3.1. Literatura Moçambicana - Periodização
3.1. Literatura Moçambicana - Periodização
3.1. Literatura Moçambicana - Periodização
1º Período, que vai das origens da permanência dos portugueses naquela região índica até 1924, ano que
precede o da publicação de O livro da dor, de João Albasini. É um período de Incipiência, um quase
deserto secular, que se modifica com a introdução do prelo, no ano de 1854, mas sem os resultados
literários verificados em Angola.
Está hoje perfeitamente assente que, ao contrário de Angola, não houve uma actividade literária
consistente e continuada, em Moçambique, até aos anos 20 do século XX. Nesse panorama desértico, tão
habitual no oitocentismo, em África, sobressai, nos anos 60, 70 e 80, a publicação dispersa dos textos de
Campos Oliveira (nasceu na Ilha de Moçambique, em 1847; morreu em 1911), num total de 31,
rastreados por Manuel Ferreira. Foi estudante de Direito em Coimbra e morou na Índia, autor de um
Almanaque Popular em Margão, em meados dos anos 60. Vejam-se duas estrofes de «O pescador de
Moçambique»:
— Eu nasci em Moçambique,
de pais humildes provim,
a cor negra que eles tinham
é a cor que tenho em mim:
sou pescador desde a infância,
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei.
[...]
Vou da cabaceira às praias,
atravesso Mussuril,
traje embora o céu d’escuro,
ou todo seja d’anil
de Lumbo visito as águas
e assim vou até Sancul,
chego depois ao mar-alto
sopre o norte ou ruja o sul.
[...]
O 2.° Período, de Prelúdio vai da publicação de O livro da dor até ao fim da II Guerra Mundial,
incluindo, além do livro do jornalista João Albasini, os poemas dispersos, nos anos 1930, de Rui de
Noronha, depois publicados em livro, numa recolha duvidosa, incompleta e censoriamente truncada, com
o título de Sonetos (1946), por ser o género mais cultivado por ele.
Rui de Noronha (nasceu em 28 de Outubro de 1905; morreu em 25 de Dezembro de 1943, em Lourenço
Marques) publicou boa parte dos seus poemas entre 1932 e 1936, no jornal O Brado Africano. A recolha
póstuma de Sonetos (1946) não faz juz à real obra do poeta.
Tributário da poesia da terceira geração romântica portuguesa, coincidente esta com o impulso renovador
do Realismo que se aproximava, vemos nesses sonetos, até pela sua forma, a atinência estrita à tradição
ocidental, que o latim retomado do soneto de Antero e, mais longe, da divulgação bíblica (a figura do
Lázaro ressuscitado), denuncia claramente:
Surge et ambula
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo...
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo...
A selva faz de ti sinistro ermitério,
onde sozinha à noite, a fera anda rugindo...
Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério
E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo...
Desperta. Já no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Desperta. O teu dormir já foi mais do que terreno...
a voz do Progresso. este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: — África surge et ambula!
Não se esgota nesse cumprir da herança portuguesa ocidental e cristã a poesia de Rui de Noronha, que
também se plasmou em formas mais libertas de constrangimentos e versou temas relacionados com
tradições nativas de Moçambique, como no caso do celebrado poema «Quenguelequêzê» (modernamente
também se escreve «Quenguele que ze»). Mas uma revisão crítica, como a que encetou Fátima
Mendonça, obriga a realçar a inversão de certa mitologia propagandística da história colonial que Rui de
Noronha operou poeticamente, desfazendo a versão de um Mouzinho de Albuquerque como herói
destemido e de um Ngungunhane (ou Gungunhana), imperador (ou régulo, segundo a terminologia mais
antiga) derrotado, dominado e humilhado:
Pós da história
Caiu serenamente o bravo Quêto
Os lábios a sorrir, direito o busto
Manhude que o seguiu mostrou ser preto
Morrendo como Quêto a rir sem custo.
Fez-se silêncio lúgubre, completo,
no craal do vátua célebre e vetusto.
E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto,
Fitava os dois, o olhar heróico, augusto.
Então Impincazamo, a mãe do vátua,
Triunfando da altivez humana e fátua,
Aos pés do vencedor caiu chorando.
Oh dor de mãe sublime que se humilha!
Que o crime se não esquece à luz que brilha
Ó mães, nas vossas lágrimas gritando?
