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Dossiê "História e

Patrimônio na América
Latina: Diálogos críticos"

Fábio Cabral Durso

V. 1 / Nº 23 /JANEIRO-JUNHO 2023 | REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS


ABORDAGENS SOBRE MEMÓRIA
SOCIAL À LUZ DO PATRIMÔNIO
CULTURAL
Artigos
Dossiê História e patrimônio na América Latina: Diálogos críticos
Revista de Ciências Humanas | v. 1, n. 23 | Janeiro-Junho 2023

Abordagens sobre Memória Social à luz do Patrimônio


Cultural

Approaches to Social Memory from the perspective of Cultural Heritage

Aproximaciones a la Memoria Social a la luz del Patrimonio Cultural

Fábio Cabral Durso1

Resumo: Este artigo tem como objetivo examinar diferentes abordagens sobre
memória social e identidade no espectro que envolve as questões inerentes ao
patrimônio cultural. A partir de uma revisão bibliográfica utilizada na disciplina
“Seminário de Memória e Identidade” do curso de Pós-Graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas, busca-se
estabelecer debates sobre os vínculos primordiais que se inserem dentro do campo
da memória social, identidade e patrimônio. As discussões deste trabalho, orientadas
pelas perspectivas de autores como Joël Candau, Paul Ricoeur, Henri Bergson,
Néstor Canclini, Maurice Halbwachs e Manuel Castells, apontam que a memória e a
identidade, por serem construções discursivas e objetos de estudos
transdisciplinares, podem ser analisadas tanto como recursos quanto como
condicionantes de representações sociais, possibilitando ressonâncias nas práticas
patrimoniais. Os argumentos teóricos e conceituais evidenciam que a memória,
juntamente com o patrimônio, assume sua função social dentro de uma ordem
política.
Palavras-chave: Memória Social. Identidade. Patrimônio Cultural.

Abstract: This article aims to examine different approaches to social memory and
identity in the spectrum that involves questions inherent to cultural heritage. Based
on a bibliographical review, the aim is to establish debates about the primordial links
that are inserted within the field of social memory, identity and heritage. The
discussions in this work point out that memory and identity, as they are discursive
constructions and objects of transdisciplinary studies, can be analyzed both as
resources and as conditions for social representations, enabling resonances in
heritage practices. The theoretical and conceptual arguments show that memory,
together with heritage, assumes its social function within a political order.
Keywords: Social memory. Identity. Cultural heritage.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo examinar diferentes enfoques sobre la
memoria social y la identidad en el espectro que involucra cuestiones inherentes al
patrimonio cultural. A partir de una revisión bibliográfica, se pretende establecer
debates sobre los vínculos primordiales que se insertan en el campo de la memoria
social, la identidad y el patrimonio. Las discusiones en este trabajo apuntan que la
memoria y la identidad, en tanto construcciones discursivas y objetos de estudios

1
Sociólogo e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
Patrimônio Cultural, na Universidade Federal de Pelotas. Contato:
fabiodurso@outlook.com.

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transdisciplinarios, pueden ser analizadas tanto como recursos como condiciones


para las representaciones sociales, posibilitando resonancias en las prácticas
patrimoniales. Los argumentos teóricos y conceptuales muestran que la memoria,
junto con el patrimonio, asume su función social dentro de un orden político.
Palabras clave: Memoria social. Identidad. Patrimonio cultural.

Introdução

Os estudos sobre a memória social, especificamente aqueles


que a privilegiam como campo de investigação2, são abundantes em
diversas disciplinas que abordam o assunto e possuem uma complexa
delimitação conceitual. Diferentes autores já abordaram a memória
como um conceito polissêmico que perpassa os vieses teóricos, tanto
nas ciências humanas quanto nas neurociências, ainda que diversas
pesquisas apontem para a memória como um conceito relacionado ao
campo social, ético e político, adotando-a como objeto de análise. O
ato de rememorar além da busca pelo passado para utilizá-lo no
presente. Trata-se de um exercício de revisões, análises, discussões e
conhecimentos no qual a memória depende da formação da
identidade como fator de fortalecimento para o seu processo de
construção e reconstrução.
Apoiando-se em conceitos de teóricos como Maurice Halbwachs,
Joël Candau, Henri Bergson e Paul Ricoeur, este trabalho parte do
pressuposto que o conhecimento sobre os fatos do passado está
amparado na consciência da memória individual, coletiva e (ou) social.

2
Os estudos sobre memória social surgem na Europa e nos Estados Unidos no início
do século XX, guiados por grandes eventos e convulsões sociais traumáticas, bem
como por políticas que utilizavam a memória como suporte. Muitos pesquisadores
como o filósofo Henri Bergson e o sociólogo Maurice Halbwachs preocupavam-se
com os usos políticos do passado e da História para a reconstrução das identidades
nacionais. Na década de 1980, a memória social foi sendo operacionalizada com maior
frequência dentro das ciências humanas e sociais para entender determinados
fenômenos em torno das práticas relacionadas ao patrimônio cultural e suas questões
de representação.

