21 Paulo e Suas Cartas

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PAULO
E SUAS CARTAS

Roteiros para Reflexão X

4a edição – 2008

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CEBI - Paulo e suas cartas


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CEBI - Programa de Publicações

CEBI - Paulo e suas cartas


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Apresentação

Nossa coleção Roteiros para Reflexão é calcada na coleção Tua


Palavra é Vida da Conferência dos Religiosos do Brasil. No prefácio
do 1º volume, História do Povo de Deus, Carlos Mesters explica por
que o CEBI, devidamente autorizado, resolveu adaptar o texto da
CRB, no que diz respeito “à linguagem e à dimensão ecumênica e mais
leiga do CEBF’ (História do Povo de Deus, p. 7). E esse trabalho tem
sido feito com uma boa margem de liberdade.
Para a elaboração da Introdução Geral, valemo-nos do livro Paulo
apóstolo: um trabalhador que anuncia o Evangelho, Ed. Paulinas,
1991, de Carlos Mesters.
Foi necessário ainda acrescentar e/ou modificar alguns roteiros do
original:
- no estudo da 1Cor, os dois roteiros são novos, pois modificamos
o texto do único roteiro que constava no original;
- no estudo da 2Cor o roteiro é novo por não haver nenhum no
original;
- no estudo da Carta aos Efésios, deslocamos o roteiro 17 do vol.
7;
- no estudo da 2Ts o roteiro é novo por não haver no original. As
chamadas “Cartas Pastorais”, as duas a Timóteo e a de Tito, serão es-
tudadas em outro volume, juntamente com a Carta aos Hebreus, a de
Tiago, as duas de Pedro, as três de João e a de Judas.
O subsídio 3: “A nova fonte de espiritualidade” foi praticamente
transcrito do livro de Carlos Mesters acima citado.
Para esse trabalho, até certo ponto, de re-elaboração, foram de
grande valia os três livretos de Sebastião Armando G. Soares, editados
na Série “A Palavra na Vida”: Reler Paulo : desafio a Igreja, n. 79/80
- 1994, Palavra da cruz X ideologia, n. 99 - 1996 e Um só Senhor, n.
104 - 1996.
Eliseu Lopes

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Introdução geral

Para entender uma carta, é preciso conhecer o autor e o destinatá-


rio. Vamos tentar conhecer Paulo e os destinatários de suas cartas para
saber qual mensagem elas trazem para nós hoje. Muitos dos problemas
que Paulo enfrentou continuam desafiando as Igrejas. Poderíamos
mencionar alguns: como alimentar nossa espiritualidade? Como con-
ciliar o trabalho profissional e o anúncio do Evangelho? Como viver
os conflitos sem ficar dilacerado? Como combinar fé e política? Como
combinar Evangelho e culturas diferentes? Qual o lugar da mulher nas
Igrejas? Como fazer para que o Evangelho seja uma Boa Nova para os
pobres?
Para melhor acompanhar a trajetória de Paulo, vamos dividir sua
vida em quatro períodos. Com a imprecisão das datas, o número de
anos de idade são aproximativos.
1. Do nascimento aos 28 anos: O judeu observante.
2. Dos 28 aos 41 anos: O convertido fervoroso.
3. Dos 41 aos 53 anos: O missionário itinerante.
4. Dos 53 anos até a morte: O prisioneiro e organizador das comu-
nidades.

I. PERÍODO: DO NASCIMENTO AOS 28 ANOS O JUDEU OB-


SERVANTE

1. Lugar onde Paulo nasceu e cresceu


Paulo nasceu em Tarso, na região da Cilícia, Ásia Menor, atual
Turquia (At 9,11; 21,39; 22,3; cf. 9,30; 11,2-5). Era uma cidade
grande, com mais ou menos 300.000 habitantes. Nasceu numa cidade
da Ásia Menor, mas era judeu genuíno, da diáspora (dispersão). Por-
tanto, judeu helenista. Havia uma comunicação muito intensa entre Je-
rusalém e a diáspora, pois Jerusalém era o centro espiritual de todos
os judeus. Assim se compreende como Paulo, nascido em Tarso, tenha
vindo educar-se em Jerusalém (cf. At 26,4).

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2. Juventude e formação
Tendo recebido a formação básica em casa e na sinagoga, Paulo foi
aprimorar essa formação em Jerusalém, como hoje, no Brasil, tantos
jovens saem de sua pequena cidade para freqüentar a universidade nas
grandes cidades. Paulo teve como mestre Gama-liei, que era muito
respeitado por sua sabedoria e fidelidade à Lei (At 5,34-39). Portanto,
Paulo fez altos estudos e formou-se na rigorosa tradição dos fariseus
(At 23,3).
3. Classe social e profissão
Paulo fazia questão de dizer que era cidadão romano e que tinha
esse título por direito de nascença (At 16,37; 22,25.29). Isso quer dizer
que o pai ou o avô de Paulo tinha adquirido esse título, o que requeria
“vultosa quantia de dinheiro” (At 22,28). Provavelmente o pai tinha
uma fábrica de tendas e Paulo aprendeu a profissão (At 18,3), não para
ser empregado, mas para ajudar o pai e sucedê-lo na administração da
fábrica. Cidadão romano, fariseu formado na escola superior de Jeru-
salém, filho de pai rico, Paulo pertencia à elite da sociedade e tinha
diante de si o futuro promissor de uma carreira brilhante.
4. O ideal do judeu observante
Paulo sempre foi profundamente religioso, irrepreensível na obser-
vância mais estrita da Lei (Fl 3,6; At 22,3), “cheio de zelo pelas tradi-
ções paternas” (Gl 1,14). Na origem do povo judeu está a Aliança. Na
Aliança há dois aspectos que se completam: a gratuidade da parte de
Deus que supõe a contrapartida da observância da parte do povo. São
os dois lados da mesma moeda. Mas nem sempre houve equilíbrio. Em
algumas épocas, insistia-se mais na gratuidade e o povo caía num ri-
tualismo vazio. Em outras, insistia-se mais na observância e o povo
caía num legalismo exagerado. No tempo de Paulo, o acento caía na
observância, que já vinha marcando a vida do povo desde o tempo de
Esdras (398 a.C). Fariseu convicto, Paulo abraçou essa causa, certo de
que a observância da Lei era o único caminho para conquistar a justiça.
Foi esse ideal que animou a vida de Paulo até aos 28 anos de idade.
5. O momento de crise: o testemunho de Estêvão
Muito provavelmente, Estêvão e Paulo foram colegas de estudo.

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Mas Estêvão entrou na nova comunidade cristã, contra a qual Paulo se


posicionava. Para o fariseu de estrita observância que era Paulo, aderir
a Jesus, o galileu blasfemo, subversivo e justiçado, era uma traição
imperdoável, uma apostasia a tudo que era mais sagrado para ele. Eis
por que, no apedrejamento de Estêvão, estava presente como testemu-
nha (At 7,58) e aprovava a morte de Estêvão (At 8,1). Dali saiu com
uma verdadeira gana contra os cristãos, devastando a Igreja nascente
(At 8,3). Pensava estar prestando um serviço a Deus, em defesa das
“tradições paternas” (Gl 1,13-14). A sanha de Paulo contra os cristãos
mostra o impacto do testemunho patético de Estêvão na sua consciên-
cia. Como os extremos se tocam, Paulo estava no ponto de ser arreba-
tado por Jesus (Fl 3,12).

II. PERÍODO: DOS 28 AOS 41 ANOS DE IDADE O CONVER-


TIDO FERVOROSO

1. Queda na estrada de Damasco


Com 28 anos de idade, Paulo tinha poder e prestígio. Seu furor
contra os cristãos e cristãs levou-o a pedir ao Sumo Sacerdote creden-
ciais para perseguir a “nova seita” em Damasco da Síria, a mais de 200
quilômetros de distância (At 9,1-2; 26,9-12). Foi na viagem para Da-
masco que Paulo caiu e ouviu uma voz: “Saulo, Saulo, por que me
persegues?” (At 9,4). Ora, Paulo estava perseguindo os cristãos e as
cristãs com quem Jesus se identifica. Quando alguém muda radical-
mente de vida, costumamos dizer que “caiu do cavalo”. A Bíblia não
fala de cavalo, mas fala de queda, e a mudança foi radical. A Bíblia
usa algumas imagens para descrever o que aconteceu: duas de Lucas,
sugerindo a semelhança de Paulo com os profetas, e duas do próprio
Paulo, acentuando a reviravolta em sua vida:
a. Queda. Deus o derrubou (At 9,4; 22,7; 26,14). Paulo podia dizer
como Jeremias: “Dominaste-me e me derrubaste” (Jr 20,7).
b. Ofuscamento e cegueira, como aconteceu com Ezequiel (Ez
1,27-28).
c. Aborto. A imagem é do próprio Paulo: “Por último, Jesus apare-
ceu a mim que sou um abortivo” (1Cor 15,8). Seu nascimento para
Cristo não foi parto natural, mas algo inesperado e violento.

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d. Despojamento. “O que era para mim lucro eu tive como perda


por amor de Cristo” (Fl 3,8).
2. Ruptura e continuidade
Ruptura, sim, na direção do caminho: uma verdadeira reviravolta.
De perseguidor a discípulo. “A caça caçou o caçador”. Mas continui-
dade no zelo, no ardor, na busca da justiça. Aquilo que não tinha con-
seguido alcançar com seu esforço de fariseu rigidamente praticante,
foi-lhe oferecido de graça: a justificação (Rm 3,19-24). Deus, em
Cristo, irrompeu na sua vida quando era “blasfemo, perseguidor e in-
solente” (1Tm 1,3). Essa experiência da graça foi tão forte, tão ofus-
cante que Paulo ficou cego por três dias. A experiência da gratuidade
do amor de Deus vai dar novo rumo à vida de Paulo. Antes, ele pro-
curava alcançar Deus através da observância da Lei e da tradição dos
antigos: pensava só em si mesmo e em sua própria justificação. Agora,
sabendo-se justificado por Deus, pode consagrar-se ao serviço dos ou-
tros, na prática do amor “que é a plenitude da Lei” (Rm 13,10; Gl
5,14). Mudou para continuar sendo o mesmo, para ser fiel a Deus e a
seu povo. Cristão, não deixava de ser judeu. Ao contrário! Foi a fide-
lidade às esperanças do seu povo que o levou a reconhecer no judeu
Jesus o sim de Deus às promessas feitas no passado (2Cor 1,20).
3. A lenta maturação: “É Cristo que vive em mim” (Gl 2,20)
Aos 28 anos de idade, começa em Paulo o processo da lenta matu-
ração, pois a conversão não é algo súbito, mas um longo processo con-
tínuo. Lucas narra três vezes como se deu a mudança repentina na es-
trada de Damasco (At 9,1-19; 22,4-16; 26,9-18), mas nada informa
sobre a conversão prolongada que se estendeu até o fim de sua vida.
Muitas frases de Paulo são como sinais luminosos que pontilham essa
grande avenida que ele percorreu. Vejamos algumas:
“Ele me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). “Vivo, mas já não
sou eu que vivo: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
“Se morremos com Cristo, também viveremos com ele” (Rm 6,8).
“Completo na minha carne o que falta das tribulações de Cristo
pelo seu corpo que é a Igreja” (Cl 1,24).
“Quando me sinto fraco, aí é que sou forte” (2Cor 12,10).
“Nada nos poderá separar do amor de Deus” (Rm 8,35).
“Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na Cruz de Nosso

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Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e
eu para o mundo” (Gl 6,14).
“Eu trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6,15).
“Ficai sempre alegres, orai sem cessar” (1Ts 5,16-17).
Clarão especial no tesouro que Paulo nos deixou tem o hino ao
amor:
“O amor é paciente
O amor é prestativo
Não é invejoso, não se ostenta
Não se incha de orgulho
Nada faz de inconveniente
Não procura seu próprio interesse
Não se irrita, não guarda rancor
Não se alegra com a injustiça, mas sim com a verdade
Tudo desculpa, tudo crê
Tudo espera, tudo suporta
O amor jamais passará
Agora permanecem a fé, a esperança e o amor. Estas três coisas a
maior delas, porém, é o amor” (1Cor 13,4-8.13).
4. Uma nova fonte de espiritualidade: beber no próprio poço
A experiência de Jesus, Paulo a viveu pela mediação de pessoas
bem concretas: Estêvão (At 7,55-60), Ananias (At 9,17), Barnabé (At
9,27; 11,25; 13,2; 1Cor 9,6), Priscila e Áquila (At 18,2.18;Rm 16,3;
1Cor 16,19), Lídia (At 16,14-15.40), Pedro, Tiago e João (Gl 2,9), Ti-
móteo (Rm 16,21; 1Ts 3,2-6; 1Cor 16,10; 1Tm 1,2), Eunice e Loide
(2Tm 1,5), a diaconisa Febe (Rm 16,1) e tantas outras pessoas com
quem conviveu nas suas andanças. Espiritualidade é, antes de tudo,
experimentar o Deus Tri-Uno e cada uma das três pessoas distintas na
comunidade, na luta, na própria vida. Quando Paulo, por exemplo, es-
crevia: “Pelo batismo fomos sepultados com Cristo na morte” (Rm
6,3), deve ter pensado bem concretamente no apedrejamento de que
foi vítima em Listra (At 14,19); na prisão pior que a morte sofrida em
Éfeso (2Cor 1,8-9; 1Cor 15,32); na flagelação em Filipos (At 16,22-
23) e assim por diante. A espiritualidade não passa pelos distantes fios
da alta tensão, mas pelos fios da rede doméstica, embutidos na parede
das experiências humanas: amizade, ajuda, solidariedade, luta, confli-
tos, sofrimento, tensões, amor...

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5. Os lugares por onde Paulo andou durante o segundo período


As informações geográficas desses 13 anos, além de poucas, são
incertas. Depois da queda, cego, Paulo é amparado pelos companhei-
ros e entra em Damasco, onde, acolhido por Ananias, é curado da ce-
gueira e batizado (At 9,8-18). Sua fama de perseguidor já o precedera
e, nas sinagogas, era esperado como um verdadeiro flagelo dos cris-
tãos e cristãs, oficialmente credenciado pelos chefes dos sacerdotes.
Pode-se imaginar a decepção e o transtorno dos seus compatriotas ao
vê-lo na posição oposta: cristão e anunciando Jesus fogosamente. Isso
era insuportável para eles, e sua reação só podia ser de tentar eliminá-
lo. O jeito era fugir (At 9,20-25). Foi para a Arábia, voltou a Damasco
e, depois de três anos, subiu a Jerusalém para se encontrar com Pedro,
durante 15 dias (Gl 1,18), e depois seguiu para as regiões da Síria e da
Cilícia (Gl 1,21). Segundo o livro dos Atos, em Jerusalém, Paulo foi
recebido com muita desconfiança e Barnabé o apadrinhou (At 9,27).
Apesar de ele mesmo ser helenista, foram justamente os helenistas que
resistiram e “projetaram a sua ruína” (At 9,29), o que forçou os irmãos
a retirá-lo para Cesareia e, daí, para Tarso, sua terra, na Cilícia (At
9,30). Alguns anos depois, Barnabé o chamou para trabalhar em Anti-
oquia, onde judeus e gentios, convertidos ao Evangelho, viviam em
harmonia e começaram a ser chamados de “cristãos” (At 11,25-26).
Barnabé e Paulo vão levar às comunidades de Jerusalém, que estavam
passando necessidade, uma coleta de esmolas das comunidades de An-
tioquia (At 11,27-30). Depois regressam.
Antes de decolar, o avião esquenta os motores, vai para a cabeceira
da pista e dá a partida, pegando velocidade para poder alçar-se no ar.
Esse segundo período foi como a pista que Paulo percorreu para deco-
lar como o grande missionário, que deixou o aeroporto do judaísmo
para voar pela amplidão da gentilidade.

III. PERÍODO: DOS 41 ANOS AOS 53 ANOS O MISSIONÁRIO


ITINERANTE

“Certo dia, enquanto celebravam o culto do Senhor e jejua-vam,


disse o Espírito Santo: ‘Separai-me Barnabé e Saulo para a obra a que
os destinei.’ Então, depois de terem jejuado e orado, lhes impuseram
as mãos e despediram-nos” (At 13,2-3). Foi em Antioquia, e Paulo já

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devia ser quarentão. Em At 13,9, explica-se que “Saulo também se


chama Paulo” isto é, o mesmo nome na forma latina. Daí em diante,
só é usado o nome de Paulo, que passa a ocupar o primeiro plano: não
é mais o auxiliar de Barnabé, mas o verdadeiro chefe da missão.
Como são muitos e variados os assuntos deste terceiro período, va-
mos organizá-los em seis subdivisões: 1 - Como Paulo viajava; 2 -
Visão geral das viagens missionárias; 3 - Paulo e o trabalho manual; 4
- O Evangelho e os gentios; 5 - Conflito com o Império Romano; 6 -
Paulo e as mulheres.
1. Como Paulo viajava
Foram três grandes viagens missionárias. A primeira começou pelo
ano 46 e a terceira terminou pelo ano 58. “Fiz muitas viagens. Sofri
perigos nos rios, perigo por parte dos ladrões, perigo por parte de meus
irmãos de raça, perigo por parte dos gentios, perigos na cidade, perigos
no deserto, perigos no mar, perigos por parte dos falsos irmãos” (2Cor
11,26). “Três vezes fui flagelado. Uma vez apedrejado. Três vezes
naufraguei. Passei um dia e uma noite em alto mar” (2Cor 11,25). Vi-
ajar naquele tempo era difícil. Por terra, tinha de ser a pé ou no lombo
de animal ou de carroça por estradas infames. Por mar, tinha de ser em
barco a vela ou a remo. Durante mais de dez anos, Paulo assim pere-
grinou pelas grandes cidades do Império: Antioquia, Atenas, Corinto,
Éfeso...
Paulo nunca viajava só, mas sempre acompanhado. Fez a primeira
viagem com Barnabé e João Marcos (At 13,3-5). A segunda com Silas,
a quem vieram juntar-se Timóteo (At 15,1-3) e Lucas, pois, de repente,
no livro dos Atos que escreveu, ele passa a falar “nós” e assim conti-
nua (cf. At 16,11). Mais para o fim da viagem, vários outros entraram
na caravana, inclusive o casal Priscila e Áquila (At 18,18). Na terceira,
havia muita gente (At 19,22; 20,4-5; 21,16).
O problema da comunicação era muito sério, pois era grande a va-
riedade de línguas e dialetos. Paulo falava o grego, porque nascera em
Tarso; o hebraico, a língua das Escrituras, porque estudara em Jerusa-
lém; o aramaico, que era a língua falada pelo povo depois do cativeiro;
provavelmente o latim, a língua do Império. No entanto, a comunica-
ção não se faz só através da língua. O corpo humano é uma verdadeira

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caixa de comunicação através do gesto, do olhar, do tom da voz, da


postura, etc. Mas comunicar uma mensagem sem o recurso da língua
não é fácil. Por uma alusão da Carta aos Gálatas (Gl 3,1), parece que
Paulo usava o desenho. Em Listra, porque Paulo e Barnabé não conhe-
ciam a língua, criou-se toda uma confusão, que foi preciso desfazer
provavelmente através de intérpretes (At 14,11-18).
Para agüentar o tranco, Paulo devia ter uma boa saúde. Durante a
segunda viagem, na região da Galácia, caiu doente e foi obrigado a
fazer uma parada que aproveitou para anunciar o Evangelho e fundar
a comunidade dos Gálatas (Gl 4,13).
Paulo não tinha recursos próprios nem patrocinadores para as via-
gens. O jeito era ir fazendo biscate no caminho para prover o sustento
próprio e da comitiva (At 20,33-34).
Os ramos de certas plantas rasteiras vão-se esparramando e criando
raízes. Por onde passava, Paulo lançava raízes, isto é, laços daquela
fraternidade típica do Evangelho, que depois cultivava através de men-
sageiros (cf. Cl 4,1; 1Cor 1,11; 16,12.17-18; 1Ts 3,2-6) e, a partir da
segunda viagem, através de cartas que deviam ser lidas nas reuniões
da comunidade (1Ts 5,27) e trocadas entre as comunidades (Cl 4,16).
Paulo escreveu muitas cartas. Nem todas foram conservadas. Na
Primeira Carta aos Coríntios é mencionada uma carta anterior (1Cor
5,9) e, na segunda, Paulo alude a uma carta severa, “escrita entre lá-
grimas” (2Cor 2,3-4.9; 7,8.12). Na Carta aos Colossenses, fala de uma
carta escrita para a comunidade de Laodiceia, que não foi conservada
(Cl 4,16). As cartas são a grande herança que Paulo nos deixou!
2. Visão geral das viagens missionárias
1a viagem (mais ou menos de 46 a 48)
O ponto de partida é Antioquia na Síria (At 13,1-3). De lá, Paulo e
Barnabé vão de navio até Salamina, na ilha de Chipre (At 13,4-5).
Atravessam a ilha e param em Pafos: conflito com o mago Elimas (At
13,6-12). Embarcam para Perge, na Panfília, onde João Marcos desiste
da viagem, voltando para Jerusalém (At 13,13). Sobem até Antioquia
da Pisídia, onde Paulo faz um discurso aos judeus. Depois ele e Bar-
nabé se dirigem aos gentios, provocando uma violenta reação dos

CEBI - Paulo e suas cartas


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judeus, que os expulsam do território (At 13,14-52). Seguem para Icô-


nio, na Licaônia: conflito com os judeus (At 14,1-5). Chegam a Listra,
onde o conflito é tão violento que Paulo é apedrejado (At 14,6-20),
mas sobrevive. Alcançam Derbe, ponto final da viagem (At 14,20). Na
volta, passam por Derbe, Listra, Icônio e Antioquia da Pisídia (At
14,21-23). Fazem uma parada em Perge e, passando por Atália (At
14,24-25), embarcam para Antioquia da Síria, de onde tinham partido
(At 14,26-28).
Dá-se um intervalo em que Paulo e Barnabé sobem a Jerusalém,
onde é decidido o grave problema dos gentios que aderem ao Evange-
lho no chamado Concilio de Jerusalém (At 15,3-22).
2a viagem (mais ou menos de 49 a 52)
O ponto de partida é Antioquia na Síria. Desentendendo-se com
Barnabé, Paulo parte com Silas (At 15,36-40). Percorrem Síria e Cilí-
cia, confirmando as comunidades (At 15,41). Passam por Derbe e Lis-
tra, onde convidam Timóteo a ir com eles (At 16,1-5). Entram na Frí-
gia; o Espírito Santo os impede de ir à Ásia, então passam pela Galácia
(At 16,6) e, impedidos de seguir até Bitínia, seguem para Mísia e
Trôade (At 16,7-8). Aí parece que Lucas já está na comitiva. Aten-
dendo a um apelo feito numa visão a Paulo, vão para Filipos, na Ma-
cedônia. Contra o seu costume, Paulo aceita hospedar-se na casa de
Lídia. Por causa da cura de uma jovem, Paulo e Silas são flagelados,
presos e libertados miraculosamente (At 16,9-40). Seguem para Tes-
salônica: conflito (At 17,1-9). Escapam para Beréia, onde há novo
conflito (At 17,10-14). Paulo é escoltado até Atenas, onde faz um dis-
curso no Areópago, esbarrando no ceticismo dos atenienses (At 17,15-
34). De lá, viaja para Corinto, onde fica 18 meses (At 18,1-18). De
Corinto embarca para Éfeso, onde promete voltar (At 18,19-21). De
Éfeso, embarca para Cesareia e Jerusalém, “a Igreja” (At 18,22), de
onde volta para Antioquia na Síria (At 18,22).
3a viagem (mais ou menos de 53 a 58)
O ponto de partida é sempre Antioquia na Síria (At 18,23). Percorre
a Galácia e a Frígia, confirmando as comunidades (At 18,23). Depois
segue até Éfeso, onde fica três anos: revolta incentivada pelos ourives
(At 19,1-40). Paulo vai em direção à Macedônia (At 20,1). Desce para

CEBI - Paulo e suas cartas


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Corinto, onde fica três meses (At 20,2-3). Ameaçado de morte, refu-
gia-se em Trôade (At 20,13-16). De Trôade viajam para Mileto, em
dois grupos (At 20,13-16). Em Mileto, recebe os coordenadores de
Éfeso e lhes faz um discurso (At 20,5-38). Segue de navio até Tiro, na
Síria (At 21,1-6). Continua até Cesareia, passando por Ptolemaida,
sempre visitando as comunidades por onde passa (At 21,7-14). Sobe
até Jerusalém, onde é preso na praça do templo (At 21,15-36).
É a terceira grande viagem missionária que está registrada no livro
dos Atos. Na primeira viagem, Paulo não sai da Ásia. Vai de cidade
em cidade, anuncia o Evangelho, cria comunidades e vai em frente.
Na segunda viagem, vai além das fronteiras da Ásia, anunciando o
Evangelho, criando comunidades, mas já fica mais tempo num mesmo
lugar: um ano e seis meses em Corinto (At 18,11). Na terceira viagem,
vai direto para Éfeso e lá se fixa por três anos (At 20,31; cf. 19,10) e
mais três meses em Corinto (At 20,3).
O método de evangelização vai-se aprimorando. A primeira via-
gem é a da semeadura do Evangelho. À segunda é também de semea-
dura mais ampla e também de cultivo: Paulo se detém mais em Corinto
e começa a escrever cartas. Na terceira, consolida polos de irradiação
da Palavra. Assim ele se revela um hábil articulador e coordenador.
3. Paulo e o trabalho manual
Antigamente se distinguiam duas espécies de trabalho: o trabalho
“liberal”, feito com a cabeça, e o trabalho “servir’ 0u manual, feito com
as mãos. O primeiro era o dos cidadãos livres e o segundo era o dos
escravos. A conversão tirou Paulo de uma situação em que devia de-
dicar-se ao trabalho liberal, como administrador de uma fábrica ou
professor, para a situação em que fazia questão de trabalhar “com as
próprias mãos”, executando o trabalho servil (1Cor 4,12). Ele reco-
nhecia aos companheiros o direito de ter sua manutenção garantida
pela comunidade (1Cor 9,6-14), direito que era seu também (1Cor
9,4), apoiando-se na própria Escritura (1Cor 9,9; 1Tm 5,18; cf. Dt
25,4). Mas fazia questão de anunciar o Evangelho de graça (1Cor
9,18; 2Cor 11,7), sem onerar a comunidade (2Cor 11,9; 12,13-14; 1Ts
2,9; 2Ts 3,8). Fazia disto uma questão de honra, um “título de glória”
(1Cor 9,5).

CEBI - Paulo e suas cartas


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Por que Paulo fazia questão de manter-se trabalhando com as pró-


prias mãos? A grande massa urbana era de pessoas que trabalhavam
com as próprias mãos. Foi no meio delas que surgiram as primeiras
comunidades cristãs (cf. 1Cor 1,26; 2Cor 8,1-2). Mas o ideal grego era
o de uma vida mansa que só comportasse o trabalho liberal. Paulo ti-
nha todas as condições para viver esse ideal. Trabalhar com as próprias
mãos, isto é, viver do trabalho servil, significava romper radicalmente
com a ideologia dominante e abrir caminho para um novo ideal de
vida.
Na Primeira Carta aos Tessalonicenses, Paulo escreve: “Que seja
para vocês uma questão de honra viver em paz, ocupando-se das suas
próprias coisas e trabalhando com as próprias mãos, conforme reco-
mendamos. Assim vocês levarão uma vida honrada aos olhos dos es-
tranhos e não passarão mais necessidade de coisa alguma” (1Ts 4,11-
12). Ao escrever, Paulo está em Corinto, fabricando tendas, isto é, tra-
balhando com as próprias mãos juntamente com Áquila e Priscila (cf.
At 18,3). Este é o novo ideal que Paulo propõe.
Na sua vida de retirante e biscateiro, Paulo trabalhava “de noite e
de dia”, para não depender dos outros (1Ts 2,9; 2Ts 3,8). Cansa-se
(1Cor 4,12), faz horas extra nas vigílias (2Cor 6,5; 11,27) e, mesmo
assim, passa necessidade (2Cor 11,9), pois fala de fome e nudez (2Cor
11,27), vivendo como indigente (2Cor 6,10).
Paulo fez uma opção pelos pobres tão radical que adotou o estilo
de vida dos pobres. E esse testemunho de vida ele invoca como exem-
plo a ser imitado (2Ts 3,7-10). Foi trabalhando com as próprias mãos
que ele se tomou um exemplo vivo e ajudou o povo das comunidades
a perceber onde estava a fonte da verdadeira “vida honrada” (1Ts 4,11-
12), numa sociedade em que trabalhadores e escravos eram despreza-
dos e espezinhados.
Infelizmente esse testemunho de Paulo foi esquecido. A imagem
que se tem de Paulo é mais a de um “intelectual” do que a de um “tra-
balhador”. Trata-se de uma verdadeira deformação para a qual concor-
reu a chamada arte sacra. Nas imagens e quadros, Paulo nunca é apre-
sentado como trabalhador manual. No entanto, conhecer e ter presente
a condição do autor de um escrito é indispensável para a compreensão
do próprio escrito. Talvez nossa leitura das cartas de Paulo possa

CEBI - Paulo e suas cartas


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enriquecer-se muito se não perdermos de vista que Paulo foi “um tra-
balhador que anunciou o Evangelho”.
4. O Evangelho e os gentios
No início, o Evangelho foi anunciado só ao povo judeu na Pales-
tina. Mas a perseguição liderada por Paulo foi como uma bomba que
fez a comunidade cristã explodir (At 8,1), e seus estilhaços foram pro-
jetados até a Fenícia, Chipre e Antioquia. Em Antioquia, terceira ci-
dade do Império depois de Roma e Alexandria, o Evangelho foi anun-
ciado também à população grega, isto é, aos gentios (At 11,19-20). A
Igreja de Jerusalém soube da notícia e, como se sentia responsável
pelo Evangelho, enviou Barnabé para ver o que estava acontecendo
(At 11,22). Barnabé gostou do que viu e foi chamar Paulo em Tarso
para ajudá-lo (At 11,22-26).
Jesus é nome próprio. Cristo (ungido) é título. Em Antioquia, o tí-
tulo prevaleceu sobre o nome próprio e quem se convertia ao Evange-
lho era chamado cristão ou cristã: “Pela primeira vez os discípulos re-
ceberam o nome de cristãos” (At 11,26). Receberam uma identidade
própria. Era uma novidade que se alastrou pelo mundo sobretudo a
partir das viagens de Paulo.
Era natural que, para as comunidades cristãs da Palestina, o Evan-
gelho fosse a seqüência normal do judaísmo e assim, para chegar ao
Evangelho, seria necessário passar pelo caminho da Lei judaica. Era
natural que eles quisessem exigir dos gentios que se submetessem à
Lei judaica. Daí o drama de Pedro, quando foi chamado para atender
a um gentio, o centurião Cornélio, e a resistência da comunidade de
Jerusalém, acusando-o de cumplicidade com os “incircuncisos” (At
10-11,18).
Aqui, valemo-nos do que escreve Sebastião Armando: “De re-
pente, foi como se um relâmpago cortasse os céus. Paulo assume o
apostolado e revela à Igreja novos horizontes de sua tarefa missionária
e nova estratégia pastoral. Os gentios não têm de esperar o final dos
tempos para participarem da herança de Israel, como os profetas e toda
a tradição pensavam. Não. Os gentios já podem ter acesso às promes-
sas desde agora.”
“Os gentios têm acesso direto às promessas de Deus mediante a fé

