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INTERPELAÇÃO IDEOLÓGICA E TENSÃO RACIAL: EFEITOS DE UM GRITO.pdf

2018

Através de uma tomada de posição que visa a considerar a problemática da interpelação ideológica em relação à questão racial, apresento, neste artigo, uma análise discursiva que busca dar consequência a tal relação no modo como ela se materializa no grito “Você é negro!” que se encontra em uma das cenas do filme Ó paí, ó!. O artigo perpassa três eixos teórico-analíticos, a saber: a) a questão da interpelação ideológica tomada por uma visada que considera a problemática racial; b) o problema da denúncia no intercruzamento entre interpelação e raça; e c) a materialidade vocal do grito como forma de denúncia. Toda discussão é feita assumindo os pressupostos da Análise de Discurso de orientação materialista.

n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão INTERPELAÇÃO IDEOLÓGICA E TENSÃO RACIAL: EFEITOS DE UM GRITO IDEOLOGICAL INTERPELLATION AND RACIAL TENSION: EFFECTS OF A SCREAM Rogério Modesto* Resumo: Através de uma tomada de posição que visa a considerar a problemática da interpelação ideológica em relação à questão racial, apresento, neste artigo, uma análise discursiva que busca dar consequência a tal relação no modo como ela se materializa no grito “Você é negro!” que se encontra em uma das cenas do filme Ó paí, ó!. O artigo perpassa três eixos teórico-analíticos, a saber: a) a questão da interpelação ideológica tomada por uma visada que considera a problemática racial; b) o problema da denúncia no intercruzamento entre interpelação e raça; e c) a materialidade vocal do grito como forma de denúncia. Toda discussão é feita assumindo os pressupostos da Análise de Discurso de orientação materialista. Palavras-Chave: discurso; interpelação ideológica; tensão racial; grito. Abstract: Through a making position that aims to consider the problem of ideological interpellation in relation to the racial question, I present in this article a discursive analysis that seeks to give consequence to such relation in the way it materializes in the scream "You are black!" that is in one of the scenes of the film Ó paí, ó!. The article runs through three theoretical and analytical axes, namely: a) the question of the ideological interpellation taken by a view that considers the racial problematic; b) the problem of denunciation in the interbreeding between interpellation and race; and c) the vocal materiality of the scream as a form of denunciation. Every discussion is made assuming the assumptions of the Discourse Analysis of materialistic orientation. Keywords: discourse; ideological interpellation; racial tension; scream. 1. Introdução No famoso poema-performance Me Gritaron Negra1, da artista peruana Victoria Santa Cruz, a palavra Negra aparece num deslizamento de sentido que vai da ofensa à afirmação. Primado mesmo da metáfora sobre o sentido, nos diria Michel Pêcheux (2009), Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Temporário do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia. E-mail: roger.luid@gmail.com * 1 Disponível em: <https://youtu.be/RljSb7AyPc0>. Acesso em 09 de maio de 2018. 124 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão porque somos confrontados com o funcionamento de um significante que não está atado a um significado, mas que, ao contrário, está aberto ao possível da significação. É o sentido produzido pelo deslizamento sem origem do significante ou, em outras palavras, a polissemia, consequência necessária da incompletude da língua, como possibilidade de movimento entre o significante e o significado. Da experiência performada no poema que faz com que Negra passe a significar de outro modo, vale a pena chamar a atenção para dois pontos importantes. Em primeiro lugar, há um grito que marca a interpelação do sujeito, isto é, um grito que o chama, colocandoo no lugar de Negra. Assim, se, inicialmente, o grito vem de um terceiro como forma de insulto, após um percurso que demanda uma certa compreensão de si, o sujeito convocado para o lugar de Negra toma esse recrutamento como evidência de si mesmo, identidade, possibilidade de dizer eu. Em segundo lugar, essa experiência que marca a ressignificação da qual o poema dá conta tem como gatilho a interlocução marcada por uma exterioridade. É preciso o julgamento do outro, daquele que, de fora, vê, e na evidência do olhar, grita: Negra! Um funcionamento da interpelação que, como defenderei mais à frente, remete a uma acusação, uma denúncia. Neste artigo, a partir de uma leitura que toma como suporte teórico-analítico a Análise de Discurso que se orienta por uma perspectiva materialista2 (doravante, AD), busco tematizar a problemática da interpelação ideológica em relação à questão racial. O interesse em tal tema vem da observação de que, embora os estudos em AD tenham desde o início apontado a interpelação ideológica como fundamental nos processos de Opto pelo termo materialista para designar a Análise de Discurso vinculada ao pensamento do teórico francês Michel Pêcheux e que, no Brasil, desenvolveu-se a partir dos trabalhos de Eni Orlandi. No lugar de Análise de Discurso francesa ou Análise do Discurso pecheuteana (que silenciam o fato de que, no Brasil, os trabalhos de Pêcheux ganharam desenvolvimentos específicos e permitirem uma teorização que caminhou de maneira bastante autônoma) opto por fazer referência à Análise de Discurso vinculada à Michel Pêcheux pelo seu atravessamento pelo Materialismo Histórico, bem como pelo seu modo particular de compreender a materialidade significante. Nesses termos, teoricamente, não se nega a leitura dos trabalhos de Pêcheux, e ao mesmo tempo, politicamente, não se reproduz uma perspectiva acadêmica colonialista que eleva uma figura em particular (como em análise de discurso pecheuteana) ou uma hegemônica nacional (como em análise de discurso francesa). 