2 Huberto Rohden - Por Um Ideal Volume 2
2 Huberto Rohden - Por Um Ideal Volume 2
2 Huberto Rohden - Por Um Ideal Volume 2
POR UM IDEAL
O que por Ele vivi e sofri em meio século
Volume II
UNIVERSALISMO
Sumário
Advertência do Autor
31 — O feitiço duma sala de cinema
32 — Nas florestas amazônicas
33 — O paraíso de Manaus no inferno amazônico
34 — Excursionando pela Europa
35 — A sós em Gênova
36 — De Roma, Paris e Berlim — aos sertões do Brasil
37 — Vozes da imprensa brasileira
38 — A campanha nacional pró-Evangelho cava a ruína da Cruzada
39 — Direção espiritual — ou tiranização clerical?
40 — Pontos estratégicos pelo triunfo do Reino de Deus
41 — Sol entre nuvens
42 — Irene — e o Evangelho
43 — Fogo contra “Paulo de Tarso”
44 — Atentados contra “Agostinho” — nascituro
45 — Novo atentado contra “Agostinho” — recém-nascido
46 — Sugestões para mentiras plausíveis ainda não inventadas contra mim
47 — Clericalismo, Catolicismo, Cristianismo — Meus livros todos condenados
48 — Salvação pelo Cristo — ou pelo clero?
49 — “Credores de Deus”
50 — Uma legítima donquixotada do vigário de Angustura
51 — Carta aberta a numerosos amigos iludidos
52 — Desiludindo os amigos protestantes
53 — Entre almas simples, no silêncio da natureza
54 — Ecos filosófico-espirituais dos Estados Unidos
55 — Como quem adormece...
56 — Epitáfio de um batalhador apunhalado por seus colegas
Apêndice: Porque Huberto Rohden deixou o clero
Dados Biográficos
Relação de Obras de Huberto Rohden
Advertência do Autor
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental; mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição
de uma existência para outra existência.
O Poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado.
Entre os homens, há gênios creadores, embora talvez não sejam criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea, nada se aniquila,
tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se
escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isso, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer
convenções acadêmicas.
31
O feitiço duma sala de cinema.
O Cristo desconhecido
Nas cidades mineiras de Itaúna e Divinópolis reconciliei-me um tanto com a
mentalidade religiosa reinante, porque naquela encontrei um vigário muito
sensato, e nesta os franciscanos holandeses abraçaram em cheio os ideais da
“Cruzada”.
Tanto mais dolorosa, porém, foi a minha decepção em Bom Despacho, paróquia
administrada pelos padres Premonstratenses belgas. A igreja matriz achava-se
em obras, sem janelas nem bancos, pelo que não me era possível falar nesse
local. Havia a sala do cinema disponível nessa noite. O empresário cedeu
prontamente o amplo local para as minhas conferências. Quando o coadjutor da
paróquia, que era também o diretor da Pia União das Filhas de Maria, soube que
eu desejava falar no cinema, desandou-me um olhar em que ia um mundo de
estranheza e de lástima, como se dissera: Esse homem é pagão! Cinema é coisa
do tinhoso!...
Daí a pouco, encontrei-me com um grupo de Filhas de Maria, que me
comunicaram, cheias de tristeza, que não podiam comparecer às minhas
conferências.
— Por que não?
— Porque vão ser no cinema.
— E que tem com isto?
— O nosso diretor não permite que ponhamos pé no cinema.
— Deve ser engano; pois não se trata de cinema. Ele proíbe, de certo, a
assistência a filmes, mas não a simples entrada na sala de espetáculos para
ouvir uma conferência sobre a imprensa e literatura católicas!
— Sim, senhor, ele proíbe a simples entrada nessa sala, seja qual for o fim.
— Será que as paredes do edifício têm pecado? Estarão contaminadas? Terão
feitiço?
Entretanto, as jovens tinham razão: o mal estava no próprio edifício do cinema,
no soalho, nas paredes, no teto, nas cadeiras — estava tudo endemoninhado.
Do contrário, seria incompreensível a atitude desse sacerdote.
Veio-me à lembrança o fato de ter Jesus falado regularmente no templo de
Jerusalém e nas sinagogas locais dos judeus, embora profligasse certas
doutrinas que os chefes espirituais davam como revelação de Deus — esses
“sepulcros caiados”, “esses guias cegos”, essa “raça de víboras”. Como é que o
Divino Mestre podia ignorar que as paredes do templo e das sinagogas estavam
profanadas pelo demônio? Veio-me à mente também o fato de ter o apóstolo
Paulo falado, por espaço de uns dois anos, cada semana, no ginásio de esporte
de um certo pagão Tirano, na cidade de Éfeso, sem ao menos suspeitar que
esse edifício pagão era de todo impróprio para proclamar a gloriosa mensagem
do reino de Deus. Felizmente, o apóstolo das gentes nada sabia da teologia do
coadjutor da paróquia de Bom Despacho, e foi por isto que tão
despachadamente aceitou o convite do gentio Tirano para difundir o Evangelho
num salão de ginástica.
Aliás, não só naquelas minhas viagens de antanho, mas até ao presente dia,
encontro por toda parte essa mesma mentalidade estreita e anticristã. Tenho
falado em salões pertencentes a igrejas Evangélicas, ao espiritismo, à
maçonaria, ao Rotary Clube, ao Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento, aos Rosacruzes, à Sociedade Teosófica: tenho conferenciado em
teatros, cinemas, clubes de diversos tipos, até em oficinas mecânicas — e toda
vez muitos dos que não fazem parte dessas sociedades torcem o nariz e acham
que isto é uma apostasia ou uma profanação da mensagem evangélica. Essa
tendência de querer roubar ao Cristianismo o seu caráter universal e cósmico, e
reduzi-lo a uma seita ou piedosa confraria, é antiquíssima. Toda vez que falo
num local pertencente a uma denominação protestante, consta por aí fora que
me filiei ao protestantismo; quando falo na Liga ou na Federação Espírita, os
dissidentes fazem constar que “virei espírita”; quando aceito um convite da parte
duma loja maçônica, muitos sabem que “o Rohden entrou para a maçonaria”.
Em Washington eu falava muitas vezes na Self-Realization Fellowship, centro
espiritual de origem hindu, e mesmo naquela terra de amplos horizontes não
faltava quem visse nisto uma apostasia do cristianismo para o paganismo.
Ultimamente, pessoas mais romanas que cristãs descobriram que eu sou da
“seita dos yoguis”. O que essas piedosas ignorantes entendem por “yoga” ou
“yogui” — só Deus o sabe. Saber a verdade sobre isto é, certamente, “heresia”
ou “apostasia da fé”.
É dificílimo ao homem profano emancipar-se do espírito sectário e compreender
que o Cristianismo não é uma seita, igreja ou denominação, mas a realização
universal e incondicional do amor a todos os homens, inspirada no amor de
Deus, a fraternidade humana baseada na paternidade de Deus.
Depois de longos debates, consegui que o vigário permitisse às Filhas de Maria
a assistência às minhas conferências, naquele cinema endemoninhado. Mas o
coadjutor, em sinal de protesto, saiu da cidade; e o vigário, durante a
conferência, foi sentar-se no confessionário para ouvir os pecados das beatas
ainda não suficientemente paganizadas para porem pé naquele maldito local
onde eu ia proclamar a mensagem do Evangelho de Cristo. Daí o mandei buscar
por uma comissão de pessoas gradas do lugar, e ele, por exceção, atendeu ao
nosso apelo. Sentou-se, com a comissão, no estrado de honra, mas, bem se via,
estava sobre brasas. Deve ter suado frio durante toda essa hora e feito
penitência por todos os pecados dos que, tão sem cerimônia, entraram naquele
inferno de Satanás.
Contaram-me que, não muito antes dessa data, o presidente da Sociedade de
São Vicente de Paula, de Pitangui, realizara, em Bom Despacho, uma
conferência sobre Beethoven, no dito cinema — e também desta vez tiveram as
almas piedosas proibição categórica de assistir à mesma, não só por causa do
local profano, mas também porque a conferência versava sobre um compositor
que, na sua adolescência, tinha tido alguns deslizes...
Se adotarmos esse critério de canário de gaiola, teremos de abster-nos de ouvir
conferências e sermões e de ler livros sobre Santo Agostinho, Inácio de Loyola,
Francisco Xavier, e quase todos os luminares do Cristianismo, porque todos eles,
sem excetuar o próprio apóstolo Paulo e seu colega Simão Pedro, passaram por
certos períodos evolutivos nada edificantes.
Em vez destas pieguices e melindres, não seria melhor mostrarmos ao público
a força regeneradora do Evangelho de Cristo, quando entra na vida de um
homem pecador e se apodera da alma dele?
32
Nas florestas amazônicas. Um
herói agonizante. Condutores ou
sedutores clericais?
Havia uns quatro anos que eu andava perlustrando, por terra, mar e ar, todas as
latitudes e longitudes desses 8 1/2 milhões de quilômetros quadrados que se
chamam Brasil.
Em centenas de cidades e vilas já ardiam os faróis da boa imprensa, espalhando
pela redondeza a luz das grandes idéias e dos excelsos ideais do Evangelho.
Centenas de correspondentes — homens, senhoras, moças, até crianças — e
diversos milhares de auxiliares colaboravam comigo na grande Cruzada da Boa
Imprensa. O fogo sagrado alastrava magnificamente. Incêndios de entusiasmo
iluminavam os céus do Brasil. Cerca de 100.000 volumes saíam, anualmente, do
escritório da Cruzada e voavam por todos os recantos do país. Além das nossas
edições próprias difundíamos, cada ano, uns 200.000 exemplares de outras
casas editoras de orientação católica. Era a Cruzada, assim, uma poderosa
central de difusão de literatura cristã e, ao mesmo tempo, um centro de controle
e orientação, uma entidade que examinava e selecionava criteriosamente os
livros, orientando constantemente os interessados que pedissem informações
sobre o espírito deste ou daquele livro. Éramos uma verdadeira “Inspetoria de
Higiene Moral”, sempre de perfeito acordo com a autoridade eclesiástica, que
era o cardeal Leme, então arcebispo do Rio de Janeiro.
A minha saúde, embora férrea (meu pai nunca esteve doente e morreu só de
velhice com 91 anos; minha mãe com 80) cedia, aos poucos, a essa tremenda
ofensiva material e espiritual. Organizar e supervisionar uma empresa de
projeção nacional, arranjar os meios para custear as enormes despesas, viajar
6, 8 e até 10 meses por ano, e ainda escrever, muitas vezes de noite, dezenas
de obras — era bombardeio por demais pesado para os meus nervos.
Numa dessas viagens pelos sertões da Bahia, andei mais de uma semana com
sezões que, na hora do acesso febril, me escaldavam o sangue até 40 ou 41
graus. Engoli tantas cápsulas de quinina que, por fim, o remédio resultou pior
que a moléstia; fiquei com tal zuada nos ouvidos que mal ouvia a minha própria
voz, e a insônia, que me fora de todo desconhecida, se tornou minha
companheira de noites intermináveis. Quando então, após essa maré de sezões
ou febres palustres, vinha a ressaca, era tamanha a fraqueza que me acometia
e a vertigem que tudo fazia girar, que só com extremo esforço conseguia manter-
me em pé.