CEBI - Paulo e suas cartas


17

e não por se submeterem às prescrições da Lei (cf. Rm 3,21-24). Paulo


estava convencido de que o judaísmo era algo bom, excelente mesmo
e querido por Deus (Rm 3,1ss.), mas era a caminhada de um determi-
nado povo, o conjunto de seus valores peculiares, sua cultura. A Boa
Nova, o Evangelho estava para além disso e podia perfeitamente en-
carnar-se em outras culturas. O gentio podia ser discípulo de Jesus
conservando, diríamos hoje, sua identidade cultural própria. Poderia
até comer carnes imoladas aos ídolos (‘os ídolos nada são!’), se isso
não causasse escândalo e repugnância aos irmãos judeus e não repre-
sentasse perigosa tentação de voltar atrás (cf. 1Cor 8-10). Que ousa-
dia!” (Sebastião Armando G. Soares, Reler Paulo, Série A Palavra na
Vida, n. 79/80, 1994, p. 12-13).
5. Conflito com o Império
A atitude de Paulo, um intelectual formado na alta escola de Jeru-
salém, tornando-se trabalhador manual, já significa uma contestação
radical às estruturas do Império Romano. Um cidadão romano assumir
a condição de escravo e, nisso, apresentar-se como exemplo a ser se-
guido representava uma subversão da ordem. Embora o livro dos Atos
procure atenuar o conflito com o Império, não consegue escamoteá-
lo.
Paulo sofreu muitas perseguições desde sua conversão até entregar
a vida como mártir do cristianismo. Várias vezes e em diversos luga-
res, as instituições do Império e outros meios de pressão foram mobi-
lizados contra ele.
O livro dos Atos informa onde e como aconteceram várias perse-
guições. Em Damasco, vigiam as portas da cidade para matá-lo (At
9,23-24). Em Jerusalém, os helenistas querem tirar-lhe a vida (At
9,29). Em Chipre, o mago Elimas procura afastar o cônsul de Paulo
(At 13,8). Em Antioquia da Pisídia, mulheres da alta sociedade e os
chefes da cidade são instigados contra ele (At 13,50). Em Icônio, é
vítima de uma conspiração de judeus e gentios, tramada em comum
acordo com os chefes da cidade (At 14,5). Em Listra, os judeus insti-
gam a multidão contra ele (At 14,19). Em Filipos, a multidão leva os
estrategos da cidade a torturá-lo (At 16,22). Em Tessalônica, indiví-
duos perversos conseguem reunir uma assembleia do povo contra ele
(At 17,5-9). Em Beréia, os judeus mobilizam o povo contra ele (At

CEBI - Paulo e suas cartas


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17,13). Em Corinto, Paulo é levado ao tribunal (At 18,2). Em Éfeso,


contra ele, os ourives amotinam toda a cidade (At 19,23-40). Em Je-
rusalém, a multidão amotinada na praça do templo avança sobre ele
para matá-lo (At 21,27-30). Ele mesmo informa: “Dos judeus recebi
cinco vezes os 40 golpes menos um. Fui flagelado três vezes; uma vez,
fui apedrejado” (2Cor 11,25).
O conflito entre Paulo e o Império está muito bem focalizado na
“meditação” de Sebastião Armando: Palavra da cruz X ideologia, da
qual transcrevemos o seguinte trecho: “Nas cidades helenistas só têm
valor os homens livres. E a liberdade, a dignidade, a sabedoria e até a
virtude se assentam nas posses, na riqueza. Só uma pequena elite tem
dignidade reconhecida e merece respeito. A sociedade se organiza e
se estrutura pelas ‘casas’, ou seja, pelas famílias importantes. A glória
do escravo consiste em pertencer a um senhor de projeção. Os libertos
e as pessoas pobres só têm dignidade reconhecida na medida em que
são ‘clientes’, agregados ou apadrinhados de alguém mais poderoso.
Ora, nas comunidades (paulinas) está-se fazendo uma experiência
desconhecida: ‘Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre,
não há homem nem mulher, pois todos são um só em Cristo Jesus’ (Gl
3,28). ‘Não há mais grego ou judeu, circunciso ou incircunciso, bár-
baro, cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo em todos’ (Cl 3,11). Senhor
e escravo são agora irmãos, é a mensagem a Filemon. ‘A mulher é
inseparável do homem e o homem da mulher diante do Senhor’ (1Cor
11,11) e ambos devem agora estar ‘submissos um ao outro no temor
de Cristo’ (Ef 5,21). A dignidade de cada pessoa provém unicamente
de sua pertença a Cristo (cf. Rm 7,4; Gl 6,1-5). Por isso, torna-se até
possível, apesar de todas as dificuldades, reunir ricos e pobres em
tomo da mesma mesa (cf. 1Cor 11,17-34). O reconhecimento da ver-
dade de si mesmo - ser pecador e pertencer só a Cristo - leva as pessoas
a um novo comportamento ético, buscando ‘nada fazer por competição
ou vangloria, mas com humildade, julgando cada um os outros supe-
riores a si mesmo, nem cuidando cada um só do que é seu, mas tam-
bém do que é dos outros, tendo o mesmo sentir como convém a quem
está em Cristo Jesus’ (Fl 2,3-5). E as pessoas podem chegar até a co-
ragem de romper com seu próprio ambiente social e cultural, enfren-
tando por isso inclusive violentas perseguições (cf. 1Ts 1,4-10)” (Se-
bastião Armando G. Soares, Palavra da cruz X ideologia, Série A

CEBI - Paulo e suas cartas


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Palavra na Vida, n. 99, 1996, p. 16).


6. Paulo e as mulheres
É verdade que ninguém pode escapar a condicionamentos internos
e externos: raça, temperamento, educação, lugar, tempo, cultura, etc.
Lembramos isso quando falamos de Jesus no volume VIL Não é pre-
ciso dizer que Paulo era um homem do seu tempo, marcado pelo pa-
triarcalismo de uma sociedade em que a mulher era relegada a uma
condição de inferioridade. Mas problema ainda maior é a leitura que
tem sido feita dos textos da Bíblia, instrumentalizando-os para acen-
tuar ainda mais a dominação do homem sobre a mulher.
Vamos olhar rapidamente os textos que são mencionados como an-
tifeministas nas cartas de Paulo:
1. 1Cor 11,12-16: A mulher foi criada para o homem, que é a ca-
beça do casal. Por isso, ela deve orar ou profetizar de cabeça coberta.
Devia estar havendo grande confusão na comunidade. O Evange-
lho declarava a igualdade de homens e mulheres, e as mulheres parece
que estavam levando isso a sério mesmo. O resultado é que ninguém
se entendia. Paulo quer ajudar a restabelecer a paz. Por isso vai buscar
na Bíblia um argumento que poderia ser decisivo. Acha-o na interpre-
tação tradicional de Gn 2: a mulher foi criada para o homem, ele é seu
chefe (cabeça). Mas logo percebe que esse argumento é perigoso, pois
pode esvaziar o Evangelho. E nesse ponto dá marcha-a-ré: “A mulher
é inseparável do homem e o homem da mulher, diante do Senhor” (v.
11). Além do mais, a experiência diz que é “o homem que nasce da
mulher” (v. 12). Por isso, conclui: o véu não é uma questão doutrinai,
dogmática, bíblica, não é uma questão de princípios, é só costume.
2. 1Cor 14,34-35: Nas reuniões da comunidade a mulher deve ficar
calada. Se quiser perguntar alguma coisa, pergunte ao marido em casa.
É difícil que escreva isso (“deve ficar calada”) quem acabou de es-
crever 4’ore e profetize com a cabeça coberta” (11,5). Ou se trata de
um texto acrescentado posteriormente, em fase mais conservadora da
Igreja (cf. 1Tm 2,9-11), ou Paulo está justamente criticando homens
que pensam dessa maneira. Os vv. 34-35 poderiam ser muito bem as
palavras desses homens, citadas por Paulo para rebatê-las logo em

CEBI - Paulo e suas cartas


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seguida: “Porventura a palavra de Deus tem seu ponto de partida em


vós? Ou fostes vós os únicos que a recebestes?” (v. 36).
3. Ef 5,21-24: A mulher deve estar sujeita ao marido, pois o homem
é a cabeça da mulher como Cristo é a cabeça da Igreja.
Primeiro, esta carta pode até já ser posterior a Paulo, fruto da refle-
xão da Igreja no ambiente de discípulos ou seguidores seus. De qual-
quer modo, não se deve esquecer a frase que domina e dá a luz a todo
o trecho que segue: “Sede submissos uns aos outros, no temor de
Cristo”. Além disso, a recomendação feita às mulheres é bem curta,
dos vv. 22-24. Inversamente, a admoestação endereçada aos maridos
é bem longa. Os homens é que estão tendo dificuldades de adotar a
atitude de Cristo, de entregar-se como escravos, dando sua própria
vida por suas mulheres. De fato, Ef 5,21-6,9 parece ser uma ampliação
exortativa de Col 3,18-4,1. Ou seja, a palavra aos homens é muito mais
radical no sentido da submissão e do serviço. Assim, ambos se igua-
lam pela submissão recíproca, que é na verdade submissão a Cristo.
4. 1Tm 2,9-15: As mulheres sejam discretas no vestuário. Durante
a instrução, fique a mulher submissa e silenciosa. Não pode ensinar
nem dominar o homem porque Adão foi criado primeiro e foi Eva
quem o seduziu. A mulher será salva pela maternidade.
Esta carta certamente não é de Paulo. Foi escrita depois de sua
morte, em período quando a Igreja estava muito preocupada com a
organização e a ordem, e tendia a adotar em sua instituição modelos
tradicionais de família e de sociedade, inclusive pela confusão que as
dissensões e as heresias estavam causando no seio das comunidades.
Além de podermos compreender os textos de Paulo dessa outra ma-
neira, onde não se acha nada que possa ser identificado como antife-
minista, há alusões muito claras a mulheres que foram lideranças im-
portantes nas comunidades e até equiparadas aos próprios apóstolos,
pelo trabalho de evangelização na “equipe pastoral” de Paulo:
1. “Recomendo a você Febe, nossa irmã, diaconisa da comunidade
de Cencréia. Ela tem ajudado muita gente e a mim também” (Rm 16,1-
2).
2. “Lembranças a Priscila e Áquila, meus colaboradores em Jesus

CEBI - Paulo e suas cartas


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Cristo, que arriscaram a própria cabeça para salvar minha vida’’ (Rm
16,13). Note-se que o nome de Priscila vem antes de Áquila.
3. “Lembranças a Maria, que trabalhou muito por vocês” (Rm
16,6).
4. “Lembranças a Adrônico e Júnia, meus parentes e companheiros
de prisão, apóstolos importantes” (Rm 16,7).
5. “Lembranças a Trifena e Trifosa” e à “querida Persida”, que se
afadigaram muito no Senhor (Rm 16,12).
6. “Lembranças a Rufo e sua mãe, que é minha também” (Rm
16,17).
7. “Lembranças a Filólogo e Júlia, a Nereu e sua irmã e a Olimpas”
(Rm 16,15).
Em Laodiceia, a comunidade à qual Paulo escreveu uma carta que
se perdeu reunia-se na casa de Ninfa (Col 4,15). Em Filipos, onde não
havia sinagoga, Paulo se encontra no sábado com um grupo de mulhe-
res às margens do rio e, contra o costume, aceita o convite de Lídia
para hospedar-se em sua casa (At 16,13-15). Ainda contra seu cos-
tume, é da comunidade de Filipos, nascida dessas mulheres, a única
de que aceita ajuda (Fl 4,10-18).
Se Paulo tivesse qualquer preconceito contra a mulher, não reivin-
dicaria com tanto vigor seu direito à companhia feminina no exercício
de sua missão (1Cor 9,5).
Para descrever seu trabalho nas comunidades, Paulo usa imagens
maternas e femininas. Na Primeira Carta aos Tessalonicenses:
“Apresentamo-nos no meio de vós cheios de bondade, qual mãe
que acaricia os seus filhinhos” (1Ts 2,7). Na Carta aos Gálatas: “Meus
filhos por quem eu sofro de novo as dores do parto até que Cristo seja
formado em vós” (Gl 4,19). Na Primeira Carta aos Coríntios: “Dei-
vos a beber leite, não alimento sólido, pois não o podíeis suportar
(1Cor 3,2). Na Carta aos Filipenses: “Deus me é testemunha de que
vos amo a todos com a ternura de Cristo Jesus” (Fl 1,8). Na Carta aos
Romanos, compara o processo de renovação fecundado pelo Evange-
lho a uma gravidez: “Sabemos que a criação inteira geme e sofre as

CEBI - Paulo e suas cartas


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dores do parto até o presente. E não somente ela, mas também nós,
que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente suspi-
rando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8,22-23).
A exclusão da mulher na liturgia e no ministério ordenado (hierár-
quico), que, felizmente, está sendo superada nas igrejas, não é da res-
ponsabilidade de Paulo mas de toda uma herança cultural da qual nós
mesmos somos tributários. O certo é que, nas comunidades fundadas
por Paulo, as mulheres tiveram a oportunidade de exercer um papel
muito mais importante e muito mais central do que nas igrejas de hoje.

IV. PERÍODO: DOS 53 ANOS ATÉ A MORTE O PRISIONEIRO


E O ORGANIZADOR

No fim da terceira viagem, chegando a Jerusalém, Paulo participou


de uma reunião na casa de Tiago, com os líderes da comunidade. Con-
tou o que Deus tinha feito entre os gentios e como eles glorificavam a
Deus por isso (At 21,17-20). Mas avisaram a Paulo que, entre os nu-
merosos judeus convertidos ao Evangelho, corriam boatos contra ele
no sentido de levar os judeus da diáspora a desprezarem a Lei de Moi-
sés e abandonarem as práticas tradicionais. Como quatro homens iam
cumprir um voto no templo, aconselharam-no a se juntar a eles e pro-
var que continuava fiel à observância da Lei, desfazendo assim os bo-
atos (At 21,21-24). Paulo aceitou a proposta. O voto tinha a duração
de sete dias, sem sair do templo. Já no final, os judeus da Ásia o des-
cobriram e o arrastaram para fora do templo, sublevando o povo contra
ele, querendo liquidá-lo, como tinha acontecido com Estêvão 25 anos
antes. Assim começou o quarto período da vida de Paulo. Durante qua-
tro anos vai amargar a prisão. É a hora de olhar para trás e fazer um
balanço.
1. Paulo, o homem da transição
Durante os 13 anos de sua vida itinerante, os problemas enfrenta-
dos por Paulo relacionam-se com o processo de transição do Evange-
lho:
1. do mundo judaico para o mundo grego;
2. do mundo rural para o mundo urbano;

CEBI - Paulo e suas cartas


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3. de uma Igreja fechada só de judeus convertidos para uma Igreja


aberta aos gentios;
4. da liderança dos Apóstolos em Jerusalém para lideranças de ou-
tras regiões, sobretudo de Antioquia;
5. da herança litúrgica, doutrinária e disciplinar elaborada dentro
do judaísmo para novas comunidades fora do judaísmo;
6. de uma religião ligada a determinado povo para uma religião
universal.
Foi um novo Êxodo! Quando Paulo foi preso na praça do templo,
essa transição estava em andamento. A sua prisão foi uma reação dos
conservadores contra a mudança.
2. O que Paulo aprendeu da prática
No confronto com os judeus - Paulo nunca negou nem desconside-
rou a eleição especial do seu povo. Mas aprendeu a vê-la não como
um privilégio, e sim como um serviço à humanidade. Entendeu o al-
cance único da missão do povo judeu no conjunto da história da sal-
vação da humanidade. O que Deus operou no povo de Israel é a amos-
tra do seu plano para a história dos outros povos. Os livros foram es-
critos “para nosso ensinamento” (Rm 15,4), “para nos servir de exem-
plo” (1Cor 10,16), e, inspirados por Deus, são úteis “para instruir,
para refutar, para corrigir, para educar na justiça” (2Tm 3,16).
No confronto com os gentios - Paulo descobriu e aprofundou “o
mistério oculto desde os séculos em Deus, criador de todas as coisas”
(Ef 3,9), isto é, “Deus nos escolheu antes de criar o mundo para que
sejamos santos e sem defeito diante dele, no amor” (Ef 1,4). “Ele criou
tudo em Cristo, por Cristo e para Cristo” (Cl 1,15-16). Das 18 vezes
que a palavra “mistério” aparece no Novo Testamento, 14 vezes é nas
cartas de Paulo. O plano universal e gracioso da salvação, que estava
como encoberto por um véu (cf. 2Cor 3,14-15), é desvendado total-
mente: “Em Jesus Cristo, por meio do Evangelho, os gentios são cha-
mados a participar da mesma herança, a formar o mesmo corpo e a
participar da mesma promessa” (Ef 4,6).
No confronto com seus adversários - Paulo aprendeu a conviver
com a Cruz. ‘ ‘É daí que parte o Apóstolo Paulo. Seu anúncio central

CEBI - Paulo e suas cartas


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é o mesmo: Cristo morreu crucificado por nossos pecados (cf. Rm 5,8;


6,5-6; Fl 2,7-8). E em tomo da Cruz faz girar sua reflexão (1Cor 2,2;
Gl 6,14). É pela ‘Palavra da Cruz’ que se anuncia o Evangelho e se
nos comunica sua energia de salvação” (Sebastião Armando G. Soa-
res, op. cit., p. 7).
No confronto consigo mesmo - Às vezes se tem a impressão de que
a conversão de Paulo foi repentina, radical, total e instantânea. Na es-
trada de Damasco, morre o Paulo perseguidor e ressuscita transfor-
mado no Paulo cristão, depois de três dias de cegueira (At 9,8-9). Mas
toda conversão é um longo e difícil processo. Muda a direção do ca-
minho, mudam os polos, mas a pessoa continua a mesma. Traz em si
tudo o que foi introjetado no período anterior. A construção do edifício
novo é simultânea com o desmonte do edifício antigo. Paulo viveu
dolorosamente esse processo de metamorfose, como podemos perce-
ber na Carta aos Romanos: “Eu me comprazo na Lei de Deus segundo
o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros que peleja
contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que
existe em meus membros” (Rm 7,22-23).
3. As cartas de Paulo
Na Bíblia constam 14 cartas atribuídas a Paulo. A opinião dos es-
tudiosos é que nem todas são da autoria dele. Algumas foram escritas
por discípulos.
1. É praticamente certo que a Carta aos Hebreus não é de Paulo,
pois o estilo é completamente diferente. O próprio gênero literário é
de sermão, não de carta.
2. É bem possível que as Cartas a Timóteo e a Carta a Tito sejam
de algum discípulo, pois refletem a problemática das comunidades
mais para o fim do século I. Isso não diminui o valor das informações
históricas, por exemplo, sobre a família de Timóteo (2Tm 1,5), sobre
as viagens de Paulo (2Tm 1,17; 4,13-20) ou sobre sua segunda prisão
em Roma (2Tm 1,8.16-17; 2,9).
3. Existem dúvidas em relação a outras cartas, como a Segunda
Carta aos Tessalonicenses, a Carta aos Colossenses e uma ou outra
mais, como, por exemplo, a Carta aos Efésios.

CEBI - Paulo e suas cartas


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As assim chamadas “cartas da prisão” foram escritas quando Paulo


estava preso, e ele mesmo o confessa no texto. São elas: Filipenses (Fl
1,13), Filemon (Fm 1.9.13) e talvez a Carta aos Efésios (Ef 3,1). Mui-
tos são de opinião de que Paulo as escreveu quando estava preso em
Éfeso, durante a terceira viagem (1Cor 15,32; 2Cor 1,8-9).
As cartas da prisão refletem o esforço de Paulo para confrontar o
Evangelho com a cultura grega. As Cartas aos Romanos e aos Gálatas
refletem o esforço para confrontar o Evangelho com o judaísmo. As
duas Cartas aos Coríntios refletem o esforço para encarnar o Evange-
lho nos problemas bem concretos da vida das comunidades nas peri-
ferias das grandes cidades.
4. Paulo prisioneiro
Paulo já tinha entrado nos 50 anos quando foi preso na praça do
templo. Durante mais de dez anos, incansavelmente semeara o Evan-
gelho nas cidades do Império e cuidara zelosamente da grande seara
das comunidades, procurando sempre fazer-se presente em visitas,
através de mensageiros e/ou de cartas, para ajudá-las a resolver os pro-
blemas e adubá-las com a mensagem do Evangelho, cuja doutrina ia
elaborando sob a inspiração do Espírito Santo.
Seu tempo de prisão não foi seguro e tranqüilo. Uma conspiração
de seus inimigos levou o tribuno Cláudio Lísias a transferi-lo, sob forte
guarda, de Jerusalém para Cesareia (At 23,12-34). Era uma espécie de
prisão preventiva cujo prazo máximo, dois anos, se esgotou, mas
Paulo continuou preso (At 24,27). Os inimigos de Paulo pressionaram
o novo governador Festo para transferi-lo de Cesareia para Jerusalém,
preparando uma emboscada para matá-lo no trajeto (At 25,3). Foi
quando, pressentindo a trama, Paulo valeu-se de sua condição de ci-
dadão romano, apelou para César, isto é, para ser julgado em Roma
(At 25,12). A viagem para Roma foi cheia de aventura e durou mais
de três meses (At 28,11). A última informação certa que temos é que,
em Roma, ele ficou preso dois anos inteiros (At 28,30).
Libertado, por falta de julgamento e sentença condenatória, ele
deve ter vivido mais uns cinco ou seis anos, até a nova prisão que o
levou à morte. Pouco sabemos o que ele fez nesses anos, entre as duas
prisões. Esteve em Éfeso, onde deixou Timóteo como

CEBI - Paulo e suas cartas


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coordenador(1Tm 1,3). Passou pela Macedônia(1Tm 1,3), por


Trôade (2Tm 4,13) e Mileto. Manifestou o desejo de ir encontrar Ti-
móteo em Éfeso(1Tm 3,4). Na Carta aos Romanos, manifestara o de-
sejo de ir à Espanha (Rm 15,28). Não sabemos se chegou a realizar
esse desejo.
5. A morte de Paulo
Paulo é preso novamente e conduzido para Roma. É o período da
perseguição de Nero. Arma-se a tempestade. Na primeira prisão, havia
gente para recebê-lo em Roma (At 28,15). Nesta segunda, não havia
ninguém (2Tm 1,15; 4,16). O ambiente é outro. A opinião pública é
contrária. Paulo prevê sua condenação e sente que o fim se aproxima:
“Combati o bom combate, terminei a minha carreira, conservei a fé”
(2Tm 4,7).
Não sabemos como foi a última prisão de Paulo nem como foram
o julgamento, a condenação e a morte. A tradição conserva a história
de que, sendo cidadão romano, foi condenado a morrer pela espada,
fora dos muros de Roma. Degolado, sua cabeça rolou e pulou três ve-
zes. Onde bateu no solo, brotou uma fonte. Então o lugar recebeu o
nome de “Tre Fontane”, Três Fontes! Toda a teologia de Paulo está
centrada na graça. E toda a sua vida foi uma ilustração do que pode
operar a graça na vida de uma pessoa. “Quando sou fraco, aí é que sou
forte. Não eu, mas a graça de Deus em mim. E a sua graça em mim
não foi estéril” (2Cor 12,10; 1Cor 15,10). Das 164 vezes em que a
palavra “graça” ocorre no Novo Testamento, 104 vezes está nas cartas
de Paulo. Das 58 vezes em que a expressão “ação de graças” ocorre,
42 vezes está nas cartas de Paulo.
Tinha mais ou menos 62 anos de idade quando selou com seu san-
gue o testemunho em favor do Evangelho. Viveu intensamente. Foi ao
mesmo tempo o arquiteto, o mestre de obras e o operário padrão dos
alicerces da Igreja. Sobre a morte, sempre presente na sua luta pelo
Evangelho, escreveu aos amigos da comunidade de Filipos: “Para
mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas se eu ainda continuar
vivendo, poderei ainda fazer um trabalho útil. Por isso, não sei bem o
que escolher. Fico na indecisão: meu desejo é partir desta vida e estar
com Cristo e isso me é muito melhor. No entanto, por causa de vocês,
é mais necessário que eu continue a viver” (Fl 1,21-24). A espada do

CEBI - Paulo e suas cartas


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carrasco romano resolveu a indecisão de Paulo. Rompeu o véu que


ocultava o mistério. Quebrou o enigma do espelho e o levou à contem-
plação face a face (1Cor 13,12), fazendo-o experimentar plenamente
“Deus tudo em todos” (1Cor 15,18).
Chaves para a leitura das Cartas de Paulo
Ao ler as cartas de Paulo, convém ter bem vivas na lembrança al-
gumas coisas que talvez nos ajudem a entendê-las melhor:
1. Quando Paulo escreveu, não estava solitário, no conforto de um
escritório, num ambiente propício à elaboração do pensamento. Paulo
estava talvez num albergue, na companhia de seus colaboradores, en-
tre uma jornada de trabalho e outra. Por isso, o seu estilo não é o de
uma torrente que flui tranqüila, mas antes o de uma cachoeira impetu-
osa. Aliás, ele ia ditando para outro escrever e provavelmente discutia
antes os assuntos com seus companheiros.
2. As cartas de Paulo não brotam apenas da necessidade de comu-
nicar-se com os amigos e cultivar a amizade. Elas refletem a luta de
alguém que tinha de zelar pelas comunidades por ele fundadas e que
estavam expostas a muitos perigos e ameaças. Daí o seu estilo muitas
vezes polêmico e belicoso. Paulo não se compraz em aprofundar o
Evangelho e explorar as suas riquezas para seu proveito pessoal, mas
usa o Evangelho como uma arma para resguardar e defender suas co-
munidades.
3. Mais do que os Apóstolos, Paulo conhecia profundamente o An-
tigo Testamento. O seu relacionamento com Jesus não foi propria-
mente o de um discípulo que escuta o Mestre. Eis por que, nas cartas,
ele não se limita a transmitir o que ouviu, mas elabora uma doutrina
própria, inspirada por sua fé em Jesus e embasada no conhecimento
que tinha da Escritura. Pode-se dizer que ele não “conviveu” com Je-
sus, mas “viveu” Jesus, reinterpretando sua mensagem essencialmente
rural para o meio urbano, homem da cidade que era. Neste sentido, sua
experiência está ao nosso alcance.
4. Devemos considerar-nos destinatários das cartas de Paulo não
individualmente, mas comunitariamente. Isto quer dizer que as desco-
bertas feitas, a partir da leitura, devem ser colocadas em comum. Além
disso, sempre devemos estar atentos aos problemas da comunidade,

CEBI - Paulo e suas cartas


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aos problemas do povo, para que a luz da Palavra os ilumine e possa-


mos tomar as atitudes ditadas pelo Evangelho com a mesma coragem
de Paulo no seu tempo.
5. Fundamental é que tenhamos uma postura de docilidade ao Es-
pírito e de serviço, de tal modo que possamos desenvolver aquela 4’so-
licitude por todas as Igrejas” (2Cor 11,28) de que Paulo podia falar
com a boca cheia.
Desse modo, as cartas de Paulo serão para nós o que as Escrituras
foram para ele: “Inspiradas por Deus e úteis para ensinar, para refutar,
para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja perfeito, preparado para toda boa obra” (2Tm 16,17). E como ele,
nelas encontraremos consolação e esperança, “pois tudo o que foi es-
crito antes de nós foi escrito para nossa instrução, para que, em virtude
da perseverança e consolação que as Escrituras nos dão, conservemos
a esperança” (Rm 15,4).
(Esta introdução é praticamente um resumo do livro de Carlos Mes-
ters: Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o Evangelho, Ed.
Paulinas, 1991.)

CEBI - Paulo e suas cartas


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Carta aos Romanos

Introdução

Existem muitos tipos de carta. Carta pessoal a um amigo, carta ofi-


cial a uma entidade, cartas circulares, cartas em jornais e revistas, uma
infinidade de formas e fórmulas de cartas. As autoridades costumam
também escrever cartas à população. Assim é que as autoridades ecle-
siásticas usam o canal da carta para se comunicar com seus fiéis e dar-
lhes orientações. A Carta aos Romanos pertence a essa categoria.
Paulo escreve aos romanos um longo texto doutrinário, fruto da expe-
riência e reflexão. Com esse escrito, Paulo surge como o primeiro dos
teólogos cristãos.
1. A SITUAÇÃO QUE LEVOU À CARTA
Paulo escreveu a Carta aos Romanos quando estava em Corinto,
pronto para ir a Jerusalém, levando a coleta feita pelas igrejas da Gré-
cia em favor da comunidade de Jerusalém. Isso ocorreu por volta dos
anos 55/57 (Rm 15,22-29). Isto quer dizer que a Carta aos Romanos
não é a primeira, mas uma das últimas cartas que Paulo escreveu. Ela
vem em primeiro lugar nas Bíblias porque é a mais extensa e a ordem
seguida foi a ordem da extensão. Assim é que a Carta a Filemon vem
em último lugar, porque é a mais breve, mas não foi a última que Paulo
escreveu.
Paulo nunca tinha ido a Roma. Mas pelas saudações finais (Rm
16,21-23) parece que conhecia bastante gente de lá. Sua meta era che-
gar até a Espanha e fazer uma escala em Roma (Rm 15,23-24). Com a
carta, ele queria preparar o terreno. Mas por que escrever uma carta
tão longa e com tantos temas doutrinários?
Em Roma, devia haver uma importante colônia de judeus. Segundo
o livro dos Atos, “três dias depois de chegar em Roma, ele convocou
os líderes dos judeus” (At 28,17). Ora, depois da conversão, o relaci-
onamento de Paulo com seus compatriotas judeus, mesmo os que ti-
nham aderido ao Evangelho, era muito conflituoso. Ele era visto como
um renegado do judaísmo e da fé dos antigos, que induzia todos a
abandonarem a observância da Lei (cf. At 21,21). Essa acusação

CEBI - Paulo e suas cartas


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forçosamente levou Paulo a aprofundar a reflexão sobre a ação gratuita


de Deus, em contraposição com a observância da Lei, como caminho
da salvação. A parte principal da carta (Rm 1,18-11,36) é uma elabo-
ração doutrinária independente, que parece não ter endereço a esta ou
àquela comunidade, por ser universal. Vem colocada numa carta, até
certo ponto impessoal, porque dirigida a uma comunidade que Paulo
nem tinha fundado nem tinha visitado ainda.
O mesmo problema já tinha sido abordado na Carta aos Gálatas.
Mas aí já era terreno conhecido, Paulo sabia quem tinha de enfrentar
e se mostrou muito mais impulsivo, como se estivesse lutando. Agora
retoma os ensinamentos da Carta aos Gálatas, explicando-os e comen-
tando-os com mais amplidão, profundidade e tranqüilidade. Compa-
rando-se, por exemplo, Gl 5,12-21 com Rm 8,5-13, nota-se que o pen-
samento é o mesmo, mas em Rm está mais claro e ameno.
A carta não é só de ensinamentos e doutrina teológica. Nela encon-
tramos também uma série de exortações que mostram o quanto Paulo
estava por dentro dos problemas da comunidade de Roma.
2. DIVISÃO DA CARTA
Podemos dividir a Carta aos Romanos em quatro partes: 1) intro-
dução (Rm 1,1-15); 2) parte doutrinária (Rm 1,16-11,36); 3) parte
exortativa (Rm 12,1-15,13); 4) saudações e louvor final (Rm 15,14-
16,27).

