um malandro chamado Baiaco
um malandro chamado Baiaco
um malandro chamado Baiaco
Vol.12 N°1(2024.1)
Introdução
O título do trabalho faz alusão a uma frase dita por Sinhô3: “Samba é que
nem passarinho, é de quem pegar primeiro” (MATOS, 1986, p. 37) e tem a
ver com a lógica capitalista da produção cultural e da propriedade
intelectual na primeira metade do século XX. No cenário de troca, venda e
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Gladir da Silva Cabral é Doutor e Mestre em Literatura Inglesa pelo Programa de Pós-
Graduação em Literatura Inglesa da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGI –
UFSC). Professor do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Criciúma (SC). E-mail: gla@unesc.net
e gladirc@gmail.com ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9695-9504
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Lucas Garcia Nunes é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
(PPGLIT - UFSC). Mestre em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal
Fluminense. E-mail: quincasavelino@gmail.com ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-
8082-6651
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José Barbosa da Silva (1888-1930): músico, compositor e pianista. Ficou conhecido como
“Rei do Samba”.
lado. São elas: “Fita os meus olhos”, em que o nome de Baiaco aparece
junto ao de Cartola4 (1908-1980), lançado pela Columbia (disco número
22221-B). Do outro lado do disco, um samba assinado por Bucy e Baiaco:
“Por que será?”, ambos interpretados por Arnaldo Amaral. E no disco da
gravadora Columbia (número 22221-B) encontram-se os sambas “Rindo e
chorando”, parceria com Bucy Moreira, e “Se passar da hora”, ambos na
voz do cantor Arnaldo Amaral, com o arranjo e acompanhamento do Grupo
de Pixinguinha. Em 1934, o nome de Baiaco aparece em duas composições,
em diferentes discos: “Quem mandou Iaiá” (disco número 22262-B),
parceria com Benedito Lacerda, pela gravadora Columbia, na voz de
Arnaldo Amaral, e “Conversa puxa conversa”, assinando com João dos
Santos, pela gravadora Victor (disco número 33800).
Analisar os documentos que envolvem o malandro Baiaco é
entender, também, uma certa dificuldade, haja vista que os registros de
narrativas na primeira pessoa, ou seja, Baiaco falando de si mesmo, são
raros. Nesse sentido, a pesquisa aqui apresentada envolve um trabalho de
investigação e inúmeras consultas em arquivos e bases de dados. As
92 informações a respeito de Baiaco estão espalhadas em diferentes obras da
música brasileira e em depoimentos de muitos sambistas e jornalistas: Russo
do Pandeiro, Bucy Moreira, Cartola, Bide e Moreira da Silva, entre outros.
O trabalho de reunir todas essas referências não será apresentado
aqui, já que o que se pretende é identificar, dentro da discussão, o samba
como manifestação artística de resistência, além de enfatizar a estratégia de
trabalhar com a narrativa dos próprios sambistas, por isso os sambas com o
nome de Baiaco são requisitados para sustentar a proposta de discutir o tema
da autoria.
O objetivo deste texto é iniciar uma discussão a respeito da
propriedade intelectual das décadas de 1920 e 1930, considerando,
especialmente, a produção dos sambistas, malandros e entusiastas do
Estácio de Sá ligados à organização carnavalesca “Deixa Falar”. Este debate
é sustentado em algumas obras, como, por exemplo, em Escolas de samba
do Rio de Janeiro, de Sérgio Cabral (1996), e Samba de sambar do Estácio
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Angenor de Oliveira: sambista, compositor e um dos fundadores da Escola de Samba da
Mangueira.
(FILHO; ISNARD, 2023; LOPES, 2008; SODRÉ, 1998) uma vez que
contrapõe ao que em geral é vinculado enquanto às classificações rasas que
dizem respeito a produção subjetiva dos malandros, sem refletir o contexto
da obra e da vida. Dessa forma, é preciso incluir a força e a influência da
cultura afro-brasileira e a capacidade de expressão e estratégias para criticar
a restrição de acessos ao corpo das pessoas negras (AZEVEDO, 2018).
A força da produção poética e literária do malandro atravessou
décadas e sustentou a estrutura das letras dos sambas. Nesse sentido, quando
o malandro encontra no samba um suporte para sua credencial,
principalmente vislumbrando o aspecto criativo e a sua capacidade subjetiva
de relatar um tipo de realidade verossímil, tem-se uma irrupção
impressionante, pois o tipo de produção intelectual desses sambistas que
foram marginalizados se depara com um novo acesso e manifesta o prestígio
que faz parte do cenário que vai além dos cubículos úmidos e insalubre das
detenções (BRETAS, 1997).
