um malandro chamado Baiaco

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Vol.12 N°1(2024.1)

Samba é que nem


passarinho, é de quem
pegar primeiro: uma
discussão a respeito das
atividades de um malandro
chamado Baiaco
89 Gladir da Silva Cabral1
Lucas Garcia Nunes2

Introdução
O título do trabalho faz alusão a uma frase dita por Sinhô3: “Samba é que
nem passarinho, é de quem pegar primeiro” (MATOS, 1986, p. 37) e tem a
ver com a lógica capitalista da produção cultural e da propriedade
intelectual na primeira metade do século XX. No cenário de troca, venda e

1
Gladir da Silva Cabral é Doutor e Mestre em Literatura Inglesa pelo Programa de Pós-
Graduação em Literatura Inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGI –
UFSC). Professor do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Criciúma (SC). E-mail: gla@unesc.net
e gladirc@gmail.com ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9695-9504
2
Lucas Garcia Nunes é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
(PPGLIT - UFSC). Mestre em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal
Fluminense. E-mail: quincasavelino@gmail.com ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-
8082-6651
3
José Barbosa da Silva (1888-1930): músico, compositor e pianista. Ficou conhecido como
“Rei do Samba”.

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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apropriação de sambas, existia a atividade do mediador. Durante as décadas


de 1920 e 1930, o bairro do Estácio de Sá, na cidade do Rio de Janeiro, foi
palco de algumas mudanças do samba urbano que, ao longo do tempo,
tornaram-se fundamentais na produção da música popular brasileira. Nesse
período, a perseguição ao samba e a tudo que o envolvia (batuque, canto e
dança) foi diminuindo, muito embora não tenha sido por completo
dissolvida.
O samba, expressão da cultura afro-brasileira, com o tempo, ganhou
espaço por conta da busca de uma nova estética artística influenciada pelo
grupo de modernistas, principalmente em São Paulo, e graças à nova
tecnologia de gravação elétrica que chegou ao Brasil no final da década de
1920, além dos programas de rádio, que buscavam novas composições
(FRANCESCHI, 2010). O samba passou, então, de manifestação perseguida
a expressão e símbolo da identidade cultural brasileira (MOURA, 2004).
Alguns dos sambistas que faziam parte do grupo do Estácio foram:
Aurélio Gomes (1899-1936); Alcebíades Maia Barcellos, o Bide (1902-
1975); Edgard Marcellino dos Passos, o Mano Edgard (1896-1931);
90 Francelino Ferreira Godinho (1909-1953); Ismael Silva (1905-1978); Julio
dos Santos (1908-?), o Julinho Violão; Nilton Bastos (1899-1931); o próprio
Oswaldo Caetano Vasques, o Baiaco (1901-1935); Rubem Maia Barcellos,
o Mano Rubem (1905-1927) e Sylvio Fernandes Lima, o Brancura (1900-
1943), brasileiros, racializados, nascidos aproximadamente uma década
após a abolição da escravatura no Brasil.
Esses artistas introduziram novos instrumentos musicais (percussão),
inovaram na maneira de tocá-los, na estrutura melódica (WISNIK, 2017) e
incluíram na temática dos sambas a malandragem e a relação com a mulher,
muitas vezes reproduzindo a violência ou a exploração, já que no coração do
bairro, entre o Canal do Mangue e o Morro de São Carlos, havia aumentado
o movimento da zona do baixo meretrício em função das reformas
urbanísticas adotadas desde o início dos anos 1900 e as remoções realizadas
nas áreas centrais da cidade. Além do mais, será destacada ao longo do texto
a consciência do grupo de sambistas e malandros em relação à exploração
do corpo do homem negro, consequência do racismo estrutural brasileiro, e

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as estratégias que os sambistas encontraram para poder se esquivar do


sistema e (re)existir.
Nesse período, a venda e troca de sambas era uma prática comum,
muito por conta do direito autoral e da produção intelectual não estarem
bem definidos, assim como a organização do recolhimento. Existe a versão
de que Baiaco não compunha e era “ladrão de sambas”, segundo diferentes
depoimentos de antigos sambistas, como o de Bide, por exemplo. Por outro
lado, Baiaco defendeu a autoria do “Arrasta a Sandália” em uma entrevista
para o jornal “O Globo” em dezembro de 1932, como veremos. Não será
feito nenhum juízo a respeito da qualidade de compositor de Baiaco, o que
faremos é buscar responder uma questão apresentada pelo jornalista e
pesquisador Sérgio Cabral: “Não se sabe que métodos Baiaco usou para
entrar na parceria do samba” (CABRAL, 1996, p. 58). Referindo-se a
Baiaco como parceiro de um sambista portelense, que será apresentado com
mais detalhes ao longo do texto.
Oswaldo Caetano Vasques, nascido em 2/6/1901 no bairro de
Botafogo, ficou conhecido como Baiaco, homem racializado, órfão de pai e
91 mãe aos 9 anos de idade, em 1911, sendo o segundo filho e tendo ao todo
quatro irmãs. Foi batizado com um ano de idade na Igreja de São João
Batista da Lagoa, segundo o assento de batismo, tendo como padrinho seu
avô Abel Caetano Vasques, que faleceu em 1914. Baiaco tinha então 13
anos de idade.
Da infância e adolescência de Baiaco junto às suas irmãs, pouco se sabe. Na
juventude, há uma quantidade considerável de documentos policiais
(CUNHA, 2015) de entradas na Casa de Detenção e Correção, de notícias
de jornal e inquéritos policiais, relevantes para compreender o contexto do
sambista, que viveu até o ano de 1935, sem se casar, sem deixar filhos e sem
deixar bens, porém, com nove sambas registrados em seu nome.
São eles, em ordem cronológica: “Tenho uma nega” (disco número
65595-2), lançado pela Columbia em dezembro de 1932; “Vejo lágrima”,
assinado junto com Ventura (disco número 22165-B), lançado em dezembro
de 1932 pela gravadora Columbia. No mesmo disco, “Arrasta a sandália”,
assinado junto com Aurélio Gomes. No ano de 1933, Baiaco aparece como
autor de quatro sambas, gravações para dois discos de uma música em cada

