Ingold - Sobre Levar As Pessoas A Sério
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Ba VOZES
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ingold, Tim
Antropologia : para que serve / Tim Ingold ; tradução de Beatriz Silveira
Castro Filgueiras. — Petrópolis, RJ : Vozes, 2019. — (Coleção Antropologia)
18-22199 CDD-301.01
1. A observação de Marx está em seu ensaio de 1852, O 18 brumário de Luis Bonaparte: “Os
homens fazem sua própria história [ele escreveu], mas não a fazem como querem; não a fazem
sobcircunstâncias de sua escolha, e sim sob ascircunstâncias existentes, legadas e transmitidas
pelo passado”.
haver nenhumasolução definitiva. À história é repleta de tentativas monumentais
de pôr um fim a ela, tentativas necessariamente fadadas ao fracasso enquanto
houver vida. Encontrar o nosso caminho em meio às ruínas é umatarefa de todos
nós. É aí que entra a antropologia, e é por isso que — em nosso mundo incerto —
ela tem tanta importância.
O problema não é que estejamos desprovidos de informação ou de conheci-
mento. Ao contrário, o mundo está cheio deles e, com o avanço digital, o fluxo
se transformou em uma inundação. De acordo com um estudo recente, cerca
de 2,5 milhões de artigos científicos são publicados todo ano, e o número de
publicações desde 1665 já ultrapassou a marca dos 50 milhões?. Os especialis-
tas, munidos de instrumentos especializados na coleta de dados e de técnicas
sofisticadas de modelagem, estão dispostos a oferecer suas projeções. Devemos
ouvi-los, assim como devemos ouvir os pesquisadores imersos nas disciplinas das
artes e humanidades, cujas reflexões fornecem os contextos que nos permitem
compreender melhor o nosso dilema atual. No entanto, cientistas e humanis-
tas têm algo em comum, a saber, um senso de que eles são capazes de tomar
a medida do mundo a partir de algum lugar além dele, lá do alto ou muito
adiante, de onde eles podem olhar para trás e fazer afirmações sobre o seu
funcionamento com umaautoridade negada àqueles cujas atividades estão mais
intimamente ligadas às questões mundanas da vida cotidiana. Do seu ponto de
vista privilegiado, eles professam ser capazes de explicar o que, para o resto de
nós, está além da compreensão. Físicos explicam o funcionamento do universo;
bioquímicos, o funcionamento da vida; neurocientistas, o cérebro; psicólogos,
a mente; cientistas políticos, o Estado; economistas, o mercado; sociólogos, a
sociedade, e assim por diante. A antropologia também, duranteboa parteda
história da disciplina, reivindicou poderes superiores semelhantes, específica-
mente o de descrever os contextos, variavelmente denominados “sociais” ou
“culturais”, no interior dos quais as obrase as vidas de outros povos poderiam
ser interpretadasoumesmojustificadas.
”No que se segue, terei mais a dizer sobre essa reivindicação. No entanto,
não concordo com ela. Otipode antropologia que eu defendo aqui tem um|
propósito diferente. Nãose tratadeinterpretar ou explicar o comaprneineto
dos outros; não se trata de colocá-los em seu lugar ou consigná-los à categoria
dos “já conhecidos”. Ao contrário, trata-se de compartilhar da sua presença, de
qper com as suas experiências de vida e de aplicar esse conhecimento às nos-
- saspróprias concepções de como a vida humana poderia ser, das suas condições
e possibilidades futuras.Àantropologia, em minha opinião, prospera nesse en-
2. JINHA, A.E. “Article 50 million: an estimate of the number of scholarly articles in exis-
tence?. In: Learned Publishing, 23, 2010, p. 258-263.
IO
gajamento da imaginação e da experiência. O que ela oferece não é um quantum
de conhecimento, a ser somado às contribuições de outras disciplinas, todas de-
terminadas a revirar o mundopor informaçãoe a transformá-la em produtos do
conhecimento. O meutipo de antropologia, na realidade, não se dedica absoluta-
mente à “produção de conhecimento”. Ela aspira a uma relação completamente
diferente com o mundo. Para os antropólogos, assim como para os povos entre
osquais eles trabalham,o mundonãoé o objeto de estudo, maso seu meio. Eles
estão, desde o início, imersos em seus processos e relações. Os críticos podem
considerar isso uma fraqueza ou uma vulnerabilidade. Para eles, isso revela uma
falta de objetividade. Mas, para nós, essa é a própria fonte da qual a antropologia
“retira sua força. Pois o nosso propósito não é o conhecimento objetivo. O que
buscamos, e esperamos obter, é sabedoria. Eles não são, de forma alguma, equi-
valentes; e eles podem, inclusive, operar em desacordo.
