. Não mais com seu ruivo encaracolado, agora exibia um
loiro escorrido. Não era mais a mesma de antes, apesar de ainda manter a
beleza. Um amigo de São Paulo que a conhecia me disse um tempo atrás
que ela havia se divorciado do segundo marido.
Não me importava mais qualquer coisa sobre sua vida.
Ao vê-la cara a cara, enfim eu parecia curado. Porque agora eu tinha
um amor preenchendo a ferida que ela deixou. Aquela mulher a minha
frente, meio perplexa, era uma desconhecida, apesar de já ter usado a minha
aliança.
— Oi... — Ela cumprimentou. — Vim trazer meus filhos para
conhecer… o lugar. Jurei que te encontraria por aqui. — Olhei para onde
ela apontou, vendo dois jovens distraídos com uma barraca. Eu estava
tranquilo, não havia nenhuma possibilidade de ela vir requerer paternidade,
já que fez teste de gravidez antes do divórcio.
Nivea olhou para Catarina, de cima a baixo. E então se apresentou:
— Sou a ex-esposa dele.
— Este é um lugar perfeito para turistas, tchê. Fique à vontade e
aproveite. — Respondi como responderia a qualquer turista e ainda fiz
questão de puxar bastante o sotaque.
— Adoro o sotaque do meu noivo. — Catarina disse rindo para Nivea.
— Vamos, amor. Estou doida para te fazendo um bom churrasco. —
Acenou para ela me puxando dali.
— Você, como sempre, foi na mosca. — Falei com Catarina.
— Está tudo bem?
— Estou. Provavelmente ela veio por ver sobre meu noivado em algum
lugar. Pois fazia anos que não pisava aqui. É passado, agora você e eu
somos presente e futuro.
E o futuro era mais belo do que eu poderia imaginar.
Um dia notei que Catarina acordou estranha. Recusou nosso sexo
matutino, não quis ir comigo para a fazenda, algo que ela se acostumara a
fazer porque gostava.
Eu tinha que sair para compromissos e liguei para Cassie pedindo-a
para vir ficar com Catarina na parte da tarde, mas não pode atender ao meu
pedido por estar atolada de trabalhos da faculdade.
Foi o jeito antecipar tudo que eu tinha para fazer e voltar ferrado de
preocupação para casa o mais rápido possível. Eu conhecia Catarina, e se
ela estava triste, passava esse sentimento para mim automaticamente, só
com o olhar, sem precisar dizer um “a”.
— Catarina? — Cheguei em cima do laço em casa. Subi as escadas a
cada dois degraus e a encontrei deitada de lado no sofá da sala de televisão.
[1] Triste
Epílogo
— Vou me casar, mas não estou ótima com seu irmão. — Cochichei
para Cassie.
— O que ele aprontou?
— Os amigos de má índole que ele tem, o arrastaram para uma
despedida de solteiro, acredita? Fiquei sabendo ontem por acaso.
Eu era a assistente pessoal de Gedeon, por isso tinha acesso ao seu e-
mail e ao notebook, onde ele sempre deixava o WhatsApp aberto. Detesto
olhar coisas sem permissão, pois não quero ser o tipo de mulher espiã.
Quero confiar nele. Então vi a foto de mulheres usando fantasia de policial
passando a mão nele.
E isso foi justamente ontem. A gente está praticamente sem se falar a
vinte e quatro horas.
— O que esperar daquele bando de canalhas, não é? — Cassie
desdenhou.
— Não posso deixar isso se tornar comum. — Falei — Gedeon tem
que entender que ele pode fazer parte daquele quarteto de galinhas, mas
tendo restrições. Eu não vou me casar para ser feita de trouxa.
— Mas... ele fez algo? Com mulheres?
— Jurou para mim que não. Vou confiar, no entanto, quero castigá-lo
um pouco.
— Tirando meu irmão, eu desprezo todos eles. Não quero nem olhar
para cara e só aceitei ser sua madrinha porque irei com Ravi. Senão, jamais
seria par de um dos três idiotas.
Ao ouvir isso, me virei para Cassie.
