2 Huberto Rohden - Por Um Ideal Volume 2

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HUBERTO ROHDEN

POR UM IDEAL
O que por Ele vivi e sofri em meio século

Volume II
UNIVERSALISMO
Sumário
Advertência do Autor
31 — O feitiço duma sala de cinema
32 — Nas florestas amazônicas
33 — O paraíso de Manaus no inferno amazônico
34 — Excursionando pela Europa
35 — A sós em Gênova
36 — De Roma, Paris e Berlim — aos sertões do Brasil
37 — Vozes da imprensa brasileira
38 — A campanha nacional pró-Evangelho cava a ruína da Cruzada
39 — Direção espiritual — ou tiranização clerical?
40 — Pontos estratégicos pelo triunfo do Reino de Deus
41 — Sol entre nuvens
42 — Irene — e o Evangelho
43 — Fogo contra “Paulo de Tarso”
44 — Atentados contra “Agostinho” — nascituro
45 — Novo atentado contra “Agostinho” — recém-nascido
46 — Sugestões para mentiras plausíveis ainda não inventadas contra mim
47 — Clericalismo, Catolicismo, Cristianismo — Meus livros todos condenados
48 — Salvação pelo Cristo — ou pelo clero?
49 — “Credores de Deus”
50 — Uma legítima donquixotada do vigário de Angustura
51 — Carta aberta a numerosos amigos iludidos
52 — Desiludindo os amigos protestantes
53 — Entre almas simples, no silêncio da natureza
54 — Ecos filosófico-espirituais dos Estados Unidos
55 — Como quem adormece...
56 — Epitáfio de um batalhador apunhalado por seus colegas
Apêndice: Porque Huberto Rohden deixou o clero
Dados Biográficos
Relação de Obras de Huberto Rohden
Advertência do Autor
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental; mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição
de uma existência para outra existência.
O Poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado.
Entre os homens, há gênios creadores, embora talvez não sejam criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea, nada se aniquila,
tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se
escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isso, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer
convenções acadêmicas.
31
O feitiço duma sala de cinema.
O Cristo desconhecido
Nas cidades mineiras de Itaúna e Divinópolis reconciliei-me um tanto com a
mentalidade religiosa reinante, porque naquela encontrei um vigário muito
sensato, e nesta os franciscanos holandeses abraçaram em cheio os ideais da
“Cruzada”.
Tanto mais dolorosa, porém, foi a minha decepção em Bom Despacho, paróquia
administrada pelos padres Premonstratenses belgas. A igreja matriz achava-se
em obras, sem janelas nem bancos, pelo que não me era possível falar nesse
local. Havia a sala do cinema disponível nessa noite. O empresário cedeu
prontamente o amplo local para as minhas conferências. Quando o coadjutor da
paróquia, que era também o diretor da Pia União das Filhas de Maria, soube que
eu desejava falar no cinema, desandou-me um olhar em que ia um mundo de
estranheza e de lástima, como se dissera: Esse homem é pagão! Cinema é coisa
do tinhoso!...
Daí a pouco, encontrei-me com um grupo de Filhas de Maria, que me
comunicaram, cheias de tristeza, que não podiam comparecer às minhas
conferências.
— Por que não?
— Porque vão ser no cinema.
— E que tem com isto?
— O nosso diretor não permite que ponhamos pé no cinema.
— Deve ser engano; pois não se trata de cinema. Ele proíbe, de certo, a
assistência a filmes, mas não a simples entrada na sala de espetáculos para
ouvir uma conferência sobre a imprensa e literatura católicas!
— Sim, senhor, ele proíbe a simples entrada nessa sala, seja qual for o fim.
— Será que as paredes do edifício têm pecado? Estarão contaminadas? Terão
feitiço?
Entretanto, as jovens tinham razão: o mal estava no próprio edifício do cinema,
no soalho, nas paredes, no teto, nas cadeiras — estava tudo endemoninhado.
Do contrário, seria incompreensível a atitude desse sacerdote.
Veio-me à lembrança o fato de ter Jesus falado regularmente no templo de
Jerusalém e nas sinagogas locais dos judeus, embora profligasse certas
doutrinas que os chefes espirituais davam como revelação de Deus — esses
“sepulcros caiados”, “esses guias cegos”, essa “raça de víboras”. Como é que o
Divino Mestre podia ignorar que as paredes do templo e das sinagogas estavam
profanadas pelo demônio? Veio-me à mente também o fato de ter o apóstolo
Paulo falado, por espaço de uns dois anos, cada semana, no ginásio de esporte
de um certo pagão Tirano, na cidade de Éfeso, sem ao menos suspeitar que
esse edifício pagão era de todo impróprio para proclamar a gloriosa mensagem
do reino de Deus. Felizmente, o apóstolo das gentes nada sabia da teologia do
coadjutor da paróquia de Bom Despacho, e foi por isto que tão
despachadamente aceitou o convite do gentio Tirano para difundir o Evangelho
num salão de ginástica.
Aliás, não só naquelas minhas viagens de antanho, mas até ao presente dia,
encontro por toda parte essa mesma mentalidade estreita e anticristã. Tenho
falado em salões pertencentes a igrejas Evangélicas, ao espiritismo, à
maçonaria, ao Rotary Clube, ao Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento, aos Rosacruzes, à Sociedade Teosófica: tenho conferenciado em
teatros, cinemas, clubes de diversos tipos, até em oficinas mecânicas — e toda
vez muitos dos que não fazem parte dessas sociedades torcem o nariz e acham
que isto é uma apostasia ou uma profanação da mensagem evangélica. Essa
tendência de querer roubar ao Cristianismo o seu caráter universal e cósmico, e
reduzi-lo a uma seita ou piedosa confraria, é antiquíssima. Toda vez que falo
num local pertencente a uma denominação protestante, consta por aí fora que
me filiei ao protestantismo; quando falo na Liga ou na Federação Espírita, os
dissidentes fazem constar que “virei espírita”; quando aceito um convite da parte
duma loja maçônica, muitos sabem que “o Rohden entrou para a maçonaria”.
Em Washington eu falava muitas vezes na Self-Realization Fellowship, centro
espiritual de origem hindu, e mesmo naquela terra de amplos horizontes não
faltava quem visse nisto uma apostasia do cristianismo para o paganismo.
Ultimamente, pessoas mais romanas que cristãs descobriram que eu sou da
“seita dos yoguis”. O que essas piedosas ignorantes entendem por “yoga” ou
“yogui” — só Deus o sabe. Saber a verdade sobre isto é, certamente, “heresia”
ou “apostasia da fé”.
É dificílimo ao homem profano emancipar-se do espírito sectário e compreender
que o Cristianismo não é uma seita, igreja ou denominação, mas a realização
universal e incondicional do amor a todos os homens, inspirada no amor de
Deus, a fraternidade humana baseada na paternidade de Deus.
Depois de longos debates, consegui que o vigário permitisse às Filhas de Maria
a assistência às minhas conferências, naquele cinema endemoninhado. Mas o
coadjutor, em sinal de protesto, saiu da cidade; e o vigário, durante a
conferência, foi sentar-se no confessionário para ouvir os pecados das beatas
ainda não suficientemente paganizadas para porem pé naquele maldito local
onde eu ia proclamar a mensagem do Evangelho de Cristo. Daí o mandei buscar
por uma comissão de pessoas gradas do lugar, e ele, por exceção, atendeu ao
nosso apelo. Sentou-se, com a comissão, no estrado de honra, mas, bem se via,
estava sobre brasas. Deve ter suado frio durante toda essa hora e feito
penitência por todos os pecados dos que, tão sem cerimônia, entraram naquele
inferno de Satanás.
Contaram-me que, não muito antes dessa data, o presidente da Sociedade de
São Vicente de Paula, de Pitangui, realizara, em Bom Despacho, uma
conferência sobre Beethoven, no dito cinema — e também desta vez tiveram as
almas piedosas proibição categórica de assistir à mesma, não só por causa do
local profano, mas também porque a conferência versava sobre um compositor
que, na sua adolescência, tinha tido alguns deslizes...
Se adotarmos esse critério de canário de gaiola, teremos de abster-nos de ouvir
conferências e sermões e de ler livros sobre Santo Agostinho, Inácio de Loyola,
Francisco Xavier, e quase todos os luminares do Cristianismo, porque todos eles,
sem excetuar o próprio apóstolo Paulo e seu colega Simão Pedro, passaram por
certos períodos evolutivos nada edificantes.
Em vez destas pieguices e melindres, não seria melhor mostrarmos ao público
a força regeneradora do Evangelho de Cristo, quando entra na vida de um
homem pecador e se apodera da alma dele?
32
Nas florestas amazônicas. Um
herói agonizante. Condutores ou
sedutores clericais?
Havia uns quatro anos que eu andava perlustrando, por terra, mar e ar, todas as
latitudes e longitudes desses 8 1/2 milhões de quilômetros quadrados que se
chamam Brasil.
Em centenas de cidades e vilas já ardiam os faróis da boa imprensa, espalhando
pela redondeza a luz das grandes idéias e dos excelsos ideais do Evangelho.
Centenas de correspondentes — homens, senhoras, moças, até crianças — e
diversos milhares de auxiliares colaboravam comigo na grande Cruzada da Boa
Imprensa. O fogo sagrado alastrava magnificamente. Incêndios de entusiasmo
iluminavam os céus do Brasil. Cerca de 100.000 volumes saíam, anualmente, do
escritório da Cruzada e voavam por todos os recantos do país. Além das nossas
edições próprias difundíamos, cada ano, uns 200.000 exemplares de outras
casas editoras de orientação católica. Era a Cruzada, assim, uma poderosa
central de difusão de literatura cristã e, ao mesmo tempo, um centro de controle
e orientação, uma entidade que examinava e selecionava criteriosamente os
livros, orientando constantemente os interessados que pedissem informações
sobre o espírito deste ou daquele livro. Éramos uma verdadeira “Inspetoria de
Higiene Moral”, sempre de perfeito acordo com a autoridade eclesiástica, que
era o cardeal Leme, então arcebispo do Rio de Janeiro.
A minha saúde, embora férrea (meu pai nunca esteve doente e morreu só de
velhice com 91 anos; minha mãe com 80) cedia, aos poucos, a essa tremenda
ofensiva material e espiritual. Organizar e supervisionar uma empresa de
projeção nacional, arranjar os meios para custear as enormes despesas, viajar
6, 8 e até 10 meses por ano, e ainda escrever, muitas vezes de noite, dezenas
de obras — era bombardeio por demais pesado para os meus nervos.
Numa dessas viagens pelos sertões da Bahia, andei mais de uma semana com
sezões que, na hora do acesso febril, me escaldavam o sangue até 40 ou 41
graus. Engoli tantas cápsulas de quinina que, por fim, o remédio resultou pior
que a moléstia; fiquei com tal zuada nos ouvidos que mal ouvia a minha própria
voz, e a insônia, que me fora de todo desconhecida, se tornou minha
companheira de noites intermináveis. Quando então, após essa maré de sezões
ou febres palustres, vinha a ressaca, era tamanha a fraqueza que me acometia
e a vertigem que tudo fazia girar, que só com extremo esforço conseguia manter-
me em pé.
Entretanto, eu não me rendia. Não interrompia o itinerário traçado. Não ia para
a cama. Não tinha tempo para esse “luxo” de ficar doente. Mesmo com 40 graus
de febre ou mais, seguia avante, de trem, de caminhão, de marinete, de sopa, 1
por vezes de avião, e falava duas, três vezes por dia. Gastei uma fortuna nessas
viagens aéreas, caríssimas, sobretudo pelos ínvios sertões do nordeste e pelas
florestas do norte e noroeste. A Cruzada rendia, não para mim — que nunca
guardei um só cruzeiro — mas para si mesma, para a sua maior expansão e
prosperidade. Eu só conhecia a providência divina, e não as previdências
humanas. Só mais tarde, quando apunhalado pelas costas pela cobiça e inveja
de colegas, é que abri os olhos e percebi a necessidade de arranjar alguns
recursos para a subsistência material.
1. Nomes que, no norte, dão aos ônibus do interior.