Entretanto, eu não me rendia. Não interrompia o itinerário traçado. Não ia para
a cama. Não tinha tempo para esse “luxo” de ficar doente. Mesmo com 40 graus
de febre ou mais, seguia avante, de trem, de caminhão, de marinete, de sopa, 1
por vezes de avião, e falava duas, três vezes por dia. Gastei uma fortuna nessas
viagens aéreas, caríssimas, sobretudo pelos ínvios sertões do nordeste e pelas
florestas do norte e noroeste. A Cruzada rendia, não para mim — que nunca
guardei um só cruzeiro — mas para si mesma, para a sua maior expansão e
prosperidade. Eu só conhecia a providência divina, e não as previdências
humanas. Só mais tarde, quando apunhalado pelas costas pela cobiça e inveja
de colegas, é que abri os olhos e percebi a necessidade de arranjar alguns
recursos para a subsistência material.
1. Nomes que, no norte, dão aos ônibus do interior.
Sei de um bispo que, depois de ler “Em Espírito e Verdade” — livro com 365 meditações diárias
baseadas em textos do Novo Testamento — disse a seu secretário: “Pena que esse livro não
tenha “Imprimatur”; do contrário, ia recomendá-lo ao clero e aos fiéis da minha diocese, porque
o conteúdo é excelente.”
Essa circular foi assinada também, por ordem do arcebispo de São Paulo, pelos
seguintes dignatários eclesiásticos:
Dom Antônio, arcebispo-bispo de Jabuticabal
Dom Alberto, bispo de Ribeirão Preto
Dom Antônio, bispo de Assis
Dom José, bispo de Bragança
Dom José Carlos, bispo de Sorocaba
Dom Henrique, bispo de Cafelândia
Dom Luiz, bispo de Botucatu
Dom Lafaiete, bispo de Rio Preto
Dom Gastão, bispo de São Carlos
Dom Paulo, bispo de Campinas
Dom Francisco, bispo de Lorena
Monsenhor João José de Azevedo, Vigário Capitular de Taubaté
Monsenhor Luiz Gonzaga Rizzo, Vigário Capitular de Santos.
Foi esta a maior vitória que as ordens religiosas estrangeiras, após quatro anos
de pressão, conseguiram sobre parte do episcopado brasileiro, levando mais
duma dúzia de dignatários eclesiásticos a condenar, oficial e publicamente,
algumas dezenas de obras explicitamente aprovadas e ardorosamente
recomendadas por outros bispos, arcebispos e pelo cardeal-arcebispo do Rio de
Janeiro. Em fevereiro do próximo ano, 1943, Dom João Becker, arcebispo de
Porto Alegre, endossou a circular dos bispos e arcebispos da Província
Eclesiástica de São Paulo, e convidou os quatro bispos sufragâneos da Província
Eclesiástica do Rio Grande do Sul — de Santa Maria, Pelotas, Uruguaiana e
Caxias — a aderir à mesma proibição; entretanto, todos os quatro sufragâneos
se negaram a aderir, permanecendo fiéis à orientação do cardeal Leme e de
outras autoridades eclesiásticas. Ficou, assim, D. João Becker isolado com a
sua reprovação e rebeldia.
Convém notar, como vergonhosa agravante, que essa proibição dos meus livros
por parte desses bispos e arcebispos católicos foi dada um mês e pouco depois
do falecimento do cardeal Leme, que ocorrera em meados de outubro de 1942.
Quer dizer que esses Srs. bispos e arcebispos não tiveram a lealdade de
declarar perniciosos à fé católica os ditos livros durante a vida do mais alto
dignatário da igreja católica no Brasil, mas tiveram essa triste coragem só depois
da morte do mesmo, desferindo, por assim dizer, uma bofetada póstuma a Dom
Sebastião Leme, estigmatizando-o como fautor e cúmplice das minhas doutrinas
perniciosas à fé católica.
Creio que raras vezes o catolicismo brasileiro sofreu maior humilhação do que
esta que 14 bispos e arcebispos lhe infligiram, revoltando-se, pública e
oficialmente, contra a primeira autoridade eclesiástica do país — um mês depois
do falecimento da mesma.
Acresce que esses rebeldes contra a legítima autoridade fizeram crer ao povo
que eu me tinha revoltado contra a autoridade eclesiástica, quando nunca, nos
vinte e tantos anos que servi lealmente à igreja, tive a menor censura da parte
de nenhum dos meus superiores eclesiásticos e gozei da aprovação e proteção
integral de Dom Sebastião Leme até a morte do mesmo.
Será que se pode promover a causa do catolicismo brasileiro com armas tão
infames? Não devia a verdade, a justiça, a lealdade ser o característico número
um dos que se dizem representantes de Jesus Cristo? Não diz o catecismo
católico que é pecado mentir, e pecado mortal caluniar alguém em matéria
grave? Não exige que o caluniador revogue publicamente a calúnia que
publicamente espalhou? Se algum dos meus leitores souber que algum dos 14
caluniadores episcopais ou arquiepiscopais supra-citados tenha revogado a sua
gravíssima calúnia contra mim, queira fazer-mo saber.
Entretanto, como o grande Pascal provou nas suas “Letras Provinciais”, o clero
adota dois pesos e duas medidas em matéria de ética: um para o povo, outro
para si mesmo. Se um leigo calunia tem obrigação de revogar a calúnia, para
receber absolvição em confissão; mas, se um dignatário eclesiástico mente e
calunia, não tem obrigação alguma de revogar — suposto que a calúnia reverta
em benefício da classe.
Estas acusações são graves, bem o sei — mas eu aqui estou para receber a
refutação das mesmas. A refutação deverá provar o seguinte:
1) que os meus livros não tenham sido aprovados pela legítima autoridade
eclesiástica, 2) ou que eu tenha sorrateiramente modificado o texto aprovado, 3)
ou que os ditos bispos e arcebispos não tenham reprovado todos os meus livros
como perniciosos à fé pública. Acrescentava o infeliz documento que “os
sacerdotes do clero secular e regular não lessem nem permitissem que se
divulgassem entre os fiéis esses livros nem permitissem que os Congregados
Marianos e Filhas de Maria servissem de agentes distribuidores de tais obras.”
Aqui têm os católicos brasileiros um exemplo clássico, recente, de como um
sacerdote, depois de trabalhar entusiasticamente, durante decênios, em prol da
igreja, sempre em perfeitíssima obediência à autoridade diocesana, sacrificando
tempo, dinheiro, conforto e saúde — foi caluniado por padres, bispos e
arcebispos como elemento pernicioso dentro da igreja — e foi, além disto,
enxovalhado pela imprensa clerical da sua igreja como “cretino, cabotino, Judas,
traidor, herege, apóstata, infame, Satanás, lama” (tudo isto se encontra nos
jornais e revistas clericais que tenho sobre a mesa, naturalmente “com
aprovação eclesiástica”).
Creio que não vai longe o tempo em que a parte mais pura e sincera do
catolicismo brasileiro se emancipará duma teologia clerical incompatível com o
espírito do Evangelho de Jesus Cristo. Existe, aliás, entre nós grande número de
católicos que já faz nitidamente a distinção entre catolicismo, ou melhor,
catolicidade, e clericalismo romano. O clero quer, acima de tudo, dominar,
escravizar as consciências, em prol da política e das finanças da sua classe, dê
por onde der — ao passo que a verdadeira catolicidade procura, antes de tudo,
harmonizar o seu modo de pensar e viver com as máximas eternas do
Evangelho.
No dia em que, enojado dessas infâmias, depus nas mãos da autoridade
eclesiástica o meu mandato sacerdotal, num documento oficial com firma
reconhecida, tive a sensação de sair de um tenebroso e caótico subterrâneo,
iluminado por tochas fumegantes, e entrar num glorioso ambiente primaveril
aclarado pela puríssima claridade solar de Deus.
* * *
Muitos dos que tiveram a coragem e paciência de me seguir até aqui, estarão
ansiosos por formular uma pergunta.
Como se explica que um sacerdote em perfeita harmonia e obediência com seu
superior diocesano seja tão violentamente hostilizado por outros sacerdotes?
Como se explica que dezenas de livros dele, explícita e entusiasticamente
aprovados e, por espaço de decênios, lidos e relidos proveitosamente por
milhares de católicos, sejam, posteriormente, reprovados como perniciosos à fé
católica?
Já indigitamos a resposta a essa pergunta; mas convém aprofundá-la um pouco.
Quem confunde catolicismo com clericalismo não encontrará jamais saída desse
labirinto. Eu mesmo laborei largos anos nessa funesta confusão, e posso, por
isto, falar de ciência própria.
Antes de tudo, segundo a teologia de Roma, a igreja é a “igreja docente”, isto é,
a hierarquia eclesiástica constituída pelo papa e pelos bispos; os sacerdotes,
propriamente, não fazem parte da “igreja docente”, porquanto não passam de
auxiliares e representantes dos bispos; pode-se dizer que o sacerdote faz parte
da hierarquia apenas de um modo indireto ou vice-gerente.
Quanto aos leigos, os fiéis em geral, ou seja a “igreja discente”, não passam de
um elemento passivo, receptor, mas não se pode dizer que façam parte da igreja
como tal, que é constituída pela hierarquia. Depois da declaração da
infalibilidade pessoal do papa, em 1870, até se pode dizer que o papa é a igreja.
De maneira que, estritamente falando, o bispo de Roma podia dizer,
parafraseando as conhecidas palavras de um rei da França, “L’État c’est moi!”
— “Ego sum Ecclesia!” eu é que sou a igreja.
A hierarquia eclesiástica, que se considera como sendo a igreja, é uma classe
ou um partido rigorosamente definido e distinto dos leigos. Possui uma
organização exata e precisa. Defende, em toda e qualquer hipótese, o prestígio
e os interesses da classe. Toda a doutrina romana é conscientemente clerical,
visando invariavelmente o prestígio político-social e a prosperidade econômico-
financeira do clero. Segundo a teologia de Roma, enquanto a hierarquia goza de
prestígio e prosperidade, a igreja é grande e próspera.
A hierarquia é a igreja! O povo é um simples apêndice passivo...
Ora, sendo a igreja o reino de Deus, e devendo o reino de Deus ser sempre
triunfante, segue-se logicamente que o triunfo do clero é o triunfo do reino de
Deus. Com esta doutrina consegue o clero cingir-se de uma auréola divina e
justificar tudo que ele faz, porquanto tudo é “pela maior glória de Deus”.
É sacrossanto dever do homem promover, por todos os meios a seu alcance, o
triunfo do reino de Deus sobre a face da terra — o que, para o católico clerical,
equivale a promover o triunfo do clero.
O triunfo do clero é para ele, o triunfo de Cristo — e a derrota do clero seria a
derrota de Cristo!
Está doutrina está, implícita ou explicitamente, contida em qualquer tratado de
teologia dogmática ou moral, no código de direito canônico e em toda a liturgia
sacramental de Roma.
Quer dizer que, para o clero, só existe um dever supremo: o domínio absoluto
da sua classe sobre o mundo, porque esse domínio é o triunfo do Cristianismo.
Para conseguir esse domínio, o clero não desdenha expediente algum, como
prova a história de vários séculos. Não há meios imorais, ilícitos, quando se trata
de promover o triunfo do reino de Deus (quer dizer, do clero), porquanto o fim
justifica os meios; todos os meios são bons desde que o fim seja bom. Ora, é
evidentemente bom promover o triunfo do reino de Deus sobre a terra, logo,
todos os meios conducentes a esse fim são bons. Segundo a teologia clerical,
deduzida dessa premissa, as Cruzadas e a Inquisição, em que, por ordem da
hierarquia eclesiástica, foram assassinados milhares de homens inocentes, não
foram expedientes eticamente maus, porque promoviam a causa sagrada do
reino de Deus, eliminando os elementos infensos a esse reino. Da mesma forma,
não é eticamente mau organizar qualquer campanha difamatória contra quem
quer que seja, desde que o resultado final da campanha seja favorável ao reino
de Deus, quer dizer, aos interesses da classe clerical.
