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Espiral

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Artigos originais

Do olhar da espiral caleidoscópica do cuidado


From the look of the kaleidoscopic spiral of care

Helvo Slomp Juniora Resumo


https://orcid.org/0000-0001-5346-0965
E-mail: helvosj@gmail.com O campo da saúde tem como referente central
Maria Paula Cerqueira Gomes b e “alma” a produção do cuidado, um conceito
https://orcid.org/0000-0002-5811-3302 polissêmico e polifônico, com um uso ubíquo,
E-mail: paulacerqueiraufrj@gmail.com envolvido em disputas de sentidos. Propõe-se uma
Túlio Batista Francoc distinção entre cuidado e clínica, esta tida como
https://orcid.org/0000-0001-7372-5262 uma construção sociotécnica que pode ou não ser
E-mail tuliofranco@id.uff.br subsumida pelo cuidado. Toma-se os conceitos
Emerson Elias Merhya de perspectivismo e de regimes de verdade como
https://orcid.org/0000-0001-7560-6240 referenciais teóricos para as análises sobre o
E-mail: emerhy@gmail.com que pode ser enunciado como o cuidado em certo
tempo e lugar: uma produção de mundos e de
a
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro Multidisciplinar sentidos. Engendra-se uma espiral caleidoscópica
Macaé, Instituto de Ciências Médicas, Departamento de Saúde
intercessora para analisar tais sentidos, chegando
Coletiva, Mental e da Família.
a três grupos de perspectivas: o cuidado em saúde
b
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Medicina,
Instituto de Psiquiatria, Departamento de Psiquiatria e Medicina
como um equivalente geral de práticas em saúde
Legal. e intervenções clínicas, o cuidado em saúde como
c
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Saúde Coletiva, uma clínica integral e emancipatória, e o cuidado
Departamento de Planejamento em Saúde. em saúde como uma micropolítica no encontro
intercessor. São múltiplos mundos que carregam
suas próprias verdades e as disputam entre si, por
vezes misturando-se em composições de sentidos.
Um marcador ético-estético-político que propomos
para o uso do conceito cuidado em saúde seria a
produção de mais vida nas vidas vividas.
Palavras-chave: Cuidado; Cuidados Integrais de
Saúde; Prática Integral de Cuidados de Saúde.

Correspondência
Helvo Slomp Junior
Rua Rio Comprido, 120. Rio das Ostras, RJ, Brasil. CEP 28898-084

DOI 10.1590/S0104-12902023220582pt Saúde Soc. São Paulo, v.32, n.4, e220582pt, 2023 1
Abstract Primeira aproximação
The field of health has as its central reference Ao falarmos sobre ou pensarmos sobre o que tem
and “soul” the production of care, a polysemic sido chamado de “cuidado” em saúde, nos parece
and polyphonic concept, with a ubiquitous, que estamos diante de um conceito polissêmico
involved in disputes over meanings. A distinction e polifônico. Além de muitos sentidos serem
between care and clinic was proposed, the latter veiculados por esta única e tão onipresente palavra,
considered a socio-technical construction that tais sentidos dependem da voz que o emite, do ponto
may or may not be subsumed by care. The concepts de vista, das circunstâncias práticas, e ainda de
of perspectivism and truth regimes were taken qual é o problema frente ao qual tal conceito se faz
as theoretical references for the analysis of what necessário. Não poderia ser diferente:
can be enunciated as care in a certain time and
place: a production of worlds and meanings. Com diferentes arranjos ao longo do tempo e
An intercessory kaleidoscopic spiral was segundo os diferentes modos de vida, cuidar tem
engendered to analyze those meanings, finding algo a ver com solidariedade, com suporte, com
three groups of perspectives: health care as apoio, com produção de vida. Não é tema exclusivo
a general equivalent of health practices and da saúde. É tema da produção do humano, da
clinical interventions, health care as an integral construção da teia de relações e encontros que
and emancipatory clinic, and health care as a conformam a vida. (Feuerwerker, 2016, p. 35)
micropolitics in the intercessory encounter.
They are multiple worlds that carry their own Nesse sentido, entendemos que a vida pede o
truths and dispute between themselves, sometimes cuidado, e que no campo da saúde, inextricavelmente
mixing in compositions of senses. An ethical- ligado ao tema da vida, costuma-se tomar o cuidado
aesthetic-political marker that we propose for como se ele fosse uma produção desta área.
the use of the health care concept would be the O cuidado é um tema fundamental para todos os que
production of more life in the lived lives. atuam no setor saúde, que é valorado imaginária
Keywords: Empathy; Comprehensive Health Care; e simbolicamente como pertencente a ele, como
Integral Healthcare Practice. mesmo um definidor deste campo. É neste debate
que pretendemos situar este ensaio.
Reconhecemos a amplitude desse tema, mesmo
que materializado em uma única palavra, e que,
portanto, só pode ser carregada de sentidos, sentidos
atravessados por intensidades capazes de produzir,
de forma recorrente, para parodiar o título da obra
do escritor Rubem Fonseca, vastas confusões e
pensamentos imperfeitos. Em se tratando de saúde,
tudo pode vir a ser chamado “cuidado”, ao ponto
em que por vezes nossos discentes nos perguntam,
em sala de aula: “professor(a), mas o que é cuidado,
mesmo?”. É uma boa pergunta!
Nossa hipótese é a de que correm rios de disputas
de sentidos por dentro do conceito de cuidado em
saúde. Ao mesmo tempo, percebemos uma banalização
de alguns desses sentidos pelo desgaste da palavra
em seu uso ubíquo e “descuidado”. Por outro lado,
é possível entender isso como parte do jogo semiótico
que um conceito com tal potência faz acontecer, e nem