2 125 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão identificação, subjetivação e discursivização, o elemento racial que pode estar aí envolvido parece ter tido pouco investimento teórico-analítico até o momento. Para dar consequência, então, a essa discussão, proponho localizar a relevância do conceito de interpelação ideológica no seio do arcabouço teórico da AD, mostrando brevemente como Pêcheux pôde desenvolver uma compreensão discursiva do processo de interpelação ideológica e sua relação com a interpretação e o sentido. Em seguida, retomo as formulações de Louis Althusser em torno do conceito supracitado, colocando-as em relação a três autores a partir dos quais será possível situar a questão racial e sua relação com o que é possível chamar de forma da denúncia (MODESTO, 2018): Frantz Fanon, Pierre Macherey e Frank Fischbach. Para finalizar, apresento um gesto de análise de uma cena do filme Ó paí, ó! em que o grito “Você é negro!” faz retornar, de maneira heurística, o que foi tratado de modo teórico ao longo deste artigo. 2. Interpelação ideológica como forma de ser sujeito Ao se referir aos fundamentos teóricos da análise automática do discurso (AAD69), Paul Henry (2010, p. 30) lembra que “[...] no momento em que escreve A análise automática do discurso e os dois textos assinados por Herbert, Pêcheux segue mais Althusser que Lacan, Derrida ou Foucault”. Denise Maldidier, por sua vez, dirá que Pêcheux foi “um althusseriano engajado na aventura da linguagem” (MALDIDIER, 2003, p. 33). Esses são apenas dois dos mais importantes nomes para a AD, e que puderam conviver com Michel Pêcheux, ressaltando o laço teórico que se estabelece, em Pêcheux, entre a AD e a figura de Louis Althusser. Um aviso que, de certa forma, parece não ser necessário haja vista o modo como a filosofia althusseriana aparece largamente em Pêcheux e seus escritos. 126 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão Retomo de modo pontual o início da terceira parte do Semântica e discurso3, de Michel Pêcheux, intitulada “Discurso e ideologia(s)”. Nela, ao pensar sobre as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção, o autor faz eco aos postulados althusserianos, ressaltando teses fundamentais para uma compreensão materialista da ideologia: i) só há prática através de e sob uma ideologia; ii) só há ideologia pelo sujeito e para sujeitos; e, também, iii) os indivíduos são interpelados em sujeitos pela ideologia. Tal eco, no entanto, tem a sua particularidade fundamental no modo como a noção de ideologia é posta em funcionamento na teoria de Pêcheux a partir da consideração da linguagem. E, nesse ponto, incide primordialmente a questão da interpretação. Ao longo desta terceira parte do célebre Semântica e discurso, Pêcheux mostra que o fato da interpretação, isto é, o fato de que a interpretação e o sentido se remetem mutuamente é, ele mesmo, um fato que atesta o trabalho da ideologia na produção dos sujeitos e dos sentidos. Pela ideologia, o sujeito é posto a interpretar de modo que, no movimento de sua constituição enquanto sujeito, os sentidos se mostram para ele de maneira evidente, justamente porque o trabalho da ideologia é a produção das evidências. Assim, o laço material entre a ideologia, a interpretação e o sentido produz uma forma de interpelação que não pode desconsiderar a linguagem, uma vez que “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 2009, p. 147, grifos do autor). O trabalho da ideologia na produção de evidências e a própria linguagem dizem, então, do processo discursivo, em que os sujeitos falam sempre a partir de um lugar, uma posição (uma formação discursiva), que é “atribuída” ao sujeito na interpelação ideológica. Nessas condições, [...] o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transferência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação Les vérités de La Palice, escrito em 1975. Aqui utilizo a quarta edição e primeira reimpressão, referente ao ano de 2009, traduzida para o portugês por Eni Orlandi, Lourenço Jurado Filho, Manoel Corrêa e Silvana Serrani. 3 127 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, 2009, p. 149, grifos do autor). Em suma, o funcionamento da ideologia como interpelação dos indivíduos em sujeitos de seus discursos torna-se possível pelo complexo das formações discursivas e do atravessamento do interdiscurso nessa complexa construção. Por tal processo, a realidade é fornecida para os sujeitos e ela se traduz “enquanto sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas – experimentadas” (PÊCHEUX, 2009, p. 149). Novamente, vemos aí um enlace que se forma pela determinação entre sujeito, sentido e ideologia e que faz ecoar um modo próprio de compreensão em torno do que Althusser indica na direção de uma desconstrução da ideologia como uma forma geral de um Zeitgeist4. 2.1 Althusser e a interpelação É em seu trabalho acerca dos aparelhos ideológicos de Estado que Althusser discutirá o funcionamento da ideologia, afirmando que “a ideologia interpela os indivíduos em sujeito” (ALTHUSSER, 1985, p. 93). Para o filósofo argelino, a interpelação acontece por meio dos aparelhos ideológicos de Estado, os quais têm a função de, ao mesmo tempo, produzir e, para produzir, reproduzir as condições de sua produção. Dito de outro modo, os indivíduos são interpelados em sujeitos, a partir do funcionamento dos aparelhos ideológicos de Estado, e, porque foram interpelados, passam a produzir a manutenção do funcionamento desses aparelhos. É assim que tais instrumentos de Estado vão continuar a interpelar sujeitos que resguardem o seu desenvolvimento. Ou seja, um “espírito do tempo, a ‘mentalidade’ da época, os ‘costumes de pensamento’ etc” (PÊCHEUX, 2009, p. 130). 