O malandro é aplaudido pela sua produção, que compõe, toca e
canta. Não existe uma medida que consiga mensurar a força do samba,
94 como expressão da subjetividade, e a força do malandro, como prática diária
de sobrevivência. Essa expressão, muitas vezes em forma de crônicas, foi
vendida ou negociada como valor de troca. A partir da gravação de “Pelo
Telefone” (1917), a comercialização adentra o universo do samba.
É dentro do samba que se constrói uma mitologia da
malandragem, e é a mitologia que nos interessa, pois é ela que
pode nos revelar algo mais amplo e duradouro do que registros e
empíricos, fugazes, dissolvidos na vida da cidade. Foi no samba
que malandro e sambista elegeram, criaram para si uma
identidade. Foi aí que se constituiu a metáfora da malandragem
como signo de uma cultura que sempre se viu relegada à
margem da sociedade, e todavia continuou insistindo em mostrar
a sua cara. (MATOS, 1986, p. 36)
Nas letras dos sambas [...] o que se diz é o que se vive, o que se
faz. Não se entenda com isso que haja uma correspondência
biunívoca entre o sentido do texto e as ações na vida real, mas
que as palavras têm no samba tradicional uma operacionalidade
com relação ao mundo, seja na insinuação de uma filosofia da
prática cotidiana, seja no comentário social, seja na exaltação de
fatos imaginários, porém inteligíveis no universo do autor e do
ouvinte. (SODRÉ, 1998, p. 45)
A ópera do malandro
Baiaco andava sempre elegante e com uma conversa que convencia
qualquer um, o malandro integrou a organização carnavalesca Deixa Falar
(CABRAL, 1996, p. 58). Tocava percussão e bateria. Diante da versão de
que Baiaco não compunha sambas, chama a atenção seu estratagema,
96 justamente por estar envolvido na ideia de coletivo, influência da cultura
afro-brasileira, em contraponto à noção capitalista de propriedade, e,
também, em razão da falta de uma organização forte que buscasse gerir as
composições e distribuir de maneira justa os direitos das autorias, de
articular gravações e projetos musicais em troca de parceria nos sambas
gravados. Ademais, o contexto de Baiaco e seus acessos são importantes
para a discussão.
O malandro passa despercebido, tem uma vivência particular das
ruas, sabe gingar e dançar, incorporou ao longo do tempo um mapa da
cidade. Tem sobre ele um domínio emblemático das ruas em sua mente. A
conduta do malandro é concebida na postura do corpo. O malandro do
samba tem a influência dos antigos capoeiras do início do século XX
(FRANCESCHI, 2010). O malandro do Estácio de Sá tem uma
característica essencial – o trânsito. Sabe como proceder nos espaços e
consegue contornar os trajetos para poder entrar nos lugares.
Independentemente do motivo, o deslocamento do corpo do malandro
impulsiona a circulação de sambas pela cidade, seja pela razão de uma festa
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Em um dos inquéritos policiais, Baiaco responde a um processo por estupro em 1927. O
processo possui 26 páginas e, ao que tudo indica, Baiaco não foi condenado por falta de
provas. O tema da violência contra as mulheres é frequente nas páginas de jornais da
referida Zona do Mangue. Evidentemente, a violência contra a mulher está presente na
história do Brasil e precisa acabar. A contextualização pontual da vida de Baiaco não
significa a defesa dos atos de violência reproduzidos pelo sambista.
Esse fenômeno é descrito por Bide em entrevista a Juarez Barroso após ser
questionado sobre os acessos às gravações:
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Carlos Moreira de Castro: sambista, compositor e um dos fundadores da Escola de Samba
da Mangueira.
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Boaventura dos Santos: cantor, compositor e integrante da Portela, responsável por cantar
os sambas nos desfiles da antiga Praça Onze.
Fiz parceria com Baiaco também, fiz várias parcerias por aí” (CABRAL,
1996, p. 171).
No final do ano de 1933, no mês de dezembro, Orestes Barbosa
(1893-1966), jornalista (também compositor), faz uma visita ao Morro de
Mangueira para conhecer a “escola do samba” Estação Primeira de
Mangueira, da qual Cartola era uma das lideranças. São recebidos com festa
e apresentações. No registro fotográfico, publicado no dia 21/12/1933, da
interação entre os integrantes da Escola de Samba e os jornalistas, está, ao
lado do ilustrador Nássara (1910-1996), Baiaco, com cigarro na boca
vestindo uma gravata borboleta, elegante como de costume; com a mão
direita segura seu chapéu junto ao corpo e com o braço esquerdo envolve
com um abraço Orestes Barbosa, que recebe do outro lado os braços de
Cartola. Orestes sorri faceiro. Ao lado de Cartola está o speaker Christóvão
de Alencar, e na ponta do registro está o cantor Arnaldo Amaral. Integrantes
da Mangueira aparecem agachados.