O pensamento de que me aproximava cada vez mais da realização do meu ideal


de muitos anos me dava forças e alegria para prosseguir na luta, enquanto me
restasse um átomo de energias. Desde os dois Retiros Espirituais, de 30 dias
cada um, fiquei como que obsessionado por essa idéia, de criar no Brasil uma
poderosa entidade que, em todas as cidades, vilas e freguesias do território
nacional, irradiasse constantemente a luz divina do Evangelho, essa luz e essa
força do além que eu chegara a conhecer e a experimentar em mim mesmo e
ansiava por tornar conhecidas de meus patrícios. Tinha eu a firme convicção de
que a vida humana só vale pelos ideais que a animam — “viver as suas idéias e
morrer por seus ideais”, como escrevi mais tarde, num dos meus livros.
À luz desse ideal, todos os sacrifícios me pareciam insignificantes. Dinheiro,
saúde, tempo, forças, conforto — tudo isto só tinha um valor relativo, como meio
para atingir esse fim superior.
O meu intuito imediato era elevar o número de agências permanentes da
Cruzada a mil — e nem possuíamos metade desse número. Mas eu me sentia
cheio de entusiasmo e esperança toda vez que mais uma agência se alinhasse
com as antigas, formando mais um farol para espargir o conhecimento e amor
de meu divino Senhor e Mestre.
* * *
Em meados de 1937 estava eu em Belém do Pará, que era então a extrema
baliza da Cruzada. Para além desse gigantesco estuário do rei dos rios não se
conhecia a nossa organização, não circulavam, senão esporadicamente, os
nossos livros. Belém veio a ser uma potência. Um jovem sacerdote barnabita,
carioca, inteligente, dinâmico, realizador, meteu ombros à tarefa de organizar o
serviço da difusão literária na metrópole paraense. Em breve se tornou esse
novo centro o número um do Brasil. Um grupo de jovens apóstolas levantou
completo cadastro da cidade, distribuindo grupos de propagandistas
permanentes por todas as zonas e bairros. Foi uma verdadeira ofensiva de livros
cristãos. Ofensiva que devia durar diversos anos, até o tempo em que a Cruzada
caiu assassinada pela invidia clericalis.
Que haveria para além desse extremo limite? Manaus?...
Manaus! O meu sangue de aventureiro não resistiu ao desejo de demandar a
capital longínqua das selvas tropicais...
Tive sorte. Chegara a Belém, levando excursionistas (professores e professoras)
brasileiros do centro e do sul, o vapor Jaceguai. Tirei passagem, e, por espaço
de cinco dias e cinco noites, fomos subindo a vasta torrente que nasce na
cordilheira dos Andes e morre no seio do Atlântico.
Devo dizer que o Amazonas foi para mim uma grande decepção. Não vi o
Amazonas de que lera e que trazia na imaginação. Navegávamos
constantemente, dia a dia, num canal de água barrenta. Como? Aquilo era o
célebre Amazonas? Cortávamos para a direita, para a esquerda, duas, três,
quatro vezes, e sempre estávamos ainda num canal. Até Santarém, mais ou
menos, o Amazonas é um enorme complexo de canais, rios, ilhas, paranás,
igarapés, lagos, banhados, canaviais, ilhotas semicriadas, seminascituras,
bosques flutuantes — o Gênesis antes do fiat definitivo. Tudo aquilo deve ser
terra de aluvião que a cordilheira dos Andes, em eras pré-históricas, despejou
mar adentro, até formar aquelas imensas planícies de terra e água. A monotonia
é absoluta, fatigante. Cada manhã, o mesmo panorama do dia anterior. O
amazonas só impressiona pela grandiosidade, pelo incomensurável das suas
extensões. As ribanceiras, ao menos até Santarém, quase até Óbidos, são
planas como uma mesa, sem nenhuma elevação de vulto. Jacarés, às centenas,
aos milhares, semi-enterrados na lama tépida, só com os olhos e as salientes
narinas de fora, como um par de periscópios, encarnação da inércia, não se
movem, nem mesmo se dão de um tiro de revólver, porque a bala ricocheta na
terrível couraça. Aqui e acolá, o corpo desgracioso de algum peixe-boi a comer
indolentemente o viçoso capim das margens, como se fosse capivara; não é nem
peixe nem boi, é um mamífero que se esqueceu da sua espécie e trocou a terra
firme pelo elemento líquido, sem conseguir virar peixe autêntico. Garças,
cegonhas, guarás, marrecos, sem conta, ao ponto de escurecerem o sol,
quando, aos milhares, erguem vôo. De longe em longe, a vivenda primitiva duma
família de silvícolas, construção tosca suspensa entre os troncos das árvores, a
salvo das enchentes.
* * *
Domingo à tarde, chegamos a Itacoatiara, pequena cidade sobre a margem
direita de quem sobe o rio. Como o nosso vapor parasse umas horas, saltei em
terra e dei um giro pela cidadezinha. Perguntei pela casa do Vigário. É lá adiante,
à beira do rio, disseram umas moças em trajos domingueiros, acrescentando:
Mas, o nosso Vigário está quase a morrer...
— A morrer?
— Sim, voltou das matas, ontem. Deram-lhe umas febres. Também já é muito
velho, coitado...
Quando entrei na casa paupérrima, defrontei com uma rede suspensa numa
grande sala quadrada. Em torno da rede, algumas pessoas, e, estendido nela,
um homem entre 70 e 80 anos presumíveis. Cabelo branco; as barbas, quase
da mesma cor, havia tempo não conheciam navalha. O olhar febril, as faces
encovadas, cadavéricas...
Quando saudei o velho sacerdote — Pereira, se bem me lembro — um lampejo
de satisfação iluminou-lhe o semblante esmaecido.
— O sr. é padre? — perguntou com estranheza, esforçando os olhos por entre
as penumbras da sala.
— Sou, sim, senhor. Venho do Rio de Janeiro, em trânsito a Manaus.
— Ah! foi Deus que o mandou aqui! — exclamou o moribundo, agarrando-me a
mão e beijando-a efusivamente. Depois, com violento acesso de tosse e súbita
tontura, deixou-se cair na rede, da qual soerguera o corpo magríssimo. Passado
o acesso, prosseguiu: — Pois, foi Deus que aqui o trouxe... Vou morrer, hoje ou
amanhã... Vim das matas, ontem, onde passei uns meses, visitando meus
paroquianos... Distâncias enormes... Só de canoa, dias e noites a fio... Muitos
insetos venenosos... Depois, as febres palustres... Há uma semana que ando
doente, com impaludismo... Outras complicações... Sou velho... A febre a 41
graus... Fui dado por morto... Há dias que não como... O meu fim está próximo...
Minha última confissão foi há muitos, muitos meses... É impossível, por aqui...
Não há um colega em toda a redondeza... Para ir à paróquia próxima perco mais
de uma semana...
Eram estas palavras proferidas a jato, com intermitências e grande esforço...
A um sinal do moribundo, todas as pessoas se retiraram. Sentei-me ao lado da
rede, num tamborete, com uma das mãos dele entre as minhas. Rezamos juntos,
naquela sugestiva penumbra, onde rondava a morte... Ajudei-o a fazer exame
de consciência... O velho lutador fez a sua confissão, a última da sua vida
terrestre, como ele pensava... A seguinte — só ante o trono de Deus, sem
confessor humano... Enquanto ele falava, vagarosamente, sincera e
humildemente como uma criança, julgava eu ter diante de mim um daqueles neo-
comungantes da minha antiga paróquia da Laguna, em Santa Catarina, para os
quais escrevi o meu livrinho “Mistério de Amor”... O momento era divinamente
solene e terrífico... De repente, lembrei que não tinha jurisdição eclesiástica, para
a diocese de Manaus. Não precisa — disse o velhinho — Deus também é bispo...
Terminada a confissão, a penitência, a ação de graças, conversamos mais à
vontade, e expliquei ao colega a finalidade da minha viagem.
— E aqui, na minha paróquia, não há representante da sua Cruzada?
— Ora, se eu nem sabia da existência de Itacoatiara...
— Pois, faço questão de ter aqui uma representante da boa imprensa, antes que
feche os olhos para sempre. É uma necessidade. Este povo é bom, mas não tem
instrução religiosa. Alguns sabem ler... Ó Aparecida! vem cá, Aparecida!
Aproximou-se uma moça para receber ordens.
E o velhinho, ofegante, quase a agonizar, começou a explicar à Aparecida o que
ela tinha de fazer para iniciar a campanha do bom livro, no meio daquelas selvas.
Suava frio, de tanto esforço, esse herói moribundo.
— Deixe, padre, deixe que eu lhe explique! — intervim, ao ver o cansaço do
doente.
— Não, não! — replicou ele. Quando eu explico, minha sobrinha me atende. Ela
é muito dócil e piedosa.
E assim foi o velho explicando à jovem, com o último resto das suas forças, a
necessidade da campanha do livro religioso e o modo de realizar esse importante
apostolado.
E eu pensava em Paulo de Tarso a evangelizar os povos, mesmo do fundo do
leito de dores, mesmo à sombra do cárcere...
Há muitos desses heróis anônimos, no fundo das matas e dos sertões do Brasil.
Ninguém lhes canta as glórias. O seu nome não aparece, em letra de fôrma, nas
colunas dos jornais. As estações de rádio e televisão os desconhecem. O
“mundo civilizado” não sabe da sua existência. Entretanto, são esses os
brasileiros autênticos, os pioneiros da cultura, os bandeirantes da fé, os guardas
avançados do idealismo cristão. Apóstolos da sua missão, acabarão
necessariamente mártires do seu incompreendido heroísmo.
A Aparecida veio dar uma ótima representante da Cruzada em Itacoatiara. Não
era grande o movimento de livros, porque não eram muitos os alfabetizados, mas
cada livro era lido e relido com muita atenção e interesse, ao pé do fogo, pelos
que sabiam ler, escutados pelos que queriam ouvir.
Em face de episódios desses, minha alma criava vida nova, e a plantinha da
minha esperança, por vezes um tanto murcha, erguia a cabeça sonhando com
melhores dias para o nosso querido Brasil...
Padre Pereira, ou que nome tenhas: se ainda estás entre os vivos cá em baixo,
ou se já estás lá em cima no mundo dos sempre-vivos, daqui da minha humilde
tenda de trabalhos, envio-te um grande abraço de amigo e irmão, e rogo-te que
infundas na alma de teus colegas de sacerdócio algo do heroísmo e da pureza
de alma que iluminavam a tua vida terrestre.
No meio do fragor da campanha que, daí a poucos anos, algumas ordens
religiosas desencadearam contra mim e meu apostolado, pouco sentia eu por
mim mesmo, calejado como estou com tanto murro e pontapé; muito sentia por
todas as “Aparecidas”, diversas centenas, por esse Brasil afora. Como terão elas
sofrido com os horrores que boa parte do clero e do episcopado criou dentro do
catolicismo brasileiro, proibindo, execrando como “perniciosos à fé católica”
todos os meus livros, tão efusivamente aprovados e abençoados por meu
superior diocesano e tão avidamente lidos e assimilados pelas almas desejosas
de luz e forças divinas! Tremenda decepção deve essa campanha satânica ter
causado a essas almas simples, dedicadas, alheias a todas essas paixões de
que caiu vítima parte dos que deviam ser os guias espirituais dos seus rebanhos
— e de condutores que deviam ser se tornaram sedutores e mercenários...
Não creio que todos os não-católicos ou anticatólicos em conjunto tenham feito
tanto mal ao catolicismo como esses sacerdotes que se revoltaram contra a
autoridade eclesiástica que aprovara os meus livros e mentiram ao povo
brasileiro, a fim de advogarem os interesses financeiros dos seus conventos e
das suas ordens e congregações...
Deus tenha piedade deles...
E piedade também das suas vítimas...
33
O paraíso de Manaus no inferno
amazônico. Marajó, um mundo em
gestação. Cristianismo em marcha
Encontrei em plena floresta amazônica uma cidade moderna, próspera,
confortável, estética. Encontrei um povo amigo, simpático, cristão. Encontrei um
mundo intelectual ávido de saber.
Realizei, no vasto “Teatro Amazonas”, uma semana de conferências,
patrocinadas pelo Dr. Álvaro Maia, então Interventor Federal nesse Estado.
Quando eu via ocupadas cada noite aquelas 3.000 cadeiras e milhares de olhos
focalizados em mim, em intensa expectativa e profundo silêncio, sentia dentro
de mim uma como que onda psíquica que me sugestionava poderosamente e
me inspirava idéias melhores do que aquelas com que viera ao recinto. Eu via a
magnificência do reino de Deus a despontar em milhares de almas. Como
Tertuliano tinha razão em dizer que a “alma humana é cristã por sua própria
natureza”! As teologias, mais tarde, em tempos de decadente escolasticismo
intelectual e não espiritual, inventaram que a alma é, por sua natureza, inimiga
de Deus, anticristã, e que certas cerimônias e fórmulas litúrgicas a devam fazer
cristã. Essas teologias são, certamente, úteis a uma determinada classe
sacerdotal, mas são a negação radical da verdade expressa pelo divino Mestre:
“O reino de Deus está dentro de vós”. É que toda alma é divina, cristã por sua
íntima natureza, embora nem todas realizem e atualizem esse cristianismo
latente e potencial. Por isto é que veio o Cristo, ele, o Cristianismo plenamente
atualizado, para mostrar-nos como também nós podemos e devemos atualizar
em nós o nosso Cristianismo inato e ainda dormente. É este despertar do
Cristianismo dormente da alma que o Mestre chama o “renascimento pelo
espírito”. Tudo isto sentia eu poderosamente, em ocasiões como esta. Todo
orador ou conferencista espiritual sabe que as melhores idéias lhe vêm só
quando ele está diante dum auditório propício, com a necessária receptividade
para apanhar as invisíveis irradiações de que o orador se sabe emissor, e que
da antena sensível dos ouvintes são novamente refletidas sobre ele, surgindo
com redobrada clareza, veemência e entusiasmo. Esse intercâmbio de ondas
divinas é algo que ninguém pode descrever, mas que alguns podem sentir. Isto,
porém, não dispensa o orador do trabalho prévio da preparação do assunto. Mas
essa preparação prévia é apenas o elemento intelectual e técnico; a inspiração
é algo inteiramente diferente, é espiritual, cósmica. Um grande escultor, em
Paris, costumava dizer a seus discípulos: “Estudai com perfeição as regras da
técnica da arte — e, depois, esquecei-vos de toda a técnica e cedei à inspiração”.
Do consórcio do consciente e do subconsciente, do intelectual-técnico e do
espiritual-cósmico, é que nascem as grandes obras de arte de valor permanente.
Poucas vezes vi tanta sede de saber, tamanha avidez do intelecto e da alma,
como entre o povo de Manaus. Eu falava, isto é, palestrava, sobre assuntos da
vida ética e espiritual do homem uma hora inteira. Na segunda ou terceira noite
veio ter comigo uma comissão perguntando se podia prolongar as minhas
palestras por uma hora e meia ou duas, porque era raro aparecer em Manaus
quem assim conversasse sobre assuntos de palpitante interesse. Daí por diante
falava eu, cada noite, das 20 às 22 horas, e ninguém se movia do lugar. Por
vezes, em cidades do litoral, antes de subir à tribuna, recebo do encarregado da
organização o discreto aviso: “Não passe de 30 minutos, por favor, porque o
povo não aguenta”. Semelhante injunção seria para desanimar qualquer orador,
se ele não soubesse por experiência que esse “aguentar” ou “não-aguentar”
depende do modo como ele fala; por via de regra, os ouvintes “aguentam” tudo,
desde que o orador saiba falar-lhes de alma para alma, e não apenas de cérebro
a cérebro, ou de lábios a ouvidos. De resto, quando um orador saca do bolso
enorme maço de tiras de papel e começa a declamá-las, uma por uma, com a
costumada e insuportável entonação retórica e gestos previamente ensaiados
diante do espelho — neste caso, é claro, convida ele os presentes a se
ausentarem, ou, se porventura ficarem, a dormir em vez de ouvir.
Comigo, nunca ninguém foi obrigado a “aguentar”. Os que ouviram alguma das
2.000 conferências que, entre 1935 e 1940, realizei em cerca de 500 cidades e
vilas do Brasil, sabem que não uso de retórica artificial, não me arvoro em orador
de alto coturno, nem assumo ares dramáticos de conferencista ou pregador, mas
que me limito a expor, simples e sobriamente, em tom de palestra, uma série de
pensamentos que interessam a qualquer ser humano ainda não adulterado em
sua íntima natureza cristã. E isto não cansa a ninguém. Todos acompanham
espontaneamente o curso das idéias, quando estas são o eco da sua própria
alma e dizem explicitamente o que cada homem já sabia implicitamente, embora
não fosse capaz de externá-lo assim como o orador o expõe. O que disse no
capítulo “locutores da humanidade”, do mais lido de todos os meus livros, “De
alma para alma”, é exatamente o que todo orador ou escritor deve fazer, quando
quer ser ouvido e lido com vivo interesse e espontâneo entusiasmo. O autor,
naturalmente, deve estar intimamente convencido da verdade daquilo que diz;
deve ter vivido, sofrido e gozado essa verdade; do contrário, não poderá produzir
convicção nos seus ouvintes ou leitores, por mais perfeitas que sejam as suas
frases e seus períodos clássicos. Não é a palavra, mas sim a convicção que
convence. “Convencer” é um composto de “vencer”; eu estou convencido duma
verdade quando sou por ela vencido; e só posso convencer outros da mesma
verdade se esta verdade que me venceu, que me derrotou, que me domina como
um senhor domina seu servo, vence, derrota e domina soberanamente os meus
ouvintes ou leitores. A absoluta sinceridade das nossas palavras é o requisito
número um para convencermos os outros daquilo que dizemos; eu devo ter
vivido integralmente aquilo que digo para fazer com que outros o vivam também.
O que decide é o elemento invisível e imponderável, a íntima vivência daquilo de
que as palavras são apenas o elemento visível e ponderável.
Devido a essa falta de sinceridade, vigora entre nós o abominável costume, ou
vício, de o orador levar longo tempo para se desculpar perante o público, frisando
hipocritamente a sua “absoluta incompetência” e “reconhecida incapacidade”
(aqui, naturalmente, ele abre uma pausa, aparentemente para tomar fôlego, na
realidade, porém, para ouvir, das primeiras filas da plateia, o dulcíssimo “não
apoiado”, música inefável para a sua complacente vaidade). Por que perder
tempo para afirmar a sua incapacidade? Se ela de fato existe, é supérfluo prová-
la de antemão, o público o verificará dentro em breve.
De Manaus, mandei à sede da Cruzada, no Rio de Janeiro, uma mensagem
telegráfica, felicitando-a pela conquista dessa longínqua etapa, na gloriosa
marcha do Cristianismo dinâmico. Verdade é que existiam por conquistar
fronteiras mais distantes. No Acre mantínhamos diversos centros de difusão;
mas lá nunca estive eu pessoalmente. Quanto aos dois Estados do oeste, Goiás
e Mato Grosso, deixara-os para tempos posteriores, que não vieram, porque a
invidia clericalis destruiu a nossa obra apostólica antes do tempo.
Convidado por esse benemérito apóstolo leigo e sincero amigo, que era o Dr.
André Araújo, então Juiz de Menores, internei-me, com um grupo de amigos,
floresta adentro, até à linda cachoeira de Tarumã, e outra, cujo nome me fugiu.
Todos os meus leitores conhecem obras magníficas sobre a grandiosa natureza
tropical dessas regiões, e não esperarão de mim uma descrição das selvas
amazônicas e da estupenda exuberância e deslumbramento da sua flora e fauna.
De resto, que idéia poderia a silenciosa palidez de umas folhas de papel inerte
dar da exultante epopeia viva e vibrante da realidade objetiva? Quem não viu
com seus próprios olhos, e viveu com sua alma, essas magnificências, nunca
terá idéia exata do que seja, de fato, a Amazônia. Calor perene, umidade
abundante, solo fertilíssimo — eis os requisitos básicos para asse eldorado do
mundo vegetal e animal no clímax da sua expansão e vitalidade. Aqui imperam
ainda, em plena pujança, os longuíssimos períodos pré-históricos da época
mesozoica, quando as condições do globo terráqueo se achavam empenhadas
nessa dramática revolução que assinala a transição da adolescência para a
maturidade. A Amazônia é uma adolescente tropical em luta pela adultez. Aqui,
o livro do Gênesis continua aberto, em plena evolução do segundo ou terceiro
“dia da criação”... O fiat definitivo está ainda por ser proferido...
No meio dessas selvas tropicais invadiu-me, novamente, o velho desejo de estar
a sós e de ficar a sós para sempre, com Deus e com minha alma — a voz do
meu estranho egoísmo místico. Por que será que o contato com a Natureza
virgem nos infunde essa profunda e benéfica quietude interior — quietude que
poderá, ao mesmo tempo, converter-se em malefício, num veneno inebriante?
Dizem os orientais que a Natureza (maya) “revela e vela” a Deus, e isto é
profundamente verdadeiro. Revela, manifesta, porque é obra de Deus — vela,
oculta, porque é incompleta essa revelação. Na Natureza infra-humana, Deus
aparece como um poder impersonal; na consciência humana, ele aparece como
um ser personal, que se revela pelo imperativo ético do dever moral. Entretanto,
Deus não é nem impersonal, como aparece na Natureza, nem personal, como
aparece na consciência humana — ele é suprapersonal, ou melhor, onipersonal,
como aparece na experiência íntima dos grandes videntes e místicos, quando,
“arrebatados ao terceiro céu”, percebem “ditos indizíveis”, “árreta rémata”, como
diz Paulo de Tarso, depois de ultrapassar a zona do impersonal e do personal e
arribar às praias ignotas do onipersonal, cujo conteúdo é “dito” à alma, mas não
é “dizível” pelo intelecto ou pelos lábios corpóreos. Deixar-se absorver e
embriagar pelo fascínio impersonal da Natureza é um perigo sutil, um veneno
suavemente mortífero para o homem suficientemente sensível a essa sedução,
mas ainda não suficientemente iniciado na onipersonalidade do mundo divino...
Quem jamais experimentou, no seu subconsciente, essa veemente sucção dos
misteriosos abismos da natureza infra-humana, sabe do perigo que há nessas
inebriantes melodias das tenebrosas Circes das profundezas e das fascinantes
Sereias de ilhas longínquas... E sabe também que esses demônios dos abismos
de mundos ignotos só se transformam em anjos de alturas celestes depois que
o homem ingressou na luz meridiana duma experiência vital do Cristo e do reino
de Deus dentro dele mesmo. Para esse homem cessou a funesta sucção do
vórtice rumo ao abismo; a Natureza se lhe tornou amiga e aliada no seu caminho
em demanda do Criador comum do homem e da Natureza.
Tudo isto, e muito mais, era pensado em mim, na misteriosa semi-noite
meridiana que me envolvia, por entre os gigantescos troncos e as altíssimas
frondes dessa imensa catedral das selvas amazônicas, ao trovejante Te-Deum
da cachoeira e às discretas melodias filigrânicas das aves e dos insetos em
derredor.
* * *
Terminada a semana de conferências, com a alma repleta de gratidão,
entusiasmo e experiências inéditas, meti-me no bojo de um aviãozinho
minúsculo, único que a “Panair”, nesse tempo, mantinha nessas zonas, a fim de
encurtar por 9/10 a distância entre Manaus e Belém. Dom Basílio, piedoso bispo
franciscano de Manaus, apesar de realmente pobre como o simpático
vagabundo de Assis, fez questão de pagar pelo menos metade da minha
passagem aérea — foi esta, aliás, a única vez que alguém, espontaneamente,
contribuiu para o custeio das enormes despesas que minhas contínuas
excursões reclamavam. E convém frisar esse gesto, tanto mais que, pouco
depois, a cobiça de Ordens e Congregações religiosas estrangeiras (Dom Basílio
era brasileiro) iniciou a destruição da Cruzada. O bispo, na sua bondade e
simplicidade, acompanhou-me até ao aeroporto fluvial, e, quando me viu
desaparecer no fundo da ave metálica (entrava-se por um alçapão de cima), na
qual cabiam apenas cinco passageiros, exclamou: “Nem por nada embarcaria
eu nessa geringonça!”
E lá fomos, subindo, subindo, 3.000 metros, deixando em baixo, muito longe, a
fita argêntea do rei dos rios, emoldurado no verde-escuro das matas a espraiar-
se por horizontes sem fim. Pouco a pouco, a fita argêntea, à medida que recebia
os contingentes dos seus grandes tributários da direita e da esquerda, se
alargava, se esfiapava caprichosamente, invadindo o interminável oceano de
verdor, abrangendo entre seus braços líquidos ilhas e ilhotas, algumas ainda em
estado embrionário. Tive a impressão de que a Amazônia foi surpreendida pelo
homem ainda em plena gestação; não estava, a bem dizer, em condições de
nascer para a civilização e ser normalmente habitada, a não ser por algum
homem pré-histórico. Só falta andarem por aí uns sauros, ou cruzar os ares a
sombra de alguma fantástica archeopterix para lhe dar perfeita similitude com a
fisionomia da época terciária, que precedeu ao advento do chamado homo
sapiens.
A ilha de Marajó, como soube mais tarde, e muitas das suas milhares de colegas
amazônicas, tem poucos trechos de solo realmente consistente. O resto é um
mingau, misto de terra e água, em todas as graduações de liquidez ou solidez.
Admirável a inteligência da flora marajoara! Como as plantas aprenderam a
adaptar-se a esse solo incerto, onde pouco valeria à árvore possuir um único
tronco, pois a primeira rajada violenta daria com ela em terra. Certa espécie de
figueira, abundante nessa ilha, que tem mais ou menos a área da Suíça, sai dos
banhados em forma duma haste delgada; desenvolve-se com grande rapidez,
porque o cardápio é dos melhores e mais suculentos do mundo; estende
horizontalmente os primeiros galhinhos; deita logo, de todos os pontos dos
galhos, uns fiozinhos verticais, raizinhas finas como barbantes, em demanda do
solo; mal atingida a terra pantanosa, engrossam os flexíveis filamentos, enrijam,
avolumam, dilatam-se, dando uns como cabos de navio, e, por fim, acabam em
verdadeiros troncos suplementares da árvore. E, enquanto engrossam e se
enterram no solo pantanoso, descem das alturas desses galhos dezenas,
centenas, milhares de novos fiozinhos vivos — até que, por fim, toda a figueira
se acha circundada duma verdadeira palissada de estípites, apoiada em
centenas de troncos secundários, rodeando o tronco primário, formando
verdadeiras paredes vivas. Penetrei pelo raizame labiríntico de uma dessas
figueiras marajoaras, que media seguramente 50 metros de diâmetro, e tive a
impressão de me achar por entre os feixes de colunas góticas, da catedral de
Milão, Colônia ou Notre-Dame de Paris; muitas centenas de colunas me
cercavam e envolviam em misteriosa penumbra; o bloco maciço dos troncos
unidos devia ser de uns 20 metros de diâmetro; só aqui e acolá se enxergava
ainda alguma fresta, espécie de janelinha gótica por entre as raízes solidamente
aliadas e inseparavelmente unidas. Venha agora quanto vendaval quiser — não
conseguirá derribar essa árvore, que teve a previdência de criar centenas de
pontos de apoio no meio do terreno vacilante.
Quanto mais o nosso minúsculo aviãozinho se aproximava do estuário, tanto
mais perdia o Amazonas o seu caráter de torrente uniforme e assumia visos de
imensa planície feita de ilhas e lagos.
Tive convite insistente, em Manaus, para lá voltar no próximo ano, a fim de
pregar os sermões da Semana Santa, com todas as despesas pagas. Não pude
aceitar tão sedutora oferta, porque, nesse tempo, estaria eu em vésperas de
embarcar para a Europa, chefiando uma peregrinação brasileira que ia
representar o Brasil católico no Congresso Eucarístico Internacional de
Budapeste.
Não suspeitava eu o que, depois do meu regresso do Velho Mundo, ia acontecer
comigo e com minha Cruzada...
Brevemente, o leitor saberá...
34
Excursionando pela Europa. A mais
arriscada das minhas aventuras.
O Danúbio Azul. Audiência com o
Papa em Castel-Gandolfo
Em fins de maio de 1938 ia celebrar-se, em Budapest, o 36.º Congresso
Eucarístico Internacional. Todo o mundo católico se faria representar.
E o Brasil? Não tomaria parte?
Nuvens sinistras acastelavam-se nos horizontes políticos do velho mundo. Os
jornais davam páginas inteiras sobre complicações internacionais, preparativos
bélicos, desenfreada corrida armamentista. A Alemanha, completamente
derrotada na primeira Guerra Mundial, realizava um dos maiores prodígios de
que há memória nos fastos da história humana. Sem colônias, sem exército, sem
marinha, tremendamente endividada, e, pior de tudo, minada de um pessimismo
sem precedentes, com guerras civis a todo momento, milhões de
desempregados, legiões de vagabundos — essa Alemanha ressuscitara
subitamente, em 1933, como que tocada por uma varinha mágica... Ressuscitara
e, em menos de 6 anos, se achava assaz forte para ameaçar o mundo inteiro
com as suas forças bélicas. Como explicar tão inaudita metamorfose? A varinha
mágica se chamava “fé” — fé no seu futuro, fé nas suas possibilidades latentes,
fé no seu grande destino na história da humanidade.
E quem despertara a fagulha latente dessa fé era um homem possesso de um
demonismo sinistro, que até ao presente dia é um dos tenebrosos mistérios do
gênero humano — Adolf Hitler. Reboou pela Alemanha derrotada e pessimista a
palavra estranha desse pretenso redentor — e milhões de vagabundos,
maltrapilhos e desempregados se transformaram, da noite para o dia, em outros
tantos soldados disciplinados ou dinâmicos operários das fábricas de munição,
impelidos mais pela fé e pelo entusiasmo nacional do que pela esperança
mercenária de vantagens materiais. Meninos, quase crianças, de 12 a 14 anos,
pedem ao Fuhrer o insigne privilégio de serem admitidos no exército, na marinha,
na aeronáutica, prevendo a gloriosa possibilidade de jogarem bombas
destruidoras sobre Varsóvia, Londres, Paris, etc.
A guerra, como é sabido, deflagrou em setembro de 1939. Em princípios de 1938
andavam as nuvens prenhes de ameaças, e ninguém sabia quando romperia a
grande catástrofe...
Levar para além do Atlântico um grupo de peregrinos envolvia enorme
responsabilidade. O Brasil católico, pelo que se previa, não tomaria parte nesse
Congresso Eucarístico.
Foi então que minha Cruzada da Boa Imprensa, simples casa editora, perpetrou
— digamos assim — uma das suas mais arrojadas façanhas, quiçá a mais
arrojada de todas. Arrostar o impossível é terrivelmente inebriante... Pedi
permissão ao cardeal Leme para organizar uma excursão a Budapest. Íamos
visitar também Roma e outros centros culturais da Europa. Dom Sebastião Leme
logo aprovou a minha idéia e mandou-me, em magnífica carta, a sua bênção e
seus votos de feliz êxito.
Mãos à obra! Os 10 ou 11 meses que então se seguiram foram de intensa
atividade em torno da idéia da excursão. O nosso escritório de casa editora
quase que se transformou numa agência de turismo internacional. O Brasil inteiro
ficou sabendo do nosso plano, aplaudido por muitos, incriminado por não pouco.
De mãos dadas com meu gerente-jornalista, elaborei o itinerário. A excursão
abrangeria, oficialmente, sete países: França, Itália, Áustria, Hungria, Iugoslávia,
Suíça, Alemanha, levando um total de três meses. Pronto o itinerário, fomos ter
com as grandes empresas de turismo, Exprinter, Waggon-Lit Cook, e outras. Os
orçamentos que de lá nos vieram nos pareceram exorbitantes, embora, à luz dos
preços de hoje, fossem “café pequeno”. Numa dessas empresas a excursão,
tudo incluído, custava Cr$ 12.000,00, na outra, Cr$ 15.000,00 por pessoa, em
classe turística, e um pouco mais em primeira classe. Hoje custaria dez vezes
mais. Mas nesse tempo, 12 e 15 contos eram fortunas enormes.
Abrimos mão das empresas de turismo e viagens e resolvemos fazer tudo sem
intermediário algum dessa natureza.
Como?... Houve quem me julgasse louco varrido...
Entretanto, querer é poder! Afinal de contas, era simples questão de cálculo e
organização: preço da passagem marítima, em primeira e segunda classes,
tanto, com o costumado desconto para grupos maiores. Quanto às viagens
terrestres pela Europa, hospedagem, etc., entendi-me com um amigo em
Gênova, proprietário de confortáveis ônibus “Fiat”. Preços, tais e tais. Cheguei à
conclusão final de que o preço, por pessoa, da viagem marítima e terrestre, tudo
incluído, seria de Cr$ 8.500,00 em classe turística e de... Cr$ 10.000,00 em
primeira classe. Em terra, naturalmente, não haveria diferença de preços.
Sobre esta base lançamos o prospecto definitivo.
Começou o período do trabalho mais insano. Centenas e centenas de pessoas
pediram informações sobre todos os pontos, possíveis e impossíveis — uma
professora sertaneja até quis saber o que se comia a bordo, se havia feijão com
arroz, etc.; do contrário ela não iria.
Finalmente, em fevereiro de 1938, tínhamos uns 300 candidatos certos —
quando veio o grande colapso! Colapso parcial, é verdade... Em março desse
ano resolveu Hitler anexar a Áustria ao Reich alemão — e quase 200 dos nossos
candidatos desistiram da viagem, na certeza de uma iminente guerra europeia
ou, quem sabe, duma conflagração mundial... Nós, que estávamos em contato
permanente com os nossos consulados e embaixadas em Roma, Paris, Londres,
Berlim, Viena, Budapest, etc., sabíamos que, segundo todas as previsões dos
entendidos, não haveria guerra em 1938; mas, como convencer outros dessa
nossa convicção, no extremo norte ou sul, leste ou oeste do nosso imenso
Brasil? Os jornais tinham de viver, e, por falta de assunto melhor, exploravam
amplamente a “iminência de uma guerra mundial”.
Ficamos com 120 excursionistas firmes e fiéis até o fim, entre eles 15 sacerdotes
e um arcebispo, D. João Becker, de Porto Alegre. Mandamos reservar
passagens nos vapores “Oceania”, italiano, e “Kosciuszko”, polonês, sendo que
este levaria os nossos peregrinos a Boulogne-sur-mer, norte da França; aquele,
a Nápoles. Em Milão haveria junção das duas turmas, em dia marcado.
Dito e feito.
Embarcamos em fins de abril, nos dois transatlânticos, acompanhados das
carinhosas bênçãos do cardeal Leme e do Núncio Apostólico, sendo que este
último veio pessoalmente ao cais e a bordo trazer-nos os seus votos de boa
viagem e feliz regresso. Dom Sebastião Leme, doente no seu sítio em Itaipava,
fez-se representar por seu secretário particular, Monsenhor Melo, trazendo-me
de Sua Eminência uma das mais belas cartas que possuo.
Associei-me ao grupo maior, que seguia pelo “Kosciuszko”.
A nossa passagem pelo Recife foi uma apoteose. Daí seguimos mar em fora.
Flutuavam à nossa frente três esplêndidas bandeiras: o auri-verde pavilhão
nacional; a alvi-áurea bandeira pontifícia, e o simpático pendão da Cruzada, com
os dois lindos cometas a cruzarem-se sobre o globo azul, simbolizando as luzes
da razão e da fé a iluminar as almas e o mundo.
Paris, Lisieux, Lourdes — quantas impressões que a silenciosa palidez do papel
não pode receber nem refletir! Chegamos ao meio dos Pirineus, onde se aninha
a misteriosa Lourdes, no meio de tremendo aguaceiro; mas, assim mesmo, na
escuridão da noite que caía, serpenteava uma grande procissão de tochas pelas
encostas dos morros e por entre os rochedos, cantando o conhecido hino de
Lourdes. No dia seguinte visitamos a “gruta milagrosa”, onde uns 500 doentes
deitados em macas, catres, esteiras, padiolas, suplicavam a Deus e à Virgem o
dom da saúde, clamando em todas as línguas do mundo, erguendo os braços,
fixando os olhos lacrimosos no nicho rochoso ao lado do qual aparecera,
repetidas vezes, em 1958, a formosa “dama” descrita por Bernadete Soubirous,
e onde brotara depois a fonte milagrosa, cujas águas continuam a fluir. Alexis
Carrel, o grande cientista francês, fez estudos e investigações profundas sobre
os inexplicáveis acontecimentos, que se vão perpetuando há quase um século,
mas não chegou a uma conclusão definitiva. É sabido que a igreja romana apela
para os fenômenos de Lourdes, sobretudo as curas repentinas de moléstias
incuráveis, como provas a favor das suas doutrinas peculiares. Entretanto, a
conclusão não procede; fenômenos análogos ocorrem em qualquer outra
religião, dentro e fora do Cristianismo. Alexis Carrel chega à conclusão imparcial
de que os ditos “milagres” nada têm que ver com o que, comumente, se chama
“fé”, no sentido dogmático-eclesiástico, tanto assim que a imensa maioria das
pessoas que, certamente com grande fé, vão a Lourdes para serem curadas,
voltam para casa doentes como vieram; apenas diminuta porcentagem dos
peregrinos é curada, e por vezes pessoas cuja “fé religiosa” se acha em baixo
nível; muitos deles poderiam associar-se ao chefe da sinagoga, Jairo, e dizer:
“Creio, Senhor —ajuda a minha incredulidade!” Há muitos crentes descrentes —
como também não faltam descrentes crentes... A teologia não resolve o caso.
Nem sabemos, a bem dizer, o que quer dizer fé. Carrel insinua que existe uma
espécie de Constituição Cósmica, que é infinita sanidade; o descontato com essa
eterna fonte de saúde é doença, o contato é saúde. Mas ninguém sabe qual o
processo que reintegra um organismo na vibração harmônica dessa eterna fonte
de sanidade.
Havia entre os nossos excursionistas um jovem, mais ou menos apático em
matéria de religião eclesiástica; a tuberculose lhe roera um dos pulmões e estava
destruindo lentamente o outro, como provam as radiografias tiradas e arquivadas
no Bureau des Constatations mantida pela ciência médica em Lourdes; orou
diante da gruta, e nada aconteceu. Mas, durante a noite próxima, foi
completamente restabelecido o pulmão semi-roído pela tuberculose e
plenamente substituído o que fora destruído pela moléstia, como demonstram
novas radiografias.
A ciência e a teologia acham-se em face dum grande ponto de interrogação.
Evidentemente, existem forças no Universo que ultrapassam o nosso alcance e
que em determinadas circunstâncias atuam a favor de pessoas que conseguem
sintonizar as vibrações do seu organismo individual com as vibrações do
organismo universal da Constituição Cósmica. E essa sintonização é realizada,
muitas vezes, na zona noturna do nosso subconsciente, mesmo durante o sono,
ou num momento em que menos o esperamos. A presença de um poderoso foco
de sintonização, como era Jesus de Nazaré, facilita grandemente a sintonização
das vibrações do corpo humano, como vemos no Evangelho. “Podes crer que eu
te possa fazer isto?” — é esta a pergunta invariável que Jesus dirige aos doentes
que o invocam, e só depois que o enfermo sintoniza as suas pequenas vibrações
com a grande vibração do Taumaturgo é que acontece o “milagre”: “Creio, sim,
Senhor!” “Então seja feito contigo conforme crês!”
O que é certo é que Lourdes é uma permanente refutação da concepção
materialista do universo. É cientificamente inegável que, por detrás dos
fenômenos perceptíveis do universo, existe uma Realidade imperceptível aos
sentidos, fonte e causa daqueles. É cientificamente impossível identificar a
realidade do mundo com a sua perceptibilidade. Não podemos estabelecer a
equação empírica e infantil: realidade = perceptibilidade; temos de modificar a
equação do seguinte modo: realidade > perceptibilidade. O materialismo é por
demais primitivo, ingênuo, unilateral, fragmentário; não satisfaz a nenhum
homem capaz de raciocinar logicamente.
A ciência natural de hoje é unânime em reconhecer que os fenômenos da
natureza física não passam de uma espécie de sombras ou reflexos secundários
de uma realidade primária, maior, que está por detrás deles.
Assim, por exemplo, escreve Sir Arthur Stanley Eddington, no seu livro The
Nature of the World: “O conhecimento nítido de que a ciência física trata de um
mundo de sombras representa um dos mais significativos progressos. No mundo
físico assistimos a um drama de silhuetas de sombras: no original inglês
shadowgraph, neologismo intraduzível. Tudo é simbólico... O mundo externo
acabou num mundo de sombras... Se quisermos remover as nossas ilusões
teremos de remover a substância (material), porquanto verificamos que a
substância é uma das nossas maiores ilusões”.
Sir James Jeans, na sua obra The Mysterious Universe, escreve: “O curso do
nosso conhecimento vai rumo a uma realidade não-mecânica. O Universo
começa a apresentar-se-nos antes como um grande pensamento do que uma
grande máquina”.
Os dois livros revolucionários de Einstein, sobre a Relatividade e a Teoria do
Campo Unificado, este último publicado pouco antes da morte dele, confirmam
matematicamente a mesma verdade: que, por detrás dos fenômenos materiais
e visíveis, jaz uma realidade imaterial e invisível, e tanto mais real quanto menos
acessível aos nossos primitivos instrumentos sensoriais e intelectivos de hoje.
É, certamente, nessa direção que uma humanidade futura, mais avançada no
terreno da razão espiritual, intuitiva, do que a nossa, desvendará o segredo
último do chamado “milagre”.
* * *
Depois de fazermos junção, em Milão, com os nossos companheiros vindos via
Mediterrâneo, transpusemos a fronteira da Itália e da Áustria, ou melhor da ex-
Áustria, daquele tempo, porquanto acabava de ser anexada por Hitler à “grande
Alemanha”. Nas cidades por onde passávamos mal víamos as paredes das
casas, de tanta bandeira vermelha com a cruz gamada no centro. O estribilho de
“Heil Hitler!” era ouvido milhares de vezes por dia, até nos mais primitivos
botequins. A saudação fastidiosa era repetida à chegada e à saída de qualquer
freguês.
* * *
Não vou entediar o leitor com a descrição das margens do “Danúbio Azul” — que
aliás só nos apareceu como verde-cinzento. Passamos mais duma semana na
pitoresca cidade de Budapest. Na histórica “Praça dos Heróis” assistimos à
grande apoteose eucarística. Em Buenos Aires havia eu ouvido falar o então
cardeal Eugenio Pacelli com tamanho desembaraço como se nascera na terra
lendária do Cid. “Es de los nuestros!” diziam entusiasticamente os argentinos.
Em Budapest subia ele à tribuna, como Legado Pontifício, com a mesma
segurança e firmeza e, sem usar tiras escritas, falava em magiar (húngaro) uma
hora inteira, com tamanha espontaneidade e fluência como se nunca em sua
vida falara outra língua. Não entendi uma só palavra dessa língua estranha, mas
os meus amigos húngaros vibravam de entusiasmo pelo conteúdo dos discursos
do futuro Papa Pio XII. Quando Núncio Apostólico em Berlim manejava ele com
a mesma mestria a língua de Goethe, dirigindo o seu baixel com acerto por entre
os recifes da mais moderna terminologia técnica germânica. No Congresso
Eucarístico de Dublin falava o cardeal Pacelli o inglês como se fala às margens
do Tâmisa. No alto do Corcovado ouvi-o exprimir-se em nosso suave linguajar
brasileiro; apenas a curva traiçoeira do nosso “til” desafiava a flexibilidade
glossológica do hábil orador.
De Budapest enviei, em nome da Cruzada da Boa Imprensa e da excursão, uma
mensagem radiofônica aos nossos amigos no Brasil.
Na “Praça dos Heróis” flutuavam as bandeiras de todas as nações, à exceção
da Alemanha e da Rússia. Hitler proibira os “arianos” de participarem do
Congresso Eucarístico e mandara fechar as fronteiras. Entretanto, como havia
milhares de alemães para além das divisas do Reich, não faltou quem
representasse os 20 milhões de católicos alemães. Faltava, porém, um orador
alemão, não porque não houvesse, mas porque seria politicamente perigoso ou
imprudente alguém assumir essa responsabilidade, em vista das possíveis
represálias que Hitler exerceria contra pessoas da família dele na Alemanha ou
Áustria. Veio então ter comigo uma comissão enviada pela diretoria do
Congresso Eucarístico, solicitando convidasse, em nome do Congresso, a D.
João Becker, arcebispo de Porto Alegre, que se encontrava entre nossos
peregrinos e, como filho de alemães, falava bem a língua dos seus antepassados
germânicos. Foi o que fiz. D. João Becker improvisou uma alocução vibrante,
incisiva, sobre a liberdade da Igreja dentro do Estado. Não tocou em assunto
político, mas foi delirantemente aplaudido, tanto assim que havia por toda parte
maiores antipatias do que simpatias em face do Fuehrer, embora ninguém
ousasse externar publicamente os seus sentimentos, com medo das
consequências.
Em Viena, onde passamos alguns dias, pedi entrevista com o velho professor
Sigmund Freud. Infelizmente, estava o autor da “Psicanálise” doente e com
absoluta proibição médica de receber visitas. A anexação da Áustria ao Reich
não podia deixar de ter consequências funestas para ele, como teve para todos
os filhos de Israel.
Mais tarde, em Florença, tive interessante entrevista com Giovanni Papini. Como
eu passara em Nápoles um ano inteiro, pude sem dificuldade entreter-me com
ele em italiano, embora o autor da “Storia di Cristo” usasse, por vezes, termos
da gíria toscana cujo sentido eu antes adivinhava do que entendia. Havia eu lido,
num jornal do Rio, um artigo de Agripino Grieco sobre o físico de Papini; dizia o
conhecido crítico que a cara de Papini era tão feia que beirava ao obsceno,
estando quase a reclamar uma folha de parra. Grata foi a minha surpresa que,
quando, naquele silencioso palacete à rua Gherazzi, semi-oculto entre as
árvores, me vi face a face com um homem alto, desempenado, cabeça grande,
testa larga e nada monstruoso. Apenas quando falava percebia-se-lhe a posição
algo saliente e oblíqua dos dentes incisivos. Um dos seus olhos estava quase
totalmente extinto, e também o outro, injetado, ameaçava apagar-se. Papini
usava óculos com vidros da grossura de um dedo. Perguntei-lhe por que não
fora ao Congresso Eucarístico, em cujo programa figurava como orador. Papini,
com aquele sorriso-esgar todo seu deu uma resposta que só pode ser entendida
corretamente por quem leu o livro “Un uomo finito” (Um homem acabado). Tive
a impressão de que esse homem continuava intimamente revoltado contra a
sociedade, mesmo após a sua “conversão” ao catolicismo. De resto, a sua
“História de Cristo”, “Vida de Santo Agostinho” e, sobretudo, a sua recente obra
sobre o “Diabo”, mostram de sobejo a quantas anda o “catolicismo” desse
pensador solitário. Ofereceu-me um exemplar autografado do seu livro
“Testimoni della Passione”, como “ricordo di una visita fiorentina”.
Em Roma, depois de visitarmos as nossas duas Embaixadas, a do Quirinal e a
do Vaticano, e a Bruno Mussolini (o duce estava ausente de Roma) apresentei
ao secretário do Vaticano a carta que levava do cardeal Leme, e foi-nos marcada
audiência com Pio XI em Castel-Gandolfo, casa de campo do Papa, perto de
Roma. Falou-nos em italiano, em termos tão simples que todos nós, mesmo os
que não conheciam a língua do país, entendemos tudo.
Depois, fomos visitar as sugestivas catacumbas, onde nossos irmãos de fé cristã
viveram e morreram tão gloriosamente. O Coliseu, as igrejas, monumentos,
bibliotecas, museus — quantas impressões para todos nós!... Nápoles, Capri,
Vesúvio — para mim, gratíssimas reminiscências de anos passados...
35
A sós em Gênova. Na metrópole
francesa. Suas Majestades
Britânicas em Paris
Em fins de junho chegamos a Gênova. Mais de dois meses havia eu vivido numa
espécie de alta-tensão física e psíquica, porque era responsável pela sorte
daqueles 120 excursionistas confiados a meus cuidados, através de sete países
da Europa. Se algo de sinistro acontecesse a um deles, ou se rompesse uma
guerra no Velho Mundo, a minha situação seria horrorosa, por menos culpado
que eu fosse pessoalmente.
Finalmente, com a chegada ao porto de Gênova, estava virtualmente terminada
a minha difícil tarefa, porque, a partir desse ponto, segundo combinação prévia,
entregaria eu os nossos peregrinos ao sr. Italo Cavanna, que, nos esplêndidos
ônibus “Fiat” os conduziria pela Suíça e Alemanha até ao porto de reembarque.
Quanto a mim mesmo, deixei-me ficar sozinho na lendária terra natal de
Cristóvão Colombo. Finalmente, a sós, depois de alguns meses de barulho, lufa-
lufa e cuidados exaustivos. Que coisa benéfica é poder estar a sós! Sem
responsabilidades, nem cuidados, nem reclamações de cada dia e cada hora!
Abismei-me profunda e deliciosamente nessa imensa tranquilidade de estar
sozinho comigo... Fui dar uns giros pela cidade, avenidas, praças, museus,
campo-santo, sem destino certo, gozando em cheio a inefável doçura de estar
sozinho comigo e com a natureza em derredor...
Reembarcaria no vapor “Kosciuszko” em Kiel, Alemanha oriental; mas até esse
dia faltava ainda um mês inteiro. Resolvi aproveitar esse mês, tratando dos meus
gostos pessoais, visitando centros culturais do meu interesse.
Passei uma noite tranquilamente benéfica em Gênova, e, na noite imediata, às
10 horas, tomei o trem noturno para Paris, onde cheguei na manhã seguinte.
Felizmente estava sozinho no meu coupé de segunda classe. Como o banco era
um sofá macio, transformei-o numa espécie de leito e deitei-me. Daí a pouco
aparece o chefe do trem — e eu esperava alguma trovoada pelo fato de eu estar
deitado sem ter comprado leito no trem-dormitório. O chefe do trem, porém, não
era do tipo dos trovejadores: abriu lentamente a porta do coupé, acordou-me
suavemente, picotou minha passagem, desculpou-se gentilmente e fechou a
porta com muito cuidado, sem se esquecer de apagar a luz e puxar as cortinas
da porta de vidro para que eu pudesse dormir mais sossegadamente. Fiquei
profundamente comovido com a delicadeza desse funcionário ferroviário e refleti
longamente sobre a espontânea bondade que, por vezes, se oculta sob
aparências vulgares e onde estamos habituados a esperar aspereza e
brutalidade. Outro funcionário, mais convencido da sua excelsa dignidade e
importância, teria apelado grosseiramente para o artigo tal, parágrafo tal do
Regulamento Ferroviário; ter-me-ia dado ordem categórica de ficar sentado no
banco em vez de deitar, e, tempos depois, teria voltado para verificar se eu
obedecera às suas ordens sacrossantas, ou cometia o horroroso delito de dormir
num coupé de segunda classe, com gravíssimo detrimento do erário público ou
da companhia ferroviária.
Entretanto... “o sopro sopra onde quer”...
* * *
Paris, 24 de junho, festa de São João Batista, o precursor de Cristo e mártir do
seu ideal. Só no dia 29 de julho partiria o meu vapor, do porto de Kiel. Teria, pois,
um mês inteiro para entrar na alma da cidade da luz. Instalei-me numa modesta
pensão, perto do magnífico Bois-de-Bologne, vasto bosque amenizado de
pitorescos lagos e ensombrado de verdes frondes. Reavivei o meu francês e
pus-me a sondar os mistérios dessa cidade-sonho.
No meio de tudo isto, porém, me preocupava a idéia de terminar o meu livro
“Paulo de Tarso”, cujos originais dormiam tranquilamente no fundo da minha
mala, porque, havia meses, o barulho externo não me permitira o necessário
silêncio interno que a elaboração da obra me exigia. Passei horas e dias inteiros
nas grandes bibliotecas de Paris, lendo, pesquisando, a ver se algo de novo
encontraria sobre a fascinante personalidade daquele pequeno rabino e grande
apóstolo que pudesse aproveitar para o meu livro — esse livro que, daí a pouco,
ia pôr em polvorosa os arraiais sectários do Brasil clerical. Perlustrei também as
gigantescas livrarias. Encontrei-me com alguns dos corifeus da literatura
gaulesa. Toda tarde, ia ao museu do Louvre, ou ao esplêndido “Palais des
Decouvertes”, à catedral de Notre-Dame, à igreja de Mont-Martre, de Madeleine,
às Tulherias, ao museu de Grevin, à magnífica Praça de Ia Concorde, de l’Etoile,
onde arde a pira permanente em homenagem ao soldado desconhecido.
Inúmeras vezes passei horas a fio no interior do Louvre, mas não vi metade das
suas maravilhas. Fascinava-me sobretudo o pavilhão relativo à história e
arqueologia do Egito, os sarcófagos milenares, a sugestiva rigidez das suas
múmias, a metafísica placidez daqueles rostos que ainda pareciam aureolados
da misteriosa luz do espírito que, um dia, os iluminara.
Mais uma vez, e com mais veemência do que nunca, tornou a estremecer-me
pela alma e pelos nervos a estranha afinidade que eu sentia dentro de mim com
essas venerandas figuras das margens do Nilo, que em seus olhos abertos e
sem pupilas pareciam ter algo da firmeza das pirâmides, do enigmático da
esfinge, da sabedoria de Ísis, do divino mistério da efígie velada de Saís... Foi-
me dito por quem julgava ser clarividente que eu, em milênios idos, fora egípcio,
ou beduíno, e quando esse tal viu as figuras de camelos e beduínos que exornam
as paredes do meu cubículo, viu-se corroborado nessa sua asserção; um desses
silenciosos nômades prostrado nas areias do deserto em adoração a Alá, disse
ele, era um dos meus parentes daquelas épocas remotas...
* * *
No dia 19 de julho, chegaram a Paris “Suas Majestades Britânicas”. Lufa-lufa de
preparativos, semanas a fio. Bandeiras, arcos de triunfo por toda parte. Era
necessário que as duas grandes nações, a do continente e a das ilhas,
cimentassem rijamente a amizade destinada a resistir ao mais violento embate
hostil de que há memória na história da Europa. E resistiu até ao presente dia,
embora se haja desdobrado sobre a França o luto nacional da derrota. Na alma
do povo e no espírito dos melhores elementos do próprio governo continua a
arder o fogo sagrado da mesma simpatia. No dia em que o sopro da liberdade
varrer essa espessa camada de cinzas obrigatórias, ver-se-á romper em vívida
chama a brasa latente...
Os três dias que “Suas Majestades Britânicas” passaram em Paris foram dias
atrapalhadíssimos para o povo em geral — esse povo que nada viu do rei Jorge
nem da rainha Elizabeth; pois, na cultíssima Europa, todo soberano tem de ser
eminentemente invisível, como um fantasma de outros mundos, para não ser
varado de balas ou punhais. Todas as grandes praças e avenidas da capital
estavam rigorosamente isoladas, interceptadas por dois cordões de soldados de
arma embalada. Metralhadoras em todas as esquinas. As sacadas e plataformas
de todos os edifícios que davam para as avenidas onde passariam os ilustres
visitantes, ocupadas pela força pública, a própria torre Eiffel não ficara
esquecida. É que não faltava em Paris quem aproveitasse a primeira
oportunidade para lançar uma bomba sobre a cabeça dos monarcas. Nos
bondes, nos ônibus, no Metrô (bondes subterrâneos), por toda parte ouvia eu
censuras abertas, por vezes violentas, ao governo francês pelo fato de gastar
milhões de francos para essa visita. Também, como podia a “Frente Popular”,
socialista, ver com bons olhos tamanha homenagem prestada a essas relíquias
do monarquismo medieval? Voitá! c’est pour monsieur George!... c’est pour
madame Elizabeth!” — dizia, desdenhosamente, um senhor, atrás de mim, num
bonde, mostrando ao companheiro um dos enormes arcos de triunfo erguido em
honra ao “senhor Jorge” e à “senhora Elizabeth”, como ele apelidava o régio
casal.
É incrível a liberdade de pensamento e de palavra que reina — ou reinava — na
França. Quem dissesse, em Berlim, a décima parte do que eu ouvi dizer em Paris
contra as medidas do governo, já estaria à sombra do xadrez, ou, mais
provavelmente, sete palmos debaixo da terra, com o coração e o crâneo varados
de balas...
Não tivesse estalado na Palestina, precisamente nesse tempo, o sangrento
conflito entre judeus e árabes, teria eu embarcado a bordo do primeiro vapor em
demanda de Jaffa, para visitar a terra natal de Jesus Nazareno, e, depois,
internar-me pela Ásia Menor, seguindo parte do itinerário do seu maior discípulo,
cuja biografia estava terminando. Cilicia, Panfilia, Pisídia, Galacia, Efeso; depois,
Atenas, Corinto, Filipes — que plano sedutor. Mas os insurrectos da Palestina
não respeitavam sequer salvo-conduto do governo britânico. Somente carros
blindados lhes incutiam respeito. Abandonei, por então, essa minha idéia
querida, na certeza de que em 1940, por ocasião do Congresso Eucarístico
Internacional de Nice, ia realizá-la. Entretanto, o homem põe e Deus dispõe — e
Hitler descompõe...
Frustrado este plano, retomei, em fins de julho, o meu itinerário, cruzando a
França, a Bélgica, passando uns dias em Berlim, onde a vida me custava
diariamente mais de 100 cruzeiros, mesmo nas condições mais modestas. Fui a
Hamburgo, onde a vida é mais democrática. Todas as tardes, ao pôr do sol, dava
o meu passeio solitário ao longo do grandioso e esplêndido porto, que, a estas
horas, deve estar reduzido pela “RAF” a uma imensa ruína...
Em Kiel, o maior porto militar da Alemanha, estive apenas dois dias,
contemplando, de longe, as gigantescas instalações de Krupp, filial das de
Essen; vendo boa parte da soberba esquadra germânica ancorada ao longo das
fortificações do cais ou no meio das águas tranquilas. Submarinos descansavam
à flor d’água ou manobravam misteriosamente. O ininterrupto sussurro de
flotilhas aéreas a cortar o céu estival — tudo isto parecia pressagiar algo de
sinistro, algo de trágico... Mais um ano e pouco — e romperia a pavorosa
conflagração...
Cortamos, pelo canal de Kiel, todo o pescoço da península cuja cabeça se
chama Dinamarca. Mas que vale uma cabeça sem pescoço?...
Mas do Norte... Canal da Mancha... Adeus, França! Adeus, Inglaterra!...
Mais uns dias — e adeus, Europa, que te vais afundar num oceano de sangue,
de lágrimas e de lama!...
Mais uma semana — e adeus, Dacar!... Salve, imensidade azul do Atlântico!
36
De Roma, Paris e Berlim — aos
sertões do Brasil. Cortando o sertão.
De Teresina a Petrolina
em caminhão
Quando, em agosto de 1938, depois de uns quatro meses de ausência na velha
Europa e sobre o dorso do Atlântico, cheguei ao Rio de Janeiro, achei a nossa
Pátria três vezes mais bela, mais humana e querida do que antes. A vida, na
capital da República, me fazia lembrar algo de suave e bucólico, assim como
roça, campo, natureza, sítio... A “cidade maravilhosa” afigurava-se-me uma
grande aldeia. Os homens me pareciam mais humanos do que na Europa.
Durante a minha ausência, saíra do prelo a segunda edição do meu “Novo
Testamento” — parto laborioso, mas o filhinho sempre nascera mais ou menos
viável e disposto a correr mundo — 10.000 exemplares encadernados, uma
fortuna e um pesadelo... Dívida pesadíssima nas oficinas gráficas... Ominosas
duplicatas que só me faziam lamentar uma coisa: não possuir forças de Josué
para fazer parar esse sol fatídico que, dia a dia, aproximava o prazo do
vencimento...
Eu, que andava com a cabeça cheia de planos ultra-espirituais e hiper-
intelectuais; eu, que vinha dos grandes focos da cultura milenária — não tive
outro remédio senão recair no odioso prosaísmo de todos os dias e afundar-me
novamente na preparação e no projeto de publicar a edição do “Novo
Testamento”. Do contrário, era falência certa, protesto de letra, desmoralização
pública.
No Rio não encontrei o meu jornalista português. De regresso do lindo passeio
à Europa, que eu lhe pagara integralmente, fora fazer 15 dias de “férias” no sítio
— descansar do descanso... Voltou, finalmente.
Daí a pouco, embarquei para o extremo norte, com alguns milhares de “Novo
Testamento” e outras edições da Cruzada.
Nesses anos, mais do que nunca, criei fama de “mercantilista”, “negociante”,
“judeu”, e, mais ainda de “protestante” pelo fato de dar importância aos
Evangelhos e querer difundi-los por esse Brasil afora.
Tomara que um desses displicentes censores fizesse uma só das viagens que
eu fiz às dezenas, pelo interior do nosso hinterland e pelas ínvias florestas do
norte! Creio que estaria curado radicalmente, e para sempre, da sua opinião.
Desta vez, de regresso de Roma, Viena, Budapest, Paris e Berlim, afundei-me
bem em pleno sertão bruto — onde “meu boi morreu”... Comecei meu penoso
raid em Belém do Pará. Daí desci para São Luís do Maranhão, Codó, Caxias.
Entre Caxias e Teresina (nesse tempo, só até Flores, defronte a Teresina), há
um trenzinho pré-histórico, cujo horário se resume nisto: “Sai quando quer e
chega quando pode” — com exceção dos dias em que nele viaja o secretário do
Ministério da Viação. De hora em hora, mais ou menos, tem de parar a fim de
apagar o fogo dos “bronzes” incandescentes e esperar o tempo necessário para
esfriarem. Nesses intervalos, os passageiros dão uns passeios pelas caatingas
circunvizinhas. Num desses passeios, enquanto os “bronzes” esfriavam aos
poucos, descobri, no oco duma árvore retorcida, um ninho de abelhas, dessas
pretas que não têm ferrão. Armado apenas dum bom canivete, consegui abrir
parcialmente a entrada do ninho, mas sem atingir o precioso mel. Levei porém
boa quantidade de cera preta e cheirosa. Como se vê, há muito mal que vem
para bem... Só mesmo um americano desumanizado podia inventar aquela frase
estúpida de que time is money. O tempo não é ouro nem prata — o tempo é vida,
e a vida é para ser vivida. A vida não vale pelo que produz — vale pelo que é.
Assim pensam todos os homens sensatos, entre eles o próprio Jesus de Nazaré.
Ninguém me prova que mais valeria a minha vida se, em vez de furar mel de
jataí no sertão maranhense enquanto esfriavam os “bronzes”, eu tivesse
acumulado montanhas de money num desses escuros e infectos escritórios das
nossas cidades onde agoniza a esfarrapada retaguarda da vida humana... O mal
foi apenas não ter eu atingido o mel, devido à fragilidade do meu canivete — e
por terem os “bronzes” do trem esfriado muito depressa, obrigando-me a
reembarcar no trenzinho pré-histórico...
Teresina é para mim uma das cidades mais simpáticas, certamente não por
causa do calor escaldante, mas por causa do espírito do povo e da avidez do
mundo intelectual. Desde o princípio, tenho encontrado na capital do Piauí
ótimos auditórios, quer na Faculdade de Direito e no Clube dos Diários, quer no
Teatro Sete de Setembro, no Ginásio ou no esplêndido salão da atual Sociedade
de Medicina. Os homens têm verdadeira fome e sede de ouvir. O Colégio do
Sagrado Coração de Jesus punha sempre à minha disposição um grupo de
“andorinhas” 1 de asas fortes e sempre dispostas a voar pelas alturas cerúleas
do idealismo apostólico.
1. “Andorinhas” — Costumava dividir as moças em andorinhas e galinhas. Aquelas eram as que
estão dispostas a voar pelas excelsitudes dos trabalhos apostólicos, e me têm ajudado
imensamente na difusão das idéias e dos ideais do Cristianismo. “Galinhas” eram as que só
gostavam de ciscar nas areias profanas dos divertimentos e das vaidades naturais, sempre com
mil e uma desculpas para não erguer vôo — bem como galinhas pesadonas, que têm asas para
não voar...

Mandara eu para Teresina 50 exemplares do Novo Testamento — pediram mais


100. Nessa cidade que só tinham saída livros de alto intelectualismo, ao passo
que literatura piedosa e romântica só encontrava aceitação em certas rodas.
Terminado o meu trabalho de conferências e organização em Teresina, surgiu
para mim um problema. D. Hugo Bressane de Araújo, então bispo da Cidade do
Bonfim, no sertão da Baía, pedira-me com insistência que fizesse conferências
na diocese dele. Tenha o leitor a bondade de tomar o mapa e localizar Bonfim.
Verá que entre Bonfim e Juazeiro da Bahia há uma estrada de ferro. Defronte a
Juazeiro, sobre a margem esquerda do rio São Francisco, no sertão de
Pernambuco, está situada Petrolina. De Teresina a Petrolina tracemos uma linha
reta, simbolizando uma viagem de poucos dias. Se, pelo contrário, eu tomasse
o vapor, teria de voltar primeiro a São Luís do Maranhão (com os “bronzes” em
fogo), esperar dias intermináveis por um vapor, rodear todo o litoral do Maranhão
até à Baía, tomar o trem na cidade do Salvador e daí a dois dias, mais ou menos
vivo, chegar a Bonfim. Levaria mais duma semana nessa viagem.
Resolvi, pois, ganhar tempo gastando forças e sacrificando comodidades. Tive
sorte. Apanhei um caminhão de carga que estava com viagem marcada para
Acauã, estaçãozinha sertaneja para lá de Petrolina, à qual a ligavam as paralelas
dum ramal ferroviário.
Quando descobri o dito caminhão, já estava a boleia tomada. O dono do veículo
teve a gentileza de colocar por detrás da boleia uma tábua solta e sem encosto,
já se vê, onde eu e mais dois companheiros de suplício fomos tomar assento —
para dois dias e duas noites...
E abalamos, lá pelas 5 horas da tarde, rumo ao sertão bruto...
O que vivi e sofri, nessas 40 e tantas horas, não se pode exprimir com vocábulos
humanos. Entre Teresina e Petrolina não há estrada de rodagem, nem
propriamente caminho algum que tão pomposo nome mereça. Nunca andou
enxada ou picareta por essas bandas virgens de cultura. O caminho é feito de
cada vez, à força de pneu e investidas de carro de assalto, derrubando árvores,
focinhando nos barrancos, rolando pelos declives, levantando poeira pior que
cortina de fumaça lá na belicosa Europa, a tal ponto que muitas vezes eu perdia
de vista, por muito tempo, meu companheiro de tábua solta. Esta mesma tábua,
como que possessa de maus espíritos, salta, corcoveia, escorrega, foge, ora
para a direita, ora para a esquerda, já para a frente, já para trás. O passageiro
faz o possível para segurá-la e para manter o contato entre a tábua e a respectiva
parte almofadada do corpo, manobra essa nem sempre fácil de realizar. Não
creio que Deus, na sua imensa justiça e bondade, deixe de perdoar todos os
pecados aos que sofreram esse pavoroso purgatório.
Aguentei uma noite e um dia na tábua endemoninhada. Na segunda noite, de
exausto e sonolento, deixei-me cair sobre a carga — uns sacos cheios não sei
de que — e consegui dormir com todos esses choques e solavancos; e enquanto
dormia, segurava-me instintivamente com ambas as mãos nos sacos, a fim de
não ser jogado para fora do caminhão e desaparecer na escuridão das
caatingas.
Não encontramos água potável. Toda a água, nessa zona, é salobra, porque o
subsolo é salitroso. Eu, ainda que infenso a tudo que seja álcool, levava comigo,
por precaução, uma garrafa de caninha, para tirar o mau gosto a certas águas e
matar os micróbios e as amebas que nela habitassem. Sabia o que é febre
amebiana, porque, em outra ocasião, já me levara às portas da morte. Não
fossem os meus planos e as dívidas da Cruzada, teria eu gostado de morrer
nesses sertões. Seria a morte mais digna e bela para um bandeirante da
imprensa.
Era tempo de prolongada seca. Rolávamos em pleno saara. Só de longe em
longe víamos umas folhas verdes. Para o almoço e jantar procurávamos uma
“pensão” nos pequenos povoados que, aqui e acolá, interrompiam a imensa
monotonia. Carne de sol, feijão, arroz, farofa, passoca — eis o nosso cardápio
habitual. Verdura — nem sombra. O sol mata tudo. Passei um dia sem comer,
porque não podia engolir essas comidas secas e insípidas.
O nosso condutor parava demais nos botequins. É vício do nortista tomar um
cafezinho em toda e qualquer bodeguinha que encontre à beira da estrada. Se
perdêssemos o trenzinho de Acauã a Petrolina, estávamos fritos. Sabe Deus
quando teríamos outro!
Nosso condutor não tomava juízo. Caninha, café, compadres, comadres — eram
os grandes inimigos do progresso. De resto, para aguentar 40 horas de trabalho
ininterrupto, só mesmo nervos de aço e músculos de cimento armado.
Eis senão quando assoma a estaçãozinha de Acauã — e no mesmo instante
ouvimos o apito estridente da partida do trem. Perdemos o trem! perdemos o
trem!
Qual nada! O nosso chauffeur embalou o seu carro de assalto e atirou-o
brutalmente para a frente, cortando o trilho da ferrovia — e parou. Parecia uma
tentativa de suicídio coletivo. Mas aquele caboclo sabia onde tinha o nariz.
Que havia de fazer o trenzinho senão parar? E parou mesmo, com a maior
naturalidade, assim como um ônibus quando se faz sinal.
Saltamos do caminhão para o trem — sem passagem, está visto. Estávamos
infinitamente sujos: 40 e tantas horas de chuva de poeira, misturada com muito
suor. De nós, propriamente, nada mais se via; éramos uma grossa camada de
barro, espécie de fantasmas. Olhos, ouvidos, boca, nariz — tudo encharcado.
Que dirão de nós os passageiros? Pensava eu com os meus botões (quer dizer,
com os poucos que sobravam do naufrágio geral). Mas, quando pusemos pé no
carro de primeira classe, ninguém estranhou — porque o trenzinho estava ainda
muito mais sujo do que nós... Não havia água. E chegamos a Petrolina assim
mesmo como havíamos deixado o nosso “carro de assalto”.
Em Petrolina levei horas inteiras debaixo do chuveiro e gastei todo o sabonete
que havia, para repor o meu Eu material num estado mais ou menos decente.
Era sábado. O velho e piedoso bispo D. Malan, já então falecido, desentranhara
desse árido sertão pernambucano maravilhas de beleza e conforto. Levantara
aquela floresta branca de colunas góticas da esplêndida catedral. Mandara
construir um grande hospital, um espaçoso colégio, e ainda um confortável
palácio episcopal. Com que recursos? É o que ninguém sabe dizer. Querer é
poder! O povo afirma que D. Malan era taumaturgo. Sei que era homem
profundamente espiritual, e por isso mesmo dominava todos os problemas
materiais.
Com D. Idílio Soares, então bispo de Petrolina, não me encontrei. Estava
ausente. Era muito meu amigo nesse tempo. Hoje — só Deus sabe. É este um
dos pesares que esta campanha difamatória dos últimos tempos me dá: ver tão
iludidos esses amigos que me tinham sincera amizade. Só no juízo final voltarão
a pensar de mim o que pensavam a princípio — é esta a minha consolação.
Talvez já depois da morte, se é que a alma fora do corpo conhece o interior de
pessoas ainda vivas...
Deixei em Petrolina representantes da CRUZADA, e, no dia seguinte, transpus
o grande rio São Francisco (da primeira vez foi entre Propriá e Penedo) fui a
Juazeiro da Baía. Era domingo, 10 horas da manhã. Foi imensa e gratíssima a
surpresa que me esperava. Quando transpus o limiar da igreja, ouvi cantar pela
primeira vez o lindíssimo “Hino da Cruzada da Boa Imprensa”. O texto foi feito,
a pedido meu, por D. Aquino Correia, o arcebispo-acadêmico, e a parte musical
pelo P. João B. Lehmann. Nunca tivera ensejo para ouvi-lo cantar e tocar. A
nossa correspondente da Cruzada em Juazeiro tivera a delicada e feliz
lembrança de fazer celebrar a minha primeira visita a esta cidade baiana com o
hino da minha querida Cruzada. E com isto me deu maior prazer do que se me
entregasse contos de réis, ou mandasse derramar sobre mim meia dúzia de
discursos e poesias.
Subi ao púlpito e falei ao povo reunido — ex abundantia cordis...
37
Vozes da imprensa brasileira.
Apoteoses ao “herói nacional da
imprensa católica”. Apreciação do
meu “Novo Testamento”
Para que o leitor possa melhor avaliar o absurdo e monstruoso da campanha
que certos elementos do clero abriram contra minha atividade de escritor e
conferencista católico através do Brasil, peço vênia para trasladar alguns dos
tópicos que a imprensa brasileira, quer profana, quer católica, deu sobre minha
pessoa e atividade. Para não encher volumes, tenho de resumir o mais possível
essas notícias; o leitor que as quiser ler na íntegra poderá consultar as fontes
que passarei a indicar, e muitas outras que estão comigo.
O grosso das minhas viagens, entre Porto Alegre e Manaus, ocorre entre 1935
e 1941. Nesses cinco a seis anos percorri todos os Estados, à exceção dos de
Goiás e Mato Grosso, visitando cerca de 500 cidades e vilas, realizando um total
de mais ou menos 2.000 conferências sobre assuntos de palpitante atualidade,
geralmente de caráter religioso, filosófico ou psicológico, como sejam: Deus,
Jesus Cristo, Evangelho, alma, imortalidade, pecado, redenção, graça, Ação
Católica, Imprensa Católica, etc.
Ao iniciar essas viagens, o Dr. Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), então
presidente nacional da Ação Católica, entregou-me uma carta de recomendação
a todos os católicos do Brasil, nomeando-me representante da revista católica
“A Ordem”, e da livraria católica “Biblioteca Anchieta”, entidades por ele dirigidas.
Dessa carta destaco as seguintes palavras: “Aos católicos brasileiros a quem o
Revmo. Padre Dr. Huberto Rohden se apresentar, como representante da nossa
revista “A Ordem”, bem como da “Biblioteca Anchieta”, rogamos instantemente
apoiem e atendam a esse denodado servidor das letras católicas no Brasil, na
certeza de que, meditando um pouco na necessidade da elevação da nossa
inteligência católica, ninguém lhe negará o concurso necessário ao bom
desempenho da sua nobre missão. — Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1935”.
* * *
Após as minhas conferências em Aracajú, Sergipe, escreveu “A Cruzada” (1-9-
35), jornal católico dirigido por um sacerdote: “Esteve entre nós o culto e sábio
P. Dr. Huberto Rohden, uma das figuras de maior projeção no cenário da
intelectualidade brasileira. Sacerdote cônscio, perfeitamente, da necessidade da
boa imprensa para a cristianização das inteligências, tem ele feito da pena o
grande meio de difusão da verdade evangélica. Falar, hoje em dia, do patrimônio
cultural do P. Huberto é quase dispensável, visto como seu nome é pronunciado
com respeito não só por crentes como também por descrentes. Possuidor dum
estilo atraente e de uma bagagem bem notável de conhecimentos, o P. Rohden
sabe aliar a profundeza das idéias à beleza sem par duma forma admirável. Para
conhecer-se o valor desse sacerdote ilustre, é bastante dizer-se que já publicou
32 (trinta e dois) volumes, cada qual mais cheio de doutrinação e ensinamentos.
Quão bom seria que os livros do P. Huberto tivessem sempre um lugar de
destaque nas estantes de católicos e de acatólicos! (segue uma lista de títulos
dos meus livros). São livros de tal mérito que somente quem os leu para estudar
pode avaliar quanto bem estão fazendo ao Brasil inteiro. “A CRUZADA”, que vê
na pessoa do P. Dr. Huberto Rohden um trabalhador incansável da causa
santíssima de Deus Nosso Senhor, deseja que esse ilustre membro do clero
brasileiro continue sempre a disseminar a verdade cristã, através das páginas
luminosas dos seus volumes imortais”.
Note-se que, poucos anos depois, todos esses livros foram oficialmente
proibidos como perniciosos à fé católica pelo Sr. Arcebispo e Bispos de São
Paulo e pelo Sr. Arcebispo de Porto Alegre, ao todo 15 prelados brasileiros, que
em documentos oficiais divulgados do púlpito, pelo rádio e pela imprensa,
fizeram crer ao povo católico das suas respectivas dioceses que todos esses
livros que tanto bem estavam fazendo ao Brasil, eram livros perniciosos à fé
cristã. A “Revista Eclesiástica Brasileira”, órgão oficial do clero, e dezenas de
outros órgãos da imprensa católica dirigida pelo clero, endossaram esse parecer,
e diversos órgãos católicos acrescentaram que esses livros eram “perversos,
heréticos, diabólicos, venenosos, infames”, e que seu autor era um “apóstata,
excomungado, traidor da igreja, herege, Judas, desertor, demolidor sorrateiro da
igreja, cretino, cabotino, lama” (Cf. jornais católicos “O Lutador”, de Manhumirim,
Minas: “A Imprensa” e “O Domingo”, de São Paulo; “A Voz do Pároco”, de
Limeira, São Paulo; “Legionário”, de São Paulo, diversos números
correspondentes aos anos de 1942/43).
* * *
Com data de 3-9-35, escreveu o jornal católico “O Semeador”, de Maceió,
Alagoas, o seguinte: “Acha-se em Maceió o ilustre escritor P. Huberto Rohden,
cuja fama já era notória entre nós. O P. Rohden é autor de obras prodigiosas de
apologética e ascetismo (seguem diversos títulos). A obra da divulgação de boa
imprensa, tão recomendada por Sua Santidade Pio XI, tem no ilustre apóstolo
brasileiro um grande batalhador. Também sua estada entre nós tem outro fim. É
de organizar a Ação Católica intelectual entre nós fundando o “Centro Dom Vital”.
Em sentido análogo se manifestou o diário profano “Jornal de Alagoas”, com data
de 3-9-35.
“A Tribuna”, de Recife, Pernambuco, dirigida, com aprovação eclesiástica, por
um grupo de jovens católicos, em 5-9-35, escreveu: “O Recife hospeda desde
ontem o Revmo. Dr. Huberto Rohden, consagrado escritor e jornalista católico
brasileiro. O notável homem de letras patrício percorre atualmente os Estados
do Norte em missão da propaganda da “Cruzada da Boa Imprensa”, instituição
que visa a mais ampla difusão da literatura católica no Brasil. A “Cruzada da Boa
Imprensa”, da qual o ilustre sacerdote é diretor, é uma instituição plenamente
vitoriosa”.
“A Imprensa”, de João Pessoa, Paraíba, jornal católico dirigido por distinto
sacerdote, dando longa notícia da minha estada nessa capital, escreve, em 12-
9-35; “O Padre Rohden é um incansável batalhador em defesa da literatura cristã
do Brasil e fino doutrinador de numerosos livros, de inestimável valor
apologético. Fundou, no Rio de Janeiro, a “Cruzada da Boa Imprensa”, que vem
poderosamente influenciando na formação intelectual das novas gerações. O P.
Rohden é um espírito vivaz e apostólico cujos labores são sempre informados
pelos nobres ideais da glória de Deus e de sua Igreja”.
No dia a mesma folha católica anuncia diversas conferências, entre elas a
seguinte: “O padre Huberto Rohden fará hoje, no Palácio do Carmo, uma
conferência especial ao clero, às 19 horas, para a qual estão convidados todos
os sacerdotes que se encontram nesta cidade. 2 Comparecerá à aludida palestra
o Exmo. Sr. Arcebispo Metropolitano”.
2. Casualmente coincidiu a minha estada em João Pessoa com as solenidades de 30.º dia da
morte de D. Adaucto, motivo por que havia grande número de sacerdotes na dita capital.