1. INTRODUÇÃO 1,1-15
• Saudação 1,1-7
• ação de graças 1,8-15
2. PARTE DOUTRINÁRIA 1,16-11,36
• enunciado do assunto 1,16-17
• a revelação da ‘ ‘justiça de Deus” 1,18-4,25
• a vida nova dos “justificados pela fé” 5,1-8,39
• a situação de Israel 9,1-11,36
3. PARTE EXORTATIVA 12,1-15,13
• culto espiritual e comunhão fraterna 12,1-21
• submissão à autoridade civil 13,1-7
• o amor na vida cristã 13,8-14

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• o respeito ao próximo 14,1-15,13


4. SAUDAÇÕES E LOUVOR FINAL 15,14-16,27
• Paulo defende seu ministério 15,14-21
• projeto de futuras viagens 15,22-33
• recomendações a pessoas conhecidas 16,1-16
• advertências 16,17-20
• saudações dos companheiros de Paulo 16,21-23(24)
• glorificação final 16,25-27
3. TEMAS DA CARTA
A Carta aos Romanos apresenta o pensamento amadurecido de
Paulo sempre palpitante de atualidade. Foi por ela que começaram os
exegetas da Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). O teólogo calvi-
nista Casalis, que fazia parte da equipe, observava que as divergências
entre eles nunca provinham de sua presença confessional, mas da cos-
movisão: católicos romanos e protestantes de várias igrejas se aliavam
ou divergiam não conforme seu ‘‘credo”, mas conforme o modo de
ver o mundo. A atualidade de Paulo, sobretudo da Carta aos Romanos,
é que levou o CEBI a escolhê-la como tema da primeira Semana de
Estudos em 1980. Igualmente inspirou a bela reflexão de Sebastião
Armando G. Soares: Reler Paulo - desafio à Igreja, 1994, em que
mostra que ela foi a plataforma de onde decolaram dois grandes reno-
vadores da Igreja: Agostinho e Lutero.
Alguns temas fundamentais da Carta aos Romanos podem ajudar-
nos na sua leitura: pecado que está na carne, que está nos membros e
que lhe tolhe os impulsos para o bem (Rm 7,14-26). A justificação é
literalmente uma libertação que vem da força da graça e da fé em
Cristo: “O homem é justificado pela fé” (Rm 3,28). Esta é a Boa Nova
para os judeus, escravos da Lei, para os gentios, escravos da carne, e
sobretudo para os pobres, escravos da discriminação social. O tema da
justificação percorre toda Carta aos Romanos. O dilema fé X obras é
um falso dilema.
Vivendo num mundo religiosamente pluralista, em que a maioria
não segue a fé cristã, seria preciso ampliar os horizontes ecumênicos.
É num ímpeto ecumênico que Paulo se proclama “apóstolo dos gen-
tios” (Rm 11,13). Tradicionalmente se falava de “batismo de desejo”

CEBI - Paulo e suas cartas


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ou da ação da graça nas pessoas que não tinham possibilidade de crer


em Jesus Cristo. Anos atrás, os teólogos falavam de “cristãos anôni-
mos”. Evidentemente a justificação abrange também a quem não tem
a fé explícita em Jesus Cristo, mas, na sua atitude, manifesta a vida
nova no Espírito.
4. Israel no mistério da salvação
Esse tema vem nos capítulos 9 a 11, como se formasse um bloco
independente dentro da carta. Paulo se mostra um pouco atônito pelo
fato de seus irmãos na fé terem recusado Jesus Cristo, crucificando-o
(Rm 9,1-5). Identifica o verdadeiro Israel nos descendentes legítimos
de Abraão, isto é, nos herdeiros da verdadeira fé de Abraão (Rm 9,6-
13). Eles recebem de Deus a misericórdia, porque Deus é misericordi-
oso com quem lhe agrada (Rm 9,14-29). Os gentios também recebem
essa misericórdia, mas chegam ao conhecimento de Deus graças à fé
que veio de Israel (Rm 9,30-10,13). Se Israel não aceitou o Evangelho,
isto não significa que tenha sido rejeitado por Deus (Rm 10,14-11,10).
Pelo contrário, os gentios são chamados para que Israel desperte e tam-
bém possa acolher a salvação, ressuscitando para o Reino (Rm 11,11-
15). Os gentios não podem desprezar Israel porque ele é e sempre será
a raiz histórica da qual os gentios, como um enxerto, recebem a seiva
(Rm 11,16-36).
5. Releitura do Antigo Testamento
A expressão “Antigo Testamento” vem de Paulo (2Cor 3,14), de-
signando a Escritura, patrimônio do seu povo. Paulo era helenista e os
helenistas tinham uma leitura diferente da leitura dos hebreus da Pa-
lestina. Apesar de ter estudado em Jerusalém, aos pés de Gamaliel (At
22,3), aprendendo as normas e regras de interpretação das escolas ra-
bínicas, Paulo lê o Antigo Testamento de uma maneira*toda própria,
a partir de sua conversão, de sua experiência pessoal no meio das co-
munidades originadas de sua pregação entre os gentios e a partir das
cidades e da cultura greco-romana, bem diferentes das aldeias da Pa-
lestina. Basta ver os exemplos que tira dos jogos próprios das cidades
gregas (1Cor 9,24-25; Fl 3,12-14).
6. Paulo e a vida comunitária
Paulo, trabalhador braçal, gosta muito de comparar a comunidade

CEBI - Paulo e suas cartas


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ao corpo humano, imagem extraordinária de harmonia, de variedade e


de dinamismo (Rm 12,4-5). O sangue que circula nas artérias desse
corpo é o amor (Rm 15,8-10). Do capítulo 12 ao capítulo 15,13, as
recomendações para uma vida comunitária forte e sadia, alegre e vi-
brante vão jorrando como a água impetuosa de uma cascata, por cima
dos problemas que normalmente podiam ocorrer nas comunidades que
congregavam pessoas de origem, cultura e formação tão diferentes.
ROTEIRO 1

As dores do parto da nova humanidade

Palavra-chave: GERAÇÃO
Texto de estudo: Rm 8,18-39
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Carta aos Romanos.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.

CEBI - Paulo e suas cartas


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I. Partir da realidade
Engravidar e parir são duas experiências exclusivamente femini-
nas, de que muitos machos têm inveja. A gravidez é uma maravilhosa
experiência de fé, que, segundo a Carta aos Hebreus, é “a posse ante-
cipada do que se espera” (Hb 11,1). O parto é uma extraordinária ex-
periência de libertação assim como, para os pais, o nascimento é uma
experiência de “parusia”, isto é, de presença de chegada. No Apoca-
lipse uma das imagens mais eloquentes da luta e da vitória contra o
dragão é a mulher nas dores do parto (Ap 12,2). É a essa instigante
imagem que Paulo recorre, dando-lhe uma amplidão de universalidade
para, de certo modo, definir o “tempo da Igreja”. Poderíamos também
dizer que define a crise que a humanidade está vivendo em nossos dias
e, muito especialmente, estão vivendo as Igrejas e os pobres de toda a
terra.
1. Que sinais nos indicam a gestação de uma nova humanidade?
2. As promessas de Deus continuam válidas para nós hoje? Por
quê?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Rm 8,18-39
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Neste capítulo 8 está o eixo da Carta aos Romanos. Na vida do
Espírito (8,1-13), somos filhos e herdeiros (8,14-17) e podemos espe-
rar o mundo novo (8,18-27), que é o projeto de Deus em realização
(8,28-30), e nada nos impedirá de viver com Deus (8,31-39).
a. Observar quantas vezes aparece a palavra “Espírito” e qual o seu
significado.
b. Desmembrar o texto conforme as principais ideias nele articula-
das.

CEBI - Paulo e suas cartas


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2.2. Olhar a situação da comunidade


Este texto pertence à parte doutrinária da carta. Portanto, não
aborda os problemas concretos. Mas esses problemas existem e são
contemplados no conjunto da carta.
a. Quais os principais problemas que transparecem?
b. Por que a parte final do texto tem um tom de desafio?
2.3. Escutar a mensagem do texto
É difícil ler este texto sem ter diante dos olhos a realidade do
mundo de hoje. Talvez nunca a fé em Jesus Cristo tenha sido tão de-
safiada.
a. Quais as afirmações mais vibrantes da atualidade?
b. Que atitudes essas afirmações exigem?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o Sl 111.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos Rm 16,1-24.
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 1

Quem nos separará?

O AMOR DE DEUS NO COTIDIANO DA VIDA


Em para-choques de caminhões, aparece às vezes esta frase: “Se
Deus é por nós, quem será contra nós?” Ela vem da Carta aos Romanos
(Rm 8,31), que, por sua vez, vem da fé do povo do Antigo Testamento
em YHWH, que prometeu solenemente: “Eu estarei contigo” (Ex

CEBI - Paulo e suas cartas


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3,11). Foi a redescoberta dessa fé antiga e sempre nova que revoluci-


onou a vida de Paulo. Antes, ele procurava aproximar-se de Deus e
sentir a sua presença na estrita observância da Lei de Moisés. Mas teve
de confessar sua incapacidade (Rm 7,14-23). Angustiado, desabafa:
“Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rm 7,24).
Foi a experiência do amor gratuito de Deus que o libertou dessa an-
gústia: “Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo, Nosso Senhor!”
(Rm 7,24). Agora pode aproximar-se de Deus e sentir a sua presença,
não por ter observado a Lei, mas porque o próprio Deus tomou a ini-
ciativa de aproximar-se dele e atraí-lo: “O amor de Deus foi derramado
em nossos corações pelo Espírito que nos foi dado” (Rm 5,5). Paulo
experimentou o que o profeta Oséias anunciava: “Eu te atraí com laços
de bondade, com cordas de amor” (Os 11,24).
Essa experiência invadiu todas as dimensões da vida de Paulo: ca-
beça, coração, vontade, mãos, pés. E ele começou a olhar tudo a partir
dessa experiência: a vida, a história, a Lei, as pessoas, o trabalho, a
luta, o dia-a-dia da caminhada, a missão, o próprio Deus. A experiên-
cia do amor de Deus está na raiz de tudo: “Se Deus é por nós, quem
será contra nós?”
O CAPÍTULO 8 DA CARTA AOS ROMANOS
No capítulo 7, Paulo descreve seu sentimento de incapacidade. No
fim, relata como alcançou a libertação após longa e dolorosa cami-
nhada. No capítulo 8, tenta expressar algo da nova experiência do que
Deus nele realizou pela mediação de Jesus Cristo. O capítulo 8 é como
a represa onde desemboca o que precede (Rm 1-7) e de onde deságua
o que segue (Rm 9-16). Vejamos de perto o seu conteúdo.
8,1-4: Lei do Espírito e lei da carne. Antes, a Lei condenava Paulo
como transgressor e pecador, pois ele se sentia incapaz de observá-la.
Agora, sem mérito algum de sua parte, é libertado do pecado e da
Lei, pois, por meio do Espírito de Jesus, Deus entrou em sua vida e
lhe deu a certeza de ser por ele acolhido e alcançar a justiça.
8,5-13: Vida segundo o Espírito e segundo a carne. Antes, Paulo
vivia na morte, sem condições de agradar a Deus. Agora, pelo Espírito
de Jesus que lhe foi dado, ressuscita e passa a viver uma vida nova.
Passou da morte para a vida!

CEBI - Paulo e suas cartas


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8,14-30: Os efeitos da vida nova no Espírito são vários:


14-17 - O novo relacionamento com Deus confere uma nova cons-
ciência de filho de Deus, que de JUIZ que cobra a Lei passa a ser PAI
que acolhe com carinho.
18-25 - A nova vida é semente de nova humanidade. Faz olhar a
história como um processo de gravidez com dores de parto, que en-
volve toda a criação e tem nascimento garantido.
26-27 - O Espírito de Jesus suscita uma nova oração, uma nova
espiritualidade. É ele quem ora em nós e nos faz pedir o que convém
a nós e ao projeto de Deus.
28-30 - O novo futuro já está garantido e para ele tudo contribuiu,
até mesmo as contrariedades da vida: ‘Tudo concorre para o bem dos
que amam a Deus” (Rm 8,26).
8,31-39: A supremacia do amor. Num final de rara beleza, Paulo
tira as conclusões: “Depois disto, que nos resta dizer? Se Deus é por
nós, quem estará contra nós?” (8,31). “Quem nos separará do amor de
Cristo?” (8,35). Esta é a convicção mais profunda de Paulo. Ele enu-
mera tudo aquilo que aparentemente seria abandono por parte de Deus:
“Tubulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada” (Rm
8,35). Nada disso tem força. A enumeração continua: “Morte e vida,
anjos e principados, presente e futuro, poderes e forças das alturas e
das profundezas”. E para não deixar nenhuma dúvida, acrescenta:
“nem qualquer criatura”. Nada, absolutamente nada, “nos poderá se-
parar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, Nosso Senhor!”
(Rm 8,31-39).
Eis a raiz da liberdade! Livre diante de qualquer poder deste
mundo! Livre para servir e se doar. Livre para ver tudo com um novo
olhar, sabendo-se construtor de uma nova humanidade. Essa convic-
ção de fé penetra tudo: a oração (Rm 8,26), a consciência (Rm 8,16),
a visão da história (Rm 8,18-25), a vida comunitária (Rm 13,8-10), o
cotidiano (Rm 14,1-15). Até mesmo as contrariedades da vida, que
dificultam a caminhada e parecem contrariar o plano de Deus, são in-
tegradas nessa nova visão (Rm 8,28.35).

CEBI - Paulo e suas cartas


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A VIDA DE PAULO É IMPREGNADA DE AMOR


O amor impregna tudo que Paulo vive e faz. Assim, na longa refle-
xão que segue (Rm 9,11), esse amor transparece no relacionamento de
Paulo com seus irmãos de raça, os judeus. Ele chega a dizer que está
disposto a “ser amaldiçoado e separado de Cristo em favor de meus
irmãos de raça e sangue, os israelitas” (Rm 9,3).
Depois descreve como a experiência do amor de Deus pode reno-
var a vida comunitária (Rm 12-15).
“Que o amor de vocês seja sem hipocrisia: detestem o mal, ape-
guem-se ao bem. No amor fraterno, sejam carinhosos uns com os ou-
tros, rivalizando na mútua estima. Quanto ao zelo, não sejam pregui-
çosos: sejam fervorosos de espírito, servindo ao Senhor. Sejam alegres
na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração. Sejam
solidários com os cristãos nas suas necessidades e se aperfeiçoem na
prática da solidariedade” (Rm 12,9-13).
“Não fiquem devendo nada a ninguém a não ser o amor mútuo.
Pois quem ama o próximo, cumpriu plenamente a Lei, De fato, os
mandamentos: não cometa adultério, não mate, não roube, não cobice
e todos os outros se resumem nesta sentença: Ame a seu próximo como
a si mesmo. O amor não pratica o mal contra o próximo, pois o amor
é o pleno cumprimento da Lei’’ (Rm 13,8-10).
“Acolham o fraco na fé sem lhe criticar os escrúpulos. Quem é você
para criticar um empregado alheio? Se ele fica de pé ou se cai, isso é
lá com o patrão dele. Mas ele ficará de pé! Pois o Senhor é poderoso
para o sustentar. Nenhum de nós vive para si mesmo nem morre para
si mesmo. Se vivemos, é para o Senhor que vivemos. Se morremos, é
para o Senhor que morremos. Quer vivamos, quer morramos, perten-
cemos ao Senhor” (Rm 14,1.4.7.8).
Para Paulo, o amor é algo muito concreto que deve fluir normal-
mente no comportamento das pessoas. Mas a fonte de onde ele jorra é
o amor de Cristo: “Ele me amou e se entregou por mim!” (Gl 2,20).
Paulo vê Jesus como o Goel, o parente mais próximo que, de acordo
com a Lei (Lv 25,25-55), pagou o resgate para tirá-lo da escravidão e
restabelecê-lo nos seus direitos. Por causa de Cristo, Paulo rompeu
com o “mundo”, com a ideologia dominante e se considera como um

CEBI - Paulo e suas cartas


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“crucificado para o mundo” e o mundo como 4 ‘crucificado’’ para ele


(Gl 6,14).’ ‘Vivo, mas já não sou eu. É Cristo que vive em mim!” (Gl
2,20). Paulo já não se pertence. Tudo nele pertence a Cristo e é mol-
dado pelo amor de Cristo.
ROTEIRO 2

Retrato de uma comunidade

Palavra-chave: INTERCÂMBIO
Texto de estudo: Rm 16,1-24
Partilha inicial
1. Partilhar as descobertas feitas a partir do último encontro.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
Dizem que o nosso século é o século da comunicação pelo extraor-
dinário progresso nesse setor. Para Lucas, que, no livro dos Atos,

CEBI - Paulo e suas cartas


40

procurou seguir os caminhos da Palavra, Paulo foi o campeão da co-


municação. Através dele, o Evangelho se propagou pelas cidades do
Império Romano, saindo de Jerusalém, atravessando a Judéia e a Sa-
maria e chegando até aos confins do mundo (At 1,8). E a comunicação
continua sendo a grande preocupação das Igrejas. Talvez uma das pa-
lavras mais usadas hoje seja “intercâmbio”. Intercâmbio de todo tipo:
de comércio, de ciência, de descobertas, de experiências, de tudo. Em-
bora a palavra talvez nem existisse naquele tempo, Paulo foi um
grande promotor de intercâmbio entre as comunidades cristãs, através
de viagens, de mensageiros e de cartas. O final da Carta aos Romanos
é uma amostra da sua preocupação com intercâmbio com as pessoas
que conhecera nas suas andanças e deviam estar em Roma, e não se
esquece de citar também os seus colaboradores para intercambiar.
1. Qual a importância ecumênica do intercâmbio entre as igrejas?
2. Não será o intercâmbio das diferenças o caminho para a unidade?
I. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Rm 16,1-24
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Intercambiar impressões sobre o texto.
2. Estudo do texto
2.1. Ler o texto de perto
Antes das saudações, Paulo comunica seus planos de viagens até a
Espanha, fazendo uma escala em Roma. Era natural que avisasse as
pessoas conhecidas.
a. Quais os tipos de relacionamento de Paulo com as pessoas cita-
das?
b. Qual o clima que Paulo pretende criar com essa atenção com as
pessoas?
2.2. Olhar para a situação da comunidade
Parece que a diaconisa Febe é a portadora da carta. Através das
saudações, temos uma fotografia da Igreja de Roma.

CEBI - Paulo e suas cartas


41

a. Quais os títulos ou méritos que Paulo atribui às pessoas?. Qual é


a situação das mulheres na comunidade de Roma, de acordo com esta
carta? Aparece alguma discriminação?
2.3. Escutar a mensagem do texto
Neste texto, mais uma vez se percebe que Jesus Cristo é o próprio
núcleo da vida de Paulo.
a. Como Jesus aparece na carta e na vida das pessoas?
b. Como fazer para Jesus ocupar o centro de nossas vidas, de nossas
relações e de nossas comunidades?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar os Salmos 133 e 134.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos 1Cor 1,17-2,9.
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 2

IGREJA DA CASA

Sabemos que a Igreja cristã começou em casas de família. “Dia


após dia, unânimes, frequentavam assiduamente o templo e partiam o
pão pelas casas” (At 2,46). “Eles se mostravam assíduos ao ensina-
mento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às ora-
ções” (At 2,42). Paulo, depois da conversão, continuava fiel às práticas
da religião judaica. Nas cidades por onde passava, sempre ia à sina-
goga no sábado e foi preso justamente quando cumpria um voto no
templo de Jerusalém. No entanto, chamava de “Igreja” as comunida-
des cristãs que se reuniam nas casas. Essa palavra “Igreja” ocorre 62
vezes nas suas cartas.

CEBI - Paulo e suas cartas


42

Igreja, no latim Ecclesia, vem do grego Ekklesia e designava a as-


sembleia dos cidadãos livres. É significativo que Paulo escolha essa
palavra para designar a reunião da comunidade cristã. Como escreve
Sebastião Armando: “A comunidade forma-se como ekklesia (assem-
bleia) daquelas pessoas que não têm lugar na assembleia dos cidadãos
da cidade greco-romana. Não se pode atribuir a simples acaso o fato
de Paulo ter escolhido justamente essa palavra para designar a nova
solidariedade cristã, a palavra que designava a solidariedade pública e
política dos homens livres da cidade. Há, a partir de agora, uma as-
sembleia alternativa de pessoas novas, renascidas para uma nova li-
berdade de cidadãos (cf. Ef 2,19; Gl 4-5) (Palavra da cruz X ideologia,
Série A Palavra na Vida, São Leopoldo: CEBI, n. 99, 1996, p. 18).
A casa é muito importante na vida das pessoas e na organização da
sociedade. Quando a mulher e o homem querem consagrar e perpetuar
o seu amor, casam-se. Como diz o povo: “Quem casa quer casa.” Casa
é a moradia da família. E a família costuma ser definida como a “cé-
lula-mater da sociedade”.
No Antigo Testamento, a casa era muito valorizada, embora tradu-
zisse um conceito mais amplo do que o nosso, pois significava mais o
clã. O clã é a grande família patriarcal, abrangendo toda a parentela,
portanto várias unidades domésticas. Era no espaço da casa que se re-
alizava a vida política, econômica, social e religiosa. Mais tarde, com
a monarquia, esse modelo típico do regime tribal sofreu abalos, mas
resistiu de maneiras diversas.
Quando Deus se revela a Moisés, revela-se como o Deus da casa:
“Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus
de Jacó” (Ex 3,6).
Mas aparece também, no Antigo Testamento, a assembleia, qahal,
para a qual o povo era convocado, como em Siquém. No final, Josué,
o sucessor de Moisés, conclama o povo a renovar a Aliança e termina
protestando a sua fidelidade: “Quanto a mim e à minha casa, servire-
mos a YHWH” (Js 24,15).
Se a palavra ekklesia designa a assembleia em grego, a palavra que
designa a casa é oikos, da qual deriva, na nossa língua, o prefixo eco,
como explica Sebastião Armando: “Insistimos em falar do mundo

CEBI - Paulo e suas cartas


43

como casa (oikos = eco). Ora, casa é o lugar de aconchego, de segu-


rança e bem-estar, de reunião de família. O âmbito do trabalho e da
produção, nós o designamos como economia, isto é, regulamentação
da casa. E dizemos que essa lei não pode ser estabelecida arbitraria-
mente, não pode submeter-se aos interesses só de alguns, pois há uma
lógica da casa a respeitar: a ecologia. Finalmente dizemos que o
mundo é a casa onde todas as pessoas têm o direito a permanecer: na
Antiguidade chamava-se ao mundo habitado de oikoumêne (ecu-
mene). Ora, esta palavra deriva do verbo grego oikeo, quer dizer, resi-
dir na casa, habitar. Ecumenismo é o reconhecimento de que todas as
pessoas e todos os povos têm direito de estar no mundo como em sua
própria casa” (Um só Senhor, Série A Palavra na Vida, São Leopoldo:
CEBI, n. 104, 1996, p. 7).
A CASA NA EXPERIÊNCIA DE JESUS
Tudo indica que, dos 33 anos de sua existência, Jesus viveu 30 em
casa. Não sabemos como, mas provavelmente como qualquer outro
habitante de Nazaré, uma aldeia da zona rural da Galiléia. Os anos de
pregação, ele os viveu como missionário itinerante, viajando de um
vilarejo para outro. Acompanhavam-no várias pessoas, homens e mu-
lheres. E é de se supor que ele e seu grupo se hospedassem em casas
de amigos. Quando enviou seus discípulos em missão, Jesus aconse-
lhou-os a ficarem nas casas que os acolhessem até saírem do lugar (Mt
10,11). A quem renuncia à casa e à família para segui-lo, ele promete
em recompensa o cêntuplo e a vida eterna na casa de Deus (Mc 10,29-
30). E apresenta Deus como o Pai em cuja casa “há muitas moradas”
(Jo 14,2).
A CASA NO EVANGELHO DE MARCOS
Jesus evangeliza tendo a casa como ponto de apoio, como prova-
velmente era o costume dos missionários itinerantes. Em Cafarnaum,
ao saber que ele estava em casa, a multidão acorre (cf. Mc 2,1-2; 3,20).
Enquanto estava numa casa, a sua família natural foi procurá-lo (cf.
Mc 3,21.31-34). A casa é também um dos lugares de formação dos
discípulos (Mc 7,17; 9,28). Especialmente significativo foi o fato de
Jesus ter celebrado a Última Ceia numa casa, “numa grande sala mo-
biliada e pronta” (Mc 14,15). Em Marcos, a casa é também o lugar da
aparição, do mandato e da ascensão de Jesus ressuscitado (cf. Mc

CEBI - Paulo e suas cartas


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16,14-20). A “casa” de Jesus, sua família, é formada pelas pessoas que


fazem a vontade de Deus (cf. Mc 3,34).
A CASA EM LUCAS: EVANGELHO E ATOS
No “evangelho da infância”, casa e templo aparecem em destaque.
No templo, João Batista foi anunciado (Lc 1,5-22). No templo, Jesus
foi apresentado e reconhecido como o salvador prometido por Simeão
e Ana (Lc 2,22-38). No templo, surpreendeu os doutores da Lei por
sua sabedoria (Lc 2,46-47).
Na casa, a anunciação de Jesus (Lc 1,26-38), os cânticos de Maria
(Lc 1,46-55) e Zacarias (Lc 1,67-79) e a vida oculta de João Batista
(Lc 1,80) e de Jesus (Lc 2,39-40.51-52).
A recuperação da vida de Zaqueu começa por um convite de Jesus:
“Hoje devo ficar em tua casa” e se completa pela constatação de que
“hoje a salvação entrou nesta casa” (Lc 19,5.9). Foi numa casa que
Jesus se revelou aos discípulos em Emaús (Lc 24,29-31) e depois em
Jerusalém (Lc 24,36-42).
É numa casa que acontece o Pentecostes, quando “veio do céu um
ruído como de um vento impetuoso, que encheu toda a casa” (At 2,2).
A fração do pão era celebrada nas casas (At 2,46), assim como nelas
era ministrada a doutrina dos apóstolos (At 2,42-46). Paulo, ainda per-
seguidor, sabia que as reuniões cristãs eram nas casas: “Saulo devas-
tava a Igreja entrando nas casas; e arrastando homens e mulheres, os
entregava à prisão” (At 8,3). Pela casa do centurião Cornélio, inicia-
se a Igreja entre os gentios (At 10,22;11,12-14). Em Filipos, Paulo foi
acolhido na casa de Lídia e depois na casa do carcereiro (At
16,15.31.34).
A IGREJA DA CASA NOS ESCRITOS PAULINOS
É sobretudo nos escritos paulinos que a identificação da Igreja da
casa se torna mais explícita. O casal Priscila e Áquila teve grande par-
ticipação nas missões. Sua casa serviu para fundar igrejas em Corinto,
Éfeso e Roma. “Saudai Priscila e Áquila, meus colaboradores em
Cristo Jesus que, para salvarem minha vida, expuseram a cabeça. Não
somente eu lhes devo gratidão, mas todas as igrejas da gentilidade.
Saudai também a Igreja que se reúne em sua casa” (Rm 16,3-5). De

CEBI - Paulo e suas cartas


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Éfeso, Paulo escreve aos coríntios: “Também vos enviam muitas sau-
dações no Senhor Áquila e Priscila, com a Igreja de sua casa” (1Cor
16,19). Na Carta a Filemon, saúda “a igreja que se reúne em tua casa”
(Fm 2). Na Carta aos Colossenses, manda saudações aos irmãos de
Laodiceia, “bem como à Igreja que se reúne em sua casa” (Cl 4,14).
Não se sabe se Ninfas é nome masculino ou feminino. Possivelmente
trata-se de mais uma mulher em cargo de liderança nas Igrejas.
RECUPERAR O SENTIDO DA PALAVRA: IGREJA
Foi nas casas que a Igreja de Cristo nasceu. Foi através das casas
que o cristianismo se propagou. Com a institucionalização e hierarqui-
zação, a ideia de Igreja se enrijeceu e suas raízes ficaram submersas
como nas árvores. No entanto, é das raízes que vem a seiva da vida. O
mistério da Igreja e sua realidade vão muito mais além da Igreja visí-
vel.
A Igreja é antes de tudo a comunidade das pessoas que têm fé em
Jesus Cristo. Por extensão, o nome passou a significar também o lugar
em que a instituição e a comunidade se reuniam. No começo, o espaço
natural da Igreja eram as casas. Com o tempo, começaram a construir
edifícios para as reuniões da comunidade e a celebração do culto. Es-
ses edifícios herdaram a tradição dos templos e passaram a ser lugares
privilegiados, consagrados a Deus e considerados “casa de Deus”.
Para cuidar desses templos e celebrar o culto, foi instituído o sacerdó-
cio nos moldes do sacerdócio do Antigo Testamento e dos povos gen-
tios. E era inevitável a tendência a identificar a Igreja com o seu corpo
sacerdotal. No entanto, está aflorando uma nova consciência eclesial
e é de se esperar que seja resgatado o sentido paulino de Igreja, como
casa da comunidade e, por isso, casa de Deus.

CEBI - Paulo e suas cartas


46

As Cartas aos Coríntios

Introdução

Situada no centro da Grécia, banhada pelos mares Adriático e


Egeu, com dois portos, a cidade de Corinto, capital da Província de
Acaia, era um centro industrial e comercial importante, atraindo mi-
grantes de toda parte, com grande variedade de línguas, raças e cultu-
ras. Era também um centro intelectual, onde as correntes filosóficas
da época tinham suas escolas. Era ainda um centro religioso, onde os
cultos do Oriente e do Egito tinham seus santuários muito frequenta-
dos. Havia lá uma comunidade judaica com sua sinagoga (At 18,4).
Na época de Paulo, Corinto tinha uns 500 mil habitantes, dois ter-
ços dos quais eram escravos.
ORIGEM DA COMUNIDADE
Paulo chegou a Corinto durante a segunda viagem missionária. Vi-
nha de Atenas, onde sua pregação, preparada caprichosamente con-
forme a sabedoria grega, não tinha alcançado grande resultado (At
17,32-34). Chegou abatido e desanimado (1Cor 2,1-3). Como de cos-
tume, iniciou o anúncio do Evangelho na sinagoga, falando a judeus e
gregos (At 18,4). Num espaço de 18 meses, por volta dos anos 50-52,
ajudou a fundar e consolidar a comunidade (1Cor 3,6.10; At 18,1-18),
composta na sua maioria de gente pobre, sem muita instrução (1Cor
2,26; 7,21; 11,21-22). Muito provavelmente escravos, portuários. Mas
era uma comunidade dinâmica, cheia de entusiasmo, com muitos dons
e carismas (1Cor 14,1-25). Era também uma comunidade conflituosa,
cheia de tensões e divisões.
O trabalho evangelizador em Corinto foi marcado por muitos con-
flitos tanto com os judeus quanto com os gregos. Apesar dos conflitos,
Paulo não desanimava e foi confortado com uma visão em que o Se-
nhor o estimulava: “Não temas. Continua a falar e não te cales. Eu
estou contigo!’’ (At 18,9-10). Os judeus chegaram a acusar Paulo di-
ante do tribunal romano, presidido por Galião, irmão do famoso filó-
sofo Sêneca. O processo deu em nada (At 18,15).

