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Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia

2012, Comunicação e Cultura

A nossa proposta vai no sentido de se saber até que ponto a marca da ‘portugalidade’, profusamente difundida em pleno Estado Novo, sublinhando alegadas características adstritas ao povo português, numa relação apologética ao regime em vigor e que serviu, de resto, de bandeira à Exposição do Mundo Português (1940), ‘afectou’, por via da propaganda e da ideia de ‘império ultramarino’ - que constituiu um dos pilares e dos mitos do regime de Salazar (Rosas, 2001) -, as dinâmicas relacionais com os povos das ex-colónias portuguesas, plasmadas na ideia de lusofonia. É nesse quadro que surge o título do presente projecto: “Da ‘portugalidade’ à lusofonia”. Pretendemos congregar pistas para responder à pergunta “De que falamos, quando falamos de lusofonia?”. Será de uma extensão de uma alegada ‘portugalidade’? Ou de um espaço ligado, apenas (ou eventualmente), através de uma língua comum? Em contexto pós-colonial, que debate sobre o ‘outro’ é possível fazer-se? Palavras-chave: ‘Portugalidade’; lusofonia; Estado Novo; globalização; multiculturalismo

Z. Pinto-Coelho & J. Fidalgo (eds.) (2012) Sobre Comunicação e Cultura: I Jornadas de Doutorandos em Ciências da Comunicação e Estudos Culturais Universidade do Minho: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade ISBN 978-989-8600-05-9 Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia From ‘Portugalidade’ to Lusofonia VÍTOR DE SOUSA & MOISÉS MARTINS Ciências da Comunicação / Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho vitorsousa@ics.uminho.pt;/ moisesm@ics.uminho.pt Resumo: A nossa proposta vai no sentido de se saber até que ponto a marca da ‘portugalidade’, profusamente difundida em pleno Estado Novo, sublinhando alegadas características adstritas ao povo português, numa relação apologética ao regime em vigor e que serviu, de resto, de bandeira à Exposição do Mundo Português (1940), ‘afectou’, por via da propaganda e da ideia de ‘império ultramarino’ - que constituiu um dos pilares e dos mitos do regime de Salazar (Rosas, 2001) -, as dinâmicas relacionais com os povos das ex-colónias portuguesas, plasmadas na ideia de lusofonia. É nesse quadro que surge o título do presente projecto: “Da ‘portugalidade’ à lusofonia”. Pretendemos congregar pistas para responder à pergunta “De que falamos, quando falamos de lusofonia?”. Será de uma extensão de uma alegada ‘portugalidade’? Ou de um espaço ligado, apenas (ou eventualmente), através de uma língua comum? Em contexto pós-colonial, que debate sobre o ‘outro’ é possível fazer-se? Palavras-chave: ‘Portugalidade’; lusofonia; Estado Novo; globalização; multiculturalismo Abstract: Our proposal goes in the sense of how far the brand of ‘Portugalidade’ widely disseminated during the “Estado Novo”, highlighting alleged characteristics attached to the Portuguese people in an apologetic logic through the regime, and which served, moreover, the flag of the Portuguese World Exhibition (1940), 'affected', by the propaganda and the idea of 'overseas empire' - that was one of the pillars and the myths of the Salazar’s regime (Rosas, 2001) -, the relational dynamics with the former Portuguese colonies, shaped by the idea of “lusofonia”. It is in this context that this project arises: “From ‘portugalidade’ to lusofonia”. We want to gather clues to answer the question “What are we talking about when we talk about ‘lusofonia’?”. Is it an extension of an alleged ‘Portugalidade’? Or a space that is only linked by a common language? In the post-colonial context, what debate about the 'other' can be made? Keywords: 'Portugalidade'; lusofonia; Estado Novo; globalization, multiculturalism 1. Introdução Nunca como hoje o processo de globalização se tornou tão evidente e naturalizado pela sociedade. Isso afecta, segundo Giddens (1999), todos os estados e despoleta situações ambivalentes: cruza realidades que, normalmente estavam nos antípodas, constituindo, por isso, uma aproximação entre povos e, ao mesmo tempo, promove o esbatimento das diferenças identitárias à custa da hegemonia cultural dos países com maior poderio Comunicação e Cultura . 159 Vítor de Sousa & Moisés Martins económico. Neste contexto, vem ao de cima o conceito de identidade nacional, revivendo-se as idiossincrasias locais. A globalização, e a consequente multiculturalidade, trouxe para o debate a reflexão em relação ao “outro”. Umberto Eco (1998) refere mesmo que a dimensão ética acontece quando entra em cena o outro. Partindo da expressão “outrar-se” (Fernando Pessoa), enquanto fenómeno de fazer-se outro, de adoptar várias personalidades, dando-lhes vida e independência, pretendemos observar não o discurso de e sobre o ‘outro’ para nos procurarmos a ‘nós’ próprios não destacando, por conseguinte, a nossa própria identidade e a do outro, mas os graus e as modalidades de interpenetração identitária entre nós e o outro. Com a concretização deste projecto de doutoramento – que tem o mesmo título deste artigo - pretendemos saber até que ponto o conceito de identidade nacional faz sentido, em plena globalização multiculturalista, nomeadamente o que se relaciona com as “comunidades imaginadas” (Anderson, 1991 [1983]); observar, ainda, as diferenças entre ‘nós’ e o ‘outro’; e saber se a lusofonia constitui um espaço em que o ‘outro’ se dilui em ‘nós’; ou se, olhamos para o ‘outro’ para nos olharmos a ‘nós’ próprios. Embora esta lógica possa parecer contraditória, essa constatação é apenas aparente. É que, tendo sido a ‘portugalidade’ parte integrante de uma política estratégica do Estado Novo, exportada nomeadamente para as então colónias ultramarinas, a descodificação que, na actualidade, se faz da relação entre o ‘outro’ e ‘nós’, tem na génese o framework anterior e, consequentemente, muitos anticorpos que podem impedir um ambiente relacional ideal, onde as trocas poderão ser afectadas. 