UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DIEGO DO NASCIMENTO RODRIGUES FLORES
MACHADO DE ASSIS, POETA-TRADUTOR
VITÓRIA
2019
DIEGO DO NASCIMENTO RODRIGUES FLORES
MACHADO DE ASSIS, POETA-TRADUTOR
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras do Centro de Ciências Humanas e
Naturais da Universidade Federal do Espírito
Santo, como requisito parcial para obtenção do
Grau de Doutor em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa
de Carvalho.
Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Luis Araújo de
Oliveira Batista
VITÓRIA
2019
DIEGO DO NASCIMENTO RODRIGUES FLORES
MACHADO DE ASSIS, POETA-TRADUTOR
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras, do Centro de Ciências Humanas e
Naturais da Universidade Federal do Espírito
Santo, como requisito para obtenção do título de
Doutor em Letras.
Aprovada em 1 de outubro de 2019.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador
___________________________________
Prof. Dr. Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista
Universidade Federal do Espírito Santo
Coorientador
____________________________________
Profa. Dra. Arlene Batista da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo
Membro Titular Interno
____________________________________
Prof. Dr. Vitor Cei Santos
Universidade Federal do Espírito Santo
Membro Titular Interno
____________________________________
Prof. Dr. Marcelo Paiva de Souza
Universidade Federal do Paraná
Membro Titular Externo
____________________________________
Prof. Dr. Walter Carlos Costa
Universidade Federal do Ceará
Membro Titular Externo
A Débora, minha esposa, sem cujo apoio
incondicional esta tese não teria sido possível.
A Dante, meu filho, que nasceu quando eu
começava esta tese e que, sem compreender, tanto
sacrificou nos primeiros anos de sua vida.
AGRADECIMENTOS
A todos da minha família, pelo apoio constante e irrestrito.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho, pelo encorajamento,
pelas sugestões, pelas leituras atentas, pelas aulas e pelas conversas que deram direcionamentos
imprescindíveis a esta tese.
Ao meu coorientador, Prof. Dr. Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista, por ter gentilmente
aceitado a difícil tarefa de me auxiliar na finalização deste trabalho, pelos inestimáveis
conselhos e pelo rigor científico com que tanto contribuiu.
Ao Prof. Dr. Vitor Cei, que muito gentilmente me auxiliou na tradução da versão alemã de “O
casamento do Diabo”.
Ao Prof. Dr. José Américo Miranda de Barros, pelas leituras, sugestões, conversas e
descobertas que compartilhamos.
À Prof. Dra. Arlene Batista da Silva, cujas preciosíssimas sugestões durante a qualificação que
em muito melhoraram este trabalho.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Letras, pelas aulas, leituras, debates,
conversas e por serem os modelos em quem me espelho.
A todos os colegas, mestrandos e doutorandos, com quem compartilhei ótimos momentos.
Ao Campus Serra do Instituto Federal do Espírito Santo, que me acolheu afetuosamente quando
eu começava este trabalho, em especial aos Diretores Wagner Teixeira da Costa e Gilmar Luiz
Vassoler, por todo o apoio e encorajamento.
“No final das contas, toda
poesia é tradução.”
Schlegel
RESUMO
Buscamos estudar e perfilar, de maneira tão abrangente quanto possível, o poeta-tradutor
Machado de Assis a partir dos poemas por ele traduzidos em confronto com os textos-fonte de
que ele possa ter se servido. O corpus estudado compreende todas as traduções interlinguais
incluídas em Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) e Ocidentais (1901) e as
onze traduções poéticas que o autor escolheu não incluir em seus livros. Adotando um viés
metodológico bermaniano de crítica de tradução, estudamos cada uma de suas traduções de
poesia, investigando os traços que poderiam nos ajudar a encontrar um projeto de tradução, um
modus operandi machadiano do traduzir. Pressupondo que as traduções não se produziram
isoladamente, nem são textos meramente secundários, procuramos mostrar que, em alguns
casos, é possível correlacioná-las a outros momentos de sua produção poética ou ficcional,
sugerindo que também esses poemas traduzidos se inserem organicamente no restante de sua
produção autoral. Tais escolhas nos levaram a adotar a tese de que a prática da tradução surge
como um espaço de experimentação poética em que o poeta-tradutor buscava sua autonomia e
a reafirmação de sua tradição literária, desembocando numa poética em que as várias e
recorrentes dissidências em relação aos textos e autores que traduziu apontam para uma
frequente e cada vez mais visível independência do poeta-tradutor frente ao texto estrangeiro.
Isso nos levou a concluir que as traduções poéticas de Machado de Assis sempre foram feitas
sem deferência servil ao texto ou autor estrangeiro, carregando consigo a marca do poetatradutor, obrigando-nos a ler esses poemas como novos originais que frequentemente dialogam
com o restante de sua produção autoral e principalmente com sua visão de mundo e de literatura,
além de terem sido instrumentais na sua formação como escritor.
Palavras-chave: Estudos da tradução. Crítica de tradução. Tradução de poesia. Machado de
Assis.
RÉSUMÉ
Notre objectif était d’étudier et de profiler, de la manière la plus complète possible, le poètetraducteur Machado de Assis à partir des poèmes qu’il a traduits par rapport les sources qu’il
aurait pu utiliser. Le corpus étudié comprend toutes les traductions interlinguales incluses dans
Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) et Ocidentais (1901) et les onze
traductions de poésie que l’auteur a choisie de ne pas inclure dans ses livres. En adoptant un
parti pris bermanien de la critique de traduction, on a étudié chacune de ses traductions
poétiques en y cherchant les traces qui pourraient nous aider à trouver un projet de traduction,
un modus operandi machadien du traduire. En supposant que les traductions n’aient pas été
produites isolément, ni ne soient simplement des textes secondaires, on a essayé de les corréler,
quand possible, au reste de sa production, à la fois poétique et fictive, afin de démontrer que
ces poèmes traduits peuvent également être insérés organiquement dans sa production d’auteur.
Ces choix nous ont amenés à adopter la thèse selon laquelle la pratique de la traduction apparaît
comme un espace d’expérimentation poétique dans lequel le poète traducteur cherche son
autonomie et réaffirme sa tradition littéraire, ce qui nous amène à une poétique dans laquelle
les diverses et récurrentes dissidences relatives aux textes et aux auteurs qu’il a traduits
soulignent une indépendance fréquente et de plus en plus visible du traducteur-poète devant le
texte étranger. Cela nous a amenés à conclure que les traductions poétiques de Machado étaient
toujours faites sans déférence servile pour l’auteur ou le texte étranger, portant les marques du
poète-traducteur, nous obligeant à lire ces poèmes comme des nouveaux originaux qui ont joué
un rôle déterminant dans sa formation d’écrivain.
Mots-clés : Études de traduction ; critique de traduction ; traduction de poésie ; Machado de
Assis ;
ABSTRACT
We aimed at studying and profiling, as broadly as possible, the poet-translator Machado de
Assis based on the poems he translated in confrontation with the sources he may have used.
The corpus studied comprises all interlingual translations included in Crisálidas (1864),
Falenas (1870), Americanas (1875) and Ocidentais (1901) and the eleven translations of poetry
that the author chose not to include in his books. Adopting the bermanian view of translation
criticism, we studied each one of his translations of poetry investigating in them the traces
which could help us find a translation project, a machadian modus operandi of translating.
Assuming that the translations were not produced isolatedly, nor are they merely secondary
texts, we tried to correlate them to the rest of his production, both poetic and fictional, in an
attempt to demonstrate that also these translated poems can be organically inserted into the rest
of his authorial production. Such choices led us to adopt the thesis that the practice of translation
emerges as a space of poetic experimentation in which the poet-translator sought his autonomy
and reaffirmation of his literary tradition, leading to a poetic in which the various and recurrent
dissentions in relation to the texts and authors he translated point to a frequent and increasingly
visible independence of the poet-translator when faced with the foreign text. This led us to
conclude that the Machado de Assis’ poetic translations were always made with no slavish
deference to the foreign text or author, carrying along with them the marks of the poettranslator, making us read these poems as new originals which were instrumental in his
formation as a writer.
Keywords: Translation studies; translation criticism; translation of poetry; Machado de Assis;
Lista de figuras
Figura 1 - Reprodução da primeira publicação de “A uma donzela árabe” ........................... 110
Figura 2 - Reprodução da primeira publicação de “Souvenir d’Exil” ................................... 116
Figura 3 - Reprodução do manuscrito de “O casamento do diabo” ....................................... 121
Figura 4 - Reprodução da primeira publicação de “As ondinas” ........................................... 179
Figura 5 - Reprodução da primeira publicação de “Maria Duplessis” ................................... 185
Figura 6 - Reprodução da publicação de “O rei dos ôlmos” na Semana Ilustrada ................ 210
Figura 7 – Reprodução da primeira publicação de “O primeiro beijo”. ................................ 223
Figura 8 - Reprodução da primeira publicação de “Cegonhas e Rodovalhos” ...................... 258
Figura 9 – Reprodução da publicação de “Versos a Emma” ................................................. 276
Figura 10 - Reprodução da primeira publicação de “Das Herz / O Coração” ....................... 331
Figura 11 – Reprodução da primeira publicação de “Seis dias em Cuiabá” .......................... 352
Figura 12 – Reprodução da publicação do “Prólogo do Intermezzo” em A Semana ............. 386
Figura 13 – Reprodução da primeira publicação da tradução do “Canto XXV” do “Inferno”
................................................................................................................................................ 397
Lista de quadros
Quadro comparativo 1 – Tradução de Joaquim Serra de poema de Victor Hugo .................... 56
Quadro comparativo 2 – “Minha Mãe” e “En recevant le portrait de ma mère” ..................... 95
Quadro comparativo 3 – “A uma donzela árabe” e “À une jeune árabe” .............................. 106
Quadro comparativo 4 – “Souvenir d’Exil” e tradução de Machado de Assis ...................... 114
Quadro comparativo 5 – “Lúcia” e “Lucie” ........................................................................... 141
Quadro comparativo 6 – “La jeune captive” e “A jovem cativa” .......................................... 157
Quadro comparativo 7 – “Cleópatra” e “Cléopâtre” .............................................................. 165
Quadro comparativo 8 – Terceira estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”.
................................................................................................................................................ 170
Quadro comparativo 9 – Nona estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”. .. 171
Quadro comparativo 10 – “As ondinas” e “Les ondines” ...................................................... 176
Quadro comparativo 11 – “Maria Duplessis” e “M.D.” ........................................................ 186
Quadro comparativo 12 – “Alpujarra” e versão francesa de “Alpuhara” de Mickiewicz...... 194
Quadro comparativo 13 - Correspondências da tradução de Machado de Assis com as versões
polonesa, francesa e inglesa ................................................................................................... 198
Quadro comparativo 14 – “O rei dos ôlmos” e “Erlkönig”.................................................... 206
Quadro comparativo 15 – “Serenade” e “Lua da estiva noite” .............................................. 217
Quadro comparativo 16 – “El primer beso” e “O primeiro beijo” ......................................... 225
Quadro comparativo 17 – “A Elvira” e “A El***” ................................................................ 238
Quadro comparativo 18 – “Os deuses da Grécia” e “Les Dieux de la Grèce” ....................... 243
Quadro comparativo 19 – Diferenças entre as versões da Semana Ilustrada e Falenas do poema
“Cegonhas e Rodovalhos”...................................................................................................... 255
Quadro comparativo 20 – “Cigognes et Turbots” e “Cegonhas e Rodovalhos” .................... 260
Quadro comparativo 21 – “Estâncias a Ema” e poema francês extraído do romance “La Dame
aux Perles” ............................................................................................................................. 268
Quadro comparativo 22 – “Coração triste falando ao sol” e “Le cœur triste au soleil”......... 299
Quadro comparativo 23 – “A folha do salgueiro” e “La feuille de saule” ............................. 300
Quadro comparativo 24 – “O poeta a rir” e “Un poète rit dans son bateau” ......................... 302
Quadro comparativo 25 – “A uma mulher” e “A la plus belle femme du bateau des Fleurs”303
Quadro comparativo 26 – “O imperador” e “L’empereur” .................................................... 305
Quadro comparativo 27 – “O leque” e “L’éventail” .............................................................. 307
Quadro comparativo 28 – “As flores e os pinheiros” e “Les petities fleurs se moquent des graves
sapins” .................................................................................................................................... 308
Quadro comparativo 29 – “Reflexos” e “Sur le fleuve Tchou” ............................................. 309
Quadro comparativo 30 – “Cantiga do Rosto Branco” e “Chanson de la Chair Blanche” .... 319
Quadro comparativo 31 – “Das Herz” e “O coração” ............................................................ 330
Quadro comparativo 32 – Versões em inglês do poema alemão “Das Herz” ........................ 332
Quadro comparativo 33 – Poema “Candura”, letra de “Inocência” e versão francesa de Machado
de Assis .................................................................................................................................. 336
Quadro comparativo 34 – Poema “To be or not to be” e versão inglesa do trecho do monólogo
de Hamlet ............................................................................................................................... 346
Quadro comparativo 35 – Poema “Seis dias em Cuiabá”, versão alemã e a tradução de Machado
de Assis .................................................................................................................................. 353
Quadro comparativo 36 – “O corvo” e “The Raven”............................................................. 363
Quadro comparativo 37 – “Prólogo do ‘Intermezzo’” e “Prolog” ......................................... 387
Quadro comparativo 38 – “Dante” e Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia ............ 402
Quadro comparativo 39 – “Les animaux malades de la peste” e “Os animais iscados da peste”
................................................................................................................................................ 420
Lista de gráficos
Gráfico 1 - Distribuição das traduções poéticas de acordo com a língua-cultura do texto-fonte
.................................................................................................................................................. 71
Gráfico 2 - Presença de traduções nas obras poéticas de Machado de Assis ........................... 72
Gráfico 3 - Traduções poéticas publicadas em cada década .................................................... 72
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 16
2.
DO MÉTODO: A CRÍTICA DE TRADUÇÃO DE ANTOINE BERMAN E A POÉTICA DA TRADUÇÃO DE HENRI
MESCHONNIC EM POUR UNE CRITIQUE DES TRADUCTIONS .......................................................................... 28
3.
A TRADUÇÃO DE POESIA NO SÉCULO XIX NO BRASIL: ALGUNS APONTAMENTOS ................................ 41
4.
MACHADO DE ASSIS E A TRADUÇÃO: DAS PRIMEIRAS PESQUISAS À POSIÇÃO DA TRADUÇÃO NA
POÉTICA MACHADIANA ................................................................................................................................ 67
5.
1856-1863: AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES DE POESIA .............................................................................. 90
5.1 “MINHA MÃE” ............................................................................................................................................... 91
5.2 “A UMA DONZELA ÁRABE” .............................................................................................................................. 101
5.3 “SOUVENIR D’EXIL” ....................................................................................................................................... 112
5.4 “O CASAMENTO DO DIABO” ............................................................................................................................ 119
6.
AS TRADUÇÕES DE CRISÁLIDAS .......................................................................................................... 134
6.1 “LUCIE” ...................................................................................................................................................... 138
6.2 “A JOVEM CATIVA” ....................................................................................................................................... 152
6.3 “CLEÓPATRA, CANTO DE UM ESCRAVO” ............................................................................................................. 163
6.4 “AS ONDINAS” ............................................................................................................................................. 173
6.5 “MARIA DUPLESSIS” ...................................................................................................................................... 182
6.6 “ALPUJARRA” ............................................................................................................................................... 191
7.
AS TRADUÇÕES DE 1865-1869 ........................................................................................................... 206
7.1 “O REI DOS ÔLMOS” ...................................................................................................................................... 206
7.2 “LUA DA ESTIVA NOITE” .................................................................................................................................. 213
7.3 “O PRIMEIRO BEIJO” ...................................................................................................................................... 221
8.
AS TRADUÇÕES DE FALENAS .............................................................................................................. 231
8.1 “A ELVIRA” .................................................................................................................................................. 234
8.2 “OS DEUSES DA GRÉCIA” ................................................................................................................................ 241
8.3 “CEGONHAS E RODOVALHOS” ......................................................................................................................... 255
8.4 “ESTÂNCIAS A EMA” ...................................................................................................................................... 267
8.5 “A MORTE DE OFÉLIA” ................................................................................................................................... 282
8.6 “LIRA CHINESA” ............................................................................................................................................ 291
8.6.1
“Coração triste falando ao sol” ................................................................................................... 299
8.6.2 “A folha do salgueiro” ...................................................................................................................... 300
8.6.3 “O poeta a rir” .................................................................................................................................. 302
8.6.4 “A uma mulher”................................................................................................................................ 303
8.6.5 “O imperador” .................................................................................................................................. 304
8.6.6 “O leque” .......................................................................................................................................... 306
8.6.7 “As flores e os pinheiros” .................................................................................................................. 308
8.6.8 “Reflexos” ......................................................................................................................................... 309
9.
AMERICANAS E A “CANTIGA DO ROSTO BRANCO” ............................................................................. 313
9.1 A “CANTIGA DO ROSTO BRANCO” .................................................................................................................... 316
10.
1875-1901: AS OCIDENTAIS E AS ÚLTIMAS TRADUÇÕES................................................................. 325
10.1 “DAS HERZ”............................................................................................................................................... 329
10.2 “INOCÊNCIA” ............................................................................................................................................. 334
10.3 “TO BE OR NOT TO BE” ................................................................................................................................. 338
10.4 “SEIS DIAS EM CUIABÁ” ................................................................................................................................ 350
10.5 “O CORVO”, UMA DESLEITURA MACHADIANA ................................................................................................... 356
12.1.1 Edgar Allan Poe no Brasil do século XIX e “O corvo” de Machado de Assis .................................... 362
12.1.2 Vertentes da recepção crítica de “O corvo”.................................................................................... 368
12.1.3 Ecos de Poe e de “O corvo” na obra de Machado .......................................................................... 380
10.6 O “PRÓLOGO” DO INTERMEZZO ..................................................................................................................... 381
10.7 “DANTE” ................................................................................................................................................... 392
10.8 “OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE” ................................................................................................................... 414
11.
A TRADUÇÃO COMO APROPRIAÇÃO: O PROJETO DE TRADUÇÃO POÉTICA MACHADIANO ............ 427
12.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 444
13
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 446
14
ANEXO............................................................................................................................................... 462
16
1. Introdução
O crítico inglês e tradutor John Gledson publicou, no final da década de 1990, uma
pequena coletânea intitulada Machado de Assis & confrades de versos, edição bilíngue que traz
uma seleção de poemas traduzidos por Machado de Assis ao lado dos originais. Na sua breve
introdução, “De Lamartine a La Fontaine: As traduções poéticas de Machado de Assis”,
Gledson afirma que o tal volume pode parecer “[...] apenas um aspecto menor de um aspecto
menor”1 da obra de Machado de Assis, que isso “[...] sem dúvida é verdade, mas resulta que
até essas obras […] iluminam vertentes da sua personalidade complexa e rica”2 ou mesmo que
“[...] até essas ‘obrinhas' acompanham o desenvolvimento de um grande escritor”3, sem se
aprofundar na questão. Fica-se com a impressão de que o trabalho tradutório de Machado,
mesmo com as ressalvas do autor na introdução, é um trabalho de pouca relevância para o
conhecimento do escritor, um trabalho prescindível, uma atividade paralela que pouco ou nada
teria a ver com a grande obra que tornou Machado de Assis conhecido. Contudo, o mesmo
Gledson admite posteriormente, em Por um novo Machado de Assis (2006), que “[...] para se
ter uma visão mais abrangente e profunda da obra de Machado, se faz necessário um exame de
trabalhos (supostamente) menores”4. Temos, destarte, alguns motivos para dar alguma atenção
a estas “obrinhas”, mas para enquadrá-las no projeto de esboçar um perfil do poeta-tradutor
Machado de Assis precisaremos de mais.
A proposta de estudar as traduções de Machado de Assis, autor de romances e contos
consagradíssimos que engendraram um vasto manancial crítico, e delas tentar tirar alguma lição
é, de certo modo, caminhar na contramão do que mais tem interessado a crítica quando se trata
de um dos nossos maiores escritores. Como o olhar que lançaremos sobre estas traduções
manterá seu foco somente nas traduções de poesia, é preciso reconhecer que o objeto de estudo
escolhido é algo que pouco tem interessado a crítica dentro de um campo que também tem
recebido pouquíssima atenção, que é a produção poética de Machado, claramente ofuscada pela
sua prosa. Este, no entanto, é o nosso objeto: um corpus “menor” pinçado de dentro de outro
corpus “menor”, incluindo os trabalhos supostamente menores desse corpus, que são as
traduções poéticas de ocasião ou a trabalho que não adentraram os quatro livros de poesia de
Machado de Assis. Ou seja, enfrentaremos cada uma das traduções de poesia feitas por
1
GLEDSON, John. (Org.). Machado de Assis & confrades de versos. São Paulo: Minden, 1998, p. 7
Ibid., p. 7
3
Ibid., p. 8
4
Id. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19
2
17
Machado de Assis que pudemos identificar, incluindo aquelas que foram posteriormente
preteridas pelo seu autor.
Jean-Michel Massa, professor e pesquisador francês autor da biografia intelectual A
juventude de Machado de Assis (1971, reeditada em 2009) e de Machado de Assis tradutor
(2008), em entrevista para a Revista Teresa, nos oferece mais alguns dos motivos que justificam
a atenção que daremos a essas traduções. Segundo Massa (2005), uma parte considerável das
traduções poéticas de que nos ocuparemos nesta tese
[...] não são traduções a pedido de uma editora, são textos escolhidos por Machado.
Neste caso, traduzir é mais que traduzir, é redigir, escrever e ser original, porque há
uma escolha que corresponde a uma preferência do escritor. Resulta daí algo que
poderia chamar, exagerando um pouco, de antologia da literatura europeia, escolha de
Machado de Assis. Isso dá um interesse muito maior a esse conjunto de textos, porque
não é uma tradução encomendada, mas uma tradução criadora, que promove nomes,
e textos que têm um valor para Machado de Assis.5
De fato, das trinta e cinco traduções que veremos, no mínimo vinte e oito teriam surgido de
uma escolha pessoal de Machado de Assis, número bastante conservador e que pode ser ainda
maior. Logo, percebe-se que Massa compreendeu, ou pelo menos vislumbrou, a importância
das traduções poéticas de Machado de Assis: são textos em que Machado, para além de tradutor,
é um poeta, um escritor que deixa transparecer sua força criativa. As traduções passam a fazer
parte da sua formação enquanto escritor e crítico na medida em que colocam obstáculos que,
pouco a pouco, vão sendo transpostos. São, por fim, uma amostra do gosto e da filiação literária
de um dos mais importantes escritores da literatura brasileira. Ao consideramos a opinião de
Massa, aquelas “obrinhas” tomam outra dimensão, e negar seu valor, mesmo que por omissão
mais que por descrédito, torna-se menos sustentável. Estudar aquilo que Massa chama em
Machado de Assis tradutor de “afinidades eletivas” – textos que Machado escolheu traduzir e
publicar – ou mesmo aqueles que lhe couberam traduzir, as traduções “alimentares”, feitas a
trabalho, talvez por iniciativa em parte alheia à sua vontade, significa ajudar a preencher a
considerável lacuna deixada pela crítica quanto às traduções de Machado e ao papel que elas
tiveram em sua carreira ou em sua obra.
É com isso em mente, e dando continuidade ao projeto iniciado na dissertação de
mestrado Machado de Assis, tradutor de Hugo defendida em 2007, que iniciamos esta
empreitada: espera-se poder contribuir para o conhecimento do escritor Machado de Assis a
partir dos textos traduzidos por ele, avaliando suas escolhas não necessariamente ou
5
MASSA, Jean-Michel. “Entrevista com o Professor Jean-Michel Massa”. In: Teresa, São Paulo, n. 6-7, dec.
2005, p. 466, grifo nosso.
18
exclusivamente em termos de “boas” ou “ruins” – algo demasiado subjetivo e que fala mais
sobre o crítico, talvez, do que sobre a obra – mas buscando entender o que as escolhas feitas e,
principalmente no caso das traduções poéticas de que esta tese se ocupa, o que os textos
escolhidos representam para sua formação na maneira como dialogam com sua vida e obra e de
que forma a maneira como foram traduzidos nos ajudam no nosso objetivo de perfilar o poetatradutor Machado de Assis. Esperamos demonstrar que tal perfil, embora sob a aparência de
algo em construção, conforme os anos passam para Machado enquanto poeta-tradutor à medida
em que avança na sua produção autoral, é consideravelmente coerente consigo mesmo,
posicionando-se, fazendo escolhas e adotando procedimentos que se tornam cada vez mais
previsíveis e regulares. Além do mais, quando o texto traduzido permitir, procuraremos
demonstrar que o poeta-tradutor não é uma figura que existe ao lado do escritor, realizando uma
atividade menor, paralela, como se fosse um mero passatempo ou exercício criativo, mas que
está associado ao escritor com quem coexiste organicamente, sendo essencial para a formação
de sua poética. Isso fica ainda mais evidente nos casos em que, como veremos, é possível traçar
interessantes paralelos entre o poema traduzido e a produção “original” de Machado de Assis,
seja na poesia, seja na prosa.
Trata-se, portanto, de um trabalho de considerável envergadura, que apresenta múltiplos
desafios. Jean-Michel Massa nos avisou que “[...] um trabalho de tal amplitude exige um
esforço de síntese particularmente delicado, pois deve-se abarcar diversas culturas europeias”6.
Dentre as dezenas de traduções feitas por Machado, encontramos nomes como Lamartine,
Shakespeare, Heine, Schiller, Dante, Poe, La Fontaine entre os poetas, além, é claro, de outros
nomes importantes como os romancistas Dickens e Hugo, ou dramaturgos como Molière e
Racine. Mesmo que limitemos nosso escopo somente aos poetas, fica evidente o tamanho do
arcabouço que se coloca diante de nós, e o quanto a empreitada intimida, exigindo cautela.
Nos acréscimos finais que fez à conclusão de sua tese complementar Machado de Assis
tradutor, Massa lembra que
Nem antes nem depois de nossa pesquisa estudou-se Machado de Assis tradutor, nem
se comparou os textos originais e as versões em português. Aqui e ali alguns estudos,
mas geralmente eles retomam nosso trabalho acadêmico […].
O trabalho mais recente, de Eliane Ferreira (2004), está particularmente desconectado
da realidade, visto que pretende estabelecer uma teoria da tradução elaborada por
Machado de Assis. É exatamente o contrário que acontece. Ele teve práticas diferentes
segundo os autores, segundo os textos, segundo o momento.7
6
7
MASSA, Jean-Michel. Machado de Assis tradutor. Belo Horizonte: Crisálidas, 2008, p. 13
Ibid., p. 99
19
Inscreve-se no escopo deste estudo não só ajudar a suprir a lacuna que ainda persiste na
crítica da produção tradutória de Machado, mas contribuir com trabalho pioneiro de JeanMichel Massa, dando um passo a mais justamente ao tomar essas traduções como obras críticas
de um texto-fonte e apresentá-las em cotejo com esses textos de onde partiram para revelar toda
sua complexidade, com estudos críticos de ambos e avaliando em que medida o texto traduzido
nos ajuda na nossa principal tarefa, que é delinear, com base no corpus estudado, o perfil do
tradutor Machado de Assis e seu projeto de tradução. Veremos que se as práticas foram, como
sugere Massa, em certa medida diferentes segundo os autores e textos, também é possível
encontrar algo como um fio de Ariadne que une essas práticas e que revela o modus operandi
do nosso poeta-tradutor. Entendemos que, para além do que foi apresentado na tese de
doutorado de Eliane Ferreira, publicada em livro com o título Para traduzir o século XIX:
Machado de Assis (2004), é necessário adotar a ideia de que as traduções de Machado de Assis
são obra, e por isso em relevo para que possamos de fato conhecer quem foi e como se
desenvolveu Machado de Assis enquanto poeta-tradutor. Esse é o motivo de não escolhermos
um ou outro texto, ou os mais ou menos aclamados, mas todas as traduções de poesia que
conseguimos encontrar, tanto as que foram incluídas em seus livros de poesia, mesmo que
posteriormente rejeitadas pelo autor, quanto as que ficaram esquecidas nas páginas dos
periódicos da época.
Ao contrário de ser um tradutor subserviente ao texto que traduz, veremos que Machado
de Assis se mostrou interessado, particularmente nos casos dos poemas, em manter vivos
aqueles elementos que, para ele, fazem do texto literário uma obra de arte, frequentemente
adotando caminhos bastante próprios. Pretendemos refletir, principalmente com os aportes
teóricos de Henri Meschonnic e Antoine Berman, sobre sua preocupação em oferecer esquemas
métricos, rítmicos, visuais e de rima nos poemas traduzidos que raramente refletem a forma
como funcionam no texto-fonte, indicando que há uma preocupação do tradutor não só com a
qualidade literária dos textos de sua lavra, mas principalmente com a necessidade de marcar
sua diferença em relação ao texto-fonte. Tais atitudes apontam, inclusive, para um frequente
distanciamento intencional do texto estrangeiro, o que, por sua vez, sugere uma tomada de
posição política e ideológica na sua prática tradutória.
Isso é algo que pudemos perceber a partir do momento em que começamos a nos colocar
algumas perguntas que nos instigaram enquanto líamos e estudávamos as traduções de
Machado: Por que aqueles autores e textos? Como Machado procurou resolver os problemas
de metro, rima, versificação? Havia uma preocupação em manter as características do texto-
20
fonte? Ou o tradutor seguiu o caminho que achava mais conveniente conforme a ocasião? Quão
consistente é o seu resultado no decorrer da sua carreira? Nem sempre foi possível encontrar
todas as repostas a essas perguntas, mas as respostas que fomos encontrando aos poucos nos
auxiliaram a vislumbrar um perfil do poeta-tradutor Machado de Assis. Jean-Michel Massa, na
mesma entrevista concedida à Revista Teresa citada anteriormente, afirma que não havia teoria
da tradução no século XIX8, o que não é de todo verdade. Talvez não como disciplina ou escola,
ou como um sistema teórico pensado e exposto como tal, mas pensamento sobre a prática
tradutória existe há séculos, e no século XIX também se pensou e se escreveu sobre a tradução.
Henri Meschonnic (2010), por exemplo, embora reconheça que a teoria é apenas o
acompanhamento reflexivo, que é precedido pela prática9, assevera de modo contundente: “[...]
não há teoria da tradução sem sua história, nem história da tradução sem implicar aí a teoria”10.
Considerando que toda prática tradutória pressupõe um conjunto de crenças por parte do
tradutor, crenças essas limitadas pelo contexto sócio-histórico-cultural em que se vive,
utilizando os resultados de nossa análise, se não uma teoria da tradução, poderemos demonstrar
ao menos quais princípios teóricos pautavam a prática poético-tradutória de Machado de Assis.
Com esse objetivo em mente, o corpus deste trabalho foi escolhido de acordo com os
seguintes critérios: elegemos, primeiramente, os poemas traduzidos incluídos nos quatro livros
de poesia de Machado de Assis: Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) e
Ocidentais, este último publicado somente nas Poesias completas (1901) porque são as
traduções mais conhecidas e estabelecidas. Mesmo sabendo que Machado excluiu todas as
traduções de Crisálidas e Americanas, enquanto de Falenas manteve somente os oito poemas
da “Lira chinesa” e “A Elvira” quando reeditou seus 3 primeiros livros de poesia em Poesias
completas (1901), entendemos que as peças excluídas representam uma importante parte de sua
obra que não deve ser desconsiderada. A maior parte dessas traduções incluídas nos livros não
era de trabalhos inéditos e, em alguns casos, passaram por reformulações antes de chegar à sua
forma final em livro. Algumas dessas reformulações, particularmente as que apresentam
modificações mais profundas, serão levadas em consideração em nossas análises.
A outra parte do corpus inclui as traduções que não foram incluídas nos livros de poesia,
num arco que se estende – considerando-se somente as traduções esparsas – de 1856 com
“Minha Mãe”, publicada como uma imitação de um poema de William Cowper, ao “Prólogo
8
MASSA, 2005, p. 466
MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva,
2010, p. XVII
10
MESCHONNIC, 2010, p. XLI
9
21
do Intermezzo”, de 1894. A maior parte desses textos esparsos foi identificada e apresentada
por Jean-Michel Massa (2008) durante seu doutorado na década de 1970, relação depois
ampliada por Eliane Ferreira (2004). Às listas apresentadas pelos pesquisadores acrescentamos
mais quatro traduções, elevando o total de traduções esparsas a onze poemas. Escolhemos
trabalhar com cada uma das traduções poéticas de Machado de Assis, incluindo os textos
menores e atribuídos a ele com base na proposta de Itamar Even-Zohar de que não devemos
confinar o estudo histórico dos sistemas literários às obras-primas, conforme veremos em mais
detalhes no momento oportuno. Todas as informações acerca das traduções de que nos
ocuparemos aqui, incluindo os textos que não foram identificados anteriormente como
traduções, foram encontradas nas principais biografias de Machado de Assis, com especial
destaque para os quatro volumes de Vida e obra de Machado de Assis (2008) de Raimundo
Magalhães Jr., e nos levantamentos bibliográficos sobre a obra do autor, como a Bibliografia
de Machado de Assis (1955) , de José Galante de Sousa e os Dispersos de Machado de Assis
(1965), de Jean-Michel Massa. Em todos os casos, na medida do possível, confrontamos as
informações encontradas com suas fontes primárias – os livros e periódicos da época – o que
nos permitiu retificar algumas informações e acrescentar outras.
Uma vez estabelecido o corpus, era preciso pensar numa forma de organizá-lo que
atendesse ao nosso objetivo e que permitisse verificar de que características este projeto de
tradução estava investido. A opção natural seria organizar e estudar as traduções
cronologicamente, de modo a facilitar a observação dos caminhos tomados pelo escritor.
Estabelecer uma cronologia inequívoca, contudo, não se mostrou uma tarefa simples,
considerando que algumas traduções passaram por mais de uma versão em publicações
diferentes, e algumas tiveram até cinco publicações que diferem, pouco ou muito, entre si.
Vimo-nos diante de dois critérios mínimos que respeitassem aquela cronologia: a primeira
opção seria considerar a data de composição – suposta ou informada pelo autor – ou da primeira
publicação; a segunda seria considerar a data da última versão revisada pelo tradutor. Como
nossas análises revelaram que essas alterações nem sempre eram meras correções, mas
mudanças que alteram o teor do texto em diversos graus e sentidos, concluímos que as últimas
revisões de cada texto representam um estágio posterior de seu amadurecimento enquanto obra
que precisa ser levado em consideração. Muito embora reconheçamos que um trabalho de
genética textual seria particularmente interessante, temíamos extrapolar nosso espoco e, por
esta razão, não nos aprofundamos nesse ponto. Se é verdade que essas alterações textuais são
de pouca relevância para a maioria das traduções, incluindo todas as traduções esparsas, já que
tiveram uma única publicação e versão, em alguns casos – que se limitam às traduções incluídas
22
nos livros de poesia – as diferenças textuais e temporais são tão profundas que não podem ser
ignoradas. “Dante”, por exemplo, tradução do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia, é
publicada pela primeira vez em 1874, mas passa por diversas modificações quando é revisada
para ser incluída nas Ocidentais (1901), o que nos levou a considerar a data da inclusão em
livro. A adoção deste critério nos levou a estudar as traduções de Crisálidas, Falenas e a única
de Americanas em conjunto, tomando como data final de suas respectivas versões a data da
publicação do livro. Logo, as traduções de Crisálidas e Falenas são estudadas na ordem em
que foram organizadas pelo autor em seus respectivos livros. Isso não se dá com as traduções
de Ocidentais porque a data das últimas versões de duas das quatro traduções – “To be or not
to be” e “O corvo” – é anterior à publicação do volume.
Evidentemente, um problema que surge de imediato para a análise e confronto das
traduções é a edição que servirá de base para a análise, tanto para os textos estrangeiros quanto
os de Machado de Assis. Para as traduções que foram incluídas em Crisálidas, Falenas,
Americanas e Ocidentais trabalhamos principalmente com o texto estabelecido pela edição
crítica preparada pela Comissão Machado de Assis, sempre cotejando-o com outras edições e
com as primeiras publicações para nos protegermos ao máximo de possíveis falhas editoriais;
para os demais textos – aqueles que não entraram nos quatro livros de poesia de Machado de
Assis – utilizamos, quando possível, a edição organizada e anotada por Rutzkaya Queiroz dos
Reis, A poesia completa: edição anotada; recepção crítica, que inclui poemas dispersos.
Alguns textos que analisamos não foram incluídos nessas edições e, nesses casos, nos baseamos
nos textos da primeira publicação em periódicos da época ou da única publicação onde o texto
foi localizado quando não foi possível ter acesso à fonte primária da publicação daqueles textos.
Quanto aos textos-fonte estrangeiros utilizados por Machado de Assis para fazer suas traduções,
procuramos as edições mais próximas temporalmente das que ele poderia ter utilizado, quando
possível, confrontando os textos-fonte em mais de uma edição sempre que estivesse ao nosso
alcance, na tentativa de minimizarmos os potenciais problemas que poderiam ser causados por
divergências textuais em edições distintas. Embora reconheçamos que há edições
contemporâneas que fazem um excelente trabalho na organização e apresentação de alguns dos
textos e autores com que trabalharemos, acreditamos que a escolha por uma edição mais
temporalmente próxima da utilizada por Machado de Assis poderia apresentar características,
ou até mesmo desvios, ausentes em edições mais contemporâneas e que isso poderia impactar
na análise que faríamos das traduções.
Para dar delimitações claras ao nosso objeto de pesquisa, decidimos trabalhar
exclusivamente com as traduções interlinguais, conforme o conceito desenvolvido por Roman
23
Jakobson: no ensaio “Aspectos linguísticos da tradução” (1965), o teórico define a tradução
interlingual, ou “tradução propriamente dita”, como a “[...] interpretação dos signos verbais
por meio de alguma outra língua” 11. Todo o trabalho analítico foi inspirado no trajeto de análise
proposto no “esboço de método” de Antoine Berman em Pour une critique des traductions:
John Donne, de que faremos uma breve exposição no capítulo seguinte desta tese. De acordo
com a proposta bermaniana, estar armado de obras de cunho crítico para entender as traduções
e seus textos-fonte é imprescindível. Berman sugere, por exemplo, que a análise de uma
tradução seja precedida de leituras e releituras da tradução e do texto-fonte, leituras que
deveriam ser também informadas por aparatos críticos e teóricos, para que depois seja possível
proceder a uma crítica compreensiva, na tentativa de recompor a posição tradutória, o horizonte
e o projeto dentro do qual o tradutor trabalhou. Trata-se de observar o modus operandi do
tradutor enquanto traduz, partir do pressuposto do criticado, procurando compreender seus a
priori e, a partir disso, emitir um julgamento. Somente então chegaríamos ao nosso objetivo,
que é obter dados para a construção de um perfil de Machado de Assis enquanto tradutor de
poesia12. Logo, também será necessário consultar obras de cunho crítico referentes aos textosfonte, quando houver. Somente após uma leitura minuciosa daqueles textos e com a
compreensão adequada deles seria possível avaliar os caminhos escolhidos por Machado de
Assis, motivo pelo qual as análises das traduções serão precedidas por breves estudos críticos
dos textos-fonte. Por fim, ainda de acordo com a proposta bermaniana, comparar as escolhas
de Machado com a de outros tradutores que se debruçaram sobre os mesmos textos pode se
mostrar consideravelmente benéfico no momento de delinear as facetas do nosso objeto de
estudo.
Quanto à fortuna crítica machadiana para dar suporte à nossa análise – material também
previsto no trajeto de análise proposto por Berman –, é sabido que, em relação à extensa fortuna
crítica de sua obra ficcional, pouca atenção tem sido dada à poesia de Machado de Assis.
Cláudio Murilo Leal, no ensaio “The Poetry of Machado de Assis” publicado no volume The
author as plagiarist: the case of Machado de Assis (2006) fornece alguns caminhos para o
estudo da obra poética de Machado: sua tese de doutorado, também intitulada “A poesia de
Machado de Assis”; The poetry of Machado de Assis (1984), de L. C. Ishimatsu, obra ainda
sem tradução no Brasil, publicada na Espanha e segundo ele uma das mais importantes
11
JAKOBSON, Roman. “Aspectos linguísticos da tradução”. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Editora
Culturix, 1965, p. 63-72.
12
BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris : Éditions Gallimard, 1995, p. 6497.
24
contribuições para o estudo da poesia machadiana; e o trabalho da pesquisadora Flávia Vieira
da Silva do Amparo, cujas pesquisas de mestrado e doutorado se voltam para a poesia de
Machado13. Esses serão os principais trabalhos de crítica à poesia de Machado que darão apoio
ao nosso estudo. À margem, teremos ensaios e resenhas, contemporâneos nossos e de Machado
de Assis, que também nos auxiliarão. As pesquisas de Leal, de Ishimatsu e Amparo serão
particularmente úteis para a compreensão da poesia machadiana como o todo de que suas
traduções fazem parte. Uma vez que neste caso as traduções ajudam a compor uma coletânea
de poemas, parece necessário supor que a compreensão do todo ajudará a compreender aquela
parte.
Antes de adentrarmos os poemas traduzidos, fizemos um levantamento – forçosamente
breve, é verdade – do público leitor e da tradução de poesia no século XIX no Brasil objetivando
atender a uma das propostas do trajeto de análise bermaniano, que é conhecer o horizonte do
tradutor, e situar um pouco da formação do público leitor que primeiro recepcionou aquelas
traduções, assunto de nosso terceiro capítulo. Lá procuramos ver quem mais traduziu dentre os
contemporâneos de Machado de Assis, incluindo também aqueles que vieram um pouco antes
e um pouco depois dele. Não só quem traduziu, mas o que traduziram também nos interessa e
nos faz perguntar: que poetas foram traduzidos? Quais poemas foram traduzidos? Como essas
traduções são apresentadas? Os outros poetas também publicaram traduções em meio às suas
poesias? Traduziram mais ou menos do que Machado? Os gostos se assemelham? Esses poetas
expressaram alguma opinião a respeito das traduções que realizaram ou teorizaram, ainda que
de forma tateante, a prática da tradução? Tais são as perguntas que fizemos durante o
levantamento que apresentamos.
No capítulo seguinte, “Machado de Assis e a tradução: das primeiras pesquisas à posição
da tradução na poética machadiana”, ajustaremos nosso foco levantando em conta o que já foi
estudado a respeito da relação de Machado de Assis com a prática tradutória em geral, seja ela
na poesia, prosa ou teatro. Com o objetivo de reconhecer os trabalhos que precederam o nosso
e dar a eles o devido crédito, apresentamos o que já foi sugerido pela tese complementar de
Massa, Machado de Assis tradutor, que ainda é a melhor fonte que temos sobre o assunto, por
Eliane Ferreira em Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, pela nossa dissertação de
mestrado, Machado de Assis, tradutor de Hugo e por publicações mais recentes como Machado
de Assis: tradutor e traduzido (2012), organizado por Andréia Guerini, Luana Ferreira de
13
LEAL, Cláudio Murilo. “The poetry of Machado de Assis”. In: ROCHA, João Cézar de Castro (Ed.). The author
as plagiarist: the case of Machado de Assis. New Bedford: University of Massachusetts Dartmouth, 2006, p. 585586.
25
Freitas e Walter Carlos Costa. Buscamos também textos do próprio Machado, como os ensaios,
correspondências e pareceres que emitiu quando atuou no Conservatório Dramático Brasileiro
para recuperar, de primeira mão, indícios da opinião que tinha do trabalho tradutório e da
literatura como um todo, informações nos auxiliarão na tarefa de delinear seu perfil. Por fim,
apresentamos a proposta de ver a tradução como fundamental para a formação do escritor,
partindo do pressuposto de que a tradução é um espaço privilegiado dentro do qual o tradutorescritor pode examinar as engrenagens que fazem funcionar o texto traduzido em suas mais
íntimas minúcias, e que funcionaria como um sistema próprio dentro do qual a tradução
ocuparia um lugar similar àquele ocupado no caso do sistema literário nacional, o que fizemos
com base nas formulações de João Cézar de Castro Rocha em Machado de Assis: por uma
poética da emulação. Rocha propõe ler a obra de Machado de Assis como um sistema em si,
de dinâmica própria e, portanto, a lógica de funcionamento desse sistema deveria ser
investigada em seus próprios termos. Rocha também sugere que Machado opera um resgate da
técnica da aemulatio a partir da reação que teve ao romance de Eça de Queiroz. É a partir do
resgate da aemulatio, ou mesmo anterior a esse resgate, que a tradução serve de laboratório de
observação dos modelos imitados e, posteriormente, emulados.
O que fazemos nos capítulos seguintes é observar como o “laboratório” funcionava,
termo que emprestamos da contribuição de Meschonnic:
[...] a história do traduzir em suas transformações recentes mostra que as traduções, e
não somente aquelas de obras teatrais, se fazem mais a mais em função de uma
ritmicidade e da prosódia dos textos. Por isso a tradução aparece, e Ezra Pound foi um
dos primeiros a ver, como um laboratório da literatura da mesma maneira que as obras
ditas originais.”14
Perpassa o nosso entendimento, portanto, que a prática da tradução machadiana seja vista como
uma atividade laboratorial, um lugar de experimentações, de testes e ensaios, um lugar de
tentativa e erro, um trabalho de palimpsesto, como é a atividade dita autoral.
O quinto capítulo aborda as quatro primeiras traduções poéticas publicadas por
Machado de Assis entre os anos de 1856 e 1863 e que não foram escolhidas para fazer parte de
Crisálidas, tendo somente uma publicação durante a vida do poeta-tradutor. São textos de
natureza bem diversa, representativos principalmente da tradição literária francesa. Temos
“Minha Mãe”, imitação de um poema do poeta inglês William Cowper feita, provavelmente,
via francês; a primeira tradução feita a partir da língua original do poema, “A uma donzela
árabe”, de Lamartine; “Souvenir d’Exil”, um poema de ocasião, composto e traduzido durante
uma festa e cujo valor reside principalmente na prova que é da excelente proficiência em francês
14
MESCHONNIC, 2010, p. 63
26
atingida por Machado de Assis; e “O casamento do diabo”, que rendeu a Machado de Assis
acusações de esnobismo porque o texto foi publicado como uma imitação do alemão quando,
na verdade, o original é francês.
O sexto capítulo é dedicado exclusivamente às traduções de Crisálidas. São seis
traduções que representam bem o gosto romântico de então. Há textos de Alfred de Musset,
André Chénier, Mme. de Girardin, Heinrich Heine, Alexandre Dumas Filho e do poeta polonês
Adam Mickiewicz, que podem ser lidos como uma amostra do gosto do nosso poeta à época.
Ao contrário de algumas das traduções do capítulo anterior, feitas a pedido, estas são produtos
do interesse do poeta pelos autores que traduz, retrato de um gosto mais refinado em relação às
suas primeiras traduções, anteriores a 1864. Nossos estudos também nos permitiram sugerir
que Machado de Assis, muito provavelmente, foi o primeiro tradutor do polonês Adam
Mickiewicz entre nós.
O sétimo capítulo estuda três traduções publicadas após Crisálidas, mas que não foram
escolhidas para fazer parte de Falenas. Duas dessas traduções não haviam sido listadas
anteriormente dentre as traduções de Machado de Assis: “O rei dos ôlmos”, atribuída a
Machado de Assis e feita a partir de uma balada de Goethe, provavelmente a partir do alemão
e publicada anonimamente; e “Lua da estiva noite”, traduzida diretamente do poema em inglês
do norte-americano Henry Wadsworth Longfellow e que vários estudos críticos trataram como
composição de Machado de Assis de uma letra para uma música de Artur Napoleão. A última
peça do conjunto, “O primeiro beijo”, é a única tradução poética feita a partir do espanhol,
sugerindo não só conhecimento do idioma, mas também o interesse em difundir a obra do poeta
chileno Guillermo Blest Gana.
No oitavo capítulo estudaremos as traduções de Falenas. Novamente as preferências de
Machado destacam autores que sugerem, de um lado, um gosto cada vez mais refinado,
inclusive afastando-se mais dos contemporâneos – há traduções de William Shakespeare e
Friedrich Schiller – e caminhando na direção de uma poesia de matizes pré-parnasianos, algo
sugerido pela inclusão da “Lira Chinesa”, feita a partir do Livre de Jade de Judith Gautier. O
gosto romântico, contudo, ainda está lá, nas traduções de “Versos a Ema” de Dumas Filho, mais
uma vez, e “À Elvira”, de Lamartine, também incluída em Lamartineanas – poesias de
Lamartine traduzidas por poetas brasileiros (1869).
O nono capítulo trata da única tradução sabidamente interlingual de Americanas:
“Cantiga do rosto branco”, poema criado a partir de uma versão em prosa francesa escrita por
Chateaubriand e reimaginada poeticamente por Machado de Assis, a “Chanson de la chair
27
blanche”, que por sua vez teria sido recolhida a partir de relatos no idioma muskogee, de nativos
norte-americanos.
O décimo capítulo será dedicado às últimas traduções de Machado. Das oito peças que
estudaremos, duas foram publicadas originalmente entre Falenas e Americanas: “To be or not
to be”, de 1873, e “Dante”, que foi publicada pela primeira vez em 1874 sob outro título.
Contudo, essas peças sofreram alterações, em 1878 e 1901, respectivamente, motivo que nos
levou a estudá-las neste capítulo. Logo, as primeiras traduções que estudaremos são textos que
não haviam sido listados anteriormente como traduções de Machado de Assis: “O coração”,
tradução anônima do poema alemão “Das Herz” de dezembro de 1875 e que é atribuída a
Machado de Assis por Raimundo Magalhães Júnior; e “Inocência”, de que se tem notícia, a
única vez em que Machado de Assis transporta um poema em português para uma língua
estrangeira – o francês. Esses dois textos serão seguidos de estudos de “To be or not to be” e
de outra tradução do alemão, “Seis dias em Cuiabá”, feita a pedido de Capistrano de Abreu. Na
sequência está a tradução mais comentada e polêmica de Machado de Assis, “O corvo”, que
estudaremos adotando um viés diferente das demais. Temos ainda o “Prólogo do Intermezzo”,
de Heine, também traduzido provavelmente a partir do alemão – reforçando a tese de que o
autor possuía algum conhecimento do idioma e, a seguir, “Dante” que, além de ter causado
certo espanto pela escolha do canto que foi traduzido, é uma tradução bastante peculiar,
diferente de muito do que Machado de Assis fizera antes em tradução, considerando a notável
atenção que dá não só ao conteúdo, mas à forma, levando-nos até mesmo a aproximações com
a prática tradutória dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. A última tradução do conjunto
é “Os animais iscados da peste”, publicada originalmente em 1886, mas revisada e alterada
antes de ser incluída nas Ocidentais.
Encerrada a etapa da análise das traduções, o décimo primeiro capítulo será dedicado a
uma discussão dos resultados encontrados durante o comentário das traduções, buscando
compreender a atuação de Machado de Assis enquanto tradutor de poesia e, por fim, traçar um
“retrato” ou um “perfil” do poeta-tradutor Machado de Assis que esteja de acordo com as
análises que antecederam. Por fim, leremos os resultados obtidos, e os conceitos de tradução
que se delineiam a partir deles, na tentativa de se obter uma visão propriamente machadiana de
tradução poética que se desenha a partir do corpus traduzido.
28
2. Do método: a crítica de tradução de Antoine Berman e a poética da tradução de Henri
Meschonnic em Pour une critique des traductions
Antes de entrarmos nos pormenores da poesia traduzida por Machado de Assis,
precisamos esclarecer alguns pontos que são cruciais em nossa pesquisa. Um deles tem a ver
com a maneira como as traduções serão estudadas, ou com a maneira como nos posicionaremos
diante dos textos. De forma bastante simplificada, diríamos que a crítica de tradução de poesia
pode adotar, por exemplo, as seguintes posições analíticas: o crítico pode tomar o texto-fonte
como seu parâmetro, e procurar determinar o quanto a tradução é capaz de conceder acesso ao
texto a um leitor que não conhece o texto estrangeiro ou que não poderia lê-lo em seu idioma
original, ou seja, o quanto a tradução leva o texto ao leitor, caso se assuma etnocêntrica, ou o
leitor ao texto, caso se assuma estrangeirizadora; num escopo um pouco mais amplo, o crítico
poderia estudar um conjunto de textos traduzidos de um determinado autor e verificar, a partir
daquele corpus traduzido, a maneira como aquele autor estrangeiro está representado na línguacultura receptora. No primeiro caso, privilegia-se a obra original; no segundo, seu autor. Nós
escolhemos uma terceira via, pois nosso interesse é outro: o tradutor. As vias de acesso ao
tradutor passam, é claro, pelas obras de partida e de chegada e pela sua relação com o primeiro
autor daquela obra, mas o nosso destino sempre será o tradutor, e suas traduções serão estudadas
como obras suas que estão carregadas de uma subjetividade também sua. Neste ponto, é
importante ressaltar que estamos nos alinhando com Meschonnic, que entende a tradução de
um texto (poético) como uma operação translinguística equivalente à operação de elaboração
de um texto, e que, portanto, “[...] não pode ser teorizada nem pela linguística do enunciado,
nem pela poética formal de Jakobson”15. Também estamos nos colocando de acordo com a
proposta de que “[...] [t]raduzir um texto situa-se na prática e na teoria dos textos, ambas, já por
si, situadas na teoria translinguística da enunciação”16, o que significa dizer que o ato de traduzir
um texto não é uma operação mecânica, mas uma atividade pensante, que pensa o fazer
enquanto o faz. Trabalharemos, por fim, dentro da definição de tradução postulada por
Meschonnic (1972) e pensaremos a prática tradutória machadiana a partir dela e dos seus
desdobramentos:
A tradução já não é definida como transporte do texto de partida para a literatura de
chegada ou, inversamente, transporte do leitor de chegada para o texto de partida
(movimento duplo, que repousa no dualismo do sentido e da forma e caracteriza
empiricamente a maior parte das traduções) mas sim como elaboração na língua,
15
16
MESCHONNIC, 2010, p. 80
Ibid.
29
descentrar, relação interpoética entre valor e significação, estruturação de um sujeito
e história (que postulados formais mantinham separados) e já não sentido. Esta
proposição postula que o texto trabalha a língua como uma epistemologia em ato de
um saber indissociável desta prática, e que, fora desta prática, não é mais este saber,
mas sim um significado17.
Trata-se, portanto, de lidar com os textos de partida e de chegada de forma que escapemos à
lógica da secundadidade, ou mesmo da defectividade, do texto traduzido para nos
aproximarmos do texto traduzido como obra que se inscreve numa outra poética.
Para guiar nosso caminho até aquele destino precisávamos de parâmetros dentro dos
quais pudéssemos trabalhar e que facilitassem o acesso ao tradutor. Necessitávamos, sobretudo,
de uma maneira de abordar aqueles textos que nos permitisse enxergá-los e estudá-los em seus
próprios termos, evitando apriorismos quanto ao que se espera de uma tradução literária, de
forma que pudéssemos, enfim, encontrar o poeta-tradutor Machado de Assis em toda sua
complexidade, seu modo de trabalhar, seu modo de se relacionar com esses textos, sua maneira
de incorporá-los à sua obra quando lhe conviesse.
O que encontramos em Pour une critique des traductions: John Donne (1995), do
tradutor, crítico e teórico de tradução francês Antoine Berman, adequa-se bem ao nosso
propósito. Na primeira parte do seu livro, Berman introduz um “Projeto de uma crítica
‘produtiva’” em que apresenta alguns conceitos de crítica da tradução, os diferentes gêneros de
análise das traduções, o esboço de um método e uma proposta de como fazer a análise de
traduções, enquanto na segunda parte coloca em prática este seu projeto estudando traduções
de um poema de John Donne (1571-1631). Estamos, portanto, particularmente interessados na
primeira parte do livro, onde Berman propõe que se deve fazer crítica de tradução com base no
projeto tradutório, implícito ou explícito, consciente ou não, do indivíduo que se propõe a
traduzir um texto literário. Berman baseia-se em Meschonnic e na escola de Tel-Aviv, mas
elabora uma “metodologia” e conceitos próprios tentando corresponder ao conceito
benjaminiano de crítica de tradução, ressalvando que mesmo seu método arquitetônico pode se
modular de acordo com as necessidades particulares de cada crítico. Não se trata propriamente,
segundo ele, de um método – embora tenhamos empregado o termo no título deste capítulo,
fizemo-lo com intenção puramente didática, de ao leitor uma noção clara do nosso modo de
trabalhar os textos daqui em diante –, mas de um trajeto de análise18, do qual faremos uma
breve exposição a seguir porque seguiremos, conforme nossas necessidades, diversas etapas
17
MESCHONNIC, Henri. “Propostas para uma poética da tradução”. In: LADMIRAL, Jean-René. A tradução e
seus problemas. Lisboa: Edições 70, 1972, p. 85
18
BERMAN, 1995, p. 64, grifo nosso.
30
desse trajeto nos capítulos seguintes, particularmente naqueles em que nos debruçaremos sobre
os poemas traduzidos por Machado de Assis.
Primeiramente, Berman lembra que desde o Iluminismo, a crítica é o trabalho do
negativo, que nada mais é do que a outra face do trabalho do positivo19. Contudo, continua
Berman, a crítica é essencialmente positiva e esta positividade é, como o próprio teórico
destaca, sua verdade, ou seja, uma crítica negativa não é uma verdadeira crítica. A crítica das
obras de linguagem, continua Berman, é claramente necessária – ênfase do autor – à obra,
entendendo que esta necessidade parte de um apriorismo ligado às próprias obras, ou seja, as
obras pedem e autorizam a crítica porque têm necessidade dela. As obras, para Berman,
precisam da crítica para se comunicar, se manifestar se realizar e, até mesmo, para se perpetuar.
Berman utiliza ainda a relação metafórica da crítica com o espelho do qual as obras precisam
para olhar para si mesmas. É por isso que, por um lado, como escreve Berman, a crítica “[...]
afasta, obscurece, sufoca, e no seu extremo mata as obras (pensamos naqueles estudantes que
leem apenas livros sobre o livro, e nunca o livro em si). Mas seja qual for o perigo – e ele é
inevitável – a crítica está ontologicamente ligada à obra”.20 Por conseguinte, ao entender que
a tradução é uma das muitas formas de crítica das obras literárias, Berman chega à conclusão
de que “[...] [a] crítica de uma tradução é portanto aquela de um texto que, ele mesmo, resulta
de um trabalho de ordem crítica”21. A crítica das traduções é, portanto, uma metacrítica, visto
que é crítica de um trabalho ele mesmo crítico. Então, retomando a metáfora bermaniana,
diríamos que, assim como as obras, as traduções também têm necessidade daquele espelho
metacrítico através do qual poderão se reconhecer como obras. Berman encerra suas
considerações a respeito do conceito de crítica de traduções com uma proposta que nos é cara
e que permeará todo nosso estudo das traduções machadianas:
[...] uma tradução não tem por objetivo, para além de ‘verter’ o original ou ser o seu
“duplo” (confirmando, assim, sua secundariedade), se tornar, ser também uma obra?
Uma obra de pleno direito? Paradoxalmente, esta última visada, alcançar a autonomia,
a durabilidade de uma obra, não contradiz a primeira, reforça-a. Uma vez que ela
atinja esta dupla visada, a tradução se torna um “novo original”22.
19
BERMAN, 1995, p. 38
Ibid., p. 39, grifos do autor. No original: “éloigne, obscurcit, étouffe, à la limite tue les œuvres (on pense à ces
étudiants qui ne lisent que des ouvrages sur tel livre, et jamais celui-ci). Mais quoi qu’il en soit de ce péril – et il
est inévitable – la critique est ontologiquement liée à l’œuvre”.
21
Ibid., p. 41, grifos do autor. No original: “La critique d’une traduction est donc celle d’un texte qui, lui-même,
résulte d’un travail d’ordre critique”.
22
Ibid., p. 42. No original: “une traduction ne vise-t-elle pas, non seulement à ‘rendre’ l’original, à en être le
‘double’ (confirmant ainsi sa secondarité), mais à devenir, à être aussi une œuvre? Une œuvre de plein droit?
Paradoxalement, cette dernière visée, atteindre l’autonomie, la durabilité d’une œuvre, ne contredit pas la première,
elle la renforce. Lorsqu’elle atteint cette double visée, une traduction deviant un ‘nouvel original’”.
20
31
Esta última visada de que fala Berman – a tradução tornar-se obra de pleno direito, autônoma,
durável e, finalmente, um novo original – será o elemento central que buscaremos em nossas
análises, mas com a diferença de que entenderemos os afastamentos em relação ao texto-fonte
como movimentos necessários para se distanciar da lógica do duplo, da secundariedade em
direção à autonomia, ou desdobramento e pervivência daquele texto-fonte em outra línguacultura. Do mesmo modo, reconhecendo a natureza e a historicidade de cada um dos textos que
analisaremos, tomaremos o cuidado de não pressupor que poemas como “Souvenirs d’Exil”,
uma tradução de ocasião, uma diversão entre amigos, ou “Seis dias em Cuiabá”, e poemas como
“To be or not to be” ou “O corvo” reverberaram de igual maneira na obra do escritor. Contudo,
partiremos aqui da premissa de que todas as traduções de Machado de Assis são obra de pleno
direito e daremos a elas aquele espelho metacrítico de que falamos antes, um espelho que tentará
ser tão compreensivo e produtivo quanto possível.
A partir das análises que diz encontrar mais comumente, Berman conclui que estão todas
caracterizadas por sua heterogeneidade, tendo em comum a ausência de forma e de metodologia
próprias23, exceção que faz às análises de Meschonnic e dos tradutólogos ligados à Escola de
Tel-Aviv, das quais apresenta estudos mais detidos e a partir das quais parece elaborar o seu
“esboço de método”, que é o que mais particularmente nos interessa e do qual faremos um breve
resumo a seguir, já que neste esboço estão os procedimentos que nos guiarão na direção da
resposta à pergunta que postulamos acima.
Na primeira etapa do esboço de seu método, Berman propõe que o trajeto de estudo
crítico seja iniciado por leituras e releituras da tradução, deixando o texto-fonte completamente
de lado. O objetivo seria de verificar se o texto está bem escrito, atendendo às normas e
expectativas da língua de chegada24. Evidentemente, neste momento o olhar subjetivo ou até
mesmo parcial do crítico se fará presente. Cabe ao crítico tentar manter-se imparcial na medida
do possível, no que será auxiliado pelas etapas seguintes do trajeto. Em seguida, Berman propõe
verificar a existência do que chama de “zonas textuais problemáticas”, que são aquelas onde
afloram a defectividade do texto traduzido, bem como as “zonas textuais miraculosas”, ou
passagens em que o tradutor visivelmente logrou êxito na sua tarefa. Para melhor definir o que
chama de “zonas miraculosas”, Berman tenta nos alertar para o fato de que, nestes casos,
estaríamos
23
24
BERMAN, 1995, p. 45
Ibid., p. 65
32
[…] em presença não somente de passagens de visível sucesso, mas de uma
escrita que é uma escritura-de-tradução, uma escritura que nenhum escritor
francês teria conseguido produzir, uma escritura do estrangeiro harmoniosamente
trazida para o francês, sem nenhum choque (ou, se há choque, um choque
benéfico).25
Ou seja, o grau de escritura – para utilizar um termo caro à Barthes – na tradução seria
tal que seria fácil até esquecermos que se trata de uma tradução. Estaríamos, portanto, diante
de algo que não nos causaria nenhum choque, nenhum estranhamento. Portanto, os trechos que
escolhemos para comentar as traduções foram pensados a partir desse conceito de “zona
textual” bermaniana. Todavia, é necessário abrir um parêntese aqui para matizar este conceito:
Berman posiciona-se abertamente contra o que chama de traduções “etnocêntricas”, cujo
exemplo máximo talvez sejam as “belles infidèles” francesas, ou as traduções que apagam as
marcas do estrangeiro em favor de uma domesticação da experiência do estranhamento. Porém
Berman fala de uma língua-cultura historicamente hegemônica, central, e seu posicionamento
faz sentido se olhado a partir do lugar que ele ocupa. Já o lugar que o nosso poeta-tradutor
ocupou era diferente, praticamente oposto. O que para Berman seria traduzir de maneira
etnocêntrica ou domesticadora, aqui se tornará canibalizadora ou antropofágica, uma estratégia
de reafirmação da nossa língua-cultura frente ao estrangeiro. Portanto, as nossas “zonas textuais
miraculosas” serão aquelas em que a voz apropriadora do tradutor mais se faz presente, e que
podem aparecer mais ou menos – ou não aparecer de todo – nesta ou naquela tradução.
O passo seguinte pelo trajeto de Berman é fazer as leituras do texto-fonte. Deve-se, neste
caso, deixar de lado a tradução, mas manter em mente as tais zonas textuais problemáticas e
miraculosas, para que nos preparemos para a confrontação. Agora, caberá fazer uma pré-análise
textual, que implicará no “[...] mapeamento de todos os traços estilísticos, quaisquer que sejam,
que individualizam a escrita e a língua do original e fazem delas uma rede de correlações
sistemáticas”26, ou seja, partir em busca de formas frásticas, formas de encadeamento de
proposições, empregos de adjetivos, advérbios, tempos verbais, preposições, etc. palavras
recorrentes e palavras-chave. É, de fato, um estudo estilístico da obra e, evidentemente, é
preciso recorrer a materiais de apoio, leituras colaterais, outras obras do mesmo autor, obras
sobre o autor, sua época etc.27. É isso que, antes de analisar cada um dos poemas-traduções de
Machado de Assis, buscaremos na crítica material de apoio a respeito da obra traduzida e
25
BERMAN, 1995, p. 66. No original: “en présence non seulement de passages visiblement achevés, mais d’une
écriture qui est une écriture-de-traduction, une écriture qu'aucun écrivain français n’aurait pu écrire, une écriture
d'étranger harmonieusement passée en français, sans heurt aucun (ou, s'il y a heurt, un heurt bénéfique)”.
26
Ibid., p. 67. No original: “repérage de tous les traits stylistiques, quels qu’ils soient, qui individuent l’écriture et
la langue de l'original et en font un réseau de corrélations systématiques”.
27
Ibid., p. 68
33
apresentaremos uma breve leitura dela, ressaltando seus principais traços estilísticos. Feito este
trabalho de pré-análise, com seleção de exemplos estilísticos pertinentes e significativos no
original, é chegado o momento de partir em busca do tradutor. Para justificar este movimento,
Berman afirma:
“Ir ao tradutor”, eis um ponto de virada metodológico ainda mais essencial pois, como
vimos anteriormente, uma das tarefas da hermenêutica do traduzir é ter em
consideração o sujeito que traduz. Assim, a pergunta quem é o tradutor? deve estar
firmemente confrontada com uma tradução.28
Assim, importa saber de quais línguas traduz, qual seu relacionamento com essas línguas, quais
obras traduziu, quais são seus domínios linguísticos e literários, se escreveu a respeito de seu
trabalho, seus princípios e sobre a tradução em geral. Este foi o trabalho que fizemos nos
primeiros capítulos desta tese, em que buscamos conhecer e apresentar não só o que e como era
a tradução poética no período em que Machado de Assis traduziu, mas também a sua própria
relação com culturas estrangeiras e a tradução, a partir das pesquisas que nos antecederam.
Todavia, Berman faz uma ressalva: tudo o que um tradutor pode dizer a respeito do seu
trabalho só se realiza na tradução. É exatamente por isso que a pergunta “quem é o tradutor?”
deve ser confrontada com o seu trabalho. Seria leviano, ou no mínimo insuficiente, supor
conhecer um tradutor somente pelo que ele disse a respeito do seu trabalho ou da tradução em
geral, assim como também seria temerário ignorar esses dados. É igualmente necessário
conhecer o que Berman chama de posição tradutória, ou seja, compromisso entre a maneira
como o tradutor percebe a pulsão de traduzir, saber por que ele traduz, o que o levou à tarefa.
No entanto, esta é uma posição que só poderia ser reconstituída através das próprias traduções,
onde a pulsão se realiza, e que a expressam implicitamente29. Particularmente no caso de
Machado de Assis, que nos deixou tão poucos e tão breves testemunhos a respeito do seu
pensamento sobre a tradução, torna-se imperativo estudar o produto de seu trabalho para que
se possa, de fato, dar corpo a esta lacuna na crítica machadiana.
De tal modo, chegaremos a uma teoria do sujeito tradutor, conhecendo suas posições
tradutória, linguística e de escrita, ou seja, chegaremos ao conceito de tradução do poetatradutor Machado de Assis. Feito este trabalho, também estaríamos em condições de identificar
um possível projeto de tradução que, segundo Berman, “[...] define a maneira como, de um
28
BERMAN, 1995, p. 73, grifos do autor. No original: “‘Aller au traducteur’, c'est là un tournant méthodologique
d'autant plus essentiel que, comme nous l'avons vu plus haut, l'une des tâches d'une herméneutique du traduire est
la prise en vue du sujet traduisant. Ainsi la question qui est le traducteur? doit être fermement posée face à une
traduction”.
29
Ibid., p. 75
34
lado, o tradutor vai realizar a translation literária e, de outro, assumir a tradução em si, escolher
um ‘modo’ de tradução, uma ‘maneira de traduzir’”30. Neste contexto, a tradução torna-se a
realização de um projeto, assim como suas falhas são também imputáveis àquele mesmo
projeto.
Para melhor conhecer e avaliar este projeto, precisamos estar a par também do que
Berman chama de “horizonte do tradutor”, ou “o conjunto de parâmetros linguísticos, literários,
culturais e históricos que ‘determinam’ o sentir, o agir e o pensar de um tradutor”31. Berman
entende que, uma vez que o tradutor é limitado pelo seu arredor, pelos ares que respira naquele
momento, pelo conhecimento que se produziu até então, de alguma forma isso estará refletido
no seu trabalho de tradução. Meschonnic, por exemplo, sugere que “[...] [t]raduzir é histórico,
ainda que em outro sentido. No sentido em que os procedimentos mudam com o tempo, segundo
um laço estreito com a coisa a traduzir”32. Por isso não se pode pretender que as traduções de
Machado de Assis atendam ao gosto de alguns teóricos ou críticos contemporâneos do traduzir.
É preciso apreciá-las na historicidade em que estão inscritas. Cabe ao crítico, portanto, estar a
par não só da biografia do tradutor, da sua formação, como da época em que viveu, incluindo
aí a vida literária da época, as correntes estéticas em voga e as condições históricas da produção
do seu trabalho. Esta etapa do trajeto proposto por Berman explica a nossa escolha por
apresentar um estudo panorâmico da prática da tradução no século XIX, bem como o motivo
de pincelarmos diversos dados biográficos no decorrer de nossas análises.
Cumpria aquela etapa, estaríamos em condições de partir para o confronto dos textos.
Berman considera que as primeiras traduções de uma determinada obra são “defeituosas”, daí,
se possível, deveríamos buscar comparar o texto-alvo também com outras traduções33. Como
se verá, estivemos atentos a esta proposta na medida do possível, cotejando as traduções de
Machado com a de outros tradutores, principalmente tradutores contemporâneos a ele, quando
encontramos tais traduções e percebemos que o cotejo poderia ser proveitoso. Mas se há casos
em que Machado de Assis traduziu textos que são canônicos, grandes clássicos da literatura
mundial, também há traduções de textos obscuros de autores que são hoje pouco ou nada
conhecidos. Esta confrontação seria feita de modo quádruplo, envolvendo a confrontação de
30
BERMAN, 1995, p. 76, grifos do autor. No original: “définit la manière dont, d'une part, le traducteur va
accomplir la translation littéraire, d'autre part, assumer la traduction même, choisir un ‘mode’ de traduction, une
‘manière de traduire’”.
31
Ibid., p. 79. No original: “l’ensemble des paramètres langagiers, littéraires, culturels et historiques qui
‘déterminent’ le sentir, l’agir et le penser d’un traducteur”.
32
MESCHONNIC, 2010, p. XLII
33
BERMAN, 1995, p. 84
35
elementos e passagens do original e tradução, uma confrontação inversa das “zonas textuais”,
confrontar com outras traduções e, por fim, confrontar a tradução com o possível projeto do
tradutor34. Estes modos de confrontação também deveriam preocupar-se com questões relativas
ao estilo, já que, “[...] enquanto trabalho de escritura, o confronto deve enfrentar o problema de
sua comunicabilidade, ou seja, de sua legibilidade”35. Berman propõe que este movimento de
análise deve ser rico, transparente e aberto a uma pluralidade de questões, e o texto do crítico
deve ser marcado por clareza de exposição e reflexividade, deve pensar a tradução e o projeto
de tradutor enquanto apresenta a análise.
Considerando que o objetivo final do crítico, em geral, é avaliar a qualidade do texto
traduzido dentro dos parâmetros mencionados acima, caberá a ele, o crítico, considerar que
“[...] a poeticidade de uma tradução reside no fato de que o tradutor fez um verdadeiro trabalho
textual, escreveu um texto, em correspondência mais ou menos estreita com a textualidade do
original”36. Ou seja, quando propõe que ao verificarmos a poeticidade de uma tradução
devemos buscar verificar se o tradutor trabalhou o texto, Berman alinha-se com o que se espera
de uma tradução literária conforme Meschonnic, Benjamin e Steiner: que a tradução seja mais
do que somente reprodução de conteúdo, mas que procure ser uma obra por si mesma. Deve
ficar claro, contudo, que esta “obra” não precisa ser “obra” somente conforme os parâmetros
do texto-fonte, como se procurasse alcançá-lo ou repeti-lo. Um de nossos pressupostos é o de
que o poema-tradução pode ir além do texto que lhe deu origem, pode e deve partir dele, mas
procurar um caminho próprio dentro da poética em que seu poeta-tradutor o circunscreveu, para
alcançar sua própria significância. Em parte, pensamos conforme os termos descritos a seguir
por Mário Laranjeira (2003):
É evidente que o tradutor, que é inicialmente um leitor, deverá partir do poema
original com sua estrutura “a ser descrita”, a ser analisada; mas não pode parar aí
como diante de um objeto estático, não pode vê-la como um “objeto acabado”. Deve,
isto sim, “captar as combinatórias” que constituem a sua significância e, através da
dinâmica das relações significantes, “restituir”, “gerar”, na língua-cultura de chegada,
uma estruturação que mantenha com a significância do original uma relação
homogênea. Ou seja, na tradução do poema, o que se busca transladar não é o sentido,
visto como inerente a uma estrutura linguística, mas a significância.37
34
BERMAN, 1995, p. 86
Ibid., p. 87, grifos do autor. No original: “En tant que travail d’écriture, la confrontation doit affronter le
problème de sa communicabilité, c’est-à-dire de sa lisibilité”.
36
Ibid., p. 92, grifos do autor. No original: “La poéticité d’une traduction réside en ce que le traducteur a réalisé
un véritable travail textuel, a fait texte, en correspondance plus ou moins étroite avec la textualité de l'original”.
37
LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: Edusp, 2003, p. 81
35
36
Como entendemos que o poema-tradução pertence a uma outra poética que não aquela do seu
primeiro autor, particularmente no caso dos poemas-tradução que Machado de Assis inseriu em
seus próprios livros de poesia, pensamos que a significância do poema-tradução não precisa
manter uma relação necessariamente homogênea com o original.
Portanto, mais do que nos preocuparmos somente, ou principalmente, com as tais “zonas
textuais” bermanianas, buscamos focar nossa atenção neste “fazer obra” das traduções de
Machado de Assis, ou seja, em que medida elas pedem para ser lidas como obras que são um
desdobramento, pervivência do texto-fonte que lhes deu origem, o que, na maioria dos casos,
não se esgota na tradução, mas adentra aquela obra do poeta-tradutor tida como “original”,
motivo pelo qual, quando possível ou particularmente interessante, buscaremos pistas desse
desdobramento no diálogo, no intertexto entre as traduções de Machado de Assis e o restante
de sua obra poética ou ficcional. Concordando mais uma vez com Meschonnic, nesta tese
partiremos do entendimento de que “[...] traduzir um texto não é traduzir da língua, mas sim
traduzir um texto na sua língua, que é texto pela sua língua, sendo esta, ela mesma, pelo texto”38,
o que significa dizer que a prática da tradução poética passa necessariamente por uma reflexão
do fazer poético na língua de chegada, e não meramente uma operação mecânica de
transposição de significantes e significados.
O passo final será fazer a avaliação das traduções poéticas de Machado de Assis como
um conjunto em si, um legado de obras que foram construídas em um determinado momento
histórico e que foram elas mesmas determinadas por aquele momento, o que pretendemos fazer
observando as traduções de Machado de Assis como um sistema próprio que pertence a outro
sistema que é a obra poética machadiana, o que nos convida às teorizações de Itamar EvenZohar.
Even-Zohar propõe que nos casos em que a produção de traduções ocupa um lugar de
destaque num determinado polissistema é comum que encontremos uma situação em que “[...]
nenhuma distinção clara é feita entre ‘original’ e ‘tradução’, e que são os principais escritores
(ou membros da vanguarda que estão prestes de se tornar os principais escritores) que produzem
as traduções mais admiráveis ou apreciadas”39, situação em que podemos incluir não só
Machado de Assis, mas vários dos grandes escritores do século XIX.
38
MESCHONNIC, 2010, p. 84
EVEN-ZOHAR, Itamar. “The position of translated literature within the literary polysystem”. In: VENUTI,
Lawrence (Ed.). The translation studies reader. 2 ed. New York: Routledge, 2000, p. 200. No original: “no clearcut distinction is maintained between ‘original’ and ‘translated’ writings, and that often it is the leading writers (or
39
37
Desta forma, para que se possa dizer que a tradução ocupa um lugar de centralidade em
um determinado polissistema literário, Even-Zohar nomeia algumas características geralmente
encontradas em tal caso: a primeira é quando o polissistema ainda não se consolidou; a segunda,
quando a literatura é “periférica” ou “fraca”; e a terceira quando não há grandes mudanças,
crises ou vácuos literários, ou seja, um sentimento de que não há uma literatura nacional ou que
esta literatura está estagnada. Even-Zohar propõe ainda que nestes casos de “vácuo”, ou quando
há um sentimento de hiato na produção nacional, os modelos estrangeiros tendem a se infiltrar
e a literatura traduzida passa a preencher esse espaço, assumindo assim uma posição de
centralidade, situação que acaba gerando outra: a tensão criada pela centralidade da tradução
faz com que as linhas que dividem “original” e “tradução” tornem-se mais tênues, ou até mesmo
“difusas” – termo utilizado por Even-Zohar – de forma que precisemos ampliar nosso conceito
de tradução, abandonando uma ideia stricto sensu de tradução em favor de um conceito mais
abrangente, que dê conta também das tais “paráfrases”, “imitações”, “pastiches”, etc40. Devese ressaltar que essa “centralidade” de que trata Even-Zohar não é algo tido como aceito, a que
os artistas locais “se conformam”. Há, a todo momento, uma tensão na busca por esse papel, e
é o resultado dessa “luta” – que é incessante – que engendra a situação que se observa.
A situação em que se produziam e circulavam os textos literários no século XIX que
veremos no capítulo seguinte pode ser analisada dentro do conceito de polissistema literário
teorizado por Itamar Even-Zohar, uma vez que as condições e a realidade relatadas são um dos
pontos centrais da teoria dos polissistemas. O pesquisador entende que todo sistema consiste,
ao mesmo tempo, de sincronia e diacronia, cada um dos quais também é entendido como um
sistema em si mesmo. Todavia, falar de “sistema” não implica a existência de homogeneidade,
mas heterogeneidade, como uma estrutura aberta. Não é um sistema único, mas, na verdade,
um polissistema que Even-Zohar define como um “[...] sistema múltiplo, um sistema de vários
sistemas que se intersectam mutuamente e, em parte, se sobrepõem, utilizando opção
concorrentes, embora funcionem como um todo estruturado, cujos membros são
interdependentes”41. Even-Zohar sugere a adoção do termo “polissistema” para explicitar a
ideia de que o sistema literário é, ao mesmo tempo, dinâmico e heterogêneo, em oposição a
members of the avant-garde who are about to become leading writers) who produce the most conspicuous or
appreciated translations”.
40
EVEN-ZOHAR, 2000, p. 200-203
41
EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Poetics Today, Volume 11, Number 1, 1990, p. 11. No original:
“multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly overlap, using
concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose members are interdependent”
38
uma abordagem sincrônica42 e uma visão estática e homogênea do mesmo sistema. Uma vez
que se decida trabalhar dentro desta hipótese, afirma Even-Zohar, deve-se aceitar também que
o “[...] estudo histórico dos polissistemas literários não pode se confinar às chamadas ‘obrasprimas, mesmo que a princípio as consideremos a raison d’être dos estudos literários”43. Ao
mesmo tempo em que critica o elitismo da historiografia literária, Even-Zohar entende que para
se desvendar os mecanismos da literatura não se deve evitar as obras de valor estético não
reconhecido uma vez que elas também são parte daqueles mecanismos, lembrando seus leitores
de que não se faz ciência com base em gostos pessoais.
Esta foi uma questão central para o objeto deste estudo. Se a crítica deseja conhecer os
mecanismos que fazem funcionar a poética machadiana, e consequentemente conhecer melhor
o nosso escritor, é necessário olhar também para as obras que participaram de sua formação, e
não somente para aquelas de valor estético já reconhecido e admitido pela crítica. Do mesmo
modo, dentro de sua produção poética, as traduções – cujo papel dentro da teoria do
polissistema de Even-Zohar vamos tratar a seguir – são também parte daquele mecanismo que
estava então, e constantemente, em formação, o que significa que também não se poderíamos
estudar e comentar somente as traduções bem sucedidas ou polêmicas, mas também os
trabalhos menores, de formação, que tenham sido deixados de lado seja por seu valor estético
questionável ou por falta de interesse, motivo pelo qual não excluiremos nenhuma das traduções
poéticas de Machado de Assis.
Conforme veremos no capítulo seguinte, o mercado literário do século XIX era
dominado por traduções ao mesmo tempo em que, como uma das bandeiras do Romantismo,
se tentava criar uma literatura verdadeiramente nacional, e não somente uma extensão da
literatura portuguesa. Um dos que denunciaram a inexistência, ou incipiência, de uma
“literatura nacional” foi o próprio Machado de Assis, em mais de um momento, a exemplo já
do mencionado ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”. Se
havia tal sentimento de necessidade de se dar feições locais à nossa literatura, é porque se
entendia que o que se tinha até então não preenchia os requisitos que o período julgava
necessário. Este é um dos sintomas previstos na teoria de polissistemas literários.
42
EVEN-ZOHAR, 1990, p. 12.
Ibid., p. 13. Tradução: “historical study of literary polysystems cannot confine itself to the so-called
‘masterpieces’, even if some would consider them to be the raison d’être of literary studies in the first place”
43
39
Se de um lado tínhamos escritores empenhados em criar uma identidade literária
nacional, de outro tínhamos um mercado dominado por traduções e um ínfimo público leitor
em um país de analfabetos. Entretanto, se as traduções inundavam o nosso mercado, assumindo
posição central nele, é porque a produção nacional sozinha não daria conta de atender à
demanda, ainda que pequena. Para Even-Zohar, dizer que “[...] uma literatura traduzida mantém
uma posição central no polissistema literário significa que ela participa ativamente na formação
do centro do polissistema”44. Uma análise do período em questão sugere ter sido este nosso
caso: as traduções moldaram o gosto do público consumidor de então e, como consequência,
os escritores, adotando modelos estrangeiros, tentavam agradar o público ao mesmo tempo em
que alguns deles – dentre os quais alguns que se tornaram canônicos posteriormente –
almejavam dar um sabor local, particular às obras.
Não é preciso ir muito longe para entender a relação que se estabelece entre teoria de
polissistemas literários com a realidade da literatura oitocentista brasileira uma vez que o
próprio Machado de Assis se encarrega de, em alguns de seus ensaios críticos, pintar um retrato
que parece enquadrar-se bem na moldura teórica de Even-Zohar. Ainda em 1858 o jovem
Machado já falava da necessidade de se criar uma independência literária, a exemplo da política
recém-alcançada, no ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858:
Mas após o Fiat político, devia vir o Fiat literário, a emancipação do mundo
intelectual, vacilante soba ação influente de uma literatura ultramarina. Mas como? É
mais fácil regenerar uma nação, que uma literatura. Para esta não há gritos do Ipiranga;
as modificações operam-se vagarosamente; e não se chega em um só momento a um
resultado.45
O que o jovem escritor está denunciando no breve trecho é a existência de um sistema literário
dependente, ou mesmo de um vácuo no sistema literário nacional, o que é reforçado mais à
frente quando Machado trata da inexistência de um romance e um drama nacionais, cuja culpa
– particularmente no caso do teatro – Machado não hesita em atribuir às traduções que
dominavam a cena, e continua denunciando a presença desnecessariamente predominante da
tradução. A crítica à presença sufocante de obras teatrais traduzidas retornará no ensaio “Ideias
sobre o teatro” (1859), em que Machado defenderá que o teatro se tornou “uma escola de
aclimatação intelectual” enquanto denuncia o surgimento da entidade do tradutor dramático
com a metáfora do criado que leva, de sala em sala, os pratos da cozinha estrangeira.46
44
EVEN-ZOHAR, 2000, p. 200. No original: “a translated literature maintains a central position in the literary
polysystem means that it participates actively in shaping the center of the polysystem”
45
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 988
46
Ibid., p. 1012-1013
40
Mais de uma década se passa e Machado volta ao tema da necessidade de uma literatura
nacional em “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”, de 1873, com o
objetivo de falar que há um “geral desejo de criar uma literatura mais independente”, o que é o
mesmo que dizer que o Fiat literário de que falava antes ainda não aconteceu, apesar dos
esforços que vinham desde os árcades, cujas obras “[...] quiseram antes ostentar certa cor local
do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal
poderá ir alvorecendo agora”47. Enfim, a situação relatada por Machado de Assis conforme seu
entendimento, em um espaço de quinze anos de crítica literária, sugere as mesmas condições
propostas por Even-Zohar como necessárias para que a tradução assuma um papel central
enquanto sintoma de uma literatura jovem, periférica e dependente como a nossa era então.
Evidentemente, trata-se, neste caso, de uma visão ampla, nacional de literatura, mas se
partirmos para um enfoque mais particular – a literatura machadiana no caso – e entendermos
essa produção como um sistema dentro do polissistema da literatura brasileira, é possível propor
que a carreira de Machado de Assis enquanto escritor seguiu caminho razoavelmente análogo.
Partiremos, portanto, do pressuposto de que a tradução poética ocupou um lugar de destaque
no desenvolvimento de uma poética tipicamente machadiana que implica em absorver o
estrangeiro e, a partir desse trabalho, alimentar a própria tradição. Consideraremos, ainda, que
a tradução precisa ser pensante do fazer poético na língua em que se traduz, e refletir este pensar
da poesia enquanto se realiza porque, se a tradução quer ser um texto, este texto precisa se
pensar a partir da língua-cultura na qual ele estará inscrito dali em diante. Acreditamos que
somente colocando as suas traduções-texto em evidência, como momentos em que se pensa não
só a tarefa do tradutor, mas o próprio fazer literário, as relações de influência – e até mesmo
políticas – que se estabelecem e o desenvolvimento do escritor durante este trabalho, estaremos
aptos a desenhar o perfil do poeta-tradutor Machado de Assis.
47
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1177-1178
41
3. A tradução de poesia no século XIX no Brasil: alguns apontamentos
Para Antoine Berman, em A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha
romântica (2002), “[a] constituição de uma história da tradução é a primeira tarefa de uma
teoria moderna da tradução. Toda modernidade institui não um olhar passadista, mas um
movimento de retrospecção que é uma compreensão de si.”48 Não seria possível, portanto,
pensar a prática da tradução de Machado de Assis em separado da história de que fez parte, que
compreende todos os tradutores e obras traduzidas durante o século XIX. Berman escreve ainda
que “[f]azer história da tradução é redescobrir pacientemente essa rede cultural infinitamente
complexa e desconcertante na qual, em cada época, ou em espaços diferentes, ela se vê presa.
E fazer do saber histórico assim obtido uma abertura de nosso presente”49. O que apresentamos
neste capítulo busca atender a uma das etapas sugeridas no trajeto de análise de Antoine
Berman, que é compreender o horizonte do tradutor. É, também, uma breve redescoberta deste
passado para nos abrirmos ao nosso presente, um trabalho forçosamente panorâmico de uma
história da tradução de poesia que ainda anseia por mais investigação, que ainda está por se
escrever.
Todavia, antes de partirmos para as traduções propriamente ditas, é interessante refletir
a respeito do público leitor brasileiro do século XIX de sua formação, de forma que possamos
entender o contexto em que elas surgem. Este é um público que se formou principalmente a
partir da leitura de obras traduzidas majoritariamente do francês, seja de obras escritas
originariamente nesta língua ou das que utilizam o francês como idioma intermediário – caso
de obras escritas em outros idiomas, traduzidas para o francês e retraduzidas posteriormente
para o português. Marlyse Meyer, em Folhetim: uma história, relata a introdução do romancefolhetim no Brasil, que era traduzido e publicado diariamente nos rodapés dos jornais50
sugere a constituição no Brasil, nas décadas de 1840 e de 1850, de um corpo de
leitores e ouvintes consumidores de novelas já em número suficiente para influir
favoravelmente na vendagem do jornal que as publica e livro que as retomam.51
Justificam-se assim os interesses dos jornais da época, cuja vendagem dependia, evidentemente,
do interesse do público ao passo que este tinha seu gosto moldado pelo que havia à disposição.
48
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe,
Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Trad. Maria Emília Pereira Chanut. Bauro, SP: EDUSC,
2002, p. 12
49
Ibid., p. 14
50
MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Compania das Letras, 1996, p. 283
51
Ibid., p. 292
42
Não se deve com isso imaginar que o Brasil fosse já uma nação de leitores ávidos em pleno
século XIX, nem que o público francês, cujo gosto ajudou a criar e modelar o nosso, fosse
composto de leitores criteriosos. Hélio de Seixas Guimarães, apoiando-se em Eric Auerbach,
nos dá uma clara noção de como era composto este público em Os leitores de Machado de
Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19:
Era a burguesia urbana, que encontrava no seu tipo burgeois, descrito por Auerbach
como “aquele ser cuja estupidez, preguiça mental, enfatuação, mendacidade e
covardia foram repetidamente motivo das mais violentas diatribes dos poetas,
escritores, artistas e críticos, desde o Romantismo”.52
Se na França a situação não era animadora, a situação por aqui era ainda pior. A rápida
penetração do folhetim e do teatro traduzidos pode dar uma noção equivocada da nossa
realidade de então. Um estudo consultado por Guimarães na mesma obra citada acima aponta
que menos de 30% da população brasileira era alfabetizada ao longo do século XIX e que o
recenseamento de 1872 indicou que apenas 18,6% das pessoas livres e 15,7% dos escravos
sabiam ler e escrever, porcentagem que diminui para 14,8% em 189053. Diante da inequívoca
carência de leitores é natural que os poucos existentes fossem disputados um a um e que,
segundo a lógica de mercado, os produtos de maior vendagem, que mais agradassem o gosto
desse parco público, tivessem absoluta preferência nos espaços disputados nos jornais. Até
Machado de Assis, muito otimista quanto aos números, comenta a publicação do recenseamento
do império em crônica de 15 de agosto de 1876 para constatar que “a nação não sabe ler”,
chamando a atenção para o analfabetismo patente e a “profunda ignorância” em que jaz o povo
brasileiro, do qual apenas os supostamente 30% letrados podiam se sentir representados:
— As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma
no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os
poderes da nação”; mas — “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos
30%”. A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um
deputado que disser na Câmara: “Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos
ouvem...” dirá uma coisa extremamente sensata.54
Esta, de maneira forçosamente resumida, era a realidade do público leitor no período no século
XIX: uma grande massa de analfabetos, uns poucos que sabem ler e escrever e, dentre esses
poucos, menos que realmente leem e, nesses, uma grande maioria interessada tão somente nos
folhetins rocambolescos e no teatro de gosto duvidoso. Hélio Seixas Guimarães faz um
excelente panorama da nossa situação de então:
52
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de
literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial/Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p. 64
53
GUIMARÃES, 2004, p. 66
54
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 288
43
Num primeiro momento, supõe-se a existência de um público leitor, mas caprichoso
e indolente, como acreditavam Alencar e os primeiros românticos; num segundo
momento, a pouca repercussão da literatura é associada à exiguidade do público leitor;
num terceiro momento, esse público leitor passa a ser encarado como potencial
consumidor de literatura, uma mudança de percepção que tem a ver com a organização
da produção e comercialização dos livros.55
Esse era o contexto ideal para a proliferação de textos literários traduzidos, mesmo que
de maneira deficiente e apressada, primeiramente porque a produção nacional não daria conta
de, sozinha, suprir a demanda do nosso incipiente mercado por menor que fosse, mas
principalmente porque o governo parecia pouco interessado, a princípio, em desenvolver uma
cultura nacional e porque o público parecia mais interessado em alinhar seu gosto com o da
Europa, particularmente com o gosto francês, acreditando ganhar com isso ares de sofisticação
e modernidade. A tradutora Lia Wyler, autora de um levantamento da história da tradução em
nosso país em Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil, nos dá um
retrato do começo do século XIX, que coincide com o início da Imprensa Régia no Rio de
Janeiro:
Entre as muitas novidades trazidas pelos reinóis, incluíam-se a feitura e leitura de
traduções do francês e do inglês (através do francês e do espanhol), que logo se
incorporaram ao quotidiano dos habitantes da colônia temporariamente impedidos
pela guerra de importar os livros em voga na Europa.
Eram traduções e adaptações de romances célebres e sentimentais, morais ou tristes,
aos quais o editor português suprimia o nome do autor e acrescentava títulos
sugestivos e tentadores. A Impressão Régia reimprimiu no Rio de Janeiro mais de
vinte desses romances, de 1810 a 1818, bem como peças teatrais, óperas e literatura
clássica – Ovídio e Virgílio – ou os mais “modernos” como Racine, Voltaire, Pope,
Legouvé, Rousseau e Delille, sempre em traduções portuguesas.56
O retrato que a tradutora segue pintando é desalentador: apesar de a figura do tradutor
sofrer com o apagamento, desprestígio e não raro a ausência de remuneração em espécie, não
obstante o volume de obras traduzidas e publicadas no período, a pesquisadora afirma que “a
julgar pelo número de traduções publicadas e inéditas mencionadas pelos bibliógrafos literários,
nunca se traduziu tanto quanto no século XIX, seja pelo prazer de traduzir ou de partilhar
traduções com os amigos ou até com o público”.57
Se com a Imprensa Régia as traduções francesas já dominavam o mercado, com
a proclamação da independência em 1822 o sentimento antilusitano que se criou e a forte
indústria tipográfica francesa constituíram condição ideal para a penetração do romance55
GUIMARÃES, Op. Cit., p. 82
WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p.
79
57
Ibid., p. 83
56
44
folhetim e do teatro francês o que, por sua vez, cria uma demanda cada vez maior por autores
e, em vista da sua produção escassa, principalmente de tradutores. O produto de tal demanda é
a proliferação de textos de qualidade questionável publicados sem os créditos ao tradutor, e
frequentemente apresentados como imitações, traduções livres, paródias, acomodações,
particularmente no caso das peças teatrais58, descuido que favoreceu o desprestígio da atividade
tradutória; não obstante, vários dos grandes nomes do nosso passado literário, jornalístico e até
político praticaram a tradução, a quem devemos várias traduções das melhores obras da
literatura europeia de então59.
É um pouco disso que veremos no paciente trabalho panorâmico que se inicia com uma
afirmação de Tavares Bastos no levantamento feito em Versões poéticas brasileiras de Victor
Hugo (1952): “Vicejou de tal modo, no tempo do Império, o hábito das versões poéticas, que
deixar de fazê-las era então motivo de geral estranheza”60, vício que teria se estendido até
Raimundo Correia antes de desaparecer. Com Machado de Assis não foi diferente, mas, para
melhor compreendermos a produção tradutória de Machado de Assis na seara poética, é
interessante nos perguntarmos um instante sobre o cenário em que traduziu os autores que
escolheu ou que lhe couberam. A primeira pergunta que se faz necessária é o que considerar
“tradução”. Depois, pode ser interessante investigar o que traduziram seus pares, antes e depois
dele, dentro do que foi o movimento romântico e a transição para a poesia parnasiana. Ou seja,
quem mais traduziu poesia, entre os poetas brasileiros daquele período? O que traduziram?
Quais poetas estrangeiros foram traduzidos? Quais foram os mais traduzidos? Que paralelos
podemos estabelecer entre os autores traduzidos por Machado e pelos demais poetas?
Quanto à primeira pergunta, precisamos de um conceito de tradução que dê conta do
que foi produzido na época, seja por Machado de Assis ou por qualquer outro poeta que tenha
traduzido. Neste sentido, outros poetas-tradutores como Dryden ou Goethe, que são exemplos
do tipo de pensamento sobre a tradução que estava disponível no século XIX, iluminam o nosso
caminho. Dryden nos ensina que podemos incluir, dentre as traduções, as “paráfrases” e as
“imitações”61, enquanto Goethe propõe que há lugar para as traduções de poesia em prosa, para
as traduções que se apropriam somente da ideia que o tradutor apresenta como se fosse sua – a
58
WYLER, 2003, p. 95-98
Ibid., p. 99
60
BASTOS, C. Tavares. Versões poéticas brasileiras de Victor Hugo. Petrópolis: Artes Gráficas Impressora S.A.,
1952, p. 5.
61
DRYDEN, John. “From the preface to Ovid’s Epistles”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies
reader. 2 ed. New York: 2000, p. 38
59
45
que chama de época parodística – e para as traduções que buscam perfeita identidade com o
texto-fonte, a ponto de reivindicar para si o direito de tomar o seu lugar62. Poderíamos buscar
ainda outros conceitos, em outros pensadores contemporâneos, por exemplo, mas esses são
exemplos importantes do tipo de discurso sobre a tradução que estava disponível àqueles que
se interessassem por pensar a tradução nos primeiros anos do século XIX. É uma época em que
encontramos traduções que serão chamadas de “paráfrases”, “imitações”, bem como teremos
diversas e bem-sucedidas traduções de poesia em prosa e até mesmo exemplos que poderiam
ser aproximados da “transcriação” haroldiana, que, por sua vez, se assemelha à terceira época
das traduções de que falou Goethe. Entendemos que, para apreciar da melhor forma possível a
maneira como a tradução foi praticada no século XIX, precisamos de uma abordagem que não
seja normativa para que possamos abraçar as traduções de fato, tal como são e não como
gostaríamos que fossem, na multiplicidade de formas em que se apresentam. Mais do que
puramente estético, nosso interesse será também guiado pelo viés histórico e cultural.
Tendo por objetivo conhecer o horizonte que se abria diante do poeta-tradutor Machado
de Assis, procuramos outros poetas do oitocentos brasileiro que houvessem traduzido e
publicado traduções em meio aos seus poemas, como fez Machado de Crisálidas a Ocidentais,
ou cujas traduções tenham sido reunidas em volume posteriormente. Talvez a análise ficasse
mais interessante se incluísse também algo das traduções que ficaram esquecidas nos periódicos
da época, mas aí extrapolaríamos em muito não só o tempo de que dispomos, mas o escopo
desta pesquisa. Logo, dentro dos limites a que estivemos sujeitos, procuramos obras literárias
que fossem acessíveis, que estivessem disponíveis e que, preferencialmente, tenham sido de
alguma relevância para as letras brasileiras, ou estudos anteriores ao nosso que fizeram
levantamento parecido. Após a consulta de pouco mais de sessenta volumes de poesia do
período com esta finalidade, chegamos à conclusão – que, obviamente, reflete somente a
realidade do corpus estudado – de que poucos escritores dentre seus contemporâneos rivalizam
com Machado de Assis no interesse por traduzir e publicar os resultados entre seus próprios
poemas, o que aparentemente apenas reforça a importância das traduções na obra poética de
Machado, tanto em números absolutos (em relação à sua própria obra) quanto relativos (em
relação às obras de outros poetas contemporâneos seus). Daqueles poucos escritores que
mencionamos, escolhemos os mais relevantes para uma apresentação mais detida.
62
GOETHE Johan W. Von. “Translations”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader. New
York/London: Routledge, 2000, p. 64-65
46
Não seria correto tratar da tradução poética no oitocentos brasileiro sem mencionar o
nome do maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864), tradutor, entre diversas outras
obras, da Eneida, da Ilíada e da Odisseia. Haroldo de Campos (2015) viu em Odorico Mendes
“[...] aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da tradução [porque] soube
desenvolver um sistema de tradução coerente e consistente, em que seus vícios (numerosos sem
dúvida) são justamente os vícios de suas qualidades, quando não de sua época” 63. Nesta teoria
da tradução de Odorico estava a tentativa de demonstrar que o português podia ser tão conciso,
sintético quanto o grego ou o latim, cedendo aos neologismos que latinizavam ou helenizavam
o português, a exemplo do que afirma na sua Eneida: “Adotei palavras do latim e compus não
poucas por me parecerem necessárias na ocasião”64. Campos inclui ainda, entre os
procedimentos tradutórios de Odorico, a manutenção da crueza das passagens que traduzia e a
interpolação de versos de outros poetas, nem sempre com resultados satisfatórios ou
irreprocháveis, é verdade, mas isso não deveria ofuscar o mérito das descobertas bemsucedidas.
Mas há também outra parte, menos conhecida e mencionada, da produção tradutória de
Odorico Mendes e que dá outra dimensão à sua teoria de tradução: as traduções que fez de duas
tragédias de Voltaire, Mérope, publicada em 1831, e Tancredo, de 1839. Essas contribuições
são lembradas por Raimundo Carvalho no artigo “Retrato do tradutor quando jovem. A Mérope
brasileira de Odorico Mendes” (2015). A tradução da Mérope, diz Carvalho, surge num
momento crucial da história brasileira como um ato político no atribulado período de
instauração da Regência, após D. Pedro I abdicar, como uma forma de introduzir, sutilmente,
ideais iluministas65. Quando aparecem, estas peças inserem-se organicamente num momento
em que as ideias estão sendo renovadas, e a escolha da forma teatral, ato performativo e
intervencionista, presta-se adequadamente ao propósito66. Estas traduções, para Carvalho, “[...]
atestam a solidez do pensamento odoriciano a respeito da atividade de tradução poética, assim
como a excelência de sua prática”67, e mostram que mesmos estes trabalhos da juventude já
63
CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”. In: TÁPIA, Marcelo; Nóbrega, Thelma
Médici (Orgs). Haroldo de Campos: transcriação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015, p. 8-9
64
MENDES In VIRGÍLIO. Eneida brazileira. Trad. Manuel Odorico Mendes. Paris: Typographia de Rignoux,
1854, p. 6
65
CARVALHO, Raimundo. “Retrato do tradutor quando jovem: a Mérope brasileira de Odorico Mendes”.
Nabuco, São Luís, ano I, n. 5, 2015, p. 62 (p. 60-73).
66
CARVALHO, 2015, p. 62
67
Ibid., p. 64
47
vieram acompanhados de reflexão sobre o ato de traduzir, a exemplo do trecho que citamos a
seguir, que Carvalho pinça de Tancredo:
Um tradutor, por mais hábil que seja, em muitas passagens fica abaixo do original;
justo parece que, em compensação, lhe disfarce alguns senões, contanto que não falte
ao pensamento, e no todo dê igual ou semelhante prazer. O seu ofício não é seguir as
palavras servilmente, mas representar na sua língua a mente e o modo de sentir do
autor.68
Raimundo Carvalho interpreta este trecho como uma demonstração de que o produto da
tradução é uma chance que é dada à obra de refazer sua forma e reencontrá-la, conforme o
tradutor se depara com os momentos fortes ou frágeis do original. Ao tradutor caberia
retrabalhar a linguagem e colher os frutos de um trabalho que é sobretudo crítico, mas sem
perder de vista o pensamento da obra e o prazer que ela deverá proporcionar ao leitor69. Na
maneira como Odorico Mendes traduz essas duas tragédias de Voltaire, Carvalho enxerga a
mesma concisão e brevidade por que Odorico ficara conhecido ao traduzir os clássicos,
guardadas, é claro, as devidas proporções, posto que “[...] Odorico opera, na transposição das
peças de Voltaire, a redução do sistema poético clássico francês para o correspondente sistema
clássico português”70, ao traduzir os alexandrinos franceses pelos decassílabos brancos
portugueses, procedimento que observaremos em vários outros poetas, incluindo Machado de
Assis. Isto é exemplo suficiente de que Manuel Odorico Mendes, desde jovem, soube escolher
a dicção adequada ao texto com o qual trabalhava71.
Outro tradutor digno de nota é apresentado na dissertação de Pedro Falleiros Heise, A
introdução de Dante no Brasil: o ‘Ramalhete poético do parnaso italiano’ de Luiz Vicente De
Simoni (2007). Trata-se de um caso bastante apropriado para o nosso propósito neste capítulo:
dois livros de traduções poéticas publicados por Luiz Vicente De Simoni (1792-1881). Em 1842
De Simoni publica Gemidos poéticos sobre os túmulos, em que são apresentadas quatro
traduções, dentre elas os Sepolcri de Foscolo e composições próprias, chamadas “carmes
epistolares”72; no ano seguinte De Simoni publica a obra que é, segundo Heise, “a primeira e
uma das únicas antologias de poesia italiana no Brasil”73 até então, Ramalhete poético do
parnaso italiano, edição bilíngue que traz aquela que é possivelmente a primeira tradução de
68
MENDES apud CARVALHO, 2015, p. 64
CARVALHO, Op. Cit., p. 64-65.
70
Ibid., p. 70
71
Ibid., p. 71
72
HEISE, Pedro Falleiros. A introdução de Dante no Brasil: o Ramalhete poético do parnaso italiano de Luiz
Vicente De Simoni. 2007. 102f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 10
73
HEISE, 2007, p. 10
69
48
cantos da Divina Comédia de Dante no Brasil, além de traduções de vários outros poetas, como
Petrarca, Ariosto, Tasso e Metastasio. Ambas também incluem textos introdutórios que trazem
relevante testemunho da visão que o tradutor tinha do trabalho de tradução poética e seu
conceito de fidelidade. Heise sugere que “o percurso utilizado pelo tradutor era o oposto ao
apresentado pela corrente francesa, ou seja, a sua ‘fidelidade’ consistia em manter a forma e o
conteúdo fiéis ao original, sem mudar, sem subtrair ou acrescentar nada”74.
Com efeito, a leitura da “Prefação” de Simoni (1843) nos informa que o projeto do
tradutor era de entregar “uma versão análoga, fiel e homeométrica, que para o idioma português
fizesse passar essas produções com o mesmo gênio e caráter que elas têm no original”75. O
tradutor é ainda mais explícito quando comenta o seu plano de trabalho:
Persuadidos de que uma versão é como a cópia de um quadro, e de que a cópia melhor
e mais perfeita deste é a que não só o desenho, mas as sombras, cores, estilo e graça
do original reproduz sobre outra superfície; geral e constante cuidado nosso foi
sempre nas versões que fizemos, o fazermos passar para cada qual delas, ou todos ou
o maior número de elementos de beleza, que distinguiam o original, e sobretudo os
mais salientes, e que constituíam o seu caráter principal; alvo a que sempre deve
dirigir-se a mira de todo bom tradutor.76
Implícita neste projeto está a crítica à maneira de traduzir dos franceses e também de vários de
nossos poetas, inclusive de Machado na maioria dos casos, sobre a qual De Simoni discorre no
parágrafo seguinte, discordando da tradução que se pauta pela reprodução do conteúdo, que
considera “menos essencial e menos apreciável”77, em detrimento dos aspectos formais que
compõem o jogo da obra traduzida juntamente ao conteúdo. Se este pensamento não é original,
é certamente pouco usual entre os tradutores que consultamos.
Quanto aos nossos maiores poetas, entre os primeiros românticos, Gonçalves de
Magalhães (1811-1882), considerado o fundador do Romantismo brasileiro78, inclui nos
Cânticos Fúnebres (1864) somente uma tradução, “Morte de Sócrates” de Lamartine. “La mort
de Socrate” é um longo poema em versos alexandrinos de estrofes irregulares publicado em
1823 na sequência das Premières meditations. O poema de Lamartine, que narra um dos últimos
diálogos de Sócrates, pouco antes de tomar a cicuta, já é, em certa medida, uma traduçãoimitação de Fédon, de Platão. Uma visita breve a esta tradução e aos comentários que a
74
HEISE, 2007, p. 29
DE SIMONI, Luiz Vicente. Ramalhete poético do parnaso italiano. Rio de Janeiro: Typ. Imp. E Const. De J.
Villeneuve e Comp., 1843., p. V
76
Ibid., p. VII
77
Ibid., p. VIII
78
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. 10 ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 377
75
49
precedem nos dão alguma noção sobre o tipo de tradutor que foi Gonçalves de Magalhães. Sua
tradução é precedida de dois textos, “Do tradutor”, em que explica as condições que deram
origem ao seu trabalho, e uma “Advertência”, de autoria de Lamartine. Sobre seu trabalho,
Magalhães escreve:
Esmerei-me o mais que pude em conservar a frescura do colorido original, e esses
toques ligeiros e transparentes do Mestre, sem estragar a sublimidade dos
pensamentos, e a belleza das imagens. Si o consegui, ou não, outros que o digam, si
se derem á pena de confrontar a copia com o original. Mas quando mesmo não achem
os críticos digno de louvor o meu trabalho, que não emprehendi para merecer
louvores, senão para encher honestamente algumas horas ociosas, tão copiosas são as
belezas deste Poema, tão elevados os pensamentos, tão sublime a moral, que ao travez
da copia sempre apparecerão com algum brilho, para encantar as almas nobres, que,
enfastiadas da sensualidade desta vida prosaica, se aprazem alguns momentos com os
arroubos da pura e sancta Poesia79.
Gonçalves de Magalhães está dizendo que o trabalho de tradução deve buscar trazer para a
língua de chegada os elementos que são marcadamente reconhecíveis no texto de partida.
Mesmo quando a tradução não alcança este objetivo, as qualidades do texto de partida acabam
por transparecer no texto traduzido quando este as possui em abundância.
Machado de Assis comenta brevemente esta tradução de Gonçalves de Magalhães em
uma de suas crônicas:
Não li toda a tradução da Morte de Sócrates, nem a comparei ao original; mas as
páginas que cheguei a ler pareceram-me dignas do poema de Lamartine. O próprio
tradutor declara que empregou imenso cuidado em conservar a frescura original e os
toques ligeiros e transparentes do poema. Essa devia ser, sem dúvida, uma grande
parte da tarefa; para traduzir Lamartine é preciso saber suspirar versos como ele. As
poucas páginas que li dizem-me que os esforços do poeta não foram vãos80.
A verdade, porém, é que as palavras de Gonçalves de Magalhães ou de Machado de Assis só
tomam corpo na tradução, de que transcrevemos um dos trechos mais célebres abaixo, seguido
do texto de partida francês:
Que é pois morrer? — Quebrar o nó infame,
Adúltero hymenêo da terra e d’alma,
Despojar-se, na campa, de um vil peso!
Morrer não é morrer, — é transformar-se!81
Qu’est-ce donc que mourir ? Briser ce nœud infâme,
Cet adultère hymen de la terre avec l’âme,
D’un vil poids, à la tombe, enfin se décharger.
Mourir n’est pas mourir ; mes amis, c’est changer !82
79
MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Cânticos fúnebres. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1864, p. 265266. [Mantivemos a grafia original.]
80
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 191
81
Ibid., p. 281
82
LAMARTINE, Alphonse de. Œuvres poétiques de M. A. de Lamartine. Tome III. Bruxelles: De L’Imprimerie
de M. Hayez, 1825, p. 11
50
Comparando os trechos acima percebe-se o quanto Gonçalves de Magalhães é capaz de, verso
a verso, recriar o poema de Lamartine no metro clássico português por excelência, o
decassílabo, que é mais curto que os alexandrinos franceses, sem que isso signifique qualquer
prejuízo semântico à leitura que se faria no texto francês. Gonçalves de Magalhães se mostra
um tradutor de finíssima estirpe, empregando a mesma estratégia utilizada por Odorico Mendes
na tradução da Mérope de Voltaire. Esta, contudo, não é a única vez que Gonçalves de
Magalhães se dedica a traduzir Lamartine. No ensaio “A tradução literária no Brasil” José Paulo
Paes (2008) acrescenta que Gonçalves de Magalhães “[...] verteu vários textos lamartineanos,
inclusive o célebre ‘O lago’, de onde possivelmente tirou o topos da fugacidade da beleza
amiúde versado em sua própria poesia”83.
Já nos Cantos (1857) de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) encontramos quatro
traduções: “A morte é vária (tradução)”, “Protesto” (Imitação de uma poesia javanesa), “A
queda de satanás (tradução)” e “Canção de Bug-Jargal”, tradução de Victor Hugo, a única com
alguma indicação de autoria. Esta canção, escrita por Gonçalves Dias em sextilhas rimadas em
redondilha maior, foi criada a partir da cena descrita no capítulo VII do romance Bug-Jargal
(1826) de Victor Hugo. No romance, o trecho traduzido por Gonçalves Dias está em prosa, mas
sabemos tratar-se de uma canção porque o narrador diz ouvir com as “[...] notes graves de la
guitare une romance espagnole, dont chaque parole retentit assez profondément dans mon
oreille”. Reproduzimos abaixo a primeira estrofe de Gonçalves Dias e, em seguida, o trecho do
romance:
Maria, porque me foges,
Porque me foges, donzella ?
Minha voz! o que tem ella,
Que te faz estremecer;
Tão temível sou acaso?
Sei amar, cantar, sofrer.84
« Pourquoi me fuis-tu Maria ? Pourquoi me fuis-tu jeune fille ? Pourquoi cette terreur
quand tu m’entends ? Je suis en effet bien formidable ! je sais aimer, souffrir et
chanter ! »85
Com este trabalho, Gonçalves Dias demonstra que o trabalho de tradução não é de mera
transposição de conteúdo, mas um trabalho criativo que pode até mesmo ir além do texto de
83
PAES, José Paulo. “A tradução literária no Brasil”. In: Armazém literário: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, p. 161
84
DIAS, Gonçalves. Cantos: collecção de poezias de A. Gonçalves Dias. 2 ed. Leipzig: F.A. Brochhaus, 1857, p.
613
85
HUGO, Victor. Bug-jargal. Le dernier jour d’un condamné. Paris: Librarie Hachette et Cie, 1877, p. 31
51
partida, a exemplo do que fez quando toma um texto de prosa romanesca e o recria em poesia.
Temos, portanto, um exemplo de que a tradução se torna um trabalho de coautoria a partir da
reimaginação poética do texto-fonte. Gonçalves Dias, que teria sido o primeiro tradutor de
Hugo no Brasil segundo Tavares Bastos, também inclui nas Segundos Cantos e Sextilhas de
Frei Antão uma tradução de um trecho de Victor Hugo na epígrafe de “As duas amigas”. Já no
ensaio de José Paulo Paes somos informados de que ele “[...] foi dos pouquíssimos a saber
alemão, língua de que verteu Uhland, Roseagarten, Herder e sobretudo Heine; traduziu também
um drama de Schiller, A noiva de Messina”86. Paes conta ainda que Gonçalves Dias chegou a
preparar uma coletânea de traduções suas e de outros, Ecos d’além-mari, além de ter sido
“sensível tradutor de Hugo”87, de quem teria até mesmo emprestado algumas passagens.
Outro poeta que merece alguma atenção é Antônio Peregrino Maciel Monteiro (18041868). Na Formação da Literatura Brasileira (2006) Candido informa que ao analisar a sua
obra, reunida em livro somente em 1905, encontrou “quatro traduções e vinte e oito poesias
originais, algumas de autoria duvidosa”88. De fato, após consulta constatamos que há no volume
uma parte intitulada “Traduções poéticas”, onde encontramos peças como “O lago”, “À
mademoiselle Michatowska”, “Invocação” e “O ramo de amendoeira”, todas de Lamartine. Ao
traduzir “O lago”, um dos mais célebres poemas de Lamartine, Maciel Monteiro escolhe uma
disposição visual do poema que remete ao texto-fonte sem, contudo, abrir mão de adequar a
forma poética à tradição portuguesa. Os alexandrinos de Lamartine se tornam decassílabos na
tradução de Maciel Monteiro, que utiliza também o decassílabo quebrado para corresponder
aos versos de menor medida no poema francês:
Ó lago, um anno é findo! e em tuas margens
Tão queridas, que inda Ela ver quisera
Repara: eis-me hoje só sobre esta penha
Em que a viste sentada!89
O lac ! L’année à peine a fini sa carrière,
Et près des flots chéris qu’elle devait revoir,
Regarde ! Je viens seul m’asseoir sur cette pierre
Où tu la vis s’asseoir !90
Monteiro pretere as rimas de Lamartine em favor da construção de um poema que recupere os
sentidos dos versos mantendo sua concisão e brevidade. O trabalho decerto tem seu mérito, mas
86
PAES, 2008, p. 162
Ibid.
88
CANDIDO, 2006, p. 377
89
MONTEIRO, Maciel. Poesias. Imprensa Industrial: Recife, 1905, p. 149
90
LAMARTINE, 1825, p. 186
87
52
não acreditamos que os versos que dele resultaram sejam tão leves e sonoros quanto os de
Lamartine.
Na década seguinte, o jornalista e editor que foi um dos primeiros incentivadores de
Machado de Assis, Francisco de Paula Brito (1809-1861) publicou algumas traduções em
Poesias, de 1863, sem indicar quem era o autor traduzido: “Desejo (imitação do francês)”, “O
Doutor (tradução)”, “A Discrição (tradução)”, omissão que nos impossibilita de avaliar o seu
trabalho em confronto com os textos-fonte. Em Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da
tradução no Brasil (2003) Lia Wyler acrescenta que Paula Brito era “[...] o ativo tradutor da
maior parte dos autores estrangeiros que imprimia: Frédéric Soulié, Augustin Eugène Scribe,
Pitre Chevalier, Alexandre Dumas, pai, Critineau Joly e Émile Souvestre”91.
Assim como Paula Brito, Jayme Castro apresenta em Poesias (1871) quatro textos, a
maioria sem título ou sem clara indicação de quem está sendo traduzido, prática bastante
recorrente entre os poetas consultados: “Tradução”, que é a tradução do poema em francês que
o antecede e que tem por título “Étincelles de Adrien Roux”; “Traduzido de Burgain”,
possivelmente Luís Antônio Burgain, dramaturgo autor de peças bastante representadas que
teria nascido na França e se radicado no Brasil na primeira metade do séc. XIX; “(Le séjour des
champs) Tradução”, que parece ser um poema criado a partir de um texto em prosa muito
comum em gramáticas de língua francesa da época; e “O judeu errante” de Béranger, este
último, assim como a tradução de Adrien Roux, editado de forma bilíngue, com o texto francês
ao lado da versão brasileira. Nesta sua versão, Castro escolhe um metro curto como o do textofonte – redondilha maior em português para traduzir os octossílabos no francês – e mantém as
rimas nos versos pares nos primeiros oito versos, enquanto no texto francês temos rimas
cruzadas, conforme se pode observar a seguir:
Ao viajor que padece
Ó Christão a sede-mata!
Eu sou o Judeu Errante
Que um turbilhão arrebata.
Moço de annos carregado,
Peço o fim de meu soffrer:
Cada noite espero sempre,
Mas sempre o sol á nascer!
Sempre, sempre,
Gira a terra onde eu caminho,
Sempre, sempre, sempre, sempre.
Chrétien, au voyageur souffrant
Tends un verre d'eau sur ta porte !
Je suis, je suis le Juif-Errant,
91
WYLER, 2003, p. 86
53
Qu’un tourbillon toujours emporte,
Sans vieillir, accablé de jours,
La fin du monde est mon seul rêve.
Chaque soir j’espère toujours ;
Mais toujours le soleil se lève.
Toujours, toujours,
Tourne la terre où moi je cours,
Toujours, toujours, toujours, toujours92.
Jayme Castro se mostra um tradutor preocupado com aspectos estéticos do texto
traduzido, obtendo como resultado uma tradução fidelíssima ao texto-fonte, seja no ritmo breve
e ágil dos versos, seja no sentido que é rigorosamente mantido.
Também de 1863 é o volume Traduções poéticas de Francisco Pinheiro Guimarães
(1809-1857), onde, conforme indicação de José Paulo Paes, encontram-se traduções do Hernani
de Hugo e “Childe Harold” de Byron93, além de “O roubo da madeixa” do inglês Alexander
Pope. Novamente, não foi possível localizar nenhum exemplar deste volume para obtermos
mais dados sobre o trabalho do tradutor. Quem noticia e comenta este volume de Pinheiro
Guimarães é o próprio Machado de Assis numa crônica publicada em O Futuro de 15 de
fevereiro de 1863. Muito embora o título da obra seja outro na crônica de Machado, Produções
poéticas, certamente trata-se do mesmo livro. Vejamos os comentários de Machado de Assis:
[...] Tenho em primeiro lugar nas minhas notas as Produções poéticas de Francisco
José Pinheiro Guimarães, grosso volume contendo o Child-Harold e o Sardanapalo,
de Byron, o Roubo da Madeira de Pope, e o Ernani de Victor Hugo.
O nome de F. J. Pinheiro Guimarães é conhecido por quantos estimam e prezam as
letras; mas sinceramente creio que a nomeada do finado poeta não está na altura de
seu brilhante talento. É que esse talento curava pouco de publicidade; e poetizava por
natureza, como as flores dimanam cheiros, como uma necessidade fatal, sem que o
pensamento de glória o preocupasse e fizesse pensar detidamente no futuro. Desta
desambição, tão rara quanto funesta, deriva o nenhum caso que o poeta parecia fazer
de seus versos, mal os acabava, como nos comunica o Sr. Dr. Otaviano no prefácio
do livro.
Se as Produções Poéticas são, portanto, uma revelação para muita gente, para todos
quase é certo, que essa revelação é das mais indisputáveis. Uma locução menos
branda, um verso menos correto, são defeitos esses que o leitor perspicaz não deixará
de notar nas traduções mais de uma vez; mas o poeta não desceu às terras chãs de
revisão literária, e essa é a explicação da ausência de outras belezas que a obra viria a
ter. Em qualquer caso serve a declaração do autor do prólogo de que o poeta
nacionalizou brasileiro a três poetas94.
Nas análises de Onédia Barboza em Byron no Brasil: traduções (1974), o livro é
chamado de Traduções poéticas, o que nos leva a acreditar que o erro esteja na crônica de
Machado de Assis. Trata-se, possivelmente, de uma publicação póstuma, já que Barboza
92
CASTRO, Jayme. Poesias. Paris: A. Durand e Pedone Lauriel Editores, 1871, p. 88-89
PAES, 2008, p. 163
94
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 90
93
54
informa que consta da introdução das Traduções poéticas que Pinheiro Guimarães faleceu em
1857. Diz também que, embora Pinheiro Guimarães tenha escrito duas peças teatrais, sua
principal atividade literária teria sido a de tradutor95. Barboza também elabora com muito mais
detalhes os defeitos apontados por Machado de Assis – “uma locução menos branda, um verso
menos correto” – que seriam fruto da falta de revisão por parte do já falecido tradutor.
Barboza toma para análise a versão de Childe Harold, que considera “o poema mais
byroniano de Byron”, e apresenta as seguintes conclusões sobre o trabalho de Pinheiro
Guimarães:
A tradução de Pinheiro Guimarães é completa e contém não só o mesmo número de
cantos, mas também o mesmo número de estanças do original, incluindo ainda a
dedicatória a Ianthe que precede o poema.
[...]
O método de tradução é um tanto irregular. Nas estrofes de 11 versos, por exemplo,
usa em geral 9 para traduzir os 8 decassílabos da estança de Spencer, e, sendo eles
insuficientes para reproduzir a torrente verbal do original, comprime bastante a
linguagem do mesmo. Ao transformar o alexandrino final em dois decassílabos,
porém, tem que agir de modo contrário, e torna-se bem mais loquaz que o poeta
inglês96.
Percebe-se que Barboza pauta sua análise num conceito de tradução que prioriza a
reprodução da forma e do sentido. Ainda assim, mesmo depois de concluir que os arroubos no
estilo de Byron encontram uma pálida correspondência da versão de Pinheiro Guimarães, que
mais se assemelha à estética clássica do que à romântica, reconhece na nela “uma grande força
expressiva”97.
Ainda em 1863 sai o volume Flores sem cheiro de um dos amigos íntimos de Machado
de Assis, José Ignácio Gomes Ferreira de Menezes (1845-1881), publicado no Rio de Janeiro
pela Typ. Episcopal de Antonio Gonçalves Guimarães e Cia. A obra divide-se em três seções
de poesias, “Soltas”, “Íntimas” e “Traduções”, e uma seção de “Estudos Críticos”. Entre os
poetas traduzidos estão, na ordem em que aparecem, Lord Byron, Ossian (pseudônimo do poeta
escocês James Macpherson), Friedrich Schiller, Victor Hugo, Charles Hubert Millevoy e André
Chénier. Schiller é o poeta mais traduzido, em quatro das onze composições da seção, seguido
por Ossian, com duas traduções. Além desses, há um “Fragmento”, uma estrofe traduzida do
francês e logo abaixo do texto-fonte, sem indicação de autoria, problema que nossas buscas não
conseguiram solucionar.
95
BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974, p. 118
BARBOZA, 1974, p. 123
97
Ibid., p. 126-127
96
55
Particularmente interessante para o nosso propósito é o texto que encerra o volume,
“Estudo Crítico”, assinado por Fagundes Varela e datado de setembro de 1863. Este texto se
subdivide em três partes, cada uma delas analisando uma das partes da obra de Ferreira de
Meneses: “Poesias soltas”, “Íntimas” e “Versões”, esta última dedicada às traduções do volume.
Varela inicia o texto tecendo comentários sobre o que pensa do ato de traduzir, critério a partir
do qual julga o trabalho de Ferreira de Meneses: “É especialmente nas traduções que melhor se
revela qualquer escritor. Verter uma obra de uma língua qualquer para outra supõe sempre
conhecimento de ambas, e tina percepção de suas relações”98. Neste sentido, Fagundes Varela
avalia que nas traduções de Ferreira de Meneses “[...] encontra-se, a par da perfeita
compreensão das composições vertidas, alguma coisa de mais, — esta unção individual, estes
toques que, não alterando nem desfigurando a peça, dão-lhe entretanto alguma coisa de novo”99.
Esta “alguma coisa de mais” é justamente demonstrar a sensibilidade poética para perceber
quando é preciso afastar-se para poder chegar mais perto das obras traduzidas. Assim, o tradutor
não precisa se eximir de acrescentar “alguma coisa de novo”, porque é justamente isso que
garante a pervivência da obra, algo que, segundo Varela, bastaria ao leitor cotejar as traduções
de Ferreira de Meneses e os originais para perceber.
Um pequeno volume que segue o mesmo caminho de Traduções poéticas de Pinheiro
Guimarães é publicado por Joaquim Serra (1838-1888) em 1865, ano seguinte à publicação de
Crisálidas e dedicado a Machado de Assis, também composto só de traduções: Mosaico,
poesias traduzidas. Dentre os autores que traduz temos Ampère, Barthelemy, Adam
Mickiewicz, A. Barbier, C. Delavigne, Louise Colet, Pindemonte, Emilio Descamps, Victor
Hugo, H. Murger, Lamartine, Espronceda, Byron, Zorilla, T. Gauthier, Laprade e Mery. Mais
uma vez, o gosto francês impera, e poetas de outras nacionalidades, como Mickiewicz, também
são traduzidos via francês. O nome mais recorrente nessa obra é o de Victor Hugo, que aparece
em quatro traduções, seguido por Lamartine, de quem traduz três poemas. De Barthelemy,
Barbier, Descamps e Mickiewicz traduz dois poemas de cada, e dos demais somente um poema.
A presença de Mickiewicz entre os poetas traduzidos nos faz supor uma influência direta de
Machado de Assis, já que Serra também vai a Konrad Wallenrod, de onde extrai “O Willia”.
Inclui, ainda, o também célebre poema de Mickiewicz “A uma matrona polaca”, poema também
imitado por Castro Alves, mas não incluído no volume de suas Obras Completas que
98
VARELA, Fagundes. “Estudo crítico”. In: MENESES, José I. Ferreira de. Flores sem cheiro. Rio de Janeiro:
Typ. Episcopal de Antonio Gonçalves Guimarães e Cia, 1863, p. 183
99
Ibid.
56
consultamos. A comoção pelo que ocorria com a Polônia na época é visível também em outra
tradução, “Aos emigrados polacos”, com indicação de autoria de Louise Colet.
Machado de Assis encerra sua crônica da série Ao acaso de 7 de março de 1865
comentando o livro de seu amigo Joaquim Serra, que “[...] estudou com perfeita madureza e
reproduziu com brilhante fidelidade” os poetas do volume, comprometendo-se a transcrever
futuramente peças do volume100.
Tomamos para um breve comentário uma das traduções que Joaquim Serra fez de Victor
Hugo, retirada das Contemplations. É um poema breve, de apenas três estrofes, em que o
tradutor mostra suas qualidades:
Quadro comparativo 1 – Tradução de Joaquim Serra de poema de Victor Hugo
Desce a fonte do rochedo,
Gotta á gotta sobre o mar;
Diz-lhe irado o torvo occeano:
“Que vens gemendo buscar?”
La source tombait du rocher
Goutte à goutte à la mer affreuse.
L’Océan, fatal au nocher,
Lui dit : « Que me veux-tu, pleureuse
“Trago em meu seio as tormentas,
Começo onde acaba o ceo;
Pobresinha, eu sou tão grande,
Que despreso o feudo teu!”
« Je suis la tempête et l’effroi ;
Je finis où le ciel commence.
Est-ce que j’ai besoin de toi
Petite, moi qui suis l’immense ? »
Diz a fonte ao fundo pelago:
“Dou-te, sem bulha fazer,
O que te falta—uma gotta
D’agua doce p’ra beber!”
La source dit au gouffre amer :
« Je te donne, sans bruit ni gloire,
Ce qui te manque, ô vaste mer !
Une goutte d’eau qu’on peut boire. »
Fonte: Serra (1865); HUGO (1863)
Joaquim Serra traduz os octossílabos das quadras de Hugo por redondilhas maiores,
mantendo somente as rimas nos versos pares, enquanto no texto francês temos rimas cruzadas.
Quanto ao sentido geral do poema, é inegável o quanto Joaquim Serra mantém-se próximo do
texto-fonte, prova de seu talento e inventividade poética ao recriar o poema hugoano.
Também dedicado a Machado de Assis, Corimbos (1869) de Luiz Guimarães Júnior traz
diversas traduções: quiçá seguindo o rastro do amigo, traduz dois poemas de Mickiewicz, “Ao
Niemen” e “Dia e noite”, também a partir da tradução francesa de Ostrowski conforme afirma
em nota101. Traduz ainda Heine, a partir da versão francesa em prosa de Gérard de Nerval102,
além de poemas de Lamartine e François Coppée. Há também “Recordações do mar”, indicada
100
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 247
GUIMARÃES JÚNIOR, Luis. Corymbos. Recife: Typ. do Correio Pernanbucano, 1869, p. 169.
102
Ibid., p. 170.
101
57
como “paráfrase”, mas sem indicar o autor. As notas de Corimbos trazem comentários
interessantes sobre a experiência do tradutor ao utilizar traduções em prosa francesa que,
segundo afirma, dificultam a tarefa: “Traduções de poesia em prosa, na frase pitoresca de Heine,
não passam de ‘clair de lune empaillée’”103, diz a respeito de sua tradução de Mickiewicz,
embora elogie, com restrições, as traduções em prosa que Nerval fez dos alemães. A nota ao
poema “O cavaleiro Olaf”, elaborado a partir da tradução em prosa de Gérard de Nerval,
também nos serve de testemunho do tradutor que Guimarães Júnior quis ser: “Lutei na tradução
com duas enormes desvantagens para mim: – interpretar a sutileza do pensamento poético em
primeiro lugar, e transportar para o verso alexandrino com a rima obrigada em todos os pés, a
prosa embora brilhante e pura do tradutor do Fausto”104. É assim que no seu primeiro livro de
poesias Luis Guimarães Júnior, que mais tarde seria um dos membros fundadores de Academia
Brasileira de Letras, mostra sua filiação e adquire capital poético, expandindo seus horizontes
para além do domínio francês de então, mas ainda seguindo de perto os passos de Machado de
Assis.
Machado de Assis, que foi um dos primeiros incentivadores do poeta, publicou uma
crítica a este livro de Guimarães Júnior na Semana Ilustrada. Na opinião do nosso poetatradutor, “O livro dos Corimbos representa, pois, um talento desenvolvido e refletido”, e dos
alexandrinos para os quais Guimarães Júnior transportou os versos de Heine em “O cavaleiro
Olaf” Machado diz que são “cadentes, cheios e corretos”105, de que não se pode discordar
quando lemos a primeira oitava desta recriação, que transcrevemos a seguir:
Eil-os junto á capella os dois homens – são dois:
Rubro manto os envolve. Um é rei, outro algoz.
Diz o rei ao carrasco: “Eil-o emfim! Eis o instante:
Examina o teu braço e a lamina brilhante”
A subtil multidão da capella se escoa...
Pelo meio do povo os noivos vão passando
E um funebre cortejo os vem acompanhando.106
A leitura desses versos nos mostra como estão bem divididos os hemistíquios, os acentos
corretamente colocados na 6ª e 12ª silaba de cada verso, conferindo-lhes a cadência correta.
Curioso é notar que Machado de Assis não atribui a correção dos versos unicamente ao talento
103
GUIMARÃES JÚNIOR, 1869, p. 169.
Ibid., p. 170
105
ASSIS, Machado de. “Um poeta fluminense”. In: Obra completa em quatro volumes. Volume 3. São Paulo:
Editora Nova Aguilar, 2015, p. 1159
106
GUIMARÃES JUNIOR, 1869, p. 124
104
58
ou ao “gênio”, mas antes ao estudo árduo de Guimarães Júnior, que para Machado de Assis era
“o único meio de chegar à perfeição”107.
Também da década de 1860 são as poesias do maranhense Trajano Galvão de Carvalho
(1830-1864). Poeta anterior a Castro Alves e Fagundes Varela, suas obras foram reunidas em
1898 sob o título Sertanejas, livro prefaciado pelo poeta parnasiano Raimundo Correa e que
traz uma seção de “Traduções”, onde encontramos versões de Hugo, Alfred de Vigny,
Pompignan e Béranger, de quem Trajano Galvão teria sido “digno émulo”, conforme se lê nos
“Traços Biográficos” que acompanham o volume. Há, ainda, uma “tradução do francês”, sem
indicação de autoria, com o título “Os mandamentos do crepúsculo”.
De fato, Trajano Galvão emula mais do que traduz a canção de Béranger – poeta,
cançonetista e ativo participante da Revolução Francesa, tão popular quanto Hugo e Lamartine
– como se pode constatar ao compararmos rapidamente a primeira oitava do poema “O caçador
e a leiteira” de Trajano Galvão com o texto francês correspondente:
Com doces cantos a calhandra alegra
Do almo dia o vermelho despontar;
O amante caçador segue, oh! leiteira,
Meigas fallas de amor has de escutar;
Da primavera as orvalhadas flores
Vamos, oh! bella, para ti colher.
— Não, caçador, de minha mãe hei medo
E o meo tempo não posso aqui perder.108
L’alouette à peine éveillée
Chante l’aurore d’un beau jour ;
Suis le chasseur sous la feuillée,
Laitière ; il parlera d’amour.
Dans la rosée allons, ma chère,
Cueillir pour toi fleurs du printemps.
— Non, beau chasseur, je crains ma mère.
Je ne veux pas perdre mon temps.109
Na canção “Le chausseur et la laitière”, Béranger emprega o metro octossilábico, mais
ligeiro e frequentemente traduzido pela redondilha maior, conforme já visto anteriormente.
Trajano Galvão, contudo, escolhe traduzir em decassílabos, metro clássico português. A
consequência é facilmente observável, pois o tom da oitava de Trajano Galvão é mais elevado.
Parece-nos que o tradutor se aproveitou do tema para, a partir dele, compor sua versão mais do
que procurou se ater ao modo de significar do texto fonte: “Do almo dia o vermelho despontar”,
por exemplo, soa mais grave do que “Chante l’aurore d’un beau jour”. Isso não significa dizer,
107
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1159
GALVÃO, Trajano. Sertanejas. Rio de Janeiro: Edição da Imprensa Americana Fabio Reis & C., 1898, p. 101
109
BÉRANGER, Pierre Jean de. Œuvres complètes de Béranger. Paris: H. Fournier, 1839, Vol. 2, p. 265.
108
59
contudo, que a versão de Trajano Galvão seja inferior, mas simplesmente diferente, com um
sabor e um toque mais pessoal.
Também na edição das Obras completas (1921) de Antônio Frederico de Castro Alves
(1847-1871) em dois volumes, publicada no cinquentenário de sua morte, há uma seção de
“Traduções” no primeiro volume. Os poetas mais presentes são Victor Hugo e Alfred de
Musset: do primeiro, há textos apresentados como “tradução” a exemplo de “Perseverando” e
“A Olympio”, “paráfrase” como “Palavras de um conservador a propósito de um perturbador”,
todos no primeiro volume, e o “Canto de Bug-Jargal”, apresentado também como tradução,
mas colocado no segundo volume; de Musset também temos quatro traduções: “Madrid”,
chamada “tradução livre”, “Veneza”, apresentada como “ecos de Musset”, “Chanson” e
“Octavio”. A relação entre Castro Alves e Musset foi estudada no ensaio “Itinerário mussetiano
na poesia de Castro Alves” (1971), de Maria Alice de Oliveira Faria, que vê na poesia dele
“presença de um Musset desfigurado pelo byronismo brasileiro”110, em especial pela leitura da
obra de Álvares de Azevedo. No ensaio lemos que a publicação dessas traduções não se deu
em vida, e que provavelmente foram meros exercícios poéticos de um período em que estava
imerso na poesia mussetiana, exercícios cuja publicação mais atestam contra do que a favor da
poesia de Castro Alves, crítica que se estende à publicação póstuma de textos que os autores
preferiram não publicar em vida111. No levantamento feito por Tavares Bastos, Versões poéticas
brasileiras de Victor Hugo, consta que “Sobre uma página de Victor Hugo”, de Espumas
flutuantes, seria uma tradução de “Les deux îles” de Hugo112. Cita ainda uma nota onde se lê
que Castro Alves teria feito “[...] versões literárias de todas as poesias de Victor Hugo
contempladas na coletânea de Ch. André”, com a ressalva de que não há notícias da publicação
dessas versões113.
Ainda em Castro Alves, Guillermo Blest Gana e Lord Byron aparecem com duas
traduções de cada: do primeiro, traduz “Pássaro viajante” e “O junco e o cipreste”; do segundo,
“Uma taça feita de crânio humano” e “As trevas”, ambas apresentadas como traduções. Outros
autores aparecem com uma tradução cada: de Lamartine traduz “Elegia”, de Lozano “Oitavas
a Napoleão”, de E. Berthoud “As três irmãs do poeta”, de Henry Murger “A balada do
desesperado” e de Espronceda, “Diabo Mundo”. Percebe-se o interesse de Castro Alves por
110
FARIA, Maria Alice de Oliveira. “Itinerário mussetiano na poesia de Castro Alves”. Alfa: revista de linguística,
Vol. 17, 1971, p. 6. Disponível em: <seer.fclar.unesp.br/alfa/article/download/3420/3167>. Acesso em 13 fev.
2017.
111
FARIA, 1971, p. 35.
112
BASTOS, 1952, p. 13.
113
Ibid.
60
traduzir principalmente do francês, seguido do espanhol, e poetas quase exclusivamente
contemporâneos a si, mas não incluiu suas traduções entre seus poemas.
A maioria dos outros poetas que consultamos publica bem menos traduções em seus
livros de poesia, e não raro sem nenhuma indicação de autoria ou indicação de fonte. Byron
encontra tradutores em Fagundes Varela, Álvares de Azevedo e Sousândrade: este traduz “To
Inez”, que encontramos em duas publicações. Na primeira delas, Impressos, o poema é
apresentado como “paráfrase de Byron”, enquanto em Obras Poéticas de Sousândrade figura
como “tradução”; Azevedo traduz “Parisina” do poeta inglês, e a única outra tradução que
encontramos dele é de um poema de Heine, “Relógios e Beijo”, na Lira dos vinte anos (1853).
Varela nos deixou uma versão a que chamou de “Child-Harold” com o subtítulo “sobre uma
página de Byron”, acompanhado de nota explicativa informando ser uma imitação do canto
“Ignez no poema de mesmo nome, de Byron”. Na obra de Varela encontramos ainda duas
“imitações”: “A...” de Espronceda, “Maman”, sem indicação de quem seria o autor imitado, e
“Colmar”, apresentado como “paráfrase ossiânica”.
A presença de Byron no Brasil foi investigada no já citado livro de Onédia Célia de
Carvalho Barboza, autora de Byron no Brasil: traduções, em que faz um minucioso
levantamento das traduções que o poeta inglês recebeu no Brasil. Entre os tradutores do século
XIX temos, além daqueles já mencionados nos parágrafos anteriores, T. A. Craveiro,
possivelmente o primeiro a traduzir Byron, Francisco Otaviano, Antônio Gonçalves de Teixeira
e Sousa, A. C. Soído, João Cardoso de Meneses e Sousa, Pinheiro Guimarães, J. M. Ferreira
Júnior, Baltazar da Silva Carneiro, Gentil Homem de Almeida Braga, J. S. de Oliveira Silva,
Teófilo Dias, Joaquim Dias da Rocha Júnior, Zeferino Vieira Rodrigues e vários outros, além
das versões que foram publicadas sem nome do tradutor, ou sob pseudônimo, de forma que não
fosse possível identificar o responsável.
Nas análises críticas do livro de Barboza Álvares de Azevedo é apresentado como um
tradutor que, em sua versão de “Parisina”, cria seu próprio byronismo, transfigurando o
crepúsculo de Byron e “[...] tornando-o muito mais sombrio na tradução”114. Sobre Fagundes
Varela, que apresenta sua versão como uma imitação, a autora escreve que [...] “justamente por
pretender ser uma imitação de Byron, é um documento precioso pelo que revela do próprio
Varela e de toda uma tendência do nosso romantismo”115. Para Onédia Barboza, Byron “[...]
114
115
BARBOZA, 1974, p. 163
Ibid., p. 199
61
torna-se anêmico e franzino quando comparado com o byronismo da composição do poeta
brasileiro”116 que, por sua intensidade dramática, torna-se mais atraente do que o poeta inglês.
Já a versão elaborada por Sousândrade para “To Inez”, “[...] não é a mais fiel, nem a mais infiel,
mas é certamente a mais bela das versões brasileiras”117. Esta tradução também é um exemplo
do motivo para termos cautela e desconfiança com o emprego de termos como
“tradução/imitação/paráfrase”, termos que poderiam ser lidos hoje como maneiras diferentes
de praticar a tradução, mas que na maioria das vezes, no período estudado, pareciam ser
empregados sem muito critério terminológico. Esta versão de Sousândrade, por exemplo,
embora apresentada como “paráfrase”, “apresenta as nove quadras do original e o segue bem
de perto, principalmente se a compararmos com as composições de Otaviano e João Júlio”118.
Quando, mais tarde, publica esta sua versão como “tradução”, Sousândrade de fato opera
algumas mudanças na sua “paráfrase”, mantendo o metro da primeira, mas buscando alterações
no sentido que demonstrassem, nas palavras de Barboza, “certo zelo de tradutor”119. Desde o
princípio, contudo, estava Sousândrade acima do modelo: “[...] talvez devido à linguagem mais
apropriada e mais simples e o movimento mais agradável dos versos, a composição de
Sousândrade tem uma nota maior de sinceridade”120. Contudo, o que mais surpreende a
pesquisadora é que a versão de Sousândrade toma outro caminho no tom geral da peça: se em
Byron domina o tédio da vida e o desencanto, Sousândrade toma o caminho da tristeza e do
sofrimento121, demonstrando que a tradução poética não é só reprodução, mas um processo
paralelo de concriação que contribui para a pervivência da obra.
Do Rio de Janeiro do século XIX também são duas coletâneas de poesias traduzidas que
denunciam as preferências do período que disputavam atenção com Byron. A primeira é
Lamartineanas — Poesias de Affonso de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros,
organizada por Macedo Soares. Com 218 páginas, a obra foi publicada no Rio de Janeiro pela
Liv. da Casa Imperial de Dupont & Mendonça, em 1869, ano da morte do poeta francês
Lamartine. Hoje rara, e nunca reeditada, não pudemos consultá-la. Não obstante, sabe-se que
foi nesse volume que Machado de Assis publicou pela primeira vez sua tradução “A El...”,
também incluída em Falenas com o título alterado para “A Elvira”. Nas notas às Hugonianas,
116
BARBOZA, 1974, p. 201
Ibid., p. 207
118
Ibid.
119
Ibid., p. 209
120
Ibid.