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de longe pretendemos sugerir que poderia haver 2015; Sztutman, 2007). Debatendo na antropologia,
um significado “correto” ou “verdadeiro” para esta o autor coloca o problema da inversão realizada
palavra. Queremos entender um pouco sobre o que pelo pensamento indígena americano com relação
corre por aí, claro que posicionando nosso ponto de ao pensamento ocidental moderno no que se refere
vista, entre outros. Seria possível tomar o cuidado à produção do conhecimento. Em nosso meio,
como conceito, no campo da saúde? Se considerarmos a produção do conhecimento tenderia ao objetivismo
que “conceito é o que impede que o pensamento seja e à dessubjetivação do “objeto” de estudo, mesmo
uma simples opinião, um conselho, uma discussão, quando este é um “sujeito”. Uma consequência é a
uma tagarelice. Todo conceito é forçosamente um construção teórica de que há uma natureza única
paradoxo” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 14). O usuário e fixa na qual se imiscuem diferentes culturas, um
sentir-se ou não cuidado é o que possibilita a único mundo visto por diferentes pontos de vista
existência do conceito? Tentaremos problematizar (Castro, 2015; Sztutman, 2007).
estas e outras questões neste texto. Ao contrário, para o olhar ameríndio, “conhecer
Um de nós já coescreveu que “o cuidado (e não a é ‘personificar’, tomar o ponto de vista daquilo que
clínica) é a alma dos serviços de saúde e a estratégia deve ser conhecido. Ou antes, daquele; pois a questão
radical para defesa da vida” (Merhy; Feuerwerker, é a de saber ‘o quem das coisas’ (Guimarães Rosa) […].
2016, p. 68). Tal afirmação se faz importante A forma do Outro é a pessoa” (Castro, 2015, p. 50).
enquanto delimitação entre as diferentes dimensões Logo, não se trata mais de conhecer uma coisa em
tecnológicas que se entrelaçam no mundo do si, porque todo fato ou evento relaciona-se com uma
trabalho em saúde: a das tecnologias leve-duras ação, uma intencionalidade. Não há “coisas” inertes,
(códigos cognitivos que sustentam o saber-fazer e para o pensamento ameríndio tudo no mundo –
na saúde) e duras (equipamentos e insumos para seres vivos e inanimados – é humano (Castro, 2015).
os procedimentos clínicos), e a das tecnologias No pensamento ameríndio há diferentes mundos
leves (as relações entre viventes em encontros que se interpenetram, e cada corpo assume seu ponto
intercessores) (Merhy; Feuerwerker, 2016). Segundo de vista, sendo o mundo habitado por múltiplos
este ponto de vista, que adotamos neste texto, há perspectivismos ou pontos de vista, cada um deles
uma clara distinção entre o cuidado e a clínica, produzindo seu próprio mundo. Merhy (2015) propõe
sendo a segunda, enquanto construção sociotécnica, que, nesta multiplicidade de mundos, cada ponto de
um dos conjuntos tecnológicos para o primeiro, vista ainda admite, por sua vez, múltiplas “vistas”,
podendo até mesmo ser subsumida por este. Este é diferentes vistas dos pontos de vista, sendo estas,
um entre muitos dos pontos de vista que disputam portanto, infinitas.
o conceito de cuidado. Voltaremos a ele quando Usaremos aqui o perspectivismo, emprestado de
falarmos do cuidado na micropolítica do encontro, Viveiro de Castos, como ferramenta analítica. Desta
mas antes consideremos como pensamos esta vez, não para olhar para o pensamento ameríndio,
disputa: como um entrelaçamento de perspectivas mas sim para o cuidado. Outra hipótese é a de que
em uma espiral de sentidos. cuidado também produz diferentes significados
a depender de quem o enuncia, de onde está
O cuidado enquanto diferentes posicionada esta perspectiva, e a partir de que vista
perspectivismos e regimes de verdade e de que ponto de vista.
Ao fazermos o exercício de pensar que existem
É importante posicionarmos a maquinaria diferentes concepções de cuidado em saúde como
conceitual que buscamos para nos ajudar a pensar produções de diferentes mundos ou diferentes
o problema colocado acima. Tomamos aqui o perspectivas, ainda que entrelaçadas, poderíamos
conceito de perspectivismo ameríndio operado por pensar também que tal perspectivismo implica práticas
Viveiro de Castro, utilizado na sua obra para tratar discursivas e não discursivas que disputam as verdades
o modo como humanos, animais e espíritos veem em jogo. Tomamos “verdade”, aqui, no sentido proposto
a si mesmos e aos outros seres do mundo (Castro, por Michel Foucault:

