Cancer Materno
Cancer Materno
Cancer Materno
https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416 Artigo
Resumo: O câncer é uma doença crônico-degenerativa, que tem como uma de suas principais
características a capacidade de invadir tecidos e órgãos do corpo, favorecendo o crescimento
desordenado de células. É uma doença que impacta fortemente a pessoa enferma e todos à
sua volta, incluindo sua família e seus amigos. A partir desse cenário, este trabalho visou
compreender a visão da criança e o impacto emocional sofrido diante do diagnóstico de câncer
da mãe. Buscou-se avaliar, a partir de ferramentas lúdicas e do desenho-estória, o entendimento
da criança em relação ao processo de adoecimento materno, tomando como base o referencial
psicanalítico para reconhecer como ela lidou com a situação. Participaram desta pesquisa uma
mulher de 39 anos com diagnóstico de câncer em remissão e seu filho de 9 anos. Os resultados
demonstraram que o adoecimento materno causou impactos emocionais significativos e
assustadores para o infante, gerando fantasias irreais relacionadas ao câncer e a si próprio.
Dessa forma, considera-se de fundamental importância o cuidado estendido aos familiares do
indivíduo doente, a fim de que se tenha um olhar a todos que sofrem diante desse contexto.
Palavras-chave: Câncer, Câncer Materno, Sofrimento Infantil, Ferramentas Lúdicas, Desenho-Estória.
Abstract: Cancer is a chronic-degenerative disease that has as one of its main characteristics
the ability to invade tissues and organs of the body, favoring the disordered cell growth. It is a
disease that strongly impacts the sick person and everyone around them, including their family
and friends. Based on this scenario, this work aimed to understand the child’s view and the
emotional impact suffered in the face of the mother’s cancer diagnosis. It sought to evaluate,
with ludic tools and drawing history, the child’s understanding about the mother’s illness
process, based on the psychoanalytic framework to recognize how they deal with the situation.
A 39-year-old woman diagnosed with cancer, in remission, and her 9-year-old son participated
in this research. The results showed that the maternal illness caused significant and frightening
emotional impacts for the infant, creating unrealistic fantasies related to cancer and to himself.
Thus, the care extended to the sick individual’s family and to the relatives is considered of
fundamental importance, to give a complete care for all those who suffer in this context.
Keywords: Cancer, Maternal Cancer, Child’s Suffering, Playful Tools, Drawing History.
Resumen: El cáncer es una enfermedad crónico-degenerativa, que tiene como una de sus
principales características la capacidad de invadir tejidos y órganos, favoreciendo un crecimiento
Disponível em www.scielo.br/pcp
Psicologia: Ciência e Profissão 2024 v. 44, e257416, 1-15.
desordenado de las células. Enfermedades como esta impactan fuertemente a la persona que está
enferma y a todos los que la rodean, incluidos familiares y amigos. Considerando esta situación,
este estudio tuvo como objetivo comprender la percepción de un niño y el impacto emocional
que sufrió ante el diagnóstico del cáncer vivido por su madre. Se pretendió evaluar, utilizando
herramientas lúdicas y de dibujo-cuento, la comprensión del niño al proceso de enfermedad
materna, buscando reconocer cómo el niño manejó este proceso a partir del referencial teórico
psicoanalítico. En esta investigación participaron una mujer de 39 años diagnosticada de cáncer
en remisión y su hijo de 9 años. Los resultados mostraron que los impactos emocionales de
la enfermedad materna fueron significativos y aterradores para el infante, generando fantasías
irreales relacionadas con el cáncer y él mismo. De esta forma, el cuidado extendido a la familia
del individuo que está enfrentando esta enfermedad es importante para promover una atención
integral a quienes la padecen en este contexto.
Palabras clave: Cáncer, Cáncer Materno, Sufrimiento Infantil, Herramientas de Juego, Dibujo-
-Cuento.
Doenças crônicas como o câncer causam prejuízos pela criança sobre a enfermidade e sua cura, para que,
de diferentes ordens para os indivíduos doentes, pois caso necessário, sejam explicados corretamente os
o sofrimento é multidimensional, englobando sinto- aspectos que ainda se encontram nebulosos, para evitar
mas psíquicos, dúvidas e questionamentos existenciais, que a imaginação da criança piore sua percepção sobre
além de preocupações com o contexto familiar e social esses acontecimentos e gere sintomas prejudiciais a
(Cunha & Rúmen, 2008). sua saúde (Nigro, 2004). É importante que a criança e
Além do indivíduo diagnosticado, o adoecimento seu parente adoecido recebam amparo multiprofissio-
crônico afeta todo seu núcleo familiar, seja em sua com- nal, focado em oferecer orientações e diversas formas
posição geral ou em relação aos cuidados com a pes- de cuidado, para que esse momento seja enfrentado
soa doente, já que a família tende a se configurar como da forma mais positiva possível (Sousa, Reichert, Sá,
uma importante unidade de suporte para o enfermo. Assolini, & Collet, 2014).