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O papel da memória social não nos conduz somente a reconstituir tal


passado, mas a reconstruí-lo em relação às querelas que surgem a
partir de nossa perspectiva no presente. Sendo assim, este artigo se
orienta pela percepção de que a memória constitui um recurso e um
condicionante de representação social dentro de um viés histórico,
social e político.
Devido aos diferentes sentidos e significados que o conceito de
memória social possui, juntamente com seus “usos e abusos”3, essas
conceitualizações devem ser colocadas à luz das práticas patrimoniais.
Pensar e discutir a memória associada ao patrimônio abre
possibilidades para novas intersecções e interpretações, ou, dito de
outro modo, tem-se a oportunidade de perceber como a memória, em
vez de ser somente evocada, pode ser recriada, estabelecendo-se
outras formas de representação no âmbito individual e no aspecto
social, dispondo de novos conhecimentos para se investigar as
problemáticas contemporâneas do patrimônio cultural. Se, por um
lado, a noção de patrimônio ora é vista como um objeto que preconiza
e transmite a memória, por outro, percebe-se que a patrimonialização4
é um ato social por meio do qual os indivíduos atribuem valores aos
objetos e formulam questões patrimoniais, fortalecendo suas
identidades5.

3
Na perspectiva dos estudos de Paul Ricoeur (2007) sobre os usos e abusos da
memória e do esquecimento que são fundamentais para analisarmos tais
problemáticas.
4
De acordo com Candau (2009, p. 49), a patrimonialização possui o papel de legitimar
uma narrativa coletiva de um passado compartilhado.
5
Vale ressaltar que a mobilização de valores para a construção das referências
identitárias é posta por meio de agentes, como por exemplo, o Estado. Segundo
Llorenç Prats (2005), a “ativação patrimonial” é dada por esse processo. Ver em: PRATS,
Llorenç. Concepto y gestión del patrimonio local. Cuadernos de Antropologia Social,
n. 21, Buenos Aires, p. 17-35, 2005.

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Posta essa premissa, este artigo apoia-se em uma abordagem


metodológica baseada em uma revisão bibliográfica interdisciplinar e
transdisciplinar, utilizando, por exemplo, os trabalhos de H. Bergson
(1999), C. Rosário (2002), M. Halbwachs (2004), P. Ricoeur (2007), N.
Peralta (2007), J. Gondar (2016), J. Candau (2009, 2011), dentre outros
autores que abordam o conceito de memória como um fenômeno
social e suas ligações diretas e indiretas com o patrimônio. Utiliza-se
também os estudos de N. G. Canclini (1997) e M. Castells (2018), que
descrevem e classificam o conceito de identidade no mundo
contemporâneo. Ao trazer esses autores para o debate, constata-se
que a memória e o patrimônio estão imbricados no registro e em sua
conservação, processo em que verifica-se a possibilidade de
armazenar testemunhos, imagens, documentos e diversos
conhecimentos que forjam uma determinada identidade cultural. O
artigo também discute a memória como um aspecto social que leva
em consideração as disputas e conflitos sociais no processo de escolha
e constituição das memórias coletivas.
Além desta breve introdução, o texto divide-se em alguns eixos,
que serão os condutores das reflexões analisadas a partir dos autores
mencionados. Em um primeiro momento busca-se o desenvolvimento
da revisão histórica do campo, entrelaçando os conceitos de memória
social, memória cultural e esquecimento, justapostos com a
construção discursiva da identidade. Na segunda parte, o trabalho
direciona tais abordagens conceituais e teóricas para a atual
compreensão das práticas patrimoniais. Por último, em conclusão, são
realizados os apontamentos finais.

Breves aspectos da memória social, identidade e esquecimento

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No cenário contemporâneo, correspondente à sociedade da


informação e do conhecimento, a memória pode ser colocada como
uma questão mais do que necessária, sobretudo porque ela mostra
certos “fragmentos” que estão imbricados de modo conjunto e íntimo
com a identidade social. Ao analisar a memória como um dispositivo
que em determinado momento deve ser lembrado e em outro deve
ser esquecido, tem-se a possibilidade de “refazer”, fortalecer ou até
mesmo “apagar” identidades sociais conforme o interesse de grupos
que dispõem de determinado poder.
Conforme Huyssen (2000, p. 9), a memória tornou-se uma das
mais relevantes preocupações culturais e políticas nas sociedades
ocidentais, sendo sua indissociabilidade do espaço e da temporalidade
uma de suas características mais pujantes. Sendo assim, os discursos
da memória mostram-se presentes em grande parte da cultura
contemporânea. Huyssen (2000) afirma também que a memória
tornou-se uma obsessão cultural em proporções monumentais: ainda
que seus discursos possam parecer de certo modo um fenômeno
global, observa-se que, em seu núcleo, ainda permanecem ligados às
narrativas históricas de grupos específicos presentes em diferentes
Estados nacionais6.
Dentro da perspectiva da neurociência, Iván Izquierdo (2013)
levanta a problemática de que não há tempo sem o conceito de
memória e não há presente sem o conceito de tempo. Além disso, não
é possível conceber a realidade sem relacionar a memória com as
noções de presente, passado e futuro. Segundo Izquierdo, ao se fazer
menção à palavra memória, a primeira ideia que se tem relaciona-se
às memórias individuais armazenadas no cérebro por meio das