O outro samba, no mesmo disco, é de Bucy (1909-1982), neto de Tia
Ciata. Cresceu nas redondezas da Praça Onze, nas festas da casa de sua avó
105 e, por conta da proximidade com o bairro vizinho, o Estácio, conheceu a
Zona do Mangue e os malandros que ali transitavam. Da mesma forma,
nessa hipótese que Cartola conseguiu gravar um samba, Bucy também
entrou no disco. O valor de troca desse acesso é, sem sombra de dúvidas, a
coautoria no samba, haja vista que Baiaco, com a qualidade de seu
movimento e trânsito, conseguia negociar gravações. Além do mais, não se
pode negar que tinha faro para encontrar e reunir em seu caminho canções
de qualidade e com potencial de sucesso. Ou seja, a propriedade intelectual
dos sambistas está inserida em disputas em que acordos são necessários para
conseguir chegar às gravadoras e aos discos.
106 Fonte: Fundação Biblioteca Nacional, Jornal Avante! (21/12/1933) edição n. 63, p. 1
Conclusão
No texto foi apresentado, mesmo que minimamente, um contexto histórico e
social de um dos integrantes de um importante grupo da cultura afro-
brasileira, sambista e malandro Oswaldo Caetano Vasques, um homem
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Antônio Caetano: foi uma importante figura do carnaval carioca, fundador da Portela e
considerado o primeiro carnavalesco da história.
negro que não viveu muito tempo: Baiaco, que ficou órfão muito cedo,
passou a explorar mulheres na Zona do Mangue em sua juventude, vivendo
também do jogo do baralho e do jogo de chapinha, aproveitando, sobretudo,
sua capacidade estratégica para conseguir transitar por muitos lugares.
Baiaco foi um grande músico e sambista, compositor possivelmente
não, porém seu trabalho como mediador e produtor cultural e artístico indica
que o valor de troca que costumava exigir pelo seu trabalho era o de incluir
na autoria das obras seu nome, visto que o trabalho intelectual era algo que
o atraía, por não querer que seu corpo fosse explorado em trabalhos
pesados, como no cais do porto ou nos trilhos Central do Brasil, por
exemplo. E há uma qualidade, nesse sentido, não o do vagabundo, mas o de
reivindicar uma outra ideia de cidadania que não era vista pelas pessoas
brancas, e nem pelo sistema, estruturalmente, racista, valorizando, assim, a
produção poética e intelectual de sambistas marginalizados.
Além disso, pleiteava o direito à cidade, por meio de seu trânsito e
seus movimentos para encontrar sambas ou compositores que quisessem
negociar sambas com os cantores “do asfalto”.
109 Por isso, este texto defendeu uma hipótese, analisando e compilando
as informações referentes às gravações que levam o nome de Baiaco. Além
do mais, iluminou uma questão que Sérgio Cabral apresentou em sua
pesquisa: “Não se sabe que métodos Baiaco usou para entrar na parceria do
samba” (CABRAL, 1996, p. 58). O texto, além de contornar brevemente um
contexto da vida de Baiaco e dos malandros do Estácio, responde à questão
de Cabral, com argumentos pertinentes e suportes consistentes a respeito da
qualidade e da produção intelectual negra no que diz respeito ao samba do
final da década de 1920 e início da década de 1930, com as novas
possibilidades de acesso geradas pelo samba como manifestação e expressão
da cultura afro-brasileira.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
BARBOSA, Orestes. Eles têm que respeitar. Jornal AVANTE! Rio de Janeiro:
Hemeroteca Nacional da Fundação Biblioteca Nacional, p. 1. 1933.
BRETAS, Marcos. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
LOPES, Nei. Partido alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
RESUMO:
O presente texto busca refletir e provocar um debate a respeito da produção dos
sambas das décadas de 1920 e 1930, considerando a propriedade intelectual negra
como elemento primordial para a geração de compositores e sambistas negros do
bairro carioca do Estácio de Sá. Para isso, no centro da discussão estará Oswaldo
Caetano Vasques, o Baiaco, sambista e malandro, componente de um grupo que se
tornou ícone para a entender a cultura brasileira, sobretudo ao que diz respeito ao
samba.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira. Baiaco. História do Samba. Estácio de
Sá.
111 ABSTRACT:
This text seeks to reflect on and provoke a debate about the production of sambas in the
1920s and 1930s, considering black intellectual property as a key element in the generation
of black composers and samba dancers from the Rio neighborhood of Estácio de Sá. To this
end, the discussion will focus on Oswaldo Caetano Vasques, or Baiaco, a samba dancer and
trickster, who was part of a group that became an icon for understanding Brazilian culture,
especially when it came to samba.
Keywords: Brazilian Popular Music, Baiaco, The History of Samba, Estácio de Sá .