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lado. São elas: “Fita os meus olhos”, em que o nome de Baiaco aparece
junto ao de Cartola4 (1908-1980), lançado pela Columbia (disco número
22221-B). Do outro lado do disco, um samba assinado por Bucy e Baiaco:
“Por que será?”, ambos interpretados por Arnaldo Amaral. E no disco da
gravadora Columbia (número 22221-B) encontram-se os sambas “Rindo e
chorando”, parceria com Bucy Moreira, e “Se passar da hora”, ambos na
voz do cantor Arnaldo Amaral, com o arranjo e acompanhamento do Grupo
de Pixinguinha. Em 1934, o nome de Baiaco aparece em duas composições,
em diferentes discos: “Quem mandou Iaiá” (disco número 22262-B),
parceria com Benedito Lacerda, pela gravadora Columbia, na voz de
Arnaldo Amaral, e “Conversa puxa conversa”, assinando com João dos
Santos, pela gravadora Victor (disco número 33800).
Analisar os documentos que envolvem o malandro Baiaco é
entender, também, uma certa dificuldade, haja vista que os registros de
narrativas na primeira pessoa, ou seja, Baiaco falando de si mesmo, são
raros. Nesse sentido, a pesquisa aqui apresentada envolve um trabalho de
investigação e inúmeras consultas em arquivos e bases de dados. As
92 informações a respeito de Baiaco estão espalhadas em diferentes obras da
música brasileira e em depoimentos de muitos sambistas e jornalistas: Russo
do Pandeiro, Bucy Moreira, Cartola, Bide e Moreira da Silva, entre outros.
O trabalho de reunir todas essas referências não será apresentado
aqui, já que o que se pretende é identificar, dentro da discussão, o samba
como manifestação artística de resistência, além de enfatizar a estratégia de
trabalhar com a narrativa dos próprios sambistas, por isso os sambas com o
nome de Baiaco são requisitados para sustentar a proposta de discutir o tema
da autoria.
O objetivo deste texto é iniciar uma discussão a respeito da
propriedade intelectual das décadas de 1920 e 1930, considerando,
especialmente, a produção dos sambistas, malandros e entusiastas do
Estácio de Sá ligados à organização carnavalesca “Deixa Falar”. Este debate
é sustentado em algumas obras, como, por exemplo, em Escolas de samba
do Rio de Janeiro, de Sérgio Cabral (1996), e Samba de sambar do Estácio

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Angenor de Oliveira: sambista, compositor e um dos fundadores da Escola de Samba da
Mangueira.

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de 1928 a 1931, de Humberto Franceschi (2010). Uma discussão que é


particularmente complexa porque envolve o fenômeno do racismo
estrutural, as condições de trabalho e a própria ideia de cidadania, que é
muito restrita no caso dos sambistas do Estácio. Há que se levar em conta,
evidentemente, o contexto sociocultural e histórico em que vivia Baiaco,
onde a produção do samba e o recolhimento de direitos autorais não
estavam bem-organizados e era comum a troca, venda e “furto” de letras e
melodias. Inclusive, o próprio Francisco Alves, cantor branco, comprou e se
apropriou de sambas alheios, sobretudo dos compositores e sambistas do
Estácio (DIDIER, 2022).
Baiaco teve seu nome vinculado aos discos como autor nos últimos
quatro anos de sua vida (1932, 1933 e 1934), trabalhando junto a Benedito
Lacerda e ao grupo Gente do Morro, muito embora seu nome não esteja
registrado como componente do grupo. Baiaco também fez parte do grupo
de músicos da orquestra de gravações para a Columbia e, no final da vida,
da orquestra Lute-Bateria do Copacabana Palace, dirigida por Simon
Boutman, tocando pandeiro. Porém, em paralelo ao trabalho como músico,
93 também era cafetão na Zona do Mangue e figura conhecida nas delegacias,
principalmente a do 9º Distrito Policial, que ficava localizada na Rua
Senador Pompeu, no Estácio. Nos inquéritos policiais do Arquivo Nacional
(15 documentos), em dois deles Baiaco é a vítima. No restante, nove
aparecem com a prerrogativa do artigo 399 – vadiagem, incluindo o jogo de
azar e ainda um por tentativa de estupro e agressão (CUNHA, 2015).
A Lei de Vadiagem, artigo 399, do antigo Código Penal de 1890,
pode ser considerada um dos grandes resquícios de um Brasil colonial que
se utilizou da exploração e do sistema racista para fomentar o poder e o
controle, encadeando a manutenção sistematizada pelas pessoas brancas,
principalmente o homem branco. A questão do encarceramento das minorias
no Brasil é reflexo de inúmeros motivos, dentre eles, destaca-se a ausência
da responsabilidade social com as pessoas encarceradas (BORGES, 2018).
E Oswaldo Caetano Vasques é um bom exemplo.
Isso nos leva a compreender o samba como manifestação de
expressão, sensibilidade e resistência que é primordial para a discussão, em
outras palavras, é determinante conceber o samba como um ato político

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(FILHO; ISNARD, 2023; LOPES, 2008; SODRÉ, 1998) uma vez que
contrapõe ao que em geral é vinculado enquanto às classificações rasas que
dizem respeito a produção subjetiva dos malandros, sem refletir o contexto
da obra e da vida. Dessa forma, é preciso incluir a força e a influência da
cultura afro-brasileira e a capacidade de expressão e estratégias para criticar
a restrição de acessos ao corpo das pessoas negras (AZEVEDO, 2018).
A força da produção poética e literária do malandro atravessou
décadas e sustentou a estrutura das letras dos sambas. Nesse sentido, quando
o malandro encontra no samba um suporte para sua credencial,
principalmente vislumbrando o aspecto criativo e a sua capacidade subjetiva
de relatar um tipo de realidade verossímil, tem-se uma irrupção
impressionante, pois o tipo de produção intelectual desses sambistas que
foram marginalizados se depara com um novo acesso e manifesta o prestígio
que faz parte do cenário que vai além dos cubículos úmidos e insalubre das
detenções (BRETAS, 1997).
O malandro é aplaudido pela sua produção, que compõe, toca e
canta. Não existe uma medida que consiga mensurar a força do samba,
94 como expressão da subjetividade, e a força do malandro, como prática diária
de sobrevivência. Essa expressão, muitas vezes em forma de crônicas, foi
vendida ou negociada como valor de troca. A partir da gravação de “Pelo
Telefone” (1917), a comercialização adentra o universo do samba.
É dentro do samba que se constrói uma mitologia da
malandragem, e é a mitologia que nos interessa, pois é ela que
pode nos revelar algo mais amplo e duradouro do que registros e
empíricos, fugazes, dissolvidos na vida da cidade. Foi no samba
que malandro e sambista elegeram, criaram para si uma
identidade. Foi aí que se constituiu a metáfora da malandragem
como signo de uma cultura que sempre se viu relegada à
margem da sociedade, e todavia continuou insistindo em mostrar
a sua cara. (MATOS, 1986, p. 36)