Essa realidade costuma causar desconforto não só para Um dos fenômenos presentes no contexto do ado-
o paciente como para os seus familiares, configurando ecimento materno é o da angústia de separação, termo
essas pessoas como cosofredoras do processo de adoe- relacionado tanto à própria angústia quanto à depres-
cimento (Gil & Santos, 2021; Sanchez & Ferreira, 2011). são e ao luto, constituindo-se como um afeto situado
Em decorrência do possível encontro com a morte, entre a fantasia e a realidade (Quinodoz, 2007). Quando
o câncer normalmente gera sofrimentos e questio- ocorrida de forma comum no desenvolvimento, essa
namentos. A doença também traz outros relevantes angústia é vista como universal e necessária por ser
tipos de perda, como a perda do corpo saudável ou do estruturante para o ego, no sentido do indivíduo passar
domínio da própria vida (Rossi & Santos, 2003). Ademais, a se perceber como uma pessoa única, e não mais como
para a mulher, o câncer pode gerar conflitos internos em uma mera extensão de algum outro ser (Salvador, 2016),
relação ao papel de mãe, envolvendo a necessidade de gerando maturidade psíquica para que se passe a tolerar
esconder ou não do filho seu adoecimento, o medo de o sentimento de solidão (Quinodoz, 2007). Todavia, no
prejudicar ou não estar mais presente na vida da criança caso de situações de familiares com doenças crônicas,
e não saber como lidar com suas próprias necessidades é comum que essa angústia se instale de forma mais
em conjunto com as do infante (Castro & Job, 2010). intensa na criança, visto que ela pode passar a ter medo
Quando a mãe adoece, é possível supor que surjam de perder definitivamente o ente querido. Nesse sentido,
questionamentos, medos, dúvidas e inseguranças na dependendo do grau de angústia presente, a criança pode
criança, repercutidos ao longo do seu desenvolvimento apresentar diversos sintomas, como: reações emocionais,
emocional (Nigro, 2004). A vivência do câncer materno como a mágoa e a tristeza; psíquicas, como a depressão e
é uma realidade de difícil compreensão; sendo assim, é a fobia; e até mesmo manifestações somáticas e psicos-
importante apreender e entender as fantasias criadas somáticas (Salvador, 2016).
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
Mesmo causando um grande sofrimento para desejante, será representado por meio da relação entre
o sujeito, a manifestação de angústias ou conflitos ego e fantasia. Como dizem Conti e Souza (2010, p. 100):
internos de forma somática – ou até mesmo psíquica – “Partimos da hipótese de que fantasiar é necessário para
tem sempre uma finalidade: a de defesa, mas também se ampliar o espaço psíquico e os acessos aos cômodos
a de demonstrar que algo está errado (Myssior, 2007). da mente daquele que se apresenta como sujeito”.
Dentre as possibilidades de expressão desse sofri- Dessa forma, a fantasia pode ser compreendida
mento, está a fobia. De acordo com Freud (1894/1996a), como a expressão simbólica de conflitos, alegrias,
as fobias têm sua origem na representação, ou seja: medos e inseguranças. O brincar, além de demonstrar
quando um pensamento inicial é tido como muito a relação existente entre o inconsciente e o sujeito, pode
doloroso, para se proteger, a psique faz com que sua também ser a forma que a criança utiliza para expressar
representação permaneça na consciência, só que mais suas angústias. Ao brincar, a criança vai progredindo
fraca. Sendo assim, seu afeto se desliga dela, ligando-se e fazendo com que as identificações da brincadeira
a outras representações que passam então a atormentar estejam cada vez mais próximas da realidade que a
o sujeito por não pertencerem àquele lugar, criando o cerca (Schmidt & Nunes, 2014). Nesse sentido, como
medo exacerbado e a repetição daqueles pensamentos afirma Winnicott (1971/1975), a fantasia e a criatividade
em determinadas situações. têm um papel essencial na vida infantil, pois é por meio
Além disso, é fundamental reconhecer que, no delas que a criança lida e elabora os acontecimentos
geral, o câncer carrega um estigma de sentimentos da realidade. Por outro lado, a fantasia também pode
negativos e até mesmo de morte. Logo, é considerado acabar se tornando paralisante e inibitiva, a depender
usual que a pessoa adoecida e aquelas que estão a sua do contexto em que a criança se encontra, fazendo com
volta entrem em um estado de luto e passem a pensar na que a brincadeira deixe de ser criativa e atrapalhe seu
possibilidade e no conceito de morte (Teixeira & Pereira, desenvolvimento, gerando sintomas (Barros, 2011).
2011). A morte é algo que pode acontecer em qualquer À luz dessas considerações, por esse
momento da vida, perpassando também a infância; ser um fenômeno plural e cheio de possibilidades,
todavia, nesse período de desenvolvimento, esse é um faz-se importante a compreensão da visão da criança
assunto tido como proibido ou impossível, como se não e o impacto emocional que esta sofre diante do
fosse parte natural da vida (Fernandes, 2017). diagnóstico de câncer da mãe, além da avaliação,
Para Freud (1917/2010), o luto normalmente é um a partir de ferramentas lúdicas e do desenho-estória,
estado emocional de reação à perda, seja de pessoas, de qual foi seu entendimento em relação ao processo
objetos ou estados subjetivos e físicos, como a saúde de adoecimento materno, buscando reconhecer como
física. Esse estado se justifica pelo fato de que o indi- lidou com a situação, tomando como base o referen-
víduo percebe que o objeto amado não está mais cial teórico psicanalítico.
presente e, por isso, precisa retirar toda a libido que
foi investida nesse objeto, agora faltante em sua vida.