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Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, a seguir três grandes grupos de perspectivas/regimes
“em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma de verdade: o cuidado em saúde como um equivalente
vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto geral de práticas de saúde e intervenções clínicas,
das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer o cuidado em saúde como uma clínica integral e
aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo emancipatória, e o cuidado em saúde como uma
as quais se distingue o verdadeiro do falso e se micropolítica no encontro intercessor.
atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; No entanto, ao iniciarmos a preparação deste
entendendo-se também que não se trata de um trabalho, nos deparamos com um primeiro problema:
combate “em favor” da verdade, mas em torno do tais conceitos não são estanques e nem mutuamente
estatuto da verdade e do papel econômico-político exclusivos entre si. Cada um dos três pontos de vista
que ela desempenha. (Foucault, 2010, p. 13) acima admitem ainda diversas vistas, em especial o
segundo e o terceiro, e também se combinam entre
Portanto, ao convidarmos o conceito deste autor, si em maior ou menor grau, a depender da força
não pretendemos disputar a veracidade de nossos de produção de mundos que cada uma das três
enunciados sobre o cuidado em saúde frente a outros, vertentes arregimenta em cada espaço e tempo.
e, sim, nos concentrarmos nas diferenças entre As três perspectivas giram sobre si mesmas e
aqueles enunciados que, ao nosso ver, seriam os compõem-se em diferentes forças de acordo com
principais regimes discursivos sobre o tema: os movimentos produzidos pelos personagens que
se encontram nos acontecimentos do/no cuidado,
O que está em questão é o que rege os enunciados como se inúmeras situações singulares de cuidado
e a forma como estes se regem entre si para produzissem diferentes atualizações semióticas,
constituir um conjunto de proposições aceitáveis como se girassem caleidoscopicamente em uma
cientificamente e, consequentemente, susceptíveis espiral (Figura 1).
de serem verificadas ou infirmadas por
procedimentos científicos. […] este problema do Figura 1 – A espiral caleidoscópica do cuidado
“regime discursivo”, dos efeitos de poder próprios
do jogo enunciativo. (Foucault, 2010, p. 4)

Um regime de verdade, para o autor, teria


algumas características: a forma de um discurso
científico, uma incitação e um controle por
aparelhos econômicos e políticos (escritura, meios de
comunicação, Estado, universidades), e uma grande
difusão e consumo, levando a disputas no campo
político e ideológico (Foucault, 2010).
Entendemos que as diversas perspectivas
adotadas produzem regimes de verdade sobre o
cuidado em saúde em nossas sociedades. Eis a
maquinaria conceitual que nos ajudará a construir
o dispositivo analítico que denominamos espiral
Fonte: Os autores.
caleidoscópica do cuidado. Desenho: Guilherme Fonseca.

A espiral caleidoscópica do cuidado Ofertamos, portanto, esta figura geométrica


como um dispositivo, uma engenhoca conceitual
Orientando-nos a partir dos referenciais que intercessora. Isto porque entendemos que os
expusemos acima, e de um exercício que fizemos em intercessores, ao se forjarem nos encontros, fazem
Slomp Junior, Franco e Merhy (2022), comentaremos com que cada pensamento no qual se atribui sentidos

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para o cuidado nos façam desviar da resposta rápida, cientificamente comprovados para intervenções
pronta, do repertório já dado, abrindo as portas para procedimentais por profissionais de saúde,
a criação no/do cuidado: informa que:

Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso Algumas das publicações selecionadas refletem a
fabricar seus próprios intercessores. É uma série. concepção do senso comum ao considerar o cuidado
Se não formamos uma série, mesmo que à saúde como um conjunto de procedimentos
completamente imaginária, estamos perdidos. orientados pela ciência e pela técnica, realizados por
Eu preciso de meus intercessores para me um profissional especialista competente, visando o
exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: bom êxito de um determinado tratamento de modo
sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso a alcançar a remissão de sintomas, a eliminação de
não se vê (Deleuze, 2008, p. 156). doenças. (Cruz, 2009, p. 78)

