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Material de Apoio Rubicão para Escola Aitiara - APIC Ale

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A Criança entre a troca de dentes e o Rubicão

Com a queda dos dentes de leite e a emancipação do corpo vital, a criança amadurece para a
fase escolar e o processo de alfabetização pode ser iniciado. Ela vive, sobretudo em seu sentir,
e por algum tempo ainda, num universo de fantasia criativa. Os órgãos rítmicos começam a
amadurecer e funcionalmente neste setênio a relação entre incursões respiratórias e
batimentos cardíacos tenderá à taxa de 1:4.

Quanto à vida da consciência ela ainda não pensa de modo intelectual abstrato e deveria ser
abordada o mais possível através de imagens. Ela conhece e sabe com o sentimento, mas
ainda não em um claro pensar. Ela agora inicia a transição do elemento puramente lúdico e
vivencial para o que mais tarde se tornará uma vida reflexiva intelectual. Uma metamorfose
que precisa ser acompanhada cuidadosamente. Ela passará da percepção à imagem
conceitual, mas ainda não ao conceito abstrato. Ela precisa nesta fase de conceitos móveis,
imaginativos e ainda mais vivos. Um exemplo claro disso se vê na história da gotinha d’água
em contraste com o ensino do ciclo das águas como é feito tradicionalmente.

A cabeça pensa em conceitos, o coração em imagens. O caráter típico do pensar desta idade
prolonga-se nos devaneios na vida posterior, no sonhar acordado. E contém algo do que
também vive na poesia. Deveríamos ser poetas para nutri-los nesta fase.

Nosso sistema de ensino tradicional ainda se baseia excessivamente na reprodução mental e


menos à capacidade criativa. Nesta fase se deveria poder estruturar o ensino de forma que as
crianças não precisem apoiar-se unicamente na memória, mas também assimilar e transformar
os conteúdos transmitidos por si mesmos. E para isso o elemento artístico é a chave. Assim se
fomenta a auto manifestação criativa própria de cada criança e emerge uma riqueza pela
diversidade de formas de expressão.

Se a princípio a imitação era a base de seu aprendizado e assimilação, ela agora procura quem
com autoridade, maestria, lhe possa apresentar o mundo, guiá-la e iniciá-la com segurança em
seus mistérios. Sente-se atraída pelas narrativas quando verdadeiramente belas. Se antes, no
primeiro setênio nossos atos, nosso gestual eram o principal veículo de nossa comunicação
com elas, agora as palavras ganham um peso, adquirem um novo valor. Contos, fábulas,
lendas, ainda serão um alimento adequado com muita fantasia, vida e ação.

Aos poucos aquela criança antes inteiramente aberta ao mundo e em unidade com seu
entorno vai se interiorizando e formando um espaço íntimo e próprio. A capacidade de evocar
recordações se amplia e ganha maior consistência. Com isso ela começa a deixar a vivência
exclusiva no tempo presente e surge a relação entre imagens de representação e recordação.

Gradualmente começará a viver a perda do paraíso infantil, e sinais desta passagem costumam
se evidenciar por volta dos nove anos numa crise que denominamos rubicão. Então, a criança
passa a se comportar de modo distinto do que lhe era habitual sob vários aspectos. De repente
ela considera infantis os contos de fadas, fica irritadiça, ou irreverente, passa a criticar tudo, ou
às vezes revela medos e certa regressão comportamental, como se tivesse perdido a proteção
de seu próprio mundo de fantasia projetado sobre o exterior, que ela começa a perceber
também em seus aspectos negativos e sombrios. Acabou a fase da fantasia ilimitada. Ela
vivencia certa solidão. De onde vem essa mudança radical?
ALGUNS TRAÇOS DA CRIANÇA NO RUBICÃO

Rubicão ( ¨Rubico¨, em latim) , é o antigo nome de um pequeno rio no norte da Península Itálica, que
marcava a divisa entre a província da Gália Cisalpina e o território da cidade de Roma. Ficou conhecido na
História, pelo fato de que a lei de Roma, no período da República, proibia qualquer general de atravessá-
lo, acompanhado de suas tropas, quando retornavam de campanhas ao norte de Roma. Quando Júlio
Cesar atravessou o Rubicão, em 49 a.C., em perseguição à Pompeu, violou a lei e tornou inevitável o
conflito com o Senado. Nesta ocasião teria proferido a frase ¨ alea jacta est ¨, que significa : ¨a sorte está
lançada ¨.Até hoje, a expressão ¨atravessar o Rubicão¨ ,significa uma decisão sem volta.

A criança a princípio, durante toda a primeira infância, participa da vida do mundo exterior,
está imersa na essência de tudo quanto existe e vive à sua volta. Mais tarde, porém, quando
supera aos poucos a troca dos dentes, quando no lugar dos dentes herdados surgem aqueles
que já nos primórdios da vida haviam adquirido sua forma, ocorre algo com sua vida: já não se
comporta apenas como um órgão sensorial; agora já está entregue a algo mais anímico, mais
interiorizado do que as impressões sensoriais exteriores. Justamente nessa idade, começa a
assimilar não somente o que observa, mas o que vive na observação.

Para ela tem início então a fase que deveria ser erigida de preferência sobre a devoção à
autoridade que ela experimenta no ambiente de sua educação. Não nos iludamos supondo
que a criança entre o 7o e o 14o ano não perceba o julgamento que expressamos numa frase.
Mas o que ela necessita e pelo que anseia é poder acreditar em nós; poder sentir
instintivamente o seguinte:
Tenho diante de mim, alguém que me diz algo. Ele pode dizê-lo, pois está de tal forma ligado
ao mundo que consegue dizê-lo. Para mim ele é o mediador entre mim e o cosmo todo.

O educador -- assim como o sente a criança -- é o mediador entre o mundo divino e ela
própria, em sua fragilidade. Somente quando ele tiver consciência de que ele próprio tem de
ser a pessoa para quem a criança elevará o olhar como quem busca uma autoridade bem
alicerçada e indiscutível é que ele será um educador.