Em 14-9-35 escreveu o jornal católico “A Ordem”, órgão da diocese de Natal, Rio


Grande do Norte, o seguinte: “APROXIMA-SE A HORA DE DEUS! OS
CATÓLICOS BRASILEIROS VÃO ENTRAR EM NOVA FASE DE ATIVIDADE!”
E dá longa notícia sobre a minha próxima chegada. No dia 18, dia após a minha
chegada, dá o mesmo jornal católico outra notícia em que diz: “O Padre Rohden
inicia no Brasil um movimento novo, neste século de bandeirante do Evangelho,
cavalheiro da Cruzada da Boa Imprensa, o qual será imitado por outros
sacerdotes que percorrerão sem cessar todas as capitais e municípios do país.
(Depois de falar dos meus livros acrescenta) dirige atualmente a recém-fundada
CRUZADA DA BOA IMPRENSA, com sede no Rio de Janeiro, e pretende
estabelecer uma formidável rede de filiais em todas as cidades e vilas do Brasil,
por onde irão circular em breve os melhores livros que se publicam no país e no
estrangeiro.
O Padre Dr. Huberto Rohden está hospedado na residência diocesana e
demorar-se-á alguns dias nesta capital”.
Essa “formidável rede de filiais” foi, de fato, estabelecida em cerca de 500
cidades e vilas do Brasil, e dentro de mais um ou dois anos abrangeria 1000
localidades — quando, de improviso, em 1940, a minha obra tombou vítima da
famigerada “invidia clericalis” e da ganância de uns “amigos”, dos quais nos livre
o Senhor! Entretanto, as centenas de milhares de volumes de sã literatura cristã
que a CRUZADA espalhou nesses 5 a 6 anos, fizeram e continuam a fazer um
grande bem espiritual às almas, apesar de proibido por 15 prelados como
“perniciosos à fé católica”. Entretanto, seja dito em honra do clero e do Brasil
católico, a legítima autoridade eclesiástica não proibiu jamais um só dos meus
livros, nem jamais me deu ordem de mudar de idéias ou de vida. A Cruzada da
Boa Imprensa nasceu, viveu e morreu na mais absoluta obediência à legítima
autoridade eclesiástica, e nunca aberrou por um tris das normas que, em
fevereiro de 1935, lhe foram traçadas pelo grande cardeal Leme, como este
mesmo, pouco meses antes da sua morte, em 23-5-1942, confirmou
expressamente. Infelizmente, foi precisamente o jornal “A Ordem” que contribuiu
fartamente para a destruição da Cruzada da Boa Imprensa, talvez iludido pela
“asa negra” da imprensa católica no Brasil, de que falarei em outra oportunidade.
Ainda em 20-9-35 e dias seguintes voltou “A Ordem” a falar nas minhas
conferências na dita capital, dizendo entre outras coisas: “depois da
apresentação feita pelo Dr. Luís da Câmara Cascudo, o orador iniciou a sua
conferência, sob a forma de palestra, discorrendo com muita felicidade sobre o
problema da fé e da inteligência...
O Exmo. Sr. Bispo Marcolino Dantas esteve presente à conferência, fazendo-se
representar o Exmo. Sr. Interventor Federal pelo nosso companheiro Dr. Oto
Guerra”. “Foi uma conferência erudita e ao mesmo tempo ao alcance de todos.
Estudou as diversas concepções verdadeiras e falsas do catolicismo, que, para
ser sadio, precisa ser Cristocêntrico, isto é, fazer de Jesus Cristo, de Deus, o
centro da vida religiosa, e não hagiocêntrico, isto é, subordinar ou mesmo
igualar, na prática religiosa, a veneração aos santos com a adoração a Jesus,
como infelizmente sucede em muitos católicos”.
Como se vê, ainda nesse ano, 1935, um notável diário católico, com aprovação
eclesiástica, aprovava rasgadamente a minha atitude de batalhar pela
concepção Cristocêntrica da vida espiritual, quando, daí a poucos anos, esta
minha orientação, sobretudo quando corroborada pela grande edição do meu
“Novo Testamento”, foi uma das armas que assassinaram a Cruzada da Boa
Imprensa. Não foi, todavia, o clero católico do Brasil quem vibrou contra minha
pessoa e obra essa arma, foram os modernos “Demétrios” que, a exemplo de
seu célebre patrono em Éfeso (Cf. Atos, 19, 23 ss), acharam que a minha
campanha Cristocêntrica e não hagiocêntrica, acabaria por acarretar notável
prejuízo aos seus armarinhos de artigos religiosos.
“O Nordeste”, conceituado diário católico de Fortaleza, Ceará, publicou em 26-
9-35 o seguinte: “... O distinto itinerante viaja pelo setentrião brasileiro a serviço
da Cruzada da Boa Imprensa e do Centro Dom Vital, ambos com sede na capital
da República. Desempenha também a tarefa de que foi investido pelo líder da
Ação Católica, no Brasil, Tristão de Ataíde, de realizar nos Estados do Norte a
propaganda do Congresso Internacional de Jornalistas Católicos e da Exposição
Mundial respectiva, que se instalarão em Roma, no mês de abril do próximo ano.
O ilustre sacerdote, que é uma das altas expressões de cultura do nosso clero,
demorar-se-á em nossa terra alguns dias...”
“O Crato”, que se publica na cidade do Crato, Ceará, em outubro de 1935,
escreveu: “Figura de ascético e intelectual, o P. Rohden está empenhado numa
campanha honrosa, mas ingrata, qual a de fazer interessar a nossa gente pela
boa leitura. Despertar o gosto, num clima dessorado como o do Brasil, pelo que
é bom, é obra ciclópica. Tanto mais quanto sabemos da apatia do nosso povo,
em geral, pela leitura séria. Mas, o autor de “Maravilhas do Universo” é um moço
que confia em sua operosidade, e, em consequência, no avançar de sua obra”.
De regresso do sertão cearense, fiz nova série de conferências em Fortaleza,
sobre as quais disse o citado jornal católico “O Nordeste”, em 7-10-35, o
seguinte: “O salão de honra do Clube Iracema, gentilmente cedido pela sua
diretoria, apresentava uma regular assistência. À mesa tomaram assento, além
do conferencista, os Srs. Revmo. Monsenhor João Alfredo Furtado, Vigário Geral
da Arquidiocese e representante do Sr. Arcebispo Metropolitano;
Desembargador Ábner de Vasconcelos, presidente da Corte de Apelação; Dr.
Edgar Cavalcante de Arruda, Senador Federal; Dr. Leite Maranhão, Catedrático
da Escola Normal Pedro II, e Dr. Raimundo Araripe, presidente da Sociedade de
São Vicente de Paulo.
Monsenhor Alfredo Furtado, em breves palavras, fez a apresentação do
conferencista, que não era desconhecido, porquanto a sua valiosa bagagem
literária já lhe havia consagrado o nome como um representante da cultura
nacional”.
A palavra “Clube Iracema”, de Fortaleza, evoca em meu espírito algo de
profundamente emocionante e espiritual. Pela primeira e única vez em minha
vida apertei a mão, nessa noite, a uma legítima personificação das mais puras
glórias cristãs do Brasil — Irene Valente, de Aracati, alma mística e heroína da
caridade, cuja vida narrei, mais tarde, no meu livro “Irene”. Não a conhecia eu,
nesse tempo, nem jamais cheguei a conhecê-la mais de perto, pessoalmente,
porque ela, em 1936, com apenas 30 anos de idade, lá se foi para a pátria das
almas puras, onde, em espírito, vivia desde a sua “conversão”. Só quando me
caíram nas mãos os seus “Diários de Amor”, é que cheguei a saber da grandeza
dessa alma, cuja vida íntima me foi dado reviver, até certo ponto, à luz dessas
páginas. No meio daquele dilúvio de calúnias e impropérios que, nos próximos
anos, desabou sobre mim, arrasando a minha obra apostólica nacional e
destruindo a minha saúde e o meu bom nome, nunca se eclipsou no meu espírito
a visão suave de Irene, alma tão espiritual e heroica quão incompreendida e
descompreendida dos seus...
Em 19-10-35 lançou o Vigário Geral da diocese de Cajazeiras, Paraíba, um
convite em que dizia entre outras coisas: “O P. Rohden, que atualmente é uma
das mais robustas cerebrações científicas do Brasil Católico, faz jus à admiração
geral que o cerca, pelo valor da sua cultura, profunda e variada. Nome acatado
em todos os meios intelectuais do Sul e conhecido no Brasil inteiro, pelo fulgor
de suas magistrais conferências e pelo grande número de publicações dadas a
lume, em que ao cunho científico que sempre lhes empresta junta os primeiros
de uma linguagem castiça, o Revmo. P. Rohden, com sua conferência de hoje à
noite, na Matriz, há de prender, certamente, o auditório da nossa terra”.
Em 21-10-35, o Vigário de Campina Grande, Paraíba, convidou o público para
uma conferência minha, dizendo: “Hospedamos o R. P. Huberto Rohden, ilustre
sacerdote gaúcho, grande publicista e figura impressionante da Ação Católica
Brasileira...”
Em 12-10-36 escreveu “O Estado”, conhecido diário de Florianópolis, Santa
Catarina: “O ilustrado orador, consumado e notável escritor, tem sido muito
visitado pelos católicos e por inúmeros intelectuais admiradores das suas
virtudes cristãs e da sua inteligência... É uma das mais fúlgidas inteligências do
clero nacional”.
Notícias análogas foram dadas, no decorrer dos próximos meses, pela imprensa
de Itajaí, Joinville, Santa Maria, Cachoeira, Passo Fundo, Livramento, Santa
Cruz, Antonio Prado, Bagé, Curitiba, etc., por onde passei e onde realizei
diversas séries de conferências. Dentre centenas de notícias vai apenas esta;
do grande jornal “O DIA”, de Curitiba, Paraná, de janeiro de 1936: “O Padre
Rohden é nome sobejamente conhecido, não só nos meios religiosos do país,
como em nossa esfera intelectual, onde sua recente obra “Jesus Nazareno” foi
recebida com os melhores louvores. Trata-se de um religioso que reúne, em
harmonia perfeita, as peregrinas virtudes de padre e todas as qualidades de uma
inteligência e cultura de escol”.
O jornal católico “O Cruzeiro”, publicado na cidade do Rio Grande, escreve em
12-1-36: “É desnecessário, certamente, dizermos aqui que o P. Huberto Rohden,
nome sobejamente conhecido em todo o Brasil e até no estrangeiro, é eminente
publicista e orador, autor de um sem número de livros sobre variados assuntos.
Agora mesmo, acaba ele de publicar um alentado volume sobre “Jesus
Nazareno”, que, se preciso fosse, seria suficiente para consagrá-lo como uma
das mais marcantes figuras do intelectualismo brasileiro. Mas o glorioso autor
dessa obra já está consagrado de há muito no mundo das letras”.
Em 15-2-36 escreve “O Diário”, de Belo Horizonte, Minas Gerais, o maior e mais
conceituado diário católico do Brasil: “Conforme havíamos anunciado, chegou
ontem a esta capital o revmo. padre Huberto Rohden, grande escritor católico,
diretor da Cruzada da Boa Imprensa. O ilustre sacerdote vai percorrer o nosso
Estado, realizando conferências sobre Ação Católica, e tratará, em Belo
Horizonte, da organização de uma exposição de literatura católica, durante o 2.º
Congresso Eucarístico Nacional, a se realizar entre 3 e 7 de setembro próximo.
É desnecessário dizer aos leitores de O DIÁRIO quem é o revmo. padre Huberto
Rohden. Toda a gente o conhece através das suas obras literárias, apologéticas
e religiosas, consagradas pela crítica nacional e estrangeira. Alma apostólica,
convencida da necessidade da imprensa para a recristianização da pátria, o
padre Huberto Rohden pôs a sua pena aparada a serviço da Ação Católica.
Profundeza de conhecimentos, estilo leve e atraente, entusiasmo, eis os
principais predicados desse publicista. A sua vasta bagagem literária, toda ela
de ótima qualidade, atesta a operosidade desse trabalhador da boa imprensa.
(Segue um lista de títulos de obras minhas) O seu último livro “Jesus Nazareno”,
a mais moderna, original e completa biografia de Jesus Cristo em vernáculo, vem
recebendo os mais rasgados elogios da crítica indígena e das nossas
autoridades religiosas”.
Discorre, depois, o jornal sobre a organização da minha Cruzada da Boa
Imprensa, “que publica uma folha apologética com a tiragem de 100.000
exemplares mensais, que abrangem todos os Estados”; a Cruzada “promove a
mais ampla difusão da literatura católica em todos os seus aspectos”.
Tudo isto, não se esqueça o leitor, foi, poucos anos depois, negado
redondamente por esse mesmo jornal, que preveniu seus leitores especialmente
contra a leitura de “Jesus Nazareno”. Nem se diga que a subsequente campanha
visava minhas últimas obras, aliás aprovadas como as anteriores, “Paulo de
Tarso”, “Problemas do Espírito”, “Agostinho”, etc. Não, a campanha visava todo
e qualquer livro meu, como diz expressamente a proibição oficial e pública dos
14 prelados paulistas, de 26-11-1942 e a do Sr. Arcebispo de Porto Alegre, de
fevereiro de 1943. Acresce que este último prelado, ainda em janeiro de 1940,
numa circular dirigida ao clero da arquidiocese, havia recomendado
instantemente todos os meus livros, inclusive “Paulo de Tarso”, que ele acabava
de ler.
É profundamente deplorável que semelhante dualidade doutrinária tenha sido
lançada ao meio do povo católico do Brasil, desorientando-o completamente na
sua boa-fé e proibindo severamente como perniciosos dezenas de livros que,
por espaço de 10, 15, 20 anos, depois de expressamente aprovados pela
legítima autoridade, andavam nas mãos de milhares de leitores. Para mim, aliás,
não foi surpresa alguma essa campanha, organizada por um grupo de editores
católicos, todos eles sacerdotes de Ordens e Congregações religiosas
estrangeiras — editores, isto é, oficiais do mesmo ofício, disto não se esqueça o
leitor! Que esses meus colegas editores não tolerariam por muitos anos os meus
triunfos editoriais e essa apoteose de elogios que me tributava a imprensa
católica do país, isto eram para mim favas contadas desde o primeiro ano. O que
me surpreendeu não foi essa campanha da parte dos editores católicos, mas foi
o fato de se deixarem muitos Bispos e Arcebispos arrastar pela torrente,
reprovando explicitamente, em documentos oficiais e públicos, o que meus
legítimos superiores eclesiásticos haviam aprovado e continuavam a aprovar. A
atitude dos que declararam perniciosos os meus livros é, pois, acima de tudo,
um ato de rebeldia e indisciplina contra a legítima autoridade eclesiástica.
Estranho paradoxo! rebeldes difamam como rebelde aquele que não se rebelou!
Em 16, 18, 19, 20, 22, 23 e 27 de fevereiro do mesmo ano, dá “O Diário” católico
de Belo Horizonte extensas reportagens sobre as minhas conferências nessa
capital, bem como da entrevista que o secretário do grande jornal me pediu sobre
palpitantes assuntos do catolicismo brasileiro. Nessas longas referências à
minha atividade apostólica através do Brasil diz o conhecido diário católico de
Belo Horizonte mais ou menos tudo que de louvável se pode dizer dum sacerdote
e de um escritor católico — diametralmente o contrário do que, poucos anos
depois, foi dito pela imprensa católica sobre este “herege, excomungado,
apóstata, Judas, desertor, cabotino, cretino, lama” e sobre as minhas obras
“perversas, perniciosas, heréticas, diabólicas” (todas estas amabilidades foram
estampadas contra minha pessoa e obra, por sacerdotes católicos, em órgãos
de imprensa católica e sob o rótulo “com aprovação eclesiástica”).
Creio que nunca, nesses 400 anos de catolicismo brasileiro, foi o povo católico
do Brasil mais tristemente ludibriado por muitos dos seus pastores do que nesses
últimos anos. Como se esse povo fosse uma simples cobaia de laboratório,
criada para toda espécie de “injeções”!...
Nós próximos meses, até ao Congresso Eucarístico de Belo Horizonte, isto é,
cerca de oito meses, andei percorrendo grande parte desse imenso Estado de
Minas Gerais, difundindo o reino de Deus, pela palavra e por escrito, sem nunca
perceber nem um só centavo por meus trabalhos. Nunca ninguém me pagou
uma só viagem — nem eu o aceitaria, para não dar asa à idéia de que me
movesse alguma intenção interesseira. Pagava as minhas despesas com o
parco produto dos livros que os representantes locais da minha Cruzada
vendiam.
Terminado o Congresso Eucarístico Nacional, de Belo Horizonte, voltei ao Rio
de Janeiro, onde passei poucas semanas, atendendo a casos importantes no
escritório da CRUZADA DA BOA IMPRENSA, e, em meados de outubro do
mesmo ano, embarquei para o Nordeste, donde regressei só em janeiro de 1937.
Foi esta a maior viagem que fiz a serviço da imprensa e Ação Católica: 11 meses
quase contínuos, visitando, nesse período, quase 100 cidades, realizando
diversas centenas de conferências e organizando cerca de 50 novas agências
da Cruzada. De noite, e nas longas viagens de trem ou a vapor, continuava a
elaborar os meus livros, ou fazia revisão de provas tipográficas que me eram
remetidas do escritório da Cruzada. Felizmente, gozava eu, nesse tempo, duma
saúde de ferro; do contrário, não teria resistido a essa sobrecarga física e
intelectual. Entretanto, tudo me era possível “naquele que me confortava”. A
visão que ante meus olhos se estendia era por demais bela e gloriosa para
permitir qualquer cansaço ou desânimo: o reino de Deus, pelo conhecimento e
amor de Jesus Cristo, se ia estendendo cada vez mais, despertando verdadeiro
paraíso de alegria e felicidade em milhares de almas. Nunca vi tão
palpavelmente como nesses anos a verdade das palavras de Tertuliano, que
“toda alma é cristã por natureza”. A comparação dos anseios espirituais da alma
com o heliotropismo das plantas, símile usado em diversos livros meus, tornou-
se-me evidente nessas longas viagens pelos sertões do Brasil. A alma humana
tem um instinto essencialmente cristão, ou seja, divino. A maior e verdadeira
apologia da divindade de Cristo é esta: de a alma se sentir profundamente feliz
só quando iluminada por este sol divino.
“Ubi amatur non laboratur, et, si laboratur, ipse labor amatur” — estas palavras
de Santo Agostinho revelam uma verdade profunda: “Quem ama não sofre, e,
mesmo que sofra, ama o próprio sofrimento”.
Sofrer por um ideal é sofrimento, mas sofrimento mais delicioso que todas as
delícias sem ideal. Por isto, como expus mais tarde no meu livro “Por que
sofremos”, a solução do problema da dor, que tanto preocupa a humanidade,
não está na abolição ou diminuição dos sofrimentos, mas na sua sublimação por
meio dum ideal a cujo serviço se ponha esse inevitável sofrimento. Essa
subordinação da dor a um grande ideal, ou seja, a um grande amor (não há ideal
sem amor) é uma espécie de alquimia espiritual, que transforma no ouro puro do
gozo todas as coisas vis e ingratas da vida. O que eu tinha absorvido, em duas
vezes 30 dias de intimidade com Jesus Cristo e seu reino, dava-me coragem e
perseverança, apesar da certeza absoluta de que os meus trabalhos apostólicos
não somente não seriam reconhecidos pelos homens, apesar das apoteoses
momentâneas, mas que seriam, mais dia menos dia, interpretados às avessas,
hostilizados, execrados, caluniados — como de fato aconteceu. Desde que o
divino Mestre demandou o Calvário por sobre as palmas murchas do domingo
de ramos, deve todo discípulo dele passar do hosana ao crucifige — “para assim
entrar em sua glória”. Quem não compreende isto é analfabeto no reino de Deus,
embora seja doutor em todas as filosofias e teologias do mundo.
Hoje, anos após essa tempestade, aqui, em terra estranha onde escrevo estas
reminiscências, penso como sempre pensei, e, perfeitamente calmo como
sempre fui em face desse inferno de injúrias, calúnias e impropérios, dou graças
a Deus pelo bem que pude realizar no Brasil.
Embora pareça vaidade, quero transcrever nestas páginas mais alguns tópicos
da imprensa católica e profana do Brasil relativos à minha atividade pelo triunfo
do reino de Deus em nossa grande pátria. Os espíritos mesquinhos verão nisto
mesquinha vaidade — cada qual com seu igual! — mas os espíritos superiores
compreenderão o porquê destas citações, tanto mais que meus superiores
espirituais nunca reprovaram a minha atividade apostólica por meio da imprensa
e do livro. Não se trata de agradar ou desagradar; trata-se de apontar a milhões
de brasileiros o caminho único que os pode levar à verdadeira felicidade.
Em 3-11-1936, escreve o jornal católico “A Cidade”, de Recife, Pernambuco:
“Uma obra de grande alcance social é esta que, na hora presente, está
realizando no Brasil o padre Huberto Rohden, o bandeirante do bom livro. Há
cinco anos que este padre entendeu que o seu destino era fazer o apostolado
do bom livro. Armou-se em cavaleiro andante, com a pena em riste e percorre o
Brasil inteiro a falar sobre o livro, a dizer que se deve fazer propaganda do bom
livro em todas as cidades brasileiras, em todos os recantos do país...
Chamam-no o judeu errante que vive para o comércio do livro. E ele até se ufana
de sê-lo. Porque há uma diferença entre ele e o judeu: este vive para agenciar e
entesourar o dinheiro da sua atividade; o padre Rohden espalha o livro, vende-
o para fazer do ouro do livro um manancial que, crescendo sempre, vai levando
a todas as inteligências luz, mais luz.
Ontem eram alguns “Lampejos”, folha avulsa que ia correndo mundo e dizendo
alguma verdade oportuna àqueles em cujas mãos caía. Era o livro que se
espalhava modestamente entre alguns leitores de boa vontade.
Hoje são 180.000 “Lampejos” que correm, mês em mês, entre muitos milhares
de leitores; são 260.000 livros bons que já foram lidos, meditados e assimilados
talvez — 260.000 já espalhou em três anos a Cruzada da Boa Imprensa do padre
Rohden — duzentos e sessenta mil!
E o que será quando a Cruzada realizar o seu ideal completo: a difusão rápida,
intensa e permanente do livro no Brasil pelas mãos dessas 500 (quinhentas)
correspondentes que vão multiplicar e redobrar de amor à obra!
Diz-me o livro que lês, e eu te direi quem és, já disse alguém. De pouco tempo
para cá vai correndo pelo Brasil uma onda de maus livros — e que mal têm feito
esses agentes graciosos e infatigados do erro! É preciso então que o bom livro
se propague, corra por toda parte, ande de mão em mão e contraponha a
verdade ao erro, desfazendo o mal que fez o livro mau.
Todo católico deve dar do seu para a campanha do bom livro, comprando-o,
lendo-o e propagando-o.
Pode-se dizer que o Recife está vivendo a semana do bom livro, nessa
campanha de que é alma e apóstolo o padre Rohden.
Este artigo vem assinado com as letras C. X. P., iniciais do benemérito apóstolo
da boa imprensa em Pernambuco, cônego Xavier Pedrosa, lente do Seminário
Arquidiocesano de Olinda-Recife, membro da Academia Pernambucana de
Letras e universalmente conhecido como um sacerdote profundamente virtuoso
e desinteressado. Quem mais acerbamente sofreu com a subsequente
destruição da Cruzada da Boa Imprensa e da campanha infame contra seu
fundador e diretor, foi precisamente esse benemérito arauto da Ação Católica
em Pernambuco. Se as paixões humanas não tivessem destruído a obra
iniciada, é certo que a Cruzada, que em três anos, com a graça de Deus, tanto
fizera, teria vindo a ser um grande fator de recristianização do Brasil. Não o quis
o espírito das trevas, que, segundo a sua tática milenar, se serviu mais uma vez
dos “filhos da luz” para realizar a “obra das trevas”.
Entretanto, é certo que, mesmo assim, as potências do inferno não prevalecerão
contra o reino de Deus...
Nos próximos meses percorri, a serviço do mesmo ideal, os Estados de Paraíba,
Ceará, Piauí, Maranhão, realizando diversas dezenas de conferências em
igrejas, salões de cinema, teatros, em praça pública e ao microfone das estações
de rádio. Das numerosas referências da imprensa, quer católica, quer profana,
em torno da minha pessoa e atividade, escolherei apenas duas, uma de um
jornal católico, outra duma publicação mundana.
Com data de 19-12-1936, escreve o diário católico “Maranhão”, depois de dar
longas apreciações sobre diversos livros meus: “Refletem-se nas páginas deste
formidável livro (“Jesus Nazareno”) todas as forças espirituais do P. Rohden.
Sente-se que ele quis transfundir aí todos os anseios de sua vida repleta de
verdade e penetrada da suavidade de Jesus. Assim, mais ou menos, o
percebemos através dessa obra encantadora.
Agora, porém, entramos em contacto com o próprio P. Rohden e podemos
receber a influência que irradia da sua personalidade poderosa. Ninguém pode
ouvi-lo falar sem sentir a fascinação da sua palavra e da sua presença. Com uma
simplicidade impressionante e uma visão profunda dos homens e das coisas, dá-
nos a impressão de um livro vivo e aberto. E, de fato, de todas as conferências
que pronunciou até agora, confirma abundantemente a opinião que dele sempre
fizemos, a de um homem que quer arrastar o mundo para Cristo ou trazer o
Cristo para o mundo. Por isso termina ele o seu “Jesus Nazareno” com uma
solenidade inimitável. Nada do desespero de um Papini, mas a confiança de um
homem que pensa e crê.
As suas conferências, que têm sido ouvidas com a maior atenção e admiração
por parte dos intelectuais, continuam a despertar o mais vivo interesse do nosso
meio. E é necessário ouvi-lo, porque, poucas vezes, em toda a nossa existência,
teremos oportunidade de encontrar um homem da envergadura do P. Rohden”.
O grifo de uma das últimas frases é meu, por que frisa admiravelmente o
supremo ideal que presidiu a todos os meus trabalhos através do Brasil. O que
esse jornal católico diz sobre o epílogo do meu livro “Jesus Nazareno” é a síntese
de tudo que os espíritos sinceros têm dito e escrito a respeito; D. Hugo Bressano
de Araújo, então Bispo da Cidade do Bomfim, Baía, e atualmente Bispo de
Guaxupé, Minas Gerais, pediu-me encarecidamente escrevesse um livro inteiro
no espírito desse epílogo de “Jesus Nazareno”. Entretanto, foi precisamente
esse epílogo, tão verdadeiro e sincero, que, mais tarde, motivou a impugnação
do meu livro por meio da imprensa católica — tão grande é a confusão que reina
entre nós. O clero decadente (note-se, não o clero em si, mas os elementos
decadentes do clero católico!) viu naquele epílogo um “perigoso” apelo para um
cristianismo mais espiritual do que aquele que lhes convém. Que seria da política
interesseira desse clero decadente se prevalecesse no Brasil católico o ideal
cristão exposto, “solenidade inimitável”, nesse epílogo, como diz o referido jornal
católico do Maranhão e como queria o dito prelado? É angustiante observar que
os mais altos interesses espirituais do catolicismo brasileiro sejam, por muitos
dos seus pastores, subordinados a interesses pessoais e mesquinhos. Não
tivesse o Brasil tantos analfabetos literários e, possivelmente, muito maior
número de analfabetos religiosos, não seria possível fazer do nosso povo a
cobaia a que foi reduzido por muitos daqueles que, em vez de lhe serem
condutores, se lhe tornaram sedutores, afastando-o do Cristo em vez de o levar
aos pés do Divino Mestre.
Permita-me o leitor paciente reproduzir, no meio das opiniões do mundo católico,
a impressão que um dissidente e neutral teve das minhas conferências na capital
maranhense. Na “Tribuna”, de 2-12, escreve o Sr. Ribeiro Galvão: “Designou-me
o diretor deste jornal para assistir e dar a necessária publicação à conferência
do P. Rohden, na Catedral Metropolitana.
Fui. Há muito tempo não pisava eu o grande recinto de uma igreja. Materialista
e meio mundano, faz muito tempo que não sei o que seja uma cerimônia
religiosa, de forma que, ao enveredar na velha Sé, profunda me foi a impressão
causada pelo silêncio da multidão e as palavras pausadas e metálicas do
reverendo Rohden.
Gostei, confesso. Desde muitos anos, a mim não era dado o prazer de ouvir um
apóstolo, um homem entusiasta da ação católica, mas um entusiasta erudito,
suave, nada patético, nada massudo.
O P. Rohden é um orador. Não tem o entusiasmo que arrebata, mas tem a
tranquilidade que sugestiona. Parece cansado, fatigado de outras incumbências;
mas nada disto é, nada disto tem; é um orador moderno adaptado ao novo
espírito das nossas multidões, uma voz simples e macia, erudita, sem recamos
outros, mas vitoriosa enfim, sabendo desempenhar o seu papel religioso e a sua
finalidade convincente. Perdoe-me o reverendo Rohden, mas foi assim que o
compreendi, focalizando em traços modestos a humilde pessoa do Homem, de
Jesus, do Cristo, enfim, do lenitivo, humanizado de nosso desespero e
absolvição divina de nossos pecados todos”.
Do caráter e valor da minha tradução do “Novo Testamento” — mais tarde
incluída no rol dos meus livros proibidos, disseram os Jesuítas do Ginásio
Anchieta, de Porto Alegre, conforme publicação na revista estudantil “O Eco”, o
seguinte:
“O tradutor, sempre fiel à sua linguagem desimpedida, agradável e popular, sabe
conservar os matizes mais sutis do original, que percebe com sensibilidade de
artista da palavra. Quem tiver lido um trecho duma Epístola, por exemplo, na
dicção lúcida e natural de Rohden, dificilmente voltará a traduções que não
desintrincam o fraseado grego ou latino, ininteligível, ou ao menos fatigante e
antipático para o homem de hoje. A tradução de Rohden tem segura a simpatia
também dos mais exigentes”.
38
A campanha nacional pró-
Evangelho cava a ruína da Cruzada.
A “invidia clericalis” assume forma
aguda. Uma bofetada póstuma ao
cardeal Leme
O ano que se seguiu ao meu regresso da Europa, aonde levara uma turma de
120 católicos, entre eles 15 sacerdotes e um arcebispo — foi quase inteiramente
dedicado à difusão do Reino de Deus mediante a introdução do estudo do
Evangelho em dezenas de milhares de lares brasileiros. Não tenho a pretensão
de ter sido o primeiro a fazer essa campanha pró Evangelho; diversas casas
editoras católicas haviam publicado o Novo Testamento, ou até a Bíblia inteira,
e bom número de pessoas possuíam esse livro. Realizei um inquérito de norte a
sul, de leste a oeste, e cheguei a saber o seguinte: que os católicos que
possuíam o livro sacro não o tinham para ler, mas para mostrar aos protestantes
quando esses aparecessem com a sua Bíblia; o católico sacava a dele do fundo
de alguma mala ou gaveta, desempoeirava-a ligeiramente e exibia-a triunfante e
seguro ao propagandista protestante. Quanto ao conteúdo, em geral, é claro que
99% dos católicos nada sabiam, como provam inúmeros testes que fiz, nesse
terreno. Se eu, por exemplo, pedisse a um católico que me lesse o início do
capítulo 8 da epístola aos Romanos, seria quase um milagre se ele encontrasse,
não digamos o capítulo, mas a epístola; muitos a procurariam antes dos
Evangelhos, outros até no Antigo Testamento.
A minha campanha pró Evangelho — conforme havia combinado com o Cardeal
Leme, em Itaipava, naquele memorável domingo à tarde, em 1935 — consistia
essencialmente em fazer com que os católicos lessem, meditassem e
assimilassem vitalmente o espírito dessa Constituição do Reino de Deus,
fazendo da vida de Jesus o seu inseparável vademecum, o manancial da sua
vida espiritual e moral de cada dia. Para este fim realizei mais de 2.000
conferências e palestras em cerca de 500 cidades de 18 Estados do País
(deixara para o fim os Estados de Goiás e Mato Grosso, que perlustrei mais
tarde). Para o mesmo fim publicava eu a minha folha volante “Lampejos”, com
uma tiragem mensal entre 100.000 a 120.000 exemplares mensais (saiu um total
de cerca de 8.000.000 de exemplares). Desde que eu chegara a conhecer, por
experiência pessoal, sobretudo nos Retiros Espirituais de 30 dias completos
cada um, o meu divino Senhor e Mestre, era natural que procurasse levar outros
a essa mesma fonte de força, luz e felicidade.
Ora, era inevitável que todos os que se habituassem a tomar o Evangelho de
Jesus Cristo por norma de sua vida espiritual e moral se afastassem
insensivelmente de certas praxes do catolicismo romano ou alheias ou até
contrárias ao espírito genuíno do Evangelho, embora favoráveis ao prestígio e
às finanças do clero. A parte mais espiritual e cristã do clero sempre aplaudiu a
minha campanha pró Evangelho, porque queriam, antes de tudo, o bem espiritual
do seu rebanho; mas a parte decadente do clero — que é, infelizmente, a mais
poderosa e, como veremos no caso do Núncio Apostólico D. Bento Aloisi
Masella, tem o seu braço forte no Vaticano — não podia, logicamente, tolerar um
movimento que, embora genuinamente cristão, lhes desfavorecia o prestígio
político-social e os interesses econômico-financeiros. Por via de regra, os frades
dos conventos fazem voto de pobreza — e vivem com fartura — ao passo que
os padres dos sertões anônimos, que não fizeram voto de pobreza, vivem vida
pobre, austera e sacrificada. Estes últimos lamentaram profundamente, como
provam numerosas cartas que possuo, o que os nédios frades estrangeiros dos
ricos conventos e mosteiros fizeram contra a Cruzada da Boa Imprensa e seu
diretor.
Acresce que os protestantes, sinceramente evangélicos como são geralmente,
compravam e vendiam enorme quantidade de livros meus, sobretudo “Novo
Testamento” e “Paulo de Tarso”, difundindo-os a granel entre os católicos. Todas
as traduções católicas da Bíblia conhecidas no Brasil são (ou eram, nesse
tempo) vazadas numa linguagem obsoleta, baseada na Vulgata latina, ao passo
que a minha tradução, feita sobre o texto grego do primeiro século, vinha numa
linguagem moderna acessível a qualquer pessoa.
Ora, quando dezenas de milhares de católicos começaram a descobrir o
Evangelho e afeiçoar-se a ele, encontrando nele tesouros ocultos de luz e força
espiritual, a parte decadente do clero viu nesse entusiasmo um sério perigo para
o catolicismo romano. Que aconteceria se o católico, entrando em contato
imediato com as fontes divinas do Cristianismo, desse maior importância às
palavras de Jesus do que às doutrinas do clero, às decisões dogmáticas dos
Concílios, à Summa Theologiae de Tomás de Aquino, aos ensinamentos do
Catecismo e outros livros munidos de “imprimatur”? Era evidente que, na razão
direta que o povo brasileiro penetrasse nas divinas grandezas do Evangelho se
afastaria das humanas pequenezes da teologia de Roma. E, com esse
arrefecimento teológico dos seus rebanhos, perderia o clero a fonte primária do
seu prestígio e da sua prosperidade.
Era, pois, inteiramente lógico que abrisse campanha feroz contra quem guiava o
povo rumo ao Evangelho, cada vez mais longe da teologia.
No princípio, essa campanha minava à surda, subterraneamente. Era difícil
declarar-me guerra aberta, porque todos os meus livros — uns 25 nesse tempo
— levavam o infalível “imprimatur” da autoridade diocesana, 15 deles, além disto,
tinham gloriosos prefácios de bispos e arcebispos, entre eles quatro do próprio
Cardeal Leme. Abrir campanha aberta contra esses livros exigia uma audácia,
ou melhor, uma desfaçatez sem nome.
A primeira mentira que o clero decadente, no intuito de desacreditar os meus
livros, espalhou pelo Brasil foi a calúnia de que a minha edição do Novo
Testamento havia sido custeada com dólares protestantes e que era esta a razão
por que os protestantes faziam tão imensa propaganda do mesmo. Para milhares
de católicos, foi água na fervura saberem que eu, como foi dito, era “traidor” e
tinha “vendido a minha consciência católica pelo dólar protestante”. Aprendi, em
menino, no meu Catecismo, que mentir é pecado e que o autor de uma calúnia
grave não pode ser absolvido em confissão sem que antes revogue essa calúnia.
Entretanto, até ao presente dia nenhum dos caluniadores sacerdotais, de missa
e comunhão diária e confissão semanal, revogou essa calúnia, ao que me
consta.
Mais tarde, correu pela imprensa clerical (não existe imprensa católica no Brasil,
mas só imprensa clerical!) que os “imprimatur” dos meus últimos livros, “Paulo
de Tarso”, “Agostinho”, “Míriam”, “Porque sofremos”, etc. tinham sido forjados
por mim, e que os esplêndidos prefácios de “Agostinho” e “Míriam”, assinados
por bispos e monsenhores, eram invenção minha, ou pelo menos apareciam
truncados ou deturpados. Nem estas calúnias foram até hoje revogadas, e
milhares de católicos continuam a crer nessas mentiras espalhadas sob a
chancela “com aprovação eclesiástica”.
A linguagem em que essas calúnias eram vazadas era, não raro, de baixíssimo
calão; nessas diatribes, o autor de livros expressamente aprovados pela
autoridade eclesiástica era chamado “cretino”, “cabotino”, “lama”, “falsário”,
“Judas”, “Satanás”, “hipócrita”, “perverso”, etc. — tudo, naturalmente, “com
aprovação eclesiástica”.
* * *
Havia cerca de 4 anos que essa campanha organizada pelo clero decadente
esbravejava contra mim. Comissão sobre comissão foi enviada ao Palácio São
Joaquim a fim de conseguir do Cardeal Leme a cassação do “imprimatur” dos
meus livros, que, como diziam os descontentes, estavam preparando a
protestantização do Brasil católico. É sabido que o clero apelida de protestante
qualquer simpatia e entusiasmo pelo Evangelho. Nunca na minha vida movi um
dedo pela protestantização do Brasil, mas desde que cheguei a conhecer por
experiência íntima as grandezas divinas do Evangelho não cessei de trabalhar
pela cristianização ou evangelização da nossa grande pátria. Entretanto, se o
clero tivesse usado, honesta e sinceramente, estas palavras não teria
conseguido acirrar contra mim e minhas obras o povo católico. Por isso, recorreu
às armas envenenadas de me acoimar de “protestante”, como, mais tarde, me
apelidou de “nazista” e “comunista” (invenção do famigerado sacerdote belga P.
Julio Maria).
39
Direção espiritual — ou
tiranização clerical?
Para que o leitor veja a que desastrosas consequências pode conduzir o infeliz
dualismo doutrinário ultimamente introduzido no Brasil pela condenação e
severa proibição de dezenas de obras católicas, aprovadas, recomendadas e
prefaciadas por Bispos e Arcebispos — vou concretizar o seguinte caso, que não
é mera hipótese, mas realidade quotidiana, como sei de numerosas cartas.
Suponhamos que um católico adquira em Pelotas, Rio Grande do Sul, um dos
meus livros, digamos “JESUS NAZARENO”, aprovado pela Cúria Metropolitana
do Rio de Janeiro e prefaciado pelo Cardeal Leme. Enquanto esse católico se
achar nos confins da diocese de Pelotas, pode ler tranquilamente o dito livro,
porque, para essa diocese, “Jesus Nazareno” continua a ser católico, e não
herético.
No momento, porém, em que transpuser a divisa da diocese de Pelotas com a
de Porto Alegre, tem de fechar o livro, porque nesta zona deixou de ser católico,
tornando-se pernicioso, conforme expresso documento oficial da respectiva
autoridade eclesiástica, de fevereiro de 1943. (É, pois, necessário, para a
tranquilidade da consciência, que o leitor se informe previamente em que ponto
exato passa a divisa entre as duas dioceses).
Depois de atravessar a arquidiocese de Porto Alegre e entrar na diocese de
Santa Maria — mais ou menos na altura de Rio Pardo — pode o leitor reabrir o
livro e continuar a leitura, porque, nesta zona, “Jesus Nazareno” voltou a ser
automaticamente livro católico.
Se, todavia, antes de atingir a arquidiocese de São Paulo, não tiver terminado a
leitura do livro, não se esqueça de fechá-lo conscienciosamente, porque está
novamente em “zona pecaminosa”, como consta pela Carta Circular de 26 de
novembro de 1942, firmada pelo Arcebispo e todos os Bispos sufragâneos da
Província Eclesiástica de São Paulo.
Assim, porém, que o trem deixar território paulista e entrar em território
fluminense — creio que é na estação de Bananal — pode o consciencioso leitor
católico prosseguir na leitura de “Jesus Nazareno”, que, de pernicioso, voltou a
ser católico.
Quando entrar no antigo Distrito Federal, isto é, na Arquidiocese do Rio de
Janeiro, melhora notavelmente a situação moral do leitor, porque aqui “Jesus
Nazareno” não é apenas um livro católico, não-proibido, não-pernicioso, não-
herético, mas até uma obra positivamente útil e recomendada pela suprema
autoridade eclesiástica do Brasil.
Se, porém, seguir viagem para o interior ou para o norte, deve ter o cuidado de
se informar solicitamente sobre as divisas das várias dioceses, para saber onde
essa leitura é pecaminosa e onde não, a fim de não contaminar a sua
consciência católica, apostólica, romana.
Pergunto: é ou não é o católico tratado como uma cobaia por seus supostos
diretores espirituais? Hoje deve crer isto, amanhã aquilo. Em uma diocese é
genuinamente católico o que em outra é “doutrina perniciosa à fé católica”.
E ainda há quem se admire de que as classes cultas e pensantes, dentro da
própria igreja romana, se afastem cada vez mais dum “catolicismo clerical” e se
entusiasmem cada vez mais por um “catolicismo cristão”, sem essa tiranização
arbitrária da parte do clero?...
Quem avisa — amigo é...
40
Pontos estratégicos pelo triunfo
do Reino de Deus
Uma vez iniciada a grande campanha pelo triunfo do Cristianismo em nosso
País, resolvera a minha CRUZADA fundar uma ou mais agências de publicidade
e difusão em cada cidade e centro maior do Brasil. Durante os primeiros quatro
a cinco anos das nossas atividades viajava eu quase constantemente, por terra,
mar e ar e pelos rios do interior, ora em velozes aviões ou lerdos carros de bois,
ora de canoa ou barcaça, rios acima, rios abaixo, ora de trem ou caminhão de
carga, por vezes também de ônibus, quer se chamassem jardineiras, como em
São Paulo, quer marinétis, como no interior da Baía ou mesmo sopas, como em
Pernambuco e outros Estados nordestinos. Geralmente levava oito meses por
ano viajando; uma vez até 12 meses, voltando ao Rio só por poucos dias para
verificar os trabalhos de escritório entregues a meu gerente, um jornalista
português, não menos competente que ranzinza. Visitava periodicamente umas
500 cidades e centros em todos os Estados.
Era aspiração minha organizar 1.000 agências permanentes de difusão da
imprensa e literatura católica. Apenas umas 500 estavam organizadas e em
funcionamento. Através dessas 500 agências particulares colocava a Cruzada,
com grande certeza e rapidez, qualquer edição de 5.000 ou 10.000 exemplares.
As agências estavam classificadas em três grupos: a) fortes, b) regulares, c)
fracas. As “fortes” recebiam cerca de 20 exemplares de cada edição, que
colocavam dentro de um mês ou pouco mais; eram cerca de 100; de maneira
que por meio destas a Cruzada espalhava mensalmente uns 2.000 exemplares
de qualquer edição. Umas 200 agências eram “regulares” e vendiam
mensalmente cerca de 10 exemplares, enquanto as restantes 200 eras “fracas”,
não tendo movimento certo. Em todo o caso, na média podíamos contar com
cerca de 5.000 exemplares mensais colocados por meio das nossas agências
particulares, sem contar as numerosas livrarias e vendas diretas nos grandes
centros. Destarte, não era arriscado lançarmos mensalmente uma edição de
5.000 exemplares. Meses houve com duas ou três edições paralelas.
Entretanto, a Cruzada nunca fez fortuna, nem o queria, porque não era uma
empresa comercial, e sim uma organização essencialmente cristã e idealista. As
receitas se iam com o pagamento dos nossos oito funcionários de escritório, com
a impressão e expedição de livros e, sobretudo, com as minhas viagens
constantes, muitas vezes via aérea.
Todos os que trabalhavam na Cruzada tinham o seu ordenado mensal, menos o
diretor. Nunca fiz nenhuma retirada. Nunca tive um centavo num Banco, para
eventualidades futuras. Quando o clero estrangeiro radicado no Brasil conseguiu
de 15 bispos brasileiros a proibição em globo dos meus livros, como sendo
perniciosos à fé católica, e quando, destarte, a minha Cruzada e seu diretor eram
estigmatizados como fautores de heresias, acordei como que dum sonho de
pesadelo. Verifiquei que não tinha nada com que viver, uma vez que, nesse
ambiente de desconfiança criado pela inesperada proibição, a maior parte dos
meus agentes — quase todas Filhas de Maria, Zeladoras do Apostolado, Damas
de Caridade, Vicentinos, Moços Católicos — resignou o cargo, devolvendo os
livros em estoque, quando não os entregavam aos respectivos vigários para
serem subtraídos da circulação, ou queimados, consoante ordem superior.
Houve autos-da-fé em praça pública, como consta de várias cartas em meu
poder, fogueiras em que foram incinerados milhares de livros meus como
elementos perniciosos ao catolicismo. Diversas Filhas de Maria, mais cristãs que
clericais, negaram-se a entregar os livros que possuíam, prometendo devolvê-
los à Cruzada, o que lhes foi proibido, porque, destarte, dizia o clero, os livros
seriam vendidos a outras pessoas e continuariam a espalhar o veneno da
heresia em outras almas; era obrigação em consciência destruí-los. Em várias
agentes, porém, prevaleceu o senso da verdade e da justiça, que as levou a
afrontar as ordens do clero e devolver os livros por sua conta e risco. Uma dessas
almas devotadas à causa do reino de Deus me escreve, cheia de revolta e
angústia, que foi perguntada em confissão se ainda conservava em casa algum
livro da minha autoria; respondeu que possuía “Alma Eucarística”, pelo qual,
havia anos, fazia a sua preparação para a comunhão diária, e que de forma
alguma podia desfazer-se desse manual de meditações eucarísticas que lhe
havia enriquecido a vida espiritual. O confessor, porém, insistiu em que
entregasse o livro, do contrário não lhe poderia dar absolvição sacramental. A
penitente argumentou com o “Imprimatur” da Cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro e com o grandioso prefácio do cardeal-arcebispo D. Sebastião Leme,
que recomendava insistentemente este livro a todos os católicos brasileiros, etc.,
etc. Tudo inútil! O livro era pernicioso, como perniciosos eram todos os meus
livros; 15 bispos diziam isto... Mesmo que alguém entrasse no céu por meio dos
meus livros (isto não disse o confessor) essa entrada seria ilegítima, espécie de
contrabando, que deveria ser cancelada.
* * *
Nesse tempo, possuía a Cruzada uma ou mais agências em cada uma das
localidades seguintes:
Estado de Alagoas:
Maceió, Penedo, São Miguel dos Campos, União, Capela, Igreja Nova, Palmeira
dos Índios, Pilar.
Estado do Amazonas:
Manaus, Barcelos, Porto Velho, Itacoatiara.
Estado da Baía:
Cidade do Salvador, Feira de Sant’Anna, Cachoeira, São Felix, Muritiba,
Maragogipe, Alagoinhas, Valença, Jequié, Castro Alves, Barracão, Esplanada,
Juazeiro, Minas do Rio das Contas, Bom Jardim, Cidade do Bonfim, Água Preta,
Carinhanha, Morro do Chapéu, Geremoabo, Pombal, Prado, Itiúba, Belmonte,
Inhambupe, Macuco, Curuçá, Paripiranga, Caém, Vila de Saúde, Jacobina.
Estado do Ceará:
Fortaleza, Santos Dumont, Acaraú, Ubajara, Beberibe, São Bernardo das
Russas, Maranguape, Sant’Anna do Cariri, Afonso Pena, Juazeiro, Barbalha,
Boa Esperança, Aurora, Quixeramobim, Senador Pompeu, Iguatu, Cedro, São
Pedro do Cariri, Ipueiras, Crato, Várzea Alegre, São Francisco, Maria Pereira,
Viçosa, Sobral, Ibiapina, Itapipoca, Limoeiro, Massapé, Camocim, Campos
Sales, Quixadá, Mecejana, União, Icó, Redenção, Meruoca, Quixará, Tuanguá,
Baturité, Tauá, Arneiroz, Tamboril, Cascavel.
Estado do Espírito Santo:
Vitória, São Mateus.
Estado de Goiás:
Novo Horizonte, Paraúna, Palmeiras, Registro do Araguaia, Rio Claro, Santa
Maria do Araguaia, Cachoeira, Paraúna, Santa Luzia, Cristalina, S. Vicente de
Araguaia, Formosa, Planaltina.
Estado de Mato Grosso:
Cuiabá, Campo Grande, Livramento, Bela Vista.
Estado do Maranhão:
São Luiz, Brejo, Pinheiro, Coroatá, Codó, Pastos Bons, Tutóia, Araioses, Grajaú,
Flores, Viana, Balsas, Turiaçu, Barra do Corda, Imperatriz, Carolina, Caxias.
Estado de Minas Gerais:
Belo Horizonte, Cláudio, Curvelo, Diamantina, Serro, Brazópolis, Caldas,
Jacutinga, Santos Dumont, Itabira, São João Nepomuceno, Sabará, Juiz de
Fora, Piedade de Paraopeba, Pitangui, Oliveira, Santa Rita de Araçuí,
Divinópolis, Pedro Leopoldo, Itaúna, Santa Rita do Sapucaí, Pará de Minas,
Silvianópolis, Paraisópolis, Pouso Alegre, Santana dos Ferros, Guanhães,
Patrocínio, Marlieria, Lima Duarte, São José do Barroso, Pirapetinga, Três
Corações, Campanha, Cambuquira, São Simão de Manhuaçu, Nazaré, Ouro
Fino, Cristina, Ponte Alta de Campanha, Virgínia, São Gonçalo do Sapucaí,
Machado, Conceição do Rio Verde, Gimirim, Sete Lagoas, Rio Preto, Viçosa,
Angustura, Guaxupé, Campina Verde, Muriaé, Araxá, Tupaciguara, Uberaba,
Salinas, São João del-Rei, Barbacena, Araçá, Passa Quatro, Ibiá, Laranjal,
Vargem Alegre, Ribeirão Vermelho, Conceição Aparecida, Carmo da Cachoeira,
Januária, Capelinha da Graça, Santiago, Bom Despacho, São Sebastião da
Encruzilhada, Patos, Itajubá, Mariana, Leopoldina, Vigia, Tarumirim, Carmo do
Rio Claro.
Estado de Pernambuco:
Recife, Olinda, São Pedro das Lages, Pau-d’Alho, Queimadas, Bodocó, São
Bento, Serinhaém, Timbaúba, Nazaré, Limoeiro, Vitória, Floresta dos Leões,
Jaboatão, Triunfo, Vertentes, Salgueiro, Bom Conselho, Alagoa de Baixo,
Paulista, Gravatá, Ouricuri, Pesqueira.
Estado do Pará:
Belém, Santarém, Óbidos, Marabá (Tocantins).
Estado do Paraná:
Curitiba, Ponta Grossa, Paranaguá, Imbituva, Arroio Grande.
Estado do Piauí:
Terezina, Floriano, Parnaíba, Jaicós, Natal, Valença, Picos, União, Piracuruca,
Barras, Piripiri, Campo Maior.
Estado da Paraíba:
João Pessoa, Cruz do Espírito Santo, Alagoinha, Souza, Fábrica do Rio Tinto,
Areia, Serra do Cuité, Serraria, Santa Rita, Alagoa Nova, Mamanguape,
Guarabira, São Tomé, Ingá, Umbuzeiro de Natuba, Cajazeiras, Campina
Grande, Bananeiras, Alagoa Grande, Piancó, Serra Branca, Santa Luzia do
Sabugi, Pocinhos, Patos, São Gonçalo do Umbuzeiro, Alagoa do Monteiro,
Jacaraú.
Estado do Rio:
Paraíba do Sul, Sapucaia, Petrópolis, São Pedro da Aldeia, São Fidelis, Campos,
Areal.
Estado do Rio Grande do Sul:
Pôrto Alegre, São Gabriel, Santa Maria, Santa Cruz, São Leopoldo, Antonio
Prado, São Borja, Uruguaiana, Boa Vista do Erechim, Rio Grande, Dom Pedrito,
Carazinho, Bento Gonçalves, Passo Fundo, Livramento, Cachoeira, Pelotas,
Alegrete, Bagé, Conceição do Arroio, Caxias, Taquara, São Luiz das Missões,
Paraí, Julio de Castilhos, Arroio Grande (Federação), Prata, Santa Rosa das
Missões, Soledade, Arroio do Meio, Quaraí, Sarandi, Tristeza, Ivo Ribeiro,
Montenegro, Estrela, Tupanciretã, Cruz Alta, Navegantes, Arroio Grande, Nova
Roma, Ijuí, Caçapava, Vila do Rosário, Vacaria, Gravataí, S. Domingos, Cacequi,
Rio Pardo, Jaguarão.
Rio de Janeiro (Dist. Fed.):
Santa Cruz, Rua da Universidade, 44; Rua Baptista Neves, 40.
Estado do Rio Grande do Norte:
Natal, Papari, São José de Mipibu, Ceará-Mirim, Açú, Macau, Mossoró, Nova
Cruz, Martins, Patu, Caicó, Currais Novos, Santa Cruz, Caraúbas.
Estado de Santa Catarina:
Florianópolis, Joinvile, Tijucas, Tubarão, Laguna, Itajaí,Blumenau, Lages, Braço
do Norte.
Estado de Sergipe:
Aracajú, Laranjeiras, Maroim, Propriá, Dores, São Paulo, Campos, Aquidabã.
Estado de São Paulo:
São Paulo, Bebedouro, Barretos, Piraçununga, Araras, Campinas, Piracicaba,
Rio Claro, São José dos Campos, Limeira, Amparo, Socorro, Espírito Santo do
Pinhal, São João da Boa Vista, Jundiaí, Taubaté, Piracaia, Bragança, Santos,
Araraquara, Paraibuna, Getulina, Santo Antonio da Alegria, Brodowski, Mirassol,
São Pedro, São João da Bocaina, Ariranha, Cafelândia, Pirangi, Casa Branca,
Ribeirão Preto, Tatuí, Natividade, Descalvado, Ribeirão Bonito, Bariri, Fernando
Prestes, Pindorama, Guarapiranga, Itapira, Ituverava, Barra Bonita, Sorocaba,
Laranjal, Cedral, Cristais, Maracaí, Anápolis, Tabapuã, Caçapava, Igarapava,
Lins, Cravinhos, Bauru.
Território do Acre:
Cruzeiro do Sul, Rio Branco.
41
Sol entre nuvens
Em princípios de agosto de 1941 embarquei no “Pedro I” e fui em demanda da
foz do Amazonas — dez dias esplêndidos para corpo e alma. A imensa quietude
do mar e do céu me faz um bem indizível. Dentro em breve, estabeleceu-se uma
espécie de ambiente familiar entre os passageiros. O homem, derramado pelas
coisas fora dele, volta para o seu centro eterno, torna a ser ele mesmo, em toda
a sua pureza e genuinidade. E tanto mais sensível é esse benefício quanto mais
a alma se acha contundida, pisada, macerada de intrigas e mesquinharias de
toda espécie.
Abri os olhos e o coração, e deixei entrar para dentro de mim toda essa epopeia
de luzes e amplitudes que céus e mares derramavam em torno e dentro de mim.
Quando um pintor, mais ou menos hábil ou desastrado, expõe num salão de
belas artes um quadro destinado a representar um nascer ou pôr do sol, uma
paisagem do interior ou um trecho do litoral, ou outro assunto qualquer da
natureza, costumam os entendidos ou pseudo-entendidos, extasiar-se diante
desse conjunto de tintas mortas, limitadas pela estreiteza duma moldura. E os
que nada entendem de arte e sempre pensam pela cabeça do vizinho, assumem
ares e atitudes de consumados mestres na matéria; falam em “jogo de luzes”,
em “perspectivas felizes”, em “cambiantes” (os granfinos dizem nuances); citam
nomes respeitáveis de outros povos, colhidos em algum guia papiráceo, a fim de
darem aos ingênuos, e até a si mesmos, a impressão duma cultura
enciclopédica. Mas quando o Supremo Artista do Universo pinta, cada manhã e
cada noite, deslumbrantes e sempre novos panoramas de estupenda beleza —
quem se lembra de lhe admirar as obras-primas? quem lhe agradece por essa
Exposição Permanente, gratuita, incomparável?
Na capital paraense encontrei as mesmas amizades de sempre, sobretudo da
parte dos leigos. O P. Paulino, sempre dinâmico, sincero, esfuziante de espírito
e bom-humor, era mestre em arrasar barreiras que a ignorância ou má fé
costumam erguer no caminho de toda pessoa que queira realizar algo de
positivo.
De Belém do Pará fui descendo para o sul. Em São Luiz do Maranhão, essa
vetusta “Atenas Brasileira”, sentia-me tão em casa como em poucas outras
cidades do país. A começar pelo então Interventor Federal, Dr. Paulo Ramos, e
pelo Diretor do Departamento de Educação, Dr. Luiz Rego, até ao distinto
arcebispo (mais tarde primeiro cardeal de São Paulo), ao clero e ao povo católico
— tudo me envolvia numa atmosfera de simpatia e benevolência.
Nos cinco dias que passei na capital maranhense bati um verdadeiro record de
conferências — creio que foram umas 20, em diversos estabelecimentos de
ensino público e particular — Palácio da Educação, Grêmio Lítero-Português,
Cinema Roxy, etc. Parecia mesmo a grande calma e bonança em vésperas da
tormenta final que ia arrasar a minha obra apostólica, cimentada com tanto suor
e lágrimas...
Depois de uma dessas conferências no Lítero-Português, fui abordado por um
jovem com a cruzinha dourada da Ação Católica ao peito. Mostrara eu a
possibilidade da salvação para todos os homens de boa vontade que seguissem
os ditames da sua consciência.
— O Sr. acha então que um não-católico também pode entrar no céu?
perguntou-me o jovem.
— Acho — respondi — contanto que esteja de boa fé e cumpra aquilo que julga
ser a vontade de Deus.
— Ora, então não vale a pena ser católico — replicou ele, com um suspiro
profundo e triste.
Tive a impressão de ver diante de mim um náufrago a lutar por um salva-vida ou
pedaço de prancha para escapar à morte. Com o auxílio desse flutuador
consegue ele ganhar a praia, são e salvo — quando olha para trás e verifica que
muitos outros náufragos, sem tábua nem salva-vida, também alcançam o litoral
salvador. E uma como que involuntária tristeza lhe invade a alma. Quisera tanto
gozar, sozinho, a felicidade de ser salvo. A salvação de outros lhe amargura e
amesquinha a delícia do salvamento próprio, roubando-lhe a inebriante
exclusividade do mesmo...
Ah! como é difícil deixar de ser egoísta!... sobretudo quando o egoísmo vem
aureolado de um como halo de virtude e sacralidade...
* * *
Em Caxias do Maranhão, essa sonolenta cidade sertaneja, repleta de corações
bondosos e calçada de areia movediça, pouco me demorei desta vez. Atendendo
ao gentil convite do professor Leôncio Magno, fui visitar a célebre e ignorada
“Fonte de Veneza”, não longe da cidade. A fim de conhecer de ciência própria e
imediata essa inaproveitada riqueza fluida, fui tomar banho na dita água mineral,
e dela bebi em abundância. Assim adquiri ciência externa e interna das suas
propriedades excepcionais. Como não me achasse em condições de analisar as
águas da fonte, recorri a uma análise de 1929, feita num laboratório de Paris, e
escrevi sobre esta base um artigo para um dos órgãos da imprensa maranhense.
Transcrevo deste meu artigo os seguintes tópicos:
“Acabo de visitar a chamada Fonte de Veneza, no Município de Caxias, Estado
do Maranhão. No lugar de um antigo engenho vê-se um pequeno lago, cujo
fundo está coberto duma camada de barro verde-escuro. Debaixo dessa camada
existe uma estratificação formada de pedras, areia e grande quantidade de
detritos calcáreos, resto das conchas de moluscos que povoam o lago e deixam,
depois, cair ao fundo os seus lindos invólucros nacarados, que pela ação
corrosiva das águas se vão decompondo paulatinamente. Bandos de peixinhos
dão vida ao pequeno lago, cujas águas acusam uma temperatura constante de
cerca de 30 graus centígrados.
Entretanto, o que há de mais interessante são as bolhas de gás que,
ininterruptamente, por vezes em repentina explosão, sobem do fundo do limo,
atravessam o cristalino elemento e se desfazem na superfície, entregando à
atmosfera o seu invisível conteúdo.
Uma análise química desta água, feita em Paris, em 24 de fevereiro de 1929,
deu o seguinte resultado:
Análise da parte dissolvida e límpida. Equilíbrio físico-químico.
Concentração em íons hidrogenados: PH = 70 (a — 17º)
Análise química:
Resíduo seco, a 180º por litro......................................................miligramas 818,8
Cátions:
Sódio...............................................................................................................27,2
Potássio..........................................................................................................7,02
Cálcio............................................................................................................130,0
Magnésio......................................................................................................19,69
Ferro...............................................................................................................0,07
Ânions:
Cloro.................................................................................................................7,0
Ácido sulfúrico...............................................................................................263,5
Ácido carbônico.............................................................................................228,0
Ácido fosfórico.................................................................................................0,10
Outros elementos:
Sílica...............................................................................................................20,5
Ác. carbônico livre.............................................................................................8,6
Compostos sulfurados totais, sulfureto, ácido sulfídrico e hipersulfitos, expressos
em enxofre......................................................................................................0,96
Pesquisa de elementos raros:
Ácido nítrico — ausência completa ou menos de 0,5, limite de sensibilidade da
reação empregada
Ácido nitroso .................................................................................................0,002
Amoníaco........................................................................................................0,01
Bromo...............................................................................................................0,5
Iodo...................................................................................................................1,0
Arsênico............................................................................................................0,1
Como se vê pela análise acima, existem na “Fonte de Veneza” preciosos
elementos de propriedades terapêuticas, sobretudo para moléstias da pele e do
sangue. Entretanto, para se poder dar a palavra definitiva sobre as virtudes
dessa água, seria necessário que a análise fosse feita na própria fonte, porque
o transporte e o lapso de tempo intermediário dificultam num exame de absoluta
precisão. Sobre a presença de radioatividade, só um exame na própria fonte
dará resposta.
Os resultados acima colhidos permitem atribuir à dita água o seguinte coeficiente
de mineralização, expresso em miligramas por litro, e calculado em sais anidros:
Ácido carbônico...................................... ......................................................800,6
Bicarbonato de sódio.......................................................................................99,3
Bicarbonato de potássio..................................................................................18,2
Bicarbonato de cálcio......................................................................................80,5
Bicarbonato de magnésia..............................................................................116,8
Bicarbonato ferroso.........................................................................................0,21
Cloreto de sódio..............................................................................................11,5
Sulfato de cálcio............................................................................................363,5
Fosfato dissódico............................................................................................0,15
Sílica...............................................................................................................20,5
Quando se lembrarão os poderes públicos de aproveitar essa riqueza fluida, que
lhes fica ao alcance do braço? Inúmeras pessoas lá estão à espera de saúde!” 1
1. Três anos mais tarde, em 1944, o governo do Estado do Maranhão promoveu a exploração
industrial dessa riqueza fluida da “Fonte de Veneza”.