O supremo imperativo categórico do catolicismo romano (não da catolicidade
cristã!) é, pois, este: Promover, por todos os meios, o domínio absoluto do clero!
Blaise Pascal, cientista católico do século 17, expôs, com inigualável precisão e
objetividade esses processos clericais, que ele chama política dos jesuítas, mas
que é a quintessência da política romana de todos os tempos. Roma, como era
de esperar, condenou as “Letras Provinciais” de Pascal, ao que Pascal escreveu:
“Roma condenou as minhas Letras Provinciais, mas o que nelas condeno está
condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!”
Pascal viveu e morreu como fervoroso cristão católico, e, se não tivesse escrito
essas cartas, figuraria talvez nos altares da igreja, tão pura e austera era a sua
vida cristã. Graças a essa pureza cristã e à agudeza do seu espírito disciplinado,
percebia Pascal nitidamente que uma coisa é catolicismo cristão, e outra coisa
é clericalismo romano. Para ele, catolicismo é cristianismo, ao passo que
clericalismo é uma orientação político-financeira incrustada na igreja cristã.
A razão desta diferença é óbvia: para o clero, o exercício do sacerdócio é uma
profissão lucrativa, um ganha-pão, e uma política que garante prestígio social.
Para o católico leigo e sincero, o catolicismo é um ideal divino, do qual ele não
espera nenhuma vantagem social nem material, devendo até estar disposto a
sacrificar certas vantagens terrenas para ser católico de verdade.
Enquanto o sacerdócio continuar a ser uma profissão lucrativa e um meio de
influência política, o clero está em manifesta oposição ao Cristianismo. É
categórica a ordem que Jesus deu a seus discípulos: “Dai de graça o que de
graça recebestes!” Categórica também é a condenação que ele lança aos chefes
espirituais da igreja de Israel: “Ai de vós, que devorais as casas das viúvas e dos
órfãos, sob pretexto de longas orações!” “Não podeis servir a dois senhores, a
Deus e ao dinheiro”. Permitiu a seus discípulos receber o sustento necessário,
mas não remuneração pecuniária: “Quando entrardes numa casa, comei o que
se vos puser diante, porque digno é o operário do seu sustento”. A tradução
“salário” em vez de “sustento”, incompatível com o contexto, já revela o espírito
mercenário do clero desse tempo.
* * *
Falei do clero em globo, o que exige uma ressalva.
Há no meio do clero bom número de homens que são melhores que o sistema a
que pertencem. O seu profundo cristianismo, a sua “anima naturaliter christiana”
conseguiu prevalecer contra a teologia do clericalismo romano. São mais
cristãos que romanos. São, geralmente, padres do interior, do sertão, do mato
— como aquele herói moribundo de Itacoatiara, que descrevi acima — homens
de vida simples e humilde, inteiramente voltados para as grandes realidades
espirituais do reino de Deus. Esses homens toleram tacitamente o mundanismo
da hierarquia, não se revoltam publicamente contra ela, como os chamados
“hereges”, nem os aprovam interiormente, como os mercenários, mas carregam
a pesada cruz da organização eclesiástica humana a fim de promover, em
silêncio e resignação, o progresso espiritual do rebanho que lhes foi confiado.
Inúmeras vezes, nas minhas incessantes viagens apostólicas por todas as
latitudes e longitudes do Brasil, tenho encontrado padres desse tipo, dos quais
guardo a mais sincera e carinhosa lembrança e simpatia. Quando as ordens
religiosas estrangeiras desencadearam contra mim e minha obra aquela
campanha infernal que culminou na destruição da “Cruzada da Boa Imprensa” e
na minha retirada espontânea das fileiras do clero, não houve, ao que me conste,
um só desses vigários do sertão e da roça que tomasse parte na infame
campanha. Pelo contrário, todos eles lamentaram sincera e sentidamente o que
estava acontecendo — tenho aqui dúzias de cartas nesse sentido.
Bem diferente é o caso com o clero dos conventos (onde, é claro, também há
honrosas exceções) e das grandes cidades do litoral, onde o trabalho é
relativamente fácil e o conforto é grande. Ora, é sabido, o comodismo, o luxo, a
política, as adulações sociais corrompem e enervam o cerne da alma; o
funcionário eclesiástico cede à lei do menor esforço, aceita as vantagens do seu
ofício, mas foge o mais possível das desvantagens e dos sacrifícios — e está o
terreno preparado para qualquer apostasia do cristianismo. O conforto que o
convento oferece ao monge, onde ele encontra a mesa posta na hora H, não
raro uma mesa lauta regada com um bom copo de vinho ou de cerveja, 2 o
prestígio social e político que o circunda, e, last not least, a facilidade com que,
nos grandes centros, um convento acumula vastos capitais — tudo isto leva,
muitas vezes, os inquilinos de um convento a um teor de vida bem diferente da
singela e austera espiritualidade de um pobre vigário do interior. Jesus não
fundou conventos, mandou seus discípulos a percorrer o mundo inteiro.
2. Numerosas comunidades religiosas, como sei de ciência própria, mantêm a sua fábrica de
cerveja ou sua cantina de vinho próprios. Há marcas de vinhos célebres por seus fabricantes
eclesiásticos. Todo psicólogo sabe que qualquer sacrifício tende a criar uma compensação
correspondente. O celibatário sente a instintiva necessidade de se desforrar, de um ou outro
modo, pela renúncia aos prazeres sexuais, e a compensação mais natural é encontrada nos
prazeres da mesa. A atrofia no plano sexual cria a hipertrofia no plano estomacal!
De fato, é de se estranhar o motivo por que o mundo financeiro, que nunca se deixou influenciar
por sentimentos religiosos, mostre tamanha apreensão diante da possibilidade de mudança no
trono católico. E o correspondente em Roma, Sr. Jack Alein, explica as razões, dando a entender
que o Império Vaticano controla não somente a vida religiosa de quase 400.000.000 de católicos,
como também é a segunda força financeira do mundo, porquanto, conforme diz o Sr. Alein, de
acordo com a constituição do Estado Vaticano, somente o Papa manda sobre os dirigentes da
riqueza, que é avaliada hoje em dia em 125 bilhões de dólares.
E, para dar uma idéia da enormidade da riqueza, é suficiente saber que a reserva nacional da
América do Norte é de 200 bilhões de dólares; a reserva da Igreja Católica é três vezes maior
que a reserva da Inglaterra e dez vezes maior que a da França. Grandes somas são investidas
nas indústrias pesadas e nas estradas de ferro da Itália e também nos bancos internacionais. O
“Valpi” — grupo de indústrias — controla-se pela soma original de 115 milhões de liras; o grupo
“Edson”, com 500 milhões de liras, e o grande truste de eletricidade — “Adriático” — com 18%
de ações. O Império do Vaticano é também o maior acionista da gigantesca fábrica de carros
“Fiat” e da organização química “Monte Catini”. A Igreja Católica é também o maior sócio
individual da “Italgaz” e da “Viscouz”. Esta última é a maior fábrica da Europa em trabalhos
sintéticos, plásticos e materiais de “nylon”.
Outro bom negócio para o Vaticano é também a firma de vinho “Chianti”, mundialmente
conhecido, cujas plantações se acham nas terras que pertencem ao Vaticano. Grandes capitais
são investidos nos telefones e na aviação da Itália. O Vaticano possui grande parte das ações
da “Alitalia” e, de acordo com um contrato entre ambos, esta última é obrigada a encarregar-se
da retirada dos arquivos, objetos de arte e das riquezas do Vaticano, em caso de guerra. O
Vaticano tem interesses e controla a grande companhia de seguros “Loid Triestino”, que financia
muitas firmas com somas fabulosas.
Como se vê, a Igreja Católica é um fator forte na vida econômica da Itália, mas o Império do
Vaticano também tem suas finanças espalhadas além da fronteira da península italiana, na
Europa, até o continente americano. E as atividades desses capitais são dirigidas pelos três
bancos internacionais: “The P. Morgan”, em Nova Iorque, “Credi Suiss” em Gênova, e “Banque
de Paris et des Pays Bas”, em Paris. Este último é considerado o banco dos católicos na França.
O Banco DeI Santo Spírito, em Roma, é de fato o banco oficial do Vaticano e é dirigido por uma
administração especial nomeada pelo Papa, organização financeira esta que dirige todas as
operações de finanças do Império do Catolicismo.
Na caixa forte do Papa não se encontra muito dinheiro, nem ouro, em virtude da intranquilidade
existente na Europa. O ouro e os papéis de valor, porém, segundo fontes fidedignas, estão
guardados na Inglaterra e em outras partes da Europa, mas a maior parte está bem guardada
na América do Norte.
Resumindo, portanto, diz o correspondente de Roma, Sr. Jack Alein, que, como somente o Papa
dá a última palavra na imensa riqueza do Vaticano, não somente os 400.000.000 de patriotas
espirituais estão preocupados com a sua saúde, mas também o mundo financeiro tem fortes
razões para temer uma mudança no trono do Vaticano.
À luz dessa mentalidade clerical, era inevitável que meus livros, que insistiam
grandemente na redenção pelo Cristo, e passavam em silêncio a salvação pelo
clero, acabassem por ser hostilizados, mais dia menos dia, pela parte menos
cristã e mais romana do clero. Pela violência com que foi conduzida a campanha
contra mim e meus livros bem se pode avaliar do grau de romanismo clerical e
da deficiência de Cristianismo evangélico dos seus protagonistas.
É necessário que o povo cristão do Brasil abra os olhos enquanto é tempo, para
não perder o maior tesouro espiritual que possui: a pureza do Evangelho de
Jesus Cristo.
Terá de decidir-se por uma das alternativas: a salvação ou pelo Cristo ou pelo
clero?... Não podeis servir a dois senhores: ao Cristo e ao clero!...
49
“Credores de Deus”
Pensamentos sobre catolicidade e romanidade
Por mais estranho que pareça este título, há milhares e milhões de pessoas que
vivem nesse ambiente, como se fossem credores de Deus, mercê do imenso
capital de obras religiosas que praticaram e depositaram na tesouraria do Banco
Celeste.
É da íntima psicologia humana a tendência, consciente e inconsciente, de querer
compensar com a abundância de atos externos a ausência de uma atitude
interna.
Quem observou imparcialmente, durante meio século, a índole do catolicismo
romano, concordará conosco no seguinte: que um dos característicos dessa
teologia, desde o seu nascimento, no século 4.º, sob a égide de Constantino
Magno, é uma crescente hipertrofia do dogma e atrofia da ética, no plano do
catolicismo romano, ao ponto de substituir a ética simples e pura do Evangelho
de Cristo por uma moral complicada e arbitrária do clero.
Entretanto, seria injusto atribuir essa atitude e tendência ao catolicismo como tal.