* O conhecimento buscafixar as coisasnos conceitos e nas categorias de pen-
samento,
explicá-]lasetorná-las,atécerto ponto, previsíveis. Frequentemente, fa-
lamos de nos armar de conhecimento, ou de usá-lo para fortalecer nossas defesas,
para que possamos enfrentar melhor as adversidades. Ele nos dá poder, controle
e imunidade para atacar. Mas, quanto mais nos refugiamos nas fortalezas do co-
nhecimento, menos atentos estamos ao que acontece à nossa volta. Para que se
preocupar em observar, diz-se, quando já conhecemos? Ser sábio, ao contrário,
é aventurar-se pelo mundo e assumir o risco de se expor ao que acontece lá. É
compartilhar da presença de outros, prestar atenção, importar-se. O conhecimen-:
tofixa e nos tranquiliza; a sabedoria desestabiliza e perturba. O.conhecimento
armae controla; a sabedoria desarma e abnega. O conhecimento:tem seusdesa-
fios, a sabedoria tem seus caminhos, mas, enquanto os desafios do conhecimen-
tose encerram em suas soluções, os caminhos da sabedoria se abrem para um
processo de vida. Agora, é claro que nãoestou sugerindo que podemos abrir
mão do“conhecimento. Mas precisamos de sabedoria também. Na conjuntura
atual, a balança se inclinou bruscamente em direção ao primeiro, afastando-se da
última. De fato, nunca antes na história, tanto conhecimento esteve associado a
tão pouca sabedoria. À tarefa da antropologia, creio eu, é restaurar o equilíbrio, )
moderar o conhecimento transmitido pela ciência com a sabedoria da experiência 7
e da ii maginação. “
Entre as diferentes classes de pesquisadores, os antropólogos são conheci-
dos por sua disposição em aprender com aqueles que, em um mundo obcecado
pelo avanço do conhecimento, poderiam ser rejeitados como incultos, analfabe-
tos ou mesmo ignorantes. Trata-se de povos cujas vozes, alheias aos meios de
comunicação dominantes, permaneceriam, de outro modo, silenciadas. Como
os antropólogos demonstraram repetidas vezes, esses povos são mais sábios que
os seus superiores supostamente mais instruídos. E, com o mundo chegando ao
limite, não podemos nos dar ao luxo de ignorar sua sabedoria. Temos muito o
que aprender, se nos permitirmos ser ensinados por outros com experiências a
partilhar. No entanto, esses outros foram eludidos por estudiosos que, em sua
maioria, se contentaram em relacioná-los em suas pesquisas mais como infor-
mantes do que como professores, interrogados pelo que podeser extraído de suas
mentes ao invés de procurados pelo que podem nos ensinar sobre o mundo. Mé-
“todos elaborados foram desenvolvidos para mantê-los a distância. Os métodos
são os guardiões da objetividade, acionados para garantir que os resultados da
pesquisa não sejam contaminados por um envolvimento muito íntimo ouafetivo
dospesquisadores com os povos que eles estudam. Paraaantropologia, contudo,
esse envolvimento é essencial. Todo estudo demanda observação, mas, na an-
N
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que muitos manuais de antropologia a descrevem. Porém, algo me incomoda
na própria ideia de “dados qualitativos”. Pois a qualidade de um fenômeno só
podeestar na sua presença — no modo comoele se abre ao seu entorno, inclusive
aqueles que o observam. No entanto, no momento em que transformamosa qua-
lidade em um dado, o fenômeno é isolado, separado da matriz de sua formação.