Em Teresina, reencontrei o agradável ambiente intelectual de sempre. Fiz


conferência no “Clube dos Diários”, na “Sociedade de Medicina”, no “Teatro Sete
de Setembro”, no “Ginásio Diocesano”, e em outros locais. A atmosfera espiritual
estava bem clara e transparente, ao passo que a atmosfera material andava
repleta de fumo, porque rompera uma verdadeira epidemia de incêndios. Dia a
dia, era incinerada por mão misteriosa uma série daquelas palhoças que,
infelizmente, ainda enfeiam os arredores da capital piauiense, fazendo lembrar
as imediações de Dacar.
* * *
De Teresina tinha eu de atingir a linha ferroviária de Sobral, que vai de Camocim
a Crateús, passando por Ipu. Mas entre Teresina e Ipu se estendem as solitárias
plagas do sertão. Meti-me num caminhão de carga e rumei sertão adentro.
Perdemos logo um dia inteiro em Piripiri, porque a carga de couro cru de que
estava onerado o nosso veículo não se achava devidamente desembaraçada.
Creio que a Constituição Federal proíbe a cobrança de impostos interestaduais
— mas isto é lá na alvura do papel; a realidade não é tinta nem papel...
Telegramas para a Mesa de Rendas, discussões acaloradas com o Posto Fiscal
do lugar — tudo inútil. Nós, os poucos passageiros da boléia, éramos mercadoria
de segunda classe, cujas reclamações não pesavam dez gramas na balança dos
preciosos couros da terra onde “meu boi morreu”. Quem viaja pelos sertões não
deve levar cronômetro nem crer naquela filosofia ultra-civilizada do “time is
money”. Tempo é areia para botar fora — e nada mais.
Finalmente, ao entardecer do segundo dia, conseguimos seguir viagem, rumo à
divisa do Ceará. Tínhamos promessa de atingir Ipu antes da meia-noite. Mas,
quando chegou essa hora, estávamos apenas na fronteira dos dois Estados. Já
era grande o silêncio entre nós, e eram gerais os cochilos.
Sobreveio a demora com o Porto Fiscal da divisa Piauí-Ceará — e resolvemos
pernoitar ali mesmo.
Fora do dito Posto, não há casa na vizinhança. E este mesmo Posto deve datar
do tempo do patriarca Noé, pois tem ares nitidamente antediluvianos: quatro
paredes de barro entaipado e uma coberta de palha de coqueiro babaçu. O
babaçu é nessa zona o que a carnaúba é no Ceará — pau para toda obra.
Felizmente, não faltava o que, aliás, não falta nunca nos mais incultos sertões:
redes para dormir. Havia para todos, isto é, alguns dos passageiros levavam
consigo a indispensável rede de algodão. Dentro de 15 minutos, estávamos
todos ferrados no mais profundo e sadio dos sonos que já foi dormido por um
viajante-mártir com todos os ossos moídos num dia de socos e solavancos. Em
jantar, naturalmente, não se podia pensar, mesmo porque pensar nele, em vez
de melhorar pioraria a situação estomacal. Pouco antes havia eu saboreado o
último resto dum torrão de rapadura com um pedacinho de pão seco trazido
ainda de Teresina.
Era tão linda, tão fantasticamente poética aquela noite de “luar do sertão” — ou
antes de semiluar — que parecia quase uma profanação dormir numa noite
dessas. O que se devia fazer era empunhar o violão de Catulo Cearense, sentar-
se numa daquelas pedras enormes em pleno deserto de árvores despidas pela
seca e confundir a nostalgia anônima da alma com a tácita plangência daquela
Natureza prenhe de doces mistérios e sonoras reticências...
Mal se tingiam os horizontes de tênue alvor, quando saltamos das redes, e aos
roncos do pesado caminhão, rodamos por terras de Iracema.
Por volta do meio-dia, chegamos à “cidade da cascata”. 2
2. I — água, pu — queda, nome que os indígenas deram ao cristalino fio d’água que se despenha
do elevado paredão no fundo de Ipu, fertilizando toda a zona subjacente.

O catolicismo patriarcal desse povinho simpático não obsta ao romper de novos


horizontes culturais. A tradição anda de mãos dadas com a evolução.
Se não receasse ferir modéstias, diria aqui umas cousas lindas sobre o
abnegado e sorridente idealismo cristão de uma Vestal ipuense que, em plena
noite de tempestade, ampara com ambas as mãos o fogo sagrado que Jesus
veio acender na terra... Mas... prefiro ver e admirar borboletas em plena
liberdade a classificá-las no laboratório... Deixemo-la voar de flor em flor,
colhendo gotinhas de néctar para a colmeia das almas...
* * *
Crateús, cidade das salamandras fantásticas (carateús)!... cidade que tantas
vezes vi — e até hoje não descobri... Princesa do sertão — quem te pôs sobre a
fronte um diadema?...
Camocim, terra dos ventos perenes e das areias flutuantes!...
Sobral — mistério dos trópicos glaciais!...
Senador Pompeu — por que deixaste de ser o que foste?... por que não és o
que devias ser?...
Crato — ninho de almas amigas e inteligências cristãs...
Barbalha — oásis em pleno deserto — cuidado com a serpente do paraíso!
Juazeiro — foco de grandes crenças e de pequenas crendices — quando
despontará a tua lúcida alvorada?...
Quando, emergindo do sertão, cheguei a Fortaleza, senti-me envolto numa
atmosfera polar. O bafo glacial dum Iscariotes, tão frio como o metal da sua
bolsa, havia derramado nas almas uma noite siberiana... Mas, como nunca
faltam Cireneus e Verônicas no caminho do Calvário, encontrei eu também quem
me acompanhasse ao topo da colina, aliviando-me o peso da cruz. E essa alma
solícita e boa surgiu-me dum atalho que todos julgavam murado de paganismo
e deserto do Evangelho do Nazareno...
À minha primeira conferência na Escola Normal de Fortaleza compareceu um
grupo de intelectuais ávidos de luz. À segunda encheu-se do escol da
intelectualidade o vasto auditório cedido pela gentileza do seu Diretor, tão
taciturno e tão profundo como o mistério abismal das grandes águas... Mais
tarde, espíritos intolerantes clamaram contra o conferencista porque falou diante
dum público “eclético” e não expulsou primeiro os centuriões gentios e os
samaritanos hereges. Bem podia eu atender a essas exigências dos modernos
Torquemadas, mas só depois de arrancar do Evangelho meia dúzia das mais
belas páginas e murar com as muralhas negras dum sectarismo estreito e
anticristão os vastos horizontes do Cristianismo do Evangelho. Não me
matriculei até hoje na escola daquele insigne fariseu que olhava com desdém
para o publicano e agradecia a Deus não ser como “o resto dos homens, ladrões,
injustos e adúlteros”...
Enquanto eu falava aos intelectuais de Fortaleza sobre o problema do sofrimento
e os grandes mistérios da fé, lá no extremo sul deixava o mundo dos sofrimentos
e da fé aquela que me dera a vida corporal, e entrava, como espero, nas regiões
da glória e da visão beatífica... R.I.P.
Os meus sofrimentos, porém, deviam continuar ainda por longos anos e
intensificar-se cada vez mais.
* * *
Em outubro deste mesmo ano, visitei pela primeira vez a cidade natal de “Irene”,
a vetusta Aracati, berço da grande apóstola cearense. 3
3. Refiro-me a Irene Costa Valente, sobre a qual escrevi o livro “Irene”, livro que teve sucessivas
edições e despertou em numerosas almas grande idealismo e ardor apostólico. Como todos os
outros livros desse tempo, foi proibido pelos bispos rebeldes como “pernicioso à fé católica” e
está hoje fora de circulação.

Da família da insigne catequista só encontrei o pai. Por espaço duma semana


vivi naquela mesma casa onde nascera e vivera a sua descuidosa infância a
risonha mártir dum incompreendido idealismo cristão. O seu grande espírito, a
sua alma cristã pareciam pairar ainda naquelas amplas salas e aposentos
antigos, cujas paredes estão cobertas de maravilhosos painéis produzidos pelo
pincel de Irene. Só então cheguei a saber que a minha biografada fora também
exímia artista. Há entre esses painéis um que reproduz um trecho do litoral com
um farol em pleno nevoeiro — belo símbolo da vida de Irene — e da vida de
tantas outras almas desejosas de luz... Tão suaves e felizes são as cores que
parecem sopradas pela alma poética da autora dos “Diários de Amor”.
No meio dos extensos carnaubais da histórica “fazenda do Cajueiro”, aonde me
levou o pai de Irene; por entre as vastas pirâmides de sal que visitei em
companhia do Prefeito de Aracati e alguns amigos; ao longo das brancas praias
que o Atlântico cobre das suas espumas e de caprichosas conchinhas — por
toda parte me fugia a alma para regiões longínquas e épocas pré-históricas,
quando, através de milhões de anos e de séculos, as forças telúricas
arquitetavam esses litorais, à revelia do homem e das grandezas e
mesquinharias da nossa cultura efêmera...
Aracati obriga a pensar, a cismar, a recordar — não sei porque...
Tanto a Natureza como a população parecem poemas feitos de reticências, de
enigmas, de mistérios...
Há cidades onde as minhas conferências não encontram eco, onde são ouvidas
por simples espírito de curiosidade, com os ouvidos, mas não com a alma.
Outras, onde o auditório vibra intensamente comigo, onde sinto os nossos
espíritos envoltos no mesmo fluido imponderável, sintonizados pela mesma onda
invisível e esta sintonia espiritual me desperta na alma os melhores
pensamentos.
Em Aracati encontrei um ambiente ideal. Quem sabe se a alma de Irene, tão
identificada com o espírito dos meus livros, não andava por aí a falar
imperceptivelmente aos seus conterrâneos?...
Uma sombra apenas caiu no meio dessas luzes — e veio duma parte donde só
se deviam esperar divinas claridades...
Nem sempre são de Jesus os que lhe herdaram o nome...
42
Irene — e o Evangelho
Desde 1937 trazia eu, fechados na gaveta, 10 pequenos volumes manuscritos
intitulados “Diário de Amor”, de uma tal Irene Costa Lima Valente, nascida em
Aracati (Ceará) e falecida, em 1936, em Fortaleza. Abrangia cada volume cerca
de 200 páginas em letra miúda, porém firme e nítida. Tinham-me sido entregues
esses volumes pelo P. Tiago Way, que fora o último diretor espiritual da jovem
cearense e assistira à morte da mesma. Queria ele que eu escrevesse uma
biografia de Irene.
Prometi pensar no assunto — e foi só.
Passaram-se quase dois anos.
Sobreveio a excursão à Europa com todos os seus esfalfantes trabalhos e a sua
imensa responsabilidade.
Quando no Rio, passava eu o dia todo no escritório, por entre o ruído prosaico
das máquinas de escrever, ou então nas oficinas gráficas da “Noite”, no meio de
enormes linotipos, pilhas de papel, maços de provas tipográficas, etc.
Só depois das 9 horas da noite podia eu “pensar” um pouco, concentrar o espírito
em algum assunto superior e lançar ao papel algumas idéias para o público ledor.
Entre as 9 e as 12 horas da noite foram escritos quase todos os meus livros
desse tempo: “Irene”, “Nosso Mestre”, “Panorama do Cristianismo”, bem como a
forma definitiva de “Paulo de Tarso” cujo manuscrito eu trouxera quase pronto
da viagem à Europa.
Num dia de inspiração, em fins de 1938, saquei do fundo da gaveta os 10
volumes do “Diário de Amor”. Armando-me duma grande paciência, comecei a
embrenhar-me nessa mata-virgem de letrinha traçada por mão feminina.
Que dizia, afinal de contas, essa cearense?
Li, li um volume, dois volumes, três volumes — e fui marcando a lápis vermelho
o que mais me impressionava.
Dissera eu ao P. Tiago que não dava para escrever biografia de moça piedosa.
Mas, à medida que ia entrando nessa leitura íntima, convencia-me cada vez mais
de que não se tratava duma simples moça piedosa. Aos meus olhos ia surgindo
uma autêntica heroína, a princípio de forma incerta, como um vago ectoplasma
a destacar-se aos poucos da flutuante e incerta matéria-prima... Depois, foi
tomando contornos cada vez mais definidos, — até estar diante do meu espírito,
como palpável realidade, essa Irene que descrevi nas páginas do meu livro de
igual título.
O que me impressionava não eram aquelas piedosas meditações eucarísticas,
aqueles suaves colóquios noturnos com seu “querido Jesus”, mas, sim, e muito
mais, a vida dessa jovem: o heroísmo da sua renúncia, o desinteresse do seu
apostolado, e, sobretudo, a imperturbável alegria e serenidade no meio dos seus
sofrimentos — e que grandes sofrimentos teve Irene de suportar! Com o sorriso
nos lábios, com os olhos cheios de luz, de coração firme, sorvia essa apóstola e
mártir, o mais amargoso de quantos cálices podem humanos lábios sorver: o
cálice da incompreensão e da descompreensão, até de pessoas de sua família.
Bem dizia São Paulo: “O homem espiritual não é compreendido por ninguém”...
Humanamente falando, é um verdadeiro desastre ser homem espiritual, mesmo
no meio de cristãos. Existe um vínculo metafísico indissolúvel, entre a
espiritualidade e o sofrimento. Foi o abc do cristianismo que o neoconvertido de
Damasco teve de aprender de olhos fechados; pois, mal chegara ele a conhecer
quem era o invisível perseguidor, quando a voz do alto lhe disse: “Eu lhe
mostrarei quanto terá de sofrer por meu nome”...
Por entre as trevas dos seus Getsêmanes e as dores dos seus Gólgotas, Irene
não se tornou pessimista, não azedou o seu caráter, não descreu da
humanidade, por mais desumana. Quanto maior o número das incompreensões,
mais se espiritualizava o seu ser, mais se desprendia das coisas terrenas o seu
coração, mais se “divinizava” a sua natureza.
Por espaço de duas semanas a fio, altas horas da noite, fui acompanhando essa
sorridente sofredora das terras de Iracema, essa humilde e caridosa Verônica
que, no meio dos seus próprios martírios, ainda enxugava o rosto sangrento de
outros mártires. Às vezes, quando o batel da minha alma entrava em boa
correnteza, esquecia-me eu do tempo e escrevia até 2 horas da madrugada.
Uma noite, depois de encher dois cadernos, verifiquei com espanto que clareava
o dia — e eu não dormira um instante. Seguiu-se para meus pobres nervos um
dia pesado, pesadíssimo; mas eu sentia perto de mim um como sopro do além,
que me dava força e alento no meio dos labores. A alma de Irene não estaria
comigo? Dizer a milhares de jovens brasileiras o que fizera pelo reino de Deus
uma das suas colegas, dizer do seu idealismo, do seu grande amor e entusiasmo
pelo divino Mestre, dizer da sua imensa caridade para com as crianças pobres,
esfarrapadas, sedentas de Jesus — este pensamento me animava no meio dos
desânimos...
* * *
Ainda estava eu passando a limpo os originais de “Irene” — quando da terra
natal dessa heroína me chegou a alvissareira notícia. Com data de 28 de janeiro
de 1939, acabava o governo estadual do Ceará de baixar o decreto n.º 492, em
que estabelecia se incluísse, no programa de linguagem das escolas primárias
do dito Estado, a leitura do Evangelho.
“Irene está trabalhando” — foi o pensamento que instintivamente me passou pela
cabeça. Ela, sempre tão amiga do Evangelho; ela, que sabia contar às crianças,
com tanta alma e tão vivo colorido, as parábolas, os milagres, as palavras do
divino Mestre, não podia ser menos evangélica, lá no céu, do que sempre fora
cá na terra. Inspirara a um grupo de professoras essa idéia feliz de solicitarem
ao governo essa medida eminentemente cristã e brasileira, de adotar o
Evangelho como livro de leitura escolar.
Pelas mãos puras dessa simpática Vestal estava sendo alimentado, no templo
da Divindade, o fogo sagrado que, havia anos, andava eu acendendo e nutrindo
nas vastas plagas da nossa pátria. Que a sacerdotisa desse culto fosse
precisamente Irene, uma das mais dedicadas leitoras e dinâmicas
propagandistas dos meus livros, era deliciosamente consolador para minha
alma.
Recolhi-me por momentos, fiz de minh’alma um grande vácuo, uma solitude
sonora, uma luminosa escuridão — e pedi a Irene que fizesse saber aos poderes
públicos do Ceará que eu me oferecia para elaborar o competente manual
evangélico a ser adotado nas escolas públicas. E ela me fez saber que seria
minha advogada junto ao governo de seu Estado natal — e deu-me até ganho
de causa. Queria eu saber como é que disto tinha ela certeza, mas não me
respondeu.
Animado com estas palavras sem palavras, escrevi aos fatores competentes.
Em breve tive resposta afirmativa. E comecei a elaborar um livro de 200 páginas,
a que pus o título “Nosso Mestre”. É a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo
contada às crianças brasileiras, com as palavras textuais dos quatro
Evangelistas. Pedi ao insigne pintor J. Carlos me fizesse uma capa sugestiva
para o livro, e ele criou um primor de profundo e sugestivo simbolismo colorido:
Jesus, mostrando o caminho da vida a duas crianças, menino e menina. 1
1. A nova edição de “Nosso Mestre”, da Livraria Freitas Bastos, apresenta outra capa.