A ideia, portanto, não é a salvaguarda da malandragem, e sim


compreender que a manifestação dos malandros está diretamente ligada a
um sistema excludente e desigual, haja vista a própria estruturação popular
da região do bairro do Estácio de Sá (OLIVEIRA FILHO, 2002).
Diante da condição de trabalho instituída pelo sistema capitalista,
condicionando o corpo das pessoas negras a trabalhos relacionados ao uso
da força ou ao serviço (ALMEIDA, 2019), tem-se o destaque para a

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produção de sambas, propriedade intelectual dos sambistas do Estácio, além


de uma trama de vendas, trocas e apropriações de letras e melodias de
sambas. Isso diz respeito, sem sombra de dúvidas, à ideia de trabalho
reivindicada pelos sambistas e compositores do Estácio e a prática do
malandro de driblar essa imposição e se esquivar, produzindo o samba como
trabalho e “ganha pão”.
Outro dado histórico interessante é o projeto democrático no Brasil
pela ótica do sistema de eleições. No período da Velha República (1889-
1930), uma pequena parcela da população votava, não podendo participar as
pessoas que não sabiam ler e nem escrever, além das mulheres, o que
demonstra e alerta para o cenário das desigualdades impetradas pelo sistema
brasileiro.
Dentro da ideia de coletividade da cultura afro-brasileira, a discussão
a respeito de composições e compositores encontra outro cenário, porque a
criação coletiva é parte da produção de sentidos e subjetividade. A ideia do
coletivo é, portanto, fundamental para a análise dos sambistas do Estácio de
Sá e do conjunto de obras que deixaram no período analisado. Trataremos,
95 dessa forma, o samba como resistência e a produção dos sambas como
expressão subjetiva, pois
As letras de sambas por muito tempo constituíram o principal,
senão o único, documento verbal que as classes populares do
Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente.
Através delas, vários segmentos da população habitualmente
relegados ao silêncio histórico impuseram sua linguagem e sua
mensagem a ouvidos frequentemente cerrados à voz do povo.
(MATOS, 1982, p. 22)

O que o grupo de sambistas produz é parte de um cotidiano muito próprio e


particular de um bairro dinâmico que não estava no centro da cidade, porém
também não era considerado um subúrbio afastado, na década de 1920,
dadas as mudanças que o corpo da cidade sofria.

Nas letras dos sambas [...] o que se diz é o que se vive, o que se
faz. Não se entenda com isso que haja uma correspondência
biunívoca entre o sentido do texto e as ações na vida real, mas
que as palavras têm no samba tradicional uma operacionalidade
com relação ao mundo, seja na insinuação de uma filosofia da
prática cotidiana, seja no comentário social, seja na exaltação de
fatos imaginários, porém inteligíveis no universo do autor e do
ouvinte. (SODRÉ, 1998, p. 45)

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Essa produção, portanto, é um tipo de estratégia ao modo como os


acessos são organizados, restringidos e por onde as pessoas forçadas às
margens conseguem se expressar e reafirmar um lugar próprio na cidade,
neste caso no Rio de Janeiro, e mais especificamente através do samba
urbano, o que fica evidente na concepção apresentada por Muniz Sodré.
Tendo em vista que Baiaco que assumiu a autoria de “Arrasta a
Sandália”, como veremos adiante, o que se pode considerar é que seu nome
como coautor estará vinculado aos sambas que, dentro do conjunto de
composições do grupo do Estácio, seguem um tipo de estrutura e temática,
um samba batucado com letras que falam a respeito da relação com a
mulher e do amor.

A ópera do malandro
Baiaco andava sempre elegante e com uma conversa que convencia
qualquer um, o malandro integrou a organização carnavalesca Deixa Falar
(CABRAL, 1996, p. 58). Tocava percussão e bateria. Diante da versão de
que Baiaco não compunha sambas, chama a atenção seu estratagema,
96 justamente por estar envolvido na ideia de coletivo, influência da cultura
afro-brasileira, em contraponto à noção capitalista de propriedade, e,
também, em razão da falta de uma organização forte que buscasse gerir as
composições e distribuir de maneira justa os direitos das autorias, de
articular gravações e projetos musicais em troca de parceria nos sambas
gravados. Ademais, o contexto de Baiaco e seus acessos são importantes
para a discussão.
O malandro passa despercebido, tem uma vivência particular das
ruas, sabe gingar e dançar, incorporou ao longo do tempo um mapa da
cidade. Tem sobre ele um domínio emblemático das ruas em sua mente. A
conduta do malandro é concebida na postura do corpo. O malandro do
samba tem a influência dos antigos capoeiras do início do século XX
(FRANCESCHI, 2010). O malandro do Estácio de Sá tem uma
característica essencial – o trânsito. Sabe como proceder nos espaços e
consegue contornar os trajetos para poder entrar nos lugares.
Independentemente do motivo, o deslocamento do corpo do malandro
impulsiona a circulação de sambas pela cidade, seja pela razão de uma festa