4 128 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão Tomando esse funcionamento com pressuposto, Althusser buscará a todo o momento mostrar o funcionamento e a estrutura da ideologia de tal modo que seja possível compreender como trabalham os aparelhos ideológicos e como a ideologia opera na passagem dos indivíduos a sujeitos. E, para ser consequente com essa preocupação teórica, o autor enunciará proposições importantes acerca dos funcionamentos da ideologia e dos modos como ela está estruturada. Uma de suas proposições das mais importantes é a de que a ideologia é uma “representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência (ALTHUSSER, 1985, p. 85). Essa proposição, na verdade, é uma tese ligada a uma outra, a da existência material da ideologia. É na formulação dessas duas teses que Althusser investe na compreensão da estrutura e do modo como a ideologia funciona. Isso quer dizer, em outras palavras, que a ideologia, ao contrário do que amplamente se diz no senso comum – espaço no qual a ideologia é uma concepção de mundo, um ponto de vista5 –, não está subsumida a uma existência ideal ou espiritual, mas material. A ideologia, dentro dessa discussão, se manifesta por práticas, gestos específicos por menores que sejam. O modo como os sujeitos se relacionam com as coisas do mundo é fundamentalmente sustentado pela questão da materialidade. Assim, as coisas são como são pela própria evidência ideológica e isso atravessa a relação dos sujeitos com as práticas materiais sustentadas pela formação social capitalista. A ideologia, desse modo, está na forma material de apresentação das coisas e na maneira como se lida com elas: Diremos, portanto, considerando um sujeito (tal indivíduo), que a existência das ideias de sua crença é material, pois suas ideias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles mesmos definidos pelo aparelho ideológico material de onde provêm as ideias do dito sujeito. Naturalmente, os quatro adjetivos “materiais” referem-se a diferentes modalidades: a materialidade de um deslocamento para a missa, de uma genuflexão, de um sinal da cruz ou de um mea culpa, de uma frase, de uma oração, de uma contrição, de uma penitência, de um olhar, de um aperto de mão, de um discurso verbal 5 Um Zeitgeist, como pude trazer mais acima com Pêcheux. 129 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão interno (a consciência) ou de um discurso verbal externo não são uma mesma e única materialidade (ALTHUSSER, 1985, p. 91-92, grifo do autor). Através dessa discussão, Althusser proporá dois enunciados simultâneos com os quais resume a questão da representação e da existência material da ideologia, fundamental na compreensão de sua estrutura e funcionamento: “só há prática através de e sob uma ideologia e só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito” (ALTHUSSER, 1985, p. 93). É a partir, finalmente, dessa questão do sujeito – só há ideologia por ele e para ele – que uma nova proposição é enunciada: a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos (ALTHUSSER, 1985, p. 93). Essa é a proposição através da qual o filósofo argelino defenderá que toda ideologia interpela os indivíduos concretos em sujeitos concretos, de modo que a ideologia é a existência material (porque se dá a (não) ver pelas práticas materiais) responsável pela passagem sempre constante dos indivíduos em sujeitos. Entretanto, isso não quer dizer que há um fora da ideologia, um momento no qual não somos sujeitos (apenas indivíduos), pois “somos sempre sujeito e que, enquanto tais, praticamos interruptamente6 os rituais do reconhecimento ideológico, que nos garantem que somos de fato sujeitos concretos, individuais, inconfundíveis e (obviamente) insubstituíveis” (ALTHUSSER, 1985, p. 95). Em outras palavras, não há sujeitos sem prática, de modo que agir materialmente no mundo, isto é, a nossa própria existência, somente é possível porque somos sujeitos de e por práticas ideológicas. Ao dizer que a interpelação é aquilo que faz a passagem de indivíduos a sujeitos, Althusser permite que sejam pontuadas, pelo menos, duas questões. A primeira é que a interpelação é um processo. Um processo pelo qual os indivíduos podem ser pensados (e podem pensar a si mesmos) como únicos, deixando passar despercebido o fato de que a sua Acredito que tenha havido aqui um problema de tradução que produziu interruptamente por ininterruptamente. Na versão desse texto traduzido por Vera Ribeiro que se encontra na coletânea organizada por Slavoj Zizek (Um mapa da ideologia) lê-se “somos sempre já sujeitos, e que, como tais, praticamos constantemente os rituais do reconhecimento ideológico [...]” (ALTHUSSER, 1996, p. 133). 6 130 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão constituição enquanto sujeito é também, e sobretudo, uma produção em série. É assim que a reprodução das relações de produção torna-se possível. A segunda, que é derivada dessa primeira, tem a ver com o fato de que a interpelação produz um reconhecimento, uma identificação elementar: a ideologia, que nos constitui enquanto sujeitos pelo processo de interpelação, produz a evidência do eu. É novamente Althusser aquele que coloca essas questões em funcionamento a partir de exemplos os mais simples possíveis: Sugerimos então que a ideologia “age” ou “funciona” de tal forma que ela “recruta” sujeitos dentre os indivíduos (ela os recruta a todos), ou “transforma” os indivíduos em sujeitos (ela os transforma a todos) através desta operação muito precisa que chamamos interpelação, que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação policial (ou não) cotidiana: “ei, você aí!” Suponho que a cena teórica ocorre na rua, o indivíduo interpelado se volta. Nesse simples movimento físico de 180º ele se torna sujeito. Por quê? Porque ele reconheceu que a interpelação se dirigiria “certamente a ele”, e que “certamente era ele o interpelado” (e não outro). A experiência mostra que as práticas de interpelação em telecomunicação são tais, que elas jamais deixam de atingir seu homem: apelo verbal, ou um assobio, o interpelado sempre se reconhece na interpelação (ALTHUSSER. 