Tinha eu poucas semanas para a ultimação do livro, porque o governo cearense


insistia na entrega rápida do trabalho, possivelmente para o início do ano escolar.
Pelo decreto n.º 600, de 3 de julho de 1939, foi adotado oficialmente o meu livro
“Nosso Mestre”. Diz o referido decreto:
“O Doutor Francisco de Menezes Pimentel, interventor no Estado do Ceará,
tendo em vista que, pelo decreto número 492, de 28 de janeiro do ano em curso,
foi estabelecido que se incluísse, no programa de linguagem das escolas
primárias do Estado, a leitura do Evangelho; considerando que a referida
providência, solicitada pelo professorado público primário do Estado, vem ao
encontro dos reclamos da consciência cristã do nosso povo; considerando que,
para execução do citado decreto, faz-se mister a adoção de um livro ou
compêndio didático, vazado nos ensinamentos e nos textos evangélicos e de
acordo com o programa de linguagem, aprovado pelo Departamento Geral de
Educação; considerando que o Governo, adotando medidas tão salutares,
concorre eficazmente para o aperfeiçoamento moral e espiritual da nossa
infância e juventude, considerando, finalmente, que o livro “Nosso Mestre”, da
autoria do P. Huberto Rohden, satisfaz plenamente ao fim colimado, porquanto
encerra ensinamentos evangélicos necessários à formação cristã dos nossos
escolares.
DECRETA:
Art. 1.º — Fica adotado, nas escolas públicas do Estado e estabelecimentos que
dependem de sua imediata fiscalização, ou cujo funcionamento esteja sujeito às
leis estaduais, o livro intitulado “Nosso Mestre”, da autoria do P. Huberto
Rohden.”
Palácio da Interventoria Federal do Estado do Ceará, em 3 de julho de 1939.
Dr. F. de Menezes Pimentel.
M. A. de Andrade Furtado.
J. Martins Rodrigues”.

Era um grande passo. O Evangelho adotado oficialmente como livro de leitura


em estabelecimentos públicos. Mesmo que os pequenos leitores não
compreendessem ainda o alcance daquela filosofia divina, o certo é que, mesmo
assim, lhes seria de efeito salutar. Absorveriam, dia a dia, aqueles fluidos divinos
— com perdão da palavra — vivendo numa atmosfera elevada, saturando o
subconsciente com elementos que, mais tarde, nas lutas da vida, se tornariam
conscientes e poderosas garantias de vitória espiritual.
Quando, em 1933, 19.º centenário da nossa Redenção, lançava eu a primeira
edição do meu Novo Testamento; e quando, em 1938, com a 2.ª edição,
intensificava essa ofensiva cristã em todos os quadrantes de nossa pátria;
quando, nas páginas dos meus “Lampejos”, com uma tiragem mensal de
120.000 exemplares, e em numerosos artigos publicados por cerca de uma
centena de jornais, promovia essa campanha pró-Evangelho, em cumprimento
da ordem divina: “Pregai o Evangelho a todas as criaturas” — então me disse
um jornalista católico, e disseram-me muitos outros que era perfeitamente inútil
querer convencer o Brasil católico da existência do Evangelho e da necessidade
do seu conhecimento; que isto era para países cultos da velha Europa, e não
para esta terra que Cabral descobriu, anteontem, por acaso...
Não desanimei. E hoje em dia, poucos anos depois do início da minha cruzada
pró-Evangelho, o meu “Novo Testamento” está espalhado em 35.000
exemplares. Outros editores, entrando na brecha, resolveram lançar também
edições desse livro. Um teve até a idéia de abrir uma subscrição nacional,
conseguindo reunir milhões de cruzeiros, a fim de lançar uma edição popular a
preço módico. Verdade é que não fizeram nova tradução do texto, nem trataram
de dar ao estilo antiquado colorido mais moderno e simpático ao homem do
século vinte, mas contribuíram grandemente para popularizar o texto sacro — e
eu os saúdo como amigos e aliados da mesma cruzada evangélica.
Vencida assim a primeira etapa e despertado o interesse geral pela palavra de
Deus, dei o segundo passo procurando fazer do Evangelho um livro de leitura
escolar. Meus amigos derrotistas menearam sisudamente a cabeça em face de
semelhante “utopia”, pois era evidente que as autoridades públicas não se
interessariam por essa idéia.
Lá estão como desmentido formal dois decretos do governo do Ceará.
Em princípio de junho de 1939 fui surpreendido por um telegrama do Palácio do
Governo do Amazonas, em Manaus, comunicando-me que o Interventor Federal
desse grande Estado também baixara um decreto no mesmo sentido. Pouco
depois recebia eu a íntegra da medida governamental, que diz:
“DECRETO-LEI 255
O Interventor Federal do Estado do Amazonas, no uso das atribuições que lhe
confere o artigo 181 da Constituição da República, e considerando ser o espírito
cristão a força cultural da civilização que se desenvolve no Brasil, desde os
primórdios da nacionalidade; considerando que ao governo cumpre velar pela
formação moral da juventude e reanimar as tradições pátrias com o respeito que
merecem, para exemplo das gerações vindouras,
DECRETA:
Artigo único — Fica instituída a leitura do Evangelho nas escolas do Estado do
Amazonas, nos limites facultados pela lei, sem obrigatoriedade quanto aos
alunos que não forem cristãos.
Palácio do Rio Branco, em Manaus, 7 de junho de 1939.
Álvaro Botelho Maia,
Rui Araújo”.

Não muito depois, também os Departamentos de Educação dos Estados da


Bahia e do Rio Grande do Sul adotaram “Nosso Mestre”, como livro de leitura
nas escolas primárias.
Diversos outros Estados estavam cogitando do mesmo assunto e em vias de
introduzir o Evangelho nos estabelecimentos de ensino — quando espíritos
mesquinhos e, infelizmente, influentes, julgando-se eclipsados, iniciaram um
movimento de reação, conseguindo com as suas intrigas sustar essa alvissareira
marcha de espiritualidade evangélica.
De toda a inveja — livrai-nos, Senhor!
43
Fogo contra “Paulo de Tarso”
Dentre os meus livros que receberam mais cerrada carga de impropérios figura
“Paulo de Tarso”, cujo aparecimento coincide exatamente com o rompimento da
segunda guerra mundial, primeira semana de setembro de 1939. Contra esta
minha obra disparou o P. Julio Maria todo o arsenal dos seus canhões de grosso
calibre, vomitou todas as imprecações da sua alma apostólica e esgotou a última
letra do seu vasto vocabulário de anátemas e maldições.
Muitos outros adeptos do catolicismo sectário lhe seguiram o exemplo.
Este fenômeno nos oferece uma pista para um interessantíssimo “test”, ou antes,
para um notável diagnóstico moral. Deve existir, nas páginas deste meu livro,
algo que tenha irritado sobremodo os nervos dessa gente, atuando sobre eles
como um pano vermelho atua sobre certo animal muito popular nas touradas
espanholas.
Vamos ver se descobrimos a verdadeira razão dessa inaudita ofensiva contra
“Paulo de Tarso”. Adotemos o comprovado sistema das “eliminatórias”.
1 — Antes de tudo, não há em “Paulo de Tarso” o que quer que seja contrário
ao dogma e à moral cristã. A perfeita ortodoxia católica é ampla e seguramente
garantida pelo minucioso exame prévio do censor eclesiástico e pelo expresso
Imprimatur da distinta e competente Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
Mesmo assim, quando a campanha feroz contra este meu livro ia no auge, fui ter
com o cardeal Leme e perguntei-lhe se ele, leitor de todos os meus livros,
descobrira algo em “Paulo de Tarso” que tivesse de ser modificado. Respondeu-
me textualmente Sua Eminência: “P. Rohden, já li três vezes o seu PAULO DE
TARSO, e acho-o cada vez mais belo. Alguns capítulos só os leio com as
lágrimas nos olhos, de tão comoventes que são. Continue a escrever no mesmo
espírito.”
Pedi permissão para fazer uso destas palavras em público, o que o cardeal Leme
me permitiu sem restrições. Isto foi em 23 de maio de 1942.
De fato, distribuí por todo o Brasil um impresso com estas palavras explícitas do
cardeal Leme, que também o recebeu.
Afirmar, depois de tudo isto, como fazem o P. Julio Maria e muitos outros de
idêntica mentalidade, que “Paulo de Tarso” é um livro “pernicioso, perverso,
herético, diabólico”, que não pode ser lido sem pecado por nenhum católico —
isto é o mesmo que afirmar que nem os graves teólogos da Cúria Metropolitana
nem o supremo chefe da Igreja Católica no Brasil entendem patavina de
catolicismo; que só esses demagogos que detestam os meus livros é que são
competentes em matéria de religião.
Não parece que semelhante orgulho seja lá muito cristão, nem creio que essa
indisciplina prime por sua catolicidade...
“Paulo de Tarso” é, pois, consoante testemunho da suprema instância do
catolicismo brasileiro, um livro genuinamente católico. A luta contra ele não é,
portanto, uma luta pró ortodoxia católica.
2 — É sabido que este meu livro não foi atacado pelo clero em geral, mas tão
somente por determinada classe de funcionários eclesiásticos. Todos os
sacerdotes sérios, trabalhadores, ocupados nos seus árduos labores
apostólicos, sobretudo os bons Vigários do interior, nos sertões e nas matas do
Brasil, todos os que consideram a cristianização do povo como sua verdadeira
missão — todos eles continuam a ler e recomendar este meu livro, como os
outros. Dentre as centenas de cartas que desses sacerdotes tenho recebido
felicitando-me pelo livro “Paulo de Tarso”, passo a reproduzir apenas estes dois
tópicos da autoria de dois cultos sacerdotes, um do Maranhão e outro de São
Paulo:
“Estou lendo a formidável obra de Huberto Rohden PAULO DE TARSO. É um
livro maior, na grandeza histórica do assunto e no cunho erudito de suas
palavras, que JESUS NAZARENO, do mesmo autor. É bom gritar bem alto que
PAULO DE TARSO é um livro para espíritos também não católicos, para
acadêmicos de letras, intelectuais de todas as cores. Estou assombrado com a
cultura desse escritor, que parece não ter tempo para se coçar, como se diz aqui
pelo norte.”
P. Joaquim Dourado, Vigário de Codó (Maranhão).

“Quem se dirige ao primoroso autor de PAULO DE TARSO é um obscuro que,


no silêncio da vida, aprecia os verdadeiros valores. Assim, sobremaneira, não
esconde entusiasmo pelo dono de conhecimentos profundos, que se derramam
em páginas fulgurantes... Impecável o presente trabalho: cada período ilumina a
alma, descobrindo perspectivas e panoramas, novos ou delidos; despertando
recordações felizes, capazes de reafirmar e de suscitar a coragem de viver as
suas idéias e morrer por seus ideais.
O edifício erguido pela inteligência do autor, obra prima no gênero, denuncia
cultura invulgar, manifestada em português de lei, despojado desses vícios
detestáveis — a gíria ou a frase feita — patrocinados pelos criadores de uma
literatura derrancada, tão do gosto da gente leviana de nossos dias.
Com demonstrar Paulo de Tarso intemerato bandeirante da fé, o autor põe a
descoberto o ilogismo dos que pretenderam um Cristianismo diverso do pregado
pelo príncipe dos apóstolos. Destinado menos ao povo simples e erradamente
devoto do que aos homens de letras, PAULO DE TARSO é uma dissertação
animada de desassombro... Repositório de idéias construtoras e sadias, o
estudo do ilustre escritor patrício convida-nos e obriga-nos a pensar mais
firmemente...”
Cônego Dr. Deusdedit de Araujo (S. Paulo)

Um dos maiores pensadores católicos da Espanha moderna, o Dr. J. M. Puig y


Marqués, escreve-me de Barcelona o seguinte:
“Recebi o livro PAULO DE TARSO, de Huberto Rohden, e já estou pela metade
do volume. Leio-o com admiração cada vez maior. Acho que nos vossos círculos
de Ação Católica devíeis introduzir o costume de ler, em cada sessão, um
capítulo deste livro magnífico. A exposição do caráter eminentemente ativo do
Apóstolo, sem prejuízo da sua vida interior, a harmonia do seu trabalho e da sua
oração, revelaria em cada sessão uma nova faceta desta vida, que deve servir
de modelo aos cristãos militantes do nosso tempo.”
Dr. J. M. Puig y Marqués (Barcelona)

3 — Prossigamos em nossa “eliminatória”. Se nem a suprema autoridade


eclesiástica do Brasil, nem os verdadeiros apóstolos do catolicismo descobriram
em “Paulo de Tarso” o que quer que fosse de condenável ou contrário ao
verdadeiro catolicismo, segue-se que a razão dessa celeuma não está nas
páginas do livro, mas na pessoa desses barulhentos e indisciplinados
guerrilheiros. Vejamos quem foi que mais violentamente atacou o livro. Foi um
grupo de industriários do catolicismo e do sacerdócio, homens que consideram
o seu ministério, antes de tudo, como uma indústria, um ramo comercial, uma
empresa lucrativa e cômoda, uma “casa de mercado”, como dizia Jesus aos que,
há 19 séculos, professavam a mesma mentalidade. E, de fato, quem mais
vociferou contra “Paulo de Tarso”, quem o arrasou e proibiu ao povo foram
diretores de oficinas gráficas, de casas editoras, de livrarias, de grandes casas
de artigos religiosos, de empresas católicas que mandam os seus caixeiros
viajantes através do Brasil, extorquindo dinheiro ao povo crédulo e supersticioso
— todos eles se revoltaram contra o meu livro, e com razão, porque para eles
“Paulo de Tarso” pode ser um perigo assim como o próprio Paulo de Tarso em
corpo e alma foi uma catástrofe comercial para o Sr. Demétrio, ourives em Éfeso,
que fazia fortuna com a fabricação e venda de amuletos e talismãs,
“templozinhos da deusa Diana”, prometendo as bênçãos da Divindade a quem
comprasse esses objetos.
Quem lê com atenção o respectivo capítulo do meu livro logo compreende a
verdadeira razão dessa fúria contra “Paulo de Tarso”.
Outro motivo dessa campanha é a apologia que em “Paulo de Tarso”, faço do
espírito de abnegação e desinteresse do grande apóstolo, que nem sequer se
valia do direito que o Evangelho lhe concedia, de “viver dos bens materiais
daqueles aos quais dava os bens espirituais”. Bem sabia Paulo que “o operário
merece o seu sustento”, e “quem ao altar serve do altar pode viver”, e ele frisa
com insistência este direito que lhe assiste — mas abre mão desse direito, livre
e espontaneamente, preferindo pregar gratuitamente o Evangelho, e, de noite,
ganhar o seu sustento com o trabalho árduo das suas mãos. Nesta gratuidade
do seu apostolado é que Paulo faz consistir a sua “glória”, como frisa e repete
com grande insistência.
Bem sabia o apóstolo das gentes que, segundo as palavras do Divino Mestre,
não há mal em receber do seu rebanho o necessário para a vida, mas sabia
também que a cobiça humana é infinitamente astuta e apaga qualquer linha
divisória entre o “necessário” e o “supérfluo”, entre o “possuir” bens de fortuna e
o “ser possuído”, ou até possesso, pelo demônio do dinheiro. “Como é difícil um
rico entrar no reino dos céus!... Mais fácil é passar um camelo pelo fundo duma
agulha do que um rico entrar no reino de Deus”...
Sabia o apóstolo que “tudo é lícito, mas nem tudo convém” — e por isto renunciou
ao lícito para que o uso do lícito não resultasse em “inconveniente” para a vitória
do Evangelho.
No meu livro frisei com veemência este espírito de São Paulo — no que certos
“apóstolos” dos nossos dias viram uma indireta contra eles. Os verdadeiros
discípulos de Jesus e de Paulo aplaudiram esta minha exposição, porque nada
de “perigoso” viam nisto, ao passo que os “Demétrios” julgaram de seu dever
enristar lança em defesa da “ortodoxia da fé” — quando de fato lutavam pela
“ortodoxia da bolsa”.
O que há de mais repugnante em toda essa campanha é a simulação, a
insinceridade, a hipocrisia. O que esses cavaleiros da ortodoxia deviam ter feito
era dizer e declarar, lhana e abertamente, a verdadeira razão e o motivo real do
seu descontentamento. Deviam ter dito e escrito assim: “Nós condenamos o seu
livro “Paulo de Tarso”, porque este livro é um perigo para o nosso comércio e as
nossas finanças. Nós temos de vender os nossos artigos religiosos. Custaram
dinheiro e têm de render mais do que custaram. Temos que sustentar as nossas
empresas industriais. Muitos de nós têm a sua casa matriz na Europa, e, como
a Europa está em crise, nós temos de canalizar dinheiro para as nossas
matrizes. O Sr. com essa apologia do desinteresse de São Paulo e essa invectiva
contra as atividades de nosso colega Demétrio de Éfeso está prejudicando
gravemente os nossos negócios. Pare com isto, senão vamos declarar guerra a
seu livro.”
Esta linguagem teria sido sincera e leal. Em vez disto — todo o Brasil sabe de
que estratagema usaram os modernos Demétrios, desacreditando até a
catolicidade do cardeal Leme e da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
Não é desta forma que preparamos melhores dias para o Brasil e para o
catolicismo brasileiro.
44
Atentados contra “Agostinho”
— nascituro
Estranho, esse título, não é? Como se pode cometer atentado contra um livro
“nascituro”, inédito?
E, no entanto, assim aconteceu.
Meu livro “PAULO DE TARSO”, como vimos, foi ferozmente bombardeado
depois de aparecer em público, pelo “crime” de ter dito umas verdades duras aos
modernos “Demétrios”.
AGOSTINHO, por um triz, ia ser assassinado antes de aparecer em público. Não
leia este capítulo quem não tenha olhos bastante fortes para fitar a luz em cheio.
Quem duvidar do que vou dizer, queira vir ter comigo e ver os documentos
originais que estão em meu poder.
Em janeiro de 1941 fui ter com o cardeal Leme, levando os originais do meu livro
“Agostinho”, trabalho de longos meses para cuja composição tive de ler as cento
e tantas obras, no texto original latino, do grande luminar africano. Quem alguma
vez manuseou a volumosa edição Migne (Paris 1877) e fatigou os olhos com
aquele tipo miúdo, em papel amarelado de mais de meio século de existência,
pode avaliar o labor insano que me exigiu a composição desta volumosa
biografia e, mais ainda, a extensa “Antologia Agostiniana” feita com uma seleção
dos mais belos textos de todas as obras do grande filho de Mônica. Como nunca
nenhum livro meu fora entregue ao prelo sem passar pelas mãos da autoridade
eclesiástica, era natural que “Agostinho” seguisse o mesmo caminho.
“AGOSTINHO é bonito como PAULO DE TARSO?” perguntou-me o cardeal, um
dos grandes amigos que tive aqui no mundo e leitor de todos os meus livros,
como ele mesmo diz num cartão que conservo. “É o que o público decidirá”,
respondi.
Em face da violenta campanha contra livros meus aprovados pela Cúria
Metropolitana do Rio de Janeiro, mandou o cardeal Leme que eu entregasse os
originais de “Agostinho”, para o devido exame, ao diretor da Editora Vozes, em
Petrópolis.
No mesmo dia seguiram os originais ao endereço indicado, com uma carta
explicativa. Não conhecia eu, nesse tempo, o caráter de Frei T. B., nem sabia
que o meu livro inédito ia cair nas mãos desse homem, um dos principais
culpados dessa campanha difamatória contra mim.
Passadas umas semanas, no dia 12 de fevereiro, encontrei-me, no Rio, com Frei
T. B., e perguntei-lhe amigavelmente como ia o exame do meu livro.
O frade alemão fitou-me com ar carrancudo e respondeu textualmente:
“Nós, os franciscanos, não aceitamos o exame de seu livro, que é uma vergonha
e porrcarria”. E, como quem aponta o punhal bem ao coração do inimigo,
acrescentou: “Só mesmo quem está com a alma cheia dessas coisas porrcas
pode escrever semelhante porrcarria”.
Não sei o que Frei T. B. foi lá na Alemanha Ocidental antes de tomar o hábito de
religioso. A julgar pela linguagem, deve ter lidado muito com certos quadrúpedes
cerdosos, para repetir com tanta insistência esse mal-cheiroso nome. Porcaria e
vergonha chama ele a descrição que, no meu livro, fiz da vida pagã do jovem
estudante de Cartago, guiando-me pelas “Confessiones” autobiográficas do
próprio Agostinho, sem dúvida muito mais “porcas” do que tudo quanto eu disse
na minha obra.
Nesse mesmo dia, 12 de fevereiro de 1941, depois do referido diálogo, começou
o atentado contra meu livro inédito. Na mesma data, como provam documentos
autênticos em meu poder, foram os originais de “Agostinho” entregues ao Correio
de Petrópolis, endereçados a uma caixa postal diferente da minha, quando o
remetente sabia perfeitamente qual a minha caixa, como consta dos
subsequentes telegramas, todos eles endereçados à minha caixa postal 831.
Como era de esperar, os originais se extraviaram, e durante três semanas
andaram perdidos, de 12 de fevereiro a 6 de março.
Não queira o leitor saber o que foram para mim essas três semanas!... Eu não
possuía cópia do meu trabalho. Nem mesmo um simples rascunho pelo qual
pudesse reconstruir essa exaustiva lucubração de quase 10 meses de labores e
vigílias. Perdida a única via, perdido estaria irremediavelmente todo o meu
trabalho.
O Dr. Rafael Machado, Diretor Regional do Correio do Distrito Federal, teve a
gentileza de pôr à minha disposição um dos melhores investigadores que tinha
e que já deslindara numerosos casos desesperados desse gênero. Com o auxílio
desse hábil e dedicadíssimo “detetive” trabalhei semanas a fio, de manhã até à
tarde, para descobrir o paradeiro dos originais de “Agostinho”. Cartas e
telegramas sem conta se cruzaram entre o Rio e Petrópolis. Examinamos muitos
milhares de recibos de “registrados”. Dirigimo-nos aos assinantes de todas as
caixas que alguma semelhança tinham com a minha. Corremos redações de
jornais e casas editoras — tudo em pura perda.
Por fim, o Diretor do Tráfego Postal sugeriu que encerrássemos as pesquisas e
déssemos o caso por perdido.
Não me pude conformar com este alvitre. Passei longas noites de insônia. Caí
doente, de fraqueza, com o excesso de trabalho, com o pesar e também com a
revolta íntima de semelhante perfídia.
Finalmente, no dia 6 de março, o meu inteligente e incansável investigador deu
com uma pista: descobriu o recibo com o número tal, que, como sabíamos, era
registro em questão. Vinha datado de 24 de fevereiro e assinado por um nome
ilegível. Conseguimos saber que o dito registro fora retirado do Correio, no dia
24 de fevereiro, pelo encarregado da Editora Vozes, no Rio. Fui ter com o Diretor
Regional, que me fez acompanhar do fiscal dos Correios, e, juntos, batemos à
sede da filial da Editora Vozes, à Rua da Quitanda, 26 — 2.º andar. O fiscal,
munido do referido recibo, perguntou ao encarregado da dita filial, se aquilo era
assinatura dele, o que este confirmou com maus modos. E onde estavam os
originais? Retirados do Correio no dia 24 de fevereiro, tinham sido remetidos,
por via particular, à Editora Vozes em Petrópolis, editora cujo diretor era o dito
Frei T. B.
Quer dizer que, desde o dia 24 de fevereiro, sabia Frei T. B. ou seu
representante, do paradeiro dos meus originais — e, no entanto, nada disseram
e deixaram-nos continuar com o insano trabalho de pesquisas, no Correio Geral,
até o dia 6 de março — e sabe Deus até quando teriam escamoteado os
originais, se eu, nesse mesmo dia, não subisse pessoalmente a Petrópolis e os
retirasse das mãos dos frades.
E a porrcarria “Agostinho” apareceu em letra de forma e anda desgraçando o
Brasil — com “aprovação eclesiástica”...
45
Novo atentado contra “Agostinho”
— recém-nascido
Falhara, felizmente, o estratagema de Frei T. B. de assassinar o meu livro
inédito, de eliminar do mundo, como ele dizia, aquela “vergonha e porrcarria”.
Mas o frade alemão não desanimou com esta primeira derrota.
Apareceu “Agostinho”. Apareceu galhardamente, munido do competente
Imprimatur do meu superior hierárquico, e até com um esplêndido prefácio do
Cura da Catedral de Uruguaiana, que, em termos entusiásticos, o recomendava
à leitura e ao estudo de todos os brasileiros, católicos e não católicos.
Esse Imprimatur da autoridade diocesana, e esse prefácio dum distinto
sacerdote devem ter dado cólicas a Frei T. B.
Que fazer? O livro andava em todas as livrarias, lido por gregos e troianos.
E, por ironia da sorte, quem escreveu a mais bela e extensa apreciação de
“Agostinho”, foi um religioso franciscano, irmão de hábito de Frei T. B. Frei
Mansueto Kohnen, lente da Faculdade Católica do Rio de Janeiro.
Que fazer?
Se falhava o atentado contra “Agostinho” nascituro — não falharia o atentado
contra o “Agostinho” recém-nascido... Resolveu Frei T. B. publicar na revista
oficial do clero brasileiro uma das maiores mentiras que já saíram da pena de
um sacerdote em terras do Brasil. Mas... havia uma dificuldade... Frei Mansueto
publicara aquela magnífica apreciação a favor do meu livro... Como podia outro
franciscano, logo depois, afirmar precisamente o contrário?... E, além disto, lá
estava o Imprimatur da autoridade eclesiástica que garantia a perfeita
catolicidade do livro!... E lá estava o magnífico prefácio do Cura da Catedral de
Uruguaiana!... Que fazer?...
O que Frei T. B. fez em face destas dificuldades faria toda a honra a um legítimo
agente da Gestapo em terras de Santa Cruz.
Para não esbarrar assim de fronte com seu colega Frei Mansueto, publicou
contra o meu livro, não um parecer dele, mas o de um lente do Seminário de São
Paulo. Para contornar a dificuldade do Imprimatur da autoridade diocesana,
insinuou nas páginas da Revista Eclesiástica Brasileira que esse Imprimatur era,
possivelmente, apócrifo, inventado pelo autor do livro. Para neutralizar o efeito
do magnífico prefácio do P. Ricardo Liberali, de Uruguaiana, disse que eu tinha
falsificado esse prefácio, truncando-o, imprimindo apenas as frases favoráveis e
omitindo as desfavoráveis ao meu livro.
Estas três mentiras foram estampadas em letra de forma, sob a direção de Frei
T. B., na Revista Eclesiástica Brasileira, em o número de dezembro de 1942.
Teria sido tão fácil certificar-se da autenticidade do Imprimatur, escrevendo uma
carta ou mandando um telegrama à competente autoridade.
Teria sido tão fácil saber se o texto do prefácio era aquele mesmo, apelando
para o autor do mesmo, em Uruguaiana. Mas nada disto convinha, porque assim
se desfaria a cintilante bolha de sabão de mentiras e apareceria a prosaica
realidade.
46
Sugestões para mentiras plausíveis
ainda não inventadas contra mim
No período agudo em que o clero decadente, sobretudo os frades estrangeiros,
que dominam a imprensa católica do Brasil, rivalizavam em dizer de minha
pessoa e obra apostólico-literária cobras e lagartos, mentiras e calúnias de todo
tamanho e feitio, tudo com a infalível “aprovação eclesiástica”, comecei a fazer
coleção dessas cabeludas barbaridades. Depois, porém, perdi a conta e desisti
da iniciativa de catalogar tamanha imundície. Em vez disto, veio-me a idéia de
escrever um artigo pilhérico — que de fato escrevi, mas nunca publiquei —
sugerindo aos meus gratuitos difamadores alguns tópicos que, oportunamente,
poderiam ser estampados contra mim, na imprensa católica, com o competente
“imprimatur”, no caso que, algum dia, o clero esgotasse o arsenal das mentiras
de sua fabricação própria.
Entre as invectivas sugiro as seguintes:
— O P. Rohden acaba de realizar uma sessão de espiritismo, com a filha mais
nova do faraó Ramsés I, no anel interno do planeta Saturno.
— O P. Rohden está lecionando teologia protestante num Seminário que ele
fundou e que dirige no polo sul, precisamente no ponto em que o globo terrestre
gira sobre o seu eixo de ferro.
— Foi o P. Rohden que torpedeou os navios brasileiros, durante a última guerra,
servindo-se de uns submarinos de bolso que ele guarda numa gaveta de mesa
do seu quarto.
— Consta que o culpado do recente eclipse solar foi o P. Rohden.
— O P. Rohden afirmou, numa conferência realizada em Recife, que matou o
diabo com um piparote no chifre esquerdo dele; outra versão diz que foi no chifre
direito.
— O P. Rohden afirmou numa conversa, que o bispo X. Y. é filho legítimo de Sua
Majestade Satânica, Belzebu I, bisneto de Lúcifer lI.
— Consta que o P. Rohden montou no Rio de Janeiro um edifício muito maior
que o da “Noite”, com dinheiro de judeus e protestantes de todos os sete
continentes do globo; porquanto, além dos cinco continentes conhecidos, ele
descobriu mais dois, para seus fins heréticos.
— O P. Rohden afirma no seu recente livro “O Dilúvio” que foi ele que fabricou a
arca de Noé, com madeira de lei do Amazonas, que mandou vir de avião.
Tudo isto, é claro, deverá ser publicado, como as outras notícias congêneres,
com “aprovação eclesiástica”, para que não haja dúvida alguma sobre a absoluta
veracidade dos fatos narrados.
* * *
A fim de orientar algum pesquisador interessado nas fontes históricas,
passaremos a indicar os nomes de alguns dos órgãos da imprensa católica que
tomaram parte ativa na campanha contra os meus livros aprovados pelo cardeal
Leme e por outros bispos. Os órgãos rebeldes que casualmente me caíram nas
mãos são os seguintes:
Revista Eclesiástica Brasileira — órgão oficial do clero católico do Brasil, editada
pelos franciscanos (alemães) de Petrópolis.
A Imprensa — O Domingo 1 — dois jornais publicados pelos padres da Pia
Sociedade de São Paulo (italianos) — Capital de São Paulo.
1. Para que o leitor possa avaliar da “sinceridade” de certos “guias espirituais”, queira ler “O
Domingo”, com data de 28 de agosto de 1960, onde encontrará na primeira página, como artigo
de fundo, um capítulo do meu livro “De alma para alma”, intitulado “Tua alma”, e assinado por
“Elly Margot Sauer”, como sendo da autoria dessa pessoa. Quer dizer que os padres paulinos,
donos dessa revistinha semanal, 1) plagiaram um trabalho meu dando-o como original deles, 2)
procuram fazer crer a seus leitores que o original desse capítulo é de Elly Margot Sauer e que
eu o dei como sendo da minha autoria. Essa campanha de descrédito por meio de mentiras é de
uso e abuso entre muitas pessoas do clero, que se julgam definitivamente salvos em virtude da
batina, missas e sacramentos, não necessitando praticar a ética da verdade e da justiça. “Guias
cegos guiando outros cegos...”

O Lutador — publicado pelo P. Julio Maria Lombaerde (belga), em Manhumirim,


Minas Gerais.
Lar Católico — editado pelos padres do Verbo Divino (holandeses), em Juiz de
Fora, Minas Gerais.
A Voz do Pároco — editado por um sacerdote em Limeira, São Paulo.
O Diário — editado por um grupo de católicos, sob os auspícios do clero, em
Belo Horizonte, Minas Gerais.
A Ordem — editado por uns Congregados Marianos, sob os auspícios do clero,
em Natal, Rio Grande do Norte. Já deixou de fazer des-ordem.
O Nordeste — editado pelos católicos e pelo clero, em Fortaleza, Ceará.
Além desses órgãos, dezenas de outros tomaram parte na campanha de
hostilização a livros expressamente aprovados e recomendados pela autoridade
eclesiástica. Apesar disto, afirma o Catecismo que existe na igreja católica
absoluta unidade de fé, doutrina e regime.
Quanto a mim, não me foi possível descobrir qual o verdadeiro catolicismo:
aquele que aprovou ou aquele que desaprovou os meus livros. No caso que
algum dos leitores descubra o segredo, é favor comunicá-lo ao autor deste livro.
Desde já, muito obrigado.
* * *
Havia anos que os meus queridos inimigos diziam de mim cobras e lagartos.
Constou, por exemplo, que eu, em castigo dos meus pecados, estava leproso e
internado no leprosário do Paraná. Constou que Deus me castigara com súbita
mudez, quando vociferava impropérios a Nossa Senhora, do alto duma tribuna.
Constou que eu enlouquecera e estava num hospício do Rio de Janeiro.
Por fim, o meu editor de então, o Sr. Horácio de Freitas, da “União Cultural
Editora Limitada”, de São Paulo, recebe uma carta de um jornal de Teresina, do
Piauí, perguntando se era verdade que o Rohden se havia suicidado, como o
clero local propalara. O Sr. Freitas entregou a carta ao próprio “suicida” para que
ele a respondesse pessoalmente. Foi o que fiz e o jornal publicou na íntegra essa
carta de um suicida vivo.
Por detrás de todas essas diatribes do clero decadente está a seguinte ideologia:
O Rohden abandonou o clero; o clero é de Deus; logo, o Rohden abandonou a
Deus, é apóstata, é ateu. E não é possível que Deus não o castigue. Mas, como
o castigo tardava, era necessário que o clero inventasse o que não existia,
porque era absolutamente impossível que um pecador desse tamanho passasse
impune. Venham, pois, as costumadas armas da mentira, difamação e calúnia
— naturalmente, pela maior glória de Deus e salvação das almas.
Finalmente, como o Deus vingador parecia haver se esquecido de mim, e como
eu, segundo a mentalidade clerical, devia ser imensamente infeliz, por não ser
mais das fileiras deles, devia logicamente acabar suicida. Não haviam contado
com a possibilidade de um suicida desmentir pessoalmente o seu suicídio...
É esta a perversa política do clero decadente, perante seus adeptos ingênuos e
crédulos.
Deus tenha piedade de um povo guiado por esses guias cegos, como lhes
chamaria o divino Mestre.
47
Clericalismo, Catolicismo,
Cristianismo. — Meus livros todos
condenados
Numa circular datada de 26 de novembro de 1942, Dom José Gaspar de
Afonseca e Silva, então arcebispo metropolitano de São Paulo, proibiu
oficialmente todos os meus livros até então publicados — nesse tempo, em
número de 25, todos eles explicitamente aprovados, (à exceção de um só) 1 e
15 deles prefaciados por bispos e arcebispos, sendo que 4 desses livros
proibidos levavam magnífico prefácio de Dom Sebastião Leme, cardeal-
arcebispo do Rio de Janeiro.
1. O único livro que, nesse tempo, foi publicado sem “Imprimatur” foi “Em Espírito e Verdade”, e
isto pela seguinte razão. Como todos os outros originais, também os deste livro foram entregues
à autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro. Mas, como era intensa a campanha que as ordens
estrangeiras haviam organizado contra todos os outros livros meus explicitamente aprovados, a
Cúria Metropolitana do arcebispo achou preferível não deitar mais óleo no fogo. O censor da
Cúria, P. João B. Siqueira, devolveu-me os originais, pela razão indicada, como consta duma
carta que se acha em meu poder. O livro saiu, pois, sem “Imprimatur”, o que deu azo a que o
clero espalhasse por todo o Brasil mais uma mentira, a saber: que eu havia publicado esse livro
contra a expressa proibição da autoridade eclesiástica; outros inventaram que eu não havia
entregue os originais à Cúria.

“Menti, menti — dizia Voltaire — que alguma coisa sempre ficará!”

Sei de um bispo que, depois de ler “Em Espírito e Verdade” — livro com 365 meditações diárias
baseadas em textos do Novo Testamento — disse a seu secretário: “Pena que esse livro não
tenha “Imprimatur”; do contrário, ia recomendá-lo ao clero e aos fiéis da minha diocese, porque
o conteúdo é excelente.”