Anteriormente, a criança pouco se distinguia do ambiente ao redor. Para sua sensibilidade, ela
e o mundo eram uma coisa só. Mas agora, há uma profunda transformação na sua relação com
o seu entorno. O sentir é objetivado. Ela agora sente de modo semiconsciente seu isolamento
em relação ao Cosmo enquanto adentra mais profundamente o corpo e o mundo da matéria.
Sente-se por vezes aprisionada num mundo escuro limitado pela corporalidade. Muitas
crianças nesta fase referem medo do escuro, ou têm pesadelos à noite, alguns com imagens de
morte. Isto pode ser lido como um reflexo do aprofundamento de seu processo encarnatório
que a faz deixar progressivamente o mundo espiritual, o mundo do eterno, e mergulhar na
esfera da finitude, onde tudo é efêmero e mortal. A morte, agora é vivenciada como problema
podendo criar ensejo a profundas considerações. Para muitas emergem perguntas metafísicas
sobre a sua origem.
Na criança surgem perguntas – todas elas relacionadas com a diferenciação emocional que ela
passa a fazer entre ela mesma e o mundo exterior, e também entre ela mesma e o educador
que a conduz, seja ele pai ou professor. Até então ela tinha pouca sensibilidade para perceber
se o professor ou o pai é uma pessoa desajeitada, que ocasionalmente se choca com objetos
diversos e os deixa cair no chão, por exemplo. Naturalmente ela via acontecer, mas antes estas
coisas não lhe causavam uma impressão mais profunda. Assim, as pessoas antes veneradas,
começam a cair de seus pedestais e a criança se entristece com isso, mas pode expressá-lo na
forma de irritação e crítica. Há certa labilidade emocional, com oscilações entre bem-estar e
mal-estar no âmbito das relações afetivas e dos sentimentos.

Por volta dos nove anos, a criança começa a prestar atenção especial justamente em tais
coisas, torna-se um tanto crítica. E surgem para ela questões que podem não se manifestar
explicitamente, mas que estão, todavia, presentes. Em seu sentir, em suas emoções, ela
pergunta se o professor é habilidoso nos afazeres de sua vida, se antes de tudo o professor
está integrado seguramente na vida, se ele sabe o que quer; e sobretudo, ela tem uma sutil
sensibilidade para a situação geral da vida anímica dele. Assim, por exemplo, uma pessoa
cética provocará na criança um efeito totalmente diferente daquele suscitado por uma
pessoa de conduta ético-religiosa. Na voz de uma pessoa cética ressoa algo totalmente
diferente do que na voz de uma pessoa de orientação espiritual. E é com estas coisas que a
criança entre os nove e os dez anos de idade, se importa. Nesta fase a criança vem
forçosamente procurar as pessoas de referência -- os pais, a professora -- com toda sorte de
perguntas. O que importa, entretanto, não é tanto o teor das respostas que lhe damos, mas
sim que por meio do elemento indefinível e imponderável que precisa estabelecer-se entre nós
e a criança, esta sinta inserida em sua alma a seguinte noção: “até agora eu me portava diante
do meu pai ( minha mãe/ minha professora) elevando os olhos a ele(a); agora não consigo
mais fazê-lo sem saber que ele(a) eleva os olhos para algo que, de alguma maneira, está
fundamentado na própria vida”. Importa mais o quê ressoa na voz daquele que fala: decisivo é
o que se manifesta no tom da fala, seja como firmeza interior, cuidado amoroso ou hesitação e
indiferença, do que o quê se fala. Agora se estabelece entre a criança e o educador, um
relacionamento que exige confiança, uma confiança cada vez mais consciente. O fato de a
criança se tornar uma pessoa segura na vida está muitas vezes relacionado com a questão de
encontrar-se, nesse momento, uma maneira suficientemente segura de posicionar-se perante
a criança.

Neste ponto, os órgãos sensoriais se tornaram autônomos e alma despontou. Na qualidade de


educadores temos de lidar com esta alma de maneira infinitamente delicada. Entre o 9º e 11º
ano de vida chega para cada criança o ponto em que surge em sua alma a seguinte pergunta:
“Como me situo no mundo?”. Não pensemos que a pergunta seja feita assim como a formulei.
Ela surge sob forma de sentimentos indefinidos, sentimentos insatisfeitos; a pergunta poderá
surgir sob a forma de uma necessidade maior de a criança se apoiar num adulto, ou talvez, de
exibir forte ligação afetiva por um adulto. Devemos saber observar da maneira correta o que
ocorre com a criança nesse ponto crítico. Ela se sente, de repente, isolada. Subitamente
procura uma ligação. Até então havia aceitado a autoridade como coisa inequívoca. De
repente começa a indagar: “O que se passa com esta autoridade?”. Muitíssimo da vida futura
dependerá de encontrarmos as palavras certas neste instante.
Uma educação que se proponha a formar seres humanos integralmente deveria procurar
amortecer essa crise. Antes que o respeito dedicado a um adulto venerado se esgote por
completo, sua atenção deveria ser dirigida a algo que transcendesse o âmbito pessoal. Deveria
ser possível à criança constatar que o ser humano por ela venerado reconhece uma autoridade
superior que fundamenta sua existência. Deveria poder sentir a autoridade de sua autoridade.
Depois de ter se dirigido a uma pessoa, a veneração anseia por um novo objeto e deveria
poder encontrá-lo em figuras que transcendem o nível humano comum e que são exemplos
dignos e luminosos da evolução da humanidade.

*
Deve-se ter noção e sensibilidade pelo que é dito e ensinado à criança, a fim de que seja algo
vivo. Podemos nos valer de imagens, mas fundamentadas na verdade: existem pessoas que em
certa idade atuam caridosamente para com seus semelhantes. Elas conseguem – permitam-
me a expressão – abençoar. Existem pessoas assim. Não precisam sequer falar, basta estarem
presentes com suas personalidades abençoantes. Não temos o costume de observar pessoas
em sua biografia toda, senão perceberíamos o seguinte: (...) este tipo de pessoa talvez tenha
se confiado instintivamente aos seus educadores. Elas foram educadas de tal forma que
quando crianças aprenderam a venerar; aprenderam a orar no sentido amplo da palavra, isto
é, aprenderam a elevar o olhar para algo, e depois, aqui embaixo, desejar algo. Aquele que
aprende primeiramente a elevar o olhar, a venerar, a ser inteiramente envolto pela
autoridade, tem depois a possibilidade de abençoar, de atuar para abaixo, de tornar-se uma
autoridade – uma autoridade natural e indiscutível. [Não aquela que se impõe pelo medo ou
pela força, mas aquela que suscita naturalmente reconhecimento e admiração nos outros].