Método
Isso exige um alto gasto energético e mental da pessoa
Trata-se de uma pesquisa com ênfase na meto-
enlutada, que consequentemente mostra-se cansada
dologia qualitativa, realizada por meio de estudo
e apática enquanto está no processo de luto, que pode
de caso único, considerando o referencial teórico
vir a ser demorado e longo (Freud, 1917/2010).
da psicanálise.
Quando tais experiências são vivenciadas no
período da infância, é preciso ter certos cuidados e
se atentar para que a criança desenvolva recursos Participante
e tenha possibilidade de aprender a enfrentar e Foi convidada a participar desta pesquisa uma
lidar com o sofrimento. O luto e outras situações criança de nove anos, do sexo masculino, residente
enfrentadas nessa fase do desenvolvimento podem ser de Brasília (DF), cuja mãe foi diagnosticada com
elaborados por meio do brincar, uma vez que esse meio câncer e estava em processo de remissão da doença.
de expressão facilita as construções da fantasia infantil A família do participante foi contatada por meio da
e a forma como a criança vivencia e percebe a reali- rede de contatos da pesquisadora, constituindo uma
dade concreta. O brincar é usado, então, como uma das seleção de conveniência. Os critérios de inclusão uti-
formas de se analisar e compreender o ser que, por ser lizados para a participação na pesquisa foram a idade
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A primeira autora deste trabalho foi responsável pela condução das entrevistas com a mãe, bem como pela aplicação do desenho-estória
com a criança. As três autoras realizaram em conjunto a análise dos dados. As interpretações dos desenhos foram realizadas a partir do que
aconteceu no encontro entre pesquisadora e participante. Como afirma Figueiredo (2020), é no encontro psicanalítico que são vivenciadas
a transferência e contratransferência, possibilitadas neste caso pelo bom estabelecimento do rapport entre criança e pesquisadora.
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
um dos aspectos específicos e fundamentais da vida da Clara (nome fictício), o que trouxe alguns questiona-
criança: sua família (Werlang, 2007). Portanto, ao todo, mentos e dúvidas em relação à maternidade, além do
foram realizadas seis produções pela criança. sentimento de culpa e medo em relação ao filho mais
velho. Além disso, João demonstrava ter muito ciúme
Análise dos dados da irmã, o que fez com que sua mãe sofresse ainda mais
A análise da transcrição da entrevista com a mãe ao “deixá-lo um pouco de lado” para cuidar da filha
da criança se deu, principalmente, a partir de três eixos: recém-nascida. Esse conflito acabou gerando certo
1) conhecer o desenvolvimento da criança no geral; afastamento emocional entre ambas nesse início de
2) saber o que foi e o que não foi dito sobre o diagnóstico vida. Gabriela exemplificou esse afastamento, rela-
de câncer; e 3) compreender como a mãe acredita que a tando que não conseguiu amamentar a filha e que
criança possa ter absorvido todo esse processo e se foi chegou a ter uma sensação ruim quando tentava,
perceptível alguma mudança na sua forma de agir, após pois se sentia muito culpada em relação a João e o
o diagnóstico e também após constatada a remissão. Já a abandono que ela sentia que estava cometendo. Por
análise da entrevista lúdica com a criança foi realizada a isso, nessa época, o marido ficou responsável por dar
partir da observação de como ela se expressou por meio mamadeira para a filha recém nascida.
do brincar, para que fosse possível conhecer as fantasias Sobre o câncer, Gabriela contou para os filhos
envolvidas nesse contexto específico (Aberastury, 1982). que ela tinha um “carocinho no peito”, que precisava de
A análise do desenho-estória, especificamente, cuidados. Ela e o marido costumavam se referir a esse
seguiu a proposta de Trinca (1984) e Safra (1984). Foi carocinho como um “dodói”, sem nunca especificar o
analisado cada elemento que surgiu a partir do proce- que era, ou seja, nunca disseram explicitamente que
dimento, sempre pensando em seus elementos como a doença era o câncer. Eles também nunca contaram
um todo, ou seja, como um processo, pois cada compo- como a doença poderia ter surgido ou deram maiores
nente representa uma forma de enxergar as angústias e informações a respeito disso. Quando ela adoeceu,
fantasias que envolvem o fenômeno investigado, que, João tinha cinco anos e Clara tinha três.
neste trabalho, foi o adoecimento materno. O primeiro Na visão de Gabriela, após o diagnóstico de adoe-
ponto analisado foi o movimento gráfico e verbal, para cimento, João, que já apresentava muitos medos e
que se pudessem reconhecer as angústias e fantasias
receios, passou a apresentar sintomas físicos ligados
presentes. O segundo ponto foi o estudo de cada um
a estes. Segundo ela, o filho já chegou a vomitar
dos cinco desenhos-estória, para identificar possíveis
ou urinar por se sentir acuado em alguma situação ou
mecanismos de defesa psíquicos evidenciados e para
com muito medo de um acontecimento que estaria
que fosse possível perceber e elencar os recursos uti-
por vir. Um exemplo dado foi sobre a perda dos dentes
lizados pela criança para solucionar/lidar com seus
de leite e seu grande medo de “contrair” o câncer,
conflitos e sua capacidade de adaptação.
passando a generalizar qualquer mudança corporal,
mesmo que mínima, como relacionada à doença: “Ele
Resultados e discussão adquiriu essa questão da doença, qualquer pontinho,
qualquer carocinho, dores na garganta, ele achava que
Entrevista clínica com a mãe ele também ia ter algo grave”.