6
Para o autor, o lugar político das práticas de memória é ainda nacional e não
pós-nacional ou global.

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experiências adquiridas ao longo do tempo. O que nos conduz a


pensar que não existe memória sem aprendizagem e tampouco
aprendizagem sem experiências. Segundo este pesquisador, todo ato
de evocação da memória é um ato único e individual.
Tomando como base uma revisão histórica e conceitual, é no
antagonismo entre percepção e lembrança que se estabelece o
debate filosófico do francês Henri Bergson, no livro “Matéria e
Memória”, lançado pela primeira vez em 1886. Nesta obra clássica,
Bergson (1999) concentra sua análise na percepção de que cada
imagem já encontra-se formada no indivíduo e é conduzida por ela
sempre presente no seu corpo. As imagens que correspondem ao
passado sobrevivem e chegam até nós por meio das lembranças, que
são frutos da memória. É por meio das imagens-lembranças que os
dados contidos no presente são involucrados nas reminiscências das
experiências passadas dos sujeitos. Tais lembranças movem nossas
percepções reais, considerando a memória como o envolvimento da
relação do corpo presente com o passado, o qual interfere diretamente
no processo das representações7.
Paralelamente, partindo de um ponto de vista que envolve os
campos disciplinares da Sociologia, da Antropologia e da História,
além de outras áreas das Ciências Humanas, a memória é analisada
como um dispositivo que tem a responsabilidade de proporcionar ao
indivíduo o sentimento de pertencimento, tanto no âmbito individual
como na esfera social. Além do mais, os atos mnemônicos podem
estabelecer ou ressignificar acontecimentos do passado, em virtude

7
Bergson (1999) parte do pressuposto da diferenciação entre a memória-hábito e a
lembrança pura, sendo que a primeira está relacionada aos mecanismos motores e é
adquirida pelo esforço da atenção e repetição dos aspectos sociais. Por outro lado, a
lembrança pura ocorre independentemente de qualquer hábito, o que constitui,
segundo Bergson, uma forma autêntica de “ressureição do passado”.

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do fato de a memória não se caracterizar apenas pelo seu processo de


“resgate” ou reconstituição de tais fatos, mas também por sua
capacidade de estabelecer a reconstrução do presente para o passado.
Um dos precursores a tratar desse assunto, o sociólogo francês
Maurice Halbwachs (2004) estabelece que a memória é algo do
âmago do conhecimento coletivo, e tal conhecimento é
contextualizado culturalmente entre os indivíduos e refletido
diretamente nas relações identitárias8. A memória é explorada como
esse elemento importante para a compreensão de construção e
reconstrução das identidades. Halbwachs inaugurou, assim, dentro do
campo das Ciências Sociais, o conceito de memória coletiva com o
status epistemológico. Halbwachs (2004), apoiado numa tradição
sociológica francesa9, analisou os fenômenos sociais que condicionam
a construção da memória. Nesta perspectiva epistémica, a memória
depende da relação do indivíduo com as diferentes instituições
formadoras do sujeito, como a família, a escola, a religião, o exercício
profissional e os outros grupos que fazem parte de sua referência.
Tanto Halbwachs (2004) quanto Bergson (1999), consideravam a base
da memória o momento presente, entretanto, Halbwachs,
contrariando10 a tese de Bergson, não percebia a existência de uma

8
O conceito de memória coletiva tem sua importância partir da obra póstuma de
Maurice Halbwachs denominada La Mémoire Collective (A Memória Coletiva), lançada
originalmente em 1950, onde o sociólogo francês ratifica que não há como
recordamos sem os marcos sociais, pelo fato de que todas as nossas recordações são
de caráter coletivo. Entretanto, vale destacar que foi em 1925, pela obra intitulada Les
Cadres Sociaux de la Mémoire (Os Quadros Sociais da Memória), onde Halbwachs
sistematizou a visão da memória em termos sociológicos, contra o individualismo e
subjetivismo da memória analisado por Henri Bergson.
9
Vale ressaltar que Maurice Halbwachs tinha em seus estudos a influência do
sociólogo Émile Durkheim.
10
Halbwachs reconhece a memória-hábito trabalhada por Henri Bergson. Entretanto,
para o sociólogo, a memória é uma construção social, onde a memória coletiva
fornece um conjunto de estruturas que nos ajudam a lembrar e a reconstruir o

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memória pura ou um passado autêntico a partir da memória. Para o


sociólogo, as imagens não estavam vinculadas ao espírito humano ou
a uma consciência interna do indivíduo, mas sim às representações
coletivas11, influenciadas por grupos sociais que ajudam a reconstruir o
passado. Ou seja, a memória coletiva, conforme Halbwachs, fornece
um conjunto de estruturas que dão suporte à reconstrução do
passado.
Peralta (2007, p. 5), ao discutir alguns dos trabalhos de
Halbwachs, demonstra que a função principal da memória, quando
encarada como imagem do passado, é a de promover laços e integrar
os membros de um grupo com base no seu passado coletivo. Ou seja,
a memória coletiva para Halbwachs é o lócus que sustenta a
identidade do grupo, a qual precede a memória individual,
determinando seu conteúdo. Em outras palavras, mesmo sendo o ato
de lembrar um ato de característica particular e próprio, o indivíduo só
o fará enquanto for membro de um determinado grupo social. Neste
sentido, as contribuições Halbwachs (2004) apontam que todos os
grupos sociais desenvolvem sua memória por meio do passado
coletivo. A memória apresenta-se como indissociável do sentimento
de identidade, que permite identificar um grupo e distingui-lo dos
demais, devido ao fato de que as memórias existem porque fazem
parte de um conjunto de valores que são comuns a todos.

passado. Para Halbwachs o passado não se apresenta novamente por essa a memória
pura analisada por Bergson, mas sim num processo de reconstrução
11
Para Halbwachs, a família, a classe social e a religião formam um conjunto de
molduras que ajudam a reconstruir o passado.