121
Ibid.
117
62
de que trataremos a seguir, Mucio Teixeira tece alguns comentários que transparecem um leve
desdém às Lamartineanas: “Muito bem andou o Sr. Dr. Macedo Soares, apresentando nas
Lamartineanas duas traduções d’O Lago, duas da Invocação, duas do Isolamento, duas d’A
El.***, duas da Ischia e duas da Tristeza, muito embora esse interessante volume tenha apenas
192 páginas de versos”122. Acreditamos ser esta uma visão bastante tacanha porque
desconsidera por completo que o cotejo de diferentes traduções de um mesmo poema, por
diferentes tradutores, é um interessantíssimo exemplo do trabalho crítico e criativo que é a
tradução, um trabalho que nunca se esgotará no trabalho de um só tradutor, por mais competente
que ele seja. Após consulta aos periódicos da época através da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional ficamos com a impressão de que a obra não recebeu atenção da crítica da época, pois
não encontramos um só artigo comentando a publicação.
Por outro lado, o volume Hugonianas — poesias de Victor Hugo traduzidas por poetas
brasileiros (1885), com organização de Mucio Teixeira e publicado também no Rio de Janeiro
pela Imprensa Nacional, recebeu sua segunda edição no mesmo ano. Dentre as dezenas de
tradutores das Hugonianas temos nomes como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, José
Bonifácio, Castro Alves, Arthur de Azevedo, Raimundo Correa, além do próprio Mucio
Teixeira. Ao contrário de Lamartineanas, o volume de quase quinhentas páginas foi anunciado
antes mesmo de sua publicação e recebeu algumas resenhas nos jornais da época. O Diário
Portuguez (RJ) foi o que mais se encarregou da divulgação da obra: há anúncios de que seria
publicada nas edições de 27 de maio123 e 23 de julho de 1885124. Na edição de 13 de agosto do
mesmo ano sai no mesmo jornal a primeira resenha após a publicação125. No Diário de Notícias
de 26 de julho de 1885 também há notícia de que a obra seria publicada, já com a informação
de que se trata de um volume de 500 páginas e com os nomes de alguns dos poetas que assinam
as traduções126. Mas é a Gazeta da Tarde de 12 de agosto de 1885 que encontramos a resenha
mais extensa, um texto que pinta um interessante retrato do mercado literário daquele ano, de
que transcrevemos o trecho a seguir:
122
TEIXEIRA, Múcio. Hugonianas: poesias de Victor Hugo traduzidas por poetas brasileiros. 2 ed. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1885, p. 476
123
HUGONIANAS. Diário Portuguez, Rio de Janeiro, 27 mai. 1885, p. 2. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/173878/744>. Acesso em 9 ago. 2017.
124
HUGONIANAS. Diário Portuguez, Rio de Janeiro, 23 jul. 1885, p. 2. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/173878/968>. Acesso em 9 ago. 2017.
125
HUGONIANAS. Diário Portuguez, Rio de Janeiro, 13 ago. 1885, p. 3. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/173878/1053>. Acesso em 9 ago. 2017.
126
FOYER. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 26 jul. 1885, p. 1. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/369365/179> Acesso em 9 ago. 2017.
63
O Sr. Mucio Teixeira, resolvendo-se a publicar a grandiosa homenagem a Victor
Hugo, parou desanimado diante de um grande obstáculo: quem publicaria a obra?
Os editores de obras literárias desertaram inteiramente do Brasil, expatriados pela
indiferença pública.
Um amigo lembrou-lhe então as suas relações com o imperador, e a amizade que se
estreitou entre o soberano brasileiro e o soberano intelectual de nosso século.
O Sr. Mucio Teixeira agradeceu a lembrança e dirigiu-se a S. Cristóvão, onde recebeu
o mais entusiástico e amistoso agasalho.
Sua majestade prometeu ao poeta mandar publicar sua obra na Imprensa Nacional e
no dia seguinte o ministério da fazenda expedia logo um aviso autorizando a
publicação.
Se não nos enganamos, o aviso mandou que a Imprensa Nacional se pagasse tirando
da edição o número de exemplares que, pelo preço de venda pública, dessem para
cobrir a despesa.
Foi, pois, pela intervenção patriótica e inteligente do imperador que se publicou, por
conta da Imprensa Nacional, o volume das Hugonianas127.
No volume que organizou, Mucio Teixeira – que às vezes chama mais atenção para si
próprio do que para Hugo – diz que “Victor Hugo é o poeta que maior influência exerce sobre
a poesia brasileira”128. Como exemplo disso, afirma que Lamartine inspira Casimiro de Abreu,
mas este não lhe traduz nem um verso, ao contrário,
[...] enleva-se tanto nos livros de Hugo, que – inconscientemente – decora-lhe uma
poesia inteira, recita-a, repete-a, tradu-la e apresenta-a como original, não só quando
enviou à redação da Ilustração Luso-Brasileira, como também quando incluiu-a entre
as flores de suas Primaveras.129
Nas notas às traduções Teixeira explica a inclusão da poesia de Casimiro de Abreu, “Ontem à
noite”, que considera tradução de Hugo: “Esta tradução, quase literal, ainda na 5ª (e última)
edição das Obras Completas de Casimiro de Abreu [...], aparece como produção original do
cantor das Primaveras”.130
Na introdução às notas Teixeira explicita a gênese do volume, que confessa não ser ideia
original sua, mas lembrada pelo Dr. Escragnolle Taunay, que se encontrava com ele e Joaquim
Serra na Livraria Faro & Nunes quando receberam a notícia da morte de Victor Hugo. Na
ocasião, lembraram-se da homenagem feita após o falecimento de Lamartine – as
Lamartineanas de Macedo Soares – e decidiram prestar igual tributo.131
127
HUGONIANAS. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 12 ago. 1885, p. 1. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/226688/5171>. Acesso em 9 ago. 2017.
128
TEIXEIRA, 1885, p. XXIV
129
Ibid., p. XXXI
130
Ibid., p. 475, grifos do autor.
131
Ibid., p. 473
64
Os diferentes tratamentos dispensados a esses dois volumes é um evidente exemplo do
papel da patronagem tanto na concepção quanto na circulação das obras. Em Translation,
rewriting and the manipulation of literary fame (1992), no capítulo de dedicado aos sistemas
de patronagem que favorecem o aparecimento da obra, Lefevere explica o conceito de
“patronagem” como “[...] poderes (pessoas, instituições) que podem promover ou dificultar a
leitura, escrita e reescrita de literatura”132, e identifica ainda três elementos que interagem entre
si como constituintes do processo de patronagem: o componente ideológico, o componente
econômico e o elemento de status133. A patronagem, portanto, deve ser entendida como as
forças que podem favorecer ou desfavorecer a leitura, escrita ou reescrita da literatura134. Ou
seja, enquanto Lamartineanas teve uma circulação restrita, provavelmente de poucos
exemplares, e até hoje não foi reeditada, Hugonianas teve apoio do próprio imperador para a
publicação do volume, impresso com recursos da Imprensa Nacional, que foi reimpresso em
pouco tempo e mais recentemente foi republicado com o apoio da Academia Brasileira de
Letras e prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. Curiosamente, a Academia Brasileira de Letras não
deu o mesmo tratamento a Lamartineanas, que contou com a colaboração de seu primeiro
presidente entre os tradutores.
Mesmo de Múcio Teixeira (1857-1926), que organizou Hugonianas e lá também incluiu
traduções suas, encontramos poucas versões nos seus livros de poesia, dentre os que
conseguimos consultar: em Novas ideias: poesias de 1880 temos a “Cantiga de Brander
(Goethe)”; em Poesias de Mucio Teixeira, Tomo I, há “Fausto Gaúcho (Versão parafrástica.
Fragmento)”, sem indicação de autoria do texto parafraseado; no Tomo II encontramos “Byron
em Veneza (Versão)”, “O aeronauta (original castelhano)”, ambos sem indicação de autoria, e
“Parisina (paráfrase byroniana)” que, em nota, diz: “Livremente traduzido de Byron. Mucio
Teixeira finalizou o seu trabalho no episódio que lhe pareceu mais solene”135.
Já ao fim do século, Alberto de Oliveira (1857-1937) inclui nas suas Canções
Românticas (1878) “Calma no mar”, uma imitação de Mickiewicz, e Raimundo Correia (18591911) reúne em Versos e versões (1887) diversas traduções suas de autores como Théophile
Gautier, Leconte de Lisle, Lope, Catulle Mendès, Armand Sylvestre, Le Bailly, Alphonse Karr,
Victor Hugo, Heine, Rollinat, Byron, Coppée e Heredia além de “Apóstrofe de um beberrão ao
132
LEFEVERE, André. Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame. London; New York:
Routledge,1992, p. 15. No original: “the powers (persons, institutions) that can further or hinder the reading,
writing, and rewriting of literature”.
133
LEFEVERE, 1992, p. 16
134
Ibid., p. 13
135
TEIXEIRA, Múcio. Poesias. Tomo II. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903, p. 377.
65
sol” somente com a indicação “versão”, “A lira de Orfeu” como paráfrase, “Flauta do outono”
do Livro de Jade, estas sem indicação de autoria. Raimundo Correia produz uma belíssima
versão de “Coerulei Oculi”, de Théophile Gautier, recriando as quadras com rimas alternadas e
empregando a redondilha maior no lugar dos octossílabos franceses:
Na languorosa pupilla
Boia uma tristeza vaga,
E a lagryma, que vacilla
E rola, o seu lume apaga.
Lembram-me os cilios suaves,
A palpitar, branca e exul
Tribu de aquáticas aves
Sobre o indefinido azul.136
Dans les langueurs de leurs prunelles
Une grâce triste souri ;
Les pleurs mouillent les étincelles
Et la lumière s’attendrit.
Et leurs cils comme des muettes
Qui ressent le flot aplani
Palpitent, aile inquiète,
Sur leur azur indéfini.137
Mais parnasiana que o modelo francês, esta tradução de Raimundo Correia é mais um
exemplo de que nossos melhores poetas-tradutores eram frequentemente capazes de superar os
modelos que os inspiravam.
Francisco Otaviano (1825-1889) também publicou um volume com traduções que não
pudemos consultar, Traduções e poesias (1881), lançado em tiragem de apenas cinquenta
exemplares, mas que segundo Paes incluiu versões de Ossian e Byron138.
Este resumidíssimo levantamento que fizemos mostra o quanto a seara da tradução
poética é extensa e o quanto ainda é preciso trabalhar para que tenhamos uma real noção do
legado que nos deixaram, seja quanto aos poetas e poemas que traduziram, seja na forma como
o fizeram. Muitos poetas estrangeiros ainda não receberam um levantamento minucioso de sua
presença entre nós, nem quanto às suas traduções – que são abundantes –, nem pela influência
que exerceram sobre nossos poetas e, consequentemente, sobre a formação de nossa identidade
literária. Além dos estudos já citados aqui, conhecemos poucos volumes dedicados ao estudo
de traduções poéticas, como Capistrano de Abreu e suas traduções (1953) de José de Arimatéia
136
CORRÊA, Raymundo. Versos e versões. Rio de Janeiro: Typ. e Lith. Moreira Maximino & C., 1887, p. 16
GAUTIER, Théophile. Emaux et camées. Paris : Eugène Didier Editeur, 1853, p. 55
138
PAES, 2008, p. 163
137
66
Pinto do Carmo, O corvo e suas traduções (2012), organizado por Ivo Barroso, e O corvo:
gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe (2011), de Claudio Weber
Abramo. Percebe-se por essas publicações que talvez haja mais interesse pelo poeta traduzido
do que por quem e como traduz. Ainda está por se fazer uma verdadeira “História da tradução
literária no Brasil”, considerada por José Paulo Paes “tarefa ciclópica”, pela escassez de
bibliotecas públicas, pelos acervos pobres e de catalogação deficiente139. Mesmo com o
excelente trabalho de digitalização e disponibilização online de diversas obras – recurso que
utilizamos amplamente nesta pesquisa – a sensação que fica é a de que ainda há muito a ser
feito, considerando a enorme quantidade de títulos a que não conseguimos ter acesso.
Percebe-se, ainda assim, que a prática da tradução entre nossos poetas do oitocentos foi
intensa, com volumes dedicados inteiramente a traduções, como Traduções poéticas de
Pinheiro Guimarães e Mosaico: poesias traduzidas de Joaquim Serra, ou que tiveram pelo
menos uma parte da obra consagrada a elas, como Versos e versões de Raimundo Correia e
Traduções e poesias de Francisco Otaviano, além dos volumes em homenagem a Lamartine e
Hugo. O exame desta prática, todavia, ainda é amplamente negligenciado. A reversão deste
quadro, mais do que resgatar nomes hoje esquecidos, poderia ser um interessante exercício de
conhecimento da formação do gosto literário dos nossos românticos e parnasianos, e mesmo da
nossa literatura.
Viu-se, nos poemas e traduções apresentados, que entre nossos poetas o mais comum
parece ser uma atitude mais livre com o texto de partida, afastando-se da tradução decalque do
modelo defendido por De Simoni. Só um exame minucioso do comportamento de Machado de
Assis enquanto tradutor de poesia, exame que aponte os caminhos que toma e o que faz com as
formas e temas dos poemas que traduz, poderá demonstrar se Machado de Assis caminhava na
esteira de seus contemporâneos e poderá nos ajudar a repensar novas formas de praticar a
tradução de poesia hoje.
139
PAES, 2008, p. 153.
67
4. Machado de Assis e a tradução: das primeiras pesquisas à posição da tradução na
poética machadiana
Com as pesquisas e publicações recentes, sabe-se mais hoje sobre o Machado de Assis
tradutor do que há alguns anos, mas ainda há muito a se descobrir, principalmente quanto ao
que pode revelar um estudo que tome esses textos como obra e dê a eles o espelho (meta)crítico
de que tanto necessitam, e não meramente como um trabalho tradutório de segunda ordem.
Trata-se, aqui, de responder à pergunta sobre quem é o tradutor formulada por Antoine Berman
e que ele considera um ponto de virada metodológico.
De que temos notícia, só há no Brasil duas publicações dedicadas inteira e
exclusivamente à produção de Machado de Assis enquanto tradutor: a primeira, Machado de
Assis tradutor, de Jean-Michel Massa, publicada em 2008, mas escrita como tese complementar
do trabalho de doutorado da década de 1970 que deu origem à biografia A Juventude de
Machado de Assis: ensaio de biografia intelectual; e o livro de Eliane Fernanda da Cunha
Ferreira, Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, publicado em 2004, também oriundo
de uma tese de doutorado.
O pesquisador francês Jean-Michel Massa, ao que parece, foi pioneiro no levantamento
das traduções realizadas por Machado de Assis desde a sua juventude. O jovem Machado
começa a traduzir em 1856, com “Minha Mãe”. No ano seguinte traduz A ópera das janelas,
que se perdeu, e traduz durante quase toda a vida, sendo o Prólogo do ‘Intermezzo’ de 1894,
do poeta alemão Heinrich Heine sua última atividade tradutória conhecida. Nas quatro décadas
compreendias entre 1856 e 1894 Machado de Assis traduziu em diversos gêneros literários –
romance, poesia, teatro, ensaio – e os mais variados autores, de diversos idiomas, como o
francês, o alemão, o italiano, o espanhol e, caso mais complicado, o inglês. Dentre os autores
que traduz, “imita” ou “parafraseia” estão Alphonse de Lamartine, William Shakespeare,
Berninzone, Charles de Ribeyrolles, William Cowper, Alexandre Dumas Filho, Mme. De
Girardin, Alfred de Musset, Victor Hénaux, André Chénier, Adam Mickiewicz, Gustave
Nadaud, Heinrich Heine, Octave Feuillet, Victor Hugo, Beaumarchais, Victorien Sardou,
Guillermo Blest-Gana, Louis-Hyacinthe Bouilhet, Friedrich Schiller, Charles Dickens,
Gaillard, Dante Alighieri, Chateaubriand, La Fontaine, entre outros.
Massa nos legou duas fontes imprescindíveis para o trabalho que se realiza nesta tese: a
biografia intelectual do jovem Machado, A juventude de Machado de Assis e, principalmente,
a tese complementar àquela outra, Machado de Assis traducteur, traduzida e publicada pela
68
Editora Crisálida com o título Machado de Assis tradutor em 2008. Nesta tese complementar,
Massa justifica seu anseio de examinar as traduções: “Sentíamos o desejo de estudar mais de
perto um número limitado de textos para tentar traçar dentro de um domínio preciso o retrato
do escritor”140. Massa faz ainda algumas ressalvas a quem deseja se aventurar nesta empreitada:
estudar as traduções de Machado de Assis é um trabalho de considerável amplitude, pois abarca
não só diversos gêneros e autores, como diversas línguas e períodos literários, o que demanda
uma capacidade de síntese particularmente apurada devido à diversidade do material com que
se irá tratar. Contudo, Massa também alerta para a relevância do estudo: “As escolhas que ele
fez são com frequência indícios de preferências pessoais. Dessa forma, as traduções formam
uma espécie de medida para sua experiência das culturas estrangeiras”141.
Nesta pequena obra de Jean-Michel Massa lemos que Machado de Assis começa a
traduzir com apenas 17 ou 18 anos. Embora as quatro traduções que integram Ocidentais, das
Poesias completas de 1901, não tenham sido obras inéditas, datando das décadas de 1870 e
1880, certamente passaram pelo crivo do crítico para adentrar seu último testamento poético.
Considerando, portanto, que começou a publicar em 1855 e que viria a falecer em 1908,
percebe-se que a tradução ocupou parte significativa de sua vida literária. Durante os dois
primeiros anos desta produção já traduzira dos principais gêneros literários, mas até 1859
apenas do francês. A próxima língua a figurar na produção tradutória de Machado de Assis foi
o italiano, uma vez que por volta dos vinte anos traduz o libreto da ópera Pipelet, segundo
informação encontrada no Correio Mercantil, do qual Machado de Assis foi colaborador142.
O passo seguinte no sentido de ampliar os horizontes tradutórios de Machado de Assis
se deu na década de 1860, primeiramente com a tradução da opereta As bodas de joaninha, do
espanhol que, de acordo com descobertas de Massa, permite estabelecer que aos vinte e dois
anos Machado já conhecia o espanhol suficientemente bem143. Em seguida, com a tradução de
“Alpujarra”, de Adam Mickiewicz, parte para o domínio da literatura polonesa, embora utilize
o francês como língua intermediária. Esta será a primeira tradução poética que reaparecerá
posteriormente em Crisálidas. Ainda na mesma década, Machado parte em direção à língua
alemã, com “O casamento do Diabo”, que apresenta como uma imitação do alemão, mas que
Massa afirma ser uma tradução francesa de Gustave Nadaud e que Machado, portanto, estaria
140
MASSA, 2008, p. 11
Ibid., p. 13
142
Ibid., p. 21
143
Ibid., p. 27
141
69
induzindo o leitor ao erro144. Demostraremos, quando tratarmos dessa tradução, que Machado
muito provavelmente estava sendo honesto, conclusão a que foi possível chegar após termos
identificado um possível texto-fonte para realizar sua imitação. Há, de qualquer modo, As
ondinas, texto escrito com base na versão francesa de um noturno do poeta alemão Heinrich
Heine, que também é um testemunho do interesse de Machado em ir além da cultura francesa.
Em meados da década de 1860 já é visível que Machado pratica menos a tradução teatral
e passa a gravitar em torno da tradução poética. É desta década também a mais extensa e única
tradução integral de um romance feita por Machado de Assis, editada e reeditada até hoje: o
romance Os trabalhadores do mar, do escritor francês Victor Hugo, publicada primeiramente
em folhetim em 1866 e em volume posteriormente, de que nossa dissertação de mestrado
Machado de Assis, tradutor de Hugo se ocupou.
Com o primeiro volume de poesias – Crisálidas, de 1864 – vem também a primeira leva
de traduções recolhidas em volume. Das 29 peças de Crisálidas, seis são traduções: “Lúcia”,
de Alfred de Musset, “A jovem cativa”, de André Chénier, “Cleópatra - canto de um escravo”
de Mme. Émile de Girardin, “As ondinas” de Heinrich Heine, “Maria Duplessis” de Alexandre
Dumas Filho e “Alpujarra”, de Adam Mickiewicz. A presença francesa é notável, e mesmo
aqueles poetas que não são franceses, como Heine e Mickiewicz, são traduzidos via francês.
No decorrer desta pesquisa nos deparamos ainda com algumas traduções de Machado
que, ao que tudo indica, não foram listadas por Jean-Michel Massa ou Eliane Ferreira. Uma
delas é “Souvenirs d’Exil”, composto em alexandrinos por Charles Ribeyrolles durante uma
festa e traduzido por Machado de Assis na mesma ocasião. Outra é “Lua da estiva noite”, um
poema composto por Machado de Assis e musicado por Artur Napoleão para ser cantado com
acompanhamento de flauta e piano. Na biografia Vida e obra de Machado de Assis de
Raimundo Magalhães Júnior vimos que se trata de uma tradução, datada de 1867, e foi
identificado o poeta Henry Wadsworth Longfellow como autor dos versos que Machado
traduzira. Temos ainda uma imitação do alemão, “O coração”, de “Das Herz” de Herman
Neuman, publicada anonimamente na década de 1870 em A Semana Ilustrada e atribuída a
Machado de Assis por Magalhães Júnior. Também do alemão, igualmente atribuída a Machado
pelo mesmo biógrafo é “O rei dos ôlmos”, tradução de uma balada de Goethe. Por fim, caso
particularmente sui generis, “Inocência” de Luís Guimarães Júnior, também da década de 1870,
144
MASSA, 2008, p. 27
70
foi vertida para o francês por Machado de Assis, constituindo o que aparenta ser o único
trabalho do tipo.
Ainda na década de 1870 temos a publicação de Falenas que traz mais cinco traduções
poéticas de Machado: “Os deuses da Grécia”, de Friedrich Schiller, “Cegonhas e Rodovalhos”
de Bouilhet, “Estâncias a Ema” de Alexandre Dumas Filho, a paráfrase “A morte de Ofélia” de
William Shakespeare, “A Elvira” de Alphonse de Lamartine e a “Lira Chinesa” composta de
oito poemas traduzidos a partir de versões francesas de textos supostamente orientais.
Novamente, o francês figura como língua intermediária para a realização de traduções de
línguas que Machado desconhecia ou não dominava, como o alemão ou o inglês. É desta década
também o segundo romance que Machado de Assis traduziu: Oliver Twist, do inglês Charles
Dickens. Machado, contudo, não traduziu todo o romance, interrompendo o seu trabalho após
metade do capítulo XXVIII. Massa conclui também que certamente Machado utilizou uma
versão francesa para traduzir o romance para o português o que, em sua opinião, não é suficiente
para dizer que Machado desconhecia o inglês naquela época145. Ainda nesta década, em 1873,
é publicada outra tradução no domínio do inglês, “Monólogo de Hamlet” que, segundo Massa,
rendeu críticas a Machado por ter acrescentado versos ao texto Shakespeariano146. Em 1874, é
a vez de Dante Alighieri figurar entre os autores abordados por Machado, que traduziu o canto
XXV do Inferno. A última tradução relevante do período, a comédia Plaideurs de Racine, está
perdida, mas Massa sugere que teria sido uma encomenda, uma vez que foi representada em
teatro, sem sucesso147. Americanas, de 1875, ao contrário de Falenas e Crisálidas, trouxe
apenas uma tradução, a “Cantiga do rosto branco”, tradução em verso da “Chanson de la chair
blanche”. John Gledson, a respeito desta tradução, diz que se trata de um relato recolhido do
original muskogee por François René Chateaubriand ou algum conhecido, e incluído em
Voyage en Amérique.
Nos anos seguintes há uma diminuição sensível na produção tradutória de Machado, ao
mesmo tempo em que são publicadas suas melhores traduções, reproduzidas posteriormente em
Ocidentais. É dessa época a tradução de “O corvo”, de Edgar Allan Poe que, segundo Massa,
“suscita bastante interesse”148. Massa chama a atenção para o fato de que os últimos nomes
traduzidos por Machado de Assis são escritores de considerável envergadura, algo que chamou
145
MASSA, 2008, p. 38
Ibid.
147
Ibid., p. 39
148
MASSA, Op. Cit., p. 39
146
71
nossa atenção para este estágio final de sua produção149: há, inegavelmente, uma diminuição
quantitativa que em nada reflete na qualidade do trabalho desenvolvido. Machado irá encerrar
sua carreira como tradutor de poesia com dois textos do domínio alemão: “Seis dias em
Cuiabá”, de 1888, que Massa considera a prova definitiva da fluência que o escritor brasileiro
atingiu na língua, e o “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine em 1894, que reforça o
interesse do tradutor pela língua e literatura alemãs.
Embora nosso foco nesta tese se limite às traduções poéticas de Machado, elas são um
ótimo termômetro para medir a variedade e a intensidade da prática da tradução por parte de
Machado de Assis. O Gráfico 1 representa a distribuição do quantitativo das traduções poéticas
de Machado de Assis em relação à língua-cultura do texto-fonte:
Gráfico 1 - Distribuição das traduções poéticas de acordo com a
língua-cultura do texto-fonte
Fonte: Gráfico elaborado pelo autor
É nítida, portanto, a prevalência da literatura francesa em relação às demais. Mesmo a
aparentemente expressiva presença de literatura chinesa se deu via francês e, como veremos
futuramente quando estivermos estudando os oito poemas da “Lira Chinesa”, passou por um
filtro que afrancesou alguns daqueles textos a ponto de os tornarem irreconhecíveis para os
sinólogos. Devemos ressaltar também que dentre as trinta e cinco traduções poéticas que
estudaremos, apenas 40% foram sabidamente traduzidas diretamente do idioma original. Os
outros 60% são de traduções indiretas, feitas a partir de alguma tradução francesa, e em vários
casos sugerem que o tradutor pode ter trabalhado com mais de um texto-fonte ao mesmo tempo.
Por fim, devemos ressaltar que a maioria das traduções poéticas de Machado de Assis
são encontradas nos seus quatro livros de poesia: Crisálidas (1864), Falenas (1870),
149
MASSA, 2008, p. 40
72
Americanas (1875) e Ocidentais (1901). O Gráfico 2 ilustra a quantidade de poemas traduzidos
em relação a poemas originais em cada uma das suas obras:
Gráfico 2 - Presença de traduções nas obras poéticas de
Machado de Assis
Fonte: Gráfico elaborado pelo autor
O gráfico sugere que há uma intensificação no interesse por traduzir poesia entre a publicação
de Crisálidas e Falenas, que traz mais do que o dobro de traduções em relação ao livro anterior.
Vê-se, também, que as poesias traduzidas perdem espaço nas publicações seguintes, conforme
sua atividade de tradutor de poesia se torna menos intensa. Essa diminuição de intensidade é
particularmente visível quando visualizamos, no Gráfico 3, a quantidade de traduções poéticas
que foram produzidas e publicadas a cada década, incluindo as que não fizeram parte de seus
quatro livros de poesia,:
Gráfico 3 - Traduções poéticas publicadas em cada década
14
10,5
7
3,5
0
1850
1860
1870
Fonte: Gráfico elaborado pelo autor
1880
1890
O Gráfico 3 nos mostra que há uma significativa intensificação da atividade tradutória na
primeira metade da sua carreira de escritor, com uma queda brusca a partir da década de 1880,
73
coincidindo com a chamada “maturidade” do escritor, o que nos leva a pensar que o primeiro
momento desta atividade estivesse intimamente ligado à busca por modelos, a um refinamento
de suas habilidades poéticas.
Ao contrário do que fizemos no nosso levantamento, é interessante notar que Massa,
entretanto, insiste em desconsiderar as “imitações”, como o poema “Minha Mãe” ou a peça
Hoje avental, amanhã luva como textos da lavra tradutória de Machado de Assis. Estes textos,
à primeira vista, não buscam correspondência rígida com os seus textos-fonte, sendo antes
textos criados aproveitando-se o mote ou enredo de uma obra estrangeira, e elaborados a partir
de um projeto próprio que não visava, necessariamente, refletir os textos de origem. Massa, ao
que parece, está apoiado em uma visão tradicional de tradução que privilegia o decalque, a
reprodução, ou que somente considera “tradução” textos que retenham conteúdo informacional
e estético que espelhem em grau razoável os textos que lhes deram origem.
Eliane Fernanda Cunha Ferreira, em Para traduzir o século XIX: Machado de Assis,
adota um posicionamento mais abrangente do que o de Massa para incorporar também esses
textos entre a produção do tradutor Machado de Assis. Em seu livro, Ferreira pretende
contemplar a contribuição de Machado como crítico e teórico de tradução a partir de textos que
explícita ou implicitamente dizem respeito ao tema, como ensaios, pareceres emitidos enquanto
era censor do Conservatório Dramático Brasileiro e até mesmo as crônicas ou romances de
Machado. Ferreira busca apresentar Machado como um tradutor também da cultura, cujo
trabalho reflete em sua poética o gosto literário do século XIX. Para fazê-lo, Ferreira adota um
sentido mais amplo de tradução para poder abarcar outros textos que não foram abordados como
traduções por outros pesquisadores, como os mencionados anteriormente.
Ferreira propõe que a tradução possibilitou que Machado tivesse um olhar sempre em
trânsito e que com o ensaio “Instinto de Nacionalidade” Machado estaria propondo uma
expansão territorial e a dissolução de fronteiras e fala até mesmo em hibridização cultural como
forma do surgimento do novo. Embora não de todo equivocado, o trecho parece um pouco
precipitado. “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, como o próprio
título denuncia, é um relato da situação que Machado observava por volta de 1873, quando o
texto foi publicado e o objetivo do texto, como escreve o autor, é de “atestar o fato atual”, que
é o instinto, o “geral desejo de criar uma literatura mais independente”150.
150
ASSIS, 2005, vol. 3, p. 1178
74
No ensaio, Machado direciona críticas à poesia árcade e ao indianismo e sugere que a
literatura em formação deve “alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região”151 sem
que se estabeleçam doutrinas que a empobreçam. Critica também o estado dos romances, aos
quais faltam análise, da poesia, à qual acusa faltar correção, gosto e preocupação com a cor
local, do teatro, que sequer existe para Machado. Talvez a afirmação de Ferreira esteja apoiada
no famoso trecho em que Machado afirma que “[n]em tudo tinham os antigos, nem tudo tem
os modernos; com os haveres de uns e de outros é que se enriquece o pecúlio comum”152, mas
partir desse trecho para afirmar que Machado queria dissolver fronteiras e pretender
hibridização cultural soa um pouco temerário. Ao contrário, a proposta parece ser a de que os
jovens que entram na literatura sejam mais críticos, cuidadosos, parcimoniosos na escolha das
influências e que se busque a tal “cor local” naquilo que há de realmente natural na sociedade,
e não uma “cor local” de aparências, assim como se deve levar em consideração que há lições
para se aprender com todos, e que por isso mesmo não se deve adotar e copiar servilmente
modelos importados.
O que se pode depreender de “Instinto de Nacionalidade” é a ideia que Machado tinha
de que “[...] tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos
de que ele se compõe”153 ou que “[...] não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura
brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal”154. É evidente que Machado
estava propondo uma postura nacionalista menos radical, mais aberta à cultura universal, o que
pode e deve ser associado ao seu interesse pela tradução, mas no sentido de se formar uma
identidade nacional que se alinhe e passe a fazer parte de uma cultura universal. Falar em
“dissolução de fronteiras” não parece estar de acordo com a proposta de criar uma identidade
nacional, se entendermos identidade como algo que nos individualize, que nos diferencie dos
demais, ainda que formada com elementos encontráveis em outras culturas. Machado afirma
ainda que “[...] uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente
alimentar-se dos assuntos que lhe oferece sua região”155, mas também pede que não se
estabeleçam “[...] doutrinas tão absolutas que a empobreçam”156, o que pode ser lido como um
alerta para que a busca pelos matizes nacionais não ofusque o contato com outras literaturas e
se empobreça em virtude disso.
151
ASSIS, 2005, vol. 3, p. 1179
Ibid. p. 1184
153
Ibid., p. 1178
154
Ibid., p. 1179
155
Ibid.
156
Ibid.
152
75
Ferreira propõe inclusive que Machado de Assis entendia por “originalidade” o
apropriar-se do texto traduzido e aqui começamos a pensar em ressalvas a respeito desta
proposta no que tange à prática da tradução. Primeiramente, porque pouco há publicado quanto
a estudos analíticos das traduções feitas pelo escritor que corroborem ou refutem tal afirmação.
Há muitos comentários esparsos, alguns pouco aprofundados, e sobre um pequeno punhado de
textos, que são obviamente insuficientes para se chegar a qualquer conclusão generalizante a
esse respeito. Acrescente-se a isso o fato de que a pesquisadora também não se propõe a estudar,
superficialmente ou a fundo, os textos traduzidos por Machado, ou é o que parece já que tais
estudos não foram apresentados, o que implica que os seus comentários acabam carecendo de
dados – para além das opiniões e metáforas tradutórias do escritor – que os consubstanciem.
Jean-Michel Massa, também incomodado com a falta de interesse da crítica pela produção de
Machado de Assis como tradutor, em entrevista para a Revista Teresa, é ainda mais contundente
ao comentar a tese de Ferreira, da qual discorda com veemência porque não acredita que
houvesse “teoria da tradução de Machado”, ou teoria da tradução no século XIX157. Também
discordamos de Massa neste caso porque a “teoria”, mesmo que não esteja sistematizada ou
exposta como tal, se entendida como um conjunto de ideias que guiam e sustentam
determinadas práticas, está implícita e é parte integrante, indissociável do fazer poético de quem
traduz, seja ela consciente ou não. Afinal, só se pode traduzir a partir de um pensamento do que
seja língua, cultura, literatura já que a tradução literária é muito mais do que uma operação
meramente translinguística.
Talvez Ferreira não esteja de todo equivocada, e não acreditamos que esteja, nem Massa
de todo correto, mas é justamente por isso que um exame mais minucioso das traduções que
Machado de Assis se faz necessário, para que seja possível corroborar ou refutar afirmações
que foram feitas sem o cuidado que se deveria ter. Massa, por exemplo, parece estar correto ao
afirmar que Machado adotou práticas diferentes conforme o texto que traduzia. Isso foi verdade
quando traduziu o romance Les travailleurs de la mer de Victor Hugo, em que se percebe uma
nítida diferença de postura do tradutor entre os primeiros e os últimos capítulos conforme
estudo feito na dissertação Machado, tradutor de Hugo, de 2007, mas não podemos extrapolar
esta afirmação para suas traduções teatrais e de poesia antes de examinarmos os textos.
Ferreira sugere ainda que se compreenda a tradução naquele período, marcado pela
tentativa de formação de uma identidade cultural nacional, não como um empecilho, como
157
MASSA, 2006, p. 466
76
Machado de Assis afirmou, mas como uma atividade que gera um espaço de tensão que, por
fim, contribuiria para a o enriquecimento da formação cultural brasileira. A autora,
evidentemente, está apoiada nas propostas de Itamar Even-Zohar e seus estudos sobre a
formação dos sistemas literários em que a tradução costuma exercer um papel de considerável
relevância. Analisando os pareceres emitidos por Machado de Assis quando atuava do Censório
Dramático Brasileiro, em que o escritor é incisivo nas críticas feitas aos tradutores dramáticos
e empresários de sua época, Ferreira conclui que “[...] Machado não percebia que a tradução
cooperava com a expansão dos bens culturais europeus nas terras do Novo Mundo”158,
afirmação que também consideramos precipitada e que, como pretendemos demonstrar, nem
sempre encontra respaldo na sua própria prática como tradutor.
Na elaboração de sua “teoria de tradução de Machado”, Ferreira também lança mão de
“metáforas da tradução” obtidas a partir da obra de Machado de Assis, a exemplo da metáfora
do tradutor como “criado de servir” tirada de “Ideias sobre o teatro”. Partindo desta metáfora,
Ferreira afirma que “O que [Machado] não aceitava era a falta de tempero nacional nos pratos
da cozinha estrangeira. O artista, o tradutor, os empresários teatrais podiam buscar a ‘especiaria
alheia’, desde que a temperassem com ‘o molho’ de sua fabricação”159 para dar a entender que
Machado queria chamar a atenção para os riscos de reproduzir servilmente a estética teatral
clássica, romântica ou realista, particularmente de culturas europeias, sem que se contribuísse
com a formação de um teatro nacional. Ainda no mesmo tom, Eliane Ferreira afirma que
Para Machado [...] uma tradução deve ser bem elaborada, devendo o tradutor ter
conhecimento das línguas que traduz, independentemente de se tentar fazer uma
tradução ‘literal’, pois o movimento em si, de passar de um idioma para outro, já torna
essa pretensão de espelhamento impossível.160
Novamente, em que pese a plausibilidade da proposta, faltam dados que a consubstanciem,
dados que só obteremos a partir da análise dos textos por ele traduzidos. Quando, nos pareceres
ou nos ensaios, Machado criticava tradutores contemporâneos a si é certo que também deixava
transparecer sua opinião sobre como deveria ser levado a cabo o trabalho tradutório: primando
pela correção gramatical e respeito à língua, rechaçando os galicismos corriqueiros, e
temperando com o sabor local. Embora nada haja de errado com esta linha de pensamento,
propor, como Ferreira, que com a peça Hoje avental, amanhã luva, imitação da peça francesa
158
FERREIRA, Eliane F. C. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis. São Paulo: Annablume; Rio de
Janeiro: ABL, 2004, p. 71
159
Ibid., p. 77
160
Ibid., p. 78
77
Chasse au lion, “[...] Machado demonstra que o trabalho do tradutor pode ser criativo e
livre”161, associando-o aos trabalhos transcriativos de Haroldo de Campos, a impressão que fica
é de que a proposta parece, sim, um pouco fora de lugar, além do desconhecimento do que era,
na prática, a transcriação haroldiana. O que Machado faz com frequência nas suas imitações é
uma apropriação do enredo ou tema para compor uma outra peça adaptada à realidade nacional,
sem procurar necessariamente reproduzir as nuances da forma do texto de partida. O trabalho
de transcrição de Haroldo de Campos não foge radicalmente do texto de origem. O que há, na
verdade, é uma tradução muito menos radical: os resultados são textos facilmente identificáveis
como uma tradução que busca recriar, na língua de chegada, o jogo estético elaborado pelo
texto de origem, na maior parte das vezes respeitando o que o texto-fonte estipula – métrica,
rima, figuras de linguagem, por exemplo – e não raro publicadas em edições bilíngues para que
o cotejo entre os textos seja facilmente executado por quem é capaz de ler nos dois idiomas, a
exemplo da tradução da Ilíada ou dos poetas provençais que ele e seu irmão Augusto fizeram.
Se Ferreira estivesse falando da tradução que Machado fez do Canto XXV do Inferno, talvez a
proposta soasse um pouco mais coerente. Afinal, é neste canto que Machado realiza um trabalho
de tradução que busca reencenar, nos moldes dos irmãos Campos, o modo de fazer poesia
realizado por Dante Alighieri, sendo inclusive elogiado por Augusto de Campos pelo resultado
alcançado.
Em contraponto, Ferreira afirma que “[...] Machado não perdia de vista o texto
‘original’, sempre respeitando o autor, pois o texto, ao ser traduzido, tornava-se dele na medida
em que se permitia algumas licenças, fazendo paráfrases, entendidas como traduções livres”162,
o que parece um pouco contraditório. Ora, como pode não perder de vista o original e ao mesmo
tempo produzir algo como Hoje avental, amanhã luva, ou “Minha Mãe”, que não buscam
manter uma relação formal com os textos de origem, ou, como a própria autora escreve, como
ser “criativo e livre” e ao mesmo tempo não perder de vista o original? Nestes textos, há muito
mais do que “algumas licenças”. O trabalho criativo nestes casos é interessante, e pode inclusive
ser observado sob a lente da tradução, mas sem um exame crítico dos trabalhos em si,
afirmações como essas soam fracas.
Da mesma forma, afirmar que “[...] Machado de Assis desenvolveu uma teoria da
tradução, por subtração, de forma oblíqua e enviesada, formando um mosaico teórico de
161
162
FERREIRA, 2004, p. 84
Ibid., p. 102
78
tradução, paralelamente à sua criação literária”163, demonstrando entender que a tradução tem
sua importância na formação cultural, intelectual e mesmo identitária brasileira, também soa
particularmente apressado e pouco convincente. Conforme veremos nas análises à frente,
Machado teve comportamentos diferentes traduzindo autores diferentes, mas também é
possível encontrar muito mais coerência no seu trabalho do que o contrário. Seria imprudente,
antes de um exame minucioso de suas traduções, tratar todo o trabalho de maneira generalizante
como se houvesse perfeita coerência na sua prática tradutória. Se “Dante”, de Ocidentais,
tradução do Canto XXV da Divina Comédia, é quase uma transcriação haroldiana, em “O
corvo”, também de Ocidentais, o que se vê na prática é quase o inverso. Considerando que cada
trabalho pede por uma abordagem particular, é natural que, lidando com textos diferentes, de
autores diferentes, em épocas diferentes, o tradutor reveja alguns de seus posicionamentos
anteriores e passe a adotar práticas que estejam de acordo com o que pede a obra com a qual
trabalha naquele momento.
Isso não quer dizer que não se possa elaborar um perfil de Machado enquanto tradutor
ou que se não possa elaborar o que seria uma abordagem teórica utilizada pelo escritor
oitocentista. Traçar seu perfil como tradutor é algo que pode ser feito não somente a partir dos
textos em que ele afirma o que pensa sobre tradução, principalmente quando os tais textos são
tão poucos e tão vagos, mas também, e principalmente, a partir do seu principal legado enquanto
tradutor, que são os textos traduzidos por ele e que chegaram até nós. Vale lembrar as palavras
do tradutor e teórico de tradução francês Antoine Berman, em Pour une critique des
traductions: John Donne, que corroboram o que acabamos de afirmar: “[...] tudo que um
tradutor pode dizer e escrever sobre seu projeto só se realiza na tradução”164.
Pouco se tem, no entanto, do próprio punho do escritor a respeito das traduções que
fizera, e não há texto dedicado exclusivamente a refletir sobre aquele projeto de tradução de
que falou Berman. Há uma ou outra nota, um e outro parágrafo introdutório com informações
meramente circunstanciais. Sobre as crenças e posicionamento de Machado de Assis a respeito
da tradução, sabe-se pouco também. Não há nenhum texto em que Machado se dedique
exclusivamente à reflexão da prática tradutória, sua ou de outrem. O que temos são breves
comentários, geralmente com críticas severas à má qualidade das traduções praticadas por aqui
163
FERREIRA, 2004, p. 109
BERMAN, 1995, p. 77. No original: “tout ce qu’un traducteur peut dire et écrire à propos de son projet n’a
réalité que dans la traduction”.
164
79
no século XIX, como visto em alguns pareceres emitidos por ele enquanto atuava no
Conservatório Dramático.
Além da já citada crônica em que Machado de Assis dá notícia das Traduções poéticas
de Pinheiro Guimarães, há também uma crônica da série Ao acaso, publicada em 22 de agosto
de 1864, um dos raros momentos em que Machado comenta explicitamente a tradução de outro
poeta. Começa a crônica dizendo que é visitado por dois poetas ilustres, ambos americanos, um
do Norte e outro do Sul: são John Greenleaf Whittier e Pedro Luís. Nosso patrício traduz do
primeiro a poesia “O grito de uma alma perdida”, que é avaliada por Machado de Assis nos
seguintes termos: “A poesia tradução parece poesia original, tão naturais, tão fáceis, tão de
primeira mão, são os seus versos”165. Em seguida, temos a reprodução, na íntegra, da tradução
de Pedro Luís e a versão em língua inglesa de Whittier, aos quais Machado de Assis chama de
“dois originais”.
Os comentários de Machado de Assis se limitam a isso. Todavia, ao oferecer ao leitor
as duas versões do poema e dizer que ambas são “originais”, pode-se inferir que Machado de
Assis concordava com os procedimentos e resultados do trabalho de Pedro Luís. Uma rápida
análise do poema nos mostra, de imediato, que o tradutor segue, quanto à forma, caminho
completamente independente em relação ao poema de Whittier. O poema estrangeiro tem
quinze tercetos de dez pés cada e, em cada terceto, os versos sempre rimam entre si. A primeira
diferença que se nota na tradução de Pedro Luís é que os tercetos são substituídos por quinze
quadras. O verso a mais certamente foi necessário para melhor acomodar o sintetismo
característico da língua inglesa. Os versos ainda têm dez pés, mas rimam somente os versos
pares de cada estrofe. Obviamente, Machado de Assis não via problema algum nestas alterações
meramente formais. Se considerarmos que essas alterações trazem o poema de Whittier para as
formas clássicas da poesia de língua portuguesa, podemos igualmente inferir que Machado de
Assis concordava com tais procedimentos.
Vejamos rapidamente duas estrofes, original e tradução – ou original e original, como
disse Machado –, para avaliarmos melhor o trabalho do poeta:
Through sins of sense, perversities of will,
Through doubt and pain, through guilt and shame and ill,
Thy pitying cry is on thy creature still.
Apesar do pecado, da maldade,
Do crime, da vergonha e da amargura,
165
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 154
80
Da dúvida, e do mal – sempre ilumina
Teu meigo olhar a tua criatura166.
O que percebemos é que Pedro Luís soube afastar-se do texto de Whittier, tomar dele
as ideias, os conceitos, as imagens e a partir desses elementos compor outro poema em língua
portuguesa. Não há um só verso na tradução de Pedro Luís que corresponda literalmente, como
um reflexo, a um verso do poema de Whittier. O que temos são dois poemas com uma mesma
temática, que narram o mesmo acontecimento, mas cada um à maneira que cada poeta julgou
mais apropriada à sua língua e cultura. Conclui-se a partir deste exemplo que, na visão de
Machado de Assis, a tradução poética não é simplesmente a busca por reprodução de forma e
conteúdo, mas um fazer poético também autoral que busca o sentido dentro ritmo próprio da
língua-cultura de quem traduz. É de se lamentar que não tenhamos mais exemplos como este.
Em alguns de seus ensaios, como “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de
1858, “Ideias sobre o teatro”, de 1859, ou “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de
nacionalidade”, de 1873, Machado externa pontualmente sua opinião, severa e contundente, a
respeito da maioria dos tradutores, a quem culpa pelo atraso na formação de uma literatura
nacional, apontando os equívocos de tradução e os galicismos que ferem a língua pátria. Em
“O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858, o jovem Machado, que ainda não
completara 20 anos de idade, pergunta: “Para que estas traduções enervando a nossa cena
dramática? Para que esta inundação de peças francesas, sem o mérito da localidade e cheias de
equívocos, sensaborões às vezes, e galicismos, a fazer recuar o mais denodado francelho?”167,
e mais adiante reclama do fato de a tradução ser preponderante nos teatros e que, observa,
traduzir peças francesas “[...] é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende de letra
redonda”168, chegando mesmo a sugerir um “imposto sobre traduções dramáticas”169. O mesmo
tom é encontrado em “Ideias sobre o teatro”, do ano seguinte, onde afirma que o teatro “tornouse uma escola de aclimatação intelectual”, de onde surge a entidade do tradutor dramático, a
que chama de “espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma
cozinha estranha”, para chegar à conclusão de que o tratamento dado às traduções faz delas
“tarefa estéril”170. Quatorze anos mais tarde, em “Notícia da atual literatura brasileira: instinto
de nacionalidade”, o crítico nos diz que a situação teatral permaneceu praticamente inalterada.
166
Ibid., p. 155-157
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 990
168
Ibid.
169
Ibid.
170
Ibid., p. 1013
167
81
Ao falar do teatro, diz que ele “pode reduzir-se a uma linha de reticência” e que a cena teatral
brasileira viveu “sempre de traduções, o que não quer dizer que admitissem alguma obra
nacional quando aparecia”171. Reconhecendo na tradução o elemento dominante na literatura
de então, particularmente no teatro, critica a mercantilização da arte e a falta de critério na
escolha de quem ficará incumbido das tarefas tradutórias.
Note-se, contudo, que nesses três ensaios Machado de Assis trata exclusivamente da
tradução teatral, e não da tradução poética ou narrativa. Ainda assim, mesmo quanto à tradução
teatral, o que ele diz nos ensaios acima não deve ser lido literalmente, como se o crítico
abominasse qualquer tipo de tradução teatral. Afinal, ele mesmo assinou algumas, três das quais
foram publicadas recentemente por Jean-Michel Massa172, e no seu trabalho como censor teatral
a tradução é elogiada quando feita com esmero.
Nos pareceres emitidos enquanto membro do Conservatório Dramático despontam as
mesmas críticas dos ensaios: excesso de galicismos, escolha de obras valor estético duvidoso,
a supressão de trechos que o tradutor não consegue transpor ou a utilização de linguagem que
beira o ininteligível. Dos dezesseis pareceres que conhecemos, compreendendo o período entre
1862 a 1864 durante o qual Machado atuou como censor, seis são sobre textos traduzidos.
Foram encontrados, segundo relato de José Galante de Sousa, por Eugênio Gomes no acervo
do Conservatório Dramático sob os cuidados da Biblioteca Nacional em 1952, e publicados na
Revista do Livro, n. 1-2, de junho de 1956173. Todavia, na obra publicada em 2014 pela
Fundação Biblioteca Nacional, Os exames censórios do Conservatório Dramático Brasileiro:
inventário analítico, no texto introdutório de Marco Lucchesi, “Uma cartografia notável”
(2014), fala-se que Machado de Assis “produziu algo como dezessete pareceres, redescobertos
em 1953 pelo então presidente da Biblioteca Nacional, Eugênio Gomes”174. De fato, na relação
encontrada no “Guia de coleções – Ficha técnica – Divisão de Manuscritos”, no item 2 na
página 19, contamos dezessete pareceres. A diferença ocorre porque Machado de Assis emitiu
um só documento para duas peças, O filho do erro e Os espinhos de uma flor, ambos avaliados
171
Ibid., p. 1183
Cf. MASSA, Jean-Michel (Org.). Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis (Os burgueses de
Paris, Tributos da Mocidade e Forca por forca). Vário Autores. Tradução de Machado de Assis. Belo Horizonte:
Crisálida, 2009.
173
ASSIS, Machado de. “Pareceres do conservatório dramático”. In: Revista do Livro, Órgão do Instituto Nacional
do Livro, Rio de Janeiro, n. 1-2, junho de 1956, p. 178
174
LUCCHESI, Marco. “Uma cartografia notável”. In: LEMOS, Valéria Pinto (Org.). Os exames censórios do
Conservatório Dramático Brasileiro: inventário analítico. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2014,
p. 9.
172
82
no parecer de 8 de janeiro de 1854, conforme se observa na publicação dos pareceres na Revista
do Livro.
A primeira tradução avaliada por Machado, Clermont ou a mulher do artista, recebeu
autorização para ir ao palco e ser representada, mas não sem antes experimentar a aspereza do
censor quanto à obra e quanto à tradução: “Se a peça não vale nada por si, a tradução veio tornála mais inferior ainda se é possível. Não só a construção da frase portuguesa se ressente do
idioma original, mas ainda há vocábulos disparatadamente traduzidos”175. A avaliação do
censor revela que em seu horizonte de expectativas quanto a um texto traduzido está o respeito
à língua portuguesa, algo que aparecerá em outros pareceres, seja em forma de elogio, como no
caso da tradução de Os descarados – “a tradução está feita em português correto e elegante,
fruta rara em teatro”176 – ou na de Os garatujas – “encontrei uma linguagem correta, sem quebra
do espírito de que está cheio o original"177 – ou crítica, geralmente severa, como a que
encontramos no parecer da peça Os nossos íntimos:
A comédia Os nossos íntimos é a mesma que já examinei com o título Os íntimos.
Pude reconhecê-la apesar da tradução que está em vasconço. [...] Uma simples e
ligeira comparação entre o original e a tradução que tenho presente basta para ver
quanto esta é infiel, e como o tradutor suprimiu as dificuldades que não pôde
vencer.178
Quando elogia os tradutores, o motivo é quase sempre o mesmo: o cuidado com a língua
portuguesa, algo que desponta como de grande importância para Machado. Na última das notas
que acompanham os poemas de Falenas, por exemplo, Machado atribui a Feliciano de Castilho
a tradução da ode a partir da qual compõe seu texto. A respeito desta tradução, afirma que fora
tão “portuguesmente saída das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que tradução”,
comentário que assinala para duas possíveis leituras: por um lado, Machado preza o cuidado
com o vernáculo, um dos seus máximos critérios de julgamento, e, por outro, aprecia traduções
que são capazes de, por si próprias, serem lidas como uma obra, e não somente decalque, um
pálido reflexo desprovido de valor estético. Resta, ainda, mais uma leitura: a tradução é
apreciada quando reforça a tradição literária e a língua portuguesa.
O apreço e a importância que Machado de Assis conferia ao trabalho do tradutor,
entretanto, ficam ainda mais patentes na carta de 10 de junho de 1899, enviada ao seu editor
francês Garnier em que reporta um pedido de autorização de tradução de suas obras para o
alemão. Machado acata prontamente, abrindo mão dos proventos oriundos dos direitos autorais
175
ASSIS, 1956, p. 178
Ibid., p. 186
177
Ibid.
178
Ibid., p. 184
176
83
para ver sua obra traduzida, considerando-se pago pelo benefício de ver sua obra em outro
idioma. Diz Machado: “Para mim, Senhor, eu não exigiria nenhum outro benefício, crendo que
é vantagem me tornar conhecido numa língua estrangeira, que tem um mercado tão diferente e
tão distante do nosso”179. O pedido, infelizmente, é negado pelo editor, com o argumento de
que os alemães sempre cobram e que, de sua parte, a autorização dependeria do pagamento de
cem francos por obra, o que põe fim ao projeto. A troca de cartas, no entanto, explicita o
empenho de Machado em ver sua obra traduzida para a língua de Goethe, atestando seu apreço
pelo idioma naquele momento, sua crença de que a tradução seria o melhor meio de se tornar
visto no exterior e, por conseguinte, o reconhecimento do papel da obra traduzida no diálogo
entre culturas e sistemas literários.
Na tentativa de contribuir para a elaboração do retrato e da poética tradutória
machadiana elaboramos a dissertação de mestrado Machado de Assis, tradutor de Hugo,
defendida em 2007. O propósito deste trabalho foi fazer um estudo crítico da tradução que
Machado de Assis fez do romance Les travailleurs de la mer, de Victor Hugo, publicado
primeiramente em folhetim aqui no Brasil e, posteriormente, em volume. Ao contrário do que
a crítica afirma nos poucos comentários encontrados a respeito desta tradução, durante o estudo
empreendido percebeu-se que afirmações de que Machado “se permitiu algumas licenças” ou
que procurou amortecer as “ruidosas antíteses hugoanas” ganharam outro significado. A
pesquisa nos permitiu concluir que “[...] se Machado vez ou outra amortece as antíteses
hugoanas, esta não parece ser sua preocupação principal, da mesma forma como o argumento
em favor do sintetismo machadiano de forma alguma se comprova sistematicamente na
tradução”180 e que
[...] não há [em Os trabalhadores do mar] um sistema tradutório perfeitamente definido,
não há um conjunto homogêneo de procedimentos que confiram unidade às decisões
tradutórias de Machado. Pelo contrário, a aparente contradição de procedimentos em
alguns momentos de certa forma testemunha em favor da dinamicidade que sugerimos
para a realização da tradução, em que a falta de tempo era uma preocupação
constante.181
179
ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. Coordenação e orientação
Sergio Paulo Rouanet; Reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro:
ABL, p. 378. No original: « Pour moi, Monsieur, je ne lui exigerait (sic) aucun autre bénéfice, trouvant que c’est
déjà un avantage de me faire connaître dans une langue étrangère, qui a son marché si différent et si éloigné du
nôtre. »
180
FLORES, Diego do Nascimento Rodrigues. Machado de Assis, tradutor de Hugo. 2007. 232f. Dissertação
(Mestrado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
2007, p. 206
181
Ibid., p. 207
84
Logo, o conceito de fidelidade tradutória de Machado de Assis que foi se desenhando à nossa
frente conforme avançávamos no estudo apontava, na verdade, para uma mínima interferência
desnecessária do tradutor, tentando reproduzir em português nuances características da obra
traduzida, algo que vez ou outra esbarrava e conflitava com o que o tradutor entendia e prezava
como as normas de bom uso da língua pátria.
Na pesquisa, verificou-se ainda que o tradutor parecia tomar consciência do seu trabalho
conforme traduzia e que, devido às condições a que deve ter sido submetido, a tradução deixa
transparecer uma certa melhoria na qualidade do trabalho, como se aos poucos e conforme
traduzia, a linguagem e o estilo de Machado entrassem em sintonia com o de Victor Hugo.
Devido a isso, no caso da tradução do romance Les travailleurs de la mer não se observa um
sistema tradutório perfeitamente definido nem um conjunto homogêneo de procedimentos que
conferissem unidade às suas decisões tradutórias, o que poderia ser interpretado como uma
ausência de reflexão sobre a prática da tradução mas que, no nosso entendimento, parece fruto
das condições adversas a que o jovem tradutor foi submetido para realizar um trabalho pelo
qual era pago. Se por um lado encontramos escolhas que denotam bastante cuidado com a
análise feita antes de se traduzir, há outros bastante literalizantes. Contudo, o que se descobre
de mais constante nesta tradução é uma aparente preocupação com os problemas estéticos
apresentados pela obra, como se o tradutor entendesse que, para que o romance funcionasse
com os leitores de língua portuguesa, precisava recriar o efeito estético o melhor que pudesse
nas suas escolhas.
Se no começo da tradução encontramos certa preferência por construções mais sintéticas
da parte do tradutor, frutos da provável pressa em fazer o trabalho que saía periodicamente nos
jornais, posteriormente o procedimento é abandonado em favor de outros que conferissem à
tradução características mais próximas do texto francês na construção de parágrafos, no
emprego dos tempos verbais e mesmo no respeito às nuances antitéticas do romance de Hugo.
De todo modo, mesmo quando Machado distancia-se dos aspectos formais do romance, parece
fazê-lo com uma ideia de fidelidade que está atrelada ao efeito estético que se deva produzir
através da tradução, mesmo que isto signifique afastar-se de uma tradução literalizante ou
decalque. A impressão que ficou após o estudo desta tradução é a de que Machado de Assis foi
um tradutor que era também um excelente leitor e crítico literário que, apesar das condições
absolutamente adversas durante a tradução do romance francês, soube fazê-lo de forma a
sintonizar-se com Hugo.
85
Outro trabalho amplia a visão que tivemos analisando a tradução do romance de Victor
Hugo. Trata-se de “Tradução e intermediação: textos dramáticos franceses traduzidos por
Machado de Assis”, de Helena Tornquist, publicado em 2012 como parte do volume Machado
de Assis: tradutor e traduzido organizado por Andréia Guerini, Luana Freitas e Walter Costa –
a mais recente publicação a respeito do trabalho de Machado enquanto tradutor, assim como da
recepção da sua obra no exterior.
A autora faz um breve relato da relação entre Machado de Assis e a cena teatral do Rio
de Janeiro da época, particularmente no que concerne à prática da tradução teatral do escritor.
Uma das conclusões a que Tornquist chega é a de que Machado expressa consciência de que
há limites para a liberdade do tradutor que são estabelecidos pelo próprio texto a partir de uma
crônica de Balas de Estalo, de 1884, que nos leva a pensar que o autor acreditava que o texto
de chegada deve respeitar, quanto ao sentido pelo menos, o que fora estipulado pelo texto de
origem.
Isso não quer dizer, contudo, que Machado quisesse que toda tradução fosse
simplesmente uma reprodução servil do texto de partida. Tornquist comenta e analisa o
exemplo da imitação Hoje avental, amanhã luva, e avalia as escolhas de Machado:
O título Hoje avental, amanhã luva é bem mais expressivo que Chasse au lyon e tem a
sustentá-lo uma réplica acrescentada pelo tradutor, prova de que Machado não hesitava
fazer supressões ou acréscimos, quando necessários. A tradução não se limitou à
transposição de falas para nossa língua nem à busca de palavras e expressões
correspondentes: foram eliminados alguns termos (mots d’esprit) e certas réplicas que
não funcionariam em português, tais como as “alusões boulevardières” à idade das
mulheres ou a recriminação a um empregado.182
A partir do comentário acima, fica evidente o quanto Machado toma liberdades para si,
mas ao mesmo tempo evita chamar este trabalho de “tradução” no sentido estrito do termo,
preferindo apresentá-lo como uma imitação. Tal escolha sugere que, para o escritor, quando se
toma tantas e tais liberdades, reconfigurando o texto de origem e criando outra obra com a qual
guarda pouca relação formal, o texto passa a pertencer a uma ordem diferente daquela dos textos
traduzidos conforme dita e espera o senso comum, por mais que, contemporaneamente, os
estudos de tradução nos permitam aceitar também esta imitação como um trabalho tradutório.
182
TORNQUIST, Helena. “Tradução e intermediação: textos dramáticos franceses traduzidos por Machado de
Assis”. In: GUERINI, A.; FREITAS, L. F. de; COSTA, W. C. (Orgs.). Machado de Assis: tradutor e traduzido.
Tubarão: Ed. Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2012, p. 65
86
Por outro lado, veremos que o poeta-tradutor não usa com muito rigor conceitual termos como
“tradução” ou “imitação”, de forma que seria temerário exigir dele coerência neste sentido.
Tornquist ainda tira outras lições estudando a tradução teatral de Machado. Percebe, por
exemplo, que “[...] Machado sabe que a clareza é importante pois o texto falado no palco requer
compreensão imediata, e isto se pode ver no emprego dos tempos verbais”183 e que o tradutor
procura adequar a conjugação dos verbos aos modos de falar de seu público, ou ousa na busca
por correspondências na língua de chegada de forma a deixar seu texto mais vivo para os
espectadores. Com este texto curto, porém correto e sensato, Tornquist ajuda a contribuir para
a formação do perfil do tradutor Machado de Assis com argumentos sólidos, embasados em
exemplos tirados diretamente de suas traduções.
Por fim, João Cezar de Castro Rocha, em Machado de Assis: por uma poética da
emulação, apresenta uma
das balizas da nossa argumentação em favor do exame da
centralidade da tradução na poética machadiana, retomando um pouco os conceitos teóricos de
Even-Zohar que vimos anteriormente: “[...] por que não considerar a obra de Machado um
sistema literário próprio, movido por uma dinâmica interna, cuja lógica necessita ser
investigada em seus termos?”184. Acreditamos ser viável a proposta de que a produção
machadiana possa ser considerada não só um sistema literário próprio, como também pode ser
vista como um sistema nos moldes da teoria de polissistemas de Even-Zohar: uma literatura
incipiente e periférica que, antes de firmar-se como independente e original, passa por estágios
de formação que incluem a presença e até mesmo a centralidade da tradução na sua formação
como meio de preencher o vazio deixado pela ausência de uma voz pessoal, ou, como
preferimos, como uma forma de se capitalizar poeticamente para construir uma obra que se
alimente desse capital para ganhar voz própria. A hipótese-chave com que Rocha trabalha para
propor sua poética da emulação e que aproveitaremos aqui é que “[...] uma consequência
imprevista da reação machadiana ao romance de Eçaii foi o resgate da noção clássica de
aemulatio, que o levou a desenvolver a poética da emulação”185. Daí, “[...] partindo-se da
imitação de um modelo considerado autoridade num determinado gênero, busca-se emular esse
modelo num determinado gênero, produzindo uma diferença em relação a ele”186.
183
Ibid., p. 69
ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013, p. 29
185
Ibid., p. 11
186
Ibid., p. 12
184
87
Embora a virada neste sentido só aconteça, segundo análise de Rocha, com as
publicações de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Papeis Avulsos, coincidindo com o que
identificamos como sendo uma guinada qualitativa nas suas traduções poéticas, Machado já
parecia ter em si uma noção razoavelmente clara do processo que precisaria seguir na sua
própria poética quando ainda era o “Machadinho”. Se voltarmos ao ensaio “Ideias sobre o
teatro”, por exemplo, encontraremos um Machado que trata da emulação com princípios muito
próximos daqueles utilizados por Rocha. Quando afirma, no texto de 1859, que “[c]opiar a
civilização existente e adicionar uma partícula, é uma das forças mais produtivas com que conta
a sociedade em sua marcha de progresso ascendente”187, Machado está falando exatamente de
imitar um modelo estrangeiro, mas com a produção de diferença de que Rocha fala. Sem a
produção desta diferença, Machado entende que a cópia se torna “tarefa estéril”188 e a arte deixa
de cumprir seu papel de preceptora vanguardista. Veremos, no decorrer das análises, que tal
“diferença” aflora quando o poeta-tradutor se inscreve e deixa sua marca no texto que traduz.
A ideia de se formar a partir da imitação de modelos estrangeiros variados, ao invés de
se deixar iludir pelas modas do momento, continuará a ser desenvolvida por Machado no ensaio
“Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, onde afirma que “[...] tudo é
matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se
compõe”189 ou que “[...] Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os
haveres de uns e outros que é que se enriquece o pecúlio comum”190, ideia bastante próxima da
que João Cezar de Castro Rocha utiliza para definir a técnica da emulação como “[...] imitação
consciente de um modelo prévio, com o objetivo de acrescentar-lhe dados novos” com um
“resgate deliberadamente anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio” para transformar
“a secundidade da condição periférica em fator potencialmente produtivo”191. Em 1879, no
ensaio “A nova geração”, Machado novamente alertará para o fato de que “[...] o erro talvez da
geração nova será querer modelar-se por um só padrão”192, quando deveriam nutrir-se não só
do que os novos modelos estrangeiros tinham a oferecer, mas também do que os antigos tinham
a ensinar, ideia já mencionada alguns anos antes em “Instinto de Nacionalidade”. O que se
percebe, portanto, é que o Machado de Assis que coloca em prática a emulação de modelos
estrangeiros conforme teoria proposta por Rocha já trabalhava, em certa medida, com tais ideias
187
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1011
Ibid., p. 1013
189
Ibid., p. 1178
190
Ibid., p. 1184
191
ROCHA, 2013, p. 107
192
ASSIS, Op. Cit., p. 1245
188
88
em gestação desde o início de sua atividade de escritor. Assim, devemos entender que as
mudanças de curso na carreira do escritor não se deram por meio de guinadas bruscas, mas de
um desenvolvimento lento e gradual, uma fase de maturação, visível, por exemplo, em seus
primeiros livros de poesia, que para Rocha “[...] não são muito mais do que um adestramento
na técnica literária, a fim de experimentar formas diversas de expressão linguística”193.
Mas para chegarmos ao ponto que nos interessa mais imediatamente – a relação de
Machado de Assis com a tradução e sua relevância na sua produção artística e no seu
desenvolvimento como escritor – precisaremos voltar um pouco atrás, mais exatamente no
ponto em que tratamos da relação do público leitor brasileiro com as publicações de então de
que tratamos no capítulo anterior. João Cezar de Castro Rocha fala de um “imperativo da
tradução” nesse período, uma vez que o público leitor brasileiro
formou-se através de romances e novelas, contos, enfim, narrativas prioritariamente
lidas em tradução, embora uma parcela do público tivesse acesso aos textos lidos em
francês; mesmo romances escritos em outras línguas eram geralmente lidos em
tradução para o idioma de Montaigne194.
A implicação disso para a formação de Machado de Assis é que tal “imperativo” colocaria
problemas de difícil resolução, mas que acabou por se tornar o ponto-chave para o
desdobramento no desenvolvimento do escritor, descrito por Rocha nas perguntas “Como
tornar produtiva, no plano formal, a precedência da leitura sobre a escrita, a precedência da
tradução sobre a obra original? Como transformar a secundidade em princípio de
invenção?”195, ou quando afirma que “[...] no sistema literário lusófono, isto é, no sistema
literário não hegemônico, especialmente no tocante ao gênero romance, a tradução implica um
problema teórico de grande alcance: como refletir sobre as condições de criação quando a
tradução assume o papel de fonte da tradição?”. A solução foi encontrada com a “imitação
consciente de um modelo prévio, com o objetivo de acrescentar-lhe dados novos. Assim, o
resgate deliberadamente anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio transforma a
secundidade da condição periférica em fator potencialmente produtivo”196. Esta técnica,
evidentemente, não foi novidade introduzida por Machado, mas amplamente utilizada
anteriormente, antes das ideias românticas de originalidade:
A prática artística, anterior à explosão romântica, costumava partir da necessária
adoção de modelos consagrados pela tradição, e mesmo pela imitação deliberada de
193
ROCHA, Op. Cit., p. 37
ROCHA, 2013, p. 103, grifos do autor
195
Ibid., p. 103-104
196
Ibid., p. 106
194
89
determinado aspecto de uma obra-prima. Contudo, sempre se buscava acrescentar ao
modelo elementos nele ausentes. Buscava-se emular a tradição, em vez de
simplesmente perpetuá-la.197
Machado, bom leitor que era da tradição, certamente percebeu qual caminho seguir,
expressando isso nos seus textos críticos conforme vimos anteriormente, e encontrando em
Shakespeare o modelo ideal para o seu desenvolvimento na concepção de Rocha:
Apropriar-se tanto da tradição, isto é, dos clássicos, quanto do engenho dos
contemporâneos caracteriza o gênio shakespeariano. Eis uma das principais lições que
Machado deve a Shakespeare. Aí se encontra a base de sua poética da emulação,
principalmente em seu resgate anacrônico.198
Se Machado de fato deve a lição a Shakespeare, toda sua prática tradutória, como
veremos a partir do próximo capítulo, parece estar sempre em busca dessa emulação de modelos
em vez de simplesmente repeti-los conforme são nas suas línguas-culturas de origem, algo que
talvez atinja seu ápice na tradução de “O corvo”, conforme veremos nas análises a seguir.
197
198
Ibid., p. 36
ROCHA, 2013, p. 62
90
5. 1856-1863: As primeiras traduções de poesia
Neste capítulo apresentamos cronologicamente as quatro primeiras traduções feitas por
Machado de Assis entre os anos de 1856 e 1863. Neste primeiro conjunto reunimos textos que
não foram recolhidos pelo autor em Crisálidas, nem retomados posteriormente. São traduções
que abrangem autores de nacionalidades e períodos literários diversos, desde o pré-romantismo
inglês de William Cowper ao contemporaneíssimo “Souvenir d’Exil”, composto por
Ribeyrolles e traduzido no mesmo dia por Machado de Assis.
Como já dissemos anteriormente, nosso objeto de pesquisa se limita aos poemas que
são traduções interlinguais, ou seja, poemas que tiveram origem em um texto de partida em
uma língua e que foram transportados para outra, que constituem uma obra em si e foram
apresentados como tradução, paráfrase, imitação ou qualquer outro termo que conote que o
texto se originou em outro texto estrangeiro.
As quatro traduções que veremos aqui demonstram que, desde cedo, o poeta-tradutor
buscou alargar seus horizontes: embora sejam três textos do domínio francês e um do domínio
da literatura inglesa, temos um caso – “O casamento do diabo” – que, como veremos, foi
recriado a partir de uma tradução em alemão. No entanto, quanto aos conhecimentos
linguísticos do poeta-tradutor, essas traduções só nos dão certeza da invejável fluência com que
lia e traduzia a partir do francês, o que é particularmente notável no caso de “Souvenir d’Exil”.
As primeiras traduções que veremos também já nos permitem observar que há dois tipos
básicos de traduções poéticas feitas por Machado de Assis: aquelas que teriam sido iniciativa
dele, a busca por um modelo com o qual poderia ter algo a aprender, a exemplo das duas
primeiras que veremos; e aquelas cuja iniciativa pode não ter vindo unicamente do poetatradutor, sendo antes uma atividade laboral e remunerada, como pode ter sido o caso com “O
casamento do diabo”, publicado sob completo anonimato e em provável parceria com o editor
do jornal em que trabalhava.
São, contudo, traduções que prenunciam o que continuaremos a ver nas posteriores: um
poeta-tradutor que marca sua diferença em relação ao texto de partida como se estivesse
dizendo que suas traduções almejam ir além da reprodução de forma e conteúdo.
91
5.1 “Minha Mãe”
Em 1856, aos dezessete anos, Machado de Assis publica sua primeira tradução de um
poema. Primeiramente impressa no n. 767, na pág. 4 da edição de 2 de setembro de 1856 da
Marmota Fluminense199, não se trata de uma tradução stricto sensu, mas, como o próprio autor
considerou, uma “imitação” do poeta inglês William Cowper. Jean-Michel Massa joga alguma
luz sobre o problema, mas não vai a fundo na investigação:
[...] O primeiro editor do poema, M. N. (Melo Nóbrega?), fez algumas observações
úteis sobre Minha Mãe, apresentada pelo autor como uma “imitação de Cowper”. M.
N. não chegou a estabelecer uma relação direta entre esta peça e On the Receipt of My
Mother’s Picture (1790), de Cowper. Teria Machado de Assis, como a crítica tentou
comprovar, se inspirado mesmo no poeta inglês?
É pouco provável que o jovem poeta, em 1855, tenha lido o original inglês. Tudo
indica que o poema de Cowper não foi traduzido em português. Mas como ele já
conhecia o francês, talvez esteja aí a solução.200
Massa informa ainda que, enquanto na França Saint-Beuve despertava o interesse pelo poeta
inglês, em nota afirma que também no Brasil Cowper era bem conhecido, tendo Álvares de
Azevedo, bem versado na língua inglesa, mostrado certa predileção pelo autor inglês. Para
Massa, “[...] há condições para admitir que Machado de Assis conheceu Cowper e seu poema
através de Saint-Beuve”201 e cita a existência de uma tradução francesa do poema de Cowper
com o título “En Recevant le Portrait de Ma Mère”, por Madame Langlais, que Machado teria
lido e utilizado para se inspirar para escrever Minha Mãe. Massa explica ainda que Machado
teria tomado emprestado somente o tema, uma vez que o poema de Cowper é longo, o que
explicaria apresentá-lo como uma “imitação”.
Lorie Ishimatsu, em The poetry of Machado de Assis (1984), afirma que “há pouca
afinidade entre as duas composições além do fato de que ambas são evocações do amor
materno”202, mas não explica nem detalha seu julgamento além de constatar, de maneira
bastante superficial, que há diferenças na métrica e quantidade de versos. No primeiro volume
de Vida e obra de Machado de Assis: Aprendizado (2008), Raimundo Magalhães Júnior nos dá
mais pistas sobre a motivação de Machado em imitar Cowper. O crítico e biógrafo nos diz que
199
SOUSA, 1955, p. 312.
MASSA, 2009, p. 134-135
201
Ibid., p. 135
202
ISHIMATSU, L. C. The poetry of Machado de Assis. Valencia: Albatros Hispanofila,1984, p. 41. No original:
“there is little affinity between the two compositions besides the fact that they are both evocations of maternal
love”.
200
92
“[...] durante o ano de 1856, Machado de Assis evocou repetidamente a figura de sua mãe”203,
de quem ficara órfão em 18 de janeiro de 1849, aos 9 anos. São pelo menos três poemas que
Magalhães Junior identifica com esta temática: “O meu viver”, publicado em 16 de fevereiro,
“Saudades”, em 15 de abril, e por fim “Lágrimas (À memória de minha mãe)”, em 29 de julho,
todos no mesmo ano de 1856 e no mesmo periódico, a Marmota Fluminense, de onde mais
tarde também saiu “Minha Mãe”. A respeito do poema imitado por Machado, Magalhães Junior
justifica a motivação com a seguinte tese: “Se Machado imitou a poesia de Cowper foi porque
os pensamentos do poeta inglês se ajustavam inteiramente aos seus sentimentos de órfão
inconsolável, desejoso de morrer para encontrar-se com a mãe amada, tão cedo
desaparecida”204.
Primeiramente, contudo, conforme trajeto de análise proposto por Berman, devemos
nos perguntar quem foi William Cowper, nos ampararmos com alguma informação sobre sua
obra, para depois pensarmos nos motivos que talvez levassem Machado a querer “imitá-lo”.
William Cowper, que viveu entre os anos de 1731 e 1800, foi considerado um precursor
do romantismo inglês. Em vida, gozou de enorme prestígio, sendo um dos poetas mais lidos na
geração que também contava com nomes hoje notáveis como William Wordsworth e Alexander
Pope. Homem atormentado, passou boa parte da vida à beira da loucura, acreditando ter sido
abandonado por Deus, fazendo da poesia uma das maneiras de escapar ao tormento que sofria.
David Simpson, no capítulo “The French Revolution” da coletânea The Cambridge
History of Literary Criticism, Vol. 5 Romanticism (2008) coloca William Cowper não só como
precursor do romantismo inglês, mas como um poeta que se antecipou até mesmo à Revolução
Francesa, frequentemente tida como mote inicial do romantismo inglês205. Por sua vez, The
Norton Anthology of English Literature (1993) apresenta Cowper como o autor dos poemas
mais sãos da língua inglesa, embora escritos por um homem que, periodicamente, se via à beira
da loucura. O longo poema “The Task” (1785) é indicado como sua maior realização poética,
e Cowper como um poeta que expressa os interesses e gostos de seu tempo, que não lutou para
203
MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2008, vol. 1,
p. 44
204
MAGALHÃES JUNIOR, 2008, vol. 1, p. 48
205
SIMPSON, David. "The French Revolution". In: BROWN, Marshall (Ed.) The Cambridge History of Literary
Criticism. Vol 5. Romanticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 50
93
figurar entre os grandes mas que, mesmo assim, acabou sendo reconhecido pelos seus pares
como dono de uma voz que falava a todos em tom ora piedoso, ora humorístico206.
Já Aidan Day, em Romanticism (1996), coloca Cowper entre poetas como James
Thomson, Joseph Warton e James Beattie, os quais estabeleceram o gosto pela descrição da
vida na natureza, que durou todo o século XVIII, com a predileção por assuntos ligados ao
mundo natural e que formariam o contexto adequado para o aparecimento das Lyrical Ballads
de William Wordsworth, um marco importante para o romantismo inglês207. Para Day, Cowper
teria até mesmo desenvolvido “uma poesia de introspecção que fundia a observação de cenas
naturais com um registro dos fluxos e refluxos da mente”, que prefiguraria o que Wordsworth
mais tarde faria em “Lines Written a Few Miles above Tintern Abbey” das Lyrical Ballads 208.
Escrito e publicado individualmente pela primeira vez em 1798, apenas dois anos antes
da morte do poeta, “On the Receipt of My Mother’s Picture out of Norfolk” é um longo poema
elegíaco, com 121 versos de 10 sílabas – dísticos heroicos escritos em pentâmetros iâmbicos.
O poema versa, obviamente, sobre a mãe do poeta, de quem Cowper recebeu uma foto que mais
tarde o inspiraria a escrever o poema. Na leitura do poema, ficam evidentes os sentimentos de
saudade, ou mesmo nostalgia, que dominam os primeiros versos do poema:
Oh that those lips had language! Life has pass'd
With me but roughly since I heard thee last.
Those lips are thine—thy own sweet smiles I see,
The same that oft in childhood solaced me;209
Evidentemente, a morte também é presença constante no poema, e o poeta se coloca novamente
no lugar do filho que perdeu a mãe ainda criança, perguntando-se se a mãe percebera as
lágrimas que verteu:
My mother! when I learn'd that thou wast dead,
Say, wast thou conscious of the tears I shed?
Hover'd thy spirit o'er thy sorrowing son,
Wretch even then, life's journey just begun?210
206
ABRAMS, M. H. et al. The Norton Anthology of English Literature. 6 ed. New York, London: W. W. Norton
& Company,1993, p. 2501-2
207
DAY, Aidan. Romanticism. London: Routledge, 1996, p. 48
208
DAY, 1996, p. 51. No original: “a poetry of introspection which fused observation of natural scenes with a
record of the fluxes and refluxes of the mind”.
209
COWPER, William. “On the receipt of my mother’s picture out of Norfolk”. In: RHODES, Nick (Ed.). William
Cowper: selected poems. Routledge: New York, 2003. p. 23
210
COWPER, 2003, p. 23
94
O poeta rememora ainda a casa em que viveu na sua infância, agora habitada por outra família,
o que imediatamente o leva a outras lembranças de sua infância:
Where once we dwelt our name is heard no more,
Children not thine have trod my nurs’ry floor;
And where the gard'ner Robin, day by day,
Drew me to school along the public way,
Delighted with my bauble coach, and wrapt
In scarlet mantle warm, and velvet capt,
‘Tis now become a history little known,
That once we call'd the past’ral house our own.211
O poema é encerrado com o sentimento de contemplação que a foto proporcionou, juntamente
com a possibilidade de reviver as alegrias da infância através das memórias evocadas pela foto
de sua mãe:
By contemplation’s help, not sought in vain,
I seem t’ have liv’vd my childhood o’er again;
To have renew’d the joys that once were mine,
Without the sin of violating thine:212
Por fim, o poeta percebe que a foto é um desafio ao tempo, que fracassa em tentar roubá-lo
completamente de sua mãe:
And, while the wings of fancy still are free,
And I can view this mimic shew of thee,
Time has but half succeeded in his theft—
Thyself remov'd, thy power to sooth me left.213
O poema de Cowper, de leitura fluida e agradável, embora a linguagem cause um pouco
de estranheza ao falante do inglês contemporâneo pouco habituado à sintaxe da época, justificase na sua fama. É difícil não se identificar e se deixar levar pelas lembranças que vemos o poeta
evocar e que nos fazem pensar nós mesmos na nossa infância e momentos análogos ao relatados
pelo poema, conferindo considerável impacto narrativo ao texto. Cowper é bastante detalhista
na descrição de suas memórias e nos entrega um poema de comoção bem articulada,
possibilitando aos leitores ver como o poeta traz a mãe e a si mesmo ainda jovem de volta à
vida, com detalhes de sua infância com nuances idílicas.
Embora o poema mereça uma análise mais detalhada, o nosso objetivo aqui é o de
verificar o quanto – se é que de alguma forma – Machado de Assis se apropriou dele, ou de
uma versão do poema, para elaborar “Minha Mãe”. Conforme Massa sugere, é pouco provável
211
COWPER, 2003, p. 24
Ibid., p. 26
213
Ibid.
212
95
que Machado de Assis tenha lido a versão em inglês de Cowper e em nossa busca pela versão
francesa conseguimos identificar na Bibliotèque Nationale de France uma versão eletrônica do
volume 11 das “Causeries du lundi” de Saint-Beuve, seguindo indicação de Massa. Neste
volume encontramos uma tradução em prosa do poema de Cowper com o título “En recevant
le portrait de ma mère”, publicada em 20 de novembro de 1854. De imediato, estamos diante
de uma característica comum a várias traduções que Machado fez de textos que fogem ao
domínio da literatura francesa: a utilização do francês como língua intermediária, como parece
ter sido o caso com outros autores que também traduziu.
Vejamos o poema “Minha Mãe”, de Machado, ao lado da versão francesa que,
supostamente, foi o texto de partida para sua versão:
Quadro comparativo 2 – “Minha Mãe” e “En recevant le portrait de ma mère”
Minha Mãe
(Imitação de Cowper)
Quanto eu, pobre de mim!
quanto eu quisera
Viver feliz com minha mãe
também!
C. A. de Sáiii
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
Dourou: – é minha mãe!
Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor – anjo do bem
Minha fronte infantil – encheu de rosas
De mimosos sorrisos? – Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora.
E ensinou a adorá-la? – Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: – minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d’alma
En recevant le portrait de ma mère
Oh ! que ces lèvres n’ont-elles un langage ! La vie ne s’est
montrée pour moi que trop dure depuis que je t’ai
entendue pour la dernière fois. Ces lèvres sont les tiennes ;
— c’est bien ton doux sourire que je vois, le même qui me
consola si souvent dans mon enfance : il ne leur manque
que la parole ; à cela près, comme elles semblent dire
clairement : « Ne te chagrine point, mon enfant, chasse
loin toutes tes frayeurs ! » La calme intelligence de ton
regard aimé (béni soit l’art qui a pu l’immortaliser et ravir
au temps le droit de l’éteindre) brille ici sur moi toujours
la même.
Et toi qui fidèlement me retraces celle qui m’est si chère,
hôte bienvenu quoique inattendu ici, qui m’ordonnes
d’honorer d’un vers aimant et simple une mère depuis si
longtemps perdue, j’obéirai non seulement de bon gré,
mais avec joie, comme si l’ordre me venait d’elle ; et
tandis que ces traits viennent renouveler ma filiale
douleur, l’imagination ourdira un charme pour me
consoler ; elle me plongera dans une rêverie élyséenne :
— songe d’un moment qui me fera croire que tu es elle.
Ma mère, lorsque j’appris que tu étais morte, dis, est-ce
que tu as eu conscience des pleurs que j’ai versés ? Ton
esprit, d’en haut, se pencha-t-il sur ton fils désolé,
malheureux déjà dans ce voyage à peine commencé de la
vie ? Peut-être qu’alors tu me donnas un baiser que je ne
sentis pas, peut-être une larme, si les âmes peuvent pleurer
dans la béatitude. Ah ! si j’en crois ce sourire maternel, il
me répond : Oui ! — J’entendis la cloche sonner pour ton
jour de funérailles ; je vis le corbillard qui t’emportait
lentement, et dans ma chambre d’enfant, me détournant de
la fenêtre, je poussai un long, long soupir, et je pleurai un
dernier adieu… Mais est-ce bien le dernier ? — Oui, c’est
96
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
2 set. 1856
le dernier. — Là où tu es allée, les adieux sont des sons
inconnus. Que je puisse seulement te retrouver sur ce
pacifique rivage, et des paroles d’adieu ne sortiront plus
de mes lèvres ! Tes servantes, touchées elles-mêmes de
ma douleur, me donnèrent plus d’une fois la promesse de
ton prompt retour. Longtemps je crus à ce que je désirais
ardemment, et, toujours déçu, je me laissais tromper
toujours, leurré chaque matin d’une attente nouvelle, et
dupe du lendemain, même dès l’enfancet Ainsi vinrent et
passèrent bien des tristes lendemains jusqu’à ce qu’enfin,
tout mon fonds de douleur d’enfant étant épuisé, j’appris
à me soumettre à mon lot ; mais tout en te pleurant moins,
je ne t’oubliai jamais.
Là, où nous avons habité autrefois, notre nom ne se
prononce plus ; des enfants, qui ne sont plus les tiens, ont
foulé le parquet où j’appris à marcher, et là où le long de
cette rue, le jardinier Robin me traînait chaque matin à
l’école, enchanté de ma voiture d’enfant, enveloppé d’un
chaud manteau écarlate et coiffé d’une toque de velours,
c’est devenu maintenant une histoire peu connue
qu’autrefois nous appelions la maison pastorale la nôtre.
Possession éphémère ! mais le pieux registre que garde ma
mémoire de toutes tes tendresses en ce lieu, survit toujours
à bien des orages qui ont effacé mille autres sujets moins
profondément gravés. Les visites de nuit que tu faisais
dans ma chambre pour savoir si j’étais sain et sauf et
chaudement couché ; tes largesses du matin avant le
départ pour l’école, le biscuit ou la prune confite ; l’eau
odorante que ta main prodiguait à mes joues jusqu’à ce
qu’elles fussent brillantes de fraîcheur et luisantes, tout
cela, et ce qui fait plus chérir que tout encore, ce courant
continu d’amour que rien en toi n’interrompait, que ne
troublèrent jamais ces débordements et ces sécheresses
que crée une humeur inégale ; tous ces souvenirs, toujours
lisibles dans les pages de ma mémoire et qui le seront
jusqu’à mon dernier âge, ajoutent le plaisir au devoir, me
font une joie de te rendre de tels honneurs que le peuvent
mes vers ; un bien fragile témoignage peut-être, mais
sincère, et qui ne sera point méprisé au ciel, quand il
passerait inaperçu ici-bas…
Si le Temps pouvait, retournant son vol, ramener les
heures où jouant avec les fleurs brodées sur la robe,
— violette, œillet et jasmin, — je les dessinais sur le
papier avec des piqûres d’épingle (et toi, pendant ce
temps-là, tu étais encore plus heureuse que moi, tu me
parlais d’une voix douce et tu me passais la main dans les
cheveux, et tu me souriais) ; si les jours rares et fortunés
pouvaient renaître, s’il suffisait d’un souhait pour les
ramener, en souhaiterais-je le retour ? Je n’oserais me fier
à mon cœur ; ce délicieux bonheur semble si désirable !
peut-être j’y voudrais revenir ! — Mais non, ce qu’ici
nous nommons la vie est chose si peu digne d’être aimée,
et toi, ma mère, tu m’es si aimable que ce serait te payer
bien mal que de contraindre ton esprit délivré à reprendre
ses fers…
Fonte: Assis (2009); Cowper (S/D)
97
É fácil percebemos diferenças suficientes, seja com o poema de Cowper ou a versão
francesa, para dizer que não se trata de uma tradução stricto sensu, nem Machado quis que o
poema fosse assim considerado, já que o poema foi publicado como uma “Imitação de
Cowper”. Fomos até John Dryden, poeta e tradutor inglês do século XVII que é um exemplo
do tipo de pensamento sobre a tradução que estaria disponível no século XIX, para tentar
encontrar uma definição de tradução que pudesse explicar não só este texto de Machado de
Assis, mas as demais imitações que ele fará no decorrer da carreira.
No seu Preface to Ovid’s Epistles, Dryden identifica três modos de traduzir: a metáfrase,
ou tradução palavra-por-palavra, uma tradução interlinear, cujo resultado nem sempre será um
texto real, mas um auxílio à leitura do original; a paráfrase, ou a tradução em que o tradutor se
preocupa mais com o sentido do que com as palavras e decide encontrar a melhor forma de
expressar aquele sentido em sua língua; e a imitação, em que o tradutor assume as liberdades
que toma para se afastar não só das palavras, mas também do sentido quando julgar
necessário214. O tradutor, portanto, não estará confinado ao sentido, mas tomando o autor
traduzido como um modelo, um padrão para, a partir dele, compor outro texto, como se aquele
autor tivesse vivido e escrito na época do tradutor. A respeito da imitação, Dryden afirma ainda:
“Para sermos claros, a imitação de um autor é a forma mais vantajosa para um tradutor aparecer,
mas é o maior erro que pode ser cometido contra a memória e reputação dos mortos”215.
Neste caso em particular, tendo em mente os conceitos de Dryden, apresentar “Minha
Mãe” como uma “imitação de Cowper” significa tomá-lo como modelo para, a partir desta
relação de intertextualidade com Cowper, produzir um texto que atenda os interesses de quem
traduz mais do que as do autor traduzido. Neste caso em particular pouco há do texto de
Cowper, provavelmente lido em tradução em prosa em língua francesa, no texto de Machado a
não ser o tema sobre o qual ambos os textos versam. O nosso poeta, embora já tenha assinado
algumas publicações de poesia nos periódicos da época, ainda é um jovem titubeante em busca
de uma voz poética própria. Imitar Cowper, portanto, ou qualquer outro neste contexto, tem
ares de demonstração de maturidade dada a medição de forças em que se joga com o poeta
inglês. Embora não fosse dos mais conhecidos ou lidos por aqui, é possível encontrar
referências a Cowper dentre os primeiros poetas românticos, como na epígrafe de “Quando à
noite no leite perfumado”, na Lira dos vinte anos de Álvares de Azevedo216. Imitá-lo, portanto,
é colocar-se, pela primeira vez no caso de Machado, numa posição de enfrentamento com um
214
DRYDEN, John. “From the preface to Ovid’s Epistles”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies
reader. 2 ed. New York 2004, p. 38
215
Ibid., p. 40, tradução nossa. No original: “To state it fairly, Imitation of an author is the most advantageous (sic)
way for a Translator shew himself, but the greatest wrong which can be done to the Memory and Reputation of
the dead.”
216
AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 33.
98
texto estrangeiro, reconhecendo o débito para com o poeta inglês ao mesmo tempo em que
colhe um texto que é mais seu do que de Cowper.
Analisando o poema de Machado, observamos que ele é consideravelmente mais curto:
apenas 28 versos, contra os 121 versos do poema de Cowper. Formalmente, no entanto, há
algumas semelhanças: Cowper utiliza, como mostramos, dísticos escritos em pentâmetros
iâmbicos, que são versos bastante próximos do verso clássico português, o decassílabo, apesar
da contagem silábico-acentual da língua inglesa. Machado adota decassílabos por todo o
poema, à exceção do último verso de cada estrofe, que funciona como uma espécie de refrão
escrito usando o verso quebradoiv do decassílabo, compondo estrofes heterométricas conforme
as regras de harmonia acentual que preveem o hexassílabo como o verso quebrado respectivo
ao decassílabo heroico como verso maior217.
Embora o texto francês que Machado provavelmente consultou seja escrito em prosa,
Machado escolhe compor sua peça em versos e adota um metro análogo ao do texto de Cowper,
embora uma coincidência seja a hipótese mais provável, visto que ambos são metros muito
comuns em suas respectivas línguas. Machado também adota um esquema de rimas diferente
do texto de Cowper, mas mantém a presença de rimas emparelhadas em todas as estrofes,
sempre no quinto e sexto versos, algo que lembra os couplets de Cowper.
Analisando os aspectos formais de “Minha Mãe”, encontramos a utilização de
decassílabos heroicos em todas as estrofes e em praticamente todos os versos, e alguns outros
decassílabos sáficos. Estes, inclusive, abrem a primeira estrofe do poema, nos primeiros dois
versos, seguidos por decassílabos heroicos nos versos 4 a 6. Nas demais estrofes, contudo,
prevalece o uso do decassílabo heroico entre os primeiros seis versos de cada uma.
Este é um dado particularmente interessante porque, analisando o poema de Cowper sob
a mesma ótima encontraremos acentuações parecidas nos pentâmetros iâmbicos, que não raro
são acentuados nas sílabas pares, particularmente nas sexta e décima sílabas, que carregam as
acentuações mais fortes. Este é um dado curioso, mas novamente creditamos esta peculiaridade
ao fato de os metros utilizados serem considerados clássicos em ambas as línguas. O
decassílabo era um metro bastante comum entre os românticos e a acentuação silábica deste
metro guarda, naturalmente, semelhanças com a acentuação silábico-acentual dos pentâmetros
iâmbicos dos ingleses, como já demonstrou Péricles Eugênio da Silva Ramos em O verso
romântico e outros ensaios (1959)v.
217
CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974, p. 156-157.
99
Ao se observar o conteúdo do poema de Machado, encontramos um leitor interpelado
pelo eu-lírico nas três primeiras estrofes, sempre ocupando os quatro primeiros versos de cada
uma, para as quais a resposta é sempre a mesma, a mãe do poeta, dada no último verso de cada
estrofe com tons de refrão. Embora Machado tenha apresentado “Minha Mãe” como uma
imitação de Cowper, pouco há da força descritivo-narrativa de Cowper, nem encontramos a
mesma linguagem fluida, quase coloquial do poeta inglês no texto de Machado, que prefere
utilizar diversas inversões sintáticas para atingir o efeito desejado, ainda que o sentimentalismo
e nostalgia presentes sejam igualmente fortes, o que interpretamos como um indício de que o
jovem Machado de Assis, muito provavelmente, não teve qualquer tipo de contato com a versão
inglesa do poema, ficando completamente a seu encargo reimaginar poeticamente o tema da
tradução em prosa francesa.
Para Flávia Amparo, na tese Sob o véu dos versos: o lugar da poesia na obra de
Machado de Assis (2008), em fins da década de 1850 a poesia de Machado estava marcada “[...]
pela religiosidade afetiva e melancólica de um Cowper, no lamento pela ausência da mãe”218.
Em sua análise, esta imitação do poeta inglês
[...] apresenta uma suavização da morte pela evocação sentimental da memória,
enfatizando também o vetor religioso, como já se percebia nas outras composições. O
eu-lírico reza pela mãe e recebe a proteção dos clamores que ela do céu lhe envia:
canção atenuada e sem os acessos melancólicos dos outros versos. Machado escreve
com delicadeza e lirismo, naquela que é, sem dúvida, a mais bela composição
dedicada à memória da mãe219.
De que Machado teve algum contato com o texto de Cowper, em inglês ou francês, não há
dúvida, do contrário não haveria motivos para apresentar “Minha Mãe” como uma imitação do
poeta inglês. É possível, no entanto, que a inspiração de Machado de Assis, pelo menos em
parte, tenha vindo de outro poeta brasileiro, Casimiro de Abreu, que também tem um poema
chamado “Minha Mãe”. Amparo é ainda mais contundente quanto ao assunto e afirma haver
“inegável influência” de Casimiro de Abreu, que teria sido “a grande inspiração
machadiana”220. Vejamos algumas estrofes do poema de Casimiro de Abreu, publicado em
Primaveras, de 1855:
Da pátria formosa distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
— Minha Mãe! —
218
AMPARO, Flávia Vieira da Silva do. Sob o véu dos versos: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis.
2008. 346f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas). Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 40.
219
Ibid., p. 50
220
Ibid., p. 51
100
Nas horas caladas das noites d’estio
Sentado sozinho co’a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
— “Oh filho querido do meu coração!” —
— Minha Mãe! —221
Percebe-se o quanto as escolhas de Machado de Assis lembram, sem querer igualar-se,
as de Casimiro de Abreu, particularmente na repetição de “Minha Mãe” ao fim de cada estrofe.
É bem verdade que o metro é diferente: Casimiro escreve em hendecassílabos, sempre divididos
em dois hemistíquios pentassilábicos, com uma cadência suave e de versos muito espontâneos.
As oitavas de Machado de Assis não possuem a mesma cadência regular do poema de Casimiro
de Abreu, mas concluem o pensamento desenvolvido da mesma maneira que Casimiro de
Abreu: a repetição da frase “Minha mãe”. O poema de Casimiro de Abreu, portanto, parece ter
servido como uma das fontes para encontrar o caminho poético para reimaginar o poema de
Cowper, já que é “com os haveres de um e de outro” que o jovem Machado consegue chegar
ao seu poema.
Estamos, de todo modo, diante de uma “imitação”, que seria uma tradução em sentido
mais amplo, em que a preocupação é menos a de reproduzir servilmente o aspecto formal ou
mesmo o sentido, as ideias e imagens do texto-fonte do que de criar uma obra inspirada por
outra, “imitando”, mas que se quer obra original e independente. Ao incorporar o relato
empírico em comum com Cowper e transpô-lo para o âmbito do poético, o que Machado traduz
é a ideia nascida de uma experiência de vida em comum.
Nesta mesma época, o jovem Machado estava evidentemente às voltas com o tema,
interesse que culminará na imitação do poeta inglês. Como vimos, primeiramente temos o
poema “O meu viver”, publicado em 16 de fevereiro de 1856, o qual inaugura os textos nos
quais a figura materna é o assunto principal:
Dizer que eu vivo... e minha mãe perdi,
Minha alma geme e o coração de amores,
É crer que um filho, sem a mãe... sozinho,
Também existe, com pungentes dores.222
Alguns meses mais tarde, em 15 de abril do mesmo ano surge “Saudades”, com o mesmo
tom de lamento pela morte prematura da mãe:
Se perdi minha mãe tão moço,
Se padeço de ti tanta saudade,
Não posso existir num mundo triste;
É melhor eu morrer nesta idade.
221
ABREU, Casimiro de. Obras completas de Casimiro de Abreu. 2 ed. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e
Cultura, 1955, p. 78.
222
ASSIS, 2009a, p. 419-420
101
O próximo desta leva “Lágrimas (À memória de minha mãe)”, de 29 de julho, que é o
que mais se aproxima, nos aspectos formais, de “Minha Mãe”, por utilizar versos decassílabos
e seu respectivo quebrado, o hexassílabo:
Eu perdi minha mãe... era uma santa,
Que tinha a minha vida neste mundo
Minh’alma e meu amor!
E foi o meu pesar, minha ânsia tanta,
Que a vida quis deixar num ai profundo,
Morrer também de dor.
“Minha mãe”, portanto, sugere um movimento de conscientização do nosso jovem poeta
em relação aos modelos com que deseja entrar em diálogo. Até então, a considerar as epígrafes,
por exemplo, Machado tinha em seu horizonte intertextual textos de escritores próximos a si,
mantendo até mesmo vínculo de amizade com alguns deles, como Francisco Gonçalves Braga,
figura constante nos primeiros poemas de Machado. Os temas também remetem a textos de
outros românticos brasileiros: “A Palmeira”, primeiro poema de Machado, é clara referência à
“Canção do exílio” de Gonçalves Dias. Antoine Berman nos lembra de que para Schlegel “a
verdadeira imitação não é ‘a imitação simiesca das maneiras exteriores de um homem, mas a
apropriação das máximas de sua ação’”223. Seja a partir de Cowper ou de Casimiro de Abreu, é
isto o que o poeta-tradutor parece querer fazer: apropriar-se do outro e fazer dele algo que esteja
imbuído de sua própria natureza. Ao imitar Cowper ou Casimiro, ou ambos, o que o jovem
Machado nos deixa é uma variação sobre o mesmo tema, transpondo-o para sua oficina literária,
numa clara tentativa de capitalizar-se poeticamente e colocar-se em um diálogo-embate,
medindo forças com poetas já consagrados da tradição literária ocidental.
5.2 “A uma donzela árabe”
No ano em que completaria 20 anos de idade, 1859, o jovem Machado de Assis publica
a sua primeiravi tradução stricto sensu de poesia de que temos notícia: “A uma donzela árabe”,
poema publicado no n. 15 de O Paraíba em 20 de janeiro daquele ano224. Trata-se de uma
tradução de “À une jeune arabe qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep”, do poeta francês
223
BERMAN, 2002, p. 89
SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura/
Instituto Nacional do Livro, 1955, p. 320
224
102
Alphonse de Lamartine, escrito em 1832 e publicado dois anos mais tarde, em 1834, na Révue
des Deux Mondes.
O texto em questão já contava mais anos do que o seu jovem tradutor quando a tradução
foi feita. Ignoramos de que forma Machado conheceu este texto, mas à época da tradução deste
poema Machado já tinha traduzido outros textos que atestam o grau de conhecimento da língua
francesa que o escritor carioca já alcançara. O contato mais íntimo com Lamartine, a propósito,
não se inicia com a tradução deste poema. Jean-Michel Massa reporta que entre setembro e
dezembro de 1857 Machado apresentava, na Marmota de Paula Brito, algumas páginas de A
literatura durante a Restauração, traduzidas de Histoire de la Restauration, também de
Lamartine, em que o poeta francês apresenta escritores do período.
A respeito desse período, o biógrafo Magalhães Junior afirma que Machado “[a]os
poucos, ia conseguindo dominar a língua francesa e, nesse mesmo mês, praticava como tradutor
uma façanhavii que encheu de admiração um grupo de franceses, dos mais cultos entre os que,
então, vivam na capital do Império”225.
Dada a atenção que recebeu Lamartine, um dos autores mais traduzidos pelos nossos
românticos, ao lado de Victor Hugo e Byron, não é de se estranhar o interesse do jovem
Machado pelo escritor. Crisálidas ainda estava cinco anos à frente. O poeta Machado de Assis
está apenas no começo de sua formação. É de se supor que o jovem estivesse procurando
modelos que o ajudassem na busca por uma voz própria. A tradução, portanto, surge como um
caminho possível para realizar a tarefa.
Alphonse de Lamartine, embora hoje não goze mais do mesmo prestígio de antes, era à
época um dos poetas mais lidos e admirados. José Paulo Paes nos lembra, por exemplo, que em
1841 foi editado Cantos de Lamartine, sem indicação de tradutor e com textos que
provavelmente foram retirados de Méditations. Mais tarde, em 1869, é publicado
Lamartineanas: poesias de Affonso de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros, coletânea
que contou com a colaboração de Machado de Assis226. Em 1859, data em que Machado de
Assis publica sua tradução e provavelmente a época em que fora realizada, Lamartine já era o
consagrado autor das Méditations Poétiques de 1820 que, segundo Jean D’Ormesson (2001),
marcaram o início do romantismo poético e lírico227. Lamartine estava então chegando ao fim
225
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 110
PAES, 1990, p. 16
227
D'ORMESSON, Jean. Une autre histoire de la littérature française: le romantisme. Paris: Librio, 2001, p. 37
226
103
de sua vida, vindo a morrer em 1863, vendo seu nome como poeta perder relevância face ao
surgimento de nomes como o de Victor Hugo.
Na década de 1830, no entanto, Lamartine não escapa à moda orientalista. Lembremos
que em 1829 Victor Hugo publica Les orientales, cujo prefácio, segundo o crítico Émile
Verhaeren (2002), coloca em questão pela primeira vez o grito pela liberdade poética228
reclamando aos poetas o direito de escrever sobre o que quiserem, como quiserem. No mesmo
ano em que escreve “À une jeune Arabe”, Lamartine embarca para o Oriente Médio, visitando
Síria, Líbano, a terra santa, Constantinopla e os Bálcãs. Dois anos mais tarde, 1834, o poema
foi publicado, segundo referências encontradas durante nossa pesquisa, na Révue des Deux
Mondes. Não encontramos o texto na publicação mencionada, mas foi possível identificar o
poema na Révue de Paris, nas páginas 250-252, que também o publicou no mesmo ano de 1834
e, a julgar pela nota de rodapé que acompanha a publicação, sem a autorização de Lamartine.
A mesma nota nos informa também que o poema foi composto quando da chegada de Lamartine
à Síria:
Um de nossos amigos nos envia de Marselha versos que M. de Lamartine compôs
quando chegou à Síria, para uma jovem dama que fumava o narguilé: cachimbo turco
onde a fumaça do tomback passa por uma urna de cristal através de água de rosas.
Não acreditamos desagradar o ilustre poeta, hoje ocupado com tão graves interesses,
ao publicar sem sua participação versos que deixou cair e que desta forma entraram
no domínio comum da bela poesia229.
O poema francês é todo composto em versos alexandrinos, em doze quadras, com rimas
alternadas em todo o poema. O principal mote é o de que a poesia, os versos, não são suficientes
para expressar a beleza da jovem, ainda que o eu-lírico insista na tentativa. Em movimento
tipicamente romântico, o eu-lírico se coloca em posição subalterna àquela que admira:
Qui ? toi ? me demander l’encens de poésie ?
Toi, fille d’Orient, née aux vents du désert !
Fleur des jardins d’Alep, que Bulbul eût choisie
Pour languir et chanter sur son calice ouvert !
Rapporte-t-on l’odeur au baume qui l’exhale ?
Aux rameaux d’oranger rattache-t-on leurs fruits ?
Va-t-on prêter des feux à l’aube orientale,
Ou des étoiles d’or au ciel brillant des nuits ?230
228
VERHAEREN, Émile. Hugo et le romantisme. Bruxelas: Éditions Complexe, 2002, p. 47
LAMARTINE, A. “À une jeune arabe (qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep)”. In: RÉVUE de Paris. 2
ed. Tome Premier. Bruxelas, H. Dumont Libraire-Éditeur, 1834, p. 250. No texto-fonte: “Un de nos amis nous
envoie de Marseille des vers que M. de Lamartine composa à son arrivée en Syrie, pour une jeune dame qui fumait
le narguilé ; pipe turque où la vapeur du tombach passe dans une urne de cristal, à travers de l’eau de rose. Nous
ne croyons pas déplaire à l’illustre poète, occupé aujourd’hui d’intérêts si graves, en publiant sans sa participation
des vers qu’il a laissés tomber en passant, et qui sont entrés ainsi dans le domaine commun de la belle poésie. (N.
du D.)”.
230
Ibid.
229
104
As perguntas feitas nas duas primeiras estrofes do poema colocam exatamente isso em questão:
o eu-lírico não está apto a elogiar em versos a jovem árabe. Note-se também o ritmo sincopado
do primeiro verso que transmite certa surpresa do poeta com o pedido da jovem, enquanto
versos seguintes temos uma cadência mais regular, em que o eu-lírico enaltece a beleza da
jovem com imagens que remetem claramente ao oriente, como o pássaro bulbul – semelhante
ao nosso rouxinol – e os jardins de Aleppo, na Síria. Esta mesma cesura, elemento típico do
verso alexandrino clássico, está presente em todos os versos da segunda estrofe, que reforçam
a ideia de inutilidade dos versos para elogiar a beleza da jovem com imagens como o
despropósito de se emprestar estrelas aos céus, ideia que é seguidamente reforçada pela terceira
estrofe do poema, transcrita abaixo:
Non, plus de vers ici ! Mais si ton regard aime
Ce que la poésie a de plus enchanté,
Dans l’eau de ce bassin contemple-toi toi-même ;
Les vers n’ont point d’image égale à ta beauté !231
Ao pedir que a jovem se contemple na fonte, o jovem está dizendo que a beleza do reflexo dela
na água é algo superior às imagens que versos seriam capazes de criar. O argumento será
reforçado durante as cinco quadras seguintes, todas introduzidas pelo advérbio “Quand”, que
descrevem os movimentos da jovem fumando o narguilé e pintam para o leitor um quadro
repleto de imagens que remetem tipicamente ao oriente e à idealização da beleza jovem
feminina:
Quand le soir, dans le kiosque à l’ogive grillée,
Qui laisse entrer la lune et la brise des mers,
Tu t’assieds sur la natte, à Palmyre émaillée
Où du moka brûlant fument les flots amers ;
[...]
Quand le nuage ailé qui flotte et te caresse
D’odorantes vapeurs commence à t’enivrer ;
Que les songes lointains d’amour et de jeunesse
Nagent pour nous dans l’air que tu fais respirer ;232
Imagens como o anoitecer, a lua, a brisa do mar, palmeiras, a fumaça saindo do narguilé e como
que acariciando o rosto da jovem que começa a se intoxicar, trazendo por consequência os
amores e juventudes oníricas são imagens que reforçam o papel de Lamartine no nascimento
do romantismo lírico francês, inaugurado com suas Méditations poétiques de 1820. Em
Lamartine, encontramos o objeto, a jovem árabe no caso, apresentado de maneira evasiva e até
231
232
LAMARTINE, 1834, p. 250-251
Ibid., p. 251
105
impessoal, visto que o poeta não a nomeia nem a individualiza de forma alguma. Assim, a
jovem parece antes um conceito, uma abstração do que uma existência. É igualmente notável a
presença da fumaça do narguilé, a lua e o tom ditado pelo entardecer enquanto descreve a
jovem, itens de presença bem marcada na poesia lamartineana e que reforçam a tese de
indefinição do objeto poético defendida pelo crítico Jean-Pierre Richard em Études sur le
romantisme (1970):
Lamartine adora por exemplo as emanações, ou os perfumes, lentas exalações verticais,
transições comoventes de um registro puramente humano em direção ao seu fim
celestial. Ele conhece a magia dos nevoeiros e das névoas – sobretudo no outono, ou ao
amanhecer, ou mesmo no crepúsculo, todos esses momentos afetados por um certo
coeficiente temporal de indecisão […] 233.
Nas últimas estrofes, o tom mudará de contemplativo de uma beleza exótica para o
elegíaco, lamentoso, de um poeta que enxerga a si mesmo como alguém que já passou da idade
para tais amores, cujo coração está morno, mas que na juventude – aos dezesseis, como diz o
poeta – teria feito os tais versos que a jovem lhe pede:
J’ai passé l’âge heureux où la fleur de la vie,
L’Amour, s’épanouit et parfume le cœur,
Et l’admiration, dans mon âme ravie,
N’a plus pour la beauté qu’un rayon sans chaleur.
De mon cœur attiédi la harpe est seule aimée ;
Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers
Pour un de ces flocons d’odorante fumée
Que ta lèvre distraite exhale dans les airs ;234
O curioso do poema é justamente o paradoxo de um poeta que, mesmo não se julgando apto,
ou necessário, escrever versos para elogiar a tal jovem árabe, faz justamente o tal poema, os
tais versos, dizendo que não serão suficientes para elogiá-la. Acreditamos já ter elementos
suficientes, portanto, dos traços estilísticos lamartineanos de que Berman fala na sua proposta
para que possamos proceder ao estudo da tradução de Machado de Assis.
Conforme dito anteriormente, quando realizou esta tradução, o jovem Machado de Assis
já se iniciara em Lamartine traduzindo a Histoire de la Restauration. Parece prudente supor,
portanto, que o contato com o poeta francês se intensificou neste período. Sendo Machado um
jovem que procurava encontrar seu lugar na poesia brasileira, muito natural também seria a
escolha de traduzir Lamartine como uma forma de entender o processo de construção do poema
233
RICHARD, Jean-Pierre. Études sur le romantisme. Paris: Éditions du Seuil, 1970, p. 145, tradução nossa. No
original: « Lamartine adore par exemple les fumées, ou les parfums, lentes exhalations verticales, transitions
émouvantes d’un registre purement humain vers son aboutissement céleste. Il connaît la magie des brouillards et
les brumes – en automne surtout, ou à l’aube, ou bien au crépuscule, tous moments affectés d’un certain coefficient
temporel d’indécision »
234
LAMARTINE, 1834, p. 251-252
106
e testar os próprios limites de sua capacidade de criação poética. Lembremos mais uma vez que
foi o próprio Machado quem disse que para traduzir Lamartine era preciso saber respirar versos
como ele. Vejamos como se sai o nosso poeta-tradutor na sua versão que reproduzimos ao lado
do poema de Lamartine:
Quadro comparativo 3 – “A uma donzela árabe” e “À une jeune árabe”
A uma donzela árabe
Quem? Tu? Pedir-me o incenso da poesia,
Tu que nasceste aos ventos do deserto,
Ó filha do Oriente!
Flor d’Alepo, onde o rei da melodia,
Bubbul, que preferiu teu seio aberto
Desmaia e canta ardente!
Traz-se de novo ao bálsamo odores?
E os frutos às cheirosas laranjeiras
Vai-se de novo unir?
À alva oriental dá-se fulgores?
E ao céu da noite estrelas feiticeiras
Áureas a refulgir?
Longe os versos daqui!... Mas se é teu gosto
E ver da poesia o que há de mais belo
Aos teus olhos convém,
Nas águas deste tanque olha o teu rosto;
Da beleza esse angélico modelo
Os versos, não, não têm!
Quando no quiosque de janela arcada,
Que em noites belas penetrar consente
Luas e brisas do mar,
De Palmira na esteira estás sentada
Em que ondas de fumaça o moca ardente
Começa a vaporar;
E quando o tubo de alva cor, dourado
Com tua mão aos lábios aproximas
Que semiabertos são;
E aspirando um incenso perfumado,
Do narguilé a água morna animas
Em doce ebulição;
Quando a nuvem alada te embriaga,
E te derrama como um doce ambiente,
Balsâmico vapor;
E no ar suave em que respiras – vaga
Um sonho morto, uma visão ardente
De mocidade e amor;
Quando descreve o corvel esquivo
Sujeito à tua mão enfraquecida,
E os freios a espumar:
E a luz oblíqua desse olhar tão vivo
Semelha a chama ardente e enternecida
Do seu triunfante olhar;
À une jeune arabe
(Qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep)
Qui ? toi ? me demander l’encens de poésie ?
Toi, fille d’Orient, née aux vents du désert !
Fleur des jardins d’Alep, que Bulbul eût choisie
Pour languir et chanter sur son calice ouvert !
Rapporte-t-on l’odeur au baume qui l’exhale ?
Aux rameaux d’oranger rattache-t-on leurs fruits ?
Va-t-on prêter des feux à l’aube orientale,
Ou des étoiles d’or au ciel brillant des nuits ?
Non, plus de vers ici ! Mais si ton regard aime
Ce que la poésie a de plus enchanté,
Dans l’eau de ce bassin contemple-toi toi-même ;
Les vers n’ont point d’image égale à ta beauté !
Quand le soir, dans le kiosque à l’ogive grillée,
Qui laisse entrer la lune et la brise des mers,
Tu t’assieds sur la natte, à Palmyre émaillée
Où du moka brûlant fument les flots amers ;
Quand, ta main approchant de tes lèvres mi-closes
Le tuyau de jasmin vêtu d’or effilé,
Ta bouche, en aspirant le doux parfum des roses,
Fait murmurer l’eau tiède au fond du narguilé ;
Quand le nuage ailé qui flotte et te caresse
D’odorantes vapeurs commence à t’enivrer ;
Que les songes lointains d’amour et de jeunesse
Nagent pour nous dans l’air que tu fais respirer ;
Quand de l’Arabe errant tu dépeins la cavale
Soumise au frein d’écume entre tes mains d’enfant,
Et que de ton regard l’éclair oblique égale
L’éclair brûlant et doux de son œil triomphant ;
Quand ton bras, arrondi comme l’anse de l’urne,
Sur le coude appuyé soutient ton front charmant,
Et qu’un reflet soudain de la lampe nocturne
Fait briller ton poignard des feux du diamant ;
Il n’est rien dans les sons que la langue murmure,
Rien dans le front rêveur des bardes comme moi,
Rien dans les doux soupirs d’une âme fraîche et pure,
Rien d’aussi poétique et d’aussi frais que toi !
J’ai passé l’âge heureux où la fleur de la vie,
L’Amour, s’épanouit et parfume le cœur,
Et l’admiration, dans mon âme ravie,
107
Quando o teu braço como a asa da urna,
Ampara curvo a tua fronte bela,
E ao súbito fulgor
Que em torno espalha a lâmpada noturna
Luz diamantina o teu punhal revela
De fulgente cor;
N’a plus pour la beauté qu’un rayon sans chaleur.
Nada há nos sons suaves que murmura
Humana língua, nem na fronte grave
De ardente trovador,
Nem nos ais de uma alma fresca e pura
Como em ti: tanto mimo e luz suave,
E mágico frescor!
Ou pour fixer du doigt la forme enchanteresse,
Qu’une invisible main trace en contour obscur,
Quand le rayon des nuits, dont le jour te caresse ;
Jette en la dessinant ton ombre sur le mur !
De mon cœur attiédi la harpe est seule aimée ;
Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers
Pour un de ces flocons d’odorante fumée
Que ta lèvre distraite exhale dans les airs ;
De mim vai longe a idade da ventura,
Em que se abre a amor, a flor da vida,
E aroma o coração;
E apenas p’ra cantar a formosura
Tenho uma chama fraca, esmorecida
Sem fogo, sem paixão!
Ama a lira o meu peito já cansado.
Mas quantos versos não daria outrora
E cânticos d’amor,
Por um só froco aéreo perfumado
Desse fumo suave que vapora
Dos lábios teus – a flor;
Ou para a forma então fixar com o dedo
Que num sítio obscuro estampa e traça
Uma invisível mão,
Quando da noite o raio ardente e ledo
Tua sombra cheio de atrativo e graça
Projeta sobre o chão!
Fonte: Assis (2009); Lamartine (1834)
Observando primeiramente a estrutura da tradução de Machado, observamos que ela
mantém as mesmas 12 estrofes, embora o número de versos aumente de 48 para 72. Há,
aparentemente, um alongamento do texto lamartineano, considerando que temos 24 versos a
mais. Contudo, se considerarmos o número de sílabas poéticas, unidade mínima do poema,
teremos 624 sílabas na tradução de Machado contra 576 sílabas no poema de Lamartine,
diferença que não é tão significativa – menos de 10% – quanto poderia parecer.
A explicação é simples e salta aos olhos: Lamartine escreve quadras em versos
alexandrinos. Machado adota outra solução: escreve em sextinas, cada uma com dois
decassílabos seguidos por um hexassílabo e novamente, mais dois decassílabos e outro
hexassílabo, adotando o verso quebrado. Já é curioso notar a pouca preocupação em querer
buscar correspondências formais exatas, ou um espelhamento do texto francês, demonstrando
que Machado está mais preocupado em fazer com que sua produção poético-tradutória produza
108
no leitor os efeitos que ele, poeta-tradutor, busca, que estejam de acordo com a tradição poética
de sua língua-cultura e que não serão necessariamente os mesmos do texto-fonte.
Note-se ainda que, conforme Ishimatsu aponta corretamente, “o decassílabo é sem
dúvida o metro mais prevalente nos primeiros poemas de Machado – quatorze são compostos
inteiramente de versos de dez sílabas, e quinze são combinações de versos de dez e seis
sílabas”235. Assim, a escolha de Machado resulta em outro poema, e não poderia ser diferente
se entendermos a tradução como uma prática autoral paralela. Enquanto no poeta francês
encontramos um metro e ritmo regulares, com uma cadência cuja monotonia reflete uma visão
de mundo igualmente estável, em Machado a adoção do decassílabo intercalando-se com
hexassílabos, típico de odes e canções clássicas, mas encontrado também em poetas como
Tomás Antônio Gonzaga e Bocageviii, traz uma força de expressão diversa, com um ritmo mais
marcadamente enérgico. A posição que o jovem Machado adota como tradutor, portanto, sugere
o entendimento de que a recriação do poema em outro idioma, independentemente dos recursos
formais utilizados, resultará em um novo poema.
A disposição das rimas também muda: se por um lado Lamartine utiliza rimas alternadas
por todo o poema, Machado, em virtude de ter adotado estrofes com seis versos combinando
dois versos em decassílabo seguido pelo respectivo quebrado, o hexassílabo, escolherá o
esquema ABCABC. Machado também faz uso do emprego regular de rimas agudas nos terceiro
e sexto versos de cada estrofe, em contraposição com as rimas graves dos demais versos,
excetuando-se somente a primeira estrofe do poema em que utiliza somente rimas graves,
conforme se observa no exemplo abaixo:
Quem? tu? Pedir-me o incenso da poesia,
Tu que nasceste aos ventos do deserto,
Ó filha do Oriente!
Flor d’Alepo, onde o rei da melodia,
Bubbul, que preferiu teu seio aberto
Desmaia e canta ardente!
Traz-se de novo ao bálsamo odores?
E os frutos às cheirosas laranjeiras
Vai-se de novo unir?
À alva oriental dá-se fulgores?
E ao céu da noite estrelas feiticeiras
Áureas a refulgir?236
235
ISHIMATSU, 1984, p. 42. No texto-fonte: “the decasyllable is by far the most prevalent meter in Machado’s
early poems – fourteen are made up entirely of ten-syllable lines, and fifteen are combinations of ten- and sixsyllable lines”.
236
ASSIS, 2009, p. 446
109
Por toda a tradução é clara a preocupação com o metro, e não encontramos um só verso em que
o metro estivesse irregular, algo que podemos estender ao esquema de rimas adotado por
Machado: uma perfeita regularidade entre rimas graves e agudas, à exceção, novamente, da
primeira estrofe.
Ao comentar em nota a tradução de Machado que recolhera em Dispersos de Machado
de Assis (1965), Jean-Michel Massa afirma sobre a tradução:
A tradução é fiel à letra e ao espírito do modelo. Segue passo a passo a poesia sem lhe
acrescentar nada e sem remover nada importante. Somente a quadra de Lamartine é
substituída por uma sextina, modificação que permite ao tradutor permanecer mais
fiel ao original dando-lhe maior liberdade para transpor todas as nuances do texto. A
juventude do escritor fez com que ele mudasse o verso: Mais combien à seize ans
j’aurais donné de vers para Mas quantos versos não daria outrora237
Embora, na opinião de Massa, Machado não tenha suprimido ou acrescentado nada de
relevante, o fato é que, mesmo seguindo Lamartine passo-a-passo, há sim acréscimos e
supressões na tradução. Já na primeira estrofe, os “jardins” de “Fleur des jardins d’Alep”
desaparecem e o trecho vira somente “Flor d’Alepo”. Devemos louvar, neste caso, o efeito
conferido pela concisão com a eliminação de “jardins”, substantivo que soaria redundante e
inútil no poema. Na primeira estrofe ainda, o “calice ouvert” de Lamartine torna-se “seio
aberto” em Machado, diferença que supõe uma leitura metafórica do suposto “cálice” que pode
ser lido como os seios da jovem em uma relação metafórico-metonímica. Já na segunda estrofe
as “étoiles d’or” tornam-se “estrelas feiticeiras”, adjetivo escolhido provavelmente em virtude
da necessidade de se encontrar rima, mas que carrega também uma agradável assonância com
o substantivo que o precede. De qualquer modo, a mudança também pode ser justificada pela
busca de termos que confeririam efeito análogo: o “ouro”, metal precioso que seduz e encanta
pelo seu valor e raridade, pode ser aproximado neste sentido do adjetivo “feiticeiras”, que
confere às estrelas o mesmo ar de encantamento e sedução. Há outros exemplos como esses,
em que pequenas supressões ou acréscimos são feitos, mas de fato somos obrigados a concordar
que nada de essencialmente importante fora acrescentado ou suprimido do texto, à exceção do
ritmo que se torna diferente o suficiente para não mais soar lento como um poema de Lamartine.
237
MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura/Instituto Nacional do Livro,1965, p. 495, tradução nossa. No original: “La traduction est fidèle à la lettre
et à l’esprit du modèle. Il suit pas à pas la poésie sans rien y ajouter et sans rien en retrancher d’important. Seul le
quatrain de Lamartine est remplacé par se sizain, modification que permet au traducteur de rester plus fidèle à
l’original en lui laissant une plus grande liberté pour rendre toutes les nuances du texte. La jeunesse de l’écrivain
lui fait modifier le vers : Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers en Mas quantos versos não daria
outrora”
110
Figura 1 - Reprodução da primeira publicação de “A uma donzela árabe”
Fonte: Assis (1859).
111
Vemos, portanto, que as escolhas formais do tradutor brasileiro apontam para o que
chamaremos de aclimatação das formalidades poéticas do texto-fonte sem, todavia, desviar-se
do tema e das imagens do poema francês. Muito pelo contrário: os traços estilísticos
lamartineanos de que tratamos anteriormente estão lá: o mesmo ritmo sincopado no primeiro
verso, as mesmas imagens do anoitecer, da lua, da brisa do mar, os perfumes das laranjeiras se
misturando à fumaça que sai do narguilé e que parece acariciar o rosto da jovem árabe,
mesclando o real e o onírico dos amores da juventude e o distanciamento do poeta em relação
ao objeto de que ele trata de maneira tão objetiva quanto Lamartine. O leitor que só puder ler a
tradução de Machado não terá dificuldades em chegar à mesma leitura do poema que
apresentamos acima, com a diferença que o poema de Machado de Assis tem um ritmo e uma
oralidade próprios, pois parece haver um certo rebuscamento na linguagem de Machado de
Assis que não encontra correspondente em Lamartine, bem como o poeta-tradutor imprime sua
própria dicção, sua própria oralidade ao texto. Por vezes, “A uma jovem árabe” parece mais um
poema neoclássico do que propriamente romântico.
Meschonnic escreve que “[a] primeira e a última traição que a tradução pode cometer
contra a literatura é a de lhe roubar aquilo que a faz literatura – sua escritura – pelo próprio ato
que a transmite”238. O texto traduzido, enquanto texto, deve fazer o que faz o texto de partida.
Neste sentido, só podemos avaliar que o poeta-tradutor certamente entendia estar sendo “fiel”
a Lamartine e, sobretudo, a si mesmo. O que poderia ser visto como “perda” – do ritmo típico
dos alexandrinos, por exemplo – ao escolher outra forma para o texto de chegada, por exemplo,
na verdade parecem ter sido, para o poeta-tradutor, a única saída possível: a um metro clássico
francês deve corresponder um metro clássico português, e a expressão francesa deve ser
reduzida às formas de expressão da língua portuguesa tendo por norte absoluto que o resultado
seja um poema reconhecível como tal. Percebe-se, ainda, o tributo de Machado a formas já
conhecidas e utilizadas na tradição poética em língua portuguesa que antecedem a ele, assim
como a regularidade na escolha das formas e metros que já conhecia razoavelmente bem
naquela época, e que continuaria a utilizar mais tarde. É notável, por exemplo, a semelhança
formal entre esta tradução e “Musa Consolatrix”, que abre Crisálidas:
Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.239
238
239
MESCHONNIC, 2010, p. 30
ASSIS, 2009, p. 33
112
No exemplo acima temos os mesmos versos corretos de “A uma jovem árabe”, com
ritmo idêntico, algo que, entretanto, já fizera anteriormente nos seus primeiros poemas, dentre
os quais há mais de uma dezena que combinam decassílabos e hexassílabos, indício de que o
poeta e o tradutor trilhavam o mesmo caminho.
5.3 “Souvenir d’Exil”
Ao final de seu livro Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, Eliane Ferreira
relaciona, em anexo, as traduções de Machado de Assis identificadas durante sua pesquisa. O
quinto texto desta relação é “A Ch. F., filho de um proscrito”, de 27 de janeiro de 1859, de
autoria de Charles Ribeyrolles240. Este é, segundo a autora, um dos acréscimos que fez à
listagem feita anteriormente por Jean-Michel Massa, a partir de levantamento realizando
durante a elaboração de sua tese.
Há, contudo, um equívoco neste caso: “A Ch. F., filho de um proscrito” não é uma
tradução, mas um poema que Machado de Assis compôs, com versos em francês, dedicado a
Charles Frond, filho de Victor Frond, o “proscrito” do poema. A data também está incorreta:
“A Ch. F., filho de um proscrito” fora publicado em 21 de julho de 1859 no Correio Mercantil,
em homenagem aos 6 meses de idade do filho de Victor Frond241. O mesmo equívoco é repetido
em A poesia completa, obra organizada por Rutzkaya Queiroz dos Reis: “A Ch. F., filho de um
proscrito” é tratado como uma tradução, utilizando o mesmo relato de Raimundo Magalhães
Júnior242, sem atentar para o fato de que ele tratava de outro texto. Massa, portanto, estava
correto em não incluir este texto em sua lista.
“A Ch. F., filho de um proscrito” é um pequeno poema, de quatro estrofes em versos
alexandrinos clássicos, que Machado escreve e publica em francês:
II est beau. Dans son front où la grâce rayonne,
II porte tout un monde embaumé, pur et gai.
La nature y étale une fraîche couronne ;
C'est la molle beauté des blanches fleurs de mai.
Au matin de son jour il ouvre sa paupière,
Où se berce en dormant son délicat esprit,
Aux baisers de l'amour, aux regards de sa mère,
240
FERREIRA, 2004, p. 203
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 113; SOUSA, 1955, p. 322.
242
ASSIS, 2009, p. 464
241
113
À tout ce qui lui parle et lui chante et lui rit.
Un charmant avenir l'attend, là-bas, peut-être,
Au couchant de ce siècle où tout parle et combat,
Qui sait ? Dans le moment où l'enfant vient de naître
L'oppression pâlit — l'ostracisme s'en va...
Eh bien ! fils de proscrit — est un cœur plein de flammes
Qui te parle penché dans ton ciel adorant :
Tu seras un croisé dons le combat des âmes ;
C'est moi qui le prédis — moi, tête de vingt ans !243
O poema acima, embora não seja uma tradução, de certo modo está em relação direta
com o trabalho do tradutor que veremos adiante. O jovem Machado, quando escreve estes
alexandrinos franceses na língua de Lamartine, está exibindo suas habilidades não só no
domínio do idioma, mas também no metro clássico francês, o que nos leva a pensar que se
Machado não traduzia alexandrinos franceses por alexandrinos em português, como no caso de
“A uma jovem árabe”, não era por não conhecer ou não ser capaz de fazê-lo, mas porque não
era este seu projeto. O poema, dedicado ao filho de um francês radicado no Rio de Janeiro,
Victor Frond, e com quem manteve contato, parece ser uma forma de mostrar aos demais que
era digno de sua companhia e que também tinha talentos a exibir.
Contudo, isso não quer dizer que Machado não tenha, de fato, traduzido um poema de
Charles Ribeyrolles. A data de 27 de janeiro de 1859 mencionada por Eliane Ferreira é, na
verdade, o dia em que um grupo de amigos se reuniu na casa de Ribeyrolles, editor do Brasil
Pitoresco em que Victor Frond trabalhou como fotógrafo e de quem também era amigo e
protetor. Segundo informações do biógrafo Raimundo Magalhães Júnior, Machado esteve
presente na celebração entre diversos franceses, dentre os quais Baptiste Louis-Garnier, que
mais tarde seria seu editor. De acordo com o relato de Magalhães Júnior, “[n]aquele dia seu
protetor e amigo Charles Ribeyrolles tomou da pena e improvisou cinco quadras, em versos
alexandrinos, com rimas cruzadas, saudando o menino que iria se chamar Charles Frond”244.
Logo abaixo do poema improvisado que recebera o título “Souvenir d’Exil”, Machado compôs
sua tradução, mantendo as rimas cruzadas e escrevendo alexandrinos clássicos corretos, no
decorrer da festa. O poema de Ribeyrolles e a tradução de Machado – que a pesquisadora
Rutzkaya Queiroz dos Reis recolhe entre os “Poemas Dispersos” sob o título “Souvenir d’Exil”
e apresenta corretamente como “Tradução de um poema de Charles Ribeyrolles” – seriam
243
244
ASSIS, 2009, p. 464
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 110
114
publicados somente quase dois anos mais tarde, em 2 de dezembro de 1860, no Courrier du
Brésil, seis meses após a morte de Ribeyrollesix.
Vejamos o poema de Ribeyrolles ao lado da tradução de Machado:
Quadro comparativo 4 – “Souvenir d’Exil” e tradução de Machado de Assis
Un enfant nous est né, dans l’exil, tête blonde,
Fleur qui s’ouvre, il est là. Qu’en ferons-nous ? Les Dieux
Autour de son berceau, guettent et font la ronde,
Chacun lui veut donner sa carte pour les cieux.
Flor a abrir entre nós, surge agora um infante;
Fronte loura a sorrir em nossa proscrição.
Os numes vêm cercá-lo em seu berço galante,
E para erguê-lo ao céu todos lhe abrem mão!
Le baptisera-t-on Romain ou Calviniste ?
Chérubin de Luther ou fils de Loyola ?
Sera-t-il Juif ou Turc, et quel saint sur la liste
Lui donnera son nom ? – C’est la règle – … Halte-là !
Mas que ele será? Calvinista ou romano?
Ou turco, ou querubim de Lutero, ou judeu?
E que santo do céu a este lírio humano,
Ao costume fiel, dará o nome seu?
Le baptême, chez nous, est le baiser des mères,
Ce long et doux regard qui nous berce en naissant ;
Nous n’aimons point le dogme aux pieuses colères,
Et nous ne suivons pas les Dieux buveurs de sang.
É o beijo das mães, entre nós... o batismo,
Esse amoroso olhar que nos embala então!
Nós não temos por dogma a fé do barbarismo
E nem numes fatais de sangue e de opressão.
Nous baptisons nos fils en toi, Liberté sainte !
Descends, âme des forts, sur ce berceau d’un jour ;
Mets au cœur tes fiertés, au front ta chaste empreinte :
Et les vieux s’iront te bénissant d’amour.
Batizamo-lo em ti, ó liberdade santa,
Alma dos bravos desce; - eis um berço infantil.
O teu signo de luz, tua altivez lhe implanta
Os velhos bendirão a tua mão viril!
Ó les petits enfants ! menez bien vos années :
Sur nos vieux os blanchis que de gerbes croîtront !
Mais gardez bien la foi, gagnez les destinées :
Le combat est devoir ; - souviens-toi, Charles Frond !
Espírito de luz – eia, marchar – avante!
Nossos ossos em pó reflorirão por dom!
Mas conservai a fé, e o futuro radiante,
Lutar é um dever; - lembra-te, Charles Frond!
Fonte: Assis (2009); Ribeyrolles (1860)
Machado de Assis ainda estava por completar 20 anos quando participou do encontro
em que fez a tradução acima. Esta tradução também não está entre as que foram coligidas por
Machado no seu primeiro volume de poesias, e não viu outra publicação a não ser as folhas do
Courrier du Brésil enquanto Machado vivia. Qual a relevância deste texto, portanto, para os
estudos machadianos? Primeiramente, temos o viés biográfico: esta tradução é um ótimo
exemplo do excelente nível de proficiência que Machado tinha no idioma ainda jovem, o que é
reforçado pelos primeiros versos que publica em francês na mesma época. Depois, percebemos
que a vontade do escritor de participar dos círculos de amizades que favorecessem sua entrada
para o mundo das letras e, igualmente, que permitissem aprimorar seus conhecimentos do
idioma. A façanha daquele dia parece ter ainda outra intenção: demonstrar aos presentes seus
dotes linguísticos e, sobretudo, literários.
Estes dotes literários nos interessam porque demonstram que, além da louvável
proficiência na língua francesa, também já demonstrava habilidade com as regras de
versificação e os alexandrinos clássicos. Machado, que mais tarde seria chamado de “príncipe
115
dos alexandrinos” por Antônio Feliciano de Castilho – autor de Escavações Poéticas e do
Tratado de Metrificação Portuguesa, obras que ajudaram a introduzir o alexandrino clássico
entre nós – e que usou o metro “elegante e magistralmente desde o seu primeiro livro”245, na
opinião de Péricles Eugênio da Silva Ramos (1959), já demonstrava saber usar com
desenvoltura o verso francês.
Quando participou da festa em que fez esta tradução Machado não era exatamente um
poeta iniciante, uma vez que já publicara mais de cinquenta poemas nos periódicos da época.
O uso do alexandrino clássico nesta tradução, contudo, é relativa novidade. Antes da tradução
de “Souvenir d’Exil” Machado empregara o metro pelo menos uma vez, no poema “O
Progresso – hino da mocidade” publicado no Correio Mercantil em 30 de novembro de 1858:
Fala mais alto, irmãos, a ardente humanidade!
Marchando a realizar uma missão moral;
E pregando uma lei, uma eterna verdade,
Do progresso a subir a mágica espiral.246
Em Crisálidas, contudo, encontramos o metro em “Versos a Corina”:
Tu nasceste de um beijo e um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;247
em “A Caridade”, de 1861:
Ela tinha no rosto uma expressão tão calma
Como o sono inocente e primeiro de uma alma
Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;248
e em “Aspiração”, de 1862, dedicado ao seu futuro cunhado, Francisco Xavier de Novaes:
Sinto que há na minh’alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;249
245
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O verso romântico e outros ensaios. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 1959, p. 44
246
ASSIS, 2009, p. 441
247
Ibid., p. 50
248
Ibid., p. 298
249
Ibid., p. 302
116
Figura 2 - Reprodução da primeira publicação de “Souvenir d’Exil”
Fonte: Assis (1860)
117
A tradução de “Souvenir d’Exil”, portanto, teria sido um dos primeiros exercícios em
verso alexandrino a ser publicado por Machado de Assis. Por todo o poema Machado segue o
mesmo esquema de rimas ABAB de Ribeyrolles em sua tradução, e a metrificação dos seus
alexandrinos clássicos está impecável: dois hemistíquios hexassilábicos, somando doze sílabas
invariavelmente, sempre terminando o primeiro hemistíquio com sílaba aguda250:
Flor / a a/brir / en/tre / NÓS,// sur/ge a/go/ra um/ in/FAN//te;
Fron/te / lou/ra a / sor/RIR// em / nos/sa / pros/cri/ÇÃO.//
Os / nu/mes /vêm / cer/ CÁ//-lo em / seu / ber/ço / ga/LAN//te,
E / pa/ra er/guê/-lo ao/ CÉU// to/dos /lhe / a/brem /MÃO!//
O que observamos na estrofe acima é observável em todo o poema: as mesmas rimas
cruzadas e os mesmos alexandrinos clássicos de “Souvenir d’Exil”. Deve-se perguntar,
contudo, com que grau sucesso Machado consegue manter o sentido do poema de Ribeyrolles,
uma vez que a forma parece adequada. “Souvenir d’Exil” (Lembrança do Exílio) é um
despretensioso poema de ocasião que trata do nascimento de Charles Frond, filho do fotógrafo
Victor Frond. A primeira quadra do poema francês anuncia a chegada do rebento que logo é
cercado por divindades que parecem disputar a adoração daquela nova alma. Seguindo essa
tendência religiosa que se impõe ao nascimento, o poeta pergunta, já na segunda estrofe, e
ecoando a pergunta da primeira – “Qu’en ferons-nous ?” – quais caminhos religiosos o jovem
deveria seguir, em qual seria batizado, dizendo ser esta a rega: é preciso que seja alguma coisa,
pois este é o costume. Mas o poeta logo se desfaz dos caminhos religiosos sugeridos a partir
das perguntas da segunda estrofe com uma enérgica interjeição – “Halte-là!” – que interrompe
a imposição de uma crença sobre o infante. Na estrofe seguinte o poeta compara,
metaforicamente, o batismo ao beijo e ao olhar da mãe que embala o bebê que acaba de nascer.
Dizendo que também não são bárbaros nem adoradores de deuses pagãos – “Et nous ne suivons
pas les Dieux buveurs de sang” – o poeta encerra a terceira estrofe sugerindo que crê no batismo,
mas num batismo que já se sugere diferente da tradição. A resposta vem na quadra seguinte,
em cujo primeiro verso o jovem é batizado não em uma denominação religiosa, mas na santa
Liberdade, e pede que as almas dos fortes – seriam os que lutaram pela liberdade e contra a
opressão? – desçam sobre o berço de Charles Frond e imprimam nele suas qualidades. Na
quadra final o poeta se dirige primeiramente a todos os infantes e, por último, a Charles Frond
com um pedido: que guardem a fé – na liberdade, certamente, pois é nela que Frond é batizado
– e lutem, pois a luta é um dever. Trata-se, portanto, de um poema que festeja a chegada de
mais uma alma que terá por obrigação lutar por um ideal iluminista. Os versos de Ribeyrolles
250
CHOCIAY, 1974, p. 125
118
são fluidos, diretos, pouco figurativos, de fácil e imediato entendimento, mesmo sob a rígida
égide do verso alexandrino, que soa muito bem aclimatado à língua francesa.
A versão de Machado de Assis é rigorosamente atenta não só ao sentido do poema de
Ribeyrolles, mas também à forma, como já dissemos, o que aumenta em muito a dificuldade da
tarefa. Não há um ponto sequer da leitura que se possa fazer do poema francês que não seja
alcançável na leitura do poema de Machado. Por outro lado, percebe-se que a dicção do
tradutor-poeta é diferente pois soa mais elevada, mais rebuscada do que o francês, o que se vê,
por exemplo, na escolha vocabular – como “numes” em vez de “deuses”, para traduzir “Dieux”,
que em nada atrapalharia o metro ou o ritmo – ou nas inversões que o poeta emprega aqui e ali
– “dará o nome seu?”, por exemplo. Vez ou outra há alguma supressão, mas em se tratando de
tradução poética é algo absolutamente natural. Citamos, por exemplo, a pergunta “Qu’en
ferons-nous?”, no segundo verso da primeira estrofe, ou o trecho “ou fils de Loyola?” do
segundo verso da segunda estrofe, que não encontram correspondentes na tradução de
Machado. Estas pequenas supressões devem lidas não só como exercícios de síntese que devem
existir para que a tradução poética seja possível, mas como indícios de operações delicadas e
soluções inteligentes e criativas para os problemas apresentados pelo ato de tradução. Por outro
lado, há momentos que poderíamos chamar, com Berman, de “zonas textuais miraculosas”,
aquelas em que o tradutor tem claro êxito em sua tarefa, como ao traduzir os versos finais “Mais
gardez bien la foi, gagnez les destinées: / Le combat est devoir; - souviens toi, Charles Frond!”
por “Mas conservai a fé, e o futuro radiante, / Lutar é um dever; - lembra-te, Charles Frond!”.
Afinal, o jovem tradutor soube recriar o poema de Ribeyrolles em nosso idioma respeitando
não só o sentido, mas a forma, as imagens, tudo o que fosse necessário para que o leitor de
língua portuguesa pudesse fruir o texto de similar maneira. A façanha é ainda maior se
considerarmos que o resultado foi alcançado tão rapidamente, no decorrer da festa, logo após
Ribeyrolles terminar os seus versos, segundo as testemunhas.
De um pequeno texto, sem grandes pretensões literárias, ou nenhuma talvez, surge um
tradutor versátil, hábil e que demonstra já ser sensível à noção de que traduzir poesia significa,
sobretudo, ter como produto outro poema que funcione como tal, o que exige soluções
independentes e criativas. Segundo Meschonnic, “[...] A fidelidade não se contenta com uma
confrontação termo a termo. Ela impõe a questão do conjunto, a da coerência interna do texto,
de sua oralidade, de sua poética como sistema de discurso.”251. Neste caso em particular, é clara
251
MESCHONNIC, 2010, p. LXIV
119
a tentativa de se equiparar ao texto-fonte não nas minúcias de sua engrenagem, mas no seu
modo de funcionamento, sucesso que não podemos negar, por mais que seja possível apontar
aqui e acolá, no “termo a termo” de que fala Meschonnic, alguns distanciamentos. Este caso
interessa ainda mais porque nele observamos um comportamento relativamente raro na seara
tradutória de Machado de Assis, que é a manutenção dos aspectos formais – metro, rima,
estrofes – do texto-fonte, algo que repetirá quando traduzir o Canto XXV do “Inferno”, mas
que é antes exceção do que procedimento padrão em sua oficina. Não acreditamos que devamos
atribuir este fato a uma deferência pelo texto-fonte ou seu autor. Ao contrário, parece ser uma
clara tentativa de demonstração de virtuosismo poético, linguístico e tradutório que poderia
garantir o ingresso do jovem poeta-tradutor num círculo restrito de pessoas que aptas a
contribuir com a sua almejada ascensão como escritor.
