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Machado de Assis, poeta-tradutor

2019

A Débora, minha esposa, sem cujo apoio incondicional esta tese não teria sido possível.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DIEGO DO NASCIMENTO RODRIGUES FLORES MACHADO DE ASSIS, POETA-TRADUTOR VITÓRIA 2019 DIEGO DO NASCIMENTO RODRIGUES FLORES MACHADO DE ASSIS, POETA-TRADUTOR Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Letras. Orientador: Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho. Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista VITÓRIA 2019 DIEGO DO NASCIMENTO RODRIGUES FLORES MACHADO DE ASSIS, POETA-TRADUTOR Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para obtenção do título de Doutor em Letras. Aprovada em 1 de outubro de 2019. BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho Universidade Federal do Espírito Santo Orientador ___________________________________ Prof. Dr. Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista Universidade Federal do Espírito Santo Coorientador ____________________________________ Profa. Dra. Arlene Batista da Silva Universidade Federal do Espírito Santo Membro Titular Interno ____________________________________ Prof. Dr. Vitor Cei Santos Universidade Federal do Espírito Santo Membro Titular Interno ____________________________________ Prof. Dr. Marcelo Paiva de Souza Universidade Federal do Paraná Membro Titular Externo ____________________________________ Prof. Dr. Walter Carlos Costa Universidade Federal do Ceará Membro Titular Externo A Débora, minha esposa, sem cujo apoio incondicional esta tese não teria sido possível. A Dante, meu filho, que nasceu quando eu começava esta tese e que, sem compreender, tanto sacrificou nos primeiros anos de sua vida. AGRADECIMENTOS A todos da minha família, pelo apoio constante e irrestrito. Ao meu orientador, Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho, pelo encorajamento, pelas sugestões, pelas leituras atentas, pelas aulas e pelas conversas que deram direcionamentos imprescindíveis a esta tese. Ao meu coorientador, Prof. Dr. Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista, por ter gentilmente aceitado a difícil tarefa de me auxiliar na finalização deste trabalho, pelos inestimáveis conselhos e pelo rigor científico com que tanto contribuiu. Ao Prof. Dr. Vitor Cei, que muito gentilmente me auxiliou na tradução da versão alemã de “O casamento do Diabo”. Ao Prof. Dr. José Américo Miranda de Barros, pelas leituras, sugestões, conversas e descobertas que compartilhamos. À Prof. Dra. Arlene Batista da Silva, cujas preciosíssimas sugestões durante a qualificação que em muito melhoraram este trabalho. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Letras, pelas aulas, leituras, debates, conversas e por serem os modelos em quem me espelho. A todos os colegas, mestrandos e doutorandos, com quem compartilhei ótimos momentos. Ao Campus Serra do Instituto Federal do Espírito Santo, que me acolheu afetuosamente quando eu começava este trabalho, em especial aos Diretores Wagner Teixeira da Costa e Gilmar Luiz Vassoler, por todo o apoio e encorajamento. “No final das contas, toda poesia é tradução.” Schlegel RESUMO Buscamos estudar e perfilar, de maneira tão abrangente quanto possível, o poeta-tradutor Machado de Assis a partir dos poemas por ele traduzidos em confronto com os textos-fonte de que ele possa ter se servido. O corpus estudado compreende todas as traduções interlinguais incluídas em Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) e Ocidentais (1901) e as onze traduções poéticas que o autor escolheu não incluir em seus livros. Adotando um viés metodológico bermaniano de crítica de tradução, estudamos cada uma de suas traduções de poesia, investigando os traços que poderiam nos ajudar a encontrar um projeto de tradução, um modus operandi machadiano do traduzir. Pressupondo que as traduções não se produziram isoladamente, nem são textos meramente secundários, procuramos mostrar que, em alguns casos, é possível correlacioná-las a outros momentos de sua produção poética ou ficcional, sugerindo que também esses poemas traduzidos se inserem organicamente no restante de sua produção autoral. Tais escolhas nos levaram a adotar a tese de que a prática da tradução surge como um espaço de experimentação poética em que o poeta-tradutor buscava sua autonomia e a reafirmação de sua tradição literária, desembocando numa poética em que as várias e recorrentes dissidências em relação aos textos e autores que traduziu apontam para uma frequente e cada vez mais visível independência do poeta-tradutor frente ao texto estrangeiro. Isso nos levou a concluir que as traduções poéticas de Machado de Assis sempre foram feitas sem deferência servil ao texto ou autor estrangeiro, carregando consigo a marca do poetatradutor, obrigando-nos a ler esses poemas como novos originais que frequentemente dialogam com o restante de sua produção autoral e principalmente com sua visão de mundo e de literatura, além de terem sido instrumentais na sua formação como escritor. Palavras-chave: Estudos da tradução. Crítica de tradução. Tradução de poesia. Machado de Assis. RÉSUMÉ Notre objectif était d’étudier et de