Gabriela (nome fictício da mãe) contou que João Gabriela contou também que acabou se afas-
(nome fictício da criança participante) foi uma criança tando de seus filhos, por conta do seu medo de morrer
muito desejada. Contudo, seu desenvolvimento no e da necessidade que ela tinha de olhar e cuidar de si,
início da vida foi conturbado, já que ele nasceu pre- devido à doença: “Eu não conseguia associar a mater-
maturo, com 33 semanas de gestação, e teve infecção nidade a isso, eu só conseguia associar a minha vida”.
hospitalar. Nesse sentido, ela atribui alguns compor- Com isso, ela contou que João aproximou-se mais do
tamentos apresentados até hoje por João, como a pai. Ademais, a mãe disse que, mesmo depois que foi
grande necessidade de atenção e toque, ao seu nasci- constatado um período de remissão da doença, ela
mento prematuro. apresenta sintomas de ansiedade e pânico toda vez
Quando João tinha um ano e meio, Gabriela que volta a fazer exames e que isso causa muito medo
engravidou, sem planejamento, da segunda filha, e ansiedade nas crianças.
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Entrevista lúdica e aplicação do em que ela passou por momentos de muito estresse
desenho-estória com a criança (ondas altas) e impotência, quando não podia fazer
Ao encontrar a pesquisadora, João indicou saber o nada além de aguardar e torcer por sua melhora.
motivo do encontro, dizendo que era para “falar sobre a Ao mesmo tempo, João também podia, de certa
época que a mamãe ficou doente”. Ele afirmou que não forma, estar se referindo a si mesmo, pois “o cara”
se lembrava de praticamente nada do adoecimento de vendeu seu barco e a pessoa que o comprou “fez a
sua mãe, mas que sabia que tinha acontecido. Apesar mesma coisa”. Nesse trecho, a criança pareceu estar,
de ter se mostrado uma criança comunicativa, ele a partir de um processo de identificação com sua mãe,
também se mostrou retraído, no sentido de tomar cui- expressando seu medo de também vir a desenvolver o
dado com as palavras, o que talvez se explique como câncer e sentir-se passando pelas mesmas coisas que
um possível mecanismo de defesa para não tocar no ela, processos que podem estar ligados à transgeracio-
assunto indesejado e causador de seu sofrimento nalidade entre mãe e filho, na qual a figura materna
psíquico, vivenciado no período do adoecimento transmite sentimentos, valores, lutos e até mesmo per-
materno. A seguir, encontram-se as interpretações cepções patológicas para a criança, que absorve aquilo
realizadas a partir dos desenhos-estória (Figura 1). que recebe, sem, muitas vezes, conseguir simbolizar de
forma saudável, podendo causar sofrimento e sintomas
(Gutierrez, Castro & Pontes, 2011).
Quando questionado sobre a possibilidade de
existirem outras pessoas no barco, João respondeu
que não havia mais ninguém, demonstrando um
sentimento de solidão e afastamento, pois ele estaria
sozinho, assim como sua mãe, que já esteve sozinha
nesse “barco de emoções”.
Figura 1
Título dado pela criança: O barco aventureiro.
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
Na estória, ao contar que “quando ele (o girassol) feliz, mas tão feliz, que ele ficava pulando, latindo
cresceu, ele viu o sol. Aí, toda vez que ele via o sol, ele de alegria, aí é, quando ele via o cara, quando
achava o sol muito bonito ... aí quando ele tava quase passava, ele ficava todo amedrontado, foi isso que
morrendo, ele ficou triste, porque ele ia morrer e não ia imaginei”. (João)
mais ver o sol”, João poderia estar comunicando seu
medo de perder a mãe, caso ela viesse a falecer. Nesse A partir dessa estória, levantou-se a possibilidade
sentido, Gabriela seria o girassol, e o filho, juntamente de que o suposto cachorro ferido e maltratado fosse
com outros aspectos importantes da vida dela, seriam uma alusão à sua mãe quando em tratamento contra
o sol, e quando ela estava “quase morrendo”, ou pen- o câncer, época em que João sempre a via chorando
sando que estava, ficou triste, pois não poderia mais ou triste em casa, e, por isso, poderia enxerga-la como
ter contato com tais aspectos importantes. Além disso, muito sensível e “maltratada”. Além disso, por várias
João poderia estar expressando por meio dessa estória vezes, Gabriela disse para João que estava chorando
a separação que sentiu, por parte da mãe, quando em decorrência “do dodói do peito”, explicação
ela adoeceu, além da interrupção da simbiose entre que pode ter contribuído para que ele a visse como
os dois (Mahler, Pine, & Bergman, 1975/1993), pois o machucada e triste. O dono que maltratava o cachorro
medo que Gabriela tinha de morrer e seu estado de poderia representar o câncer, que maltratava e
luto (Freud, 1917/2010) acabaram fazendo com que machucava sua mãe.