5.4 “O casamento do Diabo”x
Publicado em 29 de março de 1863 na Semana Ilustrada, “O casamento do Diabo” é um
caso um tanto peculiar na produção de Machado. O poema seria uma imitação de uma canção
francesa de Gustave Nadaud, “Satan Marié”. O texto, pequeno e despretensioso, é uma canção
satírica em que o Diabo, enfadado, resolve se casar. Para levar a empreitada adiante, disfarçase cortando os chifres, as unhas e o rabo. Contrariando os conselhos do narrador da canção, o
Diabo toma para si uma esposa humana que acabará por traí-lo, o que ficamos sabendo somente
ao fim, quando ao Diabo não voltam a crescer nem a cauda, nem as unhas, mas somente os
chifres.
O poema foi publicado anonimamente naquela data, e acompanhado da indicação de que
se tratava de uma “imitação do alemão”, idioma que Machado de Assis desconhecia naquele
momento – conforme ele mesmo afirma anos mais tarde em uma nota em Falenas – e do qual
não poderia, sozinho, ter traduzido ou imitado. Como Gondin da Fonseca e Jean-Michel Massa
não acreditaram na honestidade de Machado, supondo que ele imitara do francês e não do
alemão, pretendemos demonstrar aqui que há indícios que sugerem o contrário, como um texto
em alemão que pode ter servido de fonte para Machado de Assis.
Gondin da Fonseca, em Machado de Assis e o hipopótamo (1961), explica a gênese da
imitação informando que Gustave Nadaud – autor de “Satan Marié” – era o grande cancionista
da época, sendo que esta composição estava entre suas mais célebres cançonetas. Para justificar
o interesse de Machado de Assis pela cançoneta, Gondin da Fonseca escreve: “Já sabemos ser
120
o diabo um dos vários símbolos utilizados pelo Inconsciente de Machado de Assis para a
evocação da lembrança paterna. Assim, não poderia deixar de lhe ferir especialmente a atenção
a curiosíssima letra de ‘Satan Marié’”.252 A transcrição completa do texto francês da canção é
então apresentada, seguida pela avaliação de Gondin da Fonseca:
A mulher do Diabo, que lhe pôs os chifres, chamava-se Inês, exatamente como a mulher
de Francisco José de Assis, – mãe-substituta de Dom Casmurro. Levado por impulso
inconsciente, ele traduziu a poesia de Nadaud (muito mal) publicando-a na Semana
Ilustrada (Rio, 29-3-63) sem a assinar e sob o título “O casamento do Diabo (imitação
do alemão)”. Despistamento ingênuo, pois Nadaud se tornara, desde 1850, cançonetista
celebérrimo. Em todo o caso, quem desconhecesse a letra francesa ficaria na ignorância
de que a mulher do Diabo era Inês (Agnès): ele teve o cuidado de não a nomear. O
original da sua deplorável tradução foi adquirido, no Rio, pelo Sr. José Carlos de
Macedo Soares, que o conserva.253
Quando recolhe o texto no volume Dispersos de Machado de Assis, Jean-Michel Massa,
também acreditando que Machado teria induzido o público a acreditar em algo que não era
verdade ao publicar o texto como “imitação do alemão”, atribui tal comportamento ao
esnobismo de Machado:
Gustave Nadaud (1820-1893) publicou entre 1849 e 1882 um conjunto de Chansons
(Canções) às quais acrescentou, sucessivamente, novas obras. É na segunda edição, a
de 1852, que aparece pela primeira vez o Satan Marié (B.N. Paris Ye 28387). Esta
canção será reproduzida nas outras edições. Logo, este poema não foi imitado do
alemão! Por que Machado diria isso? Esnobismo ou gosto pelo embuste. Preferimos
a segunda hipótese pois as canções de Nadaud, que foi o sucessor de Béranger, deviam
ser então igualmente conhecidas na França e no Brasil.254
Talvez tivesse mais sorte no seu comentário se procurasse uma versão em alemão da
canção de Gustave Nadaud em que Machado houvesse se baseado, apostando mais na
honestidade do escritor do que no seu suposto preciosismo, nada condizente com o que se
conhece da índole de Machado. Em Machado de Assis tradutor Massa explica o seguinte a
respeito do poema:
“O casamento do diabo” é apresentado como uma “imitação do alemão”. Ora, o texto
brasileiro segue verso a verso uma obra francesa, “Satan Marié”, do cancionista
francês Gustave Nadaud. Não conseguimos explicar o que impeliu Machado de Assis
a induzir em erro o público brasileiro sugerindo um conhecimento do alemão. Nadaud
era famoso, e suas canções eram quase tão conhecidas como as de Béranger.255
252
FONSECA, Gondin da. Machado de Assis e o hipopótamo. São Paulo: Editora Fulgor, 1961, p. 63.
FONSECA, 1961, p. 64-65.
254
MASSA, 1965, p. 514. No texto-fonte : Gustave Nadaud (1820-1893) a publié de 1849 à 1882 un recueil de
Chansons qu’il a successivement enrichi d’œuvres nouvelles. C’est dans la deuxième édition, celle de 1852,
qu’apparait pour la première fois le Satan Marié (B.N. Paris Ye 28387). Cette chanson sera reproduite dans les
autres éditions. Ainsi ce poème n’est pas imité de l’allemand ! Pourquoi Machado de Assis le déclare-t-il ?
Snobisme ou goût de la supercherie. Il faut préférer la seconde hypothèse car les chansons de Nadaud, qui était le
successeur de Béranger, devaient être alors aussi connues en France qu’au Brésil.
255
MASSA, 2008, p. 27
253
121
A respeito dessa tradução, Raimundo Magalhães Júnior esclarece que a “[...] publicação
foi anônima e, na época, ninguém deve ter suspeitado de que se tratava de obra de Machado de
Assis. Nem se ficaria sabendo disso se não houvesse sido preservado o original, com a
inconfundível caligrafia de Machado de Assis”256. Consultamos uma reprodução do original,
preservado em formato digital pela Biblioteca do Senado, e verificamos que não só a caligrafia,
como a assinatura do autor ao fim do poema, cujo título é acompanhado de “imitado do
alemão”, atestam a autoria.
Figura 3 - Reprodução do manuscrito de “O casamento do diabo”
Fonte: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/140962/000586081_1.pdf?sequence=15.>.
Acesso em: 27 abr. 2017
É peculiar e digno de investigação que a cançoneta tenha sido publicada anonimamente
como “imitação do alemão” quando na verdade é uma versão bastante livre de “Satan Marié”
de Gustave Nadaud. Embora Gondin da Fonseca e Jean-Michel Massa tenham sido os primeiros
a tecer comentários a respeito do anonimato e da aparentemente falsa indicação quanto ao textofonte, é Magalhães Júnior quem apresenta dados mais sóbrios que poderão explicar a relativa
256
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 240.
122
liberdade da tradução que analisaremos em seguida e, consequentemente, a escolha do termo
“imitação” para apresentá-la. Eis a explicação do biógrafo:
Provavelmente o editor da Semana Ilustrada, o hanoveriano Henrique Fleiuss – que
naquele princípio de ano inaugurava suas oficinas próprias no largo de São Francisco
de Paula, não longe da rua do Rosário, em que tinha sua redação o Diário do Rio de
Janeiro, onde a pequena revista foi impressa de dezembro de 1860 a fevereiro de 1863
– lera aquela canção traduzida para a sua língua, em alguma publicação alemã e, como
a achara divertida, deve ter rascunhado uma tradução literal em prosa para que Machado
de Assis, ágil pena a seu serviço, a transformasse em versos. Machado, que a esta altura
não havia estudado alemão, não poderia ter escrito tal imitação sem a ajuda de seu
patrão e amigo. Fez, certamente, obra apressada, sobre um texto que era a tradução de
uma tradução.257
Henrique Fleiuss, apontado por Magalhães Júnior como colaborador neste caso, foi um
alemão que fixou residência no Rio de Janeiro, onde fundou a Semana Ilustrada em dezembro
de 1860, uma publicação simples, de apenas oito páginas, quatro de texto e outras quatro de
gravuras, que sobreviveu até 1875258. À Semana Ilustrada juntar-se-iam nomes hoje
consagrados como Joaquim Nabuco, Quintino Bocaiuva e, é claro, Machado de Assis, ora
assinando com seu próprio nome, ora sob pseudônimo. O ano de 1860 marca, inclusive, a
entrada formal de Machado de Assis para a imprensa, primeiramente no Diário do Rio de
Janeiro259 e, ao fim do ano, estreia também na Semana Ilustrada de Fleuiss, onde permaneceu
até que o periódico fosse descontinuado. Além disso, não se sabe muito do tipo de
relacionamento ou mesmo amizade que Machado possa ter estabelecido com Fleiuss. A julgar,
contudo, pelos retratos de Machado de Assis desenhados por Fleiuss e estampados na Semana
Ilustrada em novembro e dezembro de 1864, ano da publicação de Crisálidas, com e sem o
característico pince-nez, e principalmente pelo tempo em que trabalharam juntos e colaboraram
com o trabalho um do outroxi, é de se supor que houvesse algum grau de amizade entre eles.
Em 1863, ano em que saiu “O casamento do Diabo”, Machado de Assis já era autor de
dezenas de poemas publicados em periódicos, inclusive na Semana Ilustrada, alguns dos quais
seriam aproveitados no seu primeiro volume de poesia, Crisálidas.
Machado, que a biografia de Magalhães Júnior retrata como um homem modesto, correto
e completamente avesso a qualquer esnobismo, sempre foi sincero quanto ao conhecimento que
tinha de outros idiomas quando traduzia. Assim também foi descrito por Amaral Tavares em
crítica a Crisálidas publicada no Diário do Rio de Janeiro em 16 de novembro de 1864: “Se
em algum indivíduo da raça humana encarnou-se a modéstia, foi decerto em Machado de
257
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 242-243.
MASSA, 2009, p. 529.
259
Ibid., p. 242.
258
123
Assis”260. Suas traduções de Crisálidas e Falenas, por exemplo, quando feitas de obras escritas
em línguas que o autor desconhecia e utilizando o francês como língua intermediária, vêm
acompanhadas de notas explicando o procedimento adotado, como fizera com “Alpujarra”:
“Não sei como corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Cristiano
Ostrowsky”261; e depois com “Os deuses da Grécia” em tom categórico, afirmando: “Não sei
alemão; traduzi estes versos pela tradução em prosa francesa de um dos mais conceituados
intérpretes da língua de Schiller”262.
Não haveria, portanto, razão para mentir no caso de “O casamento do Diabo”, menos
ainda por esnobismo, já que o texto foi publicado anonimamente. Quanto à escolha pelo
anonimato, Magalhães Júnior explica que Machado de Assis, trabalhando como censor do
Conservatório Dramático, talvez não se sentisse confortável vendo seu nome atrelado a um
texto cômico tão extravagante. Assim, por acreditarmos na sinceridade de Machado de que se
tratava, de fato, de uma “imitação do alemão”, buscamos uma versão alemã da canção de
Nadaud, na tentativa de corroborar a hipótese de Magalhães Júnior, e encontramos uma que
satisfaz os critérios.
A versão alemã que localizamos da canção chama-se “Des Teufels Hochzeit” que, em
tradução literal, nos dá exatamente “O casamento do Diabo”, o mesmo título da versão de
Machado, enquanto o texto francês, literalmente, se traduziria como “Satã Casado”, dado que
de imediato nos deixou em alerta. Além disso, pudemos confirmar que a referência à versão
“Des Teufels Hochzeit” que encontramos no site da Bibliothèque Nationale de France fora
traduzida no século XIX, pela condessa Wilhelmine Gräfin Wickenburg-Almasy, poetisa que
viveu entre 1845 e 1890, e posteriormente musicada por Oscar Straussxii. A poetisa nascida na
Hungria foi levada à Áustria, pelo pai, ainda bem jovem, onde foi educada e começou a escrever
e publicar poesiaxiii, tendo sido particularmente ativa durante a década de 1860. As datas
coincidem, portanto, e reforçam a tese de que esta pode ter sido a versão que Fleiuss consultou
e traduziu em prosa livre para que Machado devolvesse à forma poética. Infelizmente, não
temos como comprovar de maneira irrefutável esta tese, uma vez que não encontramos
nenhuma informação a respeito das condições em que essa versão alemã foi produzida e
publicada. Vejamos o texto da tradução de Wickenburg-Almasy:
260
ASSIS, 2009, p. 648.
Ibid., p. 329.
262
Ibid., p. 364.
261
124
Des Teufels Hochzeit263
Einst wars dem Teufel verdrießlich zumut:
Zum Zeitvertreib
Will ich nun sehen, wie Buße tut,
Und nehm ein Weib!
Und hab ich mir erst Genüge getan,
Dann fang ich mein Leben von vorne an!
Satan, sieh zu!
Das Weib ist klüger als du!
Er griff zum Dolch und hieb sich schlau
Mit raschem Schnitt
Die Borsten ab und Schwanz und Klau,
Die Hörner mit!
Und blies sich selber mit vielem Geschick
Die Funken aus im sprühenden Blick.
Satan, sieh zu!
Das Weib ist klüger als du!
Dann zieht er aus voll Adel fürwahr
Und Anmut und Geist,
Und sucht nach Schönheit, nach Tugend sogar,
Doch nach Geld zumeist –
Und findet ein Mädchen, das zugleich
So jung als schön, so sittsam als reich.
Satan, sieh zu!
Das Weib ist klüger als du!
Zum Hochzeitsfest führt er am Arm
Die schöne Braut,
Zur Kirche drängt sich ein gaffender Schwarm,
Als man ihn traut.
O Mädchen, was sagst du, wenn du erkannt,
Daß du dem Teufel gereicht deine Hand?!
Satan, sieh zu!
Das Weib ist klüger als du!
Die Zeiten wanderten allgemach
Im alten Tanz,
Ihm wuchsen nicht Borsten, noch Klauen nach
Und nicht der Schwanz.
Sein Auge blieb glanzlos Jahr um Jahr,
Nur eins kam wieder: – das Hörnerpaar!
Satan, sieh zu!
Das Weib ist klüger als du!
263
NADAUD, Gustave. “Des Teufels Hochzeit”. Trad. Wilhelmine Gräfin Wickenburg-Almasy. Disponível em:
< http://gutenberg.spiegel.de/buch/-7414/79>. Acesso em: 28 nov. 2016.
125
A versão de Wickenburg-Almasy, ao contrário do poema de Machado, de fato segue
bem de perto o texto francês de Nadaud, mantendo as mesmas cinco estrofes e o esquema de
rimas ABABCCDD, e com pouquíssimas divergências semânticas, perfeitamente justificáveis
quando se trata de traduzir um texto literário. Comparemos com o texto francês, de Nadaud:
Satan Marié
Satan dit un jour : Je commence
A m'ennuyer.
Je veux, pour faire pénitence,
Me marier.
Quand j'aurai passé mon envie,
Je veux recommencer ma vie.
Satan, crois-moi.
La femme est plus fine que toi.
Avec sa dague rouge et bleue.
Il coupa tout,
Griffes et poils, cornes et queue,
Jusques au bout.
Il éteignit les étincelles
Qui jaillissaient de ses prunelles.
Satan, crois-moi,
La femme est plus fine que toi.
Il prend figure, esprit, noblesse,
Et va partout
Cherchant beauté, grâce, sagesse,
Argent surtout.
Il avise une jeune fille
Sage, bien en dot et gentille.
Satan, crois-moi,
La femme est plus fine que toi.
Avec Agnès sa fiancée
Il est uni.
La foule à l'église est pressée ;
Tout est fini.
Que va dire Agnès déplorable,
Quand elle connaîtra le diable ?
Satan, crois-moi,
La femme est plus fine que toi.
Un an, puis deux ans se passèrent ;
Ne changeait pas.
Griffes ni poils ne repoussèrent,
Ni queue, hélas !
Ses yeux restaient tristes et mornes ;
Rien ne reparut… que les cornes.
Satan, crois-moi,
126
Ta femme est plus fine que toi.264
Não sabemos o que Massa quis dizer quando afirmou que Machado de Assis segue verso
a verso o texto francês uma vez que há diversas supressões, acréscimos e alterações, embora
seja perfeitamente possível estabelecer que existe uma relação entre os textos. Vejamos o texto
de Machado:
O casamento do Diabo
(Imitação do alemão)
Satã teve um dia a ideia
De casar. Que original!
Queria mulher não feia,
Virgem corpo, alma leal.
Toma um conselho de amigo,
Não te cases, Belzebu;
Que a mulher, com ser humana,
É mais fina do que tu.
[…]
Cortou unhas, cortou rabo,
Cortou as pontas, e após
Saiu o nosso Diabo,
Como o herói dos heróis.
Toma um conselho de amigo,
Não te cases, Belzebu;
Que a mulher, com ser humana,
É mais fina do que tu.
Casar era a sua dita;
Corre por terra e por mar,
Encontrou mulher bonita
E tratou de a requestar.
Toma um conselho de amigo,
Não te cases, Belzebu;
Que a mulher, com ser humana,
É mais fina do que tu.
Ele quis, ela queria,
Puseram mão sobre mão,
E na melhor harmonia
Verificou-se a união.
264
NADAUD, Gustave. “Satan Marié”. In: NADAUD, Gustave. Chansons de Gustave Nadaud. 4 ed. Paris:
Frédéric Henry Libraire, 1862, p. 162-163.
127
Toma um conselho de amigo,
Não te cases, Belzebu;
Que a mulher, com ser humana
É mais fina do que tu.
Passou-se um ano, e ao Diabo
Não lhe cresceram por fim,
Nem as unhas, nem o rabo…
Mas as pontas, essas sim…
Toma um conselho de amigo,
Não te cases, Belzebu;
Que a mulher, com ser humana
É mais fina do que tu.265
De imediato, observamos diversas alterações que Machado faz no texto: ao contrário das
cinco estrofes originais, o texto passa a ter doze, já que Machado divide as oitavas em quadras,
separando o estribilho das demais estrofes; o esquema de rimas, consequentemente, também
muda, para ABAB nas estrofes principais, e ABCB no estribilho. A métrica também é diferente,
pois enquanto no texto francês temos, alternadamente, versos de oito e quatro sílabas, Machado
escolhe exclusivamente o verso de sete sílabas. Curiosamente, embora os esquemas de estrofes,
metro e rima sejam diferentes, o manuscrito de Machado, o poema de Nadaud e a versão alemã
têm exatamente os mesmos quarenta versos. Por outro lado, a versão publicada em A Poesia
Completa (2009) pela Edusp segue o texto estabelecido por Jean-Michel Massa em Dispersos
de Machado de Assis, que contém doze estrofes e quarenta e oito versos, indicando que o
tradutor reviu o texto antes da publicação, acrescentando-lhe uma estrofe e um estribilho que
não constam do texto francês ou alemão. Massa cita como fonte do texto que publica o número
120 da Semana Ilustrada de 29 de março de 1863266, a mesma citada pela Bibliografia de
Machado de Assis, de Galante de Sousa267. Não foi possível localizar o número no número 120
da Semana Ilustrada nos arquivos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional onde o texto
de “O casamento do diabo” foi publicado para confrontar as versões. De todo modo, essas
alterações só permitem que aceitemos a afirmação de Massa de que Machado “segue verso a
verso uma versão francesa” se adotarmos uma visão bem ampla e generalista do que significa
seguir “verso a verso”.
Quanto ao sentido, as alterações são várias também, geralmente envolvendo diversas
omissões e acréscimos. Se compararmos a primeira estrofe da versão de Machado:
265
ASSIS, 2009, p. 492-494.
MASSA, 1965, p. 174-175.
267
SOUSA, 1955, p. 370.
266
128
Satã teve um dia a ideia
De casar. Que original!
Queria mulher não feia,
Virgem corpo, alma leal.268
com o texto de Nadaud,
Satan dit un jour : Je commence
A m'ennuyer.
Je veux, pour faire pénitence,
Me marier.
Quand j'aurai passé mon envie,
Je veux recommencer ma vie.269
também fica difícil entender as afirmações de Massa a respeito dos procedimentos de Machado
quando, na verdade, pouco há de semelhante em uma e outra.
As falas em primeira pessoa no texto francês simplesmente desaparecem na versão de
Machado, que escolhe narrar tudo em terceira pessoa. Da informação original, somente a
vontade de casar-se permanece no texto imitado. Não há referência, no poema de Nadaud, ao
fato de a futura esposa precisar ser bonita, virgem ou leal. Estas são todas criações de Machado.
É somente na terceira estrofe do texto francês que descobrimos que o Diabo buscava “beauté,
grâce, sagesse, / Argent surtout” – “beleza, graça, sabedoria / Sobretudo dinheiro” –, o que mais
se aproxima do que Machado escreve. No texto de Machado a fala do Diabo também
desaparece, o que o distancia do poema francês. Se, todavia, compararmos o primeiro verso do
texto de Machado com o da versão alemã, “Einst wars dem Teufel verdrießlich zumut” – algo
como “um dia, o Diabo estava entediado e casmurro” e decide, portanto, se casar –, verifica-se
que há neste verso mais em comum com o texto de Machado, considerando-se que ambos
apresentam as mesmas omissões. Ou seja, no poema francês, Satanás é sujeito ativo, que fala
por quase toda a estrofe, enquanto no texto alemão e no de Machado a narrativa é mais distante.
Outras alterações do tipo são facilmente identificáveis por todo o poema de Machado.
Sabemos que nessa época seu francês já alcançara níveis louváveis e, a julgar pelas outras
traduções que praticou a partir do francês, não haveria motivo para se distanciar tanto do texto
de Nadaud se o tivesse lido na língua original, nem era este procedimento comum,xiv o que faz
com que a marca pessoal de Machado de Assis nessa tradução fique bastante clara. Nos trechos
reproduzidos abaixo, a concisão do poeta brasileiro é aparente. Enquanto Nadaud escreve:
Avec Agnès sa fiancée
Il est uni.
268
269
ASSIS, 2009, p. 492
NADAUD, 1862, p. 163
129
La foule à l'église est pressée ;
Tout est fini.
Que va dire Agnès déplorable,
Quand elle connaîtra le diable ?
[…]
Un an, puis deux ans se passèrent ;
Ne changeait pas.
Griffes ni poils ne repoussèrent,
Ni queue, hélas !
Ses yeux restaient tristes et mornes ;
Rien ne reparut… que les cornes.270
Machado prefere:
Ele quis, ela queria,
Puseram mão sobre mão,
E na melhor harmonia
Verificou-se a união.
[…]
Passou-se um ano, e ao Diabo
Não lhe cresceram por fim,
Nem as unhas, nem o rabo…
Mas as pontas, essas sim…271
Os versos de Machado são mais curtos, sintéticos. A personagem Agnès, esposa do
Diabo, a “Inês” de que falava Gondin da Fonseca, simplesmente desaparece no texto em
português, o tradicional casamento na igreja fica simplesmente sugerido, e a multidão se
apertando desaparece, assim como a pergunta a Agnès sobre o que pensaria se soubesse que
estava se casando com o Diabo. Mas ao verificarmos que o texto em alemão também omite o
nome “Agnès”, traduzindo somente por “bela noiva” – “Die schöne Braut”, em alemão –,
notamos mais uma aproximação entre a versão alemã e a de Machado de Assis, algo que poderia
explicar a omissão e sugerir que, ao apresentar o texto como “imitação do alemão”, Machado
estava sendo, ao que tudo indica, honesto.
A proximidade com o alemão também é visível na estrofe seguinte: no texto francês
passa-se “um ano, depois dois anos”, enquanto no poema de Machado somente um ano se passa.
No texto em alemão este verso é traduzido por “Die Zeiten wanderten allgemach”, ou “Os dias
passavam aos poucos”, o que é igualmente distante do texto francês. Além disso, Machado
elimina completamente a referência aos olhos “tristes e mornos” do Diabo, presente tanto no
texto francês quanto no alemão, que diz que “os olhos permaneceram sem brilho ano após ano”
270
271
NADAUD, 1862, p. 163
ASSIS, 2009a, p. 493-494
130
(“Sein Auge blieb glanzlos Jahr um Jahr”). Assim, parece-nos bastante provável que Machado
teve, de alguma forma, acesso ao texto alemão, e a teoria do biógrafo Magalhães Júnior sobre
a ajuda de Fleiuss intermediando a leitura do idioma parece perfeitamente plausível.
Por fim, o estribilho é dos mais afetados: enquanto no texto de Nadaud e na versão alemã
ele ocupa somente dois versos,
Satan, crois-moi,
La femme est plus fine que toi.272
Machado escolheu uma estrofe de quatro versos:
Toma um conselho de amigo,
Não te cases, Belzebu;
Que a mulher, com ser humana,
É mais fina do que tu.273
A elas acrescenta nos três primeiros versos informação que não existe no texto de Nadaud:
dirige-se a Belzebu, e não a Satanás, embora praticamente sinônimos e, evidentemente, para
facilitar a rima; aconselha-o que não se case; por fim, enfatiza o lado “humano” da mulher,
enquanto o texto francês, muito mais sucinto, simplesmente faz o alerta de que a mulher é mais
“fina” do que o Diabo.
Se Machado faz essas alterações, a versão alemã é praticamente uma tradução literal da
francesa: “Satan, sieh zu! / Das Weib ist klüger als du!” (“Satã, olhe! / A mulher é mais esperta
do que você!”). É curioso, no entanto, que Machado escolha o adjetivo “fina”, tão próximo ao
adjetivo “fine” de Nadaud, não só no significado, mas sonoramente. Não descartaremos a
possibilidade de uma coincidência, uma vez que encontramos mais semelhanças com o texto
alemão do que com o francês, como as mencionadas anteriormente, mas seria ingênuo acreditar
somente nessa possibilidade. Poder-se-ia argumentar que isso, por si só, não justifica a
predileção pelo texto alemão sobre o francês, nem podemos nos desfazer por completo da
hipótese de que Machado tinha conhecimento do texto francês enquanto escrevia sua imitação,
se considerarmos as informações que obtivemos a respeito da popularidade de Nadaud.
Após consulta na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, encontramos poucas
referências ao nome de Nadaud nos anos anteriores a “O casamento do Diabo” no Rio de
Janeiro. Em 1858, por exemplo, há anúncios da representação de Des bêtises, no Diário do Rio
de Janeiro, no Correio Mercantil e no Courrier du Brésil. Mas é importante notar que no
mesmo ano de 1858, a edição de 30 de maio do Jornal do Comércio anuncia uma
“representação extraordinária” de algumas obras, entre elas “Satan Marié”274. Esta é a única
272
NADAUD, 1862, p. 162
ASSIS, 2009, p. 492
274
Cf. CAFÉ Cantante: Salão do Paraíso. Jornal do Comércio, 30 maio 1858, p. 4.
273
131
referência a “Satan Marié” que encontramos em periódicos do Rio de Janeiro em todo o século
XIX no acervo consultado. Vale lembrar que entre os anos de 1858 e 1859 Machado colaborava
no Correio Mercantil e no Paraíba, neste mesmo ano de 1858 conheceu Charles Ribeyrolles,
de quem traduziu “Souvenir d’Exil”, além de já ser relativamente conhecido no meio
jornalístico. É de se supor, portanto, que Machado possa, de fato, ter conhecido pessoalmente
a canção de Nadaud naquela representação de 1858 ou, pelo menos, dela ouvido falar.
Contudo, devemos ressaltar ainda mais um detalhe a respeito do estribilho, detalhe um
tanto definitivo em favor da tese de que Machado produziu seu poema a partir do alemão: no
texto francês, o verso “La femme est plus fine que toi” (“A mulher é mais fina do que tu”, em
tradução literal) se repete por toda a canção, mas somente enquanto o Diabo não se casa. Uma
vez casado, esse verso, que também encerra a canção, muda de “La femme” para “Ta femme
est plus fine que toi” (“Tua mulher é mais fina do que tu”, em tradução literal). O que ocorre
no texto de Machado é um pequeno equívoco: o conselho faz sentido durante todo o poema,
mas encerrar o texto com o conselho para não se casar na última estrofe depois de o Diabo já
estar casado e traído pela mulher soa no mínimo estranho. Talvez tenha sido distração, ou talvez
o equívoco seja produto da leitura do texto alemão, que também simplesmente repete o
estribilho, “Satan, sieh zu! / Das Weib ist klüger als du!” (“Satã, olhe! / A mulher é mais esperta
do que você!”), sem alterá-lo no último verso para “Tua mulher” como no texto francês.
Devemos considerar também que a distração pode ter sido produto do texto autógrafo, que
abrevia o estribilho em “Toma um conselho, etc.”, verificável somente no manuscrito
preservado, em vez de repetir todo o trecho, embora a semelhança com o texto alemão seja uma
hipótese bastante atraente. Portanto, não seria de todo equivocado acreditar que, ao reproduzir
tal equívoco do texto da condessa, Machado nos tenha deixado a prova de que não estava
enganando o público ao apresentar o texto como “imitação do alemão”.
Machado de Assis, afinal, assim como o diabo do ditado popular, está nos detalhes. Uma
obrinha tão despretensiosa quanto esta, publicada anonimamente em um periódico há mais de
um século, teria facilmente se perdido. Há um pequeno acréscimo, finamente machadiano, no
estribilho que nos permite estabelecer um brevíssimo paralelo, embora instigante, com um
conto que publicará duas décadas mais tarde em Histórias sem data. Diz o terceiro verso do
estribilho de Machado que “a mulher, com ser humana, / É mais fina do que [o diabo]”. A
pequena frase destacada não encontra correspondente no texto francês ou alemão. Isso é
puramente Machado: ao fazer esse acréscimo, está dizendo que não é só a mulher, em sua
condição feminina, que é mais fina do que o Diabo, mas que em sua condição humana é capaz
de superá-lo nos seus ardis. A tal frase sequer se justifica por questões de rima, uma vez que
132
aparece no único verso de todo o poema que não rima com nenhum outro. Acréscimo
claramente intencional e autoral. Sendo parte do estribilho, é uma ideia que se reforça por todo
o poema. O Diabo, o pai da mentira, da enganação, mestre ardiloso, é ludibriado e chifrado pela
esposa humana.
Ora, não é este o mesmo tema que move, em igual tom de fábula, o conto “A igreja do
Diabo”? O conto começa, assim como o poema, com uma ideia do Diabo: no poema, “Satã teve
um dia a ideia / De casar”, enquanto no conto referido nos é dito que “Conta um velho
manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja”275. Em
ambos o Diabo toma suas providências e acredita ter alcançado seu objetivo, quando, na
verdade, a natureza humana, ou “a eterna contradição humana”276 nas palavras de Deus (ou de
Machado), consegue ser ainda mais imprevisível e ardilosa do que o próprio Diabo.
Evidentemente, não estamos afirmando que reescrever a cançoneta “O casamento do diabo” foi
o que motivou Machado a escrever o conto “A igreja do Diabo”, mas é inegável que a partir da
comparação entre ambos o que surge, nos detalhes, é o Machado de Assis que conhecemos,
investigador da natureza humana.
Se Meschonnic sugere que o tradutor deve fazer parte do texto, uma vez que é “[...] tanto
em suas próprias ideias de linguagem quanto no texto que deve trabalhar o tradutor, ideias essas
que ele inscreve em sua tradução tanto ou mais do que sua compreensão do texto”277, nesta
despretensiosa imitação Machado de Assis elevou a proposta a outro patamar, ampliando o
sentido do texto a ponto de se tornar algo reconhecível como tipicamente machadiano e
facilmente relacionável a uma de suas melhores obras em prosa.
Mesmo em uma imitação como esta, Machado de Assis se revela preocupado não só com
os aspectos formais do texto, reconfigurando poeticamente o que pode ter sido uma tradução
prosaica de Fleiuss, embora distante da forma poética de origem, mas com o funcionamento
autônomo do poema enquanto tal, com a manutenção geral do sentido e tema da obra, fazendo
as intervenções que julga necessárias para alcançar o efeito desejado. Igualmente importante é
notar que o Machado imitador, re-escritor ou tradutor, em seus acréscimos, deixa ver, com sua
liberdade ao imitar o texto, seja ele o francês ou o alemão, traços comuns à sua produção mais
tardia, o que nos faz pensar que mesmo textos tão despretensiosos como este podem, de fato,
275
ASSIS, Machado de. Histórias sem data. Edição crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1977, p.
57.
276
277
Ibid., p. 65.
MESCHONNIC, 2010, p. 42
133
nos mostrar que há linearidade em sua produção, que traços do Machado de Assis da maturidade
estão presentes em textos supostamente menores.
134
6. As traduções de Crisálidas
Crisálidas, de 1864, foi o livro de estreia de Machado de Assis como poeta nas letras
brasileiras. “Estreia” apenas em livro, já que uma parte dos poemas do pequeno volume já havia
sido publicada nas páginas dos jornais. Outras dezenas de poemas anteriores a Crisálidas,
publicados em periódicos entre 1854 e 1864, não foram aproveitadas pelo autor, deixando de
fora também as traduções que vimos no capítulo anterior, como “Minha Mãe”, de Cowper, e
“A uma donzela árabe”, de Lamartine. Havia ainda a falta de unidade temática nos textos que
compunham o volume, sugerindo um autor titubeante, que parecia não saber que rumo tomar.
Isso e o prefácio de tom exageradamente laudatório de Caetano Filgueiras foram alguns dos
senões do livro para a crítica da época: o título que não se justificava, já que o ineditismo das
composições ou sua estreia como poeta eram questionáveis, a falta de unidade temática e o
prefácio do amigo que exagerava demasiadamente as qualidades do conjunto278. Fabiana
Gonçalves, em De poeta a editor de poesia: a trajetória de Machado de Assis para a formação
de suas Poesias Completas (2015), faz um contraponto a essa visão explicando que
Com efeito, a maioria dos poemas coletados nas Crisálidas são inéditos ou foram
impressos pouco antes de serem enfeixados, porém, o fato de pertencerem a uma
produção recente não os preservou de reformulações pontuais ou ainda modificações
intensas.279
Jean-Michel Massa, por sua vez, sugere em A juventude de Machado de Assis que Crisálidas
levanta problemas que “[...] são numerosos e tanto mais complexos quanto esta obra, que nos
parece ter tido importância capital na carreira do escritor e corresponder a uma reflexão interior
decisiva”280. Os problemas a que Massa se refere são os mesmos: o quanto Crisálidas era, de
fato, uma estreia literária, considerando que Machado de Assis já era o autor de dezenas de
textos publicados nos diversos periódicos de então, e o questionado ineditismo das
composições, que para Massa não se justifica por completo já que “[...] quase metade de
Crisálidas é de obras inéditas”281 enquanto os demais poemas eram publicações de recente data.
Na avaliação de Lucia Miguel Pereira (1949), “[...] precedendo de pouco a morte de Gonçalves
Dias, e de muito a estreia de Castro Alves, Crisálidas aparecia no meio de um silêncio das
278
Cf. LEITÃO, F.T. "Bibliografia", Crisálidas, volume de poesias de Machado de Assis. In: ASSIS, M. de (Org.
Rutzkaya Queiroz dos Reis). A poesia completa. p. 653-654
279
GONÇALVES, Fabiana. De poeta a editor de poesia: a trajetória de Machado de Assis para a edição de suas
Poesias Completas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, p. 49
280
MASSA, 2009, p. 326
281
Ibid., p. 327
135
grandes vozes poéticas, o que lhe deu maior ressonância ao timbre indeciso”282. Não só o
relativo vácuo em que apareceu Crisálidas, mas a figura imponente que o seu autor se tornaria
certamente conferiram à obra peso maior do que conseguiria por si só, muito embora o poeta
Machado de Assis tenha se tornado vítima do prosador Machado de Assis, como bem colocou
Manuel Bandeira283, para quem Machado, como poeta, não se salvaria com Crisálidas ou
Falenas, em cujo lirismo o crítico via o comedimento sentimental típico de Machado, ou
mesmo com Americanas284.
Das vinte e nove composições do volume – praticamente todas posteriores a 1860xv –
seis são textos traduzidos/recriados. Segundo Amparo, ao reunir os poemas para Crisálidas,
Machado de Assis
[...] optaria pela tradução de poemas de autores consagrados, principalmente
franceses, recolheria outras composições que escrevera sob pseudônimo e selecionaria
poemas recentes, muitos deles declamados publicamente nos saraus, em datas
especiais, ou no teatro. Por essas escolhas, percebe-se que o autor elegeu os poemas
que contavam com o aval prévio do público e que, por isso, antecipavam a recepção
crítica posterior que alcançariam285.
As composições, contudo, falham em dar unidade ao volume por não haver um tema central
que sirva de fio condutor, apesar do rigor empregado na seleção das obras que compuseram o
volume, na opinião de Raimundo Magalhães Júnior286. Jean-Michel Massa foi de mesma
opinião, considerando que não era possível classificar cronologicamente, nem agrupando pela
natureza dos temas ou qualquer afinidade estética ou métrica as composições de Crisálidas287.
Apesar disso Massa, que sugeriu rigor empregado na escolha das obras, entendia ter havido
critério estético nas escolhas de Machado de Assis, figurando no livro apenas as peças
consideradas de qualidade pelo autor, dignas de serem confrontadas pela posteridade, ao menos
na visão do autor naquele momento288. Em The poetry of Machado de Assis, um dos poucos
estudos dedicados exclusivamente à produção poética de Machado de Assis, Ishimatsu
igualmente avalia que “Machado escolheu os poemas de Crisálidas com muito cuidado,
omitindo a maior parte dos seus primeiros poemas (de antes de 1860) porque não estava
282
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira,
1949, p. 93
283
BANDEIRA, Manuel. “O poeta”. In: ASSIS, 1997, vol. 3, p. 11
284
Ibid., p. 12
285
AMPARO, 2008, p. 65
286
MAGALHÃES JÚNIOR, 2008, vol. 1, p. 359
287
MASSA, 2009, p. 334
288
Ibid., p. 329
136
satisfeito com eles”289. A autora também afirma que apesar de Machado de Assis ter ignorado
praticamente toda sua produção anterior à década de 1860, há pouca diferença entre os poemas
que apareceram em Crisálidas e as suas primeiras produções, seja na temática, seja na forma
da versificação. Cláudio Murilo Leal, autor de O círculo virtuoso: a poesia de Machado de
Assis (2008) é de opinião bastante similar, circunscrevendo tanto Crisálidas, quanto Falenas e
Americanas no âmbito de um romantismo comedido com tendências classicizantes, dando um
tratamento sóbrio aos temas de amor, sociais e mesmo os indianistas290. Ambos concordam até
quanto a uma das maiores realizações de Crisálidas, “No Limiar”, poema em terza rima, metro
incomum entre os românticos, que Leal considera ser de “qualidade excepcional”291, enquanto
Ishimatsu afirma ser este o único poema verdadeiramente machadiano do volume, no qual
Machado “[...] utilizou alegorias para lidar com motivos presentes no livro, como esperança e
desilusão”292. Evidentemente, Ishimatsu considera “verdadeiramente machadiano” aquilo que
lembra o autor da chamada “maturidade”, algo com o que não concordamos necessariamente
porque sugere uma diminuição desnecessária da produção da juventude, que foi fundamental
para que Machado se tornasse o que se tornou. No entanto, no posfácio – que, aliás, serve de
contrapeso ao prefácio exagerado de Caetano Filgueiras – Machado de Assis admite a pressa
com que o volume foi composto: “Faltou-me o tempo para coligir e corrigir muitos deles, filhos
das primeiras incertezas”293, assim como deixa a marca indelével de seu trabalho como crítico
de seus próprios poemas, lembrando que para o pequeno volume de textos, embora tenha
coligido alguns que já haviam sido publicados anteriormente, não o fez sem que antes fossem
alterados para dar a eles a melhor feição possível.
Mas o nosso interesse em Crisálidas recai sobre as traduções que fazem parte do
volume. O senso crítico do jovem Machado de Assis o fez preferir algumas de suas traduções
mais recentes aos versos que compusera alguns anos antes, implicando certa importância que o
poeta-tradutor conferia tanto ao trabalho de tradução poética, quanto à percepção de seu
desenvolvimento enquanto escritor, preferindo os trabalhos de data mais recente.
De fato, somente duas traduções posteriores a 1860 não aparecem em Crisálidasxvi:
“Souvenirs d’Exil”, de 1860, tradução de um poema de ocasião de Charles Ribeyrolles
289
ISHIMATSU, 1984, p. 49, tradução nossa. No original: “Machado selected the poems for Crisálidas with great
care, omitting most of his early (pre-1860) poems because he was not satisfied with them”.
290
LEAL, Cláudio Murilo. O círculo virtuoso: a poesia de Machado de Assis. Brasília: Ludens, 2008, p. 70-71
291
Ibid., p. 71
292
ISHIMATSU, Op. Cit., p. 65, tradução nossa. No texto-fonte: “utilized allegory in dealing with the motifs that
run throughout the book, hope and disillusionment”.
293
ASSIS, 2009, p. 326
137
composto e traduzido no decorrer de uma festa, e “O casamento do diabo”, de 1863 que, como
vimos anteriormente, foi possivelmente um trabalho alimentar, cuja iniciativa provavelmente
não partiu de Machado de Assis. É fácil entender por que estas traduções não foram incluídas,
já que não foram um trabalho de interesse intelectual do poeta-tradutor, mas um divertimento,
no primeiro caso, e possivelmente parte de seu ofício, no segundo que, aliás, em nada combina
com os poemas que entraram no livro. Além disso, não são textos de autores de grande
relevância para a tradição literária.
Para Ishimatsu, “[a]s seis traduções de Crisálidas interessam mais pelo que revelam da
cultura literária que Machado assimilara até 1864 do que seu valor literário”294. Concordaremos
com o momento em que a autora diz que as traduções revelam algo do gosto literário de
Machado de Assis naquele momento, posto que são textos que nos ajudam a perceber aquilo
que Berman chama de “horizonte do tradutor” de Machado e as suas primeiras tentativas de
diálogo com a tradição literária. Contudo, é preciso dizê-lo, Ishimatsu deixa transparecer um
leve desinteresse pelas traduções quando afirma que elas interessam mais pelo que revelam da
cultura literária do jovem Machado do que como obras que são, do que discordamos
veementemente. Há, nas traduções de Crisálidas, como veremos no momento oportuno, um
finíssimo trabalho poético e sobretudo crítico, de autores de primeira estirpe, como Heine,
Mickiewicz ou Lamartine. Cláudio Murilo Leal, por sua vez, é sucinto ao comentar as traduções
de Crisálidas, limitando-se a ressaltar que Machado “[...] alterou a métrica, geralmente
encurtando a medida do original” e que o poeta operou “numa faixa de relativa liberdade, omitiu
partes ou acrescentou algo de sua lavra ou, ainda, parafraseou claramente, como nos casos de
‘Cleópatra’ e ‘Ondina’”295, mas referenciando estudos mais detalhados a respeito, como
Machado de Assis tradutor de Jean-Michel Massa e a coletânea de poemas traduzidos Machado
de Assis & confrades de versos, de John Gledson, embora sejam estudos que também deixam
mais perguntas do que respostas. No entanto, cabe a pergunta sobre o que levou Machado de
Assis a incluir traduções em Crisálidas e, particularmente, esses textos, pergunta que
acreditamos ser tão válida quanto a que questiona os motivos que o levaram, anos mais tarde,
a excluí-los quando edita Poesias completas em 1901.
Entendemos que a escolha dessas traduções aponta para uma espécie de paideuma
machadiano, como se o jovem escritor quisesse, além de se filiar à tradição literária
294
ISHIMATSU, Op. Cit., p. 67, tradução nossa. No original: “The six translations in Crisálidas are of interest
more for what they reveal about the literary culture that Machado had assimilated by 1864 than their literary value”.
295
LEAL, 2008, p. 96
138
apresentando composições de sua autoria, deixar para os leitores os caminhos a seguir, quais
autores estudar, que modelos imitar e como imitá-los. Independentemente do grau de sucesso
estético alcançado com Crisálidas, sabemos que as escolhas de Machado de Assis sugerem
certo distanciamento da estética romântica, caminhando em direção a um estilo bastante
pessoal. O que o autor parece tentar fazer, mesmo que inconscientemente, é ultrapassar os
limites das escolas literárias, mesmo que o faça com débito a elas. A presença das traduções em
um volume de poesias autorais pode ser entendida, ao fim, como uma forma de dizer que o
trabalho tradutório de recriação de um poema estrangeiro em língua vernácula é também um
trabalho autoral, que merece figurar entre os demais trabalhos do autor como parte plenamente
integrante da obra, ampliando a visão de que a literatura ultrapassa as linhas do nacional em
direção ao universal. Lembremos que embora a prática não fosse incomum entre os poetas do
oitocentos brasileiro, o levantamento que fizemos no terceiro capítulo desta tese sugere que
Machado de Assis incluiu mais traduções entre seus poemas do que a média de seus pares, pelo
que chegou a ser criticado, e não o fez separando as traduções dos demais poemas, como outros.
Devemos considerar ainda que os autores escolhidos por Machado de Assis para traduzir
e incluir em seu primeiro volume de poesias indicam um reposicionamento crítico e ampliação
dos horizontes do escritor. Se nas primeiras traduções que estudamos no capítulo anterior
predominam trabalhos alimentares, alguns feitos por encomenda ou por um gesto de amizade,
para Crisálidas Machado certamente reservou nomes de maior envergadura: Alfred de Musset,
Heinrich Heine, Alexandre Dumas Fils estavam entre os grandes nomes da época. Há, portanto,
uma clara tentativa de se colocar entre aqueles autores e recriá-los através da tradução foi um
dos caminhos escolhidos.
Estudaremos tão minuciosamente quanto possível essas traduções a fim de observar
como se comportou o jovem Machado de Assis e, na medida do possível, como o diálogo com
outros autores reflete na sua produção autoral.
6.1 “Lucie”
O interesse de Machado de Assis pelo poeta romântico francês Alfred de Musset é
facilmente identificável, pois é registrado em diversos de seus textos. João Roberto Faria, no
ensaio “Machado de Assis, leitor de Musset” (2006), em que estuda duas comédias de Machado
139
de Assis a partir do diálogo com Musset, faz um apanhando da presença do poeta francês na
obra de Machado:
Convém lembrar que Machado foi leitor de Musset desde muito jovem, que se inspirou
nele para escrever o poema “A missão do poeta”, em 1858, aos dezenove anos; que
traduziu os versos centrais da bela elegia “Lucie”, em 1860; que escreveu poemas com
epígrafes colhidas na obra do escritor francês, como “Nunca mais!” em 1859, e “Quinze
anos”, incluído no livro Crisálidas, de 1864. Em 1869, Machado traduziu a peça Un
caprice, intitulando-a Como elas são todas, e no importante artigo “Notícia da atual
literatura brasileira — Instinto de nacionalidade”, em 1873, incluiu Musset entre os
autores estrangeiros que mais seduziam os brasileiros, nestes termos: “Os nomes que
principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico; os escritores
que se vão buscar para fazer comparações com os nossos — porque há aqui muito amor
a essas comparações — são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Victor
Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals”.296
Musset tem dupla presença no livro de estreia de Machado de Assis: na tradução de “Lucie” e
na epígrafe de “Quinze Anos”, cujos versos foram retirados do poema “Rolla”. Fabiana
Gonçalves nota que em meio às “[...] poucas epígrafes remanescentes nas Poesias completas,
estão dois versos extraídos do poema ‘Rolla’, de Alfred Musset, que foram utilizados pelo poeta
na versão impressa de ‘Quinze anos’. A referência prenuncia a filiação e, portanto, a similitude
entre as criações”297, enquanto Cláudio Murilo Leal nos dá mais detalhes sobre como o poema
de Machado dialoga com o de Musset:
O tema desse longo poema, que parece ter inspirado o nosso poeta, é o drama de um
libertino, Jacques Rolla, que dissipa sua fortuna no jogo e decide suicidar-se após a
ruína financeira. A última noite, Rolla passa-a com uma jovem que é um misto de
prostituta e anjo, na idealizada concepção romântica das pecadoras. [...]. Além da
epígrafe [...] Machado também se inspira na personagem de Musset para a construção
do caráter feminino da sua adolescente prostituída. As duas tem, coincidentemente,
quinze anos, e se apresentam na ambígua condição de inocentes que perderam o
“paraíso” ao perder a virgindade (um paraíso que se identifica com a recatada vida de
uma mulher burguesa, casada, do século XIX)298.
Se “Lúcia”, como todas as outras traduções de Crisálidas, foi eliminada na versão final
que o autor deu ao seu livro nas Poesias Completas, o mesmo não aconteceu com a presença
de Musset na epígrafe que acompanha “Quinze Anos”, insinuando que a epígrafe continuava
relevante.
A única tradução inédita quando da publicação de Crisálidas, “Lucie” não recebeu a
mesma atenção que Leal deu a “Quinze Anos” em O círculo virtuoso: a poesia de Machado de
Assis, onde não dedica às traduções de Crisálidas mais do que algumas linhas com comentários
breves. Esta tradução merece ser investigada pelo papel que lhe coube em Crisálidas e na vasta
296
FARIA, João Roberto. “Machado de Assis, leitor de Musset”. In: Teresa: revista de Literatura Brasileira [6/7].
São Paulo: Editora 34/Imprensa Oficial, 2006, p. 366
297
GONÇALVES, 2015, p. 59
298
LEAL, 2008, p. 31
140
seara de Machado de Assis, cabendo perguntar, por exemplo, qual o interesse de Machado por
“Lucie”, porque preferir este texto às suas poesias autorais, de que modo o nosso escritor decide
apresentar “Lucie” para seu público através de tradução e, principalmente, o que isso revela
sobre o seu modo de traduzir.
Traduzir “Lucie” de Alfred de Musset certamente foi um trabalho de iniciativa do
próprio Machado. Iniciativa que ficou engavetada por pelo menos quatro anos, uma vez que em
Crisálidas, de 1864, a publicação vem acompanhada da data de 1860, e não se conhece
nenhuma publicação anterior à do livro. Do que conhecemos sobre o que sobrou da biblioteca
de Machado de Assis, só há um volume de Musset, justamente o livro em que o texto de “Lucie”
foi publicado, Poésies Nouvelles: 1836-1852xvii. É certo, contudo, que Machado não utilizou
esta sua edição para traduzir “Lucie” já que ela é de 1867, posterior a Crisálidas299. Há, contudo,
edições mais antigas da mesma obra, como a de 1852, publicada pela mesma editora. Cabe
ressaltar ainda que o primeiro poema desse mesmo volume, Poésies Nouvelles: 1836-1852, é
“Rolla”, que inspirou e serviu de epígrafe para “Quinze Anos”, seguido por “Une Bonne
Fortune” e, logo depois, “Lucie”.
Para fins de análise, adotamos o texto da edição publicada pela Gallimard, com texto
estabelecido e anotado por Patrick Berthier, na edição de 1976 do volume Premières Poésies /
Poésies Nouvelles, que é o transcrito aqui. Sobre o estabelecimento do texto, em nota ao poema
“Lucie” Patrick Berthier nos informa o seguinte:
1. Esta elegia publicada na R.D.M.xviii em 01 de junho de 1835 e incluída nas P.C. xix de
1840 é uma redução, de muitas maneiras, de Saule então inédito do qual ela retoma
vários versos (cf. Le Saule, p. 131, n. I). Na edição de 1854, que é a nossa referência,
Musset removeu o mais importante destes versos duplicados, substituindo-o por duas
linhas de pontos.
2. Estes oito versos que formam a duplicata (p. 154-155) são substituídos por uma linha
de pontos a partir da edição de 1857.300
Estas notas são interessantes na medida em que indicam que o texto de “Lucie” deriva de um
outro poema de Musset, “Le Saule”. Em verdade, todo o trecho substituído por duas linhas de
pontos, que compreende nada menos que quarenta e três versos distribuídos em cinco estrofesxx,
são versos retirados daquele poema, então inédito, conforme nota Berthier. Há também alguns
299
Cf. VIANA, Glória. “Revendo a biblioteca de Machado de Assis”. In: JOBIM, J.L. (Org.) A biblioteca de
Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001. p. 257
300
MUSSET, 1976, p. 457, tradução nossa. No original: “1. Cette élégie publié dans la R.D.M le 1er juin de 1835
et incluse dans les P.C. de 1840 est une réduction, à bien des égards, du Saule alors inédit dont elle reprend de
nombreux vers (cf. Le Saule, p. 131, n. I). Dans l’édition de 1854, qui est notre référence, Musset a toutefois
supprimé le plus important de ces doublons, le remplaçant par deux lignes de points. / 2. Ces huit vers qui forment
le doublon (cf. p. 154-155) sont remplacés par une ligne de point à partir de l’édition de 1857.”
141
outros versos de “Lucie” que foram igualmente aproveitados de “Le Saule”, chegando a cerca
de cinquenta versos aproveitados no total. Paul de Musset, irmão de Alfred de Musset, em texto
biográfico que acompanha o vol. 10 de The complete writings of Alfred de Musset, explica
melhor a relação entre os textos:
Uma manhã Alfred recebeu a visita de um velho amigo de escola, chamado Astoin,
com quem mantinha um relacionamento agradável. Este jovem desejava se tornar seu
editor: veio pedir ao autor de Contes d’Espagne et d’Italie alguns versos para usar em
sua coletânea de poemas inéditos. Alfred de Musset nunca soube recusar um favor.
Deu-lhe um fragmento do Saule, que acabara de terminar. A coletânea foi publicada
em janeiro de 1831, com o título de Keepsake Américain, Morceaux Choisis de
Littérature Contemporaine (New York, Philadelphia, Paris), um pequeno volume de
362 páginas. Como Astoin era um editor novo e desconhecido, a publicação não foi
notada, e o Saule foi desperdiçado à toa. Alfred de Musset se arrependeria
posteriormente de sua liberalidade. O poema continha belezas em um estilo novo, cujo
efeito no público estava ávido por descobrir. Mais tarde, quando M. Buloz veio pedir
a ele uma contribuição para a Revue des Deux Mondes, com a regra da revista de que
ofereceria a seus leitores somente trabalhos inéditos, o Saule não pôde ser incluído.
Por fim, em 1835, Alfred desejou tratar do mesmo assunto de forma mais condensada,
e reduziu-o a uma simples elegia, o que explica porque certos versos do Saule são
repetidos em Lucie.301
Cotejamos, ainda, o texto da edição Gallimard com o da edição de 1852, publicado pela
Charpentierxxi, por entender que este está mais próximo do que Machado de Assis poderia ter
consultado para fazer sua tradução. Deve-se ressaltar que não encontramos nenhuma
divergência no texto desta edição com outras do século XIX consultadas, como a de 1867 que
Machado de Assis possuiu ou mesmo a versão que apareceu em edições das obras completas
de Musset. Para a tradução de Machado, foi adotado o texto que está na edição crítica de Poesias
completas. Vejamos os textos:
Quadro comparativo 5 – “Lúcia” e “Lucie”
Lúcia (Alfred de Musset)
Lucie
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Élégie
301
Mes chers amis, quand je mourrai,
Plantez un saule au cimetière.
MUSSET, Paul de. “Life”. In: MUSSET, Alfred de. The complete writings of Alfred de Musset. Vol 10. New
York: Privately printed for subscribers only, S/D, p. xix, tradução nossa. No original: “One morning Alfred
received a visit from an old school friend, Astoin by name, with whom he had had pleasant associations. This
young man wished to become a publisher: he came to ask the author of the Contes d'Espagne et d'ltalie for some
verses to be used in a collection of unpublished poems. Alfred de Musset never knew how to refuse a favor. He
gave him a fragment of the Saule, which he had just finished. The collection appeared in January, 1831, under the
title Keepsake Americain, Morceaux Choisis de Littérature Contemporaine (New York, Philadelphia, Paris), a
small volume of 362 pages. Astoin being a new publisher and little known, the work passed unnoticed, and the
Saule was thus despoiled to no purpose. Alfred de Musset later regretted his liberality. The poem contained
beauties in a new style, whose effect on the public he was anxious to learn. Later, when M. Buloz came to ask him
to contribute to the Revue des Deux Mondes, that magazine making it a rule to offer its readers only new works,
Saule could not be included. Eventually, in 1835, Alfred wished to treat the same subject in a more condensed
form, and reduced it to a simple elegy, which explains why certain verses of Saule are repeated in Lucie.”
142
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite, entrefechada,
A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
E tínhamos quinze anos!
Lúcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava – e tanto! –
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!
Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento – na minh’alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
Os dois signos de paz e de ventura:
Mocidade da fronte
E primavera d’alma.
A lua levantada em céu sem nuvens
Com uma onda de luz veio inundá-la;
Ela viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos lábios
E murmurou um canto.
J'aime son feuillage éploré ;
La pâleur m'en est douce et chère,
Et son ombre sera légère
À la terre où je dormirai.
Un soir, nous étions seuls, j'étais assis près d'elle ;
Elle penchait la tête, et sur son clavecin
Laissait, tout en rêvant, flotter sa blanche main.
Ce n'était qu'un murmure : on eût dit les coups d'aile
D'un zéphyr éloigné glissant sur des roseaux,
Et craignant en passant d'éveiller les oiseaux.
Les tièdes voluptés des nuits mélancoliques
Sortaient autour de nous du calice des fleurs.
Les marronniers du parc et les chênes antiques
Se berçaient doucement sous leurs rameaux en pleurs.
Nous écoutions la nuit ; la croisée entr'ouverte
Laissait venir à nous les parfums du printemps ;
Les vents étaient muets, la plaine était déserte ;
Nous étions seuls, pensifs, et nous avions quinze ans.
Je regardais Lucie. - Elle était pâle et blonde.
Jamais deux yeux plus doux n'ont du ciel le plus pur
Sondé la profondeur et réfléchi l'azur.
Sa beauté m'enivrait ; je n'aimais qu'elle au monde.
Mais je croyais l'aimer comme on aime une sœur,
Tant ce qui venait d'elle était plein de pudeur !
Nous nous tûmes longtemps ; ma main touchait la sienne.
Je regardais rêver son front triste et charmant,
Et je sentais dans l'âme, à chaque mouvement,
Combien peuvent sur nous, pour guérir toute peine,
Ces deux signes jumeaux de paix et de bonheur,
Jeunesse de visage et jeunesse de cœur.
La lune, se levant dans un ciel sans nuage,
D'un long réseau d'argent tout à coup l'inonda.
Elle vit dans mes yeux resplendir son image ;
Son sourire semblait d'un ange : elle chanta.
................................
Filha da dor, ó lânguida harmonia!
Língua que o gênio para amor creara –
E que, herdada do céu, nos deu a Itália!
Língua do coração – onde alva ideia,
— Virgem medrosa da mais leve sombra, —
Passa envolta num véu e oculta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira – o infante?
Vê-se um olhar, uma lágrima na face,
O resto é um mistério ignoto às turbas,
Como o do mar, da noite e das florestas!
Estávamos a sós e pensativos.
Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nós estremecia um eco.
Ela curvou a lânguida cabeça...
Pobre criança! – no teu seio acaso
Desdêmona gemia? Tu choravas,
E em tua boca consentias triste
Que eu depusesse estremecido beijo;
Guardou-o a tua dor ciosa e muda:
........................
........................
Fille de la douleur, harmonie ! harmonie !
Langue que pour l'amour inventa le génie !
Qui nous vins d'Italie, et qui lui vins des cieux !
Douce langue du cœur, la seule où la pensée,
Cette vierge craintive et d'une ombre offensée,
Passe en gardant son voile et sans craindre les yeux !
Qui sait ce qu'un enfant peut entendre et peut dire
Dans tes soupirs divins, nés de l'air qu'il respire,
Tristes comme son cœur et doux comme sa voix ?
On surprend un regard, une larme qui coule ;
Le reste est un mystère ignoré de la foule,
Comme celui des flots, de la nuit et des bois !
Nous étions seuls, pensifs ; je regardais Lucie.
L'écho de sa romance en nous semblait frémir.
Elle appuya sur moi sa tête appesantie.
Sentais-tu dans ton cœur Desdemona gémir,
Pauvre enfant ? Tu pleurais ; sur ta bouche adorée
Tu laissas tristement mes lèvres se poser,
Et ce fut ta douleur qui reçut mon baiser.
Telle je t'embrassai, froide et décolorée,
143
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste à campa;
Foi, como a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.
Telle, deux mois après, tu fus mise au tombeau ;
Telle, ô ma chaste fleur ! tu t'es évanouie.
Ta mort fut un sourire aussi doux que ta vie,
Et tu fus rapportée à Dieu dans ton berceau.
Doces mistérios do singelo teto
Onde a inocência habita;
Cantos, sonhos de amor, gozos de infante,
E tu, fascinação doce e invencível,
Que à porta já de Margarida, — o Fausto
Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros anos,
Onde parais agora?
Paz à tua alma, pálida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não acordará sob os teus dedos!
Doux mystère du toit que l'innocence habite,
Chansons, rêves d'amour, rires, propos d'enfant,
Et toi, charme inconnu dont rien ne se défend,
Qui fis hésiter Faust au seuil de Marguerite,
Candeur des premiers jours, qu'êtes-vous devenus ?
Paix profonde à ton âme, enfant ! à ta mémoire !
Adieu ! ta blanche main sur le clavier d'ivoire,
Durant les nuits d'été, ne voltigera plus...
Mes chers amis, quand je mourrai,
Plantez un saule au cimetière.
J'aime son feuillage éploré ;
La pâleur m'en est douce et chère,
Et son ombre sera légère
À la terre où je dormirai.
Fonte: Assis (1976); Musset (1976)
“Lucie” é um poema escrito em nove estrofes, das quais sete de tamanho irregular, com
versos alexandrinos clássicos, rimados, e mais duas sextilhas, em octossílabos rimados, que
abrem e encerram o poema. Como vimos, há também duas linhas pontilhadas, que substituem
as estrofes aproveitadas na íntegra de “Le Saule”, do qual Musset também aproveitou outros
versos que permaneceram na versão de “Lucie” que Machado traduziu.
De imediato, o poema apresenta algumas questões quanto às vozes presentes no texto:
nas sextilhas que abrem e encerram o poema em francês temos uma voz que se dirige aos
amigos, com o pedido peculiar de que plantem um salgueiro em seu túmulo. Essas sextilhas em
verdade são consideravelmente significativas. Para justificar nossa afirmação utilizaremos um
pouco da leitura que Gilles Castagnés fez de “Lucie” no livro Les femmes et l'esthétique de la
féminité dans l'œuvre d'Alfred de Musset, trabalho oriundo de sua tese de doutorado, publicado
em 2004. As sextilhas, à primeira vista, guardam pouca ou nenhuma relação com a história de
dois jovens de quinze anos, um rapaz, também narrador do poema, e uma moça, por quem diz
nutrir um amor fraternal. Da mesma forma, os versos excluídos aprofundam e dão maior
coerência à presença de Desdêmona, versos que também trazem outros personagens da peça
shakespeariana, como Iago e Cassius. Contudo, como estes versos foram excluídos por Musset
e consequentemente não traduzidos por Machado, não serão incluídos em nossa leitura.
144
Nas sextilhas há imagens que servem como anúncio do tema de que o poema irá tratar:
o salgueiro, imagem central no pedido que o eu-lírico faz aos amigos, é o elo que une as
sextilhas, a tragédia Othello e o destino de Desdêmona, personagem que aparecerá no poema,
e a presença da morte que paira sobre as personagens. O poema dá a entender que a ligação que
Musset estabelece com o texto shakespeariano está mais intimamente ligada à opera de Rossini,
mas basta irmos à cena III do ato IV de Othello, the moor of Venice de Shakespeare para
encontrarmos a seguinte fala de Desdêmona:
DESDEMONA.My mother had a maid call’d Barbary:
She was in love, and he she lov’d prov’d mad
And did forsake her. She had a song of ‘willow’;
An old thing ’twas, but it express’d her fortune,
And she died singing it. That song to-night
Will not go from my mind; I have much to do,
But to go hang my head all at one side,
And sing it like poor Barbary. Prithee, dispatch.
(Ato IV, Cena III, 26-33, grifo nosso)302
“Willow” é o nome inglês para o salgueiro que o eu-lírico pede aos seus amigos que
plantem. Assim como a empregada da mãe de Desdêmona morrerá cantando a “song of
‘willow’”, canção que expressava sua sorte, agora Desdêmona também cantará a canção nos
versos seguintes como prenúncio de seu destino equivalente. Vê-se assim que a presença da
sextilha se justifica, mas com a dependência desta leitura apresentada. Castagnès (2004) vê
Desdêmona como uma espécie de arquétipo de figura feminina sobre o qual Musset cria sua
personagem. Assim, a presença de Desdêmona prenuncia a morte de Lúcia que, por sua vez,
anuncia a morte do eu-lírico que é, no entendimento do crítico, o tema principal do poema303.
Se formos ao texto do libreto da ópera de Rossini, a ligação entre as sextilhas e a figura
de Desdêmona ficará ainda mais clara. No ato III da ópera italiana encontramos a balada cantada
por Desdêmona:
Assisa a’ piè d’un salice.
immersa nel dolore,
gemea trafitta Isaura
dal più crudele amore:
L’aura tra i rami flebile
ne ripeteva il suon.
I ruscelletti limpidi,
a’ caldi suoi sospiri,
il mormorio mesceano
302
SHAKESPEARE, Willian. The complete works of William Shakespeare. Glasgow: Harper Collins Publishers,
1994, p. 1201
303
CASTAGNÈS, Gilles. Les femmes et l’esthétique de la féminité dans l’œuvre d’Alfred de Musset. Bern: Peter
Lang S/A, 2004, p. 58
145
de’ lor diversi giri;
L’aura fra i rami flebile
ne ripeteva il suon.
Salce d'amor delizia!
Ombra pietosa appresta
di mie sciagure immemore,
all’urna mia funesta.
né più ripeta l’aura
de’ miei lamenti il suon304
Nos versos finais da balada cantada por Desdêmona destacados acima há o mesmo
pedido que a voz das sextilhas faz aos amigos, um salgueiro ao pé de seu túmulo para sombreálo. Torna-se claro, portanto, que a presença das sextilhas, apesar de aparentemente
desconectadas do resto devido à voz que não se identifica de imediato com o restante do poema,
está em relação direta com a presença de Desdêmona no poema e, consequentemente, com o
destino de Lucie.
Na cena que abre o poema de Musset a presença sugerida da música também pode ser
correlacionada à peça de Shakespeare e à ópera de Rossini. Lucie, como Desdêmona, está com
a cabeça inclinada. A voz que narra a primeira estrofe identifica-se com a voz das sextilhas,
mas o momento agora é outro. O jovem, que fala utilizando o “imparfait” francês, distancia-se
da voz das sextilhas, que usa imperativos, com pedidos que apontam para o futuro. Descobrimos
que os dois, o jovem que narra e Lucie, estavam a sós e ela toca em seu cravo uma música
suave, como um murmúrio. Somos então apresentados a diversos elementos que apontam para
a morte da jovem: a cabeça que pende como a de Desdêmona, os adjetivos sugerindo uma
atmosfera melancólica, com a natureza inerte – “Les vents étaient muets ; la pleine était déserte
;” –, os ramos das árvores parecendo chorar – “leurs rameaux en pleurs”.
A estrofe seguinte é uma descrição de Lucie, tanto física, quanto da impressão que a
beleza da jovem causa no rapaz, evocando nele um sentimento de amor, mas um amor fraternal
em virtude do pudor que a menina desperta – “Mais je croyais l’aimer comme on aime une sœur
/ Tant ce qui venait d’elle était plein de pudeur!”. O amor, que era fraternal, aos poucos cede
espaço para as investidas do rapaz – “ma main touchait la sienne” – enquanto Lucie, que antes
só tocava, agora canta. O poema é então interrompido pelas duas linhas pontilhadas que omitem
as estrofes outrora aproveitadas de “Le Saule”.
304
ROSSINI, Gioachino. Otello: tragedia lirica in tre atti. Londres: Universal Int’l, 2004. 2 CDs.2004, p. 68, grifo
nosso.
146
A próxima estrofe traz referências à música e à Itália, dando a entender que a
personagem Desdêmona – já sugerida anteriormente e que aparecerá em seguida – é a da ópera
de Rossini. O gênio, diz o rapaz, foi um presente dos céus à moça, mas aos demais veio da
Itália, referindo-se à ópera. Os quatro versos finais desta estrofe apresentam certa dificuldade
pois sugerem que há uma terceira voz, diferente da do rapaz que vem falando até agora, uma
vez que esta voz parece se referir ao rapaz em terceira pessoa: “Qui sait ce qu’un enfant peut
entendre et peut dire”. Todavia, o comentário do crítico Jean-Pierre Richard no capítulo
dedicado a Musset em Études sur le romantisme (1970) talvez jogue alguma luz sobre o método
do poeta:
Essa dualidade, no entanto, atinge seu aspecto mais interessante quando não afeta
mais elementos isoláveis ou reciprocamente opostos da personalidade, mas seu
conjunto, sua presença global que parece ter o poder de se destacar psiquicamente, às
vezes até objetivamente, em bloco, do que é. Sentir-se isolado de si mesmo, vendo-se
falar ou agir de fora, como alguém faria por um estranho: essa é uma das
originalidades da vida da consciência de Musset.305
Se seguirmos a orientação do crítico, este distanciamento é uma das técnicas de Musset para
que o eu-lírico se observe objetivamente a partir de um descolamento psíquico. O “enfant” desta
estrofe, portanto, seria o próprio rapaz que fala de si mesmo no passado de maneira objetiva,
distanciada, utilizando a terceira pessoa.
Este distanciamento, contudo, logo se desfaz e o eu-lírico volta a falar em primeira
pessoa na estrofe seguinte. Lucie aparentemente não está mais tocando e cantando – “L’écho
de sa romance en nous semblait frémir” –, mas apoiando sua cabeça sobre o rapaz. Surge então
a comparação com a personagem shakespeariana, quando o rapaz pergunta a Lucie se ela sente
Desdêmona gemer em seu coração. Desfalecendo, Lucie se deixa beijar nos lábios pelo rapaz
e, na mesma estrofe, morre.
A estrofe seguinte novamente coloca algumas questões que sugerem o procedimento de
distanciamento adotado antes. Até então, Lucie era tratada em terceira pessoa – “Je regardais
Lucie” / “Elle appuya sur moi sa tête appesantie”. Agora, parece ser tratada em segunda pessoa,
ora por “tu”, que sugere intimidade, ora por “vous”, que conota um distanciamento formal: “Et
toi, charme inconnu dont rien ne se défend / Qui fis hésiter Faust au seuil de Marguerite, /
Candeur des premiers jours, qu’êtes-vous devenus ?”. O eu-lírico alterna, ainda, entre o mais
305
RICHARD, 1970, p. 207, tradução nossa. No original: “Cette dualité atteint pourtant à son aspect le plus
intéressant lorsqu’elle affecte non plus des éléments isolables, ou réciproquement opposables de la personnalité,
mais son ensemble, sa présence globale qu’elle semble avoir alors pouvoir de détacher psychiquement, parfois
même objectivement, en bloc, de ce qu’elle est. Se sentir coupé de soi, se regarder parler ou agir du dehors, comme
on le ferait pour un étranger : c’est l’une des originalités de la vie de la conscience de Musset”.
147
formal “passé simple” de “fis” e o mais corriqueiro “passé composé”, “êtes-vous devenus?”. A
voz que narra o poema se questiona a respeito do desaparecimento de Lucie, ressaltando
novamente a candura da jovem com outra comparação com um clássico literário, a história de
Fausto, rememorando a cena em que o personagem da peça de Goethe, entrando nos aposentos
de Margarida, hesita em corrompê-la.
O último adeus vem no dístico que encerra a história entre o jovem e Lucie no poema,
lembrando que a mão de Lucie não mais flutuará sobre o teclado de marfim, antes da sextilha
que abre o poema se repetir.
Se observarmos primeiramente os aspectos formais do poema de Musset e da tradução
de Machado, de imediato notamos que Machado de Assis não traduz a sextilha inicial, que se
repete ao fim do poema. Mas a omissão é mais longa, e provavelmente não por desejo do
tradutor: nada menos do que quarenta e três versos distribuídos em cinco estrofes – aqueles de
“Le Saule”, como vimos – estão omitidos no espaço ocupado por duas linhas pontilhadas na
edição de 1852. Estes versos omitidos na edição de 1852 de Poésies Nouvelles: 1836-1852,
editado pela Charpentier, e na que Machado possuiu, de 1867, estão na edição Poésies
Complètes de Alfred de Musset da mesma editora Charpentier, de 1849.
Há, portanto, uma importante parte do poema não traduzida, seja por opção de Machado
de Assis, como parece ter sido o caso da sextilha que abre e encerra o poema, seja por
desconhecimento, hipótese mais provável no caso dos versos centrais. Afinal, é quase certo que
nosso escritor não conheceu a versão completa do poema, visto que nossa pesquisa nos levou a
acreditar que várias das edições da época que encontramos excluíam os versos centrais das
cinco estrofes. A dúvida sobre a exclusão das sextilhas, parte importante do poema, permanece
e merece investigação.
Machado de Assis, ao não traduzir os versos da sextilha, priva o leitor da leitura que
apresentamos anteriormente, mas duvidamos que ele não o tenha feito conscientemente. Ao
retirar a sextilha, desvia o foco do eu-lírico narrador – que ao fim identifica-se com o próprio
Musset, que teve, de fato, um salgueiro plantado no seu túmulo – o que confere maior relevância
à personagem feminina, Lúcia, que é quem dá título ao poema. Pensando no conjunto de peças
que compõem Crisálidas, e particularmente na falta de unidade do volume, pode-se sugerir que,
da forma como Machado traduziu, ao omitir a sextilha ele acaba criando um elo mais forte entre
“Lúcia” e outra peça que a antecede e com a qual mantém uma relação mais íntima do que
148
aparenta, “Quinze Anos”, relação que teria ficado mais evidente se os poemas estivessem
organizados de maneira diferente no volume, mais próximos um do outro, por exemplo.
Acreditamos não poder julgar Machado de Assis por não ter traduzido os versos centrais
do poema, uma vez que é muito provável que ele não os tenha conhecido. De qualquer modo,
é possível verificar que Machado de Assis, semanticamente, seguiu bem de perto o poema de
Musset, as maiores intervenções ficando restritas ao aspecto formal, na apresentação da métrica
e da rima. Quanto ao metro, Musset escreve em alexandrinos clássicos, metro bem aclimatado
na língua francesa, como vemos no verso a seguir
Nous écoutions la nuit ; la croisée entr'ouverte306
Machado, ao optar por estrofes heterométricas, adota a combinação de decassílabos italianos e
hexassílabos, perfeitamente de acordo com os princípios de harmonização acentual307,
demonstrando predileção por traduzir formas clássicas da literatura estrangeira por formas
clássicas da literatura de língua portuguesa, como no exemplo a seguir:
Ouvíamos a noite, entre-fechada,
A rasgada janela.308
Muito embora, à primeira vista, as estrofes de Musset sejam de tamanhos irregulares, é
possível, através da disposição das rimas, dividi-las em quadras com rimas ora interpoladas,
ora alternadas, que vez ou outra são intercaladas por dísticos:
Un soir, nous étions seuls, j'étais assis près d'elle ;
Elle penchait la tête, et sur son clavecin
Laissait, tout en rêvant, flotter sa blanche main.
Ce n'était qu'un murmure : on eût dit les coups d'aile
D'un zéphyr éloigné glissant sur des roseaux,
Et craignant en passant d'éveiller les oiseaux.309
Machado, ao abandonar por inteiro as rimas finais preferindo versos brancos, omite este aspecto
do poema de Musset o que, em contrapartida, deve ter conferido maior liberdade ao tradutor
para estar atento ao aspecto semântico. O tradutor, portanto, ao não deixar seu trabalho se pautar
somente pela recriação dos aspectos formais em detrimento do conteúdo, talvez estivesse
dizendo que cabe a ele escolher o que deseja para o seu poema:
306
MUSSET, Alfred de. Premières Poésies / Poésies nouvelles. Édition présentée, établie et annotée par Patrick
Berthier. Paris: Gallimard, 1976, p. 240-242
307
Cf. CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974. pp. 154-160
308
ASSIS, Machado de. Poesias completas. Ed. Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1976, p. 175176
309
MUSSET, 1976, p. 240
149
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;310
É fácil verificar ainda que ocorrem algumas omissões na tradução de Machado, em geral
obedecendo ao que parece ser uma tendência a eliminar passagens que, em sua provável
opinião, pouco ou nada acrescentariam ao texto traduzido. Logo no primeiro verso da primeira
estrofe, por exemplo, o segundo hemistíquio do verso de Musset – “Un soir, nous étions seuls,
j’étais assis près d'elle ;”– simplesmente desaparece na tradução de Machado: “Nós estávamos
sós; era de noite;”. Certamente haveria soluções possíveis que evitassem a omissão. Mas se nos
perguntarmos o quanto aquele hemistíquio adiciona ao poema, ou o quanto o mesmo seria
imprescindível, somos levados a acreditar que pouco. “Eu estava sentado ao lado dela” é
informação que se pode supor, ou imaginar, considerando que estavam a sós à noite. Mais uma
omissão, na mesma estrofe, sugere o mesmo procedimento: “Je regardais Lucie. - Elle était pâle
et blonde.” é traduzido simplesmente por “Lúcia era loura e pálida”, omitindo todo o primeiro
hemistíquio desta vez. Ora, se o poeta diz que “Lúcia era loura e pálida” é porque ele a viu.
Então, “Je regardais Lucie” (“Eu olhava para Lucie”, em tradução literal) não parece
indispensável.
Pode-se, todavia, argumentar o contrário e dizer que o hemistíquio omitido reforça a
sensação de admiração que o poeta sentia por Lucie, mas isto não parece ter sido relevante para
o tradutor. A mesma estrofe ainda terá a terceira das quatro grandes omissões do poema, no seu
último verso: “Sa beauté m’enivrait; je n’aimais qu’elle au monde”. Ao traduzir o verso de
Musset por “Eu me perdia na beleza dela” Machado de Assis omite todo o segundo hemistíquio
e, consequentemente, a informação de que o poeta não amava a mais ninguém no mundo. Do
primeiro hemistíquio do mesmo verso, devemos considerar ainda a escolha de “me perdia” para
traduzir “m’enivrait” (“embriagava-me”, em tradução literal). Se por um lado a escolha de
Machado parece enfraquecer a imagem criada de Musset, de sensação de embriaguez por causa
da beleza da jovem, por outro devemos atentar para o fato de que Machado já incluíra a
“embriaguez” duas vezes antes no poema, na expressão “Na embriaguez da cisma”, que aparece
no terceiro e depois no penúltimo verso da primeira estrofe. Se lermos “cisma” no sentido de
“divagação”,
310
perceberemos
ASSIS, 1976, p. 174
que
Machado,
utilizando
a
técnica
conhecida
como
150
compensaçãoxxii, já fizera o suficiente para dar ao poema a caraterística omitida na tradução
daquele hemistíquio.
Há ainda outra omissão relevante do poema de Musset implica agora todo um verso:
Qui sait ce qu’un enfant peut entendre et peut dire
Dans tes soupirs divins, nés de l’air qu’il respire,
Tristes comme son cœur et doux comme sa voix ?311
A maneira como Machado de Assis escolhe traduzir os versos acima simplesmente elimina todo
o terceiro verso de Musset no trecho citado, verso que serve para adjetivar os já adjetivados
“suspiros”.
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira – o infante?312
Os “suspiros” que já não são “divinos” na tradução de Machado, também deixam de ser “tristes
como seu coração e doces como sua voz”. Tal solução nos levou a rever o emprego de adjetivos
em todo o poema, pois Machado de Assis poderia ter feito isso em outros momentos, o que
aconteceu, embora não tenha sido sistemático nem predominante nesta tradução. Há inclusive
casos em que Machado acrescenta adjetivos onde não há no texto de Musset, como que para
compensar os omitidos, a exemplo do verso “Guardou-o [o beijo] tua dor ciosa e muda”, que
traduz o verso “Et ce fut ta douleur qui reçut mon baiser” de Musset.
Há também outro verso não traduzido por Machado, desta vez na última estrofe e,
novamente, parece que o tradutor não considerou que o verso fosse relevante ou imprescindível
para sua tradução. Eis o trecho, em que destacamos em itálico o verso omitido:
Telle je t’embrassai, froide et décolorée,
Telle, deux mois après, tu fus mise au tombeau ;
Telle, ô ma chaste fleur ! tu t’es évanouie.
Ta mort fut un sourire aussi doux que ta vie,
Et tu fus rapportée à Dieu dans ton berceau.313
O verso omitido poderia ser traduzido por “Assim, ó minha casta flor! Desaparecestes.” Lucie
já estava morta, e sabemos disso dois versos antes, porque ela foi beijada “descorada e fria” e,
em seguida, sepultada – “resvalaste à campa”. Em que acrescentaria dizer que a “casta flor”
desapareceu? O poeta-tradutor Machado de Assis, quando escolhe traduzir o trecho por
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste à campa;
311
MUSSET, 1976, p. 241
ASSIS, 1976, p. 175
313
MUSSET, Op. Cit., p. 241-242
312
151
Foi, como a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.314
demonstra ser pouco afeito a informações que possam soar redundantes, favorecendo a concisão
na sua versão, um sintetismo característico que observamos, por exemplo, no início de sua
tradução de Les travailleurs de la mer e que ainda veremos outras vezes em outros textos.
Feitas essas observações à tradução de Machado, que de maneira alguma devem ser
vistas como demérito, cabe refletir sobre o que a tradução de Musset nos sugere quanto à
escolha do texto, do tema e de sua inclusão em Crisálidas. Se Machado não “transcria” Musset,
certamente recria, reencena o jogo poético do texto francês a contento. Em uma de suas
propostas para uma poética da tradução, Meschonnic sugere: “Se a tradução de um texto é
estruturalmente concebida como um texto, logo desempenha o papel de um texto, é a escrita de
uma leitura-escrita, aventura histórica de um sujeito. Não é transparente em relação ao
original”315. Retira-se, assim, o papel de inferioridade do texto traduzido, que é inscrito num
plano equivalente ao da elaboração do texto poético: a tradução é a escrita de uma leitura que é
leitura e escrita a um só tempo, uma leitura que se inscreve no texto, que se torna o texto agora
carregado da subjetividade do seu autor-tradutor e que, portanto, não pode ser transparente em
relação ao original. O texto traduzido, recriado ou reimaginado, ainda guarda uma íntima
relação com o texto-fonte, mas não é ele. No caso desta tradução de Machado de Assis, se a
forma escolhida é outra, se os alexandrinos clássicos são preteridos em favor de decassílabos e
hexassílabos, se há omissões e interferências nas imagens do poema, temos, contudo, poesia.
Se o poeta autor do texto-fonte trabalha com o que há de mais idiossincrático em seu idioma,
o poeta-tradutor escolheu lançar mão também do que há de mais particular no idioma de
chegada para que o seu resultado seja, acima de tudo, reconhecido como um poema.
Portanto, não há como desqualificar o trabalho de Machado de Assis ao compor “Lúcia”.
A maneira como ele traduz Musset sugere que o poeta-tradutor considerava a atividade uma
criação autônoma, paralela. As “liberdades” apontadas anteriormente estão ali para reforçar esta
ideia. Ao eliminar as sextilhas inicial e final, por exemplo, Machado se desfaz de um elemento
importante no poema mas, ao que parece, para conferir-lhe outro tom, aproximando o objeto de
reflexão mais da personagem Lúcia e menos do eu que narra o poema, afastando-o da
identificação com o próprio Musset e, consequentemente, tornando o poema mais seu do que
de Musset.
314
315
ASSIS, Op. Cit., p. 175
MESCHONNIC, 1972, p. 81
152
6.2 “A Jovem Cativa”
“Foi com alguma hesitação que eu fiz inserir no volume estes versos. Já bastava o arrojo
de traduzir a maviosa elegia de Chénier. Poderia eu conservar a grave simplicidade do
original?”316. Este é um trecho da nota de Crisálidas que acompanha a tradução de “La jeune
captive” de André Chénier. Pela primeira vez, dentre os textos publicados em livro, temos
alguma informação do tradutor, uma breve nota a respeito do seu trabalho, que nos diz ainda
que foi convencido por um amigo a “não imolar o trabalho já feito”, a quem culpa caso a poesia
não agrade. A “hesitação” e o desejo de “imolar o trabalho” denunciam que o tradutor pretendia
revê-lo, como fez tantas outras vezes, inclusive com algumas das traduções que estudaremos.
A nota é breve, mas bastante significativa. Descobrimos, por exemplo, que o tradutor
considera o texto de Chénier uma “maviosa elegia” cuja “grave simplicidade” pretendeu
“conservar”. Desenha-se de imediato um tradutor que anuncia ser seu objetivo e ideal de
fidelidade manter aspectos do texto-fonte que considera importantes. Descobrimos ainda que o
tradutor provavelmente não estava plenamente satisfeito com o resultado, já que houve “alguma
hesitação” antes de incluir a tradução no volume, hesitação vencida pela insistência de um
amigo que o convenceu a “não imolar o trabalho já feito”, algo que também sugere que o
tradutor tinha intenções de revê-lo ou excluí-lo da coletânea, o que acabou fazendo décadas
mais tarde ao editar as Poesias Completas em 1901.
Galante de Sousa informa que a tradução em verso foi publicada pela primeira vez n’A
Saudade, n. 11, de 21 de setembro de 1862, assinada “M. de A”317. A edição crítica das Poesias
completas informa que não há diferença no texto entre a primeira publicação e Crisálidas318. A
única diferença, informada por Galante de Sousa, é na datação do texto, que em Crisálidas
aparece com o ano de 1861, possivelmente o ano de composição.
A pergunta “Poderia eu conservar a grave simplicidade do original?” soa como um
convite à leitura, à análise e ao veredito do leitor, a que atenderemos com o intuito de verificar
como se sai o jovem poeta-tradutor Machado de Assis. Para nossa leitura do poema de André
Chénier utilizaremos a edição crítica de L. Becq de Fouquières, publicada pela editora
316
ASSIS, 1976, p. 214.
SOUSA, 1955, p. 349.
318
ASSIS, Op. Cit., p. 87.
317
153
Charpentier, Poésies de André Chénier, de 1872. Antes de decidirmos por esta edição,
consultamos diversas outras e não foram encontradas discrepâncias que desabonassem esta
edição, que nos pareceu mais adequada por vir acompanhada de fartas notas que foram
particularmente úteis para nossa análise. Em relação às outras edições consultadas, somente
duas divergências com esta edição foram encontradas: uma refere-se ao verso 46, que na edição
crítica, bem como na maioria das demais edições consultadas, aparece como “Et secouant le
faix de mes jours languissants” (“E sacudindo o fardo de meus dias lânguidos”), enquanto nas
edições de 1840 e 1852 da mesma editora temos “Et secouant le joug de mes jours languissants”
(“E sacudindo o jugo de meus dias lânguidos”). A edição crítica de 1872 explica, em nota, a
divergência: “Nous avons conservé le texte de la Décade.” (“Conservamos o texto da Décade”),
atribuindo a M. de Latouche, editor anterior, a responsabilidade pelo verso divergente. A única
outra divergência encontrada nas mesmas edições de 1840 e 1852, diz respeito ao verso 6, que
nessas edições aparece como “Je ne veux pas mourir encore”, que se repete no verso 42,
enquanto na edição crítica e nas demais consultadas temos “Je ne veux point mourir encore”xxiii,
mais enfático do que o outro.
Uma nota que acompanha “La Jeune Captive” em Œuvres Poétiques na edição GarnierFrères de 1883 contextualiza a obra:
A jovem cativa era uma dama Franquetot de Coigny, que havia casado com o Duque
de Fleury em 1784 e que, encarcerada em Saint-Lazare com M. de Montrond, tornase, depois do divórcio, Mme de Montrond. Montrond e Franquetot (ex-duquesa de
Fleury) foram removidos da lista de supostos conspiradores pagando uma soma de
cem louis em ouro.319
Quando a elegia “La Jeune Captive” foi escrita, Chénier estava na prisão de Saint-Lazare –
algumas edições, como a Garnier-Frères de 1889 trazem “Saint-Lazare” como epígrafe da
elegia – por conta de seu envolvimento na Revolução Francesa, onde também estava presa a
jovem mencionada na nota e que, ao que parece, inspirou a elegia: Aimée de Coigny, duquesa
de Fleury e, posteriormente, condessa de Montrond, que acabou imortalizada no poema de
Chénier. Acrescente-se a isso que Chénier compõe “La Jeune Captive”, um forte apelo à vida
que está por se encerrar cedo demais, às vésperas de sua morte por decapitação e temos uma
elegia de forte carga emocional.
319
CHÉNIER, André. Œuvres poétiques de André Chénier. [Organizada e anotada por M. Louis Moland]. Paris:
Garnier Frères, 1889, vol. 1, p. 282, tradução nossa. No original: “La jeune captive était une demoiselle Franquetot
de Coigny, qui avait épousé le duc de Fleury en 1784 et qui, incarcérée à Saint-Lazare avec M. de Montrond,
devint, après divorce, Mme de Montrond. Montrond et la citoyenne Franquetot (ex-duchesse de Fleury) furent
effacés de la liste des prétendus conspirateurs moyennant une somme de cent louis en or”.
154
Chénier talvez estivesse falando de Aimée de Coigny em “La Jeune Captive”, mas
poderia igualmente estar falando de si próprio, inconformado com a própria morte, ou de/para
todos que se encontravam em condição parecida. Se a prisão e a iminência da morte são
aspectos mais imediatamente correlacionáveis ao próprio Chénier, as abundantes notas que
acompanham a edição crítica da Charpentier apontam para outro aspecto correlacionável ao
biográfico: a erudição de Chénier, seu conhecimento de grego, latim e das obras clássicas se
traduziram em diversas alusões a obras da literatura da antiguidade clássica, aspecto que
certamente merece ser analisado na tradução de Machado de Assis.
A primeira publicação de “La Jeune Captive” se deu em dezembro de 1794, seis meses
após a morte do seu autor, primeiramente na Décade philosophiquexxiv, depois em Almanach
des Muses de l’an IV e ainda no Magasin Encyclopédique de l’an VIII320.
André Chénier foi um poeta póstumo. Sua obra só começa a ser reconhecida após seu
falecimento, e sua influência só começa a ser sentida depois da publicação dos primeiros
volumes de suas poesias a partir de 1819321. Albert Thibaudet nos informa em sua Histoire de
la littérature française (de 1789 à nos jours) (1936) que André Chénier, filho de uma grega e
nascido em Constantinopla, conhecia a literatura clássica tão bem quanto conhecia Racine e
Voltaire322. Percebe-se tal conhecimento nas diversas alusões à literatura clássica em sua obra
como um todo, assim como em “La Jeune Captive”. Mas na opinião de Thibaudet, a
contribuição de Chénier vai ainda mais longe:
a poesia de Chénier transportou para a poesia francesa o que os livros nos fazem
imaginar de mais grego, e até mesmo de mais ateniense (não exageramos seu lado
alexandrino): a medida, a graça, a melodia da vida em um bosque de oliveiras, a
música dos seres, sua passagem eternizada nas estrelas, a captura dos movimentos, de
figuras, de cenas, de humanidade, por meio das quais a poesia rivaliza com a pintura
– de maneira que a imagem dos cadernos de croquis e quadros de estudo encerram
aqui exatamente a realidade.323
320
FAGUET, Émile. André Chénier. Paris: Librarie Hachette et Cie.,1902, p. 158
TIEGHEM, Paul Van. Le romantisme dans la littérature européenne. Paris: Albin Michel, 1969, p. 342
322
THIBAUDET, Albert. Histoire de la littérature française: de 1789 à nos jours. Paris :Éditions Stock, 1936, p.
95
323
Ibid., p. 97, tradução nossa. No original: “la poésie de Chénier a transporté dans la poésie française ce que les
livres nous font imaginer de plus grec, et même de plus athénien (n’exagérons pas son côté alexandrin) : la mesure,
la grâce, la mélodie de la vie dans un bois d’oliviers, la musique des êtres, leur passage éternisé dans les stèles, la
captures des mouvements, de figures, de scènes, d’humanité, par lesquelles la poésie devient rivale de la peinture
– de sorte que l’image des carnets de croquis et des cartons d’étude serre ici exactement la réalité”.
321
155
Para Thibaudet, os quatro meses de prisão em Saint-Lazare elevaram ainda mais a poesia de
Chénier, a qual considera “voluptuosa e graciosa”, característica coroada por “La Jeune
Captive”.
Sob aspecto formal, o poema de Chénier é todo escrito em sextinas compostas de um
par de versos alexandrinos clássicos seguidos de um octossílabo, e novamente outro par de
alexandrinos clássicos e outro octossílabo, conferindo um ritmo menos monótono ao poema do
que se tivesse escrito utilizando-se somente os versos de 12 sílabas. Chénier também usa rimas:
todas as estrofes seguem o esquema AABCCB. Há variedade, portanto, mas há também unidade
nesta variedade, uma rigidez formal que reflete a inconformismo inabalável da personagem.
O poema narra, em primeira pessoa nas primeiras estrofes, os últimos momentos de uma
jovem prisioneira à beira da morte, mas que decide se não resignar à sua condição: “Quoi que
l’heure présente ait de trouble et d’ennui, / Je ne veux point mourir encore.” (“Não importa o
que o presente tenha de problemas e tédio / Ainda não quero morrer”). O poema é em primeira
pessoa, e quem fala é a própria jovem, que na segunda estrofe traz a imagem de um estoico,
contrapondo-se ao seu autocontrole e à sua firmeza com a efusão dos seus sentimentos: “Moi
je pleure et j’espère ; au noir souffle du nord / Je plie et relève ma tête” (“Eu choro e espero; ao
negro sopro do norte / Eu me curvo e levanto minha cabeça”). Se a jovem não se resigna, é
porque sabe que “S’il est des jours amers, il en est de si doux! / Hélas ! quel miel jamais n’a
laissé de dégoûts ?” (“Se há dias amargos, também há os doces! / Ai! Que mel nunca deixou
desgostos?”), ou seja, que mesmo o infortúnio presente não será perene.
A jovem, que acredita e canta sua esperança, diz não se abater diante do encarceramento:
“D’une prison sur moi les murs pèsent en vain, / J’ai les ailes de l’espérance” (“Como uma
prisão sobre mim as paredes pesam em vão, / Tenho as asas da esperança”). A figura mítica de
Filomela, transformada em rouxinol pelos deuses para escapar de seu cunhado Tereu, é
lembrada pela jovem como símbolo da luta pela liberdade: “Échappée aux réseaux de l’oiseleur
cruel, / Plus vive, plus heureuse, aux campagnes du ciel / Philomèle chante et s’élance” (“Tendo
escapado das redes do passarinheiro cruel, / mais viva, mais feliz, nas campanas do céu /
Filomela canta e voa”). É assim que a jovem se vê: alguém que não está disposta a se entregar
diante do infortúnio da morte e crê que sua vida está longe do fim – “Mon beau voyage encore
est si loin de sa fin !”; “Je ne suis qu’au printemps, je veux voir la moisson ;” (“Minha bela
jornada ainda está tão longe do seu fim!”; “Só estou na primavera, quero ver a colheita”) – e
justamente por isso ainda há muito por realizar.
156
À morte, portanto, pede que se afaste – “Ô mort ! tu peux attendre ; éloigne, éloignetoi ;/ Va consoler les cœurs que la honte, l’effroi, / Le pâle désespoir dévore” (“Ó morte! Tu
podes esperar; afasta-te, afasta-te; / Vá consolar os corações que a vergonha, o medo, / O pálido
desespero devora”) – e o motivo é o mesmo já expresso antes, ainda na primeira estrofe, um
simples “Je ne veux point mourir encore” (“Não quero morrer ainda”), que resume, em poucas
palavras, como um refrão, todo o sentimento da jovem. O pedido parece colocar um limite entre
seu desejo de viver, suas aspirações expressas na estrofe anterior e a morte que se aproxima.
O poema termina com uma outra voz, masculina, que agora se confunde com a do poeta
falando da jovem sobre quem canta e que está, também ele, “triste e cativo”. E no entanto, sua
lira acorda para lamentações da jovem – “ma lyre toutefois / S’éveillait, écoutant ces plaintes,
cette voix, / Ces vœux d’une jeune captive” (“minha lira todavia / acordava, escutando esses
lamentos, essa voz, / Esses desejos de uma jovem cativa”) – porque sabe que através destes
cantos que ele compôs a sua história e a da jovem poderá ser lembrada: “Ces chants, de ma
prison témoins harmonieux, / Feront à quelque amant des loisirs studieux / Chercher quelle fut
cette belle” (“Estes cantos, de minha prisão testemunhas harmoniosas, / Farão a algum amante
de lazeres estudiosos / Buscar quem foi esta bela”) . Há, portanto, dois motivos que implicam
nesta leitura: o adjetivo francês “captif” está no gênero masculino, e os versos que falam de sua
lira que acorda com a voz e as lamentações da jovem colocam-na numa perspectiva de terceira
pessoa.
Os versos de Chénier ainda são repletos de referências a diversas obras literárias,
principalmente da antiguidade clássica. A edição crítica de 1872 que consultamos lista diversas
referências nas notas que acompanham o texto, como Hécuba, de Eurípedes, em que Polixena
não marcha ao suplício sem antes chorar e dar o último adeus à luz do dia. Entre os outros
autores a que Chénier alude nesta elegia, conforme as notas do editor, estão nomes como o de
Homero, Tibulo, Lucrécio, Píndaro, Plutarco, Ésquilo, Racine... Enfim, há uma profusão de
referências sob a superfície do texto que o enriquecem.
Que razões teria Machado de Assis para não só traduzir esta elegia de Chénier, mas
incluí-la em Crisálidas? Primeiramente, devemos lembrar que este poema alcançou
considerável repercussão e acabou reconhecido como a obra máxima do poeta. Também era
bastante conhecido em terras brasileiras: uma busca pelo nome de André Chénier na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional retorna mais de cem ocorrências somente nos
periódicos do Rio de Janeiro na década de 1850, número que se reduz para pouco menos de
157
sessenta na década seguinte, mesmo que o número de periódicos disponíveis desta década tenha
aumentado consideravelmente em relação à década anterior.
Para traduzir Chénier, Machado toma suas liberdades que dão ao texto uma feição mais
adequada à língua portuguesa e à nossa tradição poética, conforme podemos observar lendo os
textos lado a lado:
Quadro comparativo 6 – “La jeune captive” e “A jovem cativa”
La jeune captive
L’épi naissant mûrit de la faux respecté ;
Sans crainte du pressoir, le pampre tout l’été
Boit les doux présents de l’aurore ;
Et moi, comme lui belle, et jeune comme lui, 5
Quoi que l’heure présente ait de trouble et d’ennui,
Je ne veux point mourir encore.
Qu’un stoïque aux yeux secs vole embrasser la mort,
Moi je pleure et j’espère ; au noir souffle du nord
Je plie et relève ma tête.
10
S’il est des jours amers, il en est de si doux !
Hélas ! quel miel jamais n’a laissé de dégoûts ?
Quelle mer n’a point de tempête ?
L’illusion féconde habite dans mon sein.
D’une prison sur moi les murs pèsent en vain, 15
J’ai les ailes de l’espérance ;
Échappée aux réseaux de l’oiseleur cruel,
Plus vive, plus heureuse, aux campagnes du ciel
Philomèle chante et s’élance.
Est-ce à moi de mourir ? Tranquille je m’endors, 20
Et tranquille je veille, et ma veille aux remords
Ni mon sommeil ne sont en proie.
Ma bienvenue au jour me rit dans tous les yeux ;
Sur des fronts abattus mon aspect dans ces lieux
Ranime presque de la joie.
25
Mon beau voyage encore est si loin de sa fin !
Je pars, et des ormeaux qui bordent le chemin
J’ai passé les premiers à peine.
Au banquet de la vie à peine commencé,
Un instant seulement mes lèvres ont pressé
30
La coupe en mes mains encor pleine.
Je ne suis qu’au printemps, je veux voir la moisson ;
Et comme le soleil, de saison en saison,
Je veux achever mon année.
Brillante sur ma tige et l’honneur du jardin,
Je n’ai vu luire encor que les feux du matin : 35
Je veux achever ma journée.
Ô mort ! tu peux attendre ; éloigne, éloigne-toi ;
Va consoler les cœurs que la honte, l’effroi,
A jovem cativa
— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora: morrer não quero ainda!
De olhos secos o estoico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?
Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.
Deve acaso morrer ? Tranquila durmo,
Tranquila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.
Desta bela jornada é longe o termo.
Mal começo; e dos olmos do caminho
Passei apenas os primeiros olmos.
No festim em começo da existência
Um só instante os lábios meus tocaram
A taça em minhas mãos ainda cheia.
Na primavera estou, quero a colheita
Ver ainda, e bem como o rei dos astros,
De sazão em sazão findar meu ano.
Viçosa, sobre a haste, honra das flores,
Hei visto apenas da manhã serena
Romper a luz, — quero acabar meu dia.
Morte, tu podes esperar; afasta-te!
Vai consolar os que a vergonha, o medo,
O desespero pálido devora.
Pales inda me guarda um verde abrigo,
158
Le pâle désespoir dévore.
Pour moi Palès encore a des asiles verts,
Les Amours des baisers, les Muses des concerts ; 40
Je ne veux point mourir encore.
Ainsi, triste et captif, ma lyre toutefois
S’éveillait, écoutant ces plaintes, cette voix,
Ces vœux d’une jeune captive ;
Et secouant le faix de mes jours languissants,
Aux douces lois des vers je pliai les accents
De sa bouche aimable et naïve.
45
Ces chants, de ma prison témoins harmonieux,
Feront à quelque amant des loisirs studieux
Chercher quelle fut cette belle :
50
La grâce décorait son front et ses discours,
Et, comme elle, craindront de voir finir leurs jours
Ceux qui les passeront près d’elle.
Ósculos o amor, as musas harmonias;
Afasta-te, morrer não quero ainda!” –
Assim, triste e cativa, a minha lira
Despertou escutando a voz magoada
De uma jovem cativa; e sacudindo
O peso de meus dias langorosos,
Acomodei à branda lei do verso
Os acentos da linda e ingênua boca.
Sócios meus de meu cárcere, estes cantos
Farão a quem os ler buscar solícito
Quem a cativa foi; ria-lhe a graça
Na ingênua fronte, nas palavras meigas;
De um termo à vida, há de tremer, como ela,
Quem aos seus dias for casar seus dias.
Fonte: Chénier (1872); Assis (1976)
As escolhas de Machado de Assis sugerem a liberdade criativa que o tradutor toma para
si quando decide recriar a elegia de Chénier. De imediato, quanto aos aspectos formais, vemos
que Machado escolhe os decassílabos, ora heroicos, ora sáficos, para traduzir tanto os
alexandrinos clássicos de Chénier, quanto os octossílabos. Machado também se desfaz das
rimas, preferindo os versos brancos, mas mantém a organização estrófica por todo poema, em
sextilhas. Alternar decassílabos heroicos e sáficos já havia sido feito antes por Camões, e a
escolha por decassílabos brancos para a tradução tem precedência na tradução que Bocage
deixou das Metamorfoses de Ovídio, o que reforça os matizes classicizantes da sua versão.
Sob o aspecto semântico, podemos dizer que a tradução de Machado se mantém de
acordo com a leitura que apresentamos do poema de Chénier, resguardadas as dificuldades que
a tradução poética impõe. Para Jean-Michel Massa, “Machado compõe uma versão literal e
literária” sem trair “em português a graça e a harmonia dos versos de André Chénier”, o que
consegue por ter se liberado “da férula de uma estrofe desigual e da rima esterilizante”324. Não
sabemos que sentido o crítico francês dava ao termo “literal”, mas certamente, devido à
característica da tradução de Machado de Assis, a intenção era dizer que, semanticamente, a
tradução de Machado corresponderia ao poema de Chénier, sem alterar-lhe o sentido.
Gostaríamos de destacar, por fim, que há uma diferença bem marcada na tradução de
Machado. A partir da penúltima estrofe, como vimos, no verso 42 há uma mudança de
perspectiva no poema, que deixa de ser narrado em primeira pessoa, na voz da jovem cativa,
324
MASSA, 2008, p. 75
159
para que outra voz assuma o primeiro plano e a jovem passe para a terceira pessoa. A partir do
verso 42 temos um adjetivo em gênero marcadamente masculino – “captif” – e a respeito da
jovem não temos mais a primeira, mas a terceira pessoa: “Ces vœux d’une jeune captive” no
verso 44, por exemplo, ou ainda “Et, comme elle, craindront de voir finir leurs jours / Ceux qui
les passeront près d’elle” (“E, como ela, temendo ver seus dias chegarem ao fim / Aqueles que
os passarão perto dela”), nos versos 52-53. “Ainsi, triste et captif” (“Assim, triste e cativo” é
traduzido por Machado de Assis como “Assim, triste e cativa”, trocando o gênero do adjetivo
e nos levando a outra leitura já que, no poema de Chénier quem está “triste e cativo” é o homem.
Quando Machado traduz o verso por “Assim, triste e cativa, a minha lira / Despertou escutando
a voz magoada” somos levados a concluir que quem está “triste e cativa” agora é a lira do poeta.
Percebe-se também que há outra voz porque o primeiro verso do poema de Machado é aberto
por um travessão e aspas, que são fechadas no verso “Afasta-te, não quero morrer ainda!”. Esta
característica está presente em todas as edições consultadas e, infelizmente, o fac-símile da
primeira edição de Crisálidas que consultamos só conserva as primeiras duas estrofes do
poema. Apesar dos registros de que “A jovem cativa” foi publicada pela primeira vez no n. 11
do periódico A Saudade, não conseguimos localizar esta edição do periódico para confrontar os
textos. Encontramos, todavia, outra publicação da tradução de “A jovem cativa”, de 19 de
março de 1882, no jornal A Província de Minas, e também lá está a mesma característica
apontada aqui, o que nos leva a crer que a mudança foi intencional, e muito adequada, já que
confere maior coerência e mais dramaticidade ao verso. Muito bem versado em língua francesa,
Machado foi capaz de produzir um poema muitíssimo bem cuidado e realizado, reconhecida
como tal pela crítica da épocaxxv.
Mais uma vez atendendo à sugestão de Berman de comparar o nosso objeto com outras
traduções, percebemos que a originalidade da tradução de Machado é ainda mais palpável
quando a comparamos com outras duas traduções que encontramos, como a de José Soares de
Azevedo, poeta nascido em Portugal e radicado no nordeste brasileiro onde se tornou um dos
mais ativos jovens poetas de sua época, de que conhecemos apenas as duas estrofes publicadas
em 1876 no Jornal do Recife,
Está tão longe do fim minha viagem
Que os olmos que primeiro a estrada ornam
Eu apenas passei!
No banquete da vida, a branda aragem
A taça das ledices, que se entornam
Só aos lábios cheguei.
Na primavera apenas quero a messe,
E quero como o sol, de face a face,
160
O meu anno acabar
Eu sou a rosa do jardim que cresce
E como inda p’ra mim a manhã nasce
Quero o dia findar!325
e a de 1924, do acadêmico Alberto Faria, publicada no periódico Vida Domésticaxxvi em
dezembro daquele ano:
Longe está de seu fim a minha viagem bella
Dos olmos, cujo renque a larga estrada ourella,
Sómente alguns passei.
No banquete da vida, apenas começado
Do licor transbordante ao cálice dourado,
Mal os lábios cheguei.
Na Primavera estou... Desejo ver o Outomno...
Como o sol, de sazão em sazão, ambiciono,
O meu anno acabar.
Flor, suspensa no hastil e do jardim senhora,
Inda não vi brilhar mais que os raios da aurora...
Quero o dia findar.326
Ao comparar essas traduções é possível observar o quanto a de Machado de Assis se
desprende do texto de Chénier para criar outro poema:
Desta bela jornada é longe o termo.
Mal começo; e dos olmos do caminho
Passei apenas os primeiros olmos.
No festim em começo da existência
Um só instante os lábios meus tocaram
A taça em minhas mãos ainda cheia.
Na primavera estou, quero a colheita
Ver ainda, e bem como o rei dos astros,
De sazão em sazão findar meu ano.
Viçosa, sobre a haste, honra das flores,
Hei visto apenas da manhã serena
Romper a luz, — quero acabar meu dia.
Machado de Assis
Machado é o único dos três que opta por não manter as rimas, por um verso de tamanho
constante, e por sintaxe menos direta e fluida, lançando mão de inversões sintáticas como as
encontradas na tradução de Bocage, mencionada anteriormente. Se Soares de Azevedo prefere
misturar decassílabos e hexassílabos, e Alberto Faria mantém o metro de Chénier, trocando os
octossílabos por hexassílabos, a posição adotada por Machado de Assis sugere uma consciente
325
“ASSOCIAÇÕES. Notícia biográfica do Dr. José Soares de Azevedo”. Jornal do Recife, Pernambuco, 14 jul.
1876, p. 2. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/705110/11967>. Acesso em: 15 fev. 2018
326
“PASSADO Ressurecto”. Vida domética, Ano V, nº 83, Rio de Janeiro, dez. 1924, p. 23. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/830305/3995>. Acesso em: 15 fev. 2018.
161
tomada de liberdade frente ao texto original, querendo criar um texto que seja, talvez, mais seu
do que uma reescrita de Chénier.
Voltemos, por fim, à nota que o tradutor deixou ao fim de Crisálidas. Lembremos que
foi “com alguma hesitação” que a tradução acabou incluída no volume, que deveria bastar o
“arrojo de traduzir a maviosa elegia” e que o tradutor pretendia “conservar a grave simplicidade
do original”. A tradução de Machado de Assis, bem afeita à tradição poética portuguesa, é de
fato bastante grave, e dotada de mais simplicidade do que o texto de Chénier. As variações
rítmicas surgem dos acentos alternados entre decassílabos heroicos e sáficos, estratégia rítmica
mais sutil do que alternar metros diferentes como o alexandrino clássico e os octossílabos. A
escolha pelos versos brancos dá um matiz clássico à tradução, assemelhando-se à maneira como
Bocage traduz Ovídio, por exemplo. Se o tradutor queria um texto “grave” e “simples”, o êxito
parece ter sido alcançado, o que nos diz mais a respeito do tradutor do que do texto traduzido.
Berman cita um caso que poderíamos trazer à baila para refletir sobre o motivo de Machado ter
incluído não só esta tradução de Chénier, mas todas as traduções que incluiu entre seus poemas
publicados em livro: quando “[...] autores de uma futura coletânea pediram conselho a Goethe
para a escolha dos poemas”, o único conselho que receberam foi o de “incluir também traduções
alemãs de poemas estrangeiros, primeiramente porque a poesia alemã devia ao estrangeiro o
essencial de suas formas – e isso desde suas origens –, depois porque se tratava, ao seu ver, de
criações pertencentes autenticamente à literatura nacional”327. Em vista do que vimos até aqui,
e do que continuaremos a observar mais adiante, esta visão parece ser perfeitamente aplicável
ao caso do poeta-tradutor Machado de Assis: as traduções são muito mais do que uma mera
reprodução de um texto estrangeiro. Querem ser obras que passam a pertencer à literatura
nacional.
Em verdade, é possível ver muito em comum entre Machado de Assis e André Chénier,
guardadas as devidas proporções, evidentemente. Vejamos, por exemplo, como o crítico e
biógrafo Paul Morillot descreve o poeta francês em sua biografia André Chénier, de 1894:
Se o sentimento é bastante breve em André Chénier, não é porque a imaginação
predomina. Não, apesar de todas as belas promessas da Invenção, esta não é a
qualidade dominante de André. Nele, a imaginação consiste sobretudo em tirar
proveito de um material, em adorná-lo, em enriquecê-lo, em descobrir um epíteto,
uma palavra, um detalhe, ao colocar cada uma dessas pequenas imagens em sua
verdadeira luz. Essa faculdade é rara e preciosa, mas não deve ser confundida com a
imaginação verdadeiramente criativa que sustenta e vivifica o pensamento. [...]
Portanto, não é nem por sentimento nem pela imaginação que André Chénier se
destacou; é pelo uso sábio que ele fez os recursos de sua arte. Tudo somado, e se
327
BERMAN, 2002, p. 106
162
podemos separar esses dois termos, ele é menos poeta do que artista. É reconhecido
por alguns sinais muito característicos, mesmo antes de se entrar no exame detalhado
de suas obras328
O trecho destacado acima ecoa os comentários de Lúcia Miguel Pereira e outros sobre a poesia
de Machado de Assis: “Poesia é síntese, é emoção integradora, e Machado era analista, era
dissecador”329, escreveu a biógrafa; Manuel Bandeira, por sua vez, declarou: “O lirismo de
Crisálidas e de Falenas não se destaca da poesia do tempo senão por um certo comedimento
sentimental, que era inato no homem”330. Ambos concordam que faltava a Machado o
sentimento que, quando presente, era contido. Logo, assim como Chénier, Machado não se
destacou como poeta pelo sentimento, mas pelo uso analítico, pela desenvoltura formal, pelo
bom uso que fez dos recursos de que dispunha.
André Chénier, a partir desta tradução, penetrará ainda mais na produção autoral de
Machado de Assis. Evidentemente, Chénier não é tão citado quanto Dante ou Shakespeare, mas
ainda assim é interessante notar as ocorrências do poeta francês na obra machadiana. Em 1859,
por exemplo, e pouco antes de traduzir “La jeune captive”, o nome de Chénier aparece no
“Parasita Literário”, da série de crônicas Aquarelas, publicada originalmente em O Espelho
entre setembro e outubro daquele ano. Mais de uma década depois, mais referências a Chénier
aparecerão em três contos de Machado: “Aurora sem dia”, de Histórias da Meia-Noite, e
“Quem conta um conto...”, ambos de 1873, e “Muitos anos depois”, de 1874. “Quem conta um
conto...”, aliás, é a mais significativa, pois é neste conto que Machado se reporta ao poema “A
jovem cativa” que traduzira anos antes, provavelmente de memória, deturbando sua própria
tradução e, obviamente, aproveitando o tema: “Infelizmente não há bonito sem senão, nem
prazer sem amargura. ‘Que mel não deixa um travo de veneno?’, perguntava o poeta da ‘Jovem
Cativa’, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro”331. O verso citado de memória
troca a última palavra do mesmo verso na tradução: “Que mel não deixa um travo de
328
MORILLOT, Paul. André Chénier. Paris: Lecène, Oudin et cie, 1894, p. 208-209, grifo nosso, tradução nossa.
No texto-fonte: “Si le sentiment est assez court chez André Chénier, ce n’est pas parce que l’imagination
prédomine. Non; malgré toutes les belles promesses de l’Invention, telle n’est pas la qualité dominante d'André.
Chez lui, l'imagination consiste surtout à tirer parti d’une matière, à l’orner, à l’enrichir, à découvrir une épithète,
un mot, un détail, à mettre chacun de ces petits tableaux dans leur vrai jour. Faculté rare et précieuse, mais qu’il
ne faudrait pas confondre avec l’imagination vraiment créatrice qui soutient et vivifie la pensée. [...] Ce n’est donc
ni par le sentiment ni par l’imagination qu’André Chénier a excellé; c’est plutôt par le savant usage qu’il a fait
des ressources de son art. A tout prendre, et si l’on peut séparer ainsi ces deux termes, il est moins un poète qu'un
artiste. On le reconnaît à certains signes bien caractéristiques, avant même d’entrer dans l’examen détaillé de ses
œuvres.”.
329
PEREIRA, 1949, p. 93
330
BANDEIRA, 1997, p. 12.
331
ASSIS, 2015, vol. 2, p. 1132
163
desgosto?”. Esta pequena modificação de seu próprio verso nos lembra o que Magalhães Júnior
disse a respeito, no ensaio “O deturpador de citações” (1957): “Machado citou muito. Tinha
nisto um dos seus prazeres especiais. Gostava de fazer praça de amplos conhecimentos de
literatura estrangeira, citando no original o que podia e cabia nos limites de suas crônicas ou de
seus contos”332. E assim fez diversas vezes, citando de memória, conforme lembrava,
apropriando-se despudoradamente do que era citado da maneira que lhe parecia adequada,
conforme Magalhães Júnior bem demonstra. O diálogo com Chénier nesta tradução certamente
se mostrou proveitoso.
6.3 “Cleópatra, canto de um escravo”
Chegamos à terceira tradução de Crisálidas: “Cleópatra, canto de um escravo”. O
próprio poeta nos legou uma breve explicação do poema em nota: “Este canto é tirado de uma
tragédia de Mme. Émile de Girardin. O escravo, tendo visto coroado o seu amor pela rainha do
Egito, é condenado a morrer. Com a taça em punho, entoa o belo canto de que fiz esta mal
amanhada paráfrase”333.
Infelizmente, nada sabemos ou descobrimos a respeito de como Machado de Assis veio
a conhecer o texto, nem se houve alguma motivação especial para traduzi-lo a não ser o
interesse do escritor. A biografia A juventude de Machado de Assis pouco nos diz além de que
Machado tinha “lugar de honra” no Espelho, de onde saiu a primeira versão desta tradução334.
Magalhães Júnior nos informa que O Espelho viu sair oito poesias de Machado de Assis, das
quais somente “Escravo e rainha”, renomeado para “Cleópatra, canto de um escravo”,
conseguiu adentrar Crisálidas. A respeito da tradução, diz o biógrafo, em tom um tanto
depreciativo, que “[...] não era obra original, mas simples paráfrase de trecho de uma tragédia
que Delphine Gay (Mme. Émile de Girardin) extraíra da novela de Théophile Gautier, Une Nuit
de Cléopâtre”335. Magalhães Júnior alude à possibilidade de “Escravo e rainha” conter uma
mensagem subliminar de admiração e amor de Machado de Assis pela atriz Gabriela da Cunha:
332
MAGALHÃES JR., R. “O deturpador de citações”. In: Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1957, p. 257
333
ASSIS, 2009, p. 328, grifo nosso
334
MASSA, 2009, p. 214
335
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 122
164
Assinadas apenas pela inicial M., essas doze oitavas podiam simbolizar perfeitamente
a atitude submissa de quem as traduzira sem essa afinidade, sem a identificação com
versos como estes: “Sou um escravo, rainha. / Amo-te e quero morrer!” Ou: “Posso
sofrer os teus golpes, / sem murmurar da sentença”.336
Leituras biografistas à parte, quanto ao texto-fonte utilizado por Machado, sabe-se que
a Cléopâtre de Mme. Émile de Girardin foi representada pela primeira vez em 13 de novembro
de 1847 e, a julgar pelas palavras de Théophile Gautier (1881), teve boa recepção: “Cleópatra,
tratada ao mesmo tempo de maneira mais antiga e mais moderna, tragédia e drama, obteve
muito sucesso e continuará sendo o melhor poema cênico, escrito por uma mulher. A
interpelação ao sol está em todas as lembranças”337. O mesmo questionamento a respeito do
gênero em que a peça se encaixaria, se drama ou tragédia, é levantado por Léon Séche (1910):
Cleópatra não é nem uma tragédia, nem um drama, mas ela participa ao mesmo tempo
nos dois perfis da máscara dramática: tragédia pela dignidade de sua abordagem, pela
brilhante pureza do estilo, pelo fundo sóbrio e simples sobre o qual ela irrompe; drama
por sua semelhança com a história, pela liberdade de sua aparência, por seus finos e
esplêndidos detalhes interiores de trajes, de vida privada, pelo raio do Oriente que a
colore e ilumina.338
Séche reproduz também um trecho de carta de Lamartine que, após ver Cléopâtre,
afirma em 18 de novembro de 1847: “Nunca uma mulher teve tal triunfo viril desde Vittoria
Golonna, a quem se assemelha em traços, gênio e, creio, também no heroísmo”339.
Nosso objetivo, contudo, permanece o de estudar o produto da lavra do tradutor
Machado de Assis e, neste caso em particular, é possível uma comparação tríplice, uma vez
que, como dissemos anteriormente, entre a primeira versão, “Escravo e rainha”, e a de
Crisálidas, “Cleópatra, canto de um escravo”, passam-se dois anos e, além do título, são
mudados mais da metade dos versos do poema, indicando que o tradutor revisou seu texto
inicial e possivelmente preparou a nova versão voltando ao texto francês. Devemos nos
perguntar, por exemplo, o que estas mudanças significam esteticamente, em que medida
336
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 145
GAUTIER, Théophile. Portraits et souvenirs littéraires. Paris: G. Charpentier, 1881, p. 94, tradução nossa. No
original: “Cléopâtre, traitée à la fois d’une façon plus antique et plus moderne, tragédie et drame, obtint beaucoup
de succès et restera le meilleur poème scénique, écrite par une femme. L’apostrophe au soleil est dans toutes les
mémoires”.
338
SÉCHÉ, Léon. Delphine Gay: Mme. de Girardin dans ses rapports avec Lamartine, Victor Hugo, Balzac,
Rachel, Jules Sandeau, Dumas, Eugène Sue, et Georges Sand. 2 ed. Paris: Mercvre de France, 1910, p. 260,
tradução nossa. No original: “Cléopâtre n’est ni une tragédie, ni un drame, mais elle participe à la fois des deux
profils du masque dramatique : — tragédie par la dignité de sa démarche, par l’éclatante pureté du style, par le
fond sobre et simple sur lequel elle se détache ; drame par sa ressemblance avec l’histoire, par la liberté de son
allure, par ses fins et splendides détails d’intérieur de costumes, de vie privée, par le rayon d'Orient qui la colore
et l'éclaire”.
339
SECHÉ, 1910, p. 262, tradução nossa. No original: “Jamais aucune femme n’avait eu ce triomphe tout viril
depuis Vittoria Golonna, à qui vous ressemblez de traits, de génie et, je crois, aussi d’héroïsme”.
337
165
aproximam ou afastam o texto de Machado do de Mme. Émile de Girardin, ou criam um novo
poema.
Massa considera a escolha deste texto para figurar em Crisálidas como uma “afinidade
pessoal” com o tema da obra romântica, e nota que Machado mantém as doze estrofes mas
altera a forma340: enquanto Girardin escreve quadras compostas por alexandrinos e um verso
de oito pés, com rimas cruzadas, Machado compõe seu poema em oitavas, com versos de sete
pés e com esquema ABBCDEEC, conforme podemos observar nos poemas reproduzidos a
seguir:
Quadro comparativo 7 – “Cleópatra” e “Cléopâtre”
“Cleópatra” (1862)
Cléopâtre
Filha pálida da noite,
Nume feroz de inclemência,
Sem culto nem reverência,
Nem crentes e nem altar,
A cujos pés descarnados...
A teus negros pés, ó morte!
Só enjeitados da sorte
Ousam frios implorar;
O fille de la nuit ! ô déesse implacable,
Toi qui n’as point de temple, et qu’on craint d’adorer ;
Toi que le malheureux, quand le destin l’accable,
Seul en tremblant ose implorer…
Toma a tua foice aguda,
A arma dos teus furores;
Venho c’roado de flores
Da vida entregar-te a flor;
É um feliz que te implora
Na madrugada da vida,
Uma cabeça perdida
E perdida por amor.
Era rainha e formosa,
Sobre cem povos reinava,
E tinha uma turba escrava
Dos mais poderosos reis;
Eu era apenas um servo,
Mas amava-a tanto, tanto,
Que nem tinha um desencanto
Nos seus desprezos cruéis.
Vivia distante dela,
Sem falar-lhe nem ouvi-la;
Só me vingava em segui-la
Para a poder contemplar;
Era uma sombra calada
Que oculta força levava,
E no caminho aguardava
Para saudá-la e passar.
Um dia veio ela às fontes
Ver os trabalhos... não pude,
Fraqueou minha virtude,
Caí-lhe tremendo aos pés.
340
MASSA, 2008, p. 73
O Mort !... à tes fureurs un fol amour me livre !
Prends ta faux redoutable et parais à ma voix :
A la voix d’un heureux que son bonheur enivre,
Viens donc pour la première fois !
Une femme régnait sur des peuples sans nombre;
De sa beauté les rois, les dieux étaient épris ;
Moi, j'étais son esclave et je l'aimais dans l'ombre,
Heureux même de ses mépris.
Je ne pouvais jamais l’approcher ni l’entendre ;
Mais, pour apercevoir ou son voile ou sa main,
Je la suivais partout, je vivais pour l’attendre
Et me jeter dans son chemin.
Un jour, elle vint voir les travaux des fontaines…
Je tombai prosterné de crainte à son aspect…
O Vénus ! tout l’amour qui dévore mes veines
Parla dans ce brûlant respect.
Pour la plaire il faut être un héros fier e brave,
Et moi, par quels hauts ai-je su l’attendrir ?
Je n’ai dit qu’un seul mot : Reine, je suis esclave,
Mas j’aime et je voudrais mourir.
Et la nouvelle Isis que l’Égypte idolâtre
A souri par caprice à l’esclave du port…
J’ai vu pâlir d’amour la reine Cléopâtre…
Et joyeux je t’appelle… ô Mort !
Viens donc !... tous les orgueils des gloires insensées,
Toutes les voluptés, tous les feux de l’amour,
Tous les enivrements des royales pensées
Je les ai connus en un jour !
166
Todo o amor que me devora,
Ó Vênus, o íntimo peito,
Falou naquele respeito,
Falou naquela mudez.
Je suis prêt à partir pour les rivages sombres ;
Prends mon sang et ma vie e mon jeune avenir…
Mais permets qu’avec moi j’emporte chez les sombres
Le souvenir, le souvenir !
Só lhe conquistam amores
O herói, o bravo, o triunfante;
E que coroa radiante
Tinha eu para oferecer?
Disse uma palavra apenas
Que um mundo inteiro continha
– Sou um escravo, rainha,
Amo-te e quero morrer.
Sauve-moi de l’oubli, Cléopâtre est si belle !...
Choisis pour me punir le plus dur châtiment,
Mais que dans les enfers je souffre encor pour elle,
Que mon amour soit mon tourment !...
E a nova Ísis que o Egito
Adora curvo e humilhando,
O pobre servo curvado
Olhou lânguida a sorrir;
Vi Cleópatra, a rainha,
Tremer pálida em meu seio;
Morte, foi-se-me o receio,
Aqui estou, podes ferir.
Vem! que as glórias mais lascivas,
As fantasias mais vivas,
De mais febre e mais ardor,
Toda a ardente ebriedade
Dos seus reais pensamentos,
Tudo gozei uns momentos
Na minha noite de amor.
Pronto estou para a jornada
Da estância escura e escondida;
O sangue, o futuro, a vida
Dou-te, ó morte, e vou morrer;
Uma graça única – peço
Como última esperança:
Não me apagues a lembrança
Do amor que me fez viver.
Beleza completa e rara
Deram-lhe os numes amigos;
Escolhe dos teus castigos
O que infundir mais terror,
Mas por ela, só por ela
Seja o meu padecimento,E tenha o intenso tormento
Na intensidade do amor.
Deixa alimentar teus corvos
Em minhas carnes rasgadas,
Venham rochas despenhadas
Sobre o meu corpo rolar,
Mas não me tires dos lábios
Aquele nome adorado,
E ao meu olhar encantado
Deixa essa imagem ficar.
Posso sofrer os teus golpes
Sem murmurar da sentença;
Nourris tes noirs vautours de ma chair déchirée,
Sous des rocs éternels roule mon corps meurtri,
Mais laisse à mes regards son image adorée,
A me lèvres son nom chéri !
Je subi tes arrêts, ô Mort, sans une plainte,
Respecte mon bonheur… il m’est venu de toi…
Et sur mon front glacé laisse vivre l’empreinte
De ses baisers qui m’ont fait roi.
167
A minha ventura é imensa
E foi em ti que eu a achei;
Mas não me apagues na fronte
Os sulcos quentes e vivos
Daqueles beijos lascivos
Que já me fizeram rei.
Fonte: Assis (1976); Girardin (1847)
Na tragédia da Mme. De Girardin, encontramos este canto na Cena III do Ato I. A
contextualização do canto depende da cena anterior, em que vemos as duas damas de
companhia da rainha Cleópatra, Iras e Charmion, conversarem e descobrimos o motivo pelo
qual o escravo foi condenado à morte: apesar de ser um escravo grego, trabalhador do porto,
Cleópatra se apaixonou por ele, no que é correspondida. Como tal relacionamento é impossível,
o escravo deve morrer. Iras se compadece, por ser compatriota do escravo, mas Charmion está
determinada a fazer cumprir a sentença. Na Cena III, que se passa ao amanhecer, vemos um
breve diálogo entre Charmion e o escravo, que então toma a taça com o veneno das mãos de
Charmion e pede a ela que conte à rainha que ele morreu sem remorso. Charmion, percebendo
o quão voluntariamente o escravo decide morrer, pede que não o faça sem antes evocar os
deuses dele. O que se segue, então, é o canto traduzido por Machado de Assis.
Nas duas primeiras estrofes vemos o escravo invocar a morte, a quem se entrega
livremente, reconhecendo a impossibilidade do amor que nutre pela rainha. Pelo relato do
escravo, descobrimos que a rainha fora um dia visitar as obras do porto. É então que ele a vê e
se apaixona por ela, que se compadece e também se apaixona pelo escravo. O escravo se entrega
à morte reconhecendo que já havia sentido todos os prazeres e todas as glórias, não se importa
em padecer eternamente pelo amor que nutriu por ela ou de ver suas carnes rasgadas por abutres,
mas pede que possa levar consigo a lembrança da beleza da rainha, o seu nome em seus lábios,
e que na sua testa fiquem os beijos que recebera da rainha e que dele fizeram rei. Todo este
relato é envolto em um metro clássico francês, conferindo certo enobrecimento ao relato.
Tomando o poema em seu sentido amplo, percebe-se que o poema de Machado de Assis
adequa-se ao relato, sendo possível chegar às mesmas conclusões a respeito da atitude do
escravo diante da morte e de suas súplicas. Todavia, ao ajustarmos o foco, percebemos que este
relato passa por diversas pequenas modificações e acréscimos que, ao final, só se pode chegar
à conclusão de que Machado não quis manter uma relação estreita, rígida com as minúcias
imagéticas do texto-fonte, preferindo criar um poema paralelo, o que faz todo sentido. Afinal,
a tradução de Machado de Assis não é mais um canto que se inscreve num drama trágico, mas
um poema independente que relata a atitude de um amante que se entrega livremente à morte
168
diante de um amor irrealizável, característica em comum com outras traduções que são excertos
de outras obras, como “A morte de Ofélia” e “To be or not to be”. Esta tradução importa ainda
mais por ser um ótimo momento para observamos a maneira como trabalhou o poeta-tradutor
Machado de Assis a partir das alterações a que submeteu seu texto.
Massa relata que “[d]o poema brasileiro só se conhece a versão de 1862 [Biblioteca
Brasileira], reeditado em 1864 nas Chrysalidas. A versão que encontramos no Espelho, mais
elaborada talvez, embora mais fria, é bem diferente da versão definitiva”341. Além da versão
que saiu na Biblioteca Brasileira, Galante de Sousa informa que o poema também foi publicado
no Almanaque Gazeta de Notícias na edição de 1881, e em O Bananal, no estado de São Paulo,
em 1881342. De fato, a versão publicada na edição de 8 de janeiro de 1860 em O Espelho343,
possivelmente a primeira publicação, é consideravelmente diferente da versão que está em
Crisálidas e que, segundo Massa, reproduz a versão de 1862. Observa-se, ao compará-las, que
dos 96 versos encontrados em ambas as versões, 50 versos foram alterados entre a edição de O
Espelho de 1860 e a que saiu em Crisálidas em 1864, sendo que duas das doze estrofes foram
reescritas por completo. A edição crítica Poesias completas da Civilização Brasileira nos
informa que há, entre a versão de Crisálidas e a do Almanaque Gazeta de Notícias uma ligeira
alteração no verso 32 que, pelo contexto, “parece erro óbvio”344.
Já vimos o quanto Machado altera a forma do texto-fonte: as quadras compostas por
alexandrinos e um octossílabo tornam-se oitavas em redondilha maior, consequentemente com
esquema de rimas diferente. Pires-de-Mello (2001) nos lembra que a redondilha maior
ordinariamente possui ritmo livre, e teve amplo emprego no período romântico, além de ser um
dos metros mais comuns em língua portuguesa e metro da poesia popular por excelência,
também utilizado na “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias345, por exemplo. A respeito do
metro empregado por Mme. de Girardin, O Pétit traité de versification française (1965) de
Maurice Grammont esclarece:
Nos séculos XII e XIII, o verso de doze sílabas se sobrepôs aos dois mais antigos,
especialmente nos poemas épicos e didáticos; é ao século XII que pertence o poema
de Alexandre, ao qual ele deve seu nome alexandrino. A partir de meados do século
XIV até meados do século XVI sai de moda; está quase completamente abandonado.
Ronsard e a Plêiade restauram sua honra e, no século XVII, ele se tornou o verso
341
MASSA, 2008, p. 74
SOUSA, 1955, p. 354
343
ASSIS, Machado de. “Escravo e Rainha”. O Espelho, p. 10-11. 8 de janeiro de 1859. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/737143/94>. Acesso em: 3 jun. 2017.
344
ASSIS, 1976, p. 87.
345
PIRES-DE-MELLO, J. G. Teoria do ritmo poético. 2. ed. São Paulo: Editora Ride, 2001, p. 76
342
169
francês por excelência; aparece em todos os gêneros. Sua sorte não diminuiu desde
então.346
Dado relevante, pois sugere que o tradutor buscou em sua língua não um equivalente métrico,
rítmico ou sonoro, mas um metro adequado à situação, ao tema e à personagem. A troca sugere
um afastamento de um tom mais enobrecedor na direção de uma forma mais popular, mais
condizente com a condição de escravo da personagem. A posição adotada reforça o tom de
quem quer, a um só tempo, declarar sua independência poética do texto-fonte e reforçar formas
típicas da literatura de língua portuguesa.
Devido à extensão do poema, seria inviável uma análise comparativa verso a verso, ou
mesmo que comentasse todas as alterações que sofreram as duas versões de Machado diante do
texto francês. Entretanto, a partir de alguns poucos exemplos é possível perceber que as
alterações por que a tradução de Machado passou entre a primeiraxxvii e a segunda versão –
doravante denominadas V1 e V2, respectivamente – tiveram por objetivo encontrar soluções
que aproximassem semanticamente a tradução do texto francês – sem que isso signifique uma
busca por um decalque do texto-fonte –, fizesse correções métricas ou mesmo gramaticais.
Tomemos a primeira alteração, por exemplo: no primeiro verso da segunda estrofe de V1 temos
“Toma tua foice ímpia” que foi alterado para “Toma tua foice aguda” em V2. Este verso
corresponde ao primeiro hemistíquio do segundo verso da quadra francesa: “Prends ta faux
redoutable”. Ou seja, em francês a foice é “temível”, o que sugere que a escolha do tradutor por
“ímpia” em V1 tentou dar conta dessa característica, mas pode ter percebido depois que o
resultado soa um tanto estranho uma vez que a foice, objeto inanimado, não poderia possuir tal
qualidade, justificando-se a troca por “aguda”, de sentido mais próximo a “afiada”.
O mesmo acontecido com o segundo verso da décima primeira estrofe de V1, que
mudou de “Deixa alimentar teus corvos / Em minhas carnes torcidas” (grifo nosso) para “Deixa
alimentar teus corvos / Em minhas carnes rasgadas” (grifo nosso) em V2. Estes versos
traduzem o primeiro alexandrino da estrofe equivalente no texto-fonte: “Nourris tes noirs
vautours de ma chair déchirée”. Ora, o adjetivo “déchirée” quer dizer exatamente “rasgada”,
como está em V2, e não “torcidas”, demonstrando que o tradutor estava, de fato, tentando
aproximar mais seu poema do texto-fonte.
346
GRAMMONT, Maurice. Pétit traité de versification française. Paris: Librarie Armand Colin, 1965, p. 45,
tradução nossa. No original: “Aux XIIe et XIIIe siècles le vers de douze syllabes supplante en partie ses deux aînés,
en particulier dans les poèmes épiques et didactiques; c’est au XIIe siècle qu’appartient le poème d’Alexandre
auquel il doit son nom d’alexandrin. Du milieu du XIVe siècle au milieu du XVIe il n’est plus à la mode ; on le
délaisse presque totalement. Ronsard et la Pléiade le remettent en honneur et, au XVIIe siècle, il devient le vers
français par excellence ; il apparait dans tous les genres. Sa fortune n’a pas diminué depuis cette époque”.
170
Também na terceira estrofe encontramos algumas alterações interessantes e alguns
dados que iluminam o método tradutório utilizado em algumas das estrofes seguintes. Vejamos
os textos:
Quadro comparativo 8 – Terceira estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”.
“Escravo e rainha” (1860)
“Cleópatra” (1862)
Cléopâtre
Uma mulher... era bela!
Como rainha – reinava,
E tinha uma turba escrava
Dos mais poderosos reis!
Eu era apenas um servo
E tanto amava-a e tanto
Que nem tinha um desencanto
Nos seus desprezos cruéis!
Era rainha e formosa,
Sobre cem povos reinava,
E tinha uma turba escrava
Dos mais poderosos reis;
Eu era apenas um servo,
Mas amava-a tanto, tanto,
Que nem tinha um desencanto
Nos seus desprezos cruéis.
Une femme régnait sur des peuples sans
[nombre;
De sa beauté les rois, les dieux étaient épris
[;
Moi, j'étais son esclave et je l'aimais dans
[l'ombre,
Heureux même de ses mépris.
Fonte: Assis (1860); Assis (1976); Girardin (1847)
Se observarmos atentamente as informações de cada alexandrino francês, percebemos que
Machado traduz cada hemistíquio do alexandrino por uma redondilha maior, de forma que os
três primeiros versos da quadra francesa correspondem aos seis primeiros versos da oitava de
Machado, algo já sugerido pelo fato de as quadras terem se tornado oitavas. Lembremo-nos de
que o procedimento de quebrar o verso não é inédito dentre os poemas que já analisamos até
agora, e será adotado por diversas estrofes seguintes nesta tradução. Curiosamente, o mesmo
procedimento é adotado inclusive para o octossílabo que encerra a quadra francesa, também
quebrado nos dois versos finais da oitava de Machado. As alterações incluídas aqui parecem
servir ao propósito de recriar o poema francês de maneira necessariamente autônoma em
português sem, contudo, perder de vista a mensagem central da obra. As alterações entre V1 e
V2 também sugerem que o tradutor quis se aproximar mais do texto francês: é inegável que
“Era rainha e formosa / Sobre cem povos reinava” está mais próximo de “Une femme régnait
sur des peuples sans nombre;” do que “Uma mulher... era bela / Como rainha – reinava”.
Algumas alterações de V1 para V2 foram claramente motivadas por questões
simplesmente gramaticais, como o segundo verso da quarta estrofe “Sem lhe falar nem ouvila” de V1 que se torna “Sem falar-lhe nem ouvi-la” em V2. Outras podem ser lidas como
problemas na métrica de V1, como o sétimo verso da quarta estrofe de V1, “E que só se
reanimava”, que obriga a sinérese no último vocábulo para que a contagem esteja correta, mas
que foi alterado para “E no caminho a aguardava” em V2, trocando a sinérese pela sinalefa. O
mesmo ocorre no sexto verso da sétima estrofe “Tremer pálida no meu seio...”, de oito pés,
corrigido para “Tremer pálida em meu seio” em V2.
171
Como dissemos anteriormente, duas estrofes, a nona e a décima oitavas, foram reescritas
por completo entre a V1 e a V2, motivo que acreditamos ser suficiente para darmos atenção
particular a pelo menos uma delas. Abaixo temos a nona estrofe das versões de Machado e de
Mme. de Girardin:
Quadro comparativo 9 – Nona estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”.
“Escravo e rainha” (1860)
Agora desprezo a vida,
Tenho glória mais dourada;
Pronto estou para a jornada,
Posso impávido – morrer.
Mas só te imploro uma graça,
É a última esperança...
Desse amor quero a lembrança!
Deixa guarda-la sequer!
“Cleópatra” (1862)
Pronto estou para a jornada
Da estância escura e escondida;
O sangue, o futuro, a vida
Dou-te, ó morte, e vou morrer;
Uma graça única — peço
Como última esperança:
Não me apagues a lembrança
Do amor que me fez viver.
Cléopâtre
Je suis prêt à partir pour les rivages sombres;
Prends mon sang et ma vie et mon jeune
[avenir...
Mais permets qu'avec moi j'emporte chez les
[ombres
Le souvenir... le souvenir!
Fonte: Assis (1860); Assis (1976); Girardin (1847)
Comecemos observando as versões de Machado: em V1 percebe-se que o tradutor
reorganizou a informação do texto francês, deslocando, por exemplo, a informação do primeiro
hemistíquio do primeiro verso da quadra francesa, “Je suis prêt à partir”, para o terceiro verso
de sua estrofe. Este, único verso que permanece inalterado entre V1 e V2, é devolvido para o
início da oitava em V2, de forma que os dois primeiros versos de V2, “Pronto estou para a
jornada / Da estância escura e escondida;” correspondam ao primeiro alexandrino da quadra
francesa: “Je suis prêt à partir pour les rivages sombres;” repetindo o procedimento de quebrar
o alexandrino em duas redondilhas maiores, como vimos anteriormente. É possível ver o
mesmo nos versos seguintes: “O sangue, o futuro, a vida / Dou-te, ó morte, e vou morrer;”
traduzem criativamente “Prends mon sang et ma vie et mon jeune avenir…”. Machado toma os
substantivos que carregam as ideias centrais do verso francês – “sang”, “vie” e “avenir” – e
com estas ideias compõe os seus versos. Mesmo a ideia de morte, aparente acréscimo de
Machado, está presente no verbo que abre o alexandrino francês, “Prends mon sang”. Tais
mudanças, ora em maior, ora em menor grau, nos fazem considerar que o resultado alcançado
com V2 foi tecnicamente superior ao de V1, uma vez que Machado consegue um texto que é
ao mesmo tempo mais natural e mais fluido. O meio caminho encontrado pelo tradutor nos
parece o mais adequado para recriar o texto francês em nosso idioma: sem perder de vista por
completo o texto-fonte, o tradutor reescreve criativamente o canto do escravo.
Os procedimentos adotados por Machado de Assis em “Cleópatra, canto de um
escravo”, e os resultados que tais procedimentos geraram, nos remetem à proposta de Henri
Meschonnic: “[o] objetivo da tradução não é mais o sentido, mas bem mais que o sentido, e que
o inclui: o modo de significar”347. Lemos neste “modo de significar” a percepção que o tradutor
347
MESCHONNIC, 2010, p. 43
172
teve para saber ser necessária a substituição da forma poética adotada, optando por outra mais
afeita à sua tradição e mais condizente com o tema traduzido: justificam-se, assim, as escolhas
pelo metro popular que é a redondilha maior e pelas oitavas que servem bem ao propósito de
quebrar os versos das quadras em dois para acomodar melhor o sentido. Poderíamos ainda
justificar estas alterações impostas pelo tradutor novamente com Meschonnic: “O sentido está
ligado à forma do sentido. A tradição que transpõe faz mais do que traduzir, que é produzir um
equivalente de sentido, de valor, de função, e de funcionamento. Ela substitui o traduzir por
adaptar”348. Ao produzir sua “mal-amanhada paráfrase” Machado adaptou o que foi necessário
para que pudesse produzir um equivalente naqueles termos propostos por Meschonnic,
equivalente de sentido, valor, função e funcionamento.
Mas de que modo esta tradução dialoga com o restante da produção de Machado de
Assis no período? Em A juventude de Machado de Assis Massa identifica entre os “temas
principais” da época – início da década de 1860 – o amor não correspondido349, tema em que
poderíamos incluir esta tradução de Mme. de Girardin. Vimos anteriormente que o biógrafo
Magalhães Júnior sugeriu que esta tradução poderia ter uma mensagem subliminar de
admiração pela atriz Gabriela da Cunha, que já tinha sido tema de poema anteriorxxviii pouco
menos de duas semanas antes desta. Mas a grande coincidência desta tradução é com o poema
“Ícaro”, publicado no mesmo dia de “Escravo e Rainha”, 8 de janeiro de 1860 n’O Espelho, e
no dia seguinte na seção “Variedade” do Correio Mercantil. A coincidência não é só de datas,
mas de forma – “Ícaro” também é escrito em oitavas com versos em redondilhas maior – e
mesmo tema: assim como em “Escravo e Rainha”, em “Ícaro” há o amor não correspondido,
inalcançado: “Que queres tu que eu te peça? / Um olhar que não consola?” ou “É audaz o
pensamento / Não vez que um olhar é pouco?” e mais ainda em “Foras um sonho que eu tive, /
Uma esperança bem pura; / Foras meu céu de ventura / Em toda sua nudez!”350. A semelhança
de temas e a proximidade das datas assim corroboram a tese de que esse poema seria uma
declaração a D. Gabriela da Cunha, conforme propôs Magalhães Júnior.
Ao comentar esta tradução, Jean-Michel Massa alega que “[...] em ambos os casos
Machado de Assis afasta-se bastante do texto francês. Essas versões são sobretudo adaptações.