2. Estado, nação e Estados-nação É necessário discernir entre “Estado” e “Nação”, conceitos que assumem, de forma justaposta, um sentido diferente ao que têm separadamente. Enquanto a nação consubstancia uma realidade sociológica, necessariamente subjectiva, o Estado assume-se como uma realidade jurídica, assente na objectividade. O conceito de “Estado”, com o sentido que ele assume actualmente – de comunidade política de carácter soberano na ordem interna e na ordem internacional (Bobbio, 1976) — aparece pela primeira vez no livro “O Príncipe”, escrito por Maquiavel em 1513. Foi, no entanto, no século XVII que surgiu a ideia de Estado ligada a características muito bem definidas, relativas ao exercício da soberania, com as finalidades de proporcionar a defesa, a ordem, o bem-estar e o progresso aos grupos sociais. Para Anthony Giddens, “um Estado existe quando há um aparelho político que governa um dado território, cuja autoridade é apoiada por um sistema legal e pela capacidade para usar 160 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia a força para implementar as suas políticas” (2009: 450). Um conceito que também é caro a Karl Deutsch (1976) que se refere ao Estado como sendo uma máquina organizada para o desenvolvimento e implementação de decisões políticas e para a imposição de leis e regras de um governo. Esta constitui uma ideia já defendida muito antes por Max Weber, para quem o Estado é responsável pela organização e pelo controle social, uma vez que é detentor do monopólio da violência legítima (nomeadamente o poder de coerção por via legal) (Weber, 1967 [1921]). O que quer dizer que a actividade política do Estado é definida de três formas: pela existência de um território delimitado; pela existência de indivíduos; e, por último, pela força que é o meio da política. Ou seja: Estado é um conceito político que conta com a adesão resultante da vontade de um povo que constitui uma nação (ou por povos de diferentes nacionalidades), para que se submeta a um poder público soberano, que resulta da sua própria vontade, e que lhe confere unidade política. Será por isso que Hauriou (2003) o refere como “a instituição das instituições”, salientando que o Estado constitui um grupo humano, centrado num território, com orientações sociais, políticas e jurídicas claras, orientado para o bem comum, criado e mantido por uma autoridade fiscalizadora. O conceito de “Nação” implica uma ideia de identidade, de história colectiva, o que muitas vezes não coincide com o que se entende por “Estado”. A atestar esta observação está o caso da Catalunha e a sua relação com Espanha: reivindica-se a nação catalã, dentro do Estado espanhol. Burdeau (1981) sustenta que Nação pertence ao domínio cultural, enquanto soma das pessoas que comungam a origem, língua e história, o que constitui “a comunidade das comunidades”. Define-a como um grupo humano no qual os indivíduos estão unidos por laços materiais e espirituais, tendo a consciência do que os distingue dos indivíduos componentes de outros grupos diferentes. Quando se aborda o conceito de Nação, deve terse em atenção a conjugação de vários factores já que ela é composta por elementos naturais (território), históricos (tradições, costumes, religião, leis...) e psicológicos (crenças comuns, consciência nacional, etc.). Por último, o Estado-nação é a unidade político-territorial soberana formada por uma nação, um estado e um território. Denomina-se por Estado-nação um território com os seus limites bem fixados e com um governo e uma população coesa ao nível étnico-cultural. A ideia de Estado-nação nasceu na Europa em finais do século XVIII, inícios do século XIX. Provém da época do Iluminismo em que nasce uma nova concepção do direito natural, como observa Freitas do Amaral (1998: 14), sendo este concebido de forma racional, humanitária e subjectivista, “dele decorrendo os direitos individuais dos cidadãos, que são direitos originários, inerentes à natureza humana e, por isso mesmo, oponíveis ao Estado” . Baseouse na procura da verdade através da teoria da dedução (“razão raciocinante”), rompendo com a tradição, a fé e a autoridade, até aí aceites como principais pilares do conhecimento, e em Comunicação e Cultura . 161 Vítor de Sousa & Moisés Martins que a Razão passou a ser a força constituidora da dinâmica do Estado-nação, principalmente ao nível da administração dos povos. 