*****
Referências:

1. O Desenvolvimento saudável do ser humano – Rudolf Steiner- 2008 -1ª edição - FEWB -
décima palestra

2. Fundamentos da Arte de Educar- valores espirituais na educação e na vida social – R.


Steiner – 2018- 2ª edição FEWB – primeira palestra

3. Desvendando o crescimento – fase evolutivas da infância e da adolescência- Bernard


Lievegoed – 2017 -Editora Antroposófica- 5ª edição, 4º capítulo
Considerações sobre a criança de 9 anos.
baseado no livro “A criança aos nove anos – a queda do paraíso- de Hermann Koëpke

O 9º ano pode ser comparado a um nascimento, pois tal como as crianças


se emancipam fisicamente do corpo de suas mães ao nascer, assim também sua alma
agora se liberta do seu entorno, do ambiente no qual até então viveram mediante a
imitação. E o que então nasce, necessita igualmente do amor e da proteção dos pais e
dos educadores.
Como as crianças experimentam esta transição? Um traço de tristeza
penetra em seu olhar, seu modo de caminhar é mais pesado do que antes, e elas se
tornam mais sensíveis. Elas se tornam conscientes de seu mundo, no qual elas se
sentiam antes em casa, mas agora lhes parece estranho. De tempos em tempos, elas
podem querer recolher-se inteiramente dele. Elas são confundidas pela separação que
se dá entre elas e o mundo. Elas anseiam retornar, desejam ser compreendidas e
amadas, mas alguma coisa misteriosa e perturbadora encontra-se em seu caminho.
E nesta solidão, os mais fracos e delicados sentimentos emergem nas
crianças, e nada deve atrapalhar essa experiência, nem a pressão, nem a curiosidade. É
nesta solitude que a criança se encontra e se torna consciente de seu ego. É nesta
solidão que a criança sente que pode seguir para a vida a partir do centro do seu ser.
É tremendamente importante notar a partir de que disposição de alma os
pais acompanham seus filhos ao longo desta delicada fase da vida. Ansiedade, a
moderna tendência à resignação e à superficialidade da vida nas grandes metrópoles –
tudo contribui para fazer este processo mais difícil.
Mas se houver alegria de coração e se as crianças vêem como os adultos se
mantém firmes em face das dificuldades e provas de seus próprios destinos, então a
centelha da autoafirmação cresce. O que acontece durante o tempo da transição pode
influenciar o resto da vida da criança. Não raro, é nesta época de transição que o
desenvolvimento da criança em uma personalidade com um sentido para o eu fraco ou
forte é decidido.

DISTÚRBIOS NO PENSAR, SENTIR E QUERER

Nas condições atuais de vida, não existem muitas crianças que passam pela
transição do 9º ano sem manifestar alguma indisposição física.
As crianças se queixam principalmente de sintomas tais como dor de
cabeça, ou dor de estômago, enjôo, palpitações ou dificuldade para respirar. Rudolf
Steiner mencionou estas dificuldades e enfatizou que, se um desenvolvimento sadio
não é possível, então, “destes mal-estares, toda sorte de predisposição para doenças
poderá permanecer para o resto da vida”. Mais adiante ele diz: “Entre as condições
mais óbvias que mais tarde acompanham, digamos, anemia, encontram-se sintomas
tais como fadiga, lassidão, dificuldades para adormecer e despertar”. Indicando que
estes sintomas aparecem, em certa medida, na maioria das crianças a qualquer
momento entre a troca dos dentes e a puberdade e alcançam seu pico de incidência,
entre 9 – 10 anos de idade, R. Steiner sugeriu então medicamentos que os médicos
poderiam usar para tratar estes sintomas. “Tem-se de tomar em conta estas coisas
com a maioria das pessoas, a não ser que tenham uma constituição robusta, como a de
um camponês”.
Se estas dificuldades se manifestam em sintomas corpóreos – na cabeça, no
sistema rítmico ou no metabolismo, e não são adequadamente reconhecidos e
considerados na pedagogia, então eles poderão levar, mais tarde, na vida, a distúrbios
no pensar, sentir e querer.
O conto de fadas “Branca de Neve” nos mostra de modo maravilhoso como
os 3 sistemas do ser humano são envenenados por meio do intelecto prematuramente
despertao que é personificado pela rainha má. Com um (pequeno) leve desvio
(derivação) poderíamos dizer:
“Espelho, espelho meu, quem é o melhor de todos? (Isto é, o top da
classe?)” É a pressão de performance que constringe a respiração como o espartilho
por demais apertado, a pressão do boletim, das notas, também é como a escova
envenenada que penteia os cabelos dando origem a problemas nervosos. Ou o ficar
para trás e ser forçado a repetir o ano atua como a maçã envenenada que alimenta o
complexo de inferioridade que pode lesar (aleijar) a vontade (o querer) para o resto da
vida.
Uma pedagogia que leva em consideração o desenvolvimento da criança
necessita de todo o suporte do lar. Toda impressão desprovida de alma, sobretudo
aquelas que vêm da tecnologia, provocam um especial dano durante a transição do 9º
ano. Será que temos clareza sobre os efeitos que a televisão, rádio, os toca CD´s,
DVD´s, tablets e celulares além de longas jornadas de carro têm sobre as crianças?

Preocupação excessiva com o dever de casa pode prejudicar não apenas a


cabeça, mas também a digestão que também é afetada pela passagem dos 9 anos. É
importante que a tarefa durante este período crítico de transição seja moderada e que
as crianças recebam alimentos que possam digerir.

É um erro forçar as crianças a comer nesta época. Seria muito mais sensato
oferecer porções menores várias vezes ao dia. Perturbações no sistema rítmico, tais
como palpitações ou falta de ar, indicam que as crianças durante este período
necessitam de muito amor para encontrar o caminho que as conduz a si mesmas. Elas
freqüentemente chegam e pedem ajuda porque não podem fazer isto ou aquilo, mas
em realidade elas estão querendo e precisando de uma palavra amorosa, um conforto,
um consolo.
A tarefa dos adultos torna-se mais difícil neste período porque as crianças
começam a ver seus pais e professores pela 1ª vez com olhos bem críticos, notando
cada fraqueza com uma agudeza de visão recém-desperta. Assim sendo, o educador
não deve medir esforços para conseguir um relacionamento consciente com estas
forças que nos conduzem para além dos limites estreitos de nossa própria
personalidade.
A ENCARNAÇÃO DO EGO

Que impulsos podem ser de especial ajuda às crianças nesta difícil


transição? Como eles podem obter forças para um renovado desenvolvimento como
seres inteiros, integrados?
Vamos agora apontar três motivos imaginativos que podem nutrir a
experiência religiosa da criança, especialmente se nós as acompanharmos
adequadamente com nossos próprios pensamentos e sentimentos.
Ao se separarem do mundo, as crianças experimentam sua própria esfera
egóica. Nesta experiência, entretanto, dormita algo ainda mais profundo, qual seja, o
sentimento da imortalidade do seu Eu. A história bíblica da criação confirma o senso
íntimo da criança de que Deus criou o ser humano. Quando eles pensam nesta origem
divina, um elemento divino pode acender–se no eu terreno.