Essa circular foi assinada também, por ordem do arcebispo de São Paulo, pelos
seguintes dignatários eclesiásticos:
Dom Antônio, arcebispo-bispo de Jabuticabal
Dom Alberto, bispo de Ribeirão Preto
Dom Antônio, bispo de Assis
Dom José, bispo de Bragança
Dom José Carlos, bispo de Sorocaba
Dom Henrique, bispo de Cafelândia
Dom Luiz, bispo de Botucatu
Dom Lafaiete, bispo de Rio Preto
Dom Gastão, bispo de São Carlos
Dom Paulo, bispo de Campinas
Dom Francisco, bispo de Lorena
Monsenhor João José de Azevedo, Vigário Capitular de Taubaté
Monsenhor Luiz Gonzaga Rizzo, Vigário Capitular de Santos.
Foi esta a maior vitória que as ordens religiosas estrangeiras, após quatro anos
de pressão, conseguiram sobre parte do episcopado brasileiro, levando mais
duma dúzia de dignatários eclesiásticos a condenar, oficial e publicamente,
algumas dezenas de obras explicitamente aprovadas e ardorosamente
recomendadas por outros bispos, arcebispos e pelo cardeal-arcebispo do Rio de
Janeiro. Em fevereiro do próximo ano, 1943, Dom João Becker, arcebispo de
Porto Alegre, endossou a circular dos bispos e arcebispos da Província
Eclesiástica de São Paulo, e convidou os quatro bispos sufragâneos da Província
Eclesiástica do Rio Grande do Sul — de Santa Maria, Pelotas, Uruguaiana e
Caxias — a aderir à mesma proibição; entretanto, todos os quatro sufragâneos
se negaram a aderir, permanecendo fiéis à orientação do cardeal Leme e de
outras autoridades eclesiásticas. Ficou, assim, D. João Becker isolado com a
sua reprovação e rebeldia.
Convém notar, como vergonhosa agravante, que essa proibição dos meus livros
por parte desses bispos e arcebispos católicos foi dada um mês e pouco depois
do falecimento do cardeal Leme, que ocorrera em meados de outubro de 1942.
Quer dizer que esses Srs. bispos e arcebispos não tiveram a lealdade de
declarar perniciosos à fé católica os ditos livros durante a vida do mais alto
dignatário da igreja católica no Brasil, mas tiveram essa triste coragem só depois
da morte do mesmo, desferindo, por assim dizer, uma bofetada póstuma a Dom
Sebastião Leme, estigmatizando-o como fautor e cúmplice das minhas doutrinas
perniciosas à fé católica.
Creio que raras vezes o catolicismo brasileiro sofreu maior humilhação do que
esta que 14 bispos e arcebispos lhe infligiram, revoltando-se, pública e
oficialmente, contra a primeira autoridade eclesiástica do país — um mês depois
do falecimento da mesma.
Acresce que esses rebeldes contra a legítima autoridade fizeram crer ao povo
que eu me tinha revoltado contra a autoridade eclesiástica, quando nunca, nos
vinte e tantos anos que servi lealmente à igreja, tive a menor censura da parte
de nenhum dos meus superiores eclesiásticos e gozei da aprovação e proteção
integral de Dom Sebastião Leme até a morte do mesmo.
Será que se pode promover a causa do catolicismo brasileiro com armas tão
infames? Não devia a verdade, a justiça, a lealdade ser o característico número
um dos que se dizem representantes de Jesus Cristo? Não diz o catecismo
católico que é pecado mentir, e pecado mortal caluniar alguém em matéria
grave? Não exige que o caluniador revogue publicamente a calúnia que
publicamente espalhou? Se algum dos meus leitores souber que algum dos 14
caluniadores episcopais ou arquiepiscopais supra-citados tenha revogado a sua
gravíssima calúnia contra mim, queira fazer-mo saber.
Entretanto, como o grande Pascal provou nas suas “Letras Provinciais”, o clero
adota dois pesos e duas medidas em matéria de ética: um para o povo, outro
para si mesmo. Se um leigo calunia tem obrigação de revogar a calúnia, para
receber absolvição em confissão; mas, se um dignatário eclesiástico mente e
calunia, não tem obrigação alguma de revogar — suposto que a calúnia reverta
em benefício da classe.
Estas acusações são graves, bem o sei — mas eu aqui estou para receber a
refutação das mesmas. A refutação deverá provar o seguinte:
1) que os meus livros não tenham sido aprovados pela legítima autoridade
eclesiástica, 2) ou que eu tenha sorrateiramente modificado o texto aprovado, 3)
ou que os ditos bispos e arcebispos não tenham reprovado todos os meus livros
como perniciosos à fé pública. Acrescentava o infeliz documento que “os
sacerdotes do clero secular e regular não lessem nem permitissem que se
divulgassem entre os fiéis esses livros nem permitissem que os Congregados
Marianos e Filhas de Maria servissem de agentes distribuidores de tais obras.”
Aqui têm os católicos brasileiros um exemplo clássico, recente, de como um
sacerdote, depois de trabalhar entusiasticamente, durante decênios, em prol da
igreja, sempre em perfeitíssima obediência à autoridade diocesana, sacrificando
tempo, dinheiro, conforto e saúde — foi caluniado por padres, bispos e
arcebispos como elemento pernicioso dentro da igreja — e foi, além disto,
enxovalhado pela imprensa clerical da sua igreja como “cretino, cabotino, Judas,
traidor, herege, apóstata, infame, Satanás, lama” (tudo isto se encontra nos
jornais e revistas clericais que tenho sobre a mesa, naturalmente “com
aprovação eclesiástica”).
Creio que não vai longe o tempo em que a parte mais pura e sincera do
catolicismo brasileiro se emancipará duma teologia clerical incompatível com o
espírito do Evangelho de Jesus Cristo. Existe, aliás, entre nós grande número de
católicos que já faz nitidamente a distinção entre catolicismo, ou melhor,
catolicidade, e clericalismo romano. O clero quer, acima de tudo, dominar,
escravizar as consciências, em prol da política e das finanças da sua classe, dê
por onde der — ao passo que a verdadeira catolicidade procura, antes de tudo,
harmonizar o seu modo de pensar e viver com as máximas eternas do
Evangelho.
No dia em que, enojado dessas infâmias, depus nas mãos da autoridade
eclesiástica o meu mandato sacerdotal, num documento oficial com firma
reconhecida, tive a sensação de sair de um tenebroso e caótico subterrâneo,
iluminado por tochas fumegantes, e entrar num glorioso ambiente primaveril
aclarado pela puríssima claridade solar de Deus.
* * *
Muitos dos que tiveram a coragem e paciência de me seguir até aqui, estarão
ansiosos por formular uma pergunta.
Como se explica que um sacerdote em perfeita harmonia e obediência com seu
superior diocesano seja tão violentamente hostilizado por outros sacerdotes?
Como se explica que dezenas de livros dele, explícita e entusiasticamente
aprovados e, por espaço de decênios, lidos e relidos proveitosamente por
milhares de católicos, sejam, posteriormente, reprovados como perniciosos à fé
católica?
Já indigitamos a resposta a essa pergunta; mas convém aprofundá-la um pouco.
Quem confunde catolicismo com clericalismo não encontrará jamais saída desse
labirinto. Eu mesmo laborei largos anos nessa funesta confusão, e posso, por
isto, falar de ciência própria.
Antes de tudo, segundo a teologia de Roma, a igreja é a “igreja docente”, isto é,
a hierarquia eclesiástica constituída pelo papa e pelos bispos; os sacerdotes,
propriamente, não fazem parte da “igreja docente”, porquanto não passam de
auxiliares e representantes dos bispos; pode-se dizer que o sacerdote faz parte
da hierarquia apenas de um modo indireto ou vice-gerente.
Quanto aos leigos, os fiéis em geral, ou seja a “igreja discente”, não passam de
um elemento passivo, receptor, mas não se pode dizer que façam parte da igreja
como tal, que é constituída pela hierarquia. Depois da declaração da
infalibilidade pessoal do papa, em 1870, até se pode dizer que o papa é a igreja.
De maneira que, estritamente falando, o bispo de Roma podia dizer,
parafraseando as conhecidas palavras de um rei da França, “L’État c’est moi!”
— “Ego sum Ecclesia!” eu é que sou a igreja.
A hierarquia eclesiástica, que se considera como sendo a igreja, é uma classe
ou um partido rigorosamente definido e distinto dos leigos. Possui uma
organização exata e precisa. Defende, em toda e qualquer hipótese, o prestígio
e os interesses da classe. Toda a doutrina romana é conscientemente clerical,
visando invariavelmente o prestígio político-social e a prosperidade econômico-
financeira do clero. Segundo a teologia de Roma, enquanto a hierarquia goza de
prestígio e prosperidade, a igreja é grande e próspera.
A hierarquia é a igreja! O povo é um simples apêndice passivo...
Ora, sendo a igreja o reino de Deus, e devendo o reino de Deus ser sempre
triunfante, segue-se logicamente que o triunfo do clero é o triunfo do reino de
Deus. Com esta doutrina consegue o clero cingir-se de uma auréola divina e
justificar tudo que ele faz, porquanto tudo é “pela maior glória de Deus”.
É sacrossanto dever do homem promover, por todos os meios a seu alcance, o
triunfo do reino de Deus sobre a face da terra — o que, para o católico clerical,
equivale a promover o triunfo do clero.
O triunfo do clero é para ele, o triunfo de Cristo — e a derrota do clero seria a
derrota de Cristo!
Está doutrina está, implícita ou explicitamente, contida em qualquer tratado de
teologia dogmática ou moral, no código de direito canônico e em toda a liturgia
sacramental de Roma.
Quer dizer que, para o clero, só existe um dever supremo: o domínio absoluto
da sua classe sobre o mundo, porque esse domínio é o triunfo do Cristianismo.
Para conseguir esse domínio, o clero não desdenha expediente algum, como
prova a história de vários séculos. Não há meios imorais, ilícitos, quando se trata
de promover o triunfo do reino de Deus (quer dizer, do clero), porquanto o fim
justifica os meios; todos os meios são bons desde que o fim seja bom. Ora, é
evidentemente bom promover o triunfo do reino de Deus sobre a terra, logo,
todos os meios conducentes a esse fim são bons. Segundo a teologia clerical,
deduzida dessa premissa, as Cruzadas e a Inquisição, em que, por ordem da
hierarquia eclesiástica, foram assassinados milhares de homens inocentes, não
foram expedientes eticamente maus, porque promoviam a causa sagrada do
reino de Deus, eliminando os elementos infensos a esse reino. Da mesma forma,
não é eticamente mau organizar qualquer campanha difamatória contra quem
quer que seja, desde que o resultado final da campanha seja favorável ao reino
de Deus, quer dizer, aos interesses da classe clerical.
O supremo imperativo categórico do catolicismo romano (não da catolicidade
cristã!) é, pois, este: Promover, por todos os meios, o domínio absoluto do clero!
Blaise Pascal, cientista católico do século 17, expôs, com inigualável precisão e
objetividade esses processos clericais, que ele chama política dos jesuítas, mas
que é a quintessência da política romana de todos os tempos. Roma, como era
de esperar, condenou as “Letras Provinciais” de Pascal, ao que Pascal escreveu:
“Roma condenou as minhas Letras Provinciais, mas o que nelas condeno está
condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!”
Pascal viveu e morreu como fervoroso cristão católico, e, se não tivesse escrito
essas cartas, figuraria talvez nos altares da igreja, tão pura e austera era a sua
vida cristã. Graças a essa pureza cristã e à agudeza do seu espírito disciplinado,
percebia Pascal nitidamente que uma coisa é catolicismo cristão, e outra coisa
é clericalismo romano. Para ele, catolicismo é cristianismo, ao passo que
clericalismo é uma orientação político-financeira incrustada na igreja cristã.
A razão desta diferença é óbvia: para o clero, o exercício do sacerdócio é uma
profissão lucrativa, um ganha-pão, e uma política que garante prestígio social.
Para o católico leigo e sincero, o catolicismo é um ideal divino, do qual ele não
espera nenhuma vantagem social nem material, devendo até estar disposto a
sacrificar certas vantagens terrenas para ser católico de verdade.
Enquanto o sacerdócio continuar a ser uma profissão lucrativa e um meio de
influência política, o clero está em manifesta oposição ao Cristianismo. É
categórica a ordem que Jesus deu a seus discípulos: “Dai de graça o que de
graça recebestes!” Categórica também é a condenação que ele lança aos chefes
espirituais da igreja de Israel: “Ai de vós, que devorais as casas das viúvas e dos
órfãos, sob pretexto de longas orações!” “Não podeis servir a dois senhores, a
Deus e ao dinheiro”. Permitiu a seus discípulos receber o sustento necessário,
mas não remuneração pecuniária: “Quando entrardes numa casa, comei o que
se vos puser diante, porque digno é o operário do seu sustento”. A tradução
“salário” em vez de “sustento”, incompatível com o contexto, já revela o espírito
mercenário do clero desse tempo.
* * *
Falei do clero em globo, o que exige uma ressalva.
Há no meio do clero bom número de homens que são melhores que o sistema a
que pertencem. O seu profundo cristianismo, a sua “anima naturaliter christiana”
conseguiu prevalecer contra a teologia do clericalismo romano. São mais
cristãos que romanos. São, geralmente, padres do interior, do sertão, do mato
— como aquele herói moribundo de Itacoatiara, que descrevi acima — homens
de vida simples e humilde, inteiramente voltados para as grandes realidades
espirituais do reino de Deus. Esses homens toleram tacitamente o mundanismo
da hierarquia, não se revoltam publicamente contra ela, como os chamados
“hereges”, nem os aprovam interiormente, como os mercenários, mas carregam
a pesada cruz da organização eclesiástica humana a fim de promover, em
silêncio e resignação, o progresso espiritual do rebanho que lhes foi confiado.
Inúmeras vezes, nas minhas incessantes viagens apostólicas por todas as
latitudes e longitudes do Brasil, tenho encontrado padres desse tipo, dos quais
guardo a mais sincera e carinhosa lembrança e simpatia. Quando as ordens
religiosas estrangeiras desencadearam contra mim e minha obra aquela
campanha infernal que culminou na destruição da “Cruzada da Boa Imprensa” e
na minha retirada espontânea das fileiras do clero, não houve, ao que me conste,
um só desses vigários do sertão e da roça que tomasse parte na infame
campanha. Pelo contrário, todos eles lamentaram sincera e sentidamente o que
estava acontecendo — tenho aqui dúzias de cartas nesse sentido.
Bem diferente é o caso com o clero dos conventos (onde, é claro, também há
honrosas exceções) e das grandes cidades do litoral, onde o trabalho é
relativamente fácil e o conforto é grande. Ora, é sabido, o comodismo, o luxo, a
política, as adulações sociais corrompem e enervam o cerne da alma; o
funcionário eclesiástico cede à lei do menor esforço, aceita as vantagens do seu
ofício, mas foge o mais possível das desvantagens e dos sacrifícios — e está o
terreno preparado para qualquer apostasia do cristianismo. O conforto que o
convento oferece ao monge, onde ele encontra a mesa posta na hora H, não
raro uma mesa lauta regada com um bom copo de vinho ou de cerveja, 2 o
prestígio social e político que o circunda, e, last not least, a facilidade com que,
nos grandes centros, um convento acumula vastos capitais — tudo isto leva,
muitas vezes, os inquilinos de um convento a um teor de vida bem diferente da
singela e austera espiritualidade de um pobre vigário do interior. Jesus não
fundou conventos, mandou seus discípulos a percorrer o mundo inteiro.
2. Numerosas comunidades religiosas, como sei de ciência própria, mantêm a sua fábrica de
cerveja ou sua cantina de vinho próprios. Há marcas de vinhos célebres por seus fabricantes
eclesiásticos. Todo psicólogo sabe que qualquer sacrifício tende a criar uma compensação
correspondente. O celibatário sente a instintiva necessidade de se desforrar, de um ou outro
modo, pela renúncia aos prazeres sexuais, e a compensação mais natural é encontrada nos
prazeres da mesa. A atrofia no plano sexual cria a hipertrofia no plano estomacal!

Além disto, convém não esquecer, todas as ordens e congregações religiosas


que trabalham no Brasil têm origem estrangeira; as suas casas matrizes estão
na Europa. As últimas guerras devastaram e empobreceram o Velho Mundo de
tal modo que as casas matrizes têm de pedir auxílio às suas filiais daquém-mar,
situação que degenera facilmente numa desenfreada caça ao dinheiro, com
detrimento do espírito cristão.
Acresce que os membros das ordens religiosas fazem, geralmente, os seus
estudos superiores na Europa, e voltam aqui com fama de grandes eruditos,
teólogos, exegetas, canonistas, o que, não raro, os enche de sobranceiro
desdém para com os “padres ignorantes” que nunca saíram do Brasil e vivem no
seu humilde anonimato sertanejo ou roceiro.
Não existe, nem jamais existiu no Brasil uma imprensa católica — só existe
imprensa clerical, e toda ela nas mãos das ordens religiosas de procedência
estrangeira. Além disto, também as casas editoras católicas são propriedade
dessas ordens. São elas que formam a opinião pública, e, se essas ordens se
julgam prejudicadas por qualquer movimento religioso, por mais cristão que seja,
não lhes é difícil mobilizar o país inteiro contra esse “perigo”. Mais de uma vez
me disse o cardeal Leme, quando assediado pelas ordens religiosas para cassar
o “Imprimatur” dos meus livros, que se sentia impotente em face da campanha
organizada contra mim por essas sociedades.
O Núncio Apostólico é, invariavelmente, elemento estrangeiro, e é por demais
natural que simpatize com as ordens estrangeiras, como aconteceu no meu
caso.
* * *
Toda a campanha contra mim e meus livros foi travada sob a alegação de não
serem os meus livros “católicos”, mas “apenas cristãos” (esse “apenas” é muito
importante, porque trai o espírito do clero romano, que se julga superior ao
próprio cristianismo!).
Confesso que o conteúdo de muitos dos meus livros, embora explicitamente
aprovados, não era favorável às aspirações do clero — pois eram “apenas
cristãos”. Essa acusação é, para mim, o maior louvor. Para mim, nada existe
maior e mais sublime do que aquilo que o Cristo era, disse e fez. Neste ponto
sou intransigente. Não admito nem jamais admitirei que a teologia romana tenha
arquitetado algo mais puro e fascinante do que aquilo que encontramos nas
páginas divinas do Evangelho. De maneira que a razão última dessa campanha
infernal foi, essencialmente, uma campanha do clericalismo contra o
Cristianismo — e foi por esta razão que nunca fraquejei e sempre me sentia
tranquilo e feliz na minha posição de vítima, tanto mais que os homens mais
sinceramente cristãos do clero — sobretudo o cardeal Leme e o P. João Siqueira,
censor da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, diretamente responsável pelo
“Nihil Obstat” dos meus livros — estavam invariavelmente do meu lado.
Numa palavra, o clero rebelde que conseguiu, após quatro anos de campanha
desleal, a proibição dos meus livros, passou a si mesmo o mais vergonhoso
atestado de falta de Cristianismo, e os 14 bispos e arcebispos que sucumbiram
a essa campanha se tornaram cúmplices dessa vergonhosa desordem.
O Brasil católico só tem uma escolha: ou tornar-se mais clerical e menos cristão
— ou então tornar-se mais cristão e menos clerical.
Os da primeira alternativa não devem ler os meus livros nem assistir às minhas
conferências ou cursos de Filosofia, porque sou “apenas cristão” e não clerical
— os da segunda alternativa sempre encontrarão nos meus livros, nas minhas
palestras públicas e na minha Filosofia alimento vigoroso e sadio para o seu
cristianismo genuíno e integral.
Escolham!
48
Salvação pelo Cristo — ou pelo
clero?
Houvemos por bem tratar por extenso dessa ignóbil campanha duma parte do
clero romano contra um de seus membros, porque, através da mesma, aparece
um dos caracteres fundamentais da mentalidade clerical, que abandonou a
senda reta e simples do Evangelho de Jesus Cristo. Pouco importa qual tenha
sido a vítima casual dessa campanha; o que importa é mostrar a força motriz
que está por detrás da mesma, e que é a mesma através de todos os séculos.
É a concepção teológica, anti-evangélica, da salvação do homem pelo clero,
concepção essa que, desde o quarto século, quando o catolicismo romano
nasceu, se lança, qual fio de sangue, através da Idade Média e através de todos
os tempos até aos nossos dias, naquele setor do cristianismo ocidental. No
período áureo da hierarquia romana, sobretudo entre os séculos 11 e 13, esta
doutrina tipicamente clerical se cristalizou nitidamente em duas obras célebres
do frade dominicano Tomás de Aquino, e foi definitivamente sancionada, no
século 16, pelo Concílio de Trento.
Jesus Cristo disse: “Ninguém vai ao Pai senão por mim”. Mas o clero
acrescentou a estas palavras lapidares: “E ninguém vai ao Cristo senão pelo
clero”, ab-rogando praticamente a primeira parte, porque, se a ida ao Pai
depende do Cristo, e a ida ao Cristo depende do clero, é rigorosamente lógico e
matematicamente claro que “ninguém vai ao Pai senão pelo clero”. E é
precisamente isto que o clero visa: o monopólio absoluto da salvação por seu
intermédio.
Em qualquer Catecismo, devocionário ou tratado de teologia eclesiástica
encontramos exposta essa doutrina fundamental de Roma. Doutrina cristalizada
nas conhecidas palavras: “Fora da igreja (romana) não há salvação”. Mas, como
a igreja é essencialmente o clero, segue-se que “fora do clero não há salvação”.
Há tempo li uma obra em que essa doutrina anticristã encontra forma
insuperável; o livro é do padre francês, Monnin, e leva o título: “L’esprit du Curé
d’Ars”. Quem lê esse livro, devidamente aprovado, não pode deixar de se revoltar
intimamente contra a audaciosa tentativa de uma auto-deificação do clero pelo
clero. É uma obra escrita por um membro do clero destinado a endeusar o clero.
Não creio que haja no Brasil, ou fora dele, um partido político que elogie mais
exageradamente a si mesmo do que o clero elogia o clero. Diz, por exemplo, o
citado livro que a dignidade do padre supera incomparavelmente a dos anjos e
a da própria Virgem Maria; se um pecador pedir a um anjo do céu que o absolva
dos seus pecados, não o poderá o anjo fazer, nem que apareça uma legião
desses espíritos angélicos; são impotentes para tão grande obra; mas se o
pecador pedir absolvição ao mais humilde dos padres, este o absolverá de todos
os pecados, por maiores que sejam. E note-se, frisa o padre Monnin, que o
sacerdote não diz “Deus te absolva”, mas sim “eu te absolvo dos teus pecados”,
funcionando literalmente como representante plenipotenciário de Deus.
A Virgem Maria, prossegue o autor, com aprovação eclesiástica, chamou do céu
à terra, uma única vez, o Filho de Deus — mas o padre o faz descer do céu sobre
o altar cada dia, milhares de vezes no mundo inteiro; basta que, durante a missa,
profira sobre um pedacinho de pão as palavras “isto é o meu corpo” — e Jesus
nasce sobre o altar, entre as mãos do sacerdote. “Dum pedaço de pão faz um
Deus!”
E, mais uma vez, frisa o autor que o padre não diz “isto é o corpo de Jesus”, mas
sim “isto é o meu corpo”, agindo assim em nome do próprio Cristo.
Por fim descreve o autor a tristíssima condição da imensa maioria da
humanidade que vive fora do alcance do clero romano: milhões e milhões de
seres humanos vivem e morrem nos seus pecados, por falta de padres que os
absolvam; nada lhes vale, a esses infelizes, ter Jesus morrido na cruz porque
esses merecimentos da morte redentora não lhes podem ser aplicados, uma vez
que não existe padre no meio desses homens que os ponha em contato com o
tesouro da morte do Redentor.
Quer dizer que, para cerca de 5/6 do gênero humano, cerca de 2 bilhões
(2.000.000.000) de almas humanas, não há redenção porque não há padres.
Apenas uma diminuta parcela da humanidade goza do privilégio da redenção,
porque vive casualmente numa zona onde há padres romanos.
A idéia que o clero faz dos merecimentos do Redentor é, mais ou menos, a
seguinte: existe um vasto depósito ou armazém de tesouros divinos acumulados
pelo Cristo Redentor; e para essa tesouraria possui o clero de Roma as chaves,
e só ele; cerca de 5/6, uns 2.000.000.000 da pobre humanidade, jazem ao redor
desse depósito de mantimentos espirituais, morrendo de fome, unicamente
porque não aparece nenhum chaveiro, o padre, para lhes abrir a porta para essa
tesouraria da vida eterna.
Destarte, o clero inutiliza praticamente quase toda a obra redentora de Cristo,
arvorando-se em intermediário indispensável entre o homem e Deus. O Cristo
foi relegado a segundo plano, a um fator meramente passivo, que, sim, mereceu
a salvação aos homens, mas fez depender a aplicação da mesma a pobres
criaturas humanas, falíveis, muitas vezes piores pecadores que os pecadores
leigos.
Acresce que a salvação pelo clero é imensamente difícil. A ida ao Pai pelo Cristo
é possível a todo e qualquer homem, mesmo que nunca tenha ouvido o nome
de Jesus Cristo, uma vez que o Cristo, o mesmo Cristo que encarnou em Jesus,
está em cada homem — “o reino de Deus está dentro de vós”, “o Cristo, que é a
vida e a luz, ilumina a todo homem que vem a este mundo”, “eu estou convosco
todos os dias”.
Mahatma Gandhi tinha encontrado o Cristo em si, muito antes de o ter
encontrado nas páginas dos Evangelhos. Os profetas da lei antiga, os gênios
espirituais de todos os tempos e países descobriram em si o eterno Cristo. De
maneira que para nenhum homem é impossível “renascer pelo espírito e ver o
reino dos céus”. O Cristo eterno e interno é um Cristo onipresente. A
possibilidade da redenção pelo Cristo é universal; se nem todos encontram o
Cristo não é por falta de padres, mas sim “porque amaram mais as trevas que a
luz, porque as suas obras eram más e não se chegaram à luz”.
O padre, porém, não é um ser onipresente, de maneira que, se dele dependesse
a salvação, como ele pretende fazer crer, seria obra sumamente precária, incerta
e lacunosa. Se para uma pequena minoria fosse possível essa modalidade de
redenção pelo clero, para a imensa maioria da humanidade é praticamente
impossível, como o próprio padre Monnin concebe.
* * *
O clero, como é sabido, estabeleceu certas condições e formalidades litúrgicas,
das quais, segundo a sua teologia, dependeria a salvação ou ulterior santificação
da alma. Mas todas essas condições são do domínio absoluto e exclusivo do
clero, e muitas delas só são concedidas mediante pagamento. O clero é
intransigente nesse ponto: não reconhece nenhuma espécie de salvação que
não passe pelas mãos dele. A doutrina de Cristo “ninguém vai ao Pai senão por
mim”, é economicamente estéril; não se presta absolutamente para montar um
estabelecimento financeiro de crédito. O clero, porém, necessita de uma teologia
que seja econômica e financeiramente fecunda. 1
1. Segundo o artigo de um correspondente em Roma, publicado no grande jornal francês “Le
Petit Journal”, do Canadá, os meios financeiros internacionais estão muito preocupados com a
doença do Papa Pio XII, que poderá causar uma mudança no trono do Vaticano.

De fato, é de se estranhar o motivo por que o mundo financeiro, que nunca se deixou influenciar
por sentimentos religiosos, mostre tamanha apreensão diante da possibilidade de mudança no
trono católico. E o correspondente em Roma, Sr. Jack Alein, explica as razões, dando a entender
que o Império Vaticano controla não somente a vida religiosa de quase 400.000.000 de católicos,
como também é a segunda força financeira do mundo, porquanto, conforme diz o Sr. Alein, de
acordo com a constituição do Estado Vaticano, somente o Papa manda sobre os dirigentes da
riqueza, que é avaliada hoje em dia em 125 bilhões de dólares.
E, para dar uma idéia da enormidade da riqueza, é suficiente saber que a reserva nacional da
América do Norte é de 200 bilhões de dólares; a reserva da Igreja Católica é três vezes maior
que a reserva da Inglaterra e dez vezes maior que a da França. Grandes somas são investidas
nas indústrias pesadas e nas estradas de ferro da Itália e também nos bancos internacionais. O
“Valpi” — grupo de indústrias — controla-se pela soma original de 115 milhões de liras; o grupo
“Edson”, com 500 milhões de liras, e o grande truste de eletricidade — “Adriático” — com 18%
de ações. O Império do Vaticano é também o maior acionista da gigantesca fábrica de carros
“Fiat” e da organização química “Monte Catini”. A Igreja Católica é também o maior sócio
individual da “Italgaz” e da “Viscouz”. Esta última é a maior fábrica da Europa em trabalhos
sintéticos, plásticos e materiais de “nylon”.

Outro bom negócio para o Vaticano é também a firma de vinho “Chianti”, mundialmente
conhecido, cujas plantações se acham nas terras que pertencem ao Vaticano. Grandes capitais
são investidos nos telefones e na aviação da Itália. O Vaticano possui grande parte das ações
da “Alitalia” e, de acordo com um contrato entre ambos, esta última é obrigada a encarregar-se
da retirada dos arquivos, objetos de arte e das riquezas do Vaticano, em caso de guerra. O
Vaticano tem interesses e controla a grande companhia de seguros “Loid Triestino”, que financia
muitas firmas com somas fabulosas.

Como se vê, a Igreja Católica é um fator forte na vida econômica da Itália, mas o Império do
Vaticano também tem suas finanças espalhadas além da fronteira da península italiana, na
Europa, até o continente americano. E as atividades desses capitais são dirigidas pelos três
bancos internacionais: “The P. Morgan”, em Nova Iorque, “Credi Suiss” em Gênova, e “Banque
de Paris et des Pays Bas”, em Paris. Este último é considerado o banco dos católicos na França.

O Banco DeI Santo Spírito, em Roma, é de fato o banco oficial do Vaticano e é dirigido por uma
administração especial nomeada pelo Papa, organização financeira esta que dirige todas as
operações de finanças do Império do Catolicismo.

Na caixa forte do Papa não se encontra muito dinheiro, nem ouro, em virtude da intranquilidade
existente na Europa. O ouro e os papéis de valor, porém, segundo fontes fidedignas, estão
guardados na Inglaterra e em outras partes da Europa, mas a maior parte está bem guardada
na América do Norte.

Resumindo, portanto, diz o correspondente de Roma, Sr. Jack Alein, que, como somente o Papa
dá a última palavra na imensa riqueza do Vaticano, não somente os 400.000.000 de patriotas
espirituais estão preocupados com a sua saúde, mas também o mundo financeiro tem fortes
razões para temer uma mudança no trono do Vaticano.

(Resumo de um artigo publicado em “Die Presse”, de Buenos Aires, em 20 de fevereiro de 1955).

À luz dessa mentalidade clerical, era inevitável que meus livros, que insistiam
grandemente na redenção pelo Cristo, e passavam em silêncio a salvação pelo
clero, acabassem por ser hostilizados, mais dia menos dia, pela parte menos
cristã e mais romana do clero. Pela violência com que foi conduzida a campanha
contra mim e meus livros bem se pode avaliar do grau de romanismo clerical e
da deficiência de Cristianismo evangélico dos seus protagonistas.
É necessário que o povo cristão do Brasil abra os olhos enquanto é tempo, para
não perder o maior tesouro espiritual que possui: a pureza do Evangelho de
Jesus Cristo.
Terá de decidir-se por uma das alternativas: a salvação ou pelo Cristo ou pelo
clero?... Não podeis servir a dois senhores: ao Cristo e ao clero!...
49
“Credores de Deus”
Pensamentos sobre catolicidade e romanidade