O escritor brasileiro inspira-se no tema que ele reescreve alargando o tema do objeto”351. As
declarações do biógrafo, agora, ficam mais claras: há, sim, um afastamento do texto francês,
348
MESCHONNIC, 2010, p. 31
MASSA, 2009, p. 215
350
ASSIS, 2009, p. 479-481
351
MASSA, 2008, p. 75
349
173
principalmente no plano formal, mas também em diversos detalhes do texto. Há, por outro lado,
uma tentativa de se aproximar do tema geral da obra e, a partir dele, compor um poema que
funcione de forma autônoma. Traduzir poesia adaptando ou reescrevendo surge como um dos
meios mais proveitosos, se não o único, para se obter como resultado um poema que se
reconheça como tal. Se Machado não se afastasse quando necessário, não reescrevesse e não
adaptasse, não teríamos outro poema que estende a vida do texto de Mme. De Girardin.
6.4 “As Ondinas”
“As ondinas”, do poeta alemão Heinrich Heine, é uma tradução poética, em versos
rimados, de um texto em prosa que por sua vez é também uma autotradução feita pelo próprio
autor do texto-fonte.
Em 1855, Heinrich Heine, então exilado na França, publica Poèmes et légendes, livro
que reúne obras como o “Intermezzo”, “Atta Troll”, os “Nocturnes” – de onde Machado extraiu
“As ondinas” – e o “Romancero”. Publicado no ano anterior ao de sua morte, o próprio Heine
prefacia o seu livro, e nele justifica a escolha dos textos: “O livro que publico hoje contém a
tradução francesa de uma parte das produções líricas que me deram em meu país o nome de
poeta”352. As traduções, afirma Heine, foram feitas nos seus “heureux loisirs d’autrefois”
(“felizes lazeres de outrora”) e reconhece, encerrando o prefácio, a situação em que coloca o
leitor como tradutor de seus próprios textos da poesia alemã para a prosa francesa:
É sempre uma empresa muito arriscada reproduzir na prosa de um idioma românico
uma obra métrica que pertence a uma língua de estoque germânico. O pensamento
íntimo do original é facilmente evaporado na tradução, e nada resta além de um luar
empalhado, como disse uma pessoa desagradável que ridicularizava meus poemas
traduzidos.353
O compatriota de Heine, o poeta e tradutor alemão Johann Wolfgang von Goethe nos fornece
os argumentos necessários para justificar traduzir sua poesia em prosa. Goethe acreditava haver
três tipos de tradução, cada uma adequada a uma determinada época e propósitos. O primeiro
352
HEINE, Henri. Poèmes et légendes. Paris: Michel Lévy Frères, Editeurs, 1855, p. V, tradução nossa. No
original: “Le livre que je publie aujourd’hui contient la traduction française d’une partie de ces productions
lyriques qui m’ont valu dans mon pays le nom de poète”.
353
HEINE, 1855, p. IX, tradução nossa. No original: “C’est toujours une entreprise très-hasardée que de reproduire
dans la prose d’un idiome roman une œuvre métrique qui appartient à une langue de souche germanique. La pensée
intime de l’original s’évapore facilement dans la traduction, et il ne reste que du clair de lune empaillé, comme a
dit une méchante personne qui se moquait de mes poésies traduites”.
174
destes tipos era justamente a tradução em prosa, que serviria ao propósito de familiarizar a
cultura receptora com o estrangeiro conforme os critérios de quem recebe, porque neutraliza as
características formais do objeto traduzido e doma as exuberâncias do texto poético354. Sob esse
aspecto, o método que Heine escolhe para traduzir os seus “Nocturnes” parece adequado à
proposta de deixar para o público de língua francesa uma forma de acesso introdutório à sua
obra.
Massa alega que Machado de Assis utilizou a tradução em prosa feita pelo próprio Heine
e publicada em 1855 em Poèmes et légendes, edição que servirá de base para nosso cotejo.
Massa, que também apresenta breves comentários sobre a tradução de Machado, considera que
Machado seguiu o andamento de Heine afirmando, em seguida, que “[...] dessa vez a forma não
pesa demais a poesia, exceto talvez na segunda estrofe”355, provavelmente criticando as
inversões sintáticas daquela estrofe em contraposição à linguagem direta e simples de Heine
em francês. A crítica é suavizada na sequência, quando afirma que “[...] o toque leve de Heine,
o caráter diáfano e sutil de sua expressão é geralmente traduzido com espírito”356.
Outro crítico, Amaral Tavares (2009), quando escreveu sobre Crisálidas, também
dedicou umas linhas para comentar esta tradução de Heine: “Dize-me: já leste alguma coisa de
mais mimoso e suave? O verso, o conceito, a melodia de Machado de Assis desdizem a de
Henrique Heine?”357. Curioso tratarem assim a tradução de Machado, que é um poema escrito
a partir de uma tradução em prosa de outro poema escrito originalmente em alemão. Afinal, o
“caráter diáfano e sutil” da expressão de Heine, de que fala Massa, ou o conceito e melodia de
que fala Tavares, referiam-se ao texto francês? O texto alemão teria essas mesmas
características? São questões inquietantes que merecem investigação.
Outra questão ainda se impõe: sabemos que na década de 1860 Machado de Assis sequer
começara a estudar formalmente o alemão. Em 1863, mesmo ano da primeira publicação de
“As ondinas”, Machado também publicou “O casamento do diabo”, traduzido, ou “imitado”,
do alemão com a provável ajuda de Henrique Fleiuss, algo que pode ter se repetido na tradução
da balada de Goethe “O rei dos olmos”, como veremos posteriormente. Não há dúvidas de que
a cultura teutônica estava numa posição privilegiada entre os interesses de Machado, talvez pela
convivência com Fleiuss. Teria Machado de Assis conhecido o texto alemão de “As ondinas”?
354
GOETHE, 2000, p. 64
MASSA, 2008, p. 76
356
Ibid., p. 76
357
TAVARES, Amaral. “Crisálidas. A Quintino Bocaiúva”. In: ASSIS, Machado de. A poesia completa: edição
anotada: recepção crítica. Organização e fixação dos textos de Rutzkaya Queiroz dos Reis. São Paulo:
Nankin/Edusp 2009, p. 649
355
175
Se traduziu a partir somente de uma tradução em prosa francesa, Machado não teria
conhecimento da forma poética do texto alemão e, no entanto, a forma poética que ele escolhe
para compor “As ondinas”, mesmo não sendo idêntica, é bastante próxima da versão alemã de
Heine: quadras rimadas, com a diferença de que Heine utiliza rimas alternadas, enquanto
Machado rima somente os versos pares de cada estrofe. A métrica certamente é diferente devido
à diferença entre as línguas, algo que importa pouco, considerando que Machado quase sempre
traduz poesia alterando a métrica do texto fonte. A única certeza que temos é de que a forma
escolhida era bastante popular e comum à poesia de várias literaturas oitocentistas, o que pode
lançar certa dúvida quanto à hipótese de contato direto com o texto alemão.
Desconhecemos de que modo Machado de Assis conheceu este texto de Heine, seja em
sua versão francesa, seja na alemã. Estimamos que o contato com Fleiuss possa ter introduzido
o tradutor à alguns nomes da literatura alemã. Sabe-se que a versão francesa “Les ondines”
publicada em Poèmes et légendes de 1855 foi traduzida da segunda coletânea de poemas de
Heinrich Heine, Neue Gedichte, de 1844, onde o poema “Die Nixen” é encontrado na seção
“Romanzen”. Heine também publicou traduções francesas de seus poemas na Révue des Deux
Mondes, mas os “Nocturnes” não foram contemplados.
Sobre Neue Gedichte, o crítico e editor do volume A companion to the works of Heinrich
Heine (2002), Roger Cook, autor do ensaio “Riddle of love: romantic poetry and historical
progress”, afirma que, nos poemas publicados durante a década de 1840, o topos do enigma da
esfinge dá lugar ao tema do segredo sobrecarregado, que o poeta divulga seletiva e
cautelosamente. Como resultado, os poemas de Neue Gedichte trazem a marca da ambiguidade
mesmo nos poemas em que o “segredo” correlaciona-se aos mistérios do amor com alusões
implícitas às forças ideológicas que atuam nas idealizações religiosa e secular do amor
irrealizado. Assim, Cook vê na temática de Neue Gedichte o retorno ao complicado mundo da
poesia romântica relacionada ao amor, em que o poeta admite ter o conhecimento privilegiado
de que o amor sempre vem a um preço a se pagar, e que as oportunidades amorosas perdidas
são parte da tragédia humana358. No mesmo volume, Michel Perraudin afirma, no ensaio “The
experiential world of Heine’s Buch der Lieder” (2002), que na seção “Romanzen” de Neue
358
COOK, Roger F. “Riddle of love: romantic poetry and historical progress”. In: COOK, Roger F. (Ed.). A
companion to the works of Heinrich Heine. New York: Camden House, 2002, p. 114-118
176
Gedichte temos exemplos das múltiplas identidades em que o poeta se projeta enquanto tenta
estabelecer um estilo baladesco pessoal359.
Em “Les ondines/Die Nixen”, em prosa na versão francesa, mas em sete quadras de
rimas alternadas na versão alemã, encontramos exatamente os temas e características que os
críticos apontaram acima: em primeiro lugar, o “segredo” que é duplo. Afinal as ondinasxxix que
encontram o jovem cavaleiro na praia se aproximam do objeto de sua admiração e desejo
acreditando que o rapaz está dormindo, sem saber que o jovem se finge desacordado para poder
aproveitar a oportunidade de ser beijado pelas belas criaturas. Trata-se, portanto, de uma obra
que reforça a ideia da fruição em segredo de um objeto fruto de desejo que precisa ser reprimido.
Vejamos como nosso tradutor se sai ao lado do texto francês:
Quadro comparativo 10 – “As ondinas” e “Les ondines”
As ondinas.
(nocturno de H. Heine.)
Les ondines.
Beijam as ondas a deserta praia;
Cai do luar a luz serena e pura;
Cavaleiro na areia reclinado
Sonha em hora de amor e de ventura.
Les flots clapotent amoureusement contre la plage
solitaire, la lune s'est levée, et un jeune chevalier repose
étendu sur la blanche dune ; il se laisse aller aux mille
rêveries de sa pensée.
As ondinas, em nívea gaze envoltas,
Deixam do vasto mar o seio enorme;
Tímidas vão, acercam-se do moço,
Olham-se e entre si murmuram: «Dorme!»
Les belles ondines, vêtues de voiles blancs, quittent les
profondeurs des eaux. Elles s'approchent à pas légers du
jeune chevalier, qu'elles croient réellement endormi.
Uma — mulher enfim — curiosa palpa
De seu penacho a pluma flutuante;
Outra procura decifrar o mote
Que traz escrito o escudo rutilante.
Esta, risonha, olhos de vivo fogo,
Tira-lhe a espada límpida e lustrosa,
E apoiando-se nela, a contemplá-la
Perde-se toda em êxtase amorosa.
L'une touche avec curiosité les plumes de sa barrette,
l'autre examine son baudrier et son haume.
La troisième sourit, et son œil étincelle ; elle tire l'épée
du fourreau, et, appuyée sur l'acier brillant, elle
contemple avec ravissement le beau jouvenceau.
La quatrième sautille çà et là autour de lui, et chantonne
tout bas : « Oh ! que ne suis-je ta maîtresse, chère fleur
de chevalerie ! »
Fita-lhe aquela namorados olhos,
E após girar-lhe em torno embriagada,
Diz: «Que formoso estás, ó flor da guerra,
Quanto te eu dera por te ser amada!»
La cinquième baise la main du chevalier avec une ardeur
voluptueuse ; la sixième hésite et s'enhardit enfin à lui
baiser les lèvres et les joues.
Uma, tomando a mão ao cavaleiro,
Um beijo imprime-lhe: outra, duvidosa,
Audaz por fim, a boca adormecida
Casa num beijo à boca desejosa.
Le chevalier n'est pas un sot, il se garde bien d'ouvrir les
yeux, et il se laisse tranquillement embrasser par les
belles ondines, au clair de la lune.
Faz-se de sonso o jovem; caladinho
359
PERRAUDIN, Michel. “The experiential world of Heine’s Buch der Lieder”. In: COOK, Roger F. (Ed.). A
companion to the works of Heinrich Heine. New York: Camden House, 2002, p. 47
177
Finge do sono o plácido desmaio,
E deixa-se beijar pelas ondinas
Da branca lua ao doce e brando raio.
Fonte: Assis (1976); Heine (1855)
A versão em prosa de Heine contém sete parágrafos, cada um correspondendo a uma
das estrofes do poema alemão, em que vemos um jovem cavaleiro que está à beira do mar, à
noite sob a luz da lua, sobre a areia branca, absorto enquanto descansa. Seis ondinas – seres
mitológicos, como sereias – então surgem e se aproximam do jovem cavaleiro, acreditando que
ele está dormindo. Os parágrafos seguintes descrevem como as seis ondinas, cada uma mais
ousada do que a anterior, tocam o rapaz, suas roupas, seus pertences e brincam ao redor dele,
até que a última resolve beijá-lo nos lábios e no rosto. Ao final do poema temos a certeza de
que o jovem cavaleiro não estava dormindo, mas fingia estar desacordado, mantendo os olhos
fechados, para se deixar beijar e tocar pelas belas criaturas.
Para compor sua versão, Machado escolhe devolver o texto de Heine à forma poética,
adotando quadras de versos decassílabos heroicos e sáficos, porém rimando somente o segundo
e quarto verso de cada estrofe. Se a forma lembra a versão alemã, mesmo que não seja idêntica,
isso não é suficiente para afirmar que Machado teria conhecido o texto alemão. A forma
escolhida era bastante comum na poesia de Heine – os poemas de Neue Gedichte foram escritos
majoritariamente em quadras rimadas – mas também era comum entre os românticos em geral.
A mesma forma poética – quadras de versos de dez sílabas, rimando somente o segundo e quarto
versos de cada estrofe – foi utilizada, por exemplo, na tradução de “Maria Duplessis”, também
de Crisálidas, que analisaremos a seguir. Se Machado de Assis faz algumas alterações esparsas
no conteúdo do poema, o resultado é satisfatório e demonstra tomar caminhos bastante próprios.
A alteração mais sensível introduzida por Machado que percebemos está no fato de que
as ondinas não são contadas em sua tradução. Tanto no texto francês quanto no alemão fica
bem claro que são seis criaturas, algo que o leitor do texto de Machado não identificaria
facilmente dispondo somente de referências mais vagas como “esta”, “aquela”, “uma” ou
“outra”, embora fique nítida a presença de múltiplas criaturas que se debruçam, tocam, admiram
e beijam o jovem que finge ter adormecido. No plano semântico, portanto, vemos mais uma
vez os procedimentos adotados nas ocasiões anteriores: há claramente uma busca por manter o
sentido geral do texto, mas sem se apegar às minúcias imagéticas, que vão sendo reconstruídas
pelo poeta-tradutor segundo seu projeto para o poema.
178
A autonomia do texto de Machado fica mais evidente se compararmos a sua tradução
com a de Edgar Alfred Bowring, que traduziu para a língua inglesa e publicou, no fim do século
XIX, um volume com toda a poesia de Heine “no metro original”, segundo o próprio.
Atendendo mais uma vez à sugestão de Antoine Berman de que é benéfico, para conhecermos
nosso tradutor, comparar suas escolhas com as de outros tradutores, comparemos, por exemplo,
a terceira estrofe na versão de Machado:
Uma — mulher enfim — curiosa palpa
De seu penacho a pluma flutuante;
Outra procura decifrar o mote
Que traz escrito o escudo rutilante.360
E na de Bowring:
The plume of his helmet the first one felt,
To see if perchance it would harm her;
The second took hold of his shoulder belt,
And handled his heavy chain armour361.
Conforme a tradução de Bowring, o “metro original” que ele manteve foi o pentâmetro iâmbico,
conservando também as rimas alternadas que Heine emprega. Percebemos, pela comparação
acima, que o terceiro e quarto versos da versão de Machado e de Bowring colocam a mesma
criatura realizando ações completamente diferentes: uma examina algo escrito no escudo do
jovem cavaleiro e outra toma-lhe partes da armadura, sendo que a de Bowring mantém-se mais
próxima do que diz as versões do próprio Heine.
Se por um lado, sob alguns aspectos – como a manutenção do metro e de todas as rimas
– a versão de Bowring é mais próxima da primeira versão alemã, tanto a versão de Machado
quanto a de Bowring precisam, vez ou outra, afastar-se semanticamente do texto-fonte para
recriar o poema: Bowring, por exemplo, acrescenta o verso “To see if perchance it would harm
her”, inexistente nas versões de Heine em francês ou alemão. Machado faz os acréscimos que
comentamos acima, no terceiro e quarto versos da terceira estrofe. Todavia, a liberdade que
ambos tomam para si é autorizada pelo próprio Heine quando, por exemplo, ao traduzir seu
próprio texto do alemão para o francês, mesmo que em prosa, troca a “Waffenkette” – espécie
de arma pendurada em uma corrente, como uma maça – do verso “Und an der Waffenkette”
por um “haume” – “elmo”, tipo de capacete que os cavaleiros medievais usavam – na sua versão
francesa, que, por sua vez, se torna uma “heavy chain armour” na tradução de Bowring e um
“escudo rutilante” na versão de Machado.
360
ASSIS, 1976, p. 197
HEINE, Heinrich. The poems of Heine: complete. Trad. Edgar Alfred Bowring. London: George Bell and Sons,
1891, p. 147
361
179
Figura 4 - Reprodução da primeira publicação de “As ondinas”
180
Fonte: Assis (1863)
181
Lembremos por um momento o que Octavio Paz (2012) pensava a respeito da tradução
poética: “O poema é uma totalidade viva, feita de elementos insubstituíveis. A verdadeira
tradução só pode ser, então, uma re-criação”362, pensamento que complementa o que
Meschonnic diz: “[...] O alvejador esquece que um pensamento elabora alguma coisa na
linguagem, e é aquilo que ela faz que fica por traduzir. Daí que a oposição entre fonte e alvo
não tenha mais nenhuma pertinência. Só o resultado conta.”363 A lição que os poemas-traduções
de Machado de Assis, Bowring ou mesmo o próprio Heine nos deixam é a de que podemos
pensar além do que o texto de partida fez: Não o que ele fez somente, mas como ele fez, e em
que o tradutor pode contribuir para que o texto continue relevante. Mesmo que breve, esta tripla
comparação entre as versões traduzidas por Heine, Bowring e Machado de Assis nos mostram
que a tradução de um poema passa pela re-criação do mesmo, por vezes significando que é
preciso trocar um significante por outro de que não é tradução exata, mas que pode exercer
função equivalente, como o “Waffenkette”, que ora se torna “haume”, ora “chain armour” ou
“escudo rutilante”.
A admiração que Machado de Assis nutria por Heine não é nenhuma novidade. André
Vallias, no “Poeta dos contrários”, coloca Heine numa posição que não se encaixa no modelo
binário de Nietzsche, porque não seria apolíneo ou dionisíaco, pertencendo a outra categoria
relegada às sombras pelo Ocidente364, explicação que poderia muito bem ilustrar o interesse de
Machado de Assis pelo poeta desde muito antes de ficar famoso entre os compatriotas
brasileiros na última década do século XIX. Poucos autores foram traduzidos mais de uma vez
por ele: Heine, Shakespeare e Lamartine foram os únicos que receberam tal atenção. Embora
seja de presença frequente nas crônicas, alimentando o refinamento da ironia machadiana, nos
romances e contos as alusões a Heine são poucas: uma em Memorial de Aires, em que o
Conselheiro Aires alude ao poema “Das Sklavenschiff” (“O Navio Negreiro”), outra no conto
“Uma senhora”, de Histórias sem data, e mais uma no conto “Sales”, publicado na Gazeta de
Notícias em 1887, em que Machado cita Heine em alemão. Mas é no conto “Uns braços”, de
Várias histórias (1895)xxx, que Jean-Michel Massa encontra um tema que lembra o desta
tradução: “‘As ondinas’ apresentam […] uma situação que ‘Uns braços’ evocará em 1885, a de
um beijo que não se sabe se é real ou sonho. É o tema da ‘Virgem adormecida’, mas em que o
homem e a mulher trocaram seus lugares”365. O conto narra um episódio na vida do jovem
362
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 53
MESCHONNIC, 2010, p. XXXI
364
VALLIAS, 2011, p. 31
365
MASSA, 2008, p. 75-76
363
182
Inácio, de 15 anos, que mora com o solicitador Borges e D. Severina, com quem vive
maritalmente e que traz os braços sempre nus, despertando desejos no rapaz por quem D.
Severina, ao desconfiar dos seus desejos, acaba se sentindo atraída. Na verdade, o beijo secreto
é ao mesmo tempo real e sonho: real para D. Severina, que beija o jovem Inácio enquanto ele
dorme em uma rede e sonha estar sendo beijado pela dona dos braços que povoam seus sonhos:
E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços,
até que, inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um
beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação
e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira
o gesto, como fugiu até a porta, vexada e medrosa.366
Certamente a situação do conto lembra a do poema “As ondinas”: o duplo segredo da atração
mútua, o objeto do desejo que está fora do alcance por pressões externas, a inversão de papeis,
com a figura masculina adormecida – ou fingindo dormir – sendo beijada pela figura feminina.
Seria exagerado afirmar que a ideia para o conto veio da tradução de “As ondinas” feita mais
de duas décadas antes, mas não seria de todo despropositado imaginar que a situação pode ter
sido ruminada pelo leitor/re-escritor de Heine nos quatro estômagos do cérebro durante aquelas
duas décadas resultando num de seus contos mais conhecidos.
6.5 “Maria Duplessis”
Ao incluir “Maria Duplessis”, que saíra primeiramente no Diário do Rio de Janeiro em
15 de abril de 1860, em Crisálidas, Machado toma o cuidado de incluir uma nota de fim
explicando a gênese de seu texto:
Em 1858, eu e meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer uma tradução
livre ou paráfrase destes versos de Alexandre Dumas Filho. No dia aprazado
apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele foi publicada, não me
lembro em que jornal367.
Em um artigo publicado no final de 2018, Wilton José Marques não só identifica o jornal em
que a tradução de Braga foi publicada como levanta a instigante hipótese de que esta teria sido,
afinal, a primeira tradução de Machado de Assis. Marques identifica que a tradução que Braga,
amigo de Machado, também fez desse poema é de 1856368, sendo incluída no mesmo ano no
366
ASSIS, 2015, vol. 2, p. 449
ASSIS, 1976, p. 215
368
MARQUES, Wilton José. Machado De Assis e "Maria Duplessis": A Talvez Primeira Tradução. Machado
Assis Linha, São Paulo , v. 11, n. 25, dez. 2018, p. 36. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198368212018000300033&lng=pt&nrm=iso>.
Acessos em: 22 jan. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/1983-6821201811253.
367
183
seu livro Tentativas Poéticas (1856), e não 1858, como Machado afirma na nota acima,
enquanto em Crisálidas a versão de Machado é acompanhada da data de 1859. Não restam
dúvidas, portanto, de que há inconsistências no relato de Machado de Assis. Marques sugere
ainda que tanto Braga quanto Machado de Assis teriam trabalhado não diretamente do francês,
mas a partir de outra versão em português feita pelo folhetinista Leonel de Alencar369, que
publicou uma versão em prosa com características que correspondem exatamente às traduções
em verso de Braga e Machado de Assis: a inversão das mesmas duas estrofes, a omissão de
outras, e as similaridades textuais entre as versões de Braga e Machado com a tradução em
prosa de Alencar. Nem Braga, nem Machado de Assis, portanto, teriam lido o texto francês,
mas somente versificado a tradução em prosa de Alencar370, com a ressalva de que não é
possível garantir que a versão que Machado de Assis publica em 1860 no Diário do Rio de
Janeiro seja a mesma que ele teria feito quatro anos antes para comparar os resultados com seu
amigo Braga371.
De fato, as traduções de Machado de Assis e Gonçalves Braga guardam várias
semelhanças entre si, corroborando a tese de que ambos trabalharam a partir da versão em prosa
de Leonel de Alencar: Machado compõe a sua em 16 quadras, de versos decassílabos italianos
em que rimam somente os versos pares. A de Gonçalves Braga contém uma quadra a mais do
que a de Machado, com o mesmo metro, rimando também os versos pares de cada estrofe. A
conclusão inevitável a que se chega quando comparamos as duas é a de que ambos utilizaram
o mesmo texto-fonte.
Massa é também dos primeiros a notar que a tradução de Machado, bem como a de
Gonçalves Braga, sob o título “Maria Duplessis, a transviada” e feita anos antes, não
correspondiam às versões do texto francês de Dumas que encontrou, como a do volume VII de
Théâtre, publicado em Paris em 1868. Esta versão do texto francês possui somente treze
quadras, algumas das quais não são traduzidas por Machado. Na Bibliografia de Machado de
Assis de Galante de Sousa a fonte do original é praticamente a mesma: “O original dessa
tradução encontra-se em: Alexandre Dumas Fils, Théâtre Complet, VIII, Notes Inédits, Paris,
Calman-Lévy, Editeurs, s.d.”372. Como tanto Massa e Galante de Sousa referenciam as mesmas
páginas 23-25, mas em volumes diferentes, cremos que houve equívoco da parte da Bibliografia
de Machado de Assis, uma vez que consultamos o texto no VII do referido Théâtre Complet de
369
MARQUES, 2018, p. 45
Ibid.
371
Ibid., p. 51
372
SOUSA, 1955, p. 335
370
184
1868 conforme indicação de Massa. A respeito do suposto texto-fonte que encontrou, Galante
de Sousa informa:
Das treze quadras de que se compõe o original, só se encontram na tradução de Machado
de Assis a 1a, 2a, 3a, 4a, 7a, 8a, 9a e 10a. Há, ao contrário, na tradução, algumas estrofes
que não correspondem ao original. Certamente não foi nesta edição tardia que Machado
de Assis baseou sua imitação. Possivelmente usou mesmo algum volume da edição
reduzida de La Dame aux Camélias373.
Além de traduzir somente as estrofes mencionadas por Galante de Sousa, elas aparecem em
ordem diferente da encontrada no texto-fonte francês conforme encontramos no VII do Théâtre
Complet. Não nos deteremos em tais pormenores porque, conforme Galante de Sousa afirma,
Machado de Assis certamente não se baseou nesta edição. Todavia, devemos ressaltar que o
texto-fonte de “Maria Duplessis” não veio de La Dame aux Camélias, conforme explicaremos
adiante.
373
SOUSA, 1955, p. 335
185
Figura 5 - Reprodução da primeira publicação de “Maria Duplessis”
Fonte: Assis (1860)
186
Encontramos outra versão do poema, desta vez com 22 estrofes no Causeries de
Alexandre Dumas (pai) publicado em Paris também pela Calman-Lévy Editeurs, s.d. No
capítulo “Les trois dames”, Dumas apresenta o poema do filho: “Aqui estão os versos que ele
fez durante a noite; não se esqueça que Alexandre, quando os fez, mal tinha vinte anos”374. Em
seguida, é transcrito o poema com 22 quadras de versos alexandrinos e rimas cruzadas. Além
desta fonte, José Américo Miranda (2017) encontrou a mesma versão do poema com 22 estrofes
em Péchés de Jeunesse de 1847, obra da juventude de Dumas Filho375. Reproduzimos, a seguir,
os poemas de Machado e de Dumas Filho:
Quadro comparativo 11 – “Maria Duplessis” e “M.D.”
“Maria Duplessis”
“M. D.”
Dédié à Théophile Gautier.
Fiz a promessa, dizendo-te que um dia
Eu iria pedir-te o meu perdão;
Era dever ir abraçar primeiro
A minha doce e última afeição.
Nous nous étions brouillés ; et pourquoi ? je l'ignore ;
Pour rien ! pour le soupçon d’un amour inconnu ;
Et moi, qui vous ai fuie, aujourd'hui je déplore
De vous avoir quittée et d'être revenu.
E quando ia apagar tanta saudade
Encontrei já fechada a tua porta;
Soube que uma recente sepultura
Muda fechava a tua fronte morta.
Je vous avais écrit que je viendrais, madame,
Pour chercher mon pardon, vous voir, à mon retour ;
Car je croyais devoir, et du fond de mon âme,
Ma première visite à ce dernier amour.
Soube que, após longo sofrimento,
Agravara-se a tua enfermidade;
Viva a esperança que eu nutria ainda
Despedaçou cruel fatalidade.
Et quand mon âme accourt, depuis longtemps absente,
Votre fenêtre est close et votre seuil fermé ;
Et voilà qu'on me dit qu'une tombe récente
Couvre à jamais le front que j'avais tant aimé.
Vi, apertado de fatais lembranças,
A escada que eu subia tão contente;
E as paredes, herdeiras do passado,
Que vêm falar dos mortos ao vivente.
On me dit froidement qu'après une agonie
Qui dura quatre mois, le mal fut le plus fort,
Et la fatalité́ jette avec ironie,
A mon espoir trop prompt, le mot de votre mort !
Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
E evoquei o fantasma da ventura
Que outrora um céu de rosas nos abria.
J'ai revu, me courbant sous mes lourdes pensées,
L'escalier bien connu, le seuil foulé souvent,
Et les murs qui, témoins des choses effacées,
Pour lui parler du mort, arrêtent le vivant !
Sentei-me à mesa, onde contigo outrora,
Em noites belas de verão ceava;
Desses amores plácidos e amenos
Tudo ao meu triste coração falava.
Je montai ; je rouvris, en pleurant, cette porte
Que nous avions ouverte en riant tous les deux,
Et dans mes souvenirs j'évoquai, chère morte,
Le fantôme voilé de tous nos jours heureux.
Fui ao teu camarim, e vi-o ainda
Brilhar com o esplendor das mesmas cores;
E pousei meu olhar nas porcelanas
Onde morria inda algumas flores...
Je m'assis à la table où, l'un auprès de l'autre,
Nous revenions souper aux beaux soirs du printemps,
Et de l'amour joyeux, qui fut jadis le notre,
J'entendais chaque objet parler en même temps !
374
DUMAS, Alexandre. Causeries. Première série. Paris: Michel Lévy Frères, 1860, p. 13, tradução nossa. No
texto-fonte: “Voici les vers qu’il avait fait, pendant la nuit; qu’on n’oublie pas qu’Alexandre, lorsqu’il les fit, avait
vingt ans à peine”.
375
MIRANDA, José Américo. “Machado de Assis e as traduções que publicou em Crisálidas”. Revista Texto
Poético, [S.l.], v. 13, n. 22, 2017, p. 224
187
Vi aberto o piano em que tocavas;
Tua morte o deixou mudo e vazio,
Como deixa o arbusto sem folhagem,
Passando pelo vale, o ardente estio.
Je vis le piano dont mon oreille avide
Vous écouta souvent éveiller le concert ;
Votre mort a laissé l'instrument froid et vide,
Comme, en partant, l'été́ laisse l'arbre désert !
Tornei a ver o teu sombrio quarto
Onde estava a saudade de outros dias...
Um raio iluminava o leito ao fundo
Onde, rosa de amor, já não dormias.
J'entrai dans le boudoir, cette oasis divine,
Égayant vos regards de ses mille couleurs ;
Je revis vos tableaux, vos grands vases de Chine,
Où se mouraient encor quelques bouquets de fleurs !
As cortinas abri que te amparavam
Da luz mortiça da manhã, querida,
Para que um raio depusesse um toque
De prazer em tua fronte adormecida.
J'ai trouvé votre chambre, à la fois douce et sombre,
Et là, le souvenir veillait fort et sacré ;
Un rayon éclairait le lit donnant dans l'ombre,
Mais vous ne dormiez plus dans le lit éclairé́ !
Era ali que, depois da meia-noite,
Tanto amor nós sonhávamos outrora;
E onde até o raiar da madrugada
Ouvíamos bater – hora por hora!
Je m'assis à côté́ de la couche déserte,
Triste à voir comme un nid, l'hiver, au fond des bois,
Et je rivais mes yeux à cette porte ouverte,
Que vous avez franchie une dernière fois !
Então olhavas tu a chama ativa
Correr ali no lar, como a serpente;
É que o sono fugia de teus olhos
Onde já se queimava a febre ardente.
La chambre s'emplissait de l'haleine odorante
Des souvenirs joyeux, et pâle, j'entendais
Le murmure alterné de l'horloge ignorante
Qui sonnait autrefois l'heure que j'attendais !
Lembras-te agora, nesse mundo novo,
Dos gozos desta vida em que passaste?
Ouves passar, no túmulo em que dormes,
A turba dos festins que acompanhaste?
Je rouvris les rideaux qui, faits de satin rose,
Et voilant, au matin, le soleil à demi,
Permettaient seulement ce rayon qui dépose
La joie et le réveil sur le front endormi.
A insônia, como um verme em flor que murcha,
De contínuo essas faces desbotava;
E pronta para amores e banquetes
Conviva e cortesã te preparava.
Or, c'est là qu'autrefois, ma chère ombre envolée,
Nous restions tous les deux lorsque venait minuit,
Et, depuis ce moment jusqu'à l'aube éveillée,
Nous écoutions passer les heures de la nuit.
Hoje, Maria, entre virentes flores,
Dormes em doce e plácido abandono;
A tua alma acordou mais bela e pura,
E Deus pagou-te o retardado sono.
Alors vous regardiez, éclairée à sa flamme,
Le feu, comme un serpent, dans le foyer courir.
Car le sommeil fuyait de vos yeux, et votre âme
Souffrait déjà̀ du mal qui vous a fait mourir.
Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dous amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.
Vous souvient-il encor, dans le monde où vous êtes,
Des choses de ce monde, et sur les froids tombeaux
Entendez-vous passer ce cortège de fêtes
Où vous vous épuisiez pour trouver le repos ?
Vous souvient-il des nuits où, brûlante, amoureuse,
Tordant sous le baiser votre corps éperdu,
Vous trouviez, consumée à cette ardeur fiévreuse,
Dans vos sens fatigués le sommeil attendu ?
Ainsi qu'un ver rongeant une fleur qui se fane,
L'incessante insomnie étiolait vos jours,
Et c'est ce qui faisait de vous la courtisane –
Prompte à tous les plaisirs, prête à tous les amours !
Maintenant vous avez, parmi les fleurs, Marie,
Sans crainte du réveil le repos désiré́ ;
Le Seigneur a soufflé sur votre âme flétrie,
Et payé d'un seul coup le sommeil arriéré́ .
188
Pauvre fille ! On m'a dit qu'à votre heure dernière
Un seul homme était là pour vous fermer les yeux ;
Et que, sur le chemin qui mène au cimetière,
Vos amis d'autrefois étaient réduits à deux !
Eh bien, soyez bénis, vous deux qui, tête nue,
Méprisant les conseils de ce monde insolent,
Avez, jusques au bout, de la femme connue,
En vous donnant la main, mené́ le convoi blanc !
Vous qui l'aviez aimée et qui l'avez suivie !
Qui n’êtes pas de ceux qui, duc, marquis ou lord,
Se faisant un orgueil d'entretenir sa vie,
N'ont pas compris l'honneur d'accompagner sa mort !
Fonte: Assis (1976); Dumas (1847)
De todo modo, as traduções de Machado de Assis e Gonçalves Braga certamente foram
feitas a partir de alguma versão de “M.D.” conforme publicado em Péchés de Jeunesse e
Causeries. Das 22 estrofes, Machado não traduz a 1ª, 11ª, 12ª, 17ª, 21ª e 22ª, enquanto
Gonçalves Braga inclui a 17a em sua tradução. Esta estrofe que Machado não traduz, mas
traduzida por Braga, traz uma cena carregada de erotismo intenso, o que deve explicar a
eliminação, já que o escritor não era afeito a tais descrições. Além disso, percebemos que na
tradução de Machado a 8ª e 9ª estrofes do texto francês foram invertidas. Curiosamente, a
mesma inversão das 8a e 9a estrofes é vista na tradução de Gonçalves Braga, como ocorre na
tradução em prosa de Leonel de Alencar, mais um indício de que ambos trabalharam a partir
dela.
Além dos outros indícios, apontados por Wilton José Marques, de que Machado de Assis
não traduziu a partir do francês, mas de uma tradução em prosa de Leonel de Alencar, há outros,
mais pontuais, que corroboram a tese de que esta teria sido a fonte de Machado de Assis.
Comparemos, por exemplo, os dois primeiros versos da sexta estrofe no poema de Dumas e nas
versões de Machado e Alencar:
Dumas:
Je montai ; je rouvris, en pleurant, cette porte
Que nous avions ouverte en riant tous les deux,
Machado de Assis:
Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
Leonel de Alencar:
Subi, tornei a abrir essa porta, chorando, que um
dia ambos chorando abrimos tão infelizes.
Repare-se que no poema em francês o poeta lembra que ambos um dia abriram a porta rindo
(“en riant tous les deux”), enquanto nas versões de Alencar, de 1856, e de Machado eles estão
189
chorando. Temos mais um exemplo na estrofe seguinte, da qual citaremos, novamente, somente
os dois primeiros versos:
Dumas:
Je m'assis à la table où, l'un auprès de l'autre,
Nous revenions souper aux beaux soirs du printemps,
Machado de Assis:
Sentei-me à mesa, onde contigo outrora,
Em noites belas de verão ceava;
Leonel de Alencar:
Assentei-me a essa mesa onde vínhamos cear nas
noites de verão.
Novamente reparamos que tanto na versão de Alencar quando na de Machado de Assis eles
ceavam em noites de versão, enquanto no poema francês era uma noite de primavera. Ainda
que se possa argumentar que Machado escolheu “verão” em vez “primavera”, como no texto
francês (“aux beaux soirs de printemps”), por causa da métrica, a similaridade com a versão de
Alencar é inegável.
Conjeturas à parte, cabe de fato discutir como Machado procede ao traduzir Dumas,
como se sai na empreitada e o que nos revela sobre sua prática. Neste ponto, concordamos com
a avaliação final de Jean-Michel Massa: possivelmente comovido e inspirado com a leitura do
texto de Dumas, compõe um novo texto, mais comovente, com outro tom, que oculta sua
banalidade original376. Apesar dos elogios, Massa se refere ao texto de Machado como “cópia”.
Ora, se o tom é novo, se a peça comove mais, se oculta a banalidade da elegia francesa, chamarlhe “cópia” é diminuir o seu valor.
Assim como nos casos anteriores, compor um novo texto, como sugere Massa, é uma
necessidade quando se trata de traduzir poesia de forma que se obtenha um poema como
resultado. Definitivamente esta era a intenção de Machado de Assis quando cria sua versão de
“M.D.”: mais do que uma tradução, um poema. Mas o que leva Massa a observar um novo tom,
menos banal e mais comovente na tradução de Machado de Assis?
A elegia de Dumas Filho é um texto bastante visual, com um poeta que rememora seu
relacionamento com a falecida Marie Duplessis: a carta com a promessa do retorno que só se
dá após a morte, as janelas e portas fechadas simbolizando a inacessibilidade da amada, a morte
após certa agonia relatada por outros, os aposentos e objetos pessoais, as memórias dos dois
juntos que tais lugares e objetos evocaram. O poema tem um tom bastante elegíaco, mas às
vezes peca no excesso de detalhes que nada acrescentam às lamentações de quem perdeu um
376
MASSA, 2008, p. 72
190
ente querido. Apesar de manter-se bastante próximo do sentido geral do poema, se observarmos
as supressões de Machado de Assis, veremos que o tradutor parece ter percebido alguns
excessos e procurado dar um tom mais conciso, mais sintético ao seu texto.
O poema de Machado não nos diz, por exemplo, que o sofrimento de Maria Duplessis
“durou quatro meses” (“dura quatre mois”), que o ouvido ávido do jovem escutava o piano que
agora está mudo, algo suficientemente implícito, que as cortinas eram de “cetim rosa” (“satin
rose”), que um só homem estava à cabeceira “para fechar os olhos” (“pour vous fermer les
yeux”) ou que somente dois amigos levaram-na à cama derradeira “pelo caminho que leva ao
cemitério” (“sur le chemin qui mène au cimetière”). Esses são apenas alguns exemplos de
supressões que denotam claramente que Machado procurou eliminar do texto o que lhe
parecesse supérfluo. A última estrofe é um dos melhores exemplos do resultado que o trabalho
de supressão atinge, conferindo ao texto a condensação necessária ao texto poético,
Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dois amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.377
bem diferente do prosaísmo expansivo do texto francês:
Pauvre fille ! on m’a dit qu’à votre heure dernière,
Un seul homme était là pour vous fermer les yeux,
Et que, sur le chemin qui mène au cimetière,
Vos amis d’autrefois étaient réduits à deux !378
Machado até mesmo emenda uma inconsistência do texto francês nos versos “Un rayon
éclairait le lit dormant dans l’ombre” que traduz primeiramente por “Um raio iluminava o leito
à sombra”, conforme se lê no Diário do Rio de Janeiro, mas que em Crisálidas lê-se “Um raio
iluminava um leito ao fundo”, sem alterar a métrica ou a distribuição dos acentos no verso.
Afinal, se um raio iluminava o leito, não faria muito sentido dizer que o leito estava “à sombra”.
Em geral, percebe-se que o texto de Machado, mesmo que derivado de uma tradução
em prosa para a língua portuguesa, recria livremente o poema de Dumas Filho. O produto do
trabalho nos mostra que o tradutor não deixou o texto-fonte ditar as regras para o seu texto, mas
procurou compor um poema que retome a temática, as imagens, as cenas do texto-fonte e com
estes elementos criar um poema seu. O tom elegíaco não só é mantido na tradução, como é
reforçado pelo caráter mais conciso, sintético de Machado em face do prosaísmo de Dumas
377
378
ASSIS, 1976, p. 201
DUMAS FILS, 1847, p. 397
191
Filho; as imagens são mantidas, ou mesmo emendadas, adaptadas em conformidade com o
efeito que se procurou atingir, deixando de lado todo material que não fosse imprescindível à
tarefa.
6.6 “Alpujarra”
A última das traduções de Crisálidas, “Alpujarra”, foi publicada pela primeira vez,
conforme anota Galante de Sousa, no Jornal das Famílias de julho de 1863, pp. 216-218.
Informa ainda que na versão do periódico há 17 quadras, das quais a 15ª foi omitida em
Crisálidas. Conquanto não tenhamos encontrado a edição do Jornal das Famílias em que o
texto foi publicado pela primeira vez, há notícia da publicação na edição de 27 de junho de
1863 do Diário do Rio de Janeiro, em que se lê que no nº 7 do Jornal das Famílias, na seção
“Poesias”, está a tradução “Alpujarra” de Machado de Assis379. Esta publicação original
apresenta variantes textuais em relação à que saiu em Crisálidas, onde o texto está datado como
sendo de 1862. É com esta tradução que Machado de Assis inicia seu período de colaboração
no Jornal das Famílias, conforme nota o biógrafo Magalhães Júnior380.
Note-se que a indicação do ano de 1862, presente tanto em “Alpujarra” quanto em
“Polônia” na primeira edição de Crisálidas, não deve estar certa: “Polônia”, poema publicado
pela primeira vez com o título “O Acordar da Polônia” n’O Futuro em março de 1863, foi muito
provavelmente inspirado pela Revolta de Janeiro, insurreição polonesa contra a Rússia tzarista,
iniciada em 22 de janeiro daquele ano. Logo, não teria como ser anterior ao evento. Isso também
poderia explicar o interesse de Machado de Assis por Adam Mickiewicz, cujo nome aparece na
epígrafe de “Polônia” e de quem Machado traduz a balada presente em Konrad Wallenrod. Na
avaliação de Massa,
[...] “Alpujarra” é uma balada patriótica em que a escolha comporta um significado
menos literário que nacional. Machado de Assis desejou marcar uma identidade de
visão com o herói do poema. Traduzindo “Alpujarra” o jovem escritor brasileiro
oferece um exemplo a seus compatriotas e se alista no campo dos defensores do Brasil
no momento do caso Christie. Desse modo, “Alpujarra” abre o ciclo de poesias
patrióticas compostas por nosso escritor.381
As primeiras pistas sobre o texto-fonte utilizado para fazer esta tradução foram deixadas
pelo próprio Machado de Assis que, em nota ao poema, escreve: “Este canto é extraído de um
379
Cf. DIÁRIO do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 jun. 1863, p. 1
MAGALHÃES JR., 2008, p. 384
381
MASSA, 2008, p. 76
380
192
poema do poeta polaco Mickiewicz, denominado Conrado Wallenrod. Não sei como
corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Cristiano Ostrowski”382.
É, portanto, mais uma tradução indireta, como “As ondinas”, que estudamos anteriormente, e
“Deuses da Grécia”, que aparecerá em Falenas. Em nota que acompanha “Alpujarra” no
volume A poesia completa, Rutzkaya Queiroz dos Reis informa que a “[...] expressão usada por
Machado de Assis, ‘extraída’, não esclarece se houve tradução, adaptação, ou simples
aproveitamento do tema”383. Como Konrad Wallenrod é um longo poema narrativo de
Mickiewicz, e a balada “Alpujarra” é somente um excerto da obra, acreditamos que por
“extraída” Machado quisesse dizer exatamente isso: trata-se de um trecho que narra um
episódio de uma obra mais longa e que pode ser lido isoladamente sem grandes prejuízos na
compreensão do episódio.
O Konrad Wallenrod de Adam Mickiewicz (1798-1855) foi publicado em 1828, durante
seu exílio na Rússia, que durou de 1824 a 1829. A data da publicação do poema de Mickiewicz
é bastante significativa, pois está bastante próxima da gênese do romantismo polonês, que se
iniciou através do próprio Mickiewicz com a publicação do seu primeiro volume das Baladas
e romances em 1822 e de outra data importante, o levante de 1830, que levará vários poetas,
entre eles o próprio Mickiewicz, ao exílio no estrangeiro384. Konrad Wallenrod foi escrito por
Mickiewicz em protesto pela divisão do território em que hoje está a Polônia entre o Império
Russo, Áustria e o Reino da Prússia. Na História da Literatura Polonesa (2000) de Henryk
Siewierski, o herói de Konrad Wallenrod é descrito como “[...] um novo tipo de herói, um
rebelde trágico” de um poema que valoriza “[...] a visão de mundo do povo, o fantástico, o
sentimento, a espiritualidade”385. O levante armado de 1830 que inspirou os poetas da geração
de Mickiewicz se repetiu em 1863: o “Levante de Janeiro” daquele ano foi mais uma revolta
na tentativa de recuperar a liberdade do país através da luta armada386, o que provavelmente
despertou o interesse de Machado pela poesia polonesa.
Mickiewicz torna-se assim um dos expoentes do romantismo polonês, que para Paul
Van Tieghen, em Le romantisme dans la littérature européenne (1969), é o romantismo de um
país mártir, de caráter essencialmente nacional387. Mickiewicz, de certa forma, inaugura a
poesia polonesa romântica, de cuja primeira geração foi integrante, e se mostra um dos
382
ASSIS, 1976, p. 216
Id., 2009a, p. 322
384
SIEWIERSKI, Henryk. História da literatura polonesa. Brasília: UnB, 2000, p. 72
385
Ibid., p. 75
386
Ibid., p. 73
387
TIEGHEM, 1969, p. 199-200
383
193
exemplos mais completos e perfeitos do romantismo europeu. Dono de uma obra extensa e
variada, o leitor encontra nele desde a imaginação fantástica ao realismo épico e o misticismo.
Mickiewicz é um poeta inspirado pela reflexão, e em sua poesia a sensação forma uma perfeita
unidade com a expressão, uma vez que é um mestre da forma poética388. Natural, portanto, que
o poeta Machado de Assis se deixe inspirar por ele e procure traduzi-lo, como se quisesse
desvendar os mecanismos que fazem sua obra funcionar, demonstrando claro interesse em
estabelecer uma filiação com o poeta polonês, ampliando seus horizontes literários e
acrescentando na literatura brasileira algumas páginas que nos fazem refletir sobre o processo
de independência frente a uma força estrangeira.
O longo poema narrativo Konrad Wallenrod (1828) é introduzido por um breve prefácio
do próprio autor que esboça a história da região, a formação da nação lituânica. Mickiewicz
afirma que a história ainda não havia sido capaz e explicar como uma nação tão frágil como a
Lituânia foi capaz de enfrentar todos os seus inimigos, mantendo-se em constante guerra com
a Ordem Teutônica, de um lado, enquanto pilhava a Polônia, de outro, exigindo tributos e
avançando até as fronteiras de Volga e da península da Crimeia. Ao final do prefácio,
Mickiewicz explica que as circunstâncias por ele relatadas, que cobrem alguns séculos de
história, pertencem agora ao passado e se tornaram tema para poesia. Curiosamente, depois de
explicar como o poeta deve se comportar diante dos eventos – investigar a fundo e dar um
tratamento artístico aos assuntos sem levar em conta os anseios do público –, Mickiewicz
encerra seu prefácio com dois versos finais de um poema de Friedrich Schiller que Machado de
Assis também traduzirá e incluirá em Falenas anos mais tarde: “Os deuses da Grécia”. Os
versos – “Was unsterblich im Gesang will leben, / Muss im Leben untergehen” – pedem que as
musas imortalizem aquilo que se foi para sempre do plano terreno e que sobreviverá somente
na poesia. É esta a lição de Schiller que Mickiewicz pedem que os poetas sigam. Teria Machado
de Assis se inspirado nesta lição e partido daí seu interesse por conhecer e traduzir o poema de
Schiller? Obviamente, não podemos afirmar isso, mas se trata de uma hipótese interessante.
O poema Konrad Wallenrod é dividido em seis cantos – “Élection”, “La Récluse”,
“L’entretien”, “Orgie”, “Une croisade” e “Les Adieux”, na tradução de Ostrowski – que narram
a história de Wallenrod, que fora capturado pela Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, inimigos
de sua nação, e por eles criado dentro da fé cristã. Wallenrod ascende à posição de Grão-Mestre
da Ordem Teutônica para, da mais alta posição de comando, vingar seu povo levando
deliberadamente a ordem que comanda a uma grande derrota militar, traição que lhe rende a
388
TIEGHEM, 1969, p. 205
194
pena de morte, da qual escapa cometendo suicídio quando sua companheira se recusa a
acompanhá-lo na fuga. Trata-se, portanto, de uma personagem claramente byroniana, que
possui características ainda mais nobres que as criadas pelo próprio Byron: Wallenrod é um
herói que sofre e se sacrifica por um bem maior do que si mesmo.
Alpujarra, a balada que Machado traduz, é cantada pelo próprio Konrad Wallenrod
durante uma noite de festas – no canto “Orgie” – e logo após os presentes ouvirem um relato
de um velho bardo que evoca a própria condição de Wallenrod: um traidor infiltrado que derrota
seus inimigos unindo-se a eles. A canção escolhida por Wallenrod, em tom de resposta ao bardo
que há pouco narrara uma história semelhante à sua, como se dissesse que entendera a alusão a
si próprio, reforça o tema do relato anterior e é uma forma de Wallenrod admitir ser ele mesmo
um traidor, sem deixar cair sua máscara, ao tratar da derrota dos muçulmanos e a tomada do
castelo de Alpujarra pelos espanhóis. O líder muçulmano, Almansor, se entrega e pede para
falar com os chefes dos vencedores, prostra-se diante deles e diz estar disposto a, unido a eles,
professar a fé cristã. Esta é a última estratégia de Almansor para infligir seu golpe final sobre
os inimigos: fingindo rendição, afeto e conversão, ao cumprimentá-los com abraços e beijos,
transmite-lhes a peste negra, condenando-os à morte. Estamos, portanto, diante de um poema
que faz amplo uso das máscaras sociais como forma de ascensão ao poder e à aceitação social,
embora voltado principalmente para a representação de uma figura nobilíssima, que entrega sua
própria vida, que entra em profundo conflito com seus mais caros valores, em prol de um bem
maior.
É possível, portanto, especular um pouco e ir além de Massa nos motivos que podem
ter ensejado a inclusão de “Alpujarra” em Crisálidas: sob a roupagem de uma defesa patriótica
e da soberania nacional, com a “desculpa” de apresentar um modelo aos jovens que defendiam
a nação, o que se apresenta também é um interessantíssimo estudo da índole do homem, do uso
da dissimulação para se conseguir os objetivos desejados, algo que qualquer leitor atento de
Machado de Assis reconhecerá facilmente em diversos momentos de sua obra ficcional.
Na sua versão, Machado de Assis escreve dezesseis quadras em versos decassílabos
heroicos e sáficos não rimados. A de Ostrowski possui dezoito quadras de versos decassílabos
e octossílabos, com rimas no esquema ABAB, ambas reproduzidas abaixo:
Quadro comparativo 12 – “Alpujarra” e versão francesa de “Alpuhara” de Mickiewicz
Alpujarra
(Mickiewicz- 1862)
Alpuhara
Ballade
Jaz em ruínas o torrão dos mouros;
Déjà du Christ l’étendard triomphant
195
Pesados ferros o infeliz arrasta;
Inda resiste a intrépida Granada;
Mas em Granada a peste assola os povos.
Des Maures a vu fuir le reste ;
Seule et sans peur Grenade se défend,
Mais Grenade en proie à la peste.
Cum punhado de heróis sustenta a luta
Fero Almansor nas torres de Alpujarra;
Flutua perto a hispânica bandeira;
Há de o sol d’amanhã guiar o assalto.
Almanzor seul des tours d’Alpuhara
Sème d’atroces funérailles ;
Demain, le chef espagnol les prendra,
Car demain il monte aux murailles.
Deu sinal, ao romper do dia, o bronze;
Arrasam-se trincheiras e muralhas;
No alto dos minaretes erguem-se as cruzes;
Do castelhano a cidadela é presa.
Voici le jour !... Déjà des toutes parts
Le canon gronde, le fer brille;
Déjà la croix flotte sur les remparts :
En avant, Burgos et Castille !
Só, e vendo as coortes destroçadas,
O valente Almansor após a luta
Abre caminho entre as imigas lanças,
Foge e ilude os cristãos que o perseguiam.
Le roi, voyant ses meilleurs chevaliers
Morts ou prisonniers, prend la fuite
Vole à travers champs, manoirs et halliers
Des vainqueurs trompant la poursuite.
Sobre as quentes ruínas do castelo,
Entre corpos e restos da batalha,
Dá um banquete o Castelhano, e as presas
E os despojos pelos seus reparte.
Campéador fait servir un festin
Au milieu des palais en flammes ;
Les Espagnols partagent le butin,
Appellent du vin et des femmes.
Eis que o guarda da porta fala aos chefes:
“Um cavaleiro, diz, de terra estranha
Quer falar-vos; notícias importantes
Declara que vos traz, e urgência pede.”
Soudain la garde annonce aux généraux
Qu’un Maure au sinistre visage,
Sans doute un prince, un guerrier, un héros,
S’avance et présente un message.
Era Almansor, o emir dos Muçulmanos,
Que, fugindo ao refúgio que buscara,
Vem entregar-se às mãos do Castelhano,
A quem só pede conservar a vida.
C’est Almanzor, le chef des musulmans !
Qui, voyant Grenade asservir,
Vient se livrer à la foi des serments
Et ne demande que la vie.
“Castelhanos, exclama, o emir vencido
No limiar do vencedor se prostra;
Vem professar a vossa fé́ e culto
E crer no verbo dos profetas vossos.
« Fiers Espagnols, je reviens dans ce lieu
« Converti par tant de défaites,
« Bénir vos lois, adorer votre Dieu,
« Croire enfin à tous vos prophètes.
“Espalhe a fama pela terra toda
Que um árabe, que um chefe de valentes,
Irmão dos vencedores quis tornar-se,
E vassalo ficar de estranho cetro!”
« Vous triomphez ! Allah ! c’était écrit.
« Qu’il soit dit par toute la terre
« Qu’hier un prince, à présent un proscrit,
« Du chrétien sera tributaire. »
Cala no ânimo nobre ao Castelhano
Um ato nobre... O chefe, comovido,
Corre a abraçá-lo, e à sua vez os outros
Fazem o mesmo ao novo companheiro.
Les Espagnols estiment la valeur ;
Chacun, déplorant sa disgrâce,
Lui tend la main, console son malheur :
Le roi salue et l’embrasse.
Às saudações responde o emir valente
Com saudações. Em cordial abraço
Aperta ao seio o comovido chefe,
Toma-lhe as mãos e pende-lhe dos lábios.
Lui dans ses bras étreint tour à tour ;
Et dans un baiser plein de fièvre,
Au souverain témoignant son amour,
L’embrasse et se pend à sa lèvre.
Súbito cai, sem forças, nos joelhos;
Arranca do turbante, e com a mão trêmula
O enrola aos pés do chefe admirado,
E junto dele arrasta-se por terra.
Puis il chancelle, il pâlit en tombant ;
Mais sa main tremblante, ó mystère !
Aux pieds du prince attache son turban :
Il rampe après lui sur la terre.
Os olhos volve em torno e assombra a todos:
Sur l’assemblée il jette ses regards
196
Tinha azuladas, lívidas as faces,
Torcidos lábios por feroz sorriso,
Injetados de sangue ávidos olhos.
Pleins d’un feu sinistre et farouche ;
Un rire affreux crispe ses traits bagards :
L’écume a jailli par sa buche.
“Desfigurado e pálido me vedes,
Ó infiéis! Sabeis o que vos trago?
Enganei-vos: eu volto de Granada,
E a peste fulminante aqui vos trouxe.”
« Regardez-moi tous, je vous ai trahis.
« Giaours ! Almanzor vous déteste !
« Je vais mourir ; Grenade est mon pays :
« Je suis l’envoyé de la peste !
« Dans un baiser j’ai transmis à vos cœurs
« Le feu mortel qui me dévore.
« Vous mourrez tous comme moi, mes vainqueurs !
« Voici la vengeance du Maure ! »
Il tord ses bras, se roule à leurs genoux ;
Le sang inonde sa prunelle :
Contre son cœur il veut les presses tous
D’une étreinte horrible, éternelle !
Ria-se ainda – morto já́ – e ainda
Abertos tinha as pálpebras e os lábios:
Um sorriso infernal de escárnio impresso
Deixara a morte nas feições do morto.
Il rit encore avec férocité ;
Son regard pâlit et s’efface :
Riant, il meurt : et pour l’éternité
Ce rire est figé sur sa face.
Da medonha cidade os castelhanos
Fogem. A peste os segue. Antes que a custo
Deixado houvessem de Alpujarra a serra,
Sucumbiram os últimos soldados.
L’Espagnol fuit ; mais la mort suivra :
Une mort honteuse et funeste.
Sujet ou prince, autour d’Alpuhara
Rien ne doit survivre à la peste !
Fonte: Assis (1976); Mickiewicz (1859)
Percebe-se, portanto, que faltam duas estrofes à tradução de Machado, as destacadas
em itálico na tradução de Ostrowski, ausência que Massa atribuiu ao excesso de violência da
cena omitida, que poderia chocar os leitores do Jornal das Famílias389.
O poema de Mickiewicz em tradução de Ostrowski é, decerto, carregado de violência e
de intensa carga dramática. Estamos diante da narrativa dos últimos momentos do mouro
Almanzor, que vê seu reino cair diante da invasão espanhola ao mesmo tempo em que é
assolado pela peste negra. Nas primeiras estrofes somos apresentados a um Almansor que luta
ferozmente para proteger o que resta das torres de Alpujarra enquanto vê seus últimos
guerreiros morrer. Mais à frente, descobrimos que um mouro de aspecto sinistro, mas que
parece alguém de elevada posição social, se entrega aos espanhóis e pede para ser levado aos
comandantes dizendo-se convertido ao cristianismo e disposto a servir os conquistadores. Os
espanhóis alegram-se com a rendição e Almansor é saudado com beijos e abraços. Após
cumprimentar o soberano espanhol, Almansor cambaleia e cai, tomado de febre, rastejando
atrás do monarca e lançando sobre todos um olhar cheio de ódio, rindo assustadoramente e
espumando pela boca. Almansor então admite que se entregou com o único propósito de
389
MASSA, 2008, p. 76
197
transmitir a peste aos inimigos numa atitude que lembra o presente dos gregos aos troianos. Nas
estrofes não traduzidas por Machado de Assis descobrimos que com um beijo Almansor havia
transmitido aos conquistadores a peste que o mataria, mas também daria fim a todos os demais,
executando sua vingança. Almansor então se contorce e sangra, desejando abraçar a todos e,
assim, transmitir-lhes a peste negra. O mouro morre sorrindo, sabendo que a peste negra
perseguirá até o último espanhol, seja ele nobre ou não.
Evidentemente, há alterações pontuais na versão de Machado de Assis, com alguns
acréscimos, supressões e divergências dos quais tomaremos alguns exemplos para
comentarmos adiante, mas que em nada implicam em uma leitura diferente da que
apresentamos. É nítido o quanto o poeta-tradutor buscou se ater ao sentido central do textofonte.
Com o estudo que fizemos de “O casamento do diabo”, ao demonstrarmos que Machado
quase certamente foi sincero ao afirmar que o texto era “imitado do alemão”, abriu-se o
precedente de que Machado pudesse ter contado com a ajuda de amigos para intermediar sua
leitura de textos em língua que desconhecesse, como o alemão naquele caso. Isso é algo que
passamos a considerar em todas as outras traduções indiretas. Como não há nenhuma notícia
de que Machado sequer tenha se interessado pelo estudo do polonês, e diante de sua admissão
de que utilizou a versão francesa de Ostrowski, o caminho mais fácil seria limitar o estudo da
tradução de Machado à comparação com a versão francesa indicada por ele, principalmente
porque o autor diz não saber como esta versão corresponderia ao original.
Todavia, o artigo de Edgar C. Knowlton, Jr., “Mickiewicz and Brazil’s Machado de
Assis”, de publicado no periódico The Polish Review em 1981, traz uma leitura instigante sobre
esta tradução de Machado. O autor chama a atenção para a falta de estudos sobre a influência
do poeta polonês sobre os latino-americanos, e apresenta como evidência dessa influência o
caso de Machado de Assis, de quem estuda os poemas “Polônia”, que traz uma epígrafe de
Mickiewicz, e “Alpujarra”, ambos de Crisálidas. Sobre “Polônia”, que cita na íntegra e traduz
em prosa livre, o crítico é breve e diz ser este um dos mais impressionantes poemas que
Machado inclui em seu primeiro livro de poesia390.
Todavia, o que sugere a partir de sua análise de “Alpujarra” desperta maior curiosidade
e interesse: primeiramente, informa que na época em que Machado realiza sua tradução a versão
de Ostrowski para o poema de Mickiewicz havia sido publicada em diferentes edições, o que o
390
KNOWLTON, Jr., Edgar C. “Mickiewicz and Brazil’s Machado de Assis”. The Polish Review, v. 26, n. 1,
1981, p. 51
198
leva a colocar em dúvida a afirmação de Jean-Michel Massa de que Machado de Assis “sem
dúvida” utilizou a versão “de Christian Ostrowski, Paris, 1845, p. 315-316”391, sem explicar o
que o levou a tal conclusão392. Informa ainda que há pelo menos quatro edições das traduções
de Ostrowski, todas publicadas em Paris nos anos de 1841, 1845, 1849 e 1859, além de uma
quinta, citada por ele anteriormente: trata-se de Adama Mickiewicza Konrad Wallenrod i
Grażyna z przekładem francuskim Kryst. Ostrowskiego, angielskim Leona Jabłońskiego, de
1851, que traz o texto em polonês e duas traduções, a francesa de Ostrowski e outra para o
inglês feita por Leon Jabłońskiego. Para Knowlton, Jr., se Machado de Assis teve acesso a essa
edição, ele poderia ter utilizado as duas traduções para compor a sua versão, supondo que
conhecia as duas línguas. Esta é a sua “hipótese atraente”: quando examina as correspondências
palavra-por-palavra das versões polonesa, francesa, inglesa e brasileira, a sugestão de que
Machado de Assis teria utilizado aquela edição se torna uma suposição interessante, ainda que
deva ser vista com reservas. Reproduzimos a seguir, na íntegra, o quadro criado por Knowlton,
Jr.393 para acompanhá-lo em suas conclusões e propor as nossas:
Quadro comparativo 13 - Correspondências da tradução de Machado de Assis com as versões
polonesa, francesa e inglesa
Polonês
Francês
Inglês
Português
(Mickiewicz)
(Ostrowski)
(Jabłoński)
(Machado de Assis)
w gruzach
Maurów
źelaza
jeszcze
Ale w Grenadzie
zaraza
z garstką
Alpuhary
Jutro
mur
Jeden
widząc
groty
ruinie
ucztę
rycerz
z obcéj krainy
nowiny
muzułmanów
w ręce
źycie
Hiszpanie
Waszym prorokom
391
Des Maures
chains
still
la peste
the plague
D’Alpuhara
Demain
Alpuhara’s
walls
voyant
un festin
Campéador
un message
des musulmans
la vie
Espagnols
vos prophètes
MASSA, 2008, p. 111
KNOWLTON, Jr., Op. Cit., p. 54
393
KNOWLTON, Jr., 1981, p. 54-55
392
lances
ruins
a feast
life
Spaniards
em ruínas
dos mouros
ferros
Inda
Mas em Granada
a peste
com punhado
de Alpujarra
amanhã
Muralhas
Só
Vendo
Lanças
Ruínas
um banquete
um cavaleiro
da terra estranha
Notícias
dos Muçulmanos
às mãos
a vida
Castelhanos
profetas vossos
199
Że Arab
Wassalem
tributaire
inni
towarzysza
ręce
Na ustach jego
Fonte: Knowlton, Jr (1981)
vassal
the rest
his hand
upon his lips
Que um árabe
Vassalo
os outros
Companheiro
as mãos
dos lábios
A partir do exame do quadro acima, Knowlton, Jr. observa que há muito em comum
entre a versão inglesa e a de Machado de Assis, assim como há casos em que Machado está
mais próximo do texto polonês do que mesmo as versões inglesa ou francesa, daí sua sugestão
de que Machado poderia ter utilizado as versões traduzidas como guia que não seria seguido à
risca, mas utilizado em cotejo com o texto em polonês394.
Observemos os números mais atentamente por um instante: dos 29 casos sugeridos por
Knowlton, Jr., oito só possuem correspondentes diretos com o texto inglês, sete só possuem
correspondente direto com o texto francês e apenas três possuem correspondentes tanto no texto
inglês quanto no francês. São particularmente interessantes as sete escolhas de Machado não
possuem correspondente nas versões inglesa ou francesa, e que, tomadas isoladamente, são
traduções diretas e praticamente literais dos termos poloneses. É curioso notar ainda o
considerável equilíbrio entre aquilo que Machado poderia ter pinçado ora do texto francês, ora
do inglês, ora do polonês.
É possível que nunca tenhamos certeza a respeito do texto-fonte utilizado por Machado
de Assis, mas admitir unicamente a fonte indicada por Massa a partir da nota que o próprio
Machado de Assis deixou é algo certamente problemático. Vejamos, por exemplo, a primeira
estrofe do poema, que contém dois exemplos de que, segundo Knowlton, Jr., Machado teria
consultado diretamente o texto polonês, e outro que teriam vindo da versão inglesa:
Jaz em ruínas torrão dos mouros;
Pesados ferros o infeliz arrasta;
Inda resiste a intrépida Granada;
Mas em Granada a peste assola os povos.395
Już w gruzach leżą Maurów posady,
Naród ich dźwiga żelaza,
Bronią się jeszcze twierdze Grenady,
Ale w Grenadzie zaraza.396
394
KNOWLTON, Jr., 1981, p. 55
ASSIS, 1976, p. 211
396
MICKIEWICZ, Adam. Konrad Wallenrod i Grażyna z przekładem francuskim Kryst. Ostrowskiego, angielskim
Leona Jabłońskiego. Paris: W Drukarni Benard I SPki Niegdyś Lacrampe I SPki , 1851, p. 110
395
200
Destacamos em itálico os trechos que Knowlton, Jr. sugere terem sido traduzidos
diretamente do polonês. Há a possibilidade de que o primeiro verso fosse traduzido exatamente
daquela forma, sem que Machado tivesse visto o texto polonês, por mera coincidência, mas
seria imprudente rechaçarmos a possibilidade. Nos primeiros versos da versão de Ostrowski
lemos:
Déjà du Christ l’étendard triomphant
Des Maures a vu fuir le reste
Seule et sans peur Grenade se défend,
Mais Grenade en proie à la peste.397
Ao passo que na tradução inglesa do mesmo volume encontramos:
Low lie the forts of the vanquished Moor;
He groans’ neath the chains of the conqueror.
Grenadas regal citadel
Fiercely beleaguered, holds out still
But the plague is raging there.398
Knowlton, Jr. observa que somente no texto polonês há a informação de que o castelo
estava em ruínas, e que, portanto, Machado teria conhecido o texto. Entre tal possibilidade e a
de que a tradução é fruto de mera coincidência, preferimos a hipótese de Knowlton, Jr. neste
caso. Porém, ele também sugere que “Mas em Granada” na tradução de Machado teria vindo
diretamente de “Ale w Grenadzie” que, embora seja de fato traduzível daquela forma, a versão
francesa, “Mais Grenade”, é igualmente próxima, diferenciando-se somente pela ausência da
preposição “w”/“em”. É igualmente concebível que no caso em questão Machado tivesse se
valido também da versão inglesa, mais expansiva no trecho, mas que também utiliza a
conjunção adversativa no verso “But the plague is raging there”, sendo que “there” refere-se,
obviamente, a Granada. Menos convincente, portanto, do que o caso anterior. Por outro lado,
as sugestões de que Machado teria consultado primariamente a versão inglesa em outros casos
da mesma estrofe são igualmente convincentes: “Pesados ferros o infeliz arrasta” de fato parece
provir de “He groans’ neath the chains of the conqueror”, assim como “holds out still” ecoa
diretamente em “Inda resiste”.
Nos dois primeiros versos da estrofe seguinte também temos na tradução de Machado
fortes indícios de que teria consultado o texto polonês conforme sugere Knowlton, Jr., embora
a versão inglesa também seja próxima da tradução de Machado, enquanto a francesa
397
398
MICKIEWICZ, 1851, p. 110.
Ibid.
201
definitivamente não contém a mesma informação que as demais. Vejamos o trecho nas três
línguas, com o destaque em itálico na informação que nos interessa:
Broni się jeszcze z wież Alpuhary
Almanzor z garstką rycerzy,399
In Alpuhara’s towers, a band
With the brave Almanzor still keeps their stand.400
Cum punhado de heróis sustenta a luta
Fero Almansor nas torres de Alpujarra;401
Na versão de Ostrowski, ao contrário das demais como se lê acima, Almansor está “só”
(“seul”); na tradução para o inglês há duas referências ao fato de que Almansor não está, de
fato, só: “a band” e “their stand”; Machado é o único que traduz literalmente o que está no texto
polonês: “z garstką” pode ser vertido exatamente como “com um punhado de”. Assim, a
tradução de Machado mostra-se bastante próxima do texto polonês, do qual inverte a
informação que está nos dois primeiros versos da segunda estrofe. Conclui-se que a sugestão
da consulta direta ao texto polonês instiga a imaginação, mas é preciso cautela. Se de fato
utilizou o texto francês, poderia ter chegado a tais resultado com o auxílio de algum conhecido
– como provavelmente fizera em traduções a partir do alemão – ou mesmo com o auxílio
dicionários, considerando que os trechos que supostamente são traduções diretas do polonês
não apresentam grande dificuldade, principalmente se lidos ao lado de versões para outros
idiomas melhor conhecidos, o que podemos afirmar com base em nossa própria experiência
estudando esses versos sem saber polonês, contando unicamente com o auxílio de obras de
referência.
Independente de qual ou quais fontes tenha utilizado, a versão de Machado de Assis é
um poema que se destaca entre os que compõem Crisálidas pelo forte tom nacionalista, que só
é encontrado em “Epitáfio do México” e “Polônia”, este igualmente inspirado em Mickiewicz.
“Alpujarra” traduz finamente, na forma e no tom, a balada polonesa, à qual dá nova roupagem:
mantêm-se as quadras, mas o metro passa ser exclusivamente o decassílabo italiano, e as rimas
cruzadas dão lugar ao verso branco, emprestando matizes classicizantes ao relato, como fizera
antes com “A jovem cativa”. Assim, Machado nos diz que não entende a tradução como
necessária rigorosa reprodução de conteúdo e forma conforme as medidas do texto-fonte, mas
como uma criação independente de um poema ao mesmo tempo autônomo e com diferenças
399
MICKIEWICZ, 1851, p. 110
Ibid.
401
ASSIS, 1976, p. 211
400
202
marcadas em relação ao texto-fonte, embora ainda mantenha estreita relação com ele. Desta
forma, o poeta-tradutor Machado de Assis demonstra ser capaz de colocar em prática algo
postulado por Meschonnic: “[...] Traduzir segundo o poema no discurso é traduzir o recitativo,
a narração da significância, a semântica prosódica e rítmica, não a estúpida palavra a palavra
que os alvejadores veem como a procura do poético.”402 Percebemos seu sucesso neste sentido
quando vemos que seu poema não está apegado ao palavra-a-palavra da tradução de Ostrowski,
mas consegue, justamente a partir dos distanciamentos, reencenar a batalha e a vingança de
Almansor. O mérito de Machado de Assis, contudo, não se limita a isso.
Na sua História da Literatura Polonesa, Henryk Siewierski identifica em “A mãe do
cativo”, de Castro Alves, aquele que foi “talvez o primeiro contato entre a poesia brasileira e a
polonesa”:
No dia 24 de junho de 1868, Castro Alves terminou de escrever um poema iniciado
alguns anos antes por Adam Mickiewicz. “A mãe do cativo” de Castro Alves começa
com a transcrição de duas estrofes do poema “A mãe polonesa” (“Do Matki Polki”)
de Adam Mickiewicz em tradução francesa e continua com a sua paráfrase.403
Pensando cronologicamente, é mais provável que o mérito pelo primeiro contato caiba a
Machado de Assis, que cinco anos antes, em março de 1863 publica n’O Futuro “O acordar da
Polônia”, também com epígrafe de Mickiewicz em português, poema aproveitado em
Crisálidas (1864) com o título alterado para “Polônia”, mantendo a epígrafe. Machado de Assis
certamente tinha algum apreço pelo seu poema, pois o revisou antes de incluí-lo em Crisálidas,
alterando-lhe o título e alguns versos, mantendo-o na sua edição final em Poesias completas.
É certo que o poema de Machado de Assis não dialoga com Mickiewicz da mesma forma
e com a mesma intensidade de Castro Alves, que associa o jugo estrangeiro sobre a pátria mãe
à situação de privação de liberdade do escravo. Siewierski sugere inclusive que o poema de
Castro Alves “[...] não deixa de ser uma espécie de tradução do poema de Mickiewicz: uma
tradução imperfeita, indireta, porém fiel”404, identificando a fidelidade na “[...] preservação da
estrutura retórica do original, na transposição de seus motivos principais e nas semelhanças do
ritmo e do verso, mas, antes de tudo, na analogia estabelecida entre a situação da mãe polaca e
a mãe do cativo”405.
Machado de Assis não parecia ser muito afeito aos arroubos nacionalistas comuns a
outros românticos. Antes da publicação de Crisálidas, são poucos os poemas que podemos
402
MESCHONNIC, 2010, p. XXXII
SIEWIERSKI, 2000, p. 86
404
Ibid., p. 87
405
SIEWIERSKI, Op. Cit., p. 87
403
203
listar ao lado de “Epitáfio do México” e “Polônia”. Um desses é “À Itália”, publicado no
Correio Mercantil em 10 de fevereiro de 1859. Trata-se de um poema de dezesseis estrofes
decassilábicas, em que pede o retorno da Itália à sua antiga glória no refrão que se repete nos
dois últimos versos das estrofes pares: “Pálida Itália – ressuscita agora/ O ardor nos peitos – na
esperança a fé”406. Em “À Itália” encontramos também uma referência, na décima segunda
estrofe, à situação polonesa, que Machado cantará anos mais tarde no poema que entra em
Crisálidas:
Olha, a Polônia escravizada chora:
E o sol dos livres inda espera e vê.
Pálida Itália – ressuscita agora –
O ardor nos peitos – na esperança a fé.407
O outro poema é “Hino Patriótico”, publicado na Semana Brasileira e no Diário do Rio
de Janeiro em 18 de janeiro de 1863. Escrito em onze quadras de versos em redondilha maior,
sendo as estrofes ímpares o estribilho que se alterna com as estrofes pares, o poema de Machado
é clara referência à “Questão Christie”xxxi, expressando o inconformismo do povo brasileiro
diante das reparações que a Inglaterra exigia, tendo gozado de boa recepção conforme os
registros da época. Na avaliação do biógrafo Magalhães Júnior, “[o] hino de Machado de Assis,
contribuição de um moço vibrante e cheio de patriotismo, devia ter soado, naquele momento,
como uma clarinada cívica, despertando entusiasmo entre os frequentadores dos teatros da
Corte”408. Como a data de composição de “Epitáfio do México” é incerta, é provável que “Hino
Patriótico” abra o ciclo de poemas nacionalistas que ensejará a criação de “Alpujarra”. “O
Acordar da Polônia” foi publicado em março de 1863, “Alpujarra” em julho daquele ano, e de
“Epitáfio do México” sabemos que foi publicado pela primeira vez em novembro do mesmo
ano no Diário do Rio de Janeiro.
Assim, “Alpujarra” insere-se nesse conjunto de poemas com temas nacionalistas. Em
“Epitáfio do México” o poeta está dizendo que é necessário que os povos sejam respeitados em
suas individualidades e à sua inalienável liberdade, com “Polônia” o poeta continua o discurso
do poema anterior, levantando-se contra o império russo que não respeita a liberdade dos
poloneses. O poema remete a Mickiewicz não só na epígrafe, mas nas referências às marcas da
poesia de Mickiewicz e do romantismo polonês, conforme Siewierski expõe: o messianismo
406
ASSIS, 2009, p. 448
ASSIS, 2009a, p. 449
408
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 218
407
204
que atribui à Polônia uma missão salvadora, a nação crucificada à semelhança de Cristo e sua
ressurreição, que levaria paz e liberdade a todas as nações409. A epígrafe do poema funciona
como uma chave de leitura: “E ao terceiro dia a alma deve voltar ao corpo, e a nação
ressuscitará”410; a Polônia é tratada como “mãe”, assim como nos poemas de Mickiewicz e
Castro Alves:
Em teu ventre de mãe, a liberdade
Parecia soltar esse vagido
Que faz rever o céu no olhar materno;411
As referências à ressurreição e à liberdade aparecem na última estrofe do poema de
Machado, uma das mais belas do poema:
Pobre nação! – é longo o teu martírio;
A tua dor pede vingança e termo;
Muito hás vertido em lágrimas e sangue;
É propícia esta hora. O sol dos livres
Como que surge no dourado Oriente.
Não ama a liberdade
Quem não chora contigo as dores tuas;
E não pede, e não ama, e não deseja
Tua ressureição, finada heroica!412
“Alpujarra”, na medida em que é reescrita de Mickiewicz, é a inserção por Machado de Assis
de um pouco da literatura polonesa na nossa, um gesto ofertório por parte do nosso poeta que
expande os horizontes da poesia de Mickiewicz e, consequentemente, da nossa poesia. Por meio
da tradução, Machado de Assis renova a si mesmo, pois, como bem colocou Massa, com
“Alpujarra” “[...] Machado atinge uma violência que não é habitual em sua poesia (violência
que estará ainda mais marcada na tradução do canto XXV da Comédia)”413.
Com esta que é a última das traduções de Crisálidas Machado de Assis nos ensina que
a tradução poética, para além de não precisar ser necessariamente reprodução de forma e
conteúdo, pode e deve ajudar a expandir os horizontes poéticos de quem e para quem traduz
por meio de experimentações temáticas ou formais. Neste caso, se considerarmos válida a
hipótese de Knowlton, Jr., a lição de Machado de Assis torna-se ainda mais interessante na
medida em que a possibilidade de ter se servido de mais de uma versão, em diferentes idiomas,
para compor a sua mostra que a poesia não está presa a uma determinada língua, cultura, povo
ou poeta, mas a serviço daquele que souber utilizar as ferramentas de que dispõe para reencenar
409
SIEWIERSKI, 2000, p. 76
ASSIS, 2009a, p. 41
411
Ibid., p. 42
412
ASSIS, 2009a, p. 43
413
MASSA, 2008, p. 77
410
205
a obra poética. Assim, a tradução é elevada do patamar do decalque, da mera reprodução servil
de um texto estrangeiro para a recriação poética que segue um caminho que é próprio de quem
traduz.
206
7. As traduções de 1865-1869
As três traduções que incluímos neste capítulo apareceram entre a publicação de
Crisálidas e a de Falenas, não tendo sido recolhidas em nenhuma das obras que Machado de
Assis publicou em vida. São poemas que, embora guardem pouca relação com o restante da
obra do poeta-tradutor, reforçam seu interesse por diversas culturas literárias: em um espaço de
apenas quatro anos temos incursões pelos domínios da literatura alemã, norte-americana e
chilena. Vê-se, portanto, que o poeta-tradutor deixa de gravitar quase que exclusivamente em
torno do domínio francês, especialmente quando se considera que mesmo as traduções de
Crisálidas que não pertenciam à literatura francesa foram traduzidas pelo intermédio da língua
francesa.
Se ainda não é possível dizer que a esta altura Machado de Assis já sabia alemão, a
considerar as traduções “Lua da estiva noite” e “O primeiro beijo” pode-se dizer, com alguma
segurança, que já possuía um conhecimento corrente das línguas inglesa e espanhola.
7.1 “O rei dos ôlmos”
Na edição nº 241 da Semana Ilustrada, publicada em 23 de julho de 1865, encontra-se,
logo após uma das crônicas do Dr. Semana – pseudônimo utilizado também por Machado de
Assis – uma tradução de um poema de Goethe, “O rei dos ôlmos (Balada de Goethe)”, assinado
por Y. Galante de Sousa não inclui esta tradução na sua Bibliografia de Machado de Assis.
Apesar de acreditarmos na hipótese de Magalhães Júnior, mesmo considerando que o
pseudônimo “Y.” tem precedentes na produção de Machado, devemos nos manter abertos à
possiblidade de não ser, afinal, obra dele. Reproduzimos a seguir o poema ao lado do textofonte alemão:
Quadro comparativo 14 – “O rei dos ôlmos” e “Erlkönig”
O rei do ôlmos
(Balada de Goethe)
Erlkönig – Johann Wolfgang von Goethe
Por noite e vento quem cavalga a est’hora?
É o pai com seu filho: ei-lo que avança!
Nos seus braços conduz e leva agora
Contra o peito a aquecer sempre a criança.
Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es ist der Vater mit seinem Kind;
Er hat den Knaben wohn in dem Arm,
Er faβt ihn sicher, er hält ihn warm.
207
- Meu filho, porque escondes tão medroso
No meu seio o teu rosto? – Pai, não vês?
O rei dos ôlmos com coroa e cauda?
- Meu filho, isto é a neblina ali talvez.
Mein Sohn, was birgst du so bang dein Gesicht?
“Siehst, Vater, du den Erlkönig nicht?
Den Erlenkönig mit Kron und Schweif?”
Mein Sohn, es ist ein Nebelstreif.
“Meu querido menino, vem comigo!
“Na praia há muitas flores matizadas;
Lindos brinquedos brincarei contigo;
Minha mãe te fará vestes douradas.”
‘Du liebes Kind, komm, geh mit mir!
Gar schöne Spiele spiel ich mit dir
Manch bunte Blumen sind an dem Strand.
Meine Mutter hat manch gülden Gewand.’
- Meu pai, não ouves o que o rei dos ôlmos
Baixinho me promete e diz-me a mim?
- Acalma-te, meu filho, a voz do vento
Nas folhas secas murmuram assim.
“Mein Vater, mein Vater, und hörest du nicht,
Was Erlenkönig mir leise verspricht?”
Sei ruhig, bleibe ruhig, mein Kind;
In dürren Blättern säuselt der Wind.
“Queres, gentil menino, vir comigo?
“Minhas filhas de ti terão cuidado;
“O ril noturno dançarão contigo,
“Dormirás por seus cantos embalado”
‘Willst, feiner Knabe, du mit mir gehn?
Meine Töchter solln dich warten schön;
Meine Töchter führen den nächtlichen Reihn,
Und wiegen und tanzen und singen dich ein.’
- Meu pai, meu pai, do rei dos ôlmos as filhas
Naquele escuro tu não vês além?
- Meu filho, aquilo são salgueiros velhos
Que ao longe alvejam – eu os vejo bem.
“Mein Vater, mein Vater, und siehst du nicht dort
Erlkönigs Töchter am düstern Ort?”
Mein Sohn, mein Sohn, ich seh es genau;
Es scheinen die alten Weiden so grau.
“Teu formoso perfil de amor me cega!
“Se não vens por vontade, eu serei forte.”
- Meu pai, meu pai! Agora ele me pega!
O rei dos ôlmos fez-me um mal de morte!
‘Ich liebe dich, mich reizt deine schöne Gestalt;
Und bist du nicht willig, so brauch ich Gewalt.’
“Mein Vater, mein Vater, jetzt fasst er mich an!
Erlkönig hat mir ein Leids getan!”
Arrepia-se o pai, e avança e avança
Com seu filho a gemer, inda absorto!
A custo e com trabalho a casa alcança;
Nos seus braços o filho estava morto.414
Dem Vater grauset’s, er reitet geschwind,
Er hält in Armen das ächzende Kind,
Er reicht den Hof mit Mühe und Not;
In seinen Armen das Kind war tot.
Fonte: Goethe (1865); (1966)
Sabe-se que esta mesma assinatura, “Y.”, foi utilizada por Machado de Assis
anteriormente, conforme relato do biógrafo Raimundo Magalhães Júnior:
O que aconteceu com “O casamento do Diabo” deve ter acontecido com a tradução
da balada de Goethe, “Erlkönig”, publicada com o título de “O rei dos olmos”, no nº
241 da Semana Ilustrada, a 23 de julho de 1865, e assinada com a letra “Y”. Assim
Machado assinou, em 1864, versos alusivos ao casamento da Princesa Isabel e, cinco
anos mais tarde, voltaria a utilizá-la no Jornal do Commercio, a 29 de julho e a 28 de
agosto de 1870, ao publicar trechos da elegia indianista “Potira”, em versos
brancos.415
Supondo que este seja de fato um dos poemas de Machado, teríamos assim mais uma tradução
dele que não fora coligida ou relacionada por Jean-Michel Massa ou Eliane Ferreira.
Considerando ainda a presumível colaboração com Fleuiss, é provável que esta seja mais uma
das traduções chamadas “alimentares” por Massa, fruto de trabalho que não teria sido
414
GOETHE, J. W. “O rei dos ôlmos”. In: SEMANA Ilustrada, n. 241, 23 jul 1865, p. 1925. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/702951/1941. Acesso em: 20 ago. 2017.
415
MAGALHÃES JR., 2008, vol 1., p. 243
208
necessariamente, ou unicamente, iniciativa de Machado de Assis, embora não tenhamos meios
para confirmar ou rechaçar esta possiblidade. Machado certamente não teria traduzido sozinho
diretamente do alemão, visto que os seus estudos formais da língua de Goethe só começariam,
a que sabemos, muito mais tarde, na década de 1880. Assim, só podemos supor com alguma
segurança que esta tradução foi intermediada por alguém ou por outra tradução, como fizera
nas traduções que utilizaram o francês como língua intermediária publicadas no ano anterior
em Crisálidas ou depois em Falenas, em que o próprio Machado admite, categórico, não saber
alemão.
Esta balada de Goethe trata de uma criatura chamada Erlkönig, “rei dos olmos” na
tradução de Machado, cuja representação é bastante comum em diversos poemas e baladas
alemãs. No poema de Goethe, há dois personagens, pai e filho, que atravessam uma floresta a
cavalo durante uma tempestade, o filho doente sendo carregado pelo pai. A criança parece ver
a criatura e se assusta, enquanto o pai tenta acalmá-la dizendo ser apenas uma neblina. O menino
insiste que está vendo a criatura que o chama para ir brincar com suas filhas, ao que o pai
desmente acreditando ser somente uma alucinação do menino que está vendo árvores velhas e
ouvindo o barulho das folhas. A visão do rei dos olmos permanece, e o menino crê estar sendo
levado à força já que não foi voluntariamente. Quando a viagem acaba, o menino está morto.
A tradução é bastante fiel à narrativa e mantém a tendência de optar por outros caminhos
formais para trazer a balada de Goethe para o nosso idioma. Machado escolhe para sua tradução
o metro decassílabo, ora heroico, ora sáfico, mas altera o esquema de rimas do poema alemão,
que apresenta rimas emparelhadas por todo o texto. Na sua tradução, Machado utiliza rimas
alternadas em cinco estrofes, enquanto nas outras três escolhe rimar somente o segundo e quarto
versos de cada. Como compõe sua tradução em quadras, Machado pratica nesta tradução o que
é descrito por Antônio Feliciano de Castilho no seu Tratado de Metrificação Portuguesa
(1874): que quadras admitem que se rime o quarto verso com o segundo, ficando soltos o
primeiro e o terceiro, bem como há quadras todas rimadas, em que o primeiro rima com o
terceiro, e o segundo com o quarto, exatamente o que encontramos na tradução de Goethe416.
Devemos considerar ainda que a escolha de rimar alternadamente seus versos confere um
caráter mais congenial à poesia popular no Brasil, o que está de acordo com a proposta do texto,
que é uma balada de tema folclórico. Há, também, o uso de rimas pobres, como na repetição do
par “comigo/contigo” em duas estrofes, característica que não é só de Machado, já que Goethe
416
CASTILHO, Antônio Feliciano de. Tratado de metrificação portuguesa, seguido de considerações sobre a
declamação e a poética. 4 ed. Porto: Livraria Moré-Editora, 1874, p. 132
209
também repete o par “Kind/Wind” na primeira e quarta estrofes, além do par “geschwind/Kind”
na última estrofe, escolha que reflete o tom popular e mesmo folclórico da balada.
A tradução de Machado de Assis ainda levanta outras questões quanto aos
procedimentos adotados, sugerindo que ele possa ter tomado como intermédio a língua
francesa. Um exemplo disso é a escolha de Machado para o título do poema que, no original
alemão de Goethe é Erlkönig. Em alemão, o substantivo “König” que compõe o título significa
“rei”, enquanto o outro, “Erl”, é de tradução problemática já que o termo não existe
isoladamente em alemão. O “Erlkönig”, no folclore nórdico, é uma criatura mítica que habita
as florestas e leva as crianças para a morte. Um dos tradutores deste poema de Goethe para o
inglês, Edgar Alfred Bowring, escolheu manter a forma “Erl-King”417, que é a que se encontra
dicionarizada atualmente na língua inglesa. De acordo com informação etimológica para o
verbete “erlking” do Collins English Dictionary, a palavra alemã “Erlkönig”, de tradução
particularmente complicada, pode ser aproximada de “alder king”, e teria sido cunhada em 1778
por Johanm Gottfried Herder a partir de uma tradução equivocada do dinamarquês
“ellerkonge”, que significa “o rei dos elfos”. O título do poema de Goethe e o nome da criatura,
“Erlkönig”, teriam seguido a palavra criada por Johann Gottfried Herder. O fato, contudo, é
que o termo alemão “Erlkönig”, cunhado por Herder, não admite uma tradução unívoca e livre
de debates. Mesmo traduzi-la para “alder king” em inglês tem seus problemas uma vez que o
termo alemão para “alder” – uma espécie de árvore que em nosso idioma é conhecida como
ulmeiro ou amieiro, e encontrada na península ibérica – é “Erle”, e não somente “Erl”, o que
justifica a manutenção do termo “Erl-king”, como fez Edgar Bowring. De qualquer forma, já
nos aproximamos da tradução de Machado de Assis, que também escolhe a referência a uma
árvore – o olmo – em sua tradução de “Erlkönig” como “O rei dos olmos”, embora de outra
espécie. Teria sido possível chegar a essa tradução somente a partir de uma versão traduzida
livremente por Fleiuss e posteriormente poetizada por Machado de Assis? Não podemos
afirmar, bem como não temos como refutar definitivamente esta hipótese.
417
GOETHE, J. W. The poems of Goethe: translated in the original meters. Trad. Edgar A. Bowning. London:
George Bell and Sons, 1891, p. 102
210
Figura 6 - Reprodução da publicação de “O rei dos ôlmos” na Semana Ilustrada
Fonte: Semana Ilustrada (1865)
211
É possível, contudo, levantar uma outra hipótese que soa igualmente válida, a que
aludimos anteriormente. Há uma tradução para o francês de “Erlkönig”, de Jacques Porchat,
que traduziu a obra de Goethe em 10 volumes. Machado inclusive possuiu em sua biblioteca os
volumes com a tradução de Porchat, intitulados Œuvres de Goethe, conforme levantamento de
Glória Viana (2001). Os volumes que foram de posse de Machado datam de 1869 a 1874;
posteriores, portanto, à tradução de 1865. Certamente Machado não consultou os seus tomos,
mas edições anteriores das Œuvres de Goethe em tradução de Jacques Porchat, como a que
consultamos, datam pelo menos de 1861, e poderiam ter sido consultadas por ele em algum
momento. Outra possibilidade é Machado ter consultado uma reprodução da versão de Porchat
em periódicos da época, o que é não é de todo improvável. Porchat verte “Erlkönig” para “Le
roi des aunes”418, bastante próximo sonoramente de “O rei dos olmos”, embora se refira
corretamente à árvore cuja leitura seria possível no nome alemão, “aune”, que é o mesmo que
o alemão “Erle”, o inglês “alder” ou o português “ulmeiro” ou “amieiro”. Logo, é possível
sugerir que Machado teria trocado a espécie de árvore por uma questão de sonoridade se
aceitarmos a hipótese de que sua versão se fez a partir da francesa.
A versão de Porchat para “Erlkönig” foi escrita em prosa, e isto poderia ajudar a explicar
o fato de Machado se distanciar formalmente da versão de Goethe, sem que isso signifique
desconsiderar escolhas deliberadas do tradutor. Como escolhe traduzir em prosa, sem as
preocupações de metro e rima, a versão de Porchat é bastante literalxxxii, o que não nos permitiu
encontrar mais elementos que apontassem para o fato de que Machado traduziu a partir desta
versão e não diretamente do alemão. Se por um lado o metro de Goethe é relativamente próximo
dos versos decassílabos de Machado, apesar, é claro, das diferenças do método de contagem
silábico-acentual da língua alemã, devemos levar em consideração que a escolha pelo verso de
dez sílabas era uma das mais comuns nos poemas de Machado.
Comparando as versões de Goethe e Machado, é possível perceber o quanto Machado
reorganiza o texto em suas quadras, eliminando paralelismos e escolhendo um esquema de
rimas diferente, que não se manterá fixo no decorrer do poema. Enquanto Goethe escolhe, em
três dos quatro versos da quadra a seguir, começar sempre com a construção sujeito e verbo
Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es ist der Vater mit seinem Kind;
Er hat den Knaben wohl in dem Arm,
Er faßt ihn sicher, er hält ihn warm419.
418
GOETHE, J.W. Œuvres de Goethe. Tomo I. Trad. Jacques Porchat. Paris: Librarie de L. Hachette, 1861. p. 6263.
419
GOETHE, J. W; GRAY, Ronald. Poems of Goethe. New York: Cambridge University Press, 1966, p. 106
212
Machado em nenhum momento se aproxima desta construção, preferindo a adoção de
enjambement nos dois últimos versos:
Por noite e vento quem cavalga a est’hora?
É o pai com seu filho: ei-lo que avança!
Nos seus braços conduz e leva agora
Contra o peito a aquecer sempre a criança420.
Outra característica do texto de Goethe que não encontramos na versão de Machado –
mas presente na de Porchat – é a repetição de algumas frases, como “Mein Vater, mein Vater”,
que aparece três versos no texto alemão, mas que Machado mantém em somente dois, ou “Mein
Sohn, mein Sohn”, que Machado simplifica para “Meu filho”, fazendo o mesmo com “Meine
Töchter”, que inicia dois versos da quinta estrofe, enquanto na versão de Machado a tradução
correspondente, “Minhas filhas”, só aparece uma vez.
Há situações também em que Machado altera bastante a forma como as informações se
apresentam em alemão, como no verso “Meine Mutter hat manch gülden Gewand”, que Porchat
traduz por “Ma mère a maintes robes d’or” enquanto Machado prefere “Minha mãe te fará
vestes douradas”. Outro caso em que Machado simplifica o texto alemão está nos dois últimos
versos da quinta estrofe: Goethe escreve “Meine Töchter führen den Nacht lichen Reihn, / Und
wiegen und tanzen und singen dich ein” que Machado transforma em “O ril noturno dançarão
contigo, / Dormirás por seus cantos embalado”. Nos versos “Mein Sohn, mein Sohn, ich seh’
es genau / Es scheinen die alten Weiden so grau.”, Machado praticamente inverte a posição dos
versos, mantendo somente o vocativo “Meu filho” na mesma posição ao traduzir por “Meu
filho, aquilo são salgueiros velhos / Que ao longe alvejam – eu os vejo bem”. Logo, pensamos
que não é de todo despropositado imaginar que Machado não trabalhou necessariamente a partir
da versão francesa somente, ou do alemão somente, mas que o trabalho com ambos deve ficar
dentro do campo do possível, ou até do provável. Este é um dado relevante, pois sugere que o
poeta-tradutor pode ter buscado outras versões do mesmo texto, ou se apoiado em leituras de
outros, como Fleiuss, como forma de ter acesso ao sentido do texto em cuja língua não podia
ler ou de que tinha conhecimento insuficiente.
Não é difícil encontrar outros exemplos de escolhas bastante pessoais no texto de
Machado que o afastam do texto-fonte ao traduzir esta balada de Goethe. Neste caso em
particular, considerando a hipótese de que tenha sido pressionado pelo tempo que tinha para
realizar a tarefa, trabalhando com uma tradução em prosa de Fleuiss, de Porchat, com ambas,
420
“O rei dos ôlmos”. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, p. 1925, 23 jul. 1865. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/702951/1941 >. Acesso em: 27 jan. 2017.
213
ou ainda alguma outra que não conhecemosxxxiii, Machado escolheu o caminho da criatividade
independente que soasse mais natural para si, o que nos leva em direção a um tradutor que
aparenta estar mais preocupado com o resultado final do que com uma fidelidade estrita ao
texto-fonte, seja ele uma retradução ou sua versão original. Berman afirma que se o tradutor
“[...] escolher por patrão exclusivo o autor, a obra e a língua estrangeira, ambicionando ditá-los
em sua pura estranheza a seu próprio espaço cultural, ele se arrisca a surgir como um
estrangeiro, um traidor aos olhos dos seus”421. Machado de Assis claramente toma o caminho
oposto neste caso: seu “patrão exclusivo” é a sua própria língua-cultura, escreve como e para
os seus, mas sem perder de vista o texto traduzido.
Devemos ter em mente que esta é a primeira tradução de poesia após a publicação de
Crisálidas (1864), e já dá indícios de algo que veremos com mais frequência daqui em diante:
o interesse pela literatura alemã, primeiro com Heine, agora com Goethe e depois Schiller, e
uma gradativa aproximação de poetas de maior envergadura. Os objetivos e os resultados de
Machado até agora demonstram e continuarão a demonstrar que o tradutor busca que seu texto
seja visto como uma criação independente, que existe no lugar do outro, mas sem perder de
vista a tradição poética local e sem adotar servilmente a forma estrangeira.
7.2 “Lua da estiva noite”xxxiv
Lua da estiva noite, embora não esteja incluída em nenhuma edição das poesias de
Machado que consultamos, não é desconhecida pela crítica machadiana. Trata-se de uma
pequena composição em versos, em três estrofes, com versos hexassílabos dos quais o último
de cada estrofe está desdobrado em dois, um de quatro e outro de duas sílabas. A serenata fora
composta para ser cantada acompanhada de flauta e piano, com música de um dos amigos
próximos a Machado de Assis, o pianista Artur Napoleão, que acompanhou a futura esposa de
Machado, Carolina Xavier de Novaes, em sua vinda para o Brasil e que mais tarde seria seu
padrinho de casamento. Eis o texto da composição:
Lua da estiva noite,
Que surges no horizonte:
Vai por além do monte
Cair! Cair! Cair!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
421
BERMAN, 2002, p. 15
214
Dormir!
Vento da estiva noite,
Que andas soprando as vagas,
Vai nas remotas plagas
Rugir! Rugir! Rugir!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
Dormir!
Sonho da estiva noite,
Visão suave e bela,
Vem sobre a fronte dela
Sorrir! Sorrir! Sorrir!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
Dormir!422
Tomada isoladamente, a letra composta por Machado é uma típica serenata, com tema
romântico que traz no estribilho – os três últimos versos de cada estrofe – uma jovem que cujo
sono em uma noite quente de verão é ignorado pela lua que surge no horizonte e desaparece
por detrás das montanhas, e depois pelo vento que sopra as ondas da praia e ruge ao longe,
também alheio ao sono da moça. Na última estrofe, a jovem é visitada por em sonho por alguém
que sorri sobre ela, que é a “visão suave e bela”. Parece ser o próprio poeta que, impedido de
vir vê-la pessoalmente, vem visitá-la e sorri sobre a fronte dela, mas que, por estar longe, não
a vê dormir.
Na Correspondência de Machado de Assis: Tomo II, 1870-1889 (2009), na nota
biográfica dedicada ao músico Artur Napoleão, encontramos somente uma menção a esta
parceria entre Machado e o músico: “Da obra publicada, faz parte a serenata ‘Lua da estiva
noite’, para canto, flauta e piano, com versos de Machado de Assis. A música, a viva
inteligência e a paixão pelo xadrez ligaram, por cinco décadas, o pianista amigo de Carolina e
o autor de Dom Casmurro”423. A partir dessa nota, particularmente da frase “com versos de
Machado de Assis”, somos levados a acreditar que o texto é uma composição de autoria
exclusiva de Machado, o que ocorre também em outros textos que consultamos. O que se
pretende demonstrar aqui é que, embora os versos sejam de Machado, também são tradução –
não identificada como tal por Jean-Michel Massa ou por Eliane Ferreira – de um poema do
poeta norte-americano Henry Wadsworth Longfellow.
422
MORAES FILHO, Mello. Serenatas e saraus. Rio de Janeiro: Garnier, 1902, p. 110-111
ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo II, 1870-1889. Coordenação e orientação
Sergio Paulo Rouanet; Reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro:
ABL 2009, p. 476
423
215
No ensaio “Machado de Assis, a música, a ópera” (2011), do professor de Literaturas
Portuguesa e Brasileira da Università di Roma Tor Vergata Aniello Angelo Avella, que trata da
relação de Machado de Assis com a música, a referência feita à composição de que nos
ocupamos aqui sugere o mesmo desconhecimento. Não há menção de que se trata de uma
tradução de Machado de Assis, sendo listada entre outras de suas poesias, como “Lágrimas de
Cera” ou “Coração triste falando ao sol” de Falenas, que também foram musicadas:
Temos ainda uma serenata (canto, piano e flauta) que nasce da união de dois grandes
talentos: Machado, autor dos versos, e Arthur Napoleão, um pianista português que
chegou ao Rio de Janeiro em 1866 e em sociedade com Leopoldo Miguez fundou uma
editora especializada em música. A serenata intitula-se “Lua da Estiva Noite”424
O mesmo tratamento é dado na tese de doutorado Machado de Assis em contos: uma
constelação de partituras (2006), em que Auristela Crisanto da Cunha observa a manifestação
da musicalidade em contos de Machado, sem mencionar que se trata de uma tradução, além do
equívoco com a datação do texto:
Sua prosa teria muito bem canalizado as diversas modalidades artísticas de que se
mostrava conhecedor. Em 1865 compusera para ser musicada a letra da “Cantata da
Arcádia”, ouvida de pé pelo imperador Pedro II, de cujo conteúdo restam apenas cinco
versos esparsos.
Antes disso, em 1863, havia composto um “Hino Patriótico”, visando angariar fundos
para a subscrição nacional em favor do armamento; e mais tarde, 1880, uma serenata
para piano e flauta, “Lua da estiva noite”.425
É na biografia de Raimundo Magalhães Júnior que encontramos as primeiras sementes
de dúvidas a respeito desta composição. Segundo o biógrafo, “Não era um trabalho original,
mas uma adaptação de poesia inglesa. Letra e música com o título ‘Lua da estiva noite’ –
serenata para canto, flauta e piano – foram incluídas no álbum Ecos do passado, lançado em
junho de 1867 [...].”426. Após reproduzir a letra da canção, o biógrafo afirma que esta parece ter
sido a única colaboração entre Machado de Assis e o músico Artur Napoleão427. Em nota a esta
passagem, ele corrige José Galante de Sousa que afirmara ser a composição de 1880, conclusão
a que deve ter sido levado por uma notícia da seção “Bibliografia” da Revista Ilustrada, no n.
214 de 3 de julho daquele ano. Visto que o mesmo erro de datação aparece na tese de Auristela
Cunha, é de se supor que ela também tenha consultado somente a obra de José Galante de
424
AVELLA, Aniello Angelo. “Machado de Assis, a música, a ópera”. In: MORUJÃO, Isabel; SANTOS, Zulmira.
Literatura popular em Portugal e no Brasil: homenagem a Arnaldo Saraiva. Porto: CITCEM, 2011, p. 58
425
CUNHA, Auristela Crisanto da. Machado de Assis em contos: uma constelação de partituras. 2006. 174 f. Tese
(Doutorado em Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal,2006, p. 44
426
MAGALHÃES JR., 2008, v. 2, p. 55, grifo nosso.
427
Ibid., p. 56
216
Sousa. Magalhães Júnior acrescenta ainda que Melo Moraes Filho a transcrevera no terceiro
volume das Serenatas e saraus, publicada pela Garnier em 1902, como “tradução de Machado
de Assis”428.
A informação de que se trata de uma adaptação de língua inglesa, sem mencionar quem
seria o autor estrangeiro, deve ter vindo de uma das crônicas do Dr. Semana, publicada em 9
de junho de 1867 – mesmo ano do lançamento do álbum de Artur Napoleão – no N. 339 da
Semana Ilustrada:
Concluo com uma nota interessante.
O Sr. Narciso Braga com casa de pianos e músicas, á rua dos Ourives, acaba de
publicar uma serenata de Arthur Napoleão.
A serenata denomina-se Lua da estiva noute. A poesia é imitada do inglez pelo Sr.
Machado de Assis429.
De fato, encontramos no terceiro volume Serenatas e saraus (1902) a composição “Lua
da estiva noite”, digitalizado pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, que vem
acompanhada da seguinte informação: “Tradução de Machado de Assis”. Poder-se-ia
argumentar, talvez, que se trata de um equívoco da edição ao publicar o texto da composição
como uma “tradução”. Depois de consultarmos os três volumes, no entanto, verificamos que
somente “Lua da estiva noite” é publicada com a informação de que se trata de uma “tradução”
e não uma composição “original”. Em todos os outros casos, nos três volumes, ou não há
indicação alguma de autoria, ou a canção é seguida da indicação “poesia de” seguida da
indicação do autor da poesia.
De posse destes dados, tentamos encontrar a fonte que Machado de Assis pudesse ter
utilizado para compor os versos de “Lua da estiva noite”. Supondo, com base nos dados
fornecidos na biografia de Magalhães Júnior e na informação trazida pela crônica citada acima,
que se tratava de um poeta de língua inglesa, o próximo passo seria procurar o texto entre os
poetas de língua inglesa por quem Machado se interessara. Sabíamos que Machado mostrara
interesse pelo poeta inglês William Cowper quando jovem, chegando a publicar uma
“imitação”, o poema “Minha mãe”. Outros poetas de língua inglesa também se destacam, como
William Shakespeare, ou Edgar Allan Poe, sabidamente traduzidos por Machado. As primeiras
investigações neste sentido, contudo, foram absolutamente infrutíferas.
428
MAGALHÃES JR., 2008, v. 2, p. 59-60
“Pontos e vírgulas”, Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, p. 2710, N. 339, 9 jun. 1867. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/702951/2712. Acesso em: 17 jan. 2019
429
217
Foi o professor José Américo Miranda que, após nosso pedido de ajuda, conseguiu
identificar “Serenade”, de Longfellow, como o texto do qual partiu Machado de Assis para
compor “Lua da estiva noite”, depois de se lembrar da insistência de Machado para que
Quintino Bocaiúva, que estava então nos EUA, não se esquecesse dos exemplares da poesia de
Longfellowxxxv. Verificada a fonte de Machado, foi possível correlacionar com outros dados
biográficos: há na sua biblioteca, de fato, exemplares em inglês das poesias de Longfellow, os
quatro volumes de The poetical works, de 1866 – mesmo ano, portanto, da correspondência de
Machado e Bocaiúva – dos quais o primeiro está bastante manuseado430. Talvez seja mera
coincidência, mas o primeiro volume de The poetical works é o que contém a peça “The Spanish
Student”, e é na cena III desta peça que está o texto de “Serenade”.
Tínhamos assim a coerência adequada entre os fatos: em 1866 Machado, por duas vezes,
pede a Quintino Bocaiúva exemplares de Longfellow; supomos que o pedido tenha sido
atendido uma vez que há na biblioteca de Machado de Assis exemplares de Longfellow daquele
ano; no ano seguinte, 1867, “Lua da estiva noite” é publicada em Ecos do Passado. Longfellow
ainda apareceria mais duas vezes na produção de Machado em momentos muito próximos entre
si e do período da escrita de “Lua da estiva noite”, prova do interesse de Machado pelo poeta
norte-americano na época. A primeira é no conto “Miss Dollar”, recolhido no volume Contos
Fluminenses de 1869, e em 1870, como epígrafe do “Prelúdio” em Falenas. Outra referência a
Longfellow aparecerá somente quase duas décadas mais tarde, no conto “O espelho” em Papéis
Avulsos, de 1882.
Observando o texto de “Serenade” e as correspondências entre este e “Lua da estiva
noite” não resta dúvidas de que se trata da fonte em que Machado se baseou. Ignoramos, ainda,
o motivo de não traduzir a primeira estrofe. Talvez a canção ficasse desnecessariamente longa,
ou o tradutor tenha percebido que os versos não acrescentariam nada de imprescindível ao texto,
ou, mais simplesmente, não tenha ficado satisfeito com o resultado, mas não saberemosxxxvi.
Comparando-os lado a lado, observa-se imediatamente que, além da primeira estrofe não
traduzida, as estrofes de Machado possuem um verso a mais:
Quadro comparativo 15 – “Serenade” e “Lua da estiva noite”
Serenade
1 Stars of the summer night
2 Far in yon azure deeps
3 Hide, hide your golden light
4
She sleeps!
430
VIANNA, 2001, p. 225
218
5 My lady sleeps!
6
Sleeps!
7 Moon of the summer night!
8 Far down yon western steeps,
9 Sink, sink in the silverlight!
10 She sleeps!
11 My lady sleeps!
12 Sleeps!
Lua da estiva noite,
Que surges no horizonte:
Vai por além do monte
Cair! Cair! Cair!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
Dormir!
13 Wind of the summer night!
14 Where yonder woodbine creeps,
15 Fold, fold thy pinions light.
16 She sleeps!
17 My lady sleeps!
18
Sleeps!
Vento da estiva noite,
Que andas soprando as vagas,
Vai nas remotas plagas
Rugir! Rugir! Rugir!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
Dormir!
19 Dreams of the summer night!
20
Tell her, her lover keeps
21 Watch! while in slumbers light
22
She sleeps!
23 My lady sleeps!
24
Sleeps!
Sonho da estiva noite,
Visão suave e bela,
Vem sobre a fronte dela
Sorrir! Sorrir! Sorrir!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
Dormir!
Fonte: Longfellow (1893); Moraes Filho (1902)
A partir da leitura do poema de Longfellow chega-se à mesma interpretação que demos
anteriormente da letra de Machado de Assis, com a presença dos mesmos elementos – a lua, o
vento, os sonhos – mas agora com a certeza de que na estrofe final o amante pede aos sonhos
que digam a ela que ele mantém vigília enquanto ela dorme, a diferença mais sensível que
encontramos entre as serenatas de Longfellow e de Machado de Assis.
O primeiro verso de cada estrofe de “Lua da estiva noite” traduz perfeitamente os versos
7, 13 e 19 correspondentes no texto de Longfellow. Embora a versificação inglesa siga outro
sistema de contagem, a correspondência métrica também é evidente: os versos hexassílabos de
um, com acentos na 1ª e 6ª sílabas são igualmente encontrados no outro: MOON / of / the /
SUM / mer / NIGHT; LU / A / da es / ti / va / NOI / te. No texto de Machado, somente o verso
“A virgem dos meus sonhos”, parte do estribilho da canção, não contém os mesmos acentos
dos demais, sendo acentuado na 2ª e 6ª sílabas. Nenhum pecado nisso, considerando que o verso
hexassílabo admite tal acentuação. Devemos considerar também que na produção poética de
Machado anterior a esta tradução encontramos hexassílabos acentuados na 2ª sílaba com certa
facilidade: “Stella” e “O Dilúvio”, de Crisálidas, apresentam tais versos, enquanto em “Fé”
encontramos hexassílabos com acento na 4ª sílaba.
219
O procedimento de desdobrar o hexassílabo em dois versos, de 4 e 2 sílabas também é
observado tanto na versão inglesa:
10
She / sleeps!
11 My / la / dy / sleeps! 431
quanto na tradução de Machado de Assis:
Não / vês / dor / mir!
Dor / mir!432
Mesmo este procedimento não é inédito na produção de Machado. Em Crisálidas é encontrado
nos poemas “Horas vivas” e “As rosas”, por exemplo. Em ambos os casos, no entanto, temos
um decassílabo decomposto em dois versos que, analisados separadamente, seriam versos de
seis e três sílabas, mas, se lidos juntos, contamos decassílabos heroicos: em “As rosas”
encontramos versos como “Aos suaves resplendores / matinais” e, em “Horas vivas”, “Noite:
abrem-se as flores / Que esplendores”.
Notamos ainda que Machado se afasta, às vezes, do sentido literal do texto, mas fica
claro que o afastamento tem a função de manter o seu caráter poético, priorizando a
reconfiguração dos aspectos formais sem, contudo, se submeter ao que o texto-fonte estipula.
Longfellow, por exemplo, termina quase todos os seus versos com as mesmas palavras, que
rimam entre si: o par night/light que se repete nas quatro estrofes, sempre no primeiro e terceiro
versos, enquanto sleeps que termina os três últimos versos de cada estrofe. A exceção ocorre
no segundo verso de cada estrofe, que rimam entre si: deeps/steeps/creeps/keeps e com sleeps
nos três últimos de cada estrofe. Assim, Longfellow segue o esquema de rimas ABABBB, com
estrofes de seis versos.
Além de acrescentar um verso a cada estrofe, o esquema que Machado escolhe seguir é
levemente diferente: ABBCDCC. No texto de Machado a repetição ocorre com o substantivo
noite e nos três últimos versos que constituem o estribilho do poema. O tradutor Machado
demonstra ter plena ciência do modo de significar do poema, mas também toma para si
liberdades que lhe permitem reconfigurar o texto-fonte em outro poema, afastando-se de alguns
aspectos formais, mas adotando outros que possam substituí-los a contento.
Sob o aspecto fonético-sonoro, o poeta-tradutor Machado está igualmente atento ao que
ocorre no poema de Longfellow, ou pelo menos preocupado com a percepção sonora de seu
431
LONGFELLOW, Henry Wadsworth. The poetical works. New York: Houghton, Mifflin and Company, vol. 1,
1893, v. 1, p. 110
432
MORAES FILHO, 1902, p. 111
220
poema: as aliterações dos versos 13 e 14 em Wind/where/woodbine tornaram-se, no texto de
Machado, as aliterações em “v” de Vento/ estiva/vagas/vai, cujo som reforça a ideia do vento a
soprar.
Semanticamente, o poema de Machado também se mantém bastante próximo do texto
de Longfellow, embora escolha imagens diversas para alcançar resultados análogos, a exemplo
do segundo e terceiro versos da segunda estrofe do poema de Machado nos quais, enquanto
Longfellow fala de woodbine e pinions – trepadeiras e pinhões em português, embora pinion
possa estar associado também a penas das asas de pássaros – Machado fala de ondas e praias.
As imagens são diferentes, mas ambas remetem à natureza. Julgamos as imagens de Machado
até mais interessantes uma vez que o “vento”, presente no primeiro verso, associa-se mais
convenientemente a praias e formação de ondas para sugerir a atmosfera de paz e tranquilidade
do que a trepadeiras e pinhões, particularmente se pensarmos que o poeta escreve para o público
do Rio de Janeiro, certamente mais familiarizado com praias e ondas do que com pinhões.
Procedimento similar ocorre também nos versos 20 e 21: Longfellow utiliza a imagem de um
amante que observa e cuida da amada enquanto ela dorme. Machado enfraquece a presença da
imagem do amante, enquanto mantém a imagem da amada que dorme pacificamente.
Observando esta tradução de Longfellow, o tradutor que se nos desvela é um tradutor
consciente dos elementos que compõem um objeto poético. O tradutor que demonstra
preocupar-se com os aspectos formais do texto que lhe servira de fonte, mas não às expensas
do modo de significar da obra. Este tradutor não se posiciona servilmente diante do texto, nem
dá maior atenção à informação conteudística do que à informação estética. É exatamente o
oposto que ocorre: Machado demonstra saber que traduzir um poema significa, sobretudo,
recriar um poema em sua própria língua, lançando mão do repertório que tem à disposição. O
tratamento ao conteúdo e à forma parece equilibrado na tradução.
Para Antoine Berman, em A prova do estrangeiro, “[f]azer história da tradução é
redescobrir pacientemente essa rede cultural infinitamente complexa e desconcertante na qual,
em cada época, ou em espaços diferentes, ela se vê presa. E fazer do saber histórico assim
obtido uma abertura de nosso presente”433. Apesar de conhecido, o fato de esta peça de
Machado de Assis ser uma tradução estava relativamente apagado. Ao recuperarmos esta
informação estamos escrevendo uma parte da história do nosso passado literário,
restabelecendo conexões esquecidas que, inclusive, dão mais coerência e outro relevo à
433
BERMAN, 2002, p. 14
221
presença de Longfellow, ainda que tímida, na obra de Machado de Assis. Mais do que isso, ao
recuperar esta tradução, descobrimos que o nosso poeta-tradutor soube transpor e renovar os
valores formais do poema de Longfellow assim como soube conferir poeticidade ao texto de
sua lavra de forma que fosse possível musicá-lo. Foi sensível o bastante para perceber que a
mensagem exata do poema não era essencial para o seu modo de significar e assim, quando
necessário, soube afastar-se para manter-se próximo. Não satisfeito, consegue criar um poema
mais interessante, menos repetitivo do que o de Longfellow. A posição que Machado assume
quando traduz é a de um escritor, sobretudo, que entende estar criando não um texto de segunda
ordem, de qualidade inferior, mas uma outra obra, um outro original, um poema.
7.3 “O primeiro beijo”
“O primeiro beijo”, publicado em 19 de setembro de 1869 no número 458 da Semana
Ilustrada, é o único poema traduzido do espanhol por Machado de Assis que chegou até nós.
Na edição, o poema traduzido veio acompanhado de comentários do Dr. Semana, anunciando
a tradução de um amigo – ele mesmo, talvez – ao passo em que pede por um diálogo mais
íntimo entre as literaturas brasileira e de língua espanhola:
O atual ministro de Chile nesta corte e no Rio da Prata, Sr. Guilherme Blest Gana, é
um distinto poeta, autor de um volume de versos, algumas comédias, e dramas.
Os poetas da América espanhola são pouco conhecidos entre nós, do mesmo modo
que os nossos são pouco conhecidos nas repúblicas do continente. Grande e recíproca
vantagem seria, se houvesse relações íntimas entre as duas literaturas. Blest Gana,
Matta, Palma, Cortes, Cisneros apertariam gostosamente as mãos a Alencar, B.
Guimarães, Macedo, Varela e tantos.
Traduziu um amigo nosso uma das mais mimosas poesias do Sr. Blest Gana; damos
em seguida a tradução; é uma amostra do talento do distinto chileno.
Dr. Semana434
Jean Michel-Massa recolheu esta tradução em Dispersos de Machado de Assis com o
texto citado acima. No entanto, quando publica o volume Massa afirma que não fora possível
encontrar o texto em espanhol do poema no único volume de poesia recolhida do poeta chileno
que conhecia435. Massa certamente encontrou o texto posteriormente, pois em Machado de
Assis tradutor os breves comentários que acompanham a tradução de Machado também contam
434
435
MASSA, 1965, p. 255-256
Ibid., p. 528
222
com o texto espanhol, que Massa utiliza para apreciar o conhecimento que o nosso escritor tinha
da língua de Blest Gana afirmando que a tradução “[...] atesta então um conhecimento corrente
do espanhol por Machado de Assis”436 que poderia ter contado com Quintino Bocaiúva, de mãe
argentina, o poeta argentino Carlos Guido y Spano, ou o próprio Guillermo Blest Gana, que era
seu amigo, como preceptores no idioma.
Na Bibliografia de Machado de Assis Galante de Sousa informa que Rosendo Moniz
também traduziu este poema, sendo que sua tradução saiu também na Semana Ilustrada, n. 595,
de 5 de maio de 1875. Sousa informa ainda que a tradução de Rosendo Moniz possui 91 versos,
sendo que 21 são idênticos aos de Machado de Assis, o que o leva a supor certa influência deste
último sobre o primeiro437.
A respeito desta amizade não foram encontradas muitas informações. A biografia de
Raimundo Magalhães Júnior faz uma única referência, ocorrida em junho 1876, ao convívio
entre Machado e Blest Gana e à tradução de que nos ocuparemos aqui:
O acontecimento que os reunira fora o banquete de despedida do diplomata Guillermo
Blest Gana, removido por seu Governo após longa permanência com o ministro na
capital do Império. Sem lembrar que fora o tradutor do seu poema O primeiro beijo,
publicado na Semana Ilustrada, a 19 de setembro de 1869, Machado escrevera que
era “amigo do ilustre chileno há dez anos”.438
Na correspondência de Machado de Assis, contudo, há elementos que confirmam o
relacionamento entre ambos. A primeira e única carta entre Machado de Assis e Guillermo
Blest Gana que consta da correspondência publicada tem data de 1866. Há, entretanto,
referências à amizade de ambos nas correspondências entre Machado e Salvador de Mendonça
e, em carta aberta a Felipe Lopes Neto publicada no Jornal do Comércio, Machado é elogioso
em seu comentário que avalia Blest Gana: “[...] maviosíssimo poeta e um dos mais notáveis e
polidos talentos do Chile”439.
436
MASSA, 2008, p. 50
SOUSA, 1955, p. 436
438
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 256
439
ASSIS, 2009b, p. 65
437
223
Figura 7 – Reprodução da primeira publicação de “O primeiro beijo”.
Fonte: Assis (1869a)
224
Se era pouco conhecido no século XIX, é provável que o nome Guillermo Blest Gana
não conte, hoje, com mesmo o reconhecimento e envergadura de outros poetas chilenos como
Neruda. Não obstante, foi um dos principais expoentes do romantismo no Chile. Blest Gana,
que veio de “[...] uma das famílias de melhor posição econômico-social [...] em Santiago por
aqueles anos [...], e sua casa era muito visitada, sobretudo pela beleza e distinção de suas
mulheres”440, também produziu prosa e teatro, mas é a sua poesia que, ao contrário da do nosso
Machado, ganhou maior relevância.
O poema que Machado traduz, “El primer beso”, deve ter sido composto no início da
década de 1860, enquanto Blest Gana viajava pela Europa, pois Alfonso Escudero (1970) nos
diz que é durante esta viagem que “[n]o Ateneu de Madrid recita uma tarde El primer beso, que
o fazem repetir muitas vezes”441. Ainda a respeito de “El primer beso”, Escudero afirma que
“[e]sta composição foi recolhida em 1884, em Armonías, mas já havia sido recitada em 1861,
com excelente acolhida em Madrid. E figura em pelo menos duas antologias de José Domingo
Cortés: Parnasso chileno (Santiago, 1871) e América poética (Paris, 1875)”442. O poema
aparece também no segundo tomo das Obras Completas de Don Guillermo Blest Gana, de
1907, que foi a edição que consultamos e utilizamos para o cotejo com a versão de Machado.
“El primer beso” é um poema que narra uma lembrança – o primeiro beijo – entre um
rapaz e sua prima, ambos com catorze anos, a quem é obrigado a abandonar “à beira do mar” –
o que nos faz pensar no período imediatamente anterior à viagem de Blest Gana à Europa – e
de quem guarda somente a lembrança. Há no poema descrição da beleza da prima, dos tempos
saudosos que passaram juntos, a história do tal beijo associando-os à inocência de Adão e Eva
e, por fim, o momento da despedida. Há também, evidentemente, a prevalência do uso dos
pretéritos imperfeito e perfeito, que reforçam o tom distante do narrado, mas que contrastam
com momentos em que o presente é utilizado, deixando a narrativa mais próxima. Alfonso
Escudero faz uma leitura biográfica do poema e cita diversas hipóteses a respeito da identidade
da prima citada no poema. Este aspecto autobiográfico, no entanto, importa menos do que
entender que estamos diante de um poema tipicamente subjetivista, que retrata uma infância
440
ESCUDERO, Alfonso M. “Don Guilhermo Best Gana”. REVISTA Aisthesis Nº 5. Pontifícia Universidad
Católica de Chile, 1970, 119. No original: “[u]na de las familias de mejor posición económico-social […] en
Santiago por aquellos años […], y su casa era muy visitada, sobre todo por la belleza y distinción de sus mujeres”.
441
ESCUDERO, 1970, p. 121. No original: “En el Ateneo de Madrid recita una tarde El primer beso, que le hacen
repetir muchas veces”.
442
Ibid., p. 125. No original: “[e]sta composición fue recogida en 1884, en Armonías, pero ya en 1861 la había
recitado, con excelente acogida en Madrid. Y figura por lo menos en dos antologías de José Domingo Cortés:
Parnasso chileno (Santiago, 1871) y América poética (París, 1875)”.
225
idealizada com matizes idílicos, de leitura bastante agradável devido, particularmente, à forma
adotada por Blest Gana, já comentada por Alfonso Escudero:
Além da sextina inicial e da final, o poema é composto de sete estrofes de onze
octossílabos e entre seus recursos o fato de que o primeiro verso de cada estrofe se
conclua com a mesma palavra que o décimo primeiro não é dos menos eficazes. Em
outras palavras, trata-se de uma coisa simples como a repetição, mas tal repetição é
eficaz porque se baseia no fato de que o que se repete não é fundamental.443
Devemos atentar para o fato de que Escudero, falante de espanhol, adota, naturalmente, o
método de contagem de seu idioma, que é grave, levando em consideração uma sílaba além da
última tônica, daí a contagem de octossílabos em todas as estrofes, excetuando-se a primeira e
a última, que possuem versos de sete sílabas. De qualquer modo, o metro utilizado é bastante
popular e foi muito utilizado durante o período romântico, e confere ao poema um ritmo
bastante leve. Cada uma das estrofes do poema, como bem nota Escudero, termina seu primeiro
e último verso sempre com a mesma palavra. A disposição das rimas também é bastante regular,
com rimas alternadas por quase todo o poema, exceção feita aos dois últimos versos da primeira
e última estrofes, e aos sexto e sétimo versos das estrofes que contém onze versos, casos em
que são emparelhadas.
Vejamos o poema de Blest Gana, acompanhando da tradução de Machado de Assis:
Quadro comparativo 16 – “El primer beso” e “O primeiro beijo”
El primer beso
O primeiro beijo
Recuerdos de aquella edad
de inocencia y de candor,
no turbéis la soledad
de mis noches de dolor:
pasad, pasad,
recuerdos de aquella edad.
Lembranças daquela idade
De inocência e de candor,
Não turbeis a soledade
Das minhas noites de dor;
Passai, passai,
Lembranças do que lá vai.
Mi prima era muy bonita,
y no sé por qué razón
al recordarlo, palpita
con violencia el corazón.
Era, es cierto, tan bonita,
tan gentil, tan seductora,
que al pensar en ello ahora,
algo como una ilusión
aquí en el pecho se ajita,
y hasta mi fría razón
me dice: ¡era muy bonita!
Minha prima era bonita...
Eu não sei por que razão
Ao recordá-la, palpita
Com violência o coração.
Pois se ela era tão bonita,
Tão gentil, tão sedutora,
Que agora mesmo, inda agora,
Uma como que ilusão
Dentro em meu peito se agita,
E até a fria razão
Me diz que era bem bonita.
Ella, como yo, contaba
catorce años, me parece,
Como eu, a prima contava
Quatorze anos, me parece;
443
ESCUDERO, 1970, p. 128. No original: “Aparte de la sextina inicial y la final, se compone de siete estrofas de
once octosílabos, y entre sus recursos no es el menos eficaz el hecho de que el primer verso de cada estrofa
concluya con la misma palabra que el undécimo. En otras palabras, se trata de una cosa tan simple como la
repetición, pero esa repetición es eficaz porque se basa en que no repetido es fundamental.”
226
más mi tía aseguraba
que eran solamente trece
los que mi prima contaba.
Dejo a mi tía esa gloria,
pues mi prima en mi memoria
jamás, jamás envejece,
y siempre está como estaba
cuando, según me parece,
ya sus catorce contaba.
Mas minha tia afirmava
Que eram só, — nem tal me esquece!
Treze os que a prima contava.
Fique-lhe à tia essa glória,
Que em minha vivaz memória
Jamais a prima envelhece,
E sempre está como estava,
Quando, segundo parece,
Já seus quatorze anos contava.
¡Cuántas horas, cuántas horas
de dicha pasé a su lado!
¡Pasamos cuántas auroras
los dos corriendo en el prado,
ligeros como esas horas!
¿Nos amábamos? Lo ignoro:
sólo sé lo que hoy deploro,
lo que jamás he olvidado,
que en pláticas seductoras,
cuando me hallaba a su lado,
se me dormían las horas.
Quantas horas, quantas horas
Passei ditoso ao seu lado!
Quantas passamos auroras
Ambos correndo no prado,
Ligeiros como essas horas!
Seria amor? Não seria;
Nada sei; nada sabia;
Mas nesse extinto passado,
De conversas sedutoras,
Quando me achava a seu lado
Adormeciam-me as horas.
De cómo le di yo un beso,
es peregrina la historia;
hasta ahora, lo confieso,
con placer hago memoria
de cómo la di yo un beso.
Un día, solos los dos,
cual la pareja de Dios,
cuya inocencia es notoria,
nos fuimos a un bosque espeso,
y allí comenzó la historia
de cómo la di yo un beso.
De como lhe eu dei um beijo
É curiosíssima história.
Desde esse ditoso ensejo
Inda conservo a memória
De como lhe eu dei um beijo.
Sós, ao bosque, um dia, qual
Aquele antigo casal
Cuja inocência é notória,
Fomos por mútuo desejo,
E ali começou a história
De como lhe eu dei um beijo.
Crecía una hermosa flor
cerca de un despeñadero;
mirándola con amor
ella me dijo: 'Me muero,
me muero por esa flor'.
Yo a cogerla me lancé,
más faltó tierra a mi pie;
ella, un grito lastimero
dando, llena de terror,
corrió hasta el despeñadero...
y yo me alcé con la flor...
Crescia formosa flor
Perto de uma ribanceira;
Contemplando-a com amor,
Diz ela desta maneira;
— Quem me dera aquela flor!
De um salto à flor me atirei;
Faltou-me o chão; resvalei.
Grita, atira-se ligeira
Levada pelo terror,
Chega ao pé da ribanceira...
E eu, eu não lhe trouxe a flor.
Dos lágrimas de alegría
surcaron su rostro bello,
y diciendo-. '¡Vida mía!',
me echó los brazos al cuello
con infantil alegría.
Fuego y hielo sentí yo
que por mis venas corrió,
y no sé cómo fue aquello,
pero un beso nos unía...,
dejando en su rostro bello
dos lágrimas de alegría.
De ventura e de alegria
A coitadinha chorava;
Vida minha! repetia,
E em meus braços me apertava
Com infantil alegria.
De gelo e fogo me achei
Naquele transe. E não sei
Como aquilo se passava,
Mas um beijo nos unia,
E a coitadinha chorava
De ventura e de alegria.
Después... ¡Revoltoso mar
es nuestra pobre existencia!
Depois... revoltoso mar
É nossa pobre existência!
227
Yo me tuve que ausentar,
y aquella flor de inocencia
quedó a la orilla del mar.
Del mundo entre los engaños
he vivido muchos años,
y, a pesar de mi experiencia,
suelo a veces exclamar:
¡La dicha de mi existencia
quedó a la orilla del mar!
Recuerdos de aquella edad
de inocencia y de candor,
alegrad la soledad
de mis noches de dolor;
¡llegad, llegad,
recuerdos de aquella edad!
Fonte: Gana (1907); Assis (2009)
Fui obrigado a deixar
Aquela flor de inocência
Sozinha à beira do mar.
Ai! do mundo entre os enganos
Hei vivido muitos anos,
E apesar dessa experiência
Costumo ainda exclamar:
Ditada minha existência,
Ficaste à beira do mar!
Lembranças daquela idade
De inocência e de candor,
Alegrai a soledade
Das minhas noites de dor.
Chegai, chegai,
Lembranças do que lá vai.
Jean-Michel Massa, quando coloca os textos de Blest Gana e Machado lado a lado, tem
a intenção de atestar o conhecimento corrente do espanhol por Machado de Assis, e apontar
preceptores no idioma, conforme citamos acima, eximindo-se de comentar a qualidade, ou o
sucesso da tradução.
Não é preciso muito para verificar que Machado de Assis alcança um resultado louvável
neste caso. Evidentemente, a proximidade do parentesco entre as duas línguas certamente
facilitou a tarefa, mas isto somente não seria suficiente para garantir que a tradução funcionasse
como poesia, e a de Machado claramente atinge tal objetivo. Primeiramente, todo o sentido do
poema, é rigorosamente preservado, salvo algumas ínfimas alterações aqui e ali, bem como a
narrativa é exatamente a mesma, salvo por um detalhe digno de nota e que comentaremos mais
adiante. Em termos formais, a escolha óbvia para traduzir os octossílabos de Blest Gana seria
o nosso heptassílabo, que é o metro que Machado escolhe e com o qual já estava bastante
familiarizado. Quando esta tradução é publicada, Machado já era o autor de Crisálidas (1864)
e o lançamento de Falenas (1870) aconteceria no ano seguinte. O metro escolhido aqui foi
utilizado desde muito cedo por Machado, aparecendo pela primeira vez na sua produção em
1855, como no poema “Ela”, e certamente se sentia bastante confortável com ele.
Em somente um momento Machado adota um caminho formal diferente do adotado pelo
poeta chileno. Conforme vimos na citação de Escudero, Blest Gana sempre termina o primeiro
e último versos de cada estrofe com a mesma palavra e, no caso das sextinas, o último verso
repete o primeiro:
Recuerdos de aquella edad
de inocencia y de candor,
alegrad la soledad
de mis noches de dolor;
¡llegad, llegad,
228
recuerdos de aquella edad! 444
Machado, possivelmente por imposição da necessidade de encontrar rimas, precisou
optar, e optou por rimar, como faz Blest Gana, o último verso da sextina com o anterior, ficando
impossibilitado de repetir o primeiro verso no último das estrofes inicial e final:
Lembranças daquela idade
De inocência e de candor,
Alegrai a soledade
Das minhas noites de dor.
Chegai, chegai,
Lembranças do que lá vai.445
Este é o único caso em que Machado cria um recurso diferente do de Blest Gana, que
aproveita a forma imperativa do verbo “llegar” para rimar com “edad”, algo impossível em
nossa língua. Contudo, esta escolha mostra que o diferente não é necessariamente menor ou
menos válido em tradução. O resultado é diferente, mas não “pior”. Machado mantém rimas
nas mesmas posições, metro equivalente em todos os versos e o mesmo ritmo agradável, muito
diferente do que costumou fazer nas suas demais traduções de poesia. Nas demais estrofes, o
êxito formal é louvável: há emprego regular dos heptassílabos por todo o poema de Machado,
o recurso de terminar o primeiro e último verso de cada estrofe com a mesma palavra também
é mantido, assim como a distribuição das rimas é rigorosamente mantida.
Na Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa encontra-se a seguinte
passagem a respeito desta tradução: “Observe-se ainda que ao último verso na tradução de
Machado de Assis – ‘E eu, eu não lhe trouxe a flor’ – corresponde, na de Rosendo Moniz, o
seguinte: ‘E eu levanto-me c’o a flor’. Um de ambos foi infiel”446. É a esta diferença notável de
sentido que nos referimos anteriormente. Podemos dizer com certeza, após consultar o texto
em espanhol, que o “infiel” é Machado de Assis. A estrofe em questão narra a cena
imediatamente anterior ao beijo na prima, que avista uma flor próxima a uma ribanceira e a
deseja, ao que o primo se lança para colhê-la, quase despenca, mas sobe com a flor:
Crecía una hermosa flor
cerca de un despeñadero;
mirándola con amor
ella me dijo: 'Me muero,
me muero por esa flor'.
Yo a cogerla me lancé,
más faltó tierra a mi pie;
ella, un grito lastimero
dando, llena de terror,
corrió hasta el despeñadero...
444
BLEST GANA, Guillermo. Obras completas de don Guillermo Blest Gana. Tomo segundo. Santiago de Chile:
Imprenta Cervantes, 1907, p. 206
445
ASSIS, 2009a, p. 509
446
SOUSA, 1955, p. 436.
229
y yo me alcé con la flor...447
Entretanto, a conclusão – a flor colhida – é alterada por Machado, com o acréscimo de um
“não”:
Crescia formosa flor
Perto de uma ribanceira;
Contemplando-a com amor,
Diz ela desta maneira;
— Quem me dera aquela flor!
De um salto à flor me atirei;
Faltou-me o chão; resvalei.
Grita, atira-se ligeira
Levada pelo terror,
Chega ao pé da ribanceira...
E eu, eu não lhe trouxe a flor.448
Desconhecemos a razão que teria levado Machado de Assis a alterar o trecho. Rima e
métrica certamente não são motivos suficientes. Acreditar que fora um deslize também parece
fazer pouco sentido, porque se trata de um acréscimo e não uma supressão. Este “não” está
presente em todas as publicações de “O primeiro beijo” consultadas: no fac-símile do periódico
com a primeira publicação disponibilizado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e em
todas as edições de poesia coligidas posteriormente e consultadas nesta tese.
Supondo, todavia, que o acréscimo tenha sido intencional, poderíamos argumentar que
fora feito com a intenção de conferir mais dramaticidade à cena. Afinal, sem a flor, a aventura
no penhasco e a quase queda ficam um tanto mais interessantes, pois de um lado mostram o
empenho do primo em agradar a prima arriscando a própria vida e, por outro, o choro e o alívio
que acabam por selar o beijo entre eles fortalecem os laços entre ambos, com a flor funcionando
como mero acessório. Ou será que a verve criativa de Machado, diante de tanto apego formal e
conteudista ao restante do poema, não resistiu à pressão e quis deixar uma pista de sua presença,
inscrevendo-se sutilmente no texto, para o deleite dos leitores mais atentos?
Há outras alterações no texto, mas nada significativo como esta. Todas as demais são,
aparentemente, fruto da necessidade de atender e respeitar os limites impostos pela métrica e a
rima necessários para criar o efeito desejado. Significativa é a posição que Machado adota
enquanto tradutor deste texto: o diálogo mantido com Blest Gana nos revela um tradutor que
segue mais de perto o modo de funcionamento do texto-fonte, desde os aspectos formais, como
métrica, rima e demais características do texto, até a linguagem simples, fluida e direta que
garantem à tradução o tom leve e agradável equivalente ao sentido na leitura do texto-fonte.
447
448
BLEST GANA, 1907, p. 207-208
ASSIS, 2009a, p. 511
230
Parecemos estar, neste caso, diante de um dos desdobramentos trazidos pelo pensamento da
tradução nas últimas décadas, resumido por Meschonnic:
Descobre-se que uma tradução de um texto literário deve fazer o que faz um texto
literário, pela sua prosódia, seu ritmo, sua significância, como uma das formas de
individuação, como forma-sujeito. O que desloca radicalmente os preceitos de
transparência e fidelidade da teoria tradicional, fazendo-os aparecer como os álibis
moralizantes de um desconhecimento cuja caducidade das traduções não é mais do
que o pagamento justo. A equivalência procurada não se coloca mais de língua a
língua, tentando fazer esquecer as diferenças linguísticas, culturais, históricas. Ela é
colocada de texto a texto, ao contrário, trabalhando para mostrar a alteridade
linguística, cultural, histórica, como uma especificidade e uma historicidade449.
Mais uma vez, portanto, o tradutor Machado de Assis se mostra não só atento ao que faz um
texto literário funcionar como tal, mas sensível à necessidade de, enquanto tradutor, recriar em
língua portuguesa um texto que contenha qualidades que façam de sua tradução, sobretudo, um
texto literário, sem que isso signifique ter que acompanhar rigorosamente o texto de partida.
449
MESCHONNIC, 2010, p. XXIV
231
8. As traduções de Falenas
As poesias publicadas em Falenas (1870) eram quase todas inéditas. O número de
traduções de Machado de Assis mais que dobrou em relação a Crisálidas (1864), aumentando
para treze, considerando individualmente as oito peças da “Lira chinesa”. Algumas traduções
não eram inéditas e foram publicadas em jornal antes do livro, como “Versos a Ema”, que no
livro se chama “Estâncias a Ema”, e “Cegonhas e Rodovalhos”, em 1865. As Lamartineanas,
onde também foi publicada “A Elvira”, apesar de estarem com data de 1869, só foram colocadas
à venda no ano seguinte, juntamente a Falenas. As traduções, portanto, também eram
majoritariamente inéditas. Das treze traduções que compõem o volume, nove foram mantidas
pelo autor nas Poesias completas (1901): todas as oito peças de “Lira chinesa” e “A Elvira”, de
Lamartine.
Este é um período de mudanças na vida de Machado de Assis e um período em que
começa a se consolidar definitivamente como escritor. Em 1869 casa-se com Carolina Xavier
de Novais. No mesmo ano, assina um contrato com B. L. Garnier para a publicação de Contos
Fluminenses, Falenas, Ressureição, Histórias da Meia-noite e o Manuscrito do Licenciado
Gaspar, que não chegou a ser publicado. Falenas foi o primeiro volume a sair, seguido dos
Contos Fluminenses.
O segundo livro de poesias de Machado de Assis foi divido em quatro partes
independentes: “Vária”, “Lira chinesa”, “Uma Ode de Anacreonte” e “Pálida Elvira”. Para
Flávia Amparo, Falenas
[...] nascia com a promessa de fundir os três gêneros: o lírico, o épico e o dramático.
Assim, o livro comportaria desde poemas curtos até os longos e narrativos, e o escritor
se enveredaria por vias profusas, ora esboçando um gosto por temas dramáticos e
trágicos, ora explorando o viés herói-cômico, inspirado num Cruz e Silva e num
Boileau, como nas estrofes de “Pálida Elvira”450.
A primeira parte é composta de 25 poemas, dentre os quais estão as traduções que analisaremos
adiante: “A Elvira”, “Os deuses da Grécia”, “Cegonhas e Rodovalhos”, “Estâncias a Ema” e
“A morte de Ofélia”. A “Lira chinesa”, segunda parte do livro, é toda de traduções de poesia
chinesa feitas a partir da tradução em prosa de Judith Walter, que também fazem parte do nosso
objeto de estudo. A terceira e a quarta parte são, respectivamente, compostas da peça em versos
450
AMPARO, 2008, p. 86
232
“Uma ode a Anacreonte” e do longo poema “Pálida Elvira”, que ironiza as convenções
românticas.
A recepção de Falenas serve de termômetro para avaliarmos a obra e ratifica algumas
questões que já foram observadas em diversas traduções, como o pendor classicista na poesia
de Machado de Assis. A primeira resenha do livro saiu em janeiro de 1870, de possível autoria
de Joaquim Serra, segundo Ubiratan Machado451. Entre as qualidades apontadas em algumas
poesias comentadas estão a simplicidade, a clareza e a naturalidade, de “[...] esmeradíssimos
versos [feitos] com a delicadeza de cinzelador”452. Os senões ficam por conta da falta de cunho
brasileiro, particularmente no romance-poema “Pálida Elvira”, já que as paisagens do poema,
embora magníficas, “[...] podem ser tanto nossas como da Suíça”453.
A crítica de Luís Guimarães Júnior, do mês seguinte, retoma alguns pontos e reforça
outros. Ressalta, por exemplo, a feição diferente desta obra em relação a Crisálidas, mas critica
a sujeição do poeta “[...] às regras metódicas do velho classicismo latino e português”, e que se
não fosse o nome de Machado de Assis no volume, seria aceito “[...] no arquivo literário
português em fundo e forma”454. O crítico parece incomodar-se com o fato de que Falenas não
se filia a nenhuma escola, assim como o livro não é classificável como somente lírico, elegíaco
ou histórico, criticando também a falta da originalidade que se encontrava em Crisálidas. É
verdade que Falenas, em vários aspectos, mas principalmente na investigação da forma, aponta
para um caminho que levaria à poesia parnasiana, algo que o crítico ainda não poderia perceber.
Guimarães Júnior elogia as peças de Falenas, mas critica a carência de feições que se
assemelhem ao nacional. Neste quesito, “Pálida Elvira”, embora reconhecidamente belíssima,
é “[...] tão própria para ser recitada em uma gôndola veneziana, como em um quiosque oriental
ou no mais democrático de todos”455. É como se Machado de Assis fosse mais universal do que
brasileiro, e essa falta de espírito nacional é apontado como o único defeito do livro.