1985, p. 96-97, grifos do autor). “Ei, você aí!”: eis a construção que marca o funcionamento mais primário da interpelação. Um chamamento que produz reconhecimento e identificação. Se o interpelado sempre se reconhece na interpelação, tal como vimos na citação acima, como o elemento racial entra em composição desse/nesse processo? 2.2 Ser “um homem de cor”: a interpelação como experiência em terceira pessoa Para dar consequência a esse questionamento, retomo a potencialidade e contundência de Frantz Fanon, autor cujo trabalho teórico dá indícios da necessidade de estarmos atentos ao caráter da racialidade na ideologia e do modo como negros e nãonegros se localizam em seu funcionamento social. 131 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão No texto Peles negras, máscaras brancas7, Fanon, dentre muitas questões, faz ver que ignorar ou negar as tensões raciais que afetam as sociedades ocidentais, como se as opressões somente existissem em virtude das classes sociais, é uma atitude a ser combatida, já que essa é uma estratégia de fortificar o racismo negando sua existência. Estar, desse modo, neutro ao fato de que ser negro é significativo é, de pronto, tomar partido por uma posição branca, posição a partir da qual o simulacro de igualdade funciona para acobertar as diferenças estruturais e simular uma não fronteira do social. Daí o fato de Fanon ser tão contundente em criticar e desconstruir a ideia francesa (mas que pode muito bem ser ampliada a outros espaços nacionais) de que não há racismo. Repreender a negação do racismo constitui todo o empreendimento intelectual demostrado por Fanon. Para tanto, Fanon percorre um caminho extenso: ele vai desde a relação do negro com a língua – para mostrar que falar como um negro ou falar como um branco constitui-se como um problema de identificação – até o pensamento negro, ou seja, aquilo que ele chama de neurose subsumida na ideia de que, em certas condições, para falar do negro é preciso “pressupor” que ele não existe a não ser como um conceito. Mas é no quinto capítulo desse seu livro que Fanon traz uma questão relevante do que quero aqui priorizar. Uma questão que também é identificada por Macherey como poderei mostrar adiante. Fanon começa esse capítulo, em que fala da experiência vivida do negro, pela introdução de dois chamamentos/xingamentos que bem funcionam como uma interpelação: “’Preto sujo!’ Ou simplesmente: ‘Olhe, um preto!’” (FANON, 2008, p. 103). Ao começar seu texto por essas expressões, Fanon reflete acerca do fato de que há um funcionamento social que provoca o negro constantemente e o situa em lugares específicos de identificação: o perigoso, o diferente, o exótico, o mau etc. Esse processo de situar o negro em lugares específicos é tão eficaz que faz com o que o próprio negro se veja configurado nessas posições enquanto sujeito. Derivando um pouco mais, seria como se certos chamamentos estivessem aí apenas funcionando para Peau noire, masques blancs escrito por Fanon em 1952. Aqui utilizo a tradução de Renato da Silveira de 2008. 7 132 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão interpelar o negro em posições construídas para não coincidirem com as posições do branco. Desse modo, se alguém diz na rua, por exemplo, “parado!”, simulando uma intervenção policial, é possível que apenas sujeitos negros olhem na direção de quem chama, visto que a reiteração de preto, logo culpado está em funcionamento atingindo a todos sem distinção – tanto aqueles que passam a se ver nessa posição, quanto os que produzem esse chamamento – justamente porque a ideologia faz com que o interpelado sempre se reconheça na interpelação. Pela consideração de que, “no mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal” (FANON, 2008, p. 104) e de que o conhecimento do corpo negro pelo próprio corpo negro é inevitavelmente afetado por uma terceira pessoa, sendo, desse modo, uma experiência em terceira pessoa, Fanon mostra que ele precisou lidar com a ambivalência de seu chamamento – preto! – como algo que produz no negro uma indecisão a respeito do que fazer. O autor traz uma experiência traumática específica construída em terceira pessoa, isto é, por um estímulo exterior, para ilustrar esse não saber que afeta o comportamento negro que oscila entre o sorriso e a lágrima: “Olhe, um preto!” Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu esboçava um sorriso. “Olhe, um preto!” É verdade, eu me divertia. “Olhe, um preto!” O círculo fechava-se pouco a pouco. Eu me divertia abertamente. “Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível. (FANON, 2008, p. 105, grifos do autor). É essa experiência que Macherey retoma para identificar um processo de interpelação em Fanon. Embora não seja essa a construção teórica operada no texto, como bem ressalta Macherey, mostrando que aqui não estamos mais diante de um pequeno teatro teórico ao modo de Althusser, é plausível, defende o autor, ver nessa experiência uma individuação que só é possível pela interpelação ideológica. Dirá Macherey que, diante da construção “Olhe, um preto!”, Fanon “a escutou de verdade, porque ela lhe foi 133 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão pessoalmente dirigida” (MACHEREY, 2012, n/p8, tradução minha9). Macherey lembra que é preciso compreender, no funcionamento dessa expressão, uma retomada que o próprio Fanon faz do conceito de “dupla consciência” enunciada bem no início do século XX por William E. Du Bois, outro teórico negro a quem Fanon frequentemente recorre. A partir da dupla consciência, o sujeito se vê ele mesmo num lugar que lhe é atribuído e, ao mesmo tempo, percebe que é assim que ele é identificado nessa experiência em terceira pessoa cujo olhar do outro produz efeito de determinação. Assim, Macherey dirá: O que marca em primeiro lugar nessa exposição é que ela sublinha a progressividade do processo no curso do qual se instala no espírito daquele que, aqui, diz “eu” o sentimento que ele não é um sujeito como os outros, mas que ele é um sujeito com alguma coisa a mais, ou, poderíamos dizer, alguma coisa a menos, porque o a mais em questão é a cor, uma característica conotada negativamente, como a falta de cor: parte-se de uma constatação ligada à intervenção de um estímulo exterior que é o olhar lançado por um observador sobre seu corpo e sobre a sua pele, constatação que está presente inicialmente por um valor objetivo e, depois, se desenvolve, no espírito daquele que vivencia essa experiência, numa tensão psíquica crescente que vai da diversão, que é uma forma de aceitação, até o sentimento de que há algo inaceitável, precisamente insuportável, pelo menos em condições normais (MACHEREY, 2012, n/p, tradução minha10). Ao retomar a expressão “Olhe, um preto!” de Fanon na relação com a expressão usada por Althusser, “ei, você aí!”, Macherey propõe pensá-las como formas de 8 “n/p” significa “não paginado”. 