Coletar dados qualitativos é como abrir-se para os outros apenas para virar-lhes
as costas, atentando para o que eles dizem pelo queisso diz sobre eles. A generosi-
dade se torna uma fachada para a expropriação. Poucos iriam tão longe quanto
Irenãus Eibl-Eibesfeldt, o fundador austríaco da “etologia humana?, que estava
tão determinado a coletar dados sobre as pessoas sem o seu consentimento que
projetou uma câmera com um refletor de 90 graus, permitindo queele fotogra-
fasse seus objetos inadvertidamente enquanto apontava para outra direção. Isso
foi um embuste tremendo. Mas ainda há certa duplicidade em fingir participar
da conversa com seus anfitriões, de boa-fé, mas usar isso, na verdade, como um
meio para coletar informações sobre eles. Os antropólogos frequentemente en-
fatizam a importância, no trabalho de campo, de estabelecer boas relações. Mas
relação pode significar tanto amizade quanto descrição. É correto se aproximar /
das pessoas para descrevê-las? —
A palavra que os antropólogos usam para descrever as pessoas é etnografia.
A observação participante é, então, um meio para a etnografia? A maioriados
antropólogos diria que sim; de fato, na cabeça de muitos, método e resultado
são tão confundidos que a própria prática da observação participante equivale ao
grabalho etnográfico. Mas eu discordo. Reiterando, observação participanteé
formade«estudar com aspessoas. Nãosetrata de descrever outrasvidas, mas
de unir-se a elas natarefa comumdeencontrar:formas deviver. Aqui, eu afirmo,
reside a diferençaentre a ernografia ca antropologia. Assim, para o antropólo-
go, a observação participante não é, absolutamente, um método para a coleta de
dados. Ela é um compromisso de aprender fazendo, semelhante ao do aprendiz
ou do aluno. Afinal, não estudamos com nossos professores na universidade pen-
sando em prestar conta do que eles dizem, ou em descrevê-los para a posteridade.
ão contrário, nos permitimos ser educados por eles. Para nós, assim como para
mossos professores, essa educação é transformadora. Certamente, isso também
wale para a educação a que nos submetemos durante a observação participante
no campo. Em resumo, o objetivo primordial da antropologia não é etnográfico,
mas educativo. Em minha opinião, a importância da antropologia reside preci-
samente no seu potencial de educar e, através dessa educação, de transformar
vidas — as nossas próprias e as daqueles entre os quais trabalhamos. Mas esse
potencial apenas se concretizará se estivermos dispostos a aprender com eles. E
mão aprenderemos anda sepoos pa sério.
a
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vemos encarar os desafios que eles colocam às nossas concepções sobre comoas
coisas são, o tipo de mundo em que vivemos e como nos relacionamos com ele.
Não temos que concordar com nossos professores, ou presumir que eles estão
certos e nós estamos errados. Temos o direito de discordar. Masnão podemos
nosesquivar dodesafio.De fato, a história vergonhosa da antropologia oferece e
exemplifica muitas estratégias para fazer justamente isso. Elas incluem a preten-
são de que esses povos são irracionais ou incapazes de pensamento lógico, de que
eles são reféns da superstição ancestral, de que o seu pensamento é característico
de estágios anteriores do desenvolvimento humano, da inocência infantil à matu-
ridade, de que eles operam com base em informações falsas ou equivocadas, de
que o seu comportamento é determinado pela tradição, de que eles são incapazes
de distinguir o fato da imaginação ou de estabelecer o limite entre o literal e o
metafórico. A maioria dos antropólogos contemporâneos, corretamente, repudia
essas estratégias, defendendo o princípio de que os outros povos não podem ser
classificados com base em nenhuma escala de razão, inteligência ou maturidade
que possa justificar levar o seu pensamento e as suas práticas menos a sério do
que as nossas próprias. No entanto, muitos ainda subscrevem ao que poderia ser
chamado de “suspensão voluntária da descrença”;-análoga à dos frequentadores
de teatro que, durante a performance, se permitem serem levados para o mundo
de faz de conta encenado no palco comoseele fosse real.
Contudo, assumir essa posição é negar que as palavras e as ações dos outros,
especialmente quando elas contrariam o nosso entendimento, tenham qualquer
relação com a realidade. Isso também é uma estratégia para nos protegermos,
para nos convencermos de que, independentemente do que esses povos dizem
ou fazem, a realidade-como-a-conhecemos permanece intacta. Vestindo o manto
da onisciência, declaramos que o mundo percebido e encenado pelos povos, e
que paraeles é totalmentereal, é, na verdade, uma construção feita de conceitos,
crenças e valores que compõem o que é comumente chamado de sua “cultura”.