A ideia é que a espiral caleidoscópica do cuidado Ora, faz sentido, se pensarmos que qualquer
nos permita produzir tanto certa assimilação usuário(a)-cidadão(ã) pode precisar de um
cumulativa de dimensões que o conceito vai determinado procedimento, cirúrgico, por exemplo,
tomando, quando se transita de um ponto de vista a e quando obtém acesso a ele pode se sentir mesmo
outro, seja no sentido de abertura ou de fechamento sob “cuidados”, não importando aqui o modo como
da espiral, quanto um posicionamento de marcos de aconteceu o procedimento. Neste caso, quem o
tensão. A seguir faremos o primeiro ensaio do uso pratica ou quem reflete sobre ele poderia também
deste dispositivo. chamá-lo de “cuidado cirúrgico”.
Na dimensão coletiva da organização das práticas
O cuidado em saúde como um de saúde também é possível identificar uma circulação
equivalente geral das práticas em do conceito de cuidado como um equivalente das
práticas assistenciais em geral, agora tomadas na
saúde e intervenções clínicas dimensão organizacional em rede. Uma revisão sobre
o tema da “coordenação do cuidado” no contexto
Tomemos “práticas de saúde” como o conjunto da atenção primária à saúde brasileira (Almeida
de fazeres que produzem as ações necessárias et al., 2018), por exemplo, não deixa de posicionar a
ao cuidado, no interior dos serviços de saúde, e preocupação das autoras com a orientação de serviços
que incluem as intervenções clínicas, relativas de saúde a partir das necessidades dos usuários.
às várias profissões da saúde, configurando-se No entanto, a análise do estudo é estruturada em
como “atos produtivos, pois modificam alguma três dimensões consideradas no texto como centrais:
coisa e produzem algo novo” (Merhy; Feuerwerker, “posição da Estratégia Saúde da Família na rede
2016, p. 63). Todo o agir tecnológico produzido assistencial; integração entre níveis assistenciais e
e recebido, tornado concretude no cotidiano dos interfaces com a regulação assistencial; e integração
serviços e nos cenários das ações sanitárias, pode horizontal com outros dispositivos de atenção e
ser então visto como prática em saúde, tenha ele cuidado no território” (Almeida et al., 2018, p. 244).
qual configuração tiver. É incomum que este ponto de vista, do cuidado
Neste primeiro ponto de vista tudo isso é como um equivalente geral das práticas em saúde
“cuidado” em saúde, sem que haja preocupação e intervenções clínicas, quando veiculado, seja
com distinguir alguma prática que não seria do acompanhado de uma explicitação conceitual.
âmbito do cuidado. Cruz (2009), em uma revisão Ao contrário, com frequência escreve-se e fala-se
sobre o conceito de cuidado em saúde, identifica de “cuidado”, nesta perspectiva, como se fora um
três dimensões: a técnico-científica, a subjetivo- a priori conceitual, sendo tarefa de cada leitor(a)
relacional e a sócio-política. Na primeira delas, interpretar o sentido que o conceito traz em cada
entendida como os saberes e instrumentos publicação ou discurso oral.

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Este mundo onde “tudo na saúde é cuidado” ocupa em saúde: aquelas que dependem de um olhar para
o início do traçado de nossa espiral, seus primeiros os sujeitos e suas vidas, necessidades e relações
giros, mas seguirá percorrendo toda a espiral em sociais. Neste ponto de vista, nem tudo o que se faz
menor ou maior grau, pois que sempre se acaba como procedimento diagnóstico, terapêutico ou
voltando a ele ou compondo com ele, nem que seja preventivo é, a priori, cuidado. Pode vir a ser, desde
numa fala rápida. que opere com base em um conceito não restritivo
de saúde, que leve em consideração o “outro lado”:
O cuidado em saúde como produto de tudo o que necessite e deseje o(a) usuário(a).
uma clínica integral e emancipatória Concretamente, ainda estamos no território
das ações clínicas, mas agora enriquecidas de
Agora passamos para um grupo de perspectivas valores ético-políticos referentes à integralidade
sobre o cuidado em saúde que, de um modo geral, do processo saúde-doença-cuidado e à emancipação
passam a ser vistas acima de tudo como estratégias dos sujeitos individuais e coletivos. Respeitados
para mudanças. As necessidades em saúde dos(as) tais princípios, estamos agora em um outro mundo,
usuários(as) e a integralidade é que ocupam agora no qual nem tudo o que se faz na saúde é “cuidado”.
a centralidade do olhar de autores que, mesmo não Abre-se todo um grupo de pontos de vista que, por sua
utilizando a palavra cuidado, deixam claro que nem vez, admite muitas e diferentes “vistas”, a depender
toda prática em saúde e nem toda intervenção clínica do aspecto que certos autores considerem mais
superam a objetivação do usuário e o reducionismo relevante nessa postura diante do(a) usuário(a) da
no pensar e agir na saúde (Mattos, 2004). Agora saúde. A seguir nos remeteremos a três delas, entre
opera-se “cuidado” em outro registro discursivo: outras tantas.
como um projeto para produzir outro tipo de mundo Ayres (2004a, 2004b), visando a “reconstrução das
da saúde, diferente do que temos hegemonicamente práticas de saúde” no sentido do bem comum, propõe
constituído no plano dos serviços de saúde. que cuidar vai além de tratar, curar ou controlar riscos
Tal perspectiva é própria aos movimentos da – que o autor chama atos assistenciais –, e convoca
reforma sanitária na América Latina a partir dos para uma humanização da atenção à saúde. Para o
anos 1970, e no Brasil quando da própria constituição autor, isto se obtém quando a “arte tecnocientífica
do campo chamado “saúde coletiva” (Almeida Filho; da medicina” se interessa pela vida, em uma atitude
Paim, 1999). Alguns autores já preferiam, desde terapêutica que deve buscar o sentido “existencial”
os vários começos deste processo histórico-social, da atenção à saúde, tomada agora como um projeto
enunciar de outro modo as práticas em saúde, pois de felicidade do usuário da saúde.
era preciso destacar aquelas de fato comprometidas Também a propósito de “humanização” na
com certos valores: saúde, o Brasil conta, em seu histórico de ações
governamentais setoriais, com a Política Nacional
Desta forma, consideramos como cuidado, de Humanização da Atenção e Gestão do SUS,
em geral, um processo de trabalho, que se em cujos documentos técnicos aparece a palavra
compõe de conhecimentos corporificados em “cuidado”. No mais das vezes, quando não é utilizado
instrumentos e condutas (nível técnico) e uma em referência à gestão setorial, o termo significa
relação social específica (nível social), satisfazendo práticas de saúde em geral (Brasil, 2006). Ainda assim,
as necessidades determinadas pela experiência o conceito é utilizado a partir de certos princípios
histórica dos sujeitos diante do modo de andar a norteadores: valoração multidimensional (subjetiva,
vida. (Arouca, 2003, p. 220) coletiva, de gênero, cor/etnia, orientação/expressão
sexual, de segmentos específicos, como populações
Ou seja, os procedimentos e intervenções em negras, povos indígenas, rurais, extrativistas,
saúde, de um modo geral, não mais trariam os quilombolas, ciganos, ribeirinhos, assentados,
valores referentes ao cuidado automaticamente entre outros); fortalecimento de trabalho em equipe
indexados a eles. Surgia outra categoria de práticas multiprofissional e da transversalidade; construção