9 Il l’a entendue en vrai, parce qu’elle lui a été personnellement adressée. Ce qui frappe en tout premier lieu dans cette exposition, c’est qu’elle souligne la progressivité du processus au cours duquel s’installe dans l’esprit de celui qui, ici, dit « je » le sentiment qu’il n’est pas un sujet comme les autres, mais qu’il est un sujet avec quelque chose en plus, ou peut-être faudrait-il dire quelque chose en moins, car le plus en question, c’est la couleur, une caractéristique qui est connotée négativement, comme absence d’incoloration : on part d’un constat, lié à l’intervention d’un stimulus extérieur qui est le regard porté par un observateur sur son corps et sur sa peau, constat qui présente au départ une valeur objective ; puis se développe, dans l’esprit de celui qui vit cette épreuve, une tension psychique croissante conduisant de l’amusement, qui est une forme d’acceptation, au sentiment qu’il y a là quelque chose d’inacceptable, de proprement invivable, du moins dans des conditions normales. 10 134 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão interpelação que colocam o sujeito na evidência de que ele é sujeito. Contudo, o autor também chama atenção para o fato de que há diferenças singulares e necessárias de serem observadas em funcionamento aqui. Se essas são duas expressões constituídas em linguagem, é preciso que se enfoque que a forma de interpelação de Althusser tem sua força justamente de sua característica puramente verbal. Ela, sendo um acontecimento puramente linguístico, de alguém que, pelas costas do outro, chama (interpela), escapa do julgamento do olhar. De maneira diferente, a expressão colocada por Fanon está posta num confronto face a face. Sua produção envolve um olhar a partir do qual se coloca em funcionamento um veredito incontornável e definido pelo outro, gesto que demanda um olhar terceiro e um olhar de si. Para Althusser, o sujeito está definido pelo lugar que ele ocupa no interior de um espaço de linguagem, o que faz com o que o estado do sujeito como sujeito esteja definido pela ordem do dizível. Para Fanon, na contraparte, dirá Macherey, o sujeito (e é bom que se ressalte, o sujeito-de-cor) é constituído na ordem do visível, do que se pode dizer à luz do dia, claramente, e eis aí uma questão fundamental. Nesse funcionamento de interpelação ideológica, dizer “Olhe, um preto!” é como que fazer uma acusação, uma denúncia. É interpelar pela denúncia, e aí a denúncia passa a ser um dispositivo de interpelação, uma ferramenta disponível ao sujeito para produzir identificações. 2.3 Interpelar, acusar, denunciar Dos muitos funcionamentos das formas da denúncia (MODESTO, 2018), é possível dizer que a compreensão fundamental da denúncia retoma a própria performance da acusação. A denúncia é, nesse sentido, culpabilizar, tornar o outro culpado, responsável, implicado com uma posição-sujeito construída nesse processo de interpelação para o qual venho chamando atenção. Para o teórico francês Frank Fischbach, embora seja necessário reconhecer que não se deve reduzir a interpelação a um sentimento de culpa, é possível dizer que a interpelação 135 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão é, ela mesma, culpabilizante, de modo que “ela culpabiliza na verdade aquele a quem ela se volta” (FISCHBACH, 2008, p. 125, tradução minha11). Igualmente pela retomada da formulação de Althusser – “ei, você aí!” – o autor dirá que ela não se produzirá a qualquer momento nos mais diversos funcionamentos dos aparelhos ideológicos se não for preciso chamar atenção, no sentido de reprovar, alguma atitude em vias de acontecer. Assim, esse modo de interpelação visará a colocar o sujeito em seu lugar, isto é, no funcionamento normal e esperado de seu lugar social enquanto sujeito: será destinada a um pedestre que anda fora da faixa, por exemplo, ou a um aluno que está de pé durante a aula, quando deveria estar sentado. Dessa constatação, o autor dirá que “a interpelação é, assim, uma acusação, um gesto de pôr a culpa” (FISCHBACH, 2008, p. 25, tradução minha12) o que faz da interpelação não apenas um processo, uma passagem, de transformação dos indivíduos em sujeitos, mas também um processo em que o sujeito é transformado em culpado, em responsável por alguma coisa. No que toca ao processo de interpelação ideológica em sua relação com as questões raciais, vale a pena refletir sobre como esse processo interpelativo provoca uma acusação, tornando o sujeito responsabilizado de si. Dito de outro modo, ao interpelar pelo chamamento que tensiona a cor da pele – “Olhe, um preto!” – um duplo funcionamento precisa ser destacado: i) primeiro, o sujeito é provocado, a partir de um estímulo externo, um olhar em terceira pessoa, a se reconhecer como preto, na medida em que ele é reconhecido pelo outro dessa forma – reconhecimento negativo e que coloca o interpelado em seu lugar; ii) depois disso, é importante notar como essa provocação-chamamento desliza discursivamente passando a funcionar também como um xingamento, uma injúria racial, que acusa o sujeito de ser – ele é preto/ele é culpado. Dessa forma, o processo de interpelação ideológica parece acontecer não apenas alcançando a todos, como nos mostrou Althusser, mas como um processo que alcança a todos diferenciando-os e, nesse quesito, o 11 Elle culpabilise de fait celui à qui elle s’adresse. 