Os mundos humanos, insistimos, são construídos culturalmente — exceto,é claro,
o nosso, uma vez que, imersos na luz da razão, somos capazes de ver o que eles
não podem, particularmente, que essas diferentes construções não são mais do
que fabricações alternativas de uma dada realidade. A visão deles está suspensa
em umateia de significados, a nossa está fundada no fato objetivo. Somos es-
pectadores na galeria da diversidade humana; eles são os retratos. Nós podemos
ver o que há dentro, eles não podem enxergar o que há fora. Essa estratégia é
reproduzida sempre que tratamos o que os povos fazem e dizem não comolições
com as quais podemos aprender, mas comoevidências a partir das quais construir
um caso. Ela equivale a tratar essas coisas como sintomas de outra, da mão in-
visívelculturaque, sem o conhecimento dos próprios sujeitos, determina o
seu pensamento e as suas práticas. Certamente, isso trai a regra número um da
antropologia. Pois levar os outrosa sério não significaga
encerrarOcaso, mas abrir-se
paraimaginações enriquecidas pela:suaexperiência.
Às questões em jogo, aqui, vão além daquelas a respeito de como podemos
conhecer o mundo. Fundamentalmente, elas são questões sobre como pode aver
um mundo ser conhecido. No vocabulário inescrutável da filosofia, questões do
primeiro tipo, sobre o saber,são epistemológicas; as do segundo, relativas ao ser,
são ontológicas. Emboraa passagem da epistemologia à ontologia possa parecer
“enigmática,ela é de profunda importância. Darei um exemplo para explicar o
porquê. Durante a década de 1930, um dos antropólogos mais perspicazes do
século XX, A. Irving Hallowell, trabalhou com o povo Anishinaabe ou Ojibwa,
caçadores e coletores nativos do norte central do Canadá. Lá, ele desenvolveu
uma amizade íntima com William Berens, chefe do Rio Berens Anishinaabe
(cf. Figura 1). Berens era um homem de grande sabedoria e inteligência, ad-
quiridas de seus ancestrais e de uma vida inteira atento ao mundo à sua volta,
incluindo seus animais, suas plantas e, particularmente, suas pedras. Segundo o
relato de Hallowell, suas conversas com Berens influenciaram profundamente
o seu próprio pensamento. Em uma dessas conversas, a dupla retomava o tema
das pedras, instigada pela observação de que, na gramática do idioma Ojibwa,
tal como formalizada pelos linguistas, a palavra “pedra” parecia pertencer a uma
classe geralmente atribuída a seres animados, ao invés de inanimados. Intrigado,
Hallowell perguntou: “Todas as pedras que vemos aqui, ao nosso redor, estão
vivas?? Após uma longareflexão, Berens respondeu assim: “Não! Mas algumas
estão”. A resposta, relembra Hallowell, deixou uma impressão duradoura. Mas
ele não sabia bem o que pensar dela.
Comoalguém pode sugerir seriamente que algo tão inerte como uma pedra
possa estar vivo? E, se algumas podem estar vivas, por que não todas? Uma
forma de abordar essas questões seria pressupor que as atitudes que as pessoas
assumem em relaçãoàs coisas podem ser de dois tipos. Há umaatitudepráticado
senso comum,típicadavidacotidiana,euma atitude carregadadefé
« eideologia, ,
reservada paraocasiõesdenaturezaritualou cerimonialimbuídasdeassociações
simbólicas. Em um tratado sobre as formas elementares da religião, publicado
pela primeira vez em 1912, Émile Durkheim — fundador, na França, da disci-
plina da sociologia — denominou essas atitudes, respectivamente, de profanas e
sagradas*. Consideremos as mesas, por exemplo. Geralmente, pensamos em me-
3. HALLOWELL, AI. “Ojibwa ontology, behavior and world view”. In: DIAMOND, S.
(ed.). Culture in History: Essays in Honor of Paul Radin. Nova York: Columbia University
Press, 1960,p. 19-52. À citação consta dap. 24.