Bento será padrinho com a nova namorada. E eu sabia da paixonite
platônica que Cassie tinha pelo amigo de Gedeon, não queria vê-la sofrer
por ver Bento com a namorada oficial.
— Você está mesmo bem?
— Perfeitamente bem. Sou forte, tchê.
— Ótimo. O que acha de zoar com a cara de Gedeon para ele aprender
a não ir mais em festinhas pervertidas de Santiago?
— Meu Deus, eu te amo. — Festejou com palmas — Em que está
pensando?
— Procure o Ravi, traga-o aqui.
∞∞∞
GEDEON
Santiago e Bento iam me pagar caro. Nero nem tanto, pois ele apenas
comparecia quando era convidado para as festinhas de putaria.
Eles armaram uma comemoração surpresa para mim, conseguiram me
atrair até o local sem que Catarina fosse comigo, com a desculpa deslavada
de que era apenas para eu dar uma opinião em um cavalo que Bento ia
comprar.
Achei muito estranho, eu criava cavalos de raça, Bento poderia
comprar diretamente comigo. Ainda assim, eu fui.
Ao chegar a casa de meu amigo, deparei-me com o maior fandango
armado. Só tinha homem e bebida.
Era bizarrice pura. Que macho iria querer festejar com machos?
E não tinha mesmo só machos. Bento saiu e voltou dizendo que a festa
ia ser interrompida, pois a brigada militar estava lá. Então ele ordenou que
todo mundo encostasse na parede para que fossemos revistados.
Juro que estava quase acreditando no sujeito, mas ao abrir a porta, um
bando de mulheres usando fantasias sexy de policial entrou no recinto
batendo na gente com cassetete falso e nos algemando com algemas rosas
de pluma.
Isso foi há cinco dias, mas só ontem Catarina descobriu, por acaso, ao
ver uma foto que Santiago achou por bem mandar em nosso grupo no
WhatsApp.
Justo na véspera de nosso casamento. Eu ia matar Bento se algo desse
errado.
Santiago e Nero, usando ternos de padrinho, prenderam um riso ao
olhar minha ansiedade como noivo diante do altar e dos convidados
esperando a noiva que já deveria ter descido.
O casamento estava acontecendo em minha fazenda. A decoração
havia sido meticulosamente pensada por Catarina, minha mãe e Cassie.
Esse casamento era a cola unindo toda a minha família novamente. O bebê
que Catarina esperava era o meu legado vindo ao mundo, e todo mundo
contava os dias para a criança nascer.
Tudo tinha que dar certo hoje.
Com cagaço de medo, deparei-me com Ravi e Cassie cochichando,
ambos meio apreensivos antes de meu irmão tomar a dianteira para vir até
mim. A cada passo que ele dava se aproximando, meu coração perdia uma
batida.
— O que está havendo? — Bento também percebeu e aproximou-se.
— Não sei, mas se algo acontecer, tu me paga. — Ameacei no mesmo
instante.
Ravi chegou perto e cochichou para mim e os padrinhos que, curiosos,
se aproximaram.
— Ela desistiu.
Não perguntei os motivos, não quis saber onde ela estava, não dei
tempo nem mesmo de ele terminar de falar. Saí correndo rumo ao interior
da casa.
— Onde ela está, Cassie? — Gritei para minha irmã assustada com meu
rompante.
— Mano, deixa ela. Amanhã vocês conversam.
— Um caralho. — Corri em direção à escada, avancei pelo corredor
como se tivesse superpoderes e entrei no meu quarto. Catarina não estava
lá.
— Onde ela está, Cassandra? — Meu berro reverberou pela casa
inteira.
— Devia estar desesperado assim quando foi farrear com seus amigos.
— Cassie jogou na minha cara mostrando que sabia os motivos da
desistência de Catarina. Eu seria capaz de arrastá-la algemada para o altar,
mas não a deixaria fugir tão fácil assim. Era o nosso dia, porra, e eu não fiz
nada com as mulheres de Bento.
Talvez só fui um pouco massageado.