12 L’interpellation est donc une accusation et une mise en faute. 136 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão sujeito reconhecido como negro é duplamente afetado pelo efeito culpabilizante da interpelação. É apoiado nessas formulações que proponho aqui a denúncia como uma evidência produzida pela interpelação. Se, por um lado, há um funcionamento interpelativo a partir do qual o sujeito é colocado em determinado lugar, enquanto sujeito, por uma experiência em terceira pessoa; e se, por outro lado, a interpelação permite, ao mesmo tempo, que se produzam sujeitos e culpados (sujeitos-culpados), é preciso, então, compreender que esse chamamento, essa interpelação, atravessa as práticas materiais que obrigam os sujeitos a verem a si mesmos em certos lugares de identificação e, simultaneamente, atribuírem aos outros diferentes lugares de identificação. Nessa perspectiva, quando a denúncia irrompe cortando o social em dois, dividindo o mundo existente em denunciante e denunciado, a partir das evidências que permitem essa clara construção de lugares de identificação, ela passa a ter, também, um funcionamento paradoxal de interpelação. A ideologia se apresenta materialmente para e por sujeitos de práticas. Por isso, no que toca às questões raciais, os lugares de identificação produzidos pela interpelação também produzem sentidos outros que confrontam os sujeitos aí interpelados não só em relação ao seu (re)conhecimento, mas também em relação a um desconhecimento de si: ele é, muitas vezes, o perigoso, o culpado, o denunciado. Posições que entram em negociação contraditória no momento em que se demanda uma elaboração dos sentidos e dos corpos dos e para os sujeitos negros. 3. “Você é negro!”: um grito de denúncia Como enunciei no momento da introdução, quero aqui pensar o grito como acusação e denúncia. Assim, o grito passa a ser uma materialidade significante atravessada por um processo de interpelação que provoca diferentes posições e diferentes processos de identificação. A pergunta que norteia o gesto analítico é: como compreender o grito como 137 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão uma materialidade disponível à interpelação e que coloca o sujeito em certo lugar pelo funcionamento da culpa? Souza (2011), que lida com os gritos e sussurros nas músicas (de amor) das cantoras femininas de rádio, fornece algumas compreensões que são importantes para produzir um gesto analítico sobre o grito. O autor parte do princípio de que é possível vincular a sonoridade do grito a uma historicidade que, por sua vez, se vincula a uma forma de discurso. Assim, se os sussurros se vinculam ao discurso amoroso – consideração feita a partir de uma análise de Eni Orlandi – o autor vai dizer que “gritar é implicar-se no lugar da denúncia perante o poder como dimensão discursiva que obriga e caça a palavra ao sujeito” (SOUZA, 2011, p. 96). Em outras palavras, o autor é contundente em afirmar a denúncia como historicidade do grito que o vincula a um discurso de negação do outro e imposição de uma verdade. Na sequência, Souza dirá que, ao contrário do sussurro, que fecha os contornos da enunciação no âmbito do privado, “o grito, mediante o amoldamento acústico da voz, assinala a atitude de escancarar para fora não importa o que se diz e quem diz” (SOUZA, 2011, p. 96). Outra consideração fundamental é feita. Dirá o autor que: O que se ostenta com o grito é o confronto de forças ligadas entre si por dominação e submetimento. O grito é o ato pelo qual dominador e dominado, em suas respectivas posições de discurso, colocam-se mutuamente em risco. O que pode o carrasco perante o grito de sua vítima denunciando o limite do que não pode mais calar? (SOUZA, 2011, p. 9697). Tomo a pergunta de Souza (2011) lançada acima como um indício que nos leva à compreensão da divisão entre acusador/acusado que se estabelece na instauração de sentidos da materialidade do grito. Assim, tanto o grito do carrasco quanto o grito da vítima irão produzir identificações fortes na disputa pela palavra e pela afirmação de si. Na cena aqui em análise há um confronto que põe em choque, em disputa, o acusador e o acusado. Diante do grito “Você é negro!”, dirigido ao personagem de Lázaro Ramos (Roque) pelo 138 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão personagem de Wagner Moura (Boca), aquele que é acusado de ser negro, aquele que é interpelado a se reconhecer nesse lugar, não fica sem dar uma resposta colocando, assim, um outro grito que impõe uma demanda, um reconhecimento e uma identificação. Gesto de resistência que visa a desautorizar o uso da interpelação ideológica atravessada pela tensão racial como funcionando apenas para produzir mais opressão e subjugação. A partir da narrativa do filme Ó paí, ó!, chegamos ao conflito que vem se desenhando ao longo do filme e que chega a seu ápice nos gritos de Roque e Boca. Roque, nós sabemos, é um artista do Pelourinho. Canta, dança, compõe, pinta. Ao longo do filme, vemos que ele se propõe a realizar certos serviços solicitados por Boca apenas para ter o dinheiro necessário para comprar sua fantasia de carnaval, um abadá que lhe dará acesso ao bloco Araketu, onde espera poder ouvir sua música cantada pelo famoso cantor Tatau. Boca, por seu turno, é uma figura um pouco mais enigmática no filme. Sabemos que seu nome é Moisés e que ele se ausenta de tempos em tempos do Pelourinho. Na trama do filme, ele solicita os serviços de Roque em dois momentos. O primeiro, para pintar ilegalmente um carro, a fim de que ele se torne um táxi. O segundo para que Roque produza dez carrinhos de café que serão utilizados no carnaval. Esses