Sobre o capitel de um pilar em uma igreja românica, há uma representação


do tema do GENESIS. Deus Pai sopra seu hálito em Adão, o sopro da vida que sai da
boca de Deus tem a forma de uma haste (caule) de planta com folhas que vão na
direção de Adão. O botão já está dentro de Adão, as raízes permanecem com Deus. De
cabeça para baixo, é como se a planta descesse até o íntimo de Adão. Imagens como
esta, de uma planta crescendo dentro do ser humano, formando raízes, folhas e
botões florais, vêm de antigas tradições. Elas não se referem à noção de uma planta
que cresce para cima dentro do homem assim como normalmente cresce do lado de
fora, mas à uma imagem que cresce de cima para baixo. Esta planta forma suas raízes
duras na estrutura óssea da cabeça, onde estamos enraizados em nosso pensar. A
planta então desenvolve suas folhas que lhe permitem respirar, na região dos pulmões
e ela desabrocha suas flores com estames e pistilos apontando para baixo. Esta noção
da planta invertida pode ser compreendida à luz da inversão das forças vitais no nono
ano.
Embora incapazes de entender isto claramente, as crianças, não obstante,
experimentam, inconscientemente, que algo está submergindo (se aprofundando) em
sua vida – algo que é relevante para toda a sua existência individual.

Não raro, crianças desta idade perguntam a seus pais se eles realmente são
seu verdadeiro Pai e sua verdadeira Mãe. Esta pergunta surge da intensa (forte)
experiência de si mesmos como seres individuais, tendo entrado na vida terrena não
apenas através da família ou da hereditariedade.

Uma questão totalmente diferente está oculta por trás daquela que a
criança formula em palavras – trata-se da questão da sua própria origem espiritual, e
eles buscam a resposta não em qualquer coisa exterior, mas no âmbito (reino) da
religião. [Como estes pensamentos podem ser trazidos de forma imaginativa está
ilustrado no apêndice com a estória “O jovem robusto”]

Outro tema que oferece às crianças um bom preparo para a transição do


nono ano pode ser encontrado na lenda de Cristophorus. Ophorus, o gigante, está
determinado a colocar sua enorme força a serviço do mais alto. Primeiramente, ele
serve a um rei poderoso. Entretanto, o rei teme o diabo e assim Ophorus resolve servir
ao próprio diabo. Mas o diabo foge da Cruz. Aconselhado por um eremita, Ophorus
então se dedica a ajudar os viajantes a cruzarem o rio, a fim de servir ao Cristo
mediante atos de amor aos semelhantes. Então, numa noite, ele carrega uma criança
cujo peso o afunda n’água. É o Cristo-menino, que assim o batiza com o nome de
Cristo-Ophorus. Então ele deve plantar (enterrar) seu cajado no chão (na terra). Desse
cajado saem folhas e flores quando Cristophorus é encontrado morto em sua cabana
na manhã seguinte.

Um extraordinário motivo é apresentado nesta lenda. Ela aponta para uma


força de vida, simbolizada no cajado que floresce: uma força de vida que atua para
além dos limites da morte. Esta imagem indica que Cristophorus encontrou o caminho
para o Cristo através da morte. Tal lenda, que é contada às crianças no segundo ano,
pode preparar o pupilo de oito anos para a transição a seguir, no nono ano. Aos nove
anos, as crianças encontram-se com o âmago eterno de seu ser, elas estão agora em
condições de compreender a mortalidade da humanidade. Freqüentemente, esta é a
primeira vez que eles vêem conscientemente um cadáver. Assim, uma consciência
tanto da imortalidade quanto da mortalidade pode viver na criança ao mesmo tempo.
Porém, elas ainda não são capazes de separar estes dois âmbitos, um do outro. É de
imensa importância para toda a vida que eles possam experimentar através de uma
narrativa como a de Cristophorus, que mesmo da morte emerge a vida.

Um outro motivo vital ainda pode ser entendido se nós considerarmos a


indicação de Rudolf Steiner de que até os nove anos a arte é uma serva, mas, depois
dessa idade, as crianças é que deveriam se tornar servas da arte. Esta mudança resulta
da liberação das forças criativas que até então estiveram inconscientemente ativas na
edificação do corpo e que agora podem lenta e gradualmente ser usadas para dar
expressão ao eu. O cerne criativo no ser humano é agora focalizado: e através da arte
pode revelar o espiritual na matéria. Por esta razão, o elemento artístico é de central
importância na pedagogia Waldorf.

Desse modo, existem três motivos que as crianças nesta idade podem
acolher: a origem divina dos seres humanos, o ressurgimento da vida na morte e o
reino da arte.

Estes três temas podem se tornar impulsos que unem as crianças – sem lar
como elas se sentem durante esta crise – com o mundo do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Todo este processo tem lugar em regiões adormecidas da alma da criança.
Mais tarde na vida, estes três impulsos que foram implantados ao redor do nono ano
podem elevar-se progressivamente à consciência.
A Criança entre os Nove e os Dez anos de Idade