É fácil verificar que essa situação foi criada pelo romanismo e não pelo
catolicismo, ou melhor, pela catolicidade. Pode-se mesmo estabelecer a
seguinte equação, historicamente justificável: quanto maior a romanidade de um
católico tanto menor a sua catolicidade, e vice-versa. A razão deste fato é
matematicamente clara, porque a romanidade, sendo atitude parcialista, está na
razão inversa da catolicidade, que diz universalidade. Quanto mais o parcialismo
romano cresce tanto mais a universalidade católica decresce, como as duas
conchas de uma balança a subirem e descerem alternadamente. O católico leigo,
por exemplo, quando não dominado pelo clero, possui, em geral, uma
catolicidade genuinamente cristã; não se sente “credor de Deus”, não assume
atitudes arrogantes de desafio a seus irmãos de outras formas de religião; está
sempre disposto a colaborar com qualquer pessoa ou grupo religioso, em prol
do reino de Deus e da humanidade. O católico não romanizado pelo clero é
sinceramente cristão.
O católico clericalizado, porém, possui bem menor cabedal de catolicidade,
porque a sua romanidade reduziu a um parcialismo sectário o universalismo
cristão desse homem.
Quando, então, penetramos nos domínios do clero, a catolicidade sofre muito
maior desfalque ainda, em prol da romanidade; porque essa classe de
funcionários eclesiásticos se acha a serviço direto de uma hierarquia 100%
romana e sectária. Acresce outro fator, sumamente anticristão: o clero considera
o sacerdócio como uma profissão, como um meio de vida material e, não raro,
até como um expediente para galgar elevadas posições políticas e conquistar
riquezas mundanas. Essa tendência tem 100% de romanidade e 0% de
catolicidade cristã, tanto assim que o divino Mestre disse explicitamente: “Dai de
graça o que de graça recebestes!” “Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus
e ao dinheiro”. Neste ponto, o católico leigo está em condições
incomparavelmente melhores do que o padre, porque, para ele, a religião é um
ideal divino, puramente espiritual, nada tendo que ver com política e fins
lucrativos.
Se do plano do clero comum galgamos às alturas do clero superior, o
episcopado, verificamos que a catolicidade — salvo honrosas exceções — sofre
novo desfalque em benefício da romanidade, porquanto os bispos assumem
compromisso de lealdade muito mais estreito com o pontífice romano do que o
padre comum, razão porque o seu sectarismo romano tem de prevalecer sobre
seu catolicismo cristão; do contrário, seria impossível manter a rígida
organização hierárquica, na qual repousa a garantia suprema da sua
perpetuação através dos séculos.
O pontífice romano, como chefe supremo dessa formidável máquina hierárquica,
não pode deixar de encarnar, em virtude de seu munus, o mais alto grau de
romanidade parcial, isto é, de intolerante sectarismo eclesiástico, incompatível
com o universalismo do Evangelho de Cristo.
A catolicidade perpetua-se em virtude de sua inerente virtude divina — mas a
romanidade hierárquica subsiste em virtude da sua rígida organização humana.
O mal não está na perpetuação desta organização hierárquica através dos
séculos — o grande mal está em que essa organização humana procure passar,
aos olhos da humanidade ignorante, como uma revelação divina, como a obra
imortal do próprio Cristo.
Enquanto o mundo católico for mantido na ignorância da verdade, mediante
proibições e penalidades, leis de “Imprimatur” e de Index, excomunhões e
ameaças de inferno, continuará a situação no statu quo. Entretanto, segundo as
leis eternas e infalíveis da evolução, a luz da verdade prevalecerá mais e mais
sobre as trevas do erro e da ignorância. Que distância imensa medeia, por
exemplo, entre os períodos medievais, quando os pontífices romanos possuíam
absoluto poder espiritual e material sobre todo o mundo civilizado, e sua relativa
fraqueza em nossos dias. Perderam o poder legislativo, político e militar
daqueles tempos; passaram duma arrogante e vitoriosa ofensiva em toda a linha
para uma árdua e restrita defensiva, limitando-se a amedrontar as almas com a
perspectiva de um fogo eterno no futuro, em vez de lançar os corpos numa
fogueira temporal do presente, como faziam nos dias sinistros da Inquisição.
A catolicidade cristã está na razão inversa da romanidade clerical.
Por isto, não é justo que hostilizemos o catolicismo como tal, mas sim a sua
deturpação na forma do romanismo clerical. Emancipar o católico da escravidão
clerical e restituí-lo à gloriosa liberdade cristã dos filhos de Deus — é este o mais
sublime ideal a que um verdadeiro discípulo do Cristo pode e deve aspirar. Jesus
não condenou a religião de Israel, mas preveniu o povo ignaro e iludido para que
não identificasse a pureza da revelação de Deus com as impurezas das teologias
rabínicas: “Ai de vós, guias cegos conduzindo outros cegos!... roubastes a chave
do conhecimento do reino de Deus; vós mesmos não entrais, nem permitis que
os outros entrem.” A parábola do “bom samaritano” é a mais tremenda
condenação dos sacerdotes e levitas da igreja de Israel, que se sentiam tão
“credores de Deus”, tão hipertrofiados de teologia dogmática e tão atrofiados de
ética humana que, vendo um pobre moribundo à beira da estrada, não se
julgavam obrigados a socorrê-lo, cônscios da sua grande santidade adquirida
nos serviços litúrgicos do templo de Jerusalém. É este o grande perigo do
excesso de dogmatismo e sacramentalismo litúrgico: a perda da humilde
consciência dos deveres do homem para com seus semelhantes. Saturados de
falsa mística, esquecem-se esses homens da verdadeira ética! De tanto
adorarem a Deus julgam-se dispensados de ajudar o próximo! Consideram-se
milionários da prática do “primeiro mandamento”, mas são indigentes na prática
do “segundo mandamento”, e por isto também todo o seu capital de milionários
da teologia é falso e sem valor...
A transição do clero para o Cristo — eis o passo decisivo que a humanidade
católica tem de dar!
“Ninguém vai ao Pai senão por mim”, disse o Cristo. “Não foi dado aos homens
sobre a terra outro nome em que pudessem ser salvos senão o nome de Jesus,
o Cristo”.
Isto é revelação divina — o resto é teologia humana.
50
Uma legítima donquixotada do
vigário de Angustura
Em 1944, quando a maior parte do clero guerrilheiro já tinha esgotado o arsenal
de invectivas contra minha pessoa e obra e ensarilhado armas, resolveu o P.
Benito Vasquez, Vigário de Angustura, Minas Gerais, disparar mais um tiro
isolado — espécie de “tiro de misericórdia” — contra um dos meus livros, para o
caso que este não estivesse completamente morto, ou ameaçasse ressurgir do
túmulo, como Lázaro de Betânia. Por falta de melhor ocupação, deu-se esse
exímio teólogo, lá das terras do caudilho Franco, ao trabalho ingrato de submeter
o meu livro “Problemas do Espírito” a uma minuciosa autópsia, acabando por
estampar o resultado das suas pesquisas numa brochura de meia centena de
páginas, que distribuiu gratuitamente pelo Brasil.
Nesse panfleto revela o augusto vigário de Angustura toda a angústia de seu
coração e toda a angustez do seu espírito. Principia por estranhar que eu,
sacerdote, escreva livros sobre problemas de psicologia, quando, a seu ver,
devia ocupar-me exclusivamente com livros de caráter teológico.
Entretanto, a mais gozada façanha que o digno conterrâneo de D. Quixote de Ia
Mancha comete nessa brochura é a de confundir ingenuamente
“subconsciência” com “concupiscência”, afirmando ser eu partidário da
concupiscência!
Conta Cervantes que, certa noite, negra como o inferno, enfrentou D. Quixote
um formidável exército inimigo, perverso como o diabo. Com inaudita bravura e
estupendo heroísmo arremeteu o intrépido cavaleiro contra a hoste adversa,
lutando com tamanha valentia que derrotou completamente o inimigo. Ao clarear
do dia, porém, verificou que o tal exército não passava de um grupo de moinhos
de vento, cujas asas lhe haviam dado a ilusão de um regimento de guerreiros...
O P. Benito Vasquez, como se vê, não desmente as heroicas tradições de seu
famoso patrício; lutou, também ele, com espantosa bravura, contra um inimigo
imaginário que julgava divisar, através da escuridão da sua sapiência, por entre
as linhas negras do meu maldito livro... E derrotou-o com armas e bagagens!...
Não sei se já amanheceu, para o angusto espírito do augusto Vigário de
Angustura, o dia da verdade, como amanheceu para aquele cavaleiro de triste
figura.
Quem devia, aliás, fazer esta denúncia não seria eu, uma vez que aquela meia
centena de páginas não se dirigem, propriamente, contra o autor do livro
“Problemas do Espírito”, mas, sim, contra o P. João Batista de Siqueira, censor
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, e que concedeu o competente “Nihil
obstat”, seguido pelo “Imprimatur” de Mons. Rosalvo Costa Rêgo, Vigário Geral
do Arcebispado do Rio de Janeiro.
O augusto Vigário de Angustura não crê na competência e ortodoxia católica do
censor da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro; acha que o P. Siqueira, ou
procedeu com deplorável superficialidade ao declarar a catolicidade do meu
livro, ou então se deixou narcotizar pelo inebriante odor da minha celebridade
literária, não ousando desmascarar as minhas “heresias”. Em todo caso, como
se vê, o Hiroshima ou Nagasaki dessa formidável bomba atômica do intrépido
teólogo hispânico não foi, de preferência, a minha pessoa, mas, sim, a do P.
Siqueira — que lá se entenda com o estranho catolicismo vasqueziano! Será
que, lá na terra de Franco, vigora outra espécie de Catolicismo do que no Brasil?
De resto, mesmo aqui no Brasil, já temos vários tipos de catolicismo, pelo menos
dois.
O que há de doloroso no panfleto vasqueziano é que o bispo de Juiz de Fora,
diocese a que pertence Angustura, tenha aprovado esses disparates do referido
sacerdote, jogando assim uma Cúria Diocesana contra outra, como se não fosse
já bastante a confusão!
E, depois de darem ao Brasil católico tão triste exemplo de discórdia e
indisciplina, esses homens se queixam, em solenes Cartas Pastorais, da falta de
religião do seu rebanho, dando a protestantes, espíritas e outros dissidentes a
culpa dessa decadência... Não seria mais cristão e mais católico fazerem eles
mesmos um exame de consciência e rezarem o confíteor das próprias culpas,
em vez de exibirem as estatísticas dos pecados alheios?...
“Medice, cura teipsum!”...
* * *
De resto, devem os meus leitores saber que essa donquixotada benito-
vasqueziana não é a primeira desse exímio teólogo. Já estreou em 1940, quando
disparou um bacamarte, ainda que de menor calibre, contra meu livro “Paulo de
Tarso”. Tão mortífero foi esse tiro que “Paulo de Tarso” anda por aí, mui lampeiro,
em numerosas edições desgraçando a Terra de Santa Cruz. Também
“Problemas do Espírito”, dado por definitivamente morto e sepultado, após
aquela tremenda ofensiva, campeia por aí em sucessivas edições, arruinando o
Brasil católico com a sua desbragada “concupiscência”... De duas uma: ou os
tiros que o augusto vigário de Angustura, patrocinado pelo Bispo de Juiz de Fora,
costuma dar, são tiros de pólvora seca — ou então os meus livros infames e
diabólicos, depois de assassinados, ressuscitam da morte e continuam a infestar
esses Brasis, envenenando as almas. Pois, é sabido que “erva ruim não morre”...
Consta até que, para cúmulo de males, o autor e responsável dessas obras
funestas está publicando outros livros do mesmo espírito, cometendo o crime
nefando de esclarecer o público sobre o cobaísmo que certa gente está
praticando com o nosso povo, ignorante, paciente e explorado...