4. DURKHEIM, É. The Elementary Forms of the Religious Life. 2. ed. Londres: Allen &
Unvwin, 1976 [Trad. Joseph Ward Swain].
sas como objetos inanimados, mas, se a mesa for um altar, no contexto de uma
cerimônia religiosa, podemos muito bem atribuir a ela poderes extraordinários,
comose ela irradiasse força espiritual. Poderia ser esse o caso entre os Ojibwa e
suas pedras? Deve ser Óbvio para os Ojibwa, assim como para os povos de todo
o mundo, que as pedras, tal como ordinariamente encontradas no ambiente na-
tural, são inanimadas. No entanto, algumas pedras, em algumas ocasiões, podem
ser consagradas e parecerem, para aqueles que as veem dessa maneira, ser dotadas
de umaespécie de aura ou forçavital. Foi isso o que Berens quis dizer ao afirmar
que algumas pedras estão vivas? À sua declaração pode ser considerada evidência
de uma atitude ritual queleva as pessoas a se enganarem coletivamente, tomando
como realidade o que elas sabem, na vida cotidiana, que é irreal?
Figura | Chefe William Berens sentado junto às pedras vivas de seus ancestrais;
uma foto tirada por A. Irving Hallowell em 1930, entre as localidades de Grand Rapids e
Pikangikum, em Ontário, Canadá.
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caminho. Pois a sua declaração não foi dogmática. Ele não afirmou que as pedras
estão vivas e ponto, como se isso fosse uma conclusão precipitada, determinada
pela tradição, apesar de toda a evidência em contrário. Pelo contrário, Berens só
chegoua sua conclusão após uma longareflexão. E, comoele teve dificuldades de
explicá-lo a Hallowell, o seu julgamento foi baseado na experiência pessoal. Ele
observou que algumas pedras podiam mover-se livremente, e até mesmo produ-
zir sons semelhantes à fala. Nós,claro, que estamos convencidos de que as pedras
não podem fazer tais coisas, supomos que ele tenha imaginado ou sonhado com
isso. Mas, se Berens estivesse aqui agora, certamente ele gostaria de saber como,
na nossafilosofia, experiência e imaginação podem ser tão facilmente distingui-
das. Nósnãovivenciamos nossos sonhos? O mundo dos nossos sonhos é mesmo
tão diferente daquele de nossa vida espertos?|Para aqueles de nós criados em
sociedades nas quais a autoridadecientífica é suprema, o caminho paraa verdade
reside em separar o fato da fantasia. Mas não poderia ser de outra forma? E se a
verdade residir na comunhão entre a experiência e a imaginação, em um mundo
para o qual estamos vivos e que estávivo para nós?
Essa não é uma verdade objetiva, certamente. Mas é uma verdade que po-
demos integrar totalmente, ao invés de uma da qual, como sujeitos pensantes,
tendemos a nos excluir. Como tal, ela só pode ser provisória. Nãopodemos
nuncafalarcomcertezasobre o mundo, comose já o conhecêssemos, não por-
que nossas hipóteses sobreele possam“acabar sendo falsas ou as nossas previsões
equivocadas,«como diriam os cientistas, mas porque. a estrutura ca composição
do
mn
mundo nunca estão acabadas. Aocontrário, o mundo
loconstituicontinua-
mente — assim-como,de fato, nós mesmos, sendo“partedele. Precisamente por
“isso,
essemundo emCEformaçãoéé uma fonte inesgotável de fascinação
e assombro. Devemos nos atentar para isso. Isso é o que Berens nos ensina, se
estivermos preparados para tratar suas palavras com a seriedade que elas mere-
cem. Elas nos levam a questionar muito do que, em geral, nós subestimamos.
O que há, em nossa própria abordagem da realidade, que faz com que a ideia
de pedras que se movem e falam seja tão obviamente irreal? Afinal de contas, as
pedras realmente vagueiam, descendo por encostas cobertas de cascalhos com o
seu próprio peso ou levadas pela água, pelo gelo ou pelas ondas do mar, E elas
produzem sons quando se chocam, umas nas outras ou em outras coisas. E como
se cada pedra tivesse uma voz própria, assim como os humanos. Se entendemos a
fala como o modo que nós humanos temos de tornar a nossa presença audível, o
mesmonão poderia ser dito das pedras e seus ruídos? Nesse sentido,elas também
podem falar.