ela se afastasse do filho. Nessa mesma produção, João cita: “o dono
ficou tão bravo com o cachorro, que ele abandonou o
cachorro na rua ... e aí veio um menininho e achou
ele. Aí ele pegou o cachorro e falou que ia cuidar bem
do cachorro”. Nesse trecho, a criança poderia estar
comunicando seu desejo de cuidar da mãe na época
em que adoeceu, quando estava machucada, abando-
nada e triste. Segundo Carneiro et al. (2020), a criança
que cresce em convívio com o adoecimento materno
reage de diversas formas, sendo uma delas a neces-
sidade de cuidado e amparo à figura adoecida. Além
disso, no estudo de Gil e Santos (2021), percebeu-se
que, na percepção das filhas de mulheres com câncer,
o convívio com o frágil estado da mãe é um dos
Figura 3
fatores mais sofridos e que dificultam seus próprios
Título dado pela criança: O cachorro mais feliz.
processos de ajustamento, pois intensificam suas
inseguranças e medos em relação ao presente e, em
Estória: “Foi assim, esse cachorro, quando ele era especial, ao futuro. Esse processo também pode ter
filhotinho, um cara pegou ele, aí esse cara tinha ocorrido com João.
levado o cachorrinho pra casa dele, aí ele maltra- Outro trecho importante foi: “quando o cachorro
tava muito o cachorro, aí o cachorro cresceu, cresceu, via o menino, ele ficava tão feliz, mas tão feliz, que ele
o dono continuava maltratando o cachorro, aí um ficava pulando, latindo de alegria, aí é, quando ele via
dia o dono ficou tão bravo com o cachorro, que ele o cara, quando passava, ele ficava todo amedrontado”.
abandonou o cachorro na rua. Aí o cachorro tava Nele, João demonstrou perceber o medo e a ansie-
lá, ele tava lá todo machucado, dormindo, e aí veio dade que sua mãe sentia, e ainda sente, toda vez que
um menininho e achou ele. Aí ele pegou o cachorro faz algum exame para verificar se continua em perí-
e falou que ia cuidar bem do cachorro. Aí quando odo de remissão. Segundo a própria Gabriela: “Na
chegou em casa, ele deu bastante comida, bas- semana que precede os exames, eu ainda choro, ainda
tante água pro cachorro, cuidou dele, levou no fico com medo, e aí eles vêm e me acalentam”, trecho
veterinário, aí o menino, toda vez dava comida, em que novamente fica evidente a necessidade de
dava água, cuidava muito bem do cachorro. cuidado com a mãe por parte de João (Carneiro et al.,
Aí quando o cachorro via o menino, ele ficava tão 2020). Por fim, o título dado à estória foi O cachorro
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Figura 5
Título dado pela criança: A aranha do bem
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
quebra de simbiose entre a mãe e a criança, trazendo Em seus desenhos, João demonstrou um senti-
para a relação uma terceira figura, que seria a paterna. mento de ser diferente e se sentir solitário. Além disso,
Relacionado a isso, nota-se o início da elaboração do ele expressou um medo muito grande de “contrair”
complexo de Édipo. ou herdar a doença da mãe, talvez por ter dificuldade
Freud (1905/1996c) afirma que esse conceito evi- em se separar dela, indicando resquícios de uma
dencia a forma que a criança encontra de se colocar no vivência de angústia de separação ainda presente.
cenário da família, fazendo parte da relação dos pais É importante comentar que os dois primeiros dese-
e colocando-se como sujeito no mundo. Para João, nhos foram coloridos e de um tamanho que ocupou
quando a mãe se afastou dele de forma mais prolon- maior parte da folha do que os três posteriores, como
gada a partir do diagnóstico e tratamento do câncer, se João, ao entrar em contato – de forma inconsciente
um caminho pode ter se aberto para a intervenção – com temas que vivenciou (e vivencia) e que são car-
e aproximação paterna, levando à identificação da regados de angústia, fosse perdendo certa vitalidade
criança com essa figura, para que, enfim, se iniciasse e demonstrando maior sensibilidade ao que estava
a elaboração do complexo de Édipo. retratando. A seguir, estão elencados alguns temas
importantes presentes nos conteúdos apresentados
ao longo dos procedimentos utilizados.
Angústia de separação
O nascimento prematuro e a grande necessidade
de atenção de João, juntamente com o grande fluxo
de cuidados e atenção advindos dos pais, fez com que
ele tivesse mais dificuldade em se ver separado dos
genitores como um ser individual, diferente e com
identidade. Essa dificuldade mostrou-se presente
principalmente em relação à genitora, devido à
maior atenção que essa dispôs para ele desde seu
Figura 6 nascimento, e também à simbiose (Mahler et al.,
Título dado pela criança: O desenho da família. 1975/1993) formada entre eles, expressa por Gabriela
nos seguintes trechos da entrevista:
Por fim, foi pedido a João que desenhasse sua
família. Primeiramente, ele desenhou o pai e depois a
“... eu vejo que eu senti um certo abandono,
mãe. Ao se desenhar, não falou nada, e então foi per-
que estava abandonando o João depois que ela
guntado como é estar nessa família. João respondeu
que é bom e que, apesar das brigas com a irmã, gosta (Clara) nasceu, sabe? Eu pensava: meu deus, eu
muito de todos. No desenho, João está ao lado de larguei meu filho bebezinho pra ter outro bebe-
seu pai, e sua irmã ao lado da mãe, demonstrando zinho ... Porque realmente o João ficou com
como, nesse momento, ele possivelmente se sente muito ciúmes, né? Ele teve muito essa questão da
mais próximo emocionalmente do pai, reafirmando chegada de um outro bebê, então eu acabei me
esse importante vínculo fortalecido. desvencilhando um pouco dessa relação com a
No geral, por meio do desenho-estória, foi pos- Clara. Eu tive dificuldade de amamentar, eu não
sível acessar processos inconscientes importantes da conseguia amamentar por muito tempo porque
criança, além do sofrimento psíquico presente, ainda é como eu te falei, eu ficava muito preocupada
relacionado ao câncer e ao adoecimento da mãe. Essa com ele, o sentimento de culpa muito grande, ele
técnica permite o uso da associação livre e a explo- tinha sido prematuro, ele precisava de mim”.