2.1. Identidade nacional, nacionalismo e memória colectiva Não obstante Berger & Luckmann (1999 [1966]: 33) salientarem a existência de múltiplas realidades, há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência: a da vida quotidiana, apelidada de realidade predominante e, por isso, admitida como sendo “a realidade”. O certo é que se tem chamado a atenção para o facto de a linguagem simbólica ir para além da realidade e, por isso, constituir um dos seus principais componentes. É que a legitimação decorrente do universo simbólico evidencia realidades diferentes da que existe na vida quotidiana, constituindo produtos sociais, com uma história, o que quer dizer que a identidade “é um elemento-chave evidente da realidade subjectiva e, tal como toda a realidade subjectiva, encontra-se em relação dialéctica com a sociedade” (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 33). A identidade constitui um fenómeno “que emerge da dialéctica entre indivíduo e sociedade” (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 180). Já os tipos de identidade, por outro lado, “são elementos de certo modo estáveis da realidade social objectiva (sendo o grau de estabilidade, por sua vez e como é evidente, determinado pela sociedade)”, constituindo o tema como uma certa forma de teorização em qualquer sociedade, “mesmo quando são estáveis e a formação das identidades individuais é bastante desprovida de problemas”. Os autores sublinham que as teorias sobre a identidade estão sempre integradas numa interpretação mais geral da realidade: “São ‘embutidas’ no universo simbólico e nas suas legitimações teóricas, variando com o carácter destas”, sendo que a teorização terá de fazerse “no quadro das interpretações teóricas em que estão localizadas” (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 180). Pretendemos passar em revista as ideias daqueles que consideramos os teóricos mais relevantes para o nosso estudo sobre o nacionalismo e a identidade nacional. Escolhemos as teorias de Ernst Gellner, Eric Hobsbawm, Michael Mann, Benedict Anderson, Montserrat Gibernau, Anthony D. Smith, Josep Llobera, John Hutchinson, Anne-Marie Thiesse, Jurgen Habermas, Manuel Castells e de Stuart Hall. A escolha dos autores, fragmentária muito embora, obedeceu a um propósito direccionado para o objectivo do nosso estudo, relevando a visão das temáticas adstritas ao nacionalismo com os olhos postos no contexto e nos pilares em que assentou, nomeadamente, o Estado Novo português. “Memória colectiva” constitui um conceito criado por Maurice Halbwachs que, em 1925, elaborou uma espécie de “sociologia da memória colectiva”, que significa que a memória é partilhada, transmitida e construída pelo grupo ou pela sociedade. A ideia principal na obra 162 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia do autor vai no sentido de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória colectiva, já que as lembranças nascem do interior do grupo. Observa ainda que a memória individual se refere a “um ponto de vista sobre a memória colectiva” e que deve sempre ser analisada tendo em atenção o lugar que ocupa o sujeito no interior do grupo, bem como as relações mantidas com outros meios (Halbwachs, 1990 [1950]: 51). Já Michael Pollak (1989), não dramatizando a relação entre memória e história, introduz a ideia de “memórias subterrâneas” (ou marginalizadas), para se referir às que existem na esfera popular, salientando que estas abriram mesmo novos caminhos no que se refere à história oral. Quanto a Paul Connerton (1999), que segue a linha de pensamento de Halbwachs, rejeitando a separação dos aspectos sociais e colectivos da memória, argumenta, no entanto, que as imagens e o conhecimento do passado são conservados e transmitidos, em primeiro lugar, como memórias-hábito, através das cerimónias comemorativas e das práticas quotidianas. Por isso, legitimam uma ordem social presente, em que a memória é partilhada entre os participantes, seja qual for a sua origem social. Para o autor, o que ele denomina serem “lugares da memória” incluem os rituais, as efemérides, as comemorações e a toponímia. No caso das cerimónias comemorativas, por exemplo, as imagens e o conhecimento do passado são transmitidos e conservados por performances rituais, numa narrativa voltada para a mitificação. O conceito de memória é encarado por Jacques Le Goff como “crucial” (1984: 11), observando que “a evolução das sociedades na segunda metade do século XX clarifica a importância do papel que a memória colectiva desempenha” (idem: 46), indo além da história (enquanto ciência ou como culto público), e fazendo parte das sociedades – sejam desenvolvidas ou não —, e das classes sociais. 3. O caso português Eduardo Lourenço refere que, “enquanto povo, Portugal não se vive como surgido na ‘noite dos tempos’” (1999: 10), observando o seu vínculo à história comum da Europa, com ramificações à Ásia e à África. No entanto, já nasce num quadro histórico com largo passado “quando se define, nos meados do século XII, como pequeno reino entre os diversos reinos cristãos de uma Ibéria dividida a meias com o Islão”. Uma ideia comungada por Vitorino Magalhães Godinho (2004) que defende que Portugal decorre da existência de nações anteriores aos movimentos nacionais e à formação dos espaços nacionais saídos da industrialização. O que significa, por isso, que as nações são anteriores aos nacionalismos contemporâneos. Nessa perspectiva, José Manuel Sobral refere que a nação portuguesa reporta-se à Idade Média, época que Llobera salienta como de grande diversidade de significados sobre essa matéria, e o cruzamento entre capitalismo e literacia, a que Benedict Anderson deu destaque (como resultado natural da interacção entre a diversidade das línguas humanas e o surgimento da imprensa de massas) ou ao desenvolvimento do estado militarista moderno Comunicação e Cultura . 