Prestaratençãoàs coisas — observar osseus movimentose escutar os seussons —é
fagrar o mundo em ação,comosurfaracrista de umaonda e a ponto de,
quebrar. Longe de chegar atrasado a um mundo onde os dadosjjá foram lança-
dos, lá,presentee
é alerta,nomomento mesmoemqueeletomaforma.
Nessemomento,aexperiência e a imaginação se fundem e o mundo
oganhavida.
Ãoexplorar a nossa percepção das correntes de formação do mundo, podemos,
assim como Berens, testemunhar a vivacidade das coisas, incluindo as pedras e
muito mais. Mas isso implica conceber a vida de uma maneira muito diferente
daquela imaginada pela ciência. Não se trata de algum ingrediente secreto, ocul-
to no interior das coisas que julgamos possuí-lo e que, por isso, elas atuam no
palco do mundo. Ao invés disso, trata-se de conceber a vida como a potência dos
fluxos de matéria e das correntes de energia que atravessam o mundo trazendo
formas à existência e mantendo-as no lugar em seu espaço e tempo* determina-
dos. Portanto, não é que a vida esteja nas pedras. Ao contrário, as pedras estão
na vida. Na antropologia, esse entendimento da existência e da transformação
das coisas — essa ontologia, por assim dizer — é conhecida como amimismo. Antes
desprezado como a mais primitiva das religiões, baseado na crença equivocada na
espiritualidade dos objetos, o animismo agora é considerado uma poética da vida
que supera inclusive a ciência em sua compreensão da plenitude da existência. É
isso o que implica levar os outrosa sério.
Dois homens adultos — um professor norte-americano e um ancião Ojibwa —
conversando sobre pedras? O exemplo pode parecertrivial, ou mesmo absurdo.
Mas espero ter convencido leitor de que o seu diálogo abre questões fundamen-
tais sobre o mundo em que vivemos, sobre o nosso lugar nele e, de fato, sobre
a própria vida. Certamente, esse é apenas um exemplo dos incontáveis diálogos
que antropólogos mantiveram com povos de todo o mundo, todos os quais po-
deriam, potencialmente, levantar questões da mesma magnitude. O giro às ques-
tões relativas ao ser, que teve início com Hallowell, ganhou tanto impulso desde
então que muitos antropólogos, hoje, falam de uma “virada ontológica”. No
caso de Hallowell — apesar de ter sido um dos homens mais perspicazes de seu
tempo — virada foi longe demais. Finalmente, e tragicamente, ele abandonou
seu amigo. O título do seu artigo — “Ontologia, comportamento e cosmovisão
dos Ojibwa” — já diz tudo. Nele, o Chefe Berens reaparece como um “ancião”
anônimo, cujas atitudes em relação às pedras apenas atestam a visão recebida
de sua cultura. Não podemos mais nos dar ao luxo de sermos tão complacentes
hoje em dia. Pois, como nunca, tornou-se evidente que as certezas existenciais
sobre as quais foi fundada a era moderna levaram o mundo ao limite. Precisamos
forjar abordagens alternativas ao problema de como viver, que possam sanar a
ruptura entre os modos de conhecer o mundo e os de habitá-lo, entre a ciência
* Nooriginal spam, que possui um duplo sentido aqui, podendo designar tanto uma extensão
de espaço como um período de tempo. Pareceu-me interessante, neste contexto, manter os
dois [N.L].
e a natureza. Essa reconciliação é um passo necessário em direção a um futuro
indefinido e sustentável.
Que fique claro: não estou sugerindo que os chamados povos “nativos”,
como os Ojibwa, cujos ancestrais viveram da terra por milênios antes da che-
gada dos colonizadores europeus, tenham todas as respostas certas às questões
sobre como viver. Tampouco estou sugerindo que os chamados “ocidentais”,
cujos ancestrais foram cúmplices na empresa colonial, estejam errados em todas
elas. Ninguémtemas respostas.Mastemosabordagensdiferentes, baseadas na
experiênciapessoale. e noqueaprendemos com outros, € vale a penacompará-as.
À ancropologia comodisciplinaé é motivadapporumum compromissoccomavalidade
desse
exere exercício
jocomparativo. Contudo, Boraparar,nãoé éjustaporfformas estabe-