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em Oswaldo Cruz, ou por fuga da 4ª Delegacia Auxiliar de Polícia que


investigava os vadios e gatunos; os malandros do Estácio quando
procurados pelos investigadores e policiais iam para outros bairros da
cidade para se livrarem da detenção e dos inquéritos policiais.
A figura do malandro, incorporada por Baiaco e seus companheiros
do Estácio de Sá com muita elegância, diga-se de passagem, também nos
permite compreender que esses homens entendem as disputas e, inclusive,
reproduzem violências, principalmente contra as mulheres que viviam na
Zona do Mangue5, na região de prostituição da cidade. Nessa área, desde o
início da década de 1920, foi planejado pela polícia o controle das
prostitutas e a concentração de cabarés e prostíbulos, por conta dos projetos
de cidade que buscavam “limpar” das áreas centrais a pobreza, a
prostituição, fomentando uma estética parecida com a da Europa de uma
“civilização” educada e desenvolvida (CAULFIEL, 2000, p. 45).
É na Zona do Mangue que os malandros sambistas descobrem uma
maneira “fácil” de ganhar dinheiro. Além do jogo “do monte” (cartas), jogo
do bicho e do jogo da “chapinha”, esses malandros faziam a “segurança”
97 das mulheres, que consistia em explorar as prostitutas, reproduzindo um tipo
de violência, evitando que fossem agredidas ou não pagas pelo trabalho
realizado, por isso portavam navalhas nos bolsos do paletó e, uma vez ou
outra, eram pegos por policiais em rondas diurnas ou noturnas pelas ruas da
Zona do Mangue. Dentre os malandros presos estava Baiaco, tem-se registro
em 1927 de um ofício enviado pelo delegado do 4º Distrito Policial:

Excelentíssimo Senhor Doutor do 21º Distrito Policial. Faço-vos


apresentar, para os devidos fins, o ladrão Oswaldo Caetano
Vasques, vulgo “Baiaco”, que figura aqui registrado com 22
entradas como vadio e ladrão conhecido, além de uma Detenção
pelo artigo 399 do Código Penal, o qual responde por um furto
ocorrido neste Distrito. Pedro de Oliveira Ribeiro. (ARQUIVO
NACIONAL, 1927, p. 7)

5
Em um dos inquéritos policiais, Baiaco responde a um processo por estupro em 1927. O
processo possui 26 páginas e, ao que tudo indica, Baiaco não foi condenado por falta de
provas. O tema da violência contra as mulheres é frequente nas páginas de jornais da
referida Zona do Mangue. Evidentemente, a violência contra a mulher está presente na
história do Brasil e precisa acabar. A contextualização pontual da vida de Baiaco não
significa a defesa dos atos de violência reproduzidos pelo sambista.

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Reiteramos que a ideia do texto não é advogar em defesa de Baiaco,


e sim destacar o cenário do malandro e traçar uma análise crítica, sobretudo,
para compreender que o sistema sociocultural da época em evidência é
excludente, desigual e violento com os sambistas do Estácio. Além disso, as
disputas que existem não justificam as violências, inclusive essas indicam a
posição das mulheres dentro do sistema no qual eram agredidas e
exploradas. Em outras palavras, marca-se a reprodução da violência,
denunciando essa prática contra as mulheres e a exploração que os
malandros assumiram como estratégia. Outra estratégia encontrada por
Baiaco para se manter circulando entre as gravações e rádios era a
divulgação dos sambas produzidos no Estácio.
Dentro desse jogo de autorias, uma frase ficou conhecida no meio:
“Samba é como passarinho: é de quem pegar primeiro”, dita por Sinhô. “O
passarinho é de todos, não é de ninguém, é de quem o agarrar. Abre-se, para
cantores e compositores, como para a indústria fonográfica, o filão
comercial da música popular” (MATOS, 1986, p. 37). Nessa perspectiva de
Sinhô, pode-se afirmar que o proceder do malandro se adequa e dribla as
98 forças que estão contra ele, contra seu corpo, sua cidadania e suas
expressões subjetivas, haja vista que o próprio samba foi perseguido, assim
como a busca por “vadios” e sambistas (CUNHA, 2015).
Há dois tipos de malandros, o primeiro que nega o “batente” e a
exploração do seu corpo ou, ao menos, vislumbra não ser explorado. Essa
exploração está vinculada ao sistema capitalista e ao colonialismo. Ele
busca outras formas de ganhar a vida, dentre elas com apostas de jogo
(chapinha ou carteado), explorando as mulheres na zona de prostituição e
uma nova maneira que chega ao bairro do Estácio no final da década de
1920 e que se espalha pela cidade: a venda de sambas. O outro malandro é o
que não deixava de trabalhar, porém vivia na boemia e na orgia, como, por
exemplo, Rubem Barcellos (CAVALCANTI, 1930), o Mano Rubem,
considerado o “modernista do samba”, irmão de Bide. Mano Rubem
trabalhava de dia como sapateiro e à noite perambulava pelas ruas do
Mangue cantando samba, compondo e se relacionando com as mulheres. Ou
seja, muito longe do malandro ser um vagabundo.

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O vendedor de cantos de pássaros


Com o marco da gravação e o lançamento, em fevereiro de 1928, de “A
malandragem”, composição de Alcebíades Barcellos, o Bide do Estácio, a
venda de sambas passa a ser algo normal nesse período, juntamente aos
acordos com os cantores brancos, destaque para Francisco Alves e Mário
Reis, entre os que mais gravaram os sambas compostos pelos malandros do
Estácio. Nesse período, sem a sistematização dos direitos autorais, muito
por conta do advento tecnológico que envolvia as transmissões de rádio e as
gravações em discos de 78 rpm não estarem bem fixadas, o retorno
financeiro para o compositor era quase mínimo. Portanto, não existia uma
organização a respeito da propriedade intelectual da música, com a
desarticulação das sociedades de autores, as canções não eram registradas
em nome dos respectivos autores.
A respeito desse tema, Muniz Sodré (1998) adverte que, por meio da
compra e venda de autorias, os sambistas negros passaram a ter um outro
acesso, com destaque e algum prestígio por estarem vinculados de alguma
forma ao rádio e às gravadoras. Conseguem, inclusive, não fazer força com
99 o corpo, comparado aos trabalhos que o capitalismo e o racismo concedeu a
esses homens, como o trabalho pesado no cais do porto, por exemplo. Desse
modo,

A comercialização do samba e a profissionalização do músico


negro se faziam, evidentemente, no interior de um modo de
produção, cujos imperativos ideológicos fazem do indivíduo um
objeto privilegiado, procurando abolir seus laços com o campo
social como um integrado. Compositor se define como aquele
que organiza sons segundo um projeto de produção
individualizado. Em princípio, o músico negro teria de
individualizar-se, abrir mão de seus fundamentos cometivistas
(ou comunalistas) para poder ser captado como de trabalho
musical. (SODRÉ, 1998, p. 32)

De um dia para outro, o que era incerto a respeito da produção


daquele grupo de sambistas despertou interesse, dado que os cantores
brancos que compravam os sambas não tinham a capacidade poética e
literária que possuíam os sambistas do Estácio. Entendendo esse sistema e o
seu funcionamento, os malandros sambistas se utilizavam dos recursos que
possuíam, além do trânsito, a valentia e a elegância. E eis que os malandros
entenderam muito rapidamente a lógica e os processos da indústria cultural.