* * *
Se o augusto Vigário de Angustura tivesse pecado apenas por angustez de
espírito, confundindo “concupiscência” com “subconsciência”, mui perdoável
seria a sua espanholada, porque, como diz Goethe, “contra a estupidez os
próprios deuses lutam em vão”.
Mas é que ele pecou por grande deslealdade. No intuito de provar ao seu público
que eu sou inimigo da igreja católica (apesar de estar o dito livro aprovado pela
autoridade eclesiástica), respigou dele numerosos tópicos que julgava
conducentes a seu propósito, cometendo, porém, a deslealdade de arrancar
esses textos do seu contexto e do fundo total do capítulo, conseguindo, assim,
“provar” o que desejava.
Com semelhante política provarei a P. Benito Vasquez que a Sagrada Escritura
é um livro imoral, ateu, materialista, epicurista, negador do pecado, da redenção
e de todas as verdades fundamentais da religião. Basta, para este fim, colecionar
com jeito certos textos, calando a moldura do seu contexto — e está provado o
que se quer! Escreve, por exemplo, o profeta David: “Não há Deus” (Salmo, 14,
1) — logo David é ateu! Verdade é que, antes dessa categórica negação da
existência de Deus, se lê: “Disse o insensato no seu coração”; contexto que,
quando ignorado, segundo a receita do augusto Vigário de Angustura, convence
o leitor precisamente do contrário do que o autor quis dizer.
Os livros Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria estão repletos de negações da
imortalidade da alma e de apoteoses de uma vida desbragada — suposto que
se leiam os competentes textos fora do seu conjunto lógico. Diz, por exemplo, o
Eclesiastes (3, 19-20): “O destino do homem é o mesmo que o do animal. Morre
um assim como morre o outro. Todos eles têm o mesmo sopro (alma). Nenhuma
vantagem tem o homem sobre o animal — tudo é vaidade! Vai tudo parar no
mesmo lugar! Tudo veio do pó, e tudo voltará ao pó.” Qualquer agnóstico
subscreveria esta enérgica profissão de materialismo. E, no entanto, colocando
estes tópicos dentro da ideologia geral do Eclesiastes, resulta o sentido
precisamente contrário ao que têm estas frases isoladas.
Também as obras de Santo Agostinho têm servido para provar todos os
absurdos. Dezenas de hereges têm provado com textos agostinianos as suas
doutrinas. Nem é difícil. Quem entra nessa gigantesca floresta tropical de idéias
do genial africano, com intenção preconcebida de fazer a sua coleção, o seu
museu de pensamentos, ou montar o seu cavalo de batalha — encontra
infalivelmente o que procura. É questão de jeito, paciência — e perfídia!
Foi o que fez o augusto Vigário de Angustura ao compor o museu teológico do
seu panfleto. Basta lembrar o seguinte: no meu livro “Problemas do espírito” há
um capítulo central sobre a igreja, intitulado “Alma e corpo da igreja”. Nele
exponho o que penso da igreja, do seu elemento divino e dos seus elementos
humanos. E o que faz o P. Benito Vasquez? Em vez de transcrever umas
páginas características desse capítulo e esclarecer assim aos seus leitores
sobre o conceito real que tenho da igreja, preferiu pescar em águas turvas,
silenciando completamente esse importante capítulo e respigando aqui e acolá,
palavrinhas e pedaços de frases avulsos, para provar que eu sou inimigo da
igreja — quando a simples transcrição de meia página do referido capítulo daria
idéia clara e nítida ao leitor. Mas essa meia paginazinha de sinceridade teria
arrasado todo o castelo polêmico do panfletista. Por isto — silêncio e
escamoteação!...
De resto, era perfeitamente supérfluo todo esse dispêndio de tempo, tinta e
talento para provar que eu sou inimigo do “catolicismo”. Bastava que o P. Benito
Vasquez perguntasse a mim mesmo sobre o assunto, e eu lhe teria dito com
absoluta clareza que sou, fui e sempre serei inimigo mortal de certo “catolicismo”
(entre aspas), de colorido sectário e político, que estadeia no meio de nós;
porque esse pseudo-catolicismo é o maior inimigo da verdadeira Catolicidade, e
tão incompatível com o Cristianismo como era, no tempo de Cristo, o farisaísmo
da sinagoga, que, segundo as palavras do divino Mestre, sacrificava a lei de
Deus às tradições humanas. Eu só creio num Catolicismo cristão e espiritual,
porque creio em um Cristo cujo “reino não é deste mundo” — o “Cristo de ontem,
de hoje e de todos os séculos”...
* * *
O que há de mais triste e deprimente para o nosso catolicismo, nesse pasquim
de P. Vasquez, é que o autor do mesmo tenha recebido para sua publicação o
Imprimatur do Bispo de Juiz de Fora, o que, em bom português, se chama jogar
Cúria contra Cúria, mobilizar bispo contra bispo. Os inimigos do catolicismo
devem ter tido horas de intenso prazer ao verem em letra de forma que
sacerdotes católicos romanos conseguem dos seus superiores eclesiásticos
reprovação de obras aprovadas por outra autoridade eclesiástica, estabelecendo
assim manifesto dualismo doutrinário dentro do catolicismo, que se ufana de sua
rigorosa unidade doutrinária. Não há, a meu ver, método mais eficiente para
afugentar da igreja católica as classes pensantes e os homens cultos do que
este adotado pelo P. Benito Vasquez e por muitos outros sacerdotes no Brasil.
Em benefício da unidade doutrinária deviam ser prontamente sacrificadas todas
e quaisquer opiniões pessoais e particulares — isto, sim, seria catolicismo,
catolicismo cristão e genuíno, e não sectarismo clerical, como esse que por aí
vemos...
O P. Vasquez, como filho da terra clássica da Inquisição, não pode deixar de ser
inimigo mortal do protestantismo — e, no entanto, é ele eminentemente
protestante. Dizem que o característico do protestantismo está em que ele rejeita
a autoridade eclesiástica e sobrepõe a sua opinião individual à palavra oficial e
autorizada da igreja. Pois é precisamente isso que o P. Vasquez faz com grande
perfeição, negando à Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro toda e qualquer
competência em matéria de teologia católica e arvorando-se em supremo censor
e árbitro de catolicidade. Se essa mentalidade é própria do protestante, então o
Vigário de Angustura é o rei dos protestantes, protestando como protesta contra
o representante oficial da suprema autoridade eclesiástica do Brasil, a fim de
fazer valer a sua opinião individual.
É o que se chama querer expulsar o demônio por belzebu...
51
Carta aberta a numerosos
amigos iludidos
Desde que deixei as fileiras do clero romano a fim de manter fidelidade à
catolicidade cristã, tenho recebido, e continuo a receber, numerosas cartas,
veementes umas, suaves outras, censurando a minha atitude e convidando-me
a voltar ao romanismo clerical.
A todas essas pessoas, geralmente bem intencionadas, porém iludidas, passo a
responder o seguinte:
1 — Não abandonei o catolicismo, se com esta palavra se entende a catolicidade
cristã, isto é, a universalidade do espírito do Cristo; pelo contrário, precisamente
por não querer ser infiel ao espírito universal do Evangelho do Cristo é que tive
de afastar-me do espírito da romanidade, que, como a própria palavra diz, não é
universal, mas parcial, centralizado numa determinada cidade de um certo país,
ao passo que o Cristianismo é essencialmente universal (em grego, “katholikós”,
católico).
2 — Nunca me revoltei contra meu superior eclesiástico, que, nesse tempo, era
o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme; nunca recebi dele
uma única censura, mas tão somente louvores e recomendações entusiásticas
e de irrestrita solidariedade ao meu pensamento cristão, como, entre outros,
provam diversas cartas dele que conservo, bem como os prefácios espontâneos
escritos por ele para diversos livros meus. É, pois, deslavada mentira e vil calúnia
o boato que o clero decadente espalhou contra mim, tachando-me de rebelde e
revolucionário insubmisso — quando a rebeldia e insubmissão partiu
precisamente desses padres e, infelizmente, também de alguns bispos e
arcebispos, que, em flagrante contraste com as leis da igreja, proibiram como
perniciosos à fé católica dezenas de livros meus, explicitamente aprovados e
recomendados, durante anos e decênios, como genuinamente católicos.
Pergunto: onde está a rebeldia? da minha parte ou da parte dos meus inimigos?
Pergunto ainda: como se pode servir à causa do Evangelho de Jesus Cristo, que
é verdade, justiça e lealdade, com semelhante campanha de inverdade, injustiça
e deslealdade? “Ninguém pode servir a dois senhores!” Onde principia a tirania
da matéria morta termina o domínio do espírito vivo!
3 — É deslavada mentira também o que a imprensa clerical assoalhou contra
mim, no sentido de eu ter forjado o “Imprimatur” e prefácio de alguns dos meus
livros, ou de ter modificado a meu favor esses últimos. Em vez de espalhar
levianamente semelhantes calúnias, teria sido bem mais cristão e católico,
embora menos romano e clerical, dirigir-se lealmente aos autores desse
“Imprimatur” e desses prefácios para saber se eram genuínos e autênticos. Os
rebeldes, porém, preferiram a esse caminho reto da verdade as veredas
tortuosas da mentira. Convinha que abrissem o Evangelho e lessem a censura
veemente que o divino Mestre fulminou contra seus colegas clericais da
sinagoga de Israel, réus de crimes idênticos: “Ai de vós, guias cegos conduzindo
outros cegos! roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus; vós
mesmos não entrais, nem permitis que os outros entrem!”
4 — É também calúnia gratuita o que o clero rebelde assoalhou pela imprensa e
oralmente: que eu havia sido pago pelo protestantismo para fazer a campanha
do Evangelho de Cristo e recomendar a sua leitura e meditação diária aos
católicos brasileiros. Nunca recebi um único centavo de ninguém para realizar
essa campanha de evangelização, que nasceu de um imperativo categórico da
minha consciência cristã, que até hoje considera a aceitação prática do espírito
do Cristo a única esperança de salvação para o indivíduo e para a sociedade —
isto é, o Evangelho puro e incontaminado, assim como brotou dos lábios e do
coração do divino Mestre, e não em suas múltiplas adaptações aos interesses
políticos e financeiros de grande parte do clero. Bem sei que não falta entre o
clero quem faça a divulgação do Evangelho, em edições populares; mas sei
também o que numerosos católicos me dizem: É necessário ter em casa uma
edição católica do Novo Testamento ou da Bíblia inteira, não para ler e meditar
esse livro, mas para mostrar o volume aos propagandistas protestantes e assim
fechar a porta à invasão das Bíblias deles. Quer dizer: a palavra de Deus e a
revelação de Jesus Cristo não são para serem meditadas e transformadas em
norma de vida diária, mas para serem guardadas na prateleira da biblioteca, a
fim de servirem, oportunamente, de “bucha” para os propagandistas
protestantes. Não era este o sentido da minha campanha pró-Evangelho. Em 5
ou 6 anos de viagens quase incessantes através de todas as latitudes e
longitudes do Brasil, espalhei uns 8.000.000 (oito milhões) da minha folha
volante “Lampejos”, quase gratuita, e realizei mais de 2.000 (duas mil)
conferências, ensinando o povo como fazer das palavras de Jesus Cristo a
norma suprema da sua vida. O clero nada receia da infiltração dos livros sacros
nos lares católicos, enquanto esses volumes continuam empoeirados nas
bibliotecas, para as traças; mas receia tudo de uma integração do espírito da
revelação divina na alma do povo, porque essa infiltração, como já dizia o grande
dominicano Lacordaire, conduz a alma humana rumo à “maturidade espiritual”.