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Colacrai (2010) afirma que Halbwachs, ao escrever sobre os


marcos sociais da memória12, acertou ao detectar a capacidade da
memória de construir vínculos com os indivíduos e fortalecer a coesão
dos grupos sem coerção, mas por meio de uma adesão afetiva desse
grupo. Porém, algumas críticas devem ser observadas nesse ponto,
uma vez que a visão positivista de Halbwachs, influenciada por
Durkheim13, se fecha na possibilidade de pensar a memória como um
processo de produção de sentido acerca do passado. Para o
pesquisador, essa visão positivista acerca da memória impede de
analisar os processos de construção como forma específica de
dominação e de violência simbólica.
A partir do conceito de memória, torna-se possível compreender
os processos sociais e individuais de estar no mundo e na busca
construção de sentidos. Os quadros sociais da memória discutidos por
Halbwachs (2004) são vistos para além de pontos de referência para as
lembranças. Quer dizer, eles são a permanência da condição da vida
humana em sociedade no presente. Graeff e Grebin (2018, p. 67),
analisam tais questões e concebem a memória a partir da noção que é
generalizada e perceptível nas sociedades modernas, nas quais
podemos conjugar os quadros sociais relacionados ao tempo, espaço e
linguagem.

12
Os marcos ou quadros sociais da memória, segundo Halbwachs (2004) representam
um avanço fundamental na percepção em que os grupos influenciam a memória dos
indivíduos. Ou seja, é por meio dos marcos sociais que é possível compreender a
continuidade social, possibilitando a ideia de que só podemos lembrar efetivamente
de algo, pelo fato de pertencermos a uma sociedade. Para o sociólogo, os quadros
sociais da memória estão vinculados com o espaço, tempo (eventos e comemorações)
e linguagem (parentesco, família, grupo de pertencimento).
13
No sentido de considerar a impessoalidade e a coerção que os fatos sociais exercem
sobre os grupos. Nesse sentido, a memória está fundamentada em lugares, valores,
instituições, imagens que constituem os marcos sociais e que tais marcos
armazenam as memórias coletivas de diferentes grupos que interagem entre si.

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Dentro de uma perspectiva teórica e conceitual mais recente, Jô


Gondar (2016, p. 19-25) ao buscar proposições sobre o conceito, mostra
que a memória é construída e reformulada pelos indivíduos toda vez
que é evocada, apresentando noções polissêmicas que perpassam a
interdisciplinaridade, relacionando-se com questões éticas e políticas
dentro de um contexto plural. Gondar (2016) concebe a memória social
como um processo no qual a representação é uma forma cristalizada
de uma memória legitimada em determinada sociedade. Nos estudos
sobre o tema, percebe-se que a memória cumpre um papel político,
sobretudo nas relações de poder, dentro das quais se verifica a
intencionalidade de exaltar determinados fatos e relativizar outros,
envolvendo sua construção processual, não limitando o conceito
apenas às questões de representação. Segundo Gondar, ao
rememorar um ato ou um fato passado, constrói-se uma narrativa, um
enredo ou uma maneira de pensar o passado em função do futuro
que se almeja alcançar. Seja qual for o caminho teórico de abordagem
dentro do campo, o investigador da memória social sempre estará
comprometido ética e politicamente em suas pesquisas.
Ainda em sintonia com Gondar (2016), outra problemática a ser
observada nessa discussão, é que a memória não deve ser analisada
somente como um conjunto de arquivos de representações ou
reduzida à identidade14, pois é preciso admiti-la como parte da esfera
social, viva e em constante mudança na sua própria dinamicidade.
Para isso, faz-se necessário entender as condições processuais de sua
produção, juntamente com as tensões, os debates e os conflitos que

14
Segundo a autora, se pensarmos na memória simplesmente por esse ângulo,
despreza-se todas as condições processuais de sua representação. Além disso, ao
limitar a memória em relação à identidade, o pesquisador encontrará a problemática
para perceber que quando a identidade é algo a ser preservado, a memória passa a
trabalhar em função e na manutenção do mesmo. (GONDAR, p. 33).

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contribuem para a sua concepção. Segundo a autora, todas as


representações são inventadas e, com isso, é importante perceber a
invenção e a “produção do novo” nas formulações da memória.
Ao analisar a memória social e suas ressonâncias, discute-se
também o esquecimento. Nessa perspectiva, segundo Ricoeur (2007),
a memória implica no esquecimento, pois as perdas são percebidas
como algo indispensável à transformação da memória. De acordo com
esse filósofo francês, é necessário entender o esquecimento como um
ato que invariavelmente se encontra no presente. Sendo assim, a
memória é o resultado paradoxal da relação entre o ato de lembrar e o
ato de esquecer. Para uma memória se configurar (ser evocada),
coloca-se a problemática de que a mesma é, antes de mais nada, fruto
de uma seleção e de uma escolha dos indivíduos. Ricoeur (2007)
também coloca em questão que o esquecimento deve ser analisado
em igualdade com a memória e a história, pois, segundo o autor, é
com o dano ou a fraqueza percebida na confiabilidade da memória
que o esquecimento é sentido.
Nesta mesma direção, Rosário (2014), em “O Lugar Mítico da
Memória”, aponta que o papel da memória não é apenas de
reconhecimento de conteúdos passados, mas um efetivo reviver que
leva em si todo ou parte de um passado. De acordo com essa
pesquisadora, o esquecimento é visto como a impermanência dentro
da mortalidade. Em contraposição, o lugar da memória se dá na
imortalidade. Dessa forma, chega-se ao entendimento que a memória
está no presente e nos identifica como indivíduos e como coletividade,
assumindo, então, a funcionalidade de reconectar o presente ao
passado, projetando aspectos para o futuro.
Analisando sob outra ótica, Jan Assmann (2016) propõe analisar a
memória sob um viés culturalista apoiado nas questões de tradição. O