ração de aspectos inconscientes que possibilitam o
acesso à vida psíquica dos indivíduos e, como afirma Nesse trecho da entrevista, fica evidente o con-
Trinca (2020), um setting adequado pode oportunizar, ceito de simbiose, atrelado ao de família simbiótica.
já nos primeiros contatos, a comunicação dos princi- Segundo Mahler et al. (1975/1993), a simbiose faz parte
pais problemas, conflitos e distúrbios psíquicos. do desenvolvimento infantil, sendo caracterizada
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como a fase em que o bebê depende completamente Quando Gabriela descobriu o câncer de mama,
da mãe e, com isso, não difere o eu do não-eu, como a angústia de separação apareceu novamente para ela
se mãe e filho estivessem fundidos em um sujeito só. e João. A situação do adoecimento crônico foi gerando
Quando essa simbiose é mantida por mais tempo do um grande pavor, relacionado à ideia de possível morte,
que o necessário, é possível que tenha se formado algo o que fez com que ambos entrassem em um estado
que Zimerman (2007) chamou de família simbiótica, de luto (Freud, 1917/2010). A partir do diagnóstico,
aquela família em que os membros aparentemente estabeleceu-se um sentimento de perda ou de possi-
se uniram em razão do avassalador amor que um bilidade de perda em Gabriela e seus familiares, que,
sente pelo outro; na realidade, nessa configuração como afirmam Teixeira e Pereira (2011), acabaram
familiar, nenhum dos membros da família consegue tornando-se cosofredores nesse processo, incluindo
realmente se emancipar, no sentido de se sentir um
João. Cada um, de sua forma, passou a ter muito medo
ser único e independente, fazendo com que qualquer
de perder algo importante. Para Gabriela, o luto estava
separação mais prolongada seja vista como uma tra-
ligado à percepção de que havia perdido seu corpo
gédia iminente.
saudável e o domínio de sua saúde e vida (Rossi &
Isso, sem dúvida, acaba por interferir no desen-
Santos, 2003), além da possibilidade de deixar de existir,
volvimento da criança, fazendo com que ela sinta mais
o que consequentemente traria a perda de seus filhos e
dificuldade de se desvencilhar da família, a caminho
marido. Para João, o luto estava ligado à possibilidade
de uma independência sadia. Dessa forma, quando
de perder a mãe, figura de extrema relevância para ele,
Clara nasceu, não somente João, como também a
o que fez com que a angústia aumentasse em níveis
genitora, tiveram muita dificuldade de se separar e se
ver como dois indivíduos independentes. Isso pode elevados. Nesse caso, o nível foi tão alto que ele acabou
ter acontecido também devido à idade de João, na desenvolvendo reações somáticas, como episódios de
época com um ano e meio e que, como disse Gabriela, vômitos e desregulação do intestino, nos momentos
“foi sempre muito mimado e frágil”. Com isso, a mãe em que se sentia apreensivo ou ansioso, além de um
direcionou alguns cuidados de Clara para o pai das medo excessivo de diversos eventos naturais e objetos,
crianças, deixando por exemplo, de amamentar a filha, como a perda dos dentes e trovões (Salvador, 2016).
para que ela tivesse mais tempo com João: “Eu queria Tais reações somáticas sugerem que ele demonstrava
que qualquer pessoa desse mamá pra ela, menos eu. por meio do corpo toda a sua insegurança, ansiedade
Eu não queria ser responsável por aquilo. Porque eu e medo ligadas à dificuldade de lidar com o contexto
queria muito estar próxima do João”. vivenciado.
A partir disso, foi perceptível que, para João,
tornava-se cada vez mais difícil elaborar esse distancia-
Fobia e somatização
mento que deveria acontecer de forma natural para a
Além das questões apresentadas anteriormente,
criança em formação, condição que é estruturante para
Gabriela citou que, mesmo após ter sido constatado um
o ego, por meio da identificação de si como um sujeito
período de remissão da doença, João continuou tendo
separado de sua mãe e outras pessoas, ou seja, alguém
uma preocupação forte de que ele mesmo pudesse
que possui uma identidade (Salvador, 2016).
contrair câncer por machucados leves, dores, quando
Por receio de fazer com que o filho mais velho
apareciam pintas em seu corpo ou pela perda dos dentes:
sofresse devido ao distanciamento, Gabriela acabou
prolongando por muito tempo essa relação simbiótica
com João – ainda que inconscientemente – criando “Ele começou a perder uns dentinhos, com cinco
assim mais dificuldades para o menino se ver como um anos, e ele ficava desesperado, não é como aquela
ser separado e parcialmente independente dela. Nesse ansiedade que a criança tem de perder o dente.