O clero decadente, porém, receia essa maturidade espiritual do católico, porque
uma alma espiritualmente madura e cristãmente adulta não aceitará cegamente
os dogmas do clero, que, em boa parte, nada têm que ver com o Cristianismo, e
muitos deles lhe são diametralmente opostos. Por isso é do máximo interesse
do clero romano (quando não suficientemente católico e cristão) manter o povo
na ignorância do espírito do Evangelho, explicando-lhe apenas certas passagens
menos “perigosas” e torcendo o sentido em prol dos interesses da hierarquia
romana. Quanto mais o homem se cristifica pela assimilação do espírito do
Evangelho mais se desclericaliza; mas, como o clero romano quer, acima de
tudo, a sujeição cega e incondicional do povo a seu domínio, é lógico que rejeite
todo e qualquer movimento que ponha em perigo esse domínio. O fim principal
do clero romano não é a cristificação do homem, mas sim a sua clerificação.
Aquela é, política e financeiramente, estéril, esta favorece grandemente o
prestígio político-social e a prosperidade econômico-financeira do clero.
Enquanto o sacerdócio continuar a ser uma profissão lucrativa e uma fonte de
prestígio político, não há esperança alguma de que a situação melhore a favor
do Evangelho de Jesus Cristo, que lançou o glorioso lema: “Dai de graça o que
de graça recebestes!” Ora, ninguém pode comprar com preço material os valores
espirituais; logo, não deve vender pela matéria morta da terra o espírito vivo de
Deus, como tentou fazer Judas Iscariotes.
5 — De vez em quando, algum desses meus amigos iludidos apela para meus
cabelos brancos, e acha que é tempo para eu voltar à casa paterna. Quase todos
esses apelos são feitos de boa fé, como suponho, porque as vítimas da teologia
clerical crêem piamente que Deus é chefe do partido deles e de mais ninguém;
quem não é do partido do clero romano não é de Deus e do Cristo; e, como tal,
esse homem inimigo de Deus e do Cristo terá de esperar tremendos castigos,
se não agora, pelo menos depois da morte.
Considero um dos maiores crimes do clero iludir e escravizar deste modo a
consciência do povo católico e mantê-lo acintosamente nesse erro secular.
Enquanto o católico não for suficientemente cristão para ultrapassar as barreiras
clericais do “Imprimatur”, da ameaça de “excomunhão” e outros fantasmas
teológicos medievais, não há nenhuma possibilidade para chegar ao
conhecimento da verdade e entrar na “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
Esses bons amigos iludidos me consideram como um menino desobediente que
fugiu da casa paterna, mas, ao cair da noite, se enche de medo e, se for sensato,
resolve regressar ao lar a fim de se sentir seguro e salvo. A comparação pode
ser muito engenhosa; tem de ruim apenas o fato de não se adaptar ao caso,
porquanto este “menino de cabelos brancos” tomou sobre si os maiores
sacrifícios, afrontou todas as considerações humanas e sofreu todas as perdas
materiais para obedecer ao chamamento do Cristo, que o convidou para arauto
do seu Evangelho redentor. A estas horas, poderia eu ser, como já me chamava
a imprensa católica daquele tempo, o “herói nacional do catolicismo brasileiro”,
o “Paulo de Tarso do Brasil”; poderia gozar da admiração de centenas de bispos,
milhares de padres e milhões de católicos leigos; podia ver-me cercado e
cumulado dos elogios e presentes de todo o beatério das sacristias — Filhas de
Maria, Zeladoras do Apostolado, Damas de Caridade, Vicentinos, Moços
Católicos, chefes e chefiados da Ação Católica, etc., etc. — poderia também
nadar em rios de dinheiro, se quisesse, em vez de viver solitário no silencioso
recanto onde estou escrevendo estas reminiscências. Nunca me arrependi de
ter renunciado a “todos os reinos do mundo e sua glória”, que me foram
oferecidos, porque a paz da consciência no serviço do Mestre me vale
infinitamente mais do que tudo aquilo...
Numerosas pessoas piedosas, como me escrevem, vivem orando por mim;
outras até fizeram voto de sacrificar o resto da sua vida pela minha conversão
ao catolicismo romano.
Confesso que me sinto emocionado em face de tamanha dedicação, e daqui do
silêncio da minha ermida, envio a todas essas almas a expressão do meu sincero
agradecimento.
Devo, entretanto, fazer uma observação importante: Com que direito pretendeis
vós, almas ingênuas, fazer prescrições a Deus? Como é que vos arrogais o
direito de lhe dizer a que igreja ou seita me deva ele converter? Imaginai, se eu
tivesse nascido no protestantismo, no budismo, no hinduísmo, no islamismo, ou
em outra forma de religião qualquer, é certo que outras almas amigas orariam
por mim para que me convertesse à religião delas, “única religião verdadeira”, é
claro. E como poderia Deus atender a cada um desses partidos?
Não seria melhor, portanto, mais sensato e mais cristão, deixar a Deus a
escolha? Não lhe prescrever, dantemão, o rótulo do partido ao qual ele me deva
converter? É claro que eu e todos nós necessitamos de ulterior conversão,
porque ninguém é perfeito — e é neste sentido que eu recebo as vossas orações
e os vossos votos a meu favor. Desisti, porém, da ingenuidade de prescrever a
Deus o “ismo” peculiar ao qual ele me deva converter. Abri as páginas do
Evangelho, e nada disto encontrareis. O centurião romano de Cafarnaum, que
era pagão, não foi convidado por Jesus para se converter ao judaísmo, “única
religião verdadeira” daquele tempo, mas a sua fé e religiosidade foi proclamada
pelo divino Mestre como maior que outra qualquer que ele tivesse encontrado,
mesmo em Israel. E o bom samaritano não era “herege”, na opinião dos
sacerdotes de Israel? E não foi ele proposto por Jesus como modelo de
espiritualidade, mesmo ao sacerdote e levita da impecável ortodoxia eclesiástica
da época? Não devia Jesus ter mandado o centurião gentio e o samaritano
herege “converterem-se” ao judaísmo da sinagoga?... E por que deve Deus ser
obrigado agora a “converter-me” precisamente para o “ismo” do clero de Roma?
Deus é tão pouco o chefe exclusivo do romanismo dos nossos dias como,
naquele tempo, era chefe privativo do judaísmo, embora os sacerdotes, tanto
daquela como desta seita, assim pensem e ensinem a seus ignorantes
sequazes.
52
Desiludindo os amigos protestantes.
Estágios evolutivos rumo ao
Cristianismo integral. O imperativo
da consciência
Quando alguém abandona as fileiras do clero romano, é quase certo que vai
arvorar-se, cedo ou tarde, em ministro protestante. E, geralmente, esse egresso
inicia uma campanha violenta contra determinados pontos da doutrina católica
romana, entre os quais contam como tradicionalmente obrigatórios a
infalibilidade do papa, o celibato sacerdotal, a confissão, a comunhão e a missa,
a veneração dos santos e da Virgem Maria, o purgatório, o uso de imagens e
relíquias, etc. É que muitos protestantes acreditam sinceramente que, se essas
doutrinas fossem varridas da face da terra, teríamos um Cristianismo genuíno e
plenamente vitorioso como, da sua parte, o católico julga, geralmente, que a
derrota do protestantismo, e, possivelmente, ainda do espiritismo e do
comunismo, equivaleria a uma deslumbrante proclamação do reino de Deus no
seio da humanidade. Esquecem-se estes últimos de que esse estado de coisas
já vigorou sobre a terra, por diversos séculos, na Idade Média, quando a
hierarquia romana era senhora do mundo, tanto no plano espiritual como no setor
civil; e, sobretudo, aqui no Brasil, tivemos quase quatro séculos de catolicismo
absoluto e exclusivo. Entretanto, nenhum homem sabedor dos fatos objetivos
dirá que esses períodos, daquém ou dalém-mar, tenham sido idades áureas do
Cristianismo, embora fossem um eldorado para o clero de Roma.
Os protestantes e outros inimigos do catolicismo esquecem-se de que a
eliminação de uma determinada seita cristã não equivale à vitória do Cristianismo
do Evangelho, genuíno e integral, ainda que, em certos casos, possa remover
determinados obstáculos ao triunfo do mesmo. A Reforma protestante do século
16 teve a sua grande missão histórica, porque, tentando reviver a ideologia
profética do Antigo Testamento e do Evangelho de Cristo, reafirmou o grande
princípio — que também forma o núcleo da filosofia hermético-védico-platônica
— de que “o reino de Deus está dentro do homem” e que o homem
espiritualmente evolvido encontra Deus dentro de si mesmo, na essência divina
de sua “alma cristã por natureza”, como diz o grande Tertuliano. Nos meus livros
“Evangelho ou Teologia” e “Pelo Prestigio da Bíblia na Era Atômica”, expus mais
por extenso esta idéia. O protestantismo prestou um grande serviço na luta pela
libertação da consciência humana, totalmente escravizada pela hierarquia
eclesiástica de Roma. É este o grande mérito dos Reformadores evangélicos do
século 16 e de alguns dos seus sucessores; a ênfase no acesso direto do homem
a Deus, em virtude duma disposição interna de fé, ou receptividade espiritual, e
não por meio de cerimônias externas ou fórmulas rituais.
Entretanto, afora esse mérito incontestável, não teve o protestantismo,
sobretudo nos séculos subsequentes, a necessária visão espiritual para voltar
ao Evangelho genuíno e integral; nasceu à luz das epístolas de São Paulo aos
Gálatas e Romanos, e sua índole é, até hoje, mais paulina que evangélica, como
expus nos livros acima mencionados.
Quando, para não servir de pomo de discórdia entre dois tipos de catolicismo em
flagrante litígio sobre os meus livros, julguei do meu dever de consciência
abandonar as fileiras do clero, como expus detalhadamente ao cardeal Leme, fui
insistentemente convidado por várias denominações protestantes para me filiar
a uma das igrejas que entre nós funcionam sob a bandeira comum de
“protestantismo”. Compreende-se essa atitude dos cristãos evangélicos — tanto
mais que o clero romano, consoante a sua nefasta doutrina de que “o fim justifica
os meios”, afirmava em quase todos os seus órgãos de publicidade e do alto dos
púlpitos das igrejas que todos os meus livros, embora explícita e reiteradamente
aprovados pela competente autoridade eclesiástica, eram visceralmente
heréticos, protestantes e perniciosos à fé católica. O cristão evangélico,
precisamente por estar imbuído mais que o católico da ética singela do
Evangelho, acredita facilmente o que se lhe diz; não está afeito àquela
sagacidade diplomática que caracteriza o clero católico (e contra a qual o grande
Pascal escreveu as suas tremendas “Letras Provinciais”); por isto, quase todo o
protestantismo brasileiro acreditou piamente que eu me incompatibilizara com o
clero romano por amor à ideologia protestante, quando, de fato, nunca tive
intenção de me filiar a seita alguma, mas procurar realizar, dentro e fora de mim,
o Cristianismo como tal, em toda a sua verdade e beleza, como brotara dos
lábios e do coração do divino Mestre. Devo relembrar o que disse em páginas
anteriores, quando cheguei a conhecer o Cristo e a alma do seu Evangelho em
duas vezes trinta dias de Exercícios Espirituais, sob a direção de um sacerdote
que não viu no meu Cristo o da sua teologia romana. Nunca fiz questão de que
o meu Cristo fosse romano nem protestante.