Por mais estranho que pareça este título, há milhares e milhões de pessoas que
vivem nesse ambiente, como se fossem credores de Deus, mercê do imenso
capital de obras religiosas que praticaram e depositaram na tesouraria do Banco
Celeste.
É da íntima psicologia humana a tendência, consciente e inconsciente, de querer
compensar com a abundância de atos externos a ausência de uma atitude
interna.
Quem observou imparcialmente, durante meio século, a índole do catolicismo
romano, concordará conosco no seguinte: que um dos característicos dessa
teologia, desde o seu nascimento, no século 4.º, sob a égide de Constantino
Magno, é uma crescente hipertrofia do dogma e atrofia da ética, no plano do
catolicismo romano, ao ponto de substituir a ética simples e pura do Evangelho
de Cristo por uma moral complicada e arbitrária do clero.
Entretanto, seria injusto atribuir essa atitude e tendência ao catolicismo como tal.
É fácil verificar que essa situação foi criada pelo romanismo e não pelo
catolicismo, ou melhor, pela catolicidade. Pode-se mesmo estabelecer a
seguinte equação, historicamente justificável: quanto maior a romanidade de um
católico tanto menor a sua catolicidade, e vice-versa. A razão deste fato é
matematicamente clara, porque a romanidade, sendo atitude parcialista, está na
razão inversa da catolicidade, que diz universalidade. Quanto mais o parcialismo
romano cresce tanto mais a universalidade católica decresce, como as duas
conchas de uma balança a subirem e descerem alternadamente. O católico leigo,
por exemplo, quando não dominado pelo clero, possui, em geral, uma
catolicidade genuinamente cristã; não se sente “credor de Deus”, não assume
atitudes arrogantes de desafio a seus irmãos de outras formas de religião; está
sempre disposto a colaborar com qualquer pessoa ou grupo religioso, em prol
do reino de Deus e da humanidade. O católico não romanizado pelo clero é
sinceramente cristão.
O católico clericalizado, porém, possui bem menor cabedal de catolicidade,
porque a sua romanidade reduziu a um parcialismo sectário o universalismo
cristão desse homem.
Quando, então, penetramos nos domínios do clero, a catolicidade sofre muito
maior desfalque ainda, em prol da romanidade; porque essa classe de
funcionários eclesiásticos se acha a serviço direto de uma hierarquia 100%
romana e sectária. Acresce outro fator, sumamente anticristão: o clero considera
o sacerdócio como uma profissão, como um meio de vida material e, não raro,
até como um expediente para galgar elevadas posições políticas e conquistar
riquezas mundanas. Essa tendência tem 100% de romanidade e 0% de
catolicidade cristã, tanto assim que o divino Mestre disse explicitamente: “Dai de
graça o que de graça recebestes!” “Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus
e ao dinheiro”. Neste ponto, o católico leigo está em condições
incomparavelmente melhores do que o padre, porque, para ele, a religião é um
ideal divino, puramente espiritual, nada tendo que ver com política e fins
lucrativos.
Se do plano do clero comum galgamos às alturas do clero superior, o
episcopado, verificamos que a catolicidade — salvo honrosas exceções — sofre
novo desfalque em benefício da romanidade, porquanto os bispos assumem
compromisso de lealdade muito mais estreito com o pontífice romano do que o
padre comum, razão porque o seu sectarismo romano tem de prevalecer sobre
seu catolicismo cristão; do contrário, seria impossível manter a rígida
organização hierárquica, na qual repousa a garantia suprema da sua
perpetuação através dos séculos.
O pontífice romano, como chefe supremo dessa formidável máquina hierárquica,
não pode deixar de encarnar, em virtude de seu munus, o mais alto grau de
romanidade parcial, isto é, de intolerante sectarismo eclesiástico, incompatível
com o universalismo do Evangelho de Cristo.
A catolicidade perpetua-se em virtude de sua inerente virtude divina — mas a
romanidade hierárquica subsiste em virtude da sua rígida organização humana.
O mal não está na perpetuação desta organização hierárquica através dos
séculos — o grande mal está em que essa organização humana procure passar,
aos olhos da humanidade ignorante, como uma revelação divina, como a obra
imortal do próprio Cristo.
Enquanto o mundo católico for mantido na ignorância da verdade, mediante
proibições e penalidades, leis de “Imprimatur” e de Index, excomunhões e
ameaças de inferno, continuará a situação no statu quo. Entretanto, segundo as
leis eternas e infalíveis da evolução, a luz da verdade prevalecerá mais e mais
sobre as trevas do erro e da ignorância. Que distância imensa medeia, por
exemplo, entre os períodos medievais, quando os pontífices romanos possuíam
absoluto poder espiritual e material sobre todo o mundo civilizado, e sua relativa
fraqueza em nossos dias. Perderam o poder legislativo, político e militar
daqueles tempos; passaram duma arrogante e vitoriosa ofensiva em toda a linha
para uma árdua e restrita defensiva, limitando-se a amedrontar as almas com a
perspectiva de um fogo eterno no futuro, em vez de lançar os corpos numa
fogueira temporal do presente, como faziam nos dias sinistros da Inquisição.
A catolicidade cristã está na razão inversa da romanidade clerical.
Por isto, não é justo que hostilizemos o catolicismo como tal, mas sim a sua
deturpação na forma do romanismo clerical. Emancipar o católico da escravidão
clerical e restituí-lo à gloriosa liberdade cristã dos filhos de Deus — é este o mais
sublime ideal a que um verdadeiro discípulo do Cristo pode e deve aspirar. Jesus
não condenou a religião de Israel, mas preveniu o povo ignaro e iludido para que
não identificasse a pureza da revelação de Deus com as impurezas das teologias
rabínicas: “Ai de vós, guias cegos conduzindo outros cegos!... roubastes a chave
do conhecimento do reino de Deus; vós mesmos não entrais, nem permitis que
os outros entrem.” A parábola do “bom samaritano” é a mais tremenda
condenação dos sacerdotes e levitas da igreja de Israel, que se sentiam tão
“credores de Deus”, tão hipertrofiados de teologia dogmática e tão atrofiados de
ética humana que, vendo um pobre moribundo à beira da estrada, não se
julgavam obrigados a socorrê-lo, cônscios da sua grande santidade adquirida
nos serviços litúrgicos do templo de Jerusalém. É este o grande perigo do
excesso de dogmatismo e sacramentalismo litúrgico: a perda da humilde
consciência dos deveres do homem para com seus semelhantes. Saturados de
falsa mística, esquecem-se esses homens da verdadeira ética! De tanto
adorarem a Deus julgam-se dispensados de ajudar o próximo! Consideram-se
milionários da prática do “primeiro mandamento”, mas são indigentes na prática
do “segundo mandamento”, e por isto também todo o seu capital de milionários
da teologia é falso e sem valor...
A transição do clero para o Cristo — eis o passo decisivo que a humanidade
católica tem de dar!
“Ninguém vai ao Pai senão por mim”, disse o Cristo. “Não foi dado aos homens
sobre a terra outro nome em que pudessem ser salvos senão o nome de Jesus,
o Cristo”.
Isto é revelação divina — o resto é teologia humana.
50
Uma legítima donquixotada do
vigário de Angustura
Em 1944, quando a maior parte do clero guerrilheiro já tinha esgotado o arsenal
de invectivas contra minha pessoa e obra e ensarilhado armas, resolveu o P.
Benito Vasquez, Vigário de Angustura, Minas Gerais, disparar mais um tiro
isolado — espécie de “tiro de misericórdia” — contra um dos meus livros, para o
caso que este não estivesse completamente morto, ou ameaçasse ressurgir do
túmulo, como Lázaro de Betânia. Por falta de melhor ocupação, deu-se esse
exímio teólogo, lá das terras do caudilho Franco, ao trabalho ingrato de submeter
o meu livro “Problemas do Espírito” a uma minuciosa autópsia, acabando por
estampar o resultado das suas pesquisas numa brochura de meia centena de
páginas, que distribuiu gratuitamente pelo Brasil.
Nesse panfleto revela o augusto vigário de Angustura toda a angústia de seu
coração e toda a angustez do seu espírito. Principia por estranhar que eu,
sacerdote, escreva livros sobre problemas de psicologia, quando, a seu ver,
devia ocupar-me exclusivamente com livros de caráter teológico.
Entretanto, a mais gozada façanha que o digno conterrâneo de D. Quixote de Ia
Mancha comete nessa brochura é a de confundir ingenuamente
“subconsciência” com “concupiscência”, afirmando ser eu partidário da
concupiscência!
Conta Cervantes que, certa noite, negra como o inferno, enfrentou D. Quixote
um formidável exército inimigo, perverso como o diabo. Com inaudita bravura e
estupendo heroísmo arremeteu o intrépido cavaleiro contra a hoste adversa,
lutando com tamanha valentia que derrotou completamente o inimigo. Ao clarear
do dia, porém, verificou que o tal exército não passava de um grupo de moinhos
de vento, cujas asas lhe haviam dado a ilusão de um regimento de guerreiros...
O P. Benito Vasquez, como se vê, não desmente as heroicas tradições de seu
famoso patrício; lutou, também ele, com espantosa bravura, contra um inimigo
imaginário que julgava divisar, através da escuridão da sua sapiência, por entre
as linhas negras do meu maldito livro... E derrotou-o com armas e bagagens!...
Não sei se já amanheceu, para o angusto espírito do augusto Vigário de
Angustura, o dia da verdade, como amanheceu para aquele cavaleiro de triste
figura.
Quem devia, aliás, fazer esta denúncia não seria eu, uma vez que aquela meia
centena de páginas não se dirigem, propriamente, contra o autor do livro
“Problemas do Espírito”, mas, sim, contra o P. João Batista de Siqueira, censor
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, e que concedeu o competente “Nihil
obstat”, seguido pelo “Imprimatur” de Mons. Rosalvo Costa Rêgo, Vigário Geral
do Arcebispado do Rio de Janeiro.
O augusto Vigário de Angustura não crê na competência e ortodoxia católica do
censor da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro; acha que o P. Siqueira, ou
procedeu com deplorável superficialidade ao declarar a catolicidade do meu
livro, ou então se deixou narcotizar pelo inebriante odor da minha celebridade
literária, não ousando desmascarar as minhas “heresias”. Em todo caso, como
se vê, o Hiroshima ou Nagasaki dessa formidável bomba atômica do intrépido
teólogo hispânico não foi, de preferência, a minha pessoa, mas, sim, a do P.
Siqueira — que lá se entenda com o estranho catolicismo vasqueziano! Será
que, lá na terra de Franco, vigora outra espécie de Catolicismo do que no Brasil?
De resto, mesmo aqui no Brasil, já temos vários tipos de catolicismo, pelo menos
dois.
O que há de doloroso no panfleto vasqueziano é que o bispo de Juiz de Fora,
diocese a que pertence Angustura, tenha aprovado esses disparates do referido
sacerdote, jogando assim uma Cúria Diocesana contra outra, como se não fosse
já bastante a confusão!
E, depois de darem ao Brasil católico tão triste exemplo de discórdia e
indisciplina, esses homens se queixam, em solenes Cartas Pastorais, da falta de
religião do seu rebanho, dando a protestantes, espíritas e outros dissidentes a
culpa dessa decadência... Não seria mais cristão e mais católico fazerem eles
mesmos um exame de consciência e rezarem o confíteor das próprias culpas,
em vez de exibirem as estatísticas dos pecados alheios?...
“Medice, cura teipsum!”...
* * *
De resto, devem os meus leitores saber que essa donquixotada benito-
vasqueziana não é a primeira desse exímio teólogo. Já estreou em 1940, quando
disparou um bacamarte, ainda que de menor calibre, contra meu livro “Paulo de
Tarso”. Tão mortífero foi esse tiro que “Paulo de Tarso” anda por aí, mui lampeiro,
em numerosas edições desgraçando a Terra de Santa Cruz. Também
“Problemas do Espírito”, dado por definitivamente morto e sepultado, após
aquela tremenda ofensiva, campeia por aí em sucessivas edições, arruinando o
Brasil católico com a sua desbragada “concupiscência”... De duas uma: ou os
tiros que o augusto vigário de Angustura, patrocinado pelo Bispo de Juiz de Fora,
costuma dar, são tiros de pólvora seca — ou então os meus livros infames e
diabólicos, depois de assassinados, ressuscitam da morte e continuam a infestar
esses Brasis, envenenando as almas. Pois, é sabido que “erva ruim não morre”...
Consta até que, para cúmulo de males, o autor e responsável dessas obras
funestas está publicando outros livros do mesmo espírito, cometendo o crime
nefando de esclarecer o público sobre o cobaísmo que certa gente está
praticando com o nosso povo, ignorante, paciente e explorado...
* * *
Se o augusto Vigário de Angustura tivesse pecado apenas por angustez de
espírito, confundindo “concupiscência” com “subconsciência”, mui perdoável
seria a sua espanholada, porque, como diz Goethe, “contra a estupidez os
próprios deuses lutam em vão”.
Mas é que ele pecou por grande deslealdade. No intuito de provar ao seu público
que eu sou inimigo da igreja católica (apesar de estar o dito livro aprovado pela
autoridade eclesiástica), respigou dele numerosos tópicos que julgava
conducentes a seu propósito, cometendo, porém, a deslealdade de arrancar
esses textos do seu contexto e do fundo total do capítulo, conseguindo, assim,
“provar” o que desejava.
Com semelhante política provarei a P. Benito Vasquez que a Sagrada Escritura
é um livro imoral, ateu, materialista, epicurista, negador do pecado, da redenção
e de todas as verdades fundamentais da religião. Basta, para este fim, colecionar
com jeito certos textos, calando a moldura do seu contexto — e está provado o
que se quer! Escreve, por exemplo, o profeta David: “Não há Deus” (Salmo, 14,
1) — logo David é ateu! Verdade é que, antes dessa categórica negação da
existência de Deus, se lê: “Disse o insensato no seu coração”; contexto que,
quando ignorado, segundo a receita do augusto Vigário de Angustura, convence
o leitor precisamente do contrário do que o autor quis dizer.
Os livros Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria estão repletos de negações da
imortalidade da alma e de apoteoses de uma vida desbragada — suposto que
se leiam os competentes textos fora do seu conjunto lógico. Diz, por exemplo, o
Eclesiastes (3, 19-20): “O destino do homem é o mesmo que o do animal. Morre
um assim como morre o outro. Todos eles têm o mesmo sopro (alma). Nenhuma
vantagem tem o homem sobre o animal — tudo é vaidade! Vai tudo parar no
mesmo lugar! Tudo veio do pó, e tudo voltará ao pó.” Qualquer agnóstico
subscreveria esta enérgica profissão de materialismo. E, no entanto, colocando
estes tópicos dentro da ideologia geral do Eclesiastes, resulta o sentido
precisamente contrário ao que têm estas frases isoladas.
Também as obras de Santo Agostinho têm servido para provar todos os
absurdos. Dezenas de hereges têm provado com textos agostinianos as suas
doutrinas. Nem é difícil. Quem entra nessa gigantesca floresta tropical de idéias
do genial africano, com intenção preconcebida de fazer a sua coleção, o seu
museu de pensamentos, ou montar o seu cavalo de batalha — encontra
infalivelmente o que procura. É questão de jeito, paciência — e perfídia!
Foi o que fez o augusto Vigário de Angustura ao compor o museu teológico do
seu panfleto. Basta lembrar o seguinte: no meu livro “Problemas do espírito” há
um capítulo central sobre a igreja, intitulado “Alma e corpo da igreja”. Nele
exponho o que penso da igreja, do seu elemento divino e dos seus elementos
humanos. E o que faz o P. Benito Vasquez? Em vez de transcrever umas
páginas características desse capítulo e esclarecer assim aos seus leitores
sobre o conceito real que tenho da igreja, preferiu pescar em águas turvas,
silenciando completamente esse importante capítulo e respigando aqui e acolá,
palavrinhas e pedaços de frases avulsos, para provar que eu sou inimigo da
igreja — quando a simples transcrição de meia página do referido capítulo daria
idéia clara e nítida ao leitor. Mas essa meia paginazinha de sinceridade teria
arrasado todo o castelo polêmico do panfletista. Por isto — silêncio e
escamoteação!...
De resto, era perfeitamente supérfluo todo esse dispêndio de tempo, tinta e
talento para provar que eu sou inimigo do “catolicismo”. Bastava que o P. Benito
Vasquez perguntasse a mim mesmo sobre o assunto, e eu lhe teria dito com
absoluta clareza que sou, fui e sempre serei inimigo mortal de certo “catolicismo”
(entre aspas), de colorido sectário e político, que estadeia no meio de nós;
porque esse pseudo-catolicismo é o maior inimigo da verdadeira Catolicidade, e
tão incompatível com o Cristianismo como era, no tempo de Cristo, o farisaísmo
da sinagoga, que, segundo as palavras do divino Mestre, sacrificava a lei de
Deus às tradições humanas. Eu só creio num Catolicismo cristão e espiritual,
porque creio em um Cristo cujo “reino não é deste mundo” — o “Cristo de ontem,
de hoje e de todos os séculos”...
* * *
O que há de mais triste e deprimente para o nosso catolicismo, nesse pasquim
de P. Vasquez, é que o autor do mesmo tenha recebido para sua publicação o
Imprimatur do Bispo de Juiz de Fora, o que, em bom português, se chama jogar
Cúria contra Cúria, mobilizar bispo contra bispo. Os inimigos do catolicismo
devem ter tido horas de intenso prazer ao verem em letra de forma que
sacerdotes católicos romanos conseguem dos seus superiores eclesiásticos
reprovação de obras aprovadas por outra autoridade eclesiástica, estabelecendo
assim manifesto dualismo doutrinário dentro do catolicismo, que se ufana de sua
rigorosa unidade doutrinária. Não há, a meu ver, método mais eficiente para
afugentar da igreja católica as classes pensantes e os homens cultos do que
este adotado pelo P. Benito Vasquez e por muitos outros sacerdotes no Brasil.
Em benefício da unidade doutrinária deviam ser prontamente sacrificadas todas
e quaisquer opiniões pessoais e particulares — isto, sim, seria catolicismo,
catolicismo cristão e genuíno, e não sectarismo clerical, como esse que por aí
vemos...
O P. Vasquez, como filho da terra clássica da Inquisição, não pode deixar de ser
inimigo mortal do protestantismo — e, no entanto, é ele eminentemente
protestante. Dizem que o característico do protestantismo está em que ele rejeita
a autoridade eclesiástica e sobrepõe a sua opinião individual à palavra oficial e
autorizada da igreja. Pois é precisamente isso que o P. Vasquez faz com grande
perfeição, negando à Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro toda e qualquer
competência em matéria de teologia católica e arvorando-se em supremo censor
e árbitro de catolicidade. Se essa mentalidade é própria do protestante, então o
Vigário de Angustura é o rei dos protestantes, protestando como protesta contra
o representante oficial da suprema autoridade eclesiástica do Brasil, a fim de
fazer valer a sua opinião individual.
É o que se chama querer expulsar o demônio por belzebu...
51
Carta aberta a numerosos
amigos iludidos
Desde que deixei as fileiras do clero romano a fim de manter fidelidade à
catolicidade cristã, tenho recebido, e continuo a receber, numerosas cartas,
veementes umas, suaves outras, censurando a minha atitude e convidando-me
a voltar ao romanismo clerical.
A todas essas pessoas, geralmente bem intencionadas, porém iludidas, passo a
responder o seguinte:
1 — Não abandonei o catolicismo, se com esta palavra se entende a catolicidade
cristã, isto é, a universalidade do espírito do Cristo; pelo contrário, precisamente
por não querer ser infiel ao espírito universal do Evangelho do Cristo é que tive
de afastar-me do espírito da romanidade, que, como a própria palavra diz, não é
universal, mas parcial, centralizado numa determinada cidade de um certo país,
ao passo que o Cristianismo é essencialmente universal (em grego, “katholikós”,
católico).
2 — Nunca me revoltei contra meu superior eclesiástico, que, nesse tempo, era
o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme; nunca recebi dele
uma única censura, mas tão somente louvores e recomendações entusiásticas
e de irrestrita solidariedade ao meu pensamento cristão, como, entre outros,
provam diversas cartas dele que conservo, bem como os prefácios espontâneos
escritos por ele para diversos livros meus. É, pois, deslavada mentira e vil calúnia
o boato que o clero decadente espalhou contra mim, tachando-me de rebelde e
revolucionário insubmisso — quando a rebeldia e insubmissão partiu
precisamente desses padres e, infelizmente, também de alguns bispos e
arcebispos, que, em flagrante contraste com as leis da igreja, proibiram como
perniciosos à fé católica dezenas de livros meus, explicitamente aprovados e
recomendados, durante anos e decênios, como genuinamente católicos.
Pergunto: onde está a rebeldia? da minha parte ou da parte dos meus inimigos?
Pergunto ainda: como se pode servir à causa do Evangelho de Jesus Cristo, que
é verdade, justiça e lealdade, com semelhante campanha de inverdade, injustiça
e deslealdade? “Ninguém pode servir a dois senhores!” Onde principia a tirania
da matéria morta termina o domínio do espírito vivo!
3 — É deslavada mentira também o que a imprensa clerical assoalhou contra
mim, no sentido de eu ter forjado o “Imprimatur” e prefácio de alguns dos meus
livros, ou de ter modificado a meu favor esses últimos. Em vez de espalhar
levianamente semelhantes calúnias, teria sido bem mais cristão e católico,
embora menos romano e clerical, dirigir-se lealmente aos autores desse
“Imprimatur” e desses prefácios para saber se eram genuínos e autênticos. Os
rebeldes, porém, preferiram a esse caminho reto da verdade as veredas
tortuosas da mentira. Convinha que abrissem o Evangelho e lessem a censura
veemente que o divino Mestre fulminou contra seus colegas clericais da
sinagoga de Israel, réus de crimes idênticos: “Ai de vós, guias cegos conduzindo
outros cegos! roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus; vós
mesmos não entrais, nem permitis que os outros entrem!”
4 — É também calúnia gratuita o que o clero rebelde assoalhou pela imprensa e
oralmente: que eu havia sido pago pelo protestantismo para fazer a campanha
do Evangelho de Cristo e recomendar a sua leitura e meditação diária aos
católicos brasileiros. Nunca recebi um único centavo de ninguém para realizar
essa campanha de evangelização, que nasceu de um imperativo categórico da
minha consciência cristã, que até hoje considera a aceitação prática do espírito
do Cristo a única esperança de salvação para o indivíduo e para a sociedade —
isto é, o Evangelho puro e incontaminado, assim como brotou dos lábios e do
coração do divino Mestre, e não em suas múltiplas adaptações aos interesses
políticos e financeiros de grande parte do clero. Bem sei que não falta entre o
clero quem faça a divulgação do Evangelho, em edições populares; mas sei
também o que numerosos católicos me dizem: É necessário ter em casa uma
edição católica do Novo Testamento ou da Bíblia inteira, não para ler e meditar
esse livro, mas para mostrar o volume aos propagandistas protestantes e assim
fechar a porta à invasão das Bíblias deles. Quer dizer: a palavra de Deus e a
revelação de Jesus Cristo não são para serem meditadas e transformadas em
norma de vida diária, mas para serem guardadas na prateleira da biblioteca, a
fim de servirem, oportunamente, de “bucha” para os propagandistas
protestantes. Não era este o sentido da minha campanha pró-Evangelho. Em 5
ou 6 anos de viagens quase incessantes através de todas as latitudes e
longitudes do Brasil, espalhei uns 8.000.000 (oito milhões) da minha folha
volante “Lampejos”, quase gratuita, e realizei mais de 2.000 (duas mil)
conferências, ensinando o povo como fazer das palavras de Jesus Cristo a
norma suprema da sua vida. O clero nada receia da infiltração dos livros sacros
nos lares católicos, enquanto esses volumes continuam empoeirados nas
bibliotecas, para as traças; mas receia tudo de uma integração do espírito da
revelação divina na alma do povo, porque essa infiltração, como já dizia o grande
dominicano Lacordaire, conduz a alma humana rumo à “maturidade espiritual”.
O clero decadente, porém, receia essa maturidade espiritual do católico, porque
uma alma espiritualmente madura e cristãmente adulta não aceitará cegamente
os dogmas do clero, que, em boa parte, nada têm que ver com o Cristianismo, e
muitos deles lhe são diametralmente opostos. Por isso é do máximo interesse
do clero romano (quando não suficientemente católico e cristão) manter o povo
na ignorância do espírito do Evangelho, explicando-lhe apenas certas passagens
menos “perigosas” e torcendo o sentido em prol dos interesses da hierarquia
romana. Quanto mais o homem se cristifica pela assimilação do espírito do
Evangelho mais se desclericaliza; mas, como o clero romano quer, acima de
tudo, a sujeição cega e incondicional do povo a seu domínio, é lógico que rejeite
todo e qualquer movimento que ponha em perigo esse domínio. O fim principal
do clero romano não é a cristificação do homem, mas sim a sua clerificação.
Aquela é, política e financeiramente, estéril, esta favorece grandemente o
prestígio político-social e a prosperidade econômico-financeira do clero.
Enquanto o sacerdócio continuar a ser uma profissão lucrativa e uma fonte de
prestígio político, não há esperança alguma de que a situação melhore a favor
do Evangelho de Jesus Cristo, que lançou o glorioso lema: “Dai de graça o que
de graça recebestes!” Ora, ninguém pode comprar com preço material os valores
espirituais; logo, não deve vender pela matéria morta da terra o espírito vivo de
Deus, como tentou fazer Judas Iscariotes.
5 — De vez em quando, algum desses meus amigos iludidos apela para meus
cabelos brancos, e acha que é tempo para eu voltar à casa paterna. Quase todos
esses apelos são feitos de boa fé, como suponho, porque as vítimas da teologia
clerical crêem piamente que Deus é chefe do partido deles e de mais ninguém;
quem não é do partido do clero romano não é de Deus e do Cristo; e, como tal,
esse homem inimigo de Deus e do Cristo terá de esperar tremendos castigos,
se não agora, pelo menos depois da morte.
Considero um dos maiores crimes do clero iludir e escravizar deste modo a
consciência do povo católico e mantê-lo acintosamente nesse erro secular.
Enquanto o católico não for suficientemente cristão para ultrapassar as barreiras
clericais do “Imprimatur”, da ameaça de “excomunhão” e outros fantasmas
teológicos medievais, não há nenhuma possibilidade para chegar ao
conhecimento da verdade e entrar na “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
Esses bons amigos iludidos me consideram como um menino desobediente que
fugiu da casa paterna, mas, ao cair da noite, se enche de medo e, se for sensato,
resolve regressar ao lar a fim de se sentir seguro e salvo. A comparação pode
ser muito engenhosa; tem de ruim apenas o fato de não se adaptar ao caso,
porquanto este “menino de cabelos brancos” tomou sobre si os maiores
sacrifícios, afrontou todas as considerações humanas e sofreu todas as perdas
materiais para obedecer ao chamamento do Cristo, que o convidou para arauto
do seu Evangelho redentor. A estas horas, poderia eu ser, como já me chamava
a imprensa católica daquele tempo, o “herói nacional do catolicismo brasileiro”,
o “Paulo de Tarso do Brasil”; poderia gozar da admiração de centenas de bispos,
milhares de padres e milhões de católicos leigos; podia ver-me cercado e
cumulado dos elogios e presentes de todo o beatério das sacristias — Filhas de
Maria, Zeladoras do Apostolado, Damas de Caridade, Vicentinos, Moços
Católicos, chefes e chefiados da Ação Católica, etc., etc. — poderia também
nadar em rios de dinheiro, se quisesse, em vez de viver solitário no silencioso
recanto onde estou escrevendo estas reminiscências. Nunca me arrependi de
ter renunciado a “todos os reinos do mundo e sua glória”, que me foram
oferecidos, porque a paz da consciência no serviço do Mestre me vale
infinitamente mais do que tudo aquilo...
Numerosas pessoas piedosas, como me escrevem, vivem orando por mim;
outras até fizeram voto de sacrificar o resto da sua vida pela minha conversão
ao catolicismo romano.
Confesso que me sinto emocionado em face de tamanha dedicação, e daqui do
silêncio da minha ermida, envio a todas essas almas a expressão do meu sincero
agradecimento.
Devo, entretanto, fazer uma observação importante: Com que direito pretendeis
vós, almas ingênuas, fazer prescrições a Deus? Como é que vos arrogais o
direito de lhe dizer a que igreja ou seita me deva ele converter? Imaginai, se eu
tivesse nascido no protestantismo, no budismo, no hinduísmo, no islamismo, ou
em outra forma de religião qualquer, é certo que outras almas amigas orariam
por mim para que me convertesse à religião delas, “única religião verdadeira”, é
claro. E como poderia Deus atender a cada um desses partidos?
Não seria melhor, portanto, mais sensato e mais cristão, deixar a Deus a
escolha? Não lhe prescrever, dantemão, o rótulo do partido ao qual ele me deva
converter? É claro que eu e todos nós necessitamos de ulterior conversão,
porque ninguém é perfeito — e é neste sentido que eu recebo as vossas orações
e os vossos votos a meu favor. Desisti, porém, da ingenuidade de prescrever a
Deus o “ismo” peculiar ao qual ele me deva converter. Abri as páginas do
Evangelho, e nada disto encontrareis. O centurião romano de Cafarnaum, que
era pagão, não foi convidado por Jesus para se converter ao judaísmo, “única
religião verdadeira” daquele tempo, mas a sua fé e religiosidade foi proclamada
pelo divino Mestre como maior que outra qualquer que ele tivesse encontrado,
mesmo em Israel. E o bom samaritano não era “herege”, na opinião dos
sacerdotes de Israel? E não foi ele proposto por Jesus como modelo de
espiritualidade, mesmo ao sacerdote e levita da impecável ortodoxia eclesiástica
da época? Não devia Jesus ter mandado o centurião gentio e o samaritano
herege “converterem-se” ao judaísmo da sinagoga?... E por que deve Deus ser
obrigado agora a “converter-me” precisamente para o “ismo” do clero de Roma?
Deus é tão pouco o chefe exclusivo do romanismo dos nossos dias como,
naquele tempo, era chefe privativo do judaísmo, embora os sacerdotes, tanto
daquela como desta seita, assim pensem e ensinem a seus ignorantes
sequazes.
52
Desiludindo os amigos protestantes.
Estágios evolutivos rumo ao
Cristianismo integral. O imperativo
da consciência
Quando alguém abandona as fileiras do clero romano, é quase certo que vai
arvorar-se, cedo ou tarde, em ministro protestante. E, geralmente, esse egresso
inicia uma campanha violenta contra determinados pontos da doutrina católica
romana, entre os quais contam como tradicionalmente obrigatórios a
infalibilidade do papa, o celibato sacerdotal, a confissão, a comunhão e a missa,
a veneração dos santos e da Virgem Maria, o purgatório, o uso de imagens e
relíquias, etc. É que muitos protestantes acreditam sinceramente que, se essas
doutrinas fossem varridas da face da terra, teríamos um Cristianismo genuíno e
plenamente vitorioso como, da sua parte, o católico julga, geralmente, que a
derrota do protestantismo, e, possivelmente, ainda do espiritismo e do
comunismo, equivaleria a uma deslumbrante proclamação do reino de Deus no
seio da humanidade. Esquecem-se estes últimos de que esse estado de coisas
já vigorou sobre a terra, por diversos séculos, na Idade Média, quando a
hierarquia romana era senhora do mundo, tanto no plano espiritual como no setor
civil; e, sobretudo, aqui no Brasil, tivemos quase quatro séculos de catolicismo
absoluto e exclusivo. Entretanto, nenhum homem sabedor dos fatos objetivos
dirá que esses períodos, daquém ou dalém-mar, tenham sido idades áureas do
Cristianismo, embora fossem um eldorado para o clero de Roma.
Os protestantes e outros inimigos do catolicismo esquecem-se de que a
eliminação de uma determinada seita cristã não equivale à vitória do Cristianismo
do Evangelho, genuíno e integral, ainda que, em certos casos, possa remover
determinados obstáculos ao triunfo do mesmo. A Reforma protestante do século
16 teve a sua grande missão histórica, porque, tentando reviver a ideologia
profética do Antigo Testamento e do Evangelho de Cristo, reafirmou o grande
princípio — que também forma o núcleo da filosofia hermético-védico-platônica
— de que “o reino de Deus está dentro do homem” e que o homem
espiritualmente evolvido encontra Deus dentro de si mesmo, na essência divina
de sua “alma cristã por natureza”, como diz o grande Tertuliano. Nos meus livros
“Evangelho ou Teologia” e “Pelo Prestigio da Bíblia na Era Atômica”, expus mais
por extenso esta idéia. O protestantismo prestou um grande serviço na luta pela
libertação da consciência humana, totalmente escravizada pela hierarquia
eclesiástica de Roma. É este o grande mérito dos Reformadores evangélicos do
século 16 e de alguns dos seus sucessores; a ênfase no acesso direto do homem
a Deus, em virtude duma disposição interna de fé, ou receptividade espiritual, e
não por meio de cerimônias externas ou fórmulas rituais.
Entretanto, afora esse mérito incontestável, não teve o protestantismo,
sobretudo nos séculos subsequentes, a necessária visão espiritual para voltar
ao Evangelho genuíno e integral; nasceu à luz das epístolas de São Paulo aos
Gálatas e Romanos, e sua índole é, até hoje, mais paulina que evangélica, como
expus nos livros acima mencionados.
Quando, para não servir de pomo de discórdia entre dois tipos de catolicismo em
flagrante litígio sobre os meus livros, julguei do meu dever de consciência
abandonar as fileiras do clero, como expus detalhadamente ao cardeal Leme, fui
insistentemente convidado por várias denominações protestantes para me filiar
a uma das igrejas que entre nós funcionam sob a bandeira comum de
“protestantismo”. Compreende-se essa atitude dos cristãos evangélicos — tanto
mais que o clero romano, consoante a sua nefasta doutrina de que “o fim justifica
os meios”, afirmava em quase todos os seus órgãos de publicidade e do alto dos
púlpitos das igrejas que todos os meus livros, embora explícita e reiteradamente
aprovados pela competente autoridade eclesiástica, eram visceralmente
heréticos, protestantes e perniciosos à fé católica. O cristão evangélico,
precisamente por estar imbuído mais que o católico da ética singela do
Evangelho, acredita facilmente o que se lhe diz; não está afeito àquela
sagacidade diplomática que caracteriza o clero católico (e contra a qual o grande
Pascal escreveu as suas tremendas “Letras Provinciais”); por isto, quase todo o
protestantismo brasileiro acreditou piamente que eu me incompatibilizara com o
clero romano por amor à ideologia protestante, quando, de fato, nunca tive
intenção de me filiar a seita alguma, mas procurar realizar, dentro e fora de mim,
o Cristianismo como tal, em toda a sua verdade e beleza, como brotara dos
lábios e do coração do divino Mestre. Devo relembrar o que disse em páginas
anteriores, quando cheguei a conhecer o Cristo e a alma do seu Evangelho em
duas vezes trinta dias de Exercícios Espirituais, sob a direção de um sacerdote
que não viu no meu Cristo o da sua teologia romana. Nunca fiz questão de que
o meu Cristo fosse romano nem protestante.
Nunca atendi a nenhum desses convites, que, tenho certeza, eram bem
intencionados. Não os pude aceitar sem faltar à sinceridade da minha
consciência; pois nunca me seria possível admitir de fato e defender
publicamente todo o corpo de doutrina prescrito pelas igrejas protestantes que
operam no Brasil. É claro que eu, em muitos pontos básicos, como cristão,
concordava com os cristãos evangélicos, e, em vista dessa concordância, nunca
deixei de colaborar com eles, enquanto não fosse obrigado a aceitar e ensinar
algo de cuja verdade não estivesse plenamente convencido. Não quis tornar-me
réu de um desses delitos que tantas vezes vira e detestara em antigos colegas
meus que, como homens individuais, tinham as suas convicções próprias, ao
passo que, como ministros da sua igreja, tinham de defender doutrinas alheias
ou contrárias à sua convicção íntima. Eu, por mim, não poderia jamais proclamar
em público e advogar com o necessário entusiasmo e amor, o que não
harmonizasse com a minha convicção e experiência pessoal.
Posso afirmar que é voz unânime de todos os meus críticos, gregos e troianos,
concordantes e discordantes da minha filosofia, que os meus livros e as minhas
palestras primam por um cunho de grande sinceridade e convicção pessoal.
Por isto, prefiro trabalhar, com sinceridade e entusiasmo, fora de qualquer
denominação eclesiástica a filiar-me a uma delas e sacrificar uma parcela,
mínima que seja, da minha boa-fé e convicção íntima. Não interessa aos meus
leitores e ouvintes o que, por exemplo, a Confissão de Westminster, ou outro
convênio denominacional, tenha estatuído sobre Deus, sobre o Cristo, sobre
pecado, graça, redenção, etc.; interessa-lhes que eu, após meio século de
estudos, meditações e experiências, penso e sinto a esse respeito.
Quando um sacerdote deixa o clero é, quase invariavelmente, por um destes
dois motivos: ou por ter brigado com a autoridade diocesana — ou por causa de
alguma Eva. Nenhum desses motivos presidiu à minha decisão, como de sobejo
sabia o meu superior eclesiástico de então, o cardeal arcebispo do Rio de
Janeiro, D. Sebastião Leme, que foi o meu grande amigo e defensor até à morte.
Nunca, nos quase 25 anos que trabalhei como sacerdote, recebi uma única
censura da parte de nenhum dos meus superiores diocesanos; nunca
desobedeci às ordens deles; nunca me rebelei contra nenhum deles. Saí em
perfeita harmonia com o meu superior eclesiástico. Saí depois de me convencer,
dolorosamente, de que havia no Brasil católico pelo menos dois catolicismos em
irreconciliável conflito, representados, de parte a parte, por figuras do clero e do
episcopado, e que não havia a menor esperança de que os partidos beligerantes
fizessem entre si as pazes sobre os meus livros, aprovados como católicos por
uns e proibidos como heréticos por outros.
* * *
Sei que meus amigos protestantes, sobretudo após o meu regresso dos Estados
Unidos, ficaram desapontados com o fato de eu não me ter filiado a nenhuma
das centenas de seitas evangélicas naquele país, nem a nenhuma das que
trabalham no Brasil. Alguns deles, talvez contagiados pelo ambiente, recorreram
às mesmas armas de difamação de que o clero romano decadente costuma
lançar mão para desprestigiar um pretenso inimigo dos seus interesses.
Verifiquei mais uma vez que nenhum membro de igreja ou seita consegue
manter-se independente e imparcial no julgamento de uma pessoa não filiada a
seu grupo religioso; o espírito sectário atua invariavelmente como um secreto
ímã ou como um par de óculos coloridos; mas, como o dono desses óculos
ignora ou nega o fato de ele usar esse meio de visão, é praticamente impossível
convencê-lo da injustiça que está cometendo contra o dissidente — mesmo de
boa fé.
Foi por isto que sempre resisti à insinuação de ingressar oficialmente em
qualquer grupo eclesiástico, preferindo colaborar amigavelmente com todos os
que sinceramente trabalham pelo triunfo do reino de Deus entre os homens. Uma
vez que eu assumisse compromisso de fidelidade a determinado corpo
doutrinário, ver-me-ia em face deste dilema: ou defender intransigentemente
essas doutrinas e tratar com injustiça os dissidentes, ou então considerar todos
os homens sinceros como meus irmãos, e destarte falhar à ortodoxia da minha
igreja.
Reflita o leitor, por exemplo, sobre a horrorosa verdade do seguinte: o melhor
dos judeus ou muçulmanos é forçosamente o pior dos cristãos; um ótimo católico
é necessariamente um péssimo protestante, e vice-versa! Leon Tolstoi, esse
sinceríssimo discípulo do Nazareno, foi excomungado por sua igreja, e isto em
nome de Cristo! Mahatma Gandhi, esse cristianíssimo gentio da Índia, não foi
considerado cristão pelas igrejas cristãs do ocidente. Albert Schweitzer, esse
exímio expoente do cristianismo místico-dinâmico dos nossos dias, não teve
permissão da Sociedade Missionária Evangélica de Paris para trabalhar, como
médico e cirurgião, na África Equatorial Francesa!
Entretanto, e apesar dos pesares, não negamos que as sociedades eclesiásticas
sejam, até certo ponto, necessárias — talvez um “mal necessário” — assim como
as muletas de um aleijado. As massas não estão em condições de se conduzir,
têm de ser conduzidas, e, para ser conduzido, é necessário que haja condutor.
O erro das seitas não está em que elas conduzam ou procurem conduzir; está
em que algumas delas se apresentam em público como sendo o próprio
Cristianismo em toda a sua pureza e integridade. Existe até uma igreja que
pretende possuir o monopólio da verdade e da santidade do Cristianismo — a
tal extremo pode chegar o egoísmo clerical!
Todas as igrejas, enquanto sinceras, são estágios evolutivos rumo ao
Cristianismo, mas nenhuma delas é o Cristianismo, o qual não caberá jamais em
fórmulas jurídicas ou teológicas. Luz engarrafada não é luz! Vida enlatada não é
vida! Espírito carimbado não é espírito! Na razão direta que o Cristianismo se
burocratiza ele se falsifica, amesquinha, degrada...
Na medida que o homem experimenta dentro de si o reino de Deus, ultrapassa
as fronteiras teológicas da sua igreja, sem por isso hostilizar essa sociedade,
que lhe serviu de meio de evolução. O adolescente ultrapassou a sua infância,
mas não a odeia; o homem maduro abandona a adolescência, como abandonou
a infância, que lhe foram etapas e estágios necessários para atingir as alturas
da sua adultez. A borboleta rompe os sedosos fios do casulo do bicho da seda,
não porque odeie essa obra d’arte por ele mesma produzida, mas porque,
segundo leis eternas, chegou o tempo em que o casulo, que lhe serviu de
proteção em certo período evolutivo, se lhe transformaria em empecilho na nova
etapa da sua evolução ascensional; por isto, o que ontem lhe era necessário e
sagrado, hoje lhe seria supérfluo e nocivo.
O cristão em evolução faz bem em afirmar o seu “casulo sectário”, enquanto este
lhe presta o serviço que deve prestar; mas deve possuir a necessária
independência e liberdade de espírito para ultrapassar, firme e serenamente,
qualquer estágio evolutivo, no dia e na hora em que o auxílio de ontem se lhe
tornar empecilho para hoje ou amanhã.
Importa que o homem seja integralmente sincero consigo mesmo...
53
Entre almas simples, no silêncio
da natureza. Um jubileu de prata em
profunda solidão. Preparativos de
viagem para os Estados Unidos
Falecera, em outubro de 1942, o meu grande amigo e protetor, D. Sebastião
Leme. Um mês depois, em novembro do mesmo ano, como já foi dito, o
arcebispo e todos os bispos sufragâneos de São Paulo, seguidos, em fevereiro
próximo, também pelo arcebispo de Porto Alegre, fizeram saber ao Brasil católico
que todos os meus livros, aprovados, lidos e recomendados durante 10, 20 e 25
anos, eram perniciosos à fé católica, não podendo ser lidos, comprados e
vendidos por nenhum católico. 1
1. Sei que a tremenda luta que 6 ordens religiosas e alguns bispos e arcebispos travaram contra
mim e meus livros e, implicitamente, contra o cardeal Leme, acelerou a morte desse meu grande
amigo e defensor. Vi D. Leme, pouco antes do seu desenlace, com as lágrimas nos olhos, referir-
se a essa deplorável discórdia no seio do clero e do episcopado. O último conselho que me deu
foi o de me entender com o Núncio Apostólico, a ver se este conseguisse uma reconciliação dos
litigantes; mas, com grande desapontamento dele e meu, o embaixador do papa não se
interessou, tomando tacitamente o partido dos rebeldes; achou mais importante viver em paz
com meia dúzia de poderosas ordens religiosas e mais duma dúzia de prelados do que fazer
justiça a um sacerdote caluniado e vilipendiado — e não tinha ele razão, como solerte político e
diplomata?

Com esta bofetada póstuma a D. Sebastião Leme e clamorosa injustiça contra


um sacerdote que trabalhara mais de dois decênios em prol da sua igreja, estava
praticamente encerrada a minha carreira de escritor católico e de sacerdote. A
minha vida no Rio de Janeiro se tornou insustentável. Liquidei o pouco que me
restava da tormenta feroz de mais de quatro anos consecutivos, adquiri,
mediante prestações mensais, um terreno no Estado do Rio, com modesta
casinha, vendi alguns dos meus direitos autorais, e fui morar na roça. Filho de
lavradores, voltei aos meus primeiros amores, amanhando a terra para ganhar o
pão de cada dia, longe daquele nauseante ambiente de corrupção e perfídia que
se me tornara insuportável.
Tornei a viver! Aquela solidão campestre, os trabalhos de horta e jardim, a
convivência com gentes simples, sem letras nem malícia — tudo isto me fez um
bem imenso. Tive ardente desejo de imitar o exemplo de Tolstoi, vivendo o resto
dos meus dias no convidativo misticismo daquele silêncio de “Cinco Lagos”,
como os empresários de venda chamavam essa zona fluminense, silêncio
interrompido e realçado apenas pelo canto dos passarinhos, chiar dos insetos e
coaxar dos sapos e pelo abafado ruído de uma cachoeira que ficava a pouca
distância da minha propriedade. Todas as tardes, fosse verão ou inverno, depois
dos exaustivos trabalhos, tomava eu banho nessa cachoeira, como autêntico
filho da natureza... De vez em quando, infelizmente, tinha de voltar ao barulho
da “cidade maravilhosa”, a fim de atender à revisão de provas tipográficas de
livros meus em edição ou reedição.
Vivi cerca de dois anos nesse retiro agreste, trabalhando arduamente de enxada,
de pá, de enxadão, foice e picareta, de pedreiro e carpinteiro. Para impedir a
invasão das formigas saúvas, praga máxima da zona, canalizei para meu terreno
parte da cachoeira, conseguindo rodear de água corrente toda a parte plana e
cultivada do sitiozinho. Comprei uma centena de mudas de árvores frutíferas,
muitas já em vias de produção, e, dentro de um ano, vi a minha modesta gleba
transformada num lindo paraíso, que me tornava quase independente da
exploração dos intermediários de alimentos de primeira necessidade. Logo de
início, uma jovem macieira deu meia dúzia de maçãs tão lindas e saborosas
como as melhores da Califórnia ou Argentina. As videiras carregavam como as
da minha terra, no extremo sul. Apenas comprava diariamente o pão e leite; o
resto vinha do meu terreno. Aprendi a cozinhar coisas simples, para não
depender de terceiros ou do hotel, que havia a certa distância.
O meu sitiozinho ficava a duas horas do Rio, mas não foi suficiente para me pôr
ao abrigo do veneno que meus implacáveis inimigos de batina continuavam a
vomitar contra mim. Como, anos antes, haviam espalhado pelo Brasil a calúnia
gratuita de que o meu “Novo Testamento” tinha sido editado com o dinheiro de
“inimigos da igreja”, assim assoalharam agora aos quatro ventos que eu
comprara aquela propriedade com “dinheiro de Judas”. Fiz com esses latidores
bípedes o que costumo fazer com seus colegas quadrúpedes, quando me
perseguem: não lhes presto atenção nem lhes dou a honra de lhes jogar uma
pedra e assim eles acabam desistindo da inútil perseguição... Isto, pelo menos,
acontece com os de quatro pernas...
O padre, quando é mau, é incomparavelmente pior que qualquer leigo. Não há
ódio mais satânico e implacável do que o ódio sacerdotal. Assim como as
guerras travadas “em nome de Deus” são sempre as guerras mais cruéis e
desumanas, assim e também a campanha de ódio e difamação chefiada por
pessoas do clero mil vezes mais selvagem e diabólica do que outra qualquer. E
é também de consequências mais desastrosas, porque a presença da batina
está em tão flagrante contradição com o que o embatinado devia ser, de maneira
que muitos leigos sinceros perdem a fé na missão divina dos seus chefes e duma
igreja que semelhantes infâmias permite e até favorece, pelo menos com o seu
criminoso silêncio. Um dos padres estrangeiros, o infeliz P. Júlio Maria, depois
de esgotar contra minha pessoa e obra todo o repertório das suas mentiras e
dos seus impropérios (tenho-os aqui guardados em letra de forma!), inventou,
finalmente, que era amigo de Hitler e não me conformava com as derrotas que,
nesse tempo, estava sofrendo o chefe do nazismo germânico. Pouco depois,
esse padre, quando, na noite de Natal, ia dizer missa numa freguesia da sua
paróquia, quebrou a cabeça num desastre de automóvel, acidente em que só ele
pereceu...
Entretanto, deixemos de parte essas fealdades e voltemos à beleza dos campos
e ao meio da gente boa e simples que os cultiva.
É pena que os limites deste livro não comportem a descrição daqueles dois anos
de vida roceira que passei no meio de caipiras e caboclos, alguns dos quais
mereceriam uma biografia em regra. O contato direto com a alma humana,
quando não adulterada, é sempre beneficamente sugestivo. Mesmo a vida
dormente das plantas, a filosofia instintiva das galinhas e o mistério anônimo de
um ovo em evolução rumo à eclosão do pintinho (como eu observava na minha
pequena incubadeira elétrica auto-fabricada, com grande espanto da caipirada)
são temas infinitamente mais fascinantes do que muitas das banalidades
estéticas do cinema, dum best-seller literário ou duma “bienal” de arte moderna...
No último ano da vida roceira em “Cinco Lagos” adquiri umas caixas de abelhas,
e desde então nunca mais me divorciei do amor à apicultura. Nesse tempo
também escrevi, e completei mais tarde o livro “Ísis”, sobre a vida e filosofia das
minhas abelhas, livro que só nos últimos anos entrou em circulação e está
fazendo milhares de amigos. Se, após a destruição da presente humanidade, o
nosso planeta for habitado por outra raça inteligente, talvez a criatura mais
idônea para receber o sopro divino da inteligência e da razão seja a apis
mellifera. Além de ter realizado, há milênios, o mais perfeito Estado Social —
que no meu livro denomino “Cosmocracia” — é a abelha uma das melhores
voadoras, estando assim dispensada do trabalho de inventar e fabricar zepelins
ou aeroplanos. Verdade e que, neste caso, sofreria o mundo masculino uma
tremenda “deflação”, uma vez que o Estado apiário é um matriarcado, em que o
macho é considerado apenas como uma espécie de “mal necessário”, eliminado
logo que deixa de ser útil. Na colméia, a fêmea é tudo, não só a fêmea-mãe,
chamada “rainha”, como também as fêmeas-virgens, as operárias de ovários
atrofiados. Sem as 50.000 ou mais virgens apiárias de uma colméia não poderia
esta subsistir e prosperar. É a vitória máxima da sociologia sobre a biologia
controlada...
* * *
Incidiu nesse período campestre o meu “jubileu de prata” sacerdotal — e eu o
celebrei condignamente, na solidão da roça, por entre o zumbido das abelhas,
os gorjeios da passarinhada e o longínquo ruído da cachoeira — o meu “jubileu
argênteo” de sacerdote e de escritor católico, 25 longos anos de incessantes
trabalhos apostólico-literários, sempre em perfeita harmonia com os meus
superiores eclesiásticos. Será que, alguma vez, um sacerdote católico, dentro e
fora do Brasil celebrou em tamanha solidão e silêncio essa efeméride? Por via
de regra, é essa data comemorada com grande solenidade, por entre banquetes,
repiques de sinos, Te-Deum, muita discurseira laudatória, etc. Os “elogios” que
boa parte dos meus colegas de sacerdócio derramaram sobre mim, constavam
de epítetos como estes: herege, renegado, apóstata, cretino, cabotino, satanás,
traidor, lama, e outros do mesmo gênero...
* * *
Por esse tempo, diversos livros meus se tornaram conhecidos nos Estados
Unidos, e alguns deles estavam sendo traduzidos para o inglês.
Inesperadamente, recebi duma das Universidades norte-americanas uma bolsa
de estudos para um ano a fim de realizar pesquisas científicas de minha escolha.
Hesitei por algum tempo. Acabei, porém, aceitando o convite. Vendi a minha tão
querida nesga de terra cultivada e arrumei as malas para a grande viagem, longe
das mesquinharias que, havia tantos anos, me cercavam na minha pátria. Devido
ao estado de guerra, não havia vapores para passageiros, e, para viagem de
avião, não chegavam as minhas finanças, pois a viagem não estava incluída na
bolsa oferecida. Consegui passagem num cargueiro que ia incorporar-se num
comboio maior cercado de meia dúzia de cruzadores para defendê-lo do perigo
dos submarinos alemães, que, pouco antes, haviam torpedeado, nas alturas da
Baía e Alagoas, uma boa dezena de navios brasileiros. Para tirar essa passagem
tive de assinar primeiro a minha “sentença de morte”, isto é, declarar por escrito
que tomava sobre mim todos os riscos e responsabilidades da viagem, uma vez
que nenhuma empresa se responsabilizava pela vida e integridade dos
passageiros. Além de mim, havia no cargueiro apenas um passageiro, polonês
naturalizado brasileiro, que negociava em couros. Levamos nada menos de 30
dias completos, entre o Rio de Janeiro e Nova Iorque, com todas as luzes
apagadas de noite. Numa tarde, nas alturas das Antilhas da América Central, os
cruzadores do lado do Atlântico descarregaram os seus canhões de defesa anti-
submarina, num tremendo bombardeio. Nós, os dois passageiros, naturalmente,
não conseguimos saber patavina do motivo dessa luta, porque segredo de
guerra é indevassável. Suponho que foram avistados submarinos inimigos, ou
antes localizados pelo serviço de radar de que os navios se achavam munidos.
No mesmo dia da chegada a Nova York, depois de passar 30 dias com um e o
mesmo companheiro tomei o trem para Princeton, que fica apenas a uma hora
da grande metrópole, e respirei profundamente aliviado, liberto de dois pesos
sufocantes: de 4 a 5 anos de odiosa perseguição clerical e do tormento de não
poder trocar idéias, durante um mês inteiro, senão com uma única pessoa, meu
boníssimo companheiro de bordo...
54
Ecos filosófico-espirituais dos
Estados Unidos
Em princípios de 1945, como disse, foi-me oferecida uma bolsa de estudos por
uma Faculdade da Universidade de Princeton, Estado de New Jersey. Lá estive
14 meses. Entrei em contato com Einstein, que, nesse tempo, era diretor do
Institute of Advanced Studies anexo à dita Universidade. Não falávamos,
naturalmente, de matemática nem física nuclear, de que pouco sei, mas de
filosofia e problemas ético-sociais da humanidade. Nem todos sabem que
Einstein foi toda a vida um grande entusiasta da filosofia, sobretudo da
orientação de Platão, Spinoza e outros monistas metafísicos. Evidentemente,
sentia ele, o grande monista da física, uma profunda afinidade com os corifeus
do monismo metafísico. Quem visse aquele modestíssimo sobradinho de
madeira, à Mercer Street do campus dessa Universidade seletiva em pleno
descampado, casinha semi-coberta de trepadeiras e sempre envolta em
profundo silêncio, sem nenhum automóvel à entrada (Einstein nunca possuiu
automóvel próprio), dificilmente suspeitaria que nesse cantinho morasse o maior
gênio matemático do século e talvez de todos os tempos. Lá fora, no campus da
Universidade, onde Einstein passeava de vez em quando, sempre envolto
naquele seu roupão cinzento, descabelado, absorto, era difícil falar com ele,
porque lá estava apenas o invólucro corpóreo dele, enquanto o seu conteúdo
pensante andava longe, perlustrando as mais longínquas galáxias do universo,
calculando as invisíveis leis que regem todos os fenômenos visíveis, desde os
átomos até aos astros. “Guten Morgen Professor Einstein”, dizia eu — ele
gostava de falar o alemão e sempre teve dificuldade com o inglês — mas ouvia
apenas materialmente essa saudação; o seu Eu consciente andava muito
distante. De repente, voltava dos confins do cosmo sideral e, todo encabulado,
respondia: “Guten Morgen, o wie geht’s Ihnen?” Mas era melhor não distraí-lo
das suas excursões pelos mundos infinitamente grandes dos astros ou pelos
mundos infinitamente pequenos dos átomos. E Einstein seguia avante, com sua
cabeleira de medusa e seus olhos de esfinge, os pés firmemente na terra e a
cabeça nos espaços sidéreos. Só em casa se podia falar com ele mais
intensamente, sobretudo quando ele chegava a entusiasmar-se por algum
problema filosófico, ético ou mesmo político da humanidade, como os que
aparecem nos seus livros “Mein Weltbild” e “Aus meinen spaeten Jahren”.
Quem, nesse tempo, lhe governava a casa era sua irmã Maya — Einstein era
viúvo pela segunda vez. Mais tarde, Maya adoeceu e ficou diversos dias em
estado de coma, sem dar sinal de vida. O carinhoso irmão, porém, sabia que ela,
embora externamente inerte, era internamente consciente, e por isto sentava-se
cada tarde à cabeceira da enferma e lhe lia em voz alta os Diálogos de Platão,
leitura profunda e sublime com que os dois se haviam entretido frequentemente,
em tempos anteriores. E assim, na atmosfera dessa carinhosa espiritualidade,
deixou a alma de Maya o seu invólucro material...
* * *
Estranhos são os caminhos da divina Providência!
Estávamos ainda em tempo de guerra mundial. Em Washington funcionava o
“Department of Inter-American Affairs”, que recebia de fora e transmitia a todas
as repúblicas dos hemisférios as notícias de todas as frentes bélicas,
ininterruptamente, durante as 24 horas do dia e da noite. Essas notícias
telegráficas tinham de ser imediatamente traduzidas para todas as outras línguas
de continente e transmitidas aos jornais e estações emissoras. Havia nos “Inter
American-Affairs” três secções de tradutores, para as línguas espanhola,
portuguesa e francesa. Cada turno de tradutores tinha oito horas de serviço,
revezando assim três vezes nas 24 horas. Fui chamado de Princeton para fazer
parte do grupo dos tradutores para o português. Aceitei o convite, e assim entrei
em contato com as esferas superiores de Washington, onde, anos mais tarde,
deveria colher tão interessantes experiências como lente em uma das cinco
Universidades da capital dos Estados Unidos e, praticamente, nesse tempo, a
metrópole do mundo. O serviço era exaustivo. As notícias vinham em “inglês
telegráfico”, numa terminologia bem diferente do inglês comum, exigindo do
tradutor incríveis acrobacias inventivas e vastos conhecimentos geográficos,
porquanto abrangiam o mundo inteiro de quatro continentes onde rugia a
conflagração da tremenda catástrofe. Além disto, o fator “tempo” era essencial:
dentro de 15 a 20 minutos tinha de ser traduzida e datilografada em português
de imprensa qualquer nova remessa de originais em “inglês telegráfico”.
Entretanto, eu me sentia bem nesse ambiente de trabalho intenso e dinâmico, e,
quando, pelo fim da guerra, deixei o meu cargo e voltei à Princeton University,
recebi do diretor da nossa secção, Raul d’Eça, um atestado afirmando que meus
serviços eram “of the highest quality, and his efficiency and willingness were
always more than satisfactory” (da mais alta qualidade, e minha eficiência e boa
vontade eram mais que satisfatórias).
Durante esse período washingtoniano cheguei a conhecer o Conselheiro
Comercial da “Pan-American Union”, Doutor Silvado Bueno, brasileiro. Certo dia
apresentou-me ele ao Doutor Paul F. Douglass, Reitor da American University,
da mesma capital. Fomos convidados a um jantar em casa do Reitor. Estavam
presentes no mesmo ágape diversos professores da mesma Universidade,
muitos deles europeus, fugitivos da guerra e da perseguição nazista. Discutimos
até meia-noite sobre os mais diversos problemas filosóficos e sociais da
humanidade. À despedida, perguntou-me o Dr. Douglass se eu estaria disposto
a aceitar uma cátedra de professor na American University, caso me fosse
oferecida. Respondi-lhe que isto dependia de algumas condições, que ele
fizesse favor de me mandar por escrito. Entretanto, nunca recebi carta com
essas condições. Só meses mais tarde, quando eu já regressara para o Brasil,
em meados de 1946, e reencetara as minhas atividades em São Paulo, após 14
meses de ausência — recebo inesperadamente um telegrama, perguntando se
aceitaria a cadeira de Filosofia e Religiões Comparadas, na American University,
em tais e tais condições, devendo, em caso de aceitação, iniciar as minhas
preleções no dia 25 de setembro, às 8h30 da manhã (telegrama de americano é
assim mesmo, marcando até a hora e o minuto do início do trabalho contratado!).
Como faltava apenas um mês para o início do ano letivo na dita Universidade,
mandei ao Reitor um telegrama perguntando se ele pagava a minha viagem
aérea, porque de outro modo não me seria possível dar a minha primeira
preleção no dia 25 de setembro às 8h30 da manhã. Respondeu-me que sim, e
guardou a promessa. Pus em ordem os meus afazeres em São Paulo, e, no dia
22 de setembro, deixei a Paulicéia, pernoitei no Rio, e às 10 horas do dia 23
levantei vôo num possante quadrimotor, com destino direto a New York. Durante
a mesma noite, depois de jantar em Belém, cruzamos a América Central, com
ligeiras paradas em Port of Spain e San Juan; na manhã seguinte sobrevoamos
Miami sem aterrar, e pouco depois do meio-dia de 24 de setembro descemos no
aeroporto de Nova lorque. Na mesma tarde tomei o trem noturno para
Washington, onde cheguei na manhã seguinte, às 8 horas. Um táxi me levou ao
campus da Universidade, situada entre as avenidas Nebraska e Massachusetts,
meio fora da cidade. Eram 8h15. Telefonei à casa do Reitor anunciando a minha
chegada, dentro do dia e da hora marcados, mas ele não estava. Telefonei ao
Dean Bentley (diretor de estudos), que me mandou vir para o gabinete dele, onde
cheguei às 8h20. Às 8h30 em ponto apresentou-me ele à minha classe de
estudantes, que estavam à minha espera — e dei a minha primeira aula de
filosofia em inglês em Washington.
O meu contrato era para um ano apenas. Entretanto, depois de iniciados os
meus cursos, tive pedido do Reitor para ficar mais dois anos, e depois mais dois.
De maneira que fiquei um total de cinco anos. Foi-me oferecida a cátedra de
Filosofia e História das Religiões em caráter permanente, oferecimento que
declinei, porque implicava em certas condições que não quis aceitar.
Comecei com 50 alunos e terminei com 400. Mais de 3.000 passaram por minhas
classes.
Quando, em meados de 1951, deixei a Universidade e os Estados Unidos, para
voltar ao meu país natal, recebi em Nova Iorque, a bordo do vapor Uruguay, uma
última carta do Reitor da American University que, entre outras coisas, dizia:
“Desde o primeiro momento, quando destes a vossa primeira preleção na
Universidade, nós contraímos um grande débito para convosco e fomos
profundamente estimulados por vosso modo de pensar e por vosso
companheirismo, durante esses anos da Faculdade da American University. Vós
destes aos estudantes uma experiência profunda, mostrando-lhes qual o sentido
da filosofia e da religião no meio da vida. Deixais Washington com um profundo
entusiasmo nas almas dos vossos estudantes e com a afeição dos vossos
colegas”.
Numa carta de apresentação, de 30 de março de 1950, dissera o Dr. Paul F.
Douglass: “O Dr. Rohden é um erudito (scholar) de alta qualidade e uma lente
de grande fascinação na sala de aulas. Eu pessoalmente tive com o Dr. Rohden
muitas conversas íntimas, e tenho a impressão de que ele possui a mentalidade
exata, investigadora e construtiva”.
Em outra carta, de 31 de janeiro de 1951, diz: “Vós contribuístes para a ideologia
filosófica dos nossos estudantes, e nós lhe guardaremos sempre calorosa
afeição”.
* * *
A fim de ampliar essa sinfonia de ecos filosófico-espirituais, peço vênia ao
paciente leitor para traduzir e transcrever trechos de cartas de alguns dos meus
estudantes desse tempo. Os originais ingleses dessas cartas estão comigo e
serão exibidos a quem o solicitar.
Duma aluna psicológica:
“Continuo a sentir a vossa falta na Faculdade da American University. Os três
cursos que tive convosco foram tão maravilhosos, tanto para a minha
compreensão como para a paz de minha alma. Continuo a rememorar que é
necessário integrar o nosso pequeno ego (humano) em nosso grande Eu
(divino)”.
Duma estudante que encontrou alicerce espiritual:
“Sentimos muito a vossa falta. Estais muitas vezes em nossas conversações e
sempre em nossos pensamentos. Durante todo este verão eu me surpreendia
repetindo a mim mesma: O Dr. Rohden diz assim e assim... O Dr. Rohden toma
este e aquele ponto de vista... O Dr. Rohden explica este ponto deste modo...
Finalmente, observei a uma amiga íntima e colega de estudos: Espero ter
compreendido corretamente os ensinamentos do Dr. Rohden, uma vez que o cito
tantas vezes.
O que vós destes em Washington não pode ser medido por nenhum padrão
nosso conhecido. Todos nós vos somos simplesmente gratos e tentamos
construir sobre os alicerces que lançastes. Que Deus abençoe a vossa pessoa
e esforços, a fim de continuardes a espalhar a luz — agora e para sempre”.
Da secretária da Sociedade Teosófica de Washington, onde falei diversas vezes:
“Mais uma vez vos agradecemos pelas maravilhosas palestras que, este ano,
oferecestes à Sociedade Teosófica de Washington. Nunca orador algum nos deu
maior inspiração nem provocou em nós tão profunda estima como vós. O nosso
único pesar é que estejais para deixar os Estados Unidos e já não nos seja
possível “estarmos sentados aos vossos pés”, como até agora; mas nunca
deixaremos de fruir das riquezas espirituais que nos prodigalizastes”.
Duma senhora que tomou parte no Curso de Filosofia da Vida que eu mantinha
fora da Universidade, organizado pelas famílias dos meus estudantes:
“Mais que tudo quero expressar-vos a minha gratidão pelo conhecimento e pela
inspiração que todas as vossas conferências me trouxeram. Por longo tempo,
tenho vivido numa grande incerteza e ignorância a respeito daquilo que eu
realmente acreditava. Hoje posso, em verdade, dizer que não somente eu, como
também meu marido, participamos duma compreensão sempre crescente”.
Dum grupo de jovens que sentiu nas minhas conferências um “desafio” para
conquistar o mundo espiritual:
“Alargastes os nossos horizontes e clarificastes muitas coisas para nós.
Apresentastes idéias completamente novas para muitos de nós e lançastes um
desafio (challenge) para nossa inteligência e nossa alma. Diversos dos nossos
jovens diziam que fora para eles o mais precioso programa que o grupo já tivera.
Com os nossos agradecimentos externamos a esperança de vos ouvir outra
vez”.
De um estudante ex-ateu insatisfeito com a rotina tradicional:
“Vim para a American University como um fundamentalista 1 não-fanático, e
tenho a impressão de que vou deixá-la como um não-fundamentalista, mas com
convicções mais firmes em outro sentido.
1. “Fundamentalista” chama-se, nos EUA, um cristão que procura seguir uma orientação calcada
sobre a interpretação literal da Bíblia, incompatível com o modo de ver dos “liberais”.