163 Vítor de Sousa & Moisés Martins (referido por Michael Mann), “incidem sobre um colectivo onde já existiam formas de identificação com o que entretanto era criado como nacional” (Sobral, 2003: 1122). Socorrendo-se de Gellner, observa mesmo que “Portugal constitui um dos exemplos de nações anteriores ao impacto pleno do industrialismo — algo que, de qualquer modo, só viria a ocorrer no nosso caso no decurso do século XX.” (Sobral, 2003: 1122). Maria Luís Rovisco (2000: 13) destaca as posições de Anderson e de Smith, no que respeita ao facto de ambos sublinharem “[o] modo como a experiência da vida colectiva influencia o despertar de sentimentos de pertença à nação no contexto da modernidade” . Observa, no entanto, que as histórias da nação (difundidas através de mitos, poemas, hinos e versões oficiais da história) serem quase sempre contestadas (Rovisco, 2000: 12 12). Para Manuel Villaverde Cabral (2003: 529) um conteúdo “tão pobre” e do foro do imaginário como é a identidade nacional pode produzir efeitos práticos relevantes “para uma comunidade cujas diferenças são tanto mais críticas quanto têm de ser dirimidas, obrigatoriamente, no mesmo território com o qual toda essa comunidade se identifica”. As representações da identidade nacional, segundo David Justino (2011: 63), estiveram quase sempre ligadas às necessidades do Estado em “organizar” a sociedade “no seu território natural”, esbatendo os “dualismos múltiplos ligados à existência colectiva”, que sustentam “a busca incessante da ‘identidade’ e ao mesmo tempo justificam o recurso ao Estado como única entidade capaz de impor uma “ordem”, preservar a memória e de identificar um propósito” concluindo que a Nação não tem a coesão necessária para concretizar esse desiderato. Fernando Catroga (2007: 274) evidencia que, em determinados momentos, “o Portugal imaginado possa estar em contraciclo com a realidade referenciada”, chamando à atenção para o facto de as interpretações do mundo serem, também “representações de representações”. Nesse sentido, assumindo que as representações sobre Portugal “são multímodas”, decorrendo da época em que são geradas, ao mesmo tempo “não fogem aos mitemas de quem as desenha” (Catroga, 2007: 275). 3.1. A propaganda do Estado Novo Os conceitos de ‘nação’ e de ‘nacionalismo’ tinham por base a capacidade de Portugal se organizar no seu vasto território que — segundo a Constituição de 1933, que fez transportar o articulado da de 1911 e que, a revisão de 1952 estabeleceu formalmente —, era considerado “inalienável”. Uma situação plasmada no “Acto Colonial” que referia ser “da essência orgânica da nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e civilizar as populações”1. É nesse sentido que Luís Reis Torgal verifica que a nação portuguesa, segundo Salazar, representava uma unidade, mas também uma pluralidade, “possuía diferenças, passando uma delas pela noção de que, 1 Informação disponível em http://tinyurl.com/78crfbm, acesso em 12/05/2012. 164 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia apesar de não termos ‘preconceitos raciais’ (…) possuíamos, tal como os europeus colonizadores, a responsabilidade de espalhar a civilização entre os povos da terra” (Torgal, 2009: 471). Toda a retórica construída no Estado Novo em relação à identidade nacional dos portugueses foi muito mais além do que evidenciar o sentimento de pertença a um país, partilhado por um grupo de pessoas. Tropeçou no nacionalismo e usou uma série de recursos para perpetuar ideias assentes na propaganda do regime para concretizar a acção política. Houve no salazarismo concreto “uma tentativa para adaptar o país à sua natural e evidente modéstia” (Lourenço, 2009: 33), só que isso nada teve de modesto, nem de breve. Moisés de Lemos Martins (2009: s/p) defende que a divisão que Salazar fez do mundo português deve ser perspectivada à luz do combate “por um conceito católico de identidade nacional, como luta por uma específica ordenação simbólica do país”. O mesmo autor diz existir no Portugal de Salazar “uma persistente encenação em que o país inteiro é instituído e representado como a grande aldeia rural, de alma heróica e santa, embora com o sortilégio de, citando Eduardo Lourenço, ‘não poder estar em casa senão sonhando o mundo inteiro e não bastando’” (Martins, 1996: 42). Eduardo Lourenço (2009: 76) afirma que “poucos países fabricaram acerca de si mesmos uma imagem tão idílica como Portugal”. O Estado Novo contribuiu para esse statu quo, quanto mais não fosse pelo facto de qualquer forma de investigação concreta sobre a realidade portuguesa ter sido desencorajada, quando não impedida. Ao invés, promoveu-se “a contemplação mítica do passado e do destino futuro do país, enquanto, no presente, se fazia passar a noção de estabilidade e continuidade de um Portugal essencial e a-temporal, primordial e imutável” (Matos, 2001: 7-8). Neste contexto, Eduardo Lourenço observa que “Portugal tem uma hiperidentidade porque tem um défice de identidade real”, que compensa “no plano imaginário” (Silva & Jorge, 1993: 38). José Gil (2009: 10) afirma, a este propósito, que “a doença da hiperidentidade que nos corrói” assenta no facto de se propalar a ideia de que “[somos] portugueses antes de sermos homens” , o que significa que a identidade portuguesa vive entre a realidade e a ficção, que mais não é do que a “subjectividade produzida pela doença da identidade” . A emergência do Estado Novo e, com ele, a tentativa de impor um quadro mental aos cidadãos esvaziando a sua própria vontade, não teve por base a ideia de que “a identidade de uma comunidade implica a autonomia de uma afirmação, quer dizer, capacidade de intervenção” (Martins, 1996: 62). Tratou-se de uma construção imposta pelo regime ditatorial à população, com o objectivo de “fechar a cadeia do sentido – a semiose – que vai de um passado mítico a um futuro mítico, trajecto retomado e reencarnado no presente, colectivamente, pelo povo que integrava as existências individuais” (Gil, 2009: 10). Comunicação e Cultura . 