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pesquisador define a memória como a faculdade que nos capacita a


formar a consciência da identidade, tanto em seu aspecto cultural
como no âmbito coletivo. Esta identidade, por sua vez, está
relacionada à temporalidade. Assmann (2016) aponta a memória
cultural como uma forma de memória coletiva, baseada em uma
esfera cultural, na qual Halbwachs não aprofundou suas análises.
Neste sentido, ainda que a memória cultural esteja baseada em
pontos fixos do passado, ela é exteriorizada, objetiva e armazenada em
formas simbólicas. Portanto, segundo o autor, a memória só existe a
partir da interação, numa coesão dos símbolos e indivíduos.
A memória cultural, segundo Assmann (2016), reside em um
nível social, na qual se faz presente por meio de objetos ou
construções que funcionam como lembranças, tais como
monumentos, bibliotecas, museus, arquivos e outras instituições
mnemônicas. A memória apresenta-se como uma estrutura e é
percebida como um sistema aberto, um conhecimento dotado de um
índex de identidade e um conhecimento sobre si. O autor ainda
ressalta a diferenciação da memória cultural e a memória
comunicativa, sendo a primeira ligada a uma espacialidade, por meios
institucionais de transmissão, inerente ao elitismo e nunca igualitária.
Já a segunda é caracterizada por sua forma difusa, envolvida na
interação e competência social dos indivíduos, tendo sua
sobrevivência na comunicação cotidiana. Dentro do viés culturalista, o
autor propõe, em sintonia com Ricoeur (2007), que o esquecimento
está diretamente ligado à memória, embora, para Assmann (2016), a
durabilidade da memória dependa da permanência dos vínculos
sociais de um determinado grupo ou sociedade.
Nesse aspecto, ao discutir a transversalidade da memória à luz
do patrimônio, torna-se necessário, ainda, pontuar a função social da

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identidade como um aparato instrumental. Dentro dessa ótica,


Manuel Castells (2018), ao analisar os movimentos sociais, dentro
daquilo que denomina sociedade em rede15, descreve a identidade
como a fonte de significação e de experiência de um povo, com base
nos seus atributos culturais. Porém, vale ressaltar que na construção
de uma identidade há sempre relações de poder, sendo ela
legitimadora, de resistência ou de projeto16. Para o autor as identidades
são construídas culturalmente nas comunidades locais, e é por meio
da memória coletiva que passam a constituir fontes específicas de
identidade.
Complementando tal análise, Canclini (1997) aponta que nos
diversos cenários culturais e no cruzamento das identidades torna-se
necessário investigar as ordens que sistematizam as relações materiais
e simbólicas entre os grupos. O antropólogo argentino discute a
reorganização social do poder, no qual as identidades coletivas cada
vez menos são encontradas nas cidades e em sua história, distante do
seu palco constitutivo. O sistema de interação que desenvolve o
processo da identidade aponta para a construção das identidades
pós-modernas, na qual os discursos culturais são as bases primordiais
para o processo de sua identificação. Percebe-se dessa forma que a
elaboração do discurso da identidade perpassa os debates da
memória. A construção de uma identidade está posta num processo
15
O sociólogo catalão denomina “sociedade em rede” os processos de dominação na
era da informação. Para o autor, a difusão de redes promove uma mudança
substantiva nos processos produtivos, nas relações de poder e na cultura. Dessa
forma, a sociedade em rede coloca os processos de construção de identidades que
modificam a novas formas de organização social.
16
Segundo Castells, a identidade legitimadora é formada pelas instituições
dominantes, como por exemplo o nacionalismo e determinados grupos de poder. Já
a identidade de resistência é criada por atores que se encontram em posições
desvalorizadas pela lógica de dominação e, por último, a identidade de projeto é
construída por atores sociais que utilizam qualquer tipo de material cultural para
construir uma nova identidade.

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memorial que se relaciona com os fatos pretéritos, com o presente e


com o esquecimento. Sendo assim, é imperioso discutir a identidade
dentro de um discurso no qual a memória o faz na medida que
possibilita que o indivíduo construa a narrativa a si mesmo.
É nesse entrelaçamento entre memória e identidade que o
antropólogo francês Joël Candau (2011) afirma que “a memória é a
identidade em ação”, e que, dentro de um espaço de estratégias
identitárias, os indivíduos decidem por buscar diferentes
representações, como os saberes, crenças, ritos etc. O autor avança e
traz uma contribuição importante ao analisar os debates que se
relacionam com os quadros sociais discutidos por Halbwachs na
concepção de memórias, os quais, para Candau (2011), são, em teoria,
“supostamente coletivas”17. A base central do seu pensamento está no
tema do compartilhamento e da representação da memória no
vínculo com a construção das narrativas identitárias18. Os esforços
memoriais são esforços identitários na medida em que aproximam o
passado do presente, sendo a memória em si construída por