Sabemos que aos nove anos completos, ou por volta deles, acontece com a
criança algo muito especial. Ela quer, a partir desse momento, que de certa
maneira a autoridade justifique sua razão. Não é que ela pondere
racionalmente se a autoridade tem ou não razão. Mas dentro dela algo a faz
sentir que a autoridade se afirma por sua própria qualidade, por sua
atuação na vida, por sua própria segurança. A partir daí ela desenvolve uma
sensibilidade especial nesse sentido que se evidencia pela mudança objetiva
que ocorre em sua vida nesse momento. Anteriormente, a criança pouco se
distinguia do ambiente ao redor. Para sua sensibilidade, ela e o mundo eram
uma coisa só. Mas agora, na criança surgem perguntas – todas elas
relacionadas com a diferenciação emocional que ela passa a fazer entre ela
mesma e o mundo exterior, e também entre ela mesma e o educador que a
conduz, seja ele pai ou professor. Até então ela tinha pouca sensibilidade para
perceber se o professor ou o pai é uma pessoa desajeitada, que
ocasionalmente se choca com objetos diversos e os deixa cair no chão, por
exemplo. Naturalmente ela via acontecer, mas antes estas coisas não lhe
causavam uma impressão mais profunda. Contudo, com os nove anos
completos, a criança começa a prestar atenção especial justamente em tais
coisas, torna-se um tanto crítica. E surgem para ela questões que podem não
se manifestar explicitamente, mas que estão, todavia, presentes. Em seu
sentir, em suas emoções, ela pergunta se o professor é habilidoso nos
afazeres de sua vida, se antes de tudo o professor está integrado
seguramente na vida, se ele sabe o que quer; e sobretudo, ela tem uma
sutil sensibilidade para a situação geral da vida anímica dele. Assim,
por exemplo, uma pessoa cética provocará na criança um efeito
totalmente diferente daquele suscitado por uma pessoa de conduta ético-
religiosa. Na voz de uma pessoa cética ressoa algo totalmente diferente
do que na voz de uma pessoa de orientação espiritual. E é com estas
coisas que a criança entre os nove e os dez anos de idade, se importa.
Nesta fase a criança vem forçosamente procurar as pessoas de referência -- os
pais, a professora -- com toda sorte de perguntas. Muitas delas são perguntas
metafísicas sobre a origem. O que importa, entretanto, não é tanto o conteúdo
das perguntas, nem tampouco o teor das respostas que lhe damos, mas sim
que por meio do elemento indefinível e imponderável que precisa estabelecer-se
entre nós e a criança, esta sinta inserida em sua alma a seguinte noção: “até
agora eu me portava diante do meu pai ( minha mãe/ minha professora)
elevando os olhos a ele(a); agora não consigo mais fazê-lo sem saber que ele(a)
eleva os olhos para algo que, de alguma maneira, está fundamentado na
própria vida”. Importa mais o quê ressoa na voz daquele que fala: decisivo é o
que se manifesta no tom da fala, seja como firmeza interior, cuidado amoroso
ou hesitação e indiferença, do que o quê se fala. Agora se estabelece entre a
criança e o educador, um relacionamento que exige confiança, uma confiança
cada vez mais consciente. O fato de a criança se tornar uma pessoa
inconsistente ou segura na vida está muitas vezes relacionado com a questão
de encontrar-se ou não, nesse momento, uma maneira suficientemente segura
de posicionar-se perante a criança.

Frequentemente, quando uma criança nos aborda com perguntas que


julgamos como curiosidade ou interesse, por exemplo, sobre a questão da
sexualidade, ela pode estar em verdade procurando outra coisa; e acima
de tudo quer saber como nós nos postamos em relação a isso, muito mais
do que o assunto em si. Quer sentir que é guiada por um adulto que
extrai de sua relação com os fundamentos da existência, força e
segurança para estar no mundo e lidar com as perguntas mais profundas.

Mas esta segurança, a verdadeira autoridade, não se adquire da noite para o


dia. Tem de ser buscada, através de um contínuo trabalho interior de
elaboração e lapidação pessoal, além de um cultivo do relacionamento com a
realidade do mundo espiritual.

No que tange às perguntas específicas, só devem ser respondidas as perguntas


realmente levantadas pela criança e cujas respostas lhe interessem; pois tudo
o que for explicado sem ter sido perguntado se revelará como um peso anímico
para ela, interferindo muitas vezes em seus pensamentos e sentimentos
ligados à questão da sua origem. Se a educação sexual se limitar ao plano
puramente biológico, terá um caráter opressivo para a criança, pois ela sente
que esta não pode ser toda a verdade, ou então toma conhecimento de
detalhes sem saber o que fazer deles em seu íntimo. Quando percebemos que
de alguma forma ela tomou contato, seja através de conversas com outras
crianças mais velhas, seja por meio de imagens perturbadoras às quais tenha
assistido, podemos reafirmar a ela com toda segurança que certas coisas,
quando vividas fora de seu tempo não trazem nada de bom. Tudo tem seu
tempo certo de ser e quando chegar a hora certa nós lhe esclareceremos tudo
da melhor maneira. “Você não precisa saber disso agora. Seria como comer
algo que o seu corpo não sabe e nem pode digerir”. Podemos então reforçar
isto -- que tem de ser dito a partir de uma convicção plena, de modo a
transmitir-lhe a segurança e o alívio de que ela necessita – através de
metáforas, imagens da natureza e vivências. Por exemplo: podemos junto com
a criança, assar dois pães, sendo que o primeiro sovamos bem a massa e
depois, deliberadamente, não esperamos o tempo de descanso para que a
massa possa crescer sob ação do fermento e o depositamos no forno. Quando
estiver pronto, comemos o pão, que naturalmente terá a massa pesada e um
gosto amargo, nada agradável. Num outro momento, preparamos o pão
segundo a mesma receita e então esperamos que ele cresça, sem pular etapa
alguma, e depois assamo-lo. Ao provar do segundo pão, ficará clara a
diferença entre pular etapas, apressar as coisas e o vivê-las em seu devido
tempo. Também se pode oferecer à criança uma fruta nitidamente verde, que
não amadureceu o suficiente. Seria bom até se ela lhe provocasse um pequeno
episódio de mal-estar abdominal sem maiores consequências.