165 Vítor de Sousa & Moisés Martins Luís Reis Torgal (2009: 249) chama à atenção para o facto de que quando se refere o caso do Estado Novo português, “o termo ‘fascismo’ [ser] um termo em debate e os termos ‘autoritarismo’, ‘ditadura’ e ‘nacionalismo’ não deixam dúvidas quanto à sua atribuição como tipificadores do regime”. O certo é que, por via da caracterização feita pelo próprio regime, o regime de Salazar é conhecido por “‘ditadura nacional’, ‘autoritarismo’ (conservador ou ‘revolucionário’), mas não ‘fascista’ nem ‘totalitário’, ‘nacionalista’ mas não ‘racista’” (Torgal, 2009: 250). Seja como for, Torgal considera o Estado Novo como um “regime fascista”, reputando-o de “fascismo à portuguesa”, já que tem as suas próprias idiossincrasias: um povo rural, com pouca densidade urbana e uma mentalidade tradicional, de concepção católica, e de um Estado apostado na manutenção do seu ‘Império colonial’ (Torgal, 2009: 364). Em 1933, o Governo de Salazar criou o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), liderado por António Ferro. Na dependência directa da Presidência do Conselho, o SPN fica encarregue de fornecer “uma imagem politicamente eficaz do regime dentro e fora das fronteiras do país” (Alves, 1997) e, juntamente com as artes plásticas, o teatro e o cinema, passa a integrar as práticas e discursos etnográficos no manancial de recursos culturais que coloca ao serviço da sua retórica nacionalista. Competia ao SPN “elevar o espírito da gente”, moldando uma nova mentalidade, baseada nas certezas ideológicas do regime, “para que os portugueses não permanecessem na ignorância da sua Nação” (Silva, 2009: 4). Fernando Catroga (2007: 266) observa que Salazar, através de Ferro, defendia desde o início da década de 1930, “que o espírito como política devia dar a vez a uma ‘política do espírito’, desiderato só realizável sob a tutela de um Leviathan para quem a ‘formação das almas’ não podia estar entregue ao mercado livre das ideias”. A mensagem do regime era passada “através de um discurso simples e objectivo, com ideias claras e incontroversas, que só poderiam levar à concordância geral, pois não havia o que discutir” (Silva, 2009: 4). O próprio Salazar impunha as balizas com base nos pilares do regime, como se pode concluir através deste excerto de um discurso proferido em Braga, durante as comemorações do décimo aniversário do “28 de Maio”: “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória no trabalho e o seu dever” (Salazar, 1961: 130). Para a compreensão das políticas culturais em Portugal, o nome de António Ferro continua a ser referencial, já que a cultura se tornou com ele um eficaz instrumento de controlo social. O líder do SPN, cujo ideário se expressava na autenticidade — que defendia ser a verdadeira identidade da cultura portuguesa —, tal como Goebbels, era de opinião de que a cultura se poderia transformar num poderoso instrumento de poder ao serviço do Estado, como é o caso da construção de uma retórica cultural (Fontes, s/d), ao pragmatizar uma política que harmonizava o sebastianismo, o espiritualismo, o nacionalismo, a fidelidade à vanguarda modernista, o folclorismo. Moisés de Lemos Martins (2009, s/p) sublinha que “o discurso 166 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia salazarista sobre a identidade nacional visa tomar legítima a definição católica de identidade, pelos manifestos ganhos políticos daí resultantes”. O ‘Império Ultramarino’ era apresentado como exemplo civilizacional ao mesmo tempo que a ‘gente trabalhadora’ pululava nas aldeias lusas e, embora pobre, mostrava-se ‘feliz’, sendo apresentada como exemplo às outras nações civilizadas. Para que esses princípios vingassem, foram criados organismos estatais relacionados de uma forma ou de outra a todos os sectores da vida quotidiana e que tinham a sua propaganda própria assentes em instituições bem definidas (Rosas, 1994). José Gil (2005: 135) reputa o salazarismo como “um imenso sugadouro daquilo que torna a existência um dom da vida natural (zôê) para a vida social, a maneira de viver (bios). Um buraco negro que engoliu a existência no espaço público”. Para além de se referir à trilogia “Deus, Pátria, Família”, representando um mundo simultaneamente patriarcal, rústico e cristão, Gil vai mais longe ao sublinhar que o mal se insinuou sub-repticiamente “em nome da moral cristã e do bom senso de todos os comportamentos”, pelo que a dificuldade em lutar contra esta constatação entranhada se revelou difícil, já que “virarmo-nos contra o mal era equivalente a virarmo-nos contra nós próprios” (Gil, 2005: 135). Ou, como defende Moisés de Lemos Martins, “é a nação, na sua ‘parte melhor’, que reconhece a Ditadura, pela ratificação dos valores salvadores que a inspiram” ou seja, “a nação sanciona o sistema de valores salvadores adoptados pela Ditadura” (Martins, 1996: 158). Um acontecimento marcante da propaganda do regime do Estado Novo foi a Exposição do Mundo Português, que decorreu em Lisboa entre 23 de Junho e 2 de Dezembro de 1940. O objectivo foi o de comemorar, simultaneamente, as datas da Fundação da Nação Portuguesa (1139) e da Restauração da Independência (1640), numa mostra de grandes proporções para realçar o ressurgimento da Pátria no quadro do apogeu do nacionalismo salazarista. 