— Não fala merda, guria. Onde está aquela… — enfiei as mãos nos
cabelos, deixando evidente a minha aflição, implorando com o olhar para
que Cassie me ajudasse.
Ravi apareceu e me segurou pelos ombros.
— Catarina é a mulher perfeita para tu, mano. E agora sei que você a
ama. Está lá embaixo e se você não aparecer nos próximos segundos, ela
vai embora.
Saí correndo em completo alvoroço do quarto topando com Bento que
veio me chamar.
— Ela está lá. Ela está lá com um cronômetro, Barreto. Corre. — E eu
corri mais que o Usain Bolt, o atleta.
Atravessei minha casa inteira em segundos, chegando ofegante no
início do caminho que levava ao altar.
Então todos se levantaram, a marcha nupcial começou e eu andei pela
passarela até onde Catarina me esperava deslumbrante de noiva.
Quase colocando o coração pela boca, a segurei com força diante do
juiz de paz.
— Você tentou me matar, não é, putinha? — Sussurrei para apenas ela
ouvir. Catarina riu.
— Só uma brincadeirinha, amor. Como você fez com seus amigos.
— Como posso amar uma mulher dessa, meu Deus? — Segurando
firme na mão dela, me virei para o juiz.
— Me casa logo com essa... guria que amo, tchê.
Eu ansiava para dizer “sim”, tirá-la daqui e enfim poder dar o troco
que minha amada merecia.
∞∞∞
No dia do meu casamento levei dois sustos.
Um deles, achando que minha noiva tinha desistido. E após a longa e
animada festa, quando tudo estava preparado para a nossa noite de núpcias,
percebi que a minha esposa não estava pronta para entrar ao meu lado no
carro.
Onde estava Catarina?
Dessa vez, no entanto, ela deixou uma pista para eu seguir.
Não imaginava que era tão distraído até perder de vista uma noiva e
grávida ainda por cima.
Já anoitecia, eu só desejava tirar minha roupa e tomar um champanhe
em uma banheira na companhia de minha esposa. Era pedir muito?
Parecia que era, sim, pedir muito para meus três padrinhos que
vendaram meus olhos, quase contra minha vontade, pois eu não confiava
mais neles, e me levaram para supostamente encontrar Catarina.
O local? O clube privado de polo.
Bento tirou minha venda, me empurrou para a entrada e acenou,
deixando claro que dali em diante seria eu por conta própria.
Um passo por vez, meio cauteloso, entrei no casarão onde apenas
minha respiração e passos podiam ser ouvidos.
Cheguei ao salão principal e tomei um baita susto quando uma música
começou a tocar ao mesmo tempo que as luzes se apagaram, restando
apenas as luzes do palco.
Paralisei no meio do salão e quase saí correndo no instante em que a
silhueta de uma mulher entrou usando saltos vermelhos, cinta liga da
mesma cor e ainda por cima arrastava uma cadeira.
Achei que ia dar ruim para mim, ia novamente ser acusado de algo.
Todavia, esse medo se dissipou e permaneci no mesmo lugar assim que
reconheci aquele corpo e aqueles cabelos.
Catarina?
Sob meu olhar petrificado e incrédulo, começou a dança mais incrível
e sensual que eu já tinha visto na vida.
Roxy e Catarina eram uma só, e agora ambas eram minhas. Sorri
impressionado com a habilidade dela, entendendo agora o porquê de ser a
melhor da casa noturna em Nova Iorque.
Ela veio até mim, puxou a minha gravata e me fez sentar na cadeira.
— Queria ter uma despedida de solteiro? Pois deveria ter chamado
uma profissional qualificada.
E quase me levou a loucura dançando em meu colo, fazendo mais do
que mágica.
Depois fomos juntos para um dos diversos quartos que havia
disponíveis no casarão do clube e passamos ali a nossa noite de núpcias.
Sozinhos, onde poderíamos gritar a vontade.
∞∞∞
Não havia fuga para Catarina, assim como não houve para mim. E se
casamento fosse uma prisão como diziam, eu gostaria de passar mais um
tempo preso com ela.