Outro aspecto de extrema importância tem a ver com o que a criança pode
compreender e abarcar com sua alma. De acordo com Steiner, pode-se dizer
que a criança ao terminar a troca de dentição teria a sensação de espetos
estarem invadindo seu organismo se quiséssemos introduzi-la no pensar
conceitual, principalmente a respeito do que surgiu da natureza morta, do
âmbito inorgânico. A criança já sente estranheza ao lidar com o que provém do
âmbito inanimado. Portanto, ao falar ou ensinar a crianças desta idade
precisamos ter dentro de nós o senso artístico para vivificar tudo. É como se
transformássemos tudo o que tenhamos a dizer em conto de fadas, fábula,
lenda, mito ou poesia. Em outras palavras, precisamos falar em imagens. A
cabeça pensa em conceitos, mas o coração aprecia e apreende em imagens. E
é preciso falar ao coração, pois é aí que a criança agora se encontra em seu
desenvolvimento: formando os órgãos rítmicos, o coração e os pulmões, e,
quanto à sua consciência, ela ainda não está plenamente acordada, mas
sonha. E nos sonhos qual é a linguagem que nos fala? A das imagens. Os
símbolos. Quando falamos às crianças a partir do conhecimento conceitual,
falamos como uma pessoa ressecada. Por outro lado, o que nós criamos como
imagem ainda tem a força do crescimento, a vida nova; isto atua sobre a
criança. Vocês poderiam dizer, “mas como podemos aprender a fazer isso?”
Isto começa com uma certa educação dos sentidos para uma percepção
artístico-simbólica das coisas. Como dizia Goethe tudo quanto existe de
efêmero no mundo sensorial não passa de um semblante, é como uma
parábola, uma manifestação de algo espiritual e superior. Trata-se, como
costuma dizer Rubem Alves, da “Complicada Arte de Ver”

A COMPLICADA ARTE DE VER


Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei
em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um
dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os
tomates, os pimentões - é uma alegria!

Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera
centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a
cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma
cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a
impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.

De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte


para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os
pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de
livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à
Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre
os poetas.

Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro:

'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca.

Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".


Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos
dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é
idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora
aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence
à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma
árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês
floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania
do sagrado.

Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê
que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito
trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma
pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A
pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.

"Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a
janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de
Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.

Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a


ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da
experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se
Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu:

"Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus
olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos


na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam.
Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram".

Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De


forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma
súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa,
prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em
construção".
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos
estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por
sua função prática.

Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a


nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito
pobre.

Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos,
eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham
pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os
olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos
brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras.

Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus
Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim,
ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as
coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a
gente as têm na mão e olha devagar para elas".
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver -
eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor
que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que
crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do
poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos”

Portanto, precisamos nutrir nossas almas de imagens, visitar os poetas, vez


em quando, ou tentar enxergar as coisas como letras ou sinais de Deus na
escrita do mundo. Compor um vasto repertório de imagens pode ser um bom
começo. Contemplar a natureza, vivenciar um pouco de arte. Saborear belos
contos. Com o tempo estaremos também nos aventurando na formação de
metáforas, histórias pedagógicas e terapêuticas, ou por vezes nosso esforço
será recompensado, e seremos agraciados com insights sobre os temas de que
nos ocuparmos. Por exemplo, há uma pequena história que serve como
imagem para a situação da criança que se sente confusa por causa de
conteúdos que lhe tenham sido antecipados e para os quais ela ainda não tem
maturidade, ou simplesmente não está no tempo de saber.

“Certa vez, estava um menino brincando no quintal com seus irmãos e


amiguinhos quando sentiu fome e foi até a cozinha buscar uma fruta para
comer. Na volta, ao passar pela varanda, notou que sua mãe estava fazendo
algo estranho, e sentou-se próximo a ela. De seu ponto de vista, o que
enxergava eram fios de diferentes cores meio misturados no avesso do tecido e
nada daquilo parecia fazer sentido, então ele perguntou: ‘Mamãe o que é que
você está fazendo?’ ‘- Estou bordando, meu querido.’ ‘Mas está tão feio e
confuso!’ “Ora, vá brincar, que daqui a pouco, quando estiver pronto, eu lhe
chamo para ver e então você entenderá tudo’ E assim ele foi. Brincou tanto
que se esqueceu daquilo que não havia entendido. Então sua mãe o chamou e
o fez sentar-se em seu colo. E então ele pôde ver de outro ângulo o que havia
visto antes do avesso. Agora o que via era um lindo desenho. E sua satisfação
foi tão grande que ele teve que sorrir!”

Em outras palavras, para tudo há um tempo de ser... No tempo certo, do


ponto de vista adequado, vemos algo belo e bom — porém, a mesma coisa que
ora se afigura tão bela, pareceria confusa, difícil de entender, talvez aflitiva .
A caixa dourada
Herbert Hahn

Em um grande castelo dourado vivia um pai com seus muitos filhos. Um dia
ele disse para um deles: “Já é tempo de você começar a sua jornada”. Ele
então conduziu o filho até uma escadaria que descia em caracol e que parecia
não ter fim, com inúmeros degraus tecendo uma espiral descendente. O pai
acompanhou o filho por alguns passos e depois falou: “Agora devo deixá-lo
prosseguir de si mesmo. Mas vou te dar uma coisa da qual você deverá sempre
cuidar”. E nesse momento entregou ao filho uma caixinha dourada, que ele
imediatamente guardou na cinta que cingia sua veste. “Carregue-a sempre
consigo”- disse o pai- “Ela te guiará e protegerá. Mas não a abra até que
retorne para mim”.
Com estas palavras, o pai se despediu e o filho seguiu descendo. À medida
que se aproximava do fim da escada, voltou seu olhar para trás, para o
caminho percorrido, mas para sua surpresa, a escada desaparecera, e em seu
lugar surgiu uma parede negra como se a noite a envolvesse. Ele então chegou
a uma superfície plana e à sua frente uma imensidão ondeante: era o oceano.
Como ele não podia nem voltar nem avançar, começou a se sentir um tanto
aflito. Foi quando avistou sobre as águas algo que se movia em sua direção.
Era uma pequena embarcação sem leme, nem timão, nem mastro ou velas.. O
barco chegou até a margem onde ele se encontrava como que convidando-o a
entrar. Uma vez que não havia outra alternativa, ele subiu ao barco e se deixou
levar através das águas. Logo, já não conseguia mais discernir ao longe a
muralha escura.
A princípio sua viagem foi tranquila, entretanto, a certa altura o mar foi
ficando encapelado, as ondas revoltas e o barco começou a balançar muito. O
vento se tornou mais poderoso e violento empurrando o barquinho ora para
um lado, ora para outro, como se fora uma pequena casca de noz.
O filho nada via ou ouvia que não fosse o barulho do vento e do mar, e mal
conseguia se equilibrar dentro do barco, até que de repente, este se chocou
com alguma rocha e a colisão provocou um rombo no casco fazendo com que
começasse a afundar.
O filho estava certo de que se permanecesse ali, a consequência seria a morte,
e dessa forma, lançou-se ao mar mantendo em sua mão esquerda, e junto ao