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de redes cooperativas e solidárias; construção de (2008), entendemos que se produz também uma
autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos; intercessão, com “ss”: um acontecimento de múltiplas
corresponsabilidade dos sujeitos nos processos de e mútuas afecções e subjetivações (Merhy, 2004,
gestão e atenção; fortalecimento da participação 2006, 2010).
social na saúde; democratização das relações de O cuidado como acontecimento intercessor, eis o
trabalho e valorização dos trabalhadores da saúde; sentido que damos à noção de encontro cuidador.
e promoção de espaços de trabalho saudáveis e Podemos ir longe na história do pensamento para
acolhedores (Brasil, 2006). ver que este entendimento não é novo, e buscar,
Inúmeros seriam as possibilidades que também por exemplo, lá do século XVII, o pensamento de
poderíamos listar nesta seção, mas nosso objetivo não é Baruch Spinoza, que segundo Deleuze (2019) já nos
uma revisão sobre esses aspectos do tema. Importante oferecia um conceito bastante interessante do que
para o nosso debate é que o cuidado em saúde agora seria um “corpo”, a saber, uma unidade na qual não
está relacionado a uma certa clínica, orientada pela conseguimos separar o organismo biológico do
integralidade e por valores emancipatórios, e tais psiquismo, e que permanentemente sofre variações
relações são pressupostas para se poder enunciá-lo. em seus desejos e sentimentos, variação que tem
Observe-se que já estão se abrindo mais as alças na como causa o afecto que os corpos produzem
espiral caleidoscópica do cuidado, e com este grupo de mutuamente, quando se encontram. As afecções são
perspectivas ocupamos a sua maior parte. os efeitos no corpo desses afectos (Deleuze, 2019),
Mas ainda temos outras dimensões conceituais produzindo os processos de subjetivação conforme
a alcançar. Uma perspectiva leva a outra, pois isso os encontros que este corpo vivencia no decorrer da
que chamamos cuidado guarda, a cada experiência, vida. Segundo o autor, para Spinoza o corpo é o que
ainda mais sutilezas. Subitamente dá-se conta de um é porque pode afetar e ser afetado, e, a depender dos
detalhe que não é insignificante: nisso de cuidar há encontros que experimenta, tem sua capacidade de
também encontros. agir aumentada quando padece dos afectos positivos
que produzem alegria, ou diminuída quando afectos
O cuidado em saúde como uma negativos lhe trazem tristeza. Castro (2015) afirmaria
micropolítica no encontro intercessor até que há uma proximidade entre esta concepção de
corpo com aquela presente no pensamento ameríndio.
Entre nós, autores deste artigo, já há tempos Cuidado, neste terceiro grupo de sentidos, só
chama atenção a existência de um espaço diferente existe quando existe o encontro intercessor, que
na saúde, ali entre quem busca o cuidado e quem forma um “campo de consistência” no espaço entre
o oferece, um espaço que só existe enquanto dura os corpos, por onde circulam as afetações, espaço
o trabalho em saúde, que é vivo e acontece em ato. pelo qual é engendrada uma dimensão cuidadora
Inicialmente víamos os atos cuidadores como uma com base em uma produção subjetiva do cuidado
interseção, à moda geométrica, na qual os vários (Franco; Andrade; Ferreira, 2009). Tal perspectiva
núcleos cuidadores envolvidos em uma cena de abre mais possibilidades para pensar ações clínicas e
cuidado constituiriam este espaço comum: a dimensão gestoras que visem a integralidade das necessidades
cuidadora (Merhy, 1998). Logo depois dos primeiros do usuário-cidadão em sua autonomia, conforme
escritos sobre o assunto, percebemos que acontecem vimos no grupo anterior de pontos de vista sobre o
coisas neste espaço para além de uma mistura de cuidado, que permanece em pauta aqui. Compreender
mundos, que quem participa de um encontro não sai o cuidado no encontro intercessor não é abrir mão da
exatamente do mesmo modo que nele entrou, porque perspectiva anterior, pois o cuidado como encontro
partilhar este espaço comum implica mudanças implica também uma análise multidimensional que
de parte a parte. O que “acontece” neste espaço do considere a experiência do viver, deslocando-se
“entre” não se restringe à interseção, com “ç”, embora o cuidado de ato isolado da assistência para uma
ela também continue valendo como configuração proposta ética “de ocupação, de preocupação, de
produtiva deste espaço. Mas, com a ajuda de Deleuze responsabilização radical, de sensibilidade para