Os problemas trazidos por esse apego ao cuidado formal são igualmente ressaltados na
crítica assinada por Oscar Jagoanharo, pseudônimo de Tristão de Alencar Araripe Júnior. O
451
MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de
Janeiro: Eduerj, 2003, p. 71
452
Falenas. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor).
Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 71-72.
453
Ibid., p. 72
454
GUIMARÃES JÚNIOR, L. “Literatura: estudos literários”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de
Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 76
455
Ibid., p. 77
233
crítico observa que nas composições de Machado de Assis há algo “[...] de indefinível na forma
que parece antes oprimir e sufocar o pensamento por mais belo que ele seja, do que elevá-lo e
traduzi-lo”456. A causa do que chama “atrofia de pensamento” seria o desejo irrefreável de evitar
a qualquer custo o menor deslize formal. O exemplo do contrário seria justamente uma das
traduções, “Estâncias a Ema”, na qual Machado teria se deixado levar pelos “arroubos poéticos
de Dumas Filho”, dando “liberdade ampla ao estro” e experimentando “o fervente gotejar da
aflição do poeta em seu coração”457.
A crítica mais contemporânea endossa algumas dessas questões, mas também mostra
outros caminhos. Ishimatsu, por exemplo, diz ser óbvio que Machado intencionava demonstrar
maturidade poética com Falenas, além de se notar o desenvolvimento de elementos préparnasianos. O orientalismo introduzido pela “Lira chinesa” seria um desses elementos que
serviriam de gradual transição entre o Romantismo e o Parnasianismo, assim como o interesse
pela antiguidade clássica demonstrado em “Uma Ode a Anacreonte”458, a que acrescentaríamos
também a tradução de “Os deuses da Grécia”, de Schiller. Ishimatsu atina igualmente para a
pesquisa formal característica de Falenas, como a tentativa de introduzir o triolet na poesia
luso-brasileira459. Cláudio Murilo Leal destaca a mesma conquista no aspecto formal da poesia
machadiana, que considera “mais decantada”, junto aos novos temas introduzidos que teriam
“[...] dimensões mais amplas e abstratas ao enveredar pelos caminhos da reflexão filosófica”460.
Falenas, alega Cláudio Murilo Leal, também teria poemas mais bem estruturados se
comparados com os de Crisálidas, mostra de que o poeta amadurecera461.
Tomadas isoladamente, as traduções de Falenas também representam uma nova
guinada na obra poética de Machado de Assis. Dentre as seis traduções de Crisálidas, quatro
eram de autores franceses e somente uma era de um poeta anterior à estética romântica, “A
jovem cativa”, de Chénier. Com Falenas essa relação praticamente se inverte: somente três
peças são de autores franceses, e somente esses são contemporâneos de Machado de Assis. É
bem verdade que o francês ainda é a língua intermediária de todas as traduções, mas há uma
clara tentativa de se buscar novos horizontes, visitando desde a Inglaterra elisabetana de
Shakespeare, a Alemanha de Schiller até o extremo oriente com a “Lira chinesa”. Mesmo
456
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. “Falenas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis:
roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 77
457
Ibid., p. 78
458
ISHIMATSU, 1984, p. 74
459
Ibid., p. 80
460
LEAL, 2008, p. 104
461
Ibid., p. 110.
234
“Cegonhas e Rodovalhos”, de Bouilhet, francês e contemporâneo de Machado de Assis, nos
remete tematicamente à Roma antiga.
Para Jean-Michel Massa, as traduções de Falenas marcam o início de um novo caminho,
“[...] o de uma homenagem dirigida a seus mestres ou a seus pares” e associa o espaçamento
entre as traduções a partir da década de 1870 a uma atividade criadora pessoal mais intensa que
relega a prática da tradução a uma posição secundária, conquanto ressalte que “[...] todas as
traduções publicadas entre 1870 e 1894 correspondem a uma escolha madura e lúcida”462. Estas
traduções são demonstram não só apuro técnico e expansão de interesses literários, mas
também, como veremos, nos ajudarão a consolidar um conceito machadiano de tradução de
textos poéticos.
8.1 “A Elvira”
A primeira das traduções de Falenas, “A Elvira”, é um poema criado a partir de “A
El***” de Lamartine, e teve sua primeira publicação nas Lamartineanas – poesias de Affonso
de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros, lançado quase simultaneamente a Falenasxxxvii
por ocasião da morte de Lamartine. Em Falenas, O poema teve seu título alterado para “A
Elvira” quando foi incluído na seção “Vária”. Além disso, o verso 17 foi levemente alterado,
conforme informado pela edição crítica das Poesias Completas.
Para Jean-Michel Massa, “[a] escolha de ‘A El***’ parece [...] ditada por uma
preferência pessoal, pois Machado de Assis está então prestes a se casar”463, e sugere que
Machado não se afasta “quase nada” do tema lamartineano, sugerindo até mesmo que, através
de Elvira, Machado se dirigia a Carolina464. Embora a validade da leitura biográfica seja viável,
ou mesmo provável, interessa-nos saber mais sobre o modo de traduzir empregado por
Machado de Assis que levou Massa a dizer que o tradutor não se afastou “quase nada” do tema
lamartineano.
“A El***” faz parte das Nouvelles Méditations Poétiques, publicadas por Lamartine em
1823, apenas três anos após a sua estreia com Méditations Poétiques. Após consulta a diversas
ediçõesxxxviii da obra, notamos que já a partir da segunda edição, de 1824, as novas meditações
462
MASSA, 2008, p. 80
Ibid., p. 80
464
Ibid., p. 81
463
235
são reorganizadas pelo autor, e “A El***” passa de décima primeira para a décima posição já
na segunda edição, de 1824. Embora os versos permaneçam inalterados, nota-se que o poema
apresenta duas estrofes nas duas primeiras edições, mas passa a ter uma só estrofe nas edições
seguintes, de 1838, 1853 e 1878. É somente na edição de 1885 que o poema volta a ter as duas
estrofes das primeiras edições. Consultamos também duas edições das poesias recolhidas de
Lamartine. A mais antiga, Œuvres poétiques de M. A. de Lamartine, publicada em 1825 em
Bruxelas pela L’imprimerie de M. Hayez, traz as Méditations Poétiques no segundo volume.
“A El***” é apresentada como a décima primeira meditação, com duas estrofes, assim como
na primeira edição. Já nas Œuvres complètes, publicadas em 1851 em Paris pelos editores
Charles Gosselin, Furne ET Cie, Pagnerre, Dufour et Mulat, “A El***” é a décima meditação,
também com duas estrofes. Embora haja diferenças mínimas na pontuação nas diferentes
edições, o número, o teor e a disposição dos versos não foram alterados.
Considerando-se que a data limite para composição de “A Elvira” é o fim do ano de
1869, por ocasião do lançamento de Lamartineanas, pode-se estabelecer que Machado de Assis
consultou uma das primeiras edições, ou alguma reprodução do poema conforme as edições de
1823 e 1824, ou ainda alguma edição das poesias coligidas que apresentam o poema conforme
as duas primeiras edições, já que sua tradução possui as mesmas duas estrofes lá encontradas.
Para Thibaudet (1936), as poesias de Nouvelles Méditations Poétiques, embora menos
novas, são mais ricas porque nelas o poeta cresce, se expande465. Dentre os poemas destacados
pelo autor estão “Ischia”, “Bonaparte”, “Le Poète mourant”, “Les Préludes” e, obra-prima do
volume, “Le Crucifix”466. A recepção um pouco mais fria das Nouvelles Méditations Poétiques
foi sentida de imediato. Na edição de 1853, Lamartine inclui um “Préface – A M. Dargaud” em
que discute a recepção do seu segundo volume de poesias e a falta de entusiasmo do público:
Em uma das inúmeras conversas que tivemos juntos por vinte anos, e nas quais abri
de todo o coração toda a minha alma, você me perguntou por que as segundas
Méditations não despertaram, a princípio, o mesmo entusiasmo que as primeiras, e
por que então elas não tomaram seu lugar ao lado das outras? Eu respondi: ‘As
primeiras foram as primeiras, e as segundas foram as segundas.’
Não havia outro motivo; mas esta razão é uma, embora pareça pueril. De fato, a
novidade em tudo é um imenso elemento de sucesso. O espanto faz parte do prazer da
aparência de uma beleza da arte como da beleza da criação, como de uma beleza viva.
Uma vez que este primeiro assombro se esgotou ou embotou, a coisa permanece tão
bonita, mas não é mais tão admirada. O arrebatamento em si se torna um hábito; e o
hábito, como diz Montaigne, ‘tira todo o sabor’. Você acredita que o primeiro raio do
sol, que inunda os olhos do homem acordado pela manhã, é mais puro e mais
465
466
THIBAUDET, 1936, p. 160
Ibid., p. 160-161.
236
deslumbrante do que os raios que o seguem, e dos quais já não percebemos? Não, mas
ele é o primeiro.467
A comparação com os primeiros raios de sol que tanto encantam ao amanhecer com os seguintes
dos quais mal nos damos conta para se referir aos seus dois primeiros livros de poesia dá uma
razoável impressão da diferença de recepção entre ambos. A explicação do prefácio vai longe
ainda e, em defesa de seus poemas, Lamartine afirma que todos, tanto os do primeiro quanto os
do segundo volume, foram compostos mais ou menos na mesma época, pelo mesmo homem de
mesma idade e que, ao fim, se os novos poemas não pareciam ter o mesmo viço, o problema
era mais do público do que dele: “É que se meus versos eram ainda tão novos para esse público,
o público já não era igualmente novo para meus versos”468.
O poema “A El***”, conforme publicado nas duas primeiras edições, possui duas
estrofes. A primeira é composta de vinte e quatro versos alexandrinos clássicos e um octossílabo
no verso 19. A estrofe é rimada de forma que possa se imaginar uma divisão em quadras com
rima ABBA entre os primeiros dezesseis versos. Entre os versos 17 e 21 temos rima em ABCCB
e entre os quatro últimos versos o esquema muda ABAB. A segunda estrofe é bem menor que
a primeira, contando 13 versos. Novamente, as rimas permitem visualizar duas quadras dentro
da estrofe, a primeira com rimas em AABB, e a segunda com rimas em ABBA. Depois, entre
os versos 9 e 13 temos versos rimados em AABBA. Na segunda estrofe Lamartine segue
compondo em alexandrinos combinados com octossílabos, um no verso 33, e depois nos três
últimos versos.
O poema francês pinta a cena íntima em que dois amantes estão juntos, de mãos dadas,
sentados um ao lado do outro, vendo o tempo correr, e eu-poético faz juras de amor eterno: “Je
te jure à mon tour de n’adorer que toi”. A jovem a quem ele se dirige, possivelmente a Elvira
467
LAMARTINE, M. de. Nouvelles méditations poétiques. Paris: Pagnerre, V. Lecou, Furne et Cie Editeurs, 1853,
p. 1-2, tradução nossa. No original: “Dans l’un des innombrables entretiens que nous avons ensemble depuis vingt
ans, et dans lesquels je vous ai ouvert péripatétiquement toute mon âme, vous m’avez demandé pourquoi les
secondes Méditations n’avaient pas excité d’abord le même enthousiasme que les premières, et pourquoi ensuite
elles avaient repris leur rang à côté des autres ? Je vous ai répondu : « C'est que les premières étaient les premières,
et que les secondes étaient les secondes. » / Il n’y a pas eu d’autre raison ; mais cette raison en est une, bien qu’elle
paraisse une puérilité. En effet, la nouveauté en tout est un immense élément de succès. L’étonnement fait partie
du plaisir à l’apparition d’une beauté de l’art comme d'une beauté de la création, comme d’une beauté vivante.
Une fois ce premier étonnement épuisé ou émoussé, la chose reste aussi belle, mais elle n’est plus aussi admirée.
Le ravissement même devient une habitude ; et l’habitude, comme dit Montaigne, « enlève sa primeur à toute
saveur. » Croyez-vous que le premier rayon du soleil qui inonde le matin les yeux de l’homme qui s’éveille, soit
plus pur et plus éblouissant que les rayons qui le suivent, et dont on ne s’aperçoit plus ? Non, mais il est le
premier.”.
468
LAMARTINE, 1853, p. 3, tradução nossa. No original: “C’est que si mes vers étaient encore aussi neufs pour
ce public, ce public n’était plus aussi neuf pour mes vers”.
237
de outros poemas, então se deita em seu colo, o que desperta no narrador da cena sentimento
de insegurança que continuará a perturbá-lo durante o restante do poema:
Souvent alors, souvent, dans le fond de mon cœur
Pénètre comme un trait une vague terreur ;
Tu me vois tressaillir ; je pâlis, je frissonne,
Et troublé tout à coup dans le sein du bonheur,
Je sens couler des pleurs dont mon âme s’étonne469.
A jovem percebe que algo o perturba e o interroga, assim como ele, chorando ao ver que seu
companheiro não está bem, e oferece consolo:
« De quel ennui secret ton âme est-elle atteinte ?
Me dis-tu : cher amour, épanche ta douleur ;
J’adoucirai ta peine en écoutant ta plainte,
Et mon cœur versera le baume dans ton cœur. »470
Porém o que perturba o seu companheiro é fruto das incertezas dele e do seu medo de perdê-la.
O que era para ser um momento ditoso, de tranquilidade, cumplicidade torna-se motivo de
aflição por algo que ainda não aconteceu, de nostalgia por algo que ainda não se perdeu. Ao
mesmo tempo em que reconhece a boa fortuna que vive naquele momento – “Nul mortel sous
les cieux n’est plus heureux que moi!” – sabe que sua sorte pode mudar a qualquer instante,
pois há uma voz dentro de si que não o deixa esquecer:
Mais jusque dans le sein des heures fortunées
Je ne sais quelle voix que j’entends retentir
Me poursuit, et vient m’avertir
Que le bonheur s’enfuit sur l’aile des années,
Et que de nos amours le flambeau doit mourir !471
Essa voz que o lembra o quanto tudo é efêmero não o deixa fruir o momento como deveria. Ele
sabe que tudo tem seu fim e o medo de que isso aconteça, junto à sensação de que acontecerá,
são o suficiente para perturbá-lo:
D’un vol épouvanté, dans le sombre avenir
Mon âme avec effroi se plonge,
Et je me dis : Ce n’est qu’un songe
Que le bonheur qui doit finir.472
É nesta característica do poema que Massa teria encontrado o motivo do interesse de
Machado de Assis por traduzir “A El***”. A escolha deve ter sido mesmo bastante pessoal já
que este poema sequer foi citado pelos críticos consultados. O poeta de Corina, segundo Massa,
estaria utilizando Elvira para se dirigir à sua esposa Carolina, e relatando a ela a insegurança
469
LAMARTINE, 1853, p. 74
Ibid.
471
Ibid., p. 75
472
Ibid.
470
238
que sentia em virtude de desilusões anteriores. Biografismos à parte, interessa-nos de fato
verificar como Machado procede nesta tradução.
Vejamos, lado a lado, os poemas de Machado e Lamartine:
Quadro comparativo 17 – “A Elvira” e “A El***”
A ELVIRA
A El***
Quando, contigo a sós, as mãos unidas,
Tu, pensativa e muda; e eu, namorado,
Às volúpias do amor a alma entregando,
Deixo correr as horas fugidias;
Ou quando às solidões de umbrosa selva
Comigo te arrebato; ou quando escuto
– Tão só eu, – teus terníssimos suspiros;
E de meus lábios solto
Eternas juras de constância eterna;
Ou quando, enfim, tua adorada fronte
Nos meus joelhos trêmulos descansa,
E eu suspendo meus olhos em teus olhos,
Como às folhas da rosa ávida abelha;
Ai, quanta vez então dentro em meu peito
Vago terror penetra, como um raio!
Empalideço, tremo;
E no seio da glória em que me exalto,
Lágrimas verto que a minha alma assombram!
Tu, carinhosa e trêmula,
Nos teus braços me cinges, – e assustada,
Interrogando em vão, comigo choras!
“Que dor secreta o coração te oprime?”
Dizes tu, “Vem, confia os teus pesares...
Fala! eu abrandarei as penas tuas!
Fala! Eu consolarei tua alma aflita.”
Lorsque seul avec toi, pensive et recueillie,
Tes deux mains dans la mienne, assis à tes côtés,
J’abandonne mon âme aux molles voluptés
Et je laisse couler les heures que j’oublie;
Lorsqu’au fond des forêts je t’entraîne avec moi,
Lorsque tes doux soupirs charment seuls mon oreille,
Ou que, te répétant les serments de la veille,
Je te jure à mon tour de n’adorer que toi;
Lorsqu’enfin, plus heureux, ton front charmant repose
Sur mon genou tremblant qui lui sert de soutien,
Et que mes doux regards sont suspendus au tien
Comme l’abeille avide aux feuilles de la rose;
Souvent alors, souvent, dans le fond de mon cœur
Pénètre comme un trait une vague terreur;
Tu me vois tressaillir; je pâlis, je frissonne,
Et troublé tout à coup dans le sein du bonheur,
Je sens couler des pleurs dont mon âme s’étonne.
Tu me presses soudain dans tes bras caressants,
Tu m’interroges, tu t’alarmes,
Et je vois de tes yeux s’échapper quelques larmes
Qui viennent se mêler aux pleurs que je répands.
« De quel ennui secret ton âme est-elle atteinte?
Me dis-tu : cher amour, épanche ta douleur;
J’adoucirai ta peine en écoutant ta plainte,
Et mon cœur versera le baume dans ton cœur. »
Vida do meu viver, não me interrogues!
Quando enlaçado nos teus níveos braços
A confissão de amor te ouço, e levanto
Lânguidos olhos para ver teu rosto,
Mais ditoso mortal o céu não cobre!
Se eu tremo, é porque nessas esquecidas
Afortunadas horas,
Não sei que voz do enleio me desperta,
E me persegue e lembra
Que a ventura co’ o tempo se esvaece
E o nosso amor é facho que se extingue!
De um lance, espavorida,
Minha alma voa às sombras do futuro,
E eu penso então; “Ventura que se acaba
Um sonho vale apenas.”
Ne m’interroge plus, ô moitié de moi-même!
Enlacé dans tes bras, quand tu me dis : « Je t’aime »,
Quand mes yeux enivrés se soulèvent vers toi,
Nul mortel sous les cieux n’est plus heureux que moi !
Mais jusque dans le sein des heures fortunées
Je ne sais quelle voix que j’entends retentir
Me poursuit, et vient m’avertir
Que le bonheur s’enfuit sur l’aile des années,
Et que de nos amours le flambeau doit mourir!
D’un vol épouvanté, dans le sombre avenir
Mon âme avec effroi se plonge,
Et je me dis : Ce n’est qu’un songe
Que le bonheur qui doit finir.
Fonte: Assis (1976); Lamartine (1853)
Tomado em seu conjunto, o poema de Machado de Assis apresenta o mesmo relato do
poema Lamartineano: quando os dois amantes se encontram sozinhos, o rapaz faz juras de amor
eterno, mas também deixa entrever os sentimentos de insegurança quanto ao futuro, receoso de
239
perder aquele amor, mas se recusa a confessar o que o aflige. Os caminhos para se chegar a
isso, contudo, divergem a ponto de dar ao poema de Machado de Assis outro tom, em boa
medida fruto das escolhas formais do tradutor. O poema de Machado também está divido em
duas estrofes, a primeira com vinte e cinco versos, como a de Lamartine, e a segunda com
quinze, dois a mais do que o poema francês. Como nas outras traduções analisadas, Machado
troca o alexandrino clássico de Lamartine por versos decassílabos heroicos e sáficos.
Certamente os alexandrinos não o intimidavam, já que somente em Falenas o metro é utilizado
em sete poemas. A escolha dos decassílabos, portanto, certamente foi intencional. Por outro
lado, Machado mantém o uso do verso quebrado, ainda que em posições diferentes e com maior
frequência do que no texto-fonte: na primeira estrofe, Machado usa o verso quebrado três vezes,
contra uma de Lamartine; na segunda, ambos utilizam o verso quebrado quatro vezes, mas em
posições diferentes, visto que Lamartine concentra três deles nos últimos versos. Observamos
tentativas de compensação formal, mas o que se destaca dessas opções formais é que o verso
mais curto, mais sintético, sem rimas, parece refletir melhor tensão causada pela angústia que
o jovem guarda dentro de si, algo que se nota nitidamente nos versos abaixo:
Ai, quanta vez então dentro em meu peito
Vago terror penetra, como um raio!
Empalideço, tremo;473
que traduzem os seguintes versos franceses:
Souvent alors, souvent, dans le fond de mon cœur
Pénètre comme un trait une vague terreur ;
Tu me vois tressaillir; je pâlis, je frissonne,474
Observamos que, embora o poema de Machado de Assis tenha dois versos a mais do
que o de Lamartine, sente-se que sua versão é mais sintética. De imediato, uma simples
contagem de palavras revela que o poema de Machado possui exatamente sessenta palavras a
menos do que o poema francês. Um bom exemplo deste sintetismo do tradutor é observado
entre os versos 19 e 21 da tradução de Machado, que traduzem os versos 18 a 21 do poema de
Lamartine:
Tu, carinhosa e trêmula,
Nos teus braços me cinges, – e assustada,
Interrogando em vão, comigo choras!475
473
ASSIS, 1976, p. 236
LAMARTINE, 1853, p. 74
475
ASSIS, Op. Cit., p. 236-237
474
240
Tu me presses soudain dans tes bras caressants,
Tu m’interroges, tu t’alarmes,
Et je vois de tes yeux s’échapper quelques larmes
Qui viennent se mêler aux pleurs que je répands.476
Os três alexandrinos clássicos e o octossílabo de Lamartine se tornam um hexassílabo e dois
decassílabos. A redução é perceptível tanto no número de palavras quanto no de sílabas
poéticas. Machado alcança o efeito eliminando, por exemplo, o advérbio “soudain”, e
traduzindo os dois alexandrinos finais do trecho acima – que, se traduzidos literalmente, nos
dariam algo tão expansivo, caudaloso, exagerado quanto “E vejo de teus olhos escaparem
algumas lágrimas / que vêm se juntar aos prantos que derramo” – por um simples “comigo
choras”. O efeito alcançado com uma descrição que parece buscar somente o essencial, mais
uma vez, reflete melhor a angústia, a aflição, de que o jovem poeta está tomado.
Machado, por outro lado, também faz poucos acréscimos na sua tradução, como no
segundo verso “Tu, pensativa e muda; e eu, namorado”, ou nos dois últimos versos da primeira
estrofe, “Fala! Eu abrandarei tuas penas/Fala! Eu consolarei tua alma aflita.”, em que os
trechos destacados em itálico não encontram nenhuma correspondência no poema francês.
Ainda assim, esses exemplos nos sugerem que o poeta-tradutor buscava um sentimento
dramático mais intenso nos seus versos.
Um procedimento bastante comum que se observa, na verdade, é a reformulação do
trecho empregando frequentemente alguma forma de inversão sintática. O terceiro verso do
poema francês, por exemplo, “J’abandonne mon âme aux molles voluptés”, se torna “Às
volúpias do amor a alma entregando”. O mesmo ocorre com o verso “Comme l’abeille avide
aux feuilles de la rose”, que é traduzido por “Como às folhas da rosa ávida abelha”.
Evidentemente, essas inversões não foram meros caprichos, mas movimentos necessários para
se encontrar o metro e ritmo adequados aos versos.
Por um lado, a leitura que se pode fazer do poema de Machado é, em termos gerais, a
mesma da que fizemos do poema de Lamartine: dois jovens apaixonados aproveitam o
momento que passam juntos. O rapaz, em meio às juras de amor eterno, deixa sua insegurança
antecipar o sentimento de perda, sentimento que o deixa desconcertado a ponto de fazer a sua
amada perceber que há algo de errado. Por outro, é nítido o quanto o tradutor reescreve o texto
de Lamartine, afastando-se da letra para recompor as cenas à sua maneira.
476
LAMARTINE, Op. Cit., p. 74-75
241
O tradutor é menos efusivo, menos afeito aos arroubos langorosos de Lamartine, não
obstante a admiração que nutria por ele. O Machado de Assis poeta-tradutor que se apresenta a
partir da análise desta tradução – e de outras que veremos a seguir – parece colocar em prática
o que Novalis chamou de tradução “transformante”, que Berman define e explica nos seguintes
termos: “[...] traduções que modificam pura e simplesmente o original e suas formas, ou porque
se traduz uma obra versificada em prosa, ou porque se traduz um tipo de verso por outro,
etc.”477. Este tipo de tradutor “transformante” é chamado por Berman de “‘poeta do poeta’ –
expressão reflexiva que nos é agora familiar e que indica o movimento de potencialização
evocado acima”478. Para Berman, na tradução “[...] transformante duas visadas poéticas se
complementam potencializando a obra”479. Aqui, o poeta busca reimaginar o texto-traduzido,
o que significa buscar uma nova forma poética que transmita os sentimentos que deseja
imprimir em seu poema e que não serão, necessariamente, os mesmos do texto de partida. Não
há “deferência” diante do poema de Lamartine. Há uma busca para se criar um poema a partir
dele, de dar um passo além daquele dado por Lamartine. Desta forma, a prática da tradução
machadiana que se delineia demonstra uma crescente regularidade nos procedimentos que
prezam, sobretudo, pela liberdade criativa e original do tradutor.
8.2 “Os deuses da Grécia”
“Não sei alemão; traduzi estes versos da tradução em prosa francesa de um dos mais
conceituados intérpretes da língua de Schiller”480. Assim, categórico e despretensioso,
Machado de Assis comenta sua única tradução do poeta alemão. Se Machado, como ele mesmo
afirma, traduz a partir do francês, precisamos verificar qual foi o texto-fonte utilizado para
estudar sua tradução. Galante de Sousa indica uma possibilidade na sua Bibliografia de
Machado de Assis:
Possivelmente a tradução de que se serviu Machado de Assis foi a seguinte: Poésies de
Schiller – Traduction nouvelle par Ad. Régnier – Paris – Librairie de L. Hachette et Cie.
– 1859. (É o 1o vol. de Œuvres de Schiller). Aí se encontra a dita peça, vertida em prosa
francesa, em 16 estrofes, nas pp. 414-418, sob o título LES DIEUX DE LA GRÈCE.
477
BERMAN, 2002, p. 200
Ibid., p. 201
479
Ibid.
480
ASSIS, 1976, p. 346
478
242
Em nota, diz o tradutor francês, que, na versão primitiva, havia quatro outras estrofes
em lugar da 6a na sua tradução. Como a essa 6a estrofe correspondem as estrofes 11a e
12a da tradução de Machado de Assis, parece lícito concluir que o mesmo baseou sua
composição na tradução de Régnier481.
Esta informação é rebatida por Jean-Michel Massa, que sugere que Machado de Assis
teria utilizado outra tradução: “Machado usou mesmo a de X. Marmier, Poésies de Schiller,
traduction nouvelle, Paris, 1862 (B.N. Paris Y th 3490)”482 sem apresentar os dados que o
levaram a tal conclusão. Esta é uma dúvida que pretendemos dirimir no decorrer desta análise.
Quanto à escolha do texto, Massa tece as considerações a seguir:
Ao escolher “Les dieux de la Grèce”, de Schiller, o escritor antecipa no Brasil o gosto
de sua época, pois o poeta alemão, apreciado e traduzido na França, era em seu país
quase um desconhecido. Lembremo-nos de que Machado de Assis usou uma tradução
francesa, pois não conhecia o alemão. “Os deuses da Grécia” é um hino à idade de
ouro hoje desaparecida do mundo moderno. Schiller, como Machado de Assis,
admirava a alegria e harmonia que reinava então, e mais ainda a beleza e a arte. Em
1869, é sem dúvida esse aspecto parnasiano que seduziu o jovem escritor. [...] Parecenos significativo que entre as obras líricas de Schiller, Machado de Assis escolheu
uma poesia em que certos versos têm acentos pré-parnasianos483.
Massa diz que Schiller era “quase um desconhecido” e, em nota, explica que na época
da publicação de Falenas só se conhecia uma tradução de poetas alemães em português, e feita
em Portugal: Ecos da lira teutônica. Informa ainda que das trinta e cinco obras do volume,
apenas três são de Schiller e que no Brasil, Schiller teve como seu tradutor Gonçalves Dias, que
traduziu a peça A noiva de Messina484, cuja versão definitiva perdeu-se com seu autor no
naufrágio que o matouxxxix. Mas, além de Gonçalves Dias, há também José Inácio Gomes
Ferreira de Menezes, conhecido de Machado de Assis e com quem manteve correspondência.
Ferreira de Menezes também traduziu Schiller, além de Hugo, Byron, Ossian e Chénier em
Flores sem Cheiro (1863), que contém toda uma seção de “Traduções”. Do poeta alemão,
representado em quatro das onze traduções, Menezes verte “O amor triunfante”, “A Emma”,
“O Fugitivo” e “Enlevo” sem informar se diretamente do alemão ou se por intermédio de
alguma outra versão. Não sabemos em que medida Massa considerou Schiller “quase um
desconhecido”, ou o que o levou a tal conclusão, mas é possível encontrar diversas referências
ao poeta alemão em dezenas jornais e periódicos da época, inclusive naqueles em que Machado
de Assis colaborou.
Régnier, autor da tradução sugerida Galante de Sousa como texto-fonte, ao traduzir em
prosa “Les dieux de la Grèce” – cujo título em alemão é “Die Götter Griechenlands” – afirma
481
SOUSA, 1955, p. 448.
MASSA, 2008, p. 111
483
Ibid., p. 81-82
484
Ibid., p. 111
482
243
em nota que a primeira publicação do poema se deu em 1788 no Mercure Allemand (“Der
Deutsche Merkur”), provocando reações imediatas. Ao republicar o poema, Schiller suprime
quatro estrofesxl que ocupavam o lugar da sexta na segunda versão do poema. Régnier mantém
a forma final do poema de Schiller na sua tradução, mas inclui em nota a tradução das quatro
estrofes suprimidas da primeira edição. A tradução de Régnier possui dezesseis estrofes, a de
Marmier, texto-fonte sugerido por Massa, quatorze.
Considerando a forma alemã do poema em Gedichte von Schiller, de 1873, em que “Die
Götter Griechenlandes” possui dezesseis estrofes485 de oito versos cada, com rimas alternadas,
sempre no esquema ABABCDCD, a de Régnier estaria mais próxima do texto fonte quanto à
organização do texto. Não sabemos se por escolha do tradutor ou se por problemas editoriais,
mas o fato é que a versão de Marmier possui menos estrofes por juntar duas estrofes em uma
só em dois momentos: à primeira estrofe na tradução de Marmier correspondem as duas
primeiras na tradução de Régnier, e à quinta estrofe de Marmier correspondem as estrofes seis
e sete de Régnier. Abaixo lemos a reprodução da tradução de Machado de Assis ao lado de um
dos possíveis textos de partida, na tradução de Régnier:
Quadro comparativo 18 – “Os deuses da Grécia” e “Les Dieux de la Grèce”
Os Deuses da Grécia
(Schiller)
Quando, coos tênues vínculos de gozo,
Ó Vênus de Amatonte, governavas
Felices raças, encantados povos
Dos fabulosos tempos;
Quando fulgia a pompa do teu culto,
E o templo ornavam delicadas rosas,
Ai! quão diverso o mundo apresentava
A face aberta em risos!
Na poesia envolvia-se a verdade;
Plena vida gozava a terra inteira;
E o que jamais hão de sentir na vida
Então sentiam homens.
Lei era repousar no amor; os olhos
Nos namorados olhos se encontravam;
Espalhava-se em toda a natureza
Um vestígio divino.
Onde hoje dizem que se prende um globo
Cheio de fogo, — outrora conduzia
Hélios o carro de ouro, e os fustigados
Cavalos espumantes.
485
Les Dieux de la Grèce
Quand vous gouverniez encore le bel univers, que vous meniez
encore les races fortunées avec les rênes légères du plaisir, êtres
charmants du pays des fables!... ah! quand brillait encore votre
culte délicieux, comme tout alors était tout autre!... quand on
couronnait encore tes temples de guirlandes, Vénus
d’Amathonte !
Quand le voile magique de la poésie entourait encore
gracieusement la vérité.... alors par toute la création coulait la
plénitude de la vie, et ce qui jamais ne sera sensible sentait.
Pour la presser sur le sein de l’Amour, on donnait à la nature
une plus haute noblesse ; tout, aux regards initiés, tout montrait
la trace d'un Dieu.
Où maintenant, comme le disent nos sages, ne se meut plus
qu’un globe de feu sans vie, Hélios, dans sa paisible majesté,
conduisait son char d’or. Ces cimes, les Oréades les peuplaient
; dans cet arbre vivait une Dryade; et des urnes des aimables
Naïades jaillissait l’écume argentée des torrents.
Ce laurier autrefois s'est tordu implorant du secours ; la tille de
Tantale est muette dans ce rocher; la plainte de Syrinx
s’échappe de ce roseau , la douleur de Philomèle de ce bocage.
Ce ruisseau reçut les larmes que Cérès pleura sur Proserpine, et
de cette colline Cythérée appelait.... en vain, hélas! son ami
charmant.
SCHILLER, F. Gedichte von Schiller. 2 ed. Berlin: G. Grote, 1873, p. 62-66
244
Povoavam Oréades os montes,
No arvoredo Doríades viviam,
E agreste espuma despejava em flocos
A urna das Danaides.
Refúgio de uma ninfa era o loureiro;
Tantália moça as rochas habitava;
Suspiravam no arbusto e no caniço
Sírinx, Filomela.
Cada ribeiro as lágrimas colhia
De Ceres pela esquiva Perséfone;
E do outeiro chamava inutilmente
Vênus o amado amante.
Entre as raças que o pio tessaliano
Das pedras arrancou, — os deuses vinham;
Por cativar uns namorados olhos
Apolo pastoreava.
Vínculo brando então o amor lançava
Entre os homens, heróis e os deuses todos;
Eterno culto ao teu poder rendiam,
Ó deusa de Amatonte!
Jejuns austeros, torva gravidade
Banidos eram dos festivos templos;
Que os venturosos deuses só amavam
Os ânimos alegres.
Só a beleza era sagrada outrora;
Quando a pudica Tiêmone mandava,
Nenhum dos gozos que o mortal respira
Envergonhava os deuses.
Eram ricos palácios vossos templos;
Lutas de heróis, festins, e o carro, e a ode,
Eram da raça humana aos deuses vivos
A jucunda homenagem.
Saltava a dança alegre em torno a altares;
Louros c’roavam numes; e as capelas
De abertas, frescas rosas, lhes cingiam
A fronte perfumada.
Anunciava o galhofeiro Baco
O Tirso de Evoé; sátiros fulvos
Iam tripudiando em seu caminho;
Iam bailando as Mênades.
A dança revelava o ardor do vinho;
De mão em mão corria a taça ardente,
Pois que ao fervor dos ânimos convida
A face rubra do hóspede.
Nenhum espectro hediondo ia sentar-se
Ao pé do moribundo. O extremo alento
Escapava num ósculo, e voltava
Um gênio a tocha extinta.
Alors les habitants des rieux descendaient encore parmi la race
de Deucalion. Pour triompher des belles filles de Pyrrha, le fils
de Latone prenait la houlette du berger. Entre les hommes, les
dieux et les héros, l’Amour nouait de beaux nœuds ; les mortels,
les héros et les dieux ensemble portaient leurs hommages à
Amathonte.
La gravité sombre et le triste renoncement étaient bannis de
votre culte serein ; tous les cœurs devaient battre heureux et
contents, car les heureux vous étaient alliés. Rien alors n’était
saint que le beau ; le dieu n’avait honte d’aucune joie, là où la
Muse, rougissant avec pudeur, où la Grâce commandait.
Vos temples étaient riants comme des palais; les jeux des héros
vous célébraient aux fêtes de l’Isthme, riches en couronnes ; et
les chars tonnaient roulant au but. S’entrelaçant avec grâce, des
danses pleines de vie entouraient l’autel splendide. Des
guirlandes triomphales ornaient vos tempes ; des couronnes,
votre chevelure parfumée.
Le joyeux Évohé de la troupe armée du thyrse, et le superbe
attelage des panthères annonçaient l’approche du grand dieu
qui apporte la joie ; le Faune et le Satyre marchent en
chancelant devant lui ; autour de lui bondissent les Ménades en
délire ; leurs danses louent son vin, et les joues brunies du divin
hôte invitent gaiement à vider la coupe.
En ce temps-là, un hideux squelette ne se dressait pas devant le
lit du mourant. Un baiser recueillait le dernier souffle sur les
lèvres ; un Génie retournait son flambeau. Aux Enfers même,
la sévère balance de la Justice était aux mains du petit-fils d’une
mortelle, et la plainte touchante du poète de Thrace attendrissait
les Euménides.
L’ombre heureuse retrouvait ses joies dans les bosquets de
l’Élysée ; l’amour fidèle, son fidèle époux, et le conducteur de
char, sa carrière ; la lyre de Linus fait entendre ses chants
accoutumés ; Admète tombe dans les bras d’Alceste ; Oreste
reconnaît de nouveau son ami ; Philoctète, ses flèches.
De plus nobles prix fortifiaient alors le lutteur dans le rude
sentier de la vertu. D’héroïques auteurs de grandes actions
gravissaient au rang des Immortels. La troupe muette des dieux
des Enfers s'inclinait devant celui qui venait réclamer les morts.
Du haut de l'Olympe, le couple des Gémeaux éclairait le pilote
parmi les vagues.
Monde charmant, où es-tu ? Reviens, aimable printemps de la
nature ! Hélas ! ce n’est que dans le pays de fées de la poésie
que vit encore ta trace fabuleuse. La campagne est triste et
dépeuplée ; nulle divinité s’offre à mon regard. Hélas ! de cette
image, toute chaude de vie, l’ombre seule est restée.
Toutes ces fleurs sont tombées au souffle glacé du nord. Pour
enrichir un seul entre tous, ce monde de dieux a dû périr. Je
cherche tristement sur la voûte étoilée.... ô Séléné, je ne t’y
trouve plus. Je crie dans les bois, dans les flots.... hélas ! le vide
seul me répond !
245
E além da vida, nos infernos, era
Um filho de mortal quem sustentava
A severa balança; e coa voz pia
Vate ameigava as Fúrias.
Nos Elíseos o amigo achava o amigo;
Fiel esposa ia encontrar o esposo;
No perdido caminho o carro entrava
Do destro automedonte.
Continuava o poeta o antigo canto;
Admeto achava os ósculos de Alceste;
Reconhecia Pilades o sócio
E o rei tessálio as flechas.
Nobre prêmio o valor retribuía
Do que andava nas sendas da virtude;
Ações dignas do céu, filhas dos homens,
O céu tinham por paga.
Inclinavam-se os deuses ante aquele
Que ia buscar-lhe algum mortal extinto;
E os gêmeos lá no Olimpo alumiavam
O caminho ao piloto.
Onde és, mundo de risos e prazeres?
Porque não volves, florescente idade?
Só as musas conservavam teus divinos
Vestígios fabulosos.
Tristes e mudos vejo os campos todos;
Nenhuma divindade aos olhos surge;
Dessas imagens vivas e formosas
Só a sombra nos resta.
Do norte ao sopro frio e melancólico,
Uma por uma, as flores se esfolharam;
E desse mundo rútilo e divino
Outro colheu despojos.
Os astros interrogo com tristeza,
Selene, e não te encontro; à selva falo,
Falo à vaga do mar, e à vaga, e à selva,
Inúteis vozes mando.
Da antiga divindade despojada,
Sem conhecer os êxtases que inspira,
Desse esplendor que eterno a fronte lhe orna
Não sabe a natureza.
Nada sente, não goza do meu gozo;
Insensível à força com que impera,
O pêndulo parece condenado
Às frias leis que o regem.
Para se renovar, abre hoje a campa,
Foram-se os numes ao país dos vates;
Das roupas infantis despida, a terra
Inúteis os rejeita.
Ignorant les joies qu’elle donne, n’étant jamais ravie de sa
propre grandeur, ne connaissant pas l’esprit qui la gouverne, ne
jouissant pas de ma félicité, insensible même à la gloire de son
auteur, la nature, dépouillée de sa divinité, obéit servilement,
comme le battement mort de l’horloge, à la loi de la pesanteur.
Pour renaître demain, elle se creuse aujourd’hui son propre
tombeau, et les lunes, d’elles-mêmes, s’enroulent et se
déroulent sur un fuseau éternellement pareil. Les dieux oisifs
s’en sont allés chez eux, dans le pays des poètes, inutiles
désormais à un inonde qui, trop grand maintenant pour qu’ils le
mènent à la lisière, se soutient par son propre balancement.
Oui, ils s’en sont allés chez eux, et ils ont emporté toute beauté,
toute grandeur, toutes les couleurs, tous les tons de la vie, et il
ne nous est resté que la parole inanimée. Arrachés au déluge du
temps, ils flottent, sauvés du naufrage, sur les hauteurs du Pinde
: ce qui doit vivre immortel dans les chants des poètes, est
condamné à périr dans la vie réelle.
246
Foram-se os numes, foram-se; levaram
Consigo o belo, e o grande, e as vivas cores,
Tudo que outrora a vida alimentava,
Tudo que é hoje extinto.
Ao dilúvio dos tempos escapando,
Nos recessos do Pindo se entranharam:
O que sofreu na vida eterna morte,
Imortalize a musa!
Fonte: Assis (2009); Schiller (1859)
“Les dieux de la Grèce”, conforme se lê nas versões francesas que segundo Massa
(2008) e Sousa (1955) Machado poderia ter consultado, compara a vida e a natureza conforme
eram na antiguidade clássica grega com a realidade da vida cristã de então. A antiguidade,
governada pelos deuses gregos, é considerada uma época de saudosa e harmoniosa alegria:
“Lorsque vous gouverniez encore ce monde riant, avec légers liens de la joie / [...] Venus
Amathonte, ah! Comme tout était autre qu’à présent”486. Uma leve crítica ao presente austero
da era cristã aparece já quinta estrofe na tradução de Marmier: “La gravité sombre, l’autère
abstinence étaient bannies de votre joyeuse religion”487. Esta época graciosa desapareceu, e
seus vestígios só são percebidos na poesia: “Monde riant, où es-tu? reviens âge fleuri de la
nature. Hélas ! tes vestiges fabuleux n’ont été conservés que dans les régions féeriques de la
poésie”488. Agora o homem, ao contrário de antes, está distante da divindade: “nulle Divinité
ne s’offre à mon regard”. Até mesmo a natureza mudou, agora insensível à presença do divino
e do homem: “Elle ne sent pas l’esprit qui la dirige, elle ne se réjouit pas de ma joie;”. Os deuses
se foram porque não têm mais utilidade neste mundo: “Les Dieux sont retournés dans la terre
des poètes, inutiles désormais à un monde qui, rejetant ses lisières, se soutient par son propre
poids”. Este mundo idealizado por Schiller vive somente na poesia, e seu desaparecimento da
vida dos homens é a condição para que continuem sua existência poética, como o poeta expressa
nas últimas palavras do poema: “ce qui doit être immortel dans la poésie doit périr dans la
vie”489.
Otto Maria Carpeaux (2013) coloca Goethe e Schiller, a quem considera os dois
melhores dramaturgos do Sturm und Drang, entre os melhores poetas do período imediatamente
486
SCHILLER, F. Poésies. Trad. M. X. Marmier. 4 ed. Paris: Charpentier et Cie., Libraires-Éditeurs, 1874a, p.
149.
487
Ibid., p. 150.
488
Ibid., p. 151.
489
Ibid., p. 152.
247
posterior na literatura alemã490. Carpeaux considera ainda que, como poeta, faltava a Schiller a
real veia lírica: “[...] mais didático do que lírico e mais eloquente do que realmente poético”491,
Schiller poderia muito bem ter escrito seus poemas filosóficos em prosa. Lúcia Miguel Pereira
e outros fizeram críticas similares à poesia de Machado de Assis, sugerindo que as feições que
ele ganhou como poeta refletem, ao menos em parte, aqueles em quem se espelhou.
Ao comentar o poema “Os deuses da Grécia” em tradução de Machado de Assis, Pedro
Süssekind, no artigo “A recriação da Grécia. O debate de Goethe e Schiller sobre a recriação
dos antigos” (2007), afirma que “[a] leitura da Ifigênia influenciou Schiller a escrever o poema
Os deuses da Grécia, publicado em março de 1788, no qual se encontram reflexões acerca do
desaparecimento dos deuses, antecipando um tema de Hölderlin e dos românticos”492.
Süssekind sugere que o poema de Schiller, citado em tradução de Machado no artigo, aponta
para uma recuperação dos tempos antigos através da poesia, o que se daria a partir da recriação
dos antigos através da imitação deles, sendo a Ifigênia de Goethe um modelo, um exemplo de
como fazê-lo. A obra de Goethe ainda levaria Schiller a estudar grego e traduzir textos antigos
a fim de apurar sua técnica493. Süssekind conclui seu artigo dizendo que para Schiller o poeta
deveria, ao imitar os antigos, não apenas copiar os modelos, mas criar outra Grécia através da
sua expressão poética494. Este conceito já estaria anunciado no poema “Os deuses da Grécia” e
Machado, ao recriá-lo, estaria seguindo o rastro de Schiller e passando a mensagem adiante.
Além disso, a leitura apresentada no artigo mostra que a tradução de Machado de Assis se atém
ao sentido central do poema de Schiller, conforme lido na tradução francesa que apresentamos.
Por outro lado, a tradução de Machado de Assis nos coloca de imediato diante de dois
problemas: o primeiro é determinar qual foi o texto-fonte utilizado pelo tradutor para
recuperarmos o histórico de suas leituras, já que as duas principais referências no caso, as
pesquisas de Galante de Sousa e Jean-Michel Massa, apresentam soluções diferentes. Em
seguida, sabendo que Machado traduz a partir de uma versão em prosa francesa, mas
devolvendo o texto à forma poética, interessa investigar mais atentamente a maneira como o
tradutor-poeta, a partir da forma que escolhe dar ao seu texto, cria um poema capaz de
estabelecer o mesmo diálogo sugerido pelo poema de Schiller e que se tornou um tema caro aos
românticos alemães: não a imitação, mas a emulação de modelos da antiguidade como forma
490
CARPEAUX, Otto Maria. História concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013, p. 60.
Ibid., p. 71
492
SÜSSEKIND, Pedro. “A recriação da Grécia. O debate de Goethe e Schiller sobre a imitação dos antigos”. In:
Kleos: revista de filosofia antiga, v. 11, 2007, p. 82
493
Ibid., p. 82
494
Ibid., p. 88
491
248
de renovar a poesia contemporânea, algo que resvala no papel que parece reservado à tradução
na poética machadiana.
Quanto ao primeiro problema, após comparar as três versões do poema – nas traduções
de Régnier, Marmier e Machado de Assis – estamos inclinados a acreditar que a indicação de
Massa estava correta. Seria temerário fazer qualquer afirmação definitiva neste sentido, uma
vez que as escolhas de Machado de Assis tomam necessariamente um caminho mais próprio,
tendo em vista a devolução do texto à forma poética. Ainda assim, algumas escolhas
vocabulares são indício de que ele trabalhou a partir da tradução de Marmier.
O primeiro exemplo disso pode ser observado na terceira estrofe de sua tradução:
Na poesia envolvia-se a verdade;
Plena vida gozava a terra inteira;
E o que jamais hão de sentir na vida
Então sentiam homens495.
Comparemos, por exemplo, os dois versos finais da estrofe acima com o trecho correspondente
na versão de Marmier: “et ce qu’on ne sentira jamais on le sentait dans ces temps-là” (“E o que
nunca se sentirá, sentia-se naquele tempo”xli), e o mesmo trecho na tradução de Régnier: “et ce
qui jamais ne sera sensible sentait” (“e o que nunca será sensível sentia”).
O primeiro verso da sétima estrofe na tradução de Machado de Assis também é indício
de que ele trabalhou a partir da versão de Marmier. Em sua tradução lemos “Refúgio de uma
ninfa era o loureiro” e, tradução quase literal da versão de Marmier, “Ce laurier est le refuge
d’une nymphe” (“Este louro é o refúgio de uma ninfa”), enquanto Régnier traduz o mesmo
trecho por “Ce laurier autrefois s’est tordu implorant du secours” (“Este louro torceu-se outrora
implorando socorro”).
Outro exemplo em que as escolhas de Machado espelham as de Marmier encontra-se
nos primeiros versos da estrofe 17 na tradução de Machado de Assis: “Nenhum espectro
hediondo ia sentar-se / ao pé do moribundo. [...]”, em que o termo destacado em itálico é
exatamente o mesmo que Marmier usa em sua tradução: “Alors nul spectre hideux ne se plaçait
au chevet du mourant” (“Nenhum espectro hediondo colocava-se à cabeceira do moribundo
então”). Comparando o trecho acima nas versões de Machado e Marmier com as escolhas de
Régnier percebe-se o quanto esta distancia-se das escolhas de Machado: “En ce temps-là, un
495
ASSIS, 1976, p. 325
249
hideux squelette ne se dressait pas devant le lit du mourant” (“Naquele tempo, um esqueleto
hediondo não se erguia diante do leito do moribundo”).
Mesmo quando Machado – um tanto incoerente com o restante do poema – nomeia uma
das divindades do poema da mesma forma que Régnier, trocando uma deusa grega por sua
equivalente romana, sua tradução ainda é mais próxima da versão de Marmier. Nos dois
primeiros versos da oitava estrofe na tradução de Machado lemos “Cada ribeiro as lágrimas
colhia / De Ceres pela esquiva Perséfone”. Ceres, deusa romana da agricultura, equivale à deusa
Deméter, que é o que encontramos na versão de Marmier: “Chaque ruisseau recevait les larmes
que Demètre répandait sur Perséphone” (“Cada ribeiro recebia as lágrimas que Deméter
derramava sobre Perséfone”). Régnier traduz o mesmo trecho por “Ce ruisseau reçut les larmes
que Cérès pleura sur Proserpine” (“Este ribeiro recebeu as lágrimas que Ceres chorou sobre
Proserpina”), trocando não só Demètre por Céres, mas Perséphone por Proserpine, também
romana, coerente com a primeira escolha.
Embora seja possível encontrar mais exemplos que sugerem que Machado trabalhou a
partir da versão de Marmier, acreditamos que o que foi apresentado seja suficiente para
corroborar e embasar a sugestão de Massa quanto ao texto-fonte utilizado por nosso tradutorpoeta. Soma-se a isso o fato de que a Galante de Sousa apenas sugere – lembremos do
“possivelmente” – que Machado teria trabalho a partir da tradução de Régnier, deixando a
questão em aberto.
Resta avaliar os méritos da tradução de Machado como um poema, o que faremos
cotejando suas escolhas com as de outro tradutor que já nos auxiliou anteriormente na tradução
de Heine, o inglês Edgar Alfred Bowring, contemporâneo de Machado, que traduziu, além de
poemas de Heine e Schiller diretamente do alemão, exibindo considerável destreza na recriação
dos poemas, também obras poéticas e dramáticas de Goethe e tragédias de Vittorio Alfieri.
Antoine Berman, mais uma vez, nos respalda nesta escolha quando nos lembra que “[...] mais
essencial é o fato e que, mesmo que se considere apenas uma tradução de uma obra, é sempre
proveitoso compará-la também a outras traduções, quando houver”496. Acreditamos que esta
comparação é particularmente benéfica neste caso já que Machado de Assis, como ele próprio
admite, só teve acesso ao poema de Schiller através de uma versão francesa.
496
BERMAN, 1995, p. 84, grifos do autor, tradução nossa. No original: “[p]lus essentiel est le fait que, même si
l’on ne considère fondamentalement qu’une traduction d’une œuvre, il est toujours fructueux de la comparer aussi
à d’autres traductions, quand il y en a”.
250
Ao contrário de Machado de Assis, que na sua carreira de tradutor pinçou somente
alguns textos que considerava relevantes ou com os quais desejava manter um diálogo mais
íntimo, Bowring procurou trazer, na íntegra, as obras poéticas dos românticos alemães para o
inglês. The poems of Schiller, tradução de Bowring que consultamos na segunda edição de
1874, foi publicada pela primeira vez mais de vinte anos antes, em 1851. No prefácio à primeira
edição – reproduzido na segunda – o tradutor é explícito quanto ao seu projeto: de início, explica
que para se apreciar apropriadamente a obra poética de Schiller foi preciso traduzir todos os
poemas encontrados nas versões autorizadas de sua obra na época497. Quanto à forma que
escolhe dar às suas traduções, Bowring nos deixou as seguintes considerações:
o metro do original foi mantido sempre que possível, e em somente poucas situações
sem importância deixou-se de lado esta regra. Quanto às Elegias em particular, o
Tradutor preservou o hexâmetro e o pentâmetro do alemão, não só porque elas permitem
uma versão mais fiel do original, mas também porque ele entende que um metro que foi
empregado com tanto sucesso pelo poeta alemão não pode ser completamente
inadequado em uma língua tão próxima na origem e construção ao alemão quanto a
nossa498.
Além disso, Bowring diz organizar os poemas na mesma ordem das mais recentes edições
alemãs autorizadas499. De acordo com essa organização, “Os deuses da Grécia” figura entre os
poemas do segundo período, o menos volumoso dos três períodos em que a poesia de Schiller
é dividida. A versão de Bowring contém dezesseis oitavas, sem nenhuma menção às estrofes
suprimidas e às alterações feitas no texto da primeira versão do poema publicada por Schiller.
Assim como na versão alemã, as oitavas de Bowring são rimadas, no esquema ABABCDCD,
frequentemente empregando o pentâmetro iâmbico.
Machado de Assis, ao devolver o poema de Schiller à forma poética, compõe sua versão
em trinta e uma quadras heterométricas, compostas de três decassílabos italianos seguidos por
um hexassílabo, sem rimas. O poema é rigorosamente metrificado, embora em alguns
momentos seja necessário fazer uso de sinérese para que a métrica esteja correta, como nos
versos 9 (“Na poesia envolvia-se a verdade;), 36 (“Apolo pastoreava”), 65 (“Nenhum espectro
hediondo ia sentar-se”) e 77 (“Continuava o poema o antigo canto”). Em todas as quadras de
497
BOWRING in SCHILLER, F. The poems of Schiller. Trad. Edgar A. Bowring, C.B., M.P. 2 ed. London: George
Bell and Sons, 1874b, p. v
498
Ibid., p. v-vi, tradução nossa. No No original: “the metre of the original has been adhered to as closely as
possible, and in only a few unimportant instances has this rule been departed from. With regard to the Elegiacs in
particular [...] the Translator has preserved the hexameter and pentameter of the German, not only because they
admit of a more faithful rendering of the original, but also because he conceives that a metre which has been
employed with such singular success by the German poet, cannot be entirely unsuited to a language so closely
allied in origin and construction to the German as our own”.
499
Ibid., ix
251
Machado de Assis lemos três versos de dez sílabas, seguidos por um verso quebrado, o
hexassílabo. O ritmo predominante é o do decassílabo heroico, e mesmo quando o sáfico é
empregado, o hexassílabo não soa inapropriado. Além disso, os princípios harmonização
acentual não são regras inquebráveis, como Chociay (1974) nos ensina: “[...] os poetas nem
sempre se preocuparam demais com esse critério de harmonização acentual, cuidando às vezes
de apenas manter a arrumação da silábica da estrofe heterométrica [...]” fazendo, inclusive, “[...]
livres combinações de sáficos e heroicos quer com hexassílabos, quer com tetrassílabos”500.
Note-se ainda que cada duas quadras de Machado correspondem a uma oitava na versão alemã,
com exceção da quadra 29 da tradução de Machado, que corresponde à décima quinta oitava.
Além disso, algumas oitavas do poema alemão possuem o último verso em metro menor do que
os demais, lembrando o emprego que Machado faz do verso quebrado, como se observa logo
na primeira estrofe, por exemplo:
Da ihr noch die schöne Welt regieret,
An der Freude leichtem Gängelband
Selige Geschlechter noch geführet,
Schöne Wesen aus dem Fabelland!
Ach, da euer Wonnedienst noch glänzte,
Wie ganz anders, anders war es da!
Da man deine Tempel noch bekränzte,
Venus Amathusia!501
Ao devolver o poema de Schiller à forma poética Machado obteve resultado certamente
louvável e inevitavelmente diverso da forma da versão alemã. A escolha pelos decassílabos
brancos combinados com hexassílabos dá o tom clássico adequado à temática, e o uso do
pretérito imperfeito reforça o distanciamento e o ar saudosista da antiguidade. Edgar Bowring,
trabalhando diretamente do alemão, reescreveu Schiller em uma língua em que ritmos análogos
ao do texto germânico são mais facilmente alcançados:
When the magic veil of Poesy
Still round Truth entwin'd its loving chainThrough creation pour'd Life's fulness free.
Things then felt, which ne'er can feel again.
Then to press her 'gainst the breast of Love,
They on Nature nobler power bestow'd,
All, to eyes enlighten'd from above,
Of a God the traces show'd502.
Ao compararmos a versão de Bowring com a de Machado de Assis percebe-se o quanto o poeta
brasileiro aproveita o tema e dele cria outro poema de leitura mais fluida e natural do que a
500
CHOCIAY, 1974, p. 157-158.
SCHILLER, 1873, p. 62
502
SCHILLER, 1874, p. 72
501
252
versão inglesa, que às vezes parece praticar contorcionismos sintáticos para que o significado
central seja mantido:
Na poesia envolvia-se a verdade;
Plena vida gozava a terra inteira;
E o que jamais hão de sentir na vida
Então sentiam homens.
Lei era repousar no amor; os olhos
Nos namorados olhos se encontravam;
Espalhava-se em toda a natureza
Um vestígio divino503.
Machado é também, como outras vezes, mais sintético. Nas estrofes acima, o
decassílabo de linguagem simples e direta “Na poesia envolvia-se a verdade” corresponde a
dois versos da versão de Bowring: “When the magic veil of Poesy / Still round Truth entwin’d
its loving chain” (Quando o mágico véu da Poesia / Ainda envolvia a Verdade em sua trama
amorosa). A clareza da versão de Machado também fica evidente se comparamos os seus versos
“Espalhava-se em toda a natureza / Um vestígio divino” com os de Bowring em “They on
Nature nobler power bestow’d, / All, to eyes enlightened from above / Of a God the traces
show’d” (“Eles à Natureza poder mais nobre conferiram/ Todos, aos olhos iluminados de cima
/ de um Deus os traços mostravam”). Soma-se a isso que, talvez, e sem que o tradutor tenha
notado, o último verso de Bowring carrega um certo ar de cristandade monoteísta ao se referir
à divindade no singular e em letra maiúscula, o que é contrário à proposta do poema.
A tradução de Machado também se difere da de Bowring por não ter a linguagem
demasiadamente arcaizante adotada pelo tradutor inglês. Ambas são hoje traduções centenárias,
mas a de Machado de Assis ainda tem uma linguagem perfeitamente acessível ao leitor
contemporâneo:
Onde és, mundo de risos e prazeres?
Porque não volves, florescente idade?
Só as musas conservavam teus divinos
Vestígios fabulosos.
Tristes e mudos vejo os campos todos;
Nenhuma divindade aos olhos surge;
Dessas imagens vivas e formosas
Só a sombra nos resta.504
A de Bowring, por outro lado, soa datada, devido ao emprego de formas já em amplo desuso
no inglês corrente, como os pronomes de segunda pessoa “thou” e “thy” ou a forma verbal
503
504
ASSIS, 1976, p. 328
Ibid.
253
“art”, e construções sintáticas que lembram a poesia romântica e mesmo vitoriana inglesa, como
observamos nos versos a seguir:
Beauteous World, where art thou gone? Oh, thou.
Nature's blooming youth, return once more!
Ah, but in Song's fairy region now
Lives thy fabled trace so dear of yore!
Cold and perish'd, sorrow now the plains.
Not one Godhead greets my longing sight
Ah, the Shadow only now remains
Of yon living Image bright!505
O porém da tradução de Machado é não conseguir captar a mensagem dos dois versos
que encerram o poema da mesma forma que as outras. Schiller encerra seu poema com uma
mensagem sobre o lugar da poesia:
Was unsterblich im Gesang soll leben,
Muß im Leben untergehn.506
Estes versos finais praticamente explicam o momento que Schiller acredita estar vivendo: o
passado clássico idealizado por ele como aquele vivido pelos gregos se foi, e esse
desaparecimento, essa morte é necessária para que dela uma nova poesia possa surgir. Marmier,
autor da tradução em que Machado se baseia, nos dá a seguinte tradução do trecho: “ce qui doit
être immortel dans la poésie doit périr dans la vie”507. Régnier, mais prolixo, traduz: “ce qui
doit vivre immortel dans les chants des poètes, est condamné à périr dans la vie réelle”508.
Possivelmente, tanto Marmier quanto Régnier tiveram menos empecilhos do que Bowring ou
Machado para criar suas versões, já que traduziram em prosa, e por isso mesmo, talvez,
aproximem-se mais do sentido imediato do texto alemão. A tradução de Marmier, mais sintética
e direta, é igualmente mais agradável do que a de Régnier, deixando ecoar em “poésie/vie” uma
agradável rima interna, algo reforçada pelo paralelismo sintático de “doit être/doit périr” que
coloca em direta oposição ideias centrais no poema de Schiller: poesia e vida, imortalidade e
morte. Bowring, buscando uma forma poética para sua tradução tentando conciliar metro, rima
alcança o seguinte resultado:
All that is to live in endless song,
Must in Life-time first be drown'd509.
505
SCHILLER, Op. Cit., p. 74
SCHILLER, 1873, p. 66. Tradução: “O que vive imortalmente na canção, deve perecer na vida”.
507
Tradução: “O que deve ser imortal na poesia deve perecer na vida”.
508
Tradução: “O que deve viver imortalmente no canto dos poetas, está condenado a perecer na vida real”.
509
SCHILLER, 1874b, p. 75. Tradução: “Tudo que deve viver em canção sem fim, deve na vida primeiro ser
afogado”.
506
254
O tradutor inglês, para atender às imposições formais, precisa procurar outra forma de expressar
a mensagem de Schiller. O resultado não é tão forte, nem tão direto, quanto a tradução de
Marmier: tanto a morte quanto a imortalidade ficam apenas sugeridas na sua tradução, resultado
de sua escolha ao traduzir o adjetivo “unsterblich” (“imortal”) por “endless” (“sem fim”) e o
verbo “untergehn” – que significa, entre outras coisas, “afundar”, mas também “decair”,
“chegar ao fim”, e por conseguinte “perecer” – por um de seus significados figurativos que é
“ser submergido” ou “afogar”. Ainda assim, é possível ler em seus versos que aquilo que vive
na poesia, na canção deve perecer na vida, ou seja, que aquele passado idealizado por Schiller
precisou desaparecer para que pudesse ter sobrevida poética.
Todavia, a versão que soa mais enigmática é a de Machado de Assis. Se conhecêssemos
somente a versão de Machado de Assis, talvez não chegássemos à leitura que se faz a partir dos
versos alemães e de suas traduções em prosa francesa. Machado toma um caminho bastante
próprio, livre, reescrevendo o trecho à sua maneira. Ao traduzir “ce qui doit être immortel dans
la poésie doit périr dans la vie” por
O que sofreu na vida eterna morte,
Imortalize a musa!510
Machado de Assis inverte, em seus versos, a informação dos versos finais, mas ainda permite
a mesma leitura que fizemos no poema de Schiller se os lermos como “Que a musa imortalize
o que sofreu eterna morte na vida”. O poeta desfaz-se da ideia de que é primeiro necessário
morrer na vida terrena para que possa ser imortalizado na poesia porque a morte irrevogável já
é um fato – “O que sofreu na vida eterna morte” – expresso por um pretérito perfeito (“sofreu”)
e um adjetivo que expressa o caráter irremediável da morte (“eterna”), e, portanto, resta ao
poeta pedir que a musa imortalize aquilo que a morte inevitavelmente levará. Diferente das
demais, a versão de Machado mantém a mensagem do poema de Schiller, de que para
imortalizar-se na poesia é preciso desaparecer do plano terreno, ficando assim justificado o fim
da idade clássica dos gregos. Desta forma, Machado de Assis mais uma vez demonstra que em
seu horizonte poético-tradutório a liberdade criativa está acima do modo de significar
estipulado pelo texto-fonte.
510
ASSIS, 1976, p. 329
255
8.3 “Cegonhas e Rodovalhos”
“Cegonhas e Rodovalhos”, tradução de um poema do francês Louis-Hyacinthe Bouilhet,
foi publicada pela primeira vez no n. 424 da Semana Ilustrada, jornal satírico que contou com
a colaboração de Machado de Assis, em 24 de janeiro de 1869511. A peça, que não foi
aproveitada pelo autor nas Poesias Completas (1901), é uma tradução em dez oitavas
heterométricas de “Cigognes et turbots”, publicado dez anos antes, na França, em Festons et
Astragales.
A edição crítica das Poesias Completas (1976) informa que a única alteração encontrada
entre a primeira publicação e Falenas está no título: na Semana Ilustrada a tradução é publicada
com o título “Cegonhas e Rodovalhos”, seguido da dedicatória “A Anísiusxlii Sempronius Rufus”
e da informação “(Traduzido de Bouilletxliii)”. Em Falenas, Machado de Assis adapta à língua
portuguesa o nome do personagem a quem o poema é dedicado, “A Anísio Semprônio Rufo”,
e elimina a informação “Traduzido de”, deixando somente o nome do autor, grafado da mesma
forma, “Bouillet”. Contudo, ao compararmos as versões publicadas na Semana Ilustrada e em
Falenas encontramos outras diferenças. As mudanças ortográficas são as mais frequentes,
assim como as de pontuação, principalmente no que diz respeito ao acréscimo ou subtração de
vírgulas. O quadro abaixo apresenta as alterações mais significativas que encontramos, como o
primeiro decassílabo da sexta estrofe, em que há a troca de “romano” para “marujo”, mudança
que implica numa aliteração bastante sonora, e reforça a assonância no “a” aberto em
“Maior/marujo/estripava”:
Quadro comparativo 19 – Diferenças entre as versões da Semana Ilustrada e Falenas do poema “Cegonhas e
Rodovalhos”
Semana Ilustrada
“A mesa em que, – três séculos contados, –”
“Onde os reis vencidos beijavam!”
“Maior que esse romano que estripava”
“Aos teimosos desejos que nutrias
O voto da pretura...”
Fonte: Semana Ilustrada (1869); Assis (2009)
Falenas (1870)
“A mesa em que, três séculos contados,”
“Onde os reis vencidos beijavam;”
“Maior que esse marujo que estripava,”
“Aos teimosos desejos que nutrias
O voto da pretura.”
Louis Bouilhet nunca figurou entre os maiores poetas do período. Já em 1888, pouco
menos de vinte anos após a morte do autor, um crítico escrevia:
Louis Bouilhet, dramaturgo, é hoje desconhecido ou quase isso. Se algumas pessoas
delicadas leram e apreciaram seus Festons e Astragales, seus ‘Melœnis’, suas
Dernières chansons, pouquíssimos conhecem seu teatro. Na verdade, suas comédias
e dramas não foram reencenadas; e não tendo sido, como seus poemas, recolhidos em
511
SOUSA, 1955, p. 432
256
volume, restam apenas brochuras soltas, algumas das quais são quase impossíveis de
encontrar512.
Dado que quase não se menciona o seu nome nos manuais de literatura francesa,
supomos que hoje sua obra seja hoje ainda menos conhecida e, em vista da dificuldade de
encontrar estudos sobre ela, que seja, igualmente, pouco lida. Encontramos uma tímida exceção
na Histoire de la littérature française (1936) de Albert Thibaudet, que nos pede: “[...] não
devemos esquecer entre os parnasianos da grande época um poeta provincial bem-formado,
Louis Bouilhet. Sainte-Beuve viu nele um discípulo de Musset: erroneamente, embora haja
alguma ligação entre a estrofe épica de Melænis e a de Namouna”513. Thibaudet corrige SainteBeuve dizendo que a obra de Bouilhet filia-se, na verdade, à de Leconte de Lisle e à de Flaubert,
de quem foi amigo íntimo e conselheiro. Bouilhet teria até mesmo levado Flaubert a voltar seu
olhar para a província514, algo que poderia estar ligado à escrita de Madame Bovary. O pedido
de Thibaudet encontra uma resposta no ensaio “Una passione oscura: modernità su sfondo
antico nel poema di Louis Bouilhet” (2012), de Federica Fortunata, que estuda a relação entre
“Melænis” e uma ópera de Ricardo Zandonai, inspirada na obra de Bouilhet. Neste ensaio a
autora nos fornece uma avaliação da poesia de Bouilhet que pode proporcionar algumas pistas
quanto ao que poderia ter despertado o interesse de Machado de Assis pelo poeta francês:
[...] é na poesia ‘pura’ que Bouilhet persegue sua busca de estilo e expressão,
produzindo as páginas mais originais; Aquela mania para a perfeição, para a sábia
redondeza do verso que mais de um crítico reprova na cena, se tornam aspectos
salientes nas duas coleções, Festons et Astragales (1859) e Dernières chansons
(póstuma, 1872)515
Além disso, Fortunata corrobora a leitura de que a poesia de Bouilhet, de certo modo, antecipou
a estética parnasiana na França – “[...] em sua gratuidade e estranheza, a preciosidade do verso
512
MIRMONT, H. de La Ville de. Le poète Louis Bouilhet. Paris: Nouvelle Librairie Parisienne, 1888. p. 8,
tradução nossa. No original: “Louis Bouilhet, auteur dramatique, est aujourd’hui inconnu ou peu s’en faut. Si un
certain nombre de délicats ont lu et apprécié ses Festons et Astragales, sa “Melœnis”, ses Dernières chansons,
bien peu connaissent son théâtre. En effet ses comédies et ses drames n’ont pas été repris ; et n’ayant pas été,
comme ses poésies, recueillis en un volume complet, il n’en reste que des brochures dépareillées, dont quelquesunes sont presque introuvables”.
513
THIBAUDET, 1936, p. 36, tradução nossa. No original: “il ne faut pas oublier parmi ces Parnassiens de la
grande époque un poète provincial bien doué et bien en place, Louis Bouilhet. Sainte-Beuve voyait en lui un
disciple de Musset: à tort, bien qu’il y ait quelque liaison entre la strophe épique de Melaenis et celle de Namouna”.
514
Ibid., p. 58
515
FORTUNATA, Federica. “Una passione oscura: modernità su sfondo antico nel poema di Louis Bouilhet”. In:
CESCOTTI, Diego (Org.). Il miele e le spine: Melenis - Un’opera ritrovata di Riccardo Zandonai. Rovereto:
Edizione Osiride, 2012. Disponível em: http://www.agiati.org/UploadDocs/12287_Art03_fortunato.pdf, p. 71,
tradução nossa. No original: “è nella poesia ‘pura’ che Bouilhet persegue la sua ricerca di stile e di espressione,
producendo le pagine più originali; quella mania per la perfezione, per la rotondità sapiente del verso che più di
un critico gli rimprovera sulla scena, diventano aspetti salienti nelle due raccolte, Festons et Astragales (1859) e
Dernières chansons (postuma, 1872).”.
257
marca uma oposição ao desleixo imposto pela sociedade de massa nascente, antecipando a
atitude dos parnasianos”516 –, algo que nos lembra o que já se disse sobre as Falenas de
Machado de Assis aqui no Brasil. Fortunata, contudo, faz algumas ressalvas a esta afirmação
para não dar a entender que Bouilhet teria sido um precursor do movimento parnasiano, visto
que ainda estava bastante preso à estética romântica e aos seus clichês517.
Festons et Astragales, livro em que nosso poeta-tradutor encontrou “Cegonhas e
Rodovalhos”, contém uma série de poemas que invocam a antiguidade romana, como
“Melænis”, provavelmente a peça mais conhecida do conjunto, “Louve”, “Danseur Bathylle” e
“Cigognes et turbots”, um poema burlesco dedicado a um “Asinius Sempronius Rufus”. A
dedicatória coloca o poema em diálogo direto com uma das sátiras de Horácio, mais
precisamente a Sátira II do Livro II, um sermão a favor da frugalidade, que busca ensinar que
o prazer que se tem em comer depende muito mais do apetite de quem come do que do alimento
em si. Nesta sátira há uma alusão ao cozinheiro romano Asinius Sempronius Rufus no trecho
que citamos aqui, na tradução de Antonio Seabra:
Nem de todo a pobreza está banida
Das lautas mezas; ainda hoje o's ovos
Tem seu lugar, e as negras azeitonas.
Do pregoeiro Gallunio, ha pouco, a meza
Era pelo Acipenser infamada:
Que? Menos rodovalho o mar criava?
Certo não — mas em paz viveo nas ondas.
Como a Cegonha em seu quieto ninho,
Té que as lições pretorias recebestes518.
Os dois últimos versos do trecho acima relatam a introdução da cegonha na mesa romana por
ensinamento de um “prætorius”. Esta seria uma alusão sarcástica de Horácio a Asinius
Sempronius Rufus, que se candidatou ao cargo, mas nunca se elegeu. Em nota, o tradutor
explica que a cegonha não fazia parte da dieta dos romanos antes de Augusto, cabendo a Asinius
Sempronius Rufus a introdução da ave à mesa.
516
FORTUNATA, 2012, p. 71, tradução nossa. No original: “nella sua gratuità ed estraneità il preziosismo del
verso segna un’opposizione alla sciatteria imposta dalla nascente società di massa, prefigurando l’atteggiamento
dei parnassiani.”
517
Ibid., p. 72-73.
518
HORACIO. Satyras e epistolas de Quinto Horacio Flacco. Trad Antonio Luiz de Seabra. Porto: Em casa de
Cruz Coutinho, 1846. p. 77-78.
258
Figura 8 - Reprodução da primeira publicação de “Cegonhas e Rodovalhos”
259
Fonte: Assis (1869b)
260
Foi daí que Louis Bouilhet colheu o tema para seu poema. Em “Cigognes et turbots”,
poema escrito em sextinas heterométricas compostas de cinco alexandrinos clássicos seguidos
por um octossílabo, o poeta canta uma ode ao chef romano, que transcrevemos ao lado da
tradução de Machado de Assis:
Quadro comparativo 20 – “Cigognes et Turbots” e “Cegonhas e Rodovalhos”
Cigognes et turbots
À Asinius Sempronius Rufus.
Salut, Sempronius, mortel inimitable !
Ô toi qui le premier fis servir sur ta table
La cigogne au pied rouge et le turbot marin.
L’artiste, éternisant ta divine effigie,
Devait tailler pour toi les marbres de Phrygie
Et graver tes traits sur l’airain.
Pour te montrer plus grand aux nations béantes,
Père des bons festins et des sauces piquantes,
Ton siècle s’épuisa dans ton enfantement.
Les destins dès longtemps préparaient ta venue,
Et quelque astre inconnu dut briller sous la nue
À ton premier vagissement !
Avant toi, les Romains, dans leur instinct vulgaire,
De la chair des troupeaux et des fruits de la terre
Rassasiaient leur faim, digne de vils pasteurs ;
Et l’écuelle de bois et la salière antique
Ornèrent, trois cents ans, cette table rustique
Où ruminaient les sénateurs.
Quand ils se rassemblaient pour sauver la patrie,
Souvent l’odeur de l’ail emplissait la curie,
Jusqu’au portique sombre où s’inclinaient les rois,
Et laissant à moitié quelque brouet immonde,
Ils s’élançaient, d’un bond, à l’empire du monde,
Gorgés de raves et de pois.
Au retour des combats, après quelque victoire,
Leur nef jetait au port sa cargaison de gloire,
Tétrarques, chefs vaincus, étendards en lambeaux…
Mais ils se trompaient tous, honneur à toi, grand homme,
Ta voile triomphante a rapporté dans Rome
Des cigognes et des turbots !
Plus fort que ce marin dont le croc d’abordage
Éventrait à grand bruit les vaisseaux de Carthage,
Aux hérissons de mer tu lanças tes réseaux,
Et, conquérant gourmet, ceint de myrte et de lierre,
Avec tes cuisiniers tu parcourus la terre,
Pour assiéger des nids d’oiseaux !
Rome alors, ô Rufus, méconnut ton génie,
Et l’on dit que le peuple, avec ignominie,
Refusa la préture à tes vœux obstinés…
Mais que t’importe, à toi, le bruit que fait la foule ?
Cegonhas e Rodovalhos
(Bouillet)
A Anísio Semprônio Rufo
Salve, rei dos mortais, Semprônio invicto,
Tu que estreaste nas romanas mesas
O rodovalho fresco e a saborosa
Pedirrubra cegonha!
Desentranhando os mármores de Frígia,
Ou já rompendo ao bronze o escuro seio,
Justo era que mandasse a mão do artista
Teu nobre rosto aos evos.
Por que fosses maior aos olhos pasmos
Das nações do Universo, ó pai dos molhos,
Ó pai das comezainas, em criar-te
Teu século esfalfou-se.
A tua vinda ao mundo prepararam
Os destinos, e acaso amiga estrela
Ao primeiro vagido de teus lábios
Entre nuvens luzia.
Antes de ti, no seu vulgar instinto,
Que comiam Romanos? Carne insossa
Dos seus rebanhos vis, e uns pobres frutos,
Pasto bem digno deles;
A escudela de pau outrora ornava,
Com o saleiro antigo, a mesa rústica,
A mesa em que, três séculos contados,
Comeram senadores.
E quando, por salvar a pátria em risco,
Os velhos se ajuntavam, quantas vezes
O cheiro do alho enchia a antiga cúria,
O pórtico sombrio,
Onde vencidos reis o chão beijavam;
Quantas, deixando em meio a mal cozida,
A sem sabor chanfana, iam de um salto
À conquista do mundo!
Ao voltar dos combates, vencedores,
Carga de glória a nau trazia ao porto,
Reis vencidos, tetrarcas subjugados,
E rasgadas bandeiras....
Iludiam-se os míseros! Bem hajas,
Bem hajas tu, grande homem, que trouxeste
Na tua ovante barca à ingrata Roma
Cegonhas, rodovalhos!
Maior que esse marujo que estripava,
261
Sa rumeur éphémère est un flot qui s’écoule,
Tes beaux jours ne sont pas sonnés !
Ils viendront, ils viendront, quand, sur la capitale,
Soufflera mollement la brise orientale ;
Quand, sous sa mitre d’or, le pale citoyen
Traînant par le forum sa démarche indolente,
Secoûra les parfums de sa robe volante,
Comme un satrape assyrien.
Ils viendront quand, la nuit, l’impériale orgie
Jettera sous les cieux sa lueur élargie
Ou de sa chaude haleine embaumera les mers ;
Et tu t’éveilleras, et ton ombre sacrée
Viendra planer parfois sur les rocs de Caprée,
Au bruit des nocturnes concerts.
Ô martyr des festins ! le luxe d’Italie
Vengera largement ta mémoire avilie,
Et tu pourras surgir de la poudre du sol,
Le jour où fumera, sur la table romaine,
Un sanglier sauvage, à la sauce troyenne,
Plein de langues de rossignol.
Co’o rijo arpéu, as naus cartaginesas,
Tu, Semprônio, co’as redes apanhavas
Ouriçado marisco;
Tu, glotão vencedor, cingida a fronte
Co’o verde mirto, a terra percorreste,
Por encontrar os fartos, os gulosos
Ninhos de finos pássaros.
Roma desconheceu teu gênio, ó Rufo!
Dizem até (vergonha!) que negara
Aos teimosos desejos que nutrias
O voto da pretura.
Mas a ti, que te importa a voz da turba?
Efêmero rumor que o vento leva
Como a vaga do mar. Não, não raiaram
Os teus melhores dias.
Virão, quando aspirar a invicta Roma
As preguiçosas brisas do oriente;
Quando co’a mitra d’ouro, o descorado,
O cidadão romano,
Pelo foro arrastar o tardo passo
E sacudir da toga roçagante,
Ás virações os tépidos perfumes
Como um sátrapa assírio.
Virão, virão, quando na escura noite
A orgia imperial encher o espaço
De viva luz, e embalsamar as ondas
Com os seus bafos quentes;
Então do sono acordarás, e a sombra,
A tua sacra sombra irá pairando
Ao ruído das músicas noturnas
Nas rochas de Capreia.
Ó mártir dos festins! Queres vingança?
Tê-las-ás e à farta, à tua grã memória;
Vinga-te o luxo que domina a Itália;
Ressurgirás ovante
Ao dia em que na mesa dos romanos
Vier pompear o javali silvestre,
Prato a que der os finos molhos Troia
E rouxinol as línguas.
Fonte: Bouilhet (1859); Assis (2009)
Os três primeiros versos do poema de Bouilhet já o colocam em relação direta com a sátira de
Horácio mencionada, pois saúda Semprônio – “Salut, Sempronius, mortel inimitable!” –, o que
primeiro introduziu à mesa a cegonha e o rodovalho, e sugere que os artistas deveriam talhar
os mármores frígios em sua homenagem. Assim, Bouilhet filia seu poema à tradição clássica
não só pelo personagem que escolhe, tomado emprestado das sátiras horacianas, mas pelas
imagens que inscreve em seu poema e por cantar uma espécie de ode a este personagem, forma
poética que deveria se restringir a assuntos elevados, mas que Bouilhet escolhe, paródica e
262
satiricamente, para cantar um personagem baixo.
O poema de Bouilhet, rimado no esquema AABCCB, é composto de maneira bastante
regular, empregando ao final da estrofe o verso quebrado que confere à estrofe a sensação de
conclusão. O metro alexandrino, para o crítico e biógrafo Letelier (1919), foi crucial na
composição do volume de que “Cigognes et turbots” faz parte, conforme explica:
É no alexandrino que Bouilhet revela de bom grado as teorias das palavras sonoras.
Não só os grandes poemas ‘Melaenis’, ‘Fósseis’, ‘Amor Negro’ estão em versos de
doze pés, mas metade das peças contidas em Festons et Astragales e Last Songs estão
escritas neste modo: nenhum outro ritmo seria mais conveniente às descrições, às
restituições do passado, às teorias filosóficas e às explosões de pessimismo519
O efeito cômico-burlesco, portanto, é realçado até mesmo na escolha de um metro considerado
nobre para tratar de um personagem tão trivial. Para ressaltar as supostas qualidades de
Sempronius Rufus, o poeta lembra que antes dele os romanos alimentavam-se vulgarmente,
comparando-os a simples pastores:
Avant toi, les Romains, dans leur instinct vulgaire,
De la chair des troupeaux et des fruits de la terre
Rassasiaient leur faim, digne de vils pasteurs ;520
Mesmo os espólios trazidos pelas vitórias dos exércitos romanos são diminuídos diante da
contribuição de Sempronius Rufus, que introduziu suas “iguarias” que seriam superiores a todas
aquelas conquistas:
Mais ils se trompaient tous, honneur à toi, grand homme,
Ta voile triomphante a rapporté dans Rome
Des cigognes et des turbots !521
O exagero com que Semprônio é descrito também é observado nos versos da estrofe
seguinte, segundo os quais as habilidades do cozinheiro romano eram até mesmo superiores às
dos bravos marinheiros à costa de Cartago:
Plus fort que ce marin dont le croc d’abordage
Éventrait à grand bruit les vaisseaux de Carthage,
519
LETELLIER, L. Louis Bouilhet (1821-1869): sa vie et ses œuvres. Paris: Librairie Hachette, 1919. p. 222,
tradução nossa. No original: “C’est dans l’Alexandrin que Bouilhet déroule le plus volontiers ces théories de mots
sonores. Non seulement les grands poèmes «Melaenis», «Les Fossiles», «l’Amour noir » sont en vers de douze
pieds, mais la moitié des pièces contenues dans « Festons et Astragales» et «Dernières Chansons» sont écrites sur
ce mode : nul autre rythme ne convenait mieux aux descriptions, aux restitutions du passé, aux théories
philosophiques, aux explosions du pessimisme.”.
520
BOUILHET, Louis. Poésies: festons et astragales. Paris: Librairie Nouvelle, 1859, p. 114
521
Ibid., p. 115
263
Aux hérissons de mer tu lanças tes réseaux,522
Contudo, nem assim Roma soube reconhecer os talentos do chef e o povo, em sua
ignomínia, não deu a ele o merecido cargo de pretor:
Rome alors, ô Rufus, méconnut ton génie,
Et l’on dit que le peuple, avec ignominie,
Refusa la préture à tes vœux obstinés…523
A última estrofe do poema reforça as supostas injustiças sofridas por Semprônio, que
será vingado um dia:
Et tu pourras surgir de la poudre du sol,
Le jour où fumera, sur la table romaine,
Un sanglier sauvage, à la sauce troyenne,
Plein de langues de rossignol.524
Por todo o poema, Semprônio é descrito como uma grande figura, merecedora de
epítetos – “mortel inimitable”, “Père des bons festins et des sauces piquantes”, “conquérant
gourmet” ou “Ô martyr des festins !” – que são empregados como se fossem enobrecedores e,
por isso mesmo, conferem um tom cômico. O último epíteto empregado reforça a ideia, já
presente desde o início do poema, de que Semprônio seria uma espécie de mártir, ou mesmo de
um messias, cuja vinda era preparada pelo destino e cujo nascimento ofuscaria até os astros:
Les destins dès longtemps préparaient ta venue,
Et quelque astre inconnu dut briller sous la nue
À ton premier vagissement !525
Não há dúvidas, portanto, de que se trata de um poema cômico-burlesco, escrito em um
metro nobre, com diversas referências à antiguidade clássica que, por algum motivo, interessou
o nosso Machado de Assis. Muito provavelmente, quando publicado pela primeira vez na
Semana Ilustrada, o poema foi escolhido por se encaixar naturalmente na linha editorial do
periódico. Lembremos que o periódico de Fleiuss era marcado pelo tom irônico e burlesco, que
ria de tudo e de todos, conforme a expressão latina “Ridendo castigat mores” que estampava as
capas das suas edições. Mas se “Cegonhas e Rodovalhos” chega a Falenas, mesmo que
posteriormente excluído pelo autor, é porque Machado viu no poema algo que merecia atenção
e que poderia figurar entre os seus melhores poemas do período. Há no poema, além do tom
522
BOUILHET, 1859, p. 115.
Ibid.
524
Ibid., p. 116
525
Ibid., p. 114
523
264
burlesco, um sério trabalho de linguagem que busca roupagens latinas numa ode cômica que
traz um germe da poesia parnasiana.
Na avaliação de Jean-Michel Massa,
“Cigognes et turbots”, de Louis Bouilhet é uma poesia heroi-cômica e burlesca,
dedicada à glória de Asinius Sempronius Rufus. Machado de Assis se diverte como
se divertiu o autor. Como este, ele admira, louva, soa a trombeta para cantar a glória
do ilustre cozinheiro romano526.
Massa considera ainda que Machado de Assis parece à vontade com a “falsa eloquência
exagerada” do poeta francês e, sobre a tradução, limita-se a dizer que Machado modifica a
estrofe de Bouilhet latinizando o texto, agregando efeitos cômicos, sem dar muitos detalhes527.
Machado de Assis certamente ficou bastante à vontade com o poema de Bouilhet, tão à
vontade que, como de praxe, não hesitou em dar à sua tradução um toque bastante pessoal,
abandonando por completo o esquema de rimas e trocando os alexandrinos e octossílabos das
sextinas de Bouilhet por oitavas compostas de três decassílabos e seu verso quebrado, o
hexassílabo, seguidos por mais três decassílabos e mais um hexassílabo, mais uma vez
demonstrando que, no plano formal, seu método de trabalho implicava na adaptação da poesia
estrangeira às formas da literatura de língua portuguesa. Considerando o poema de Bouilhet
uma ode, poderíamos dizer que a forma escolhida por Machado de Assis encontra precedentes,
por exemplo, em algumas odes de Bocage, como “Allegorico – Moral: o quadro da vida
humana”, de onde transcrevemos a estrofe abaixo:
De porto mal seguro a turvo pego
Sáe mesquinho baixel com raras velas,
Vae crespas ondas pávido talhando
A discrição dos ventos:
Nauta inexperto lhe dirige o leme,
Chusma bisonha lhe marêa o panno;
De um lado fervem Syrtes, d'outro lado
Navífragos penedos:528
A semelhança é notável não só na forma que Machado escolhe para seu poema, mas também
no tom utilizado, adicionando matizes latinizantes ao seu texto:
Salve, rei dos mortais, Semprônio invicto,
Tu que estreaste nas romanas mesas
526
MASSA, 2008, p. 78
Ibid., p. 79
528
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras poéticas de Bocage, vol. 2. Porto: Imprensa Portugueza – Editora,
1875. p. 21
527
265
O rodovalho fresco e a saborosa
Pedi-rubra cegonha!
Desentranhando os mármores de Frígia,
Ou já rompendo ao bronze o escuro seio,
Justo era que mandasse a mão do artista
Teu nobre rosto aos evos.529
As várias alterações introduzidas pelo poeta-tradutor só podem ser entendidas como um
movimento consciente e deliberado. Os alexandrinos de Bouilhet certamente não o teriam
intimidado, pois publica, no mesmo dia e no mesmo jornal, ao lado de “Cegonhas e
Rodovalhos”, “Menina e Moça”, todo escrito em alexandrinos clássicos, que também fez parte
de Falenas, além das várias outras peças escritas em alexandrinos e incluídas no livo. Machado
adota para sua tradução exatamente a mesma forma que adotara em “Os Deuses da Grécia”, de
que tratamos anteriormente, com a diferença de que aqui temos oitavas, e não quadras como lá.
O toque de Machado nesta tradução é tão pessoal que até dificulta comparações linha a
linha. Ele compõe, de fato, outro poema, que se aproveita do tema do poema francês, de suas
imagens e recursos, para se fazer outra obra, sem que isso signifique, contudo, afastamento ao
sentido central do poema de Bouilhet, que é cantar uma ode, em tom supostamente elevado mas
com intenções claramente cômicas, a uma personagem baixa. Diríamos até mesmo que
Machado em vários momentos excede o texto-fonte, como quando fala da “Pedi-rubra
cegonha”, recurso morfológico que não encontra correspondente em Bouilhet – “La cigogne au
pied rouge” – mas nos “Nauvífragos penedos” de Bocage ou no “velocípede” Aquiles de
Odorico Mendes. A fidelidade machadiana não é à forma, ao verso, mas à maneira de significar
do poema que traduz, o que inevitavelmente leva o poeta-tradutor a colocar-se em situação de
paridade com o autor traduzido.
O contraste entre os textos de Bouilhet e Machado é bastante claro, por exemplo, na
segunda estrofe. Na sua tradução Machado de Assis consegue criar uma tensão muito mais forte
entre a linguagem, a forma que utiliza e o assunto de que trata do que Bouilhet. O poeta francês
utiliza
rimas
finais
e
internas
–
“béantes/piquantes”,
“enfantement/vagissement”,
“venue/inconnu/nue” –, muitas das quais são rimas pobres, como vemos na estrofe a seguir:
Pour te montrer plus grand aux nations béantes,
Père des bons festins et des sauces piquantes,
Ton siècle s’épuisa dans ton enfantement.
Les destins dès longtemps préparaient ta venue,
Et quelque astre inconnu dut briller sous la nue
À ton premier vagissement !530
529
530
ASSIS, 1976, p. 330
BOUILHET, 1859, p. 114
266
Machado, por sua vez, escolhe os versos brancos à maneira de Bocage e Odorico Mendes, por
exemplo. Se Bouilhet prefere exprimir-se de forma mais direta, como em “Les destins dès
longtemps préparaient ta venue”, Machado opta por inversões sintáticas – “A tua vinda ao
mundo prepararam / Os destinos, [...]” – como Odorico na abertura da sua Ilíada: “Canta-me,
ó deusa, do Peleio Aquiles/a ira tenaz [...]”:
Por que fosses maior aos olhos pasmos
Das nações do Universo, ó pai dos molhos,
Ó pai das comezainas, em crear-te
Teu século esfalfou-se.
A tua vinda ao mundo prepararam
Os destinos, e acaso amiga estrela
Ao primeiro vagido de teus labios
Entre nuvens luzia.531
Esta tradução de Machado de Assis é um exemplo de que uma “fidelidade” aferroada à
forma do original não é necessariamente o melhor, ou o único, caminho a tomar, assim como
também é exemplo de que a tradução não precisa se limitar a reproduzir as nuances do textofonte. A tradução, conforme muito bem demonstra Machado de Assis, constitui um espaço de
experimentação poética que pode resultar em obras cuja qualidade pode até mesmo superar
aquela do seu “original”. Em La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain, Antoine
Berman propõe uma reflexão que nos parece apropriada a esta tradução de Machado: “[...] esta
infidelidade à letra estrangeira é necessariamente uma fidelidade à própria letra. O sentido é
captado na língua que traduz. Para isso, é preciso que ele seja despido de tudo que não se deixa
transferir nesta. A captação do sentido sempre afirma a primazia de uma língua”532. O poetatradutor Machado de Assis, sistematicamente – e esta tradução de Bouilhet é um ótimo exemplo
disso – se mostra muito mais interessado em manter-se fiel à tradição literária de língua
portuguesa, ao seu projeto para o texto traduzido, à sua própria letra, reafirmando-a na maneira
como traduz, com um posicionamento claramente etnocêntrico, mas que por pertencer a um
sistema periférico ganha outros matizes, que sugerem o abandono da reprodução passiva – ou
mesmo estrangeirizante – do modelo central para uma medição de forças a ponto de, nos casos
de maior sucesso, superar o modelo.
531
ASSIS, 1976, p. 330
BERMAN, Antoine. La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain. Paris: Éditions du Seuil, 1999, p. 34,
tradução nossa, grifos do autor. No original: “cette infidélité à la lettre étrangère est nécessairement une fidélité à
la lettre propre. Le sens est capté dans la langue traduisante. Pour cela, il faut qu’il soit dépouillé de tout ce qui ne
se laisse pas transférer dans celle-ci. La captation du sens affirme toujours la primauté d’une langue”.
532
267
8.4 “Estâncias a Ema”
Assim como “Cegonhas e Rodovalhos”, “Estâncias a Ema” também não era inédita. A
Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa indica que a obra fora publicada antes
com o título “Versos a Ema” no Diário do Rio de Janeiro, em 6 de abril de 1865, e republicada
anos mais tarde no Semanário Maranhense, em 23 de fevereiro de 1868533, já com o título
“Estâncias a Ema”, o mesmo adotado em Falenas. Galante de Sousa não registra, mas há outra
publicação do poema que saiu no espaço reservado a folhetins na primeira página do nº 231 do
jornal O Ypiranga, de São Paulo, em 10 de maio de 1868, também com o título “Estâncias a
Ema”. O texto é exatamente o mesmo publicado no Semanário Maranhense, notando-se
diferenças apenas na grafia de algumas palavras e, raríssimas vezes, na pontuação. Com quatro
publicações entre 1865 e 1870, esta tradução é uma das mais republicadas em vida do autor,
feito que seria igualado somente por “O corvo” anos mais tarde, indício de que, se hoje o texto
soa pouco interessante, não era essa a percepção da época.
Galante de Sousa informa também que “Versos a Ema” é a tradução de versos tirados
do romance La Dame aux Perlesxliv, de Dumas Filho. No romance, o texto-fonte sobre o qual
Machado de Assis teria se baseado se divide em dois poemas e se passa em dois momentos
diferentes. Possuem, ao todo, quarenta e três quadras, sendo que vinte estão no capítulo X e as
demais no capítulo XXIX. A tradução de Machado de Assis, todavia, possui uma quadra a
mais534, o que apresenta um problema para aceitarmos este texto de La Dame aux Perles como
texto-fonte. Ainda assim, esta é a mesma fonte indicada por Jean-Michel Massa em Machado
de Assis tradutor. Há outras versões do mesmo poema, como a que aparece na abertura da
versão do drama Diane de Lys, publicado no Théâtre complet de Al. Dumas Fils de 1863, com
o título “Saint-Cloud”535, mas sem aquela quadra a mais traduzida por Machado; acreditamos
que uma terceira versão, publicada por Alexandre Dumas (pai) no ensaio “Les trois dames” em
Causeries536, ou alguma outra publicação do mesmo texto, tenha sido o texto-fonte de Machado
de Assis, já que esta é a única que possui a décima terceira quadra da segunda parte. Além desta
quadra, há também outras pequenas diferenças entre os textos presentes no romance indicado
por Galante de Sousa e Massa e em Causeries.
533
SOUSA, 1955, p. 404
Ibid.
535
DUMAS FILS, Alexandre. “Saint-Cloud”. Théâtre complet de Al. Dumas Fils. Paris: Calmann-Lévy Editeurs,
1864, p. 487-493.
536
DUMAS, Alexandre. “Les trois dames”. Causeries. PARIS: Calmann-Lévy Editeurs, s/d. p. 7-52.
534
268
José Américo Miranda e Gabriela Jucá, no ensaio “Poesias de Alexandre Dumas
traduzidas por Machado de Assis: comentários e questões” (2017), chegaram às mesmas
conclusões a que chegamos quanto ao possível texto-fonte de Machado, com o acréscimo de
que, aparentemente, Machado de Assis foi o único a traduzir e publicar os versos de Dumas, já
que em traduções do romance para a língua portuguesa os poemas são omitidos:
Foi possível aos autores deste artigo a consulta a duas traduções diferentes, para o
português, do romance A dama das pérolas: a primeira foi publicada pela editora
Guimarães, em Lisboa, sem declaração do tradutor, sem data, mas certamente no
início do século XX; a segunda, também sem declaração do tradutor, embora com
“revisão de Roberto Magalhães”, foi publicada pela editora Marisa, no Rio de Janeiro,
em 1932. Nenhuma delas traz os versos inseridos no romance por seu autor; os
tradutores simplesmente os ignoraram. Na edição francesa, a primeira parte do poema
vem no capítulo X, e a segunda, no capítulo XXIX, último do livro (Cf. DUMAS
FILHO, s.d.; DUMAS, 1932; DUMAS FILS, 1869)537.
Esta tradução, quando publicada pela primeira vez no Diário do Rio de Janeiro, veio
introduzida por uma nota que explicita as intenções do tradutor:
Todos sabem que Dumas Filho copiou Margarida Gauthier, Diana de Lys e Susana
d’Ange por três modelos que encontrou no mundo parisiense.
A cada uma das mulheres que lhe serviram de modelo o autor da Dama das Pérolas
consagrou algumas estrofes de sua musa singela e original.
Tivemos ocasião de publicar, traduzida em versos portugueses, a poesia consagrada a
Maria Duplessis.
Faremos o mesmo agora com duas poesias feitas à condessa Emma (a dama das
pérolas). À primeira demos o título de Um passeio de carro – e à segunda – Um ano
depois.
Procuramos conservar a simplicidade, às vezes prosaica, do texto francês. Se os
pensamentos viçosos e originais não se perderam nesta transplantação, decidam-no os
competentes538.
O tradutor nos deixou ali qual era seu projeto de tradução neste caso, no qual admite
que tentou reproduzir o que considerava a “simplicidade, às vezes prosaica, do texto francês” e
os “pensamentos viçosos e originais”, deixando para os críticos, “os competentes”, a tarefa de
avaliar o resultado. Lemos, a seguir, a versão de Machado ao lado da versão francesa:
Quadro comparativo 21 – “Estâncias a Ema” e poema francês extraído do romance “La Dame aux Perles”
Estâncias A Ema
(Alex. Dumas, Filho)
Extraído do romance « La Dame aux Perles »
I
I
537
MIRANDA, José Américo; JUCÁ, Gabriela. “Poesias de Alexandre Dumas traduzidas por Machado de Assis:
comentários e questões”. Interfacis. Belo Horizonte, v. 3, n. 2, 2017, (p. 2-21) p. 19
538
ASSIS, Machado de. “Versos a Emma (A dama das pérolas)”. Diário do Rio de Janeiro. N. 85, 6 de abril de
1865. p. 1.
269
Saímos, ela e eu, dentro de um carro,
Um ao outro abraçados; e como era
Triste e sombria a natureza em torno,
Ia conosco a eterna primavera.
Hier, nous sommes partis au fond d’une voiture,
Enlacés l’un à l'autre, ainsi que deux frileux,
Emportant, à travers une sombre nature,
Le printemps éternel qui suit les amoureux.
No cocheiro fiávamos a sorte
Daquele dia, o carro nos levava
Sem ponto fixo onde aprouvesse ao homem;
Nosso destino em suas mãos estava.
Nous avions confié le sort de la journée
Au cocher, qui devait nous mener au hasard,
Ou bon lui semblerait, et notre destinée
Reposait dans ses mains à compter du départ.
Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! Pois vamos!
É um sítio de luz, de aroma e riso.
Demais, se as nossas almas conversavam,
Onde estivessem era o paraíso.
Cet homme pour Saint-Cloud avait des préférences !
Eh bien ! va pour Saint-Cloud, c'est un charmant pays !
D’ailleurs, quand nous melons nos douces confidences,
Peu m’importe l'endroit, je suis bien ou je suis.
Fomos descer juntos ao portão do parque.
Era deserto e triste e mudo; o vento
Rolava nuvens cor de cinza; estavam
Seco o arbusto, o caminho lamacento.
A la grille du parc il nous fit donc descendre.
Le parc était désert, triste, silencieux :
Le vent roulait au ciel des nuages de cendre ;
Les arbres étaient noirs et les chemins boueux.
Rimo-nos tanto, vendo-te, ó formosa,
(E felizmente ninguém mais te via!)
arregaçar a ponta do vestido
Que o lindo pé e a meia descobria!
Nous nous mîmes à rire. En vérité, madame,
C'était risible à voir ; mais on ne voyait pas,
Et j'en suis enchanté, la belle et noble dame
Qui relevait sa robe et laissait voir ses bas.
Tinhas o gracioso acanhamento
Da fidalga gentil pisando a rua;
Desafeita ao andar, teu passo incerto
Deixava conhecer a raça tua.
Vous aviez l’embarras, embarras plein de grâce,
Des femmes comme il faut qui marchent, n'ayant pas
L'habitude d'aller à pied, et votre race
Aurait pu se prouver rien que par vos faux pas.
Uma das tuas mãos alevantava
O vestido de seda; as saias finas
Iam mostrando as rendas e os bordados,
Lambendo o chão, molhando-te as botinas.
Vous teniez d’une main votre robe de soie
Relevée en deux plis par devant ; vos jupons,
Dentelés et brodés, se donnaient cette joie
De rire avec la boue en battant vos talons.
Mergulhavam teus pés a cada instante,
Como se o chão quisesse ali guardá-los,
E que afã! Mal podíamos nós ambos
Da cobiçosa terra libertá-los.
Vos pieds, à chaque instant, s’enfonçaient dans la terre,
Comme si cette terre eût voulu vous garder,
Pour les ravoir, après, c’était tout une affaire,
Et vous n'aviez pas trop de moi pour vous aider.
Doce passeio aquele! E como é belo
O amor no bosque, em tarde tão sombria!
Tinhas os olhos úmidos, — e a face
A rajada do inverno enrubescia.
La belle promenade ! et la charmante chose
Que l’amour dans un bois par un temps pluvieux !
La bise vous faisait un petit nez tout rose,
Empourprait votre joue et mouillait vos grands yeux.
Era mais belo que a estação das flores;
Nenhum olhar nos espreitava ali;
Nosso era o parque, unicamente nosso;
Ninguém! estava eu só ao pé de ti!
Eh bien ! c’était charmant plus qu’en la saison verte.
Le parc était à nous, à nous seuls, à nous deux ;
Pas un visage humain sur la route déserte ;
Pas d’importun témoin qui nous cherchât des yeux.
Perlustramos as longas avenidas
Que o horizonte cinzento limitava,
Sem mesmo ver as deusas conhecidas
Que o arvoredo sem folhas abrigava.
Nous avons traversé les longues avenues
Que terminait toujours le même horizon gris,
Sans même regarder les déesses connues,
Posant en marbre blanc, sous les arbres maigris...
O tanque, onde nadava um níveo cisne
Placidamente, — o passo nos deteve;
Era a face do lago uma esmeralda
Que refletia o cisne alvo de neve.
Nous sommes arrivés près d'un bassin où rôde
Un cygne encore plus blanc que le lait, et nageant
Silencieusement, et, comme une émeraude,
L’eau verte reflétait le bel oiseau d’argent.
270
Veio este a nós, e como que pedia
Alguma cousa, uma migalha apenas;
Nada tinhas que dar; a ave arrufada
Foi-se cortando as águas tão serenas.
Il vint nous demander quelque chose, une miette
De pain ; et pour nous plaire, il tordait son long cou ;
Vous lui dîtes alors : « Pauvre petite bête,
Je ne le savais pas, et je n'ai rien du tout. »
E nadando parou junto ao repuxo
Que de água viva aquele tanque enchia;
O murmúrio das gotas que tombavam
Era o único som que ali se ouvia.
Si bien qu’il nous quitta, nous méprisant sans doute,
Et s'en alla, rayant le miroir du bassin,
A côté du jet d'eau, qui, tombant goutte à goutte,
Faisait, à lui tout seul, tout le bruit du jardin.
Lá ficamos tão juntos um do outro,
Olhando o cisne e escutando as águas;
Vinha a noite; a sombria cor do bosque
Emoldurava as nossas próprias mágoas.
Nous restâmes alors appuyés l’un sur l’autre,
Regardant le beau cygne, écoutant le jet d’eau.
La tristesse du bois faisait cadre à la nôtre ;
Et le soir commença d’étendre son rideau.
Num pedestal, onde outras frases ternas,
A mão de outros amantes escreveu,
Fui traçar, meu amor, aquela data
E junto dela por o nome teu!
Dans ma poche je pris une clef de ma chambre,
Et, sur un piédestal plein de mots au crayon,
A mon tour j’incrustai ces mots : Trente décembre,
Puis, auprès de ces mots, je gravai votre nom.
Quando o estio volver àquelas árvores;
E à sombra delas for a gente a flux,
E o tanque refletir as folhas novas,
E o parque encher-se de murmúrio e luz,
Maintenant, quand l’été va rire dans les arbres ;
Quand les gais promeneurs repeupleront le bois ;
Quand les feuilles auront leurs reflets sur les marbres ;
Quand le parc sera plein de lumière et de voix ;
Irei um dia, na estação das flores,
Ver a coluna onde escrevi teu nome,
O doce nome que minha alma prende,
E o que o tempo, quem sabe? já consome!
A la saison des fleurs, enfin, j'irai, madame,
Revoir le piédestal portant le nom tracé,
Ce doux nom dans lequel j’emprisonne mon âme,
Et que le vent d’hier a peut-être effacé.
Onde estarás então? Talvez bem longe,
Separada de mim, triste e sombrio;
Talvez tenhas seguido a alegre estrada,
Dando-me áspero inverno em pleno estio.
Qui sait où vous serez alors, ma voyageuse ?
Je serai seul peut-être, et vous m'aurez quitté.
Aurez-vous donc repris votre course joyeuse,
En me laissant l’hiver au milieu de l’été ?
Porque o inverno não é o frio e o vento,
Nem a erma alameda que ontem vi;
O inverno é o coração sem luz, nem flores,
É o que eu hei de ser longe de ti!
Car l’hiver, ce n’est pas la bise et la froidure,
Et les chemins déserts qu’hier nous avons vus ;
C’est le cœur sans rayons, c’est l’âme sons verdure :
C’est ce que je serai quand vous n'y serez plus.539
II
II
Correu um ano desde aquele dia
Em que fomos ao bosque, um ano, sim!
Eu já previa o fúnebre desfecho
Desse tempo feliz, — triste de mim!
Un an s’est accompli depuis cette journée
Où nous fûmes au bois nous promener tous deux.
Hélas ! j'avais prévu la triste destinée
Qui devait succéder à quelques jours heureux.
O nosso amor nem viu nascer as flores;
Mal aquecia um raio de verão
Para sempre, talvez, das nossas almas
Começou a cruel separação.
Notre amour ne vit pas la saison près de naître !
A peine un doux rayon de soleil luisait-il,
Que l'on nous séparait ; et, pour toujours peut-être,
A commencé le double et douloureux exil.
Vi esta primavera em longes terras,
Tão ermo de esperanças e de amores,
Olhos fitos na estrada, onde esperava
Ver-te chegar, como a estação das flores.
Moi, j’ai vu ce printemps sur la terre lointaine,
Sans parents, sans amis, sans espoir, sans amour,
Les yeux toujours fixés sur la route prochaine
Par où tu m'avais dit que tu viendrais un jour.
539
DUMAS FILS, Alexandre. La dame aux perles. Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1863, p. 100101
271
Quanta vez meu olhar sondou a estrada
Que entre espesso arvoredo se perdia,
Menos triste, inda assim, menos escuro
Que a dúvida cruel que me seguia!
Que de fois mon regard a sondé cette route
Qui se perdait parmi des forêts de sapins,
Moins obscurs, moins épais, moins triste que le doute
Qui m’escortait depuis un mois par les chemins !
Que valia esse sol abrindo as plantas
E despertando o sono das campinas?
Inda mais altas que as searas louras,
Que valiam as flores peregrinas?
A quoi bon ce soleil qui fleurissait les branches,
Réchauffait la nature et les champs assoupis ?
Marguerites, à quoi servaient vos têtes blanches,
Plus hautes en avril que les jeunes épis ?
De que servia o aroma dos outeiros?
E o canto matinal dos passarinhos?
Que me importava a mim o arfar da terra,
E nas moutas em flor os verdes ninhos?
A quoi bon les senteurs de la colline grasse ?
A quoi bon les oiseaux caquetant leurs chansons ?
Que me faisaient, à moi, le cœur pris sous la glace,
La chaleur de la terre et les nids des buissons ?
O sol que enche de luz a longa estrada,
Se me não traz o que minh’alma espera,
Pode apagar seus raios sedutores:
Não é o sol, não é a primavera!
Qu’à jamais le soleil se voile, s'il éclaire
En vain le long chemin au bout duquel j’attends :
S'il ne ramène pas ce que mon cœur espère,
Il n'est pas de soleil, il n'est pas de printemps !
Margaridas, caí, morrei nos campos,
Perdei o viço e as delicadas cores;
Se ela vos não aspira o hálito brando,
Já o verão não sois, já não sois flores!
Marguerites, tombez et mourrez dans la plaine,
Perdez vos doux parfums et vos tendres couleurs,
Si celle que j’attends n’aspire votre haleine :
Vous n’êtes pas l’été, vous n’êtes pas les fleurs !
Prefiro o inverno desfolhado e mudo,
O velho inverno, cujo olhar sombrio
Mal se derrama nas cerradas trevas,
E vai morrer no espaço úmido e frio.
Oh ! je préfère à vous l’hiver morose et sombre,
Avec ses arbres noirs et ses sentiers déserts,
Avec son œil éteint qui s’entr’ouvre dans l’ombre,
Et qui, sans nous toucher, expire dans les airs.
É esse sol das almas desgraçadas;
Venha o inverno, somos tão amigos!
Nossas tristezas são irmãs em tudo:
Temos ambos o frio dos jazigos!
C’est là le vrai soleil des âmes désolées :
Rendez-moi donc l’hiver, nous nous connaissons bien ;
Ma tristesse est la sœur de ses longues allées,
Et le feu de mon cœur est froid comme le sien.
Contra o sol, contra Deus, assim falava
Dês que assomavam matinais albores;
Eu aguardava as tuas doces letras
Com que o céu perdoasse as belas cores!
C’est ainsi que dès l’aube, assis à ma fenêtre,
Je parlais, maudissant et le soleil et Dieu :
Puis, le jour commençait, j’espérais une lettre
Qui m’eût fait pardonner au ciel d’être si bleu.
Iam assim, um após outro, os dias.
Nada. – E aquele horizonte tão fechado
Nem deixava chegar aos meus ouvidos
O eco longínquo do teu nome amado.
Et le jour s’enfuyait comme avait fui la veille.
Bien ! — pas un mot de vous ! — l’horizon bien fermé
Ne laissait même pas venir à mon oreille
L’écho doux et lointain de votre nom aimé.
Só, durante seis meses, dia e noite
Chamei por ti na minha angústia extrema;
A sombra era mais densa a cada passo,
E eu murmurava sempre: — Oh! minha Ema!
Un morceau de papier, c’est pourtant peu de chose
Quatre lignes dessus, ce n’est pourtant pas long.
Si l’on ne veut écrire, on peut prendre une rose
Éclose le matin dans un pli du vallon ;
Um quarto de papel – é pouca coisa;
Quatro linhas escritas – não é nada;
Quem não quer escrever colhe uma rosa,
No vale aberta, à luz da madrugada.
On la peut effeuiller au fond d’une enveloppe,
La jeter à la poste ; et, l’exilé venu
Du fond de son pays, presque au bout de l’Europe,
Peut sourire en voyant que l’on s’est souvenu.
Mandam-se as folhas num papel fechado;
E o proscrito, ansiando de esperança,
Pode entreabrir nos lábios um sorriso
Vendo naquilo uma fiel lembrança.
Que de fois vous avez oublié de le faire !
Et chaque jour, c’était un désespoir nouveau.
Mon cœur se desséchait, comme ces fruits qu’on serre,
A la fin de l’été, dans l’ombre d’un caveau.
272
Era fácil fazê-lo e não fizeste!
Meus dias eram mais desesperados.
Meu pobre coração ia secando
Como esses frutos no verão guardados.
Si l’on pressait ce cœur aujourd’hui, c’est à peine
S’il en pourrait jaillir une goutte de sang.
Il n’y reste plus rien : c’était la coupe pleine
Qu'un enfant maladroit fait tomber en passant.
Hoje, se o comprimissem, mal deitava
Uma gota de sangue; nada encerra.
Era uma taça cheia: uma criança,
De estouvada que foi, deitou-a em terra!
Nous voici revenus à la fin de l’année,
Et le temps patient, qui ne s’arrête à rien,
Nous rend le même mois et la même journée
OU vous parliez d'amour, votre front près du mien.
É este o mesmo tempo, o mesmo dia.
Vai o ano tocando quase no fim;
É esta hora em que, formosa e terna,
Conversavas de amor, junto de mim.
C’est bien le même aspect : les routes sont désertes,
Le givre, de nouveau, gerce les étangs bleus.
Les arbres ont usé leurs belles robes vertes,
Le cygne rôde encore triste et silencieux.
O mesmo aspecto: as ruas estão ermas,
A neve coalha o lago preguiçoso;
O arvoredo gastou as roupas verdes,
E nada o cisne triste e silencioso.
Voilà votre doux nom que ma main vient d’écrire ;
Il est là qui sourit, dans le marbre incrusté !
Allons ! j’ai fait un rêve, et j’étais en délire ;
Allons ! j’étais un fou ! tu ne m’as pas quitté.
Vejo ainda no mármore o teu nome,
Escrito quando ali comigo andaste.
Vamos! Sonhei, foi um delírio apenas,
Era um louco, tu não me abandonaste!
La voiture, là-bas, nous attend à la grille :
Partons ! et s'il fait beau nous reviendrons demain.
Baisse ce voile noir sur ton regard qui brille :
Prends garde de glisser et donne-moi la main ;
O carro espera: vamos. Outro dia,
Se houver bom tempo, voltaremos, não?
Corre este véu sobre teus olhos lindos,
Olha, não caias, dá-me a tua mão!
Car il a plu. La pluie a détrempé les terres.
Approche donc ! Hélas ! mes sens sont égarés ;
Les feuilles que je foule, aux chemins solitaires,
Sont celles du printemps qui nous a séparés.
Choveu: a chuva umedeceu a terra.
Anda! Ai de mim! em vão minha alma espera.
Estas folhas que eu piso em chão deserto
São as folhas de outra primavera!
Non ! non ! tu n’es plus là, toi que j’appelle et j’aime !
J’ai pris le souvenir pour la réalité.
Et loin de cet amour, encore, toujours le même,
J’ai vécu deux hivers de suite sans été.
Não, não estás aqui, chamo-te embalde!
Era ainda uma última ilusão.
Tão longe desse amor fui inda o mesmo,
E vivi dois invernos sem verão.
Car l’été, ce n’est pas cette saison qui dure
Six mois, et que novembre éteint d'un pied transi.
C’est du cœur rayonnant l’éternelle verdure ;
C’est ce que je serai quand tu seras ici.
Porque o verão não é aquele tempo
De vida e de calor que eu não vivi;
É a alma entornando a luz e as flores,
É o que hei de ser ao pé de ti!
Fonte: Assis (1976); Dumas Filho (1863)
A tradução não agradou a um desses críticos, Jean-Michel Massa, que considerou o
trabalho do poeta “[...] medíocre como é prosaico o texto original, embora Machado de Assis
tentasse animar certas expressões particularmente pesadas. O realismo terra-a-terra de Dumas
toma uma coloração neoclássica que o torna quase incongruente”540. A explicação que Massa
dá para a inclusão desta tradução em Falenas estava na fama que acompanhava Dumas Filho
e, evidentemente, concorda com a supressão da tradução quando Machado edita as Poesias
540
MASSA, 2008, p. 81
273
Completas em 1901 com a justificativa: “Quaisquer que fossem os dons do tradutor, o
prosaísmo de Dumas condenou toda tentativa”541. A opinião de Massa é compartilhada por
Lorie Ishimatsu, que considerou a tradução “[...] uma versão entediante de um poema medíocre
de La Dame aux Perles de Dumas Filho, em que a voz enunciadora recorda com saudade uma
tarde no parque com sua amada”542.
A opinião desses críticos certamente revela um gosto que diverge daquele em voga
quando a tradução foi realizada. A avaliação do crítico Araripe Júnior, contemporâneo de
Machado, é um exemplo do quanto as opiniões dissentiam em relação a “Estâncias a Ema”.
Para ele, esta era uma “magnífica tradução do francês de Alexandre Dumas Filho”, ou mesmo
até “a mais linda poesia do livro”, na qual o tradutor “[...] deu liberdade ampla ao estro,
experimentou o fervente gotejar da aflição do poeta em seu coração e consentiu que todas as
emoções procurassem a forma que melhor lhes convinha”543.
Os poemas de Dumas Filho são longas narrativas que rememoram uma tarde que o
enunciador – Jacques, no romance – passa com a sua amada que, no poema, não tem nome.
Mas como o poema é parte do romance, sabemos tratar-se da Madame de Wine. Hoje o poema
soa bastante datado, principalmente pelo tom carregado do romantismo idealizado, em que a
figura feminina ausente é o objeto de desejo e causadora do sofrimento expresso em versos
introspectivos, em que o rapaz parece falar consigo mesmo.
No primeiro poema do romance, Jacques de Feuil – personagem que vive os amores
com a duchesse – lembra dos acontecimentos da véspera, quando saem, ele e a Madame de
Wine, sem rumo, para passarem a tarde juntos:
Hier, nous sommes partis au fond d'une voiture,
Enlacés l'un à l'autre, ainsi que deux frileux,
Emportant, à travers une sombre nature,
Le printemps éternel qui suit les amoureux.
Nous avions confié le sort de la journée
Au cocher, qui devait nous mener au hasard,
Ou bon lui semblerait, et notre destinée
Reposait dans ses mains à compter du départ544.
Jacques é músico, mas se torna poeta em função da paixão que vive, e os versos que lemos são
a letra de uma canção que toca ao piano para seu amigo e narrador do romance. A descrição do
541
MASSA, 2008, p. 81
ISHIMATSU, 1984, p. 93, tradução nossa. No original: “a tedious version of a mediocre poem from Dumas
Fils’ La Dame aux Perles in which the speaker wistfully recalls an afternoon in the park with his beloved”.
543
ARARIPE JÚNIOR, 2003, p. 78
544
DUMAS FILS, Alexandre. La dame aux perles. Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1863, p. 100
542
274
parque por onde passeiam, em certa medida, prenuncia o tom triste que o poema tomará mais à
frente:
A la grille du parc il nous fit donc descendre.
Le parc était désert, triste, silencieux :
Le vent roulait au ciel des nuages de cendre ;
Les arbres étaient noirs et les chemins boueux545.
O clima chuvoso deste primeiro encontro parece ideal para as situações que Jacques descreve
em sua canção: os caminhos lamacentos fazem com que a dama, pouco afeita a caminhadas,
ande com dificuldade, mostrando a porção inferior das pernas, o que os leva a rir da situação
que só não é mais desconfortável porque estão sozinhos: “Le parc était à nous, à nous seuls, à
nous deux/ Pas un visage humain sur la route déserte”546. Narra em seguida o caminho que leva
ao lugar onde irão permanecer um tempo, descrito com imagens que contrastam com o que se
viu até então:
Nous sommes arrivés près d'un bassin où rôde
Un cygne encor plus blanc que le lait, et nageant
Silencieusement, et, comme une émeraude,
L'eau verte reflétait le bel oiseau d'argent547.
Os tons escuros, de cinza, expressos antes nas “nuages de cendre”, nas “arbres [...] noires”, no
“temps pluvieux”, no “horizon gris” dão lugar a brancos marmóreos nos versos“ [...] les déesses
connues,/ Posant en marble blanc [...]” e principalmente no cisne “plus blanc que le lait” (mais
branco que o leite) que observam nadar em um lago que é verde “comme une émeraude” (como
uma esmeralda), criando um nítido contraste entre o clima triste de antes e a paz que encontram
agora, quando podem finalmente aproveitar a presença um do outro. Nas estrofes finais desta
primeira parte do poema, Jacques pega a chave de seu quarto e escreve a data, trinta de
dezembro e o nome da Madame de Wine, em um pedestal já marcado por outros amantes que
passaram por ali. À diferença dos demais, que escreveram a lápis, as marcas que Jacques
incrustou no pedestal ainda estarão lá, mesmo que eles estejam separados:
Maintenant, quand l'été va rire dans les arbres ;
Quand les gais promeneurs repeupleront le bois ;
Quand les feuilles auront leurs reflets sur les marbres ;
Quand le parc sera plein de lumière et de voix;
A la saison des fleurs, enfin, j'irai, madame,
Revoir le piédestal portant le nom tracé,
Ce doux nom dans lequel j'emprisonne mon âme,
Et que le vent d'hier a peut-être effacé548.
545
DUMAS FILS, 1863, p. 100
Ibid., p. 101
547
Ibid.
548
Ibid.
546
275
A possibilidade de separação é particularmente forte nas duas estrofes finais do poema:
enquanto na penúltima Jacques se pergunta onde estaria sua amante nesse futuro em que se
vislumbra só, na última compara a sua situação ao próprio inverno que viverá em pleno verão,
numa das mais belas estrofes desta primeira parte:
Car l'hiver, ce n'est pas la bise et la froidure,
Et les chemins déserts qu'hier nous avons vus ;
C'est le cœur sans rayons, c'est l'âme sons verdure :
C'est ce que je serai quand vous n'y serez plus549.
O segundo poema se passa um ano após a caminhada descrita na primeira parte e
Jacques termina a primeira estrofe confirmando as previsões que fizera a respeito da separação
inevitável: “Hélas! J’avais prévu la tristesse destinée/ Qui devait succéder à quelques jours
heureux” (Ai de mim! Eu tinha previsto a tristeza destinada / Que sucederia alguns dias
felizes”). Desta vez, sozinho, Jacques relembra a caminhada no mesmo parque em que estivera
um ano antes com a Madame de Wine, e fala do amor que poderiam ter vivido, mas que não
vingou:
Notre amour ne vit pas la saison près de naître !
A peine un doux rayon de soleil luisait-il,
Que l'on nous séparait ; et, pour toujours peut-être,
A commencé le double et douloureux exil550.
Nas estrofes seguintes o poeta, tomado pela tristeza e pela falta de esperança, discorre sobre o
quanto é inútil toda a beleza natural que vê diante de si porque nada disso dá a ele o que ele
quer, a volta de sua amante:
A quoi bon ce soleil qui fleurissait les branches,
Réchauffait la nature et les champs assoupis ?
Marguerites, à quoi servaient vos têtes blanches,
Plus hautes en avril que les jeunes épis ?
A quoi bon les senteurs de la colline grasse ?
A quoi bon les oiseaux caquetant leurs chansons ?
Que me faisaient, à moi, le cœur pris sous la glace,
La chaleur de la terre et les nids des buissons ?
Qu’à jamais le soleil se voile, s’il éclaire
En vain le long chemin au bout duquel j’attends :
S’il ne ramène pas ce que mon cœur espère,
Il n'est pas de soleil, il n'est pas de printemps !551
549
DUMAS FILS, 1863, p. 101
Ibid., p. 312
551
Ibid.
550
276
Figura 9 – Reprodução da publicação de “Versos a Emma”
Fonte: Assis (1865).
277
Jacques nos diz que, na ausência de sua amada, nada do que vê é capaz de satisfazê-lo porque
não trazem a ele o que deseja, a ponto de afirmar que, sem ela, o sol não é sol, e a primavera
não é primavera. Mas a amargura dele é também direcionada a ela, que deixou passar muito
tempo sem nem ao mesmo uma carta ou bilhete, ou mesmo uma rosa embrulhada em um
envelope:
Un morceau de papier, c’est pourtant peu de chose
Quatre lignes dessus, ce n’est pourtant pas long.
Si l’on ne veut écrire, on peut prendre une rose
Eclose le matin dans un pli du vallon ;
On la peut effeuiller au fond d’une enveloppe,
La jeter à la poste ; et, l’exilé venu
Du fond de son pays, presque au bout de l’Europe,
Peut sourire en voyant que l’on s’est souvenu.
Que de fois vous avez oublié de le faire !
Et chaque jour, c’était un désespoir nouveau.
Mon cœur se desséchait, comme ces fruits qu’on serre,
A la fin de l’été, dans l’ombre d’un caveau552.
Na ausência dela, ele volta ao parque como se tentasse reviver aqueles momentos e encontra
tudo como estava naquele dia:
Nous voici revenus à la fin de l'année,
Et le temps patient, qui ne s'arrête a rien,
Nous rend le même mois et la même journée
Où vous parliez d'amour, votre front près du mien.
C'est bien le même aspect : les routes sont désertes,
Le givre, de nouveau, gerce les étangs bleus.
Les arbres ont usé leurs belles robes vertes,
Le cygne rôde encore triste et silencieux553.
A diferença é que, desta vez, ele está sozinho e se deixa levar pela imaginação crendo que ela
estaria ali com ele. O segundo poema se encerra de maneira bastante similar à do primeiro: se
lá o poeta, que ainda gozava da presença de sua amada, comparava sua ausência ao inverno,
agora que estão longe um do outro pensa que só encontrará outro verão quando estiverem juntos
novamente:
Non ! Non ! tu n'es plus là, toi que j'appelle et j'aime !
J'ai pris le souvenir pour la réalité.
Et loin de cet amour, encore, toujours le même,
J'ai vécu deux hivers de suite sans été.
Car l'été, ce n'est pas cette saison qui dure
552
553
DUMAS FILS, 1863, p 313
Ibid.
278
Six mois, et que novembre éteint d'un pied transi.
C'est du cœur rayonnant l'éternelle verdure ;
C'est ce que je serai quand tu seras ici554.
Os poemas de Dumas filho, conforme publicados no romance La Dame aux Perles, não
têm título. “Versos a Ema” e, depois, “Estâncias a Ema” são, portanto, títulos escolhidos pelo
tradutor, bem como a escolha de juntar ambos, que aparecem em momentos diferentes tanto no
romance quanto no ensaio “Les trois dames”, em um só que se divide em duas partes. A
começar pelo título, Machado de Assis se apresenta neste caso como um tradutor em nada
diferente do que já foi observado antes: o texto-fonte é utilizado como ponto de partida para
uma criação autônoma que se apega menos à forma do texto-fonte do que ao sentido geral da
narrativa. O tradutor, como disse Araripe Júnior, é deveras livre, sem que isso signifique perder
de vista o texto-fonte. Como de praxe, a começar pela forma, Machado opta por trocar as
quadras escritas em alexandrinos clássicos de rimas cruzadas de Dumas por quadras de versos
decassílabos heroicos e sáficos, rimando somente os versos pares de cada estrofe. Considerando
que o poema é essencialmente uma narrativa, o leitor que tiver acesso apenas à tradução não
estará privado de nenhum elemento relevante dela.
O primeiro ponto que se destaca na tradução de Machado de Assis é, inevitavelmente,
a estrofe que não existe no texto-fonte indicado por Galante de Sousa e corroborado por JeanMichel Massa, que transcrevemos a seguir, a partir da edição das Causeries de Dumas (pai)xlv:
Seul pendant six longs mois, le jour, le soir, dans l'ombre,
Sans écho que mon cœur, ma bouche vous nomma,
Entrant à chaque pas dans une nuit plus sombre,
Et, plus triste, disant sans cesse : « mon Emma ! »555
A edição consultada, de 1885, é bastante posterior às publicações da tradução de Machado de
Assis. Todavia, a primeira edição das Causeries de Dumas (pai) de que consta o ensaio “Les
trois dames”, que contém o poema conforme traduzido por Machado de Assis, data de pelo
menos 1860. Veja-se ainda que é somente nesta estrofe que a personagem é chamada pelo nome
“Ema”, sendo, portanto, crucial para que Machado pudesse dar à sua versão o nome de
“Estâncias a Ema”, como se observa na seguinte estrofe correspondente à versão francesa:
Só, durante seis meses, dia e noite
Chamei por ti na minha angústia extrema;
A sombra era mais densa a cada passo,
E eu murmurava sempre: - Oh! minha Ema!556
554
DUMAS FILS, 1863, p. 314
DUMAS, Alexandre. “Les trois dames”. Causeries. Paris: Calmann-Lévy Frères, 1885, p. 33.
556
ASSIS, 1976, p. 341
555
279
Na estrofe transcrita acima já temos um exemplo da liberdade de que fala Araripe
Júnior: o tradutor toma somente ideia do segundo e terceiro versos, em que o poeta diz chamar
angustiadamente por Ema enquanto vê cair sobre si a sombra da solidão, e faz da tradução uma
reescrita dos versos buscando outros elementos que deem conta da cena que precisa narrar. O
mesmo procedimento é adotado diversas vezes no decorrer do poema, demonstrando que
Machado de Assis entende a tradução como um processo criativo autônomo, como se vê, por
exemplo, na terceira estrofe, que mostra o quanto Machado de Assis era capaz de ser sintético,
abreviando o texto de Dumas sem tirar-lhe nada que fosse imprescindível. Ao compararmos a
seguinte estrofe de Dumas:
Cet homme pour Saint-Cloud avait des préférences !
Eh bien ! va pour Saint-Cloud, c’est un charmant pays !
D’ailleurs, quand nous melons nos douces confidences,
Peu m’importe l'endroit, je suis bien ou je suis557.
com a versão de Machado de Assis:
Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! pois vamos!
É um sítio de luz, de aroma e riso,
Demais, se as nossas almas conversavam,
Onde estivessem era o paraíso558.
percebe-se que, se por um lado é verdade que o resultado final da tradução se ressente da
pobreza poética e do prosaísmo do texto-fonte, é preciso reconhecer que o poeta-tradutor
encontrou soluções criativas, que sugerem que o tradutor às vezes buscou manter não só os
aspectos narrativos do poema, mas também suas características estéticas, como a aliteração no
verso “Le parc était à nous, à nous seuls, à nous deux” recuperada em “Nosso era o parque,
unicamente nosso”, ou em “Moins obscur, moins épais, moins triste que le doute”, vertido em
“Menos triste, inda assim, menos escuro / Que a dúvida cruel que me seguia”.
A tradução é também consistente nas marcas que o poeta deixa de sua busca por
correção e apuro no emprego da forma, assim como na concisão e precisão empregadas,
antecipando alguns aspectos que ganhariam força na poesia parnasiana, como a cena em que é
descrito o encontro com o cisne no lago:
Nous sommes arrivés près d'un bassin où rôde
Un cygne encore plus blanc que le lait, et nageant
Silencieusement, et, comme une émeraude,
L'eau verte reflétait le bel oiseau d'argent.
557
558
DUMAS, 1885, p. 28
ASSIS, 1976, p. 336
280
Il vint nous demander quelque chose, une miette
De pain ; et pour nous plaire, il tordait son long cou;
Vous lui dîtes alors : « Pauvre petite bête,
Je ne le savais pas, et je n'ai rien du tout. »559
e que Machado de Assis traduz por:
O tanque, onde nadava um níveo cisne
Placidamente, — o passo nos deteve;
Era a face do lago uma esmeralda
Que refletia o cisne alvo de neve.
Veio este a nós, e como que pedia
Alguma coisa, uma migalha apenas;
Nada tinhas que dar; a ave arrufada
Foi-se cortando as águas tão serenas560.
A busca por descrições sintéticas e precisas do tradutor fica patente em exemplos como
“Un cygne encore plus blanc que le lait” que se torna “um níveo cisne”, sendo mais consistente
do que Dumas – que primeiro compara o cisne à brancura do leite, e depois à prata – ao
descrever novamente o cisne como sendo “alvo de neve”, com agradável aliteração; ou quando
transforma toda a fala “Pauvre petite bête, / Je ne le savais pas, et je n’ai rien du tout” num
simples e direto “Nada tinhas que dar”, eliminando, inclusive, boa parte do segundo verso da
décima terceira estrofe da primeira parte do poema francês (“et pour nous plaire, il tordait son
long cou”). Por todo o poema há, como estes, diversos outros exemplos em que hemistíquios
ou versos inteiros são simplesmente eliminados na tradução, assim como é possível encontrar
também acréscimos feitos pelo tradutor, ou mesmo escolha de imagens completamente
diferentes como nos versos “Ce doux nom dans lequel j’emprisonne mon âme, / Et que le vent
d’hier a peut-être effacé”, que Machado reescreve por “O doce nome que minha alma prende, /
E que o tempo, quem sabe? Já consome!”. Escolha acertada, pois ao dizer que o nome daquela
que foi uma vez amada se perde com o passar do tempo é uma imagem mais palpável, mais
compreensível do que dizer que o mesmo nome foi “apagado pelo vento de ontem”.
Com igual frequência o tradutor se apropria do tema do poema francês e com ele
recompõe a obra à sua maneira, reorganizando o texto para oferecer ao leitor um poema que
soe como um poema narrativo que é. Isso se observa principalmente nos três primeiros versos
da sétima estrofe da segunda parte do poema, por exemplo, em que o texto francês diz:
Qu'à jamais le soleil se voile, s'il éclaire
En vain le long chemin au bout duquel j'attends :
559
560
DUMAS, Op. Cit., p. 29
ASSIS, Op. Cit., p. 338
281
S'il ne ramène pas ce que mon âmexlvi espère,
Il n'est pas le soleil, il n'est pas le printemps !561
Na tradução de Machado de Assis percebemos que o terceiro verso da estrofe francesa foi
deslocado para a segunda posição, enquanto os versos 1 e 3 da tradução são muito mais de
Machado de Assis do que os de Dumas:
O sol que enche de luz a longa estrada,
Se me não traz o que minh’alma espera,
Pode apagar seus raios sedutores:
Não é o sol, não é a primavera!562
O movimento não é gratuito, pois permite que mantenha a rima entre o segundo e quarto versos
de cada estrofe, esquema adotado por toda a tradução, conseguindo ainda agradáveis
assonâncias e aliterações no par “longa estrada/minh’alma espera”, obtendo um resultado final
mais sintético e mais agradável do que o de Dumas.
Seria possível continuar a discussão apresentando diversos outros exemplos que
reforçam as mesmas características – sintetismo, concisão, sobretudo liberdade criativa – que
atestam o tipo de tradutor que Machado de Assis se tornava. Estes, no entanto, bastam por hora
como exemplos que são do que vimos se desenhando até o momento.
Ainda assim, uma última discussão sobre o papel desta tradução na produção autoral de
Machado de Assis se faz necessária. Apesar do desdém com que Jean-Michel Massa se referiu
à tradução – “A tradução é medíocre como é prosaico o texto original” – outros leitores como
Mario Curvello (1982) e Adriana Silvina Pagano (1996) viram nesta tradução uma das peças
que ajudou a pavimentar o caminho para a narrativa satírica de “Pálida Elvira”. Curvello
escreve que em Falenas a apropriação do alheio aparece como uma importante aquisição do
processo de composição machadiano, possibilitando-lhe desenvolver sua técnica de montagem
utilizando-se de elementos encontrados na tradição. Parte deste processo, “Pálida Elvira”, na
avaliação de Curvello, é exemplo de uma criação de Machado de Assis feita a partir de traços
do verso lamartineano – de quem Machado também traduziu dois poemas, como “A Elvira”, e
de onde aproveita a personagem – e da estrutura narrativa que recriou em “Estâncias a Ema” a
partir dos poemas de Dumas563. Na tese de doutorado Percursos críticos e tradutórios da nação:
Argentina e Brasil, Adriana Silvina Pagano retoma os mesmos argumentos de que em Falenas
as traduções servem como exemplo de apropriação do alheio que permitem que Machado de
561
DUMAS, 1885, p. 33
ASSIS, 1976, p. 340
563
CURVELLO, Mario. “Falsete à poesia de Machado de Assis”. In: BOSI, Alfredo et alli. Machado de Assis:
São Paulo: Ática, 1982. p. 477-496.
562
282
Assis, a partir de outros poemas do volume como “A Elvira” e “Estâncias a Ema” crie um outro
poema, “Pálida Elvira”. Este, por sua vez, ajuda a ampliar o debate acerca dos limites da prática
crítico-tradutória:
Um estudo de "Pálida Elvira" revela que há nesse texto literário uma teorização da
criação poética e da tradução, uma vez que ele questiona a prática da imitação não
produtiva, aquela que está limitada a apenas reproduzir um modelo. No poema, as
reflexões acerca da tradução e da criação estão acompanhadas de pontuações sobre a
poética do romantismo. Num momento em que as traduções dos românticos europeus
eram tantas, que se chegou a falar em “epidemia” ou “surto” de traduções de Victor
Hugo, Byron e outros Machado de Assis apresenta a Elvira de Lamartine como uma
“pálida Elvira”, imitação das convenções do romantismo francês, e critica a cópia pela
voz de um narrador que, em tom irônico e brincalhão, questiona essas convenções
[...]564.
Estas reflexões servem para nos lembrar que mesmo exercícios modestos de tradução, de
objetos e resultados questionáveis, que não raro são subestimados por alguns críticos, podem
ter sido o caminho que o escritor precisou trilhar para conseguir dar os passos necessários para
a criação da obra sólida que o tornou conhecido.
8.5 “A morte de Ofélia”
“A morte de Ofélia” pertence ao grupo de poemas inéditos de Falenas. Trata-se de uma
cena aproveitada do ato IV, cena VII de Hamlet, em que a rainha descreve a Laertes a morte da
filha de Polônio, que se afogara em um riacho à beira de um salgueiro. São cinquenta e um
versos, escritos em decassílabos e heroicos quebrados, de rimas assimétricas.
Massa atribui a escolha deste episódio a um conhecimento superficial da literatura
inglesa565, talvez por se tratar de uma cena célebre e bastante citada. Discordando de Massa,
entendemos que a escolha ressalta uma demonstração de apreço e reconhecimento do cânone,
no qual pretendia se inserir pela emulação do modelo inglês. O crítico e teórico norte-americano
Harold Bloom (2004) considera a cena descrita pela rainha Gertrudes “[...] um dos grandes
trechos de Shakespeare [pois] propicia à peça o esplendor lírico que contribui para justificar o
564
PAGANO, Adriana Silvino. Percursos críticos e tradutórios da nação: Argentina e Brasil. Tese de Doutorado.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1996. p. 244.
565
MASSA, 2008, p. 86
283
elogio de Samuel Johnson à riqueza do texto”566. Mais à frente o crítico conclui sua avaliação
sobre a cena afirmando que o páthos ali contido
[...] enseja um efeito estético extraordinário, exclusivo a Ofélia. O contraste entre
‘sufocar no lodo’ e a visão da jovem ensandecida, flutuando e cantando velhas
canções, provoca uma ressonância sublime, semelhante à percepção de Hamlet, de ser
ele mesmo, igualmente, tudo e nada, “infinito em faculdades” e “quintessência do
pó”567.
Deve-se considerar ainda que a imagem de Ofélia, figura feminina que comete suicídio,
teve amplo prestígio no século XIX entre diversos pintores pré-rafaelitas e poetas simbolistas
e decadentistas. Há pinturas de Eugène Delacroix, Alexandre Cabanel, Paul Delaroche, John
Everett Millais e diversos outros que retratam a morte da jovem. Na literatura, Rimbaud se
rendeu ao tema, assim como o próprio Machado de Assis que já publicara, em 1859, um poema
com o título “Ofélia”. Eugênio Gomes (1976) nota ainda que de Hamlet, além da cena que
inspirou este poema, há referências por toda a obra de Machado de Assis, e cita como exemplo
uma das crônicas de A Semana, “A cena do cemitério”, de 1894568. Acrescente-se a isso a
avaliação de Francine Ricieri (2016), que reforça a relevância do tema à época da realização da
tradução:
A virgem que se torna suicida após o desengano amoroso, de certo modo reproduzia,
naquele imaginário, o destino da poesia (e da pintura) desiludidas ambas após seu
desengano amoroso com uma sociedade que lhes negava espaço e existência. Loucas
ambas, Ofélia e a representação artística por ela evocada falaram eloquentemente, no
final do XIX, sobre este não-lugar, sobre este suicídio que marcava uma
impossibilidade e simultaneamente uma recusa569.
Assim, parece-nos que a escolha de Machado de Assis evidencia um senso crítico bastante
afiado, capaz de reconhecer numa das grandes obras da literatura inglesa, fonte onde ele foi
beber inúmeras vezes, uma cena de inquestionável relevância.
Quanto à paráfrase/tradução de Machado de Assis, Massa faz a seguinte avaliação:
“A morte de Ophelia” (1869) suscita um texto que Machado de Assis não chama de
“tradução”, mas de “paráfrase”. Os versos são de extensão desigual (seis e dez pés),
e a atmosfera crepuscular é acentuada. A poesia de Machado de Assis banha-se em
um halo romântico abrandado pelos acréscimos do tradutor. [...] Por certo que a
paráfrase autoriza infidelidade ao original. Mas nossa reserva diante de “A morte de
Ophelia” provém, sobretudo, da inatualidade dessa versão que parece um pouco
envelhecida em sua insistência verbosa e em seu langor quase lamartiniano.570
566
BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 51
Ibid., p. 52
568
GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas S.A./Instituto Nacional do
Livro/MEC, 1976. p. 19
569
RICIERI, Francine Fernandes Weiss. “A poesia machadiana: versões, traduções, revisões e diálogos – uma
musa de roupas embebidas”. Manuscrítica: revista de crítica genética. N. 14. Vitória, ES. Dezembro de 2016. p.
235
570
MASSA, 2008, p. 87
567
284
Citamos o trecho acima porque alguns pontos da avaliação de Massa merecem revisão: nossa
pesquisa tem demonstrado que Machado de Assis, assim como boa parcela dos poetas e
tradutores da época, não utilizava com muito critério ou rigor terminológico ou conceitual
palavras “tradução” ou “paráfrase”, ou mesmo “imitação”. “Cleópatra”, de Crisálidas, por
exemplo, também é chamada de “paráfrase”, embora seja muito mais próxima do texto-fonte
do que “A morte de Ofélia”. Da mesma maneira, o fato de apresentar o texto como uma
“paráfrase” não é, por si só, condição suficiente para “autorizar infidelidade ao original”, já que
o tradutor sempre se autoriza a alterar o que julga necessário quando lhe convém,
principalmente no que tange a forma dos poemas que traduz, como visto anteriormente em
praticamente todos os outros textos que analisamos até aqui, dando indícios de que via na
tradução um trabalho de coautoria. Não se pode negar, contudo, que em “A morte de Ofélia”
as liberdades do tradutor alçam voos muito mais altos, afastando-se do texto-fonte como nunca
fizera antes.
A propósito do texto-fonte utilizado para esta tradução, inclusive, pouco se sabe. Se
Massa (2008) compara alguns trechos da tradução com o texto no inglês de Shakespeare,
Ishimatsu (1982) afirma não ser possível dizer se Machado de Assis trabalhou a partir do
francês ou do inglês571. Até mesmo a Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa,
que frequentemente aponta quais poderiam ter sido os textos-fonte dos textos traduzidos, não
dá nenhuma indicação neste caso. Sabe-se, pelos levantamentos feitos tanto por Massa quanto
por Glória Vianna que Machado de Assis possuiu em sua biblioteca particular versões em inglês
e em francês – na tradução de Émile Montégut – da obra de Shakespeare. Além dessas edições,
havia também em sua biblioteca um volume intitulado The beauties of Shakespeare, com
excertos da obra do bardo inglês que, segundo anotações de Glória Vianna, foi muito
manuseado, com diversas marcas nas margens das páginas572. Esse volume, que contém
excertos escolhidos por um Rev. William Dodd, parece ter sido bastante popular já que
encontramos diversas edições dele, em diferentes formatos, publicados por diversos editores ao
longo dos anos. Um desses excertos é justamente a cena em que a rainha descreve a morte de
Ofélia. Infelizmente não conseguimos encontrar a mesma edição que Machado de Assis
possuiu, mas como o conteúdo das outras edições consultadas permanece praticamente
inalterado, isso não seria um agravante. Consultamos também uma das edições com a tradução
571
572
ISHIMATSU, 1982, p. 93
VIANNA, 2001, p. 211
285
em prosa de Émile Montégut com o intuito de encontrar indícios que apontassem para uma ou
outra versão.