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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Esse fenômeno é descrito por Bide em entrevista a Juarez Barroso após ser
questionado sobre os acessos às gravações:

Ah isto havia. Os cantores de nome perguntavam: ‘O que é que


você tem pra mim? Aparece lá na rádio, a tantas horas.’ Se
interessavam em arranjar acompanhamento para escutar a gente.
(BARROSO, 1975, p. 47)

O depoimento de Bide diz respeito ao modo como funcionam as


articulações da produção musical do samba, em ascensão. E foi exatamente
o que compreendeu o malandro que tinha, não somente o faro musical, mas
também o acesso tanto ao centro da cidade, nas estações de rádio e
gravadoras quanto ao próprio morro.
Baiaco, no início na década de 1930, circulava pela cidade buscando
oportunidades e “dando volta nos otários”. Uma das tarefas que assumiu foi
uma espécie de agenciador do cantor Francisco Alves, ou seja, Baiaco era
responsável pela compra de sambas devido a sua experiência musical,
escutando e negociando os sambas. Foi o que relatou Carlos Cachaça6
(1902-1999) em entrevista ao jornalista Sérgio Cabral: “Na época da maré
100 braba, a gente saía por aí para vender samba. Baiaco era o secretário de
Francisco Alves e era também o encarregado de comprar os sambas.”
(CABRAL, 1996, p. 299).
Era preciso destreza e conhecimento musical para comprar um
samba, e Baiaco o fazia. Contudo, a hipótese que se cria a partir dessas
informações e depoimentos é que Baiaco fazia concessões aos compositores
dos sambas para encontrar meios de gravá-los, de maneira que seu nome
entrasse como compositor. Prática que o cantor Francisco Alves fez com
inúmeros compositores, dentre os quais Bide, Ismael Silva e Nilton Bastos,
integrantes do grupo de sambistas do Estácio (CARVALHO, 1980, p. 42).
Dos nove sambas com o nome de Baiaco, seis deles foram gravados
juntos, ou seja, no mesmo disco. Os discos de 78 rpm, tecnologia da época,
abrigava, em cada lado, uma única canção. Dos integrantes do Estácio,
Ismael e Nilton Bastos já tinham emplacado suas composições em um único
disco, assim como Brancura em junho de 1929 (disco 10399) pela gravadora

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Carlos Moreira de Castro: sambista, compositor e um dos fundadores da Escola de Samba
da Mangueira.

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Odeon. Os sambas do Estácio ecoaram ainda mais com as gravações do


grupo Gente do Morro para a gravadora Brunswick, a partir do primeiro
semestre de 1930.
O primeiro disco de Baiaco, lançado em 1932, foi gravado com
“Vejo Lágrimas”, do compositor e cantor portelense Ventura7 (1908-1974),
e do outro lado a canção de mais sucesso com autoria de Baiaco: “Arrasta a
sandália”, ambos gravados pela voz de um malandro ainda pouco conhecido
chamado Moreira da Silva (1902-2000) com acompanhamento do grupo
Gente do Morro.
Sérgio Cabral, em sua obra, comenta: “Não se sabe que métodos
Baiaco usou para entrar na parceria do samba” (CABRAL, 1996, p. 61),
porém Cabral não se atenta para um detalhe importantíssimo a respeito da
principal qualidade de Baiaco, já assinalada aqui: o trânsito. No bairro do
Estácio, mais especificamente na Rua Maia Lacerda, número 29, residia
Benedita do Nascimento, mãe de santo, irmã de Napoleão Nascimento,
jongueiro e uma das lideranças da organização carnavalesca “Vai como
Pode”, que ficou mais tarde conhecida como Grêmio Recreativo Escola de
101 Samba Portela (SILVEIRA, 2012, p. 111). Benedita muitas vezes levava os
seus vizinhos do Estácio para frequentar o terreiro de seu irmão Napoleão,
em Oswaldo Cruz (FILHO; ISNARD, 2023, p. 87). Esse é um argumento
que cria um laço de familiaridade e proximidade entre a organização
carnavalesca do Estácio, a Deixa Falar e a de Oswaldo Cruz, a Portela.
Do outro lado do disco há uma composição que leva, além do nome
de Baiaco, o de Aurélio Gomes. Aurélio era o responsável pelo canto nos
cortejos e desfiles da Deixa Falar, definido como Carlos Cavalcanti como
“um caboclo que tem voz de serenata e sangue de malandro”
(CAVALCANTI, 1930, p. 4). Junto com Baiaco, muito provavelmente nos
bares localizados na Zona do Mangue, enganaram, segundo Bide, uma dupla
que tinha criado a música e a repetira diversas vezes, até que Benedito
Lacerda, flautista e compositor do grupo Gente do Morro, escreveu a
partitura, permitindo que Baiaco desse o golpe: “Baiaco fez uma

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Boaventura dos Santos: cantor, compositor e integrante da Portela, responsável por cantar
os sambas nos desfiles da antiga Praça Onze.