Durante a guerra fui misticamente convertido do ateísmo para o cristianismo e


recebi chamamento de romper os grilhões e viver para o que tem valor real. Nas
minhas experiências com professores da Bíblia na American University tenho
verificado que eles são modernos liberais de boas maneiras, mas sem vestígio
algum de convicções sérias sobre Deus e Cristo. Nas vossas classes, porém,
(frequentei três cursos) encontrei um sentido espiritual mais profundo para minha
experiência cristã. Graças a essa experiência, tenho me aproximado mais de
Jesus Cristo, e nas minhas mensagens evangélicas me tornei um mestre mais
eficiente em prol do Reino de Deus”.
De um membro da Confederação das Igrejas de Washington:
“O Rev. Thomas Steen, da Confederação das Igrejas de Washington, falou do
vosso trabalho em termos tão ardentes (glowing) com os ministros da cidade e
com a juventude dos congressos, que estamos imensamente ansiosos por ter-
vos em nossa escola”.
Duma correspondente de filmes de Hollywood e Londres:
“Será que vos lembrais de mim? Fui uma das vossas estudantes na classe de
“Cristianismo Dinâmico”, em outono do ano passado. Foi uma das mais
impressionantes experiências que já tive. Por esta razão tentei dar à vossa
mensagem mais ampla expansão, servindo-me do cinema. Neste intuito, escrevi
uma peça para a tela, que submeti ao critério de um agente em Nova Iorque, o
qual acaba de devolver-ma com o seguinte comentário: Esse material é de uma
bitola (calibre) intelectual demasiadamente elevada para encontrar público em
Hollywood.
Em consequência disto, entrei em contato com as “Laurence Olivier Productions”
de Londres; responderam-me que vão estudar a peça — um grande passo para
a frente, como de certo, compreendereis.”
Dum estudante analista:
“Considero como um dos vossos principais atributos uma atitude de
compreensão para com todos os vossos estudantes. O vosso trabalho é obra de
amor e dedicação para com a Verdade”.
Do diretor Geral da Confederação das Igrejas de Washington:
“Somos muito gratos pela experiência que tivemos no último sábado. Ainda muito
tempo depois da vossa partida, permanecia a juventude em pé ao redor da igreja,
discutindo as conclusões a serem tiradas das coisas que dissestes. Tenho a
certeza de que muitos do grupo nunca haviam tido experiência idêntica. Somos
gratíssimos a vós pela boa vontade com que nos atendestes.
Quanto a mim mesmo, crede-me, por favor, que me é uma satisfação pessoal
trabalhar convosco”.
Da secretária da “Mothers Class”:
“É uma experiência maravilhosa escutar-vos — saber que as alturas espirituais
podem ser realmente atingidas e que são dignas de todos os esforços.
Andamos tão emaranhadas num cipoal da nossa própria fabricação que temos
necessidade de um elevado pináculo donde nos possamos enxergar a nós
mesmas. Creio que este é o caso principalmente com mães que têm filhos
pequenos, como são as que vos ouviram no último domingo de manhã”.
De um estudante que se libertou do caos espiritual:
“Quero expressar-vos a minha sincera gratidão por ter-vos tido como professor
de Lógica e de Filosofia. Pusestes ordem no meu espírito empobrecido e caótico,
o que sei apreciar profundamente e procurarei desenvolver”.
De uma pioneira da verdade absoluta:
“Continuo a “ruminar” (chew) a mensagem que nos destes ontem. Sendo que
apenas recentemente, nos últimos 4 meses, descobri a Verdade, a vossa
palestra foi para mim de grande importância.
Encontrei-me a mim mesma, sentada ali, de boca semi-aberta, que nem uma
criança — e não era eu a única...
Quero agradecer-vos pessoalmente, em meu próprio nome, pelo fato de nos
terdes falado ontem, e anseio por ouvir-vos de novo — em breve”.
Um jovem de alma sintonizada:
“Ouvi-vos, da primeira vez, no Curso Superior sobre a “Vida e Influência de
Jesus”. Mais do que outra coisa qualquer, esse primeiro encontro convosco me
impressionou, não somente por vossa simplicidade, como também pela largueza
da vossa compreensão e do vosso conhecimento. Aspectos da fé cristã que
costumam vir a nós como testemunhos de segunda mão — se é que vêm — são
explanados por vós com uma visão interior tal que só eram possíveis mediante
um contato pessoal.
Esse conhecimento das coisas de Deus, transmitido numa singela sinceridade e
ao mesmo tempo com certeza, parece-me a mim ser a vossa contribuição
excepcional para os que tiveram a oportunidade de ouvir-vos na Universidade e
fora dela.
Tem sido para mim uma alegria estudar sob a vossa direção, e embora eu possa
esquecer a posição teológica de Anselmo, 2 asseguro-vos que vós sois o único
responsável por todos os fundamentos filosóficos e teológicos lançados em
minha alma e sobre os quais espero continuar a edificar com solidez. Nos últimos
meses tenho estado ensinando a jovens na escola dominical; o conteúdo da
doutrina que discutimos remonta quase integralmente à compreensão que hauri
em vossas classes. De maneira que estou com um arcabouço geral sobre o qual
me é possível construir os pormenores — e por isto vos sou grato”.
2. Alude o estudante ao célebre “argumento ontológico” de Santo Anselmo, que tenta provar
filosoficamente, a priori, a existência de Deus, suscitando vasta controvérsia em sentido
contrário. Havíamos analisado o valor ou desvalor desse argumento numa das nossas classes
de filosofia.

Uma jovem de vinte e poucos anos, secretária da Biblioteca da Universidade,


vivia num pessimismo tal que achava a vida completamente absurda e sem
finalidade. Um dia, disse a uma colega: “Se Deus me tivesse consultado se eu
queria ou não queria existir, eu teria votado contra a minha existência”.
Houve quem sugerisse a essa pessimista precoce que se inscrevesse no curso
de filosofia; respondeu que nem filosofia nem religião a poderiam salvar; já
tentara tudo, mas em vão. Finalmente, porém, resolveu fazer uma derradeira
tentativa e matriculou-se no meu curso. Durante o semestre inteiro esteve
sentada numa das primeiras filas da classe, bebendo com avidez cada uma das
minhas palavras e enchendo de notas os seus cadernos. Nesse tempo, nada
sabia eu das angústias íntimas por que essa alma passava. No fim do curso,
despediu-se de mim com estas palavras simples e profundas: “I came back to
life” (tornei a viver). E, para dar aos outros algo da sua transbordante felicidade
de que o descobrimento da verdade a enchia, solicitou admissão a uma
sociedade missionária — e lá se foi para o coração da África repartir com seus
irmãos negros um pouco do muito que recebera de Deus.
Uma senhora de idade que frequentara assiduamente o meu Curso de Filosofia
da Vida, fora da Universidade, despediu-se de mim com estas palavras; “You
released me from ali my prisons” (Vós me libertastes de todas as minhas
prisões). Só ela e Deus sabiam que prisões eram essas.
Um homem duramente provado pelos revezes da vida, escreve-me: “Quando a
ferramenta me cai das mãos, as grandes idéias expostas na vossa filosofia me
dão coragem para apanhá-la de novo e prosseguir na jornada”.
* * *
Citações dessa natureza poderiam ser continuadas indefinidamente — tenho
uma pasta cheia de cartas desse teor, dos Estados Unidos e do Brasil — mas
bastam estas amostras.
Mostram que uma pessoa receptiva e não eivada de preconceitos encontra na
exposição singela e sincera da verdade eterna um meio seguro para superar as
suas dúvidas e angústias interiores e começar vida nova à luz da Realidade
Eterna. Muitos dos leitores brasileiros dos meus livros, ou ouvintes dos meus
cursos de Filosofia, em São Paulo ou no Rio, sabem da campanha violenta com
que certos elementos mais sectários que cristãos — embora se tenham em conta
de católicos ou evangélicos — têm invectivado contra minhas idéias, nas quais
enxergam um perigo para o cristianismo. Obnubilados de preconceitos
denominacionais, não percebem que o perigo não é para o Cristianismo, mas
tão somente para a teologia sectária deles. Entretanto, qualquer pessoa sem
preconceitos e ansiosa pela verdade integral encontrará nos meus livros e nos
meus cursos de filosofia alimento sadio para uma vida cristã, como aconteceu
aos autores das cartas acima citadas. Para a geração antiga pouca esperança
existe; mas a geração nova, ainda não fossilizada em acanhados sistemas
teológico-exegéticos, acompanha, tanto aqui no Brasil como nos Estados
Unidos, essa alvorada espiritual, rumo a um Cristianismo genuíno e integral.
Nos seis anos que vivi nos Estados Unidos, falei em toda espécie de igrejas,
centros e sociedades religiosas, sempre sobre o tema inesgotável do Reino de
Deus no homem e entre os homens — falei em igrejas presbiterianas,
metodistas, batistas, em sociedades teosóficas, no Rotary Clube, em Lojas
Maçônicas, nos templos dos Unitários, na Self-Realization Fellowship, em
centros Espiritualistas, etc. — e nunca houve uma voz discordante, porque a
alma humana, quando não adulterada, é “cristã por sua própria natureza”, e
quando percebe a luz do Cristianismo autêntico, volta-se para a mesma com a
instintiva alegria com que o girassol e outras plantas se voltam para a luz solar.
55
Como quem adormece...
Não convém rematar este livro sobre a minha grande luta por um ideal sem
evocar a memória de meus pais, simples lavradores no extremo sul da nossa
terra.
Minha mãe faleceu em 1941, com cerca de 80 anos, precisamente na hora em
que eu estava realizando uma conferência sobre o “Sofrimento” 1 na Escola
Normal de Fortaleza, Ceará.
1. Ver o capítulo “O Homem em face da dor”, do meu livro “PROBLEMAS DO ESPÍRITO”.

Meu pai deixou este mundo, em dezembro de 1944, com mais de 90 anos,
quando eu, na minha silenciosa ermida de Santa Teresa do Rio de Janeiro,
estava terminando o meu livro “DEUS, o Grande Anônimo de Mil Nomes”.
Ambos se foram daqui para o além sem a menor agonia e também sem a
presença de pessoa alguma que testemunhasse os seus últimos momentos,
morte ideal, ao meu ver. Foram-se, silenciosamente, como quem adormece...
Repugna-me indizivelmente a atitude patética e pagã com que a maior parte dos
chamados cristãos profana o momento solene em que uma alma humana
regressa do exílio aos braços do Pai eterno... Felizmente, nada disto aconteceu
quando os autores de minha vida terrestre voltaram à origem divina de todos os
seres. Faço votos a Deus para que o meu êxodo seja como foi o de meus pais.
Minha mãe, de cama havia meses, em casa de meu irmão Antônio, gostava de
ouvir leituras religiosas, feitas por esse meu irmão ou pela enfermeira. No dia 11
de outubro do referido ano, depois de escutar por algum tempo a edificante
leitura, despediu ela a enfermeira, porque desejava dormir um pouco.
Adormeceu — e não mais acordou neste mundo...
Meu pai costumava ajoelhar ao pé da cama, antes de se recolher, fazendo a sua
oração da noite. Na noite de 21 de dezembro do dito ano retirou-se para o seu
cubículo, onde, mais tarde, foi encontrado morto, ainda de joelhos, debruçado
sobre a cama, com o rosto entre as mãos, que seguravam um pequeno crucifixo,
que eu lhe havia oferecido, uns vinte anos atrás.
De meu pai herdei o gosto pelas longas e perigosas viagens. Ele viajava muito,
comprando e vendendo terras, desbravando florestas, abrindo picadas,
dormindo muitas vezes em plena selva sobre uma armação de dois troncos de
palmeira justapostos, coberto com o seu poncho, 2 e com a inseparável
espingarda de caça à cabeceira desse leito improvisado. Dele também vem o
meu inveterado gosto pela caça. 3 De resto, meu padroeiro onomástico, Santo
Huberto, é o protetor dos caçadores. O temperamento bandeirante de meu pai
não o deixou nem aos 90 anos de idade. Ainda com essa respeitável carga de
anos, andava ele, sozinho, a cavalo, não já para negociar em terrenos, mas para
interromper a monotonia da vida, ultimamente, sem ocupação certa. Falta de
trabalho era para meu pai ausência de um elemento vital. Apesar de mirrado e
franzino, possuía ele uma formidável capacidade de trabalho e uma estupenda
resistência física. Era capaz de viajar dia e noite sem comer nem beber. A mula
marchadeira que ele teve por muitos anos, mula predileta que só ele montava —
não aguentava tanto jejum como seu cavaleiro.
2. Poncho é uma espécie de manto, usado no sul do Brasil e na Argentina, feito de um tecido
forte e compacto forrado de baeta, tendo uma abertura no centro por onde se passa a cabeça.
Meu pai usou por mais de 50 anos o mesmo poncho, quase tão resistente como seu dono.

3. Entretanto, há muitos anos que desisti de ser caçador de animais inocentes, por motivos que
meus leitores encontrarão nos meus livros. Pela mesma razão, não tolero passarinhos
engaiolados.

Éramos mais de uma dúzia de irmãos e irmãs, lá em casa. De todos eles, quem
realizou viagens mais numerosas e extensas foi, certamente, este incorrigível
escrevedor de livros — viagens corporais através de vários continentes do
planeta, e viagens espirituais através do cosmos das almas e para além das vias
lácteas dos mundos de Deus. No Brasil, percorri diversas vezes, a serviço do
meu ideal cristão, todos os Estados do nosso país. Da Europa conheço de vista,
e, em parte, de longa permanência, França, Espanha, Portugal, Alemanha,
Suíça, Itália, Áustria, Hungria, ligeiramente também a Iugoslávia. Da Inglaterra
nada vi senão os rochedos cretáceos de Dover. Da África conheço apenas
Dacar, onde passei um dia. Pelos Estados Unidos realizei viagens quase tão
extensas, embora menos demoradas, como através do Brasil, desde Nova
Iorque, Búfalo, Chicago, Nebrasca, até Califórnia, Texas, Novo México, Flórida,
Washington, etc.
Entretanto, creio que viagens maiores fiz pelo mundo invisível, através de várias
dezenas de livros. E por causa destas jornadas do espírito tive de sofrer mil
vezes mais que todas as intempéries das viagens geográficas.
De minha mãe herdei essa sede de mundos espirituais, místicos, divinos.
Verdade é que, apesar de todas as práticas religiosas a que éramos obrigados
em casa, na escola e no colégio, nunca, nesse tempo, me afeiçoei a essas
coisas. Eram para mim dura penitência e só as acompanhava porque não havia
como furtar-me a elas. Interiormente, fiquei-lhes alheio, de espírito e de coração.
Na escola elementar tive, por algum tempo, uns como lampejos longínquos do
que fosse religião, depois que a decoração mecânica do Catecismo e da História
Bíblica já me tinha enchido a alma de fastio da “hora de religião”. O nosso Vigário
— Deus lhe perdoe! era um santo homem! — não conseguiu, tampouco,
despertar em mim, e, creio em outros, interesse religioso; mas, quando a nossa
professora, Irmã Teófana, nos contava, em linguagem infantil, singela, intuitiva e
ardente, histórias de anjos e demônios, de santos e condenados, de uma
criancinha deitada numa manjedoura e de um homem pregado numa cruz, então
eu não só ouvia mecanicamente estas coisas, mas vivia-as a meu modo, embora
não fosse talvez o modo como elas deviam ser vividas teologicamente. Quando,
aos 10 ou 11 anos, fiz minha primeira Comunhão, tinha a certeza de ser o maior
pecador do mundo — a tal ponto me haviam impressionado certas histórias de
Irmã Teófana. A atmosfera da nossa religiosidade era muito mais parecida com
o terror do Antigo Testamento do que com o amor da Nova Aliança.
Apagaram-se os lampejos longínquos — e eu não descobri a religião...
Nem mesmo nos longos anos de Seminário criei gosto verdadeiro e real por
estas coisas. Estaria minha alma hibernando por tantos anos? Continuei a
cumprir mecanicamente, por simples obediência e rotina, toda aquela
abundância litúrgica, que antes sufocava do que alimentava o meu espírito.
Parece que minha alma não era acessível pelo lado de fora, hermeticamente
fechada em si mesma. E eu não sentia em mim desejo algum para abri-la a
coisas ou pessoas que não me fossem intimamente queridas. Para que abrir a
porta a estranhos? As palavras de minha mãe, os ensinamentos religiosos da
Irmã Teófana e do sacerdote, os exercícios espirituais no Seminário — tudo isto
ficou na periferia do meu verdadeiro Eu; o meu centro ficou inatingido. Deve
haver milhares de homens nestas condições, que assim vivem e morrem, dentro
da religião sem que dentro de si vivam a religião. O farisaísmo obtuso e
intolerante os condena e detesta como homens maus, sem religião, mas Deus
sabe quanto eles sofrem com o sincero desejo de religião que quiseram possuir...
Talvez não estejam “longe do reino de Deus”...
Comigo, porém, teve Deus mais piedade. Revelou-se-me, não em uma
tempestade de Damasco, mas numa como silenciosa e imperceptível alvorada
espiritual, durante o meu primeiro Retiro de 30 dias completos, em 1924, e, anos
mais tarde, em outra solidão espiritual, também de um mês inteiro. Talvez que
fosse necessária toda aquela saturação ascético-litúrgica dos anos anteriores
para que, enfim, pudesse manifestar-se essa osmose espiritual... Serviu-se Deus
de veículos humanos, espécie de catalisadores, para fazer cristalizar em
palpável realidade esse indefinível algo que andava disperso na atmosfera da
minha vida...
E Ele, o Grande, o Bom, o Terrível, o Querido, disse-me o que ninguém poderia
dizer-me. Falo de dentro, e não de fora. Tive o meu primeiro encontro pessoal
com Ele, em 1924 — Ele, o grande Anônimo de mil nomes — Ele, meu delicioso
Tormento — Ele, minha luminosa Escuridão — Ele, o Deus transcendente e
imanente — Ele, a quem minha alma possui, e a quem tem de procurar sem
descanso...
Os que reduzem os Exercícios Espirituais a uma semana ou até a três dias, como
é de uso e abuso, nada entendem do seu verdadeiro espírito. Assim como o
efeito espiritual do jejum só é atingido com 30 ou 40 dias de abstenção, assim
também só com 30 ou 40 dias de concentração espiritual é que a alma atinge
aquele grau de polarização dinâmica que lhe faculta uma sobre-humana
percepção das supremas realidades. É fora de dúvida que entre esse lapso de
tempo e a constituição da alma vigora alguma secreta relação e
interdependência. Em determinada altitude de ascensão espiritual existe uma
zona ou barreira, transposta a qual, o espírito se sente liberto do peso morto da
matéria, sem deixar o corpo, e adquire uma receptividade divina que nada tem
que ver com as nossas faculdades normais. Há certas práticas espirituais,
atribuídas a determinados homens, mas que no fundo são leis eternas do mundo
invisível relacionadas com a natureza da alma humana. A completa exclusão do
mundo profano, e a intensa e prolongada fixação do mundo espiritual, despertam
no mundo do nosso espírito forças dormentes que ignorávamos e que, uma vez
despertas, abrem caminho através de todos os impossíveis e nos levam até à
presença de Deus.
Dizia eu, a princípio, que devia à minha mãe a sede do mundo espiritual, místico,
divino; e creio que é exato, apesar de não ter aproveitado com os ensinamentos
religiosos dela.
Minha mãe, apesar de muito ativa e trabalhadora, passava horas e horas imersa
em meditação espiritual, quando o tempo lho permitia. Sobretudo aos domingos
à tarde entregava-se a essa introspecção, e, para que ninguém a perturbasse,
sentava-se no cantinho mais retirado e escuro da igreja, e lá se deixava ficar por
longas horas, muitas vezes sem livro algum. Ela, certamente, não teria entendido
as minhas lucubrações metafísicas com que, em alguns dos meus livros, tentei
explicar o inexplicável fenômeno do espírito que ultrapassa o seu próprio Eu e
se sente como que um super-Ego, ou um non-Ego, em contato com algo que
não é simplesmente a sua personalidade humana, e muito menos o mundo
circunjacente, mas uma realidade essencialmente superior a tudo isto. É este o
misterioso “porto de invasão” do mundo divino dentro do mundo humano.
Realizada essa invasão de Deus no Eu, está o homem como que “do outro lado”,
está para além de um grande abismo, para aquém do qual decorreu até então a
sua vida e experiência cotidiana.
É esta a “crise redentora” de todo homem espiritual. É o Damasco de Saulo, o
Milão de Agostinho, o Port-Royal de Pascal, o Manresa de Loyola, o Monte
Alverne de Francisco de Assis. Essa crise, não raro, lança o homem num
pavoroso conflito com outros homens que por religião entendem coisa tão
diferente. A vida da maior parte dos grandes heróis do espírito é uma imensa
tragédia, porque a sua experiência espiritual e mística faz deles como que blocos
erráticos, arrancados não se sabe de que ignotas montanhas e arremessados
com titânica veemência ao meio dessa vasta planície de humana mediocridade.
E no meio dessa monótona planície ficam então esses blocos erráticos como
incompreendidas esfinges a olhar o deserto, como estranhos paradoxos ou
fantasmas de outros mundos a perturbar, com sua simples presença, o tépido
sossego dos pacatos cultores da mediocridade dominante...
Não tenho a pretensão de me equiparar a algum dos homens acima citados.
Entretanto, a raiz de todas as lutas que encheram a minha vida apostólica
remontam ao ano de 1924. Não podia eu deixar de dizer aos homens o que Deus
me havia dito, fosse agradável ou desagradável. E eu o disse, com grande
veemência e persistência, durante mais de três decênios. Muitos o ouviram.
Alguns o aceitaram. Muitíssimos o rejeitaram, porque “amaram mais as trevas
que a luz”; não lhes quero mal por isto. Deus os conhece...
Tenho certeza de que, lá das regiões da verdade integral, onde creio estejam as
almas de meus pais, elas acompanham, satisfeitas, as minhas atividades em
prol do reino de Deus aqui na terra.
Deixo-lhes aqui a expressão da minha sincera gratidão filial, com a esperança
de, um dia, nos revermos no reino do Pai eterno.
56
Epitáfio de um batalhador
apunhalado por seus colegas
Faço meu o lindo epitáfio que o exímio lutador da imprensa católica, na França,
Louis Veuillot, compôs para o seu próprio túmulo. Foi também a minha vida,
como a dele, saturada de trabalhos e lutas pelo reino de Deus, e dilacerada de
incompreensões e injustiças, as quais, todavia não conseguiram demover-me do
grande ideal cristão da minha vida.
O original de Louis Veuillot:
Placez a mon coté ma plume;
Sur mon coeur, le Christ, mon orgueil;
Sous mes pieds ce volume —
Et clouez en paix le cercueil.

Après Ia dernière prière,


Sur ma fosse, plantez Ia croix;
Et si l’on me donne une pierre,
Gravez dessus. “J’ai cru, je vois”.

Dites entre vous: “Il sommeille,


Son dur labeur est achevé”.
Ou, plutôt, dites: “Il s’éveille,
Il voit ce qu’il a tant rêvé”.

Ceux qui font de viles morsures


A mon nom sont-ils attachés?
Laissez-Ies faire! ces blessures
Peut-être couvrent mes pechés.

Je fus pécheur et, sur la route,


Hélas! j’ai chancelé souvent;
Mais, grâce à Dieu, vainqueur de doute,
Je suis mort ferme et penitent.
J’espère en Jésus. Sur Ia terre
Je n’ai pas rougi de sa loi,
Au dernier jour, devant son Père,
Il ne rougira pas de moi.

Tradução do Dr. Jonatas Serrano:


A pena que empunhei, ponde-me ao lado;
O Cristo, orgulho meu, no coração;
Aos pés este volume. Então, fechado,
Podeis pregar em paz o meu caixão.

Depois de feita a prece derradeira,


Plantai-me sobre o túmulo uma cruz;
Se uma inscrição quiserdes verdadeira,
Seja: “Esperou — contempla agora a luz”.

E podereis dizer: “Ele descansa


Do seu trabalho rude que findou”,
Ou, ainda melhor, dizei: “Alcança
Ver, afinal, aquilo que sonhou”.

Persistem as calúnias repetidas...


Não basta à injúria o quanto já me fez?
Oh! Deixai-a! que importa? estas feridas
Cobrirão os meus pecados talvez...

Fui pecador, confesso-o; pela estrada,


Ai! quantas vezes vacilei, caí!
Por Deus, porém, minh’alma iluminada,
A dúvida venci; crente morri.

Jesus, espero em ti! Ao mundo inteiro


Tua verdade proclamei; e assim,
Perante o Pai, no dia derradeiro,
Não te envergonharás também de mim...
APÊNDICE:
Porque Huberto Rohden
deixou o clero
(Documento à autoridade eclesiástica em que Huberto Rohden se declara
demitido do clero pelos motivos indicados, confirmando outro documento
anterior).
Exmo. e Revmo. Sr. D. Jaime de Barros Câmara
Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro
Em 1944, ao completar 25 anos de apostolado sacerdotal e literário a serviço da
igreja, entreguei a V. Excia. Revma. cópia dum documento explícito entregue ao
Cardeal-Arcebispo D. Sebastião Leme, em 1942, meses antes do falecimento
dele, documento pelo qual depunha nas mãos da autoridade diocesana o meu
mandato sacerdotal e me retirava definitivamente do clero, pelas razões
expostas no dito documento. Pedia eu a D. Jaime que fizesse publicar
oficialmente essa minha declaração, para os devidos efeitos.
D. Jaime, porém, achava possível, nesse tempo, que os autores responsáveis
pela campanha difamatória movida contra minha pessoa e obra revogassem as
graves calúnias contra mim espalhadas e que motivaram a minha retirada do
clero.
Entretanto, hoje já deve D. Jaime ter se convencido do que eu lhe dizia nessa
ocasião — e o que dissera ao saudoso cardeal Leme — “quem teve a triste
coragem para cometer tamanhas injustiças não terá a nobre coragem para as
reparar”. E assim aconteceu. Não ignoro os esforços que D. Jaime envidou para
conseguir que os culpados restabelecessem a verdade e a justiça — e eu lhe
sou grato por suas bondades.
Pela presente carta confirmo tudo o que disse na minha despedida de 1944, cujo
conteúdo passo a resumir nos seguintes pontos:
1 — Quando, em 1938, apareceu a grande edição do meu “Novo Testamento”,
e, em 1939, a de “Paulo de Tarso” — ambos com a competente aprovação
eclesiástica — iniciaram certos elementos do clero, sobretudo do clero regular
estrangeiro, veemente campanha difamatória contra estes livros e seu autor (ou
tradutor), espalhando por todo o Brasil a calúnia de ter eu “vendido a minha
consciência católica aos inimigos da igreja”, pelos quais teria sido pago para
combater a igreja por meio desses livros. Milhares de católicos brasileiros
continuam até hoje envenenados por essa monstruosa calúnia — que nunca foi
revogada.
2 — Quando apareceram meus livros “Agostinho” e “Myriam”, devidamente
aprovados pela autoridade eclesiástica, espalharam membros do clero e
diversos órgãos da imprensa católica — entre eles a “Revista Eclesiástica
Brasileira”, órgão oficial do clero, sob a responsabilidade dos franciscanos de
Petrópolis, a calúnia de eu ter falsificado o “Imprimatur” desses livros, bem como
o prefácio do livro “Agostinho” escrito por distinto sacerdote do sul. Nenhuma
destas calúnias, largamente espalhadas por pessoas do clero, foi até hoje
revogada, passando eu, perante o Brasil católico, como falsificador de
documentos episcopais.
3 — Em 26 de novembro de 1942, um mês após a morte do cardeal Leme,
publicaram todos os (13) bispos de São Paulo um documento oficial em que
condenam e proíbem severamente todos os meus livros — uns 25 até então —
como sendo perniciosos à fé católica; e em princípios de fevereiro de 1943 o
arcebispo de Porto Alegre endossou, para sua arquidiocese, esse mesmo
documento. Ora, todos esses livros — à exceção de um só, e mesmo este único
não foi até hoje condenado por meu superior eclesiástico — têm expressa
aprovação diocesana, e muitos deles, nesse mesmo ano de 1942, tinham sido
novamente aprovados para novas edições. Além disto, 15 desses 25 livros
condenados têm esplêndidos prefácios de bispos e arcebispos, e 4 deles foram
prefaciados pelo cardeal Leme — sendo, pois, evidente que não são perniciosos
é fé católica, como afirmam, em documentos oficiais os ditos prelados — calúnia
essa que até hoje não foi revogada.
4 — Em 20 de agosto de 1944, o sacerdote estrangeiro P. Júlio Maria, em
violento artigo de fundo de seu jornal “O Lutador”, publicado em Manhumirim,
Minas Gerais, tentou lançar-me às mãos do Tribunal de Segurança Nacional,
afirmando gratuitamente ser eu aliado de Hitler e “não me conformar com as
derrotas” que o chefe do nazismo estava sofrendo nesse tempo. Esta infâmia
inventada e assoalhada pelo Brasil por um sacerdote estrangeiro contra um
cidadão brasileiro, e estampada em um jornal católico sob o rótulo “com
aprovação eclesiástica”, não foi até hoje revogada; e o superior diocesano do
referido sacerdote recusou-se a exigir do caluniador a revogação dessa infâmia.
5 — Boa parte dos caluniadores sacerdotais, além de arrasarem a verdade, a
justiça, a sinceridade, a caridade e a disciplina eclesiástica, faltaram também à
mais comezinha educação, apelidando-me, em órgãos da imprensa católica, de
“excomungado, apóstata, Judas, cretino, cabotino, lama” (sic), e tachando meus
livros aprovados por meus superiores, de “perversos, venenosos, diabólicos”
(sic) — e tudo isto sob o rótulo “com aprovação eclesiástica”.
Exmo. e Revmo. Sr. Cardeal-Arcebispo. É inegável que cada uma dessas
injúrias e calúnias seria suficiente, por si só, para induzir um sacerdote a se
retirar da convivência com uma classe onde semelhantes injustiças são
perpetradas “com aprovação eclesiástica”, e impunemente toleradas por aqueles
que, de forma alguma, as deviam tolerar.
Quanto a mim, nunca tive ordem alguma do meu superior diocesano para
modificar uma só palavra nos meus escritos. Pelo contrário, ainda em 23 de maio
de 1942, disse-me o cardeal Leme, referindo-se a “Paulo de Tarso”: “Continue a
escrever no mesmo espírito”. Cumpri essa ordem do meu superior. Se errei, errei
em perfeita obediência e harmonia com meu legítimo superior, e disto não me
arrependo. Nunca, nesses 25 anos do meu apostolado sacerdotal e literário,
recebi do meu superior uma só palavra de censura, e disto me ufano. Sou,
provavelmente, o único sacerdote católico do mundo que foi vítima de um
verdadeiro dilúvio de injúrias e impropérios da parte de colegas seus, mas que
nunca foi condenado por seu superior diocesano — e com esta consciência
tranquila me retiro definitivamente do meio do clero.
Assim, difamado por numerosos sacerdotes e por alguns bispos e arcebispos
perante milhões de patrícios meus, como traidor da causa que defendi por um
quarto de século e pela qual sacrifiquei tudo; caluniado como falsificador de
documentos episcopais; acusado de ter escrito e publicado mais de duas dúzias
de livros perniciosos à fé católica; difamado gratuitamente como aliado do
inimigo da minha pátria e réu de alta-traição — e tudo isto com expressa
“aprovação eclesiástica”, como consta de numerosos órgãos da imprensa
católica — nada me restava fazer senão o que fiz e confirmo com esta carta.
Encanecido em incessantes trabalhos e lutas pelo triunfo do reino de Deus em
terras de Santa Cruz, sempre em perfeita obediência e harmonia com os que
Deus me deu por superiores, como D. Jaime sabe; alvo de ódio, da inveja, do
despeito e das calúnias de numerosos sacerdotes, como D. Jaime também sabe
— é tempo para eu me retirar desse ambiente de discórdia, a fim de viver em
paz os poucos anos de vida que talvez ainda me restem.
Excusado é dizer que nenhum livro publicado ou a ser publicado depois da minha
despedida do clero terá “imprimatur” — o que, aliás, seria perfeitamente inútil,
uma vez que todos os livros que escrevi em 25 anos de abnegado apostolado
literário foram por 15 bispos e arcebispos declarados “perniciosos a fé católica”,
apesar de aprovados por meu superior e, pela maior parte, até prefaciados por
eminentes figuras do episcopado.
A D. Jaime, pessoalmente, agradeço as bondades que que teve para comigo, e
faço votos sinceros para que D. Jaime ajude, na medida das suas forças, a
reconduzir o catolicismo brasileiro a um Cristianismo genuíno e integral, sincero
desejo de todas as almas que querem viver como verdadeiros discípulos do
Divino Mestre.
Continuarei, com a graça de Deus, a difundir, até ao derradeiro suspiro, o
Evangelho do reino de Deus, a cuja causa consagrei a minha vida e em cuja
defesa tive de sofrer tamanhas injúrias.
Esta minha despedida será publicada por mim, pela imprensa e por meio de
avulsos, a fim de chegar ao conhecimento de todos os interessados. Solicito a
D. Jaime o obséquio de querer também da sua parte cientificar desta minha
resolução ao clero e aos católicos do Brasil.
Não responderei a invectiva alguma que a publicação desta carta venha a
provocar contra mim; queiram os descontentes entender-se diretamente com D.
Jaime, e não comigo, que desde a minha despedida deixo de existir para a classe
clerical. Os documentos a que esta carta alude são públicos e apareceram
estampados em letra de forma; outros serão públicos oportunamente.
Adeus!
Do servo em Xo.
(ass.) Huberto Rohden
(Firma reconhecida no cartório do Dr. Fausto Werneck — Rua do Carmo, 64 —
Rio de Janeiro).
Dados Biográficos
Huberto Rohden

Nasceu em São Ludgero, Santa Catarina, Brasil (1893-1981). Fez estudos no


Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em
universidades da Europa — Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e
Nápoles (Itália).
De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.
Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais, várias
traduzidas em outras línguas, inclusive o esperanto; algumas existem em braille,
para institutos de cegos.
Rohden não está filiado a nenhuma Igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo.
De 1945 a 1946, obteve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas na
Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática,
Metafisica e Mística.
Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de
Washington, D.C., a reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo este que exerceu por cinco anos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, foi convidado pelo Bureau of Inter-American
Affairs, de Washington, a fazer parte do corpo de tradutores das notícias de
guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de
Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de
manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos.
Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden
Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor
hindu desse ashram.
Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
a fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU)
de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões
Comparadas; mas, em virtude da Guerra na Coreia, a universidade japonesa
não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado
professor de Filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, cargo do qual
não tomou posse.
Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,
onde, além de cursos na capital paulista, mantinha cursos permanentes, no Rio
de Janeiro e em Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e
dirigia Casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos estados do Brasil.
Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência
espiritual pela Palestina, pelo Egito, pela Índia e pelo Nepal, realizando diversas
conferências com grupos de yoguis na Índia.
Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre
autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Autorrealização Alvorada.
Nos últimos anos, Rohden residia na cidade de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.
Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora
responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e
inspiração.
Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se em
grandes segmentos: 1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização),
em São Paulo, que tem a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação;
2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são oferecidos,
periodicamente, os Retiros Espirituais, de três dias completos; 3) a Editora Martin
Claret, de São Paulo, que difunde, por meio de livros, a Filosofia Univérsica; 4)
um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham na
consolidação e na continuação da sua obra educacional.
À zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir a Humanidade”.
Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé
e trabalho somente comparados aos dos grandes homens do nosso século.
Huberto Rohden é o principal editando da Editora Martin Claret.
Relação de Obras de
Huberto Rohden

COLEÇÃO FILOSOFIA UNIVERSAL:


O Pensamento Filosófico da Antiguidade
A Filosofia Contemporânea
O Espírito da Filosofia Oriental

COLEÇÃO FILOSOFIA DO EVANGELHO:


O Sermão da Montanha
Filosofia Cósmica do Evangelho
Assim Dizia o Mestre
O Triunfo da Vida Sobre a Morte

COLEÇÃO FILOSOFIA DA VIDA:


De Alma Para Alma
Ídolos ou Ideal
O Caminho da Felicidade
Deus
Em Comunhão com Deus
Por Que Sofremos
Bhagavad Gita (tradução)
Setas Para o Infinito
Cosmorama
Filosofia da Arte
Orientando para a Autorrealização
Educação do Homem Integral
Roteiro Cósmico
A Metafisica do Cristianismo
Tao Te Ching, de Lao-Tsé (tradução) — Ilustrado
Sabedoria das Parábolas
O 5º Evangelho Segundo Tomé (tradução)
A Mensagem Viva do Cristo (Os quatro Evangelhos — tradução)
Rumo à Consciência Cósmica
Novo Testamento
O Cristo Cósmico e os Essênios
Novos Rumos para a Educação
Lúcifer e Lógos
A Grande Libertação
Entre Dois Mundos
Minhas Vivências na Palestina, Egito e Índia
“Que Vos Parece do Cristo?”
O Drama Milenar do Cristo e do Anticristo
Luzes e Sombras da Alvorada
A Voz do Silêncio
A Nova Humanidade
O Homem
Estratégias de Lúcifer
O Homem e o Universo
Imperativos da Vida
Profanos e Iniciados
Lampejos Evangélicos
COLEÇÃO MISTÉRIOS DA NATUREZA:
Maravilhas do Universo
Alegorias
Ísis
Por Mundos Ignotos

COLEÇÃO BIOGRAFIAS:
Paulo de Tarso
Agostinho
Mahatma Gandhi — ilustrado
Jesus Nazareno — 2 vols.
Einstein — O Enigma da Matemática — ilustrado
Por um Ideal — 2 vols. (autobiografia)
Pascal
Myriam

COLEÇÃO OPÚSCULOS:
Catecismo da Filosofia
Saúde e Felicidade pela Cosmo-meditação
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, Milagre e Oração São Compatíveis?
Cem Pensamentos de Mahatma Gandhi (tradução)

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