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peito a pequena caixa dourada. Assim que se jogou nas águas algo
maravilhoso aconteceu. A tormenta deu lugar a um céu limpo, claro e sereno,
e ele conseguiu chegar até a praia, sentindo como se a caixinha o tivesse
guiado e impulsionado até lá.
É difícil dizer por quanto tempo ele nadou, mas por fim, foi parar em terra
firme, na praia de uma imensa ilha. Para sua surpresa uma multidão excitada e
barulhenta veio de todos os lados ao seu encontro saudando-o e se jubilando:
“Um rei! Um novo Rei!” E antes que ele se desse conta, colocaram -lhe na
cabeça uma coroa e o cobriram com um rico e belo manto, ergueram-no e o
carregaram para dentro da ilha, e mais e mais nativos foram se juntando aos
primeiros, e vinham cantando e festejando. O cortejo foi agregando músicos e
podiam se ouvir flautas, trompetes e tambores. A procissão chegou até o
palácio real onde num grande salão, já um banquete estava preparado para
recebe-lo, bem como aos seus súditos. Uma imensa mesa estava coberta das
mais finas iguarias, e uma legião de servos cuidavam de oferecer a todos
deliciosos drinks e petiscos.
Ainda atordoado, ele se sentou a percorreu com os olhos aquela cena. Todos
estavam tão embriagados e extasiados que nem perceberam a expressão de
espanto e confusão na face do rei. Eis, porém, que seus olhos discerniram à
distância um homem idoso, sentado e quieto. Tão quieto que destoava
totalmente dos demais. O Rei então atravessou o salão em sua direção e
fitando o velho, acenou para que ele o acompanhasse até a sala ao lado,
sinalizando que gostaria de falar-lhe.
O ancião correspondeu ao gesto e o acompanhou até o outro recinto e
fechadas as portas, o rei o interpelou: O senhor poderia por favor dizer-me o
que significa tudo isso?
“sim, meu rei, eu posso” – respondeu-lhe o velho. Mas como assim? Serei eu
um rei de verdade? – perguntou o filho incrédulo.
“Sim”, disse o homem, “o senhor é rei, contudo, apenas o será por breve
tempo.” Então o velho lhe contou como a cada ano um estranho chegava na
ilha e era saudado com grande pompa e circunstância. Enquanto ele fosse rei
poderia desfrutar de tudo quanto quisesse; cada desejo seu seria atendido de
imediato, bastando que fosse por ele ordenado.
“Entretanto, passado um ano, tudo chegaria ao fim” Assim, o ancião relatou
que cumprido o período de 12 meses após sua entrada triunfal no palácio, as
mesmas pessoas que o haviam celebrado como novo rei, o destronariam,
arrancariam de sua cabeça a coroa, e o despojariam do manto real. Uma vez
mais, tão pobre quanto chegara ali, eles o fariam embarcar de modo tal que

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não lhe fosse possível viajar em pé, nem sentado. Apenas deitado de costas. O
barco o levaria através do oceano até uma terra deserta e vazia onde tudo é
cinza e desolador. Naquela terra ele não veria árvores, nem planícies cobertas
de vegetação, nem animal algum, nenhum inseto ou pássaro enchendo o ar
com seu canto. “Sim, é assim que termina”- disse o velho com os olhos
baixos.
“Mas isso é terrível!” exclamou o jovem Rei. “Com toda essa celebração, esse
banquete, a música alta! Diga-me meu bom homem, não há nada que se possa
fazer para evitar esta jornada à terra desolada?”
“Senhor, eu lhe disse tudo quanto estou autorizado a dizer. O resto, o senhor
mesmo tem de descobrir por si próprio. Mas é um bom sinal que já me tenha
indagado sobre isso em seu primeiro dia; nenhum dos outros reis o fez”.
Neste instante o Rei percebeu um discreto brilho no olhar do velho.
O jovem Rei agradeceu seu sábio conselheiro de todo coração. E pensou
consigo mesmo, “Se eu sou o Rei, devo começar a agir como tal”. Ele então
retornou ao grande hall e ordenou que a festa acabasse e mandou que os
cozinheiros, os músicos, os servos e seus súditos fossem pra casa descansar.
Em seguida, recolheu-se em seus aposentos e contemplou retrospectivamente
todos os estranhos acontecimentos daquele dia. Decidiu enfrentar o futuro
com coragem e antes de adormecer colocou sob o travesseiro a caixinha
dourada que trazia consigo e que guardara fielmente.
À noite ele teve um sonho que lhe causou profunda impressão. Ouviu uma
voz que lhe parecia vagamente familiar dizendo:” Vá até os pobres, os
doentes, os famintos e esquecidos”.
O rei despertou cedo com o alvorecer do dia, aquelas palavras ressoando em
sua mente, como que inscritas em seu coração. E foi assim que naquela manhã
ele se voltou a todos os que vinham a ele com ofertas de serviço e ignorou a
carruagem dourada com seus corcéis brancos que o aguardavam para um
prazeroso passeio. Ao invés disso, ele solicitou uma carroça comum, um
médico e um único serviçal e começou a seguir o conselho de seu sonho.
Visitou os casebres dos mais pobres, esteva à cabeceira do leito de doentes,
desceu às masmorras para ver os prisioneiros há muito esquecidos pela
humanidade. Quão grande era o sofrimento que encontrara em toda parte.
As pessoas no castelo ficaram irritadas e insatisfeitas dizendo pelos cantos que
mal se notava a existência do rei. Mas em outros lugares, fora do castelo, era
bem diferente; muitas faces agora exibiam um olhar radiante e um sorriso no
rosto como se a luz do sol lhes iluminasse pela primeira vez.