Nunca atendi a nenhum desses convites, que, tenho certeza, eram bem
intencionados. Não os pude aceitar sem faltar à sinceridade da minha
consciência; pois nunca me seria possível admitir de fato e defender
publicamente todo o corpo de doutrina prescrito pelas igrejas protestantes que
operam no Brasil. É claro que eu, em muitos pontos básicos, como cristão,
concordava com os cristãos evangélicos, e, em vista dessa concordância, nunca
deixei de colaborar com eles, enquanto não fosse obrigado a aceitar e ensinar
algo de cuja verdade não estivesse plenamente convencido. Não quis tornar-me
réu de um desses delitos que tantas vezes vira e detestara em antigos colegas
meus que, como homens individuais, tinham as suas convicções próprias, ao
passo que, como ministros da sua igreja, tinham de defender doutrinas alheias
ou contrárias à sua convicção íntima. Eu, por mim, não poderia jamais proclamar
em público e advogar com o necessário entusiasmo e amor, o que não
harmonizasse com a minha convicção e experiência pessoal.
Posso afirmar que é voz unânime de todos os meus críticos, gregos e troianos,
concordantes e discordantes da minha filosofia, que os meus livros e as minhas
palestras primam por um cunho de grande sinceridade e convicção pessoal.
Por isto, prefiro trabalhar, com sinceridade e entusiasmo, fora de qualquer
denominação eclesiástica a filiar-me a uma delas e sacrificar uma parcela,
mínima que seja, da minha boa-fé e convicção íntima. Não interessa aos meus
leitores e ouvintes o que, por exemplo, a Confissão de Westminster, ou outro
convênio denominacional, tenha estatuído sobre Deus, sobre o Cristo, sobre
pecado, graça, redenção, etc.; interessa-lhes que eu, após meio século de
estudos, meditações e experiências, penso e sinto a esse respeito.
Quando um sacerdote deixa o clero é, quase invariavelmente, por um destes
dois motivos: ou por ter brigado com a autoridade diocesana — ou por causa de
alguma Eva. Nenhum desses motivos presidiu à minha decisão, como de sobejo
sabia o meu superior eclesiástico de então, o cardeal arcebispo do Rio de
Janeiro, D. Sebastião Leme, que foi o meu grande amigo e defensor até à morte.
Nunca, nos quase 25 anos que trabalhei como sacerdote, recebi uma única
censura da parte de nenhum dos meus superiores diocesanos; nunca
desobedeci às ordens deles; nunca me rebelei contra nenhum deles. Saí em
perfeita harmonia com o meu superior eclesiástico. Saí depois de me convencer,
dolorosamente, de que havia no Brasil católico pelo menos dois catolicismos em
irreconciliável conflito, representados, de parte a parte, por figuras do clero e do
episcopado, e que não havia a menor esperança de que os partidos beligerantes
fizessem entre si as pazes sobre os meus livros, aprovados como católicos por
uns e proibidos como heréticos por outros.
* * *
Sei que meus amigos protestantes, sobretudo após o meu regresso dos Estados
Unidos, ficaram desapontados com o fato de eu não me ter filiado a nenhuma
das centenas de seitas evangélicas naquele país, nem a nenhuma das que
trabalham no Brasil. Alguns deles, talvez contagiados pelo ambiente, recorreram
às mesmas armas de difamação de que o clero romano decadente costuma
lançar mão para desprestigiar um pretenso inimigo dos seus interesses.
Verifiquei mais uma vez que nenhum membro de igreja ou seita consegue
manter-se independente e imparcial no julgamento de uma pessoa não filiada a
seu grupo religioso; o espírito sectário atua invariavelmente como um secreto
ímã ou como um par de óculos coloridos; mas, como o dono desses óculos
ignora ou nega o fato de ele usar esse meio de visão, é praticamente impossível
convencê-lo da injustiça que está cometendo contra o dissidente — mesmo de
boa fé.
Foi por isto que sempre resisti à insinuação de ingressar oficialmente em
qualquer grupo eclesiástico, preferindo colaborar amigavelmente com todos os
que sinceramente trabalham pelo triunfo do reino de Deus entre os homens. Uma
vez que eu assumisse compromisso de fidelidade a determinado corpo
doutrinário, ver-me-ia em face deste dilema: ou defender intransigentemente
essas doutrinas e tratar com injustiça os dissidentes, ou então considerar todos
os homens sinceros como meus irmãos, e destarte falhar à ortodoxia da minha
igreja.
Reflita o leitor, por exemplo, sobre a horrorosa verdade do seguinte: o melhor
dos judeus ou muçulmanos é forçosamente o pior dos cristãos; um ótimo católico
é necessariamente um péssimo protestante, e vice-versa! Leon Tolstoi, esse
sinceríssimo discípulo do Nazareno, foi excomungado por sua igreja, e isto em
nome de Cristo! Mahatma Gandhi, esse cristianíssimo gentio da Índia, não foi
considerado cristão pelas igrejas cristãs do ocidente. Albert Schweitzer, esse
exímio expoente do cristianismo místico-dinâmico dos nossos dias, não teve
permissão da Sociedade Missionária Evangélica de Paris para trabalhar, como
médico e cirurgião, na África Equatorial Francesa!
Entretanto, e apesar dos pesares, não negamos que as sociedades eclesiásticas
sejam, até certo ponto, necessárias — talvez um “mal necessário” — assim como
as muletas de um aleijado. As massas não estão em condições de se conduzir,
têm de ser conduzidas, e, para ser conduzido, é necessário que haja condutor.
O erro das seitas não está em que elas conduzam ou procurem conduzir; está
em que algumas delas se apresentam em público como sendo o próprio
Cristianismo em toda a sua pureza e integridade. Existe até uma igreja que
pretende possuir o monopólio da verdade e da santidade do Cristianismo — a
tal extremo pode chegar o egoísmo clerical!
Todas as igrejas, enquanto sinceras, são estágios evolutivos rumo ao
Cristianismo, mas nenhuma delas é o Cristianismo, o qual não caberá jamais em
fórmulas jurídicas ou teológicas. Luz engarrafada não é luz! Vida enlatada não é
vida! Espírito carimbado não é espírito! Na razão direta que o Cristianismo se
burocratiza ele se falsifica, amesquinha, degrada...
Na medida que o homem experimenta dentro de si o reino de Deus, ultrapassa
as fronteiras teológicas da sua igreja, sem por isso hostilizar essa sociedade,
que lhe serviu de meio de evolução. O adolescente ultrapassou a sua infância,
mas não a odeia; o homem maduro abandona a adolescência, como abandonou
a infância, que lhe foram etapas e estágios necessários para atingir as alturas
da sua adultez. A borboleta rompe os sedosos fios do casulo do bicho da seda,
não porque odeie essa obra d’arte por ele mesma produzida, mas porque,
segundo leis eternas, chegou o tempo em que o casulo, que lhe serviu de
proteção em certo período evolutivo, se lhe transformaria em empecilho na nova
etapa da sua evolução ascensional; por isto, o que ontem lhe era necessário e
sagrado, hoje lhe seria supérfluo e nocivo.
O cristão em evolução faz bem em afirmar o seu “casulo sectário”, enquanto este
lhe presta o serviço que deve prestar; mas deve possuir a necessária
independência e liberdade de espírito para ultrapassar, firme e serenamente,
qualquer estágio evolutivo, no dia e na hora em que o auxílio de ontem se lhe
tornar empecilho para hoje ou amanhã.
Importa que o homem seja integralmente sincero consigo mesmo...
53
Entre almas simples, no silêncio
da natureza. Um jubileu de prata em
profunda solidão. Preparativos de
viagem para os Estados Unidos
Falecera, em outubro de 1942, o meu grande amigo e protetor, D. Sebastião
Leme. Um mês depois, em novembro do mesmo ano, como já foi dito, o
arcebispo e todos os bispos sufragâneos de São Paulo, seguidos, em fevereiro
próximo, também pelo arcebispo de Porto Alegre, fizeram saber ao Brasil católico
que todos os meus livros, aprovados, lidos e recomendados durante 10, 20 e 25
anos, eram perniciosos à fé católica, não podendo ser lidos, comprados e
vendidos por nenhum católico. 1
1. Sei que a tremenda luta que 6 ordens religiosas e alguns bispos e arcebispos travaram contra
mim e meus livros e, implicitamente, contra o cardeal Leme, acelerou a morte desse meu grande
amigo e defensor. Vi D. Leme, pouco antes do seu desenlace, com as lágrimas nos olhos, referir-
se a essa deplorável discórdia no seio do clero e do episcopado. O último conselho que me deu
foi o de me entender com o Núncio Apostólico, a ver se este conseguisse uma reconciliação dos
litigantes; mas, com grande desapontamento dele e meu, o embaixador do papa não se
interessou, tomando tacitamente o partido dos rebeldes; achou mais importante viver em paz
com meia dúzia de poderosas ordens religiosas e mais duma dúzia de prelados do que fazer
justiça a um sacerdote caluniado e vilipendiado — e não tinha ele razão, como solerte político e
diplomata?
Meu pai deixou este mundo, em dezembro de 1944, com mais de 90 anos,
quando eu, na minha silenciosa ermida de Santa Teresa do Rio de Janeiro,
estava terminando o meu livro “DEUS, o Grande Anônimo de Mil Nomes”.
Ambos se foram daqui para o além sem a menor agonia e também sem a
presença de pessoa alguma que testemunhasse os seus últimos momentos,
morte ideal, ao meu ver. Foram-se, silenciosamente, como quem adormece...
Repugna-me indizivelmente a atitude patética e pagã com que a maior parte dos
chamados cristãos profana o momento solene em que uma alma humana
regressa do exílio aos braços do Pai eterno... Felizmente, nada disto aconteceu
quando os autores de minha vida terrestre voltaram à origem divina de todos os
seres. Faço votos a Deus para que o meu êxodo seja como foi o de meus pais.
Minha mãe, de cama havia meses, em casa de meu irmão Antônio, gostava de
ouvir leituras religiosas, feitas por esse meu irmão ou pela enfermeira. No dia 11
de outubro do referido ano, depois de escutar por algum tempo a edificante
leitura, despediu ela a enfermeira, porque desejava dormir um pouco.
Adormeceu — e não mais acordou neste mundo...
Meu pai costumava ajoelhar ao pé da cama, antes de se recolher, fazendo a sua
oração da noite. Na noite de 21 de dezembro do dito ano retirou-se para o seu
cubículo, onde, mais tarde, foi encontrado morto, ainda de joelhos, debruçado
sobre a cama, com o rosto entre as mãos, que seguravam um pequeno crucifixo,
que eu lhe havia oferecido, uns vinte anos atrás.
De meu pai herdei o gosto pelas longas e perigosas viagens. Ele viajava muito,
comprando e vendendo terras, desbravando florestas, abrindo picadas,
dormindo muitas vezes em plena selva sobre uma armação de dois troncos de
palmeira justapostos, coberto com o seu poncho, 2 e com a inseparável
espingarda de caça à cabeceira desse leito improvisado. Dele também vem o
meu inveterado gosto pela caça. 3 De resto, meu padroeiro onomástico, Santo
Huberto, é o protetor dos caçadores. O temperamento bandeirante de meu pai
não o deixou nem aos 90 anos de idade. Ainda com essa respeitável carga de
anos, andava ele, sozinho, a cavalo, não já para negociar em terrenos, mas para
interromper a monotonia da vida, ultimamente, sem ocupação certa. Falta de
trabalho era para meu pai ausência de um elemento vital. Apesar de mirrado e
franzino, possuía ele uma formidável capacidade de trabalho e uma estupenda
resistência física. Era capaz de viajar dia e noite sem comer nem beber. A mula
marchadeira que ele teve por muitos anos, mula predileta que só ele montava —
não aguentava tanto jejum como seu cavaleiro.