4. A criação da ‘portugalidade’ No portal “Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”, é referido que a palavra ‘portugalidade’ (a par de “portugalismo”) é usada pelo Estado Novo e que por isso hoje está conotada com essa ideologia2, avançando mesmo com a possibilidade de o termo ter surgido no decénio de 50 ou 60 do século XX3 (datas que coincidem com o grande surto da emigração portuguesa para a Europa — em menos de dez anos emigraram para França mais de um milhão de portugueses). Ou seja: pode considerar-se que o ‘reforço’ do uso da ‘portugalidade’ 2 Informação disponível em http://tinyurl.com/2ueratv, acesso em 29/11/2010. 3 Informação disponível em http://tinyurl.com/2uanuhv, acesso em 29/11/2010. Comunicação e Cultura . 167 Vítor de Sousa & Moisés Martins aconteceu na sequência da Exposição do Mundo Português (1940), decorrente, portanto, do nacionalismo salazarista. De referir que, já em pleno período de pós-revolução do 25 de Abril, numas comemorações do Dia 10 de Junho, na Guarda, e a propósito de, em Portugal, se cultivarem valores lavrados no Estado Novo, como a saudade, o fado como canção-bandeira e os Descobrimentos, ideia sempre presente para ilustrar o potencial do país, Jorge de Sena chamava à atenção para a insistência “no grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna” (Sena, 1980: 257), por cantar exactamente os grandes feitos dos portugueses na epopeia marítima, a que se colava Fernando Pessoa e a sua “Mensagem”. O “Novo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea”, editado em 2001 pela Academia das Ciências de Lisboa (Casteleiro, 2001), que é considerado como de referência, não dispõe de qualquer entrada com a designação de ‘portugalidade’. De resto, quando a publicação viu a luz do dia, verificou-se um facto curioso com os deputados do CDS/PP a apresentarem, em plena Assembleia da República, um Projecto de Resolução em que propunham a manutenção de um grupo de trabalho permanente de defesa e actualização da língua portuguesa e em que se referia que a obra se constituía “num dos mais importantes actos de defesa da ‘portugalidade’ dos últimos anos e que vem colmatar, com dignidade, uma lacuna evidente na defesa da nossa língua”4. A ironia é que, como já referimos, nesse mesmo dicionário não consta a palavra ‘portugalidade’… O sinónimo de ‘portugalidade’ pode, no entanto, ser encontrado em edições mais acessíveis e vulgares, como é o caso no Dicionário da “Porto Editora”, onde se pode ler: “qualidade do que é português”, e, numa dimensão mais ampla, “sentido verdadeiramente nacional da cultura portuguesa” (Costa & Melo, 1995: 1432) sinónimo este muito embora subjectivo, confirmado pela utilização do advérbio de modo, “verdadeiramente” cuja inerência qualitativa não permite a assunção, tout court, da sua (eventual) amplitude. O ‘perigo’ de o conceito de ‘portugalidade’ poder ser conotado com o Estado Novo é feito pelo próprio António Quadros que, no entanto, se refere ao receio de ser mal interpretado pela possibilidade de ser associado a um “pecado nacionalista”. No caso concreto, refere-se ao facto de a escola dever “promover e consolidar, entre outras competências, os valores da nossa ‘portugalidade’”, salientando a necessidade de serem mostrados e ensinados “os valores portugueses” (Sousa, 1993: 75). Não será, portanto, de estranhar que os dicionários de referência da língua portuguesa não disponibilizem a palavra ‘portugalidade’. Embora se não possa dizer taxativamente que se trata de um neologismo, já que existem referências ao termo e inúmeras perspectivas de 4 Projecto de Resolução N.º 137/VIII, de 2 de Maio de 2001 [Disponível em http://tinyurl.com/2w6ovzu, acesso em 23/11/2010]. 168 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia descodificação. O princípio é sempre o mesmo: se existe Portugal, existirá uma ‘portugalidade’ o que deixa, no entanto, muitas dúvidas e corresponde a uma lógica mais emocional do que qualquer perspectiva científica. J. Pinharanda Gomes, um dos cultores da “Filosofia Portuguesa” atribui a origem da ‘portugalidade’ a António Sardinha, numa altura em que a hispanidade era hegemónica e que “designava (…) a acção portuguesa na história do mundo” (2004: s/p), defendendo, portanto, a sua origem como sendo anterior ao Estado Novo. De facto, Sardinha terá sido o grande mestre do ‘Integralismo Lusitano’ que, a par do movimento católico, se assumiu como um dos percursores aspirantes a um “Estado Novo”. Segundo Luís reis Torgal (2009: 80) no livro “O valor da raça”, editado por Sardinha em 1915, este desenvolve um discurso que classifica de “científico”, tendente a chegar a conclusões sobre a raça portuguesa, que terá tido origem no que diz ser o homo atlanticus. Nesta obra aborda os “defeitos dos portugueses” — “egocêntricos, abastardados pelos judeus (…) e por uma acção política ‘estrangeirada’, a partir do Marquês de Pombal e do Liberalismo” —, salientando restar ao povo luso robustecer-se através do municipalismo e dos mitos nacionalistas do Condestável. António Sardinha apela ao nacionalismo português, recuando à ideia ‘patriótica’ da seiscentista ‘Monarquia Lusitana’ e de Frei Bernardo de Brito, que terá introduzido em Portugal “ao lado do conceito político de Grei, o conceito relativista de raça” (Torgal, 2009: 80-81), um conceito em voga no tempo de D. João II, que expressava “a concepção jurídica dum todo uno idêntico na composição e no destino, conceito nascido da sociologia tomista” (Quintas, 2001: s/p). Luís Reis Torgal (2009: 81) refere o sentimento “nacionalista integral” como sendo “o que há de mais importante