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molecagem: fez um dos autores cantar várias vezes o samba, enquanto


Benedito Lacerda ia escrevendo a melodia” (BARCELLOS, 1968).
Porém, em sua própria defesa, em conversa na redação do jornal “O
Globo” publicada no dia 8/12/1932, Baiaco, ao ser questionado a respeito da
autoria do samba “Arrasta a Sandália”, respondeu:

Quando fizeram Arrasta a sandália, Baiaco e Aurélio não


sonhavam que o samba fizesse tanto sucesso. Aurélio,
segundo afirma Baiaco, vendeu os seus direitos por 100
mil réis. Estava escrito, porém, que o samba ia vencer – e
também que, por causa dele, haveria questões. A primeira
questão surgida foi entre os próprios autores do samba
Aurélio eu a entender, outro dia, segundo pensa Baiaco,
que o samba era mais seu. Foi por isso que em companhia
de Benedicto Lacerda e de Russinho, príncipe do pandeiro,
ele nos procurou. O samba é mais meu do que do Aurélio,
afirmou. O que Aurélio fez foi, apenas, uma simples frase,
aliás modificada.
Arrasta a sandália aí, madama
Imagine! Onde já se viu madama arrastar a
sandália?, perguntou ironicamente Baiaco, depois que
acabou de cantar. Eu disse a ele: Quem arrasta a sandália é
morena e não madama. Por isso ficou assim:
Arrasta a sandália ai, morena. (O GLOBO, 1932,
102 p. 6)

Baiaco reivindica a autoria do samba, e ainda diz que comprou a


outra parte, deixando evidente que, de fato, a prática de compra e venda
existiu entre os sambistas e compositores do Estácio. A malandragem
incorporada por Baiaco só permite afirmar que o samba é de sua autoria
(propriedade intelectual), embora haja relatos evidenciando o contrário.

Brancura e Baiaco eram malandros tão típicos que nunca


se acreditou terem sido eles os verdadeiros autores dos
sambas que assinaram. Uma das especialidades de ambos
era a intermediação na venda de sambas dos compositores
de morro aos compradores de músicas “da cidade”, já que
circulavam com tranquilidade tanto nas favelas quanto nos
bares do Centro, frequentados pelos profissionais da
música. (CABRAL, 1996, p. 56)

A venda dos sambas, comum entre cantores e compositores, permite


que as negociações e acordos sejam feitos sem burocracia. Não é diferente
no caso de Baiaco, que encontra as possibilidades e os caminhos para os
compositores divulgarem suas obras, em troca o nome dele fica registrado e

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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vinculado como “coautor” da obra. Sendo assim, Baiaco tinha de encontrar


um cantor, que não necessariamente fosse uma estrela, porém que buscasse
um espaço, para gravar sambas de compositores que, da mesma forma que
os cantores, buscavam divulgar sua obra em troca de dinheiro e algum
prestígio. O acordo entre Ventura e Baiaco, muito provavelmente, ocorreu
na circulação entre os bairros dos sambistas, sendo Benedita Nascimento,
irmã de Napoleão (SIMAS, 2013, p. 40), respaldo argumentativo dessa
hipótese: a conexão entre o bairro de Oswaldo Cruz e Estácio. Ou seja,
Baiaco acertou com Ventura, Aurélio Gomes e Moreira da Silva, o cantor
ainda desconhecido, podendo então a classificação de “ladrão de samba”,
por conta dos números de passagens e ocorrências em delegacias do
malandro, ser substituída por mediador ou produtor cultural.
No dia seguinte à publicação de defesa de Baiaco, o mesmo jornal
publicou o restante da conversa entre os sambistas do Estácio – Benedito
Lacerda e Baiaco – cantando dois sambas, o primeiro conta a história de
“Tenho uma nega”:

Baiaco conta a história de um samba seu: Tenho uma nega. A história é


103 real, diz ele ingratamente. A nega de fato existe. Baiaco não quer,
porém, mais nada com ela. A nega gosta de brincar, de dançar. Mas
trabalhar… Qual nada!
Quando eu dominava a situação estava tudo muito bem, disse
ele. Eu era capaz até de botar empregadas. Dias depois veio a crise e ela
me atingiu, é claro. Se não me atingisse, eu poderia ficar certo de ser
melhor que a Alemanha. Que fiz eu? Mandei ela embora. Por isso aí
está o samba que eu fiz com Benedicto. (O GLOBO, 1932, p. 6)

Descrito como uma encenação teatral com um roteiro definido, a


dupla Benedito e Baiaco canta e apresenta o samba na redação do jornal,
criando uma trama para ambientar a cantoria do samba no final da história.
O samba foi gravado na voz de Patrício Teixeira pela gravadora Victor. A
letra reproduz o machismo e uma relação de hierarquia com a mulher, no
caso uma mulher negra.
Como nosso objetivo não é a análise das canções, passamos para o
próximo disco, no ano seguinte, em 1933 pela mesma gravadora, porém
com a voz de Arnaldo Amaral. O fonograma traz um samba de Cartola em
coautoria de Baiaco, “Fita meus olhos”, e a outra gravação: “Por que será”,
em coautoria com Bucy Moreira. A respeito do samba de Cartola, em
depoimento a Fernando Faro, Cartola conta sobre a composição:

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‘Fita os meus olhos’ é uma historiazinha um pouco curta.


Era uma pequena que eu gostava lá de Ramos. Era irmã de
um xará meu, chamava-se Agenor também. A Zica estava
por fora nessa época, ela não tinha nada a ver com isso.
(OLIVEIRA, 1973)

Nessa entrevista Cartola conta algumas histórias das composições e


das parcerias, porém passa batido pelo nome de Baiaco como um
companheiro de composição quando fala de “Fita os meus olhos”. Inclusive
o samba foi cantado no desfile da Mangueira no carnaval de 1933 na antiga
Praça Onze, desfile no qual a “Verde Rosa” levou o título. Em outro
depoimento, anos mais tarde, Cartola relata a Roberto Moura como
conheceu a cidade. Nessa época, no ano de 1933, Cartola tinha por volta de
23-24 anos e Baiaco tinha 30 anos.

Eu quando comecei a gravar, comecei vendendo samba, né?