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Meio ano se passou desta forma. Quando o rei encontrava de tempos em
tempos o ancião, trocavam olhares e o rei se sentia encorajado, acreditando
estar no caminho certo. Mas um dia, ao cruzar com o velho, este o olhou
daquele jeito tristonho novamente. E o rei o interpelou e disse: “Não tenho eu
feito a coisa certa?”. “Eu acredito que o senhor tem feito muito bem”,
respondeu o homem, “mas talvez nem tudo se passou como deveria ser”. Ele
não disse mais nada. E o rei percebeu que ele queria dizer mais, mas não
podia.
O que deveria ter acontecido que não aconteceu, então? Será que negligenciei
alguma coisa importante? O rei pensou e pensou, rebuscando nas memórias
profundamente por noites e noites. De repente recordou-se de que há dias
havia deixado sua caixinha dourada sob o travesseiro, esquecendo-se de
carrega-la aonde fosse e desde então cresceram em sua alma as preocupações.
Naquela noite ao adormecer, aquela voz familiar lhe sussurrou novamente
alguma coisa: “ Construa navios, encha-os com tudo o que cresce, floresce e
frutifica. Depois os envie ao mar aberto, onde o vento soprará e o conduzirá
aonde ele deve ir. Mas não deixe ninguém abordo!”
Quando o rei despertou, ele cuidadosamente recordou e colheu as palavras
que lhe vieram à noite e as guardou em seu coração. Naquele mesmo dia,
começou a contratar carpinteiros e mestres construtores e quem pudesse
ajudar naquela empreitada.
Logo se viu um grande movimento com homens indo e vindo, preparando a
madeira, serrando, martelando, mulheres confeccionando as velas, e quem por
ali passasse ficaria de fato assombrado com a velocidade com que os barcos
eram feitos, um após o outro.
Uma vez prontos, eram carregados com plantas comestíveis, flores e frutos,
mas a ninguém era permitido embarcar. Eles eram empurrados até cruzarem a
arrebentação e serem levados pelo vento até que se os perdesse de vista.
Enquanto isso, o rei continuava a visitar e cuidar dos doentes e dos menos
favorecidos, os solitários e os poucos prisioneiros que ainda não haviam sido
libertos.
Finalmente chegou o dia em que o prazo de um ano se completava. O Rei
recordou tudo quanto o ancião dissera e preparou-se para o que havia de
acontecer. Ajoelhou-se para dizer suas preces matinais, segurando firma sua
caixinha dourada junto ao peito. Agora já era possível ouvir vozes cada vez
mais alto até que soaram como se fosse uma tempestade... e então,
subitamente tudo estava quieto. “Agora eles vão invadir o palácio”, pensou o
rei, “ e me despojar de todos os pertences reais. Que assim seja!”

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Porém, quando a porta se abriu, apenas um homem entrou. Ele havia passado
longo tempo numa masmorra escura, mas agora estava livre. E disse: “Chegou
a hora em que a lei maior da ilha é toda poderosa e deve prevalecer; devemos
nos despedir. Mas o que fizemos aos outros reis não faremos contigo. Não
uma única mão que te queira arrancar a coroa ou te despir do manto e de
todos os pertences reais. Tira- o tu mesmo, e nós o acompanharemos em seu
caminho”
Sem hesitar, o rei fez como solicitado e entregou a coroa e o manto. Vestido
apenas com as mesmas vestes com que chegara um ano antes caminhou para
fora do castelo. Ao pôr os pés descalços na rua, à sua direita e à esquerda um
cordão humano, todas as pessoas em profundo silêncio, significando sua
imensa gratidão por todo o amor que ele lhes dedicara.
À medida que o filho se aproximava da praia, avistou o oceano em sua
imensidão. Não havia vento algum, nem mesmo uma leve brisa, e no entanto,
à distância, se via a imagem do barco que cortava as águas em sua direção
como que conduzido por um poder invisível. Quando este deslizou até a areia
diante dele, o jovem se lembrou do que demandava a grande lei e
obedientemente se deitou no chão do barco. Imediatamente sentiu-se
sonolento e foi envolto por maravilhosas imagens oníricas.
Ele não sabia quanto tempo levara sua jornada; apenas despertou quando o
barco o barco parou num solavanco. “Esta deve ser a terra desolada e
deserta.” Lentamente ele se levantou e saltou para fora do barco, dando seus
primeiros passos. Mas olhando em volta, foi surpreendido com a visão de seu
entorno. Um gramado que mais parecia um tapete, e em meio ao qual se
erguiam belas árvores, umas tantas em flor, outras cheias de frutos pendentes
dos ramos. E o ar atravessado pelos mais belos cantos de pássaros, os mais
diversos. O filho arregalou os olhos. “Esta não pode ser a terra que me
descreveram! Será que ainda estou sonhando?”
Então ele se lembrou dos navios que havia enviado conforme o conselho da
voz misteriosa em seus sonhos. Eles devem ter aportado ali e mãos invisíveis
devem ter plantado as árvores transformando a paisagem. E então, andando
um pouco mais, o filho reconheceu a muralha negra e percebeu que tinha
cruzado o grande oceano. Seu coração batia forte e apressado e ele se moveu
em direção àquela parede escura e foi como se uma mão o tivesse
impulsionado e ele se viu subindo as escadas que foram se iluminando e se
revelando diante dele. Ele ouviu então a voz do pai chamando-o. Com uma
alegria indizível ele subiu mais e mais depressa

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O pai alcançou -o e o apertou em um abraço amoroso. Depois indagou: “
Você trouxe de volta a caixinha dourada?” Sim, pai, eu a trouxe.
“Você a abriu?” -perguntou o pai. “Não”, respondeu o filho. “Eu a mantive
fechada conforme o senhor me instruiu”.
‘Foi bom que você seguiu as instruções. Agora pode abri-la.
O filho fez como o pai sugeriu e abriu a caixinha. Dentro dela ele descobriu a
casa de seu pai, com seus pilares dourados e seus muitos irmãos e irmãs indo e
vindo ou sentados à grande mesa. Sem o saber, ele a carregara consigo todo o
tempo de sua jornada, e só agora percebia que tinha sido a voz de seu pai que
falara em seus sonhos.
Enquanto contemplava admirado o segredo, seu pai disse-lhe: “Agora olhe a
tampa da caixa e veja o que está lá”. E algo maravilhoso encontrou seu olhar
pois sobre a tampa ele via agora todo o reino da Ilha, o lugar em que vivera
como um rei em todas as suas formas e cores. Sim, todas as pessoas que
conhecera estavam ali! Até o ancião em quem tanto confiara com um
conselheiro, sorria para ele e seus olhos falavam de um jeito que o coração
podia escutar e compreender.
Seu pai sorriu também. “Viu o que é que você estava carregando em sua
caixinha dourada? Você levou sempre consigo a casa de seu pai. E porque a
carregou sempre com amor, ela foi capaz de ajudá-lo quando foi preciso.
Você cumpriu bem sua jornada! Agora descanse na casa de seu pai até que eu
o envie em uma nova jornada.

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Livros de apoio

- DESVENDANDO O CRESCIMENTO - As fases evolutivas da infância e da adolescência -


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