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com a experiência humana e de reconhecimento da a cada encontro, a fabricação do cuidado compõe cenas
realidade do outro, como pessoa e como sujeito, na e efeitos distintos com maior ou menor abertura para
sua singularidade” (Franco; Hubner, 2020, p. 96), ações que despatologizam a vida e que introduzem
já que os encontros intercessores são a usina de a multiplicidade das redes vivas sempre presentes
produção de nossas vidas. Trata-se de uma mesma no acontecimento entre aquele(a) que demanda um
espiral, lembremos. cuidado e aquele(a) que o oferta.
As tecnologias leves, enquanto relações que Considerando essa perspectiva micropolítica do
agenciam as ações cuidadoras em um fazer cuidado, também é possível pensarmos no âmbito dos
implicado com o problema de saúde do(a) usuário(a), serviços de saúde. Cecilio (2011), por exemplo, utiliza
acontecem no “entre”, no espaço intercessor, e abrem uma classificação do cuidado em seis dimensões
espaço para o cuidado nesta terceira perspectiva (individual, familiar, profissional, organizacional,
porque regulam os quanta de potência de vida sistêmica e societária) como estratégia para
que as tecnologias duras e leve-duras agenciam a avaliação de serviços de saúde, e destaca a dimensão
cada encontro. O que está em disputa não é qual micropolítica de todas elas. Temos insistido também
modalidade tecnológica é “melhor”, mas qual no fato de que o plano micropolítico das organizações
delas comanda e estrutura o processo de trabalho. de saúde, em que acontece o cuidado, não se restringe
No encontro intercessor as tecnologias leves têm à esfera dos encontros entre poucas pessoas, nos
este papel, associando-se às duras e leve-duras na consultórios e salas de procedimentos, ou mesmo
produção de um cuidado mais efetivo. nos serviços. Não se trata, portanto, de uma questão
Em tempo, mesmo havendo encontro, não há de escala mas, sim, de uma dimensão virtual do real
garantia de um cuidado-cuidador. Um trabalho que produz tudo aquilo que concretamente vemos
em saúde, ainda que orientado por tecnologias e ouvimos, e que é produzida por tudo isso, tanto
leves, pode favorecer a captura das práticas na esfera próxima das relações como naquela mais
de cuidado para lógicas capitalísticas de alto geral das organizações de saúde (Feuerwerker, 2014).
consumo de procedimentos, secundarizando as Enfim, temos agora novas alças na nossa espiral
necessidades sócio-clínicas e afetivas do usuário, do cuidado, que o tornam um conceito múltiplo, com
produzindo formas de cuidado instrumentalizadas, diferentes sentidos e alcances, a depender de que
excessivamente centradas em diretrizes lugar e em que circunstâncias é enunciado. Contando
exclusivamente biomédicas, e por vezes habitadas com esta engenhoca intercessora, a seguir faremos
por valores e lógicas que objetificam o mundo um primeiro exercício conceitual.
do outro e/ou posicionam as subjetivações sobre
a saúde enquanto mercadoria como centrais no Experimentando fazer falar a espiral
encontro. Foi nesse sentido que um de nós já caleidoscópica do cuidado
advertiu quanto a um “cuidado com o cuidado”
(Merhy, 2007). Por tudo isso é preciso contar com O que se produz no campo da saúde é o cuidado
um projeto ético-estético-político que oriente as em suas múltiplas e variadas dimensões, mas não
ações intercessoras em espaços coletivos, para só isso. Há alguns séculos esse campo vem sendo
que elas efetivamente apontem para a vida e para definido a partir de certas profissões de saúde e
o cuidado (Seixas et al., 2021; Slomp Junior et al., da produção de pós-graduação em saúde coletiva
2019). Neste artigo advertimos para a importância e áreas afins. Arriscamos afirmar que um efeito
ético-estético-política de negar o atributo “cuidado” desses movimentos é reconhecer que tais núcleos
a acontecimentos que, no limite, produzem de enunciação têm modos específicos tanto para
justamente seu oposto: o descuidado. potencializar como para capturar o cuidado.
O cuidado visto na micropolítica do encontro torna Embora com formas específicas e diferentes de
a espiral caleidoscópica vibrátil, porque se apresenta olhar, pensar e produzir conhecimento, é possível
e se movimenta a partir do campo de forças que a afirmar que há uma conexão entre elas: todas
constitui em cada encontro. Assim, a cada movimento, estão comprometidas com a produção do cuidado,

