A Midia e o Futebol
A Midia e o Futebol
A Midia e o Futebol
http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1243
Marcos DaouI, HH, Neuza Maria de Fátima GuareschiII, Marcos Adegas de AzambujaI
I
Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, RS, Brasil
II
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS - Brasil
Resumo
Este artigo tem como objetivo visibilizar e problematizar a constituição do sujeito
jogador de futebol profissional na sociedade contemporânea. Como ferramenta
metodológica, utilizou-se a análise das práticas discursivas provenientes de
materiais midiáticos, articuladas com as regularidades de enunciados construídos
pelos campos de conhecimento na produção dos modos de subjetivação deste
profissional. Para a análise, selecionou-se o material proveniente da mídia
impressa – Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, especialmente, em um período que
caracterizou-se pelo surgimento de um atleta jovem na categoria profissional.
Como resultado, pode ser visibilizado que o jogador de futebol profissional é
constituído na contemporaneidade pelos modos de subjetivação através dos
imperativos dos investimentos técnicos e do lucro. O sujeito é submetido a
intensa produção de metodologias dos campos de saber para aperfeiçoamento
para um alto-rendimento e por consequência estar de acordo com as exigências
de qualificações do mercado profissional.
Palavras-chave: modos de subjetivação; discurso da mídia; jogador de futebol profissional.
O corpo da técnica
No cenário do futebol contemporâneo, a questão do corpo vai ao encontro da
lógica que rege a sociedade do consumo. Investe-se no corpo para se extrair a maior
potencialidade, o melhor rendimento; busca-se o aperfeiçoamento constante que,
por consequência, gere maior produção. Para Cagliani (2005), as marcas corporais
da sociedade contemporânea fundam-se na lógica mercadológica, expressa pela
busca da lucratividade, na qual o aperfeiçoamento técnico procura a maior produ-
ção em menor tempo. Nos modos de ser jogador de futebol profissional, o corpo do
atleta é tomado com o objetivo de deixá-lo apto para o enfrentamento da rotina de
treinos e jogos, preparando-o para produzir mais em menor tempo e, se possível, na
maior potência física possível. O corpo da técnica caracteriza-se pelo investimento
corporal na busca do aumento de produção para obtenção do maior rendimento
possível e pelo uso desse rendimento do corpo pelo mercado do futebol.
Instaura-se, a partir dessa busca de rendimento, uma tecnologia de vida que
impera sobre o modo de ser jogador profissional de futebol. Segundo Foucault
(1991; 2005), trata-se de uma tecnologia para evidenciar a confluência de dis-
positivos, situações, experiências que fazem com que as pessoas se subjetivem,
construindo-se modos de ser, falar, pensar, enfim, modos de viver. Aos corpos
dos profissionais do futebol são atribuídos deveres e obrigações na busca de ser
o melhor jogador, ganhar mais dinheiro, vencer campeonatos. Essas atribuições
imperam sobre a forma de se portar e ser, de tal maneira que não se consegue
mais pensar fora dessas atribuições para a construção de uma forma de viver.
As técnicas que trabalham o corpo também falam de uma disciplina atlé-
tica que governam os modos de ser da profissão do jogador de futebol. A partir
da análise do discurso midiático, a conformação do corpo da técnica pôde ser
visibilizada mediante a incidência de, pelo menos, três formas de tecnologias
de investimento sobre o corpo do jogador de futebol profissional: “tecnologia
de regulação orgânica”, “lapidação do corpo pelo saber da Educação Física e da
Medicina” e “normatização do comportamento pelo saber psicológico”.
As tecnologias orgânicas no esporte do futebol são utilizadas, por exemplo,
para a manutenção das dosagens enzimáticas e metabólicas e para o controle ali-
mentar. São extremamente importantes para o desempenho funcional atlético, con-
forme menciona Powers (POWERS; HOWLEY, 2000). Na busca da homeostase
orgânica, articulam-se os saberes da Medicina, da Nutrição, da Fisiologia, entre
outros, para o enfrentamento das exigências atléticas a que os jogadores de fute-
bol são submetidos. Saberes do campo de conhecimento da Nutrição contribuem
nas técnicas orgânicas, com a implementação de dietas alimentares que oferecem
fontes de energia ideais para ativar e manter o corpo energeticamente apto para as
exigências do treinamento, visando ao desempenho físico durante treinos e jogos.
de aspectos da sua vida que possam vir a incidir sobre o rendimento profissional.
Essa escuta psicológica trabalha produzindo dicotomias entre os aspectos emo-
cionais pessoais e a performance da vida profissional.