Como o poema não é muito extenso, comparemos o texto da tradução de Machado de
Assis:
A morte de Ofélia
Junto ao plácido rio
Que entre margens de relva e fina areia
Murmura e serpenteia,
O tronco se levanta,
O tronco melancólico e sombrio
De um salgueiro. Uma fresca e branda aragem
Ali suspira e canta,
Abraçando-se à trêmula folhagem
Que se espelha na onda voluptuosa.
Ali a desditosa,
A triste Ofélia foi sentar-se um dia.
Enchiam-lhe o regaço umas capelas
Por suas mãos tecidas
De várias flores belas,
Pálidas margaridas,
E ranúnculos, e essas outras flores
A que dá feio nome o povo rude,
E a casta juventude
Chama - dedos da morte - O olhar celeste
Alevantando aos ramos do salgueiro,
Quis ali pendurar a ofrenda agreste.
Num galho traiçoeiro
Firmara os lindos pés, e já seu braço,
Os ramos alcançando,
Ia depor a ofrenda peregrina
De suas flores, quando
Rompendo o apoio escasso,
A pálida menina
Nas águas resvalou; foram com ela
Os seus - dedos da morte - e as margaridas,
As vestes estendidas
Algum tempo a tiveram sobre as águas,
Como sereia bela,
Que abraça ternamente a onda amiga.
Então, abrindo a voz harmoniosa,
Não por chorar as suas fundas mágoas,
Mas por soltar a nota deliciosa
De uma canção antiga,
A pobre naufragada
De alegres sons enchia os ares tristes,
Como se ali não visse a sepultura,
Ou fosse ali criada
Mas de súbito as roupas embebidas
Da linfa calma e pura
Levam-lhe o corpo ao fundo da corrente,
Cortando-lhe no lábio a voz e o canto.
As águas homicidas,
Como a laje de um túmulo recente,
Fecharam-se; e sobre elas,
286
Triste emblema de dor e de saudade,
Foram nadando as últimas capelas573.
com a versão inglesa de Shakespeare:
There is a willow grows aslant the brook,
That shows his hoar leaves in the glassy stream;
Therewith fantastic garlands did she make
Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples,
That liberal shepherds give a grosser name,
But our cold maids do dead men's fingers call them:
There on the pendent boughs her coronet weeds
Clambering to hang, an envious sliver broke;
When down her weedy trophies, and herself.
Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide;
And, mermaid-like, awhile they bore her up:
Which time she chanted snatches of old tunes;
As one incapable of her own distress,
Or like a creature native and indued
Unto that element: but long it could not be.
Till that her garments, heavy with their drink,
Pull'd the poor wretch from her melodious lay
To muddy death574.
E a tradução em prosa de Montégut:
La reine. — Près d'un cours d'eau , il y a un saule qui mire ses feuilles blanchâtres à
la glace de l'onde ; c'est lu qu'elle s'est rendue avec des guirlandes fantasques
composées de renoncules, d'orties, de marguerites, et de ces longues fleurs pourprées
que nos bergers au langage indécent nomment d'un nom plus grossier, mais que nos
chastes vierges appellent doigts de morts : pendant qu’elle grimpait à ce saule pour
accrocher à ses rameaux pendants sa couronne d'herbes fleuries, une branche envieuse
s'est cassée, et alors, elle et ses trophées de verdure sont tombés dans le courant. Ses
vêtements se sont déployés sur la surface de l'eau, et ils l'ont soutenue un instant pareil
à une sirène : pendant ce temps-là elle chantait des fragments de vieux chants, comme
une personne sans conscience de sa détresse, ou comme une créature native ou
habitante de cet élément : mais il ne s'est pas écoulé longtemps avant que ses
vêtements pesants de l'eau qu'ils avaient bue arrachassent la pauvre malheureuse à ses
lais mélodieux pour la conduire à un tombeau de vase575.
O poema criado por Machado de Assis a partir da cena aproveitada da peça de
Shakespeare abre com uma descrição da paisagem em que encontraremos Ofélia: os nove
primeiros versos descrevem um rio calmo que corta as relvas e a areia fina, um tronco solitário
de um salgueiro que desponta à margem, balançado por uma suave brisa. Esta primeira
descrição já é bem mais detalhada do que qualquer uma das versões estrangeiras que
acompanham a tradução de Machado acima. É ali que vai se sentar Ofélia, trazendo ao colo
capelas de flores tecidas por ela mesma, flores que incluem as “pálidas margaridas e
573
ASSIS, 1976, p. 343-344
SHAKESPEARE, William. Complete works of William Shakespeare. Glasgow: Harper Collins Publishers,
1994, p. 1117 (Ato 4, cena VII, v.167-183).
575
Id. Œuvres complètes de Shakespeare. Trad. Émile Montégut. Paris: Librairie Hachette et Cie, s/d., p. 531.
574
287
ranúnculos” mas também aquelas conhecidas como “dedos da morte”, mas que possuem
também um “feio nome”, alusão ao formato fálico da planta que, de imediato, nos faz pensar
no contraste entre a delicadeza e feminilidade das margaridas e ranúnculos e o formato fálico,
de um azul arroxeado e agourento dos “dedos da morte”. Ofélia, já tomada pela loucura na peça
de Shakespeare, tenta pendurar a oferenda no salgueiro – árvore que também conota tristeza e
melancolia – mas é traída por um “galho traiçoeiro” e cai na água. Ao cair no rio, leva consigo
os ramos com as margaridas, ranúnculos e dedos da morte, criando sobre as águas a imagem de
uma criatura mítica, com suas vestes lembrando a cauda de uma sereia. Louca, em vez de tentar
salvar-se, Ofélia canta como se a morte não fosse iminente. Como não luta, suas vestes logo se
encharcam e a levam para o fundo do rio enquanto canta, alheia ao que se passa. Novamente, a
descrição que Machado faz da cena é bem mais detalhada do que qualquer uma das versões
estrangeiras. Também o ritmo de seu poema, um entrecortado de versos brancos ora mais
longos, ora mais curtos, afastam do leitor qualquer regularidade denotando a tensão que a cena
tenta evocar e levando-nos à inevitável conclusão de que esta peça deve ser lida como um
poema em si, uma obra independente que remete a outra, e não somente como um excerto de
uma obra de Shakespeare traduzido para o português.
Comparando as versões estrangeiras entre si, percebe-se que a tradução em prosa
francesa de Montégut deixa de lado quaisquer preocupações estéticas com os pentâmetros
jâmbicos do texto inglês para traduzir, de maneira literalizante, somente o sentido dos versos
da fala da rainha, com algumas poucas alterações que conferem ainda mais prosaísmo ao texto.
É, de fato, impossível afirmar com certeza qual texto Machado de Assis teria utilizado como
fonte para sua tradução. Por outro lado, é bastante provável que a escolha não tenha caído sobre
um ou outro necessariamente, mas que ambos tenham sido utilizados na tarefa, algo que parece
ter precedentes em outras traduções que já analisamos.
Um pequeno detalhe, contudo, nos faz pender levemente para o argumento de que o
texto francês, se não foi a única fonte, pelo menos serviu de apoio: uma das dificuldades
impostas pelo texto de Shakespeare está no nome das flores citadas nos versos que narram a
guirlanda feita por Ofélia. Não há consenso sobre de que planta Shakespeare estaria falando na
primeira espécie mencionada, “crow-flowers”. O dicionário Shakespeare’s words (2002),
organizado pelo linguista David Crystal e Ben Crystal, seu filho e ator especializado em
montagens modernas de Shakespeare na pronúncia original, explica que o termo é de
“significado obscuro; provavelmente a ragged-robin; usado como parte de uma ‘guirlanda
288
fantástica’ ‘de matiz amarelo’; possivelmente o botão-de-ouro, ou um nome”576. Diante desta
dificuldade, o tradutor francês escolhe traduzir “crow-flower” por “renoncules”, enquanto
Machado de Assis escolhe a tradução direta do termo francês empregado por Montégut:
“ranúnculos”. A responsável pela clássica tradução de Hamlet (2004) para o português, Anna
Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, segue o caminho de Machado de Assis e traduz
“crowflowers” da mesma maneira:
Ali, com suas líricas grinaldas
De urtigas, margaridas e rainúnculos577
Se por um lado é verdade que os “renoncules/ranúnculos” e as “crowflowers” (também
conhecidas como “crowfoot”) pertencem ao mesmo genus Ranunculus, as flores a que aludem
Machado de Assis e Montégut lembram rosas, enquanto as “crowflowers”, como o nome diz,
tem o formato dos pés das aves que lhe emprestam o nome, o corvo, e são venenosas. Mas
talvez o que mais importe seja a sutil referência à ave associada ao mau agouro em uma cena
que retrata a morte, algo que não se encontra na escolha do tradutor francês e,
consequentemente, na de Machado de Assis.
É interesse notar que esta tradução aborda um tema faz parte de uma linhagem de textos
que ocupam a pena do poeta-tradutor desde mais de uma década antes da publicação de Falenas,
indício de que o trabalho do tradutor nem sempre está desconectado do restante da produção do
autor. O poema “Ofélia”, por exemplo, publicado no Correio Mercantil em outubro de 1859,
demonstra que Machado de Assis já conhecia a cena descrita em Shakespeare e compõe,
inspirado nela, uma versão alternativa, em que pede à sua Ofélia que não cometa suicídio:
Pálidas flores que uma vaga incerta
Ali suspensas traz
Vicejam aos borrifos, do meu pranto,
Oh! essas flores que te prendem tanto
Deixa-as, Ofélia, em paz!
Não te curves à borda dessas águas
De superfície anil
Ébria de amores, – do teu sonho casto
Não acharás ali o mundo vasto
Nem o rosado abril.578
Para além das referências a Shakespeare já mencionadas por Eugênio Gomes no capítulo
dedicado ao bardo inglês em Machado de Assis: influências inglesas, há menções diretas a
576
CRYSTAL, David; CRYSTAL, Ben. Shakespeare’s words: a glossary and language companion. London:
Penguin Books, 2002. p. 330, tradução nossa. No original: “of unclear meaning; probably the ragged robin; used
as part of a ‘fantastic garland’ ‘of yellow hue’; possibly the buttercup, or an invented name”.
577
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. In: BLOOM,
Harold. Hamlet: poema ilimitado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 284.
578
ASSIS, 2009, p. 470
289
Ofélia e à cena do seu suicídio em alguns de seus contos como “Cinco Mulheres” (1865),
“Muitos anos depois” (1874) e “A chave” (1879-1880).
“Muito anos depois” já foi citado antes por conta da alusão a André Chénier. Neste
conto, o Padre Flávio idealiza em Ofélia e Marília – a pastora no poema de Tomás Antônio
Gonzaga – as mulheres que busca: “[...] ansiava por encontrá-las, amava-as antecipadamente,
em solitárias chamas. Como era natural, o moço exigia mais do que poderia dar a natureza
humana”579. Contudo, a personagem Ofélia aparece de maneira apenas circunstancial, sem
grandes implicações para a trama do conto.
Muito mais curioso e relevante é a presença da personagem shakespeariana nos outros
dois contos. No primeiro, “Cinco mulheres”, o narrador diz ter desenhado rapidamente, “[...]
um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na
mesma coleção, como em um álbum de fotografias [...]conforme apareciam, sem intenção de
precedência, nem cuidado de escolha” de forma que cada uma delas pudesse ser examinada
“entre o charuto e o café”. A primeira dessas mulheres, Marcelina, é assim descrita pelo
narrador logo no primeiro parágrafo:
Marcelina era uma criatura débil como uma haste de flor; dissera-se que a vida lhe
fugia em cada palavra que lhe saía dos lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido
como os últimos raios do dia. A cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava ao
céu. Quinze anos contava, como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava destinada a
colher a um tempo as flores da terra e as flores da morte580.
Marcelina, assim como Ofélia, é uma figura frágil, que padece de uma enfermidade que
permanece oculta até quase o fim de sua história: a enfermidade é o amor que nutre pelo jovem
que se casa com sua irmã. O sofrimento silencioso leva a jovem à morte, e a causa só é revelada
primeiramente ao médico e, depois do falecimento, à mãe de Marcelina por meio de uma carta.
A morte de Marcelina é quase um suicídio, visto que a jovem recusa qualquer tentativa de
buscar a cura pela felicidade em outro lugar e se entrega completamente à tristeza do amor não
realizado. Anos depois do falecimento, o cunhado, Júlio, encontra a carta em que Marcelina
confessa à mãe o motivo da doença. O cunhado lê a carta, acende um charuto e vai ao teatro.
O conto “A chave” – o mais maduro e interessante dos três – nos coloca diante de outra
Marcelina: antítese da primeira, esta jovem é forte, resoluta e pouco disposta a se entregar ao
primeiro pretendente. Esta Marcelina é uma exímia nadadora e é no mar que se passam os
primeiros eventos do conto. Enfrentando um mar bravio, Marcelina dispensa o escravo que a
acompanha para exibir-se aos demais banhistas. Quase se afoga e é salva por Luís Bastinhos,
579
580
ASSIS, 2015, Vol. 2, p. 1233
Ibid., p. 799
290
outro exímio nadador que ganha, primeiramente, o coração do pai da moça – o major Caldas –
que sonha em vê-los casados. Passada esta introdução, a cena da morte de Ofélia reaparece no
conto e desta vez com uma citação no idioma de Shakespeare, uma fala de Laertes que acabara
de receber a notícia da morte da irmã:
Saiamos do mar que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer
um conto marítimo, a ponto de casar os dois heróis nos próprios ‘paços de Anfitrite’,
como diria o major Caldas. Não; saiamos do mar. Já tens muita água, boa Marcelina.
Too much water hast thou, poor Ophelia! A diferença é que a pobre Ofélia lá ficou,
ao passou que tu sais sã e salva, com a roupa de banho pegada ao corpo, um corpo
grego, por Deus!581
Como é de se esperar, quando o conto acaba ambos estão casados, mas não sem que
antes o narrador desenhe uma Marcelina que é a antítese da primeira, opondo-se,
consequentemente, à Ofélia de Shakespeare. Luís Bastinhos, por outro lado, apesar de atlético
e excelente dançarino – a “chave” para o coração da moça, descobrimos, é saber dançar a valsa
como nenhum outro – carrega traços da indecisão hamletiana: como não sabe se é ou não
correspondido, planeja muito e não realizada praticamente nada, a ponto de pedir a mão da
moça ao pai sem antes ter confessado o amor a ela. Por fim, é preciso uma iniciativa de
Marcelina – depois de impressionada com os dotes do valsista –, que a princípio rechaça a ideia
de casamento, para que os dois acabem juntos.
A partir do que foi exposto até aqui, percebe-se que o assunto da cena recriada na
paráfrase machadiana esteve com o autor durante décadas, fazendo-se presente na sua poesia,
nas crônicas e na sua narrativa ficcional. Não se pretende dizer com isso que a tradução tenha
precedência, mas que é parte indelével e expressiva do desenvolvimento do escritor e é um dos
fios de sua malha poética no tratamento do tema. Meschonnic sugere que traduzir deve
extravasar a interpretação porque “[...] é na enunciação do sujeito do poema que se faz a
historicidade de um texto”582. Isso implica a recusa de que a interpretação é uma tradução. A
tradução está além da interpretação porque se faz em uma nova enunciação, como esta tradução
de Machado é a reescrita, a reenunciação poética de uma cena de Hamlet. Ao traduzir
reescrevendo a cena da morte de Ofélia, Machado de Assis se apropria completamente do texto
shakespeariano, tornando-o seu, como já ensaiara antes no poema “Ofélia”, para depois
transformá-lo mais uma vez e utilizá-lo de forma irreverente nas crônicas até criar uma espécie
de “Ofélia às avessas” com a Marcelina de “A chave”.
581
582
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 33-34
MESCHONNIC, 2010, p. 20
291
8.6 “Lira chinesa”
A “Lira chinesa”, uma das quatro partes que subdivide Falenas, é composta de oito
poemas atribuídos a poetas chineses, traduzidos – ou imitados – por Machado de Assis a partir
do francês. A respeito do texto-fonte utilizado, em nota, Machado de Assis informa: “Os poetas
postos nesta coleção são todos contemporâneos. Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela
Sra. Judith Walter, distinta viajante que dizem conhecer profundamente a língua chinesa, e que
os traduziu em simples e corrente prosa”583.
Trata-se do Livre de Jade, publicado por Judith Walter – pseudônimo Judith Gautier,
filha de Théophile Gautier – pela editora Alphonse Lemerre. As imprecisões desta nota de
Machado de Assis já foram apontadas em diversas ocasiões: há, por exemplo, um engano na
data, já que o livro é não é de 1868, mas de 1867. O deslize talvez se justifique porque o Livre
de Jade foi colocado à venda no Rio de Janeiro em maio de 1868, pela Livraria Garnier584, o
que poderia ter levado Machado a considerar que o livro fora publicado no ano em que
possivelmente tomou conhecimento dele.
Além disso, os poetas a quem os textos são atribuídos, à exceção de um deles, não são
contemporâneos. Segundo Pauline Yu, no ensaio “Your alabaster in this porcelain: Judith
Gautier’s ‘Le livre de jade’” (2007), os autores pertencem, em sua maioria, à Dinastia Tang (
, 618-907)585, dentre os quais se destacam Li Bai () e Du Fu (). A exceção
mencionada se refere ao poema “As flores e os pinheiros”, atribuído a Tin-Tun-Sing na versão
de Machado – Tin-Tun-Ling, no Livre de Jade –, a quem o livro é dedicado e que teria sido o
preceptor de Judith Gautier na língua chinesa, por intermédio de seu pai. Sobre o suposto
conhecimento que Judith Gautier tivesse do idioma, o eminente sinólogo português Joaquim
Guerra (1995), no ensaio “A Lira chinesa de Machado de Assis”, afirma recear que não era tão
profundo como Machado supôs586. A opinião é compartilhada também por Pauline Yu, que
afirma: “O domínio que Gautier tinha do chinês era, na melhor das hipóteses, incerto”587. A
“distinta viajante” tampouco teria viajado tanto quanto Machado de Assis acreditou: “A
583
ASSIS, 1976, p. 511
“Livraria Garnier, Rua do Ouvidor, 69 - Novidades”. Jornal do comércio. Rio de Janeiro,11 de maio de 1868,
p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/364568_05/13711>. Acesso em: 17 de janeiro de 2018.
585
YU, Pauline. “Your alabaster in this porcelain: Judith Gautier’s ‘Le livre de jade’”. PMLA, Vol. 122, No. 2
(Mar 2007), p. 468.
586
GUERRA, 1995, p. 96
587
YU, op. cit, p. 469, tradução nossa. No original: “Gautier’s mastery of Chinese was at best uncertain”.
584
292
escritora e tradutora francesa transpôs uma única vez as fronteiras europeias, apenas em 1914,
aos 69 anos de idade, quando é convidada a visitar a Argélia”588, de acordo com “A Lira chinesa
em trânsito: de Machado de Assis a António Feijó” (2013), de Marta Pacheco Pinto.
Fontes indicam que Le livre de jade teve boa recepção desde seu lançamento, tendo
cinco edições subsequentes na França entre 1867 e 2004589. Yu informa que cada uma das três
primeiras edições do livro difere da anterior, sendo que a primeira – a que serviu de fonte para
a composição da “Lira chinesa” – era menor do que as posteriores, com 71 composições, a
maior parte de poetas da Dinastia Tang, um poema da Dinastia Song – Su Dongpo – e um
poema do preceptor de Judith Gautier, como dito anteriormente. O livro também foi objeto de
traduções para vários idiomas, como o alemão, inglês, italiano, russo, espanhol, polonês e
português, não só pelas mãos de Machado de Assis, que foi possivelmente seu primeiro tradutor
para o nosso idioma, mas também pelo português António Feijó, que o traduziu no seu
Cancioneiro chinês de 1890.
Algumas informações apresentadas nos artigos de Pauline Yu, e também em “Sur les
sources du Livre de Jade de Judith Gautier”, de Ferdinand Stocès, nos levam a considerar a
possibilidade de tratar o trabalho de Judith Gautier menos como uma tradução/imitação de
poetas chineses e mais como um trabalho de composição, inspirado naqueles poetas. Yu afirma,
por exemplo, que Gautier procurou “[...] se afastar da abordagem acadêmica e versões
minuciosamente trabalhadas do sinólogo”590 d’Hervey-Saint-Denys, que traduziu poetas
chineses da Dinastia Tang antes dela. Além disso, Yu nota que
Primeiramente, Gautier dispensou quase todos os títulos de poemas originais e
substituiu-os pelos seus próprios títulos. Em segundo lugar, ela substituiu quase todas
as referências específicas a pessoas e lugares com termos genéricos. Por fim, em
várias ocasiões ela não traduziu o poema inteiro, geralmente selecionando apenas as
primeiras linhas e às vezes alterando sua ordem.591
Segundo Yu, Judith Gautier teria adotado essas estratégias por não conseguir lidar
adequadamente com o que não compreendia, embora a hipótese mais provável seja a intenção
de dar um tom mais conciso à sua antologia, como se fosse uma obra única e não um apanhando
588
PINTO, Marta Pacheco. “A Lira chinesa em trânsito: de Machado de Assis a António Feijó”. Scientia
traductionis, n. 14, 2013, p. 97.
589
YU, op. Cit., p. 465; PINTO, op. Cit., p. 95
590
YU, 2007, p. 468, tradução nossa. No original: “depart from the scholarly approach and work-manlike
renditions of the sinologist”.
591
Ibid., p. 470, tradução nossa. No original: “First, Gautier dispensed with almost all the original poem titles and
substituted her own. Second, she replaced almost all specific references to person and place with generic terms.
Third, more often than not she did not translate an entire poem, usually selecting only the first few lines and
sometimes altering their order”
293
de diversos autores. Gautier sequer teria tentado manter ou replicar a prosódia dos textos-fonte
com os quais trabalhou, compondo, ao invés disso, seus pequenos poemas em prosa, o que leva
Yu à conclusão de que esta obra de Gautier está no limite entre a tradução e a adaptação592.
Ferdinand Stocès (2006) complementa as considerações de Yu afirmando que sempre
existiram dúvidas sobre as traduções de Gautier. Afirmou-se até mesmo que as traduções seriam
“[...] pastiches e pseudo-traduções que mostravam, sobretudo, o talento inventivo da poeta”593.
Para reforçar esta tese, Stocès lembra que antologias mais recentes, que retomam alguns dos
poemas traduzidos por Gautier, apresentam uma distância enorme entre as versões da jovem e
as feitas por outros tradutores594. Todavia, o que talvez pese a favor dessa proposta é o fato de
que alguns dos poemas que viriam a compor a primeira edição do Livre de Jade foram
publicados alguns anos antes na Revue L’Artiste, em janeiro de 1864xlvii, com o título
“Variations sur des thèmes Chinois d’après des poésies de Li-Taï-pé, Thou-fou, Tan-jo-su,
Houan tchan-li, Haon-ti”595, já sob o pseudônimo Judith Walter, o que ocorre poucos meses
depois de Gautier iniciar seus estudos no idioma chinês, que Stocès diz ter acontecido em
meados de 1863. Obviamente, os poucos meses e a suposta dificuldade de comunicação entre
professor e aluna – há relatos de que Tin-Tun-Ling falava com dificuldade o francês – não
teriam sido suficientes para engendrar traduções no sentido mais estrito do termo.
Logo, é perfeitamente compreensível que os textos tenham sido publicados como
“Variations”, versões livremente inspiradas em textos cuja compreensão era, na melhor das
hipóteses, deficiente. Outra edição das “Variations” foi publicada no ano seguinte na mesma
revista. Stocès informa que somente três das dezesseis peças que compuseram essas duas
publicações poderiam ser consideradas reais tentativas de tradução, embora em todas elas
Gautier não tenha se privado de dar liberdade à sua imaginação para preencher as lacunas do
que não conseguia ler nos textos-fonte. Acrescente-se a isso que, depois de comparar os
resultados de Gautier com alguns textos-fonte identificáveis, Stocès conclui ter sido possível
verificar “quanto esforço foi necessário para traduzir diretamente o chinês e quanto Judith
Gautier e seu guardião tinham poucos elementos – apenas alguns caracteres decifrados – para
592
YU, 2007, p. 470
STOCÈS, Ferdinand. “Sur les sources du Livre de Jade de Judith Gautier (1845-1917). (Remarques sur
l'authenticité des poèmes)”, Révue de littérature comparée 2006/3, (no 319), p. 335-350., p. 335, tradução nossa.
No original: “pastiches et de pseudo-traductions démontrant avant tout le talent inventif de la poétesse”
594
STOCÈS, 2006, p. 336.
595
Ibid., p. 337. Grifos do autor.
593
294
compreender o significado e o espírito dos textos chineses”596, o que explicaria o fato de
algumas de suas versões serem bastante diferentes das de outros sinólogos e tradutores.
Dúvidas quanto ao conhecimento e leitura dos textos orientais também surgem no
estudo feito por Edgar Knowlton Jr. em “Machado de Assis e a sua Lira chinesa” (1995):
“Parece claro, observando as discrepâncias entre as traduções dela e as do estudioso d’HerveySaint-Denys, que ela se preocupou menos com a correção linguística do que com a reprodução
da paixão dos poetas chineses”597, o que leva o autor a sugerir que a obra pertence à literatura
francesa e não à sinologia.
Estas considerações importam porque nos mostram que devemos tratar os textos da
“Lira chinesa” não necessariamente, ou unicamente, como uma tradução/imitação de outra
tradução/imitação. Assim como Livre de Jade deve ser lido mais como uma obra da literatura
francesa do que uma obra de sinologia, podemos igualmente sugerir que a “Lira chinesa” de
Machado de Assis, depois de todas as transformações por que os textos franceses passaram,
pertence mais à literatura brasileira e ao seu autor do que à literatura francesa ou chinesa. Não
seria de todo equivocado dizer que Livre de Jade possui poemas em prosa tão “originais” quanto
os textos-fonte de que se serviu, assim como Machado de Assis se serve desses originais para,
a partir deles, compor a sua “Lira chinesa”. Portanto, julgar o trabalho de Machado de Assis
em termos de tradução em sentido estrito – ou como algo que deve respeitar o que estipula o
“original” – poderia levar o crítico a conclusões equivocadas.
Cláudio Murilo Leal (2008) atribui ao fato de serem “traduções” a pouca atenção que
esses poemas têm recebido da crítica especializada598, o que consideramos lamentável, visto a
inegável demonstração de inventividade poética de Machado de Assis. Nestes oito poemas ele
se teria deixado envolver pelo que Élide Valarini Oliver (2006) chama de “[...] as formas
lapidares, as elipses indicativas, a sabedoria explícita ou implícita, a concisão e precisão formal,
a simbologia cosmológica embutida nas descrições da natureza, etc.”599, mesmo que sob o véu
da pena de Judith Gautier.
596
STOCÈS, 2006, p. 339, tradução nossa. No original: “combien il fallait d’efforts pour traduire directement du
chinois et combien Judith Gautier et son tuteur avaient peu d’éléments — quelques caractères déchiffrés seulement
— pour saisir le sens et l’esprit des textes chinois”.
597
KNOWLTON Jr, E. C. “Machado de Assis e a sua Lira chinesa”. Revista de Cultura, Macau, n.22, II série, p.
81-94, jan-mar 1995, p. 85
598
LEAL, 2008, p. 101
599
OLIVER, Élide Valarini. A poesia de Machado de Assis no século XXI: revisita, revisão. In: 1º Concurso
Internacional Machado de Assis. Ensaios premiados: a obra de Machado de Assis. Ministério das Relações
Exteriores, 2006, p. 139 (pp. 119-178).
295
Ainda que não tenha recebido muita atenção da crítica como sugere Leal, ao contrário
de parte considerável das traduções poéticas de Machado de Assis, muitas das quais nunca
foram antes examinadas ao lado dos seus respectivos textos-fonte, a “Lira chinesa” já conta
com alguns estudos em que pudemos nos apoiar para apresentar algumas conclusões, tendo sido
objeto de análise e comparação com os textos de Gautier, como o ensaio de Edgar Colby
Knowlton Jr – “Machado de Assis e a sua Lira chinesa” – e, em menor grau, o já citado “A
Lira Chinesa de Machado de Assis” do sinólogo Joaquim Guerra, além do trabalho pioneiro de
Massa (2008).
Um dos primeiros comentários que a “Lira chinesa” recebeu foi publicado pelo
folhetinista português Júlio César Machado (2003) por ocasião do lançamento de Falenas, onde
compara os poemas de Machado de Assis, sobretudo “O Imperador”, a Heinrich Heine pela
“ironia preciosíssima”600, ponto a que retornaremos mais à frente.
A opinião de Massa é bastante favorável ao trabalho de Machado de Assis. Massa
entende que, ao entrar em contato com a obra de Gautier, “[...] Machado de Assis foi cativado
por um estilo novo: os apólogos desabusados expressos em uma forma lapidar. [...] A escolha
a que ele se dedica confirma sua atração por uma forma de literatura cujo canto lhe parecia
novo”601. Com esse novo canto, Machado de Assis teria sido capaz de dar a esses poemas
orientais uma forma que “é às vezes mais vigorosa e seca que a tradução francesa”602, e cita,
como exemplo, “Um poeta a rir”. A “Lira chinesa”, na opinião do crítico e biógrafo francês,
também traria “[...] o mesmo tom trocista ou desiludido, geralmente expresso de forma mais
breve que nos poemas do Livre de jade, com uma pesquisa literária constante, mesmo nos casos
em que o tradutor não usa a rima”603 para, em seguida, concluir afirmando que com aqueles
oito poemas Machado de Assis estaria anunciando “[...] um gosto poético muito bem cuidado
(rebuscado), de flores preciosas que exalam um perfume raro. A tradução torna-se
premonição”604.
Ishimatsu, em The poetry of Machado de Assis, assim como Massa sugere em alguns
momentos, viu um Parnasianismo avant la lettre em Falenas, particularmente na “Lira
chinesa”. Dentre as características elencadas na obra para justificar a afirmação estão a “dicção
600
MACHADO, Júlio César. “Falenas, do poeta brasileiro Machado de Assis” In: MACHADO, U. (Org.).
Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 81
601
MASSA, 2008, p. 82
602
Ibid.
603
Ibid., p. 83
604
MASSA, 2008, p. 83
296
lapidar e versificação variada e cuidadosa”605, embora os temas escolhidos por Machado de
Assis estivessem ainda apegados, na opinião da autora, aos temas dos outros poemas do volume,
particularmente o amor visto positivamente – de fato, cinco das oito composições da “Lira
chinesa” foram retiradas da parte do Livre de Jade intitulada “Les amoureux” –, mas também
nas demais manifestações que seriam “muito machadianas em seu tom irônico e pessimista”606.
Embora não possa haver dúvidas de que Machado de Assis consultou as versões de
Judith Gautier, Marta Pacheco Pinto sugere que ele pudesse ter consultado os textos em outro
suporte que não o livro:
Embora o empréstimo ou circulação de livros entre amigos fosse, na altura, uma
prática comum, é plausível supor que Machado tivesse contactado com as versões
francesas através da sua leitura em periódicos e não propriamente no livro de Judith
Gautier, o que justificaria, de igual modo, a seleção de poemas que imita. Até à data
não encontrei informação que sustentasse esta hipótese607.
De fato, alguns poemas que viriam a compor a “Lira chinesa” já haviam sido objeto de
publicação anterior na França. Foi possível verificar, por exemplo, que dentre as versões da
“Lira chinesa” de Machado de Assis, o texto-fonte de “Coração triste falando ao sol” já estava
na primeira versão das “Variations” de Gautier, publicada em janeiro de 1864, enquanto os
textos-fonte de “O poeta a rir” e “As flores e os pinheiros” aparecem pela primeira vez nas
“Variations” publicadas também na Revue L’Artiste, em julho de 1865. Considerando que ainda
faltaria encontrar uma outra fonte além do Livre de Jade para os outros cinco textos da “Lira
chinesa”, a hipótese mais provável ainda é a que de Machado trabalhou a partir do livro de
Gautier. Esta hipótese é reforçada pelo fato de que há um anúncio da venda do Livre de Jade
pela Livraria Garnier no Rio de Janeiro em maio de 1868, conforme mencionado anteriormente,
além do fato de que o próprio Machado de Assis indica o livro como sua fonte. O contrato para
a publicação de Falenas só foi assinado um ano mais tarde, maio de 1869608. Isso significa que
Machado de Assis teve cerca de um ano para compor as versões que vieram a fazer parte da
“Lira chinesa”, seja por ter possuído o livro em algum momento ou por empréstimo de algum
amigo.
Um dos amigos que intermediou o contato de Machado de Assis com o oriente, segundo
Jean-Michel Massa (2001), foi Artur de Oliveira, que apresentou Machado “[...] a um tipo de
obra que certamente não lhe era familiar. Artur de Oliveira possuía em sua biblioteca um certo
605
ISHIMATSU, 1984, p. 93, tradução nossa. No original: “lapidary diction and careful and varied versification”.
Ibid., p. 93-94, tradução nossa. No original: “very Machadian in their pessimistic, ironic tone”.
607
PINTO, op. Cit., p. 96
608
MASSA, 2009, p. 504
606
297
número de livros do campo do Oriente e do Extremo-Oriente que foram dados a Machado de
Assis pela viúva do falecido”609. Todavia, a dúvida permanece: Arthur de Oliveira, embora
tenha conhecido e travado amizade com Théophile Gautier e sua filha, vem a falecer somente
em 1882, enquanto em 1867 contava apenas 16 anos, período anterior, portanto, à sua passagem
pela Europa, de onde traria as novidades parnasianas, sendo que seu retorno ao Brasil, em 1872,
só se dá dois anos após a publicação de Falenas. Por isso, ainda parece mais plausível acreditar
que Machado de Assis teve contato com o Livre de Jade que, em sua primeira edição, não
possuía nenhum paratexto que pudesse desfazer os equívocos cometidos pelo nosso poetatradutor na nota que acompanha seus poemas.
Feitas essas considerações, veremos como se saiu Machado de Assis ao compor a sua
“Lira chinesa”. Um dos quesitos mais particulares e comum às versões de Machado é ter
devolvido os textos à forma poética, já que as versões francesas estão, nas palavras do próprio,
em “simples e corrente prosa”. Como se trata de poesia, a primeira pergunta que se apresenta é
se a forma poética escolhida por Machado – ainda que varie de uma versão a outra – teria
alguma similaridade ou relação com as formas poéticas chinesas que ele não conhecia,
justamente porque traduziu por intermédio de outra tradução em prosa.
Caberia, então, nos perguntarmos sobre quais teriam sido as formas poéticas
encontradas na poesia da Dinastia Tang, de onde supostamente vieram sete das oito versões de
Machado de Assis. A resposta encontramos na introdução do volume Antologia da poesia
clássica chinesa: Dinastia Tang (2013), assinada por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. Os
tradutores informam que o poema daquela época “[...] é estruturado sobre um padrão onde
predominam os versos de cinco ou de sete sílabas: se os há de metro menor, serão ‘cortes’,
interrupções, não aleatórias, mas com dimensões apropriadas à estrutura global da composição”
610
. Para as traduções do volume, explicam que escolheram verter as “[...] métricas dos originais
em cinco sílabas para frases em decassílabos ou versos de nove sílabas. Os de sete sílabas para
doze ou onze sílabas”611, escolha que não seria arbitrária: “[...] se quantificarmos os morfemas
nos versos chineses [...] chegaremos aproximadamente a uma duplicação silábica em português
[...]. Interessante o fato de que, justamente, o verso clássico português por excelência, conforme
fixado desde Camões, é o decassílabo”612.
609
MASSA, Jean-Michel. “A biblioteca de Machado de Assis”. In: JOBIM, José Luis (Org.). A biblioteca de
Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, p. 25-26.
610
PORTUGAL, Ricardo Primo; XIAO, Tan (Orgs). Antologia clássica chinesa: Dinastia Tang. São Paulo:
Editora Unesp, 2013, p. 36
611
PORTUGAL; XIAO, 2013, p. 37
612
Ibid.
298
Ora, esse é justamente o metro empregado regularmente por Machado de Assis na
maioria das peças que compõem a da “Lira chinesa”, conforme anotado na edição crítica das
Poesias completas:
I – Coração triste falando ao sol – Rimas alternadas em 3 quadras. Metro decassílabo.
II – A folha do salgueiro – No mesmo metro, associado ao heroico quebrado, 3
quadras e 3 dísticos.
III – O poeta a rir – Duas quadras simétricas, idênticas à da peça anterior. Versos
brancos.
IV – A uma mulher – Decassílabos e heroicos quebrados alternando-se em 4 quadras.
Não há rima, sendo o efeito sonoro obtido através de proparoxítonos no final do 2º e
4º versos.
V – O imperador – Em versos brancos, 5 quadras assimétricas, ainda na mesma
medida das peças anteriores.
VI – O leque – Três estrofes assimétricas quanto à medida e à disposição de rimas.
Ao todo, 19 versos.
VII – As flores e os pinheiros – Da mesma estrutura da peça IV, 4 quadras. Rimas
alternadas.
VIII – Reflexos – Composição de 4 quadras com os 3 primeiros versos em redondilha
maior e o último, tetrassílabo; rimas alternadas613.
As exceções ficam por conta de “Reflexos” e “Coração triste falando ao sol”, composto
em versos alexandrinos, e não em decassílabos como se lê nas anotações da edição crítica. É
certo que as escolhas formais de Machado de Assis estão solidamente ancoradas na tradição da
versificação portuguesa e estão perfeitamente de acordo com a sua poesia e a poesia de seu
tempo. Todavia, é interessante notar que essas escolhas aproximam, mais do que afastam, as
escolhas do poeta brasileiro da poética chinesa.
A organização dada aos poemas da “Lira chinesa” quando editadas as Poesias completas
ressalta essas diferenças métricas. A ordem passa de I-II-III-IV-V-VI-VII, na edição de 1870,
para III-IV-V-VI-II-VII-VIII-I na edição preparada para publicação em 1901. Na nova
organização, “Coração triste falando ao sol” vem por último, logo após “Reflexos”, de forma
que as seis primeiras peças, mais semelhantes entre si do ponto de vista métrico, fiquem juntas,
e as demais, que apresentam metros diferentes, aparecem ao fim. Além disso, o tom mais
lânguido e melancólico de “Coração triste falando ao sol” parece mais adequado para encerrar
a “Lira chinesa” do que o leve e suave “Reflexos”. Apesar de o conteúdo dos poemas ter
permanecido inalterado, comentaremos os poemas de Machado na ordem em que aparecem nas
Falenas, o que representa o estágio de maturidade do autor naquele momento. Serão levados
em conta, como não poderia deixar de ser, os comentários feitos anteriormente sobre essas
traduções, aos quais acrescentaremos as nossas considerações.
613
ASSIS, 1976, p. 40-41.
299
8.6.1
“Coração triste falando ao sol”
O primeiro poema do conjunto, “Coração triste falando ao sol”, foi atribuído a SuTchon que, segundo Knowlton Jr614 e Guerra615, ninguém soube identificar. Lembremos que
este é um dos primeiros poemas do Livre de Jade a serem publicados na Revue L’Artiste dentre
as “Variations” e, portanto, é quase certo que seja criação independente de Gautier. Esta é a
única peça do conjunto composta inteiramente em alexandrinos clássicos por Machado, em
quadras cujas rimas alternadas brotam naturalmente dos versos, proporcionando uma leitura
agradável. Novamente, os elementos da natureza aparecem como forma de fazer uma analogia
entre os fenômenos naturais e a condição humana. A sombra que a montanha impõe ao vale,
por exemplo, se torna a sombra da tristeza que se abate sobre ele, enquanto confia que o mesmo
sol que derrete o gelo do inverno também amolecerá seu triste coração:
Quadro comparativo 22 – “Coração triste falando ao sol” e “Le cœur triste au soleil”
Coração triste falando ao sol.
(Imitado de Su-Tchon)
Le Cœur Triste au Soleil
Selon Su-Tchon.
No arvoredo sussurra o vendaval do outono,
Deita as folhas à terra, onde não há florir
E eu contemplo sem pena esse triste abandono;
Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair.
LE vent d'automne arrache les feuilles des arbres et les
disperse sur la terre.
Como a escura montanha, esguia e pavorosa
Faz, quando o sol descamba, o vale enoitecer,
A montanha da alma, a tristeza amorosa,
Também de ignota sombra enche todo o meu ser.
Transforma o frio inverno a água em pedra dura,
Mas torna a pedra em água um raio de verão;
Vem, ó sol, vem, assume o trono teu na altura,
Vê se podes fundir meu triste coração.
Je les regarde s'envoler sans regret, car seul je les ai vues
venir, et seul je les vois partir.
La tristesse projette son ombre sur mon cœur, comme les
hautes montagnes font la nuit dans la vallée.
Les souffles d'hiver changent l'eau en pierre brillante ;
mais au premier regard de l'été elle redeviendra cascade
joyeuse.
Quand l'été sera de retour, j'irai m'asseoir sur la plus haute
roche, pour voir si le soleil fera fondre mon cœur.
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
Na avaliação de Knowlton Jr. “o facto de se apostrofar o sol, aqui, trai o ponto de vista ocidental
de Machado de Assis; ao mesmo tempo, transmite uma qualidade e um poder indiscutíveis”616.
Minimizaremos o “ponto de vista ocidental de Machado de Assis” nesta ocasião porque
614
KNOWLTON Jr., 1995, p. 95
GUERRA, J. A. de J. “A Lira chinesa de Machado de Assis”. Revista de Cultura, Macau, n.22, II série, janmar 1995, p. 97
616
KNOWLTON JR., Op. Cit., p. 94
615
300
entendemos que o processo de tradução é perfeitamente compatível com tais resultados. O que
deve importar é o resultado final do trabalho de Machado de Assis que, neste caso, é memorável
porque eleva o texto de Gautier a um nível poético não encontrado no texto-fonte, como nos
versos finais, “Vem, ó sol, assume o teu trono na altura, / Vê se podes fundir meu triste
coração”, em que os alexandrinos de Machado de Assis soam muito mais intensos do que a
formulação prosaica de Gautier, “Quand l’été sera de retour, j’irai m’asseoir sur la plus haute
roche, pour voir si le soleil fera fondre mon cœur” (“Quando o verão retornar, sentar-me-ei
sobre a mais alta rocha, para ver se o sol fundirá meu coração”).
8.6.2 “A folha do salgueiro”
A segunda peça do conjunto, “A folha do salgueiro”, também foi retirada de “Les
amoureux” e é atribuída a Tchan-Tiou-Lin por Gautier. Knowlton Jr. acredita tratar-se de Chang
Chiu-Ling (), que viveu entre 673-740617. A romanização de Guerraxlviii na identificação
da fonte é diferente, mas acreditamos tratar-se do mesmo poeta, já que as datas coincidem,
apesar da incerteza na data de nascimento: “Parece tratar-se de Tyão Keuleq (672-740)”618. Na
Antologia da poesia clássica chinesa o poeta é identificado com a romanização Zhang Jiuling
(678-740), e considerado “poeta muito prestigiado em seu tempo”, um período “marcado por
um grande florescimento da poesia”619.
“A folha do salgueiro”, carregada pela brisa, leva o nome do poeta escrito nela por sua
amada, da sua casa à beira do rio até o barco dele, enquanto explica os motivos de seu amor
pela moça, pela brisa e pela folha que traz seu nome:
Quadro comparativo 23 – “A folha do salgueiro” e “La feuille de saule”
A folha do salgueiro
(Tchan-Tiú-Lin)
La Feuille de Saule
Selon Tchan-Tiou-Lin.
Amo aquela formosa e terna moça
Que, à janela encostada, arfa e suspira;
Não porque tem do largo rio à margem
Casa faustosa e bela.
La jeune femme qui rêve accoudée à sa fenêtre, je ne
l'aime pas à cause de la maison somptueuse qu'elle
possède au bord du Fleuve Jaune ;
Amo-a, porque deixou das mãos mimosas
Verde folha cair nas mansas águas.
Amo a brisa de leste que sussurra,
617
KNOWLTON JR., 1995, p. 89
GUERRA, 1995, p. 97
619
PORTUGAL; XIAO, 2013, p. 238
618
Mais je l'aime parce qu'elle a laissé tomber à l'eau une
petite feuille de saule.
301
Não porque traz nas asas delicadas
O perfume dos verdes pessegueiros
Da oriental montanha.
Je n'aime pas la brise de l'est parce qu'elle m'apporte le
parfum des pêchers en fleurs qui blanchissent la
Montagne Orientale ;
Amo-a porque impeliu coas tênues asas
Ao meu batel a abandonada folha.
Mais je l'aime parce qu'elle a poussé du côté de mon
bateau la petite feuille de saule.
Se amo a mimosa folha aqui trazida,
Não é porque me lembre à alma e aos olhos
A renascente, a amável primavera,
Pompa e vigor dos vales.
Et la petite feuille de saule, je ne l'aime pas parce qu'elle
me rappelle le tendre printemps qui vient de refleurir ;
Amo a folha por ver-lhe um nome escrito,
Escrito, sim, por ela, e esse... meu nome.
Mais je l'aime parce que la jeune femme a écrit un nom
dessus avec la pointe de son aiguille à broder, et que ce
nom, c'est le mien.
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
Ao comentar esta versão de Machado de Assis, Knowlton Jr. ressalta os elementos que o poeta
carioca deixa de incluir em seu poema, como a referência explícita ao Rio Amarelo (“Fleuve
Jaune”, na versão de Gautier), o segundo maior rio da China, e à “Montagne Orientale” que,
grafada em maiúsculas no texto francês, sugere um lugar preciso, e não simplesmente uma
“oriental montanha”620. Talvez o nosso tradutor não soubesse, mas a Grande Montanha Oriental
é uma das cinco montanhas sagradas no taoísmo chinês. Dentre as cinco montanhas sagradas,
a Grande Montanha Oriental é a que está posicionada mais ao leste associando-se ao nascer do
sol e à renovação. Outra omissão da tradução de Machado de Assis está no parágrafo final da
versão de Gautier: “A utilização de uma agulha de bordar para escrever o nome do poeta é um
detalhe do poema chinês, tal como foi registrado por Mademoiselle Gautier. O mesmo detalhe
não aparece na versão portuguesa;”621.
É verdade que a omissão dos topônimos e o detalhe da agulha de bordar trazem alguns
prejuízos ao poema. O Rio Amarelo à margem do qual a jovem mora numa “casa faustosa”,
que se torna “largo rio” na tradução de Machado de Assis, remete à fertilidade e,
consequentemente, à riqueza, já sugerida pelo adjetivo que acompanha a residência da moça.
Esses elementos importam porque realçam que não é por isso que ele a ama, mas porque
mandou a folha pelas águas. O mesmo se pode dizer da “Montagne Orientale”. Por outro lado,
Machado reforça que a brisa que traz o “perfume dos verdes pessegueiros” vem de leste, do
lado da montanha oriental. Assim, um leitor mais atento poderia associar a brisa também ao
nascer do sol e à renovação. Outro elemento relevante neste trecho, talvez não observado por
Knowlton Jr., é o fato de que os tais pessegueiros “blanchissent la Montagne Oriental”
(“embranquecem a Montanha Oriental”), sugerindo que estão na primavera devido às flores
620
621
KNOWLTON JR., 1995, p. 90
Ibid.
302
branco-róseas dos pessegueiros, estação também associada ao nascimento e à renovação da
vida, referência que Machado inclui na sua tradução e que, por isso mesmo, demonstra que na
recriação poética há compensações. Quanto à agulha de bordar com que a jovem escreve o
nome, a ferramenta em si parece ser de menor consequência do que o objeto em que o nome é
escrito, a folha do salgueiro, árvore associada à imortalidade na cultura chinesa, mas também
comumente utilizada como metáfora para tristeza e despedida622.
8.6.3 “O poeta a rir”
O terceiro poema da “Lira chinesa” é “O poeta a rir”, transcrito abaixo ao lado da versão
francesa de Judith Gautier (1867):
Quadro comparativo 24 – “O poeta a rir” e “Un poète rit dans son bateau”
O poeta a rir
(Han-Tiê)
Un poète rit dans son bateau
Selon Ouan-Tié.
Taça d’água parece o lago ameno;
Têm os bambus a forma de cabanas,
Que as árvores em flor, mais altas cobrem
De verdejantes tetos.
Le petit lac pur et tranquille ressemble à une tasse remplie
d'eau.
As pontiagudas rochas entre flores,
Dos pagodes o grave aspecto ostentam...
Faz-me rir ver-te assim, ó natureza,
Cópia servil dos homens.
Sur ses rives, les bambous ont des formes de cabanes, et les
arbres, au-dessus, font des toitures vertes.
Et les grands rochers pointus, posés au milieu des fleurs,
ressemblent à des pagodes.
Je laisse mon bateau glisser doucement sur l'eau, et je souris
de voir la nature imiter ainsi les hommes.
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
Knowlton Jr. diz não ter conseguido identificar o poeta chinês a quem o poema, que
considera “breve e impressionante”, é atribuído623. É possível que a romanização de Gautier
tenha sido falhaxlix, ou mesmo que o texto seja pura criação dela. O crítico avalia, ainda, que
“[...] Machado preservou quase tudo o que era essencial no poema, exceto o fato de o poeta
estar a rir no seu barco”624. Todavia, é certo que o riso é evocado pelo título do poema, de
maneira que no poema de Machado os versos explicam por que o poeta estava “a rir”. É verdade
que Machado de Assis suprime o trecho “Je laisse mon bateau glisser doucement sur l’eau”
(“Deixo meu barco deslizar suavemente sobre a água”), omissão que reflete aquela do título: o
622
PORTUGAL, Ricardo. “Poesia clássica chinesa – Dinastia Tang: princípios e roteiro de uma antologia”. In:
Cadernos de Literatura em tradução, n. 14 (2013), p. 130.
623
KNOWLTON JR, 1995, p. 85
624
Ibid., p. 86
303
poeta de Machado está “a rir”, mas não “em seu barco”, como no título francês. Logo, faz
sentido a não ter aproveitado aquele trecho do poema francês.
O poema é uma breve descrição de uma cena da natureza que, nas formas observadas
pelo poeta, parecem criações humanas – o pequeno lago se torna uma taça d’água, os bambus
lembram cabanas cujos tetos são as copas das árvores, as rochas se tornam templos orientais –
e isso faz o poeta rir, porque a natureza, supostamente, deveria impressionar o homem no seu
aspecto selvagem, errático. No entanto, o homem, o poeta, só consegue observar aqueles
elementos que o fazem rir porque é ele quem os traz consigo. A forma escolhida por Machado,
os versos concisos, imprimem um ritmo e tom neoclássico, quase parnasiano, ao poema, o que
o torna particularmente belo e certamente mais interessante do que a versão de Gautier.
8.6.4 “A uma mulher”
A próxima peça recebeu um título mais sintético na versão de Machado de Assis, “A
uma mulher”, enquanto o título francês diz “À mais bela mulher do barco de flores”:
Quadro comparativo 25 – “A uma mulher” e “A la plus belle femme du bateau des Fleurs”
A uma mulher
A La Plus Belle Femme du Bateau des Fleurs
(Tchê-Tsi)
Selon Tché- Tsi.
Cantigas modulei ao som da flauta,
Da minha flauta d’ébano;
Nelas minh’alma segredava à tua
Fundas, sentidas mágoas.
Cerraste-me os ouvidos. Namorados
Versos compus de júbilo,
Por celebrar teu nome, as graças tuas,
Levar teu nome aos séculos.
Olhaste, e, meneando a airosa frente,
Com tuas mãos puríssimas,
Folhas em que escrevi meus pobres versos
Lançaste às ondas trêmulas.
Je t’ai chanté des chansons en m’accompagnant de ma flûte
d’ébène, des chansons où je te racontais ma tristesse ; mais
tu ne m’as pas écouté.
J’ai composé des vers où je célébrais ta beauté ; mais en
balançant la tête tu as jeté dans l’eau les feuilles glorieuses
ou j’avais tracé des caractères.
Alors je t’ai donné un gros saphir, un saphir pareil au ciel
nocturne, et, en échange du saphir obscur, tu m’as montré
les petites perles de ta bouche.
Busquei então por encantar tu’alma
Uma safira esplêndida,
Fui depô-la a teus pés...tu descerraste
Da tua boca as pérolas.
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
O poema é atribuído a Tchê-Tsi, mas na opinião de Knowlton Jr. “corresponde a um
atribuído a Wang Chi, intitulado The jewel (A jóia) nas versões inglesas, publicado no Chinese
304
love poems e no Chinese love poems from most ancient to modern times, de D.J. Klemer”625. A
identificação sugerida não é inequívoca, e é com ressalvas que Guerra aceita a tese: “Duvido
que se trate do poeta Wão Tsec, do séc. VII, se bem que este deixou uma poesia intitulada ‘The
jewel’ nas versões inglesas”626. Knowlton Jr. sugere ainda que as escolhas tradutórias de Judith
Gautier ocultam um dado importante do poema: o “barco de flores”, tradução literal de “Hua
ch’uan (
)”, seria na verdade um “bordel flutuante”. A leitura é corroborada no ensaio de
Stephen Reckert (1993), “A fono-estilística de Camilo Pessanha”, em que, comentando um
trabalho acadêmico, deixa a pergunta: “quem havia, na Lisboa de há mais de trinta e cinco anos,
que explicasse a uma jovem aluna da Faculdade de Letras que o delicado eufemismo chinês
‘barco de flores’ designava um bordel flutuante?”627.
É perfeitamente compreensível, portanto, que Machado de Assis também não
percebesse a importância da imagem do “barco de flores”. Essa omissão, e a troca de “où j’avais
tracé des caractères” por “Folhas em que escrevi meus pobres versos”, apagam os traços
orientais do poema, o que leva à avaliação de Knowlton Jr, que considera este o “menos
sugestivo da cultura chinesa”628. Some também o contraste entre o azul “pareil au ciel nocturne”
da safira, que se torna “esplêndida”, e o tom das pérolas a que são comparados os dentes da
mulher. Fica, não obstante, a sugestão de que a figura feminina a quem o poema é dirigido só
se deixa agradar pelo bem material – a safira – depois de recusar as cantigas na flauta de ébano
e os versos do poeta, o que faz mais sentido quando se tem a informação de que se trata de uma
cortesã. Isso não torna a versão de Machado de Assis menos bela e agradável, embora seja
inegavelmente menos oriental no tratamento do tema do que a de Gautier e tenha mais em
comum com a poesia romântica ocidental do que a clássica chinesa e seja, no tratamento do
tema, nas sugestões e no implícito, muito mais machadiana do que francesa.
8.6.5 “O imperador”
“O imperador”, peça elogiada e comparada à poesia de Heine, como mencionado
anteriormente, é atribuída a um dos mais célebres poetas da Dinastia Tang, Du Fu. Sobre os
625
KNOWLTON JR., 1995, p. 88
GUERRA, 1995, p. 97.
627
RECKERT, Stephen. “A fono-estilística de Camilo Pessanha”. In: Revista Colóquio/Letras. N. 129/130, Jul.
1993, p. 89 (p. 87-96)
628
KNOWLTON JR., Op. Cit., p. 89
626
305
poemas atribuídos a ele no Livre de Jade, Knowlton Jr. cita um estudo de William Hung, que
afirma que dos catorze poemas que lhe foram atribuídos, dois seriam “[...] traduções bastante
adulteradas dos poemas originais”, enquanto os demais seriam fruto da imaginação criativa de
Gautier, chegando a considerar o trabalho dela pseudo-traduções629. Esta peça traduzida por
Machado de Assis seria uma delas. Knowlton Jr. também considera a atribuição de
“L’Empereur” a Du Fu falsa ou espúria, enquanto a outra, “Sur le fleuve Tchou” – “Reflexos”,
na versão de Machado – seria de fato do poeta chinês. O sinólogo Joaquim Guerra concorda
que “L’Empereur” é uma das poesias espúrias, fornecendo mais detalhes: “Dá a impressão que
o Mestre de Judith Walter era de raça e língua Hakka (Xhakca), pois o Livro de jade traz ThouFou, aspirando o apelido do poeta. A aspiração no 6º tom (3º inferior) é típica do Xhakca”630.
Espúria ou não, há muito de Machado de Assis na sua versão:
Quadro comparativo 26 – “O imperador” e “L’empereur”
O imperador
(Thu-Fu)
L’empereur
Selon Thou-Fou
Olha. O Filho do Céu, em trono de ouro,
E adornado com ricas pedrarias,
Os mandarins escuta: — um sol parece
De estrelas rodeado.
Sur un trône d'or neuf, le Fils du Ciel, éblouissant de
pierreries, est assis au milieu des Mandarins ; il semble
un soleil environné d'étoiles.
Os mandarins discutem gravemente
Coisas muito mais graves. E ele? Foge-lhe
O pensamento inquieto e distraído
Pela janela aberta.
Além, no pavilhão de porcelana,
Entre donas gentis está sentada
A imperatriz, qual flor radiante e pura
Entre viçosas folhas.
Pensa no amado esposo, arde por vê-lo,
Prolonga-se-lhe a ausência, agita o leque...
Do imperador ao rosto um sopro chega
De rescendente brisa.
“Vem dela este perfume”, diz, e abrindo
Caminho ao pavilhão da amada esposa,
Deixa na sala olhando-se em silêncio
Os mandarins pasmados.
Les Mandarins parlent gravement de graves choses ; mais
la pensée de l'Empereur s'est enfuie par la fenêtre
ouverte.
Dans son pavillon de porcelaine, comme une fleur
éclatante entourée de feuillage, l’Impératrice est assise au
milieu de ses femmes.
Elle songe que son bien-aimé demeure trop longtemps au
conseil, et, avec ennui, elle agite son éventail.
Une bouffée de parfums caresse le visage de l'Empereur.
« Ma bien-aimée d'un coup de son éventail m'envoie le
parfum de sa bouche; » et l'Empereur, tout rayonnant de
pierreries, marche vers le pavillon de porcelaine, laissant
se regarder en silence les Mandarins étonnés.
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
No livro de Gautier, “L’empereur” pertence à série “Les Amoureux”. A versão de
Machado, todavia, parece ressaltar, com leve ironia, não o relacionamento amoroso, mas o
desapego e a indiferença às coisas mundanas. O imperador deixa pasmados seus mandarins que
629
630
KNOWLTON JR., 1995, p. 86
GUERRA, 1995, p. 96
306
discutem gravemente coisas graves – a repetição do “grave”, também presente no texto francês,
parece sugerir que tenhamos opinião contrária, de que as “coisas graves” na verdade importam
pouco ou nada perto do amor que o imperador tem pela sua esposa – quando abandona a sala
do trono para ir atrás da sua imperatriz, de quem sente o perfume de longe. O acréscimo da
interrogação “E ele?” reforça o ar indiferente do imperador, assim como os adjetivos “inquieto
e distraído”, que sugerem que o imperador estivesse ruminando outras coisas nos seus
estômagos, completamente alheio às “graves” discussões dos mandarins. A reimaginação
poética de Machado de Assis, com seus finos acréscimos, supera o prosaísmo de Gautier,
deixando como legado um belíssimo poema machadiano.
8.6.6 “O leque”
O próximo poema da coleção é “O leque”, atribuído a Tan-Jo-Lu. Knowlton Jr. diz ser
de um poema cuja autoria é de difícil identificação, mas ainda assim sugere ser de “[...] uma
mulher conhecida pelo nome de Pan Chien-yü”631. Joaquim Guerra parece mais seguro quanto
à autoria, e utiliza essa informação para ressaltar o quanto Machado de Assis se enganara ao
dizer que os poetas eram todos contemporâneos, já que este poema “[...] é até anterior à era
cristã! Trata-se duma obra bem conhecida na Literatura Chinesa, com o nome de ‘Tsheo shyen
uyn’, título bem expressivo, que quer dizer: Queixa (Uyn) dum leque (shyen) no Outuno
(tsheo)”632. A peça teria sido escrita por uma Dama Paen Dsiedwe, que a deixou escrita, num
leque de seda, ao Imperador Zdyeqtey (Sintar), quando abandonou o palácio633. Apesar de
escrevem o nome de maneira diferente, acreditamos que Knowlton Jr. e Guerra estejam falando
da mesma pessoa. Stocès, por outro lado, apresenta uma hipótese que consideramos mais
plausível: “L’éventail” teria sido composto a partir da leitura de comentários que o sinólogo e
tradutor d’Harvey-Saint-Denys faz a respeito de um poema no prefácio da sua obra. Este poema
seria o mesmo sugerido por Guerra e Knowlton Jr., e Judith Gautier, “[...] sem ter travado
contato com o texto original trabalha a partir de algumas notas”634.
“O leque” é um dos poemas com forma mais irregular das peças da “Lira chinesa”.
Knowlton Jr. avalia que houve “[...] fidelidade na interpretação, figurando na versão portuguesa
631
KNOWLTON JR., 1995, p. 83
GUERRA, 1995, p. 96
633
Ibid.
634
STOCÈS, 2006, p. 341, tradução nossa. No original: “n’ayant pas eu de contact avec le texte original brode à
partir de ce quelques notes”.
632
307
uma escolha de palavras que é devida ao desejo do poeta de encontrar rimas adequadas”635, o
que pode ser observado a seguir:
Quadro comparativo 27 – “O leque” e “L’éventail”
O leque
(De Tan-Jo-Lu)
L’éventail
Selon Tan-Jo-Su.
Na perfumada alcova a esposa estava,
Noiva ainda na véspera. Fazia
Calor intenso; a pobre moça ardia
Com fino leque as faces refrescava.
Ora, no leque em boa letra feito
Havia este conceito:
La nouvelle épouse est assise dans la Chambre Parfumée,
où l’époux est entré la veille pour la première fois.
“Quando, imóvel o vento e o ar pesado,
Arder o intenso estio,
Serei por mão amiga ambicionado;
Mas volte o tempo frio,
Ver-me-eis a um canto abandonado”.
Lê a esposa este aviso, e o pensamento
Volve ao jovem marido.
“Arde-lhe o coração neste momento
(Diz ela) e vem buscar enternecido
Brandas auras de amor. Quando mais tarde
Tornar-se em cinza fria
O fogo que hoje lhe arde,
Talvez me esqueça e me desdenhe um dia.”
Elle tient à la main son éventail où sont écrits ces
caractères : « Quand l’air est étouffant et le vent
immobile, on m’aime et l’on me demande la fraîcheur ;
mais quand le vent se lève et quand l’air devient froid, on
me dédaigne et l’on m’oublie. »
En lisant ces caractères, la jeune femme songe à son
époux, et déjà des pensées tristes l’enveloppent.
« Le cœur de mon époux est maintenant jeune et brûlant
; mon époux vient près de moi pour rafraîchir son cœur;
« Mais lorsque son cœur sera froid et tranquille,
il me dédaignera peut-être et m’oubliera. »
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
Na maneira como Machado de Assis organiza estes poemas, “O leque” articula-se bem
com “O imperador”, em que pese a omissão do uso do leque no poema atribuído a Du Fu. Em
ambos, o leque é um instrumento que acaba por ligar os dois amantes. Se neste o motivo é a
mensagem inscrita no objeto, mensagem que leva a jovem esposa a associá-la à possibilidade
do seu marido deixá-la quando sua presença não mais refrescar o coração dele, naquele é com
o leque que a imperatriz envia seus perfumes ao seu imperador, que em seguida vai ao seu
encontro. Em ambos há uma certa materialidade que acaba por ligar os amantes: neste, o leque
e a mensagem inscrita nele cumprem o papel de fazer a jovem esposa associar a mensagem do
leque à própria realidade, o objeto material levando-a ao pensamento abstrato; naquele, os
pensamentos abstratos e distantes do imperador são trazidos de volta à materialidade com o
perfume da imperatriz que chega até ele pelo vento criado pelo leque. Em ambos os casos temos
peças memoráveis.
635
KNOWLTON JR., Op. Cit., p. 85
308
8.6.7 “As flores e os pinheiros”
O poema seguinte, “As flores e os pinheiros”, é o único que, de fato, pode ser atribuído
a um poeta contemporâneo de Machado de Assis e Judith Gautier, já que se trata de um texto
que foi supostamente escrito por seu mestre no idioma oriental, Tin-Tun-Ling, a quem o livro
é dedicado:
Quadro comparativo 28 – “As flores e os pinheiros” e “Les petities fleurs se moquent des graves sapins”
As flores e os pinheiros
(Tin-Tun-Sing)
Les petites fleurs se moquent des graves sapins
Selon Tin-Tun-Ling.
Vi os pinheiros no alto da montanha
Ouriçados e velhos;
E ao sopé da montanha, abrindo as flores
Os cálices vermelhos.
Sur le haut de la montagne, les sapins demeurent sérieux
et hérissés ; au bas de la montagne, les fleurs éclatantes
s’étalent sur l’herbe.
Contemplando os pinheiros da montanha,
As flores tresloucadas
Zombam deles enchendo o espaço em torno
De alegres gargalhadas.
Quando o outono voltou, vi na montanha
Os meus pinheiros vivos,
Brancos de neve, e meneando ao vento
Os galhos pensativos.
En comparant leurs fraîches robes aux vêtements
sombres des sapins, les petites fleurs se mettent à rire.
Et les papillons légers se mêlent à leur gaieté.
Mais, un matin d’automne, j’ai regardé la montagne : les
sapins, tous habillés de blanc, étaient là, graves et
rêveurs.
J’ai eu beau chercher au bas de la montagne, je n’ai pas
vu les petites fleurs moqueuses.
Volvi o olhar ao sítio onde escutara
Os risos mofadores;
Procurei-as em vão; tinham morrido
As zombeteiras flores.
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
Na avaliação de Knowlton Jr., Machado de Assis “[...] tende a ser fiel ao sentido geral,
expressando claramente os seus pensamentos, fixando-se menos na sugestão do que
Mademoiselle Gautier. Não há dúvidas de que as duas versões revelam da parte dos autores
mérito artístico e mestria no uso da língua”636. Ser “fiel ao sentido geral”, aqui, parece menos
importante do que ser capaz de reimaginar poeticamente o texto de forma que ele ressurja como
um objeto estético que encerra em seus versos a mensagem e a moral do poema francês. Este é
um poema altamente alegórico sobre o que é perene, representado pelos pinheiros que
sobrevivem às estações, e o que é efêmero, como a beleza e a leveza das flores e a vida curta
das borboletas. Se as flores, insufladas por sua beleza, riem e zombam da aparência grave e
velha dos pinheiros, o seu riso é breve e sua beleza logo se vai, com o fim da primavera. Há,
636
KNOWLTON JR., 1995, p. 83
309
portanto, uma crítica àqueles que se deixam iludir por coisas efêmeras, desdenhando do que, na
verdade, é capaz de perdurar, lição que poderia ser aplicada a inúmeras situações da vida.
8.6.8 “Reflexos”
O último poema da “Lira chinesa”, “Reflexos”, é o único que foi reconhecido por
Knowlton Jr. 637 e Guerral como tendo origem em um texto de Du Fu (
), poeta da Dinastia
Tang que viveu entre 712-770. Na nota biográfica sobre o autor na Antologia da poesia clássica
chinesa: Dinastia Tang, somos informados de que Du Fu é considerado pela tradição “como o
maior poeta da literatura chinesa, juntamente com Li Bai”, cuja poesia “[...] se destaca por um
realismo marcado pela materialidade, o aspecto físico do mundo. Sua descrição dos aspectos
sensíveis chega, por vezes, perto do escatológico”638. A poesia de Du Fu também é marcada
pela compaixão, embora seja nas aquisições formais que o poeta demonstra sua força639.
Em “Reflexos”, a cena desenhada é a do poeta em seu pequeno barco, à noite, vendo na
água o reflexo da lua e das nuvens. A analogia feita aqui é a do coração que copia as graças da
amada assim como a água reflete o firmamento:
Quadro comparativo 29 – “Reflexos” e “Sur le fleuve Tchou”
Reflexos
(Thu-Fu)
Sur le fleuve Tchou
Selon Thou-Fou
Vou rio abaixo vogando
No meu batel e ao luar;
Nas claras águas fitando,
Fitando o olhar.
MON bateau glisse rapidement sur le fleuve, et je
regarde dans l'eau.
Das águas vejo no fundo,
Como por um branco véu,
Intenso, calmo, profundo,
O azul do céu.
Le ciel est aussi dans le fleuve; quand un nuage passe
sur la lune, je le vois passer dans l'eau ;
Nuvem que no céu flutua,
Flutua n’água também;
Se a lua cobre, à outra lua
Cobri-la vem.
Alors je songe que ma bien-aimée se reflète ainsi dans
mon cœur.
Da amante que me extasia,
Assim, na ardente paixão,
As raras graças copia
Meu coração.
637
KNOWLTON JR., 1995, p. 87
PORTUGAL; XIAO, 2013, p. 101
639
Ibid.
638
Au-dessus est le grand ciel, où se promènent les nuages.
Et je crois que mon bateau glisse sur le ciel.
310
Fonte: Assis (1976); Walter (1867)
Knowlton Jr. é menos elogioso neste caso do que nos demais: “[...] Apesar de o
pensamento deste poema ser bastante claro, os versos portugueses parecem sensivelmente
menos livres do que os franceses”640. Além disso, sua crítica também se estende ao tom que
Machado de Assis escolhe para seu texto, afastando-se do tom do poema francês: “[...] esta
alteração de tom não é um defeito da versão portuguesa, contudo tenho a sensação de que
Machado de Assis nas suas outras versões captou não só as ideias como também o humor geral
do original francês”641. De fato, o poema em prosa de Gautier é bastante claro, simples e direto,
enquanto o poema de Machado de Assis parece mais tributário da tradição poética ocidental do
que da oriental, resultado, talvez, do metro utilizado e de sua busca por rimas que servissem à
forma que pretendeu dar ao poema.
Dentre as omissões deste poema, a primeira que se destaca é a referência a um rio
específico na versão de Gautier que Machado, assim como nos casos anteriores, elimina. O
“fleuve Tchou” a que Gautier se refere parece tratar-se do Zhu Jiang (
), também conhecido
como Rio das Pérolas, que atravessa, dentre diversas outras, a última província em que Du Fu
viveu: Hunan. A manutenção do nome talvez desse um ar mais oriental ao poema de Machado,
tornando-o mais consistente com a proposta de uma “Lira chinesa”. Outra omissão que nos
parece relevante é a do trecho “Et je crois que mon bateau glisse sur le ciel”, belíssima imagem
em que o poeta, depois de dizer que a água reflete o céu noturno, crê navegar no próprio
firmamento, para então fazer a analogia entre o reflexo na água do céu, da lua e das nuvens e a
de sua amada em seu coração. Ainda assim, já que não estamos julgando as versões de Machado
de Assis unicamente sob os termos dos textos em que elas se baseiam, “Reflexos” é um
belíssimo poema que nos mostra muito da força e criatividade poética de Machado e dispensa
o texto francês.
Cecília Meireles (1996), que também criou uma versão deste poema, escolhe o caminho
da prosa poética e obtém resultado admirável, mantendo a imagem do barco que parece navegar
no céu, excluída por Machado:
Minha barca desliza rápida. Contemplo o rio. Há nuvens passando pelo céu.
A água é também uma noite clara. Quando uma nuvem escorrega por cima da lua,
vejo-a escorregar no rio e parece-me que vago em pleno céu.
640
641
KNOWLTON JR., 1995, p. 88
Ibid., p. 88
311
Penso em minha amada, que se reflete assim no meu coração642.
Talvez a “Lira chinesa” de Machado de Assis não seja tão oriental quanto supôs seu
autor. Para Knowlton Jr., a ocidentalização de Machado é bastante transparente nas suas
versões, enquanto as de Judith Gautier deixariam ao leitor mais liberdade para a imaginação643.
Isso não é necessariamente uma crítica negativa, mas um elogio, pois nos sugere que as oito
peças desta parte de Falenas nos mostraram mais sobre o poeta que foi Machado de Assis e seu
modo particular de lidar com a reimaginação poética de textos estrangeiros do que sobre os
textos-fonte em que se inspiraram. Os poemas do Livre de Jade certamente teriam atraído o
poeta das Falenas pela novidade apresentada, servindo ao propósito de dar fôlego à literatura
brasileira em formação, algo que se deu a partir do processo de tradução e corroborando nossa
tese de que foi com este intuito que Machado traduziu os textos que tão cuidadosamente
escolheu. Pelo trabalho poético, pelos resultados alcançados e pelas novidades introduzidas na
poesia brasileira, não deveria haver dúvida de que esses poemas merecem um lugar de destaque
na produção da poética tradutória de Machado de Assis.
Em A prova do estrangeiro, Antoine Berman apresenta uma leitura de um poema de
Goethe – “Ein Gleichnis” – como símbolo para tradução, que nos parece muito apropriado a
este conjunto de textos a que Machado deu o nome de “Lira Chinesa”:
O poeta colheu as flores dos campos e as carregou para casa. Privadas de seu
solo materno, elas começam a murchar. Ele as coloca então em água fresca e eis que
elas desabrocham de novo: assim se passou comigo quando ouvi, maravilhado, meu
canto na língua estrangeira. Aquele que colhe as flores é o tradutor. Arrancado de
seu solo, o poema corre o risco de perder seu frescor. Mas o tradutor o coloca na taça
fresca de sua própria língua e ele floresce de novo, como se ainda estivesse sobre o
solo materno. Há aí uma maravilha, pois nem o poema, nem as flores estão mais sobre
seu terreno natal. Mesmo que o desabrochar das flores simbolize o que se passa com
o poema na tradução, é o poema na totalidade que é um símbolo. Ou ainda: é a
tradução que é um símbolo. Um símbolo de quê? Seguramente, da maravilha que se
produz todos os dias nas múltiplas translações que constituem o próprio tecido do
mundo – presença, em nossas vidas, dos rostos inumeráveis da metamorfose e da
metempsicose”644.
As flores orientais que vieram a fazer parte da “Lira Chinesa” foram colhidas do vaso de Judith
Walter e posteriormente plantadas em solo brasileiro, onde refloresceram, mas sob o clima
tropical, e já não são mais nem as flores orientais, nem francesas, mas flores brasileiras que
carregam consigo marcas do percurso que percorreram até chegar aqui, tornando-se uma
continuação da vida da obra estrangeira. Com a “Lira Chinesa”, bem como com as demais
642
PO, Li. FU, Tu. Poemas chineses. Trad. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 106
KNOWLTON JR., 1995, p. 93
644
BERMAN, 2002, p. 122
643
312
traduções que observamos até aqui, Machado de Assis demonstra que a tradução é experiência,
ou mais precisamente, como Berman afirma, “[e]xperiência das obras e do ser-obra, das línguas
e do ser-língua. Experiência, ao mesmo tempo, dela mesma, de sua essência. Em outros termos,
no ato de traduzir está presente um certo saber, um saber sui generis”645.
645
BERMAN, 1999, p. 16, tradução nossa, grifos do autor. No original: “Expérience des œuvres et de l’être-œuvre,
des langues et de l’être-langue. Expérience, en même temps, d’elle-même, de son essence. En d’autres termes,
dans l’acte de traduire est présent un certain savoir, un savoir sui generis”.
313
9. Americanas e a “Cantiga do rosto branco”
O terceiro livro de poesias de Machado de Assis, Americanas, publicado em 1875,
embora contenha menos poemas que Falenas ou mesmo Crisálidas, é composto
majoritariamente de longos poemas narrativos. Ao contrário de em Crisálidas e Falenas, as
treze peças de Americanas se organizam em torno de um tema central, adotando o poema
narrativo como principal meio de expressão poética. O volume contém ainda uma
“Advertência” – posteriormente excluída nas Poesias completas – em que o autor explica o seu
projeto: “O título Americanas explica a natureza dos objetos tratados neste livro, do qual excluí
o que podia destoar daquela denominação comum. Não se deve entender que tudo o que aqui
vai seja relativo aos nossos aborígenes”646, e cita como exemplo “Cristã Nova” e “Sabina”, que
se passam no centro da civilização, mas poderíamos incluir pelas mesmas razões “José
Bonifácio”, poema de ocasião em homenagem ao patriarca da independência, ou “A Gonçalves
Dias”, ode ao falecido poeta indianista. Dentre as traduções não aproveitadas no volume, estão
a do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia e a do monólogo de Hamlet que, como o
próprio autor explica, destoariam daquela denominação, motivo pelo qual foram incluídas
posteriormente em Ocidentais. De forma alguma, portanto, o autor pretendia que seu livro fosse
um livro unicamente de um indianismo atrasado, e diríamos até mesmo ser equivocado avaliar
que o autor quisesse mostrar filiação a alguma escola ou movimento, como ele mesmo declara:
Algum tempo, foi opinião que a poesia brasileira devia estar toda, ou quase toda, no
elemento indígena. Veio a reação, e adversários não menos competentes que sinceros,
absolutamente o excluíram do programa da literatura nacional. São opiniões extremas,
que, pelo menos, me parecem discutíveis647.
Machado de Assis está claramente escolhendo uma terceira via, que não nega o elemento
indígena como parte do material de que se possa extrair poesia, mas este elemento, bem como
qualquer outro, não é necessariamente melhor ou pior, nem mais ou menos “brasileiro” ou
“nacional” que os demais. O que o autor está dizendo é que, em suas próprias palavras, “[...]
tudo pertence à invenção poética, uma vez que traga os caracteres do belo e possa satisfazer as
condições da arte”648. Estas palavras ecoam aquelas ditas poucos anos antes no ensaio “Notícia
da atual literatura brasileira: Instinto de Nacionalidade”: “[...] tudo é matéria de poesia, uma
vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe”649. Esta era, portanto,
646
ASSIS, 2009, p. 369
Ibid.
648
Ibid.
649
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1178
647
314
uma opinião que acompanhava o poeta há algum tempo. Natural concluir que o objeto sobre o
qual a poesia versa, seja ele local e presente, ou distante e remoto, é “a parte acessória”: “O
essencial é a alma do homem”650.
A recepção crítica das treze peças escolhidas para compor o volume foi, em geral,
positiva. Uma exceção foi a primeira resenha que o livro recebeu, no mesmo ano da sua
publicação: na “Bibliografia” publicada em 20 de dezembro de 1875 – de possível autoria de
Sílvio Romero – lemos que “[...] o sentimento americano ainda não se apossou de sua alma,
mais subjugada por natureza alheia”651, sem deixar de reconhecer as ressalvas feitas na
“Advertência”. O autor desta primeira resenha conclui suas considerações avaliando que as
poesias de Americanas são “[...] frouxas narrações, cronimetrificadas, quadros sem coloridos
nem vigor [que sonegam] calculada e cruelmente à pátria os frutos que todas as inteligências
vigorosas lhe devem oferecer”652.
Esta opinião diverge um tanto da publicada na “Crônica Bibliográfica” da Gazeta de
Notícias de 11 de janeiro de 1876, assinada pelo pseudônimo “L.”li. Para o autor é desnecessário
saber que se trata de obra de Machado de Assis, porque “[...] ninguém mais no Brasil escreveria
livro igual”, já que a “correta e artística simplicidade de estilo” do poeta atestaria por si só a
autoria da obra, comparando-o a Almeida Garret e a Teófilo Gautier. Ainda assim, o crítico
esperava algo mais “americano” do que Machado ofereceu, algo que “palpitasse nas páginas”,
e não o estilo “demasiado português” que encontrou653. Não obstante, se o leitor prescindir
daqueles quesitos que o crítico considera verdadeiramente americanos (“os pensamentos
virgens como a flora opulenta de nossas selvas”, “as grandes paixões generosas e indômitas
como os leões de nossos ermos”, a “singeleza do dizer primitivo”) tem-se “muita perfeição
digna de eterna glória”. Ou seja, as Americanas de Machado de Assis não eram tão americanas
quanto gostaria o crítico, livro que “[n]ão é o belo, não; mas é o elegante”654.
No ano seguinte, desta vez em um periódico do estado de São Paulo, temos
“Americanas”, crítica publicada no Correio Paulistano de 16 de janeiro de 1876 e de autoria
de Carlos Ferreira. O crítico avalia que
[o] último trabalho do conceituado poeta, se não é uma revelação perfeita do que deve
ser a poesia propriamente dita, é pelo menos muito mais aceitável e crucial do que a
650
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1178
ROMERO, Silvo [?]. “Bibliografia”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da
consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 99
652
Ibid., p. 101
653
ARAÚJO, Ferreira de [?]. “Crônica Bibliográfica”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis:
roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 102
654
Ibid., p. 103
651
315
infeliz tentativa de alguns outros poetas brasileiros que, a pretexto de fazerem poesia
nacional, foram imitando a torto e a direito o gênero quase selvagem iniciado por
Gonçalves Dias655.
Dentre as peças de Americanas, o crítico destaca “Potira”, “Niâni” e “Cristã Nova”, e elogia a
adoção do verso branco, empregado por Machado “[...] com tanto esmero e donaire de forma
que cativa desde logo as boas graças do mais exigente leitor”656. Por fim, o autor considera o
livro “esplêndida novidade”, contente por não ver influência do byronismo já tão presente nos
demais poetas daquela geração.
A última crítica publicada saiu com o título “Americanas” em O Novo Mundo, periódico
publicado em Nova Iorque em agosto de 1876 e de autoria de um dos amigos de Machado de
Assis, Salvador de Mendonça, embora tenha sido publicada sem assinatura. O crítico destaca
“Cristã Nova” dentre as peças do volume e ressalta o “metro rico e fluente” do escritor, a quem
diz que devemos assinalar “um lugar eminente nas letras pátrias”657.
A opinião da crítica mais contemporânea é menos favorável do que as primeiras que o
livro recebeu. O juízo de Ishimatsu, em The poetry of Machado de Assis, revela que a
pesquisadora viu uma certa contradição entre o que o autor apresentou em Americanas e aquilo
que expusera alguns anos antes em seus ensaios críticos:
Embora fosse evidente em seus ensaios de 1870-75 que Machado acreditava que a
poesia brasileira precisava de uma nova direção, sua própria poesia desse período
parece mostrar interesse por uma preocupação tipicamente romântica, o conceito de
nacionalismo literário.658
Ainda assim a pesquisadora reconhece que a tese dela deve ser vista com reservas e perfilha a
ideia de que Machado parece colocar em prática o tipo de poesia que ele defendia no ensaio
“Notícia atual da literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade”, onde aponta esses novos
caminhos, colocando em diálogo o novo e o antigo. Em Americanas a pesquisadora reconhece
haver o emprego criterioso das formas clássicas da língua portuguesa – por que foi criticado,
como vimos anteriormente – aliado a temas de cunho não necessariamente nacional, mas
americano, aos quais são dados um tratamento quase neoclássico. Por fim, a pesquisadora
conclui que “[...] as peças em Americanas tem, em sua maior parte, um tom muito sombrio, e
655
FERREIRA, Carlos. “Americanas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da
consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 103-4
656
Ibid., p. 104
657
MENDONÇA, Salvador de. “Americanas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da
consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 105
658
ISHIMATSU, 1984, p. 99, tradução nossa. No original: “Although it was evident from his essays from 187075 that Machado believed that Brazilian poetry was in need of a new direction, his own poetry from this period
seems to show an interest in a typically Romantic preoccupation, the concept of literary nationalism”.
316
todos, exceto um dos poemas narrativos, são escritos em versos de dez sílabas não-rimados, o
metro tradicionalmente apropriado para assuntos de natureza séria” e considera a maioria dos
poemas “[...] tediosos e não convincentes, de dicção um tanto arcaica”659.
Mais recentemente, a pesquisa de Cláudio Murilo Leal descreve Americanas como um
conjunto de poemas cujo “[...] denominador comum [...] é o gradual abandono da veia subjetiva
e confessional”, em que se transfere a inspiração lírico-amorosa “[...] para as tensões da ação
dramática e do sentimento trágico”660. Leal também destaca o trabalho de linguagem poética
em Americanas, mas com um viés mais elogioso:
Machado não se exime de manejar uma linguagem impregnada de palavras eruditas e
construções não usuais. Ao contrário do que se possa imaginar, este apuro e até
anacronismo lexical aguça a curiosidade do leitor, despertada para o desvendamento
do significado de um vocabulário raro, a par de que esse procedimento é capaz de
nobilitar o tom da narração poética661.
Esse pendor por poemas narrativos já foi associado ao seu crescente interesse pela prosa
ficcional naquele período, e Leal parece concordar que estas qualidades de poeta-narrador, já
presentes nos livros de poesia anteriores, estão muito mais presentes em Americanas, levando
o autor a propor que aí teríamos “[...] uma renovação do estilo poético de Machado de Assis,
que se independentiza da subjetividade romântica”, pois sua poesia vai tomando “[...] uma
dicção pessoal e única, diferenciada de seus predecessores e contemporâneos”662. É nesse
contexto que aparece a “Cantiga do Rosto Branco”, tradução que analisaremos a seguir.
9.1 A “Cantiga do Rosto Branco”
Em nota que acompanha este poema, Machado de Assis ressalva:
Não é original esta composição; o original é propriamente indígena. Pertence à tribo
dos mulcogulges, e foi traduzida da língua deles por Chateaubriand (Voy. dans
l’Amer.). Tinham aqueles selvagens a fama de poetas e músicos, como os nossos
Tamoios. “Na terceira noite da festa do milho, lê-se no livro de Chateaubriand,
reúnem-se no lugar do conselho; e disputam o prêmio do canto. O prêmio é conferido
659
ISHIMATSU, 1984, p. 101, tradução nossa. No original: “the pieces in Americanas are, for the most part, very
somber in tone, and all but one of the narrative poems are written in unrhymed ten-syllable verse, the meter
traditionally appropriate for matters of a serious nature”, e considera a maioria dos poemas “tedious and
unconvincing”.
660
LEAL, 2008, p. 126
661
Ibid., p. 126-127
662
Ibid., p. 130
317
pelo chefe e por maioria de votos: é um ramo de carvalho verde. Concorrem as
mulheres também, e algumas têm saído vencedoras; uma de suas odes ficou célebre”.
A ode célebre é a composição que trasladei para a nossa língua. O título na tradução
em prosa de Chateaubriand é – Chanson de la Chair Blanche.
Sobre o talento das mulheres para a poesia, também o tivemos em tribos nossas. Vejase FERNÃO CARDIM, Narrativa de uma Viagem e Missão.663
Esta nota, a mais longa e detalhada do volume, contém não só a fonte de que se serviu
Machado de Assis, mas uma sugestão enviesada de que, embora estrangeira, a peça traz um
retrato de costumes que são comuns aos nossos nativos: os índios estrangeiros praticam a
música e a poesia como os Tamoios brasileiros, e as nossas índias, assim como as deles, também
demonstram talento para isso, apontando a fonte onde tal informação poderia ser conferida. De
igual maneira, a nota também confere matizes acadêmicos à poesia traduzida, posto que fica
claro tratar-se de uma obra que é fruto de pesquisa e estudo, e não somente “inspiração” de um
certo “gênio poético”.
Notamos, contudo, um pequeno deslize nesta nota de Machado de Assis: o autor indica
como fonte Voyg. dans l’Amér. (abreviação de Voyage dans l’Amériquelii), mas a obra de
Chateaubriand chama-se, na verdade, Voyage en Amérique.
Assim como parece ser o caso das demais traduções de Machado de Assis, a presença
de Chateaubriand em Americanas revela não só um aspecto do gosto do nosso autor, mas
também da cena literária brasileira. As referências a Chateaubriand na obra de Machado de
Assis vão desde seus primeiros textos, como o ensaio “O passado, o presente e o futuro da
literatura”, de 1858, passando por diversas crônicas e cartas, até seus últimos textos críticos,
como “Garret” e “Cenas da vida amazônica, por José Veríssimo”, de 1899.
A obra de François-René de Chateaubriand pertence àquela geração de jovens que viu
eclodir a Revolução Francesa em 1789, geração que também abriu o caminho para o surgimento
da estética romântica entre os franceses. Chateaubriand é o primeiro autor abordado por Albert
Thibaudet na sua Histoire de la littérature française (de 1789 à nos jours), a quem descreve
nos seguintes termos:
Chateaubriand, como Napoleão e Madame de Stäel, é um homem do século XVIII,
que atinge sua maioridade em 1789 e amadurece com o espírito do novo século. Ele
se tornará menos o pai do romântico do que seu clássico. Muito de sua obra entrou no
esquecimento. Mas o prestígio de sua personalidade continua maior do que parece
comportar a leitura que se faz do que sobrevive.664
663
ASSIS, 1976, p. 440-441
THIBAUDET, 1936, p. 39, tradução nossa. No original: “Chateaubriand comme Napoléon et Mme de Stäel,
est un homme du XVIIIe siècle, qui atteint sa majorité en 1789, et qui mûrit avec l’esprit du siècle nouveau. Il
664
318
Chateaubriand, célebre no século XIX pelos seus romances folhetinescos Atala (1801) e René
(1802) – ambos frequentemente citados nas crônicas de Machado de Assis – deixou em seu
legado a perspicácia na descrição da natureza e na análise dos sentimentos. Serviu, portanto, de
modelo a ser superado por toda uma geração de escritores românticos franceses, incluindo
Victor Hugo, e, na mesma esteira, brasileiros. Com O gênio do cristianismo (1802) – escrito
durante seu exílio na Inglaterra – Chateaubriand defende a fé católica. Sua obra máxima será
Mémoires d’outre-tombe, publicação póstuma, e que teria influído sobre o título Memórias
póstumas de Brás Cubas. Chateaubriand não escapou da onda de exotismo e, em certa medida,
ajudou a difundir o indianismo exótico entre os escritores de então, incluindo os nossos. É nesse
contexto que surge a Voyage en Amérique (1826), livro escrito a partir da viagem que o autor
precisou fazer em 1791 em virtude da Revolução Francesa, e de onde nosso tradutor pinçou a
“Chanson de la Chair Blanche”.
A presença de François-René Auguste de Chateaubriand na nossa literatura foi
brevemente examinada por Regina Zilberman no artigo “Memórias de Chateaubriand no
Brasil” (2017), onde lemos que aceitar as sugestões do escritor francês era, para a nossa
nascente literatura romântica, “integrar-se às vertentes do pensamento historiográfico,
emergente nas primeiras décadas do século XIX”665. Assim Zilberman resume o papel de
Chateaubriand na obra de Machado de Assis e, consequentemente, na literatura brasileira:
A obra de Machado de Assis, desde o ensaio “O passado, o presente e o futuro da
literatura”, até Memórias Póstumas de Brás Cubas, ponto de partida, segundo o
romancista, de uma nova fase de sua produção ficcional, faculta, pois, acompanhar o
percurso da participação de F. de Chateaubriand na literatura brasileira do século XIX.
Um ídolo, uma voz a imitar, um exemplo a copiar; depois, um autor a ser apropriado,
diante do qual cabe tomar respeitosa posição, mas, de alguma maneira, passível de ter
suas formulações alteradas ou utilizadas para atestar a superioridade das criações
nacionais; enfim, uma lembrança remota, talvez a evitar666.
Em Americanas, Zilberman identifica traços do idealismo e o catolicismo de
Chateaubriand, que se tornariam insustentáveis mais tarde e levariam ao “[...] abandono daquele
autor, que, como as cegonhas do Ilisso, é transportado para praias distantes, [...] sintoma de que o
escritor alçava voo no caminho de nova etapa de sua vida artística e intelectual”667.
deviendra moins encore le père des romantiques que leur classique. Une grande partie de son œuvre est entrée
dans l’oubli. Mais le prestige de sa personne reste plus grand que ne semble comporter la lecture qu’on fait de ce
qui survit”.
665
ZILBERMAN, Regina. “Memórias de Chateaubriand no Brasil”. Revista Brasileira de Literatura Comparada.
Vol. 17, n. 31, 2017, pp. 3-17, p. 4.
666
Ibid., p. 13
667
Ibid.
319
O mais evidente desses traços é o tributo ao escritor francês através da tradução de
“Chanson de la Chair Blanche”. O texto foi retirado da parte de Voyage en Amérique em que
Chateaubriand descreve os costumes dos índios “Muscogulges”, que faziam parte da Confederação
dos Creek. Chateaubriand (1838) inicia seu relato tratando da forma de governo dos Muscogulges
e, ao fim, tece comentários sobre as mulheres da tribo que, segundo Chateaubriand, “[...] são a
menor raça de mulheres conhecida na América”668, tímidas, de traços bastante delicados, e com
uma voz que lembra a das crianças. Essas mulheres também trabalham menos que as outras índias,
mas participam igualmente das festividades que envolvem música e poesia669. A ode que
Chateaubriand apresenta na sua versão em prosa, a “Chanson de la Chair Blanche”, seria uma dessas
célebres odes femininas, que reproduzimos a seguir, ao lado da tradução de Machado de Assis:
Quadro comparativo 30 – “Cantiga do Rosto Branco” e “Chanson de la Chair Blanche”
Cantiga do Rosto Branco
Chanson de la Chair Blanche
Rico era o rosto branco; armas trazia,
E o licor que devora e as finas telas;
Na gentil Tibeíma os olhos pousa,
E amou a flor das belas.
La chair blanche vint de la Virginie. Elle étoit riche :
elle avoit des étoffes bleues, de la poudre, des armes,
et du poison françois. La chair blanche vit Tibeïnia,
l’Ikouessenliii.
“Quero-te!” disse à cortesã da aldeia;
“Quando, junto de ti, teus olhos miro,
A vista se me turva, as forças perco,
E quase, e quase expiro.
Je t’aime, dit-elle à la fille peinte ; quand je
m’approche de toi, je sens fondre la moelle de mes os;
mes yeux se troublent ; je me sens mourir.
E responde a morena requebrando
Um olhar doce, de cobiça cheio:
“Deixa em teus lábios imprimir meu nome;
Aperta-me em teu seio!”
“Uma cabana levantaram ambos,
O rosto branco e a amada flor das belas...
Mas as riquezas foram-se coo tempo,
E as ilusões com elas.
Quando ele empobreceu, a amada moça
Noutros lábios pousou seus lábios frios,
E foi ouvir de coração estranho
Alheios desvarios.
Desta infidelidade o rosto branco
Triste nova colheu; mas ele amava,
Inda infiéis, aqueles lábios doces,
E tudo perdoava.
Perdoava-lhe tudo, e inda corria
A mendigar o grão de porta em porta,
Com que a moça nutrisse, em cujo peito
Jazia a afeição morta.
668
« La fille peinte, qui vouloit les richesses de la chair
blanche, lui répondit : « Laisse-moi graver mon nom
sur tes lèvres ; presse mon sein contre ton sein. »
« Tibeïma et la chair blanche bâtirent une cabane.
L'Ikouessen dissipa les grandes richesses de
l’étranger, et fut infidèle. La chair blanche le sut ; mais
elle ne put cesser d’aimer. Elle alloit de porte en porte
mendier des grains de maïs pour faire vivre Tibeïma.
Lorsque la chair blanche pouvoit obtenir un peu de feu
liquide, elle le buvoit pour oublier sa douleur.
« Toujours aimant Tibeïma, toujours trompé par elle,
l'homme blanc perdit l’esprit et se mit à courir dans les
bois. Le père de la fille peinte, illustre Sachem, lui fit
des réprimandes : le cœur d’une femme qui a cessé
d’aimer est plus dur que le fruit du papaya.
« La chair blanche revint à sa cabane. Elle étoit nue,
elle porloit une longue barbe hérissée ; ses yeux
étoient creux, ses lèvres pâles : elle s’assit sur une
natte pour demander l’hospitalité dans sa propre
cabane. L’homme blanc avoit faim : comme il étoit
CHATEAUBRIAND, François-Réné de. Voyage en Amérique suiviz des Natchez. Paris: Lefèvre Librairie,
1838, p. 181, tradução nossa. No original: “sont la plus petite race de femme connue en Amérique”.
669
Ibid., p. 181
320
E para si, para afogar a mágoa,
Se um pouco havia do licor ardente,
A dor que o devorava e renascia
Matava lentamente.
Sempre traído, mas amando sempre,
Ele a razão perdeu; foge à cabana,
E vai correr na solidão do bosque
Uma carreira insana.
devenu insensé, il se croyoit un enfant, et prenoit
Tibeïma pour sa mère.
« Tibeïma, qui avoit retrouvé des richesses avec un
autre guerrier dans l'ancienne cabane de la chair
blanche, eut horreur de celui qu’elle avoit aimé ; elle
le chassa. La chair blanche s’assit sur un tas de feuilles
à la porte, et mourut ; Tibeïma mourut aussi. Quand le
Siminole demande quelles sont les ruines de cette
cabane recouverte de grandes herbes, on ne lui répond
point. »
O famoso Sachém, ancião da tribo,
Vendo aquela traição e aquela pena,
À ingrata filha duramente fala,
E ríspido a condena.
Em vão! É duro o fruto da papaia,
Que o lábio do homem acha doce e puro;
Coração de mulher que já não ama
Esse é inda mais duro.
Nu, qual saíra do materno ventre,
Olhos cavos, a barba emaranhada,
O mísero tornou, e ao próprio teto
Veio pedir pousada.
Volvido se cuidava à flor da infância
(Tão escuro trazia o pensamento!)
“Mãe!” exclamava contemplando a moça,
“Acolhe-me um momento!”
“Vinha faminto. Tibeíma, entanto,
Que já de outro guerreiro os dons houvera,
Sentiu asco daquele que outro tempo
As riquezas lhe dera.
Fora o lançou; e ele expirou gemendo
Sobre folhas deitado junto à porta;
Anos volveram; coos volvidos anos,
Tibeíma era morta.
Quem ali passa, contemplando os restos
Da cabana, que a erva toda esconde,
Que ruínas são essas, interroga.
E ninguém lhe responde.
Fonte: Assis (1976); Chateaubriand (1838)
A “Chanson de la Chair Blanche” (“Canção da Carne Branca”, em tradução literal) de
Chateaubriand relata a história de “Carne Branca”, homem branco, possivelmente um europeu
ou descendente de europeus, que vem de um estado mais ao norte dos EUA, a Virgínia –
lembremos que a nação creek, da qual fazem parte os “Muscogulges” do relato de
Chateaubriand, ocupava o território onde hoje estão os estados do Tennessee, Alabama, Georgia
e norte da Flórida – trazendo riquezas quando encontra Tibeïma, a Ikouessen, ou “cortesã”,
321
segundo Chateaubriand explica em nota. O homem branco se apaixona e decide casar-se com
Tibeïma, que aceita interessada unicamente nas suas riquezas.
Constroem juntos uma cabana, mas Tibeïma está unicamente interessada em dissipar as
riquezas dele, buscando os braços de outros assim que essas riquezas se acabam. O homem,
mesmo sabendo da traição, não deixa de amá-la, e passa a mendigar meios de mantê-la, mas
também se entrega à bebida como forma de sufocar a dor da traição. O alcoolismo e as traições
de Tibeïma levam o homem branco à loucura, correndo pelos bosques. Mesmo o pai de Tibeïma
a repreende, mas reconhece que “le cœur d’une femme qui a cessé d’aimer est plus dur que le
fruit du papaya” (“o coração de uma mulher que deixou de amar é mais duro do que o fruto da
papaya”).
Um dia, ao retornar à sua própria cabana nu e desgrenhado pedindo por comida e abrigo,
completamente tomado pela loucura, acreditando ser uma criança e filho de Tibeïma, o homem
branco encontra a esposa com outro guerreiro de posses. Tibeïma, horrorizada pela figura à sua
frente, expulsa dali o homem que antes dizia amar, deixando-o morrer do lado de fora da
cabana. Com a morte de Tibeïma e a cabana em ruínas, todos se calam quando os Seminolesliv
questionam sobre o que se passara ali.
Imediatamente notamos que a tradução de Machado de Assis, uma tradução de outra
tradução, transporta a prosa de Chateaubriand para a forma poética. O poeta-tradutor adota
quadras compostas de três decassílabos e um hexassílabo, com rimas nos versos pares. Se a
forma escolhida, clássica na tradição poética de língua portuguesa, corresponderia ou não ao
poema indígena – se é que este de fato existiu – não sabemos. Como se pode observar, quando
traduz reimaginando poeticamente este texto de Chateaubriand, Machado de Assis mantém
praticamente todos os detalhes da história no texto francês, conforme a tendência que temos
observado até aqui: busca-se a preservação do sentido geral do texto, mas sob uma roupagem
que esteja de acordo com os costumes da tradição poética de língua portuguesa. Há, somente,
duas omissões de certa relevância: a partir da tradução de Machado não se sabe que o homem
veio da Virgínia, assim como omite também a presença da tribo seminola no seu poema.
Quando se passa a conhecer melhor as minúcias do emaranhado da tradução machadiana,
percebe-se que essas omissões não são incidentais. Referências geográficas já foram omitidas
antes, como na “Lira Chinesa”, por exemplo, em que Machado não menciona a Montanha
Oriental ou o Rio Amarelo quando surgem nos poemas que traduziu. Da mesma forma,
informações que permitam localizar que um texto pertence necessariamente a uma determinada
cultura, de determinada época, geralmente são preteridas em favor de um tom mais amplo,
universal, como se quisesse demonstrar que o texto literário pertence a todos. Tal recorrência e
322
regularidade de procedimentos quanto a isso afastam qualquer possibilidade de que tais
alterações ou omissões sejam obras do acaso ou meras coincidências.
Nota-se mais uma vez que o tradutor também se concede a prerrogativa de acrescentar
ao seu texto detalhes que talvez possam enriquecê-lo, mas que certamente deixam rastros de
uma marca bastante pessoal. Neste caso em particular, destacamos os dois primeiros versos da
terceira estrofe no poema de Machado: “E responde a morena requebrando / Um olhar doce, de
cobiça cheio”. No trecho correspondente no texto-fonte lemos: “La fille peinte, qui vouloit les
richesses de la chair blanche, lui répondit” (“A moça pintada, que queria as riquezas da carne
branca, respondeu-lhe”). Não há, portanto, nenhuma referência ao fato de a moça requebrar e
muito menos ao seu olhar “cheio de cobiça”. Os leitores da obra de Machado de Assis saberão,
contudo, que referências ao olhar das mulheres são frequentes em sua obra e uma de suas
marcas, cujo exemplo máximo será, sem dúvida, os olhos de Capitu.
Ainda naquele mesmo artigo citado anteriormente, Regina Zilberman avalia que na
“Cantiga do Rosto Branco” o autor Machado de Assis se faz ouvir ao “[...] equiparar práticas
poéticas entre os povos nativos do norte e do sul da América, chamando a atenção para as
habilidades artísticas de nossos indígenas, tema que fertilizara o debate intelectual sobre a
propensão dos primeiros habitantes do território para a criação literária”670. Mais do que ao
apontar as semelhanças entre as práticas dos índios de lá e de cá, a voz autoral de Machado de
Assis se faz ouvir no trabalho poético dispensado na criação do poema, e principalmente
naquelas interferências do tradutor que deixam marcas tipicamente machadianas no texto.
Ishimatsu corrobora nossa opinião quando diz que a “Cantiga do Rosto Branco” “[...]
não poderia ser mais machadiana, já que a infidelidade da mulher leva ‘o rosto branco’ não a
um ato de vingança, mas à loucura”671. Machado adota a representação de uma mulher que
Ishimatsu descreve como fria, inconstante e ingrata, o que diz ser típico da ficção em prosa da
maturidade do escritor.
Na avaliação de Jean-Michel Massa, a “Cantiga do Rosto Branco” não é só uma
homenagem a Chateaubriand, mas “[...] representa uma garantia no espírito de Machado de
Assis quando ele reúne suas Americanas”, no formato de uma “[...] ode que vestiu em versos à
europeia”, e “[...] atesta uma intenção louvável, a de alargar as fronteiras da poesia indianista
até as margens setentrionais da América”672. O crítico não estava equivocado, mas mais do que
670
ZILBERMAN, 2017, p. 10
ISHIMATSU, 1984, p. 103, tradução nossa. No original: “could not be more Machadian in character, as the
woman’s infidelity drives ‘o rosto branco’ not to an act of vengeance, but to madness”.
672
MASSA, 2008, p. 90.
671
323
meramente uma intenção, esta obra de Machado é uma realização de um projeto cujos
horizontes estão muito além de um alargar de fronteiras indianistas.
John Gledson, por sua vez, sugere que a “Cantiga do Rosto Branco” seria um exemplo
do que Machado faria com mais frequência na maturidade: escolher obras que se adaptassem à
sua personalidade e ao seu programa estético literário, “na medida que o tinha”673, ressalva o
crítico e tradutor inglês. Gledson insinua ainda que
a atração fundamental desse poema venha do retrato da degradação que pode causar
o choque de cultura dessemelhantes, sobretudo quando, como neste caso, o sexo e o
álcool facilitam o encontro inicial. É uma Iracema sem Jurema, com cachaça e com
um europeu bem mais perto da realidade cotidiana que Martim. Noutros poemas de
Americanas, os resultados desses conflitos podem ser trágicos – aqui, com apoio em
Chateaubriand, Machado nos mostra apenas o sórdido674.
Novamente, uma opinião que, apesar de não estar equivocada, resvala em apenas um
aspecto desta obra. Além disso, alguns comentários de Gledson merecem revisão: em nenhum
momento, na obra de Machado ou de Chateaubriand, é dito que o homem em questão, apesar
de branco, era europeu. Poderia muito bem ter sido um descendente nascido em território norteamericano. Mais importante ainda, o “choque entre culturas” de que fala Gledson não parece
ser central à peça, já que o que move a narrativa do poema não são as diferenças de costumes,
mas a índole dos personagens: uma mulher interessada somente nos bens materiais e um homem
fraco e frívolo, que se deixa enganar e se entrega ao alcoolismo que o leva à morte. O tema
poderia ser transportado para qualquer outra situação em que não houvesse tal “choque de
culturas” e funcionaria da mesma forma. Na “Lira chinesa”, por exemplo, temos o poema “A
uma mulher” que relata acontecimentos parecidos, sem explorar as consequências. O fato de
serem uma índia e um homem branco, neste caso, soa como algo meramente episódico para o
poeta-tradutor explorar aspectos da índole humana, como já fizera diversas vezes antes e faria
ainda depois.
As opiniões de Zilberman, Ishimatsu, Massa e Gledson demonstram que a “Cantiga do
Rosto Branco” não passou incólume pela crítica. A pesquisadora brasileira viu ali uma tentativa
de Machado de Assis aproximar as práticas das culturas indígenas dos dois países através da
tradução; a norte-americana creditou à tradução características tipicamente machadianas na
representação da mulher; o crítico francês enxergou uma tentativa de alargar a poesia indianista
para além das fronteiras nacionais, enquanto o inglês viu ali um fascínio pelo sórdido e pela
degradação de um personagem que sucumbe diante de suas fraquezas. São visões de
673
674
GLEDSON, 1998, p. 9
Ibid., p. 9
324
nacionalidades diferentes que se alargam e se complementam, demonstrando que
inegavelmente há frutos a colher nas traduções poéticas de Machado de Assis.
325
10. 1875-1901: As Ocidentais e as últimas traduções
As oito traduções que veremos neste último capítulo de análise dos textos podem ser
divididas em duas partes: uma parte desse corpus é composta de textos que nunca chegaram a
fazer parte de livros de Machado de Assis. São textos de ordem bem diversa e feitos com os
mais diferentes propósitos. “O coração”, uma das traduções que não haviam sido listadas por
pesquisas anteriores, é a versão de um pequeno poema alemão de um autor hoje obscuro,
publicada em um jornal satírico – Semana Ilustrada – e atribuída a Machado de Assis por
Raimundo Magalhães Júnior. Trata-se de uma obra despretensiosa, provavelmente feita a
trabalho. Em seguida temos “Inocência”, a peça mais peculiar do conjunto, visto que é a única
vez em que Machado transporta um poema em português para um idioma estrangeiro – o
francês – para servir de letra de uma música. “Seis dias em Cuiabá”, por sua vez, interessa
principalmente por demonstrar o grau de domínio do idioma alemão por parte de Machado de
Assis nesta tradução feita a pedido de Capistrano de Abreu. Por fim, o “Prólogo do Intermezzo”
é outra obra cuja iniciativa deve ter sido somente em parte de Machado de Assis, visto que a
tradução foi pensada e feita para fazer parte de uma obra mais ampla, que seria uma versão
completa do Intermezzo de Heinrich Heine. Também pertencente à literatura alemã, esta
tradução, que certamente é a melhor obra desta parte do corpus, apresenta indícios de que
Machado de Assis tinha conhecimento do alemão.
A outra metade do corpus apresentada aqui inclui as quatro traduções que foram incluídas
nas Ocidentais, última parte das Poesias completas (1901), que foi último livro de poesias
publicado por Machado de Assis: “To be or not to be”, “O corvo”, “Dante” e “Os animais
iscados da peste”. Nas Ocidentais Machado de Assis reuniu 27 composições, quase todas já
publicadas anteriormente. Somente quatro são dadas como inéditas por Galante de Sousa. José
Américo Miranda (2016) ressalta ainda que, embora Ocidentais seja considerado na poesia o
equivalente à obra ficcional da maturidade do escritor, Machado inclui entre os poemas de
Ocidentais composições bem antigas: 16 são anteriores a 1880, sendo que “Clódia” é de
1869675, anterior até mesmo a Falenas e Americanas.
A primeira recepção crítica das Poesias completas contou com textos de detratores já
conhecidos, como Múcio Teixeira e Sílvio Romero. Teixeira publica sua crítica entre 20 e 27
675
MIRANDA, José Américo. “Uma aproximação às poesias completas de Machado de Assis”. Scripta, Belo
Horizonte, v. 20, n. 39, p. 331-349, 2º sem. 2016, p. 332.
326
de maio de 1901, em cinco longos folhetins, apontando os defeitos da obra poética de Machado
de Assis, em quem não via a menor vocação para a poesia. Guimarães Júnior, por outro lado,
ironiza o esforço do crítico: “[...] como poderia ter gasto tanta cera crítica com tão ruim defunto
literário?”676. Ainda assim, para Múcio Teixeira “O corvo”, tradução de Edgar Allan Poe
incluída em Ocidentais, “[...] passa a ser uma das suas melhores produções”677, elogio que vem
acompanhado de severas críticas às rimas empregadas por Machado de Assis.
Sílvio Romero, que também não se impressionou com as Poesias completas, destacou
não só “O corvo”, mas as outras três traduções de Ocidentais – “Dante”, tradução do Canto
XXV do “Inferno” da Divina Comédia, “Os animais iscados da peste”, de La Fontaine e “To
be or not to be”, de Shakespeare –, como as “melhores peças da coleção”678, apesar de
inconformado com os quês de Machado de Assis.
Mas é no artigo “O Sr. Machado de Assis, poeta”, publicado por José Veríssimo no
Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em maio de 1901 que encontramos a avaliação mais
objetiva e sensata desta primeira leva de críticos que escreveu sobre as Poesias completas. O
crítico reconhece que Machado de Assis era um poeta de emoção contida, no que se
diferenciava facilmente dos poetas de sua geração e, até mesmo, do “tom comum da poesia
brasileira”, que o crítico diz ser “[...] de um sentimentalismo fácil, que frequentemente frisa à
pieguice, entusiasta, hiperbólica, palavrosa, mais carnal que sensual, vulgarmente até
lúbrica”679. O resultado desta diferença é a patente dificuldade em categorizar ou classificar o
poeta que foi Machado de Assis, “uma forma da personalidade e da originalidade”, diz
Veríssimo, reconhecendo em Machado um poeta que “[...] não foi propriamente romântico,
nem propriamente parnasiano, nem propriamente naturalista, e foi simultaneamente tudo isto
junto”680. A conclusão de Veríssimo não deveria surpreender, já que o próprio Machado,
quando inicia sua carreira de poeta com Crisálidas, afirma categoricamente em seu posfácio:
“[...] não curo de escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel
676
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 4, p. 174
TEIXEIRA, Múcio. “Poesias completas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da
consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 240.
678
ROMERO, Sílvio. “Poesias completas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da
consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 255
679
VERÍSSIMO, José. “O Sr. Machado de Assis, poeta”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis:
roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 245-246.
680
Ibid., p. 248.
677
327
obscuro da vasta multidão dos fieis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o meu livro; nem mais,
nem menos”681.
Nas Ocidentais Veríssimo diz não haver mais nada de americano ou local, visto que as
peças são inspiradas pelo pensamento comum ocidental, o que se percebe claramente nas obras
que escolhe traduzir. A novidade do conjunto fica por conta das que chama “poesias de
pensamento, ou filosóficas”, sem esconder o pesar por encontrar nelas menos emoção que nos
primeiros livros de poesia de Machado de Assis682.
Veríssimo reconhece ainda que Machado não era nem podia ser um poeta do amor,
razão pela qual naturalmente o escritor caminharia na direção de temas mais objetivos, já
presentes desde seus primeiros poemas como “Epitáfio do México”, “Polônia” ou “La
Marchesa de Miramar”. Das Ocidentais, cita “Círculo vicioso”, “Uma criatura” e “A mosca
azul” como obras dignas de um grande poeta683. Veríssimo também elogia as traduções de
Machado, destacando “Dante” – “surpreendente de fidelidade e de reprodução” – e “O corvo”
– “assombrosa de expressão e de força” 684.
O artigo é encerrado descrevendo Machado como um poeta de pensamento que se
destaca por sua capacidade de transformar as dúvidas e o trabalho interior da consciência em
tema lírico, e conclui suas considerações, sensatas e diretas, dizendo que a poesia que
recebemos de Machado de Assis
é frequentemente encantadora e deliciosa, mas tão depurada pela forma, tão recatada
de sentimento, de comum, tão intelectual que raro irá ao fundo da nossa vida
sentimental e afetiva. Regalo para outros poetas, para intelectuais, gozo para espíritos
literários e para refinados, não satisfará talvez aos que não o forem. É para mim seu
defeito capital; o poeta lhe achará porventura a sua principal virtude... E ambos talvez
tenhamos razão...685
Há ecos desta avaliação de José Veríssimo em ensaios da crítica contemporânea, como o estudo
de Ishimatsu, que chama de “em geral Parnasiana” a poesia da maturidade machadiana, pela
disciplina técnica empregada na composição dos poemas e pelo interesse na antiguidade
clássica, ainda que esta não seja o foco das Ocidentais, resultando numa poesia que se
caracteriza pela introspecção686. Para Ishimatsu, que considera Ocidentais uma resposta às
681
ASSIS, 2009, p. 326
VERÍSSIMO, op. Cit., p. 249
683
Ibid., p. 250
684
Ibid., p. 251
685
VERÍSSIMO, 2003, p. 252
686
ISHIMATSU, 1984, p. 114
682
328
Orientales de Victor Hugo687, a originalidade da poesia tardia de Machado de Assis encontrase no seu conteúdo filosófico e na expressão do pessimismo e melancolia da maturidade que,
em Ocidentais, estaria expressa nos poemas que a autora divide entre os de “filosofia amarga”
e aqueles em que há tributo a humanistas e amigos688.
Nesta mesma esteira, Cláudio Murilo Leal também corrobora a visão de que em
Ocidentais o domínio da forma é pleno, e através dele Machado apresenta “[...] uma
cosmovisão que permite superar o episódico e construir uma poesia em que são questionados
os metafísicos problemas do Ser e do Mundo”, o que leva o autor também a dar ao poema
filosófico ou introspectivo o lugar antes reservado à lírica amorosa689. Amparo apresenta
opinião análoga, ao afirmar que
[...] podemos penetrar no ponto central da lírica de Ocidentais, percebendo a obra
como uma releitura dos grandes clássicos da civilização ocidental, passando por
Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Hugo, dentre outros, e fazendo, inclusive, uma
revisão de certas tendências do pensamento filosófico690.
Se as quatro traduções incluídas em Ocidentais – “O corvo”, “To be or not to be”, “Os
animais iscados da peste” e “Dante” – corroboram as avaliações apresentadas, não são todas
obras da chamada “maturidade” do escritor. “Dante” e “To be or not to be”, por exemplo, são
anteriores até mesmo às Americanas, algo que não é exclusivo das traduções. Lembremos que
que cerca de metade das poesias de Ocidentais é anterior à 1880 – ano marcado pela publicação
das Memórias Póstumas de Brás Cubas – e somente dois são da década de 1890. No entanto,
como veremos, essas quatro traduções, se tomadas em conjunto, resumem e ilustram a práxis
tradutória machadiana: um poeta-tradutor que está a serviço do texto de chegada e na sua
recepção como um texto literário, poético, um objeto estético, que pode tanto adotar um novo
modo de significar a partir de uma nova configuração estética, afastando-se sobremaneira do
texto-fonte, como em “O corvo”, ou até mesmo aproximar-se do texto-fonte para recriá-lo em
nossa língua a ponto de aproximar-se da transcriação haroldiana ou da tradução-arte de Augusto
de Campos, como em “Dante”.
687
ISHIMATSU, 1984, p. 116
Ibid., p. 117
689
LEAL, 2008, p. 144.
690
AMPARO, 2008, p. 123
688
329
10.1 “Das Herz”
“O coração”, tradução do poema alemão “Das Herz” de Hermann Neumann é mais uma
das traduções atribuídas a Machado que não foram coligidas por Jean-Michel Massa ou Eliane
Ferreira, nem mencionado por Galante de Sousa em sua Bibliografia de Machado de Assis. O
texto alemão, acompanhado da tradução, foi publicado em 1875 na edição 782 da Semana
Ilustrada, em que Machado colaborava.
Este texto, que ainda não está recolhido nas edições das poesias reunidas de Machado
de Assis consultadas nesta tese, foi identificado por Raimundo Magalhães Júnior e descrito no
segundo volume de Vida e obra de Machado de Assis: Ascensão. O relato de Magalhães Júnior
nos informa que no ano de 1875 Joaquim Nabuco começa a colaborar em uma publicação
intitulada “A Época”, sob o pseudônimo de Ninguém, à qual Machado de Assis também se
juntara adotando o nome Manassés. Segundo o relato de Magalhães Junior, verificável nos facsímiles disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o nº 2 da revista trouxe um
desafio aos tradutores do alemão:
Transcreveu um poemeto de Herman Neuman, com a declaração de que seria
premiado com uma assinatura de um trimestre da revista “quem traduzir esta pequena
poesia, que um crítico chamou de uma pérola de Cleópatra, em verso português,
conservando a simplicidade e o perfume do original”.691
Estamos razoavelmente certos de que os editores de A Época consultaram um periódico inglês
publicado naquele mesmo ano, em 23 de outubro de 1875, pois no volume III de The Academy:
a weekly review of literature, Science and art publicado em Londres encontramos o seguinte
trecho de um artigo que trata de canções alemãs, assinado por A.D. Atkinson: “[...] Talvez seja
permitido encerrar esta notícia citando um dos compositores contemporâneos da Pátria. Esta
pequena e delicada canção, de Hermann Neumann, é digna de cair em nossa memória como
uma pérola de Cleópatra”692 , a que se segue o texto em alemão do poema de Neumann. Aquele
“crítico” a que a chamada de A Época faz referência terá muito provavelmente sido este A.D.
Atkinson. As datas coincidem uma vez que o periódico inglês foi publicado em outubro de
1875, enquanto o nº 2 de A Época só sairia em dezembro do mesmo ano.
691
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 251
ATKINSON, A.D. “Deutsch Lyrik. Selected and arranged with notes and a Literary Introduction. By C. A.
Buchheim, Phil. Doc., F.C.P. (London: Macmillan&Co., 1875). In: THE ACADEMY: a weekly review of literature,
science and art. July-December, Volume III. London: Robert Scott Walker, 1875, p. 425, grifo nosso, tradução
nossa. No texto-fonte: “It may be permitted, perhaps, to close this notice by quotation from one of the
contemporary lyrists of Fatherland. This little delicate song, by Hermann Neumann, is worth dropping into one’s
memory like a Cleopatra’s pearl”.
692
330
O número seguinte da Semana Ilustrada já traria a resposta com o poema traduzido um
tanto anonimamentelv, uma vez que o Dr. Semana, colaborador da revista e também
pseudônimo de Machado de Assis, assumiu para si a tarefa de traduzir o poemeto, conforme
palavras do próprio publicadas naquela edição:
Aos Ilmos. Srs. redatores da revista quinzenal intitulada A Época – Não me levem a
mal se hoje respondo esboçadamente à chamada que fizeram na sua bela publicação
em o número 2, que ontem me veio à mão. O esboço é o do lápis – o da pena talvez
não seja tão ruim como aquele; mas, enfim, o curto espaço que me ficou, a chuva, o
aniversário do imperante, o batismo do príncipe do Grão-Pará e afinal ainda a abertura
da Exposição Nacional, todos estes motivos não me deixaram o tempo de fazer coisa
capaz. Conto com a indulgência de VV. SS., e creio que os senhores veem na minha
pronta resposta apenas um sinal de consideração, apreço, estima e veneração do/ de
VV.SS. / atº criado e obrigado – DR. SEMANA.693
Abaixo temos o poema “Das Herz” com a tradução com o título “O coração”, conforme
publicação da Semana Ilustrada:
Quadro comparativo 31 – “Das Herz” e “O coração”
“Das Herz” – Hermann Neumann
“O coração”
Zwei Kammern hat das Herz
Drin wohnen
Die Freude und der Schmerz
Há duas alcovas, duas
No coração
Que da Dor e da Alegria
Moradas são.
Wacht Freude in der einen
So Schlummert
Der Schmerz still in der seinen
O Freude, habe Acht
Sprich leise
Das nicht der Schmerz erwacht!
Enquanto a Alegria vela,
Sem descansar
Dorme a dor seu leve sono
Sem acordar.
Modera a voz, Alegria!
Menos rumor
Podes acordar do sono
Vizinha Dor!
Fonte: Semana Ilustrada (1875)
Supõe-se que nesta época Machado de Assis ainda não conhecia o alemão, uma vez que
seus estudos formais do idioma só começariam em 1883. A explicação que Magalhães Junior
dá para estes versos que considera “tipicamente machadianos” é que Machado provavelmente
procedeu da mesma forma que provavelmente fizera com “O casamento do diabo”:
Certamente Henrique Fleuiss, autor do desenho alegórico publicado na Semana
Ilustrada, traduzira literalmente o texto germânico, que Machado de Assis em seguida
versificara. Esse caso e o da balada de Goethe, publicada dez anos antes, explicam o
de “O casamento do diabo”, mostrando que tal método e trabalho se repetiu por várias
vezes, quase sempre sob o anonimato.694
693
694
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 251
Ibid., p. 253
331
Figura 10 - Reprodução da primeira publicação de “Das Herz / O Coração”
Fonte: Semana Ilustrada (1875)
332
Sobre o autor Hermann Neumann pouco descobrimos além do fato de ter sido um poeta –
provavelmente menor – do romantismo alemão, autor de diversos poemas épico-narrativos,
letras e sonetos, que morreu exatamente no ano da publicação de “Das Herz” em A Época e sua
tradução na Semana Ilustrada. O poema “Das Herz”, contudo, certamente alcançou certo
prestígio na época porque encontramos nada menos do que três volumes com traduções do
mesmo para o inglês: um publicado em 1877 em Londres no volume English Echoes of German
Song, editado por N. D’Anvers e traduzido por Dr. R. E. Wallis, Dr. J. D. Morell e F. D’Anvers,
que é o tradutor do poema em questão; outro, intitulado Chambers Twain – que também é o
título da tradução do poema de Hermann Neumann, que abre o volume – editado e traduzido
por Ernest Radford também em Londres em 1890; e por fim Echoes from Kottabos, editado por
R. Y. Tyrell e Sir Edward Sullivan e publicado também em Londres, em 1906, no qual o poema
aparece somente com o título “From the German”, sem indicação da autoria de Hermann
Neumann ou de que se trata de uma tradução, assinado por T.W.H.R.
Vejamos, lado a lado, a reprodução dos textos das traduções:
Quadro comparativo 32 – Versões em inglês do poema alemão “Das Herz”
The Heart
Chambers Twain
Hermann Neumann
Two chambers hath the heart
Where slumber
Sorrow and Joy apart.
When Joy in her awaketh
Still sleeping,
Sorrow no moan maketh.
Hush Joy! Ah, have a care;
Speak softly;
Sorrow lies sleeping there.
From the Germanlvi
The heart hath chambers twain,
Wherein
Dwell Joy and Pain.
Two chambers hath the heart:
There Dwelling,
Live Joy and Pain apart.
Joy in his chamber stirs,
While Pain
Sleeps on in hers.
Is Joy in one awake?
Then only
Doth Pain his slumber take.
Oh, Joy, refrain, refrain!
Speak low;
You may awaken Pain.
Joy, in thine hour, refrain –
Speak softly,
Lest thou awaken Pain.
T. W. H. R.
Hermann Neumann
F. d’A.
Fonte: D’Anvers (1877); Radford (1890); Tyrell; Sullivan (1906)
No trajeto de análise proposto por Antoine Berman, como vimos, é sugerido que se
compare o texto-alvo – a tradução de Machado de Assis, neste caso – com outras traduções,
quando houver, principalmente porque Berman considera que as primeiras traduções tendem a
ser “defeituosas”. Comparar as traduções acima – todas posteriores à do nosso poeta-tradutor –
com a de Machado é particularmente interessante porque elas nos revelam que as escolhas dos
tradutores ingleses adotam procedimentos bastante similares entre si, mas bastante diferentes
das escolhas feitas por Machado. Enquanto os tradutores ingleses buscam manter aspectos
333
formais como métrica e rima bastante próximos do texto alemão, Machado adota um caminho
mais independente. O texto alemão possui apenas uma nona, com rimas dispostas em
ABACDCEFE, em que os versos que não rimam com nenhum outro são mais curtos que os
demais. Os tradutores ingleses transformam a nona em três tercetos, mantendo a distribuição
de rimas e o verso mais curto ao centro de cada terceto. Machado, por sua vez, traduz o poema
em três quadras e adota versos septissílabos intercalados por versos de quatro sílabas, o que faz
com que seu poema tenha três versos a mais do que “Daz Herz”. Embora não muito comum na
poética machadiana, é possível encontrar a combinação de versos de sete e quatro sílabas nos
poemas “Reflexos”, da “Lira Chinesa”, e “Quando Ela Fala”, ambos de Falenas.
Consequentemente, o esquema de rimas também muda, e somente rimam o segundo e quatro
versos de cada estrofe.
As alterações introduzidas por Machado, no entanto, são meramente formais, posto que
o sentido e as imagens do poema são mantidos. O poema de Neumann diz que há duas câmaras
(Zwei Kammern) no coração, ocupadas uma pela Alegria (Freude) e outra pela Dor (Schmerz)
e enquanto a Alegria vela (Wacht Freude) em uma das câmaras, a Dor dorme em outra (So
schlummert / Der Schmerz in der seinen). À Alegria é pedido que preste atenção (O Freude,
habe Acht) e fale baixo (Sprich leise), caso contrário acordará a Dor (Daß nicht der Schmerz
erwacht). É um poemeto cuja narrativa remete ao teatro de moralidades medieval com a
personificação de sentimentos como “Alegria” e “Dor”, escrito com o ritmo ágil dos versos
curtos e, a exemplo do teatro medieval, com o ensinamento de que a alegria deve ser comedida
para não despertar a dor. Machado, sem se eximir de fazer seus acréscimos, alcança com sua
recriação este mesmo resultado, sem recorrer, contudo, à linguagem desnecessariamente
arcaizante e enobrecedora escolhida pelos três tradutores ingleses, a exemplo das formas em
segunda pessoa dos verbos – hath, awaketh, maketh – ou do possessivo de segunda pessoa
thine, todos em desuso no já no século XIX, e que causam ainda mais estranheza atualmente.
Machado escolhe, ao contrário, uma linguagem simples e direta, perfeitamente compreensível
mesmo hoje, mais de 140 anos após a publicação do trabalho. Se há um distanciamento no
plano formal, o sucesso na reescrita do poema não nos permite enxergar nenhuma
“defeituosidade” por ser uma primeira tradução em língua portuguesa, pelo menos.
334
10.2 “Inocência”
De todas as traduções que analisamos nesta tese, “Inocência”, de autoria de Luís
Guimarães Júnior, é o caso mais sui generis. De 1876, este é o único exemplo – dentre os textos
de que temos notícia e que chegaram até nós – em que Machado de Assis transporta um texto
poético da língua portuguesa para uma língua estrangeira. Quando Machado conheceu o autor
de “Inocência”, Luís Guimarães Júnior tinha pouco mais de 15 anos. Travaram uma amizade
que duraria pelas próximas décadas, até o fim da vida de Machado de Assis. O primeiro
encontro de ambos chegou a ser relatado por Machado quando noticiava, no nº 473 Semana
Ilustrada, de 2 de janeiro de 1870, a publicação de Corimbos, que contém o poema que deu
origem a “Inocência”:
Há coisa de seis anos, encontrei na rua um moço desconhecido, melhor dissera uma
criança, - e que gentil criança ele era - o qual me disse rapidamente com a viveza
impetuosa da sua idade: / -Está no prelo um livrinho meu. É oferecido ao senhor. Parto
hoje mesmo para São Paulo; já dei ordem na tipografia para lhe mandarem um
exemplar. / - Obrigado. Como se chama o senhor? / - Luís Guimarães. / Poucos dias
depois recebi o livrinho anunciado. Eram as primícias de um talento legítimo,
inexperiente, caprichoso, que poderia vir a ser a águia mais tarde, mas que não passava
ainda de um beija-flor, galante e brincão, todo asas, todo travessuras, todo sede de
aromas e de mel. / Noticiei o livrinho ao público, e escrevi ao poeta agradecendo-lhe
o mimo e convidando-o a que não parasse naquela primeira obra.695
O artigo em questão, intitulado “Um poeta fluminense”, era sobre a publicação de Corimbos, a
respeito do qual Machado se demonstra bastante elogioso nos parágrafos seguintes dizendo que
“[o]s traços gerais da poesia de Luís Guimarães de hoje são os mesmos de outrora; mas o livro
dos Corimbos destaca melhor a sua fisionomia poética, e a esse respeito como a outros é a
verdadeira data de sua vocação literária.”; ou quando diz que “[o] livro dos Corimbos
representa, pois, um talento desenvolvido e refletido, que nada perdeu das suas graças nativas,
antes as melhorou com o estudo e o trabalho” e que “ [o]s seus versos tem a novidade da forma
e da ideia que interessa e arrasta, e a naturalidade do sentimento que transmite ao leitor as
emoções do poeta”; mas elogia também o emprego do metro de que era conhecido como um
dos mestres dizendo que “[o]s alexandrinos de Luís Guimarães são cadentes, cheios e corretos”
para concluir que “[...] este livro dos Corimbos é uma vitória e uma obrigação. Colha o poeta
os louros da primeira, mas não esqueça a responsabilidade da segunda”696. O artigo é encerrado
com a assinatura de Machado de Assis – somente um “M.” – acompanhado da reprodução de
695
696
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1158
Ibid., p. 1159-1160
335
um dos poemas de Corimbos, “Estâncias”, a que chama de “[...] melhor notícia que posso dar
do poeta e da obra”.
Devemos considerar que o crítico Machado não era de fazer elogios vazios ou somente
por conta de amizades literárias, práticas que, aliás, condenava. Além disso, Corimbos é
dedicado a Machado de Assis, que de certa forma apadrinhou o poeta Luís Guimarães Júnior.
É compreensível, portanto, que Machado de Assis tenha sido convidado para contribuir no
projeto musical com a versão francesa de “Inocência”.
O poema em questão é derivado de “Candura”, que está em Corimbos. O relato deste
texto e da colaboração entre Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior está no segundo
volume de Vida e obra de Machado de Assis: Ascensão do biógrafo Magalhães Junior e também
não consta dos levantamentos dos textos traduzidos por Machado feitos por Jean-Michel Massa
ou por Eliane Ferreira:
Machado repetiu, em fins de 1876, a experiência de 1869, quando, para servir ao
compositor Artur Napoleão, adaptara a uma de suas canções uma poesia inglesa,
convertida em “A lua da estiva noite”. De novo servia aos interesses desse amigo, mas
com duas diferenças: não era ao compositor, mas ao editor de músicas, que prestava
tal favor e, além disso, dessa vez não traduzira um poema estrangeiro para o
vernáculo. Ao contrário, transportara do português para o francês um poema de seu
amigo, Luis Guimarães Júnior, musicado por Luísa Leonardo, jovem compositora e
pianista brasileira, hoje esquecida, mas cujo talento então rivalizava com o de
Chiquinha Gonzaga.697
O relato de Magalhães Juniorlvii continua com a biografia da artista e as condições que deram
origem ao trabalho, que é o que nos interessa, informando que quando Luísa Leonardo ainda se
encontrava na França, a firma Narciso & Artur Napoleão editou uma série de canções de Luísa
com letras em português, escritas por Luís Guimarães Júnior, e em francês, traduzidas pelo
poeta e violinista Francisco Moniz Barreto Filho. Este relato pode ser confirmado na seção de
“Fatos Diversos” do jornal A Reforma: órgão democrático, no n. 186, de 20 de agosto de 1876:
Acabamos de receber algumas composições da talentosa menina Luísa Leonardo, uma
brilhante vocação artística, que desde tenra idade revelou-se pianista muito notável.
As composições que temos presentes, e que foram editadas pela casa dos Srs. Narciso
e Napoleão, constam de várias canções, barcarolas e romances para canto e piano sob
a denominação de Souvenir et Regrets.
[...]
As letras das diferentes composições que acabam de vir a lume são do distinto poeta
dos Corimbos, versos suavíssimos, apaixonados, e que já de si são música, como os
sabe fazer o Dr. Luiz Guimarães.
697
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 268
336
São esses versos transladados para o francês, e, também nesse idioma, adaptados à
música, pelo nosso insigne violinista Francisco Moniz Barreto, um poeta que vibra
tão bem o arco da rabeca como a lira de Apolo, e que exprime-se em português ou em
francês falando sempre a linguagem das musas698.
Além desta publicação, encontramos, na Gazeta de Campinas, vários anúncios dessas
composições de Luísa Leonardo, listando entre as peças a canção “Inocência”, sendo que o
mais antigo encontrado data de 5 de setembro de 1876699. Ainda segundo Magalhães Júnior,
um caso fugiu à regra: “[...] a letra de uma das canções, ‘Inocência’, foi traduzida para o francês
por Machado de Assis. Seu texto em português era uma redução do poema ‘Candura’, publicado
no livro Corimbos”700. Não só somente uma redução, mas também alteração e reorganização
de alguns versos, conforme podemos observar abaixo, nos textos de “Candura”, “Inocência”
lado a lado com a tradução de Machado de Assis:
Quadro comparativo 33 – Poema “Candura”, letra de “Inocência” e versão francesa de Machado de Assis
Candura (1868)
Inocência
Tradução de Machado de Assis
Teus dias correm suaves
Bordados de loira luz,
Como o pipilo das aves
Nos horizontes azuis.
Teus dias correm suaves,
Bordados de loira luz,
Como o pipilar das aves
Nos horizontes azuis.
O tem pensamento, à toa,
Corre, corre, sem parar
Como um barquinho que voa, que voa
Na correnteza do mar.
Ton âme au ciel, au ciel qu’on adore,
Monte sur l’aile, sur l’aile du jour,
Et revient avec l’aurore
Toute réchauffée d’amour.
Dans ton sein, ma bien-aimée,
Tu as la sainte, la sainte pudeur.
Elle y vit, c’est la rosée
Qui dort, qui dort au fond de la fleur,
Nada prende teus encantos,
Teus passos nada detém
Choras e ris, e teus prantos,
Teus prantos, são de alegria também.
Mas esse encanto, encanto profundo,
Há de acabar por fim, por fim,
Quando pensares no mundo,
Quando pensares em mim.
Dans la liberté des charmes
Que le ciel t’a départis,
Tu ris et pleures. Tes larmes
Ce sont encore des ris.
Ah ! la vie, la vie est si profonde !
Tu sauras quelle est sa loi
Quant tu penseras au monde,
Quand tu penseras à moi.
Tu’alma vai como a prece
Dormir no coxim dos céus;
O dia rompe e ela desce
Quente dos braços de Deus!
Nada prende os teus encantos.
Teus passos nada detem:
Choras e ris, - e teus prantos
São de alegria também.
Que doce existência a tua!
Que meigo e puro arrebol!
Macio raio de lua
Ardente raio de sol!
E teu pensamento à toa
Corre, corre sem parar
Como um barquinho que voa
Na correnteza do mar.
Mas esse encanto profundo
Há de acabar-se por fim,
Quando pensares no mundo,
Quando pensarem em mim.
Fonte: Guimarães Júnior (1869); Magalhães Júnior (2008)
698
FATOS DIVERSOS, A Reforma: órgão democrático, n. 186, 20 de agosto de 1876, p. 3. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/226440/8612>. Acesso em: 19 jan. 2019. [Ortografia atualizada conforme as
regras vigentes.]
699
GAZETA de Campinas, n. 836, 5 de setembro de 1876, p. 3. Disponível em: <
http://200.144.6.120/uploads/acervo/periodicos/jornais/GC18760905.pdf> . Acesso em: 19 jan. 2019.
700
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 269
337
Esta comparação tripla é interessante porque através dela pode-se inferir que Machado
possivelmente utilizou o texto original de “Candura” para compor sua versão francesa que
Magalhães Júnior considera “mais uma adaptação do que mesmo uma tradução, embora
aproveitando na segunda oitava alguns dos versos originais”701. “Candura” segue um esquema
métrico e de rimas fixo em todo o poema, com versos heptassílabos e rimas cruzadas, ao passo
que “Inocência”, reestruturado para ser cantado, é um bocado mais livre: as quadras tornam-se
oitavas, conservando as rimas cruzadas, mas com alguns versos de metro variável dividindo
espaço com os versos de sete sílabas aproveitados de “Candura” sem modificação.
A versão de Machado de Assis é, mais do que uma tradução, outro poema. Machado
mantém as rimas cruzadas e a maior parte dos seus versos é de heptassílabos, bem como também
compõe o seu texto em duas oitavas, como “Inocência”. Entendemos, contudo, que essa
diferença é bastante reveladora do poeta e tradutor que era Machado de Assis, que foi sensível
à necessidade de criar outro texto que, mais do que funcionar como poema, deveria ser
melodicamente agradável para ser cantado e se encaixar na melodia da canção, como já fizera
em “Lua da estiva noite”, sem que isso significasse criar um texto que em nada lembrasse o
texto-fonte.
Os poemas “Candura” e “Inocência” de Luís Guimarães Júnior são variações sobre o
tema da fugacidade da vida cândida, inocente diante da revelação do mundo e do amor, escritas
com a leveza do verso de sete sílabas com imagens e temas românticos, como a própria
inocência, mas também o apelo ao mundo natural e à religião, presente em “Candura”,
expressos através da presença dos astros, de pássaros, do mar, mas também de Deus e da alma
imortal. O viés religioso, todavia, não está presente em “Inocência”, visto que não há nenhuma
referência à alma ou à presença divina. Note-se que esse mesmo viés está presente logo nos
primeiros versos da versão machadiana: “Ton âme au ciel, au ciel qu’on adore, / Monte sur
l’aile, sur l’aile du jour,” (“Tua alma no céu, no céu que se adora / Monta as asas, as asas do
dia”). Estes versos, pela temática, nos remetem à segunda quadra de “Candura”:
Tu’alma vai como a prece
Dormir no coxim dos céus;
O dia rompe e ela desce
Quente dos braços de Deus!
701
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 270
338
Evidentemente há diferenças, posto que não se trata de uma tradução que busque exata
correspondência semântica. Observa-se, apesar disso, que Machado de Assis soube preservar
elementos presentes no poema de Guimarães Júnior, como uma alma que desce dos céus com
o raiar do dia. Nos quatro últimos versos da primeira estrofe Machado se afasta
consideravelmente do texto de Guimarães Júnior, escolhendo dizer que no seio da amada reside
a pureza, o santo pudor, que dorme como uma rosa ainda em botão, esperando o momento de
desabrochar. É neste momento também que a versão de Machado escolhe o gênero feminino –
“ma bien-aimée” – como objeto do poema, algo que não está claro nos textos de Guimarães
Júnior, embora sugerido.
Na oitava seguinte, Machado mantém a presença do choro, do riso e das lágrimas, e
escolhe ser mais direto, trocando o “encanto profundo”, metáfora para a ingenuidade no texto
de Guimarães Júnior, por “la vie est si profonde”, desfazendo-se da figura de linguagem.
Também escolhe um caminho diferente para tratar da perda da inocência, embora igualmente
metafórico: enquanto Guimarães Júnior escreve que “esse encanto profundo / Há de acabar por
fim, por fim” – clara referência ao fim da vida ingênua que a moça leva – Machado de Assis
escolhe “la vie est si profonde! / Tu sauras quelle est sa loi”, escolha um pouco mais impactante
por afirmar que mais do que a inocência simplesmente acabar, esta é a lei da vida, é assim que
as coisas são.
É preciso notar também que Machado soube que era necessário preservar os dois últimos
versos do poema, os mais belos e sonoros do conjunto, conseguindo um belíssimo resultado
que mantém os mesmos paralelismos, assonâncias e aliterações do texto de Guimarães Júnior,
algo certamente facilitado, é verdade, pela possibilidade de construção próxima nas duas
línguas e pelos cognatos que soam de forma bastante similar. É razoável supor que esta
tradução, sem paralelos na lavra tradutória machadiana, foi um trabalho que o tradutor fez a
pedido de um amigo e que pouca relação guarda com a sua obra autoral ou sua poética. É
inegável, entretanto, o quanto este pequeno trabalho revela o cuidado e arte empregados na
feitura do trabalho, um testemunho do empenho de poeta no tradutor.
10.3 “To be or not to be”
A tradução em verso “Monólogo de Hamlet” foi publicada pela primeira vez, segundo
levantamento de Galante de Sousa, no nº 13 do Arquivo Contemporâneo, no Rio de Janeiro, em
339
22 de fevereiro de 1873. A peça foi posteriormente republicada no Jornal do Comércio, também
no Rio de Janeiro, em 8 de janeiro de 1878, e em seguida n’O Cruzeiro em 13 de janeiro do
mesmo ano, com a informação de que era uma transcrição do texto publicado no Jornal do
Comércio, já sob o novo título “To be or not to be”, mantido em Ocidentais702. Apesar de a
primeira publicação datar de 1873, Galante de Sousa anota que esta peça
devia estar realizada desde 1871, pois, no trabalho anônimo Histórias da Meia-Noute
de Machado de Assis em A Reforma (Rio, 18 de novembro de 1873), diz o crítico:
“Machado de Assis dá ao publico o que de melhor ha em suas excellentes
composições; mas que de paginas interessantíssimas não tem ele ao abrigo da
curiosidade humana? Ainda ha dous annos vimos a traducção por ele feita do famoso
To be or not to be de Shakespeare, e com que dificuldade nos mostrou aquele mimo
de que nem ao menos guardamos uma copia.”703
Na edição crítica das Poesias completas somos informados de que não foi possível encontrar a
publicação da tradução em O Cruzeiro, inviabilizando o cotejo. Notamos, contudo, que a edição
crítica traz uma data equivocada para esta publicação: 13 de agosto de 1878, e não 13 de janeiro
de 1878, como informado por Galante de Sousa. Na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
é possível consultar a tradução de Machado publicada n’O Cruzeiro na data indicada na
Bibliografia de Machado de Assis, introduzida pelo texto que reproduzimos a seguir:
No famoso monologo de Hamlet teem naufragado tantos tradutores, que com
verdadeira surpresa e prazer lemos ultimamente uma nova versão, que está destinada,
segundo parece, a satisfazer os proprios inglezes, que conhecem a nossa lingua, e que
são naturalmente os mais difficies de contentar.
Dizemos isso porque da parte de um dos mais distinctos filhos da Inglaterra, há longos
annos residente entre nós, nos vem a indicação para transcrevermos esse trecho que
elle denominou uma “Literary Gem”.
Satisfazemol-o com a melhor vontade, até porque veio ao encontro da nossa intenção.
O vencimento de uma tal difficuldade não deixa de logar a sentimento algum de
surpreza, quando se sabe que o traductor foi o sr. Machado de Assis.
Eis a versão tal qual foi publicada no Jornal do Commercio.704
Há, ainda, uma errata publicada dois dias depois corrigindo dois versos da tradução para “Assim
da reflexão á luz mortiça / A viva cor da decisão desmaia”. Considerando esta errata, a única
divergência entre o texto que saiu em O Cruzeiro e o que apareceu em Ocidentais surge no
verso 7, corrigido de “Da nossa dor eternamente apaga” para “Da nossa dor eternamente
acaba”, quase certamente um deslize tipográfico. Portanto, é possível afirmar que em 1878 o
702
SOUSA, 1955, p. 467
Ibid., p. 468
704
NOTAS LITERÁRIAS. O Cruzeiro, 13 de janeiro de 1878, p. 3. Disponível em: <http://
memoria.bn.br/DocReader/238562/115>. Acesso em 17 mai. 2018.
703
340
poema já tinha a sua forma final conforme publicada em Ocidentais nas Poesias completas de
1901.