17
Candau (2011) nos mostra que a memória coletiva do ponto de vista do Halbwachs é
dada por “retóricas holíticas”. Quer dizer, o conceito de memória coletiva apresenta
grandes narrativas. Além disso, os estados mentais são incomunicáveis e não podem
ser observados de forma simultânea ou comum a todos. Da mesma forma em que as
lembranças não promovem os mesmos sentidos simultaneamente em todos os
indivíduos.
18
Candau (2011) propõe uma taxonomia das diferentes manifestações da memória,
sendo: a) memória de baixo nível e ou protomemória, algo semelhante ao conceito
de habitus formulado por Bourdieu, no qual é dada pela transmissão social que
constitui um ethos ancoradas em práticas e códigos; b) memória de alto nível, na qual
pode ser vista como a memória de recordação ou de reconhecimento e constituída
também pelo esquecimento e; c) metamemória, é vista como a representação que
cada indivíduo faz da sua memória e se dá quando a memória é reivindicada. Ou seja,
o conhecimento que tem dela e o que diz dela. Vale informar que essa taxonomia,
segundo o autor, é válida quando falamos de memória individuais, já nos grupos
sociais ela pode ser anulada. A memória coletiva é uma representação que é
acionada por determinadas sociedades.

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representações sobre o passado de modo não homogêneo e muitas


vezes conflitivo.
Em consonância com Candau (2009), a irrupção da memória no
presente é denominada como “mnemotropismo”, em que essa
“compulsão memorial” é manifestada de diversas formas, seja como
comemorações, conflitos de memória, retrospecção generalizada,
emergência de numerosas tradições ou outras formas de
reminiscência. Candau (2009, p. 44), expõe que essa devoção
patrimonial compulsiva está ligada de modo direto a esse
“mnemotropismo” massivo contemporâneo. Sendo assim, torna-se
necessário refletir sobre “as bases antropológicas” desse processo que
está pautado pela “inflação de memória” ou “bulimia patrimonial”,
conferindo à patrimonialização o poder de estabelecer vínculos, tendo
como consequência a objetificação desproporcional da preservação e
da busca patrimonial.
Candau (2009) assinala que não pode existir identidade sem
memória e tampouco pode haver memória sem identidade. Ou seja,
para o antropólogo a memória e a identidade dão forma e
caracterizam a definição de patrimônio, sobretudo quando este, nas
sociedades contemporâneas, possui a finalidade de ser um “aparelho
ideológico de memória”. A memória pode ser assimilada como essa
faculdade que constitui a identidade pessoal do indivíduo, permitindo
aos sujeitos se pensarem como detentores de uma essência que
permanece em um determinado tempo ou para perceber que o grupo
do qual fazem parte é detentor de uma essência da mesma
propriedade.
A busca por conservar o passado e produzir um patrimônio
memorial demonstra a sensação de insuficiência dos indivíduos ao
viverem isolados somente no tempo presente. Por isso, diversos

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grupos mostram-se dedicados a encontrar ou produzir tudo em


função dos seus traços, vestígios, relíquias e arquivos ou tudo aquilo
que narra a sua própria trajetória, elementos que constituem as bases
de sustentação do patrimônio cultural. Neste aspecto, “os traços
detêm uma autoridade pela importância que lhes é conferida”
(Candau, 2011, p. 159), sendo assim, percebe-se que a memória executa
sua função no ordenamento dos resquícios do passado, o que dá
substrato para a construção da narrativa desse passado e, por
conseguinte, para a estruturação da identidade.
De acordo com as abordagens teóricas e reflexões discutidas
neste trabalho, percebe-se que a memória atua como um
condicionante e um mecanismo que constrói o passado no presente a
partir do momento em que é acionada. Este fator mostra-se atual
também nas ações e nos debates patrimoniais. A formulação de
sentidos e significados da memória é percebida no presente no
decorrer da rememoração e, por isso, ela deve estar sujeita a
reavaliações. A memória e a identidade têm seus caminhos
percorridos de forma conjunta, no entanto, é necessário observar os
modos de produção e reprodução desses saberes que lhes são
próprios. Portanto, torna-se necessário discutir a memória como um
eixo central para as formações culturais e seu papel de representação,
sobretudo nas suas vulnerabilidades, narrativas e na função política
que se entrelaça de modo direto com o patrimônio cultural, conforme
será tratado no tópico a seguir.

Memória e identidade na compreensão das práticas patrimoniais

Quando se mobilizam questões sobre as práticas patrimoniais,


considera-se a associação dos conceitos de memória e identidade,

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uma vez que o patrimônio assume uma posição privilegiada para


discutir esses conceitos. O patrimônio19, em se tratando de um
conceito historicamente construído20, integra esse sentimento de
reconhecimento e pertencimento dos indivíduos e grupos, o qual é
atravessado pela identidade e, consequentemente, atesta e fortalece a
memória numa relação de dualidade, conforme aponta Candau
(2009). O patrimônio está diretamente vinculado às lembranças e às
memórias, uma vez que elas são primordiais na práxis patrimonial,
pelo fato de os bens culturais serem dotados de ações políticas de
preservação em função da vinculação que possuem com as
identidades culturais. Nesse mesmo entendimento, Dominique Poulot
esclarece que “a história do patrimônio é a história da construção de
sentido de identidade e, mais particularmente, dos imaginários de
autenticidade que inspiram as políticas patrimoniais” (Poulot, 1997,
citado por Ferreira, 2006).
Em conformidade com Candau (2011, p. 158-159), é por meio do
patrimônio que se produz uma identidade materializada, como uma
espécie de relicário com uma noção de passado por meio do qual os
grupos se dedicam a encontrar ou construir seus traços, vestígios,