Noronha é, pois, herdeiro do terceiro romantismo português, como se disse, da sua oscilação entre a
consciência do sujeito e a ânsia de absoluto (que haveria de liquidar física e psiquicamente um Antero,
ora sombrio, ora ático), que a história tratava de reconduzir à realidade (isto é, ao quotidiano e seu jogo de
forças materiais, sociais). Mas o poeta ultrapassa os restos desse terceiro romantismo, ao apropriar-se de
temas e imagens segundo uma estratégia textual e ideológica que assumia os primeiros contornos de uma
moçambicanidade baseada na História e no manancial étnico (o ritual, ainda que estereotipado, da Lua
Nova).
Uma nova época foi inaugurada, portanto, a seguir à II Guerra Mundial. Durante cerca de 20 anos (até
1963), a literatura moçambicana alcançará a autonomia definitiva no seio da língua portuguesa. […]
Noémia de Sousa, no seguimento dos textos soltos de Campos Oliveira (século XIX), do jornalismo dos
irmãos Albasini e de O livro da dor (1925), de João Albasini, e, depois, de Rui de Noronha, além de
outros, também não muitos, nem prolíficos, é a primeira escritora de inequívoca radicação (e
radicalização) africana, mas sem que se possa considerar que a literatura moçambicana comece com ela,
que escreve os seus poemas entre 1948 e 1951, antes de embarcar para a Europa. Sem demasiadas
preocupações cronologistas, podemos, para facilitar a perspectiva temporal e ancorar os textos marcantes
a um quadro algo referencial, estabelecer, todavia, os anos do pós-guerra, de 1945-52, como decisivos
para uma nova literatura moçambicana.[…]
Fonseca Amaral publicou, em 1945, os primeiros textos poéticos; Orlando Mendes, as «Cinco poesias
do Mar Índico», na Seara Nova (1947); acrescentamos-lhes o tal poema de Noémia de Sousa, «Canção
fraterna» (1948); João Dias morreu em 1949, deixando inéditos vários contos, publicados em livro pela
CEI, em 1952; saiu o número único do jornal Msaho (1952), com colaboração de Noémia de Sousa,
Virgílio de Lemos e Rui Guerra (o conhecido realizador do Cinema Novo brasileiro); Luís Polanah,
Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo organizaram para a CEI uma antologia de Poesia em
Moçambique (1951), no culminar de uma actividade mais ampla que vinha sendo desenvolvida, em
Lisboa e Coimbra, desde meados da década de 1940. […]
O 3.° Período, que vai de 1945/48 a 1963, caracteriza-se pela intensiva Formação da literatura
moçambicana. Pela primeira vez, uma consciência grupal instala-se no seio dos (candidatos a) escritores,
tocados pelo Neo-realismo e, a partir dos primeiros anos de 1950, pela Négritude.
Noémia de Sousa escreve todos os seus poemas (conhecidos até hoje) entre 1948 e 51, ainda sem
conhecer a Negritude francófona, mas estando a par dos negrismos americanos (Black Renaissance,
Indigenismo haitiano e Negrismo cubano, entre outros), visto que dominava o inglês e o francês. Em
1951, circulará o seu livro policopiado Sangue negro, formado por 43 poemas (mais um do que noutra
versão posterior). Em 1951, partiu para Portugal e, ao passar por Luanda, deixou uma cópia, que seria
frutuosa para os intelectuais angolanos ligados à Mensagem (1951-52) e todos os escritores das duas
décadas subsequentes. […]
O jornal cultural Msaho (1952, n.° único), proibido pela censura, destinava-se, como o título indicia, ao
compromisso investigatório e solidário com a cultura ancestral e popular, na linha da Mensagem angolana
ou dos congéneres movimentos de pesquisa e radicação nacionalista, desde o romantismo europeu à
América Latina (negros ou não). Neles colaborou Noémia de Sousa.
A década de 50, sendo a de movimentos grupais, viu surgir, desde logo, a publicação de textos,
exclusivamente poéticos, em selecções e antologias. Poesia em Moçambique (1951), organizada por Luís
Polanah, com um prólogo de Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo, saída em Lisboa, na CEI, tem um
critério muito largo e promíscuo (jovens autores sem futuro, portugueses, etc.), mas já inclui futuros
poetas importantes do país.
José Craveirinha sobressai, nesta década, de uma plêiade que congrega, além de Noémia de Sousa, Rui
Nogar, Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, Rui Guerra, Fonseca Amaral, Orlando Mendes, entre
outros.
O 4.° Período prolonga-se desde 1964 até 1975, ou seja, entre o início da luta armada de libertação
nacional e a independência do país (a publicação de livros fundamentais coincide com estas datas
políticas). É o período de Desenvolvimento da literatura, que se caracteriza pela coexistência de uma
intensa actividade cultural e literária no hinterland, no ghetto, apresentando textos de cariz não explícita e
marcadamente político (em que pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio Lisboa, Rui
Knopfli, o português António Quadros, entre outros) com, no outro lado, na guerrilha, inequívocos
poemas anti-colonialistas que teciam loas à revolução e tematizavam a luta armada.