e mais significativo na ideologia do Integralismo Lusitano”, pelo que este seria mesmo, para Sardinha, ‘A verdade portuguesa’”. Porém, Sardinha nunca se referiu, especificamente, à existência de qualquer ‘portugalidade’, pelo que afirmar que o autor terá sido o primeiro a utilizar o termo, pode configurar uma apropriação indevida das suas ideias, que perfilhavam, por exemplo, a vigência de um sistema monárquico. A sua tese congregava a “Teoria do Acaso”, de Oliveira Martins (para quem Portugal tinha sido inventado pela cobiça de meia dúzia de aventureiros coroados) e o “lusismo”, de Teófilo Braga (composto pela raça, no sentido biológico-étnico, e a tradição). Segundo os integralistas, o problema da identidade da raça portuguesa é estranho ao ideário, à conceptualização e à doutrina política de António Sardinha e do próprio ‘Integralismo Lusitano’ (Quintas, 2001). O termo ‘portugalidade’ é, no entanto, profusamente atribuído ao discurso dos integralistas, não sendo apesar disso, exclusivo destes, como observa Maria Odete Gonçalves (2009: 93), muito embora esse facto provoque “uma série de tensões, quando não mesmo oposições, com o Saudosismo de Pascoaes, com a Renascença Portuguesa e com a primeira fase da Seara Nova”. Comunicação e Cultura . 169 Vítor de Sousa & Moisés Martins 4.1. ‘Portugalidade’ e portuguesismo J. Pinharanda Gomes (2004: s/p) define ‘portugalidade’ como “o nome de categoria universal que identifica o próprio Portugal”, referindo a existência de vários significados, consoante o palco contextual. No mesmo tom, está Abel de Lacerda Botelho que, numa comunicação apresentada à Secção Luís de Camões, da Sociedade de Geografia de Lisboa, intitulada “A Portugalidade e os Lusíadas” se refere a uma “Paideia Lusa”, ou seja, ao “modo de ser, e de exercitar a vida quotidianamente, à maneira portuguesa” (Botelho, 2008: s/p). Uma ideia já antes defendida por António Quadros (1992) em que faz a análise do que diz ser o “espírito lusitano”, destacando que Portugal tem uma alma e um destino a cumprir na História, assente numa estrutura cultural de nação onde está a essência do homem português. Para além destas perspectivas “messiânicas”, por conseguinte nada estribadas em factos concretos, o certo é que a palavra ‘portugalidade’ vai circulando na tradição oral, nomeadamente por altura das datas evocativas do país, como aquelas que eram profusamente comemoradas durante o Estado Novo, designadamente os dias 10 de Junho e 1 de Dezembro. Nessas ocasiões, o termo é apropriado por alguns políticos mais conservadores, que o vão usando, pro domo mea, nos discursos circunstanciais. Sobre a ideia de ‘portugalidade’ e do seu eventual significado, o ex-embaixador britânico em Portugal, Alexander Ellis, a propósito das comemorações, em Santarém, em 2009, do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, numa crónica no “Expresso”, intitulada “10 de Junho, Portugalidade e Portuguesismo”, realça o interesse que lhe desperta o “conceito alargado de Portugal”, tanto mais que refere ter assistido a um discurso do Presidente da República onde este se referiu à ‘portugalidade’. Como o tema o intrigou, pediu ajuda aos seus colegas embaixadores que lhe terão dito que ‘portugalidade’ “representa o melhor de Portugal e dos Portugueses (…) Portugalidade é então uma forma de identidade, da qual a língua portuguesa constitui um pilar essencial”. A outra face da moeda será o “Portuguesismo”, que representará “aquilo que a Portugalidade não é”, citando a título de exemplo as “atitudes de desconfiança e pouca força”, além de outras centradas na ideia de que “não vale a pena, nada muda”, em “comportamentos que envergonham”, ou até mesmo “o fechar-se na sua própria dimensão” (Ellis, 2009: s/p). A ‘portugalidade’ sonhada pelo Estado Novo apenas visava a concretização de acções do regime em nome da ‘Nação’. Hoje, aposta-se cada vez mais na denominada “marca Portugal”, o que pode levantar dúvidas, tanto mais que, como defende Boaventura de Sousa Santos (1994: 127), “a recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas está a conduzir a uma reformulação das interrelações entre os diferentes vínculos (…) nomeadamente entre o vínculo nacional classista, racial, étnico e sexual” (1994: 127). 170 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia 5. O luso-tropicalismo e a lusofonia Para a legitimação de toda a lógica do Estado Novo sobre a identidade nacional muito contribuiu Gilberto Freyre, criador do controverso conceito de “Democracia Racial”. Portugal ocupa um lugar central no pensamento do sociólogo, que foi um dos pioneiros no estudo histórico e sociológico dos territórios de colonização portuguesa como um todo, chegando mesmo a desenvolver um ramo de pesquisa que denominou de luso-tropicalismo. A idealização do colonizador português, segundo Freyre como mais ‘humano’, foi posta ao serviço do regime na segunda metade dos anos 1940 tendo as autoridades portuguesas levado mesmo o autor a visitar o ‘império’, retribuindo o sociólogo com elogios a Portugal. Na década seguinte já o luso-tropicalismo tinha sido apropriado pelo Estado Novo, justificando assim a sua longa presença em África e ratificando-a academicamente (Rosengarten, 2009). Eduardo Lourenço vê a temática da lusofonia como “uma selva obscura e voluntariamente obscurecida pela interferência ou coexistência (…) de leituras (…), mitologias culturais, de todo em todo não homólogas e, só no melhor dos casos, análogas” (Lourenço, 2004: 179). Talvez por isso Helena Sousa (2006: 9) se refira