carrinhos, como o fio do discurso dá a perceber e a memória discursiva em torno do carnaval de Salvador também, serão usados para venda de drogas. A princípio, então, além de estelionatário, Boca seria um traficante de drogas. Acontece que está em funcionamento no filme um equívoco que nos confere, de um lado, a indecisão em torno da identidade da personagem e, de outro, uma certeza de práticas que se coadunam e não são estranhas ao modo de ver determinados sujeitos sociais. Desse modo, embora não fique claramente posto que Boca é um policial, pela história do táxi há um indício dessa questão e a narrativa mostra que tal posição não é divergente daquilo do que se pode esperar dos operadores do aparelho de “segurança” do Estado. Numa das cenas do filme, Reginaldo, o taxista, e Maria, sua companheira grávida, conversam sobre um futuro fora do Pelourinho. Maria pede para que Reginaldo dê um rumo ao táxi do esposo que, ao que parece, está parado por algum tipo de problema mecânico. Reginaldo, em resposta, diz que o táxi está “morto e acabado”, que dele só havia sobrado 139 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão a placa que seria aproveitada em um outro carro providenciado por um amigo. Aflita, Maria questiona o envolvimento de Reginaldo com gangters, ao que o taxista responde que não está envolvido com nenhum gangster, pois quem lhe conseguiu o novo carro foi um policial. Esse novo carro é justamente aquele que Boca pediu para que Roque pintasse para que ficasse com cara de táxi. Sendo ou não uma mentira (de muitas outras) que Reginaldo conta para sua esposa, a possibilidade de Boca ser um policial está posta. E sendo um policial, Boca é também um estelionatário, um traficante, um corrupto ou, nas palavras da esposa de Reginaldo, um gangster. Não é à toa, então, que a personagem de Boca configure ao longo do filme como um dos antagonistas principais construídos ao longo da narrativa. Ele centraliza a contravenção e a corrupção que pode muito bem ser exercida pelos que têm poder, pelos que estão em outra relação com a dominação. Aliado a tudo isso, faz sentido também o fato de que essa figura do policial corrupto13 seja interpretada por um ator branco que, no filme, coloca sua branquitude a serviço do racismo, especialmente no seu modo de tratamento com Roque. No confronto final entre Roque e Boca, então, estamos diante do confronto que condensa todos os antagonismos dispostos na política de reordenamento urbano criticado no filme. É o confronto entre o bem e o mal, o preto e o branco, o dominado e o dominador, o sujeito ordinário e o policial (corrupto), o morador e o poder político e demais disjunções possíveis a partir dessa oposição social. Um confronto entre o negro e um dos principais agentes de Estado responsável por seu genocídio. As fronteiras se marcam e a denúncia vem à tona por gritos que, novamente conforme Souza (2011), deixam bem expostas as posições discursivas de quem domina e de quem é dominado, como posições que se mostram mutuamente em risco. Aqui, cai como uma luva a pergunta que é feita pelo autor: No filme, há também a figura do policial fodido. Esse personagem é negro e está, boa parte do filme, com a farda da Policia Militar do Estado da Bahia. Completamente contrário a Boca, esse personagem não tem poder, não tem dinheiro e faz bicos para poder complementar a renda. É justamente ele, cumprindo o que havia combinado com um dono de loja do Pelourinho cansado de ser importunado pela “molecagem” do local, o responsável pelas mortes de duas crianças ao final do filme. 13 140 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão “o que pode o carrasco perante o grito de sua vítima denunciando o limite do que não pode mais calar?” Após uma discussão em torno do fato de Boca querer levar os carrinhos de café da loja de Roque mesmo sem todo dinheiro do serviço, segue-se ao seguinte diálogo: - Roque: Eu já suportei demais o seu escárnio! Suportar é a lei da minha raça, tá ligado? Agora é assim: eu quero o dinheiro todo, quero ver quem vai tirar esses carrinhos daqui. - Boca: Rapaz, você é escroto! - R: Eu só tô seguindo seu exemplo! - B: Exemplo o quê, rapaz? Você é negro! Certo? Você é negro! VOCÊ É NEGRO! VOCÊ É NEGRO!! VOCÊ É NEGRO! VOCÊ É NEGRO! VOCÊ É NEGRO! VOCÊ É NEGRO! VOCÊ-ÉNEGRO! - R: Eu sou negro. Eu sou negro sim, mas por acaso negro não tem olhos, Boca? Hein? Negro não tem mão, não tem pau, não tem sentido, Boca? Hein? Não come da mesma comida? NÃO SOFRE DAS MESMAS DOENÇAS, HEIN? NÃO PRECISA DOS MESMOS REMÉDIOS? QUANDO A GENTE SUA, NÃO SUA O CORPO TAL QUAL UM BRANCO, BOCA? HEIN? QUANDO VOCÊS DÃO PORRADA NA GENTE A GENTE NÃO SANGRA IGUAL, MEU IRMÃO? HEIN? QUANDO VOCÊS FAZEM GRAÇA A GENTE NÃO RI? QUANDO VOCÊS DÃO TIRO NA GENTE, PORRA, A GENTE NÃO MORRE TAMBÉM?? POIS SE A GENTE É IGUAL EM TUDO ENTÃO NISSO TAMBÉM VAMOS SER, CARALHO! (Faz-se um logo silêncio. Boca mexe os lábios tentando articular uma resposta) - B: Vá tomar no cu! Toda construção em caixa alta sinaliza a incidência da modulação vocal que se dá pela entoação do grito. Os corpos e as vozes se desafiam em um enfretamento político das formações discursivas. Na enunciação gritada, a ausência de pausas e o texto estruturado que é quase como proclamado por Roque ganha contornos não só de lição de moral, mas de discurso de insubmissão e denúncia (vocês matam a gente, vocês dão porrada na 141 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão gente...). Entre vocês e a gente, as perguntas – hein? – reforçam a incapacidade de interlocução instaurada pela voz em alto no grito, pois tais perguntais não provocam reação do outro, mas expõem a ele as suas contradições. Não se buscam respostas nesse confronto, mas, ao contrário, evidencia-se a dureza e irracionalidade das práticas da dominação. Práticas que são postas em suspenso pelo modo como se pensa uma igualdade de posições. Por outro lado, entre a exigência da submissão, porque o outro