Em 1964, Luís Bernardo Honwana publica Nós matámos o cão-tinhoso, um conjunto de contos que
finalmente emancipa a narrativa em relação à preponderância da poesia. Nesse mesmo ano, sai, em
Lisboa, o pequeno livro Chigubo, de José Craveirinha, editado pela CEI. Depois, até à independência,
aparece aquele que tem sido apresentado como o primeiro romance moçambicano, Portagem (1966), de
Orlando Mendes, os três números da revista Caliban, de índole universalista e cosmopolita, em 1971,
justamente quando a FRELIMO editava um primeiro volume de Poesia de combate, para, já em 1974,
surgir, então, o Karingana ua karingana, de José Craveirinha, uma recolha de poemas escritos a partir de
1945.
Nos anos 1960 e 1970, em Moçambique, vão estar em cena bastantes escritores que abandonarão o país
na independência (pouco antes ou pouco depois, sobretudo brancos, mas também um que outro mulato).
Intensifica-se assim uma tendência própria da colónia, qual seja a de criar muitos intelectuais, escritores e
artistas com uma identidade nacional indefinida, vacilante ou dupla, escritores que passam a sentir-se
moçambicanos e/ou portugueses: Rui Knopfli, Glória de Sant’Anna, Guilherme de Melo, Jorge
Viegas, Sebastião Alba, Lourenço de Carvalho, Eduardo Pitta, João Pedro Grabato Dias (ou
Mutimati Barnabé João ou António Quadros), Eugénio Lisboa, Ascêncio de Freitas, etc. Outros,
como Mia Couto, Heliodoro Baptista, Leite de Vasconcelos, ficarão no Índico, assumindo sem reservas
a cidadania moçambicana. Recordemos que a tradição de escritores brancos, nascidos ou criados em
Moçambique, mas que, muito cedo ou em idade madura, activa ou passivamente, demandaram ou foram
incluídos noutras pátrias, inclusive culturais, já era desproporcionada em relação à real extensão e valia da
sua literatura: Alberto de Lacerda, Helder Macedo, Reinaldo Ferreira, Orlando de Albuquerque,
etc.
Ao 5.° Período, entre 1975 e 1992, chamaremos de Consolidação, por finalmente passar a não haver
dúvidas quanto à autonomia e extensão da literatura moçambicana, contra todas as reticências, provindas
de alguns sectores dos estudos literários, e, diga-se também, contra todas as evidências. Após a
independência, durante algum tempo (1975-1982), assistiu-se sobretudo à divulgação de textos que
tinham ficado nas gavetas ou se encontravam dispersos. O livro típico, até pelo título sugestivo, foi
Silêncio escancarado (1982), de Rui Nogar (1935-1993), aliás o primeiro e único que publicou em vida.
Outro tipo de textos é o de exaltação patriótica, do culto dos heróis da luta de libertação nacional e de
temas marcadamente doutrinários, militantes ou empenhados, no tempo da independência.
Tal como nos outros países neófitos, o Estado (e a FRELIMO) detinha o monopólio das publicações e o
consequente controle. Todavia, segundo um conceito de instituição literária que não passa
obrigatoriamente por publicar em Moçambique, como acontecia, aliás, na época colonial, temos de
considerar a actividade poética de um Rui Knopfli fora de África como cooptada para o património
literário moçambicano. A publicação dos poemas de Raiz de orvalho, de Mia Couto (em 1983) e
sobretudo da revista Charrua (a partir de 1984, com oito números), da responsabilidade de uma nova
geração de novíssimos (Ungulani Ba Ka Khosa, Hélder Muteia, Pedro Chissano, Juvenal Bucuane e
outros), abriu novas perspectivas fora da literatura empenhada, permitindo-lhes caminhos até aí
impensáveis, de que o culminar foi o livro de contos Vozes anoitecidas (1986), de Mia Couto,
considerado como fautor de uma mutação literária em Moçambique, provocando polémica e discussão
acesas. A partir daí, estava instaurada uma aceitabilidade para a livre criatividade da palavra, a abordagem
de temas tabus, como o da convivência de raças e mistura de culturas, por vezes parecendo antagónicas e
carregadas de disputas (indianos vs. negros ou brancos).
A publicação de Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto, o seu primeiro romance, coincidente com a
abertura política do regime, pode considerar-se provisoriamente o final deste período de pós-
independência.
LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, pp. 256-262