19
O conceito de patrimônio perpassa os debates complexos que se relacionam com
uma série de características e atores sociais, pelo qual este trabalho não tem por
objetivo se aprofundar. Porém, de modo bastante sucinto, entende-se por patrimônio
o conjunto de saberes, fazeres, práticas e seus produtos que remete à memória e a
identidade de determinado grupo. Busca-se ainda uma compreensão para além do
aspecto jurídico do conceito, trazendo o sentido de evocação e permanência do
passado com a necessidade de preservar o significado e valor das identidades.
20
Vale ressaltar que as ações de preservação e conservação do patrimônio no
ocidente iniciaram no século XIX e início do século XX. Ao longo dos anos, foram
realizadas diversas comissões, conferências e critérios para proteger e preservar os
bens culturais num mundo pós-guerra. Já no Brasil, as primeiras políticas em torno
das questões patrimoniais surgiram na década de 1930, por meio do anteprojeto de
Mário de Andrade e outros intelectuais modernistas que corroboraram para a criação
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Hoje atual Instituto
do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN).

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arquivos ou as formas de permitir narrar a si mesmo por meio dos


sociotransmissores21, que transformam a memória em um nível de
compartilhamento da sua cultura. Dessa forma, percebe-se que o
patrimônio possui a já mencionada capacidade de trabalhar com a
memória, estimulando positivamente a identidade, a memória social,
a narrativa histórica, o interesse de estabelecer ações de preservação e
outras políticas patrimoniais.
À memória imputa-se, juntamente com o patrimônio, esse viés
político, uma vez que persiste a intencionalidade de determinar quais
bens culturais são suscetíveis de serem preservados e lembrados e
quais devem ser esquecidos ou silenciados. Neste espaço de disputas
e conflitos, a memória possui um caráter político dentro de uma
perspectiva histórica, na qual é possível observar que a referência ao
passado compartilhado tem a funcionalidade de manter a coesão de
determinado grupo e de suas instituições sociais.
Nesta perspectiva, Ferreira (2012, p. 14) aponta que a
reconstrução de um passado legítimo ocorre por mecanismos de
institucionalização que normatizam a interação entre as políticas de
memória22. Assim, serão os grupos sociais, em um último momento,
aqueles que irão reelaborá-lo e transmiti-lo para as futuras gerações.
Torna-se necessário, então, discutir os modos de legitimação do

21
Candau (2009, p. 52) percebe os sociotransmissores como algo similar aos
neurotransmissores no cérebro. Porém os sociotransmissores estão presentes no
âmbito da vida social, como os indivíduos e sua oralidade, objetos, lugares e outros
recursos que possibilitam a evocação da memória.
22
A professora e pesquisadora Maria Letícia Mazzucchi Ferreira (2012, p.18-24) discute a
relação entre memória, patrimônio, tradição e os usos do passado de modo análogo
com as políticas públicas de patrimônio implementadas na cidade de São Lourenço
do Sul, no Rio Grande do Sul. O trabalho citado faz um diálogo direto com o debate
abordado neste artigo, onde é possível refletir sobre práticas patrimoniais no presente
e sua imbricação com a memória. Para Ferreira (2012), as “políticas de memória” estão
envolvidas com as crenças e as lembranças que dão origem às memórias
compartilhadas com base na sua função política.

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patrimônio e os valores atribuídos aos rastros do passado, analisando


suas funções e sentidos em uma determinada conjuntura social.
Ferreira (2012) questiona como se dá a construção de um consenso
político que envolve o valor patrimonial e os diversos atores que dele
participam. Neste sentido, deve-se ampliar a discussão, transpondo o
estudo do patrimônio como conceito para abordar os processos de
patrimonialização, enfatizando, sobretudo, os objetivos e relações de
como tal tema é aplicado nos processos tangíveis e intangíveis.
Utilizando a perspectiva de Candau (2009, p. 49), pode-se observar que
a patrimonialização desempenha um papel fundamental na
legitimação de uma narrativa coletiva de um passado compartilhado.
É pertinente assinalar, em concordância com Ferreira (2012, p.
14), que as políticas de patrimonialização, juntamente com a invocação
do “dever de memória” e as diferentes memórias compartilhadas de
uma comunidade, são posturas muitas vezes conflitivas, que visam
arquitetar politicamente o passado. O processo de valorização do
passado coloca o objeto patrimonial em um papel legitimado pela
crença de um compartilhamento. Assim, o passado assume um valor e
um significado, sendo compreendido como um bem comum do
grupo ao qual está vinculado. Dessa forma, o passado é recriado no
artifício da memória, ou melhor dizendo, sob o enfoque da
metamemória que nos faz questionar e refletir sobre o papel do
patrimônio como um conjunto de representações que é reivindicado
na contemporaneidade (Candau, 2011).
A memória e a identidade possuem dinâmicas históricas que
são determinadas no presente, uma vez que constituem o jogo social
atual. Paralelamente, elas são o resultado da construção e
reconstrução dos sujeitos sociais ao longo do tempo. A representação
da memória social, expressada por meio de narrativas patrimoniais,