CEBI - Paulo e suas cartas


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AS CARTAS: MOTIVO, LUGAR, DATA


Depois de 18 meses de convivência, Paulo ficou conhecendo bem
os problemas da comunidade de Corinto e a ela se ligou por laços de
amizade. Por isso, a acompanhava de perto através de cartas que, na
opinião dos estudiosos, não foram apenas duas. Das duas que temos
atualmente, a segunda seria uma compilação de várias outras escritas
em diferentes ocasiões. Deixando de lado as diversas opiniões, prefe-
rimos ficar com as poucas informações que o próprio Paulo fornece.
1. A Carta pré-canônica, assim chamada porque seria anterior à
listagem oficial, “canônica” das cartas de Paulo. Em 1Cor 5,9-13,
Paulo fala de uma carta anterior para orientar sobre o relacionamento
com pessoas devassas e corruptas. Essa carta se perdeu.
2. A Primeira Carta aos Coríntios. Os motivos que levaram Paulo
a escrever essa carta foram: 1) Informações recebidas do pessoal da
casa de Cloé (1Cor 1,11) sobre problemas da comunidade, como di-
visões (1Cor 1,12-16), incesto (1Cor 5,1), brigas internas levadas ao
tribunal da cidade (1Cor 6,1), licenciosidade de alguns (1Cor 6,12).
2) Uma carta da comunidade (1Cor 7,1) pedindo orientações sobre
casamento (1Cor 7,1-40), consumo de carne oferecida aos ídolos
(1Cor 8,4-10,33) e comportamento nas assembleias (1Cor 11,2-
14,40).
3. Carta escrita entre lágrimas. Em 2Cor 2,3.4.9; 7,8.12, Paulo
menciona outra carta, “escrita entre muitas lágrimas” (2Cor 2,4), para
resolver o desentendimento entre ele e a comunidade. Esta carta tam-
bém se perdeu. Há quem ache que parte dela estaria agora em 2Cor
10-13.
4. A Segunda Carta aos Coríntios. Foi escrita sobretudo para refu-
tar as calúnias de que Paulo era vítima e para resolver o conflito que
surgiu no relacionamento com a comunidade. Num estilo vivo e apai-
xonado, ele esclarece o mal-entendido (2Cor 1,12-2,11), comenta suas
atividades (2,12-7,16) e defende o seu ministério (2Cor 10-13).
5. A Carta da Solidariedade. É possível que os capítulos 8 e 9 da
Segunda Carta aos Coríntios tenham sido uma espécie de Carta Circu-
lar enviada às comunidades da Grécia para promover uma coleta em
benefício das comunidades de Jerusalém.

CEBI - Paulo e suas cartas


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Não sabemos exatamente o lugar e a data em que Paulo escreveu


suas cartas. Em todo caso, a Primeira Carta aos Coríntios foi escrita
quando ele estava em Éfeso (1Cor 16,8), durante a terceira viagem
missionária, por ocasião da Páscoa, portanto nos primeiros meses do
ano 57, aproximadamente. A Segunda seria pelo fim do mesmo ano,
quando Paulo, saindo de Éfeso, viajava pela Macedônia (2Cor 7,5) e
talvez estivesse em Filipos.
DIVISÃO DA PRIMEIRA CARTA AOS CORÍNTIOS

Introdução: Saudação e ação de graças 1,1-9


I PARTE: Trata dos problemas noticiados pelo pessoal de Cloé
1,10-6,20
a) Divisões, partidos e tendências 1,10-4,21
b) O caso escandaloso do incesto 5,1-13
c) Processos em tribunais estranhos 6,1-11
d) O problema da imoralidade 6,12-20
II PARTE: Soluções pedidas para problemas diversos 7,1-14,40
a) Casamento e virgindade 7,1-40
b) As carnes sacrificadas aos ídolos 8,1-11,1
c) Comportamento nas assembleias 11,2-14,40
- o véu das mulheres 11,2-16
- a Ceia do Senhor 11,17-34
- carismas 12,1-14,40
III PARTE: Fé na ressurreição 15,1-58
CONCLUSÃO 16,1-24
DIVISÃO DA SEGUNDA CARTA AOS CORÍNTIOS

Introdução: Saudação e ação de graças 1,1-7


I PARTE: Suas relações com a comunidade 1,8-7,16
a) Mudanças no projeto de viagens 1,8-2,13
b) 0 ministério apostólico 2,14-4,6
c) Tribulações e esperanças do ministério 4,7-5,10
d) Exercício do ministério apostólico 5,11-6,10
e) Expansões e advertências 6,11-7,4
f) Encontro esclarecedor com Tito 7,5-16
II PARTE: Organização da coleta em favor de Jerusalém 8,1-9,14
III PARTE: Defesa apaixonada de sua missão como

CEBI - Paulo e suas cartas


49

apóstolo........10,1-13,10
CONCLUSÃO:13,11-13
TEMAS PRINCIPAIS DA PRIMEIRA CARTA
1. Conflitos
Conflitos e tensões marcam a existência cristã vivida no segui-
mento de Cristo crucificado (1Cor 1,23) e marcam também o relacio-
namento entre Paulo e a comunidade. Paulo tem a capacidade de ilu-
minar os problemas mais concretos do dia-a-dia com a luz do mistério
mais profundo da fé. Toda a carta está centrada em torno da vivência
do mistério pascal, isto é, da Cruz e da Ressurreição. A Cruz aparece
no começo (1Cor 1-4) e a Ressurreição no fim (1Cor 15). São os
pólos da longa caminhada cheia de problemas (1Cor 5-14).
2. A loucura da Cruz e a sabedoria do mundo
O contraste entre a “loucura da Cruz” e a “sabedoria do mundo”
perpassa a carta do começo ao fim. Com a luz que vem da Cruz de
Cristo, Paulo condena as divisões da comunidade (1Cor 1,17-4,13),
questiona a vangloria dos que causam escândalo (1Cor 5,1-13), critica
uma falsa concepção de liberdade (1Cor 6,12-20), reprova o compor-
tamento egoísta de alguns nas assembleias (1Cor 11,17-34).
3. Ressurreição de Cristo e nossa ressurreição
Paulo aceita a loucura da Cruz e renuncia à sabedoria do mundo
porque tem fé na Ressurreição, rejeitada pela cultura grega dos corín-
tios. Desde o começo da carta a fé na ressurreição já está implicita-
mente presente na argumentação de Paulo. Mas no fim, no mais longo
capítulo de toda a carta, ele a professa explicitamente e refuta com
vigor os argumentos em contrário (1Cor 15,1-58).
4. A árdua tarefa da inculturação
A Primeira Carta aos Coríntios reflete a necessidade e a dificuldade
da inculturação da mensagem cristã. Tratava-se de romper fronteiras
e desvincular a fé da cultura judaica. Daí sua atualidade para nós que
vivemos num país pluricultural, onde a fé chegou envelopada na cul-
tura europeia. Entre outras questões, vale a pena examinar de perto a
maneira como Paulo enfrenta o problema das carnes sacrificadas aos

CEBI - Paulo e suas cartas


50

ídolos (1Cor 8-10) e o da fé na ressurreição (1Cor 15) ou como tentou


impedir que a comunidade fosse contaminada pela dissolução dos cos-
tumes (1Cor 5-6).
5. Problemas de comunidade
Toda convivência comunitária tem seus problemas. A comunidade
de Corinto tinha os seus, e, nesta carta, Paulo os enfrenta corajosa-
mente: as divisões internas (1Cor 1,10-4,21), a ética sexual (1Cor 5,1-
13), o recurso aos tribunais (1Cor 6,1-11), o respeito pela consciência
dos mais fracos (1Cor 8,7-9,27), a boa ordem nas assembleias (1Cor
11,1-34), o problema do dom das línguas (1Cor 12-14).
TEMAS PRINCIPAIS DA SEGUNDA CARTA AOS CORÍN-
TIOS
Sendo os mesmos os destinatários, a Segunda Carta aos Coríntios
está em continuidade com a Primeira e, de certo modo, os temas da
Primeira permeiam também a Segunda. Mas são outras as circunstân-
cias e novos pontos são acentuados.
1. Defesa e consolação do missionário
Paulo foi acusado de ser volúvel e fraco (2Cor 10,10), ambicioso
(2Cor 10,12-17), sem amor pela comunidade (2Cor 11,7-11), inferior
aos outros evangelizadores (2Cor 11,4-5), por falsos apóstolos (2Cor
11,12-13). Foi gravemente injuriado (2Cor 7,12; 2,5-11). Ele se de-
fende vigorosamente, porque está em causa o Evangelho que quer
anunciar (2Cor 12,19). Bom esgrimista, Paulo sabe manejar com rara
habilidade a arma de sua fé incondicional em Jesus Cristo contra os
golpes de seus adversários. Nela é que está a fonte da consolação, do
conforto e da esperança que o fazem superar a fraqueza e as tribula-
ções que invoca como testemunho a seu favor.
2. O uso da Escritura
Em 2Cor 3,1-4,6, temos um dos textos mais importantes para saber
como Paulo encarava a Escritura e a sua interpretação. É aqui que ele
usa pela primeira vez a expressão “Antigo Testamento” ou “Antiga
Aliança” (2Cor 3,14). A Nova Aliança, anunciada por Jeremias (Jr
31,33), é a comunidade cristã. Ela é a 4’Carta de Cristo”, escrita não
com tinta em pedras, mas com o espírito de Deus vivo “em taboas de

CEBI - Paulo e suas cartas


51

carne, nos corações” (2Cor 3,2-3). A comunidade que possui o Espí-


rito é que dá vida à letra. Do contrário, a letra poderia matar a fé (2Cor
3,6).
3. Mística e resistência nas tribulações
Para. conhecer Paulo, nada melhor do que as duas Cartas aos Co-
ríntios. Nelas Paulo se revela. Por exemplo, em 2Cor 4,7-6,10, trans-
parece como ele vive e se sustenta no meio dos conflitos da sua mis-
são. Em 2Cor 12,1-6, fala das experiências místicas que teve nos pri-
meiros anos após sua conversão e da fraqueza que sente dentro de si
(2Cor 12,7-10).
ROTEIRO 3

A linguagem da cruz

Palavra-chave: CRUZ
Texto de estudo: 1Cor 1,17-2,9
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Ia Carta aos Coríntios.

CEBI - Paulo e suas cartas


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2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.


I. Partir da realidade
Fala-se muito da civilização ocidental cristã. E como o sinal privi-
legiado do cristianismo é a cruz, a cruz está em toda parte. Está nas
mansões dos ricos e nos barracos dos pobres. Está na festa e no luto.
A cruz, de certo modo, se tornou uma coisa banal. Esvaziou-se (cf.
1Cor 1,7). Deixou de estar ligada indissoluvelmente à pessoa de Jesus
Cristo, como o sinal maior do amor gratuito de Deus pela humanidade,
penhor de 4’justiça, santificação e redenção” (cf. 1Cor 1,30). No tempo
de Paulo, a cruz era antes um sinal de ignomínia e de rejeição,’ ‘es-
cândalo para os judeus e loucura para os gentios” (cf. 1Cor 1,23). Na
sua profunda intuição de fé, Paulo não hesitou em empunhar a cruz e,
de instrumento de rejeição e humilhação, transformá-la em instru-
mento de aceitação e glória, sob a luz da Ressurreição, a prova maior
da plena aceitação do Pai.
1. Qual o papel da cruz na nossa espiritualidade?
2. Como a cruz está presente na vida do povo?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: 1Cor 1,17-2,9
1.1. Ler o texto com todo a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Certamente Paulo estava influenciado por sua experiência em Ate-
nas e pelo impacto do choque com a sabedoria dos gregos.
a. Qual a relação entre a Cruz e a opção de vida de Paulo, trabalha-
dor manual?
b. Como aparece o contraste entre a sabedoria e a cruz na própria
experiência de Paulo?
2.2. Olhar para a situação da comunidade

CEBI - Paulo e suas cartas


53

Para se entender uma carta, convém saber alguma coisa sobre os


seus destinatários.
a. Que informações nos dá o texto sobre a comunidade dos corín-
tios?
b. Quais são os problemas que Paulo quer enfrentar?
2.3. Escutar a mensagem do texto
A valorização excessiva do consumo, do ter e do prazer é hoje um
grande desafio para a nossa fé.
a. Como resgatar o sentido da Cruz na nossa vida e no nosso dis-
curso?
b. Como anunciar hoje o Cristo crucificado?
III Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 33.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos 1Cor 13,1-13.
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 3

A nova fonte de espiritualidade

“A água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando
para a vida eterna” (Jo 4,14). Em cada um de nós existe uma fonte.
Mas nem sempre corre como deve. Grande parte do terreno da vida
não é irrigado. A fonte está obstruída. De repente, os terremotos da
caminhada deslocam as pedras, abrem a saída e as águas da fonte cor-
rem livremente. Foi o que aconteceu com Paulo. A água da fonte, o
terreno da vida, as pedras da vazão são os elementos que ajudam a

CEBI - Paulo e suas cartas


54

compreender a fonte da espiritualidade de Paulo.


1. A água da fonte: a nova experiência de Deus
A experiência na estrada de Damasco renovou por dentro o relaci-
onamento de Paulo com Deus. Foi um novo começo, mas não foi uma
novidade total. O Deus que se revelava era o Deus dos Pais que já
estava com Paulo. O novo conhecimento era, ao mesmo tempo, um re-
conhecimento. A novidade não estava no fato de Deus se ter comuni-
cado com Paulo, pois já o vinha fazendo através das Escrituras. A no-
vidade estava no lugar e no modo como Deus lhe revelava o seu rosto.
1) Em Jesus, profeta popular, condenado à morte pelo sinédrio e pelo
tribunal do Império; 2) na comunidade rejeitada e perseguida como
contrária à Lei de Deus; 3) na fraqueza tanto da Cruz de Jesus quanto
do próprio Paulo e dos pobres de Corinto; 4) na abertura para os gen-
tios, como Deus de todos.
Essa experiência de Deus foi o terremoto que deslocou as pedras
da vazão da fonte e libertou o curso da água. Se Deus, o mesmo Deus
dos Pais estava em Jesus, na comunidade perseguida, na fragilidade
de Paulo e dos pobres de Corinto, tudo mudou! Tudo tinha que ser
diferente! Era a própria luz de Deus iluminando os olhos para uma
nova visão da vida.
2. O terreno da vida: a nova leitura do passado da Bíblia
A água das promessas de Deus vinha desde Abraão, vinha sendo
canalizada pelo povo com muito carinho e fidelidade, ao longo dos
séculos, no leito da observância da Lei. Mas agora, essas mesmas pro-
messas, Deus as estava realizando fora do leito, num crucificado e num
grupo de judeus dissidentes e de gentios que seguiam o crucificado.
Esta era a novidade! Alargou-se a saída da água e o leito onde fluía.
Já não tinha sentido mantê-la no estreito leito da Lei, da Observância
e do Templo. O muro que separava o povo de Israel dos outros povos
tinha sido derrubado (Ef 2,14; Gl 3,23-29).
Essa experiência da universalidade do amor de Deus e da promessa
marcou a missão de Paulo de duas maneiras: 1) Deu a ele a consciência
bem clara de ser chamado por Deus para anunciar o Evangelho a todos
os povos (At 9,15; 22,21; 26,16-18; Rm 11,13; 15,16-21; Gl 1,16; Cl
1,25-29; Ef 2,18; 3,2-4; 1Tm 2,7). 2) Deu a ele uma nova chave de

CEBI - Paulo e suas cartas


55

leitura para entender as coisas que Deus tinha realizado no passado


(1Cor 6,11), isto é, deu olhos novos para descobrir o sentido verda-
deiro e definitivo da Escritura (2Cor 3,14-17).
Assim, para que a água da fonte pudesse irrigar a vida de todos os
povos, inclusive dos pobres da periferia de Corinto com seus 500 mil
habitantes, Paulo começou a fazer uma nova leitura da Escritura, co-
meçou a repensar a história do Povo de Deus (Rm 9,1-11,36). Toda a
ciência aprendida com o mestre Gamaliel, ele a colocou a serviço
dessa nova interpretação. Mas não só! Os fatos da vida o ajudavam a
entender melhor o sentido das palavras da Escritura. Por exemplo, a
palavra eleição ou escolha. Paulo escreve aos coríntios: “Irmãos, vo-
cês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem são vocês:
entre vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem
muitos de alta sociedade. Mas Deus escolheu o que é loucura no
mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no
mundo para confundir o que é forte. E aquilo que o mundo despreza,
acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o
que o mundo pensa que é importante. Desse modo, nenhuma criatura
pode se orgulhar na presença de Deus” (1Cor 1,26-29). A escolha ou
eleição se alargou. Agora já não é uma raça ou uma elite, mas sim os
pobres que são eleitos de Deus. E a eleição já não é um privilégio, mas
uma missão transformadora. Pois Deus escolheu os fracos, os loucos,
os que não contam para confundir o que é forte, sábio e importante.
Para ser fiel a Deus e ao passado, aos pobres e a si mesmo, Paulo
foi relendo a Escritura, mudando a sua maneira de interpretar a história
de Abraão (Rm 4,1-25), de Agar e Sara (Gl 4,21-31), da caminhada do
povo pelo deserto (1Cor 10,1-11), etc. Discutia com seus antigos com-
panheiros sobre o sentido da Escritura e procurava mostrar como tudo
tomava um sentido novo, a partir de Jesus, vivo na comunidade (At
17,2.11; 18,28). Para Paulo, o Antigo Testamento era como o negativo
da fotografia que Cristo veio revelar (1Cor 10,11).
3. As pedras da vazão: a visão crítica do presente
A nova experiência de Deus e a nova leitura do passado abriram os
olhos de Paulo para a realidade que ele e o povo estavam vivendo.
Começou a perceber a revelação que Deus fazia de si mesmo fora do
povo de Israel, no meio dos pobres da periferia de Corinto. Ao mesmo

CEBI - Paulo e suas cartas


56

tempo, começou a perceber os enganos em que ele e o seu povo vi-


viam. Por causa desses enganos, o nome de Deus, em vez de ser co-
nhecido e amado, era blasfemado entre os gentios (Rm 2,24).
Por isso, as pedras da vazão da fonte tinham de ser colocadas de
outra maneira, ou seja, o papel da Lei e da circuncisão, as tradições, a
história, os costumes, a missão do povo no mundo, tudo tinha que ser
revisto. É aqui, nessa nova consciência da realidade, que está o germe
dos conflitos que invadiram a vida de Paulo.
Era o seu destino e a sua missão aceitar o conflito: “Ai de mim se
eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16). Esse conflito básico, nas-
cido do próprio Evangelho, se concretizava em inúmeros pequenos
conflitos, ao longo dos anos: “Sim, pelo que vejo, Deus reservou o
último lugar para nós que somos apóstolos, como se estivéssemos con-
denados à morte, porque nos tornamos espetáculo para o mundo e para
os homens. Nós somos loucos por causa de Cristo e vocês, como são
prudentes em Cristo! Nós somos fracos e vocês fortes! Vocês são bem
considerados e nós somos desprezados! Até agora passamos fome,
sede, frio e maus tratos. Não temos lugar certo para morar e nos esgo-
tamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Somos amaldiçoa-
dos, e abençoamos; perseguidos, e suportamos; caluniados, e consola-
mos. Até hoje, somos considerados o lixo do mundo, o estéreo do uni-
verso!” (1Cor 4,9-13). Esse desabafo fala por si!
Paulo pouco se importava de ser julgado pelos outros. Procurava
ter a consciência em paz com Deus e seguia em frente (1Cor 4,4). Por
isso, conseguia viver na alegria e comunicar tanta ternura. Para ele, as
duas lutas eram igualmente importantes: a grande luta da caminhada,
do Projeto de Deus, da difusão do Evangelho no mundo e a luta pes-
soal, dentro do seu próprio interior (1Cor 9,27). Uma estava ligada à
outra e a completava.
A água da fonte, o terreno da vida, as pedras da vazão! Estes três
fatores ajudaram Paulo a perceber o significado dos conflitos, a en-
frentá-los e a transformar o próprio conflito em fonte de fé, esperança
e amor.
ROTEIRO 4

CEBI - Paulo e suas cartas


57

O maior é o amor!

Palavra-chave: AMIZADE
Texto de estudo: 1Cor 13,1-13
Partilha inicial
1. Partilhar as descobertas feitas a partir do último encontro.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
Amor é uma palavra que tem muitos sinônimos e muitos significa-
dos em todas as línguas. Na nossa língua, amor significa afeição, ami-
zade, carinho, simpatia, ternura, paixão, etc. No grego as duas palavras
mais conhecidas são eros, donde vem a palavra “erótico”, e agapê,
donde vem a palavra “ágape”, que quer dizer banquete. Geralmente a
palavra agapê é traduzida por “caridade”, que é o nome da terceira
virtude teologal: fé, esperança e caridade. Diz-se que o amor pode ser
possessivo, isto é, passional, egoísta, ou pode ser oblativo, isto é, po-
larizado pelo bem da outra pessoa a quem se quer bem. É o bem-que-
rer. Paulo fala muito do amor neste segundo sentido. A fonte desse

CEBI - Paulo e suas cartas


58

amor é o próprio Deus que, por nós, entregou o seu Filho amado (Rm
5,8; 8,32-39; 2Cor 5,18-21; Ef 2,4-7) e derrama o seu Espírito em nos-
sos corações (Rm 5,5; Gl 5,22). No estudo do Cântico dos Cânticos ou
Cantares, já vimos o quanto a Bíblia valoriza o amor erótico, que é
chamado de “faísca de YHWH” (Ct 8,6).
1. No uso corrente, faz-se alguma diferença entre amor e caridade?
2. Quais as deformações que sofrem essas duas palavras?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: 1Cor 13,1-13
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Esse texto é conhecido como “hino ao amor”. Sem deixar de ser
poético, é um texto profundamente realista.
a. Em quantas partes se pode dividir esse texto?
b. Quais as qualidades atribuídas ao amor nos versículos 4 a 7?
2.2. Olhar para a situação da comunidade Todo conselho tem
uma razão de ser.
a. Qual a situação da comunidade que transparece nesse conselho
de Paulo?
b. Quais os motivos invocados para praticar esse conselho?
2.3. Escutar a mensagem do texto
Paulo não pretende fazer poesia e nada tem de lírico.
a. Quais as virtudes a praticar e os vícios a evitar?
b. Como pôr em prática esse ideal de vida?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.

CEBI - Paulo e suas cartas


59

2. Assumir um compromisso comunitário.


3. Orar o SI 112.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos 2Cor 7,1-16.
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 4

Presença de Deus na amizade

A AMIZADE E A BÍBLIA
Talvez a mais universal das experiências humanas seja a amizade.
Não há cultura que não aborde este assunto, que não valorize, celebre
e incentive a amizade. Todas destacam esse laço firme e forte que une
as pessoas. Um sentimento em que encontramos uma intensa mistura
de valores como solidariedade, lealdade, ajuda, apoio, companhia, dis-
ponibilidade, confiança, sinceridade, honestidade, partilha, amor...
Encontramos tudo isso e muito mais escondido na palavra “amizade”.
O livro dos Provérbios diz que “óleo e perfume alegram o coração
e a doçura do amigo é melhor que o próprio conselho” (Pr 27,9) ou
que “em toda ocasião ama o amigo, um irmão nasce para o perigo” (Pr
17,17). Quem não aprecia uma verdadeira amizade, um relaciona-
mento firme para o que der e vier? Para a Bíblia, amizade é um senti-
mento que começa envolvendo pessoas e vai num crescendo até reve-
lar que a amizade verdadeira é um reflexo do amor de Deus. Aliás, a
própria experiência da relação do ser humano com Deus é descrita
como um laço de amizade que une as pessoas (cf. Is 41,8-10).
A AMIZADE NA BÍBLIA
A Bíblia sempre descreve a amizade como um envolvimento de
pessoas em nome de Deus. Quando Noemi aconselha Rute a voltar
para os seus em Moab, a amizade entre as duas revela-se na resposta
de Rute: “Não insistas comigo para que te deixe! Para onde fores, irei

CEBI - Paulo e suas cartas


60

também, onde for tua morada, será também a minha, teu povo será o
meu povo e teu Deus será o meu Deus!” (Rt 1,16-17).
Para o povo de Deus tal solidariedade era de vital importância. A
vida nas aldeias não era nada fácil, e somente a vivência da amizade
possibilitava a sobrevivência de todos.
Essa solidariedade na hora do perigo também percebemos no sen-
timento de amizade que unia Davi e Jônatas, filho do rei Saul (1Sm
18,1-5; 20,1-42). Em nome desse sentimento, Jônatas fica revoltado
contra o rei, seu pai, para defender e salvar a vida do amigo. E quando
Jônatas morre numa batalha contra os filisteus, Davi eleva a Deus uma
lamentação profunda e sentida, chorando a morte do amigo nestes ter-
mos: “A tua morte dilacerou-me o coração. Tenho o coração apertado
por tua causa” (2Sm 1,25-27).
Da mesma maneira, percebemos o forte sentimento de amizade que
unia Jesus a Lázaro, quando Jesus chora a morte do amigo. Diante da
dor da perda e da saudade, Jesus não reprime as lágrimas, e todos mur-
muram: “Vede como ele o ama!” (Jo 11,33-35). O Evangelho atesta
também a amizade que unia Jesus a Marta e Maria, as duas irmãs de
Lázaro (Jo 11,19). Em momentos significativos, Jesus chamava sem-
pre os amigos mais íntimos: Pedro,
Tiago e João (cf. Mc 5,37). O Evangelho também fala do “discípulo
que ele amava” (Jo 13,23).
Ninguém mais cultivou a amizade e entendeu o seu valor do que
Paulo. Por suas cartas, percebemos que, por onde passava, nas 4, suas
viagens, deixava uma constelação de amigos e amigas. Só ele podia
escrever o primor de texto que foi objeto do nosso estudo.
A AMIZADE NO RELACIONAMENTO COM DEUS
A Bíblia expande mais o conceito de amizade. Como amizade tam-
bém temos de entender o sentimento de Deus em relação aos que lhe
são fiéis (Is 41,8; 2Cr 20,7). Deus conversa amigavelmente com
Abraão (Gn 18,17-33). O mesmo Deus se revela a Moisés como a um
amigo (Ex 33,11-23; Nm 12,7-8; Dt 34,10). O profeta Elias também é
agraciado com a amizade de Deus (cf. 1Rs 19,11-14). A palavra defi-
nitiva sobre essa amizade de Deus encontramos na conversa que Jesus

CEBI - Paulo e suas cartas


61

mantém com os apóstolos na Ceia: ‘ ‘Ninguém tem maior amor do que


aquele que dá a vida por seus amigos! Vós sois meus amigos se prati-
cais o que vos ordeno. Eu vos chamo amigos porque tudo o que ouvi
do meu Pai eu vos dei a conhecer” (Jo 15,13-17). Dois elementos se
destacam nessa afirmação de Jesus: a gratuidade e a reciprocidade.
Sem a reciprocidade, a amizade se rompe. E a ruptura da amizade sem-
pre acarreta muita dor, quando “o companheiro que comia do meu pão
levantou contra mim o calcanhar” (SI 41,10). A amizade rompida é
tema de muitas orações angustiadas (cf. SI 38,12; 55,14; 69,9; 88,19).
Foi o tormento de Jó (cf. Jó 19,2-22). A ruptura da Aliança ou da ami-
zade é a queixa constante de YHWH contra o seu povo, sobretudo nos
profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Amos, Miquéias, etc.
Paulo, magoado, escreveu aos coríntios uma carta “em meio a muitas
lágrimas” (2Cor 2,4). E o “beijo de Judas”, que Jesus ainda chama de
“amigo” (Mt 26,49-50), ficou na história como o símbolo maior da
traição.
Por outro lado, a Bíblia insiste muito no reatamento da amizade
através do perdão, da misericórdia, da reconciliação. Por exemplo, no
Sermão da Montanha, a reconciliação é condição para que o sacrifício
seja aceito por Deus (Mt 5,18). Paulo fala do “ministério da reconcili-
ação” (2Cor 5,8) e sintetiza na reconciliação a própria missão de Jesus
Cristo (Cl 1,20). E a reconciliação que está no cerne do diálogo entre
Jesus e Pedro, caminhando lado a lado na praia. Jesus pergunta três
vezes: “Pedro, tu me amas?” Ao ouvir a pergunta pela terceira vez,
Pedro, angustiado, responde: “Senhor, tu sabes tudo. Tu sabes que te
amo” (Jo 21,27).
A AMIZADE COMO SINAL DA PRESENÇA DE DEUS
“Paraíso terrestre: saudade ou esperança?” é o título de um livro de
Carlos Mesters. Paraíso é a projeção do nosso desejo mais profundo,
o lugar da felicidade. É assim que o livro do Gênesis o apresenta, como
o lugar da perfeita harmonia entre Deus, a Humanidade e a Natureza
(Gn 1,28-31; 2,8-25). O pecado quebrou essa harmonia (Gn 3,14-24),
mas a experiência de harmonia e amizade transforma a saudade em
aspiração e esperança.
“Onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”, diz o Evangelho
(Mt 6,21). Podemos inverter a frase e dizer: Onde está o teu coração

CEBI - Paulo e suas cartas


62

aí, está o teu tesouro. Jesus afirmou que “onde dois ou três se reunirem
em seu nome”, ali estará ele (Mt 18,20). A comunidade cristã, maquete
do que deviam ser a Igreja e o Mundo, conforme o livro dos Atos, é
apresentada como um grupo em que reina forte amizade. Todas as pes-
soas vivem na comunhão fraterna, unânimes, e tomando o alimento
com alegria (cf. At 2,42-47). Essa antecipação “imperfeita”, pela ami-
zade, da presença de Deus, que será “perfeita” e total, é o que nos
ensina Paulo, sob a inspiração do Espírito Santo (1Cor 13,8-13).
ROTEIRO 5

Bonança depois da tempestade

Palavra-chave: RECONCILIAÇÃO
Texto de estudo: 2Cor 7,1-16
Partilha inicial
1. Partilhar as descobertas feitas a partir do último encontro.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
“Correção fraterna” é uma expressão inspirada no Evangelho (cf.
Mt 18,15-17). É uma atitude adulta e saudável de ser sincero e franco

CEBI - Paulo e suas cartas


63

com o companheiro ou a companheira que está errado(a).


Assim como é saudável e adulto aceitar a fraqueza sem ressenti-
mento e procurar corrigir-se. A correção fraterna é um mecanismo in-
dispensável para o bom andamento de uma comunidade, assim como
para o êxito de uma equipe de trabalho. O que pode envenenar o clima
de um grupo não é a fraqueza nas relações, mas a maledicência, são as
críticas sorrateiras, as fofocas. A sinceridade franca e tranqüila, aliada
à mansidão, é uma qualidade essencial a quem exerce a alta missão de
educar. É um ingrediente imprescindível para as boas relações entre
as pessoas. No entanto, a sinceridade é o que mais falta na nossa soci-
edade egoísta e competitiva, em que reina a hipocrisia, impera a men-
tira, campeia a falsidade, domina o engano, fermenta a corrupção e
tudo isso polui o ar, gerando um clima de desconfiança. O exercício
da correção fraterna talvez seja o único corretivo para que as relações
interpessoais possam fluir de um modo límpido e transparente.
1. Por que a correção fraterna é importante?
2. Por que hoje se fala tanto de transparência?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: 2Cor 7,1-16
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Paulo fundara “a Igreja” em Corinto uns quatro anos antes. Prome-
tera voltar, mas mudou de plano. Quem passou por lá foi Tito.
a. Como se articula este texto?
b. Tentar distinguir as “ideias” e os “sentimentos”.
2.2. Olhar para a situação da comunidade
Paulo, trabalhador manual, dirige-se com muito desembaraço à co-
munidade. Por aí, talvez se possa deduzir qual o nível social de seus
componentes.