Weinberg e Gould (2001) definem o saber da Psicologia no campo do
esporte como o estudo científico dos sujeitos e de seus respectivos comporta-
mentos, no contexto esportivo, aplicando-se os conhecimentos na obtenção de
melhores rendimentos. O objetivo das técnicas psicológicas é minimizar o efeito
de questões emocionais no rendimento esportivo, em que questões psíquicas são
trabalhadas com vistas ao aumento de performance. Desta forma, a mídia articu-
la-se ao saber psicológico, visibilizando a importância dos aspectos emocionais
dos jogadores serem trabalhados para o bom desempenho nos jogos. Esse sentido
produzido pelo discurso da mídia é evidenciado na frase de um treinador, a partir
da reportagem “Habemus Pato” (HABEMUS..., 2006, p. 44) quando se refere às
possibilidades de um profissional jovem não possuir maturidade para lidar com
algum tipo de interferência sobre sua vida: “[...] é preciso deixá-lo livre, sem o
peso da cobrança. A pressão do profissional é muito diferente”.
Ao veicular a necessidade das tecnologias psicológicas no trabalho com o
jogador de futebol, o discurso da mídia constrói a importância da utilização desse
campo de saber na produção dos modos como o profissional se constitui como
sujeito desse esporte. Utilizando-se do saber da Psicologia, o discurso da mídia
circula os sentidos de que não basta somente ter qualificação técnica, excelente
rendimento físico e composição orgânica perfeita, mas que é também necessário
que o jogador esteja livre de complicações emocionais. Esse sentido é produzido
pela frase do colunista, na matéria intitulada “A boa cabeça” (BOA..., 2006, p.
10), quando se refere ao conjunto de capacidades do atleta como condição para
o êxito profissional: “Se for tudo aquilo, pelo desembaraço, qualidade técnica e
comovente simplicidade de encarar os fatos (isso que se chama de cabeça boa),
tem tudo pra tentar a façanha no mundial”.
Assim, o discurso midiático atribui ao trabalho do campo de saber da Psi-
cologia a responsabilidade de poder conter efeitos emocionais advindos de situ-
ações diversas da vida do jogador que possam intervir em conquistas esportivas
ou na manutenção dos resultados positivos, como fica evidenciado na frase do
treinador na matéria intitulada “Era jogo para Pato” (ERA..., 2006, p. 02): “se-
guiremos trabalhando a cabeça e dizendo que é mais um no grupo” (SEGUIRE-
MOS..., 2006, p. 2). Por meio dessas articulações do discurso da mídia com o
campo psicológico, podem-se identificar os modos de o profissional se subjetivar
como sujeito jogador, junto a perfeita regulação do orgânico e a lapidação do
corpo na preparação do físico.
A construção dos modos de subjetivação do jogador de futebol profissional
que configura esse esporte na sociedade contemporânea encontra, portanto, no
enunciado do corpo da técnica, não só a lógica de estruturação e funcionamento
desse esporte, mas a forma de inserção e sustentação para competir e lucrar no
mercado do futebol. Assim, a produção da construção do corpo da técnica passa
a produzir também a construção do corpo para o lucro.
dia produz os sentidos que fazem com que o jogador de futebol passe a produzir
modos de como planejar e organizar a vida, como o de se proteger, de se precaver,
de modificar hábitos cotidianos, ou como circular à vontade em público.
Todas essas produções em relação ao corpo do jogador como um corpo
que gera lucro, um corpo capital, também são associadas ao corpo que vence: o
corpo do vencedor. Guerra (2005), ao comentar sobre o investimento que uma
empresa patrocinadora de uma equipe de futebol realizou para a contratação de
um grande jogador, justifica a escolha do atleta pelo fato de este possuir uma das
carreiras mais vencedoras do futebol brasileiro, mesmo sendo conhecido como
indisciplinado. O critério de um grande jogador e de um grande vencedor não é
só fundamentado no desempenho técnico no esporte, mas também no corpo do
jogador que se mostra vencedor nos modos de vida ou na forma como mostra os
modos de viver. Esse sentido, produzido pela mídia, de associar o corpo do ren-
dimento ao corpo que vence fica evidenciado, por exemplo, a crônica “Lá vem o
Pato”, quando o cronista condiciona a atuação vitoriosa ao investimento no atleta:
“No seu primeiro jogo como profissional, jogador de 17 anos marca gol e faz
jogada de outros dois. Estrela para o Japão mostra porque é diferente e justifica
o investimento realizado” (LÁ..., 2006, p. 48). Outro discurso proferido pelo co-
mentarista legitima essa questão ao analisar os desmembramentos que a vitória e a
atuação decisiva em uma partida tiveram em termos de modificações contratuais,
propiciando maior lucro para o clube com o desempenho desse corpo: “Deu passe
de calcanhar, fez gol e acertou um cabeceio na trave. Se não houvesse a renovação
do contrato, hoje estaria sendo vendido por uma ninharia de 4 milhões de reais”.