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está intrinsecamente vinculada a discursos ideológicos específicos


que refletem essa dinâmica social. Nesse contexto, apresenta-se a
tarefa de seleção do que pode ser lembrado e (ou) esquecido no
campo de embates políticos, econômicos e simbólicos. Merece
destaque ainda a performance de narrativas de memórias coletivas, as
quais não podem desconsiderar o poder imbricado às práticas
patrimoniais, compreendidas como ações simbólicas que carregam
significados23. Ou seja, os fatos que devem ser rememorados ou que
precisam ser esquecidos perpassam uma lógica de ordenamento no
processo de constituição e compartilhamento da memória e
identidade com suas representações. Neste sentido, percebe-se que o
patrimônio legitimado é o lócus em essência dos suportes de
memórias.
O campo do patrimônio cultural contém muitos exemplos que
podem demonstrar os argumentos de Candau (2009). Muitas práticas
patrimoniais e suas narrativas construídas são, de modo geral,
carregadas de discursos performáticos de memórias coletivas de
determinados grupos hegemônicos. Essas práticas atribuídas ao
patrimônio nunca são neutras, homogêneas ou isentas, pois sempre
haverá uma intencionalidade ou escolha marcada pelo contexto
sócio-histórico no qual está inserido o grupo humano que as produziu.
O patrimônio cultural, compreendido como lugar de expressão de
memórias, tem a funcionalidade de reforçar o sentimento de
pertencimento do indivíduo a uma cultura ou a um grupo social.
Contudo, é oportuno observar com cautela a maneira como essas
práticas patrimoniais são transmitidas, quem as transmite e o motivo

23
Vale destacar que, em diferentes casos e situações, o patrimônio cultural (sobretudo
material) é dotado de discursos homogeneizantes que invisibilizam as identidades
culturais.

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de serem compartilhadas, uma vez que são pontos mais que


essenciais para se analisar as narrativas das performances das
memórias e identidades ali presentes.
Por fim, torna-se fundamental encontrar nas entrelinhas o que
está no campo da memória e o que foi selecionado para ser
patrimonializado, percebendo como as memórias compartilhadas são
representadas e legitimadas por meio dos discursos patrimoniais. É no
âmbito das performances das memórias coletivas e das narrativas
postas pela identidade que deve ser observado o poder que está
atribuído ao patrimônio na construção de discursos de verdade e
abusos de memória e esquecimento, como já discutido por Ricoeur
(2007). Ou seja, é nessa tensão de forças e conflitos que está o campo
da memória social e suas diferentes formas de representações. Diante
dos movimentos e significados dos indivíduos, o passado é elaborado
em função da memória, fazendo-nos refletir sobre os novos papéis do
patrimônio no presente e suas projeções para o futuro.

Apontamentos finais

Este artigo buscou analisar diferentes contribuições que pautam


a memória social e a identidade nas questões que direcionam as
práticas e as políticas patrimoniais. Por meio de uma revisão
bibliográfica transdisciplinar, o texto discutiu como o processo de
valorização do passado pode ser utilizado nas práticas patrimoniais
como um recurso de duração que é legitimado no compartilhamento
das memórias acionadas. Sendo assim, a primeira parte do artigo teve
por objetivo fazer uma retomada de alguns pontos teóricos e
conceituais que envolvem a memória e a identidade e o
esquecimento. Já a segunda parte buscou relacionar algumas ênfases

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dos conceitos da memória e sua funcionalidade para refletir e


questionar as práticas patrimoniais.
Infere-se que o passado assume uma condição valorativa no
presente, sendo um recurso essencial em um determinado grupo
social onde está vinculado. Desde uma perspectiva histórica, a
primeira parte do trabalho buscou analisar pontos teóricos e
conceituais sobre memória social, identidade e esquecimento,
percebendo a função social e política da memória no ordenamento de
resquícios ou “fragmentos” do passado, na construção das narrativas e
seu vínculo direto com a identidade. Paralelamente discutiu-se que, ao
se tratar a temática da memória, também torna-se necessário
argumentar sobre o esquecimento, tendo como ponto de análise a
relação entre a durabilidade da memória e a subsistência dos vínculos
de um determinado grupo.
Por conseguinte, a segunda parte do trabalho apontou para a
problemática da memória e identidade relacionada com práticas
patrimoniais, tomando como entendimento que o patrimônio está
inerentemente conectado a esses conceitos. Observou-se que a
reconstrução de um passado legitimado intercorre em grande parte
por meios institucionais que dão normatividade para a interação das
políticas de memória.
Neste sentido, ressalta-se conclusivamente que o patrimônio
possui, então, meios de acionar e estimular a memória e a identidade,
sobretudo pelo fato de interrelacionar narrativas históricas, interesses
nas ações de preservação e outras práticas patrimoniais. Isto é, a
memória associada ao patrimônio possui um viés político devido ao
fato que há a intencionalidade de escolher quais bens culturais são
passíveis de serem preservados e quais devem ser esquecidos,
formulando ou não suas políticas patrimoniais. Nesses antagonismos e

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na tensão de forças das dinâmicas sociais que envolvem a memória e


a identidade é possível observar as diferentes formas de representação
social, resultado da construção e reconstrução dos sujeitos ao passar
do tempo.
Neste sentido, o artigo apoiou-se na perspectiva posta por
Candau (2009), segundo a qual o patrimônio é constituído por uma
manifestação metamemorial, a qual dispõe de práticas recursivas com
a finalidade de reivindicar a memória social e sua permanência e por
meio da qual são formuladas e reforçadas narrativas de poder. No
entendimento desta análise, conclui-se que o patrimônio é um meio
de expressão cultural que, ao ser quando acionado e compartilhado
por meio da memória social, pode ser encarado como base
constituidora de uma ação coletiva entre diferentes grupos.

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