CEBI - Paulo e suas cartas


64

a. Quais problemas da comunidade transparecem no texto?


b. Como Paulo enfrenta esses problemas? 2.3. Escutar a mensagem
do texto
O texto revela a profunda afetividade com que Paulo se entrega de
corpo e alma à evangelização.
a. Qual o papel da afetividade nas nossas relações comunitárias?
b. Como enfrentar as discórdias e ressentimentos inevitáveis?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 116.
4. Fazer um resumo para meditar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro, estudaremos a Carta aos Gálatas (Gl 5,1-
26).
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 5

Paulo, o coordenador

Paulo não viveu uma vida de intelectual e não foi propriamente um


escritor. Não trabalhava para se aprimorar tecnicamente, mas como
simples biscateiro que fazia questão de garantir © próprio sustento
com suas próprias mãos. Não viajava para fazer turismo ou pesquisas
ou para acumular conhecimentos, mas para “evangelizar”, fundando
“Igrejas” e zelando por elas. Por isso, foi levado a escrever cartas.
Hoje é fácil escrever. Basta arrumar uma caneta e um pedaço de
papel. Naquele tempo era diferente. As pessoas não tinham © costume
de escrever nem tinham as facilidades de que hoje dispomos. Escrever
era complicado. Exigia tanta atenção que quase não dava para escrever

CEBI - Paulo e suas cartas


65

e pensar ao mesmo tempo. Por isso, quem queria mandar uma carta
chamava uma pessoa especializada na escrita e ditava o que queria
dizer na carta. Era o que Paulo fazia: chamava um secretário. Na Carta
aos Romanos, o secretário aproveitou uma brecha para mandar um
abraço: “Eu, Tércio, que escrevi esta carta, saúdo-vos no Senhor” (Rm
16,22).
No fim da carta, Paulo assinava de próprio punho (2Ts 3,17; Gl
6,6.11; 1Cor 16,21; Cl 4,8). No fim da Carta aos Gálatas, Paulo pegou
a caneta e escreveu com letras enormes: “Vejam com que tamanho de
letras estou escrevendo, eu, Paulo, de próprio punho” (Gl 6,11). A as-
sinatura de próprio punho era uma espécie de firma reconhecida: iden-
tificava o autor e impedia as falsificações (cf. 2Ts 3,17).
Com o tipo de vida que levava, hospedando-se em alojamentos ou
pensões com seus companheiros, Paulo nunca estava sozinho quando
fazia as cartas. Os companheiros aparecem ao lado dele na saudação
inicial e nas lembranças finais. Provavelmente o assunto era discutido
entre eles, antes de ser posto por escrito. Uma das poucas que não
menciona nomes nas saudações iniciais e nas recomendações finais é
a Carta aos Gálatas. É que o relacionamento entre Paulo e a comuni-
dade estava tenso, estremecido. “Falsos irmãos” andaram querendo
afastar os gálatas de Paulo (Gl 2,4; 1,6-8; 3,1; 4,16-17). Paulo estava
irritado e se defendia. Outra carta sem saudações e recomendações é a
Carta aos Efésios. Trata-se provavelmente de uma carta circular envi-
ada a várias comunidades, e a cópia que foi conservada é a que foi
parar na comunidade de Éfeso. Parece que só a Carta a Filemon, a mais
curta de todas, foi escrita pelo próprio Paulo (Fm 19).
A COORDENAÇÃO
Paulo viajava, mas não desligava. Continuava na liderança e na co-
ordenação geral das comunidades entre os gentios, como lhe foi pe-
dido no Concilio de Jerusalém (cf. Gl 2,7-10). Mantinha contato cons-
tante com as comunidades por ele fundadas e com a Igreja como um
todo. Hoje em dia, para contatos, dispomos de muitos meios: correios,
telégrafo, telefone, telex, telefax e esse prodígio que é a internet, que
já começa a ser vulgarizada. Paulo, coitado, estava muito longe de to-
dos esses recursos. Mesmo assim, vencendo mil obstáculos, soube
manter os contatos e carregava dentro de si a preocupação com o

CEBI - Paulo e suas cartas


66

conjunto todo e cada um em particular: “A minha preocupação cotidi-


ana, a atenção que tenho por todas as igrejas: quem fraqueja sem que
se eu também me sinta fraco? Quem cai sem que eu me sinta com
febre?” (2Cor 11,28-29).
Nem sempre conseguia manter as comunidades informadas a res-
peito dos seus planos de viagens e de visitas. Quando podia, Paulo
avisava que pretendia aparecer (cf. Rm 15,23-25; 2Cor 12,14; 13,1-2;
Fm 22). Algumas vezes, a necessidade de mudar o plano e a dificul-
dade de comunicação foram motivo de mal-entendidos (2Cor 1,15-
17).
Mesmo durante as viagens, exercia várias funções que diziam res-
peito ao conjunto das comunidades. Junto com Barnabé, foi o dele-
gado dos cristãos gentios ao Concilio de Jerusalém (At 15,2) e o dele-
gado oficial do Concilio junto às comunidades cristãs da gentilidade
(At 15,22-25). Junto com o mesmo Barnabé, ficou o responsável ofi-
cial pela evangelização dos gentios (Gl 2,7-9). Além disso, foi o orga-
nizador e portador da grande coleta feita nas comunidades cristãs em
benefício dos pobres de Jerusalém (Gl 2,10; Rm 15,25-28; 2Cor 8-9;
1Cor 16,1-4; At 24,17).
ESTRATÉGIA
Paulo tem um objetivo bem definido: divulgar a Boa Nova do
Evangelho pelas cidades do Império, criando núcleos de irradiação por
onde passava. A esses grupos chama de “Igreja”, a Ekklesia, o orga-
nismo oficial que organizava, estruturava e administrava as cidades
gregas. O simples novo uso desse nome mostra que, no objetivo de
Paulo, estava embutida uma grande carga revolucionária. E esta revo-
lução se concretizava no próprio estilo de vida: ele, um doutor da Lei,
um mestre, como os filósofos, decidiu viver do trabalho manual. Entre
os judeus isso era mais comum. Os estudiosos das Escrituras pratica-
vam e recomendavam o trabalho manual. Mas, entre gregos e roma-
nos, trabalhar com as mãos era coisa de escravo, daí o nome “trabalho
servil”.
Consciente da missão histórica do seu povo, onde chegava, costu-
mava começar o anúncio do Evangelho na sinagoga (At 13,5-14; 14,1;
16,13; 17,2.10; 18,4; 19,8), por causa da prioridade dos judeus no

CEBI - Paulo e suas cartas


67

plano da salvação (At 13,46; Rm 9,1-5). Mas não se limita aos judeus.
Dirige-se também aos gentios (At 13,16.43; 17,4.17). Geralmente, os
judeus resistem e os gentios aceitam (At 13,45; 14,2-4; 17,5.13; 18,6;
19,9). Diante da recusa dos judeus, Paulo se afasta da sinagoga e é
acolhido de bom grado pelos gentios (At 13,46-48; 18,6-8; 19,9-10).
Nas três viagens, Paulo tem o cuidado de visitar as comunidades
fundadas por ele ou por outros (At 14,22-24; 15,3.36.41; 18,23; 20,2;
21,4-7) para confirmá-las na caminhada e criar toda uma rede de arti-
culação. As frequentes visitas a Jerusalém, o envio de mensageiros (Cl
4,10; 1Cor 1,11; 16,10.12.17-18; 1Ts 3,2.6; etc), as cartas e a coleta
(2Cor 8,1-9,15) ajudam a atingir esse mesmo objetivo.
O instrumento mais importante usado por Paulo no anúncio do
Evangelho, sobretudo aos judeus, era a Escritura. Lida e meditada, em
particular e em grupo, invocada nos discursos e nas discussões, aju-
dava a descobrir todo o significado de Jesus para a vida das pessoas e
das comunidades (At 13,32-41; 17,2.11; 18,28). Insistia em mostrar o
valor perene da Escritura (cf. Rm 15,4; 1Cor 10,11; 2Cor 3,14-17;
1Tm 3,14-17).
O livro dos Atos fala, com naturalidade e frequência, da ação do
Espírito Santo no trabalho missionário de Paulo. É ele que provoca a
iniciativa da missão e envia Paulo e Barnabé (At 13,2-4). Leva Paulo
a falar (At 13,9). Orienta Pedro a decidir (At 15,8) e inspira o docu-
mento final do Concilio de Jerusalém (At 15,28). Traça o rumo das
viagens (At 16,6.7). Leva Paulo a voltar para Jerusalém, mesmo pre-
vendo que vai sofrer (At 20,22-23). Constitui os coordenadores nas
comunidades (At 20,28).
O livro dos Atos destaca também a presença da oração e da cele-
bração na vida de Paulo. É durante uma celebração que nasce a ideia
da viagem missionária (At 13,2). O anúncio sempre começa na cele-
bração semanal da sinagoga, que, às vezes, é chamada oração (cf. At
16,13.16). A abertura para os gentios é motivo de louvor a Deus (cf.
At 20,32). A confirmação dos coordenadores é acompanhada de ora-
ção e jejum (At 14,23). Na prisão, em Filipos, Paulo e Silas oram noite
adentro (At 16,25). Paulo participa da ©ração nas comunidades: em
Trôade, toma parte na fração do pão (At 20,7); em Mileto, ora com o
povo (At 20,36); em Tiro, a comunidade foi com ele até a praia e todos

CEBI - Paulo e suas cartas


68

oraram (At 21,5). No fim da segunda viagem, Paulo faz uma promessa
a ser cumprida 00 templo de Jerusalém (At 18,18). No fim da terceira
viagem, aceitou ficar sete dias dentro do Templo, como patrocinador
de uma promessa (At 21,23-26).
CONCLUSÃO
Paulo é um grande exemplo para o trabalho missionário das igrejas
em todos os tempos e muito especialmente em nossos dias. E grande
o fascínio dos avançadíssimos meios de comunicação para a divulga-
ção da mensagem evangélica, mas não se deve esquecer a importância
da intercomunicação que deve permear o tecido das comunidades e
congregações, aquecendo a intimidade das pessoas e ativando a soli-
dariedade. Mais do que nunca são necessários o acolhimento caloroso,
a delicada atenção, a participação ativa, a efetiva valorização de cada
um(a) e de todos(as).
Para isso, é preciso que se crie um ambiente impregnado de afeti-
vidade. É através da afetividade que circulam a presença e ação do
Espírito Santo. A afetividade nada tem de abstrato e precisa da reali-
dade concreta e viva para se expandir. Pelas cartas, percebe-se que a
afetividade de Paulo era transbordante.
Optando pelo trabalho manual para sobreviver, Paulo não só era
uma contestação viva da ideologia dominante, mas, rompendo todas
as amarras, garantia grande mobilidade e o trânsito livre para transmi-
tir a mensagem. E transmiti-la sem outras mediações que não fosse a
sua presença pessoal, que irradiava o testemunho convincente de sua
fé intensa.

CEBI - Paulo e suas cartas


69

Carta aos Galatas

Introdução

O nome “Gálatas” vem dos gauleses, originários da Gália, que emi-


graram da Europa e ocuparam uma região da Ásia Menor (atual Tur-
quia), no século II a.C. Trata-se, portanto, de uma região, e não de uma
cidade. Paulo escreveu esta carta durante a terceira viagem, provavel-
mente quando estava em Éfeso, por volta do ano 57/58. Durante a se-
gunda viagem, uma doença o forçou a parar na Galácia (At 16,6; Gl
4,13-14), uns cinco anos antes, e, no início da terceira viagem, ele pas-
sou por lá uma segunda vez (At 18,23).
MOTIVO DA CARTA
No pouco tempo decorrido entre a segunda visita e a carta, apare-
ceu o problema. Alguns judaizantes, talvez ligados aos cristãos de Je-
rusalém, queriam impor aos gentios convertidos a circuncisão e a ob-
servância da Lei mosaica (Gl l,6ss.; 5,7-12; 7,10-20) e moviam uma
campanha contra Paulo, questionando sua legitimidade apostólica (Gl
1,1-2,9; 5,10). Daí o caráter polêmico e combativo desta carta.
Com extremo vigor, Paulo exibe suas credenciais e defende a legi-
timidade de seu anúncio evangélico (Gl 1,6-2,10). Como ex-aluno da
escola rabínica, Paulo está bem equipado para desmascarar o lega-
lismo judeu-cristão de seus adversários. Nos capítulos 3 e 4, maneja
com habilidade a interpretação alegórico-rabínica do Antigo Testa-
mento, fazendo o feitiço voltar-se contra o feiticeiro.
Enfaticamente recorda sua discordância com a atitude dúbia de Pe-
dro em Antioquia (Gl 2,11-14) e insiste, em termos extremamente for-
tes, no lugar central que Jesus Cristo deve ocupar na vida (Gl 2,15-
21).
Com grande poder de síntese, Paulo apresenta a estrutura da vida
cristã: acolher pela fé a ação do Espírito Santo e comunicá-la através
do amor (Gl 5,5-6). E no amor ao próximo que está a plenitude da Lei
(Gl 5,4). Não poupa ironia ao referir-se aos judaizantes (Gl 5,7-12) e

CEBI - Paulo e suas cartas


70

proclama em alto e bom som a liberdade cristã e a exuberância da ação


do Espírito (Gl 5,13-26).
Paulo martela no essencial do Evangelho, que é o amor, e não o
legalismo. O amor ativo nasce da liberdade, fruto da fé, e compromete
a totalidade da pessoa em tarefas concretas, frente às situações da vida,
levando-a a realizar muito mais do que qualquer lei poderia exigir (Gl
6,1-6). Nosso destino final será a conclusão natural de uma escolha de
vida: viver segundo os instintos egoístas (segundo a carne) leva à cor-
rupção e à morte, enquanto viver segundo o Espírito ou segundo o
amor leva à vida eterna (Gl 6,7-10).
Num último ímpeto, Paulo escreve “de seu próprio punho” a con-
clusão, acusando os judaizantes de orgulho, covardia e falsidade, ao
contrário dele, que só se gloria na cruz de Jesus Cristo, cujas marcas
estão impressas em seu corpo (Gl 6,11-18).
DIVISÃO DA CARTA AOS GÁLATAS

INTRODUÇÃO: 1,1-5
1,1-2: Paulo apresenta suas credenciais e menciona os
destinatários
1,3-5: Antecipa o assunto de que vai tratar
I PARTE: 16-2,21
1,6-10: o evangelho anunciado está sendo pervertido
1,11-2,10: a missão de Paulo
1,11-24: origem do mandato e legitimidade da
missão
2,1-10: a salvação é gratuita para todos, superando
a Lei
2,11-21: incidente com Pedro. Paulo reafirma o “seu’’
Evangelho
II PARTE: 3,1-4 ,7
3,1-5: Diante do Cristo crucificado, Paulo recrimina os
gálatas por seu retrocesso a categorias humanas supera-
das (carne)
3,6-4,7: o regime da fé e o da Lei vistos na história da
salvação
3,6-14: a promessa feita a Abraão concerne a Cristo; a

CEBI - Paulo e suas cartas


71

salvação prometida realiza-se pelo dom do Espírito


3,15-29: a Lei não é condição, mas instrumento educativo
que mostra o pecado; a adesão a Jesus nos liberta como
filhos de Deus
4,1-7: em Cristo, passamos da escravidão do mundo para
a liberdade de filhos, pelo dom do Espírito
III PARTE: 4,8-6,10
4,8-20: Paulo angustiado: por que escravizar quem o
Evangelho libertou?
4,21-31: ser livre, “filho de Abraão” não segundo a carne
(circuncisão), mas segundo o Espírito
5,1-12: a vida nova em Cristo, na fé e no amor
5,13-25: oposição radical entre a “carne” e o “espírito”
5,26-6,10: o Espírito liberta do julgamento, tomando fiel
à lei de Cristo crucificado
CONCLUSÃO: 6,1-18
Com a própria letra, Paulo reafirma energicamente sua liber-
dade em relação à Lei judaica e sua integral adesão à cruz de Cristo.
CHAVE DE LEITURA
A Carta aos Gálatas é rica em temas fundamentais para a compre-
ensão da vida cristã: fé, liberdade cristã, carne x espírito, primado do
amor, igualdade em Cristo, superando as diferenças sociais, raciais ou
de gênero, frutos do Espírito, etc. A chave-mestra é a irredutível uni-
cidade da salvação em Cristo, oferecida gratuitamente por Deus e li-
bertando-nos de qualquer outro vínculo.
Perante os judaizantes tão fortemente fustigados por Paulo, somos
levados a pensar nas pessoas que procuram garantir a salvação multi-
plicando práticas religiosas, mas indiferentes ao qüe se passa ao redor.
O acúmulo de práticas pode embotar a consciência da condição de pe-
cado e, consequentemente, da gratuidade da salvação. “É para a liber-
dade que Cristo vos libertou” (Gl 5,1). Libertos, temos de lutar pela
libertação num mundo de opressões.
ROTEIRO 6

Livres pelo Espírito

CEBI - Paulo e suas cartas


72

Palavra-chave: LIBERDADE
Texto de estudo: Gl 5,1-26
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Carta aos Gálatas
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo. ‘
I. Partir da realidade
Entre as muitas historietas que passam de boca em boca, existe a
da águia que nasceu e cresceu num galinheiro a do Patinho Feio e tan-
tas outras em torno da liberdade. A liberdade é a mola da vida, é talvez
a mais profunda aspiração da alma humana. Uma das imagens mais
plásticas da liberdade é a do pássaro voando. O maior drama do encar-
cerado é a perda da liberdade, o direito de ir e vir, consagrado como
um direito básico da pessoa humana. No tempo de Paulo, havia um
abominável muro que, nas cidades gregas, separava os homens livres
dos escravos. No entanto, ele, homem livre, cidadão romano, renun-
ciou a esse privilégio para se equiparar aos escravos, vivendo do tra-
balho das próprias mãos. De certo modo, viveu, na própria carne, a
bela definição que cunhou do mistério da encarnação: “Esvaziou-se a
si mesmo e assumiu a condição de servo” (Fl 2,7). O título que

CEBI - Paulo e suas cartas


73

costumava invocar como credencial era o de “servo de Cristo” (Rm


1,1; Fl 1,1; Tt 1,1). Mas a liberdade fervia no seu sangue. A liberdade,
para ele, era um estandarte!
1. Por que tanto se fala hoje em libertação?
2. Quais as novas formas de escravidão: na pessoa, na família, na
sociedade?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Gl 5,1-26
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Com este texto, Paulo conclui sua calorosa defesa da liberdade
cristã contra aqueles que induziam os gálatas a retrocederem às práti-
cas da Lei judaica.
a. Por que nos versículos 2 e 16 Paulo assume enfaticamente o que
diz?
b. Qual o ponto culminante deste texto?
2.2. Olhar para a situação da comunidade
O estilo combativo e ácido, até irônico (vv. 12 e 15), mostra que
não era tranquila a situação da comunidade.
a. Qual o conflito que Paulo enfrenta?
b. Qual seria a procedência dos seus adversários sob o ponto de
vista social?
2.3. Escutar a mensagem do texto
Numa sociedade desigual e compartimentada como a nossa, res-
pira-se mais livremente nos terreiros da pobreza do que nos salões da
riqueza.
a. Em que ambiente se localizam as obras da carne e os frutos do

CEBI - Paulo e suas cartas


74

Espírito?
b. Que lições vitais podemos tirar deste texto?
III Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 143.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos a Carta aos Efésios (Ef 1,1-
23).
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 6

Fé e liberdade

A Carta aos Gálatas é chamada de manifesto da liberdade cristã.


Convém entender bem esta denominação. O problema que provocou
a carta foi a infiltração dos judaizantes, induzindo as comunidades a
assumir as práticas da Lei judaica. Naquela época, no meio gentio,
provavelmente a pregação de Paulo era tida como uma variante do ju-
daísmo. Os adversários de Paulo, aos olhos das impressionáveis gala-
tas, representariam o judaísmo legítimo, com circuncisão e tudo, en-
quanto Paulo poderia passar por um judeu degenerado, apregoando um
judaísmo diluído. Talvez por isso, Paulo acusa seus opositores de não
observarem a Lei (Gl 5,3; 6,13).
Não se sabe se esses opositores de Paulo eram judeu-cristãos judai-
zantes ou simplesmente judeus não-cristãos em busca de prosélitos,
isto é, gentios que se convertiam ao judaísmo. Seja como for, à tenta-
ção de adotar a Lei judaica, Paulo opõe o seu Evangelho, que é o Evan-
gelho da salvação pela fé em Jesus Cristo e não pelas obras da Lei. É
bom definir melhor esses conceitos: Fé e Liberdade.

CEBI - Paulo e suas cartas


75


Fé não é a aceitação intelectual de verdades, dizer “amém” às fór-
mulas do catecismo, mas significa, antes de tudo, adesão pessoal e in-
condicional. Se Paulo apregoa a salvação pela fé, não se trata de um
cristianismo que se contente em professar um “Credo”, mas de um
cristianismo prático, mediante o qual a pessoa mostre que adere a Je-
sus Cristo e o segue. Essa adesão se manifesta na imitação da prática
de Jesus e só é possível porque o Espírito de Jesus vem para o coração
de quem a ele adere (Gl 4,6) e produz os seus frutos (Gl 5,22-23a).
Por outro lado, se Paulo diz que as obras não salvam, ele não rejeita
a prática das obras, pois a fé “atua pela caridade” (Gl 5,6). Ele rejeita,
sim, a capacidade salvífica das observâncias religiosas. Isso com base,
primeiro, na sua experiência: no caminho de Damasco, Jesus Cristo
Crucificado irrompeu na sua vida. Depois, pelo fato de esse Cristo
Ressuscitado ter sido condenado em nome da Lei de Moisés (Gl 3,13;
cf. Dt 21,23). Portanto, essa Lei está superada, ainda que tenha servido
de “educadora” (Gl 3,24), conduzindo-nos até Cristo.
A Lei de Moisés é entendida por Paulo como todo o complexo sis-
tema legal em que devia enquadrar-se o judeu praticamente. Esse sis-
tema, longe de libertar, aprisionava. É esclarecedor ver que Tiago usa
esse conceito complexivo da Lei no sentido oposto de
Paulo. Note-se que Tiago se dirige a uma comunidade judeu-cristã,
em território onde a Lei judaica vigorava. Por exemplo, quem observa
a Lei integralmente será julgado pela “lei da liberdade”, segundo Ti-
ago, que não deixa de destacar o amor ao próximo como a Lei Regia
da Escritura (Tg 2,8-13). Paulo preconiza o mesmo mandamento da
caridade como resumo e substitutivo da Lei (Gl 5,13) e coincide com
Tiago quando afirma que o amor ao próximo “é a plenitude da Lei”
(Rm 13,10). E ele se dirige não a judeus, mas a gentios.
LIBERDADE
Muitos veem uma oposição entre Paulo e Tiago. Talvez seja mais
correto ver uma acentuada diferença de ênfase. Escrevendo para am-
biente judaico, Tiago vê na lei um instrumento da liberdade (Tg 1,25;
2,12). Escrevendo para ambiente gentio, Paulo opõe a liberdade à Lei
considerada como instrumento de salvação em si mesma (Gl 4,21-31).

CEBI - Paulo e suas cartas


76

Qual será essa liberdade que, conforme Tiago, se encarna na Lei e,


conforme Paulo, deve superá-la?
A solução talvez venha de um outro teólogo da jovem Igreja: João,
ao afirmar que “a verdade nos toma livres” (Jo 8,32). A verdade em
João é a adesão e fidelidade ao Deus que se revela em Jesus Cristo (cf.
Jo 3,21; 1Jo 1,6). Essa adesão e fidelidade - não muito diferentes da
“fé que atua na caridade” (Gl 5,6) - tomam-nos livres: assemelham-
nos ao Filho que, em comunhão com o Pai, dispõe da casa e, por di-
reito, nela permanece, em oposição ao escravo que pode ser despedido,
vendido, etc. No seu estilo alegórico, Paulo explica que ser livre é ser
filho da mulher livre, isto é, a comunidade da Nova Aliança (Gl 4,21-
30).
A liberdade, nesses textos, não é a liberdade “negativa”, ou seja, a
ausência de obrigações ou de responsabilidade ou mera liberdade de.
Não seria liberdade, mas libertinagem. Trata-se da liberdade para, isto
é, de quem sabe que aos direitos correspondem deveres e ao direito de
filho corresponde a responsabilidade sobre a casa e o patrimônio. A
casa e patrimônio de Deus e dos filhos de Deus é a comunidade. Li-
berdade, então, equivalerá à responsabilidade, fraternidade e cidadania
cristã. Nesse sentido, a “lei da liberdade” de Tiago significa a condição
dessa cidadania. Tiago apresenta a coerência com as normas que os
judeu-cristãos herdaram de seus pais, reinterpretadas em Cristo, como
instrumento seguro para exercer a cidadania do Reino. Por isso, a lei
da caridade é a Lei Regia (Tg 2,8). Paulo nega que a Lei, como sistema
farisaico, possa garantir tal cidadania e não produz salvação ou liber-
dade da escravidão. O mandamento do amor é a norma geral para a
“fé que atua na caridade” (Gl 5,6.13) e produz os “frutos do Espírito”
em nós (Gl 5,22-23), opostos aos frutos da carne, isto é, o egoísmo
humano. Na Carta aos Romanos, ele sintetiza sua visão nesta frase pa-
radoxal: “A Lei do Espírito da vida te libertou da lei do pecado e da
morte’ * (Rm 8,3).
LIVRES PARA SERVIR
A liberdade cristã é aberta para a comunidade. Não é individualista
nem solitária, mas solidária. Na assembleia nacional da Comunhão
Anglicana, Sebastião Armando fez uma exaustiva reflexão sobre a di-
aconia (serviço) como sendo a própria identidade da Igreja. Se

CEBI - Paulo e suas cartas


77

dizemos que a liberdade cristã é solidária, vale dela transcrever o se-


guinte: “A ação de solidariedade tem como objetivo reconstruir as
pessoas, na medida em que vai-lhes possibilitando experimentar o sen-
timento de filiação divina. Isso só se efetiva, se na prática, no modo
de fazer, desde o culto até a ação social, se afirma a dignidade das
pessoas, sua liberdade e sua capacidade de participação coletiva”.
Na apologia pessoal que faz logo no começo da Carta aos Gálatas
(Gl 1,11-2,21), é admirável o modo como Paulo descreve o verdadeiro
surto de liberdade que irrompe em sua vida pela conversão. O Evan-
gelho entrou em sua vida pela própria revelação de Jesus Cristo, no
momento em que se distinguia no judaísmo, isto é, no zelo pelas tra-
dições paternas (Gl 1,12.14). Não se sentiu na obrigação de dar satis-
fações em Jerusalém, mas começou logo sua atividade apostólica, indo
avistar-se com Pedro e Tiago só três anos depois (Gl 1,16-18). Passa-
ram-se 14 anos antes de voltar a Jerusalém para o Concilio. Na liber-
dade dos cristãos-gentios, em relação à Lei já consolidada, estava livre
o campo para o seu ministério apostólico (Gl 2,1-9). Paulo estava livre
“para servir aos pobres” (Gl 2,10) e, em nome dessa liberdade, censura
publicamente a atitude dúbia de Pedro (Gl 2,11-14). De maneira inci-
siva, afirma a nova liberdade desencadeada pela Cruz de Cristo (Gl
2,15-21).
A partir de Esdras, que tanto se empenhou na restauração de Israel
depois do cativeiro (458-428 a.C.) e, para isso, recorreu à Lei de Moi-
sés, como o instrumento primordial, essa Lei se tomará uma espécie
de camisa de força que tolhia a liberdade. A defesa da liberdade em
relação à Lei está no centro do conflito entre os fariseus e Jesus, que
“veio para servir” (Mc 10,45). E a lei maior dessa liberdade para servir
Paulo a vê na Cruz de Cristo.
Para concluir essas considerações, valemo-nos do que escreveu Se-
bastião Armando: “Na verdade o regime da Lei resulta na hipocrisia
pela qual se mascara a impossibilidade de cumprir suas exigências; ou
no orgulho do qual se alimenta o sentimento de superioridade de quem
se sobreestima em sua capacidade de cumprir a Lei e despreza a fra-
queza dos demais; na cegueira que endurece o coração e cerra os olhos
à complexidade da realidade humana em construção; no desespero de
quem encara com honestidade a própria fragilidade, mas sob a

CEBI - Paulo e suas cartas


78

incapacidade de desprender-se do sentimento do próprio poder, pois,


de fato, o desespero é uma forma camuflada de orgulho...
A Cruz desmascara o absurdo das pretensões humanas: nem a sa-
bedoria, nem o regime da Lei é capaz de conduzir à felicidade. E
(Paulo) explicita-o mostrando a degradação opressiva da idolatria e
todo o peso igualmente opressivo do regime da Lei. E anuncia o para-
doxo: a palavra que instrui, opera o discernimento e orienta a vida não
é mais nem a sabedoria nem a Lei, mas a concreta caminhada de vida
de um excluído pelo sistema e condenado à morte” (Palavra da cruz
X ideologia, p. 11).