Além das republicações anotadas por Galante de Souza, encontramos mais duas de “To
be or not to be”: uma na página 2 de O Repórter de 25 de julho de 1879, e outra na primeira
página do Jornal da Tarde de São Paulo, em 1 de junho de 1881. Ambas reproduzem fielmente
o texto publicado em O Cruzeiro, sem atentar para as correções da errata publicada dois dias
depois.
O biógrafo Raimundo Magalhães Júnior explica que esta tradução foi “[...] feita sob o
entusiasmo experimentado quando da representação dessa tragédia pelo ator italiano Ernesto
Rossi”705. A companhia italiana de Ernesto Rossi – que chegou ao Rio de Janeiro em 1871
encenando primeiramente Otelo, seguida de Romeu e Julieta, Hamlet e, por fim, Macbeth – não
teve sucesso nas bilheterias na sua primeira passagem pelo Brasil706, apesar do prestígio de que
o ator gozava. Rossi interpretou Hamlet no Teatro Lírico Fluminense em 12 de junho de 1871,
o que corrobora a sugestão de Galante de Sousa de que a tradução, embora publicada só em
1873, data daquele ano.
O impacto da atuação de Ernesto Rossi sobre Machado de Assis pode ser apreciado por
meio de dois textos escritos na época: “Macbeth e Rossi” e “Rossi – Carta a Salvador de
Mendonça”. Até então, o público brasileiro conhecia as peças de Shakespeare principalmente
a partir das montagens de João Caetano que, segundo levantamentos, trabalhou a partir das
adaptações francesas de Ducis707. O problema das versões de Ducis estava no fato de que as
peças foram reescritas “de acordo com os preceitos defendidos na França daquele momento”,
levando a profundas alterações do texto shakespeariano, como mudanças nos nomes das
personagens e unidade de tempo e ação forçadas sobre o texto, eliminando passagens
importantes que comprometiam até mesmo a coerência da peça708. Essas alterações foram
705
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 230
O’SHEA, José Roberto. “As primeiras estrelas shakespearianas nos céus do Brasil: João Caetano e o teatro
nacional”. In: MARTINS, Marcia A. P. (Org.). Visões e identidades brasileiras de Shakespeare. Rio de Janeiro:
Editora Lucerna, 2004, p. 204.
707
TELES, Adriana da Costa. Machado e Shakespeare: intertextualidades. São Paulo: Perspectiva/Fapest, 2017,
p. 5
708
TELES, 2017, p. 6
706
341
consideradas inaceitáveis por Ernesto Rossi, que buscou dar ao público versões mais próximas
às concebidas pelo bardo inglês709.
Isso é atestado por Machado de Assis em “Macbeth e Rossi”, publicado na Semana
Ilustrada de 25 de junho de 1871: com a interpretação de Rossi, “[...] vai-se conhecendo
Shakespeare, de que o nosso público tinha apenas uma notícia por uns arranjos de Ducis (duas
ou três peças apenas) ou por partituras musicais”, concluindo em seguida que “Shakespeare
está sendo uma revelação para muita gente”710, dando a entender que o que conheciam do bardo
até então era consideravelmente diverso do revelado pelo ator italiano.
Em “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça” Machado de Assis deixa mais uma vez
sua impressão do ator italiano e suas montagens de Shakespeare:
Não te fallo de Hamlet, de Othelo, de Cid, de todos esses typos que a posteridade
consagrou, e que o Rossi tem reproduzido ante o nosso publico, fervente de
enthusiasmo. Um d’elles, o Hamlet, nunca o tinha visto pelo nosso ilustre João
Caetano. A representação d’essa obra, a meu ver (perdoe-me Villemain) a mais
profunda de Shakespeare, afigurou-se me sempre um sonho difficil de realizar.
Difficil era, mas não impossível. Veiu realizar m’o mesmo actor que sabe traduzir a
paixão de Romeu, os furores de Othelo, as angustias do Cid, os remorsos do Macbeth,
que conhece em summa toda a escala da alma humana. O que elle foi n’aquelle typo
eterno de irresolução e da duvida, melhor do que eu poderia dizer, já outros, e
competentes, o disseram nos jornais. Para mim era antes quasi uma chimera, hoje é
uma indelevel recordação.
Aquelle gesto é pois uma pura invenção do Rossi, mas uma invenção logica, natural,
não extranha ao caracter, mas complemento d’elle; é uma colaboração do interprete
na obra original. Um artista que reproduzisse aquelle gesto, com a mesma felicidade,
mas por advertência do autor, seria digno de fervorosos aplausos; não seria porém tão
creador como o Rossi711.
Hamlet é chamada de “teatro do mundo” em Shakespeare: the invention of the human
(1998) de Harold Bloom, que equipara a peça do bardo inglês a grandes obras da literatura
mundial como a Divina Comédia, Fausto, Ulisses e Em busca do tempo perdido712. Nesta
tragédia de vingança, o príncipe Hamlet, enlutado pela morte de seu pai, o rei Hamlet, e
inconformado com o casamento de sua mãe Gertrudes com seu tio Claudius – irmão do falecido
rei – é instado a vingar-se pelo suposto fantasma de seu pai, que revela ter sido sua morte um
fratricídio. A vingança, contudo, não se realiza facilmente e o príncipe Hamlet passa quase toda
a peça em busca da certeza do assassinato e questionando a moralidade de matar seu tio. Hamlet,
incapaz de seguir adiante depois da morte do pai, mata acidentalmente Polonius, pai de Ofélia
709
TELES, Adriana da Costa. “Machado de Assis crítico teatral: Ernesto Rossi e as encenações de Shakespeare
no Brasil no ano de 1871”. Estudos Linguísticos, São Paulo, 40 (3): p. 1842-1851, set-dez 2011, p. 1844
710
ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1164
711
ASSIS, Machado de. “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça”. In: A Reforma, 20 de julho de 1871, p. 2.
Disponível em: <memoria.bn.br/DocReader/226440/2583>. Acesso em 22 mai. 2018.
712
BLOOM, Harold. Shakespeare: the invention of the human. New York: River Head Books, 1998, p. 383
342
– que vai à loucura com a morte do pai e com o comportamento de Hamlet, por quem estava
apaixonada, acabando por suicidar-se – e Laertes, que retorna da França para vingá-lo. Temos,
assim, três círculos concêntricos de vingança: no centro da ação está a vingança de Hamlet
contra seu tio Claudius; em seguida, temos a de Laertes, que deseja matar Hamlet para vingar
seu pai; e por fim temos Fortinbras, que invade a Dinamarca para vingar a morte de seu pai –
também ele chamado Fortinbras – assassinado pelo pai de Hamlet. Destarte, desenham-se
algumas das principais características da peça: personagens presas a um passado ao qual
precisam constantemente retornar, a inação diante da dúvida, e os duplos, Hamlet e seu pai, de
quem herda o nome e a quem está inexoravelmente preso a ponto de quase perder sua
identidade, algo duplicado na figura de Fortinbras que, mesmo praticamente ausente em toda a
peça, paira sobre ela de forma agourenta, ou mesmo a peça-dentro-da-peça, The mousetrap, um
mise-en-abîme cênico que Hamlet utiliza como artifício para testar as acusações do fantasma
de seu pai.
Isso se reflete inclusive na linguagem empregada na peça, de acordo com Frank
Kermode (2006): Hamlet é “[...] dominada a um ponto sem paralelo no cânone por um recurso
retórico específico: é obcecada por duplos de toda espécie, e mais notadamente por seu uso da
figura conhecida como hendíade”713. Os duplos, as alternativas, a dúvida, encontram seu ápice
no mais famoso monólogo escrito por Shakespeare, o “ser ou não ser” da primeira cena do
terceiro ato.
Ainda segundo Kermode, neste monólogo estamos “[...] desde logo pousados entre duas
alternativas. Ser ou não ser? Sofrer ou tomar armas?”, e mais adiante completa: “[...] Hamlet
está relacionando sua situação pessoal a uma visão mais geral da condição humana, o que,
penso eu, é um novo uso para o solilóquio – normalmente usado apenas para transmitir
informações à plateia – como um meio de encarar de forma mais ampla a condição humana”714.
Já Harold Bloom oferece uma interpretação instigante sobre a suposta incapacidade de agir de
Hamlet:
A vontade de Hamlet deixa de ser denominada ação, mas não deixa de ser ação, que
permanece na exaltação da mente. É viável objetar: onde estaria tal exaltação nesse
solilóquio? A resposta é a seguinte: na íntegra dos versos, em cada frase, em cada
pausa, enquanto essa que é a maior das consciências escuta a sua própria música
cognitiva715.
713
KERMODE, Frank. A linguagem de Shakespeare. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Record, 2006, p.
149.
714
KERMODE, 2006, p. 168
715
BLOOM, 2004, p. 45
343
O monólogo em questão, portanto, parece resumir a questão central da peça ao colocar o homem
diante dos únicos caminhos a seguir, situação que Bloom analisa em Hamlet: poema ilimitado:
Ao ser, à consciência, é possibilitada uma escolha: sofrer estoicamente, ou tomar
armas contra o mar e, destarte, apressar o fim, tragado pelo fio da corrente, cuja
imponência as nossas empresas supremas não são capazes de alcançar. Temos aqui
duas grandes metáforas em conflito: a libertação com respeito ao corpo (invólucro
mortal), tudo o que haveremos de perder, e o país ignorado, o reino da morte, de onde
nunca ninguém voltou, mas de onde o espectro do Rei Hamlet escapa duas vezes
durante a peça. O fantasma busca vingança, e ela chega, ainda que não o faça por meio
da vontade do Príncipe Hamlet716.
Crítica teatral, tradutora e escritora especializada em Shakespeare, Bárbara Heliodora
(2001) nos lembra que “[...] a tragédia apresenta um processo de conscientização de um
indivíduo, tanto em relação a si mesmo quanto em relação ao universo em que existe, atingindo
por intermédio de uma vivência dolorosa que o compele à reavaliação e o conduz à morte”717.
Nesse sentido, Hamlet seria o que ela chama de “uma metáfora da própria vida”, na qual “[...]
a um homem é imposta uma tarefa que ele não buscou, mas da qual tem que se desincumbir,
como a todos nós é dada a vida que temos de levar avante”718. O príncipe Hamlet é esse homem
que está constantemente em busca do sentido de seu lugar no mundo e sente sobre si o peso de
uma responsabilidade jogada sobre ele à sua revelia, algo que se revela nitidamente na fala da
quinta cena do primeiro ato, após encontrar-se com o fantasma de seu pai:
The time is out of joint. O cursèd spite,
That ever I was born to set it right!719
Ainda assim, Northrop Frye (1999) considera que Hamlet seja “[...] uma tragédia desprovida
de catarse, uma tragédia na qual tudo o que é nobre e heroico é sufocado sob brutais códigos de
vingança, sob a traição e a espionagem e sob as consequências da fraqueza gerada pela
repressão dos desejos”720. Evidentemente, o crítico canadense não pretendia diminuir a
dimensão da obra com esses comentários, mas demonstrar que Hamlet, por não se conformar
às amarras do gênero, “[...] é um estudo de sua personagem principal, é talvez o exemplo mais
impressionante, na literatura, de um espírito titânico que se debate na prisão formada pelo que
ele é”721. Para Bárbara Heliodora, o monólogo “ser ou não ser” é o momento em que Hamlet,
716
BLOOM, 2004, p. 44
HELIODORA, Bárbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 93
718
Ibid., p. 100
719
SHAKESPEARE, 1994, p. 1091 (Ato 1, Cena 5, verso 190)
720
FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. Org. Robert Sandler. Tradução e notas Simone Lopes de Mello. São
Paulo: Edusp, 1999, p. 116
721
FRYE, 1999, p. 126
717
344
num estado puramente reflexivo, enfrenta sua finitude diante da vida e da morte, e neste caso,
diz a escritora,
o monólogo tem uma função específica, a de expressar o interior de um temperamento
especial, que se encontra efetivamente isolado do ambiente em que vive, e com o qual
está em conflito desde o início, agravando-se tanto o conflito quanto o isolamento
com a revelação do assassinato, ainda no primeiro ato722.
A centralidade deste monólogo para a peça, apenas sugerido por Heliodora, é abertamente
descrito como tal tanto por Northrop Frye quanto por Harold Bloom em Shakespeare: the
invention of the human. Para o crítico canadense, o monólogo, “[...] fundamentalmente
organizado num fluxo de infinitivos, essa misteriosa parte do discurso que não é nem verbo
nem substantivo, nem ação nem coisa” expressa o que chama de “[...] uma visão que encara a
consciência como uma espécie de vácuo, um nada, no centro do ser”723. Harold Bloom vai ainda
mais longe e assevera: “[...] este solilóquio é o centro de Hamlet, ao mesmo tempo tudo e nada,
uma plenitude e um vazio jogando um contra o outro. É a base de tudo que ele dirá no Ato IV,
e pode ser considerado seu discurso-de-morte adiantado, a prolepse de sua transcendência”724.
Não surpreende, portanto, que o nosso poeta-tradutor, muito provavelmente impactado
pelo Hamlet trazido à vida por Ernesto Rossi, sentisse a necessidade de apropriar-se dele
recriando-o à sua maneira em nossa língua. É certo que Machado de Assis já conhecia o
monólogo desde muito antes, visto que há referências não só à peça, mas à “dúvida de Hamlet”
em sua obra ficcional desde a década de 1860, pelo menos, conforme a cronologia da presença
de Shakespeare na sua obra elaborada por Adriana da Costa Teles725. É igualmente certo,
contudo, que as referências a esta peça em particular se intensificam após a passagem de Rossi
pelo Rio de Janeiro: são apenas dez menções à peça até 1870, das quais quatro se referem a
Ofélia e à sua morte, contra vinte e quatro menções na década seguinte, após 1871, quase todas
remetendo o leitor aos questionamentos mais filosóficos da tragédia. Northrop Frye lembra que
Durante o século XIX e por um bom tempo no início do século XX, Hamlet foi
considerada a peça principal e mais significativa de Shakespeare, porque dramatiza a
preocupação fundamental da era do romantismo, ou seja, o conflito entre a
consciência e a ação, a consciência como um recuo diante da ação, que poderia
conduzir à vacuidade, mas que, por outro lado, era a única coisa que poderia impedir
que a ação se tornasse completamente insensata726.
722
HELIODORA, 2001, p. 110
FRYE, Op. Cit., p. 127
724
BLOOM, 1998, p. 409, tradução nossa. No original: “this soliloquy is the center of Hamlet, at once everything
and nothing, a fullness and an emptiness playing off against each other. It is the foundation for nearly everything
he will say in Act IV, and can be called his death-speech-in-advance, the prolepsis of his transcendence””.
725
Cf. TELES, 2017, pp. 225-262
726
FRYE, 1999, p. 127
723
345
Observando a maneira como o nosso poeta-tradutor passa a se relacionar com a peça após sua
tradução, fica-se com a impressão de que a recriação do texto permitiu ao escritor interiorizar
de maneira bastante particular o que Frye chama de “conflito entre a consciência e a ação”,
aproveitado por Machado de Assis à sua maneira tão canibalizadora quanto irreverente.
Ainda assim, mesmo diante de uma força criadora tão pungente como Shakespeare, e
de um texto cuja força expressiva é reconhecida unanimemente pela crítica, o tradutor Machado
de Assis não se intimida e, principalmente, não se deixa apagar. Jean-Michel Massa avalia que
“[...] o ‘Monólogo de Hamlet’ (III, 1) afasta-se sensivelmente do original e não está isento de
afinidades com as traduções de Le Tourneur e de Delloye”727, conclusão a que chega depois de
demonstrar que algumas expressões inglesas não encontram correspondente na versão de
Machado de Assis. Após um breve cotejo, Massa conclui que a tonalidade da versão
machadiana corresponde ao seu talento de escritor, ocultando a violência dramática – um
resquício, talvez, de seu primeiro contato com Shakespeare através das adaptações de Durcis
por intermédio de João Caetano –, tornando abstrato o que é mais concreto em Shakespeare,
mas com a ressalva de que “[...] ganha em poesia o que perde em potência dramática”, medida
em que a tradução “[...] não está deslocada em Ocidentais”728.
Apesar de Massa sugerir que a versão de Machado possui afinidades com as traduções
de Le Tourneur e Delloye, a verdade é que a tradução machadiana se afasta tanto dessas e de
outras versões que chega a ser impossível determinar qual teria sido a versão utilizada por
Machado de Assis, reforçando a nossa tese de que ele deve ter trabalhado com mais de uma ao
mesmo tempo. Conforme Berman sugere no trajeto de análise que propõe, além das versões
citadas por Massa, consultamos as versões com as traduções de Émile Montégut – que ele
possuiu em sua biblioteca em edição anterior a esta tradução – e Laroche, e até mesmo a versão
italiana utilizada por Ernesto Rossi, além, é claro, do texto em inglês de Shakespeare. Em face
de tais fatos, o cotejo entre as versões nos levou naturalmente para outro caminho, um que
realça as guinadas independentes no poema de Machado de Assis – é imperativo, agora,
considerá-lo um original em si mesmo – justamente a partir das diferenças entre o seu poema e
os demais. Diante da impossibilidade de determinar quais teriam sido os textos-fonte com
alguma precisão, tomamos o texto em inglês de Shakespeare como parâmetro para apreciar a
versão de Machado de Assis.
727
728
MASSA, 2008, p. 88
Ibid., p. 89
346
Vejamos o poema de Machado ao lado do texto de Shakespeare:
Quadro comparativo 34 – Poema “To be or not to be” e versão inglesa do trecho do monólogo de Hamlet
Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.
To be or not to be, that is the question:
Whether ‘tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles
And by opposing end them. To die—to sleep,
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to: ‘tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, to sleep;
To sleep, perchance to dream—ay, there’s the rub:
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause—there’s the respect
That makes calamity of so long life.
For who would bear the whips and scorns of time,
Th’oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of dispriz’d love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of th’unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovere’d country, from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all,
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pitch and moment
With this regard their currents turn awry
And lose the name of action.
Fonte: Assis (1976); Shakespeare (1994)
Ao tomarmos para análise os primeiros quatro versos do poema acima, entendemos que é
preciso contradizer Massa quanto à abstração da poesia de Machado pois acreditamos que o
poeta pinta uma cena muito mais concreta, física do que qualquer outro texto, inclusive o de
Shakespeare: o Hamlet de Machado de Assis questiona se deve prostrar-se, cabisbaixo diante
dos males ou lutar contra eles, numa pergunta quase retórica. Este Hamlet, por enquanto, não
parece querer se dar por vencido, nem parece duvidar de que agir é o melhor caminho. O Hamlet
de Shakespeare – bem como o dos franceses, a propósito – não pergunta se deve baixar cabeça
ou lutar, mas se deve a mente sofrer “the slings and arrows of outrageous fortune”, ou seja,
347
suportar estoicamente o sofrimento no plano interior, intelectual ou, como escreve Shakespeare,
“to take arms against a sea of troubles, / And by opposing end them?”. O Hamlet de Shakespeare
se opõe aos problemas; o de Machado luta contra eles, mesmo que sejam um “extenso mar de
acerbos males”, com adjetivos intensos e sem paralelo em nenhuma das versões consultadas.
A fisicalidade do poema de Machado também é mais aparente nos versos
[...] Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? [...]729
O Hamlet de Machado de Assis fala em despir-se de um “lodo mortal”, nossa forma corpórea,
remetendo inclusive à tradição judaico-cristã segundo a qual o homem teria vindo do pó, que
aqui se torna “lodo”, exacerbando a ideia da decomposição e decadência física. No seu verso
correspondente, Shakespeare fala em “shuffle off this mortal coil”, em que o substantivo central
aqui – “coil” – significa “confusão”, “tumulto”730, remetendo-se claramente à necessidade de
se livrar das atribulações da vida, o que em nada se parece com a intensa corporeidade da
solução machadiana. Novamente, nenhum dos franceses sequer se aproxima da força imagética
de Machado ou Shakespeare: Le Tourneur, por exemplo, fala em “nous serons soustraits au
tumulte de cette vie?”; Montégut resolve por “nous avons échappé à cette tourmente de la vie
mortelle?” enquanto Laroche escreve “nous aurons rejeté loin de nous une existence agitée?”.
É curioso notar, por fim, como os cinco versos finais da tradução de Machado:
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.731
correspondem exatamente aos mesmos cinco versos finais da versão shakespeariana:
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action. 732
729
ASSIS, 1976, p. 463
CRYSTAL; CRYSTAL, 2002, p. 82
731
ASSIS, 1976, p. 464
732
SHAKESPEARE, William. “Hamlet, Prince of Denmark”. In: Complete Works of William Shakespeare.
HarperCollins: Glasgow, 1994, p. 1100
730
348
Obviamente, trata-se de uma semelhança que mais tem a ver com a posição final e a forma – já
mencionamos anteriormente que o parentesco entre os decassílabos e o pentâmetro iâmbico foi
sugerido e demonstrado por Péricles Eugênio da Silva Ramos – do que com o texto em si.
Machado, como diversas outras vezes, retorna à ideia dos versos de partida e a partir dela cria
outros versos que trazem um modo bastante próprio de se expressar, que não parece buscar no
estrangeiro outra coisa além da ideia.
Neste trecho final do monólogo, Hamlet está dizendo que, diante da morte, diante da
perspectiva de ir para o “undiscover’d country”, aquele lugar desconhecido de onde nenhuma
alma jamais voltou – a não ser a de seu pai, que retorna clamando por vingança – os homens
acovardam-se, o que era resolução enfraquece-se, perde o rumo diante do medo da morte e
deixa de ser ação. Esta é a mesma ideia que Machado de Assis expressa, mas com imagens que
são pura invenção sua, como a “luz mortiça” e a “viva cor da decisão”, novamente
acrescentando adjetivos que não existem no texto de Shakespeare ou em qualquer uma das
versões francesas que consultamos. As “enterprises of great pith and moment” – “empresas de
grande importância e consequência” – de Shakespeare se tornam o “firme, essencial
cometimento” que em Machado é “abalado” por aquela ideia de morte, um acréscimo do
tradutor que explicita uma sugestão do texto shakespeariano, e que por isso se perde e,
consequentemente, o que seria ação deixa de existir.
Esta tradução, feita cerca de trinta anos antes de sua última e definitiva publicação, é
exemplar no que mostra um poeta que não curva a cerviz aos potentes golpes do texto
shakespeariano, desvia o curso, mas não se perde nas caudalosas correntes do poema do bardo
inglês. Ainda que aceitássemos a proposta de que poema de Machado de Assis perde em
dramaticidade – o que não é o caso e de forma alguma se justifica, a não ser, talvez, pelo registro
elevado de seu texto – como afirma Massa, esta perda seria sensata, justificável e, diríamos,
talvez até mesmo proposital, visto que não se trata mais de versos da fala de uma personagem
em uma peça teatral, mas versos de um poema filosófico sobre a finitude do próprio ser, seu
lugar no mundo, suas dúvidas, sua impotência diante da morte, enfim, sobre o que significa ser
humano.
Na sua Poética do traduzir Henri Meschonnic apresenta uma reflexão que pode nos
ajudar a pensar este poema-tradução de Machado de Assis:
“[...] traduzir não é mais difícil, mas diferente. A tradução também será diferente. E
se ela não confunde retórica e poética, métrica e ritmo, sentido e significância,
rebatendo a alteridade na identidade, sim, a tradução será melhor, simplesmente
porque, em ligação com um texto, ela funcionará como um texto. Ela não será
349
simplesmente conduzida por uma interpretação, mas será, por sua vez, portadora. Terá
alcançado sua própria literalidade”733.
Este não é mais o monólogo de Hamlet na primeira cena do terceiro ato da tragédia. É um
poema das Ocidentais de Machado de Assis, é uma continuação, um desdobramento, um
rebento do texto de William Shakespeare que porta seu próprio significado, que deve ser lido e
apreciado em seus próprios termos e que teve, também ele, sua continuação, seu
desdobramento, seus rebentos, na obra do poeta que o criou.
Eugênio Gomes já o demonstrava em Machado de Assis: influências inglesas, onde nos
lembra de que Hamlet foi a peça que mais impregnou Machado de Assis desde o começo,
principalmente o monólogo To be or not to be que acabou por recriar734. “Esse solilóquio”,
escreve Gomes, “tornou-se por bem dizer a matéria-prima da erudição a que Machado de Assis
não se cansava de recorrer, especialmente em suas crônicas, ao comentar os acontecimentos da
semana”735. Foi matéria-prima, por exemplo, do conto que leva o mesmo título de sua tradução
do monólogo, “To be or not to be”, cuja moralidade, para Eugênio Gomes, “[...] baseia-se na
ruminação filosófica de Hamlet, no sentido de que ‘o suicídio depende mais das impressões e
disposições do momento, que da gravidade do mal’”736. De igual modo, Gomes acredita que há
nas Memórias Póstumas de Brás Cubas “[...] um humour macabro, que tudo indica provir de
uma larga absorção de Hamlet”737. Lembra, por exemplo, que se afirmou que “[...] Machado de
Assis levara consigo um exemplar de Hamlet, quando foi convalescer de grave enfermidade em
Nova Friburgo, por volta de 1878”738. O biógrafo Magalhães Júnior nota que foi durante tal
enfermidade que “[...] Machado de Assis ditou à esposa alguns trechos do romance em que
vinha trabalhando, Memórias Póstumas de Brás Cubas”739, corroborando a sugestão de que há
certa assimilação de Hamlet no romance.
A presença de Hamlet, e particularmente do monólogo “To be or not to be” na obra de
Machado de Assis é tão vasta e rica que não daria, aqui, para entrar neste mérito, que em muito
extrapola nosso escopo e espaço. Além do mais, há diversos estudos neste sentido, como os já
citados de Eugênio Gomes e, muito recentemente, o livro de Adriana da Costa Teles, Machado
de Assis & Shakespeare: intertextualidades, que já fizeram este trabalho. Basta, por hora, ter
demonstrado que, mais uma vez, o trabalho de tradução na obra de um escritor não é sempre
733
MESCHONNIC, 2010, p. 6
GOMES, 1976, p. 17
735
Ibid.
736
Ibid., p. 16
737
Ibid., p. 24
738
Ibid.
739
MAGALHÃES JR., vol. 2, 2008, p. 326
734
350
um trabalho à parte, isolado, que nada tem a ver com sua ocupação principal, mas pode fazer
parte e interagir organicamente com o restante de sua produção autoral.
10.4 “Seis dias em Cuiabá”
O caso do poema “Seis dias em Cuiabá”, listado por Jean-Michel Massa e Eliane
Ferreira como uma das traduções poéticas de Machado de Assis, é particularmente delicado e
ao mesmo tempo interessante. Delicado porque Massa apresenta informações diferentes a
respeito do texto e não apresenta todas as fontes consultadas, mas particularmente curioso por
ser, talvez, o único texto cujo original é em português, traduzido para o alemão e posteriormente
retraduzido do alemão para o português. A publicação do texto em questão se deu na Gazeta de
Notícias no dia 1 de agosto de 1888 como parte de um breve artigo intitulado “Na gema do
Brasil (À procura do Xingú)” que, por sua vez, fora traduzido do alemão por Capistrano de
Abreu a partir do livro Durch Central-Brasilien (1884) do explorador e antropólogo alemão
Karl von den Steinen, conforme demonstraremos posteriormente. Em Machado de Assis
tradutor Massa escreve o seguinte a respeito deste poema:
Um texto serve de pedra de toque para avaliar o conhecimento que Machado de Assis
tinha do alemão em 1888. Por encomenda de Capistrano de Abreu, ele retraduziu em
português uma décima brasileira, transcrita em alemão em uma obra científica do
etnólogo Karl von den Steinen.740
Na sua tese complementar Massa afirma que a tradução fora encomenda de Capistrano
de Abreu, sem indicar as fontes de tal informação. Quando recolhe o mesmo texto em Dispersos
de Machado de Assis o que encontramos é um pouco diferente, deixando margens para dúvida
a respeito da colaboração entre Capistrano de Abreu e Machado de Assis:
A tradução é fiel e a poesia, divertida. Pode-se concluir que Machado conhecia o
alemão? O texto é breve e, além disso, é bastante fácil. Além do mais, a tradução
poderia ter sido feita em colaboração com Capistrano. A tarefa de Machado teria
sido somente a de fazer os versos rimarem. O texto é pequeno e nos faltam provas
conclusivas.741
Com o intuito de pelo menos fornecer fontes que comprovem ou refutem as afirmações
de Massa, tentamos identificar algo que atestasse o papel de Machado de Assis neste texto. A
publicação na Gazeta de Notícias mencionada acima, jornal de que Machado era colaborador,
740
MASSA, 2008, p. 51, grifo nosso
MASSA, 1965, p. 562, grifo nosso, tradução nossa. No texto-fonte: “La traduction est fidèle et la poésie
amusante. Peut-on conclure que Machado de Assis connaissait l’allemand ? Le texte est très bref, et, en autre, il
est très facile. De plus, la traduction a peut-être été faite en collaboration avec Capistrano. La tâche de Machado
de Assis n’était-elle pas principalement de faire rimer les vers. Le dossier est mince et nous manquons de preuves
certaines.”
741
351
se dá sem nenhuma indicação de autoria do texto ou da tradução. Encontramos, todavia, um
livro intitulado Do Rio de Janeiro a Cuyabá: notas de um naturalista (1922), de Herbert H.
Smith que traz, em apêndice, “um capítulo de Carlos von den Steinen sobre a capital de Matto
Grosso”. Este volume de Herbert Smith contém um prefácio assinado por Capistrano de Abreu,
informando que Smith pediu à Gazeta de Notícias que publicasse suas impressões de viagens
antes de voltar do sertão cuiabano, no que foi atendido742. Neste mesmo prefácio, Capistrano
de Abreu escreve ainda: “A continuação do trabalho de Herbert Smith, que devia estudar a
remota província, nunca veio. Para Cuiabá não figurar só na folha do rosto, juntam-se algumas
páginas do livro de Carlos von den Steinen, também traduzidas por mim e impressas na
Gazeta.”743
Acreditamos que seja esta a obra que Massa consultou porque nela encontramos, no
apêndice traduzido e anotado por Capistrano de Abreu, o poema original e anônimo que fora
traduzido para o alemão, possivelmente por von den Steinen, e publicado no livro Durch
Central-Brasilien, e retraduzido por Machado de Assis para acompanhar a publicação de
Capistrano de Abreu na Gazeta de Notícias, de acordo com a nota de rodapé que acompanha
esta publicação: “Esta décima foi bondosamente retraduzida do alemão ao vernáculo por
Machado de Assis, a pedido de quem escreve esta nota. Particularmente mão amiga indicou o
original nas Datas Mattogrossenses de Estevão de Mendonça, Rio 1919”744. No livro indicado
por Capistrano de Abreu, Datas Mato Grossenses de Estevão de Mendonça, há o relato
completo do incidente: em 18 de março de 1884 uma figueira foi cortada criminosamente, não
se sabe por quem, e o fato virou caso de polícia. A investigação, contudo, foi encerrada porque
o caso logo se revestiu de um tom ridículo alimentado pela imprensa local, que publicava
versinhos sobre o ocorrido. É de uma dessas publicações, anônima, que sai a décima traduzida
por Machado de Assis. O texto original contém, na verdade, uma quadra que apresenta o mote
e uma glosa com mais cinco estrofes, das quais a décima traduzida por Machado é a primeira.
Estevão de Mendonça informa que o texto foi publicado com o pseudônimo “Um devoto de
Sant’Anna” e diz que vários nomes – dentre os quais destaca Pedro Placido Peixoto Pitaluga,
Custódio Alves Ferreira ou Flavio de Mattos – foram sugeridos, mas nunca se chegou a
descobrir o autor dos tais versos745.
742
ABREU, Capistrano de. “Prefácio”. In: SMITH, Herbert H. Do Rio de Janeiro a Cuyabá: notas de um
naturalista. São Paulo: Companhia Melhoramentos de S. Paulo, 1922, p. 5
743
ABREU In SMITH, 1922, p. 6
744
Ibid., p. 328
745
MENDONÇA, Estevão de. Datas Mato Grossenses. Vol. 1. Niterói: Escola Typ. Salesiana, 1919, p. 150-151
352
Figura 11 – Reprodução da primeira publicação de “Seis dias em Cuiabá”
Fonte: Gazeta de Notícias (1888)
353
Capistrano de Abreu ainda nos fornece mais algumas informações a respeito desta
publicação da tradução do livro de Steinen nos jornais:
A tradução do livro do Dr. Carlos von den Steinen, Durch Central-Brasilien, Leipzig,
1886, começou a ser publicada sob o titulo “Na gema do Brasil” no numero 203 da
Gazeta de Noticias de 22 de Julho de 1888 e prosseguiu nos números 204, 205, 206,
207, 208, 209. 210, 211, 212. 213, 214, 215, 217,218, 220, 222, 225, 231, 234, 254,
261, 264, 267.
Foi suspensa no número 302, 29 de Outubro, pelos motivos expostos no prefácio.
A parte vertida compreende as primeiras 115 páginas do original alemão.746
Assim, considerando que a tese complementar que deu origem a Machado de Assis
tradutor é posterior à publicação de Dispersos de Machado de Assis, é possível que as dúvidas
deixadas por Massa nos Dispersos tenham sido sanadas posteriormente durante a elaboração
da sua tese de doutorado, provavelmente a partir do mesmo volume que consultamos, o que,
todavia, não podemos assegurar.
De todo modo, temos agora depoimento de primeira mão de que, de fato, este texto foi
traduzido por Machado de Assis, embora seja mais um trabalho feito em favor a um amigo do
que uma afinidade intelectual. Para fins de comparação e análise dos resultados obtidos por
Machado de Assis, colocaremos os três textos lado a lado – a primeira versão, sua tradução para
o alemão e a de Machado de Assis, respectivamente – aproveitando do poema original somente
a décima traduzida por Steinen e Machado de Assis:
Quadro comparativo 35 – Poema “Seis dias em Cuiabá”, versão alemã e a tradução de Machado de Assis
Seis dias em Cuiabá
Durou horrendo estampido,
Na policia, sem sentidos,
Desmaiou o Ali -Babá;
Desde as margens do Aricá
A's minas do Cabaçal,
Houve um sussurro geral;
Morreu gente em Poconé,
Abalou o Lava-pé
A queda de um vegetal.
Sechs Tage lang hört Cuyabá
Ein lantes, fürchterliches Klagen:
Ohnmächtig ist er hingeschlagen
Im Amte der Ali-Babá,
Vom Ufer lern des Aricá
Zum Bergwerk hin von Cabaçal
Ertönt des Jammers Widerhall.
Es starben Menschen in Poconé,
Es schwankt der Thurm des Lava-Pe Das war des Baumes Tod und Fall.
Seis dias em Cuyabá
Ouviu-se um grande ruido,
Desmaiou esmorecido
Na chefia Ali -Babá.
Lá da margem do Aricá,
Dentro, a dentro da mineira,
O clamor tomou carreira,
Morreu gente em Poconé
Tremeu terra em Lavapé
Foi a queda da figueira.
Fonte: Smith (1922); Steinen (1886); Smith (1922)
A leitura do texto português original ao lado da tradução de Machado de Assis nos
mostra que o sentido foi razoavelmente mantido. Trata-se, afinal, de um poemeto de débil força
poética, parecendo mais um breve relato ou divertimento do que uma página de antologia. De
imediato, percebemos que Machado escolhe como seu metro o verso de sete sílabas, o mesmo
746
ABREU in SMITH, 1922, p. 331
354
utilizado no texto anônimo, porém com uma cadência rítmica muito mais agradável, uma vez
que há maior regularidade na distribuição dos acentos nos versos, atestando a superioridade do
artífice: os dois primeiros com acento na segunda e sétima sílabas e todos os demais com
acentos na terceira e sétima sílabas. Observamos também que os três textos seguem
rigorosamente o mesmo esquema de rimas. Machado, muito fiel semanticamente a ambos os
textos, afasta-se com clareza em somente um momento, quando o topônimo “minas do Cabaçal
/ Bergwerk hin von Cabaçal” desaparece e se torna mais genérico, “a dentro da mineira”. É
interessante notar também que no primeiro e oitavo versos Machado utiliza exatamente as
mesmas palavras do texto anônimo: “Seis dias em Cuiabá” para traduzir “Sechs Tage lang hört
Cuyabá” e “Morreu gente em Poconé”, traduzindo “Es starben Menschen in Poconé”.
Teria Machado conhecido o texto anônimo? Embora não acreditemos nesta hipótese, a
dúvida surge uma vez que não só os versos citados são idênticos, mas também porque no texto
alemão o verbo “hören” (“ouvir”) está no primeiro verso, mas deslocado para o segundo no
poema de Machado, aproximando-o mais do texto anônimo do que do alemão. Acrescente-se a
isso o fato de que no poema alemão o verbo está no presente e o seu sujeito é “Cuiabá”,
enquanto no texto de Machado está no pretérito, assim como no texto anônimo, porém
acompanhado de pronome apassivador. Por outro lado, sabendo do apreço de Machado pelo
uso correto do idioma, é mais provável que o tradutor estivesse buscando coerência no uso dos
tempos verbais e optasse por usar somente o pretérito por todo o texto, que é o que predomina
no texto alemão, caso em que poderíamos atribuir a semelhança ao acaso. Quanto ao outro
verso idêntico, “Morreu gente em Poconé”, é de se esperar que o resultado fosse este uma vez
que o verso alemão se expressa nos mesmos termos, podendo ser traduzido literalmente por
“Morreram pessoas” ou “Morreu gente em Poconé”, sendo que a última soa mais natural em
nosso idioma e certamente teria soado assim para o tradutor, não sendo, portanto, o suficiente
para justificar que Machado tivesse consultado o texto anônimo neste caso.
Massa sugere que este texto era suficiente para “[...] atestar que a partir de 1888
Machado de Assis atingiu um nível honroso em alemão, que algumas liberdades no texto
atestam”747, residindo aí a principal razão para darmos algum crédito a esta tradução: um
atestado de conhecimento corrente do alemão. Cremos, todavia, ser difícil acreditar que
Machado não teve nenhuma ajuda nesta tarefa em razão do curto período em que, sabidamente,
se dedicou aos estudos do idioma.
747
MASSA, 2008, p. 52
355
O que se sabe com algum grau de certeza a respeito do conhecimento que Machado de
Assis possa ter alcançado do alemão não nos permite afirmar categoricamente que o
conhecimento que o escritor tinha da língua germânica fosse suficiente para traduzir um texto
poético, por mais simples que este fosse. O biógrafo Raimundo Magalhães Júnior nos informa
que, em 1883, Machado se une ao Clube Beethoven e é neste período que o escritor demonstra
interesse pela língua de Goethe de forma que pudesse conviver melhor entre os associados
alemães. Então se juntam alguns homens de letras com esta finalidade, que eram ensinados
coletivamente sob a tutela do professor Carlos Jansen, a quem Machado prestara serviço no ano
de 1882 como prefaciador de uma edição dos Contos das mil e uma noites. Capistrano de Abreu,
um dos membros do grupo que durou de 1883 a 1884, recorda o fato em carta a José Veríssimo
em 1908, relatando que Machado de Assis não só era membro do grupo, mas também que tivera
bom aproveitamento. Fizeram parte deste grupo, além de Capistrano de Abreu e Machado de
Assis, figuras como Raul Pompéia e Ferreira de Araújo, que era diretor da Gazeta de Notícias
e que aprendeu muito bem o idioma, tendo inclusive aulas particulares com Jansen748.
Entretanto, Magalhães Júnior nos informa que
O catálogo da Exposição Machado de Assis, publicado no centenário de seu
nascimento, declara que o primeiro exercício de seu caderno de alemão tinha a data de
16 de agosto de 1883 e o último de 10 de novembro do mesmo ano. Assim, ou
Capistrano se enganou na data, ou Machado se afastou do grupo antes de completar três
meses de estudos”749
Ficamos, portanto, em dúvida quanto ao conhecimento alcançado pelo escritor no idioma.
Afinal, pouco menos de três meses de estudo não seriam suficientes para conhecê-lo bem a
ponto de se aventurar a traduzir poemas. Devemos considerar, contudo, que é possível que
Machado tenha continuado os estudos por conta própria como autodidata, ou com preceptores
irregulares no idioma, e que o sabido convívio com falantes da língua germânica teria auxiliado
na tarefa. Assim, é plausível que Machado, com a ajuda de dicionários ou mesmo de alguns
amigos, fosse capaz de recriar em português textos em alemão. Magalhães Júnior nos informa
ainda que o catálogo da Exposição Machado de Assis, em ocasião do centenário de seu
nascimento em 1939, assinala o desenvolvimento do escritor naquele breve período em que,
sabidamente, se dedicou ao estudo da língua de Goethe750. Fato é que a tradução de “Seis dias
em Cuiabá” se dá cinco anos após o início dos estudos no idioma, em 1888, e seis anos mais
tarde, em 1894, Machado fará a última tradução de poesia de que temos conhecimento, o
Prólogo do Intermezzo de Heinrich Heine, a partir do alemão e, talvez, sem o intermédio de
748
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 3, p. 69
Ibid., p. 70
750
Ibid.
749
356
nenhuma outra tradução como fizera anteriormente nos casos das traduções de Schiller, do
próprio Heine ou de “O casamento do diabo”. A tradução do Prólogo do Intermezzo seria,
portanto, a mais provável evidência do nível de conhecimento que o escritor alcançou no
idioma, embora também deixe dúvidas, como veremos adiante.
10.5 “O corvo”, uma desleitura machadiana
“The Raven”, do poeta norte-americano Edgar Allan Poe, foi publicado pela primeira
vez na edição de 29 de janeiro de 1845, no Evening Mirror de Nova Iorque, onde é apresentado
como “o mais eficaz exemplo de ‘poesia escapista’ jamais publicado neste país”751. No mês
seguinte é republicado pela American Review, desta vez sob o pseudônimo “Quales”752. Richard
Kopley (2004), autor da primeira parte do ensaio “Two verse masterworks: ‘The Raven’ and
‘Ulalume’” incluído em The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe, descreve “The Raven”
como um poema que, se por um lado não possui ainda os traços da poesia moderna, por outro
traz “[...] uma mistura sedutora de acessibilidade e mistério que lhe garantem uma afeição
duradoura”753. O autor ressalta ainda o uso de uma aliteração descrita como “[...] convincente,
que efetivamente contribui para a qualidade embaladora e encantatória da linguagem”754, com
referências à mitologia clássica, nas figuras de Palas e Plutão, e à Bíblia755.
Nas dezoito estrofes que compõem o longo poema lemos a história de um encontro entre
um jovem e um corvo que invade seus aposentos em um “bleak December”, narrado em
primeira pessoa por alguém que perdeu a mulher que amara, Lenore, e que tenta em vão
esquecê-la, entregando-se aos seus livros. A narrativa começa com a clássica abertura de tom
fabular que nos lembra o “once upon a time” (“era uma vez”), mas que aqui se torna “Once
upon a midnight dreary”, ditando o clima lúgubre que o leitor encontrará dali em diante: é à
meia-noite, e o adjetivo “dreary” nos diz que aquela meia-noite foi como outras, tediosa,
751
WILLIS, N.P apud KOPLEY, Richards; HAYES, Kevin J. “Two verse masterworks: ‘The Raven’ and
‘Ulalume’”. In: HAYES, K. The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004, p. 195, tradução nossa. No original: “the most effective single example of ‘fugitive poetry’ ever
published in this country”.
752
Ibid.
753
Ibid., p. 191, tradução nossa. No original: “an alluring mix of accessibility and mystery that earns it enduring
affection”
754
Ibid., p. 193, tradução nossa. No original: “compelling, effectively contributing to the lulling, incantatory
quality of the language”
755
Ibid., p. 194
357
repetitiva, deprimente, fria. Sabemos que o rapaz estava extremamente cansado das suas leituras
(“pondered, weak and weary”) quando ouve alguém bater à porta.
Na segunda estrofe o poeta nos diz que era dezembro – fim de um ciclo, portanto – e
que ele esperava que viesse um amanhecer, metáfora para a renovação, enquanto buscava
inutilmente alívio ou conforto nos seus livros (“vainly I had sought to borrow / From my books
surcease of sorrow”) pela amada que se fora, Lenore, descrita como uma “rare and radiant
maiden”. O arcaico adjetivo “maiden” importa consideravelmente por conotar que a jovem
além de solteira, era também virgem. A estrofe seguinte narra o medo despertado pelo farfalhar
das cortinas púrpuras, habilmente sugerido pelas aliterações sibilantes do verso “And the silken,
sad, uncertain rustling of each purple curtain”. O jovem então se dirige a quem acredita estar
batendo à porta, se desculpa por ter cochilado e não ter atendido logo às suaves batidas mas,
quando abre a porta, não encontra ninguém. O fato de não ter encontrado ninguém, e a certeza
de ter ouvido as batidas, levam-no a pensar e cogitar possibilidades extremas, quando resolve
sussurrar o nome de sua amada, acreditando que talvez fosse o espírito dela a bater. Ouve então
um eco do nome “Lenore” e, de volta ao quarto, ouve mais uma vez as batidas, desta vez mais
altas, e o jovem nos diz estar certo de que há algo na sua janela, o vento talvez, e resolve
verificar.
Na sétima estrofe o corvo, sempre grafado com maiúscula no poema, “a stately Raven
of the saintly days of yore” (“um Corvo imponente dos santos dias de outrora”), aparece pela
primeira vez, adentrando sem cerimônias o quarto quando o rapaz abre a janela. Pousa então
sobre o busto da deusa Palas, criando claro contraste do branco do mármore com o negro da
sua plumagem. Expressões como “stately”, “not the least obeisance” e “mien of lord or lady”
são empregadas para nos indicar que se tratava de uma ave grande, imponente, com ares de
superioridade. Novamente, as aliterações das consoantes fricativas do primeiro verso – “Open
here I flung the shutter, with many a flird and flutter” – nos remetem diretamente ao som que
as asas da ave fariam.
A estrofe seguinte nos traz mais detalhes sobre a aparência do corvo e sua possível
origem: sabemos que a crista da ave era “shorn and shaven”, ou seja, que ela havia sido cortada,
indício de que não se tratava de um animal selvagem. Ainda assim o rapaz reconhece que o
corvo não é um animal medroso – “art no craven” – e o porte grave e sisudo da ave faz com
que o rapaz esqueça sua tristeza por um momento, tomado pela curiosidade, talvez. Quando
pergunta o nome do corvo, recebe por resposta o famoso refrão: “Quoth the Raven,
‘Nevermore’” (“Disse o Corvo: Nunca mais”). Surpreso por descobrir que a ave era capaz de
358
falar, ainda que a fosse uma fala de pouca relevância – “Though its answer little meaning –
little relevancy bore;” (“Embora sua resposta carregasse pouco significado, pouca relevância”)
– o jovem afirma em seguida nunca ninguém ter visto algo parecido, um corvo chamado
“Nevermore”. Na décima estrofe, o jovem diz que o corvo irá embora na manhã seguinte, assim
como suas esperanças, e novamente recebe da ave a mesma resposta de antes: “Nevermore”.
As duas estrofes subsequentes reforçam a surpresa e a curiosidade do jovem rapaz com
a fala do corvo. Embora afirme ter certeza de que aquela fala do corvo era seu único repertório,
aprendido com algum mestre – “‘Doubtless’, said I, ‘what it utters is its only stock and store, /
Caught from some unhappy master [...]” (“‘Sem dúvida’, disse, ‘o que ele diz é tudo o que sabe,
/ Tomado de algum mestre infeliz”) – o rapaz ainda assim se vê encantado com a ave – “But
the Raven still beguiling all my fancy into smiling” (“Mas o Corvo ainda me iludia e fazia
sorrir”) – e resolve tentar descobrir o que a ave, agora descrita com uma série de adjetivos
negativos como “grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous” (“sisudo/sombrio/sinistro,
desajeitado, sujo e agourento”) queria dizer ao grasnar o “Nevermore”. Interessado em entender
a ave, agora descrita como possuindo “fiery eyes” (“olhos ardentes”) que “burned [his] bosom’s
core” (“queimavam o cerne do [seu] peito”), o jovem reclina-se sobre uma almofada. Sente,
então, o ar ficar mais pesado com o perfume de um incenso que parecia trazido por um Serafim
cujas pegadas acreditava ouvir. O jovem crê que os anjos lhe trouxeram nepentes – bebida com
poder de acabar com a angústia – que o livrariam do sofrimento pela perda de Lenore, mas o
corvo nega com o “nunca mais”.
A partir daí o rapaz passa a dirigir-se diretamente ao corvo, a quem chama de “Profeta”
e “coisa maligna”, e pergunta à ave se há o bálsamo em Galaad, se ele voltará a abraçar Lenore,
novamente descrita como “sainted maiden” (“virgem santificada”) e pede que aquela seja a
última conversa entre ele e o corvo, exige que a ave retorne às plagas da noite plutoniana, sem
deixar para trás nenhuma pluma como símbolo das mentiras contadas. Solicita, por fim, que o
corvo tire o bico de seu coração e saia de sua porta. A resposta para todas as súplicas é sempre
a mesma, “nevermore” (“nunca mais”). Os versos finais reforçam que o corvo – cujos olhos,
agora, “have all the seaming of a demon’s that is dreaming” (“tem a aparência de um demônio
que está sonhando”) – permanece impassível, pousado sobre o branco busto de Palas sobre a
porta do quarto. A sombra da ave é projetada no chão, e a esta sombra está presa a alma do
jovem, e dela “nunca mais” se libertará.
O desfecho do poema nos remete a um aspecto constante da literatura poesca: o homem
é, em certa medida, responsável pelo seu próprio sofrimento e o mal, o “sobrenatural” nada
359
mais é do que a projeção de uma mente perturbada. Ainda assim, a narrativa, bem como suas
consequências para o personagem, se mantém num plano muito particular, em que a dor
expressada é fruto de uma perda pessoal, que mais tem a ver com o indivíduo que sofre do que
com a condição humana em geral, por mais que a experiência possa ser uma experiência
potencialmente comum a qualquer ser humano.
Se em “The Raven” temos uma ave negra que surge da escuridão da noite que contrasta
com a luz do quarto, pousando em um símbolo da sabedoria sobre o umbral entre os dois
mundos, repetindo sempre a mesma fala, do ponto de vista racional teríamos apenas uma ave
domesticada e perdida que busca abrigo e conforto. É o que Poe (2012) explica no seu famoso
ensaio “A Filosofia da Composição”: “Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer
apenas ‘Nunca mais’ e tendo escapado à vigilância de seu dono, é levado à meia-noite, em meio
à violência de uma tempestade, a buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda uma luz a
brilhar”756. Porém, o luto em que o rapaz se encontra e a vontade de reencontrar a Lenora
falecida fazem com que ele imagine ser ela a bater à porta e, posteriormente, imagine ser o
corvo um arauto do além, projetando nesta presença animal, que é ao mesmo tempo literal e
simbólica, que vem de uma escuridão também ela, a um só tempo, literal e simbólica, toda a
escuridão que reside dentro de si. Poe explica ainda: “O Corvo, interrogado, responde com seu
costumeiro ‘Nunca mais’, frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante”757.
Mais do que um eco, entendemos que há a projeção deste sofrimento sobre a ave, ao ver que
ela fala, repetindo sempre a mesma frase, levando o rapaz a mergulhar numa espiral de
autotortura que culmina em ver sua alma escura presa na sombra negra da ave, que “nunca
mais” sairá dali.
No ano seguinte à publicação de “The Raven”, Poe apresenta “A Filosofia da
Composição”, ensaio em que explica a gênese do poema, supostamente composto “[...] com a
precisão e a sequência rígida de um problema matemático” em que nenhum aspecto da
composição do poema “[...] se refere ao acaso ou à intuição”758. A considerar que o autor estaria
falando a verdade – há dúvidas neste sentido, mas não vem ao caso –, estaríamos, portanto,
diante de um poema puramente racional, em que nenhum aspecto é gratuito ou acidente de
percurso, mas friamente calculado para atingir um objetivo específico. Isso já seria mais do que
suficiente para traçar paralelos com a poesia de Machado de Assis, que Veríssimo disse ser uma
756
POE, Edgar A. “A Filosofia da Composição” (tradução de Milton Amado). In: O corvo e suas traduções (Org.
Ivo Barroso). 3 ed. São Paulo: Leya, 2012, p. 60
757
POE, 2012, p. 61
758
POE, 2012, p. 50
360
poesia objetiva, intelectual, do pensamento. Tais reflexões, veremos adiante, nos ajudarão na
tarefa de observar e entender o trabalho de tradução do poema.
A extensão do poema é uma das questões trazidas à baila por Poe: para alcançar o efeito
desejado, deveria ser possível ler um poema de uma assentada, já que “[...] a brevidade deve
estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido”, considerando conveniente para o seu
propósito a extensão de cerca de cem versos – sem explicar como chegou ao quantitativo –, a
que “The Raven” se conformaria perfeitamente bem com seus cento e oito versos759.
Outro ponto é o fato de o tema da obra precisar ser apreciável por todos (ênfase do
autor). A conclusão a que o autor diz chegar é a de que isso só seria alcançável com o emprego
do tom correto, um tom que mais altamente manifestasse a Beleza, “[...] e todas as experiências
tem mostrado que esse tom é o da tristeza”, porque a melancolia seria “[...] o mais legítimo de
todos os tons poéticos”. Nesse mesmo sentido, o uso do refrão também se explica para a
construção desse efeito, servindo de nota-chave em torno da qual giraria a estrutura do poema,
utilizando da “força da monotonia” para “impressionar”: aderir “[...] à monotonia do som,
porém continuamente variando na da ideia”. Para funcionar, faz-se necessária a divisão do
poema em estâncias de maneira que o refrão, que “[...] devia ser sonoro e suscetível de ênfase
prolongada”760, servisse de fecho de cada uma delas.
Poe explica a escolha do fonema prolongado da sílaba final de “nevermore”, e
consequentemente a escolha desta palavra, por ser aquele fonema sonoro e sua conexão com o
r por ser “a consoante mais aproveitável”761. Quanto à ave, diz o poeta que precisava de algo
ou alguém que fosse capaz de repetir monotonamente o refrão já estabelecido em volta do o
prolongado associado ao r. Atribuir a um ser humano este papel traria dificuldades, levando-o
à escolha de uma “criatura não racional, capaz de falar”, pensando primeiramente num
papagaio, que foi logo substituído pelo corvo, “[...] igualmente capaz de falar e infinitamente
mais em relação com o tom pretendido” por ser uma “ave do mau agouro”762.
Há, todavia, questões trazidas pela escolha do corvo que não são exploradas pelo poeta,
mas que lançam ainda mais luz sobre a importância da ave. O pássaro entre nós chamado
singularmente de “corvo”, em inglês pode ser tanto aquele conhecido como “crow” quanto o
“raven” do poema de Poe. De fato, ambos pertencem ao mesmo genus Corvus, o que explica a
759
Ibid., p. 51
Ibid., p. 52-53
761
Ibid., p. 53-54
762
POE, 2012, p. 54
760
361
recorrente confusão na correta identificação das aves. Ainda assim, há singularidades que
tornam o “raven” mais adequado ao poema: ele é maior, mais imponente do que o “crow”, com
um bico mais longo e pronunciado. Além disso, o “raven” tem um grasnar mais profundo, grave
e áspero que, certamente não por acaso, soa muito próximo do fonema /ɔ:/, um o prolongado
junto a um /r/ um tanto gutural, presente em palavras-chave do poema, como o “nevermore”
insistentemente repetido pelo corvo, além de encerrar em rima final quatro dos seis versos de
cada uma das estrofes. Não se deve desconsiderar, além disso, que o nome “raven” contém, em
si, o verbo “to rave”, que em inglês significa falar de forma incoerente, como um louco ou
alguém que delira ou, ainda, dirigir-se a alguém com raiva e de maneira descontrolada, em
interessante consonância com aspectos da narrativa poética.
Quanto à forma, admitindo não haver nenhuma originalidade no metro ou no ritmo de
“The Raven”, Poe explica ter empregado o ritmo trocaico e, no metro, o “octâmetro acatalético,
alternando-se com o heptâmetro catalético, repetido no refrão do quinto verso, e terminando
com um tetrâmetro catalético”763. A originalidade não estaria no ritmo ou no metro, mas na
combinação de ambos da forma como o fez, “nada já havendo sido tentado que mesmo
remotamente se aproximasse dessa combinação”764.
Outro ponto de relevância e que foi tratado de maneiras bastante díspares entre os
tradutores do poema está no busto da deusa grega em que pousa a ave. No poema em inglês, o
poeta se refere à deusa pelo nome Pallas e, no ensaio, explica:
Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva [“Pallas”], também para o efeito de
contraste entre o mármore e a plumagem – sendo entendido que o busto foi
absolutamente sugerido pelo pássaro – e escolhido o busto de Minerva, primeiro para
combinar mais com a erudição do amante e, em seguida, pela sonoridade da própria
palavra Minerva765.
Ora, no verso em inglês em que a cena ocorre lemos: “And the Raven, never flitting, still is
sitting, still is sitting / On the pallid bust of Pallas just above my chamber door”. É obvio,
portanto, que a sonoridade a que Poe se refere no ensaio tem a ver com as aliterações das
consoantes oclusivas bilabiais nos versos que abrem a estrofe final, algo que a escolha por
“Minerva” – versão romana da deusa grega Palas Atena – de Milton Amado, tradutor deste
ensaio e também do poema, não guarda. Se no poema a escolha por Minerva pode ser
763
Ibid., p. 57
Ibid., p. 58
765
Ibid., p. 59
764
362
justificável a depender de como procede o tradutor, no ensaio a defesa fica um pouco mais
complicada.
Em certa medida, esta reflexão exposta em “A Filosofia da Composição” reflete o
trabalho do tradutor que, se pautado pela lógica da reprodução e do decalque, se vê diante do
problema lógico de encontrar artifícios equivalentes aos empregados por Poe, sem ultrapassálo ou ser-lhe inferior.
12.1.1 Edgar Allan Poe no Brasil do século XIX e “O corvo” de Machado de Assis
Antes de tratarmos diretamente dos desdobramentos trazidos pela tradução que
Machado de Assis fez de “The Raven” de Poe, precisamos, conforme sugerido no trajeto de
análise proposto por Berman, estar cercados de informações que contextualizem o momento
em que surge a tradução e sua recepção. Nossas investigações neste sentido nos mostraram que
no Brasil as primeiras menções a Edgar Allan Poe nos jornais aparecem já na década de 1850,
após a morte do autorlviii, principalmente no Rio de Janeiro. Do que pudemos constatar, seu
nome é citado pela primeira vez em 1853, no Diário do Rio de Janeiro766. Em 1856 é publicada
n’O Cearense (CE) uma tradução do conto “A verdade do que se passou no caso do Sr.
Valdemar”, assinada por J.S.767. Em 1857, na seção “Correspondência de Paris” do Correio
Mercantil, um cronista, ao comentar um vaudeville de Milesville, faz uma breve comparação
com a obra de Edgar Poe e dá indícios do estatuto do poeta em nossas terras: “A obra é tanto
mais desagradável, quanto lembra uma das mais engenhosas composições daquele americano
bêbado e doudo que morreu ultimamente, e cuja reputação está quasi a firmar-se entre nós,
Edgar Poe”768.
Raimundo Magalhães Júnior situa o ano de 1883 – ano da publicação da tradução de “O
corvo” – como um ano literariamente fecundo para Machado de Assis: é publicado um dos seus
melhores contos, “A igreja do diabo”, além de vários outros contos que saíram nas páginas da
Gazeta de Notícias, A Estação e na Gazeta Literária769. Em vista das várias publicações e
766
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 jan. 1853, p. 2. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/38030
767
POE, Edgar A. “A verdade do que se passou no caso do Sr. Valdemar”. Trad. J.S. O Cearense, Fortaleza, 12
ago. 1856, p. 3-4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709506/3777
768
Correio
Mercantil,
Rio
de
Janeiro,
18
abril
1857,
p.
1.
Disponível
em:
http://memoria.bn.br/DocReader/217280/13180.
769
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 3, p. 55
363
comentários que esta tradução recebeu quando Machado ainda estava vivo e, mais ainda, após
sua morte, parece certo tratar-se de sua mais famosa e comentada tradução, tanto pelo prestígio
de Poe, quanto pelo nome que Machado de Assis construiu para si.
Sabe-se que a primeira publicação de “O corvo” aconteceu em 28 de fevereiro de 1883
no jornal A Estação, sendo reproduzida posteriormente no Almanaque Vassourense e na Gazeta
de Notícias, ambos em 1888, e novamente na Gazeta de Notícias em 7 de março de 1892, antes
de ser finalmente incluída nas Ocidentais, das Poesias completas de 1901. Machado de Assis
foi, com razoável grau de certeza, o primeiro tradutor de “O corvo” no Brasil. Não se sabe,
contudo, a data exata da composição do trabalho, nem quando Machado de Assis teria tomado
conhecimento ou lido o poema pela primeira vez. A edição crítica das Poesias completas
informa, a propósito, que as duas primeiras publicações divergem em muito da quarta
publicação e da versão definitiva incluída em Ocidentais, além de divergirem ligeiramente entre
si. As diferentes versões dessa tradução nos mostram o quanto, no decorrer de quase duas
décadas e até o fim de sua vida, o tradutor voltou à sua oficina para lapidar pacientemente o
texto até que chegasse à última versão.
Quando compõe e publica, em 1883, sua versão de “The Raven”, reapresentando-a
posteriormente em Ocidentais, Machado de Assis introduz aos leitores um poema novo, que
adota caminhos bastante pessoais em relação à versão em inglês. Muito já se escreveu a respeito
da fonte de que Machado de Assis teria se servido para compor seu poema, sendo sugerido
inclusive que ele teria trabalhado a partir da versão francesa de Charles Baudelaire770. Não
entraremos no mérito da questão porque, além de não ser possível determinar definitivamente
uma coisa ou outra, é muito mais plausível que o tradutor tenha trabalhando com mais de uma
versão, em mais de um idioma, algo que não seria sem precedentes. Isto fica ainda mais patente
na tradução de “O corvo”, considerando que a versão de Baudelaire é em prosa, mas Machado
escolhe uma forma poética que mantém íntimas relações com a do poema em inglês. Abaixo,
“O corvo” de Machado de Assis ao lado do “The Raven” de Poe:
Quadro comparativo 36 – “O corvo” e “The Raven”
O corvo
The Raven
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore—
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“’Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door—
Only this and nothing more.”
770
Cf. ABRAMO, Cláudio Weber. “Uma infelicidade machadiana”. In: O corvo: gênese, referências e traduções
do poema de Edgar Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011, pp 76-84.
364
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
“Há de ser isso e nada mais.”
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: “Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
“Que bate a estas horas tais.
“É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais.”
Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: “Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
“Me desculpeis tanta demora.
“Mas como eu, precisando de descanso,
“Já cochilava, e tão de manso e manso
“Batestes, não fui logo, prestemente,
“Certificar-me que aí estais.”
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
“Alguma cousa que sussurra. Abramos,
“Eia, fora o temor, eia, vejamos
“A explicação do caso misterioso
“Dessas duas pancadas tais.
“Devolvamos a paz ao coração medroso,
“Obra do vento e nada mais."
Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow;—vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow—sorrow for the lost Lenore—
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore—
Nameless here for evermore.
And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me—filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
“’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door—
Some late visitor entreating entrance at my chamber door;—
This it is and nothing more.”
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
“Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you”—here I opened wide the door;—
Darkness there and nothing more.
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering,
[fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, “Lenore?”
This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!”—
Merely this and nothing more.
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
“Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore—
Let my heart be still a moment and this mystery explore;—
’Tis the wind and nothing more!”
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door—
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door—
Perched, and sat, and nothing more.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
“Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no
[craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore—
Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning—little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door—
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as “Nevermore.”
But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing farther then he uttered—not a feather then he fluttered—
Till I scarcely more than muttered “Other friends have flown
[before—
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before.”
Then the bird said “Nevermore.”
365
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “O tu que das noturnas plagas
“Vens, embora a cabeça nua tragas,
“Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o corvo disse: “Nunca mais.”
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais.”
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
“Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora.”
E o corvo disse: “Nunca mais!”
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
“Que ele trouxe da convivência
“De algum mestre infeliz e acabrunhado
“Que o implacável destino há castigado
“Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
“Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
“Esse estribilho: “Nunca mais.”
Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: – Nunca mais.
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore—
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of ‘Never—nevermore’.”
But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore—
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking “Nevermore.”
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion’s velvet lining that the lamp-light gloated o’er,
But whose velvet-violet lining with the lamp-light gloating o’er,
She shall press, ah, nevermore!
Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen
[censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
“Wretch,” I cried, “thy God hath lent thee—by these angels he hath
[sent thee
Respite—respite and nepenthe from thy memories of Lenore;
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”
“Prophet!” said I, “thing of evil!—prophet still, if bird or devil!—
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted—
On this home by Horror haunted—tell me truly, I implore—
Is there—is there balm in Gilead?—tell me—tell me, I implore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”
“Prophet!” said I, “thing of evil!—prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us—by that God we both adore—
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore—
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.”
Quoth the Raven “Nevermore.”
“Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked,
[upstarting—
“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken!—quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”
Quoth the Raven “Nevermore.”
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming,
And the lamp-light o’er him streaming throws his shadow on the
[floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted—nevermore!
366
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: “Um Deus sensível
“Manda repouso à dor que te devora
“Destas saudades imortais.
“Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora”.
E o corvo disse: “Nunca mais.”
“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
“Onde reside o mal eterno,
“Ou simplesmente náufrago escapado
“Venhas do temporal que te há lançado
“Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
“Tem os seus lares triunfais,
“Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: “Nunca mais”.
“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
“Por esse céu que além se estende,
“Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
“Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
“No éden celeste a virgem que ela chora
“Nestes retiros sepulcrais,
“Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: “Nunca mais.”
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
“Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
“Vai-te, não fique no meu casto abrigo
“Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: “Nunca mais.”
E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
Fonte: Assis (1976); Poe (1975)
Jean Michel Massa, primeiramente, e depois Claudio Abramo demonstraram haver
diversas aproximações semânticas entre as traduções de Machado de Assis e a tradução em
prosa de Baudelaire. Sem negar essas evidências, acreditamos que há indícios, no plano formal,
367
de que Machado de Assis pode ter também trabalhado com o poema em sua língua original,
mais uma vez indicando que o poeta-tradutor estava interessado em ter acesso ao poema por
outras vias, quando possível. Anteriormente, vimos que Poe emprega rimas internas no primeiro
e terceiro versos, por exemplo. Vimos também o emprego de um metro longo, o octâmetro
acatalético, com ritmo trocaico. O que se observa na tradução de Machado de Assis é um
desmembramento do metro longo de Poe em seus dois hemistíquios, que se tornam, no caso do
primeiro verso, por exemplo, os dois primeiros octossílabos na tradução machadiana. Esses
dados reforçam a nossa tese, conforme já observado anteriormente, de que para ter o acesso
mais completo possível ao texto Machado de Assis, quando necessário e possível, lançava mão
de diferentes versões do mesmo texto para a partir desse conjunto de fragmentos elaborar algo
novo.
Embora possua o mesmo número de estrofes, na tradução brasileira as estrofes são mais
longas, com dez versos que seguem o esquema métrico 8-8-12-8-10-10-10-8-12-8. À primeira
vista Machado estaria em desacordo com um dos princípios postulados por Poe em “A Filosofia
da Composição”, segundo o qual a extensão ideal do poema seria de cerca de cem versos. Ao
empregar estrofes de dez versos cada, sua tradução acaba por ter cento e oitenta versos. Mas se
o número de versos é consideravelmente maior, a extensão do poema na tradução é
praticamente a mesma, sendo até mesmo possível reorganizar os versos de Machado de forma
que, visualmente, a sua estrofe fique parecida com a de Poe como, por exemplo, na estrofe
final:
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming,
And the lamp-light o’er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted—nevermore!771
E o corvo aí fica; ei-lo trepado / No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. / Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída / Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora / Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!772
Sob esta ótica, portanto, a extensão da tradução de Machado de Assis não está em
desacordo com o proposto por Poe. Também não estaria se considerarmos os outros pontos
levantados por Poe em seu ensaio, como o emprego de um tom melancólico e de um refrão que
771
772
POE, Edgar A. Complete tales & poems. New York: Vintage Books, 1975, p. 946
ASSIS, 1976, p. 458-459
368
expressasse a força da monotonia, a utilização do corvo como uma criatura não-racional capaz
de falar e todos os significados que a acompanham, o contraste entre o negro da ave e a brancura
do busto de Palas, assim como a sonoridade do nome da deusa grega ou, até mesmo, a
originalidade na combinação de metro e ritmo, já que a estrofe construída por Machado
apresenta uma configuração bastante peculiar feita a partir de elementos comuns na tradição
poética de língua portuguesa.
Machado de Assis seguramente privilegiou um ritmo diferente em sua tradução, menos
lento e arrastado do que o verso inglês, preferindo que a narrativa versificada soasse mais ágil,
contrastando a concisão do octossílabo com o clássico alexandrino, algo a que o emprego misto
de metros de oito, dez e doze sílabas se prestou adequadamente. A leitura da versão de Machado
de Assis é fluida, natural, e certamente menos monótona do que a versão inglesa. É certo que,
no plano semântico, há omissões em relação ao texto de Poe, mas é igualmente certo que, desde
a forma até os caminhos escolhidos para elaborar a narrativa, Machado não quis que sua versão
fosse mera reprodução do conteúdo ou da forma da fonte, mas um poema criado a partir daquele
outro. Há, pelo contrário, uma busca por recursos poéticos, equivalentes ou não, que deem ao
seu texto o caráter de poesia que não se pauta pela lógica de uma “secundidade” tradutória.
Talvez resida aí a explicação para a crítica ter recepcionado este texto de maneira tão díspar.
12.1.2 Vertentes da recepção crítica de “O corvo”
Ao contrário de quase todas as outras traduções de Machado de Assis, a crítica tem sido
unânime na atenção dada a esta. Em que pese as dezenas de tradutores que trouxeram “O corvo”
para a língua portuguesa, permanece o fato de que quase não se fala do poema de Edgar Allan
Poe em português sem se mencionar o nome de Machado de Assis. Temos, de um lado,
comentários como os de Mattoso Câmara Jr. e Sérgio Bellei, que observaram o trabalho do
tradutor a partir de um viés positivo; de outro, há nomes igualmente importantes como Haroldo
de Campos e Ivo Barroso, que a consideraram uma versão malograda, opinião que parece ser a
mais corrente. Esta é a avaliação defendida por Cláudio Weber Abramo, autor de um livro
dedicado a comentar o poema e suas traduções.
Júlio Cortázar (1993), comentando a má disposição de Aldous Huxley para com Edgar
Allan Poe, propõe uma reflexão que se encaixa perfeitamente bem aos detratores da tradução
de Machado de Assis: “[...] cabe perguntar porque esses poemas estão presentes em sua
369
memória e na sua irritação, quando outros de impecável fatura dormem esquecidos por ele e
por todos nós”773. É o que nos perguntamos aqui, porque este é o caso das traduções de “The
Raven”: há muitas que agradariam mais os críticos que se pautam em conceitos bastante
pessoais de “tradução” além da de Machado de Assis e, no entanto, é à dele que invariavelmente
voltam.
Considerando a extensa fortuna crítica já dedicada a esta tradução de Machado de Assis
em seus mais de 100 anos de circulação, dizer o mesmo com outras palavras examinando as
minúcias de seu trabalho seria menos proveitoso do que refletir sobre os conceitos de tradução
poética que permeiam esses estudos e como isso pode nos ajudar a pensar Machado de Assis
como tradutor e seu projeto de tradução. Portanto, em vez de analisar e comentar diretamente
os pormenores da tradução de Machado de Assis, confrontaremos os comentários e as análises
de Cláudio Weber Abramo, Ivo Barroso e Haroldo de Campos, que adotam um viés mais
negativo, com as opiniões de Jean-Michel Massa, que se coloca em posição ambígua, ainda
preso a uma visão tradicional de tradução embora reconhecendo a força poética criativa de
Machado de Assis, e as de Mattoso Câmara Jr. e Sérgio Bellei, que tomam caminhos mais
positivos. Tentaremos, assim, demonstrar que as diferenças de juízo surgem quando se parte de
a prioris distintos quanto ao que é tradução de poesia e, principalmente, de concepções de rígida
normatização da tradução, desconsiderando o horizonte dentro do qual o tradutor trabalhou, o
que pode ofuscar todo um projeto de tradução com o qual há muito a aprender.
Apesar da contribuição, em muitos aspectos valiosíssima, de Cláudio Weber Abramo
em O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe, a má vontade –
não há como chamar por outro nome – do crítico para com os tradutores estudados acaba por
encobrir o mérito da obra. Abramo está absolutamente comprometido com o aspecto semântico
e narrativo do poema, mesmo que em detrimento do poético, deixando o leitor com a impressão
de que todo tradutor falhou em sua tarefa se não foi capaz de reproduzir integral e fielmente –
seja lá o que isso queira dizer para o autor – todas as nuances semânticas do poema, conforme
estipulado pelo crítico. Fica evidente, por exemplo, o quanto o viés narrativo em detrimento do
poético é importante para o crítico quando ele defende a tradução em prosa de Baudelaire
afirmando que o tradutor francês “[...] compreendeu que a força do poema reside em sua
773
CORTÁZAR, Júlio. “Poe: o poeta, o narrador, o crítico”. In: Valise de Cronópio. 2 ed. São Paulo: Perspectiva,
1993, p. 104
370
narrativa” 774, mesmo com os “erros” que seriam “consertados” posteriormente pela versão,
também em prosa, de Mallarmé.
Abramo dedica todo um capítulo exclusivamente à tradução de Machado, chamado por
ele de “Uma infelicidade machadiana”. Pelo título já se sabe o que esperar: para o crítico, a
tradução de Machado é “infeliz” porque é semanticamente “infiel” ao texto de Poe, por causa
da “[...] ocorrência dos mesmos erros, das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas
palavras nos mesmíssimos lugares na tradução de um e de outro [Baudelaire]”775 e porque “[...]
sacrifica um acompanhamento pari passu da sequência textual em nome da manutenção dos
sentidos mais gerais do conjunto e de cada bloco”776. O que se lê dali em diante neste capítulo
é um apanhado minucioso dos “erros” de Machado de Assis, principalmente aqueles oriundos
da leitura da tradução de Baudelaire, sem considerar em momento algum os efeitos poéticos
evocados pela versão machadiana.
Sua visão a respeito do que deveria ser a tradução poética fica ainda mais evidente na
versão preliminar do capítulo do livro dedicado à tradução de Machado de Assis, publicada,
com o mesmo título, no suplemento Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo, em
1999. Claramente incomodado com o que chama de “[...] gravíssimos problemas semânticos
em que incorrem [os tradutores]”777, Abramo (1999) ataca também a tradução de Fernando
Pessoa, que diz ser “[...] a que mais mutila e distorce o original”778. A origem do problema
estaria igualmente na versão de Baudelaire, cujos erros “[...] foram responsáveis pela
multiplicação de equívocos em uma grande quantidade de versões do poema, em todas as
línguas neolatinas”779. Mas a culpa não seria só do tradutor francês, mas inclusive do próprio
Poe, que “praticamente silencia” quanto à narrativa do poema em “A Filosofia da Composição”,
o que para Abramo é um “estímulo à irresponsabilidade”. Para Abramo,
Essa concentração nos aspectos formais da composição poética contribuiu de forma
não pouco relevante para uma certa tendência acadêmica que prefere apresentar e
analisar a poesia como um simples ajuntamento de sons, deixando para um longínquo
segundo plano questões relacionadas ao significado. A filosofia da composição
comparece infalivelmente entre as fontes mencionadas como embasamento “teórico”
por adeptos dessa concepção780.
774
ABRAMO, Cláudio Weber. O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe. São Paulo:
Hedra, 2011, p. 76
775
Ibid.
776
Ibid., p. 77
777
ABRAMO, Cláudio Weber. “Uma infelicidade machadiana”. In: Leitura. Ano 17, nº 5, setembro de 1999, p.
36.
778
ABRAMO, 1999, p. 37
779
ABRAMO, 1999, p. 37
780
Ibid., p. 37-38
371
Isso explica a crítica de Abramo tanto a Joaquim Mattoso Câmara Júnior quanto a
Haroldo de Campos e Ivo Barroso, embora entrincheirados em posições diversas, quase
opostas, por observarem as traduções de “O corvo” pelo plano estético e dando pouca
importância ao semântico. Obviamente, um crítico tão preocupado com o aspecto semântico da
tradução de poesia encontrará em quase toda tradução que se queira poética farto pasto para
suas reclamações. Não surpreendem, portanto, as afirmações abaixo:
Como a versão de poema é considerada o non plus ultra da atividade de tradução, esse
gênero de consideração acaba por estimular a irresponsabilidade de tradutores de
qualquer tipo de texto. Boa parte deles assume implicitamente (e, por vezes,
abertamente) que seu compromisso fundamental é com eles próprios, ficando a
fidelidade quanto ao original como incidentalidade.781
É patente o quanto Abramo, ao privilegiar o aspecto semântico da tradução poética, está
claramente compromissado com uma lógica de tradução servilmente reprodutora sobretudo do
sentido, que não pensa o fazer poético nem considera a tradução uma atividade pensante da
própria poesia, que desconsidera qualquer tipo de projeto de tradução inscrito numa poética
mais ampla, mesmo que este projeto seja o de ajudar a formar uma identidade literária nacional
ou seja um projeto vanguardista que enxerga na tradução um espaço privilegiado para forçar as
barreiras estéticas a que uma literatura esteja presa ou a que esteja comodamente acostumada.
Jean-Michel Massa, por sua vez, é capaz de enxergar as qualidades e a relevância do
trabalho do poeta carioca, embora também tenha apontado Baudelaire como a fonte mais que
provável para a versão que Machado de Assis fez do poema de Poe782, adotando um
posicionamento ainda apegado a uma visão bastante tradicional da tarefa tradutória.
Primeiramente, Massa identifica em “O corvo” um desejo similar àquele que engendrou a
tradução de “A Cantiga do Rosto-Branco”: o de ampliar os horizontes da poesia nacional a
partir de elementos estrangeiros. Depois, passa a identificar as afinidades entre “O corvo” e o
“Corbeau” de Baudelaire, com diversos exemplos que justificariam a tese de que Machado de
Assis utilizou o texto de Baudelaire. Curiosamente, contudo, Massa diz que não encontrou “[...]
nenhuma correspondência evidente com ‘The raven’”783. Só poderia estar se referindo ao plano
semântico, pois se Machado reproduz, ou mesmo decalca e não extrapola os desvios semânticos
de Baudelaire, no plano formal é possível sugerir que Machado tomou conhecimento das rimas
internas do poema no seu idioma original para que pudesse torná-las rimas finais em seu poema,
781
Ibid., p. 38
MASSA, 2008, p. 91
783
MASSA, 2008, p. 91
782
372
visto que a tradução em prosa de Baudelaire – supondo que ele também trabalhou a partir dela
– não continha tal informação estética.
Se tomarmos, por exemplo, os dois primeiros versos de qualquer uma das estrofes de
“O corvo” e os compararmos com o trecho correspondente de “The Raven” e do “Le Corbeau”
de Baudelaire veremos claramente o quanto as rimas finais de Machado de Assis correspondem
às rimas internas do verso de Poe:
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary (Poe)
Em certo dia, à hora, à hora / Da meia noite que apavora (Machado de Assis)
Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je métiais, faible et fatigué (Baudelaire)
Observando os versos acima, fica difícil acreditar que semelhança entre as rimas finais
dos octossílabos de Machado de Assis (“à hora”/“apavora”), que correspondem
posicionalmente à rima de cada um dos hemistíquios do verso de Poe (“dreary”/“weary”) seja
mero fruto do acaso e somente da leitura da versão de Baudelaire (“lugubre”/“fatigué”). Talvez
o conhecimento que Machado de Assis tivesse da língua inglesa na época não fosse suficiente
para compreender o sentido do poema de Poe, e por isso tenha utilizado a versão francesa de
Baudelaire como apoio para captação do sentido, enquanto a inglesa teria servido de objeto de
observação da forma poética. Ou talvez Machado de Assis tenha vistos os “desvios” de
Baudelaire como algo produtivo, cuja alteração sensível da mensagem do poema inglês tenha
aberto novas possiblidades para o poema.
Apesar da insistência de que Machado reproduz os desvios baudelairianos, Massa
reconhece estar “[...] diante de uma poesia profundamente diferente daquela proposta por
Baudelaire”784. Esta poesia, presa em um rígido esquema métrico e de rimas, obrigou-se a
infidelidades que resultaram em um poema que é “[...] uma recriação, em língua portuguesa,
escrita segundo sua estética pessoal” e confirma, contrapondo-se a Abramo: “O que ‘O corvo’
perdeu em exatidão textual foi compensado pela integração à literatura de língua portuguesa de
uma página de antologia”785. O crítico francês conclui que “O corvo” deve ser lido como uma
“[...] obra pessoal de Machado de Assis que parece ter querido igualar ou talvez superar seu
modelo”786, o que seria uma mensagem positiva e conforme o pensamento mais contemporâneo
784
Ibid., p. 93
MASSA, 2008, p. 94
786
Ibid.
785
373
da tradução se não fosse a ressalva de que “[...] o resultado não parece estar à altura das
intenções do escritor brasileiro”, mesmo que afirmação esteja matizada pela positividade de
que “[...] o fracasso importa menos que o élan criador que ele suscitou”787.
Ivo Barroso (2012), por sua vez, mesmo reconhecendo que Machado de Assis estava
“[c]omprometido com os vezos parnasianos de sua época – entre os quais o da
insustentabilidade de versos com mais de 12 sílabas”, não se exime considerar que “[...]
Machado já começa mal, ao engordar a compacta estrofe poesca de seus versos numa estança
de dez, com métricas irregulares”788. A consequência desta escolha pessoal de Machado de
Assis, segundo o crítico, é a perda do “[...] andamento lento majestoso do poema, bem como
sua aceleração no final da estrofe”, fruto de uma estrofe “[...] diluída e, em muitos casos,
repetitiva, repleta de enchimentos inúteis, que explicam demais, em prejuízo da síntese e
acumulação enérgica do original”, nas quais Machado parece mais interessado “[...] em seu
empenho de contar uma história”789, constatação curiosa, já que afirma o oposto do que Abramo
via no poema de Machado: excessivo apego às questões formais em detrimento da narrativa.
Desde o princípio o crítico já demonstra estar plenamente comprometido com uma lógica
tradutória que toma o “original” como uma verdade a ser reproduzida.
Ou seja, mesmo admitindo que Machado estaria “comprometido com os vezos
parnasianos” que inadmitiam versos maiores que os alexandrinos, Barroso condena Machado
por alterar o andamento do poema e por diluir a estrofe em versos menores. No entanto,
demonstramos acima que a “diluição” ou “engorda” da estrofe poesca de que fala Barroso é
unicamente visual, visto que ambas, de Machado e de Poe, possuem, na contagem de sílabas
poéticas, quase a mesma extensão. Ainda assim, a opinião de Barroso não surpreende quando
uma leitura atenta do seu ensaio revela que seu pensamento sobre a tradução poética se arrola
a um conceito que privilegia a reprodução e o decalque que deve respeitar o que estipula o
texto-fonte em detrimento da criação poética derivada. Isso é facilmente observável através dos
termos que emprega para se referir à prática tradutória: “reproduzir”, “salvar”, “mesmo”, “clone
linguístico”, “equivalências (isotopias)”, e até mesmo expressões que remetem à lógica
capitalista de perdas e ganhos como “moedas de troca”, “taxa de câmbio” e “valor aproximado”.
787
Ibid.
BARROSO, Ivo. “‘O corvo’ e suas traduções”. In: POE, Edgar Allan. O corvo e suas traduções (Org. Ivo
Barroso). 3 ed. São Paulo: Leya, 2012, p. 23
789
Ibid., p. 24
788
374
Mesmo quando reconhece nos tradutores a criatividade que lhes é devida, fala em “excesso de
virtuosismo” ou “mais invenção que tradução”.
Os comentários de Ivo Barroso, em vários aspectos, ecoam os de Haroldo de Campos
(1976) que, antes dele, já havia considerado a tradução de Machado de Assis “[...]
demasiadamente explicativa e contaminada por vezos parnasianos”790. A consequência disso é
que “[...] o marmóreo estatismo de seu texto não consegue captar, implícito, o voo iminente,
mas sempre talhado, da ave pousada”791. Haroldo de Campos, ele mesmo comprometido com
sua visão vanguardista de uma tradução que deveria ser “transcriadora” da forma e do conteúdo,
falha em reconhecer que o projeto de tradução de Machado de Assis era consideravelmente
diverso do seu, e parece exigir resultados que o nosso poeta-tradutor nunca buscou alcançar.
Em nota de rodapé, Haroldo de Campos expressa ainda sua discordância em relação à leitura
que Mattoso Câmara Jr. fez da tradução de Machado de Assis, sugerindo haver nos ensaios de
Mattoso Câmara Jr. “um gosto estético tradicionalizante”, definido por ele como “parnasianoacadêmico”. Em contraponto, apresenta as inovações estéticas introduzidas pelo Modernismo,
cita o que Goethe chama de o estágio mais avançado da tradução de poesia em que ocorreria o
“estranhamento” 792, mas desconsidera que Mattoso Câmara Jr. avaliava a tradução de Machado
considerando o meio e o contexto em que produziu. Machado talvez não quisesse, ou sequer
pudesse, fazer uma tradução “de vanguarda” no sentido desejado por Haroldo de Campos
porque sua proposta não era essa e a época era outra. As outras traduções que já analisamos até
aqui o atestam: a prática mais comum sempre foi a de aclimatar os metros e ritmos estrangeiros
àqueles que soassem mais em conformidade com a tradição poética de língua portuguesa,
prática que nos leva a considerar que essa talvez fosse uma estratégia para reafirmar a força
poética de nossa tradição frente ao estrangeiro. Em “O corvo” certamente não agiu de outro
modo. Quando Haroldo de Campos avalia a tradução de Machado de acordo com seu próprio
projeto de tradução “transcriadora”, deixa de lado questões que são tão pertinentes quanto as
defendidas por ele.
As críticas feitas por Haroldo de Campos a Mattoso Câmara Jr. referem-se ao que o
crítico escreveu no ensaio “Machado de Assis e ‘O corvo’ de Edgar Poe”. Lembrando a suposta
inaptidão de Machado de Assis para a poesia, Mattoso Câmara Jr. (1977) ressalva que Machado
790
CAMPOS, Haroldo de. “O texto espelho (Poe, engenheiro de avessos)”. In: A Operação do Texto. São Paulo:
Perspectiva, 1976, p. 32
791
Ibid., p. 33
792
CAMPOS, 1977 p. 34
375
de Assis possuía “[...] os predicados essenciais da expressão poética: a capacidade da sugestão
encantatória e a percepção, por assim dizer, sensual dos elementos sine qua non da verdadeira
poesia”793. Este é ponto de partida para afirmar que a tradução de “O Corvo” teria sido um
“desmentido por antecipação” à crítica que viria a receber – e que já recebia, na verdade – à sua
poesia.
O linguista lembra, por exemplo, que a métrica inglesa impõe dificuldades pois é “[...]
fundamentada no ritmo intensivo, ou seja, a distribuição regular dos ictos”794, base sobre a qual
Poe construiu seu verso de dezesseis sílabas em que alterna fortes e fracas. Daí sua conclusão
de que “[...] um verso de dezesseis sílabas ou quinze, pela contagem até a última tônica, é
inteiramente anômalo em português”795. Ademais, Mattoso Câmara afirma desconhecer
tentativas espontâneas desse verso em português, lembrando a dificuldade que até mesmo o
alexandrino teve para aclimatar-se em nossa língua e quão poucos foram os que souberam
empregá-lo adequadamente.
Para Mattoso Câmara Jr., o emprego do verso de dezesseis sílabas na tradução seria
infeliz porque “[...] o tradutor não encontra na sua experiência rítmica um modelo firme para
plasmá-lo”, mas também porque tal verso “[...] foge do idiomatismo rítmico, tão necessário
numa tradução como o idiomatismo léxico e o sintático para integrar a obra nas criações
estéticas da língua e tirar-lhe o caráter de mera adaptação de uma criação estética peregrina”796,
sentimento encontrado nas traduções de Fernando Pessoa e Gondim da Fonseca, segundo o
crítico. Veja-se que o linguista não diz que o verso de dezesseis sílabas não deveria ser tentado,
ou que seria uma aberração, mas que não há precedentes para sua prática e tentá-lo equivaleria
a uma estrangeirização linguística. É certo que há correntes de pensamento da tradução que
privilegiam o estranhamento forçado pela tradução, mas parece-nos igualmente certo, em vista
do que já se observou em seus outros trabalhos tradutórios, que Machado de Assis nunca foi
partidário dessas correntes.
Com a forma adotada em “O corvo” foi possível manter “[...] a insistência das rimas
próximas, feitas rimas finais dos versos” em compensação pelo apagamento das rimas internas.
Quando comenta o esquema estrófico de Machado de Assis, Mattoso Câmara Jr. parece resumir
793
MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. “Machado de Assis e ‘O Corvo’ de Edgar Poe”. In: Ensaios machadianos.
Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S/A, 1977, p. 111
794
Ibid., p. 113
795
Ibid., p. 115
796
Ibid.
376
aquilo que vem se desenhando como o projeto de tradução de Machado desde os seus primeiros
trabalhos:
mercê de seu novo esquema estrófico, em que se afasta da literalidade em proveito de
uma maior integração do poema nas tradições métricas portuguesas, elaborou uma
distribuição de rimas mais complexa, que faz dessas rimas – como sucede em inglês
– um fator positivo para a sugestão das pancadas repetidas e soturnas797.
Mesmo no emprego dos sons para as rimas Mattoso Câmara Jr. demonstra que o tradutor “[...]
não abriu mão do efeito escuro da vogal velar, que aliás lhe foi fácil manter na adaptação do
nome próprio Lenora; assim, rimando ou não com esse nome, multiplicam-se as rimas em -ora
(além de outras aproximadas, na base de uma vogal tônica em -o-), e isto desde os primeiros
versos”798. Isso não é feito por Fernando Pessoa, que suprime até mesmo o nome da falecida.
Quanto ao estribilho “Nunca mais!”, reconhecendo não ser possível uma tradução que
mantivesse a um só tempo o significado e o efeito sonoro de “Nevermore!”, Mattoso Câmara
Jr. avalia que o tradutor, “[...] com a profunda intuição de um verdadeiro poeta, resolveu,
contudo, a dificuldade, aproveitando no a tônico a sensação de amplitude, consequente de se
tratar da vogal mais aberta em articulação, e a de desespero, que evoca a sua associação com
interjeições do tipo – ah!, ai!”799. O efeito, portanto, seria reforçado a partir da multiplicação
das rimas em a em meio a outras mais pesadas. Assim, percebe-se o quanto as análises de
Mattoso Câmara Jr. afastam-se de a prioris quanto ao que supostamente deveria ser uma
tradução para buscar no trabalho de Machado de Assis traços de poesia criativa, independente,
respeitando o horizonte dentro do qual o autor trabalhou.
Um desdobramento ainda mais interessante desta linha de pensamento sobre a tradução
de “O corvo” está num artigo de Sérgio Bellei, “‘The Raven’, by Machado de Assis” (1987). O
autor reconhece que Machado altera significativamente o ritmo de Poe e quase anula a lentidão
suave do original, praticamente ignora o poderoso efeito das rimas internas de Poe, substituídas
por rimas finais, escolhendo ainda abandonar o ritmo arrastado de Poe, marcado pela
alternância entre sílabas fortes e fracas, em favor de outro mais ligeiro800. Bellei constata que a
tradução de Machado de Assis deixa de realizar dois objetivos comuns à tradução poética:
reproduzir os padrões sonoros do original e reproduzir o sentido801. Ao invés de atacar o
797
MATTOSO CÂMARA JR, 1977, p. 118
Ibid., p. 119
799
Ibid., p. 120
800
BELLEI, Sérgio. “‘The Raven’, by Machado de Assis”. Ilha do Desterro, n. 17, 1º semestre de 1987, p. 48
801
BELLEI, 1987, p. 49
798
377
tradutor por esta suposta “falha”, aponta outro caminho, em certa medida político, de que
Machado definitivamente não está tentando reproduzir esses aspectos. Na verdade, a intenção
do tradutor parece ser a de ignorar a lógica da reprodução para atender à da produção: “[...]
Machado desvia-se tão frequentemente e tão sistematicamente do original que seria difícil
acreditar que esses desvios sistemáticos do ritmo e do sentido não são intencionais”.802
Neste ponto de seu ensaio o crítico adota um conceito que parece emprestado de Harold
Boom: a “desleitura intencional”. Apesar de seu ensaio utilizar um termo utilizado pelo crítico
norte-americano em A angústia da influência e O mapa da desleitura, Bellei oferece ao leitor
sua própria definição do termo que emprega, chamando de “desleitura” “[...] não somente
traduções distorcidas de palavras e frases específicas, mas mudanças intencionais de ênfase,
expansões e reduções do sentido original e adições e subtrações de significado”.803
Ainda que não se remeta abertamente aos conceitos de Bloom, o parentesco conceitual
é inegável. A angústia da influência de Bloom traz a seguinte proposta: “A influência poética
– quando envolve dois poetas fortes, autênticos – sempre se dá por uma leitura distorcida
[misreading] do poeta anterior, um ato de correção criativa que é na verdade e
necessariamente uma interpretação distorcida [misinterpretation]”804. Um desdobramento
deste pensamento surge em O mapa da desleitura: “Para que uma leitura (desleitura) seja ela
mesma produtora de outros textos, é obrigatório que afirme sua singularidade, sua totalidade,
sua verdade”805. Ou seja, a partir da “desleitura”, ou leitura distorcida, à imagem de quem lê,
produz-se um texto que se afirma sobre outro, mantendo com ele uma relação de parentesco,
mas sem se submeter a ele, exibindo, ao contrário, toda sua singularidade que se constituiu a
partir de uma apropriação daquela outra.
A leitura que Bellei faz da tradução de Machado de Assis e as propostas que apresenta
em seguida gravitam em torno desses conceitos. Bellei escreve, por exemplo, que
as mudanças de significado que Machado impõe ao original tendem a produzir uma
mudança de ênfase em sua tradução, quando não um significado quase inteiramente
novo no sentido de que o amante é retratado não como um homem enlutado que ainda
802
Ibid., p. 50-51, tradução nossa. No original: “Machado deviates so often and so systematically from the original
that it would be difficult to believe that these systematic deviations in rhythm and sense are not intentional”.
803
Ibid., p. 51, tradução nossa. No original: “not only mistranslations of specific words and sentences, but also
intentional shifts of emphasis, expansions and reductions of the original sense and additions or subtractions of
meaning”.
804
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. 2. ed. Rio de
Janeiro: Imago 2002, p. 80 (grifos do autor)
805
BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. Rio de Janeiro: Imago, 2003,
p. 85
378
é racional o bastante para notar um corvo a repetir irracionalmente uma única palavra
melancólica, mas como a vítima quase completamente passiva de um pássaro que traz
uma mensagem obscura e incompreensível.806
Ali, o crítico está dizendo que Machado opera aquele tipo de leitura forte de que fala Bloom,
apropriando-se do texto de Poe e desviando-se intencionalmente dele de forma que o resultado
seja um poema tão ou mais seu do que do autor traduzido. O mesmo pode ser dito a respeito da
afirmação de que Machado de Assis “[...] reescreve o poema de Poe como a história de um
corvo e sua obscura e secreta mensagem a ser transmitida para o homem”807 ou quando diz que
“[...] há na sua tradução um certo sentido da tragédia universal da condição humana que não é
tão óbvia em Poe”808, que aponta para, mais do que uma desleitura, uma expansão no sentido
do texto original, ampliando seus horizontes na sua pervivência.
Contudo, a potência da tradução machadiana não se esgotaria aí. Essa desleitura
intencional que faz de Poe, segundo Bellei, teria a ver com a própria condição periférica do
escritor e mesmo da literatura brasileira e identidade nacional ainda em formação. Bellei
pergunta:
Como um escritor conseguiria ser original e estabelecer a base para a fundação do
nacionalismo literário nos trópicos se ele está ciente de que esse novo começo está
condenado a surgir em uma relação problemática de dependência de uma origem
anterior representada pela Tradição Literária Ocidental? A carreira de Machado como
escritor pode ser vista em termos da tentativa de encontrar uma resposta para essa
questão de origens e princípio.809
A resposta estaria na apropriação de modelos estrangeiros, na leitura forte, ou desleitura desses
modelos para, a partir deles, fazer ouvir uma voz própria que precisa encontrar sua força. O
poeta-tradutor, segundo Bellei, não pode negar que a tradição literária ocidental é uma origem
que se opõe à cor local. A saída é encontrada quando o escritor decide juntar o local e o
universal, tornando-se, conjuntamente, um homem de seu país e de seu tempo, e a tradução
seria um meio de, através das desleituras, distorções e apropriações tornar próprio o que antes
806
BELLEI, Op. Cit., p. 52, tradução nossa: “the changes of meaning Machado imposes on the original tend to
produce a shift of emphasis in his translation, if not altogether an almost entirely novel meaning in the sense that
the lover is portrayed not as a bereaved man who is still rational enough to perceive a raven irrationally repeating
a single melancholy word, but as the almost entirely passive victim of a bird that brings a dark, incomprehensible
message”.
807
Ibid., p. 54, tradução nossa. No original: “re-writes Poe’s poem as the story of a raven and its dark secret
message to be conveyed to man”.
808
Ibid., p. 57, tradução nossa. No original: “there is in his translation a certain sense of the universal tragedy of
the human condition that is not so obvious in Poe”.
809
Ibid., p. 59, tradução nossa. No original: “How can a writer be original and establish the basis for the foundation
of literary nationalism in the tropics if he is aware that this new beginning is doomed to arise in a problematic
relationship of dependence on a previous origin represented by the Western Literary Tradition? Machado's career
as a writer can be viewed in terms of the attempt to find an answer to this question of origins and beginning”.
379
pertencia a outro. Até mesmo a seleção dos textos a serem traduzidos parece de certa forma
ecoar as tendências temáticas de seus próprios poemas810, algo que as análises das outras
traduções feitas anteriormente parecem corroborar. Diríamos até que as traduções não
necessariamente, nem sempre, ecoam os temas das obras ditas “autorais”, já que o eco seria
algo secundário, posterior, e frequentemente mais fraco. Em alguns casos parece ocorrer o
contrário: as traduções exercem o papel de uma anterioridade que irá reverberar nas obras
posteriores ou até mesmo alimentá-las.
Para Bellei, Machado estaria sofrendo de um tipo peculiar de ansiedade da influência –
remetendo-se novamente à teoria de Harold Bloom – e ciente do que isso significava e suas
implicações na formação de uma literatura brasileira811, de forma que a prática de traduções
que não fossem apropriadoras seria, como o próprio Machado chama em um de seus ensaios,
“tarefa estéril”.
Assim, o ensaio de Sérgio Bellei revela um crítico de tradução ciente de que seu papel
não é julgar o trabalho do outro dentro de seus próprios conceitos ou definições do que deveria
ser a tradução poética, mas entende que o trabalho do tradutor deve ser julgado dentro de seus
próprios termos e conforme um projeto próprio, revelando, assim, um tradutor que está muito
mais comprometido com a formação de uma voz própria e de uma literatura nacional do que na
divulgação de autores, obras ou modelos estrangeiros. Aproxima-se, portanto, das já discutidas
propostas bermanianas para a crítica da tradução conforme expostas em Pour une critique des
traductions: John Donne. Quando Ivo Barroso e Haroldo de Campos apontam as “falhas” e os
“problemas”, erram eles mesmos ao deixar de perceber que esses tais “problemas” não eram
necessariamente fruto de uma inépcia poética, linguística ou tradutória, mas movimentos
intencionais de apropriação de um texto estrangeiro, de uma guinada que busca
intencionalmente um caminho que não seja o da reprodução ou decalque do obra estrangeira,
mas um posicionar-se politicamente diante do estrangeiro, afirmar sua singularidade diante dele
e até mesmo utilizá-lo como meio de fecundar a própria produção poética.
Para Meschonnic, “[q]uanto mais o tradutor se inscreve como sujeito na tradução, mais,
paradoxalmente, traduzir pode continuar o texto. Quer dizer, em outro tempo e uma outra
língua, dele fazer um texto. Poética pela poética”812. Talvez resida aí a explicação para a
surpreendente durabilidade e inegável atração que “O corvo” de Machado de Assis tem
810
BELLEI, 1987, p. 60
Ibid., p. 61
812
MESCHONNIC, 2010, p. XXXIV
811
380
exercido sobre a crítica: mais do que traduzir, Machado reescreve Poe e, ao fazê-lo, faz com
que seu poema seja uma continuação do poema de Poe, como um filho continua a existência do
pai, mas ao mesmo tempo é outro indivíduo, de personalidade própria. Meschonnic entende
ainda que há um estatuto sociológico contemporâneo da literatura que se baseia na oposição
entre texto e tradução, entre o ato de escrever e o de traduzir, privilegiando sempre os
primeiros813, o que se observa com alguma clareza em algumas das críticas que vimos a respeito
de “O corvo” de Machado de Assis. Para que a tradução escape a esta oposição e estabeleça o
que Meschonnic chama de uma contra dominância paratática é preciso que a tradução seja mais
do que tradução: ela precisa ser texto, produto de um trabalho textual que é um trabalho de
linguagem, através do qual ela alcançará certo grau de prestígio. No caso de “O corvo”, todo o
trabalho de distanciamento do(s) texto-fonte(s) levou o poema de Machado de Assis a ganhar
um status deveras independente do seu texto-fonte, talvez o mais alto exemplo do grau de
distanciamento ideológico que podemos encontrar na sua produção de poeta-tradutor.
12.1.3 Ecos de Poe e de “O corvo” na obra de Machado
Sabe-se, como dito anteriormente, que a primeira publicação de “O corvo” se deu 1883
no jornal A Estação, passando por mais três republicações e revisões até chegar à sua forma
definitiva e ser finalmente incluída nas Ocidentais, das Poesias completas de 1901.
Pode-se dizer, com segurança, que na década de 1860 Machado de Assis já conhecia o
escritor norte-americano, pois o conto “Uma excursão milagrosa”, de 1866, traz uma referência
direta a Poe e às Histoires extraordinaires, que já circulavam naquela década na tradução de
Charles Baudelaire: “Suponho que os leitores terão lido todas as memórias de viagem, desde as
viagens do capitão Cook às regiões polares até as viagens de Gulliver, e todas as histórias
extraordinárias desde as narrativas de Edgar Poe até os contos de ‘Mil e uma noites’”814. A
próxima menção ao escritor norte-americano só aconteceria em 1882, no conto “O anel de
Polícrates” de Papeis avulsos, aludindo novamente à contística fantástica de Poe. O nome
ressurge depois em outro conto, “Só!”, de 1885, novamente com alusão à contística do escritor.
Da mesma forma, na “Advertência” às Várias histórias (1896) Machado de Assis demonstra o
apreço que tinha pelo escritor norte-americano ao comparar humildemente os contos que
813
814
Ibid., p. 82
ASSIS, 2015, vol. 2, p. 816
381
publicava, chamando-os “um modo de passar o tempo”, já que “[n]ão são feitos daquela matéria
nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe
entre os primeiros escritos da América”815.
A apropriação do corvo de Poe, contudo, se mostra plenamente em um dos capítulos de
Quincas Borba, de 1890. A cena descrita no capítulo XXXVII narra a desventura de d. Tonica,
uma solteirona à beira dos quarenta anos e ansiosa por um casamento qualquer antes que fosse
tarde demais, que resolve insinuar-se para Rubião, o rico capitalista de Minas Gerais herdeiro
de uma fortuna deixada por um familiar: “Desde que Rubião ali chegou, não cuidou ela mais
que atraí-lo. Os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a
resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas”816. As fagulhas não
foram suficientes para atiçar nem a mais minguada flama. Desde o capítulo anterior, os olhares
de Rubião só se dirigiam a Sofia Palha, que retribuía na mesma medida. As investidas de D.
Tonica eram, afinal, inúteis. Tão inúteis a ponto de, enfim, perceber que os olhares trocados
entre Rubião e Sofia “[...] não eram olhares aparentemente fortuitos, breves, como até ali, era
uma contemplação que eliminava o resto da sala. D. Tonica sentiu o grasnar do velho corvo da
desesperança. Quoth the raven: NEVER MORE.”817 Talvez o narrador estivesse se referindo
aqui à décima sexta estrofe de “O corvo”, quando o jovem pergunta à ave se um dia terá Lenore
novamente: “Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, / It shall clasp a
sainted maiden whom the angels name Lenore –”. Assim como o jovem nunca mais há de ter a
Lenore perdida, D. Tonica encontra-se passivamente impotente diante da desesperança
inexorável que se desvela diante dela. Machado de Assis demonstra como apropriar-se do
molho estrangeiro em sua própria cozinha.
10.6 O “Prólogo” do Intermezzo
Esta tradução de 1894 encerra, cronologicamente, as atividades do poeta-tradutor
Machado de Assis. Publicada em 14 de abril daquele ano em A Semana, o texto veio seguido
da notícia que reproduzimos abaixo:
Publicamos hoje, e é o caso de parabéns dos nossos leitores, o “Prólogo” do
Intermezzo de Heine, traduzido pelo grande mestre, o delicioso poeta Machado de
Assis. Não é o “Prelúdio” que se encontra na versão francesa de G. de Nerval, como
poderiam supor alguns que não conhecem a edição definitiva e completa do
815
ASSIS, 2015, vol. 2, p. 434
ASSIS, 2015, vol. 1, p. 764
817
Ibid.
816
382
Intermezzo que contem o prólogo e diversos números que não se acham na edição
francesa. Publicamos o “Prólogo” em lugar separado, mas quando o Intermezzo for
tirado à parte será colocado no lugar devido. A nossa edição do Intermezzo conterá
ainda um lindo retrato de Heine, traçado pelo mimoso e incomparável lápis do
Belmiro818.
Da notícia acima podemos inferir algumas coisas: um volume sairia posteriormente com a
versão completa do Intermezzo de Heinelix, versão essa que seria ainda mais completa do que a
de Nerval, que omite diversos trechos do poema alemão; era um trabalho colaborativo, do qual
Machado de Assis traduziu somente o Prólogo; por fim, dada a crítica à edição francesa de
Nerval, sabemos que os tradutores não trabalharam a partir dela, mas de alguma outra. JeanMichel Massa nos informa que Machado de Assis teria à sua disposição duas ou três traduções
francesas que poderia ter consultado para traduzir o Prólogo, mas sugere ter sido a tradução de
Ristelhuber o texto-fonte de Machado819, embora deixe a questão em aberto. Massa nos informa
ainda que esta é uma tradução alimentar, de iniciativa dos diretores da revista:
A iniciativa não vem senão parcialmente de Machado de Assis. Mas trata-se de uma
empresa coletiva, da qual participaram diversos poetas brasileiros: Lúcio de
Mendonça, Raul Pompeia, Teixeira de Melo, Gonçalves Crespo. Machado de Assis,
que já era um mestre reverenciado, pode talvez ter escolhido seu texto. Coincidência
ou escolha deliberada, é o prólogo que lhe coube, e essa peça põe em cena um
cavaleiro taciturno e uma graciosa ondina. A atração que Machado sentia pelo mundo
aquático não desapareceu. A afinidade eletiva se duplica em um trabalho de
elaboração literária, pois, segundo um hábito inveterado, Machado de Assis molda o
texto de forma a lhe dar um tom pessoal e transformar o “Prólogo de Intermezzo”.820
Apesar de sugerir que Machado teria se baseado na versão de Ristelhuber – dentre duas ou três
disponíveis – para traduzir o Prólogo, Massa não apresenta os dados que o levaram à conclusão
nem comparações de trechos da tradução de Machado com a versão francesa ou alemã que o
justifiquem. Procuramos, portanto, as edições francesas disponíveis então e encontramos quatro
edições diferentes do Intermezzo: Vers d’um flâneur, de 1850, traduzidos por Ernest Perrot
Chezelles; Intermezzo, poème de Henri Heine traduit en français par Paul Ristelhuber, de
1857; Intermezzo, poème de Henri Heine traduit par Albert Mérat et Léon Valade, de 1868; e
L’Intermezzo, poème de Henri Heine, de 1884, sem indicação concreta do autor tradução, mas
com os nomes E. Vaughan e Ch. Tabaraud , todas publicadas em Paris. Destas, a única que
podemos afirmar que Machado poderia ter consultado é a de Ristelhuber porque é a única que
possui o “Prólogo” traduzido por ele. Curiosamente, Massa não sugere que Machado pudesse
ter traduzido diretamente do alemão, como fez quando tratou da tradução de “Seis dias em
Cuiabá”, conforme vimos anteriormente. Ressalte-se que, como dito antes, Machado de Assis
818
“Gazetilha Literária”, A Semana, Rio de Janeiro, 14 de abril de 1894, p. 295. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/383422/1622?pesq=>. Acesso em: 7 fev. 2017
819
MASSA, 2008, p. 95
820
Ibid., p. 95
383
começou a estudar o alemão formalmente em 1883, mais de dez anos antes desta tradução de
Heine, portanto. Sabemos também que, de acordo com os registros preservados, seus estudos
duraram menos de três meses:
Machado de Assis começou a tomar lições de inglês e alemão com o professor
Alexander, que ele conhecera em casa da Condessa de São Memede. Juntamente com
Machado de Assis, aprendia também essas disciplinas Capistrano de Abreu.
O primeiro exercício de alemão de Machado de Assis tem a data de 16 de agosto de
1883. O último de 10 de novembro do mesmo ano. É interessante assinalarem-se os
progressos realizados pelo escritor nesse breve período de menos de três meses.
Percebe-se que, vencidas as primeiras dificuldades de um idioma tão diferente do seu,
Machado de Assis procura aprender a melodia da língua e sentir-lhe o caráter próprio,
acima da correção gramatical821.
O trajeto de análise proposto por Antoine Berman, como vimos anteriormente, sugere
que para irmos ao tradutor é preciso que tenhamos sempre em mente quem era o tradutor, o que
inclui saber quais línguas conhecia e das quais traduzia, e seu relacionamento com elas. Mais,
talvez, do que a língua inglesa, o conhecimento que Machado de Assis pode ter alcançado do
alemão ainda é uma grande incógnita. A julgar pelas informações que pudemos colher a partir
do catálogo da exposição em comemoração ao centenário de nascimento do escritor, os
registros encontrados limitam-se àqueles três meses. A página do caderno de exercícios de
Machado com as correções do preceptor reproduzida em fac-símile no volume sugere um nível
ainda elementar no idioma. Contudo, se considerarmos os comentários citados acima, é de se
imaginar que o progresso foi rápido. Magalhães Júnior relata ainda que Capistrano de Abreu,
em carta a José Veríssimo, acentua o bom aproveitamento de Machado no período em que
estudaram juntos822.
Sabemos também que Machado foi um autodidata que atingiu níveis excelentes de
proficiência em francês sem que tivesse instrução formal que se possa substanciar. O mesmo
pode ser dito, com alguma segurança, de sua proficiência em italiano ou mesmo em espanhol.
Logo, se considerarmos os dez anos passados entre o início de seus estudos formais em língua
alemã e esta tradução de Heine, acreditamos que deveríamos estar abertos à possiblidade de
que Machado teria consultado o texto alemão original e dele feito uma leitura de primeira mão
para ajudá-lo a compor sua tradução, mesmo que com auxílio de outra pessoa ou de outra
tradução intermediando o trabalho, o que reforçaria a tese de que o acesso ao texto-fonte em
diferentes versões, particularmente nos casos em que o francês não era o idioma original, deve
ter sido recorrente. Acreditamos ser este um dado relevante porque sugere que o poeta-tradutor
821
EXPOSIÇÃO Machado de Assis: centenário do nascimento de Machado de Assis, 1839-1939. Rio de Janeiro:
Ministério de Educação e Saúde, 1939, p. 101-102
822
MAGALHÃES JR., 2008, vol. 3, p. 69
384
não se satisfazia com uma única via de acesso ao texto, e que sua versão beneficiaria caso
tivesse acesso a várias versões de um mesmo texto.
Ainda de acordo com o trajeto de análise bermaniano, devemos nos perguntar também
a razão do interesse de Machado por Heine, de quem traduziu não só este Prólogo, mas também
“As ondinas”, que publica primeiramente na Biblioteca Brasileira em 1863 e, posteriormente,
inclui no seu primeiro volume de poesias, Crisálidas. No texto introdutório da coletânea Heine,
hein? (2011), “Poeta dos contrários”, André Vallias lembra que Heine esteve bastante em voga
na última década do século XIX, sendo traduzido por Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães
antes da empresa de que Machado participou, que também contou com nomes como Raul
Pompeia, Raimundo Correia, Luis Delfino, João Ribeiro, Afonso Celso, Francisca Júlia e
outros823.
Direta ou indiretamente, Heine aparecerá também em romances e contos de Machado
de Assis, como Memorial de Aires, “Uma senhora” de Histórias sem data, e “Sales” de Outros
Contos. Várias alusões ao poeta alemão também se encontram nas suas crônicas,
particularmente na série A semana em que cita, em alemão, a frase “Es ist heute eine schöne
Witterung!” em crônica de 16 de agosto de 1896, que começa com uma tradução desta mesma
frase logo nas primeiras linhas: “Esta semana é toda de poesia. Já a primeira linha é um verso,
boa maneira de entrar em matéria. Assim que podeis fugir daqui, filisteus de uma figa, e ir dizer
entre vós, como aquele outro de Heine: ‘Temos hoje uma bela temperatura.’”824. A que mais
nos chama a atenção, contudo, é a feita na crônica de 1 de janeiro de 1894, mesmo ano em que
traduz o prólogo, cujos parágrafos em questão que reproduzimos a seguir:
Imaginemos um homem que haja nascido com o século e morra com ele. Victor Hugo
já o achou com dois anos (ce siècle avait deux ans), e pode ser que contasse viver até
o fim; não passou da casa dos oitenta. Mas Heine, que veio ao mundo no próprio dia
1 de janeiro de 1800, bem podia ter vivido até 1899, e contar tudo o que passou no
século, com a sua pena mestra de humour... Oh! página imortal! Assistir à Santa
Aliança e à dinamite! Vir do legitimismo ao anarquismo, parando aqui e ali na
liberdade, eis aí uma viagem interessante de dizer e de ouvir. Revoluções, guerras,
conquistas, uma infinidade de constituições, grande variedade de calças, casacas,
chapéus, escolas novas, novas descobertas, ideias, palavras, dança, livros, armas,
carruagens, e até línguas... Viver tudo isso, e referi-lo ao século XX, grande obra, em
verdade.
Deus ou a paralisia não o quis. Heine notaria, melhor que ninguém o advento do
anarquismo, se é certo que este governo inédito tem de sair à luz com o fim do século.
Ninguém melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princípio com o
anarquismo do fim, Carlos X e Nada. Que excelentes conclusões! Nem todas seriam
cabais, mas seriam todas belas. Aos homens da ciência ficam razões sólidas com que
823
VALLIAS, André. “Poeta dos contrários”. In: HEINE, Heinrich. Heine, hein?: poeta dos contrários. São Paulo:
Perspectiva; Goethe Institut, 2011, p. 27-28
824
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 1220.
385
afirmam a marcha ascendente para a perfeição. Os poetas variam; ora creem no
paraíso, ora no inferno, com esta particularidade que adotam o pior para expô-lo em
versos bonitos. Heine tinha a vantagem de o saber expor em bonita prosa825.
Heinrich Heine, que Carpeaux (2013) afirma ter reivindicado para si o título de “último
romântico”, foi autor de uma poesia de subjetivismo extremo, tratando, supostamente, dos
próprios sentimentos do poeta, fossem eles grandes ou pequenos, mas que colidia com a fina e
penetrante ironia com que desmentia aqueles mesmos sentimentos, o que leva Carpeaux a
considerá-lo “coveiro do romantismo”. O exemplo que o crítico dá para justificar sua opinião é
tirado do Buch der Lieder (Livro das Canções), que “[...] está cheio de poemas em que um
conteúdo sentimental e comovido é ridicularizado pela irônica última linha. Chora o pôr-dosol, mas ‘é uma peça antiga, amanhã voltará’”826. Há nisto, certamente, características que
encontramos no nosso próprio Machado, o que pode justificar o apreço do nosso escritor pelo
poeta e jornalista alemão, cujo humor e prosa admirava o suficiente para incluí-los em sua
crônica, em prosa dotada de mesma finura de humor.
825
826
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 966, grifo nosso.
CARPEAUX, Otto Maria. História concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013, p. 116.
386
Figura 12 – Reprodução da publicação do “Prólogo do Intermezzo” em A Semana
Fonte: Assis (1894)
387
Enfim, qualquer conclusão a respeito da tradução de Machado de Assis e suas possíveis
fontes só pode ser alcançada a partir do confronto dos textos, que faremos agora, com as
traduções de Machado e Ristelhuber e o texto alemão de Heine. Para efeitos de comparação,
reproduzidos a seguir a versão de Machado de Assis ao lado do texto alemão de Heine:
Quadro comparativo 37 – “Prólogo do ‘Intermezzo’” e “Prolog”
Prólogo do “Intermezzo”
Prolog
Um cavalheiro havia, taciturno,
Que o rosto magro e macilento tinha.
Vagava como quem de algum noturno
Sonho levado, trépido caminha.
Tão alheio, tão frio, tão soturno,
Que a moça em flor e a lépida florinha,
Quando passar tropegamente o viam,
Às escondidas dele escarneciam.
Es war mal ein Ritter trübselig und stumm,
Mit hohlen, schneeweißen Wangen;
Er schwankte und schlenderte schlotternd herum,
In dumpfen Träumen befangen.
Er war so hölzern, so täppisch, so links,
Die Blümlein und Mägdlein, die kicherten rings,
Wenn er stolpernd vorbeigegangen.
A miúdo buscava a mais sombria
Parte da casa, por fugir à gente;
Daquele posto os braços estendia
Tomado de desejo impaciente.
Uma palavra só não proferia.
Mas, pela meia-noite, de repente,
Estranho canto e música escutava,
E logo alguém que à porta lhe tocava
Furtivamente então entrava a amada
O vestido de espumas arrastando,
Tão vivamente fresca e tão corada
Como a rosa que vem desabrochando;
Brilha o véu; pela esbelta e delicada
Figura as tranças soltas vão brincando;
Os meigos olhos dela os dele fitam,
E um ao outro de ardor se precipitam.
Com a força que amor somente gera,
O peio a cinge, agora afogueado;
O descorado as cores recupera,
E o retraído acaba namorado,
O sonhador desfaz-se da quimera...
Ela o excita, com gesto calculado;
Na cabeça lhe lança levemente
O adamantino véu alvo e luzente.
Ei-lo se vê em sala cristalina
De aquático palácio. Com espanto
Olha, e de olhar a fábrica divina
Quase os olhos lhe cegam. Entretanto,
Junto ao úmido seio a bela ondina
O aperta tanto, tanto, tanto, tanto...
Vão as bodas seguir-se. As notas belas
Vêm tirando das cítaras donzelas.
As notas vem tirando, e deleitosas
Cantam, e cada uma a dança tece
Erguendo ao ar as plantas graciosas.
Ele, que todo se embevece,
Oft saß er im finstersten Winkel zu Haus;
Er hatt‘ sich vor Menschen verkrochen.
Da streckte er sehnend die Arme aus,
Doch hat er kein Wörtlein gesprochen.
Kam aber die Mitternachtsstunde heran,
Ein seltsames Singen und Klingen begann –
An die Türe da hört er es pochen.
Da kommt seine Liebste geschlichen herein,
Im rauschenden Wellenschaumkleide,
Sie blüht und glüht, wie ein Röselein,
Ihr Schleier ist eitel Geschmeide.
Goldlocken umspielen die schlanke Gestalt,
Die Äuglein grüßen mit süßer Gewalt –
In die Arme sinken sich beide.
Der Ritter umschlingt sie mit Liebesmacht,
Der Hölzerne steht jetzt in Feuer,
Der Blasse errötet, der Träumer erwacht,
Der Blöde Wird freier und freier.
Sie aber, sie hat ihn gar schalkhaft geneckt,
Sie hat ihm ganz leise den Kopf bedeckt
Mit dem weißen, demantenen Schleier.
In einen kristallenen Wasserpalast
Ist plötzlich gezaubert der Ritter.
Er staunt, und die Augen erblinden ihm fast,
Vor alle dem Glanz und Geflitter.
Doch hält ihn die Nixe umarmet gar traut,
Der Ritter ist Bräut‘gam, die Nixe ist Braut,
Ihre Jungfraun spielen die Zither.
Sie spielen und singen, und singen so schön,
Und heben zum Tanze die Füße;
Dem Ritter dem wollen die Sinne vergehn,
Und fester umschließt er die Süße –
Da löschen auf einmal die Lichter aus,
Der Ritter sitzt wieder ganz einsam zu Haus,
In dem düstern Poetenstübchen.
388
Deixa-se ir nessas horas amorosas...
Mas o clarão de súbito fenece,
E o noivo torna à pálida tristura
Da antiga, solitária alcova escura.
Fonte: Assis (2009); Heine (1827)
O “Prolog” de Heine nos coloca diante de uma situação vivida por um cavaleiro que
anda trôpego e triste, sendo zombado pelas jovens que o veem passar. A segunda estrofe nos
diz que o cavaleiro tinha por hábito se esconder nos cantos escuros de casas, evitando contato
com as pessoas, até que chega a noite e ele ouve alguém à porta. Na estrofe seguinte
descobrimos que era sua amada que entra com seu vestido que parece feito de espumas das
ondas do mar, sugerindo tratar-se de uma ninfa, com cachos de cabelos dourados. Os dois se
olham intensamente e se abraçam. Neste momento já se pode desconfiar de que se trata, na
verdade, de um sonho. Indiferente, o jovem cavaleiro se deixa levar e abraça a ninfa. Os versos
ressaltam o quanto o jovem vai se tornando o oposto do que era antes conforme a amada o
provoca com o seu véu. O cavaleiro é então transportado pela ninfa a um palácio de cristal sob
as águas. Impressionado com o esplendor do lugar, ele e a ninfa ficam noivos e ouvem virgens
tocarem cítaras. Na última estrofe vemos as virgens tocarem e dançarem enquanto o cavaleiro
aos poucos perde os sentidos, até que acorda e se vê de volta aos seus tristes aposentos de poeta.
O cavaleiro é insistentemente descrito de forma tão débil que mais parece uma paródia dos
heróis dos romances de cavalaria enquanto o poema, tomado isoladamente, nos remete a um
ciclo de inevitável desilusão: o débil “cavaleiro”, que na verdade parece ser um poeta que se
imagina cavaleiro – já que o último verso do poema de Heine diz que ele retornou à sua alcova
de poeta – se entrega a uma ilusão amorosa com uma ninfa e se deixa levar para o fundo do
oceano, mas tudo não passa de um sonho cujo ápice o leva de volta ao seu estado original. No
plano semântico geral, portanto, a versão de Machado de Assis é bastante próxima da versão
de Heine, a mais notável exceção residindo no fato de que, a partir do poema de Machado, não
sabemos que o cavaleiro retorna, no verso final, ao seu pequeno quarto de poeta
(“Poetenstübchen”, em alemão).
No plano formal, reparamos, primeiramente, no título: Machado chama seu texto de
“Prólogo”, mais próximo sonoramente do “Prolog” de Heine, e diferente de Ristelhuber, que
prefere “Prélude”. No texto alemão encontramos um poema em sétimas, com esquema de rimas
ABABCCB, assim como na versão francesa. Quanto à métrica, devido à diferença entre os
sistemas – a metrificação germânica é silábico-acentual, enquanto o português é silábico –,
temos um problema que já foi estudado no artigo “Questions de Traduction: Le Lyrisches
389
Intermezzo De Heine et Ses Versions Françaises” (1990) de Béatrice Lamiroy, cuja explicação
do problema da métrica também se aplica ao nosso idioma:
A comparação de um poema alemão e sua tradução francesa, no nível do metro,
apresenta um problema pelo simples fato de que a prosódia francesa é
fundamentalmente diferente da prosódia alemã. Enquanto em francês o verso repousa
sobre o isossilabismo – o número de sílabas é constitutivo de um tipo de verso –, o
verso alemão é, antes de qualquer outra coisa, isocrômico – somente importam os
‘Hebungen’, indiferentemente do número de sílabas não acentuadas –. O único ponto
de comparação, que pode ser adotado como critério, deverá ser, portanto, o efeito
global do verso, abstração feita, na medida do possível, do sistema prosódico
determinado que aparece nos respectivos textos.
O verso de Heine parece responder a uma dupla característica. Em geral, o poeta opta
por um verso curto e leve: o ‘drei-hebiger Vers’ é o mais frequente. O verso da
Lyrisches Intermezzo é ainda marcado por uma relativa liberdade: o número de
‘Hebungen’ por verso varia – mais comumente entre dois e quatro – dentro da
coleção827
Portanto, se não é possível comparar a métrica, cabe verificar o quanto o tradutor manteve as
características do verso de Heine. À primeira vista, mesmo uma análise superficial demonstra
que a tradução de Machado já apresenta características bastante próprias: as sétimas em Heine
se tornam oitavas na versão de Machado que, consequentemente, adota outro esquema de rimas,
ABABABCC, com decassílabos cuja acentuação varia de um verso para outro, construção que
lembra vagamente o soneto shakespeariano, com o característico dístico final. Comparemos,
por exemplo, a primeira estrofe da tradução de Machado de Assis:
Um cavalheiro havia, taciturno,
Que o rosto magro e macilento tinha.
Vagava como quem de algum noturno
Sonho levado, trépido caminha.
Tão alheio, tão frio, tão soturno,
Que a moça em flor e a lépida florinha,
Quando passar tropegamente o viam,
Às escondidas dele escarneciam.828
com a versão alemã:
827
LAMIROY, Béatrice. Questions de traduction. Le Lyrisches Intermezzo de Heine et ses versions
françaises. Fragmentos: Revista de Língua e Literatura Estrangeiras, Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 21-58, jan. 1990,
p. 42, tradução nossa. No texto-fonte: “La comparaison d’un poème allemand et de sa traduction française, au
niveau du metre (sic), pose un problème par le seul fait que la prosodia (sic) française est foncièrement différente
de la prosodie allemande. Tandis qu’en français le vers repose sur l’isosyllabisme - le nombre de syllabes est
constitutif d’un type de vers -, le vers allemand est avant tout isochronique - seules sont importantes les
“Hebungen”, indifféremment du nombre de syllabes non accentuées -. Le seul point de comparaison, qui peut être
adopté comme critère, devra donc être l’effet global du vers, abstraction faite, dans la mesure du possible, du
système prosodique déterminé qui apparaît dans les textes respectifs. / Le vers de Heine semble répondre à une
double caractéristique. Le poète opte en général pour un vers court et léger: le “drei-hebiger Vers” est le plus
fréquent. Le vers du Lyrisches Intermezzo est marqué en outre par un certain flottement, une liberté relative: le
nombre de “Hebungen” par vers varie - le plus souvent de deux à quatre - à l’intérieur du recueil”.
828
ASSIS, 2009a, p. 536
390
Es war mal ein Ritter trübselig und stumm,
Mit hohlen, schneeweißen Wangen;
Er schwankte und schlenderte schlotternd herum,
In dumpfen Träumen befangen.
Er war so hölzern, so täppisch, so links,
Die Blümlein und Mägdlein die kicherten rings,
Wenn er stolpernd vorbeigegangen. 829
Como vimos, Massa sugere que Machado de Assis teria utilizado a versão de
Ristelhuber para compor a sua versão. Mas a leitura da versão francesa sugerida nos apresenta
pelo menos um problema digno de nota. Vejamos o trecho que traduz para o francês a mesma
estrofe reproduzida acima:
Il était une fois un chevalier morose
Et triste, avec l’œil cave et le front blanchissant ;
Il errait vacillant et se traînait sans cause,
Abimé dans un rêve étrange et séduisant ;
Lourd comme un soliveau, dadais et malitorne,
Que fleurette et fillette, en le voyant si morne,
Ricanaient à la ronde et le trouvaient plaisant.830
A tradução acima nos mostra que Ristelhuber escolheu manter os mesmos sete versos para esta
estrofe, e o mesmo esquema de rimas, mas adotando o alexandrino como metro. No plano da
métrica ou da rima, portanto, as diferenças parecem circunstanciais, oriundas do projeto que o
poeta-tradutor tinha para seu poema. O quinto verso desta estrofe, contudo, apresenta um dado
interessante, já que a tradução de Machado parece ter mais em comum semanticamente com a
versão alemã de Heine do que com a francesa de Ristelhuber: a repetição do advérbio em “Tão
alheio, tão frio, tão soturno” é idêntica no texto de Heine, que intensifica cada adjetivo repetindo
o mesmo advérbio “so” em “Er war so hölzern, so täppisch, so links”, característica que não
encontramos no texto francês “Lourd comme un soliveau, dadais et malitorne”. Os últimos
versos desta estrofe também apontam para maior similaridade entre o texto de Machado e o
alemão do que com a versão francesa. Machado, como vimos, acrescenta um verso a cada uma
das estrofes de Heine. Assim, os dois últimos versos de cada estrofe em alemão correspondem
aos três últimos da tradução de Machado. No caso da estrofe transcrita acima, Machado
desdobra o sexto verso de Heine – “Die Blümlein und Mägdlein die kicherten rings” – em dois,
que na sua tradução se tornam o sexto e oitavo versos – “Que a moça em flor e a lépida florinha”,
para traduzir o trecho “Die Blümlein und Mägdlein”, e “Às escondidas dele escarneciam”, para
traduzir o trecho “die kicherten rings” –, mantendo a informação do sétimo verso de Heine –
“Wenn er stolpernd vorbeigegangen” – no sétimo verso de sua versão – “Quando passar
829
HEINE, Heinrich. Buch der Lieder. Hamburg; Berlin: Hoffmann und Campe Verlag, 1827, p. 77
HEINE, Henri. Intermezzo. Trad. Paul Ristelhuber. Paris: Poulet-Malassis et de Broise Libraires-Editeurs, 1857
p. 9
830
391
tropegamente o viam”. Este sétimo verso de Heine – que significa, em tradução literal e livre,
algo como “Quando ele passara aos tropeços” – é traduzido de maneira muito próxima
semanticamente por Machado, mas não por Ristelhuber, que simplesmente omite o trecho e
escreve “Ricanaient à la ronde et le trouvaient plaisant” (“Zombavam em torno dele e o
achavam engraçado”), verso que continua o anterior que termina dizendo simplesmente que as
moças viam-no triste, o que mantém menos semelhança com o texto de Heine do que a versão
de Machado. É possível encontrar mais exemplos do tipo comparando as três versões, mas o
que foi exposto até aqui basta para demonstrar que há problemas em sugerir que Machado
trabalhou exclusivamente a partir da versão de Ristelhuber, ou que não teria consultado o poema
em alemão.
Além disso, a opção pelo alexandrino faz com que a versão francesa tenha, ao fim, mais
acréscimos que a de Machado, provocando um alongamento do texto e tornando-o mais morno,
solene, devido ao metro utilizado. Machado, optando por versos decassílabos, consegue manter
um ritmo mais ondulatório, sem optar pela regularidade estrita na distribuição dos acentos nos
seus versos, demonstrando excelente habilidade poética no verso “O aperta tanto, tanto, tanto,
tanto...” da quinta estrofe, em que acentua todas as sílabas pares, alcançando resultado de
máxima regularidade que sugere o movimento das ondas justamente na estrofe em que o
elemento aquático é presente. Escusado é dizer que este verso e este ritmo são obra de Machado,
não sendo encontrados na mesma estrofe no poema de Heine ou na tradução de Ristelhuber. A
opção pelas oitavas em vez de sétimas, como fez Heine, também aponta para o fato de que este
modelo de estrofe fora de largo emprego no período romântico além de, pelo verso a mais,
permitir que tivesse mais espaço para transpor o poema de Heine, como vimos anteriormente.
O resultado final – e utilizamos o termo aqui em duplo sentido, tanto em relação à
tradução em questão quanto à prática tradutória de Machado de Assis, que se encerra com este
trabalho – é bastante machadiano: o poeta, que é mais poeta do que tradutor, não se prende ao
que estipula o texto-fonte, mesmo porque parece ser afeito a trabalhar a partir de mais de uma
fonte, mas busca na sua tradição elementos que o permitam recriar o poema em língua
portuguesa, demonstrando pleno domínio da versificação portuguesa e de suas formas clássicas,
de forma que não seja só um poema alemão traduzido, mas um poema brasileiro criado a partir
de um poema alemão, mas que não depende daquele para se afirmar como obra literária.
Demonstrando que a figura do poeta e do tradutor não se excluem, mas se complementam,
Machado de Assis nos lega, por fim, um texto que é tão – ou mais – seu quanto de Heine e,
assim, alça a prática da tradução literária ao patamar criativo que lhe é de direito.
392
10.7 “Dante”
A última tradução de Ocidentais, “Dante” é a versão do Canto XXV do “Inferno” da
Divina Comédia do poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321). Foi publicada primeiramente
no jornal carioca O Globo, em 25 de dezembro de 1874, sendo depois republicada no semanário
A Instrução Pública, em 28 de fevereiro de 1875 e finalmente incluída em Ocidentais831. R.
Magalhães Junior sugere que Machado teria tentado emular este canto ao lado de José Pedro
Xavier Pinheiro, com quem viria a trabalhar no Ministério de Agricultura, Comércio e Obras
Púlicas e que traduziu a Divina Comédia na íntegra832, publicada postumamente, em 1888. É
difícil determinar quem teria sido o primeiro a iniciar o trabalho. Xavier Pinheiro também
publica uma tradução do mesmo Canto XXV, ao lado do texto italiano, em 18 de fevereiro de
1875, no mesmo jornal que primeiro publicou a tradução de Machado de Assis833, e apenas dez
dias antes da republicação da versão de Machado de Assis em outro jornal. Por conta deste fato,
Lúcia Miguel Pereira, em nota de rodapé, questiona se haveria nisso uma velada acusação de
infidelidade a Machado de Assis834. Não acreditamos que seja o caso, ainda mais tendo em vista
a análise que apresentaremos a seguir. A única certeza que temos é a de que Machado de Assis
foi o primeiro a publicar o seu trabalho. Por equívoco, na primeira edição de Ocidentais nas
Poesias completas (1901) a tradução do canto é referenciada como sendo não do “Inferno”,
mas do “Purgatório”, equívoco que não observamos na última publicação em jornal, por
exemplo.
O interesse de Machado de Assis pelo poeta florentino não foi gratuito, nem surpreende.
Tanto Erich Auerbach, em Ensaios de literatura ocidental (2012), quanto Harold Bloom em
The western canon (1994) sugerem que a estética romântica foi responsável por redescobri-lo,
na forma como o conhecemos835, imitá-lo e até mesmo idolatrá-lo836. Machado de Assis,
sabidamente, não ficou imune a esta influência. Segundo Auerbach, que considerou Dante o
“Homero toscano”837, os poetas da época expressavam-se “[...] numa forma de imensa
831
MANUPELLA, G. Dantesca luso-brasileira: subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de
Dante Alighieri. Coimbra: Coimbra Editora, 1966, p. 49
832
MAGALHÃES JR., vol. 1, 2008, p. 187
833
MANUPELLA, Op. Cit., p. 49
834
PEREIRA, 1949, p. 174
835
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica (Org. Davi Arrigucci Jr e Samuel Titan
Jr.). Trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. 2 ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Editora
34, 2012, p. 289.
836
BLOOM, 1994, p. 84
837
AUERBACH, 2012, p. 292
393
evidência sensível, plástica, direta e viva, numa linguagem que era um retrato da natureza para
eles viva e vivificada, cujas palavras não pareciam ser o símbolo convencional para o referente,
senão o próprio referente”838. Muito possivelmente, este seria um dos motivos que atraíram os
românticos para aquela estética: o frescor, o viço, a virilidade da poesia dantesca eram fartos
materiais para renovar as formas de expressão poética, já insatisfeitos com as possibilidades
deixadas pelas estéticas anteriores. Para Auerbach, a admiração dos românticos por Dante e seu
interesse por
trechos poéticos isolados do poema e deram um novo alimento e grande difusão
àquele desfrute parcial e desarticulado de Dante – que, sem dúvida, é também uma
porta de entrada. Os românticos instauraram desde o início como que um culto a
Dante; o nome de Dante surge então ao lado dos de Shakespeare e Goethe, por vezes
também ao lado de Shakespeare e Cervantes, numa tríplice constelação da nova poesia
europeia839.
August Wilhelm Schlegel dizia que traduzir Dante era “[...] penetrar na composição da essência
alheia, conhecê-la tal qual é, espreitar como veio a ser”840.
Harold Bloom também é de opinião de que Dante, detentor de um espírito selvagem e
politicamente incorreto para nossos dias841, foi capaz de produzir uma obra improvável, que
desafia o leitor e sobrevive tanto às seguidas traduções quanto à sua própria erudição842,
desfazendo a fronteira entre a escrita sagrada e a secular, como fazem todas as obras
canônicas843. A última colocação de Harold Bloom nos remete diretamente a outro estudo de
Erich Auerbach, Dante: poet of the secular world (2001), publicado originalmente em 1929.
Nesta obra, Auerbach propõe que a poesia de Dante surge antes de um evento do que de uma
ideia, já que os eventos de sua poesia são como visões844. Dante, sempre em busca de uma
unidade articulada, visível na forma como organiza o conteúdo e na estruturação de suas
orações845, cria uma poesia em que os homens por ele retratados na Divina Comédia “[...] já
foram removidos do tempo terrestre e do destino temporal. Dante escolheu para sua
representação um cenário muito especial que, como dissemos acima, abriu possibilidades
totalmente novas de expressão para ele e unicamente para ele”846. Neste novo cenário escolhido
838
AUERBACH, 2012, p. 291
Ibid., p. 295
840
SCHELGEL apud AUERBACH, 2012, p. 297
841
BLOOM, 1994, p. 76
842
Ibid., p. 78
843
Ibid., p. 81
844
AUERBACH, Erich. Dante: poet of the secular world. Trad. Ralph Manheim. New York: New York Review
Books, 2001, p. 41
845
AUERBACH, 2001, p. 59
846
Ibid., p. 86, tradução nossa. No original: “are already removed from earthly time and temporal destiny. Dante
chose for his representation a very special setting which, as we have said above, opened up wholly new possibilities
of expression to him and to him alone”.
839
394
pelo poeta estão as três partes em que se divide a sua obra, “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”,
para onde são enviadas as almas dos homens conforme seu comportamento em vida. Como a
narrativa não se dá por meio de um enredo linear, mas uma série de episódios individuais em
que Dante e Virgílio interagem com personalidades da época e da antiguidade, o poeta se vê
livre, o que não quer dizer, em hipótese alguma, que a Divina Comédia seja uma obra sem uma
estrutura narrativa fixa. Auerbach explica que o poema se organiza sobre “[...] três sistemas
entrelaçados e mesclados que são concebidos como correspondentes na ordem divina. Existe
um sistema físico, ético e histórico-político; cada um deles, por sua vez, envolve uma síntese
de diferentes tradições”847. Há, é claro, uma inegável conotação numerológica em volta do
número três no poema: três partes, “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”, cada uma com trinta e
três cantos – há um canto introdutório, que eleva o total de cantos a cem – escritos em tercetos
de rimas alternadas e encadeadas, criando uma intricada tessitura poética em que nada é
gratuito, nenhum verso pode ser retirado ou acrescentado sem que se afete toda a estrutura do
poema. Diante de tal rigidez estrutural e na obsessão pelo número três, pensa-se imediatamente
na Santíssima Trindade e na perfeição da criação divina, agregando tal ordem na criação deste
perfeito edifício poético que a menor interferência faria desmoronar todo o conjunto.
Ainda assim, a estrutura não-linear da narrativa permitiu que episódios fossem tomados
isoladamente, contribuindo para a difusão da obra, como fizeram diversos tradutores. Das três
partes do poema, o “Inferno” é a que certamente mais atraiu interessados, especialmente entre
os primeiros românticos que, segundo Auerbach, foram responsáveis pela redescoberta do
poeta. No livro dedicado ao poeta italiano, Auerbach considera as cenas e castigos que
encontramos no “Inferno” “[...] a base da fama que Dante tem desfrutado em períodos
românticos e não inteiramente sem justificativa, eles ainda têm muito a ver com a estimativa
popular dele”848. Ainda sobre a composição do “Inferno”, diz Auerbach:
Ao conceber as punições do Inferno, Dante emprega material mítico e elementos da
fé popular; são enormemente imaginativas, mas cada uma delas é baseada em uma
reflexão rigorosa e precisa, na posição e no grau do pecado em questão, em um
conhecimento profundo de sistemas racionais de ética; e cada uma, como uma
realização concreta da idéia da ordem divina, é calculada para provocar um
847
AUERBACH, 2001, p. 101, tradução nossa. No original: “three merging, interwoven systems which are
conceived of as corresponding in the divine order. There is a physical, an ethical, and a historical-political system;
each of them, in turn, involves a synthesis of different traditions”.
848
AUERBACH, 2001, p. 110, tradução nossa. No original: “the basis of the fame that Dante has enjoyed in
romantic periods and not entirely without justification they still have a good deal to do with the popular estimate
of him”.
395
pensamento racional concernente à natureza do pecado, isto é, a maneira como ele
desvia da ordem divina.849
Cada um dos cantos do “Inferno”, portanto, narra um episódio em que é posto em cena o
condenado e seu castigo, sempre adequado à gravidade do pecado, denotando a perfeita
realização da ordem divina e demonstrando o castigo proveniente da desobediência àquela
ordem.
Machado de Assis, curiosamente, não escolheu traduzir cantos mais célebres do
“Inferno”, como o Canto V que conta a história de amor adúltero de Paolo e Francesa, ou o
Canto X, em que estão Farinata Degli Uberti e Cavalcanti di Cavalcanti, pai do poeta Guido
Cavalcanti, no círculo destinado aos hereges. Escolheu um canto que, por não figurar entre os
mais ilustres, denota um interesse que não se justifica pela moda ou fama do texto traduzido,
mas por uma escolha bastante pessoal e deliberada, como se só dele pudesse extrair a lição
desejada. Edoardo Bizzarri, em Machado de Assis e a Itália, afirma que o canto escolhido, que
estranha a princípio por não ser dos mais famosos da Divina Comédia, será “[...] posteriormente
reconhecido pela crítica como um dos mais interessantes e complexos do Poema, devido aos
problemas de técnica expressiva e de linguagem poética impostas pela ousadia da figuração”850
o que para ele comprovaria a sensibilidade instintiva de Machado para questões de estética,
além de uma leitura atenta da Divina Comédia.
Já o crítico francês Jean-Michel Massa (1966) apresenta a seguinte explicação para a
escolha de Machado:
Esta escolha do canto XXV, por paradoxal que tal afirmação pareça, não seria uma
homenagem à Beleza? Mimigliano, no seu célebre comentário, evoca Michelangelo;
este canto talvez tenha interessado o poeta brasileiro pelo estudo escultural e plástico
que evocava para si.851
849
AUERBACH, 2001, p. 111, tradução nossa. No original: “In conceiving the punishments of Hell, Dante
employs mythical material and elements of popular faith; they are enormously imaginative, but each single one of
them is based on strict and precise reflection, on the rank and degree of the sin in question, on a thorough
knowledge of rational systems of ethics; and each one, as a concrete realization of the idea of divine order, is
calculated to provoke rational thought concerning the nature of sin, that is, the way in which it deviates from the
divine order”.
850
BIZZARI, Edoardo. Machado de Assis e a Italia. Caderno, São Paulo, 1, 1961, p. 22
851
J.-F. BOTREL; JEAN-MICHEL MASSA; A. POUPET. « La présence de Dante dans l’oeuvre de Machado de
Assis ». Études Luso-Brésiliennes, Paris, XI, 1966, p. 22, tradução nossa. No original: “Ce choix du chant XXV,
pour paradoxale qu’une telle affirmation paraisse, n’est-il pas un hommage à la Beauté? Momigliano, dans son
célèbre commentaire, évoque Michel-Ange; ce chant a peut-être intéressé le poète brésilien par l’étude sculpturale
et plastique qu’elle évoquait pour lui.”
396
A afirmação de Massa não é necessariamente paradoxal. A aproximação entre o belo e o
grotesco era cara aos românticos, como Mario Praz explica em La carne, la morte e il diavolo
nella letteratura romantica (1948):
A descoberta do horror como fonte de prazer e beleza acabou reagindo ao próprio
conceito de beleza: o horrível, da categoria do belo, acabou se tornando um dos
próprios elementos da beleza: do belamente horrível passou-se por graus insensíveis
ao horrivelmente belo. A beleza do horrível certamente não pode ser considerada
como uma descoberta do século XVIII, embora só então a ideia tenha atingido a plena
consciência852.
Logo, não é descabido sugerir que ao traduzir este canto Machado de Assis estivesse ensaiando
um estudo de outro tipo de beleza, redescobrindo em Dante o frescor necessário ao seu trabalho
de reflexão sobre a natureza humana.