profiler, de la manière la plus complète possible, le poètetraducteur Machado de Assis à partir des poèmes qu’il a traduits par rapport les sources qu’il aurait pu utiliser. Le corpus étudié comprend toutes les traductions interlinguales incluses dans Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) et Ocidentais (1901) et les onze traductions de poésie que l’auteur a choisie de ne pas inclure dans ses livres. En adoptant un parti pris bermanien de la critique de traduction, on a étudié chacune de ses traductions poétiques en y cherchant les traces qui pourraient nous aider à trouver un projet de traduction, un modus operandi machadien du traduire. En supposant que les traductions n’aient pas été produites isolément, ni ne soient simplement des textes secondaires, on a essayé de les corréler, quand possible, au reste de sa production, à la fois poétique et fictive, afin de démontrer que ces poèmes traduits peuvent également être insérés organiquement dans sa production d’auteur. Ces choix nous ont amenés à adopter la thèse selon laquelle la pratique de la traduction apparaît comme un espace d’expérimentation poétique dans lequel le poète traducteur cherche son autonomie et réaffirme sa tradition littéraire, ce qui nous amène à une poétique dans laquelle les diverses et récurrentes dissidences relatives aux textes et aux auteurs qu’il a traduits soulignent une indépendance fréquente et de plus en plus visible du traducteur-poète devant le texte étranger. Cela nous a amenés à conclure que les traductions poétiques de Machado étaient toujours faites sans déférence servile pour l’auteur ou le texte étranger, portant les marques du poète-traducteur, nous obligeant à lire ces poèmes comme des nouveaux originaux qui ont joué un rôle déterminant dans sa formation d’écrivain. Mots-clés : Études de traduction ; critique de traduction ; traduction de poésie ; Machado de Assis ; ABSTRACT We aimed at studying and profiling, as broadly as possible, the poet-translator Machado de Assis based on the poems he translated in confrontation with the sources he may have used. The corpus studied comprises all interlingual translations included in Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) and Ocidentais (1901) and the eleven translations of poetry that the author chose not to include in his books. Adopting the bermanian view of translation criticism, we studied each one of his translations of poetry investigating in them the traces which could help us find a translation project, a machadian modus operandi of translating. Assuming that the translations were not produced isolatedly, nor are they merely secondary texts, we tried to correlate them to the rest of his production, both poetic and fictional, in an attempt to demonstrate that also these translated poems can be organically inserted into the rest of his authorial production. Such choices led us to adopt the thesis that the practice of translation emerges as a space of poetic experimentation in which the poet-translator sought his autonomy and reaffirmation of his literary tradition, leading to a poetic in which the various and recurrent dissentions in relation to the texts and authors he translated point to a frequent and increasingly visible independence of the poet-translator when faced with the foreign text. This led us to conclude that the Machado de Assis’ poetic translations were always made with no slavish deference to the foreign text or author, carrying along with them the marks of the poettranslator, making us read these poems as new originals which were instrumental in his formation as a writer. Keywords: Translation studies; translation criticism; translation of poetry; Machado de Assis; Lista de figuras Figura 1 - Reprodução da primeira publicação de “A uma donzela árabe” ........................... 110 Figura 2 - Reprodução da primeira publicação de “Souvenir d’Exil” ................................... 116 Figura 3 - Reprodução do manuscrito de “O casamento do diabo” ....................................... 121 Figura 4 - Reprodução da primeira publicação de “As ondinas” ........................................... 179 Figura 5 - Reprodução da primeira publicação de “Maria Duplessis” ................................... 185 Figura 6 - Reprodução da publicação de “O rei dos ôlmos” na Semana Ilustrada ................ 210 Figura 7 – Reprodução da primeira publicação de “O primeiro beijo”. ................................ 223 Figura 8 - Reprodução da primeira publicação de “Cegonhas e Rodovalhos” ...................... 258 Figura 9 – Reprodução da publicação de “Versos a Emma” ................................................. 276 Figura 10 - Reprodução da primeira publicação de “Das Herz / O Coração” ....................... 331 Figura 11 – Reprodução da primeira publicação de “Seis dias em Cuiabá” .......................... 352 Figura 12 – Reprodução da publicação do “Prólogo do Intermezzo” em A Semana ............. 386 Figura 13 – Reprodução da primeira publicação da tradução do “Canto XXV” do “Inferno” ................................................................................................................................................ 