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seja qual for a modalidade que o mesmo adquire cuidado é assentado, em cada realidade examinada,
ou quais dimensões disso que se chama cuidado naqueles valores pelos quais ele precisava ser
são, a cada circunstância e tempo, colocadas como tomado naquele momento e naquele cenário. E tais
centrais. Mas também é possível afirmar que desses valores interessam, se quisermos analisar uma
núcleos de enunciação emergem vários dos regimes certa configuração de cuidado. Propomos que, mais
de verdade sobre o que seria cuidar. interessante do que perguntar o que é cuidado,
O campo institucional da saúde, nos seus modos é perguntar por que cada sentido dado a este
de se organizar para se efetivar em ações, é aquele conceito foi e é necessário em cada cenário-situação-
que tem como referente central e sua “alma” a perspectiva, e como nos posicionamos frente a isso.
produção do(a) cuidador(a). O que se promete é que Aqui o terceiro grupo de sentidos nos aguça o
nos seus fazeres, a partir dos encontros que podem olhar. O fato de o cuidado consistir num acontecer
acontecer, a intencionalidade fundamental é sempre que para ser concretizado pressupõe a entrada do(a)
atraída pela ação, que só será compreendida como outro(a) com sua própria vida e suas diferenças abre
deste campo se houver o cuidado, enquanto algo que uma virtualidade no cuidado que está ali sendo
seja simbolicamente valorado como tal por todos(as) atualizado. Surgem novas possibilidades, inclusive
que pertencem a – ou mesmo que constituem – esse de ruptura frente às intencionalidades que tendem a
campo. Seguindo este pensamento, não haveria governar predominantemente o cuidado instituído
como falar em saúde sem falar em cuidado, por vezes em cada lugar e tempo, e de ruptura simbólica com
parecendo que há uma “instituição” cuidado, o que as próprias noções de saúde e cuidado que o campo
parece nos remeter à primeira perspectiva de que da saúde institui imaginariamente, nas sociedades
falamos acima: a de um equivalente geral das práticas em que vivemos, com possível desterritorialização
e intervenções clínicas. nos modos de se organizar a própria produção do
Por outro lado, quando posicionamos o cuidado cuidado, que passa agora a ser governada por mais
em saúde em uma espiral caleidoscópica de outros valores.
sentidos, que parte desta primeira perspectiva Os vários perspectivismos sobre o cuidado então
de cuidado para a de uma clínica emancipatória vazam uns dos outros como distintas máquinas
e integral, e, indo além disso, entremeando abstratas em disputa, que como tal podem, nas
essa outra clínica na micropolítica do encontro melhores das hipóteses, serem desorganizadas
intercessor, nos vem a pergunta: o que fazer com e reorganizadas em produções minoritárias de
essa multiplicidade de sentidos? Estaríamos nos existências ainda não vividas, em devires que
deixando levar por um relativismo segundo o qual buscam outras formas de atualizações, com a
cuidado seria qualquer combinação destes três invenção de códigos e registros para si que os
grupos de sentidos, a depender do ponto de vista permitam viver e existir. Caminho tortuoso este,
em questão, e que portanto nunca o teremos como produtivo, mas perigoso, como diria Castro (2015)
conceito, já que, se “tudo” é cuidado, ao mesmo sobre o perspectivismo ameríndio, pois o cuidado,
tempo o cuidado também não seria “nada” diferente assim como nossos corpos de modo geral, nunca
do que já temos, como a clínica e a atenção à saúde? está livre de uma nova captura.
Talvez ajudaria lembrar que há, nos processos Vejamos um exemplo prático, o da tecnologia de
histórico-sociais, modos predominantes de se pensar cuidado chamada “acolhimento”. Posso promover
e organizar o cuidado em saúde que se distinguem um encontro dito de “acolhimento” no qual me
de outros, estabelecendo-se por vezes até relações relaciono de modo preciso para submeter o(a)
hierárquicas entre eles. Produz-se, em cada cenário, outro(a), determinando-lhe certas falas possíveis
o que pode ser o cuidado – e a quem ele pertence – e outras não. Inclusive posso não perguntar ou, se
como mundos instituídos muito singulares e em perguntar, mesmo assim não ouvir nem seu próprio
permanente disputa, que enunciativamente se nome, pois é preciso que este outro não fale a não ser
expressam como jogos de verdade (Foucault, 2010). o que eu quero ouvir, dado que tenho diagnósticos
Portanto, não se trata de relativismo, o significado do e condutas padrões para todos(as) que entram pela