sentido, a relação dos dois se tornou uma relação de Pra ele, perder um dente era como se ele fosse
família simbiótica (Zimerman, 2007), na qual João não também ter a mesma doença que eu... E até hoje
conseguia se ver separado da mãe e vice-versa. Dessa ele fala isso, “mamãe, tem um caroço aqui, eu
forma, qualquer tipo de demonstração de separação to com câncer! Será que eu tô com câncer?”. E aí
mais prolongada, mesmo que momentânea, causava até hoje ele é assim, qualquer coisa que ele vê na
nos dois uma sensação de desamparo. pele dele, que ele vê no pescoço, qualquer coisa,
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
qualquer mancha, qualquer pinta, ele entra em seu novo dono fez a mesma coisa que o anterior, e na
paranoia, ele já chora, fica nervoso”. história do girassol que quando o girassol morreu,
nasceu outro que fez tudo igual ao anterior. Com isso,
A partir desse trecho, pode-se entender que o pode-se dizer que João expressou o medo da doença
medo exacerbado de perder os dentes e contrair a se repetir, tanto nele quanto na mãe, além do medo
doença poderiam representar o medo de se separar da de perder a genitora novamente, quer fosse psiqui-
mãe novamente, visto que, em seu relato, a genitora camente, emocionalmente ou fisicamente. Segundo
contou que, de certa forma, deixou os filhos de lado Freud (1914/1996b), a repetição acontece quando a
quando teve câncer, para olhar e cuidar de si. Nesse resistência envolvendo um fenômeno está demasia-
sentido, é possível observar vários fatores que con- damente grande, fazendo com que o recordar seja
tribuíram para que os relatos citados ocorressem: 1) substituído pelo atuar, ou seja, repetir aquela dada
a simbiose, mantida de forma inconsciente pela mãe, situação. Nesse sentido, por meio do esquecimento,
ainda presente à época que ela adoeceu (Mahler et al., João demonstrou sua resistência em recordar e ela-
1975/1993); 2) a angústia de separação, que foi mal borar o adoecimento materno, quando disse que não
elaborada pela criança e dessa forma mantida; e 3) e o se lembrava de quase nada da época em que sua
estado de luto instaurado (Freud, 1917/2010). mãe adoeceu, e ao repetir o adoecimento, por meio
Assim, é compreensível que João tenha tido muita de seus sintomas. Ou seja, de forma simbólica, por
dificuldade em elaborar o distanciamento repentino meio dos pensamentos quanto a também estar com
por parte da mãe em decorrência do câncer, pois não a doença, João repete o diagnóstico de câncer da mãe,
havia experienciado isso antes. Além disso, por ter pas- dessa vez em seu corpo e de forma somática, ou seja,
sado por um momento de muito sofrimento e medo a partir dos sintomas corporais, ele coloca para fora
durante o adoecimento, João passou a ter medo de que do self aquilo que está dentro, mas que não consegue
a doença voltasse na mãe ou nele e que com isso, nova- elaborar (Winnicott 1966/1994).
mente e definitivamente, perdesse a genitora, pois ao
se separar dela de forma emocional tão intensa ele já A fantasia do não dito
vivenciou dentro de si um sentimento de perda. Quando Gabriela e seu marido contaram sobre
Apesar do termo perda normalmente ser atribuído o diagnóstico de câncer para os filhos, nunca nome-
a um acontecimento permanente e o termo separação aram ou deram informações necessárias e claras para
ser mais relacionado a situações momentâneas, para que as crianças compreendessem o adoecimento em
João, aquela separação, mesmo que momentânea, sua totalidade, incluindo como acontece e como seria
foi vivenciada como uma perda definitiva, pois como o tratamento. É possível ligar esse acontecimento ao
ele nunca havia se distanciado de sua genitora, ao fato de ser comum que, ao receber um diagnóstico de
perceber esse movimento por parte dela de forma tão doença crônica, a pessoa passe por conflitos e dúvidas
repentina, pensou que a estava perdendo definitiva- em relação a diversos aspectos de sua vida. No caso de
mente (Salvador, 2016). Como a ideia de perda e morte Gabriela, foi perceptível, a partir do seu discurso, que
da mãe era inconcebível para ele, ela continuou cons- isso de fato ocorreu, inclusive em relação aos filhos,
ciente, porém enfraquecida. A partir disso, de acordo pois seu medo de prejudicá-los ou não poder mais
com a teoria freudiana, a representação da ideia de estar em sua vida contribuiu para que ela contasse
doença materna e perda da mãe tornou-se intolerável, sobre seu diagnóstico de forma mais velada, talvez
fazendo com que o afeto dessa ideia se desgarrasse, também por pensar que eles não tivessem idade sufi-
sendo direcionado para outras noções, como a perda ciente para entender o que estava acontecendo com
dos dentes e os trovões. Como o afeto não pertencia a ela (Castro & Job, 2010).