à lusofonia como “uma construção extraordinariamente difícil”, desenvolvida num espaço linguístico “altamente fragmentado, um sentimento pleno de contradições, uma memória de um passado comum, uma cultura múltipla e uma tensa história partilhada”. Mesmo que, como evidencia Alfredo Margarido (2000: 11-12), “a lusofonia [seja] apenas o resultado da expansão portuguesa e da língua que esta operação teria espalhado generosamente pelo mundo fora”, o facto é que extravasa o conceito de “objecto de mera curiosidade histórico-linguística ou até histórico-cultural” (Martins, 2006: 17), pelo que se assume, hoje, como um tema que congrega interesses “que têm a ver não apenas com aquilo que os países lusófonos são como língua e cultura no passado, mas também, sobretudo, com o presente e com o destino do ‘continente imaterial’ que estes países constituem”. Será talvez por isso que Eduardo Lourenço (2004: 174) refere que “a lusofonia não é nenhum reino, mesmo encartadamente folclórico”, extravasando uma ideia limitada de espaço linguístico. 6. Fundamentação metodológica e plano de trabalhos A nossa proposta metodológica assenta na hermenêutica, voltada para a interpretação de textos e de imagens. O objectivo será procedermos à desconstrução dos eventuais níveis de significação que venhamos a encontrar. Para tanto, propomo-nos fazê-lo em relação ao texto em si, mas também através do estabelecimento de comparações entre textos, promovendo a leitura de hipotéticos pontos comuns e alegadas divergências, Comunicação e Cultura . 171 Vítor de Sousa & Moisés Martins contextualizando-os numa perspectiva necessariamente qualitativa, assente numa lógica subjectiva, que decorre de quem investiga e da sua própria idiossincrasia. A este propósito, Moisés de Lemos Martins (2011) observa que essa tarefa de ler e interpretar textos e imagens – não circunscrevendo o seu âmbito a um objectivo apenas com preocupações académicas, mas também cívicas —, faz do investigador um hermeneuta. 6.1 Representações da ‘portugalidade’ Ao longo do período em que decorrer o nosso estudo, propomo-nos registar as representações da ‘portugalidade’ nos seguintes contextos:  A ‘portugalidade’ nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional (1935-1974) e da Assembleia da República (1976-2012)  Identidade do Governo de Portugal  A ‘portugalidade’ na publicidade  Levantamento da utilização da palavra ‘portugalidade’ e respectivos contextos (cinema, publicidade, publicação de livros e de jornais, produção de documentos oficiais…). 6.2 Contributos para a definição de um perfil do “português” São várias as teorias/opiniões defendidas por autores diferenciados que, ao longo do tempo, reflectem sobre Portugal e os portugueses. Já Camões, em “Os Lusíadas” (1921 [1572]), abordava os feitos dos portugueses e traçava-lhes o perfil. Apesar de variarem o foco de análise, introduzindo por exemplo as nuances ‘saudade’, ‘sebastianismo’, muitos outros autores se debruçaram sobre o assunto. São os casos de Fernando Pessoa (1978), António Sardinha (1922), Francisco da Cunha Leão (1971), Antero de Quental (2010 [1871]), Teixeira de Pascoaes (1998 [1920]), Jorge Dias (1995 [1950]), Manuel Laranjeira (2009 [1911]), Miguel de Unamuno (2011 [1908]), Ortega y Gasset Ortega y Gasset (2005) e Maria Rattazzi (1881). Também incluímos a música “O Inventor” (1987), da banda “Heróis do Mar”. Propomo-nos interpretar as reflexões destes autores, a partir de textos produzidos sobre Portugal e sobre os portugueses. 172 . Comunicação e Cultura Da ‘Portugalidade’ à Lusofonia 6.3 Representações do e sobre o Estado Novo Será a partir de algumas obras dos autores que se seguem, bem como através de infraestruturas construídas durante o período da ditadura, e da utilização da ‘marca Salazar’ que iremos tentar compreender e destacar as representações do e sobre o Estado Novo.  Lima de Freitas  Paula Rego  João Abel Manta  Estádio 1º de Maio (Braga)  O cinema no Estado Novo: António Lopes Ribeiro  Documentário de João Canijo, “Fantasia Lusitana” (2007)  Santa Comba Dão e a Marca Salazar 6.4 Representações do ‘Império ultramarino’: a visão no tempo do Estado Novo e no póscolonialismo Pretendemos promover um estudo comparativo entre duas obras relativas ao denominado ‘Império Ultramarino’, em dois momentos distintos: durante o Estado Novo e já neste século:  Livro “Portugal Vasto Império”, de Augusto da Costa (1934)  Livro “Portugal não é um país pequeno – contar o ‘império’ na pós-colonialidade”, de Manuela Ribeiro Sanches (org.) (2006). 6.5 Representações: Como nos vêem os povos ‘lusófonos’ (outrar-se: como o ‘outro’ nos vê a ‘nós’, ou a interpenetração identitária entre nós e o outro) No que concerne à observação das representações sobre como o ‘outro’ nos vê a ‘nós’, partimos da perspectiva de Luandino Vieira (“O livro dos guerrilheiros”, 2009), passamos por Mia Couto (“Cada homem é uma raça”, 1990), por José Eduardo Agualusa (“Milagrário pessoal”, 2010), e pelas pinturas de Malangatana. Voltamos a Mia Couto e por duas vezes: em “Terra Sonâmbula” (1992) e em “E se Obama fosse africano e outras interinvenções” (2009). Comunicação e Cultura . 173 Vítor de Sousa & Moisés Martins Referências Agualusa, J. E. (2010) Milagrário Pessoal, Lisboa: D. Quixote. Alves, V. M. (1997) 'Os Etnógrafos Locais e o Secretariado da Propaganda Nacional. Um Estudo de Caso', Etnográfica, Vol. I (2): 237-257. [Disponível em http://tinyurl.com/2ftzk2y, acesso em 12/11/2010]. Amante, M. F. 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