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porta do meu consultório. Em tempo, eis um exemplo encontro intercessor. Mundos múltiplos carregam
do que estamos chamando de captura. De qualquer suas próprias verdades, em alguns casos bastante
maneira, este exemplo nos oferece um típico caso explicitadas, mas no mais das vezes subliminares,
de uma tecnologia leve supostamente voltada para que, como escrevemos acima, foram/são necessárias
o cuidado, mas não usada nesta direção. por motivos específicos, mas que vale conhecer.
Na seção anterior lembramos que até com o cuidado Esses mundos por vezes se misturam, e resultam de
há que se ter cuidado, e acrescentaríamos que talvez composições de sentidos. Enfim, no mais das vezes
nossa prudência devesse ser ainda maior em situações fazemos existir o cuidado, a cada vez, com diferentes
assim, pois descuidar usando somente tecnologias “coeficientes cuidadores” em jogo.
duras e leve-duras, ou negando-se a atender ou a dar Para concluir, pensamos que a ideia de uma espiral
acesso, por exemplo, pode até configurar-se fenômeno caleidoscópica com sentidos moventes, assim como
mais facilmente cognoscível mediante uma avaliação outros tantos dispositivos conceituais que poderão
protocolar. De outro lado, não podemos dizer o mesmo ser propostos para esse tipo de análise, é tão somente
quando nos deparamos com um descuidado que uma engenhoca teórica que nos ajudou a pensar que
acontece no plano das relações. Se o encontro faz grupos de sentidos podem circular por um conceito
emergir as diferenças, e são disparadas as disputas como o cuidado. Mesmo assim, reconhecemos que
entre diferentes éticas de cuidado, nem todas serão há ainda caminhos a serem percorridos no sentido
automaticamente cuidadoras, podendo o descuidado de entendermos melhor sobre o assunto.
ser até mais danoso. Ao menos já estamos seguros de que, ao assumir
Assim, estamos invertendo a espiral do cuidado que cuidado em saúde pode significar tudo o que a
quando propomos que é na dimensão micropolítica espiral nos coloca, não se trata de um relativismo,
dos encontros da vida que se veicula o que é ou pelo menos, de um relativismo qualquer, mas sim
cuidado, em certo lugar e tempo, em uma dimensão de composições possíveis de sentidos que se fazem
cuidadora em que se abrem (ou não) possibilidades necessárias a cada lugar e tempo. Seja como for,
para que o cuidado se volte à integralidade e à propomos que houve cuidado se houve a produção
autonomização de quem é cuidado. Sim, porque, de mais vida na vida vivida, e, nesse caso, quem o
segundo o que nossas pesquisas até o momento recebeu assim o sentiu.
nos levam a concluir, somente a presença de uma
intencionalidade ético-política não garante, por Considerações finais
si só, o alcance desses objetivos. Ao contrário, há
maquinismos outros que também precisam ser O campo institucional da saúde tem a produção
acionados para acessar a dimensão cuidadora. Ainda do(a) cuidador(a) como referente central e “alma”, e as
assim entendemos que este é um caminho possível ações são compreendidas como pertencentes a este
para a produção do cuidado, o de desamarrar o campo desde que relacionadas com o ato de cuidar,
desejo das intencionalidades a priori para que a em torno do qual circulam vários regimes de verdade.
vida seja potencializada na imanência. Para isso Compusemos então o que chamamos de espiral
vale “cuidar com o cuidado” enquanto se considera a caleidoscópica de sentidos para exercitar uma análise
produção da qual também pode emergir o descuidado, sobre o que seria o cuidado em saúde, uma engenhoca
preservando-seesta palavrinha de significações que conceitual intercessora que nos possibilitou apontar
a afastem da produção de mais vida. três grandes grupos de perspectivas: o cuidado em
Portanto, mundos diferentes são acionados (às saúde como um equivalente geral de práticas de saúde
vezes ao mesmo tempo) quando enunciamos um e intervenções clínicas, o cuidado em saúde como uma
cuidado que é tomado seja como sinônimo de tudo clínica integral e emancipatória, e o cuidado em saúde
o que se faz nos serviços de saúde, seja quando há como uma micropolítica no encontro intercessor.
comprometimento com o(a) usuário(a) mediante um Propomos então que em cada momento e
conceito ampliado de saúde e outra relação ética, cenário existe o que pode ser o cuidado e a quem ele
ou ainda, quando se trata de um cuidado em um “pertence”, tratando-se este de um mundo instituído

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singular e em permanente disputa, e que será por sua CECILIO, L. C. O. Apontamentos teórico-conceituais
vez afetado pelo encontro intercessor que emerge sobre processos avaliativos considerando as
(ou não) no cuidado como acontecimento, abrindo-se múltiplas dimensões da gestão do cuidado em
uma nova virtualidade que é agora palco de outros saúde. Interface, Botucatu, v. 15, n. 37, p. 589-599,
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mundos que carregam suas próprias verdades, e que 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Saúde
por vezes se misturam e resultam em composições Comunitária) – Instituto de Saúde Coletiva,
de sentidos. Esses mundos nos fazem percorrer a Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.
espiral de uma direção a outra, a depender de que
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sentidos conseguimos recolher em cada experiência.
e a ideia. In: DELEUZE, G. Cursos sobre Spinoza
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Contribuição dos autores


Todos(as) os(as) autores(as) contribuíram igualmente em todas as
etapas da elaboração do texto, desde sua concepção inicial, até a
aprovação da versão final.

Recebido: 18/5/2023
Reapresentado: 18/5/2023
Aprovado: 24/5/2023

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