CEBI - Paulo e suas cartas


79

Carta aos Efésios

Introdução

A opinião de muitos estudiosos é de que a Carta aos Efésios não é


da autoria do próprio Paulo, mas foi atribuída a ele por um discípulo
muito fiel ao seu pensamento que escreveu bem depois, por volta do
ano 90. Acham ainda que se trata de carta circular, dirigida às Igrejas
da Ásia Menor. Assim como a Carta aos Romanos amplia e aprofunda
a reflexão da Carta aos Gálatas, esta carta amplia e aprofunda a refle-
xão da Carta aos Colossenses. O motivo do título, “aos Efésios”, foi
conservado porque a cópia da circular que passou a constar das cartas
paulinas foi encontrada em Éfeso. Mas a menção a Éfeso em Ef 1,1
falta em muitos manuscritos.
Como as cartas aos Colossenses, aos Filipenses e a Filemon, apre-
senta-se como escrita da prisão (Ef 3,1; 4,1; 6,20). Mas o estilo impes-
soal, a ponto de considerar os efésios desconhecidos (Ef 1,15; 3,2ss.;
4,21), é muito estranho para quem passou três anos no meio deles (cf.
At 19,1-20,1).
Seja como for, a doutrina exposta nessa carta é genuinamente pau-
lina e ela pode perfeitamente ser atribuída à sua paternidade, embora
não se possa saber com certeza quem foi o redator final, nem a data,
nem os destinatários, nem o local de composição.
DIVISÃO DA CARTA

SAUDAÇÃO 1,1-2
I PARTE: o Mistério de Cristo na Igreja 1,3-3,21
- Louvor a Deus pela redenção e predestinação em Cristo 1,3-
14
- Supremacia de Cristo 1,15-23
- Da morte à vida 2,1-10
- Todos, judeus e gentios, unidos em Cristo 2,11-22
- Paulo e o mistério de Cristo 3,1-13
- Enraizados e alicerçados no amor 3,14-21
II PARTE: viver o Mistério de Cristo 4,1-6,20
- Unidade na diversidade 4,1-16

CEBI - Paulo e suas cartas


80

- Do homem velho para o homem novo 4,17-32


- Imitar a Deus como filhos da luz 5,1-20
- Submissos uns aos outros 5,21-6,9
- O combate da fé 6,10-20
SAUDAÇÕES FINAIS 6,21-24
CHAVES DE LEITURA
Igreja e Família - Um indício de que esta carta é de uma época
posterior a Paulo é a preocupação com a solidificação da Igreja, que
aponta para a última década do século I. Já não existe a expectativa da
volta imediata de Cristo e a Igreja deve preparar-se para durar muito
tempo. Não admira que o segundo centro de atenção seja a família, em
que a Igreja deita as suas raízes (Ef 5,21-6,9). A estabilidade da família
deve ser cimentada no amor de Cristo.
O combate da fé - Viver a fé num mundo adverso e hostil não é
possível sem combate, sem militância. A carta é muito incisiva quando
descreve as forças que devemos enfrentar e os recursos com que nos
devemos equipar (Ef 6,10-20). Esse conceito de militância, com pro-
fundas raízes cristológico-bíblicas, é de palpitante atualidade para nós,
hoje, diante das poderosas forças que desafiam a nossa fé.
Cristologia - Cristo não vive só no interior de cada pessoa. Ele é
cabeça da Igreja em que são incorporados judeus e gentios (Ef 1,3-
3,21). Mais ainda, é cabeça de toda a humanidade, Senhor da história
e de todas as dimensões do universo. Esse cristocentrismo da Carta
aos Efésios é que inspirou a concepção do “Cristo cósmico” do sábio
jesuíta Teillard de Chardin, que morreu em 1955 e foi uma das figuras
marcantes do nosso século.
ROTEIRO 7

A Igreja de Cristo

CEBI - Paulo e suas cartas


81

Palavra-chave: UNIVERSALIDADE
Texto de estudo: Ef 1,1-23
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Carta aos Efésios.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
Vivemos num mundo pluralista, fragmentado em todos os sentidos,
em que coexistem as diferenças e se manifesta um desejo difuso de
convergência. Estamos cercados de muitas e variadas expressões reli-
giosas. Inúmeras são as Igrejas que se denominam cristãs. E, além do
cristianismo, há muitas outras religiões, Não devemos esquecer duas
coisas fundamentais: a Igreja de Cristo é uma só, embora englobe di-
versas denominações, diferentes tradições doutrinais e de espirituali-
dade. Em segundo lugar, que a Igreja é um processo de permanente
construção da unidade na variedade de dons e na pluralidade dos mem-
bros do Corpo de Cristo (cf. Ef 4,1-6.11-13). Por isso, guardar a pró-
pria identidade e, ao mesmo tempo, abrir-se à construção de uma
Igreja efetivamente ecumênico, sinal eficaz da unidade humana, re-
presenta um desafio global e radical. Se Cristo é cabeça não só da
Igreja que congrega judeus e gentios, mas cabeça da humanidade e até

CEBI - Paulo e suas cartas


82

do universo, o apelo para a unidade não tem limites nem conhece fron-
teiras.
1. O ecumenismo pode limitar-se ao diálogo intereclesial?
2. Qual o horizonte da inculturação do Evangelho aberto por
Paulo?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Ef 1,1-23
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Neste hino cristológico, encontramos: o Jesus histórico, o Cristo da
fé e o Cristo cósmico.
a. Em que versículo aparecem as três interpretações?
b. Aprofundar cada uma das três dimensões a partir do texto.
2.2 Olhar para a situação das comunidades
O Jesus histórico viveu na Palestina, no ambiente da cultura ju-
daica, mas as comunidades da Ásia Menor recebem a influência de
outras culturas.
a. Qual o problema das comunidades que transparece no texto?
b. Como se percebe o processo de inculturação da fé em Jesus?
2.3. Escutar a mensagem do texto
O texto se concentra em Jesus, o Cristo da história, da fé e do uni-
verso, e celebra a graça de Deus que, em Jesus, recapitulou todas as
coisas, reunindo o universo inteiro sob um único chefe (cabeça).
a. Qual a mensagem desse hino para nós hoje?
b. Como conviver com o pluralismo religioso afirmando a fé cristã?

CEBI - Paulo e suas cartas


83

III. Celebrar a Palavra


1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 8.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos a Carta aos Filipenses (3,1-
21).
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 7

O Jesus da História e o Cristo da Fé

No início deste século, a crítica literária e histórica dos Evangelhos,


influenciada pelo avanço da historiografia, entrou num impasse e con-
fessou-se incapaz de atingir o “Jesus da história”. O biblista luterano
R. Bultmann rompeu o impasse ao concluir que a fé das comunidades
em Cristo não dependia da historicidade dos relatos evangélicos sobre
Jesus, mas sim de Deus e da sua Palavra. Ele estabeleceu assim uma
distinção entre o Jesus da História e o Cristo da Fé.
Esse problema é antigo. A sua origem está nos escritos do Novo
Testamento nos quais o Cristo da Fé das comunidades helenistas apa-
rece muito diferente de Jesus da História que viveu na Galiléia, confi-
nado no tempo e no espaço. Como é então que Jesus de Nazaré chegou
a ser a figura universal e cósmica que transparece nas cartas paulinas
(1Cor 2,8; 8,6; Fl 2,10; Ef 1,1-2,22; Cl 1,15-20) e no Apocalipse (Ap
1,12-16; 5,6-14)? Mediante a análise de um texto do Evangelho de
João e da Carta aos Efésios, vamos ver como esse problema se apre-
sentava para as primeiras comunidades cristãs e como foi resolvido
sem detrimento nem da fé nem da história.
Jo 20,11-18: TENSÃO ENTRE O CRISTO DA FÉ E O JESUS

CEBI - Paulo e suas cartas


84

DA HISTÓRIA
O texto é do fim século I. Descreve a aparição de Jesus a Madalena.
O autor procurou orientar a comunidade na vivência da fé em Jesus
ressuscitado e presente: “Felizes os que não viram e creram!” (Jo
20,29).
Maria Madalena está perto do sepulcro e chora (Jo 20,11.13.15). A
morte privou-a para sempre da presença do Mestre e amigo. O único
ponto de contato era o sepulcro onde foi colocado o seu corpo. Maria
não sai de lá. Ela quer preservar o lugar e os momentos em que tinha
experimentado pela última vez a presença daquele que tinha marcado
sua vida para sempre.
Olhando para dentro do sepulcro, ela vê dois anjos (Jo 20,11-12).
Eles perguntam: “Mulher, por que choras?” Mas a atenção e o afeto
de Madalena estão de tal modo voltados ao passado que não lhe passa
pela cabeça que a presença e a pergunta dos dois anjos possam signi-
ficar algo novo e diferente. Ela só sabe dizer: “Levaram o meu Senhor
e não sei onde o colocaram!” (Jo 20,13). Em seguida, o próprio Jesus
se apresenta e pergunta: “Mulher, por que choras? A quem procuras?”
(Jo 20,14-15). Mas a saudade, a lembrança do passado, a fixação na
pessoa de Jesus tal como tinha conhecido a impedem de perceber a
presença do próprio Jesus que conversa com ela. O Jesus da história
impedia de reconhecer o Cristo da fé. Seus olhos só se abrem quando
Jesus a chama pelo nome: “Miriam!” (Jo 20,16). Mas o simples reco-
nhecimento ainda não é a experiência da ressurreição. Ela diz: “Ra-
boni!” (Jo 20,16). É o nome de antes, de quando ainda convivia com
Jesus. Ainda não é o nome do Ressuscitado. Para Madalena, no mo-
mento em que reconheceu Jesus, tudo voltou a ser como antes. Ela
tenta agarrar Jesus para retê-lo e impedir que alguém o leve de novo.
Ainda não percebe que a presença não é a mesma de antes, que a vida
é a vida da Ressurreição. Falta o passo decisivo que Jesus ajuda a dar:
“Não me retenhas!” (Jo 20,17). Em vez de reter, Madalena deve apren-
der a soltar. Ela só possuirá a vida quando estiver disposta a perdê-la
(Mc 8,35). Só resta a ela e a nós soltar todas as certezas construídas
anteriormente e ficar com a certeza da fé: “Ele está vivo no meio de
nós!” Presença amiga, absolutamente certa, que não pode ser manipu-
lada nem assegurada por nosso esforço! E na entrega total de tudo que

CEBI - Paulo e suas cartas


85

está a fonte da plena liberdade. A experiência da gratuidade dessa pre-


sença amiga enche a vida de tal modo que a pessoa se sente impelida
a partilhá-la com os outros. Em vez de ficar parada, fixada em Jesus,
Madalena sai para anunciá-lo à comunidade (Jo 20,17), proclamando:
“Vi o Senhor!” (Jo 20,18).
Análise semelhante pode ser feita do episódio de Emaús relatado
no Evangelho de Lucas (Lc 24,31-35).
CARTA AOS EFÉSIOS: SÍNTESE ENTRE O JESUS DA HIS-
TÓRIA E O CRISTO DA FÉ
A Carta aos Efésios traz a nova compreensão que as comunidades
tinham do “mistério de Cristo” (Ef 3,4): as promessas de Deus que
antes eram só para o povo de Israel, agora, em Cristo, pertencem tam-
bém aos gentios. Essa é a Boa Nova de Deus anunciada por toda parte
(Ef 3,2-13). O alcance da Boa Nova transparece nos cânticos conser-
vados nas cartas aos Efésios (Ef 1,3-14), aos Colossenses (Cl 1,15-20)
e aos Filipenses (Fl 2,6-11). Neles, o Jesus da História, que viveu ape-
nas 33 anos, aparece como Jesus Cristo, figura cósmica, que já existia
antes da criação do mundo
(Ef 1,4; Cl 1,16-18) e que é destinado por Deus para ser aquele “em
que são recapituladas todas as coisas, as que estão no céu e as que
estão na terra” (Ef 1,10). Pela ressurreição, calca aos pés todos os po-
deres do universo e os domina como a cabeça da Igreja, seu corpo, a
plenitude daquele que plenifica tudo em todos (Ef 1,21-23). A totali-
dade do universo é evocada nas dimensões do amor de Cristo que
exerce todo o conhecimento (Ef 3,18-19). Unidade, totalidade, pleni-
ficação são conceitos fortes que revoam na exortação (Ef 4,4-10).
Havia o escândalo e a loucura da Cruz (1Cor 1,23). O Jesus da
História morreu suspenso no madeiro e, pelo Antigo Testamento, era
maldito de Deus (cf. Dt 21,23). Como pode ele ser o Messias da gló-
ria? Por isso alguns que só queriam a glória suprimiam a Cruz, ne-
gando a encarnação: “Jesus não veio na carne” (1Jo 4,2-3; 2Jo 7). Mas
essa opinião nunca foi aceita pelas comunidades. Pelo contrário, elas
viam na própria Cruz o começo da glória. A Carta aos Efésios ensina
que a glória é o fruto da doação que Jesus fez de sua vida (Ef 1,6-7).
O Cristo que subiu ao mais alto do céu é o mesmo que antes desceu ao

CEBI - Paulo e suas cartas


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mais profundo da terra (Ef 4,8-10). O mesmo contraste entre cruz e


glória existe também na vida das comunidades: apesar de ter a grande
revelação do “mistério de Cristo” (Ef 3,2-4), Paulo se apresenta como
prisioneiro (Ef 3,1; 4,1) e pede que suas tribulações não sejam motivo
de abatimento, mas de glória (Ef 3,13).
A glória que se manifesta em Jesus revela o destino de quem crê.
O que contempla no Cristo da Fé é o futuro esperado que já começou
na vida da comunidade. A comunidade já é animada pela força da Res-
surreição. Quem vive na comunidade já ressuscitou e subiu com Jesus
para o céu (Ef 2,3-6). O poder que opera na comunidade é o mesmo
poder de Deus que tirou Jesus da morte (Ef 1,19-23). O acesso à com-
preensão do mistério de Cristo passa pela experiência da ressurreição
que supõe a morte.
VIDA DE JESUS, MORTE NA CRUZ, FÉ NA RESSURREIÇÃO
É sob a luz da Ressurreição que os Evangelhos foram escritos. No
entanto, a vida do Jesus da História é carregada de conflitos, mesmo
em relação às pessoas que o aceitaram e seguiram. O ponto crucial do
desencontro está entre as expectativas por ele suscitadas e o seu com-
portamento. E que, no imaginário do povo, alimentado sobretudo pelas
profecias do Antigo Testamento, o Messias esperado seria poderoso e
invencível para restaurar Israel. Como diz o canto: “Eles queriam um
grande rei - Que fosse forte e dominador - E por isso não creram nele
- E mataram o Salvador” (Esta letra é de Pedro e Onofre, dois violeiros
lavradores de Goiás).
Com firmeza e paciência, Jesus preparou seus discípulos e discípu-
las para o desenlace da Cruz, contrapondo ao papel glorioso de Mes-
sias o papel doloroso do Servo sofredor, anunciado por Isaías (Mt
16,21-23; 17,22-23; 20,17-19). No entanto não conseguiu abrir-lhe os
olhos e a Cruz representou para eles uma verdadeira catástrofe (cf. Lc
24,19-21). Na hora fatal, os estranhos (transeuntes) e os adversários
tripudiavam, desafiando Jesus a descer da Cruz (Mc 15,29-32). Sem
dúvida, a Cruz foi escândalo para os judeus e loucura para os gentios
(1Cor 1,23).
Paulo não conheceu o Jesus da História. Seu contato foi direta-
mente com o Jesus Ressuscitado, o Cristo da Fé, que se identificou de

CEBI - Paulo e suas cartas


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imediato com as comunidades perseguidas por ele (At 9,5; 22,8;


26,15). Dessa primeira forte experiência decorre a visão que Paulo tem
de Jesus como cabeça da Igreja que é o seu corpo (1Cor 11,3; 12,12;
Ef 1,22-23; 4,15-16; 5,23; Cl 1,15). O amadurecimento de sua fé no
convívio com as comunidades em que o Cristo da Fé está presente
leva-o a ampliar ainda mais essa visão, e o esplendor do Cristo ressus-
citado envolve todo o universo, o cosmos, como o eixo da unidade
(1Cor 15,23-25; Ef 1,10; Fl 3,21; Cl 1,20; 2,10.14-15). Ensinam os
teólogos que a fé não esbarra no conceito, mas atinge a realidade nela
assinalada. Eis por que o ecumenismo visceralmente ligado à fé cristã
não pode encontrar barreiras.
Jesus morreu porque foi fiel ao compromisso assumido com o Pai
de ser o Servo, o servidor dos pobres e marginalizados. Foi condenado
à morte da Cruz porque era marginalizado e incomodou os grandes da
época, tanto do poder religioso como do poder civil. Por isso, no Novo
Testamento, se insiste tanto em afirmar que o Cristo que agora vive na
glória é aquele mesmo Jesus que viveu pobre na Palestina, junto dos
pobres.
A Carta aos Hebreus afirma que “Jesus Cristo é o mesmo ontem e
hoje; ele o será para sempre” (Hb 13,8). Mas é bom lembrar que, na
mesma carta, o Cristo glorioso é aquele mesmo que, “durante sua vida
terrena, fez orações e súplicas a Deus, em alta voz e com lágrimas, ao
Deus que podia salvá-lo da morte. E Deus o escutou porque ele foi
submisso. Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente por
meio de seus sofrimentos” (Hb 5,7-9). O Cristo glorioso da nossa fé é
o mesmo Jesus da História que se faz presente no meio dos pobres e
excluídos.

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Carta aos Filipenses

Introdução

Filipos era “uma das principais cidades da Macedônia” (At 16,12).


Recebeu este nome de Filipe II, rei da Macedônia. Por ela passava uma
importante estrada que ligava a Ásia à Europa. Era uma colônia ro-
mana (At 16,12) onde, a partir de 42 a.C, foram morar militares apo-
sentados, e, por isso, gozava de privilégios. Devia haver muita desi-
gualdade social e exploração. Foi lá que Paulo e Silas foram parar na
cadeia por causa da cura de uma jovem escrava cujo distúrbio era uma
fonte de lucros para os patrões (At 16,16-24). Sob o ponto de vista
religioso, coexistiam religiões mistéricas vindas do Oriente, o ocul-
tismo, o culto ao imperador romano obrigatório em todas as colônias
romanas.
ORIGEM DA COMUNIDADE
O livro dos Atos dá muita importância à entrada do Evangelho na
Europa. Paulo teve antes uma visão em que um macedônio gritava:
“Vem à Macedônia e ajuda-nos!” Impressionado, percebe que é o pró-
prio Deus que o está chamando lá para o trabalho de evangelização
(At 16,9-10). O autor dos Atos começa a usar a primeira pessoa do
plural: “nós” (At 16,10), o que mostra que Paulo foi acompanhado por
Lucas, além de Silas e Timóteo.
A acolhida da mensagem e o nascimento da comunidade se dão por
um grupo de mulheres (At 16,13-15). Para fazer suas orações, as mu-
lheres se reuniam à margem do rio, onde Paulo e sua comitiva foram
encontrá-las no sábado (At 16,13), uma vez que não havia sinagoga.
Entre elas, destacava-se Lídia, uma negociante de púrpura, que aderiu
ao Evangelho com toda a sua casa e insistiu com Paulo e seus compa-
nheiros para hospedarem-se com ela (At 16,15). Era a primícia da mis-
são de Paulo em território europeu.
A CARTA
A Carta aos Filipenses é a mais afetuosa de todas as cartas de Paulo.
A comunidade ocupa o seu coração (Fl 1,7) e Deus mesmo é testemu-
nha de seu bem-querer e sua ternura (Fl 1,8).

CEBI - Paulo e suas cartas


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Os filipenses souberam da prisão de Paulo e enviaram-lhe Epafro-


dito, levando-lhe solidariedade expressa em donativos. Epafrodito
adoeceu gravemente e, depois que se recuperou, Paulo o fez portador
da carta (Fl 2,25-30). Embora seja uma carta de amizade, Paulo está
preocupado com a infiltração de intrusos que não hesita em xingar de
cães, maus operários, falsos circuncidados (Fl 3,2), inimigos da Cruz
de Cristo, cujo Deus é o ventre (Fl 3,18-19). Mas o que prevalece é o
tom de afeto e carinho.
Parece que o texto da carta, tal como o encontramos hoje na Bíblia,
não foi escrito de uma só vez. O começo do capítulo 3 (v. 1) e o meio
do capítulo 4 (vv. 8-9) têm um tom de despedida. Podemos pensar
numa compilação de cartas escritas em situações e lugares diferentes:
a) uma cartinha de agradecimento (Fl 4,10-23)
b) a carta principal sobre a sua situação (Fl 1,1-3, 1a + 4,4-7)
c) uma carta alertando contra os intrusos (Fl 3,16-4,3 + 4,8-9). Te-
mos três possibilidades de data e lugar em que foram escritas partes
desta carta:
a) na prisão em Éfeso, durante a 3a Viagem Missionária (56/57)
b) na prisão de Cesareia em 58-60 (cf. At 24,23-26,32)
c) na prisão de Roma em 61-63 (cf. At 28,16ss.).
DIVISÃO DA CARTA

INTRODUÇÃO: endereço e saudação inicial Fl 1,1-2


CORPO DA CARTA 1,3-4,20
- Oração de ação de graças pela comunidade 1,3-11
- Situação pessoal e expressão do Evangelho 1,12-26
- Apelo à unidade e perseverança na luta 1,27-2,18
- Projetos e recomendações aos colaboradores 2,19-3,1 a
- Advertência contra os intrusos e testemunho pessoal 3,1b-21
- Conselhos e encorajamento 4,1-9
- Agradecimentos e revisão de vida 4,10-20
CONCLUSÃO: Saudações e voto de bênção 4,21-23

CEBI - Paulo e suas cartas


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CHAVES DE LEITURA
1. Alegria. Reinava alegria nas primeiras comunidades cristãs (At
2,46), assim como reina, ainda hoje, nas festas e manifestações popu-
lares. A alegria perpassa a Carta aos Filipenses: “Dou graças a Deus
todas as vezes que me lembro de vós e sempre, em todas as minhas
súplicas, oro por todos vós com alegria” (Fl 1,3-4; cf. 1,18; 2,17;
4,1.10)
2. Opção radical por Jesus Cristo. Jesus Cristo é o centro da co-
munidade. Deve ser experimentado de perto. O relacionamento pes-
soal com ele é condição primeira para uma opção radical pelo segui-
mento. “O que era para mim lucro, eu o tive como perda por amor de
Cristo... Tudo eu considero perda pela excelência do conhecimento de
Jesus Cristo, meu Senhor. Por ele, eu perdi tudo e tudo tenho como
estéreo, para ganhar o Cristo e ser achado nele...” (Fl 3,7-9).
3. Perseverança na luta. Seguir Jesus significa ter os mesmos sen-
timentos e combater pela fé. A comunidade deve permanecer 6 ‘firme
num só Espírito, lutando junto com uma só alma, pela causa do Evan-
gelho” (Fl 1,27). E preciso coragem para não se deixar atemorizar pe-
los adversários (cf. Fl 1,28).
4. Hino cristológico: esvaziamento para assumir a condição de
servo. Um dos trechos mais conhecidos da Carta aos Filipenses é o
“hino cristológico” (Fl 2,6-11). É como uma pedra preciosa incrustada
na carta. Certamente é uma chave privilegiada para entrar na carta,
compreender quem é Jesus e aprender a segui-lo. Jesus é apresentado
como o Filho de Deus que não se apegou à condição divina (Fl 2,6),
mas se esvaziou a tal ponto que se fez “servo de Deus” (Fl 2,7). É por
causa dessa atitude de total despojamento e aniquilamento até chegar
à total solidariedade com a pessoa humana desfigurada, que Deus
exalta Jesus, o Filho, constituindo-o Senhor da História.
A palavra grega que costuma ser usada para designar esse processo
é kénosis.
ROTEIRO 8

Testemunho de Paulo

CEBI - Paulo e suas cartas


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Palavra-chave: | DESPOJAMENTO
Texto de estudo: Fl 3,1-21
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Carta aos Filipenses.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
No sistema capitalista, a mola da economia é o lucro. Entre nós,
várias distorsões entraram na linguagem comum, como a “lei de Ger-
son”, ou sempre tirar vantagem, a “lei de São Francisco”, ou “é dando
que se recebe”, aplicada sobretudo às negociatas políticas. Como a
base do sistema é a exacerbação do chamado “direito de propriedade”,
considerado como direito absoluto e sem limites, caminhamos vertigi-
nosamente para o neoliberalismo em que lucro, livre mercado e com-
petição formam uma espécie de tríade satânica de uma nova e nefasta
idolatria. Uma sociedade igualitária sempre foi o ideal bíblico do An-
tigo Testamento. No Novo Testamento, ela ressurge na comunidade
descrita no livro dos Atos (At 2,42-47; 4,32-35; 5,12-16), assentada
sobre os pilares da fraternidade, do despojamento e da solidariedade.
A vivência desses valores talvez seja a única arma eficaz para salvar a
humanidade ameaçada. Eles aparecem com vigor na vida de Paulo:

CEBI - Paulo e suas cartas


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depois que, na entrada de Damasco, despertou para a fraternidade, des-


pojou-se de tudo e se entregou totalmente à solidariedade.
1. Qual é a vacina que pode imunizar-nos contra os vícios do sis-
tema?
2. Como testemunhar nossa fé dentro de um sistema iníquo?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Fl 3,1-21
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1 Ver o texto de perto
O texto traz a mensagem de Paulo em forma de testemunho pes-
soal. Por fim, Paulo convida os filipenses a serem seus imitadores.
a. Quais os assuntos tratados neste texto?
b. Que símbolos Paulo usa e onde busca esses símbolos?
2.2. Olhar para a situação da comunidade O zelo de Paulo pela
comunidade de Filipos era tão grande que ele não podia deixar de
alertar contra alguns perigos.
a. Que perigos ameaçavam a comunidade de Filipos?
b. Como Paulo exorta a comunidade a enfrentar esses perigos?
2.3. Escutar a mensagem do texto
“Esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está
adiante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto que
vem de Deus em Cristo Jesus” (Fl 3,13-14).
a. Qual estímulo esse testemunho traz para a nossa vida?
b. Que espaço a afetividade ocupa em nosso relacionamento?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.

CEBI - Paulo e suas cartas


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2. Assumir um compromisso comunitário.


3. Orar o SI 131.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos a Carta aos Colossenses (2,6-
3,4).
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 8

O lugar das mulheres nas comunidades cristãs

O livro dos Atos e as cartas paulinas mencionam várias vezes a


presença de mulheres na organização e animação da vida das primeiras
comunidades. Na introdução geral, o item 6 do III Período da vida de
Paulo é intitulado: Paulo e as mulheres. Portanto, já tratamos deste
tema em relação às cartas paulinas. Agora vamos deter-nos mais nas
referências constantes do livro dos Atos.
MULHERES ACOLHEM O EVANGELHO
- At 1,14: ‘Todos estes, unânimes, perseveravam na oração com
algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus”.
- At 5,14: “Mais e mais aderiram ao Senhor, pela fé, multidões de
homens e de mulheres”.
- At 8,12: “Homens e mulheres faziam-se batizar”.
- At 9,1 -2: Sofriam perseguições ‘ ‘quer homens, quer mulheres’’.
- At 9,36: “... em Jope, havia uma discípula chamada Tabita, em
grego Dorcas, notável pelas boas obras...”.
- At 12,2ss.: Maria, a mãe de João Marcos, acolhia comunidade em
sua casa para a oração.
- At 16,15: “Após ter sido batizada com todos de sua casa, Lídia...”.
- At 17,4: “... não poucas mulheres da sociedade” de Tessa-lônica

CEBI - Paulo e suas cartas


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aderiram à fé e se uniram a Paulo e Silas.


- At 17,12: “Muitos dentre eles abraçaram a fé, também dentre as
mulheres gregas de alta posição...”
- At 18,1ss.: Priscila e Áquila ajudavam a orientar outras pessoas
no “Caminho”.
NASCIMENTO DA IGREJA EM FILIPOS
A Igreja de Filipos, que abriu as portas da Europa para o Evange-
lho, originou-se da reunião de um grupo de mulheres que adotavam a
religião judaica e se reuniam às margens de um rio “onde supúnhamos
que se costumava fazer oração” (At 16,13). Em Filipos não havia si-
nagoga, que, de certo modo, substituía o templo para os judeus da di-
áspora e onde Paulo normalmente os procurava no sábado para o pri-
meiro contato e anúncio do Evangelho. Pela observação do livro dos
Atos, percebe-se que, no judaísmo, havia grupos de mulheres que pra-
ticavam sua religião e louvavam a YHWH independentemente dos ho-
mens. Trata-se de uma participação ativa na prática religiosa judaica.
Depois de ouvir a Palavra anunciada pelos missionários, Lídia
abraçou a fé cristã e foi batizada com toda a sua casa
(At 16,14-15). O texto silencia sobre a reação das outras mulheres.
Toda a atenção se concentra em Lídia, “negociante de púrpura da ci-
dade de Tiatira, adoradora de Deus”. “Adoradora de Deus” significa
que Lídia não era do povo judeu, mas abraçara a religião judaica.
Sendo negociante de púrpura, não devia trabalhar isoladamente, por-
que o trabalho com púrpura, animal ou vegetal, exigia o empenho de
um grupo de pessoas, uma espécie de cooperativa. E como o conceito
de “casa” é mais abrangente do que o núcleo familiar, ele pode ser
interpretado aqui como o grupo de mulheres que trabalhavam com
púrpura, lideradas por Lídia. Já o convite “vinde morar em minha
casa” (At 16,15) supõe a casa como residência. Paulo, de certo modo,
sente-se forçado a aceitar, contra sua linha de conduta ordinária, pela
insistência: “Se me considerais uma fiel ao Senhor”.
A proteção de Lídia não evitou a prisão, provocada pelo tumulto
desencadeado pela cura da jovem escrava (At 16,16-24). Libertados
miraculosamente e depois da conversão do carcereiro e todos os seus

CEBI - Paulo e suas cartas


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(At 16,33), Paulo e Silas voltam à casa de Lídia, onde os aguardam os


“irmãos”, isto é, também homens que aderiram ao Evangelho, prova-
velmente graças ao trabalho missionário de Lídia.
É de pensar que o tom afetuoso da Carta aos Filipenses tenha algo
a ver com Lídia e sua casa.
MULHERES COLABORAM NA COORDENAÇÃO DAS CO-
MUNIDADES
Percorrendo o livro dos Atos, vamos encontrar várias outras passa-
gens em que a presença da mulher abre caminho para que a Palavra
encontre raiz e consistência numa comunidade. Em At 12,12-17, en-
contramos a comunidade reunida na casa de Maria, mãe de João Mar-
cos, para onde Pedro, miraculosamente libertado da prisão, se dirige.
A semelhança de Lídia, Tabita ou Dorcas, aparece como discípula do
Senhor, muito conceituada, pois “praticava muitas boas obras e dava
fartas esmolas” (At 9,37). Tendo morrido, o grupo de viúvas a quem
beneficiara acorreu para chorar sua morte (At 9,39). Pedro a fez revi-
ver e, para júbilo e admiração de todos, apresentou-a viva “aos santos
e às viúvas” (At 9,42).
Passando às cartas paulinas, é do pessoal da “casa de Cloé” que
Paulo recebe notícia dos desentendimentos da comunidade de Corinto
(1Cor 1,11). Provavelmente Ninfas, a quem Paulo manda saudações
extensivas à comunidade que se reúne em sua casa, é uma mulher (Cl
4,15). Seja ou não, a simples menção da “sua casa’’ privilegia a pre-
sença feminina.
Nas saudações finais da Carta aos Romanos, aparece toda uma
constelação de mulheres que têm um papel saliente na vida das comu-
nidades: a diaconisa Febe (Rm 16,1.2), Priscila (Rm 16,3-5), Maria
(Rm 16,6), Júnia (Rm 16,7), Trifena, Trifosa e Pérsida (Rm 16,22), a
mãe de Rufo (Rm 16,13), Júlia, a irmã de Nereu, e Olimpas (Rm
16,19).
As mulheres aparecem, assim, como elos vivos de uma corrente
que vai tecendo a rede das primeiras comunidades cristãs. Lideram a
organização e animação dessas comunidades constituídas de homens
e mulheres.