essas ideias, a fobia se apresentou de forma tão forte Quando as crianças viam a mãe chorando, per-
que gerou também reações somáticas em João, como guntavam o motivo, e a explicação que recebiam era
forma de sinalizar que a criança não estava conse- que o “dodói do peito” estava doendo A partir dessa
guindo elaborar algo (Freud, 1894/1996a). informação, quando João utilizava a fantasia na tenta-
No procedimento clínico, a criança demonstrou tiva de elaborar as informações recebidas, ele acabava
esses sentimentos por meio dos desenhos do barco relacionando o câncer a um machucado, um “dodói”
e do girassol. No desenho do barco, João contou que que faz com que a pessoa chore de tanta dor. Dessa
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forma, ele passou a enxergar a forma como se contrai idade da criança. Além disso, este trabalho permite que
a doença de maneira equivocada, relacionando-a a se perceba a importância de se atentar não somente
qualquer tipo de machucado, como um joelho ralado à pessoa adoecida, mas também aos que estão à sua
ou uma dor no ombro. Considerando esse aspecto, volta. Como ser em formação, a criança é ainda mais
foi possível observar que, depois de passar por diversos
sensível aos acontecimentos da vida, e possui recursos
momentos de conflito e angústia relacionados à mãe
limitados para enfrentar situações novas e difíceis.
e ao medo extremo de perdê-la, além de seu distan-
Por isso, torna-se essencial que ela conte com suporte
ciamento, visto por João como repentino, o fantasiar
deixou de estar relacionado à criatividade e à brin- psicológico adequado ao se deparar com o adoeci-
cadeira e passou a paralisá-lo, a deixá-lo assustado e mento crônico de familiares próximos a si.
receoso. Nesse sentido, como não foi explicado corre- Nessa direção, este estudo é de extrema impor-
tamente do que se tratava, a criança passou a pensar tância, pois, além de evidenciar a capacidade que as
que qualquer machucado que tivesse ou uma marca crianças têm de lidar com conflitos da vida, ressalta
diferente no corpo poderiam ocasionar também nele a importância de se atentar a sua saúde psíquica,
um câncer, pois não tinha recursos para compreender
a fim de preservar seu desenvolvimento saudável e
por completo a situação sozinho (Barros, 2011).
pleno, sem deixar de lado a importância do brincar.
Winnicott (1975, p. 82) diz: “É bom recordar que
Considerações finais o brincar é por si mesmo uma terapia. Conseguir
A partir dos resultados obtidos neste estudo, foi
que as crianças possam brincar é em si mesmo
possível perceber que a visão da criança formou-se
uma psicoterapia que possui aplicação imediata e
a partir do que foi dito e demonstrado para ela. Esse
universal”.
fato parece indicar que, por meio das informações
fornecidas e também das não ditas, a criança utiliza Assim, mostra-se essencial que existam mais
a fantasia como recurso para elaborar o que lhe foi pesquisas acerca desse tema, para tornar ainda mais
informado, juntamente com as experiências que claro quais os impactos que o adoecimento crônico
vivencia. Mesmo quando não tem as informações parental pode causar na vida da criança, possibili-
necessárias para compreender por completo sua tando novas formas de lidar e abordar esse assunto,
situação, a criança usa a fantasia para conseguir lidar tanto com os pais como com as crianças. Para proteger
com ela. No entanto, é mais difícil fantasiar e elaborar
e favorecer o desenvolvimento integral infantil, faz-se
a partir de uma realidade que a criança desconhece
imprescindível desenvolver modos de:
ou não conhece por completo, o que pode fazer com
que a fantasia acabe sendo nociva, gerando irreali-
dades causadoras de ansiedade e angústia. Sendo Oferecermos à criança recursos que a ajudem a
assim, é importante se atentar às fantasias envolvidas enfrentar da maneira mais sadia possível o que
no processo de elaboração do adoecimento, a fim de não pode ser evitado; a proporcionar-lhe recur-
que se possa apreender a compreensão da criança sos que lhe facilitem a percepção da experiência
desse tema. e a dar-lhe o apoio que lhe permita expressar de
A angústia, diante do sentimento de possível perda forma segura e de acordo com seu nível de desen-
de um ente tão querido e importante como a mãe, volvimento, as emoções decorrentes da mesma
parece inevitável. Mesmo aquela criança que recebe,
(Neira Huerta, 1983, p. 28).
de forma lúdica e adequada, todas as informações
necessárias para entender a situação, sentirá algum
Por fim, identificou-se como limitação deste
tipo de angústia em relação ao diagnóstico de doença
crônica materna. Nesse contexto, é normal que se estudo o fato de não ter sido realizada nenhuma
apresente a angústia de separação. Todavia, esta pode entrevista com o pai da criança-participante, a fim
ser mais atenuada do que a observada neste estudo, de obter outro ponto de vista e aprofundamento da
dependendo do grau de simbiose com a genitora e da realidade investigada.
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
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Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). A Compreensão da Criança sobre o Câncer Materno.
Recebido 17/10/2021
Reformulado 25/01/2022
Aceito 03/03/2022
Received 10/17/2021
Reformulated 01/25/2022
Approved 03/03/2022
Recibido 17/10/2021
Reformulado 25/01/2022
Aceptado 03/03/2022
Como citar: Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). Câncer Materno: A Compreensão da Criança e
suas Representações. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416
How to cite: Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). Maternal Cancer: The Child’s Understanding and
Its Representations. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416
Cómo citar: Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). Cáncer Materno: Comprensión del Niño y Sus
Representaciones. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416
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