Assim, fica visível o modo de produção de ser jogador de futebol – no senti-
do de que os corpos possam ser pensados para o alto rendimento e geração de lucro
e de que as técnicas existentes invistam nesses corpos tendo em vista esses obje-
tivos. Isso vem a subjetivar o jogador profissional de futebol, ou seja: além de se
deixar incidir por técnicas que produzem o alto rendimento no corpo e por técnicas
de mercado para que esse corpo gere lucro, o jogador também vê se construir em
todas estas estratégias o modo de pensar a vida enquanto sujeito jogador de futebol.
Então, por meio da análise do material midiático referenciado para este
estudo, fica visibilizada, além da produção do corpo da técnica, atrelado a tecno-
logias de investimento que produzem esse corpo, também a produção do corpo
para o lucro. As tecnologias que regulam o funcionamento orgânico, a lapidação
do físico e o trabalho psicológico na busca da excelência para o rendimento es-
portivo conformam o corpo da técnica para fins da produção de um corpo para o
lucro. Tanto o corpo da técnica quanto o corpo para o lucro são mostrados pelo
discurso da mídia, que por sua vez contribuem na produção dos sentidos sobre o
modo como se deve pensar, ver, ser e entender o jogador de futebol profissional.
Notas
1
Este artigo é proveniente da dissertação de mestrado de Marcos Daou (2007).
2
Zero Hora é um jornal publicado diariamente, com grande circulação no estado do Rio Grande
do Sul. O periódico faz parte do núcleo jornalístico da RBS (Rede Brasil Sul), filiada da Rede
Globo de telecomunicações. Como tal, caracteriza-se como forte veículo de comunicação.
Apresenta-se editado em cadernos que abordam assuntos do cotidiano, como política, cultura,
esportes, etc. Possui colunistas e repórteres que expressam suas opiniões, debatem e noticiam fatos
e acontecimentos em nível regional, nacional e internacional.
3
O Sport Club Internacional foi fundado em 4 de abril de 1909, pelos Irmãos Henrique, José e Luis
Poppe, vindos de São Paulo. De família italiana, os irmãos resolveram homenagear seus pais,
batizando o clube com o mesmo nome da equipe pertencente à cidade deles: Internazionale de
Milão. O clube surgiu devido a constantes negativas que recebiam ao quererem se juntar a algum
clube de Porto Alegre. Em virtude disso, resolveram fundar o próprio clube. O internacional é
conhecido como clube do povo, pois foi fundado e, primeiramente, frequentado por imigrantes
paulistas e por jovens de menor prestígio da sociedade porto-alegrense. Além disso, foi o
primeiro a receber em seu quadro social e atlético pessoas negras e de menor poder aquisitivo, em
comparação com a agremiação rival, Grêmio Futebol Porto-alegrense.
4
Mario Filho foi um jornalista carioca que inovou a maneira de se fazer jornalismo esportivo,
principalmente nas décadas de 1930 e 1940, por acrescentar sentimentos pessoais nas reportagens
que produzia. O Maracanã, estádio de futebol que recebeu a final da Copa do Mundo de 1950,
possui o nome deste jornalista em homenagem ao seu trabalho.
5
Como exemplo de algumas técnicas utilizadas pelas ciências da Medicina, Educação Física e
Fisioterapia, que formam este campo, destacam-se: a crioterapia, que atua sobre o corpo para
aliviar a fadiga e recuperar a musculatura para a rotina de trabalho; a utilização da prescrição de
exercícios por meio da medição do lactato; e o uso do global positioning system (GPS) para se ter
maior precisão no rendimento físico dos atletas.
Referências
ACERTO de Pato sai amanhã, O. Zero Hora, Porto Alegre, 22 nov. 2006. Caderno
de Esportes, p. 47.
BOA cabeça, A. Zero Hora, Porto Alegre, 27 nov. 2006. Caderno de Esportes, p.
10.
ERA jogo para Pato. Zero Hora, Porto Alegre, 20 nov. 2006. Caderno de Esportes,
p. 02.
HABEMUS Pato. Zero Hora. Porto Alegre, 21 nov. 2006. Caderno de Esportes,
p. 44.
LÁ vem o Pato. Zero Hora, Porto Alegre, 27 nov. 2006. Caderno de Esportes, p.
47.
MANUAL das celebridades, O. Zero Hora, Porto Alegre, p. 52, 27 nov. 2006.
MEU nome é Pato. Zero Hora, Porto Alegre: 27 nov. 2006. Caderno de Esportes,
p. 48.
SURGE uma estrela. Zero Hora, Porto Alegre, 27 nov. 2006. Caderno de Esportes,
p. 11.