Tanto Bizzarri quanto Massa apontam possíveis e prováveis motivos para a escolha tão
peculiar de Machado de Assis. Ainda assim, devemos acrescentar que tradução Canto XXV da
Divina Comédia é uma rara exceção quanto ao silêncio do tradutor que cerca as suas traduções.
Quando reeditada em A Instrução Pública, a tradução veio introduzida por um texto em que o
poeta-tradutor explicita suas intenções:
Destaco dos meus papeis a seguinte tradução do canto XXV do “Inferno”, tão
justamente admirado como um dos melhores quadros saídos da imaginação daquele
homem extraordinário que Florença deu ao mundo. Rivarol, que aliás não poupa
censuras ao poeta, dá livre expansão ao entusiasmo que lhe causa o canto que se vai
ler. “Dante (diz ele) mostra neste quadro aquele magnífico horror que fazia pasmar
Tasso. Atrevimentos de estilo, grandeza de desenho, severidade de expressão, tudo
aqui se acha. Os três versos com que a descrição termina fazem estremecer de
admiração, porquanto já não é italiano, non mortale sonans; é o mens divinor; é o
inferno em toda a sua majestade:
Cosi vid’io la settima zavorra
Mutar e transmuttare; e que(sic) me scusi
La novità, si fior la pena aborra.
Comecei esta tradução por curiosidade, e conclui-a creio que por aposta comigo
mesmo. Pus todo o escrúpulo em que a reprodução me saísse fiel; mas se as
descrições, as imagens e as ideias passaram à nossa língua, não passou, nem poderia
passar o estilo do poeta, estilo ao qual dizia Macaulay que os mais nobres modelos da
arte grega deveriam ceder o passo. Esse não se traduz: soletra-se ou lê-se, conforme
se conhece pouco ou muito a língua original853.
852
PRAZ, Mario. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. 3 ed. Firenze: Sansoni Editore, 1948,
p. 29-30, tradução nossa. No original: “La scoperta dell’orrore come fonte di diletto e di bellezza finí per reagire
sul concetto stesso della bellezza: l’orrido, da categoria del bello, finí per diventare uno degli elementi propri del
bello: dal bellamente orrido si passò per gradi insensibili all’orribilmente bello. Quella bellezza dell’orrido non
può certo considerarsi come una scoperta del secolo decimottavo, sebbene allora soltanto l’idea giungesse a piena
coscienza”.
853
ASSIS, Machado de. “Dante: o Canto XXV do Inferno”. A Instrução Pública, 28 jan. 1875, p. 3. Disponível
em: http://memoria.bn.br/DocReader/233048/1324. Acesso em: 6 nov. 2016.
397
Figura 13 – Reprodução da primeira publicação da tradução do “Canto XXV” do “Inferno”
398
Fonte: Assis (1875)
399
Os motivos que levaram Machado a escolher tal canto estão ali, como uma súmula de seu
projeto: decerto, Machado teve algum tipo de contato com a tradução em prosa que Antoine de
Rivarol fez do “Inferno”. Ao citar o tradutor francês, Machado também expõe os motivos que
chamaram sua atenção no poema de Dante: “atrevimento de estilo, grandeza de desenho,
severidade de expressão”. Dizendo que começara “por curiosidade” e em aposta consigo
mesmo, é como se nos dissesse que estava testando seus limites criativos. Machado é sincero
quanto ao seu empenho e objetivos, e modesto quanto aos resultados: considera-se escrupuloso
na busca pela fidelidade na reprodução, mas não julga ter conseguido reproduzir o estilo do
poeta, que considera intraduzível. Sua tradução soa, de fato, mais “machadiana” do que
“dantesca”, o que não é nenhum demérito. Em Machado de Assis e o cânone ocidental (2016),
Sonia Netto Salomão, tratando da escolha deste canto, acrescenta que Machado de Assis teria
ficado impressionado, primeiramente, com “[...] o distanciamento artístico que regula a técnica
descritiva e orienta a fantasia, liberando-a numa espécie de divertimento humanístico de
incrível capacidade inventiva e figurativa gerada a partir de um estado de ânimo cruel e de um
soberbo juízo moral”854. Segundo a autora, Machado e Dante também se aproximariam pela
gélida curiosidade anatômica em que se desenvolvem as prodigiosas transformações
dos homens em répteis e que se explica no âmbito dessa disposição do poeta que se
identifica, assimila e confunde com a justiça de Deus e contempla, com estupor
atônito, os infinitos recursos de sua arte punitiva, obtendo prazer, mas também
sentindo horror [...]855.
O Canto XXV continua o trecho da jornada que se iniciara no canto anterior: no Canto
XXIV, Dante e Virgílio estão na sétima vala do oitavo Círculo do Inferno, lugar destinado aos
ladrões que, quando atacados por serpentes gigantescas e picados por elas, tornam-se cinzas e
depois renascem para sofrer novamente. No Canto XXIV até mesmo Virgílio, espírito sem
corpo e sem peso que representa a razão humana, mostra-se imperfeito e vacila. Dante também
deixa transparecer as limitações de sua forma humana, mostrando-se cansado com a subida. É
neste canto que surge Vanni Fucci, que se apresenta a Virgílio depois de indagado sobre sua
identidade. Fucci então dirige-se a Dante, diz estar envergonhado por ser visto naquela
condição, e então explica o motivo de estar ali: roubara a sacristia de uma igreja e acusara a
outro pelo crime. O Canto XXIV encerra-se com a profecia de Vanni Fucci, que, intencionando
desaminar Dante, assegura-lhe que Pistóia expulsaria a facção dos negros, mas que depois do
combate todos os brancoslx estariam feridos.
854
SALOMÃO, Sonia Netto. Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura. Rio de Janeiro: Eduerj,
2016, p. 83
855
Ibid., p. 83
400
No primeiro terceto do Canto XXV encontramos o mesmo Vanni Fucci, posteriormente
descrito por Dante como o pecador mais orgulhoso que vira em todo o inferno, oferecendo uma
figa a Deus, o que equivaleria, hoje, a um gesto obsceno como mostrar o dedo médio. Uma
serpente enrola-se, então, no pescoço de Fucci por ter blasfemado, e outras envolvem seus
braços. O que se segue, neste canto em que não há diálogos, é uma longa e vívida descrição da
metamorfose dos ladrões em serpentes, que Dante observa e descreve ao mesmo tempo
fascinado e horrorizado. Dante interpela o leitor, afirmando não se surpreender se o leitor não
acreditar no que ele vai narrar, pois ele mesmo mal acreditava. Descreve, então, como uma
serpente de seis pés se enlaça em um dos três ladrões que observava, fundindo-se a ele como
em um amálgama de cera derretida em que homem e serpente se confundem, tornando-se um
só ser, enquanto os outros dois ladrões também observam atônitos. O canto continua com a
descrição ainda mais horrenda de outra metamorfose, dando a entender que enquanto um
homem se torna serpente, outra serpente se transmuta em homem. Neste canto vemos os ladrões
perderem seus corpos, sua substância, por terem roubado o que não lhes pertencia. O castigo,
portanto, está perfeitamente ajustado ao pecado. Talvez não haja nenhum outro momento em o
todo o “Inferno”, ou mesmo em toda a Divina Comédia, em que encontremos descrições tão
vívidas e intensas quanto esta, escrita numa linguagem direta, sem floreios, sem nem ao menos
evitar termos que soam obscenos ao leitor mais pudico. O próprio Dante se desculpa pelo
linguajar empregado, como no terceto citado por Machado de Assis nos parágrafos que
introduzem sua tradução: “qui mi scusi / la novità se fior la penna abborra”.
Se Machado de Assis não foi o primeiro publicar traduções de Dante no Brasil, primazia
que cabe a Luiz Vicente De Simoni que traduz e publica alguns cantos da Divina Comédia em
Ramalhete poético do parnasso italiano em 1843856, certamente esteve entre os primeiros. Entre
Machado de Assis e Luiz Vicente de Simoni, somente Gonçalves Dais traduziu alguns versos
do “Purgatório” da Divina Comédia em 1844. Se considerarmos, contudo, os cantos traduzidos
na íntegra, Machado de Assis só é precedido por De Simoni857, sendo que sua tradução do Canto
XXV do “Inferno” é a primeira em língua portuguesa a ser publicada no Brasil ou em
Portugal858. Machado de Assis, portanto, só poderia ter lido versões do canto que traduziu em
outras línguas, como o francês. Mesmo as primeiras traduções integrais da Divina Comédia no
Brasil só foram publicadas mais de dez anos depois da sua: a primeira, feita pelo Barão da Villa
856
HEISE, 2007, p. 10
MANUPELLA, 1966, p. 48
858
Cf. MANUPELLA, 1966, pp. 34-50
857
401
da Barra, foi publicada pela Imprensa Oficial em 1887, e a de Xavier Pinheiro sai no ano
seguinte, 1888, pela Livraria J. L. de Freitas859, tendo seguidas reedições até hoje.
Para os fins da análise que se seguirá, procuraremos identificar no “Canto XXV”
elementos que desvelem características do Machado tradutor. Como dissemos na introdução,
apesar de esta tradução datar originariamente de 1874, antes de sua inclusão nas Ocidentais o
texto passou por algumas mudanças que, a propósito, não foram identificadas pela edição
crítica, conforme se verifica na anotação a seguir:
Cronologicamente, o 1º poema da coleção, publicado em O Globo de 25.12.874. D é
a 2ª publicação. Não encontramos a referida publicação na B.N., nem nos foi possível
consultá-la no G.P.L., cuja seção de periódicos se encontrava em reforma quando da
elaboração deste trabalho. Por esse motivo, fica em aberto o problema.860
Como tivemos a felicidade de encontrar não a primeira, mas a segunda publicação em um jornal
da época – A Instrução Pública, reproduzida na Figura 13 – foi possível cotejar a versão de
fevereiro de 1875 com a versão de 1901 e resolver, ao menos em parte, o problema deixado em
aberto pela edição crítica. Para fins de comparação, chamaremos de “A” a versão publicada em
A Instrução Pública em 1875 e de “B” a versão publicada nas Ocidentais em 1901; os versos
serão referidos por “V.” e o seu respectivo número. Estas foram as variantes que encontramos:
Título:
A: Inferno. Canto XXV
B: Dante (Canto XXV do “Inferno”)
V. 1
A: Tinha fallado o roubador, e, erguendo
B: Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
V. 34
A: Elle falava, e o monstro foi andando;
B: Ele falava, e o outro foi andando
V. 35
A: E em baixo vinham caminhando a nós
B: No entanto em baixo vinham para nós
V. 60
A: Os membros todos do infeliz cingia.
B: Ao pecador os membros envolvia.
V. 67
A: Os outros dous olhavam-no: – Ora pois,
B: Os outros dois bradavam: “Ora pois,
V. 68
A: Agnel, – diziam, – que mudança é essa?
B: Agnel, ai triste, que mudança é essa?
859
860
MANUPELLA, Op. Cit., pp. 20-21
ASSIS, 1976, p. 82
402
V. 105
A: E a alma os pés ajuntára estreitamente.
B: E a alma os pés ajuntava estreitamente.
V. 112:
A: Vi em cada sovaco entrar um braço,
B: Em cada axila vi entrar um braço,
Para criar um contraste com as escolhas do Machado tradutor, sempre de acordo com
uma das etapas do trajeto de análise proposto por Berman, cotejaremos a sua tradução com
outras traduções do mesmo canto, como a de seu contemporâneo José Pedro Xavier Pinheiro,
já na 12ª edição pela Editora Nova Fronteira, e a de Ítalo Eugênio Mauro, publicada em 1998
pela Editora 34 que, por ser bilíngue, também nos servirá de base para o texto-fonte em italiano.
Comecemos com a leitura da versão de Machado de Assis, ao lado do texto italiano:
Quadro comparativo 38 – “Dante” e Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia
Dante
(Inferno, canto XXV)
Canto XXV
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
“Olha, Deus, para ti o estou fazendo!”
Al fine de le sue parole il ladro
le mani alzò con amendue le fiche,
gridando: “Togli, Dio, ch'a te le squadro!”.
E desde então me foi a serpe amada,
Pois uma vi que o colo lhe prendia,
Como a dizer: “não falarás mais nada?”
Da indi in qua mi fuor le serpi amiche,
perch’ una li s'avvolse allora al collo,
come dicesse `Non vo' che più diche';
Outra os braços na frente lhe cingia
Com tantas voltas e de tal maneira
Que ele fazer um gesto não podia.
e un’altra a le braccia, e rilegollo,
ribadendo sé stessa sì dinanzi,
che non potea con esse dare un crollo.
Ah! Pistóia, por que numa fogueira
Não ardes tu, se a mais e mais impuros,
Teus filhos vão nessa mortal carreira?
Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi
d'incenerarti sì che più non duri,
poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi?
Eu, em todos os círculos escuros
Do inferno, alma não vi tão rebelada,
Nem a que em Tebas resvalou dos muros.
Per tutt’ i cerchi de lo ‘nferno scuri
non vidi spirto in Dio tanto superbo,
non quel che cadde a Tebe giù da' muri.
E ele fugiu sem proferir mais nada.
Logo um centauro furioso assoma
A bradar: “Onde, aonde a alma danada?”
El si fuggì che non parlò più verbo;
e io vidi un centauro pien di rabbia
venir chiamando: “Ov’ è, ov’ è l’acerbo?”.
Marema não terá tamanha soma
De reptis quanta vi que lhe ouriçava
O dorso inteiro desde a humana coma.
Maremma non cred’ io che tante n’abbia,
quante bisce elli avea su per la groppa
infin ove comincia nostra labbia.
Junto à nuca do monstro se elevava
De azas abertas um dragão que enchia
De rogo a quanto ali se aproximava.
Sovra le spalle, dietro da la coppa,
con l’ali aperte li giacea un draco;
e quello affuoca qualunque s'intoppa.
“Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, —
403
Que, sob as rochas do Aventino, ousado
Lagos de sangue tanta vez abria
“Não vai de seus irmãos acompanhado
Porque roubou malicioso o armento
Que ali pascia na campanha ao lado,
“Hercules com a maça e golpes cento,
Sem lhe doer um decimo ao nefando,
Pôs remate a tamanho atrevimento.”
Ele falava, e o outro foi andando.
Na entanto embaixo vinham para nós
Três espíritos que só vimos quando
Atroara este grito: “Quem sois vós?”
Nisto a conversa nossa interrompendo
Ele, como eu, no grupo os olhos pôs.
Eu não os conheci, mas sucedendo,
Como outras vezes suceder é certo,
Que o nome de um estava outro dizendo,
Lo mio maestro disse: “Questi è Caco,
che, sotto ‘l sasso di monte Aventino,
di sangue fece spesse volte laco.
Non va co’ suoi fratei per un cammino,
per lo furto che frodolente fece
del grande armento ch’elli ebbe a vicino;
onde cessar le sue opere biece
sotto la mazza d’Ercule, che forse
gliene diè cento, e non sentì le diece”.
Mentre che sì parlava, ed el trascorse,
e tre spiriti venner sotto noi,
de’ quai né io né 'l duca mio s'accorse,
se non quando gridar: “Chi siete voi?”;
per che nostra novella si ristette,
e intendemmo pur ad essi poi.
Io non li conoscea; ma ei seguette,
come suol seguitar per alcun caso,
che l’un nomar un altro convenette,
“Cianfa aonde ficou?” Eu, por que esperto
E atento fosse o Mestre em escutá-lo,
Pus sobra a minha boca o dedo aberto.
dicendo: “Cianfa dove fia rimaso?”;
per ch’io, acciò che ‘l duca stesse attento,
mi puosi ‘l dito su dal mento al naso.
Leitor, não maravilha que aceitá-lo
Ora te custe o que vás ter presente,
Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.
Se tu se’ or, lettore, a creder lento
ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia,
ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento.
Eu contemplava-os, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos três e o colhe de repente.
Coos pés do meio o ventre lhe cingira,
Com os da frente os braços lhe peava,
E ambas as faces lhe mordeu com ira.
Com’ io tenea levate in lor le ciglia,
e un serpente con sei piè si lancia
dinanzi a l'uno, e tutto a lui s'appiglia.
Os outros dous às coxas lhe alongava,
E entre elas insinua a cauda que ia
Tocar-lhe os rins e dura os apertava.
A hera não se enrosca nem se enfia
Pela árvore, como a horrível fera
Ao pecador os membros envolvia.
Como se fossem derretida cera,
Uma só vulto, uma cor iam tomando,
Quais tinham sido nenhum deles era.
Tal o papel, se o fogo o vai queimando,
Antes de negro estar, e já depois
Que o branco perde, fusco vai ficando.
Os outros dous bradavam: “Ora pois,
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dois!”
Faziam ambas uma só cabeça,
Co’ piè di mezzo li avvinse la pancia
e con li anterior le braccia prese;
poi li addentò e l'una e l'altra guancia;
li diretani a le cosce distese,
e miseli la coda tra ‘mbedue
e dietro per le ren sù la ritese.
Ellera abbarbicata mai non fue
ad alber sì, come l’orribil fiera
per l’altrui membra avviticchiò le sue.
Poi s’appiccar, come di calda cera
fossero stati, e mischiar lor colore,
né l’un né l’altro già parea quel ch'era:
come procede innanzi da l'ardore,
per lo papiro suso, un color bruno
che non è nero ancora e 'l bianco more.
Li altri due 'l riguardavano, e ciascuno
gridava: “Omè, Agnel, come ti muti!
Vedi che già non se' né due né uno”.
404
E na única face um rosto misto,
Onde eram dois, a aparecer começa.
Dos quatro braços dous restavam, e isto,
Pernas, coxas e o mais ia mudado
Num tal composto que jamais foi visto.
Todo o primeiro aspecto era acabado;
Dous e nenhum era a cruel figura,
E tal se foi a passo demorado.
Qual cameleão, que variar procura
De sebe às horas em que o sol esquenta,
E correndo parece que fulgura,
Tal uma curta serpe se apresenta,
Para o ventre dos dous corre acendida,
Lívida e cor de um bago de pimenta.
E essa parte por onde foi nutrida
Tenra creança antes que à luz saísse,
Num deles morde, e cai toda estendida.
O ferido a encarou, mas nada disse;
Firme nos pés, apenas bocejava,
Qual se de febre ou sono ali caísse.
Frente a frente, um ao outro contemplava,
E à chaga de um, e à boca de outro, forte
Fumo saia e no ar se misturava.
Cale agora Lucano a triste morte
De Sabello e Nasídio, e atento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.
Cale-se Ovídio e neste quadro veja
Que, se Aretusa em fonte nos há posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.
Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que elas de repente
Trocassem a matéria e o ser oposto.
Tal era o acordo entre ambas que a serpente
A cauda em duas caudas fez partidas,
E a alma os pés ajuntava estreitamente.
Pernas e coxas vi-as tão unidas
Que nem leve sinal dava a juntura
De que tivessem sido divididas.
Imita a cauda bífida a figura
Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo
Que a pele do homem se tornava dura.
Em cada axila vi entrar em braço,
A tempo que iam esticando à fera
Os dous pés que eram de tamanho escasso.
Os pés de traz a serpe os retorcera
Già eran li due capi un divenuti,
quando n'apparver due figure miste
in una faccia, ov' eran due perduti.
Fersi le braccia due di quattro liste;
le cosce con le gambe e 'l ventre e 'l casso
divenner membra che non fuor mai viste.
Ogne primaio aspetto ivi era casso:
due e nessun l'imagine perversa
parea; e tal sen gio con lento passo.
Come 'l ramarro sotto la gran fersa
dei dì canicular, cangiando sepe,
folgore par se la via attraversa,
sì pareva, venendo verso l'epe
de li altri due, un serpentello acceso,
livido e nero come gran di pepe;
e quella parte onde prima è preso
nostro alimento, a l'un di lor trafisse;
poi cadde giuso innanzi lui disteso.
Lo trafitto 'l mirò, ma nulla disse;
anzi, co' piè fermati, sbadigliava
pur come sonno o febbre l'assalisse.
Elli 'l serpente e quei lui riguardava;
l'un per la piaga e l'altro per la bocca
fummavan forte, e 'l fummo si scontrava.
Taccia Lucano ormai là dov' e' tocca
del misero Sabello e di Nasidio,
e attenda a udir quel ch'or si scocca.
Taccia di Cadmo e d'Aretusa Ovidio,
ché se quello in serpente e quella in fonte
converte poetando, io non lo 'nvidio;
ché due nature mai a fronte a fronte
non trasmutò sì ch'amendue le forme
a cambiar lor matera fosser pronte.
Insieme si rispuosero a tai norme,
che 'l serpente la coda in forca fesse,
e 'l feruto ristrinse insieme l'orme.
Le gambe con le cosce seco stesse
s'appiccar sì, che 'n poco la giuntura
non facea segno alcun che si paresse.
Togliea la coda fessa la figura
che si perdeva là, e la sua pelle
si facea molle, e quella di là dura.
Io vidi intrar le braccia per l'ascelle,
e i due piè de la fiera, ch'eran corti,
tanto allungar quanto accorciavan quelle.
405
Até formarem-lhe a encoberta parte,
Que no infeliz em pés se convertera.
Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte
A cor lhes muda e põe à serpe o velo
Que já da pele do homem se lhe parte,
Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo
Aquele torvo olhar com que ambos iam
A trocar entre si o rosto e o vê-lo.
Ao que era em pé as carnes lhe fugiam
Para as fontes, e ali do que abundava
Duas orelhas de homem lhe saíam.
E o que de sobra ainda lhe ficava
O nariz lhe compõe e lhe perfaz
E o lábio lhe engrossou quanto bastava.
A boca estende o que por terra jaz
E as orelhas recolhe na cabeça,
Bem como o caracol às pontas faz.
A língua, que era então de uma só peça,
E prestes a falar, fendida vi-a,
Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa.
A alma, que assim tornado em serpe havia,
Pelo vale fugiu assobiando,
E esta lhe ia falando e lhe cuspia.
Logo a recente espádua lhe foi dando
E à outra disse : “Ora com Buoso mudo;
Rasteje, como eu vinha rastejando!”
Assim na cova sétima vi tudo
Mudar e transmudar; a novidade
Me absolva o estilo desornado e rudo.
Mas que um tanto perdesse a claridade
Dos olhos meus, e turva a mente houvesse,
Não fugiram com tanta brevidade,
Nem tão ocultos, que eu não conhecesse
Puccio Sciancato, única ali vinda
Alma que a forma própria não perdesse;
O outro chorá-lo tu, Gaville, ainda.861
Poscia li piè di rietro, insieme attorti,
diventaron lo membro che l'uom cela,
e 'l misero del suo n'avea due porti.
Mentre che 'l fummo l'uno e l'altro vela
di color novo, e genera 'l pel suso
per l'una parte e da l'altra il dipela,
l'un si levò e l'altro cadde giuso,
non torcendo però le lucerne empie,
sotto le quai ciascun cambiava muso.
Quel ch'era dritto, il trasse ver' le tempie,
e di troppa matera ch'in là venne
uscir li orecchi de le gote scempie;
ciò che non corse in dietro e si ritenne
di quel soverchio, fé naso a la faccia
e le labbra ingrossò quanto convenne.
Quel che giacëa, il muso innanzi caccia,
e li orecchi ritira per la testa
come face le corna la lumaccia;
e la lingua, ch'avëa unita e presta
prima a parlar, si fende, e la forcuta
ne l'altro si richiude; e 'l fummo resta.
L'anima ch'era fiera divenuta,
suffolando si fugge per la valle,
e l'altro dietro a lui parlando sputa.
Poscia li volse le novelle spalle,
e disse a l'altro: «I' vo' che Buoso corra,
com' ho fatt' io, carpon per questo calle».
Così vid' io la settima zavorra
mutare e trasmutare; e qui mi scusi
la novità se fior la penna abborra.
E avvegna che li occhi miei confusi
fossero alquanto e l'animo smagato,
non poter quei fuggirsi tanto chiusi,
ch'i' non scorgessi ben Puccio Sciancato;
ed era quel che sol, di tre compagni
che venner prima, non era mutato;
l'altr' era quel che tu, Gaville, piagni.
Fonte: Assis (1976); Alighieri (1998)
Ao observarmos a tradução de Machado encontramos, de imediato, métrica impecável:
todos os versos escritos em decassílabos, em vários dos quais encontramos alternância binária
861
ASSIS, 1976, p. 484-489
406
do acento ora na 4ª e 10ª sílabas, como no verso 2 abaixo, mas bastante comum no decorrer da
tradução, ora decassílabos heroicos, acentuados na 6ª sílaba, como nos versos 1 e 3:
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
as mãos em figas, dêste modo brada:
«Olha, Deus, para ti o estou fazendo!»862
Se Machado não utilizou exclusivamente o decassílabo heroico, de herança italiana,
nem mesmo Dante restringiu-se a ele, pois até na Divina Comédia há exemplos de decassílabos
nada ortodoxos, com acento na 7ª sílaba, conforme aponta Péricles Eugênio da Silva Ramos em
O verso romântico e outros ensaioslxi.
Nos versos citados acima é admirável também a naturalidade dos versos de Machado,
que conservam a linguagem simples e direta de Dante, algo que fica ainda mais evidente ao
compararmos a tradução de Machado com a dos tradutores Ítalo Eugênio Mauro:
No final de sua fala, esse ladrão
Ambas as mãos ergueu, fazendo figas
E gritou: “Toma, Deus, que pra ti são”863.
e José Pedro Xavier Pinheiro:
Assim dizia o roubador e, alçando
Ambas as mãos, que figuravam figas:
“Toma, ó Deus”, exclamou, “o que te mando”864.
É difícil concordar que qualquer uma das traduções acima soe tão natural hoje quanto a de
Machado. As aliterações de fazendo figas de Mauro ou figuravam figas de Pinheiro não
correspondem sonoramente à utilizada por Dante, embora se note a preocupação dos tradutores
com a necessidade de se recuperar este traço estilístico do poema. Há, no verso de Dante, uma
aliteração com o fonema “m” em mani/amendue, que Machado soube conservar no par
“mãos/modo”, cujo som reforça e remete às mãos e ao gesto feito. Além disso, a escolha de
“brada” por Machado para compor a rima do segundo verso remete sonoramente ao par
ladro/squadro utilizada por Dante, feito que nenhum dos outros tradutores alcançou. Por outro
lado, soa pouquíssimo agradável e até cacofônico o trecho “pra ti são” na tradução de Mauro.
No terceto a seguir, em tradução de Machado, Dante interpela o leitor – artifício bastante
862
ASSIS, 1976, p. 484
ALIGHIERI, 1998, p. 169
864
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno. Ilustração de Gustave Doré. Trad. Xavier Pinheiro. 12. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 126.
863
407
utilizado pelo próprio Machado – para anunciar o que narrará em seguida: a transfiguração de
dois homens em um só ser:
Se tu se' or, lettore, a creder lento
ciò ch'io dirò, non sarà maraviglia,
ché io che 'l vidi, a pena il mi consento865.
Machado, novamente, produz decassílabos perfeitos em sua tradução, com acento na 6ª
sílaba no primeiro verso do terceto acima e na 4ª sílaba nos demais. O mais interessante, no
entanto, é notar que no plano semântico seus versos atingem uma fluidez natural, versos
acessíveis que mesmo o leitor moderno consegue ler e acompanhar sem dificuldade, mostrando
compreender bem o que Dante queria dizer com a creder lento, ou seja, ter dificuldade em
acreditar:
Leitor, não maravilha que aceitá-lo,
ora te custe o que vai ter presente,
pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo866.
Os demais tradutores não atingem o mesmo resultado. A tradução de Pinheiro, embora
contemporânea à de Machado de Assis, causa estranheza devido à sintaxe pouco usual, distante
da sintaxe direta do texto italiano:
Em crer o que eu contar se fores lento,
não há de ser, leitor, para estranhado;
Quase o que eu vi descrê meu pensamento867.
A tradução de Mauro, embora menos obscura, ainda fica aquém da naturalidade dos versos de
Machado. Curiosamente, nota-se que, ao contrário do que realiza Machado, ambos atribuem o
advérbio lento do verso italiano ao leitor, tornando-o um adjetivo e, por conseguinte, de certo
modo desqualificando o leitor, o que não é o caso no texto de Dante. É possível que Mauro
estivesse tentando estrangeirizar o português, adotando o mesmo sentido que “lento” tem em
italiano, mas não é a leitura mais imediata que se faz da tradução dele:
Se acreditar, leitor, tu serás lento,
no que eu direi, não me será surpresa,
pois eu, que o vi, a custo inda o sustento868.
O que foi visto até aqui é reforçado pelo trecho abaixo, em tradução de Machado:
Os outros dois bradavam: «Ora pois,
865
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 171
ASSIS, 1976, p. 485
867
ALIGHIERI, 2017, p. 127
868
Ibid., p. 171
866
408
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dois!»
Faziam ambas uma só cabeça,
e na única face um rosto misto,
onde eram dois, a aparecer começa.
Dos quatro braços dous restavam, e isto,
Pernas, coxas e o mais ia mudado
Num tal composto que jamais foi visto869.
quando lido em comparação com o trecho correspondente em italiano:
Li altri due 'l riguardavano, e ciascuno
gridava: «Omè, Agnel, come ti muti!
Vedi che già non se' né due né uno».
Già eran li due capi un divenuti,
quando n'apparver due figure miste
in una faccia, ov'eran due perduti.
Fersi le braccia due di quattro liste;
le cosce con le gambe e 'l ventre e 'l casso
divenner membra che non fuor mai viste870.
Como antes, temos ótimos decassílabos com a manutenção das terza rimas sem precisar
recorrer a rimas fáceis ou pobres, ou sacrificar a imediata compreensão dos versos e,
consequentemente, do que está sendo narrado. Mais notável ainda é o quanto Machado é capaz
de distanciar-se do texto italiano sem, contudo, parecer-lhe infiel, exagerado ou equivocado. A
única alteração mais radical de Machado se dá no verso 74, que em Dante diz, em tradução
literal, a coxa com a perna e o ventre/barriga e o peito, que Machado traduz por pernas, coxas
e o mais ia mudado, em que ventre/peito somem, aparentemente, mas de que a frase e o mais
dá conta adequadamente.
Ao compararmos com as demais traduções transcritas a seguir, encontraremos rimas
muito menos interessantes do que as de Machado: Mauro chega a rimar um com um, e não é
difícil encontrar outros exemplos de rimas igualmente pobres, como em restara/anulara ou
mistos/malquistos/vistos:
Os outros dois olhavam; deles, um
gritava: “Agnel, como mudou tua cara!
olha, que já não és nem dois nem um!”
Das duas cabeças já uma só restara;
surgiam agora os dois semblantes mistos
num rosto só, que os outros anulara.
869
870
ASSIS, 1976, p. 486
ALIGHIERI, 1998, p. 171
409
Fez-se dois braços dos quatro malquistos;
coxas co’ as pernas, barriga co’ o peito,
transformaram-se em membros nunca vistos871.
O mesmo é encontrado na tradução de Pinheiro, que rima percebendo/podendo, ou
mudado/misturado, ainda utilizando uma linguagem que hoje soa datada, com trechos que
obrigam o leitor moderno a voltar e ler novamente para tentar entender o que se está dizendo,
como em “Um já não é mas dois ser não podendo!”, que Machado consegue transportar
habilmente em “Olha que já não és um nem dois!”:
Os dois, a maravilha percebendo
gritavam-lhe: - “Ai! Agnel, quanto hás mudado!
Um já não é mas dois ser não podendo!”
Numa cabeça as duas se hão tornado;
Confundidos estavam dois semblantes
num rosto em que se haviam misturado.
São os dois braços, que eram quatro de antes
Foram coxas e pernas, ventre e peito
Membros, que nunca hão tidos semelhantes872.
Reconhecemos que a crítica feita aos tradutores Ítalo Eugênio Mauro e José Pedro Xavier
Pinheiro talvez seja severa demais, dada a envergadura da obra e a inestimável contribuição
que deram às letras brasileiras disponibilizando versões completas em nossa língua do texto de
Dante. Mas é perceptível que a tradução de Machado de Assis tem feições que lhe dão um
frescor que não encontramos nas outras duas, sem que para isso o tradutor precisasse distanciarse semanticamente do texto italiano. Nesta tradução, ainda que não seja a última tradução do
poeta, encontramos aquele que talvez seja o seu melhor trabalho nesta seara, reconhecido como
uma das mais primorosas traduções da obra de Dante por poetas-tradutores a estirpe de Augusto
de Campos (2003), que disse ter Machado de Assis elaborado “[...] uma das mais bemsucedidas traduções de um canto dantesco já feitas entre nós”, adotando caminho oposto àquele
seguido por Xavier Pinheiro que, pelo uso excessivo de contorcionismos sintáticos, produz uma
“desconcertante distorção” que lhe emperra o passo873. Estamos, sem dúvida, diante do que
Meschonnic chamou de boa tradução: “[...] aquela que segue o que constrói o texto, não apenas
em sua função social de representação (a literatura), mas em seu funcionamento semiótico e
semântico”874. É nítido o quanto neste caso – e bem diferente do que se observou até aqui –
871
ALIGHIERI, 1998, p. 171
ALIGHIERI, 2017, p. 128
873
CAMPOS, Augusto de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003, p. 181
874
MESCHONNIC, 2010, p. 28
872
410
Machado de Assis recria o canto de Dante dando igual atenção não só à narrativa, que é
transportada habilmente para a nossa língua, mas à forma do poema, mesmo com toda a
dificuldade imposta pela terza rima e o desejo de se chegar à uma sintaxe direta e natural como
a de Dante.
Sonia Netto Salomão, que também apresenta um estudo desta tradução em Machado de
Assis e o cânone ocidental, salienta “[...] a coerência com seu projeto estético e ideológico”,
em que Machado de Assis “[...] traduz um modelo, um cânone da literatura universal, e, ao
mesmo tempo, faz uma adaptação no âmbito da língua e da cultura brasileira de seu tempo. O
resultado é o de uma tradução moderna, que segue muitos dos preceitos da ciência da tradução
dos nossos dias”875. A autora considera a versão de Machado de Assis “bastante fiel”, com a
ressalva de que Machado não faz uma “versão literal”. Nem poderia fazê-lo se quisesse que sua
tradução fosse, sobretudo, poética. Não se deve entender, com isso, que a autora estivesse
diminuindo o trabalho de Machado. Na verdade, a sua avaliação, assim como a nossa, é a de
que a estratégia adotada pelo tradutor, neste caso assim como nos demais, “[...] demonstra uma
percepção pessoal da empresa tradutória”876. A autora também nota a técnica de compensação
utilizada pelo tradutor, que consiste em “[...] recuperar em determinadas passagens o que teve
que sacrificar antes”877, também já vista em outras traduções que estudamos, como na de La
Fontaine que veremos a seguir. A análise de Sonia Salomão também revela que as outras
estratégias adotadas pelo tradutor neste caso já foram observadas anteriormente em nosso
estudo, como o sintetismo, opções por traduções mais comunicativas do que literais ou
literalizantes, adoção de perspectivas levemente diversas, tendo em vista sempre a fluidez e
comunicabilidade no poema recriado.
O estudo de Sonia Salomão também se estende para a reverberação de Dante na obra de
Machado de Assis, particularmente no que chama de “enxerto no Quincas Borba: Rubião no
Inferno”, mais um exemplo de como o contato com determinados textos via tradução pode
enriquecer outras searas de sua obra autoral, a exemplo do que faz com uma fábula de La
Fontaine neste mesmo romance. O “curioso ‘enxerto’” que Machado faz do canto XXV por ele
traduzido no capítulo CXLVIII de Quincas Borba (1890) caracteriza, para a autora, “[...]
particular exemplo de intertextualidade e lançando o olhar brasileiro para uma peculiaridade
que é afim ao seu trabalho”878. Nos dois capítulos anteriores a este no romance vemos Rubião
875
SALOMÃO, 2016, p. 400
Ibid., p. 390
877
Ibid.
878
Ibid., p. 81
876
411
tirar a barba com o auxílio de um barbeiro francês, que molda o rosto de Rubião à imagem de
um busto de Napoleão. Segue-se um breve delírio em que Rubião vê a si mesmo governando
um Estado e ouvindo ministros e embaixadores. De volta a si, vai a um jantar com os seus
comensais que elogiam o novo rosto e fazem com que se sinta novamente como o imperador
dos franceses. Surge então a passagem a que a autora se refere:
Dante, que viu tantas coisas extraordinárias, afirma ter assistido no inferno ao castigo
de um espírito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão
confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente único,
se dois. Rubião era ainda dois. Não se misturavam nele a própria pessoa com o
imperador dos franceses. Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro.
Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a
imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais879.
A autora identifica neste episódio “[...] uma perda de identidade que também é expressa por
Dante nas metamorfoses em que os ladrões perdem a identidade física, sendo destruídos por
um processo que beira o autofágico porque se confundem com as serpentes e com a própria
encarnação do mal”880. Deste episódio Sonia Salomão conclui que “[...] a metamorfose de
Rubião se dava, principalmente, no nível psicológico; esta a novidade machadiana em relação
a Dante, seguramente: a loucura de Rubião. Loucura que, na sua esquizofrenia, vai sempre
apontar para aquela sugestão dantesca das figuras híbridas”881.
Machado também alude ao canto XXV do “Inferno” em “As academias de Sião”, de
Histórias sem data (1884). O conto é uma demonstração magistral da capacidade que o escritor
tinha de abordar determinados temas deixando para o leitor todo o trabalho de pensar sobre as
suas implicações. A partir da leitura do conto, algumas referências sugerem que a ação se passa
no oriente hindu, possivelmente onde hoje se encontra a Tailândia, antigamente conhecida
como Sião. Não entraremos em detalhes do conto, visto que nos interessa como Machado se
aproveita do canto XXV e tece com ele uma interessante trama intertextual que sugere uma
desleitura do poema dantesco. O dilema que se apresenta às academias é o porquê de existirem
homens femininos e mulheres masculinas e, portanto, se a alma é sexual ou neutra. O dilema
se apresenta devido à índole do rei: “Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele
respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e
obedientes e um cordial horror às armas”882. Após uma das academias decidir que a alma é
neutra, enquanto as demais acreditavam na alma sexual, Kinnara, uma das concubinas, pede
que o rei se posicione. Diante da recusa do monarca, Kinnara propõe uma troca de corpos para
879
ASSIS, 2015, vol. 1, p. 864
Ibid., p. 85
881
SALOMÃO, Op. Cit., p. 86
882
ASSIS, 2015, vol. 2, p. 427
880
412
ajudá-lo a decidir, utilizando uma fórmula de invocação que fora utilizada por Mukunda, rei
dos hindus. O rei concorda com a troca, desde que por somente um semestre, e a troca é feita.
Após a transmutação dos corpos, encontramos o trecho em que o narrador nos remete ao canto
XXV do “Inferno”:
Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que
assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas
vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a
sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três. Buoso e
a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados,
continuam a falar e a viver juntos - cousa evidentemente mais dantesca, em que me
pese à modéstia883.
O narrador não só pede que os leitores reparem que a situação era aquela vista no
“Inferno”, como ainda destaca sua “audácia”: considera-se superior ao poeta italiano e àqueles
que ele cita, e cria uma situação mais dantesca do que a de Dante, pois seus heróis convivem
entre si com naturalidade mesmo após a estranha metamorfose.
Os frutos do contato de Machado de Assis com a Divina Comédia, evidentemente,
também são observáveis desde muito cedo na sua poesia. Machado já empregava a terza rima,
encerrando seu poema em um quarteto à maneira de Dante, desde seu primeiro volume de
poesias, Crisálidas (1864), como em “No Limiar”, de 1863:
Caía a tarde. Do infeliz à porta,
Onde mofino arbusto aparecia
De tronco seco e de folhagem morta
Ele que entrava e Ela que saía
Um instante pararam; um instante
Ela escutou o que Ele lhe dizia;
[...]
Ambos, com um olhar se compreenderam.
Um penetrou no lar com passo ufano;
Outra tomou por um desvio. Eram:
Ela a Esperança, Ele o Desengano884.
Ishimatsu, que considera este o único poema verdadeiramente machadiano de
Crisálidas, lembra que esta alegoria lida com os temas recorrentes no livro, esperança e
desengano, e ressalta que a forma empregada não era comum entre os românticos brasileiros885,
afirmação corroborada por Sonia Netto Salomão, que também destaca Machado de Assis dos
demais no que diz respeito ao culto aos versos dantescoslxii, acrescentando que, “[...] no que diz
883
ASSIS, 2015, vol. 2, p. 429
ASSIS, 2009, p. 300
885
ISHIMATSU, 1984, p. 65
884
413
respeito aos tercetos, Machado de Assis era um dos mais preparados”886. Cláudio Murilo Leal
concorda com Ishimatsu e considera este poema “um dos mais bem realizados” de Crisálidas,
de “qualidade excepcional” pois “[...] inova, principalmente pela adaptação da escritura do
verso ao ritmo e às entonações da oralidade, sem abandonar as mais elaboradas soluções
linguísticas do sermo nobilis”887.
A terza rima também é empregada a partir da segunda estrofe da parte IX de “A Cristã
Nova” e nas duas partes de “Última Jornada”, ambos de Americanas (1875). Machado emprega
a terza rima também em “Uma Criatura” e “José de Anchieta”, nas Ocidentais de Poesias
completas (1901). O poema “Uma Criatura”, contudo, difere dos demais por empregar
alexandrinos clássicos em vez de decassílabos italianos:
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
[...]
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo,
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
[...]
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida888.
“Uma Criatura”, uma das melhores realizações poéticas de Machado de Assis, mostra
que o nosso poeta é capaz de aprender com o modelo estrangeiro e superá-lo. É nítido o
contraste entre esta peça e “No Limiar”: lá o poeta adota um tema mais introspectivo, mais
afeito à estética romântica, embora já ensaiasse o contraste que irá explorar com muito mais
profundidade posteriormente. Se em “No Limiar” temos um diálogo entre a “Esperança” e o
“Desengano”, opostos claramente divididos e delimitados, “Uma Criatura” descreve um único
ser que carrega os opostos consigo, posto que “cinge ao coração o belo e o monstruoso”889. A
886
SALOMÃO, 2016, p. 389
LEAL, 2008, p. 71
888
Ibid., p. 226-227
889
ASSIS, 2009, p. 226
887
414
“criatura” descrita no poema é, a um só tempo, a Morte e a Vida, porque uma não existe sem a
outra. É possível ver que neste poema Machado de Assis empresta da Divina Comédia muito
mais que a terza rima: o grotesco e o sublime, o horror do belo e a beleza do horror, tão caros
ao “Inferno” de Dante, particularmente do canto que traduziu, estão aqui amalgamados em uma
só criatura, como o ladrão e a cobra.
Em um artigo publicado em 2017lxiii, propusemos uma aproximação dos métodos
tradutórios de Machado de Assis e Augusto de Campos para demonstrar que, pelo menos no
caso desta tradução, Machado de Assis alça seu trabalho a um patamar razoavelmente moderno
quanto à percepção do que é o fazer tradutório. Com Machado de Assis, aprendemos que a
tradução poética é muito mais do que mera reprodução de sentido, ou simples imitação da
forma, mas um trabalho constante de recuperação do modus operandi do texto traduzido, do
seu modo de significar, de um entendimento mesmo do que é o texto literário para que, a partir
desses elementos, seja possível recriá-lo, reencená-lo, fazendo com que renasça por outras
mãos, em outro tempo, língua e cultura.
Por fim, uma última distinção deve ser feita entre o trabalho de Machado de Assis e o
de Ítalo Eugênio Mauro e José Pedro Xavier Pinheiro: a tradução de Machado de Assis é mais
do que uma tradução do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia de Dante Alighieri.
Quando ganha outro título, “Dante”, e passa a figurar entre os poemas de seu livro de poesias
Ocidentais, ela se torna também uma peça original de Machado de Assis em que o poetatradutor carioca apresenta e presta homenagem ao poeta florentino à sua maneira, legando ao
público um poema que apresenta uma espécie de síntese de um pensamento poético que ele
procura resgatar. “Dante” é uma tradução, mas também é um original machadiano e deve ser
lido em diálogo com a proposta das demais peças de Ocidentais e com o restante da obra do
autor.
10.8 “Os animais iscados da peste”
Esta foi, muito provavelmente, a última tradução francesa de Machado de Assis. Foi
também a penúltima tradução poética do escritor, sucedida apenas pela tradução do “Prólogo”
do Intermezzo de Heinrich Heine, mas a última a ser revista por ele. Antes de ser incluída nas
Ocidentais, foi publicada em um volume que saiu em Portugal, impresso em Paris, intitulado
Fábulas de La Fontaine, em 1886, ilustrado por Gustave Dorélxiv. Além de Machado de Assis,
há traduções de diversos poetas brasileiros e portugueses, entre eles Bocage, Barão de
415
Paranapiacaba, Gonçalves Crespo e Teófilo Braga. A respeito desta edição, a Bibliografia de
Machado de Assis de Galante de Sousa informa que a primeira publicação se deu em fascículos
e estabelece como data limite para a tradução de Machado de Assis a data em que saiu o
fascículo com a sua tradução, 12 de julho de 1886890, podendo, é claro, ser anterior a essa data.
As fábulas de Jean de La Fontaine foram publicadas pela primeira vez em março de
1668891, chegando ao aniversário de 350 anos quando este texto foi redigido. “Les animaux
malades de la peste”, contudo, só foi incluída no conjunto dez anos mais tarde, na edição de
1678-1679892, abrindo o Livro VII. Assim, a poesia de La Fontaine – nascido em 1621 – é obra
de uma maturidade já avançada. Quando publica a primeira coleção de suas fábulas, já contava
47 anos893, coincidentemente a mesma idade de Machado de Assis em 1886, quando sua
tradução é publicada. As fábulas de La Fontaine, um painel da vida humana e da sociedade
francesa da época, são obra de um escritor que, conforme a Histoire de la littérature française
(1920) de Gustave Lanson, “[...] conhece o homem como Molière, a sociedade como SaintSimon”894. Ainda segundo Lanson, La Fontaine não teria inventado nada: toda sua matéria vem
dos fabulistas de profissão ou de ocasião que o precederam, de um acontecimento
contemporâneo ou de versos cedidos por algum conhecido895.
Na sua introdução, Jean-Pierre Collinet (1991), responsável pela edição crítica das
Fables de La Fontaine publicada pela Gallimard, explica que a poesia das fábulas se deixa mais
sentir do que analisar896 porque La Fontaine sabia “[...] que a linguagem poética, graças aos
recursos expressivos do metro, da rima e da música verbal, tira a densidade da prosa”897. Ainda
segundo Collinet, o sistema de La Fontaine surpreende pela simplicidade, sendo frequente a
mistura de dois metros, em geral alexandrinos e octossílabos, ou três, quando são incluídos
também os decassílabos ou heptassílabos, ou mesmo outro verso mais curto. As fórmulas não
são inventadas pelo fabulista, mas emprestadas, assim como ocorre com os assuntos das
890
SOUSA, 1955, p. 586
DANDREY, Patrick; CALINON, Monique. “Mars 1668: les Fables de La Fontaine voient le jour”. Disponível
em: <http://gallica.bnf.fr/blog/06032018/mars-1668-les-fables-de-la-fontaine-voient-le-jour>. Acesso em 16 mar.
2018.
892
LA FONTAINE, Jean de. Fables. Édition critique de Jean-Pierre Collinet. Paris: Éditions Gallimard, 1991, p.
17
893
LANSON, Gustave. Histoire de la littérature française. 14 ed. Paris: Librarie Hachette, 1920, p. 558.
894
Ibid., p. 560, tradução nossa. No original: “connait l’homme comme Molière, la société comme Saint-Simon”
895
Ibid., p. 561
896
COLLINET, Jean-Pierre. “Introduction”. In: LA FONTAINE, Jean de. Fables. Paris: Éditions Gallimard, 1991,
p. 7
897
Ibid., tradução nossa. No original: “que le langage poétique, grâce aux ressources expressives de la mesure, de
la rime et de la musique verbale, l’emporte en densité sur la prose”.
891
416
fábulas. Jean de La Fontaine, portanto, apropria-se de obras e textos mais sutilmente do que
qualquer outro entre seus contemporâneos e é a partir desse material que as fábulas são
construídas898. O editor explica que La Fontaine se apoia no “[...] postulado de uma
correspondência simbólica entre o macrocosmo e o mundo pequeno, que é o homem” e por isso
sua fábula “[...] relaciona-se com a parábola e apresenta a criação na sua totalidade como uma
vasta metáfora do mundo moral”899. Contudo, com a publicação do segundo conjunto de fábulas
– do Livre VII em diante, onde, como dissemos, se encontra a fábula traduzida por Machado
de Assis – a poesia de La Fontaine eleva suas fábulas “ao limiar da poesia filosófica”900 o que
leva Collinet a concluir que “[...] nenhuma obra dá uma imagem mais fiel nem mais completa
do século XVIII, e expressa melhor a alma em toda sua complexidade, com seus conflitos e
suas contradições”.901
Mencionamos anteriormente que Jean de La Fontaine colhia os temas de suas falas de
diversas fontes e lhes dava sua forma pessoal, num trabalho que se assemelha ao de um tradutor
cultural. Com “Les animaux malades de la peste” não teria sido diferente. De acordo com
anotação de Collinet,
a tripla confissão do Leão, absolvido pela Raposa, do Lobo e do Burro, deriva de uma
tradição medieval e cristã que se observa nos sermões (Holkot, Barleta, Raulin),
depois entre os fabulistas ou autores de emblemas (Philelphe, 12, Haudent, II, 60,
Gueroult, Emblema 15 e Fábula Moral do Leão, o Lobo e o Burro), bem como nos
contadores de histórias (Larivey em sua tradução de Strapole, Facetious Nights, XIII,
I ). Não mais religiosa e dirigida contra o clero, mas política e dirigida aos ministros
e conselheiros dos reis, a sátira deriva de uma fonte oriental, atestada no
Panchatantra, na Hipotadeça, no Livro de Kalila e Dinna e no Livro das Luzes (pp.
118-122). Uma cópia manuscrita - não autógrafa - da fábula na coleção de Trallage
(coleção reunida por Jean-Nicolas de Trallage e guardada na Biblioteca do Arsenal)
traz a data ‘1674’.902
“Les animaux malades de la peste” é composta dentro das características já anotadas
por Collinet em sua introdução: sessenta e quatro versos em alexandrinos clássicos e
898
COLLINET, 1991, p. 8
Ibid., p. 9., tradução nossa. No original: “s’apparente à la parabole, et présente la création dans son ensemble
comme une vaste métaphore du monde moral”.
900
Ibid., p. 14., tradução nossa. No original: “au seuil de la poésie philosophique”
901
Ibid., tradução nossa. No original: “nulle œuvre ne donne du XVIIIe siècle une image plus fidèle ni plus
complète, et n’en exprime mieux l’âme dans toute sa complexité, avec ses conflits et ses contradictions”.
902
LA FONTAINE, 1991, p. 493-494, tradução nossa. No original: “la triple confession du Lion, absous par le
Renard, du Loup e de L’Âne dérive d’une tradition médiévale et chrétienne qu’on suit chez les sermonnaires
(Holkot, Barleta, Raulin), puis chez les fabulistes ou les auteurs d’emblèmes (Philelphe, 12, Haudent, II, 60,
Guéroult, Emblème 15 et Fable morale du Lion, du Loup et de l’Âne), ainsi que chez les conteurs (Larivey dans
sa traduction de Strapole, Facétieuses nuits, XIII, I). Non plus religieuse et dirigé contre le clergé, mais politique
et visant les ministres et conseillers des rois, la satire découle d’une source orientale, attestée dans le Panchatantra,
l’Hipotadeça, le Livre de Kalila et Dinna et le Livre des lumières (pp. 118-122). Une copie manuscrite – non
autographe – de la fable dans le recueil de Trallage (collection réunie par Jean-Nicolas de Trallage, et conservée à
la Bibliothèque de l’Arsenal) porte da date « 1674 »”.
899
417
octossílabos que não seguem uma distribuição regular, com rimas finais, sempre mistas, e
algumas rimas internas. Como se trata de uma fábula, o leitor deve estar atento à moral ou
ensinamento que o texto transmite. Neste caso, as diferentes espécies de animais, cujos nomes
são sempre grafados com letras maiúsculas na edição francesa consultada, representam
diferentes estratos sociais e há uma clara demonstração do poder da eloquência, da manipulação
não só da fala, mas dos lugares de fala, em benefício próprio. É, sem dúvida, uma demonstração
do quanto saber expressar-se bem e compreender o discurso do outro privilegia determinados
grupos em detrimento dos demais, principalmente dentro de um sistema jurídico que se mostra
parcial, condenando o sujeito não conforme sua culpa, mas segundo sua posição social.
No enredo da fábula, o que move a ação é a doença – a peste – de que os animais foram
acometidos, doença que espalha a morte e o terror, e atinge a todos indistintamente. Em nota
ao texto, Collinet explica que a referência à peste nos primeiros versos da fábula remete a várias
fontes literárias, como Lucrécio (De Natura Rerum, VI, v. 1135-1283), A Ilíada (I, v. 8-10 et
43-53), Édipo Rei (v. 22-30), Tucídides (II, 2, 47-54), as Geórgicas (III, v. 474-566), o
Decamerão de Boccacio no preâmbulo da “Primeira Jornada” e até mesmo ao versículo 12 do
Primeiro Livro de Reis903.
Considerando que o mal que os assola é um castigo divino, o Leão convoca todos os
seus súditos e sugere que cada um confesse seus pecados. Aquele que for culpado do maior
pecado deverá sacrificar-se para aplacar a ira divina: “Que le plus coupable de nous / Se sacrifie
aux traits du céleste courroux, / Peut-être il obtiendra la guérison commune”. O Leão, chamado
de “Roi” (“rei”) pela raposa, é o primeiro a confessar seus pecados: assume ter devorado muitos
carneiros e, por vezes, até o pastor. A Raposa sai em defesa do Rei, justificando a morte dos
carneiros como uma honra por serem devorados por tão bom rei. Mesmo o Pastor, segundo a
Raposa, teria merecido ser devorado por exercer sobre os animais “empire chimérique”
(“império quimérico”). Interessante é notar que em todo o seu discurso, aplaudido pelos outros
animais, a Raposa “esquece” do principal: confessar seus pecados para ser jugada como os
outros. Também nada grave é encontrado nos animais nobres, que se consideram “petits saints”
(“pequenos santos”), até que vem o Burro, com toda ingenuidade, confessar-se, numa fala que
deixa transparecer certo embaraço ao expressar seu pensamento, construindo um período longo,
fragmentado, com muitas vírgulas, quebrando o ritmo dos versos:
L’Âne vint à son tour et dit: J’ai souvenance
Qu’en un pré de Moines passant,
903
LA FONTAINE, 1991, p. 494
418
La faim, l’occasion, l’herbe tendre, et je pense
Quelque diable aussi me poussant,
Je tondis de ce pré la largeur de ma langue.
Je n’en avait nul droit, puisqu’il faut parler net.904
No verso seguinte, “À ces mots on cria haro sur le Baudet”, surge a locução popularizada por
esta fábula de La Fontaine e corrente até hoje na língua francesa: “crier haro sur le baudet”
significa, além de expressar uma indignação, acusar injustamente um inocente, como ocorre
com o Burro da fábula. Em seguida, há o relato do Lobo “quelque peu clerc” (“um pouco
instruído”) que faz um longo e tedioso discurso – “prouva par sa harangue” – a favor do
sacrifício do Burro pois era certo que o mal que se abatia sobre eles se originava no “crime
abominável” do Burro: “Manger l’herbe d’autrui!” (“Comer a grama alheia!”). Também sem
confessar seus pecados, o discurso do Lobo leva o Burro à morte, e a fábula é concluída com a
máxima que encerra uma constatação sobre a sociedade humana: “Selon que vous serez
puissant ou misérable, / Les jugements de Cour vous rendront blanc ou noir” (em tradução livre,
algo como “A depender de sua condição de poderoso ou miserável / Os julgamentos da Corte
te farão inocente ou culpado”). Trata-se, é claro, de uma ferrenha crítica a um senso deturpado
de justiça que pune ou absolve não conforme o grau da culpa, mas conforme a posição social,
a erudição ou poder do julgado. Deve-se ressaltar ainda que nesta máxima há uma alteração nos
tempos verbais: se antes havia o emprego constante de tempos verbais passados, como o passé
simple e o imparfait, a moral é expressa no futur simple (serez/rendront), sugerindo a
atemporalidade do ensinamento.
Evidentemente, os animais desta fábula remetem a grupos sociais em diferentes
camadas da sociedade humana da época, e mesmo de hoje: num extremo, temos o Leão
representando o governo, a monarquia, as posições mais altas de poder; noutro, o Burro
simbolizando o gentio inculto que não sabe se expressar ou se defender, nem compreender de
fato o que se passa, e que por isso mesmo fica à mercê daquela parcela da população que, como
a Raposa e o Lobo, se aproveita de sua posição privilegiada para fazer valer sua vontade,
amparada pela capacidade de discursar e convencer. É certo que La Fontaine se referia à
realidade de seu tempo, porém a situação descrita continua hoje tão atual quanto antes, assim
como deve ter parecido muito atual à época de Machado de Assis. O desfecho da fábula, com
o Burro sendo condenado ao sacrifício para aplacar uma suposta ira divina de que não é culpado,
é certamente um tanto trágico. Por isso mesmo serve para explicitar a hipocrisia de uma
sociedade que é controlada por quem detém o poder e as condições de ascender a esse poder.
904
LA FONTAINE, 1991, p. 198
419
Esta fábula ilustra bem um dos comentários de Lanson a respeito de La Fontaine em
suas fábulas: “Ele não versificou os temas de Esopo e Phedre: ele traduziu visões pessoais da
vida, que sua reflexão fazia transparecer através de linhas magras e sem caráter dos temas
tradicionais”905. Agindo assim, La Fontaine teria sido uma espécie de tradutor cultural que
primeiramente assimila o estrangeiro para depois expressá-lo segundo uma visão pessoal. Não
muito diferente, portanto, da maneira de agir de Machado de Assis. Pouco mais adiante, Lanson
continua com avaliações que podem conter uma explicação do interesse de Machado pelo
fabulista francês:
Para dizer a verdade, o lirismo está por todo lado nessas fábulas: a individualidade do
poeta se manifesta com uma graça encantadora, uma individualidade que nada tem de
romântico, ardente, barulhenta, que é de uma sutileza irônica, uma sensibilidade
discreta. Há uma mistura singular de descrição objetiva e expansão subjetiva, uma
transição contínua e fácil de uma para outra.906
“Sutileza irônica”, “sensibilidade discreta” ou “descrição objetiva e expansão subjetiva” são
expressões facilmente aplicáveis ao Machado de Assis da maturidade. Certamente o contato
entre La Fontaine e Machado de Assis trouxe alguma contribuição para a formação da índole
do escritor, não sendo sensato negar a afinidade entre eles.
Quando de sua primeira edição, a fábula traduzida por Machado saiu com o título
levemente diferente: “Os animais enfermos da peste”. A troca de “enfermos” por “iscados” no
título conota que o tradutor buscava ampliar as conotações do texto já pelo título. “Enfermos”
traduz mais proximamente o termo francês “malades” do título original – “Les animaux
malades de la peste” –, mas ao rever o poema para incluí-lo em Ocidentais o poeta resolve dizer
que os animais não estão “enfermos”, ou “doentes”, mas “contaminados” ou “contagiados” pela
peste. Não devemos esquecer, contudo, que o verbo “iscar”, tão incomum aos nossos ouvidos
de hoje, também significa engodar, ou enganar, algo que amplia e enriquece a polissemia do
texto. Assim, o contágio deixa de ser somente físico para se tornar também moral. Além desta
variação, há outras relatadas pela edição crítica das Poesias completas, como o verso oito, que
foi alterado de “Já nenhum pode dar vida ao moribundo alento / Catava mais nenhum sustento”
para “Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento, / Catava mais nenhum sustento”. As
905
LANSON, 1920, p. 562, tradução nossa. No original: “Il n’a pas versifié les sujets d’Ésope et de Phèdre : il a
traduit des visions personnelles de la vie, que sa réflexion faisait transparaitre à travers les lignes maigres et sans
caractère des thèmes traditionnels”.
906
LANSON, 1920, p. 562, tradução nossa. No original: “A vrai dire, le lyrisme est partout dans ces fables :
l’individualité du poète s’épanche avec une grâce charmante, une individualité qui n’a rien de romantique, de
fougueux, de tapageur, qui est toute en finesse ironique, en sensibilité discrète. Il se fait un mélange singulier de
description objective et d’expansion subjective, un continuel et facile passage de l’une à l’autre”.
420
demais divergências são, em sua maioria, aparentes falhas da edição anterior corrigidas nas
Poesias completas.
Para o cotejo entre tradução e texto-fonte, é sempre uma preocupação saber qual foi a
edição utilizada pelo tradutor ou, diante da impossibilidade de precisar qual teria sido a edição,
ver o que estava no horizonte de possibilidades. No caso das fábulas de La Fontaine, foi possível
consultar seis edições diferentes anteriores à tradução de Machado de Assis, publicadas entre
1838 e 1878. Não encontramos entre elas nenhuma discrepância digna de nota, mas uma
coincidência que pode explicar um dos procedimentos do tradutor: em nenhuma dessas edições
consultadas os nomes dos animais são escritos com letras maiúsculas, mesmo procedimento
adotado na tradução de Machado de Assis, ao contrário da edição crítica preparada por JeanPierre Collinet, utilizada como texto-base do cotejo que faremos a seguir. Esta edição crítica
foi preparada com base na edição original de 1668 para os seis primeiros livros, e a edição de
1678-1679 para os demais, excetuando-se o último livro, que segue a edição de 1693lxv. O editor
diz ter modernizado a ortografia a não ser nos casos em que a medida, rima ou eufonia exigia
que se mantivesse a grafia original.
Feitas essas considerações, leiamos lado a lado os poemas de La Fontaine e Machado
de Assis para apreciarmos as decisões do nosso poeta-tradutor:
Quadro comparativo 39 – “Les animaux malades de la peste” e “Os animais iscados da peste”
Les animaux malades de la peste
Os animais iscados da peste
Un mal qui répand la terreur,
Mal que le Ciel en sa fureur
Inventa pour punir les crimes de la terre,
La Peste (puisqu’il faut l’appeler par son nom)
Capable d’enrichir en un jour l’Achéron,
Faisait aux animaux la guerre.
Ils ne mouraient pas tous, mais tous étaient frappés :
On n’en voyait point d’occupés
À chercher le soutien d’une mourante vie ;
Nul mets n’excitait leur envie ;
Ni Loups ni Renards n’épiaient
La douce et l'innocente proie.
Les Tourterelles se fuyaient ;
Plus d’amour, partant plus de joie.
Le Lion tint conseil, et dit : « Mes chers amis,
Je crois que le Ciel a permis
Pour nos péchés cette infortune ;
Que le plus coupable de nous
Se sacrifie aux traits du céleste courroux,
Peut-être il obtiendra la guérison commune.
L’histoire nous apprend qu’en de tels accidents
On fait de pareils dévouements :
Ne nous flattons donc point ; voyons sans indulgence
L’état de notre conscience.
Mal que espalha o terror e que a ira celeste
Inventou para castigar
Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia
Veio entre os animais lavrar;
E, se nem tudo sucumbia,
Certo é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,
Catava mais nenhum sustento,
Não havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa ou lobo que saísse
Contra a presa inocente e mansa,
Rola que à rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança.
O leão convocou uma assembleia e disse:
“Sócios meus, certamente este infortúnio veio
A castigar-nos de pecados.
Que o mais culpado entre os culpados
Morra por aplacar a cólera divina.
Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos tais é de uso haver sacrificados;
Assim a história no-lo ensina.
Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,
Pesquisemos a consciência.
421
Pour moi, satisfaisant mes appétits gloutons
J’ai dévoré force moutons.
Que m’avaient-ils fait ? Nulle offense :
Même il m’est arrivé quelquefois de manger
Le Berger.
Je me dévouerai donc, s’il le faut ; mais je pense
Qu’il est bon que chacun s'accuse ainsi que moi :
Car on doit souhaiter, selon toute justice
Que le plus coupable périsse.
– Sire, dit le Renard, vous êtes trop bon Roi ;
Vos scrupules font voir trop de délicatesse ;
Et bien, manger moutons, canaille, sotte espèce,
Est-ce un péché ? Non, non. Vous leur fîtes Seigneur
En les croquant beaucoup d’honneur.
Et quant au Berger l’on peut dire
Qu’il était digne de tous maux,
Étant de ces gens-là qui sur les animaux
Se font un chimérique empire. »
Ainsi dit le Renard, et flatteurs d'applaudir.
On n’osa trop approfondir
Du Tigre, ni de l’Ours, ni des autres puissances,
Les moins pardonnables offenses.
Tous les gens querelleurs, jusqu'aux simples mâtins,
Au dire de chacun, étaient de petits saints.
L’Âne vint à son tour et dit : « J’ai souvenance
Qu’en un pré de Moines passant,
La faim, l’occasion, l’herbe tendre, et je pense
Quelque diable aussi me poussant,
Je tondis de ce pré la largeur de ma langue.
Je n’en avais nul droit, puisqu’il faut parler net. »
À ces mots on cria haro sur le baudet.
Un Loup quelque peu clerc prouva par sa harangue
Qu’il fallait dévouer ce maudit animal,
Ce pelé, ce galeux, d’où venait tout leur mal.
Sa peccadille fut jugée un cas pendable.
Manger l’herbe d’autrui ! quel crime abominable !
Rien que la mort n’était capable
D’expier son forfait : on le lui fit bien voir.
Selon que vous serez puissant ou misérable,
Les jugements de Cour vous rendront blanc ou noir.
Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glotão,
Devorei muita carneirada.
Em que é que me ofendera? em nada.
E tive mesmo ocasião
De comer igualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas, assim como me acusei,
Bom é que cada um se acuse, de tal sorte
Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte”.
“Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei
Bom demais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer, muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida,
Pois são daquelas gentes tais
Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animais".
Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso.
Ninguém do tigre nem do urso,
Ninguém de outras iguais senhorias do mato,
Inda entre os atos mais daninhos,
Ousava esmerilhar um ato;
E até os últimos rafeiros,
Todos os bichos rezingueiros,
Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.
Eis chega o burro: “– Tenho idéia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da ocasião, da fome e do capim viçoso,
E pode ser que do tinhoso,
Um bocadinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade".
Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!"
Um lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que era força imolar esse bicho nefando,
Empesteado autor de tal calamidade;
E o pecadilho foi julgado
Um atentado.
Pois comer erva alheia! ó crime abominando!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um pecado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.
Segundo sejas tu miserável ou forte
Áulicos te farão detestável ou puro.
Fonte: La Fontaine (1991); Assis (1976)
Não é preciso saber francês para perceber que a tradução de Machado de Assis não
espelha o texto francês. Não só a distribuição dos versos de metros curtos e longos está diferente
como é evidente que a tradução de Machado de Assis é mais longa. Do mesmo modo, a
distribuição das rimas também é alterada, bem como não parece haver uma preocupação estrita
com a reprodução exata do sentido dos versos. Nada disso surpreende, contudo, quando se
422
conhece o comportamento do tradutor Machado de Assis em outras ocasiões. A reprodução
espelhada, conforme o texto-fonte, não era um princípio que regia seu modo de trabalhar. Ainda
assim, ao contrário de outras traduções francesas, os metros utilizados por La Fontaine – o
alexandrino clássico em combinação com os octossílabos – são mantidos aqui, embora em
configuração radicalmente diferente. Trata-se de uma demonstração da sensibilidade tradutória
de Machado de Assis em perceber que esta é uma característica que, se mantida, empresta força
poética à maneira de La Fontaine ao texto, ao mesmo tempo em que permite que o tradutor dê
a ela seu toque pessoal. Machado está demonstrando não ser necessário que um alexandrino
corresponda a outro, ou um octossílabo a outro, para que se obtenha por resultado uma tradução
poética, o que pode ser estendido ao sentido dos versos e às omissões e acréscimos do tradutor.
A lição parece ter sido aprendida com o próprio La Fontaine: se o francês toma os assuntos e
se inspira em diversas fontes para depois reescrever as fábulas em verso à sua maneira, dando
a elas o toque pessoal, conforme o espírito da língua de chegada, assegurando-lhe um lugar no
panteão da literatura mundial, o poeta-tradutor demonstra entender o modo de funcionamento
da obra de maneira que busca encontrar, em sua própria língua, os elementos que farão o texto
funcionar como obra poética. É preciso que o tradutor seja capaz de encontrar a relação entre
forma e sentido que coloque em movimento o texto traduzido buscando nele a independência
em relação ao texto-fonte. Tal é o trabalho que se desenha nesta tradução.
Desde os primeiros versos, por exemplo, vê-se que o tradutor conserva ao menos
algumas das sutis referências a passagens de textos clássicos utilizados por La Fontaine, como
a peste que surge como um castigo divino e o rio Aqueronte, através do qual o barqueiro Caronte
transportava as almas dos mortos. Chega a ser notável o parentesco entre a escolha vocabular
de Machado de Assis ao dizer que a peste “Veio entre os animais lavrar” e o verso 10 da Ilíada,
na tradução de Haroldo de Campos: “A peste então lavrou no exército”907. De igual modo, a
fala do Leão na tradução de Machado é correta, eloquente e por vezes até mais incisiva e
polissêmica do que a do texto francês. Comparemos, por exemplo, os versos “Que le plus
coupable de nous / Se sacrifie aux traits du céleste courroux” de La Fontaine com os de
Machado de Assis: “Que o mais culpado entre os culpados / Morra por aplacar a cólera divina”.
Quando escolhe dizer “o mais culpado entre os culpados” em vez de simplesmente algo mais
próximo ao texto-fonte – “o mais culpado de nós” – o poeta-tradutor reforça que entre eles não
907
CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero: vol. 1. 4 ed. São Paulo: Arx, 2003, p. 31
423
há inocentes. Igualmente, há mais vigor em ordenar que o “mais culpado entre os culpados
morra” a pedir que ele “se sacrifique”.
Assim como as nuances da fala do Leão não só são mantidas como reforçadas, também
as da fala do Burro trazem toques pessoais do poeta-tradutor que dão à fala da personagem o
ritmo pausado e lento, denotando certa dificuldade em se expressar, e conferindo um tom
coloquial que dá ao texto traduzido um notável viço de originalidade que uma tradução apegada
à reprodução do sentido dos versos franceses não conseguiria. Quando Machado de Assis toma
um verso como “Je tondis de ce pré la largueur de ma langue” (“Cortei deste prado a largura da
minha língua”) e o recria em “Um bocadinho lambisquei / da plantação”, ou quando traduz
“Quelque diable” por “tinhoso”, dá ao seu poema o frescor da linguagem simples e popular que
produz no poema o efeito necessário e desejado.
Machado de Assis também demonstra nesta tradução que as compensações por
determinadas “perdas” não precisam acontecer necessariamente nos mesmos lugares, dando
dois exemplos disso em sua tradução. No quarto verso da fábula original, por exemplo, La
Fontaine escreve “La Peste (puisqu’il faut l’appeler par son nom)”, utilizando os parênteses
para introduzir um comentário. No trecho correspondente da tradução, o mesmo recurso não é
utilizado, e Machado traduz todo o comentário entre os parênteses por “em suma”. Na tradução,
o recurso aos parênteses para buscando o mesmo efeito ressurge na fala do Leão, como um
recurso retórico que funciona organicamente no trecho “Que (devemos querê-lo, e é de todo
ponto / Justo) caiba ao maior dos culpados a morte”. O mesmo procedimento é adotado para
compensar a perda rítmica de “Même il m’est arrivé quelquefois de manger / Le Berger”, em
que um alexandrino clássico é seguido por um verso trissílabo com o qual rima e que lhe
completa o sentido. A combinação rítmica adequada provém do próprio ritmo do alexandrino
clássico de La Fontaine, divido em dois hemistíquios de seis pés cada que, por sua vez, podem
ser lidos ritmicamente em dois conjuntos de três pés, de forma que o verso trissílabo “Le
Berger” corresponda a uma das unidades rítmicas do verso alexandrino que o antecede. Na sua
tradução, Machado verte o trecho em “E tive mesmo ocasião / De comer igualmente o guarda
da manada”, em que o alexandrino segue um octossílabo, não guardando qualquer semelhança
rítmica com o texto francês. Contudo, aquele efeito é recuperado mais à frente na fábula, quando
Machado traduz “Sa peccadille fut jugée un cas pendable” por “E o pecadilho foi julgado / Um
atentado”, em que há uma combinação de versos de oito e quatro pés cujo ritmo em muito se
assemelha àquele outro, empregando a combinação de versos de oito e quatro pés conforme o
princípio de harmonização acentual. Embora os metros e as passagens sejam diferentes, os
424
efeitos rítmicos são análogos, pois o tetrassílabo corresponde a cada uma das unidades rítmicas
que o antecede.
Há, por fim, uma última intervenção do tradutor digna de nota. Nos versos “Era visto
que só a morte / Poderia purgar um pecado tão duro. /E o burro foi ao reino escuro”, Machado
age um pouco como La Fontaine e deixa um rastro de outra obra literária no seu texto. Sabendo
que Machado de Assis foi leitor atento de Camões, parece-nos possível sugerir que a frase
“reino escuro” pode ter vindo de Os Lusíadas, onde ocorre em três momentos: Canto III, estrofe
CXVII (“E se tu tantas almas só pudeste / Mandar ao reino escuro de Cocito”)908, Canto IV,
estrofe XXXIII (“Se lá no reino escuro de Sumano / Receberdes gravíssimos castigos”)909 e no
Canto V, estrofe XXXVI (“Nos pudessem mandar ao Reino escuro / Por nos roubarem mais a
seu seguro”)910. Assim como La Fontaine se vale do arcabouço comum da tradição universal,
deixando rastros de suas leituras no tecido de suas fábulas, é possível imaginar que Machado
de Assis tenha se valido de sua posição de tradutor para também deixar a marca da tradição
portuguesa e reafirmá-la na fábula que recria.
O contato entre Machado de Assis e La Fontaine – certamente anterior a esta tradução
– foi profícuo e deixou diversas marcas na produção do escritor. Já no primeiro romance de
Machado de Assis, Ressurreição (1872), há alusões a pelo menos duas fábulas que poderiam
ter sido lidas nas versões de La Fontaine, ou mesmo de Esopo (séc. VII a.C) ou Fedro (séc. I
a.C), que serviram de fonte para o francês. Certamente La Fontaine aparece em Quincas Borba
(1891), citado ao fim do capítulo XC do romance. No trecho, Rubião está abotoando o colete
diante de uma janela depois de ter passado um vexame por ter ameaçado de morte uma mulher
para que lhe mostrasse outra que, acreditava, poderia ser Sofia. No parapeito da janela passa
uma caravana de formigas que levam dois golpes de toalha de Rubião, matando uma porção
delas. Arrepende-se imediatamente do ato e, em seguida, ouve uma cigarra cantar algo que
parece o nome de Sofia. Vem, então, a conclusão:
Oh! Precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte
formigas mortas, para compensá-las. Essa reflexão é do leitor. Do Rubião não pode
ser. Nem era capaz de aproximar as coisas, e concluir delas – nem o faria agora que
está a chegar ao último botão do colete, todo ouvidos, todo cigarra... Pobres formigas
mortas! Ide agora ao vosso Homero gaulês, que vos pague a fama; a cigarra é que se
ri, emendado o texto:
Vous marchiez? J’en suis fort aise.
908
CAMÕES, Luiz Vaz de. Os lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 117
CAMÕES, 2002, p. 123
910
Ibid., p. 154
909
425
Eh bien! mourez maintenant.911
O “Homero gaulês” de que fala o narrador é La Fontaine, e o texto que a cigarra emenda
é a fábula “La Cigale e la Fourmi”. Na fábula, a Cigarra, depois de cantar durante todo verão,
vai pedir alimento à Formiga quando chega o frio. A Formiga, que trabalhou para garantir seu
sustento enquanto a Cigarra cantava, dá a lição:
–Vous chantiez? j’en suis for aise:
Eh bien! dansez maintenant.912
Machado de Assis, como se vê, se apropria da lição da fábula e inverte sua lógica, dando à
cigarra de Rubião a revanche pelo tratamento da formiga: Marchavam? Pois agora morram!
Mais alusões a La Fontaine – ou talvez a Esopo, fonte de que La Fontaine bebeu –
aparecerão em contos de Machado, como “Último Capítulo”, de Histórias sem data (1884), que
nos remete à fábula “As rãs que pediam um rei” e “O astrólogo”lxvi, que acena para a fábula “O
astrólogo que se deixou cair num poço”. Ambas também surgem no romance Ressurreição
(1872), mas é na crônica de 7 de junho de 1896, da série “A semana”, que Machado de Assis
toma para si um dos versos de La Fontaine, justamente da fábula que traduzira alguns anos
antes, identificação que creditamos à dissertação de Fernanda Oliveira Cunha, Fabulosas
crônicas: La Fontaine nas crônicas de Machado de Assis (2015). A crônica trata de um projeto
de lei que propunha a transferência da capital da república para outra cidade, proposta que leva
o cronista, movido pela “tristeza de ver decapitada a [sua] boa cidade carioca”, a tratar do tema
mesmo que esta seja “matéria alheia à [sua] esfera de ação”913. É nesse contexto que Machado
de Assis se vale de um dos versos de La Fontaine para descrever o Rio de Janeiro e construir
seu argumento:
Podeis redarguir que, convertida em Estado, esta cidade teria o seu governador, a sua
Constituição, as suas câmaras; mas também se vos pode replicar que se o nosso Rio
de Janeiro,
Ce pelé, ce galeux, d’où nous vient tout le mal,
Tem por perigo o cosmopolitismo, este mesmo cosmopolitismo seria um aliado inerte
da rebelião, e a autoridade de um pequeno estado poderia menos, muitos menos, que
a do próprio governo federal.914
911
ASSIS, 2015, vol. 1, p. 815
LA FONTAINE, 1991, p. 53. Tradução: “A senhora cantava? Agrada-me sabê-lo. / Pois bem! Agora dance”.
913
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 1199; 1200
914
Ibid., p. 1200
912
426
Conforme a acertada análise que a pesquisadora faz do texto, Machado utiliza a fábula de La
Fontaine para reafirmar sua ideologia, “[...] reafirmada com a expressão ‘cosmopolitismo’, que
significa justamente o olhar de desprezo lançado para a História e o passado, valorizando
somente o mundo moderno e pregando a total indiferença à cultura e aos interesses
nacionais”915. Assim como na fábula de La Fontaine, a vontade de um grupo que detém o poder
se sobrepõe aos demais, manipulando a opinião pública de forma que a vontade de uma
determinada elite pareça a vontade de todos. Fernanda Cunha sugere que tal fato está
principalmente identificado na crônica quando o escritor pergunta: “Qual foi o movimento
popular que impôs ao Congresso a necessidade de mudança da capital? Realmente, não houve
movimento algum”916. É assim que, para Cunha, Machado de Assis, se apropriando do verso
de La Fontaine, critica refinadamente a hierarquia social carioca da nascente república917. O
Rio de Janeiro é equiparado ao Burro da fábula de La Fontaine, que tem sua morte justificada
pelo Lobo que, eloquente como nossos deputados, faz crer que aquela seria a vontade de todos.
915
CUNHA, Fernanda Oliveira. Fabulosas crônicas: La Fontaine nas crônicas de Machado de Assis. Dissertação
de Mestrado. Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015, p. 120
916
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 1200
917
CUNHA, Op. Cit., p. 122
427
11. A tradução como apropriação: o projeto de tradução poética machadiano
Em Memorial de Aires (1908), último romance de Machado de Assis, o narrador cita
um verso do poema “To ---”, do poeta romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822), que
reproduzimos a seguir:
One word is too often profaned
For me to profane it,
One feeling too falsely disdained
For thee to disdain it;
One hope is too like despair
For prudence to smother,
And pity from thee more dear
Than that from another.
I can give not what men call love,
But wilt thou accept not
The worship the heart lifts above
And the Heavens reject not,—
The desire of the moth for the star,
Of the night for the morrow,
The devotion to something afar
From the sphere of our sorrow?918
“I can give not what men call love”, primeiro verso da segunda oitava do poema “To --”, é o verso citado pelo narrador do romance de Machado de Assis. Ao dizer que “não pode
dar o que os homens chamam amor” o poeta recusa o termo profanado pelo uso insincero, do
qual ele não deseja fazer parte. Em vez dar o que os homens chamam “amor”, oferece à pessoa
a quem o poema é destinado a devoção da mariposa pelas estrelas, ou da noite que chama pela
manhã, deixando claro que sua devoção, muito maior e mais sincera do que aquilo que os
homens chamam “amor”, vai além da existência mundana, dos sofrimentos terrenos, e
assemelha-se à constância da natureza.
Quando inclui o verso “I can give not what men call love” em seu último romance,
Memorial de Aires (1908), Machado de Assis faz muito mais do que citar e traduzir o verso de
Shelley: é uma apropriação que, de certa forma, ilustra e resume sua prática tradutória,
particularmente aquela de que nos ocupamos nesta tese: a tradução de poesia. Para além das
implicações intertextuais trazidas por este verso, como o fato de o Conselheiro Aires nutrir por
Fidélia admiração análoga à de Percy Shelley por Jane Williams – a quem o poema
supostamente se dirige – ou de que ambos, Aires e Shelley, não acreditam que sejam capazes
de poder expressar o que sentem com uma palavra tão vilipendiada como “amor”, a maneira
918
SHELLEY, Percy Bysshe. The poetical Works of Percy Bysshe Shelley. London: Edward Moxon, 1840, p. 299
428
como o narrador do romance se apropria do verso ao traduzi-lo é, de certa forma, uma síntese
da poética tradutória machadiana.
Na anotação de “25 de janeiro” do romance epistolar lemos:
[...] Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que
relera dias antes, em casa, como lá ficou dito atrás, e tirado de uma das suas estâncias
de 1821:
I can give not what men call love.
Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do
poeta, com um fecho da minha composição: “Eu não posso dar o que os homens
chamam amor... e é pena!”919
Primeiramente, Aires não cita simplesmente o verso: ele pensa em verso, e pensa em verso de
Shelley. Isso quer dizer que o verso de Shelley agora pertence tão intimamente a Aires que o
conselheiro exprime/imprime nele seu próprio pensamento. Em seguida, após repetir consigo
em inglês o verso de Shelley, o narrador transforma-o em “prosa nossa” seguida de um
acréscimo, “um fecho da [sua] composição”. O verso é traduzido em prosa, e a prosa é acrescida
de palavras que expressam sentimentos ainda mais particulares do narrador, extrapolando o
âmbito do verso de Shelley. A apropriação, portanto, alcança outro patamar: o que seria
tradução se torna, para além de tradução, uma desleitura intencional, uma intervenção poética
que se apropria de um texto estrangeiro transportando-o para outro tempo, língua, cultura e
obra, dos quais passa a fazer parte. Mais do que somente uma apropriação, o verso tem seu
significado ampliado pelo acréscimo do conselheiro, tornando-se um dos fios que compõe a
trama machadiana.
No começo desta tese traçamos como um dos objetivos do trabalho perfilar o poetatradutor Machado de Assis a partir do estudo dos poemas que traduziu, estudo que seria
inspirado no trajeto de análise proposto por Antoine Berman em Pour une critique des
traductions: John Donne. As etapas finais deste trajeto de análise proporcionariam, após a
análise das traduções, a obtenção de dados para reconstruir o modus operandi do poeta-tradutor,
o que, por sua vez, poderia nos ajudar a encontrar e entender o que Berman chama da pulsão
de traduzir, os motivos que levaram o poeta-tradutor a traduzir, algo que só se realiza de fato
na tradução. Esta seria a realização de um projeto que traz implícito um modo de traduzir
escolhido pelo poeta-tradutor, projeto este que seria delimitado por um horizonte, pela maneira
como o tradutor percebia a sua língua, literatura, cultura, história, enfim, tudo o que de alguma
forma seria determinante para sua maneira de pensar e agir. Por isso nos cercamos de
919
ASSIS, 2015, vol. 1, p. 1203
429
informações e dados a respeito não só do tradutor e de sua época, investigamos os limites dos
seus conhecimentos linguísticos a partir de suas traduções, verificamos afirmações que foram
feitas anteriormente, mas também pesquisamos como e o quê outros poetas-tradutores
traduziram. Alinhando-nos também com o conceito de historicidade da tradução proposto por
Henri Meschonnic, procuramos observar o trabalho do tradutor tendo em mente a historicidade
em que as traduções de Machado de Assis estavam inscritas.
Em maior ou menor grau, no decorrer das análises apresentadas anteriormente, vimos
que o processo de apropriação observado naquele verso incluído no Memorial de Aires, um
processo de apropriação de um texto estrangeiro via tradução e, em alguns casos, sua inclusão
na obra dita “autoral”, foi observado desde o início de sua carreira de poeta e tradutor, estando
intimamente ligado aos diferentes momentos de seu desenvolvimento. Se Machado tinha de
fato um projeto de tradução, consciente ou não, este trazia indícios de passar por uma prática
que favorecesse a autonomia do tradutor frente ao texto traduzido. Autonomia para recriar e
“aclimatar” à língua de chegada, mas que também revelava, quando reduzia os alexandrinos ao
decassílabo português, por exemplo, o estado embrionário da lenta introdução do metro francês
na poesia brasileira. Isso poderia explicar a recorrente adoção de uma forma métrica diversa e
já consagrada na nossa língua, no que poderia estar sendo “fiel” ao modo de significar do poema
estrangeiro, buscando correspondência não ao metro, mas ao que o metro representa no sistema
literário a que pertence. Há que se ressaltar, por fim, que é nítida a abertura gradual dos
horizontes do escritor para além dos círculos de poetas nacionais e portugueses e a
internacionalização das suas influências, afastando-se, de forma igualmente gradual conforme
os anos avançavam em sua carreira, do gosto romântico mais tradicional. Contudo, as
implicações dessas mudanças que são fortes características de seu projeto não se esgotam aí.
Essas informações nos levaram a cogitar a possibilidade de dar um passo além do que o
estudo que tentasse contribuir para delinear o Machado de Assis poeta-tradutor ao tomar as
traduções poéticas de Machado de Assis como obras e dar elas o devido tratamento crítico.
Passamos ao desenvolvimento da ideia de que a tradução também ocupou um papel
fundamental, ou talvez até mesmo central, no desenvolvimento de sua poética, uma vez que é
praticando a tradução, reescrevendo, recriando modelos estrangeiros que o poeta-tradutor,
atuando igualmente como crítico, teve a oportunidade de observar, do modo mais íntimo, as
engrenagens que põem a obra para funcionar. Para esclarecer esta proposta, retomaremos em
nosso argumento três pontos que evidenciam a relevância que pretendemos dar à prática da
tradução na poética machadiana faça sentido.
430
O primeiro deles está relacionado ao que vimos em relação ao público leitor brasileiro
do século XIX e à sua formação a partir da leitura de obras traduzidas, principalmente, do
francês, coincidindo com a chegada do romance-folhetim que ocupava o rodapé dos jornais
num cenário de um desolador analfabetismo da população, o que dificultava ainda mais a
captação de um público leitor e espectador cativo, já que era preciso disputar a atenção dos
poucos que podiam ser dar ao luxo de ler e ir ao teatro, e que estavam mais interessados em
ganhar ares de modernidade e cosmopolitismo alinhando-se com o gosto europeu. Ainda assim,
a produção nacional, sozinha, não dava conta de atender aos anseios daquele público e, em meio
a isso, vivia-se a falta de incentivos e políticas públicas para desenvolver a cultura nacional.
Tinha-se, portanto, condições muito próximas das que vimos ser descritas por EvenZohar em seu conceito de polissistemas literários e a posição da literatura traduzida dentro desse
polissistema e que consiste no segundo ponto de nossa argumentação: o espaço deixado pela
produção nacional – ou que poderia ser ocupado pela produção nacional fosse ela forte o
suficiente para fazer frente ao influxo estrangeiro – era ocupado por traduções de obras
estrangeiras que, a um só tempo, educavam o gosto do público consumidor daquela literatura e
criavam um lugar de tensão em que o escritor que desejasse conquistar aquele público
precisava, de certo modo, adequar-se aos modelos e emulá-los ou mesmo imitá-los. Tinha-se,
portanto, as condições que vimos Even-Zohar nomear como necessárias para a centralidade da
tradução na nossa literatura: a posição periférica em relação ao “centro” europeu, uma literatura
brasileira ainda não consolidada e que estava em discussão em meio aos ideais românticos e,
no momento em que Machado de Assis surge com Crisálidas, o silenciamento das grandes
vozes literárias que deixaram um vazio na literatura brasileira que mal nascia, situação que o
jovem Machado de Assis descreve, de certa forma, em um ensaio de 1858.
Essas propostas de Even-Zohar, aliadas às formulações que vimos em Machado de
Assis: por uma poética da emulação de João Cézar de Castro Rocha nos levam ao terceiro
ponto de nosso argumento: Rocha propôs considerar a obra de Machado de Assis como um
sistema literário próprio que é movido uma dinâmica interna também própria e que poderia ser
vista também dentro da teoria dos polissistemas de Even-Zohar: a literatura machadiana surge
como uma literatura periférica que passa por momentos que incluem a presença da tradução e
até mesmo sua centralidade nos períodos que antecedem sua consolidação, que para Rocha
coincide com o ponto de virada na carreira de Machado de Assis, marcada pela publicação de
Memórias póstumas de Brás Cubas e o desenvolvimento daquilo que chama de “poética da
emulação”. O que vimos no decorrer das análises, no entanto, era que esta prática da emulação
431
já existia em germe desde suas primeiras traduções poéticas e foi ganhando contornos mais
nítidos no decorrer de sua carreira.
Nas trinta e cinco traduções poéticas que estudamos nesta tese, compreendendo textos
amplamente conhecidos, outros quase de todo ignorados, alguns sabidamente seus, outros que
foram atribuídos a Machado de Assis, foi possível observar aquele processo de apropriação
ganhando contornos mais nítidos aos poucos: desde o princípio, no poema-imitação “Minha
Mãe”, em que o poema de Cowper, possivelmente lido em prosa francesa, é mais um mote
temático do que propriamente um texto-fonte para tradução até suas últimas traduções, onde
vemos um poeta mais à vontade para reescrever e se inscrever nos textos que traduz, por vezes
dando sinais de uma medição de forças e até mesmo tentando – e conseguindo – superar o
modelo. As análises dos poemas nos trouxeram dados relevantes sobre sua atuação como
tradutor que, em grande medida, reforçam a tese de que a tradução ocupou lugar relevante no
período de formação como escritor, sendo particularmente mais intensa no início de sua
carreira. Vimos que a quase totalidade das traduções poéticas concentraram-se nas décadas de
1860 e 1870, justamente os anos em que publica seus primeiros livros de poesia e prosa. Se
incluirmos na conta também suas traduções teatrais e narrativas, como os romances de Victor
Hugo e Charles Dickens, a intensidade prática da tradução nessas décadas é ainda mais
evidente, já que mais de três quartos de todas as suas traduções concentram-se naqueles anos.
Há, portanto, intensa atividade na primeira metade da carreira do escritor, e uma queda
quantitativa brusca a partir da década de 1880, coincidindo com a guinada que dá em sua
carreira a partir da publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) – o ponto
de virada de que fala Rocha – e reforçando a tese de que se observamos a obra machadiana
como um sistema com dinâmica própria, a tradução parece emergir e ser mais intensamente
praticada justamente naquele período formativo.
A queda brusca na frequência com que traduz poesia, no entanto, não quer dizer
necessariamente que a tarefa tenha se tornado menos relevante ou mesmo secundária. Embora
haja, inegavelmente, uma acentuada redução quantitativa conforme os anos avançam, há um
trabalho de inegável qualidade que persiste e parece reservado a interesses cada vez mais
particulares do escritor. Se adaptarmos as formulações teóricas dos polissistemas de EvenZohar e pensarmos as traduções de Machado de Assis como um sistema de círculos
concêntricos, colocaríamos no círculo central aquelas traduções que reverberaram fortemente
no restante de sua obra, aquelas através das quais, como vimos, foi possível estabelecer pontes
entre o poeta tradutor e o ficcionista ou o cronista, a exemplo das traduções que proporcionaram
432
contato mais íntimo com escritores como Shakespeare e Dante. Mais à periferia deixaríamos
aqueles poemas-tradução que, embora sejam vistas como obras que proporcionaram farto pasto
para o crítico, não reverberaram de igual maneira no restante de sua obra.
Este esboço de classificação nos ajuda a concluir que os textos que estão no centro
certamente têm um relevo maior em relação aos demais. É interessante notar que várias das
últimas traduções feitas pelo poeta-tradutor Machado de Assis se encontrariam entre esses
textos que elencamos como centrais, muito embora o aprendizado com as primeiras traduções
seja inegável e, não raro, tenha produzido obras que parecem manter íntima relação com o
restante da produção machadiana. Pensamos aqui, por exemplo, na despretensiosa cançoneta
“O casamento do diabo” e a instigante conversa que estabelece com “A igreja do diabo”. Não
surpreende, portanto, que sejam justamente esses textos que elencamos como centrais os que
deixaram marcas mais profundas no restante da produção literária de Machado de Assis,
reforçando igualmente a tese de que a emulação que se apropria de modelos estrangeiros se
intensifica após Memórias póstumas de Brás Cubas – com as devidas ressalvas de que não
ocorre somente ali, depois da década de 1880 –, conforme sugerido por João Cézar de Castro
Rocha.
Notamos ainda que a ideia de que a tradução de poesia passava por algum grau de
apropriação do texto traduzido, algo visível após estudarmos cada uma de suas traduções, já era
uma ideia em germe desde o início de sua carreira como crítico e forma um arco que se estende
por toda sua carreira de tradutor. Lembremos, mais uma vez, que quando Machado de Assis
comenta a tradução de “A Morte de Sócrates” por Gonçalves de Magalhães numa crônica do
Diário do Rio de Janeiro de 17 de outubro de 1864, afirma que “para traduzir Lamartine é
preciso saber suspirar versos como ele”920. Como vimos, Machado também traduziu Lamartine,
e o fez em mais de uma ocasião, tanto na prosa quanto na poesia. O “suspirar versos como ele”
de que Machado fala pode ser interpretado de dois modos: por um lado, poderíamos pensar que
o crítico estava dizendo que o tradutor deveria buscar se tornar Lamartine, e fazer o que ele fez,
nem mais, nem menos. Sabemos agora que este não era o poeta-tradutor Machado de Assis. Por
outro lado, “suspirar versos como ele” poderia significar que o tradutor devesse se tornar ele
mesmo um poeta e, como poeta, encontrar seus próprios suspiros, apoiando-se nos suspiros
lamartineanos, como Lamartine encontrara os dele. Os versos, portanto, não seriam
reproduções ou espelhamentos dos versos de Lamartine, mas versos do próprio poeta-tradutor
920
ASSIS, 2015, vol. 4, p. 191
433
que se coloca em relação com Lamartine, relação que produz um fruto, um rebento, o poematradução. O poeta-tradutor se apropria do tema, das imagens, dos suspiros talvez, mas eles serão
expressos em outra roupagem, uma que carrega as marcas da pena do poeta pelo qual passaram
e da tradição literária em que se insere, que é a brasileira, mas que também é a de língua
portuguesa como um todo.
É o que Machado de Assis fez com Lamartine tanto na sua primeira tradução stricto
sensu, “A uma jovem árabe” em 1859, quanto em “A Elvira”, que é uma de suas traduções
centrais, publicada dez anos mais tarde nas Lamartineanas (1869), republicada em Falenas
(1870) e mantida nas Poesias completas (1901): o metro clássico francês, o alexandrino, dá
lugar ao metro clássico da língua portuguesa, o decassílabo, enquanto a expansão lânguida sofre
cortes que introduzem um sintetismo mais frio, mais objetivo e racional. O resultado, bastante
exemplar de sua maneira de traduzir, traz matizes machadianos aos versos de Lamartine e
demonstra que o poeta-tradutor, desde muito cedo e até o fim de sua vida, foi consideravelmente
coerente consigo mesmo.
Isso, contudo, não parece ser um comportamento exclusivo de Machado de Assis, mas
algo comum à maneira de traduzir poesia de sua época. Pelo menos no que tange o tratamento
que Machado de Assis, em geral, deu à forma dos poemas que traduziu, aclimatando a forma
estrangeira à tradição literária de língua portuguesa, observamos que outros tradutores
apresentados no terceiro capítulo desta tese procederam de maneira semelhante: Gonçalves de
Magalhães, Gonçalves Dias quando traduz da prosa para a poesia, Maciel Monteiro, Pedro Luís
e outros também reduziram as formas dos sistemas estrangeiros aos da língua portuguesa nos
poucos poemas que estudamos tão brevemente.
Embora este ainda seja um ponto que mereça mais investigação, ao menos no caso de
Machado de Assis podemos afirmar que, em seu horizonte de tradutor, a ideia de fidelidade
incluía um alinhamento formal à tradição poética de língua portuguesa combinado com uma
tentativa de reencenar o modo de significar dos textos traduzidos. Logo, traduzir alexandrinos
clássicos por decassílabos, por exemplo, algo que parece um típico afastamento formal em suas
traduções, não significava “infidelidade” à forma para o tradutor, mas o contrário: o efeito
atingido por um metro clássico ou popular estrangeiro seria alcançado através do emprego de
um metro clássico ou popular da língua portuguesa. Estrangeirizar a tradição portuguesa, forçar
o estranhamento ou a presença e as marcas do “outro” via tradução no plano formal não estava
entre as principais diretrizes de seu projeto, o que não quer dizer que ele fosse absolutamente
contra esta prática. Lembremos, por exemplo, da tentativa de introdução do triolet em Falenas
434
ou das diversas vezes que utilizou os tercetos dantescos em sua poesia, sendo um dos primeiros
e mais versados na forma italiana àquela época. Esta prática, contudo, parecia estar reservada
àquilo que o poeta-tradutor considerava “aclimatável” e que não encontrava analogia em nosso
repertório. No plano semântico, o que se observou foi, em geral, uma busca pelo caráter
universal, a investigação da natureza humana e da relação do homem com o mundo que existia
em potencial nos textos, o que poderia explicar o motivo de o poeta-tradutor, quase que
sistematicamente, omitir referências que pudessem limitar o texto a uma língua-cultura
específica.
Há, segundo Berman, um lugar ambíguo ocupado pela tradução e que pode nos ajudar
a entender o projeto que Machado de Assis tinha para suas traduções:
Por um lado, ela se submete a essa injunção apropriadora e redutora, constitui-se como
um de seus agentes. O que acaba por produzir traduções etnocêntricas, ou o que
podemos chamar de “má” tradução. Mas, por outro lado, a visada ética do traduzir
opõe-se por natureza a essa injunção: a essência da tradução é ser abertura, diálogo,
mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada”921.
Neste momento cabe uma reflexão: na maneira como Machado traduz, apropriando-se,
adotando formas que remetem à sua própria tradição poética, eliminando marcas que
estrangeirizariam seu texto – caso dos topônimos e outras referências culturais eliminados nas
suas versões para a “Lira Chinesa”, por exemplo – seria possível acusá-lo de “etnocêntrico” e,
por conseguinte, de mau tradutor. Entendemos, todavia, que há uma diferença fundamental
entre os lugares de fala de Berman, sua língua-cultura, os tradutores que analisa e o lugar de
Machado de Assis. Berman era europeu, falante de uma língua europeia de considerável
influência, especialmente durante o período em que Machado de Assis trabalhou, que apresenta
principalmente estudos de tradutores europeus em Pour une critique des traductions: John
Donne e A prova do estrangeiro. Pertencem, portanto, ao que nos habituamos a chamar de
“centro”. São línguas-culturas autóctones, cujo processo de formação de uma identidade
nacional foi distinto do nosso. A posição-situação do poeta-tradutor Machado de Assis é
radicalmente diferente, porque pertence a uma nação que empresta sua língua-cultura de outra
– Portugal – que representa o colonizador, uma língua-cultura que é adotada por uma nova
nação que se tornara politicamente independente há apenas algumas décadas, sem um passado
histórico ou uma língua e tradição próprios, se tomados por medida os modelos europeus. Tudo
está por se fazer, e só se pode fazê-lo a partir de um legado – o português – que é, a um só
tempo, estrangeiro e nacional. Não somos “centro”, mas uma nação periférica que mantém
921
BERMAN, 2002, p. 17
435
laços linguísticos e culturais com outra nação periférica no sistema europeu. Não há como,
portanto, descentralizarmo-nos porque somos periferia e porque a necessidade é outra: a
autoafirmação que se dará por diversas vias, inclusive, e principalmente, talvez, a anexação do
estrangeiro, do Outro, ao Próprio, mesmo que “etnocentricamente” à primeira vista. Ainda
assim, em vista do que observamos nas traduções de Machado de Assis, parece-nos bastante
claro que há uma “mestiçagem” no seu modo de trabalhar, deixando suas marcas no diálogo
que abre com o outro, há um “descentramento” não de si, mas do outro que vem com a
autoridade de um modelo que será absorvido sob a ótica da poética de quem traduz.
Se Berman chama de má tradução aquela que, “[...] geralmente sob o pretexto da
transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza da obra estrangeira”922,
Meschonnic apresenta outra formulação que nos parece mais apropriada ao nosso caso: “Para
a poética, é má a tradução que substitui uma poética (a do texto) por uma ausência de poética:
ou seja, a língua pela estilística ou pela retórica – as unidades da língua; a tradução que substitui
o ritmo e a oralidade como semântica do contínuo pelo descontínuo do signo;”923. Sob o ponto
de vista bermaniano, seria possível incluir Machado entre os “maus” tradutores, já que no plano
formal, pelo menos, vimos que Machado de Assis nega a estranheza da obra estrangeira, salvo
raros exemplos, enquanto no plano semântico, embora as interferências ocorram em menor grau
e de forma mais sutil, não raramente se desfaz por completo de marcas que denunciam ser
aquele um texto estrangeiro. Todavia, isso não é feito “sob o pretexto da transmissibilidade”
porque o que faz em sua oficina de tradutor não é meramente tornar as obras acessíveis ao leitor
que não compreende as línguas de partida, mas reimaginá-las poeticamente dentro de seu
projeto de tradução e da tradição de sua língua-cultura, tratando-as como novos poemas. Então,
sob a formulação de Meschonnic, Machado não seria um mau tradutor porque seus poemastraduções substituem uma poética – a do autor estrangeiro – por outra, a do próprio poetatradutor; o poeta-tradutor troca o ritmo do texto de partida não por uma ausência de ritmo
poético, mas por um ritmo e tom próprios, inscrevendo-se textos que traduz o que, por
conseguinte, reforça a hipótese de que a tradução – ou pelo menos a tradução poética – não teve
um papel meramente coadjuvante em sua carreira literária, mas talvez tenha auxiliado o escritor
no desenvolvimento do que vemos em toda a sua obra.
Como vimos, Rocha sugere que Machado teria aprendido com Shakespeare, que se
apropriava despudoradamente tanto dos clássicos quanto dos contemporâneos, e teria
922
923
BERMAN, 2002, p. 18
MESCHONNIC, 2010, p. 74
436
encontrado no bardo inglês as bases para a sua poética da emulação. Vemos que não só sua
obra “autoral”, mas que toda a prática tradutória de Machado de Assis, ou pelo menos a parte
que tangenciou a nossa pesquisa, está permeada desta ideia, e chega ao seu ponto máximo com
as traduções de Ocidentais, em especial, “O corvo”. Sérgio Bellei, por exemplo, se antecipa às
perguntas formuladas por Rocha quando se pergunta sobre como conciliar a busca por uma voz
poética e contribuir para o estabelecimento de uma base que ajude a fundar um nacionalismo
literário se o começo desta nova literatura – a brasileira – já surge de uma relação problemática
de dependência a algo anterior, que é a tradição literária de língua portuguesa e mesmo a
tradição literária ocidental. Ao mesmo tempo em que busca originalidade, o poeta-tradutor se
vê nesta posição problemática de dependência. A saída que encontra, no caso das traduções
centrais que analisamos, de que “O Corvo” e “To be or not to be” são ótimos exemplos, é a
desleitura intencional que por um lado marca sua diferença em relação ao texto-fonte e, por
outro, assume, reforça e trabalha conforme o que preconiza a tradição literária de língua
portuguesa. Esta é uma reflexão que, na verdade, poderia ser estendida a qualquer uma de suas
traduções centrais. O poeta-tradutor Machado de Assis – e possivelmente vários outros
tradutores do século XIX –, por mais que se afirme e deixe marcada sua diferença diante do
texto, ainda é razoavelmente conservador quanto aos caminhos escolhidos em suas traduções
já que deixa transparecer um considerável apego à tradição de língua portuguesa.
Ao estudar os tradutores românticos alemães em A prova do estrangeiro, Berman afirma
que a língua alemã carecia de “cultura” e necessitava de um alargamento, o qual pressupunha
que a fidelidade estivesse bem marcada nas traduções924, explicando que aquelas traduções
teriam sido bem-sucedidas justamente porque estrangeirizavam o alemão. Porque esperar, ou
desejar, que Machado de Assis fizesse o mesmo se a realidade era diferente, se, embora a nação
brasileira fosse jovem, a língua portuguesa não era, e era uma língua de grande e riquíssima
tradição literária, um amplo e sólido repertório no qual poderia se apoiar para incorporar as
obras estrangeiras? Com Machado de Assis a tradução parece ter outro papel que nos leva a
pensar no enfraquecimento, ou revisão, desta dicotomia “domesticar/estrangeirizar”: o de
enriquecer o “pecúlio comum” com elementos colhidos alhures, reafirmando, mesmo que
conservadoramente, a força da tradição de sua língua cultura através da tradução.
Propomos, portanto, que as traduções de Machado de Assis sejam lidas como um
laboratório de experimentação técnica em que o tradutor, ao mesmo tempo em que observa os
mecanismos de funcionamento da obra e busca meios de recriá-la, elabora conceitos e
924
BERMAN, 2002, p. 69
437
mecanismos para criar outra obra que assuma seu lugar na tradição de língua portuguesa e que
ajude a consolidar uma literatura brasileira. Gérard Genette afirma em Palimpsestes que “[o]
mais sábio para o tradutor seria, sem dúvida, admitir que ele só pode fazer mal e, contudo, se
esforçar para fazer o melhor possível, o que frequentemente significa fazer outra coisa”925. As
traduções de Machado, portanto, ao fazerem a “outra coisa” de que fala Genette, ensinam o
escritor a caminhar da imitação e tradução de modelos estrangeiros para a emulação destes
modelos em suas obras da maturidade.
Se as traduções podem nos levar para além daquele laboratório de experimentação
técnica, outro problema que se impõe com esses textos, evidentemente, é o da influência que
eles possam ter exercido sobre o escritor e o influxo de métodos e temas sobre sua obra. Em
Um mapa da desleitura, Harold Bloom alega que
não existem textos, apenas relações entre os textos. Estas relações dependem de um
ato crítico, uma desleitura ou desapropriação, que um poema exerce sobre outro, e isto
não difere em gênero dos necessários atos críticos que todo leitor forte realiza com
todo texto que encontra. A relação de influência governa a leitura assim como governa
a escrita, e a leitura, portanto, é uma ‘desescrita’ assim como a escrita é uma desleitura.
Com o prolongamento da história literária, toda poesia se torna necessariamente
crítica em verso, bem como toda crítica se torna poesia em prosa”926.
A tradução, se considerada uma das formas mais íntimas de leitura de uma obra, pode se tornar
um dos melhores canais através do qual a influência, ou “apropriação poética”927, se manifesta.
No caso de Machado, encontramos diversos graus deste tipo de apropriação nas suas traduções,
começando com tentativas de diálogos com autores estrangeiros, repetindo os temas que
primeiro encontra nas traduções que pratica, até ser capaz de deglutir completamente a obra
estrangeira a ponto de torná-la sua, como faz com o verso de Shelley que citamos no início.
Desde seus primeiros trabalhos, como no caso de “Minha Mãe”, mas também em “A
uma jovem árabe” ou “O casamento do diabo” observamos sempre o mesmo comportamento:
a tendência de aclimatar o texto, apropriar-se dele, afastando-se, muito ou pouco conforme a
ocasião, e reimaginá-lo poeticamente. Contudo, quando a situação exigia, o jovem poetatradutor era perfeitamente capaz de agir de modo completamente contrário: se os alexandrinos
de Lamartine são preteridos em favor do decassílabo português, se detalhes e imagens que
parecessem redundantes ao tradutor são eliminados em favor de um texto mais sintético, o
925
GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au seconde degré. Paris: Éditions du Seuil, p. 297. No original:
“Le plus sage, pour le traduteur, serait sans doute d’admettre qu’il ne peut faire que mal, et de s’efforcer pourtant
de faire aussi bien que possible, ce qui signifie souvant faire autre chose”.
926
BLOOM, 2003, p. 23
927
BLOOM, 2002, p. 58
438
poema de Ribeyrolles é traduzido com um acompanhamento impecável dos alexandrinos, numa
clara tentativa de recriar os traços estilísticos do poema em francês. Porém, o caso é que
“Souvenirs d’Exil” era um poema de ocasião, uma evidente demonstração de virtuosismo
poético e literário, e não necessariamente uma afinidade intelectual com a qual se deseja
aprender e/ou ultrapassar. Não se tratava de uma obra feita com a intenção de estabelecer um
diálogo, como parece ter sido o caso de Lamartine. A tradução, quando é uma prática eletiva,
parece surgir de uma medição de forças com o texto estrangeiro com o objetivo de marcar sua
diferença em relação a ele e até mesmo superá-lo, e é isso que se destaca ainda mais nas
traduções de Crisálidas e cada vez mais nas posteriores.
Parece certo, portanto, que todo esse “modo de traduzir”, tão rico, independente e
intenso, não existiria sem aquela “pulsão” de que fala Antoine Berman, o motivo que foi a força
motriz por trás das penas machadianas e que só poderia ser reconstituído de fato a partir do
estudo das obras traduzidas. Estamos agora em campo puramente especulativo, embora
informados pelo que observamos ao longo deste percurso. Não se pode, evidentemente,
generalizar esta “pulsão” como sendo algo que sempre existiu por detrás de toda e qualquer
tradução que estudamos. Há traduções que, como vimos, são obviamente frutos de iniciativa
alheia, em maior ou menor grau, à vontade de Machado de Assis ou que não devem ter sido
pensadas e realizadas com o intuito de integrá-las à sua obra. A força motriz que encontramos
é latente nas traduções incluídas em seus três primeiros livros de poesia, mas é principalmente
visível naquele grupo de textos que elencamos e classificamos como centrais e está intimamente
relacionada com toda sua atividade autoral: o Machado de Assis poeta-tradutor buscava
naqueles autores e textos centrais de sua produção tradutória o mesmo que buscava nos autores
que lia e com quem dialogava na sua produção ficcional, teatral ou poética: ora uma medição
de forças, ora um revisionismo intenso, ora uma apropriação despudorada e, mais comumente,
um amálgama de tudo isso.
As traduções de Crisálidas sugerem que há mais regularidade do que diferentes métodos
de traduzir quando se trata de traduzir poesia, mas também denunciam uma busca por tensão,
por um tipo de embate com o texto estrangeiro que pudesse favorecer o surgimento de uma voz
própria. Os modelos apresentados são mais sofisticados do que os primeiros e, embora as
escolhas mudem conforme o caso, há uma visível regularidade na maneira como o tradutor
insiste em se afastar dos textos no aspecto formal e a imprimir sua subjetividade nas constantes
e sutis interferências que vai acrescentando aos poemas. O sentido geral dos poemas traduzidos
é preservado, mas não é passado sem que antes ganhe cores que denunciam a inscrição de uma
439
nova subjetividade no texto. Continuamos a observar a mesma preferência por traduções mais
sintéticas, mais diretas, indícios da tendência classicizante de sua poesia, que mais tarde iria
desembocar numa poesia que já traz em si matizes parnasianos. A preocupação é muito menos
com a reprodução do que com a produção de um poema, produção que carrega as marcas de
um novo autor em aberto diálogo com o antigo. Desde Crisálidas, portanto, percebe-se que
entre os motivos que movem o poeta a traduzir e a incluir sua produção tradutória entre seus
outros poemas estão a busca por modelos que tragam novidades que possam levar sua poesia
por caminhos que os modelos sobre os quais se apoiava até então não poderiam. Embora ainda
pareça que o tradutor está “preso” a temas e autores da estética romântica, há certa ousadia em
trazer para sua obra peças como “A jovem cativa” de Chénier e, principalmente, “Alpujarra”,
de Mickiewicz, introduzindo o poeta polonês entre nós.
Com as traduções de Falenas isso fica ainda mais evidente: é nítido o quanto o poetatradutor buscou ampliar sua cultura literária, oferecendo aos leitores um panorama ainda mais
diversificado de suas referências literárias quando comparamos as traduções de Falenas com
as de Crisálidas. Percebe-se, ainda, o quanto o tradutor dá um passo à frente na sua relação e
na sua experiência com a tradução: desenha-se uma maior tomada de consciência do papel de
coautoria que cabe ao tradutor, fazendo escolhas que denotam clara intenção de dar ao produto
do trabalho tradutório feições que permitam que o texto assuma a condição de obra; buscam-se
novos horizontes estéticos que ultrapassam os limites geográficos, culturais e temporais a que
até então estava inscrito. Neste segundo agrupamento de traduções o papel de coautoria do
poeta-tradutor é patente em traduções como “A Elvira” e, principalmente, nas reimaginações
poéticas da “Lira Chinesa”, mas também quando transforma a cena do suicídio de Ofélia em
um poema ou quando devolve à forma poética “Os deuses da Grécia” de Schiller conforme um
esquema próprio, mas que empresta o tom adequado à poesia. Considere-se, por exemplo, que
a partir de “A Elvira” vemos que não há “deferência” diante do poema de Lamartine. Há uma
busca para se criar um poema a partir dele, de dar um passo além daquele dado por Lamartine.
As traduções de Falenas são inegavelmente mais ousadas e reforçam a tese de que a pulsão de
Machado de Assis era movida por uma busca por novidades que não seriam encontradas no seu
entorno mais imediato, algo de que a “Lira chinesa” é um ótimo exemplo. Enriquecendo-se a
si mesmo pelo contato com o outro, Machado de Assis revela que por trás desta atividade tão
negligenciada pela crítica encontramos um intenso trabalho que reflete o próprio pensamento
do autor sobre o que é fazer poesia, fazer literatura. Há um saber sobre a tradução no sabor
machadiano inserido nos textos.
440
Mesmo quando a presença de textos traduzidos em meio a seus outros poemas é
reduzida ao mínimo, como em Americanas, ainda assim a presença da “Cantiga do Rosto
Branco” é mais do que uma reimaginação poética de um suposto poema indígena traduzido em
prosa por Chateaubriand: é um poema machadiano criado a partir de uma intensa apropriação
que busca mostrar que as semelhanças entre os problemas que afligem o homem transbordam
as fronteiras culturais ou políticas. Novamente, isso reforça a tese de que o modo de traduzir
machadiano passava por uma aclimatação formal do texto estrangeiro numa tradução-recriação
que é movida por uma vontade de integrar o texto à língua-cultura de chegada, mas sem encerrálo nela, de forma que as marcas deste processo sejam facilmente visíveis nos rastros deixados
pelo tradutor que se posiciona como um novo autor do texto.
Por fim, as quatro traduções de Ocidentais – “O corvo”, “To be or not to be”, “Animais
iscados da peste” e “Dante” – representam um dos pontos mais altos a que chegou a poética
tradutória machadiana. São textos que, mesmo muito anteriores à sua publicação definitiva nas
Poesias completas, sobreviveram à última revisão do autor, que decidiu apresentá-los em seu
último volume de poesias entre os poemas que escolheu para representar suas Ocidentais. São
traduções que continuam confirmando as mesmas tendências observadas antes: um
distanciamento cada vez maior de autores contemporâneos seus, um interesse ainda mais amplo
por nomes representativos da cultura literária ocidental, um pendor maior por poemas menos
introspectivos ou emotivos e mais representativos de um tipo de investigação da natureza das
relações humanas, ou até mesmo do homem consigo mesmo. No plano formal, o que se
observou desde o princípio, desde suas primeiras traduções, continua a se confirmar aqui,
praticamente sem novidades: o afastamento da forma do texto-fonte é tão regular e constante,
apesar dos diferentes graus em que isso ocorre, que só pode ser deliberado, parte do “modo de
traduzir” machadiano, mas que aparenta ser também o “modo de traduzir” da época – e há
indícios disso, que merecem mais investigação. A novidade fica por conta do que faz no “Canto
XXV”, em que se comporta de maneira tão diversa da habitual ao traduzir que nos rendeu, em
artigo publicado em 2017, aproximações com as traduções de Augusto de Campos, que disse
ser esta uma das melhores traduções de um canto dantesco já feitas entre nós. Ressaltamos,
mais uma vez, que as interferências do tradutor não se restringem ao plano formal, visto que
suas marcas também são encontradas no plano semântico, desde as guinadas independentes de
“To be or not to be”, reforçando a concretude e a intensa fisicalidade do texto shakespeariano,
passando pelo frescor com que consegue reimaginar e recriar poeticamente as terrivelmente
belas cenas do canto dantesco, pela sutil mudança na mensagem central ou ao escolher ressaltar
441
determinados aspectos de “O corvo” em detrimento de outros, produzindo um poema novo, até
praticamente superar o modelo com “Os animais iscados da peste”, demonstrando, desde o
título, que é capaz de ampliar as possibilidades semânticas do texto que recria.
Se é isso que observamos nas traduções, na produção autoral de Machado, a apropriação
do texto-fonte se torna observável por meio de citações, não raro intencionalmente distorcidas
– lembremos, aqui, do que fez com aquele verso de “A jovem cativa”, por exemplo – em sua
fase madura, epígrafes e principalmente na utilização de recursos tomados de outros textos.
Este argumento alinha-se com o de João Cezar de Castro Rocha quando escreve que “o método
machadiano dessacraliza o texto-origem”928 ou que
A relevância da tradução na obra machadiana é bem conhecida; reforçando a
centralidade da tarefa do tradutor na formação do cânone em culturas nãohegemônicas. Em alguma medida, traduzir e aclimatar são ações familiares. Muitos
versos machadianos se originam da apropriação de traduções.929
Este comportamento de Machado culminou, em sua fase madura, na poética da emulação de
que fala Rocha, de deliberado anacronismo com o “[...] poder de restaurar o passado,
corrigindo, na medida do possível, assimetrias políticas e culturais cujo controle escapa ao
autor”930. Dessacralizar o texto-origem é, afinal, o que há de mais constante na maneira como
Machado de Assis traduz poesia.
Assim, pressupõe-se que a prática da tradução, a apropriação e recriação de textos
considerados modelos hegemônicos favoreceram o desenvolvimento de uma poética própria,
exercendo inevitável influência sobre a poética do tradutor. Deste modo, (re)conhecer o poetatradutor nas obras traduzidas foi necessário e imprescindível para compreender a formação de
sua poética, uma vez que através das traduções, e consequentemente das escolhas de autores,
textos e procedimentos adotados, foi possível não somente conhecer o tradutor, mas sobretudo
o poeta e o crítico que se formaram e se apresentaram por meio das traduções, bem como foi
possível sugerir que as obras traduzidas não são fruto do acaso, desconectadas da obra
reconhecida como autoral, mas integram organicamente a obra do autor, sendo possível, em
vários casos, encontrar reverberações desses poemas-traduções no restante de sua obra. É o que
buscamos demonstrar nas análises apresentadas.
No posfácio de seu primeiro livro de poesias, Crisálidas, o jovem Machado de Assis,
afirmando não curar de escolas ou teorias, admite um desejo secreto de expansão presente em
928
ROCHA, 2013, p. 307
Ibid., p. 244
930
Ibid., p. 305
929
442
seus versos e se apresenta não como um sacerdote no culto das musas, mas um “fiel obscuro da
vasta multidão de fiéis”. Modestamente, conclui seu parágrafo com as seguintes palavras: “Tal
sou eu, tal deve ser apreciado meu livro; nem mais, nem menos”. Embora adote um tom
categórico, entendemos que o autor pretendeu dar ao leitor uma súmula do que pretendia com
a sua poesia naquele momento, o que incluía reconhecer seu lugar tal como ele o percebia, uma
posição modesta que lhe cabia, mas também exigindo para si que ao menos aquele lugar fosse
respeitado.
Refeito todo este percurso, por mais que as práticas, em suas miudezas, tenham sido
diferentes conforme os textos e conforme a época, é inegável que há também uma coerência
interna ao modo de traduzir machadiano, uma recorrência de escolhas e objetivos comuns
identificáveis desde seus primeiros trabalhos até os últimos. A tradução poética machadiana
que observamos é uma tradução apropriadora do texto estrangeiro, uma tradução que não se
coloca ao lado, ou abaixo, e nem mesmo no lugar do texto, mas uma tradução que busca seu
próprio lugar na tradição de que passa a fazer parte. A tradução machadiana, no mais das vezes,
parte de um texto estrangeiro não com o único objetivo de dar aos leitores que desconhecem o
texto-fonte uma possibilidade de leitura, mas um poema que desdobra, amplia e/ou ressignifica
o texto de partida, tornando-se, portanto, um outro original que deve ser lido como tal, algo que
fica ainda mais evidente quando se percebe que suas traduções de poesia não estão diretamente
interessadas em apresentar um conjunto de poemas de um determinado autor, ou de uma época
ou escola e dadas ao público como tal, a exemplo do que fizeram alguns dos outros tradutores
que vimos, como De Simoni fez com os poetas italianos ou Edgar Bowring com os alemães. O
que temos, na verdade, é um pequeno paideuma machadiano da literatura mundial composto de
poemas recriados à sua imagem e semelhança. As principais traduções poéticas de Machado de
Assis são incluídas entre seus outros poemas, integrando-se a uma obra mais ampla e devem
ser lidas como algo que compõe aquele conjunto, como fios que fazem parte de uma intricada
renda poética que alinhava tanto essas obras negligenciadas quanto aquelas mais célebres. Se
são derivadas de outros poemas como traduções que são, também os outros poemas daqueles
conjuntos o são, embora de natureza diversa. Assim como o verso de Percy Bysshe Shelley é
ingerido, digerido e inserido no Memorial de Aires passando a constituir e a dar forma ao
pensamento do conselheiro, os poemas traduzidos buscam integrar-se organicamente à obra em
que são apresentados e, em alguns casos, a outras vertentes da obra do escritor, deixando nela
as marcas de sua passagem.
443
Seriam as traduções que realizou durante toda a vida parte da resposta àquele “desejo
secreto de expansão” que anuncia quando publica seus primeiros poemas em livro? Cremos que
sim, ou que pelo menos tal possibilidade deveria ficar no campo do provável. Ao menos, agora,
temos alguma noção do que foram os poemas-tradução de Machado de Assis e desejamos que
a eles seja dado o estatuto merecido, de obras que são. Assim como o jovem Machado de Assis
em seu posfácio de 1864, concluímos: tais são as traduções poéticas de Machado de Assis,
como tal devem ser apreciadas; nem mais, nem menos.
444
12. Considerações finais
Nos capítulos anteriores percorremos quase quarenta anos de um aspecto da carreira de
Machado de Assis até então pouco examinado: as traduções de poesia feitas entre os anos de
1856 a 1894, desde a imitação “Minha Mãe” de William Cowper ao “Prólogo do Intermezzo”
de Heinrich Heine, passando por diversas outras, das que ficaram esquecidas nas páginas dos
jornais da época àquelas que foram recebidas como obras suas em seus primeiros livros de
poesia e às grandes traduções da maturidade, como “Dante”, “O corvo” e “To be or not to be”.
Vimos também que, se o poeta-tradutor Machado de Assis não era tão diferente de seus
contemporâneos no tratamento que dava aos textos, ao menos agora sabemos que os textos que
escolheu traduzir eram, de fato, escolhas bastante pessoais e que se pautavam por um tom
diferenciado do texto de partida, denunciando uma busca mais peculiar de modelos e diálogos.
Vimos ainda que o poeta-tradutor, embora nem sempre procedesse da mesma forma quando
traduzia, ou reimaginava, os poemas estrangeiros que elegia, também deixou marcas que, sob
uma visão panorâmica do conjunto, denunciam alguma regularidade de comportamento. Nem
tão errático, nem tão constante nos procedimentos; nem tão previsível, nem tão surpreendente
nos modelos, Machado de Assis demonstrou que sua obra buscava e encontrava a si mesma em
outros, como um construtor que colhe a argamassa em um lugar, os tijolos em outro, junta as
partes que vai encontrando pelo caminho para construir um edifício que é seu.
Ensinou-nos, por exemplo, que a tradução de poesia pode ser mais do que reprodução,
almejar ser mais do que o texto de partida foi, ir além, fazer algo de diferente, novo e, assim,
abrir naquele seu novo edifício portas e janelas que arejam nossas mentes, nossa cultura, nossa
literatura, sem nos tirar de casa, sem que precisemos deixar de ser quem somos. Há uma
grandeza surpreendente nesta lição, em tempos de portas e janelas que se fecham cada vez mais
sobre nós.
O trabalho, contudo, não está findo. Esta tese, como a dissertação que a precedeu, buscou ser
um tímido passo em direção a um (re)conhecimento mais amplo e detalhado de algo que ainda
não havia sido examinado como merece, focando o interesse na pessoa do tradutor, em especial
de um tradutor de inquestionável relevância para as letras brasileiras. Se mais tempo e estudo
for dedicado a esses mesmos textos, estamos certos de que será possível descobrir ainda mais
sobre o poeta-tradutor que foi Machado de Assis e sobre as possibilidades que a tradução de
poesia abre para uma literatura. O teatro traduzido por Machado de Assis, por exemplo, ainda
445
não foi examinado com a mesma atenção minuciosa que buscamos dar aqui às traduções de
poesia. Recentes achados sugerem que muito ainda pode estar esquecido nas páginas dos
jornais. Para além de Machado de Assis, ainda há diversos outros tradutores, de poesia, prosa
e teatro, que trabalharam arduamente e em muito contribuíram para a formação de nossa
literatura e que ainda não tiveram sua obra examinada sob o ponto de vista de quem foram como
tradutores. Entre grandes nomes da nossa literatura até os menores e menos conhecidos há uma
enorme quantidade de escritores que nunca foram estudados na condição de tradutores.
Apontamos para alguns deles no terceiro capítulo desta tese, que de forma alguma pretendeu
ser definitivo. Este seria um dos passos essenciais para uma história da tradução literária
brasileira, a “tarefa ciclópica” de José Paulo Paes que é imprescindível para conhecermos
melhor a história da literatura brasileira.
446
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462
14 Anexo
Traduções poéticas de Machado de Assis em ordem cronológica
Livro em que é
Data da primeira
Título Original
Título da Tradução
publicada
publicação
Autor Original
William Cowper
Alphonse de Lamartine
Alexandre Dumas Fils
On receipt of my mother's
picture
À une jeune arabe qui fumait
le narguilé dans un jardin
d’Alep
Maria Duplessis
Alexandre Dumas Fils
Local da primeira publicação
Minha mãe
02/09/1856 Marmota Fluminense, n. 767
A uma donzela árabe
20/01/1859 O Paraíba, n. 15, p. 3
Maria Duplessis
Crisálidas (1864)
Diário do Rio de Janeiro
(subtítulo "A dama das
Camélias", Imitação de Dumas
15/04/1860 Filho)
Estâncias a Ema / Versos a
Ema
Falenas (1870)
06/04/1860 Diário do Rio de Janeiro
Courrier du Brésil (RMJ, v. 1, p.
02/12/1860 110-112, 118)
Charles Ribeyrolles
Souvenirs d'Exil
Alfred de Musset
Lucie
Lúcia
Crisálidas (1864)
1860
André Chénier
La Jeune Captive
A jovem cativa
Crisálidas (1864)
1861 A Saudade, n. 11
Crisálidas (1864)
Biblioteca Brasileira, I - Lírica
Nacional sob o título "Cleópatra
1862 e o escravo
Cleópatra - canto de um
escravo
Mme. Émile De Girardin
Gustave Nadaud
Satan Marié
O casamento do diabo
29/03/1863 Semana Ilustrada, Rio, n. 120
Heinrich Heine
Les Ondines
As ondinas
Crisálidas (1864)
Mickiewicz
Alpujarra
Alpujarra
Crisálidas (1864)
Goethe
Le Roi des Aulnes
O Rei dos Olmos
08/1863 Biblioteca Brasileira, n. 2
1863 Jornal das Famílias
23/07/1865 Semana Ilustrada
463
H.W. Longfellow
Serenade/The Spanish Student
Lua da Estiva noite
Bouilhet
Cigognes et Turbots
Cegonhas e Rodovalhos
Guilherme Blest-Gana
El primer beso
O primeiro beijo
Ecos do Passado (álbum
1867 musical)
Falenas (1870)
24/01/1869 Semana Ilustrada
19/09/1869 Semana Ilustrada, Rio, n. 458
Alphonse de Lamartine
À El***
À Elvira
Falenas (1870)
Lamartineanas - Poesias de
Afonso de Lamartine traduzidas
1869 por poetas brasileiros
Han-Tiê/J. Walter
Un poète rit dans son bateau
O poeta a rir
Falenas (1870)
1870
Tchê-Tsi/J. Walter
À la plus belles femme du
bateau des fleurs
A uma mulher
Falenas (1870)
1870
Thu-Fu/J. Walter
L'empereur
O imperador
Falenas (1870)
1870
Tan-Jo-Lu/J. Walter
L'évantail
O leque
Falenas (1870)
1870
Tchan-Tiu-Lin/J. Walter
La feuille du saule
A folha do salgueiro
Falenas (1870)
1870
Tin-Tun-Sing/J. Walter
Les petites fleurs se moquent
des graves sapins
As flores e os pinheiros
Falenas (1870)
1870
Thu-Fu/J. Walter
Sur le fleuve Tchou
Reflexos
Falenas (1870)
1870
Su-Tchon/J. Walter
Le coeur triste au soleil
Coração triste falando ao
sol
Falenas (1870)
1870
Friedrich Schiller
Les Dieux de la Grèce
Os Deuses da Grécia
Falenas (1870)
1870
William Shakespeare
Hamlet
A morte de Ofélia
Falenas (1870)
1870
William Shakespeare
Hamlet
To be or not to be /
Monólogo de Hamlet
Ocidentais (1901)
22/02/1873 Arquivo Contemporâneo
Dante Alighieri
Canto XXV - Inferno
Dante
Ocidentais (1901)
25/12/1874 O Globo
Herman Neuman
Das Herz
O Coração
Chateaubriand
Chanson de la Chair Blanche
Cantiga do Rosto Branco
Luís Guimarães Junior
Inocência/Candura
Edgar Allan Poe
The Raven
1875 Semana Ilustrada
Americanas (1875)
1875
1876 Música
O corvo
Ocidentais (1901)
28/02/1883 Almanaque Vassourense
464
Jean de La Fontaine
Les Animaux Malades de la
Peste
Os animais iscados da peste Ocidentais (1901)
Fabulas de La Fontaine (Ilust.
1886 Gustavo Doré), Tomo I
Anônimo
Seis Dias em Cuiabá
Seis dias em Cuiabá
01/08/1888 Gazeta de Notícias
Heinrich Heine
Prólogo do "Intermezzo"
Prólogo do "Intermezzo"
14/04/1894 A Semana
466
i
Esta obra é mencionada na pág. 162 do Vol. 72, de 1852, dos Anais da Biblioteca Nacional, onde se lê:
“Peregrinas ou Ecos d’além mar, coletânea de traduções feitas por poetas brasileiros, inclusive Antônio Gonçalves
Dias, coligidas por este. S.I. n.d. Original. 117 p. Formatos diversos”. Não conseguimos localizar nenhum
exemplar para consulta.
ii
O autor trata da crítica de Machado de Assis ao romance O crime do Padre Amaro, do escritor português e da
polêmica que se seguiu.
iii
O autor da epígrafe é Carlos Augusto de Sá, “português radicado no Brasil”. Cf. MAGALHÃES JUNIOR,
Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis, Vol. 1, Aprendizado, p. 47.
iv
Segundo a teoria de versificação de Castilho, a que Machado de Assis se afeiçoaria, o verso decassílabo heroico
constitui-se de dois hemistíquios, um de seis e outro de quatro sílabas – outras combinações também são aceitas,
contudo –, sendo o primeiro hemistíquio frequentemente utilizado em combinação com versos de dez sílabas.
v
Ver, a propósito, o capítulo “Os princípios silábico e silábico-acentual”, p. 23-31 da obra em questão.
vi
Veremos, posteriormente, que há indícios de que esta não seja, afinal, a primeira tradução stricto sensu, posto
que caberia à tradução de um poema de Alexandre Dumas filho incluído em Crisálidas. Como a publicação desta
outra tradução é inegavelmente posterior, e como não é possível determinar peremptoriamente a data de sua
composição, manteremos esta tradução de Lamartine como a primeira tradução propriamente dita.
vii
A façanha a que Magalhães Jr. se refere é a tradução de um poema de Ribeyrolles, de que trataremos mais
adiante.
viii
Vide, por exemplo, os poemas “Marília de Dirceu”, de Gonzaga, ou “À Excelentíssima Senhora D. Maria De
Guadalupe Topete Ulhoa Galfim”, de Bocage (Cf. CHOCIAY, 1974, p. 88).
ix
Esta edição do Courrier du Brésil está disponível online e nela encontramos, na página 4, o poema “Souvenirs
d’exil” de Ribeyrolles, seguido da tradução de Machado com a indicação “Traductor d’Assis” e o nome dos que
testemunharam a façanha. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/709719/per709719_1860_00049.pdf.
x
Uma versão deste texto foi publicada na revista Machado de Assis em linha, vol. 10, n. 21, Maio/Agosto de 2017,
com o título “Uma fonte alemã para ‘O casamento do diabo’ de Machado de Assis”.
xi
O periódico de Fleiuss publicou poemas e traduções de Machado, ajudando a divulgar sua produção.
xii
Disponível em: http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb43285771j.
xiii
Informação encontrada no site A Digital Library of Works by German-Speaking Women.
xiv
Até abril de 1863, Machado já tinha traduzido ou imitado e publicado em periódicos pelo menos sete textos
poéticos do tipo.
xv
Somente “Monte Alverne” é de 1859.
xvi
Ishimatsu conta apenas uma, “O casamento do Diabo”, provavelmente por desconhecer a tradução de
“Souvenirs d’Exil”. Cf. ISHIMATSU, 1984, p. 51
xvii
Acreditamos que houve um erro no título apresentado na relação feita por Glória Viana que consultamos, pois
as edições digitalizadas de Poésies Nouvelles que encontramos no decorrer desta pesquisa – uma datada de 1852
e outra de 1867, possivelmente a mesma que Machado de Assis possuiu – traziam como subtítulo a data “18361852”, e não “1846-1852” como no trabalho de Glória Viana.
xviii
“R.D.M.” refere-se à Revue de Deux Mondes.
xix
“P.C.” refere-se à Poésies Complètes.
xx
A versão do poema publicado na edição de 1835 Révue des Deux Mondes contém seis estrofes. Duas quadras
que saíram na revista tornam-se uma oitava na edição em livro.
xxi
A edição que Machado possuiu era desta mesma editora.
xxii
Segundo Heloísa Barbosa, “A compensação consiste em deslocar um recurso estilístico, ou seja, quando não é
possível reproduzir no mesmo ponto, no TLT, um recurso estilístico usado no TLO, o tradutor pode usar um outro,
de efeito equivalente, em outro ponto do texto”. Cf. BARBOSA, H. G. Procedimentos técnicos da tradução.
Campinas: Pontes Editores, 1990, p. 69
xxiii
A diferença, como se vê, reside somente na troca de “pas” por “point”. Em francês, a negação feita com “ne...
pas” é menos enfática do que aquela feita com a construção “ne... point”.
xxiv
Esta foi a publicação que serviu de base para a edição crítica que consultamos.
xxv
M. A. Major diz ser “A jovem cativa” “luxuosa tradução” em crítica publicada em 1 de novembro de 1864, na
Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, enquanto Amaral Tavares, em tom mais generalista, escreve no
Diário do Rio de Janeiro em 16 de novembro do mesmo ano que, nas traduções, “o poeta tradutor levanta-se a
uma esfera quase superior de uma esfera ao original”.
xxvi
A tradução de Alberto Faria é publicada ao lado do texto de Chénier, na íntegra, no periódico citado.
xxvii
Utilizaremos o texto d’O Espelho para fins de comparação, atualizando a ortografia do mesmo.
xxviii
Cf. “A Dona Gabriela da Cunha”, publicado n’O Espelho em 25/12/1859.
467
xxix
As ondinas, uma espécie de sereia, são figuras mitológicas, espíritos da natureza que habitam as águas de
rios, mares ou lagos.
xxx
A primeira publicação do conto é de 5 de novembro de 1885, na Gazeta de Notícias.
xxxi
De acordo com o biógrafo Magalhães Júnior, que dedica todo um capítulo ao problema – “Machado e a Questão
Christie” –, no fim de 1862 as relações diplomáticas entre o Império brasileiro e o Reino da Grã-Bretanha são
abaladas por uma série de eventos dando início a uma crise entre os dois países, aprofundada pela insolência dos
representantes dos ingleses no Brasil, o cônsul Vereker e o ministro plenipotenciário William Christie, que
exigiram indenização por uma suposta carga saqueada e tripulação assassinada em decorrência de um naufrágio
na costa brasileira.
xxxii
No livro Procedimentos técnicos da tradução (1990), a tradução literal é definida como “aquela em que se
mantém uma fidelidade semântica estrita, adequando porém a morfo-sintaxe às normas gramaticais da LT”
(AUBERT apud BARBOSA, p. 65), que é o entendimento que adotamos aqui.
xxxiii
Localizamos outras traduções francesas da mesma época, mas as escolhas dos tradutores nos permitem dizer
com alguma segurança que não foram as que consultou por serem muito diferentes das de Machado, algo que não
ocorre com a tradução de Porchat.
xxxiv
Uma versão deste texto foi publicada na revista Machado de Assis em Linha, n. 20 de Abril/2017, com o título
“Machado de Assis, tradutor de Longfellow”.
xxxv
Os pedidos de Machado aparecem nas cartas de 29 de outubro e 24 de dezembro de 1866. Período anterior,
portanto, à composição de “Lua da estiva noite”. Cf. ASSIS, 2008, p. 171; 203.
xxxvi
Na tentativa de entender a dificuldade do exercício, tentamos uma tradução da primeira estrofe. Foi perceptível
a dificuldade de encontrar rimas adequadas em versos que respeitassem a métrica dos demais. De todo modo, eis
o resultado a que chegamos:
‘Strela da estiva noite
Ao fundo de um céu anil
Não deixe esta luz vil
Luzir! Luzir! Luzir!
A virgem dos meus sonhos
Não vês dormir!
Dormir!
xxxvii
Apesar de ter sido publicado em 1869, percebe-se nos jornais da época que o volume Lamartineanas só foi
colocado à venda em 1870, mesmo ano de lançamento de Falenas. É possível encontrar diversos anúncios de
ambos juntos.
xxxviii
Foram consultadas, além da primeira edição de 1823, as edições de 1824, 1838, 1853, 1878 e 1885.
Desconsideramos as duas últimas para um exame mais minucioso porque são posteriores à data da tradução.
xxxix
Esta informação foi incluída na edição traduzida da obra e não se encontra no original francês da tese
complementar de Massa, sugerindo que quando redigiu o trabalho talvez não tivesse conhecimento da tradução de
Gonçalves Dias.
xl
Segundo a edição de 1856 de Gedichte von Friedrich Schiller, as estrofes suprimidas foram três, conforme se vê
na p. 90.
xli
Acrescentaremos uma tradução nossa para cada citação do texto-fonte para fins de comparação com as escolhas
de Machado de Assis.
xlii
A consulta ao fac-símile do jornal nos mostra que a grafia correta do nome é “Asinius”, e não “Anísius”, como
saiu na edição crítica. Na edição francesa consultada lê-se, também, “Asinius”.
xliii
Na edição francesa de 1859 o nome do autor está grafado como “Bouilhet”. A grafia utilizada tanto na Semana
Ilustrada quanto em Falenas, “Bouillet”, pode ter sido uma confusão com o nome do autor do Dictionnaire
Bouillet, nome informal do Dictionnaire universel d’histoire et de géographie, de Marie-Nicolas Bouillet e Alexis
Chassang, que teve sua primeira edição em 1842 e era bastante citado nos jornais do século XIX. Na mesma edição
em que sai “Cegonhas e Rodovalhos”, por exemplo, há duas menções ao Dictionnaire Bouillet.
xliv
O romance foi publicado em folhetim pelo Correio Mercantil no mesmo ano de publicação na França, entre
agosto e novembro de 1854.
xlv
Para fins de cotejo, utilizamos a versão francesa do poema conforme publicada por Alexandre Dumas pai em
Causeries.
xlvi
Na versão do poema publicada no romance La dame aux perles, os dois versos finais desta estrofe possuem
algumas diferenças destacadas em itálico a seguir: “S’il ne ramène pas ce que mon coeur espère, /
Il n'est pas de soleil, il n'est pas de printemps !”
xlvii
A edição da revista pode ser consultada em: [http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k229232r/f42.image]
468
xlviii
Knowlton Jr., ao que tudo indica, utilizou neste caso o sistema Wade-Giles de romanização, o que pode
explicar a diferença entre ambos.
xlix
Em seu ensaio, Joaquim Guerra explica os problemas que existiam com a transcrição dos nomes chineses para
o alfabeto latino na época em que a tradução foi feita, já que inexistiam as regras de que dispomos hoje.
l
Joaquim Guerra, na verdade, não confirma a autoria de Du Fu neste caso, mas também não a contesta, ao contrário
do que faz com “O imperador”, o que nos leva a acreditar que ele considerou a atribuição correta.
li
Possivelmente Ferreira de Araújo, segundo Ubiratan Machado.
lii
Há uma obra chamada Voyage dans l’Amérique meridionale, de Alcide d’Orbigny, e outra chamada Voyage
dans l’Amérique septentrionale, Victor Collot, ambas publicadas também nas primeiras décadas do séc. XIX.
Talvez expliquem este pequeno deslize de Machado de Assis.
liii
“Cortesã”, segundo nota de Chateaubriand.
liv
Tribo indígena que, no relato de Chateaubriand, estava entre os escravos dos Muscogulges.
lv
Tanto o fac-símile do nº 2 de “A Época” quanto desta edição da “Semana Ilustrada” estão disponíveis na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
lvi
Esta tradução vem acompanhada de uma epígrafe, em grego, da peça Agamênon, de Ésquilo, que não
reproduzimos aqui.
lvii
Procuramos os documentos originais desta tradução, ou cópias dos mesmos, junto à Biblioteca Nacional a fim
de confirmar as afirmações do biógrafo Magalhães Júnior. Até o fechamento deste trabalho nossas pesquisas foram
infrutíferas, o que nos obrigou a acreditar no relato deixado pelo biógrafo.
lviii
Edgar Allan Poe faleceu em 1849, sem ter conhecido a divulgação de sua obra na Europa e no restante da
América.
lix
Há notícia publicada em A Semana da publicação do Intermezzo em livro, pelos livreiros Fauchon & Comp.,
ainda no ano de 1894. Não localizamos nenhum exemplar para consulta. A notícia pode ser conferida em:
http://memoria.bn.br/DocReader/383422/1844
lx
“Negros” e “brancos” eram os partidos políticos que disputavam o poder na Toscana. Dante Alighieri pertencia
aos “brancos”.
lxi
Caso do verso "Se vuoi campar desto loco selvaggio", citado por Ramos que acrescenta haver "muitos outros"
na Commedia. In: RAMOS, P. E. S. O verso romântico e outros ensaios, p. 51
lxii
Outros nomes citados pela autora, dentre os poetas que empregaram a terza rima, incluem “o barroco Gregório
de Matos, os árcades Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, os românticos Gonçalves Dias e
Álvares de Azevedo, e os parnasianos Olavo Bilac e Alberto de Oliveira” (SALOMÃO, 2016, p. 388), sem
desconsiderar autores menos conhecidos.
lxiii
Cf. FLORES, Diego do Nascimento Rodrigues. “Diálogos em tradução: Augusto de Campos e Machado de
Assis”. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 37, n. 3, p. 117-138, set. 2017. ISSN 2175-7968. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p117>. Acesso em: 25 jul.
2018.
lxiv
No Brasil, a obra foi reeditada pela Editora Landy em 2003, em dois volumes de capa dura, que tiveram pelo
menos mais duas edições em 2004 e 2005, conservando as ilustrações de Gustave Doré, mas sem os estudos
críticos de Pinheiro Chagas e Teófilo Braga que acompanharam a primeira edição.
lxv
Após consulta à edição de 1696 foi possível verificar que o uso de maiúsculas para alguns nomes como os dos
animais, “Peste”, “Ciel”, “Berger”, “Diable”, etc. está conforme a edição crítica preparada por Collinet.
lxvi
Publicado no Jornal das Famílias, novembro-dezembro de 1876 e janeiro de 1877. Consta do vol. 2 da Obra
completa em 4 volumes, pp. 1437-1443.