CEBI - Paulo e suas cartas


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PÓLO REFERENCIAL: A PRÁTICA DE JESUS


Devemos admitir que as comunidades não conseguiram assimilar
e traduzir na prática comunitária o princípio libertário, com relação à
mulher, instaurado por Jesus Cristo. Na sua prática, Jesus manifesta
um modo de relacionamento igualitário que supera as normas discri-
minatórias para com as mulheres. Em lugar de uma ética legalista dura
e machista, Jesus cria a ética da responsabilidade, do amor, do respeito
à dignidade da mulher.
- A adúltera condenada pela lei dos escribas e fariseus não só é
preservada e respeitada, mas também se torna motivo de reflexão para
os homens sobre seus próprios atos, constituindo-se forte apelo à con-
versão (Jo 8,1-11).
- A Samaritana, duplamente discriminada por ser mulher e ser sa-
maritana, merece um tratamento afável, que surpreende a ela (Jo 4,9)
e aos discípulos (Jo 4,27).
- A mulher que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas, enxugou-
os com seus longos cabelos e os ungiu com perfume, considerada pe-
cadora pelos judeus, é, aos olhos de Jesus, “a que muito amou” e, por
isso, é exaltada (Lc 7,36-50).
A tarefa das primeiras comunidades cristãs era traduzir na prática
esse princípio libertário seguido por Jesus. Uma tarefa nada fácil, que
está longe de ser concluída. A semente lançada por Jesus Cristo está
por germinar e mostrar toda a sua força, capaz de gerar vida e liberta-
ção plena para as mulheres na sociedade e nas igrejas.

CEBI - Paulo e suas cartas


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Carta aos Colossenses

Introdução

A cidade de Colossos, hoje em ruínas, foi fundada no século V a.C.


Caiu em decadência no século I d.C. por causa de frequentes terremo-
tos. Era uma pequena cidade da Ásia Menor, perto de Laodiceia e Hi-
erápolis (cf. Cl 4,13.15), por onde passava a estrada que conduzia à
parte oriental de Éfeso.
ORIGEM DA COMUNIDADE CRISTÃ
Paulo nunca visitou a cidade (Cl 2,1). Quem fundou a comunidade
cristã em Colossos foi Epafras (Cl l,14ss.), um convertido de Paulo em
Éfeso, “fiel ministro de Cristo” (Cl 1,7), que levou a Paulo notícias,
em geral animadoras, sobre a comunidade (Cl 1,8). Pode-se supor que
o trabalho de Epafras em Colossos tenha orientado diretamente por
Paulo, que acompanhava com vivo interesse o desenvolvimento dessa
comunidade que era formada predominantemente por gentios conver-
tidos.
AUTOR DA CARTA, DATA E LUGAR
Ultimamente, a opinião de muitos biblistas é de que a Carta aos
Colossenses não é da autoria de Paulo, mas de um discípulo que a atri-
buiu a ele. Alegam que a linguagem, o estilo e a cristologia cósmica
não concordam muito com as outras cartas de Paulo. Além disso, entre
esta carta e a Carta aos Efésios, sobre a qual paira a mesma dúvida, há
muitas semelhanças: Cl 1,25 = Ef 3,2; Cl 2,19 = Ef 4,16; Cl 3,9-10 =
Ef 4,22-24; Cl 3,7-8 = Ef 6,21-22. De qualquer maneira, a carta foi
escrita em nome de Paulo. O estreito vínculo com a tradição paulina e
a situação das comunidades da Ásia Menor levam a pensar que a úl-
tima redação da carta foi feita em Éfeso, em torno do ano 80. Assim
como a Carta aos Gálatas está na base da Carta aos Romanos, também
a Carta aos Colossenses está na base da Carta aos Efésios.
Na hipótese de que o texto atual seja a ampliação posterior de uma
carta de Paulo, as alusões à prisão (Cl 4,3ss.l0.18) devem referir-se à
prisão em Éfeso.

CEBI - Paulo e suas cartas


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MOTIVOS DA CARTA
A firmeza da fé dos colossenses estava sendo ameaçada por um
movimento sincrético de caráter judeu-gnóstico (Cl 2,4.8.20). Seus
promotores exigiam a observância de festas, luas-novas e sábados (Cl
2,16). Impunham preceitos alimentares (Cl 2,16-20) e ascéticos (Cl
2,23), insistiam na veneração dos anjos (Cl 2,18) e das forças cósmicas
(Cl 2,8; cf. Gl 4,9) para afastar seus poderes maléficos. Contra a “vã
filosofia’’ baseada em tradições humanas (Cl 2,8.22ss.), Paulo apre-
senta Cristo como único Salvador (Cl 1,15-22). Ele é a imagem do
Deus invisível, o princípio e a cabeça do cosmos, criador de todas as
coisas, inclusive dos anjos. Reconciliou tudo pela cruz, triunfando so-
bre todos os poderes espirituais. Enfim, em Cristo estão a salvação, o
conhecimento, a sabedoria (Cl 2,6-15).
DIVISÃO DA CARTA
INTRODUÇÃO: destinatários e saudação Cl 1,1-2
I PARTE: riqueza da fé e primado de Cristo 1,3-2,5
- Ação de graças pelas notícias recebidas 1,3-8
- Oração que culmina no hino cristológico 1,9-20
- Esperança que brota do anúncio do Evangelho 1,21-29
- Solicitude de Paulo pela comunidade 2,1-5
II PARTE: advertência contra erros 2,6-3,4
-As vãs doutrinas e a verdadeira fé em Cristo 2,6-15
- A superação dos “elementos do mundo” em Cristo2,16-3,4
III PARTE: exortação - conseqüência prática da fé cristã 3,5-4,6
- Um novo relacionamento na comunidade. 3,5-17
- Preceitos de moral doméstica 3,18-4,1
- Espírito apostólico 4,2-6
COMPLEMENTOS E SAUDAÇÃO FINAL
- Envio de Tíquico e Onésimo 4,7-9
- Saudações dos companheiros de Paulo 4,10-14
- Saudações aos destinatários 4,15-17
- Saudação final 4,18
CHAVES DE LEITURA
Entre as muitas possíveis, escolhemos algumas que nos parecem
mais expressivas:

CEBI - Paulo e suas cartas


99

Vigilância. A vida é como um mar revolto e nossa fé em Cristo


deve estar sempre alerta, como o piloto do barco na tempestade.
Cristo tudo em todos. O Cristo é tudo e não devemos desviar a
atenção para outras entidades, forças e poderes.
Falsa ascese. A ascese, a austeridade não tem valor em si mesma.
É preciso estar atento. A verdadeira ascese é criar novas relações de
justiça e partilha. É seguir Jesus e revestir-se dos seus sentimentos
Novas relações de justiça. Numa comunidade seguidora de Jesus
não há mais lugar para privilégios pessoais. Homens e mulheres, pa-
trões e empregados, todos são servos do único Senhor: “Quem faz in-
justiça receberá de volta a injustiça e nisso não há acepção de pessoas”
(Cl 3,25).
ROTEIRO 9

Doutrinas estranhas

Palavra-chave: PLURALIDADE
Texto de estudo: Cl 2,6-3,4

CEBI - Paulo e suas cartas


100

Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Carta aos Colossenses.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
Vivemos num tempo de forte inquietação religiosa e busca espiri-
tual. Nota-se isso em todas as camadas da sociedade, mas sobretudo
nas camadas mais pobres. O povo sofrido, não tendo para quem apelar,
agarra-se a Deus de qualquer maneira, não se importando muito com
o nome da religião. Como diz um personagem de Guimarães Rosa:
“Religião eu bebo de todas”. Isso é perigoso porque pode haver muita
manipulação e exploração dos símbolos religiosos. Mais do que
nunca, somos chamados a discernir entre o diálogo inter-religioso, que
é uma grande riqueza, e a manipulação ou exploração religiosa. Na
Ásia Menor, os missionários do Evangelho viveram uma situação
muito semelhante à nossa. O encontro da cultura judaica com a hele-
nista é marcado pela mistura de etnias, correntes filosóficas, doutrinas
e crenças religiosas. Essa realidade transparece na Carta aos Colossen-
ses.
1. Conversar sobre a mistura de doutrinas e crenças religiosas nos
ambientes em que vivemos.
2. Quais os valores novos que podemos assumir?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Cl 2,6-3,4
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
A impressão que dá o texto não é de uma estrada plana e reta. O
autor parece um hábil manobrista.
a. Como podemos dividir o texto?

CEBI - Paulo e suas cartas


101

b. Qual o assunto principal de cada parte?


2.2. Olhar para a situação da comunidade
No texto, encontramos muitas advertências e alertas para perigos e
ameaças à fé cristã.
a. Que perigos parecem ameaçar a comunidade?
b. Que soluções a carta oferece?
2.3. Escutar a mensagem do texto
“Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto...
Pensai nas coisas do alto, não nas da terra, pois morrestes e vossa
vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,1-2).
a. Em nome da fé, podemos alienar-nos dos problemas concretos
da vida?
b. O que significa a certeza de que nossa vida está com Cristo em
Deus?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 16.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos a Ia Carta aos Tessalo-nicen-
ses (4,13-5,11).
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 9

Religiões

A consciência da missão de anunciar a Boa Nova do Evangelho era

CEBI - Paulo e suas cartas


102

muito viva nas primeiras comunidades cristãs. O grande desafio era


traduzir a mensagem de Jesus nas diferentes culturas da época. Foi
este o grande desafio que Paulo enfrentou exemplarmente. Eis o que
sobre ele escreve Sebastião Armando:
“Não é cristão de nascença, nem mesmo conviveu com Jesus. Seu
encontro com o Evangelho surpreende e desconcerta fora e dentro das
comunidades. É até olhado com desconfiança (cf. At 9,26-30). Para
ele, o Evangelho não é ‘natural’. Sente-o como algo que se lhe impõe,
jugo de que já não é mais possível apartar-se (cf.Fl 4,3), aguilhão con-
tra o qual é inútil recalcitrar (cf. At 26,14). Adere ao Evangelho após
perseguir ‘homens e mulheres seguidores do caminho’ (cf. At 9,2).
Sente-se como um fruto abortivo (cf. 1Cor 15,8). Sua experiência é a
de ser chamado diretamente pelo Senhor e compreende sua vocação
como contribuição original à construção da Igreja. Essa experiência o
provoca à iniciativa. Faz tudo o que lhe é possível para manter-se na
comunhão com os outros apóstolos e discípulos e com a Igreja-mãe de
Jerusalém, mas não está disposto a renunciar jamais ao que julga ser
sua vocação estritamente pessoal, que lhe foi dada diretamente pelo
Senhor: abrir a Igreja aos gentios. Ele defende sua autonomia missio-
nária até o fim, enfrentando sérios conflitos e com risco de vida, fora
e dentro da Igreja (cf. At 13,50-52; 14,4-7; 16,19ss.; 19,23ss.; 21,28;
2Cor 4,7ss.; 10-12; Fl 1)”. (Reler Paulo - Desafio à Igreja, Série A
Palavra na Vida, n. 79/80, São Leopoldo: CEBI, 1994, p. 7-8).
Temos hoje esse mesmo desafio. Sem olhar para a vasta paisagem
do mundo, fiquemos no nosso quintal. Vivemos num país multicultu-
ral. Isso, por um lado, significa grande riqueza e variedade de símbolos
culturais e religiosos. Por outro lado, sentimos dificuldade de reler
nossa história e descobrir nossa identidade cultural e religiosa como
povo.
A primeira “evangelização” satanizou e combateu os símbolos cul-
turais e religiosos dos moradores originários do nosso território. Ainda
hoje, continuam as conseqüências desse modo de pensar a evangeliza-
ção, o anúncio da Boa Nova.
A rica simbologia religiosa afro-índia-brasileira encontra pouco es-
paço em nossa celebrações. Na releitura dos “500 anos de evangeliza-
ção”, nota-se uma forte reação contra a romanização. Há uma

CEBI - Paulo e suas cartas


103

crescente consciência de valorização das diversas culturas e simbolo-


gias religiosas.
É importante levar em conta que estamos no final de um milênio.
A história nos mostra que é sempre um tempo propício para o surgi-
mento de ideias apocalípticas e espiritualistas. Com isso, surgem mui-
tas doutrinas e diferentes crenças e movimentos, como o da indefinida
Nova Era.
Nesse contexto, surgem algumas perguntas fundamentais: o que é
diálogo religioso e o que é manipulação religiosa? Qual a metodologia
adequada para a evangelização das massas populares? Como continuar
hoje o movimento de Jesus na vivência das comunidades?
CLAREANDO ALGUNS CONCEITOS
Religiosidade popular
Religiosidade popular é uma predisposição, um clima, uma busca
que o povo tem de Deus, antes mesmo de qualquer anúncio explícito.
Por causa de sua religiosidade, o povo se torna receptivo à proposta
do Evangelho.
O povo brasileiro é profundamente religioso. Sinais disso apare-
cem a toda hora: sinal da Cruz ao passar por uma igreja ou ao começar
alguma atividade, inúmeras expressões como “vai com Deus”, “graças
a Deus”, “se Deus quiser”, “Deus lhe pague”, etc.
O povo brasileiro é místico porque possui uma experiência direta
do sagrado. Não são os conceitos racionais e as práticas da “religião
oficial” que dão força ao povo para agüentar a dureza de tanta injustiça
e sofrimento do dia-a-dia. Há outras fontes de onde o povo bebe e
haure forças para a caminhada, no desejo de religar todas as coisas a
Deus. É o próprio Deus da Vida que caminha com seu povo rumo à
Terra Prometida.
Festas, peregrinações, caminhadas de fé, devoções, música, tudo
faz parte de um grande potencial religioso no nosso povo. Esse poten-
cial provém da soma de muitas culturas e da convergência de vários
ritos religiosos ou implantados pelos colonizadores, ou preservados
pelos indígenas, ou importados pelos africanos. Resgatar e valorizar a
riqueza da religiosidade popular é um desafio permanente aos que

CEBI - Paulo e suas cartas


104

seguem o caminho de Jesus.


Religião e seita
Religião não é seita. Um grupo religioso vira seita quando começa
a se fechar em si mesmo e em seu projeto de salvação. É quando seus
membros começam a achar que somente eles estão certos e se salva-
rão: as outras pessoas todas estão no erro e serão condenadas. Daí pro-
vêm certa agressividade, certo puritanismo, certa tendência a apartar-
se dos outros e alienar-se dos problemas que afligem o povo.
Pior ainda quando tais grupos fanáticos exploram o povo para tirar-
lhe o pouco que ainda tem para seu sustento em troca de uma suposta
salvação garantindo o céu e a libertação dos males desta vida. A im-
pressão que se tem é que fundar uma nova igreja ou uma nova religião
é um “negócio” muito rentável.
Nenhuma religião ou igreja está livre de ter tendências sectárias.
Por isso, todas as religiões devem permanecer sempre na dinâmica do
“Caminho” tal como nos apresenta o livro dos Atos dos Apóstolos.
Isso implica um processo de revisão permanente de suas expressões
simbólicas e manifestações religiosas.
E necessário discernir
As questões levantadas nos mostram que é tempo de discernimento
e não de julgamento. Acreditamos que o Espírito Santo sopra onde
quer e como quer. As sementes do Evangelho já estão semeadas em
todas as culturas pelo Espírito de Deus. Aprendemos essa convicção
de fé a partir da experiência das primeiras comunidades cristãs. Mas é
necessário discernir.
Na comunidade de Colossos temos uma situação muito parecida
com a que vivemos hoje em nossas comunidades. As especulações fi-
losóficas foram consideradas vãs e enganadoras pelo autor da Carta
aos Colossenses (Cl 2,8).
Ele alerta ainda para um grupo que presta culto aos anjos ou outros
que usam como critério a influência de “elementos deste mundo”, e
não de Jesus Cristo. A carta adverte a respeito de uma falsa religiosi-
dade de aparências que está fadada ao desaparecimento por desgaste
(Cl 2,22-23). A busca de outras plenitudes fora de Cristo, única

CEBI - Paulo e suas cartas


105

plenitude, é a grande preocupação que está por trás da Carta aos Co-
lossenses. O autor da carta conclui que o critério evangélico maior é
este: “Cristo é tudo em todos” (Cl 3,11).
Cristo é tudo em todos!
Essa afirmação é a culminância do que foi dito antes: acabaram as
divisões entre gregos e judeus, circuncisos e incircuncisos, bárbaro e
cita, escravo e livre. Cristo é tudo em todos! Eis a referência básica.
Vivendo a partir desse critério, saberemos dialogar com as diferenças,
mantendo nossa identidade de filhas e filhos de Deus e a abertura ao
amor, ao diálogo, na luta por uma sociedade nova, justa e fraterna.
É preciso reconhecer a semente da Palavra de Deus presente em
todas as culturas e dar-lhe condições para crescer e frutificar.
Concluindo, podemos dizer que nenhuma cultura, como também
nenhuma crença religiosa é tão completa em si mesma que possa es-
gotar toda a potencialidade da Boa Nova. Por outro lado, nenhuma
cultura ou religião é tão insignificante que não contenha já em si a
semente da Palavra de Deus revelada em plenitude por Jesus Cristo.

CEBI - Paulo e suas cartas


106

Ia e 2a Cartas aos Tessalonicenses

Introdução

Cabe à comunidade de Tessalônica o privilégio de ter recebido a


Primeira Carta de Paulo, Silvano e Timóteo, que é também o primeiro
escrito do Novo Testamento. Com relação à Segunda Carta aos Tes-
salonicenses, há muitas controvérsias e põe-se em dúvida a autoria
paulina. Sem considerar todas as discussões, trataremos aqui conjun-
tamente das duas cartas.
A CIDADE DE TESSALÔNICA
Situada à beira-mar, junto a uma cadeia de colinas, Tessalônica
sempre foi alvo de cobiça imperial. Após conquistá-la, os romanos fi-
zeram dela capital da Macedônia, em 146 a.C. A urbanização e o fa-
voritismo impulsionaram o seu crescimento. Já o nome, Tessalônica,
fora uma homenagem a Tessália, irmã de Alexandre e esposa de Cas-
sandro, fundador da cidade em 315 a.C.
Além de possuir um dos melhores portos naturais do mar Egeu,
Tessalônica era atravessada pela Via Ignácia, uma estrada que ligava
Roma ao Oriente. Após a batalha de Filipos, em 42 a.C, Augusto lhe
concedeu o título de cidade livre, que lhe dava direito a possuir uma
assembleia popular e seus magistrados, chamados de politarcas (cf. At
17,8).
Do ponto de vista religioso, Tessalônica era uma típica cidade sin-
cretista do Império Romano. Havia os antigos cultos locais, as divin-
dades gregas e egípcias, os deuses asiáticos, o culto romano e uma
forte sinagoga judaica.
OS INÍCIOS DA COMUNIDADE CRISTÃ
A chegada do Evangelho a Tessalônica e os inícios da comunidade
estão narrados em At 17,1-9, de modo resumido e esquemático. Fonte
mais direta para compreender esse processo são as próprias Cartas aos
Tessalonicenses.
Cidade de negócios e porto próspero, Tessalônica possuía uma co-
munidade judaica bastante numerosa, fato atestado pela sinagoga ali

CEBI - Paulo e suas cartas


107

existente (cf. 1Ts 2,14-16; At 17,1). A ela se dirigem Paulo e Silas,


vindos de Filipos. Durante três sábados, pregam aos judeus (cf. At
17,1-2). Com a adesão ao Evangelho de judeus e gentios, passam a
reunir-se na casa de Jasão, o que provocou a inveja do pessoal da si-
nagoga. Uma gangue organizada foi procurá-los e, não os encon-
trando, levou Jasão e outros companheiros para acusá-los na assem-
bleia do povo (At 17,5-7). O jeito foi Paulo e Silas fugirem de noite
para Beréia e depois para Atenas (At 17,10). Tudo isso deve ter acon-
tecido no espaço de uns dois meses. De Atenas, Paulo, preocupado,
“não resistiu mais” (1Ts 3,1) e enviou Timóteo a Tessalônica.
MOTIVOS DA CARTA
O insucesso de Paulo em Atenas o leva a Corinto onde submerge
no trabalho e, por um ano e meio, procura acompanhar o crescimento
da comunidade. Foi lá que Timóteo o alcançou, trazendo notícias de
Tessalônica. A situação geral era satisfatória, mantendo-se a firmeza
da fé, não obstante as perseguições; conservavam grande afeto pelos
pregadores e desejavam revê-los, apesar de algumas calúnias. Mas ha-
via sombras no horizonte: o paganismo continuava em alguns setores,
sobretudo em relação à moral. Havia gente que não trabalhava, sob o
pretexto de que estava próxima a vinda de Cristo.
Para esclarecer a situação, Paulo escreve a primeira carta, lá pelo
final do ano 51 ou início do ano 52.
A opinião tradicional é que a segunda carta foi escrita pouco tempo
depois da primeira. No entanto, o estilo claramente apocalíptico de
2Ts 2,1-12 parece incompatível com 1Ts 4,13-5,11, o que leva comen-
tadores a duvidar da autoria de Paulo e datar essa carta em um período
bem posterior.
DIVISÃO DA 1Ts
DESTINATÁRIOS 1Ts 1,1
I PARTE: os inícios da comunidade 1,2-3,13
- Ação de graças e felicitações 1,2-10
- Evangelização e encorajamento 2,1-12
- Atitude dos tessalonicenses 2,13-18
- A missão de Timóteo 3,1-5
- Alegria pelas informações recebidas 3,6-13

CEBI - Paulo e suas cartas


108

II PARTE: recomendações para a vida comunitária 4,1-5,22


- Recomendações 4,1-12
- A vinda do Senhor 4,13-5,11
- Exigências da vida comunitária 5,12-22
ORAÇÃO FINAL E DESPEDIDA 5,23-28
DIVISÃO DA 2Ts
SAUDAÇÕES 2Ts 1,1-2
- Agradecimento, julgamento, incentivo 1,3-12
- Encorajamento à perseverança 2,1-3,5
- A proposta de trabalhar 3,6-15
SAUDAÇÃO FINAL 3,16-18
CHAVES DE LEITURA
Conflitos com o império (cf. 1Ts 3,7; 2Ts 1,4), com os gentios (cf.
1Ts 4,3-8), com a sinagoga (1Ts 2,14-16). A segunda carta estabelece
mesmo uma oposição aberta entre a “igreja dos tessalonicenses” (2Ts
1,1) e o “mistério da impiedade” (2Ts 2,7), destinados a primeira à
participação na glória de Cristo (cf. 1,10.12; 2,14) e o segundo à ruína
eterna (cf. 2Ts 1,9).
Escatologia ou o fim dos tempos. Enquanto a primeira carta parece
apontar para uma vinda mais próxima de Jesus (cf. 4,13-5,11), a se-
gunda afasta essa expectativa com veemência (2Ts 2,1-2).
Trabalho, tema que é uma das maiores riquezas dessas duas
cartas. Fica aí esclarecido o sentido cristão do trabalho (cf. 1Ts
4,11; 2Ts 3,6-12). Na evangelização da cidade, os missionários tinham
dado o testemunho do trabalho e Paulo insiste nessa proposta como
alternativa, pois, na mentalidade da época, trabalho era atividade de
escravos. Daí a insistência na valorização do trabalho manual, rom-
pendo com o sistema romano escravagista.
ROTEIRO 10

O reencontro com o Senhor

CEBI - Paulo e suas cartas


109

Palavra-chave: FIM DO MUNDO


Texto de estudo: 1Ts 4,13-5,11
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Ia Carta aos Tessaloni-
censes.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
Temos três vidas ou existências. A vida uterina, durante os nove
meses de gestação. Hoje se sabe que é uma verdadeira vida, em que
os nossos sentidos funcionam e existem até tratamentos de regressão
à vida no útero materno para resolver problemas de ordem psicológica.
Essa vida termina com o nascimento: o nascimento para a luz do
mundo coincide com a morte para a vida uterina. Passamos então a
viver não no pequeno espaço do útero materno, mas no vasto espaço
do mundo. Um dia terminará nosso tempo no útero do mundo e nas-
ceremos para o infinito espaço da eternidade. Há pessoas que se preo-
cupam muito com o fim do mundo. E o fim do mundo seria o fim da
vida humana no planeta terra, que, segundo os astrônomos, é como um
grão de poeira girando na imensidão do cosmos. Mas o núcleo da pre-
ocupação é mesmo com o fim do mundo para cada um de nós e o que

CEBI - Paulo e suas cartas


110

nos é reservado para depois da morte. É o grande problema do nosso


destino. Para as primeiras comunidades cristãs, a resposta estava na
expectativa da volta gloriosa do Senhor, aguardada com ansiedade
como algo que estava próximo.
1. Como em geral a morte é encarada no nosso meio?
2. O que pensam as pessoas do fim do mundo?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: 1Ts 4,13-5,11
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
O problema dos mortos e dos vivos diante da volta de Jesus, espe-
rada para breve, parece preocupar muito a comunidade dos tessaloni-
censes.
a. Com que imagens Paulo descreve a volta do Senhor?
b. De onde ele tirou essas imagens?
2.2. Olhar para a situação da comunidade
Uns ficavam aflitos por causa das pessoas já falecidas, outros dei-
xavam de trabalhar na expectativa do fim do mundo com a volta de
Cristo.a. Que conseqüências traziam essas questões para a vida da co-
munidade?
b. O que Paulo aconselha?
2.3. Escutar a mensagem do texto
A preocupação com a morte e com a volta de Cristo não pode ter
como conseqüência o desinteresse pelas coisas do mundo e da vida.
a. O que representa a fé na ressurreição como fonte de alegria e
ânimo?
b. Se a morte não é um ponto final, como podemos encará-la de

CEBI - Paulo e suas cartas


111

modo cristão?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 16.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos a 2a Carta aos Tessalonicen-
ses (2,1-17).
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 10

O trabalho

O trabalho está estritamente ligado à existência humana. Chamados


à vida, somos também chamados ao trabalho. Infelizmente o trabalho,
que sempre deveria ser dignificante, pode tomar-se aviltante. Na nossa
sociedade, o nome de “trabalhador” tem um sentido depreciativo. Nos
sistemas políticos atuais, a exploração do trabalho humano gera cada
vez mais situações de instabilidade com o crescente desemprego, su-
bemprego e emprego escravizante.
COMO JESUS TRABALHAVA?
Uma curiosidade é saber qual a profissão de Jesus quando vivia em
Nazaré. O que fazia este télton (Mc 6,3), que nós traduzimos como
“carpinteiro” e Mt 13,55 diz ser “filho do carpinteiro”? Numa cidade
pobre como Nazaré e da zona rural, quais seriam as opções de traba-
lho? Não teria ele sido lavrador? Seu linguajar tão simples e o voca-
bulário roceiro e as parábolas da vida agrícola não comprovariam essa
origem? Vivendo nas proximidades de um lago como o de Genesaré,
não teria também provado a vida de pescador? São pescadores os seus
primeiros discípulos (Mc 1,16). Os evangelhos praticamente nada di-
zem sobre Jesus como trabalhador. Noutro sentido e em contexto

CEBI - Paulo e suas cartas


112

diferente, ele afirma: 4 ‘Meu Pai trabalha sempre e eu também traba-


lho” (Jo 5,17).
Ao convocar pessoas para colaborar com ele, convida-as a abando-
nar sua profissão (Mc 1,18.20). Insinua que o anúncio da Boa Nova é
uma atividade que deve garantir a manutenção, pois “o operário é
digno do seu sustento” (Mt 10,10). E critica a excessiva preocupação
em atender às próprias necessidades, apontando para as aves do céu e
os lírios do campo, que, além de viverem sem semear nem ceifar, su-
peram Salomão em esplendor e glória (cf. Mt 6,26-29).
A PROPOSTA DE PAULO
Nos evangelhos, respira-se um clima bucólico em que o trabalho
segue o próprio ritmo da natureza no compasso das estações do ano.
Tem algo de espontâneo e natural. Paulo vive em ambiente urbano, em
que o trabalho se destaca, por assim dizer, como uma atividade sobre-
posta, autônoma, com ritmo próprio. Isso condiciona sua visão do tra-
balho e sua proposta bastante pessoal e original mesmo em relação aos
outros missionários (1Cor 9,4-18). Numa sociedade de classes estra-
tificadas e definidas pelo tipo de atividade, o trabalho manual era re-
legado à camada pobre e aos escravos. A proposta de Paulo é de total
solidariedade com esses marginalizados, único caminho para mudar
as relações sociais.
Tanto pela sua vida como pelos seus escritos, Paulo se apresenta
como um trabalhador incansável. Pode-se orgulhar, com freqüência,
de suas mãos calejadas e apresentá-las como argumento em sua pre-
gação. Quando se despede dos líderes de Éfeso, em Mileto, ele afirma:
“Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos providenciaram o que
era necessário para mim e para os que estavam comigo” (At 20,34).
Parece que ele arca também com a manutenção dos companheiros.
A garantia da própria subsistência não era um detalhe na vida de
Paulo e de seus companheiros. Sem horários, em condições precárias,
a sua atividade era incansável. “Pregamos o Evangelho a vocês traba-
lhando de noite e de dia, a fim de não sermos pesados para ninguém”
(1Ts 2,9; cf. 2Ts 3,8).

CEBI - Paulo e suas cartas


113

TRABALHAR COM AS PRÓPRIAS MÃOS


Paulo sublinha que trabalha “com as próprias mãos” (1Cor 4,12) e
aconselha os tessalonicenses a fazer o mesmo (1Ts 4,11). Não se trata
de qualquer tipo de trabalho, mas do trabalho manual, que, na menta-
lidade grega, era desvalorizado como uma atividade indigna dos cida-
dãos livres. Embora cidadão romano (At 16,38; 22,25) e com primo-
rosa formação intelectual, Paulo renuncia a qualquer privilégio e se
submete a uma atividade própria de escravos. Provavelmente, na em-
presa do seu pai, aprendeu a profissão de fabricante de tendas, e sabe-
mos que exerceu essa profissão em Corinto (At 18,3). Devia ser essa
a sua atividade de biscateiro itinerante. Um trabalho penoso, para tecer
a grossa cobertura das barracas, que calejava as mãos, deformava as
costas, além de forçar a vista e ser naturalmente pouco higiênico.
NECESSIDADE E DIREITO DE TRABALHAR
Certamente devia haver motivos profundos para que Paulo optasse
por uma evangelização a partir do mundo do trabalho. Vejamos alguns
motivos:
Evangelizar. Fazendo-se trabalhador, Paulo pode levar a Boa Nova
aos operários do seu tempo, pois, identificando-se com eles, vai com-
preender melhor as suas necessidades. Cria, dessa forma, situações al-
ternativas dentro do sistema imperial, graças à nova orientação cristã.
Por isso, recorda: “Pregamos o Evangelho a vocês trabalhando de
noite e de dia” (1Ts 2,9).
Exemplo. Antes de ordenar aos outros que trabalhem, Paulo pode
apelar para o seu testemunho pessoal: “Nós quisemos ser um exemplo
para vocês imitarem” (2Ts 3,9). Trata-se de uma maneira de viver,
uma conduta já tradicional (cf. 2Ts 3,6).
Renunciar a um direito. Paulo podia viver legitimamente sem tra-
balhar para seu sustento, que seria garantido pela própria atividade de
pregador. Mas se compraz em declarar: “Não usamos esse direito”
(1Cor 9,12; cf. 9,15-18), e isto para não criar obstáculos à Palavra de
Deus. Ao contrário de muitos pregadores e filósofos que, naquela
época, eram remunerados pela atividade de pregar ou ensinar. Renun-
ciando a esse direito reconhecido e respeitado (cf. 1Cor 9,6; 3,9),
Paulo corta qualquer aparência de parasitismo e confere maior

CEBI - Paulo e suas cartas


114

credibilidade à pregação do Evangelho.