é o negro, e a resistência e enfretamento desse sujeito que se diz eu sou negro sim, as vozes dramatizam algo que é tornado verdadeiro pela potência da voz em alto. O grito testemunha o desafio das posições-sujeito e da imposição das fronteiras sociais. No fim, diante do grito que é o limite do que não se pode mais calar, o grito que não suporta mais o escárnio, o carrasco perde a fala, proferindo em seguida uma ofensa (vá tomar no cu!) que não encontra mesmo lugar de potência. Nesse confronto de posições, o efeito da narrativa cinematográfica textualiza a vitória do dominado sobre o dominador. Aqui a imposição da voz e a construção do corpo que desafia coloca as posições em lugares de igualdade. Cabe à luta reservar o lugar daquele que vence. O que volta sobre a discussão que venho empreendendo desde o início deste texto é justamente a evidência do ser negro como um fato que não se contorna e que por si só concentra toda sujeição negra. Ao analisarmos o confronto entre Roque e Boca vemos uma diferença que se ancora justamente na evidência do sujeito e da sua experiência em terceira pessoa: se a resposta insubmissa de Roque articula um texto que evoca a construção de uma igualdade entre vocês e nós, ainda que o outro (o branco, esse que ocupa o lugar de vocês) imponha a sua dominação; por outro lado, Boca se limita a acusar Roque a partir do grito de um enunciado que recorta da memória discursiva as formas racistas de “colocar o outro em seu lugar”. Assim, o grito “Você é negro!”, repetido diversas vezes por Boca, funciona por efeito de paráfrase (PÊCHEUX, 2006) de tal modo que uma cadeia significante se abre a partir da alusão “negro”: você é negro diz também você é inferior, você não é ninguém, você não tem valor, você não pode falar assim comigo, bem como diz eu sou melhor do que você, você me deve sujeição e respeito, como ousa falar assim comigo etc. 142 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão Se Roque, por um lado, tem sua resposta bem estruturada e, consequentemente, consegue atacar o problema do racismo e da sujeição que é imposta ao sujeito negro, Boca, por seu turno, limita-se a interpelar-acusar pela excessiva repetição de um grito: “Você é negro!”. Esse descompasso mostra bem o funcionamento do estímulo em terceira pessoa, do qual nos fala Fanon, bem como do papel acusatório da interpelação ou mesmo do reconhecimento que ela busca produzir, porque a repetição do grito em pauta diz muitas coisas em apenas um significante. Enquanto Boca reconhece Roque como negro, buscando reduzir seu interlocutor à posição de inferioridade (porque, para ele, basta dizer negro para que um lugar de inferioridade, culpa e submissão seja erigido), Roque se desconhece desse lugar fazendo com que seu reconhecimento como negro não coincida com o lugar de identificação que seu oponente busca produzir. Assim como Victoria Santa Cruz foi gritada Negra! e Fanon Preto! para serem confrontados com uma sua subordinação proveniente do processo que os fizeram passar de indivíduos para sujeitos-negros, também Roque passa por essa experiência em terceira pessoa que o faz precisar a elaboração de si como sujeito. Esses três – Santa Cruz, Fanon e Roque – são interpelados, reconhecidos pelo outro e por eles mesmos, acusados e denunciados nesse processo de reconhecimento como negro, mas, ainda assim, conseguem desafiar esse lugar, dando vazão a sentidos outros. Na evidência que interpelação ideológica busca produzir, sentidos em disputa marcam a questão que atravessa as tensões raciais e o modo como o sujeito-negro se elabora como negro. Se um grito é lançado para dar a ver que o negro é negro, a apropriação desse grito, por esse que sofre com tal estímulo em terceira pessoa, é também uma desapropriação dos sentidos primeiros que dão lugar a sentidos alhures. Uma desapropriação nada fácil de se produzir, vale pontuar, porque a reelaboração do corpo negro que permite a desestabilização das sinonímias racistas que se impregnam ao significante negro vem, em geral, a partir de um processo de lutar, de dor, de resistência, de sangue. Oxalá os corpos-sujeitos-negros encontrem condições de produção a partir das quais seja possível produzir outras identificações na luta antirracista! Se “a interpelação ideológica como ritual supõe o reconhecimento de que não há ritual sem falha, desmaio ou rachadura” (PÊCHEUX, 1990, p. 17, grifo do autor), lembremos também de que “uma 143 ISSN 2177-8868 n.17, 2018 Programa de Pós-Graduação em Letras | Universidade Federal do Maranhão palavra por outra é uma definição [...] da metáfora, mas é também o ponto em que um ritual chega a se quebrar no lapso ou no ato falho” (PÊCHEUX, 1990, p. 17). Com Santa Cruz, Fanon, Roque e tantos outros aprendemos que o ritual de interpelação que produz um lugar de submissão para o negro, a partir, inclusive, do reconhecimento da atribuição do significante negro, pode se quebrar em algum momento do movimento dos sentidos dispostos através do atravessamento da língua pela história. Diante, então, desses confrontos de sentido, que ressoem as palavras de Santa Cruz: “Al fin comprendí/Ya no retrocedo/Y avanzo segura/Avanzo y espero/Y bendigo al cielo porque quiso Dios que negro azabache fuese mi color”. Referências ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. _______. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: notas para uma investigação. In: ZIZEK, S. (org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. FANON, F. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. FISCHBACH, F. Les sujets marchent tout seul: Althusser et l’interpellation. In: Bourdin, J-C. (org.). Althusser: une lecture de Marx. Paris: Presses Universitaires de France: 2008, p. 113-145. HENRY, P. Os fundamentos teóricos da “análise automática do discurso”de Michel Pêcheux (1969). In: GADET, F; HACK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 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