2. Poncho é uma espécie de manto, usado no sul do Brasil e na Argentina, feito de um tecido
forte e compacto forrado de baeta, tendo uma abertura no centro por onde se passa a cabeça.
Meu pai usou por mais de 50 anos o mesmo poncho, quase tão resistente como seu dono.
3. Entretanto, há muitos anos que desisti de ser caçador de animais inocentes, por motivos que
meus leitores encontrarão nos meus livros. Pela mesma razão, não tolero passarinhos
engaiolados.
Éramos mais de uma dúzia de irmãos e irmãs, lá em casa. De todos eles, quem
realizou viagens mais numerosas e extensas foi, certamente, este incorrigível
escrevedor de livros — viagens corporais através de vários continentes do
planeta, e viagens espirituais através do cosmos das almas e para além das vias
lácteas dos mundos de Deus. No Brasil, percorri diversas vezes, a serviço do
meu ideal cristão, todos os Estados do nosso país. Da Europa conheço de vista,
e, em parte, de longa permanência, França, Espanha, Portugal, Alemanha,
Suíça, Itália, Áustria, Hungria, ligeiramente também a Iugoslávia. Da Inglaterra
nada vi senão os rochedos cretáceos de Dover. Da África conheço apenas
Dacar, onde passei um dia. Pelos Estados Unidos realizei viagens quase tão
extensas, embora menos demoradas, como através do Brasil, desde Nova
Iorque, Búfalo, Chicago, Nebrasca, até Califórnia, Texas, Novo México, Flórida,
Washington, etc.
Entretanto, creio que viagens maiores fiz pelo mundo invisível, através de várias
dezenas de livros. E por causa destas jornadas do espírito tive de sofrer mil
vezes mais que todas as intempéries das viagens geográficas.
De minha mãe herdei essa sede de mundos espirituais, místicos, divinos.
Verdade é que, apesar de todas as práticas religiosas a que éramos obrigados
em casa, na escola e no colégio, nunca, nesse tempo, me afeiçoei a essas
coisas. Eram para mim dura penitência e só as acompanhava porque não havia
como furtar-me a elas. Interiormente, fiquei-lhes alheio, de espírito e de coração.
Na escola elementar tive, por algum tempo, uns como lampejos longínquos do
que fosse religião, depois que a decoração mecânica do Catecismo e da História
Bíblica já me tinha enchido a alma de fastio da “hora de religião”. O nosso Vigário
— Deus lhe perdoe! era um santo homem! — não conseguiu, tampouco,
despertar em mim, e, creio em outros, interesse religioso; mas, quando a nossa
professora, Irmã Teófana, nos contava, em linguagem infantil, singela, intuitiva e
ardente, histórias de anjos e demônios, de santos e condenados, de uma
criancinha deitada numa manjedoura e de um homem pregado numa cruz, então
eu não só ouvia mecanicamente estas coisas, mas vivia-as a meu modo, embora
não fosse talvez o modo como elas deviam ser vividas teologicamente. Quando,
aos 10 ou 11 anos, fiz minha primeira Comunhão, tinha a certeza de ser o maior
pecador do mundo — a tal ponto me haviam impressionado certas histórias de
Irmã Teófana. A atmosfera da nossa religiosidade era muito mais parecida com
o terror do Antigo Testamento do que com o amor da Nova Aliança.
Apagaram-se os lampejos longínquos — e eu não descobri a religião...
Nem mesmo nos longos anos de Seminário criei gosto verdadeiro e real por
estas coisas. Estaria minha alma hibernando por tantos anos? Continuei a
cumprir mecanicamente, por simples obediência e rotina, toda aquela
abundância litúrgica, que antes sufocava do que alimentava o meu espírito.
Parece que minha alma não era acessível pelo lado de fora, hermeticamente
fechada em si mesma. E eu não sentia em mim desejo algum para abri-la a
coisas ou pessoas que não me fossem intimamente queridas. Para que abrir a
porta a estranhos? As palavras de minha mãe, os ensinamentos religiosos da
Irmã Teófana e do sacerdote, os exercícios espirituais no Seminário — tudo isto
ficou na periferia do meu verdadeiro Eu; o meu centro ficou inatingido. Deve
haver milhares de homens nestas condições, que assim vivem e morrem, dentro
da religião sem que dentro de si vivam a religião. O farisaísmo obtuso e
intolerante os condena e detesta como homens maus, sem religião, mas Deus
sabe quanto eles sofrem com o sincero desejo de religião que quiseram possuir...
Talvez não estejam “longe do reino de Deus”...
Comigo, porém, teve Deus mais piedade. Revelou-se-me, não em uma
tempestade de Damasco, mas numa como silenciosa e imperceptível alvorada
espiritual, durante o meu primeiro Retiro de 30 dias completos, em 1924, e, anos
mais tarde, em outra solidão espiritual, também de um mês inteiro. Talvez que
fosse necessária toda aquela saturação ascético-litúrgica dos anos anteriores
para que, enfim, pudesse manifestar-se essa osmose espiritual... Serviu-se Deus
de veículos humanos, espécie de catalisadores, para fazer cristalizar em
palpável realidade esse indefinível algo que andava disperso na atmosfera da
minha vida...
E Ele, o Grande, o Bom, o Terrível, o Querido, disse-me o que ninguém poderia
dizer-me. Falo de dentro, e não de fora. Tive o meu primeiro encontro pessoal
com Ele, em 1924 — Ele, o grande Anônimo de mil nomes — Ele, meu delicioso
Tormento — Ele, minha luminosa Escuridão — Ele, o Deus transcendente e
imanente — Ele, a quem minha alma possui, e a quem tem de procurar sem
descanso...
Os que reduzem os Exercícios Espirituais a uma semana ou até a três dias, como
é de uso e abuso, nada entendem do seu verdadeiro espírito. Assim como o
efeito espiritual do jejum só é atingido com 30 ou 40 dias de abstenção, assim
também só com 30 ou 40 dias de concentração espiritual é que a alma atinge
aquele grau de polarização dinâmica que lhe faculta uma sobre-humana
percepção das supremas realidades. É fora de dúvida que entre esse lapso de
tempo e a constituição da alma vigora alguma secreta relação e
interdependência. Em determinada altitude de ascensão espiritual existe uma
zona ou barreira, transposta a qual, o espírito se sente liberto do peso morto da
matéria, sem deixar o corpo, e adquire uma receptividade divina que nada tem
que ver com as nossas faculdades normais. Há certas práticas espirituais,
atribuídas a determinados homens, mas que no fundo são leis eternas do mundo
invisível relacionadas com a natureza da alma humana. A completa exclusão do
mundo profano, e a intensa e prolongada fixação do mundo espiritual, despertam
no mundo do nosso espírito forças dormentes que ignorávamos e que, uma vez
despertas, abrem caminho através de todos os impossíveis e nos levam até à
presença de Deus.
Dizia eu, a princípio, que devia à minha mãe a sede do mundo espiritual, místico,
divino; e creio que é exato, apesar de não ter aproveitado com os ensinamentos
religiosos dela.
Minha mãe, apesar de muito ativa e trabalhadora, passava horas e horas imersa
em meditação espiritual, quando o tempo lho permitia. Sobretudo aos domingos
à tarde entregava-se a essa introspecção, e, para que ninguém a perturbasse,
sentava-se no cantinho mais retirado e escuro da igreja, e lá se deixava ficar por
longas horas, muitas vezes sem livro algum. Ela, certamente, não teria entendido
as minhas lucubrações metafísicas com que, em alguns dos meus livros, tentei
explicar o inexplicável fenômeno do espírito que ultrapassa o seu próprio Eu e
se sente como que um super-Ego, ou um non-Ego, em contato com algo que
não é simplesmente a sua personalidade humana, e muito menos o mundo
circunjacente, mas uma realidade essencialmente superior a tudo isto. É este o
misterioso “porto de invasão” do mundo divino dentro do mundo humano.
Realizada essa invasão de Deus no Eu, está o homem como que “do outro lado”,
está para além de um grande abismo, para aquém do qual decorreu até então a
sua vida e experiência cotidiana.
É esta a “crise redentora” de todo homem espiritual. É o Damasco de Saulo, o
Milão de Agostinho, o Port-Royal de Pascal, o Manresa de Loyola, o Monte
Alverne de Francisco de Assis. Essa crise, não raro, lança o homem num
pavoroso conflito com outros homens que por religião entendem coisa tão
diferente. A vida da maior parte dos grandes heróis do espírito é uma imensa
tragédia, porque a sua experiência espiritual e mística faz deles como que blocos
erráticos, arrancados não se sabe de que ignotas montanhas e arremessados
com titânica veemência ao meio dessa vasta planície de humana mediocridade.
E no meio dessa monótona planície ficam então esses blocos erráticos como
incompreendidas esfinges a olhar o deserto, como estranhos paradoxos ou
fantasmas de outros mundos a perturbar, com sua simples presença, o tépido
sossego dos pacatos cultores da mediocridade dominante...
Não tenho a pretensão de me equiparar a algum dos homens acima citados.
Entretanto, a raiz de todas as lutas que encheram a minha vida apostólica
remontam ao ano de 1924. Não podia eu deixar de dizer aos homens o que Deus
me havia dito, fosse agradável ou desagradável. E eu o disse, com grande
veemência e persistência, durante mais de três decênios. Muitos o ouviram.
Alguns o aceitaram. Muitíssimos o rejeitaram, porque “amaram mais as trevas
que a luz”; não lhes quero mal por isto. Deus os conhece...
Tenho certeza de que, lá das regiões da verdade integral, onde creio estejam as
almas de meus pais, elas acompanham, satisfeitas, as minhas atividades em
prol do reino de Deus aqui na terra.
Deixo-lhes aqui a expressão da minha sincera gratidão filial, com a esperança
de, um dia, nos revermos no reino do Pai eterno.
56
Epitáfio de um batalhador
apunhalado por seus colegas
Faço meu o lindo epitáfio que o exímio lutador da imprensa católica, na França,
Louis Veuillot, compôs para o seu próprio túmulo. Foi também a minha vida,
como a dele, saturada de trabalhos e lutas pelo reino de Deus, e dilacerada de
incompreensões e injustiças, as quais, todavia não conseguiram demover-me do
grande ideal cristão da minha vida.
O original de Louis Veuillot:
Placez a mon coté ma plume;
Sur mon coeur, le Christ, mon orgueil;
Sous mes pieds ce volume —
Et clouez en paix le cercueil.
COLEÇÃO BIOGRAFIAS:
Paulo de Tarso
Agostinho
Mahatma Gandhi — ilustrado
Jesus Nazareno — 2 vols.
Einstein — O Enigma da Matemática — ilustrado
Por um Ideal — 2 vols. (autobiografia)
Pascal
Myriam
COLEÇÃO OPÚSCULOS:
Catecismo da Filosofia
Saúde e Felicidade pela Cosmo-meditação
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, Milagre e Oração São Compatíveis?
Cem Pensamentos de Mahatma Gandhi (tradução)