Não ser pesado a ninguém. As comunidades não eram ricas e não
se podia exigir muito de sua pobreza, se bem que, naquele tempo como
hoje, entre os pobres é que existe mais solidariedade. Paulo não quer
viver de graça, “pelo contrário, trabalhamos com fadiga e esforço,
noite e dia, para não sermos um peso para nenhum de vocês” (2Ts 3,8;
cf. 2Cor 13,14; 1Ts 2,9).
Ganhar o próprio pão. A motivação mais imediata é trabalhar para
viver dignamente. Toda pessoa quer ter a honra de ganhar o próprio
pão (cf. 1Ts 4,11-12). Para Paulo, chega a ser um título de glória (1Cor
9,15). Tem autoridade para dizer: “Quem não quer trabalhar também
não coma” (2Ts 3,10).
Solidarizar-se com os pobres. As relações de trabalho, atécerto
ponto, condicionam as relações sociais. Na época de Paulo, como hoje,
os pobres constituíam a grande maioria da população. E como hoje,
tinham mais sensibilidade, disponibilidade e abertura para o novo e
aspiravam pela mudança na sociedade. Paulo traz uma Palavra Nova,
a Palavra da Cruz (1Cor 1,18), e sabe que é no meio dos pobres que
vai encontrar maior receptividade.
Partilhar. “Quem roubava não roube mais; ao contrário, ocupe-se
trabalhando com as próprias mãos em algo útil e tenha assim o que
repartir com os pobres” (Ef 4,8). A partilha é essencial ao modo cristão
de viver, pois ajudando os fracos (cf. At 20,35) é que se cria a comu-
nhão, o estilo de vida igualitário e fraterno.
CONCLUINDO
Pela sua prática e pela sua doutrina, Paulo valorizou o trabalho,
criando uma nova mística em relação a ele. Quebrou a ideologia do-
minante na sociedade helenista, fazendo-se trabalhador e indo ao en-
contro dos trabalhadores. Esta proposta é atual e desafiadora pois nos
estimula a ir ao encontro das classes trabalhadoras e dos excluídos do
sistema, que oferecem terreno fértil para as sementes do Evangelho. A
forma de vida das primeiras comunidades cristãs subverteu a ordem
estabelecida no Império Romano, a ponto de provocar violenta perse-
guição. Também a atual ordem vigente, no sistema injusto e explora-
dor, convida a novas tomadas de posição para criar novas relações

CEBI - Paulo e suas cartas


115

humanas, em que já não é o lucro nem o capital, mas a pessoa, cons-


ciente de sua cidadania, que será o eixo da sociedade.
ROTEIRO 11

Encorajamento à preservação

Palavra-chave: COMBATE
Texto de estudo: 2Ts 2,1-17
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da 2ª Carta aos Tessaloni-
censes.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
O fim é o primeiro na intenção e o último na execução. Ele esta
presente em todas as operações feitas para alcançá-lo. Em qualquer
empreendimento, o fim a que se quer chegar é que determina tudo.
Quando planejam um edifício, os arquitetos e engenheiros costumam

CEBI - Paulo e suas cartas


116

fazer uma maquete para antecipar a visão do que vai ser quando estiver
construído. Para orientar a construção, eles desenham as plantas que
trazem todos os cálculos e devem ser constantemente consultadas.
Para Santo Tomás de Aquino, uma das maiores inteligências de todos
os tempos, o fundamento da vida moral é o fim último. E o fim último
é Deus. O pecado será um desvio do fim último, portanto um desvio
do caminho que leva a Deus. Para as primeiras comunidades cristãs, o
fim último se confundia com a volta gloriosa de Cristo. E na primeira
metade do século I, a expectativa era que essa volta gloriosa não de-
morasse muito. O próprio Paulo, em 1Ts 4,13-5,11, parece estar certo
de que essa volta de Cristo ainda vai encontrá-lo vivo.
1. A certeza da ressurreição e da volta de Cristo está presente na
construção de nossa vida?
2. Mesmo sem poder imaginar o que será, tiramos força e ânimo
dessa certeza?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: 2Ts 2,1-17
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
Por causa da diferença entre o que ensina aqui e o que ensina em
1Ts 4,13-5,11, alguns estudiosos acham que o autor não é Paulo.
a. Em quantas partes se pode dividir esse texto?
b. Destacar as imagens apocalípticas.
2.2. Olhar para a situação da comunidade
Como sempre, Paulo está muito atento aos problemas que podem
causar perturbação e vai direto a eles.
a. Quais são os problemas da comunidade que transparecem no
texto?

CEBI - Paulo e suas cartas


117

b. Como Paulo aconselha os tessalonicenses a enfrentá-los?


2.3. Escutar a mensagem do texto
O problema central e decisivo do nosso destino é, antes de tudo,
um problema de fé, visto que escapa ao nosso conhecimento e cálcu-
los.
a. Temos a coragem de encarar de frente esse problema?
b. Que influência ele pode ter na nossa vida?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 139.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.
Preparar o próximo encontro
1. No próximo encontro estudaremos a carta a Filemon.
2. Distribuir as tarefas.
SUBSÍDIO 11

A parusia que não chega

As pessoas já nem se importam, nos dias de hoje, com os anúncios


do fim do mundo que nunca se realizam. Passaram todas as datas mar-
cadas para o mundo se acabar e assim será também com a passagem
do novo milênio. Os sinais apresentados, tais como guerras, catástro-
fes, divisões, ódios e outros, na verdade sempre existiram e continua-
rão ainda a existir. Mesmo que se saiba que só o arsenal de bombas
atômicas acumuladas pelo desatino das grandes potências tenha um
potencial de destruição incalculável e possa exterminar a vida no
mundo.
No entanto, o fim do mundo e a ‘ ‘volta de Jesus” são tema de
propaganda de algumas igrejas. Essas preocupações sempre atuais

CEBI - Paulo e suas cartas


118

foram ainda mais fortes no tempo das primeiras comunidades cristãs.


É o que se percebe nas cartas de Paulo e mesmo nos evangelhos.
ESCLARECENDO ALGUNS TERMOS
Parusia é uma palavra grega que significa originalmente “che-
gada”, “presença”. Era o termo técnico para indicar a visita de algum
personagem importante, como algum político graduado, a alguma ci-
dade. No Novo Testamento, passou a designar a “segunda vinda’’ de
Jesus no fim da história para estabelecer definitivamente o Reino de
Deus consumado. No entanto, tem sentidos diversificados. Em Mt
24,3.27.37.39 é a intervenção punitiva de Jesus contra Jerusalém. Em
1Ts 2,19, é o juízo particular. Em Jo 2,28, é a morte. Em 1Ts 4,15;
1Cor 15,23, é a segunda vinda de Cristo no fim dos tempos. De certo
modo, coincide com o Dia do Senhor de que falavam os profetas.
Escatologia é outro termo que provém do grego eschaton, com o
significado de “último, definitivo, insuperável, derradeiro”. A escato-
logia se refere, pois, aos eventos finais da vida e da história. É a parte
da teologia que estuda as últimas realidades da vida humana e do
mundo, tais como morte, juízo, vida com Deus, o destino final das
pessoas. Essas últimas realidades são também chamadas de “novíssi-
mos”.
Ressurreição tem duas formas de se expressar em grego. Uma é
ligada ao verbo anístemi, com o sentido de ressurgir, levantar-se, pôr-
se em pé. Outra forma é ligada ao verbo egeiro, significando ressusci-
tar, fazer levantar, despertar, pôr em pé. Há também dois conceitos de
ressurreição: um é simplesmente reviver; outro é assumir uma forma
de vida totalmente nova. É este segundo sentido que a Bíblia aplica a
Jesus e às pessoas que nele crêem. Referindo-se à ressurreição de Je-
sus, ou se diz que Jesus ressurgiu por si mesmo ou que ele foi ressus-
citado pelo Pai.
Imortalidade ou athanasia é um conceito grego bem diferente, que
não tem correspondente exato na Bíblia. Inicialmente, os gregos con-
sideravam só os deuses imortais. Com o tempo, procuravam provar
que a alma humana era imortal, ao separar-se do corpo. O dualismo
entre a imortalidade da alma e a mortalidade do corpo influenciou ne-
gativamente a teologia até os dias de hoje. Na Bíblia, a oposição não

CEBI - Paulo e suas cartas


119

é entre mortalidade e imortalidade, mas entre morte e vida e morte e


ressurreição.
O MESSIAS ESPERADO
Jesus foi identificado como o Messias, isto é, o Ungido, o Cristo.
Os judeus esperavam o Messias, várias vezes prometido nas Escrituras
(Gn 49,10; Nm 24,17; Dt 18,15; 2Sm 7; SI 72; 110). O Messias seria
um personagem que iria restaurar a nação, dando-lhe força política e
religiosa. Sabemos que essa visão foi o grande obstáculo que impediu
os chefes judeus de aceitarem Jesus como o Messias. E o próprio Jesus
sempre manteve distância dessa ideia messiânica.
Nas comunidades do mundo grego, o nome do Messias, isto é,
Cristo, ficou de tal modo vinculado ao nome de Jesus que passou a
fazer parte do seu nome pessoal: Jesus Cristo ou simplesmente Cristo.
Paulo, nas suas discussões, enfocava justamente o messianismo de
Jesus. Buscava comprovar, com textos escriturísticos, que Jesus é o
Cristo, ou seja, Jesus de Nazaré era verdadeiramente o Messias anun-
ciado (cf. At 18,5.28; Rm 1,3; 9,5).
ESPERA DO REENCONTRO PARA BREVE
A morte de Jesus numa cruz abalou as convicções de quem achava
ser ele o Messias. Mas a fé na Ressurreição restituiu e redobrou a es-
perança das pessoas que creram nele e deu-lhes coragem para conti-
nuar fiéis. E com base nas ideias messiânicas muito difundidas na-
quela época, surgiu a crença de que Jesus, morto e ressuscitado, iria
voltar glorioso, em breve, para reencontrar-se com os seus. A figura
do Filho do homem, um personagem misterioso do livro de Daniel,
serviu para ilustrar o mistério da morte e ressurreição de Jesus.
As ideias de ressurreição, por sinal, já estavam presentes no final
da época veterotestamentária. É o que se nota em Dn 12,2; 2Mc
7,9.11.23; 14,46; Is 26,19. No horizonte da apocalíptica, havia surgido
a ideia da ressurreição, e foi a mesma literatura apocalíptica que con-
tribuiu para essa crença.
À medida que se intensificavam as perseguições, aumentou tam-
bém a perplexidade nas comunidades cristãs. As convulsões do Impé-
rio Romano levavam a crer que tudo estava por terminar e que o

CEBI - Paulo e suas cartas


120

reinado de Jesus não tardaria. A perseguição provocou muitas mortes,


e o ideal do martírio redobrou a espera do reencontro breve com
Cristo. Seria a maneira definitiva de se livrar do sofrimento.
A VINDA IMEDIATA
Nos escritos paulinos, especialmente, vamos encontrar textos sobre
a segunda vinda de Jesus. Em 1Ts 4,13-5,11, percebemos como se vi-
via em Tessalônica a espera de uma vinda iminente do Senhor ressus-
citado. Nota-se clara preocupação quanto ao destino dos que já haviam
morrido, bem como a dúvida sobre quem seriam os primeiros a ir ao
encontro de Jesus. Em resposta, Paulo insiste numa espera vigilante,
reafirmando a certeza da ressurreição.
Já em 2Ts 2,1-10, são prestados esclarecimentos sobre a segunda
vinda de Jesus mostrando que ela não será imediata e insistindo para
que os tessalonicenses não se preocupem com o assunto, pois ainda
faltam muitos sinais e acontecimentos. Portanto, é necessária a perse-
verança e é necessário dedicar-se ao trabalho.
A mesma ideia aparece no início dos Atos dos Apóstolos. Jesus
joga uma ducha de água fria na ansiedade dos apóstolos: “Não com-
pete a vocês conhecer os tempos e os momentos que o Pai reservou a
seu poder” (At 1,7). E quando eles ficam olhando para as nuvens, após
a ascensão, o anjo os sacode: “Homens da Galiléia, por que estais aí a
olhar para o céu?” (At 1,11).
ESCATOLOGIA INDIVIDUAL
O profeta Ezequiel já insistia na retribuição individual, isto é, cada
pessoa é responsável pelos próprios atos: se faz o bem, será recom-
pensada; se pratica o mal, será castigada (Ez 18,1-32; 33,10-22). Nas
Cartas aos Tessalonicenses está presente a ideia de ressurreição pes-
soal que aparece explícita no texto de 1Cor 15,51-58. Ali está expli-
cada a transformação completa de cada pessoa, no encontro definitivo
com o Senhor. De uma ideia de escatologia coletiva passa-se ao des-
tino individual das pessoas. Ainda parece que Paulo aguarda para
breve esse acontecimento, quando afirma: “e nós seremos transforma-
dos” (1Cor 15,52; cf. 1Ts 4,17).
Outro texto que reforça a ideia de um encontro pessoal com Cristo,

CEBI - Paulo e suas cartas


121

em forma de juízo, é 2Cor 5,1-10. Também acena para uma escatolo-


gia individual o texto de Fl 1,21-24. Este último aponta, além do mais,
para um retardamento da vinda do Senhor.
RETARDAMENTO DA VINDA DO SENHOR
Tudo indica que a expectativa da parusia como iminente predomi-
nava nas comunidades cristãs na primeira metade do século L mas foi
cedendo à ideia de que não será tão cedo e é preciso que a ansiedade
pela segunda vinda de Cristo não venha alterar a normalidade da vida,
mas estimular a perseverança.
Aos poucos, sobretudo depois da destruição de Jerusalém, o retar-
damento da vinda do Senhor foi-se impondo tranquilamente. Sem dú-
vida, na descrição da “grande tribulação” que está nos evangelhos, os
horrores da destruição de Jerusalém tiveram a sua influência (cf. Lc
21,20-28; Mt 24,15-20; Mc 13,14-18).
Um dos critérios que levam os estudiosos a determinar uma data
tardia para algumas cartas atribuídas a Paulo é justamente o adiamento
da expectativa da parusia (cf. 2Ts 2,1-10; 2Tm 4,6-8). Paulo esperaria
então o seu fim individual antes do grande evento final da vinda de
Cristo.
Em qualquer hipótese, o retorno glorioso de Cristo é a grande es-
pera que sustenta a coragem das comunidades cristãs na luta contra
múltiplos inimigos externos e internos (2Cor 4,7-18). Vivia-se uma
tensão escatológica, isto é, uma tensão entre a salvação já definitiva
mas ainda não consumada. A glorificação de Cristo já acontecida
apontava para o céu (Fl 3,20). A celebração da Ceia reaviva essa me-
mória (1Cor 11,26). Tudo isso constituía um apelo constante à santi-
dade.
RESSURREIÇÃO
A ressurreição que foi desdenhada pelos filósofos no Areópago de
Atenas (At 17,32) é o elemento fundamental da fé cristã, em nítida
contraposição à condição trágica dos pagãos, que não têm esperança
(1Ts 4,13). A fé no Cristo ressuscitado suplantou as ideias sobre a pa-
rusia e ajudou a superar outras dúvidas quanto à vinda de Cristo. Na
ressurreição de Jesus, as comunidades viram seu futuro e as pessoas

CEBI - Paulo e suas cartas


122

espelharam a própria ressurreição definitiva.


Foi o Ressuscitado que começou a transformar a vida de Paulo no
caminho de Damasco, e essa fé foi burilando a sua vida para chegar
ao nível da estatura da plenitude de Cristo (Ef 4,13). Esta é também a
nossa meta: identificar-nos com o destino de Jesus a ponto de poder
dizer: “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl
2,20). Então teremos a certeza de ressuscitar com ele.

CEBI - Paulo e suas cartas


123

Carta a Filemon

Introdução

De todas as cartas de Paulo, esta é a mais breve e pessoal, envol-


vendo um escravo fugitivo, Onésimo (Fm 10). Paulo escreve a seu
dono, Filemon, intercedendo em favor do escravo. A ambos chama de
“filho” (Fm 10,19), colocando-os no mesmo nível de “irmão” (Fm 16).
Provavelmente Paulo se encontrou com Onésimo durante sua prisão
em Éfeso, por volta do ano 55, e Filemon era um dirigente importante
da comunidade de Colossos (Fm 2).
A carta é um testemunho significativo sobre a atitude de Paulo em
relação à escravidão. Embora dirigida a uma só pessoa, atingiu e en-
volveu toda a comunidade (Fm 2). Impressionantes o carinho, a ter-
nura, a delicadeza, o tato, o amor com que Paulo pesa e mede cada
palavra, dando-se ao trabalho de escrever de próprio punho (Fm 19) e
criando todo um clima comunitário com a menção dos nomes de ami-
gos de Colossos (Fm 2) e de seus colaboradores (Fm 23-24).
Paulo às vezes é criticado por sua complacência em relação ao in-
justo e desumano instituto da escravidão. Paulo não faz campanha po-
lítica, mas vive e propaga o Evangelho. Eis por que vai muito mais
fundo na contestação das estruturas do seu tempo e corta o mal pela
raiz. Transformar a relação dono-escravo em relação de fraternidade,
sem alarde e sem discurso inflamados, é desmantelar as estruturas de
dominação e substituí-las por um novo relacionamento entre iguais e
livres.
DIVISÃO DA CARTA
O esquema da Carta a Filemon pode ser apresentado na forma de
um quiasmo:
A. Endereço e saudação 1-3
B. Agradecimento e elogio à agapê (solidariedade) 4-7
C. A agapê supera e abole a escravidão 8-14
D. A koinonia (comunhão) instaura a fraternidade 15-17
C. A graça está acima do valor de troca 18-19
B. Confiança e elogio da agapê de Filemon 20-22

CEBI - Paulo e suas cartas


124

A. Saudações finais 23-25


No centro está a comunhão, o estabelecimento de novas
relações. Chega-se a isso pela solidariedade que erradica a relação
de dominação. Em consequência, a compensação do débito ou valor
de troca é absorvida pela solidariedade que é o cerne do Evangelho,
capaz de criar uma nova sociedade fraterna e igualitária.
CHAVES DE LEITURA
O tempo da chamada “escravatura” passou pela chamada “aboli-
ção”. No entanto, a escravidão continua. Diariamente os noticiários
denunciam o “trabalho escravo” nas carvoarias, no corte da cana, nos
latifúndios, nas empresas, na prostituição, em outras mil atividades e
de outras mil formas. As belas leis garantindo os “direitos sociais”, os
“direitos do indivíduo” e a enaltecida “proclamação dos direitos hu-
manos” estão no papel e no papel ficam. Eis por que a Carta a Filemon,
que foi escrita a partir de um problema concreto, exigindo uma solução
prática, é da maior atualidade. É no concreto, no singular que repou-
sam os valores universais.
1. A agapê. No estudo de 1Cor 13 (Roteiro 4) já nos referimos à
agapê, que geralmente é traduzida por “caridade”; Talvez a palavra
“solidariedade” expresse melhor o seu sentido. É mais do que um sen-
timento, mas uma dinâmica das relações sociais de igualdade e de re-
ciprocidade (cf. Gl 5,13-15). As pessoas cristãs, associadas na prática
da agapê, vivem fraternalmente, responsáveis em conjunto pelo bem
de todos (cf. Rm 8,28; 2Cor 5,14).
2. Koinonia. É a “comunhão”, a comum-união, que se estabelece
na solidariedade e na igualdade dos membros da comunidade e é ge-
radora de uma nova sociedade (cf. 1Cor 8,1). A razão de ser de uma
sociedade é o “bem comum”. E ele que confere valor às leis. É ele que
justifica a existência de pessoas responsáveis e que se chama de “au-
toridade”. Portanto, é ele também que justifica a obediência, cuja me-
lhor definição é: virtude do bem comum. Uma virtude que não com-
porta cegueira, mas que exige lucidez e iniciativa.
3. Escravidão. É uma coisa ignóbil, intolerável, que destrói e arrasa
a dignidade da pessoa, reduzindo-a à condição vil de mero objeto, de

CEBI - Paulo e suas cartas


125

simples coisa, ferramenta, artigo de barganha. Betinho, que não con-


seguiu vencer a fome, mas abalou a consciência nacional, costumava
dizer que, por causa de nossa triste herança histórica, cada brasileiro
tem introjetada a consciência do escravocrata. A Carta a Filemon nos
ensina a colocar o dedo nessa consciência e despeitar para o verdadeiro
valor da fraternidade.
ROTEIRO 12

Novo relacionamento

Palavra-chave: FRATERNIDADE
Texto de estudo: Fm 1-25
Partilha inicial
1. Partilhar o que esperamos do estudo da Carta a Filemon.
2. Fazer uma oração invocando as luzes do Espírito Santo.
I. Partir da realidade
A palavra “cidadania” está em alta. Construir a cidadania se tornou
a bandeira das entidades que se empenham no resgate da dignidade

CEBI - Paulo e suas cartas


126

humana. Contra a cidadania se ergue a colossal barreira da exclusão


que descarta e considera “massa sobrante” a quem não tem condições
de entrar no mercado de consumo. Os países pobres são chamados de
“periféricos”, isto é, estão fora do centro, são meros satélites, girando
em torno daqueles que, através do poder econômico, pretendem ser os
donos do planeta Terra e tomar as decisões que afetam o destino de
toda a humanidade. Essa era também a pretensão do Império Romano
contra o qual Paulo batalhou, não com o instrumental de agente polí-
tico, mas com uma atitude básica de vida, eminentemente profética e,
por isso, com conseqüências políticas duradouras. Renunciou aos pri-
vilégios da “cidadania romana”, reconhecida e respeitada pelo sistema
discriminatório, e assumiu o trabalho “com as próprias mãos”, equi-
parando-se aos escravos. Na Carta a Filemon, se despoja de qualquer
demagogia e, com as armas do Evangelho, propõe uma revolução ra-
dical em que a cidadania é restaurada pela fraternidade.
1. Conhecemos situações concretas de escravidão ao nosso redor?
2. Que posição tomamos na prática diante de tais situações?
II. Estudar e meditar o texto
1. Leitura do texto: Fm 1-25
1.1. Ler o texto com toda a atenção.
1.2. Trocar impressões sobre a leitura.
2. Estudo do texto
2.1. Ver o texto de perto
A fraternidade que Paulo tenta encarecer prevalece no próprio es-
tilo de carta.
a. Em que versículos Paulo insiste na prática da agapê?
b. Como se articula o pensamento de Paulo?
2.2. Olhar para a situação do povo
O escravo fugitivo, quando capturado, era castigado, torturado, tra-
tado como uma coisa desprezível e sem valia.
a. Como Paulo enfrenta a instituição da escravatura?

CEBI - Paulo e suas cartas


127

b. O que há de profundamente subversivo na atitude de Paulo?2.3.


Escutar a mensagem do texto
Dizem que um gesto vale mais do que mil palavras.
a. Que gestos comprovam nossas palavras em favor da cidadania?
b. O que pensar dos discursos oficiais sobre os Direitos Humanos?
III. Celebrar a Palavra
1. Partilhar as luzes e forças recebidas neste encontro.
2. Assumir um compromisso comunitário.
3. Orar o SI 33.
4. Fazer um resumo para ruminar depois.

SUBSÍDIO 12

Classe social nas comunidades paulinas

O livro dos Atos dos Apóstolos nos informa que Paulo criava co-
munidades cristãs nos lugares por onde passava. Também menciona
comunidades, como a de Roma, que não foram fundadas por Paulo.
Delas participavam os vários segmentos da sociedade. Caso típico nos
apresenta a Carta a Filemon, dono do escravo Onésimo.
Não é fácil descrever com detalhes o nível social das pessoas que
participavam da comunidade no tempo de Paulo. Além disso, não se
pode aplicar àquele tempo o conceito de “classe social” que temos
hoje. A sociedade era bipolarizada entre senhores e escravos. Um
pouco como no Brasil colônia, como descreve o famoso livro de Gil-
berto Freire: Casa grande e senzala. Nas cidades helenistas do impé-
rio, destacavam-se os “cidadãos livres” com suas assembleias, os “es-
cravos” e os “libertos”. No entanto, havia outras ramificações, como
os militares, os palacianos, os sacerdotes, os cobradores de imposto
(publicanos), as associações profissionais (como os ourives de Éfeso,
cf. At 19,23-25), etc.

CEBI - Paulo e suas cartas


128

No entanto, as poucas informações de que dispomos nos permitem


organizar uma lista de nomes das pessoas conforme sua posição social:
1. Pessoas razoavelmente bem de vida
1. BARNABÉ (At 4,36-37; 1Cor 9,6): era proprietário de um
campo e depois adotou a vida de artesão itinerante para sustentar sua
missão.
2. FEBE (Rm 16,1-2): diaconisa em Cencréia, dispunha de recur-
sos para ajudar muitos cristãos e foi a portadora da Carta de Paulo aos
Romanos.
3. TALITA ou DORCAS (At 9,36): fazia muitas obras boas e dis-
tribuía fartas esmolas.
4. MARIA MÃE DE MARCOS: possuía uma casa suficientemente
ampla para abrigar a comunidade e tinha empregada a seu serviço (At
12,12).
5. JASÃO (At 17,5-9): hospeda os missionários em sua casa em
Tessalônica.
6. As MULHERES GREGAS de alta posição (At 17,12).
7. FILEMON é dono de escravos e sua casa é bastante ampla para
acomodar a reunião da comunidade e receber hóspedes (Fm).
8. GAIO (Rm 16,23; 1Cor 1,4): acolhe em sua casa toda a comuni-
dade de Corinto.
9. NINFA (Cl 4,15): em sua casa se reúne a comunidade de Colos-
sos.
10. CLOE (1Cor 1,11): o pessoal de sua casa provavelmente eram
serviçais.
2. Oficiais e altos funcionários
1. CORNÉLIO (At 10,1): centurião em Cesareia.
2. CRISPO (At 18,8; 1Cor 1,4): chefe da sinagoga de Corinto.
3. SÉRGIO PAULO (At 13,7): procônsul da Ilha de Pafos.
4. ERASTO (Rm 16,23): tesoureiro da cidade de Corinto.

CEBI - Paulo e suas cartas


129

3. Comerciantes e profissionais
1. LÍDIA (At 16,14): comerciante de púrpura em Filipos.
2. PRISCILA e ÁQUILA (At 18,1-3; Rm 16,3-5; 1Cor 16,19): fa-
bricantes de tendas, a mesma profissão de Paulo.
3. TÉRCIO: copista, secretário de Paulo (Rm 16,22).
4. LUCAS: médico (Cl 4,14; Fm 24).
5. CARCEREIRO (At 16,33): ele e toda a sua casa.
4. Escravos
1. RODE (At 12,13): criada da casa de Maria, mãe de Marcos.
2. A JOVEM ESCRAVA em Filipos (At 16,16).
3. ONÉSIMO (Fm).
4. AMPLIATO (Rm 16,8): seu nome é o de escravo latino comum.
5. ALGUNS DA CASA de Cloé (1Cor 1,11), provavelmente es-
cravos.
Essa lista é uma simples amostragem. Constam só aqueles nomes
sobre os quais o texto fornece alguma indicação de sua posição social.
Sabemos que a maioria das pessoas que fizeram parte das primeiras
comunidades ficaram no anonimato (cf. 1Cor 6,9-11). É possível que
a lista ajude a esboçar a fisionomia das comunidades.
CARACTERÍSTICAS
1. As comunidades eram formadas por pessoas provenientes de vá-
rios segmentos da sociedade. No entanto, não encontramos represen-
tantes da camada superior na escala social greco-romana, como aris-
tocratas, proprietários de terra, políticos importantes.
2. A lista testemunha uma presença significativa de camada inter-
mediária, gente que possuía casa, escravos, recursos para viajar. É pro-
vável que os escravos e empregados também participassem da comu-
nidade, mesmo porque estão incluídos no conceito abrangente de
“casa”. Nos seus conselhos, Paulo alude aos senhores e aos servos:
“Servos, obedeçam aos seus senhores nesta vida, com temor e tremor,

CEBI - Paulo e suas cartas


130

com simplicidade de coração como a Cristo... Senhores, tratem seus


servos do mesmo modo. Deixem de lado as ameaças: vocês sabem que
tanto eles como vocês têm o mesmo Senhor que está no céu e não faz
distinção de pessoas” (Ef 6,5.9).
3. Os pequenos comerciantes e artesãos livres estão bem represen-
tados. Para esse grupo, Paulo dirige várias instruções: “Que seja para
vocês uma questão de honra viver em paz, ocupando-se com as coisas
que lhes pertencem e trabalhando com as próprias mãos, conforme re-
comendamos. Assim vocês levarão uma vida honrada aos olhos dos
estranhos e não precisarão de ajuda de ninguém” (1Ts 4,11-12).
4. É de salientar que encontramos várias mulheres ricas e indepen-
dentes que desempenhavam um papel relevante nas comunidades.
5. O mais importante, porém, é o novo estilo de relacionamento
entre as pessoas, o novo clima, a nova convivência, a proposta alter-
nativa concreta de um novo tipo de sociedade, de ambiente de vida
impregnado pela fraternidade e igualdade: “Não há mais diferença en-
tre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher,
pois todos vocês são um só em Jesus” (Gl 3,8).
Tudo isso permite reafirmar que encontramos representantes de vá-
rios níveis sociais nas primeiras comunidades cristãs. As pessoas ar-
roladas geralmente são as que se destacaram como líderes nas comu-
nidades e poderiam representar a minoria. É o que insinua a própria
palavra de Paulo: “Portanto, irmãos, vocês que receberam o chamado
de Deus, vejam bem quem são vocês: entre vocês não há muitos inte-
lectuais, nem muitos poderosos, nem muitos da alta sociedade. Mas
Deus escolheu o que é loucura no mundo para confundir os sábios e
Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para confundir o que é
forte” (1Cor 1,26-27). A maioria da comunidade de Corinto, portanto,
era formada por pessoas das camadas mais modestas da sociedade. E
nas outras comunidades? A coleta feita nas comunidades da Ásia Me-
nor e Grécia em favor das comunidades da Palestina (cf. At 11,29;
2Cor 8-9; Gl 2,10) leva a concluir que, na Palestina, predominavam os
pobres e necessitados.
Foi a essas comunidades que Paulo deu o nome reservado à As-
sembleia dos cidadãos livres, portanto, da elite das cidades gregas:

CEBI - Paulo e suas cartas


131

IGREJA. “Igreja, para Paulo, mais que uma determinada instituição,


ou melhor, para além de seus necessários aspectos institucionais, é um
processo, ao mesmo tempo invisível e visível, uma relação dinâmica
que vai das comunidades ao povo de Deus. Essas nascem e vivem
como pequenas células de energia do Espírito, cuja finalidade é fer-
mentar a sociedade com novas relações para que, finalmente, os povos
todos se tornem povo de Deus. A Igreja não é uma sociedade religiosa
à parte, como tantas outras sociedades religiosas podem existir nos vá-
rios povos; ela é, antes de tudo, o processo missionário do Espírito
pelo qual o Evangelho vai transformando o mundo, de modo que os
povos se tornem povo de Deus, caiam os muros da separação e a
guerra chegue ao fim pelo ‘reconhecimento’ universal (cf. Ef 2).” (Se-
bastião A. G. Soares, Reler Paulo: Desafios à Igreja, Série A Palavra
na Vida, n. 78/79, São Leopoldo : CEBI, 1994, p. 32-33).

CEBI - Paulo e suas cartas

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