Vendi samba ao Chico, vendi samba ao Mário Reis. Depois eu
conheci esse Baiaco. Baiaco não era doutor, não. Era um
vagabundo do Estácio, compreende? Quem me levou pra
conhecer a cidade foi o Baiaco. Ele tinha se infiltrado nesse
meio de cantores, essas coisas. Então eu conheci o Baiaco e ele
me disse: ‘Olha, você é um menino que tem boas coisas,
104 promete, vou te encaminhar. Tô nessa jogada, no meio dessa
coisa, conheço esses golpes todos.’ Aí, eu comecei a andar com
o Baiaco na cidade, fui apresentado em estações gravadoras e
comecei a gravar. Aí deixei de vender samba e comecei a gravar
por intermédio dele, ‘não, não vende isso, vem aqui, vamos falar
com fulano de tal’. Ele é um dos autores de Arrasta a Sandália.
(MOURA, 1988)

O agenciador de pássaros e talentos


Baiaco, segundo o próprio Cartola, foi o responsável por duas importantes
situações. A primeira de apresentar ao jovem o centro da cidade, os cafés, as
pessoas, os estúdios, cantores e cantoras. Em segundo, Baiaco é, em
registros, a pessoa que aponta Cartola como um grande potencial, mesmo
que viesse a ocorrer muitos anos depois, porém a previsão de Baiaco estava
correta, Cartola teve uma obra magnífica. E o senso de sucesso do malandro
estava certo.
Em outra entrevista, dessa vez para Sérgio Cabral, Cartola relembra
a relação com Baiaco: “Tive o Raul Marques. Mas não entrei na parceria.
Ele vendeu o samba para o falecido Baiaco sem segunda parte e eu botei.

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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Fiz parceria com Baiaco também, fiz várias parcerias por aí” (CABRAL,
1996, p. 171).
No final do ano de 1933, no mês de dezembro, Orestes Barbosa
(1893-1966), jornalista (também compositor), faz uma visita ao Morro de
Mangueira para conhecer a “escola do samba” Estação Primeira de
Mangueira, da qual Cartola era uma das lideranças. São recebidos com festa
e apresentações. No registro fotográfico, publicado no dia 21/12/1933, da
interação entre os integrantes da Escola de Samba e os jornalistas, está, ao
lado do ilustrador Nássara (1910-1996), Baiaco, com cigarro na boca
vestindo uma gravata borboleta, elegante como de costume; com a mão
direita segura seu chapéu junto ao corpo e com o braço esquerdo envolve
com um abraço Orestes Barbosa, que recebe do outro lado os braços de
Cartola. Orestes sorri faceiro. Ao lado de Cartola está o speaker Christóvão
de Alencar, e na ponta do registro está o cantor Arnaldo Amaral. Integrantes
da Mangueira aparecem agachados.
O outro samba, no mesmo disco, é de Bucy (1909-1982), neto de Tia
Ciata. Cresceu nas redondezas da Praça Onze, nas festas da casa de sua avó
105 e, por conta da proximidade com o bairro vizinho, o Estácio, conheceu a
Zona do Mangue e os malandros que ali transitavam. Da mesma forma,
nessa hipótese que Cartola conseguiu gravar um samba, Bucy também
entrou no disco. O valor de troca desse acesso é, sem sombra de dúvidas, a
coautoria no samba, haja vista que Baiaco, com a qualidade de seu
movimento e trânsito, conseguia negociar gravações. Além do mais, não se
pode negar que tinha faro para encontrar e reunir em seu caminho canções
de qualidade e com potencial de sucesso. Ou seja, a propriedade intelectual
dos sambistas está inserida em disputas em que acordos são necessários para
conseguir chegar às gravadoras e aos discos.

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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Imagem 1- Festa no Morro de Mangueira (Baiaco, Orestes Barbosa e Cartola)

106 Fonte: Fundação Biblioteca Nacional, Jornal Avante! (21/12/1933) edição n. 63, p. 1

A questão passa a ser a propriedade intelectual e a condição dos


compositores racializados e com acessos restringidos. Como consequência,
as possibilidades de acesso entraram, também, como valor de troca. O que
Baiaco trata de fazer é propor acordos de coautoria, justamente porque
precisava de prestígio para conseguir se manter dessa maneira, sem “pegar
no pesado”. Ele parece entender que o que realiza, ao mediar gravações e
pessoas, é uma forma de trabalho ligado a um tipo de agenciamento cultural.
Nas palavras de Ismael Silva, outra importante figura do Estácio,
sambista e compositor: “O Moreira da Silva. Ele vivia me pedindo para
arranjar gravações, aquelas coisas….” (CABRAL, 1996, p. 62). Isso indica
que há na classe artística todo um jogo de disputas por sambas, por espaço
em rádios e também por oportunidades para gravações. O que Baiaco
compreendeu, fez, e fez bem.
No primeiro disco na voz de Armando Amaral, o acompanhamento
foi da Orquestra do Lido, sob a batuta de Isaac Kolman, um músico russo

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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que comandou a orquestra na gravação do disco em 1933 para a Columbia.


Se for feito um exercício de escuta entre esse disco e o outro que foi lançado
também em 1933, pela mesma gravadora, com a orquestração de
Pixinguinha, nota-se uma diferença extraordinária da formação dos regentes
(FRANCESCHI, 2010).
No segundo fonograma de 1933, Arnaldo Amaral gravou no lado A,
mais uma vez em um disco pela Columbia, em parceria com Léo Vilar ao
microfone, “Se passar da hora” (com arranjo espetacular de Pixinguinha) de
autoria de Ventura e Baiaco. E no lado B, “Rindo e chorando”, mais uma
vez de Bucy Moreira e Baiaco.
Baiaco conseguiu emplacar três discos em dois anos, revelando um
poder de articulação e negociação fantásticos, seguramente aprendidos em
meio a tantos problemas encontrados ao longo de sua curta vida. Baiaco,
além de sofrer pela ausência das políticas públicas, sofreu pelas perdas do
núcleo familiar. Foi vítima de tiro, facada, agressões e sífilis. Baiaco não foi
única e exclusivamente vítima, também agrediu, deu volta em otário, deu
navalhada, não somente em homens, mas em mulheres também,
107 principalmente na Zona do Mangue (CUNHA, 2015).
O samba, entendido como resistência, permite que o malandro, no
caso de Baiaco, utilize-se dos meios da disputa e de suas próprias estratégias
para sobreviver e disputar algum lugar de destaque como artista, visto que
não queria ter o corpo explorado como tiveram seus antepassados. Isso fica
evidente quando outros sambistas e compositores afirmam que vender os
sambas de autoria própria era uma forma de conseguir “uns trocados”, como
em depoimento de Carlos Cachaça da Mangueira: “Na época da maré braba,
a gente saía por aí para vender samba. Baiaco era o secretário de Francisco
Alves e era também o encarregado de comprar sambas” (CABRAL, 1996, p.
299). Ou seja, a função de Baiaco era negociar os sambas, uma espécie de
intermediário e ao mesmo tempo curador, além evidentemente da influência
na produção de discos, com a articulação das gravadoras, cantores e
compositores. Por esse serviço, o acordo era que seu nome saísse no disco
como coautor. Isso representava, claro, algum dinheiro, mas sobretudo
prestígio e possibilidades de futuro na vida cultural do Rio de Janeiro.

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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Em conversa entre Baiaco e o jornalista Orestes Barbosa publicada


no dia 19/12/1933 pelo jornal Avante!, o sambista, “entusiasmado”,
segundo o jornalista, defende o samba e o carnaval:

O estrangeiro precisa ver que temos alma. É preciso


enfeitar a cidade com harmonia. E Baiaco, leader do
samba, diz que concorre em grupo e pessoalmente ao
carnaval, e assim já desceu a montanha e deu a Arnaldo
Amaral o seu samba “Alegria”. (BARBOSA, 1933, p. 1)

O referido samba só foi gravado em 1970, pela gravadora RGE, com


participação Velha Guarda da Portela no disco Portela Passado de Glória,
produzido por Paulinho da Viola, com autoria de Antônio Caetano8 (1900-
1982), responsável pela concepção da bandeira da Portela. Inclusive a
gravação do samba, em 1970, referido como “Alegria tu terás”, e não apenas
“Alegria”, tem a participação de Ventura, o mesmo que havia dividido
autoria com Baiaco no ano anterior, cantando o samba que concorreu no
antigo carnaval da Praça Onze. A letra do samba apresenta partes diferentes
na gravação. Esse dado confirma a relação próxima entre eles.
108 O que Cartola apresenta, para além de consciência plena de sua
proposta artística, é o reconhecimento do seu potencial visto por outro
sambista; por isso parou de vender os sambas, pois começou a gravar como
instrumentista (músico) por intermédio das articulações de Baiaco. Com
isso, há respaldo nas entrevistas de sambistas referindo-se à condição dos
compositores, seus respectivos acessos e ao proceder de Baiaco,
considerando a qualidade do seu trânsito e a maneira como conseguia levar
a vida e sobreviver, com um trabalho diferente do que era determinado aos
corpos negros no Rio de Janeiro. Sendo assim, sua função pode ser vista
como de estratégia e resistência.

Conclusão
No texto foi apresentado, mesmo que minimamente, um contexto histórico e
social de um dos integrantes de um importante grupo da cultura afro-
brasileira, sambista e malandro Oswaldo Caetano Vasques, um homem

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Antônio Caetano: foi uma importante figura do carnaval carioca, fundador da Portela e
considerado o primeiro carnavalesco da história.

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negro que não viveu muito tempo: Baiaco, que ficou órfão muito cedo,
passou a explorar mulheres na Zona do Mangue em sua juventude, vivendo
também do jogo do baralho e do jogo de chapinha, aproveitando, sobretudo,
sua capacidade estratégica para conseguir transitar por muitos lugares.
Baiaco foi um grande músico e sambista, compositor possivelmente
não, porém seu trabalho como mediador e produtor cultural e artístico indica
que o valor de troca que costumava exigir pelo seu trabalho era o de incluir
na autoria das obras seu nome, visto que o trabalho intelectual era algo que
o atraía, por não querer que seu corpo fosse explorado em trabalhos
pesados, como no cais do porto ou nos trilhos Central do Brasil, por
exemplo. E há uma qualidade, nesse sentido, não o do vagabundo, mas o de
reivindicar uma outra ideia de cidadania que não era vista pelas pessoas
brancas, e nem pelo sistema, estruturalmente, racista, valorizando, assim, a
produção poética e intelectual de sambistas marginalizados.
Além disso, pleiteava o direito à cidade, por meio de seu trânsito e
seus movimentos para encontrar sambas ou compositores que quisessem
negociar sambas com os cantores “do asfalto”.
109 Por isso, este texto defendeu uma hipótese, analisando e compilando
as informações referentes às gravações que levam o nome de Baiaco. Além
do mais, iluminou uma questão que Sérgio Cabral apresentou em sua
pesquisa: “Não se sabe que métodos Baiaco usou para entrar na parceria do
samba” (CABRAL, 1996, p. 58). O texto, além de contornar brevemente um
contexto da vida de Baiaco e dos malandros do Estácio, responde à questão
de Cabral, com argumentos pertinentes e suportes consistentes a respeito da
qualidade e da produção intelectual negra no que diz respeito ao samba do
final da década de 1920 e início da década de 1930, com as novas
possibilidades de acesso geradas pelo samba como manifestação e expressão
da cultura afro-brasileira.

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)


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Roberto Torero e Ana Dip. Produção SescTV. 2017.

RESUMO:
O presente texto busca refletir e provocar um debate a respeito da produção dos
sambas das décadas de 1920 e 1930, considerando a propriedade intelectual negra
como elemento primordial para a geração de compositores e sambistas negros do
bairro carioca do Estácio de Sá. Para isso, no centro da discussão estará Oswaldo
Caetano Vasques, o Baiaco, sambista e malandro, componente de um grupo que se
tornou ícone para a entender a cultura brasileira, sobretudo ao que diz respeito ao
samba.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira. Baiaco. História do Samba. Estácio de
Sá.

111 ABSTRACT:
This text seeks to reflect on and provoke a debate about the production of sambas in the
1920s and 1930s, considering black intellectual property as a key element in the generation
of black composers and samba dancers from the Rio neighborhood of Estácio de Sá. To this
end, the discussion will focus on Oswaldo Caetano Vasques, or Baiaco, a samba dancer and
trickster, who was part of a group that became an icon for understanding Brazilian culture,
especially when it came to samba.
Keywords: Brazilian Popular Music, Baiaco, The History of Samba, Estácio de Sá .

Recebido em: 20/02/2024


Aceito em: 23/05/2024

CABRAL, G; NUNES, L. “Samba é que nem passarinho…”. (p. 89-111)

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