397 Lista de quadros Quadro comparativo 1 – Tradução de Joaquim Serra de poema de Victor Hugo .................... 56 Quadro comparativo 2 – “Minha Mãe” e “En recevant le portrait de ma mère” ..................... 95 Quadro comparativo 3 – “A uma donzela árabe” e “À une jeune árabe” .............................. 106 Quadro comparativo 4 – “Souvenir d’Exil” e tradução de Machado de Assis ...................... 114 Quadro comparativo 5 – “Lúcia” e “Lucie” ........................................................................... 141 Quadro comparativo 6 – “La jeune captive” e “A jovem cativa” .......................................... 157 Quadro comparativo 7 – “Cleópatra” e “Cléopâtre” .............................................................. 165 Quadro comparativo 8 – Terceira estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”. ................................................................................................................................................ 170 Quadro comparativo 9 – Nona estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”. .. 171 Quadro comparativo 10 – “As ondinas” e “Les ondines” ...................................................... 176 Quadro comparativo 11 – “Maria Duplessis” e “M.D.” ........................................................ 186 Quadro comparativo 12 – “Alpujarra” e versão francesa de “Alpuhara” de Mickiewicz...... 194 Quadro comparativo 13 - Correspondências da tradução de Machado de Assis com as versões polonesa, francesa e inglesa ................................................................................................... 198 Quadro comparativo 14 – “O rei dos ôlmos” e “Erlkönig”.................................................... 206 Quadro comparativo 15 – “Serenade” e “Lua da estiva noite” .............................................. 217 Quadro comparativo 16 – “El primer beso” e “O primeiro beijo” ......................................... 225 Quadro comparativo 17 – “A Elvira” e “A El***” ................................................................ 238 Quadro comparativo 18 – “Os deuses da Grécia” e “Les Dieux de la Grèce” ....................... 243 Quadro comparativo 19 – Diferenças entre as versões da Semana Ilustrada e Falenas do poema “Cegonhas e Rodovalhos”...................................................................................................... 255 Quadro comparativo 20 – “Cigognes et Turbots” e “Cegonhas e Rodovalhos” .................... 260 Quadro comparativo 21 – “Estâncias a Ema” e poema francês extraído do romance “La Dame aux Perles” ............................................................................................................................. 268 Quadro comparativo 22 – “Coração triste falando ao sol” e “Le cœur triste au soleil”......... 299 Quadro comparativo 23 – “A folha do salgueiro” e “La feuille de saule” ............................. 300 Quadro comparativo 24 – “O poeta a rir” e “Un poète rit dans son bateau” ......................... 302 Quadro comparativo 25 – “A uma mulher” e “A la plus belle femme du bateau des Fleurs”303 Quadro comparativo 26 – “O imperador” e “L’empereur” .................................................... 305 Quadro comparativo 27 – “O leque” e “L’éventail” .............................................................. 307 Quadro comparativo 28 – “As flores e os pinheiros” e “Les petities fleurs se moquent des graves sapins” .................................................................................................................................... 308 Quadro comparativo 29 – “Reflexos” e “Sur le fleuve Tchou” ............................................. 309 Quadro comparativo 30 – “Cantiga do Rosto Branco” e “Chanson de la Chair Blanche” .... 319 Quadro comparativo 31 – “Das Herz” e “O coração” ............................................................ 330 Quadro comparativo 32 – Versões em inglês do poema alemão “Das Herz” ........................ 332 Quadro comparativo 33 – Poema “Candura”, letra de “Inocência” e versão francesa de Machado de Assis .................................................................................................................................. 336 Quadro comparativo 34 – Poema “To be or not to be” e versão inglesa do trecho do monólogo de Hamlet ............................................................................................................................... 346 Quadro comparativo 35 – Poema “Seis dias em Cuiabá”, versão alemã e a tradução de Machado de Assis .................................................................................................................................. 353 Quadro comparativo 36 – “O corvo” e “The Raven”............................................................. 363 Quadro comparativo 37 – “Prólogo do ‘Intermezzo’” e “Prolog” ......................................... 387 Quadro comparativo 38 – “Dante” e Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia ............ 402 Quadro comparativo 39 – “Les animaux malades de la peste” e “Os animais iscados da peste” ................................................................................................................................................ 420 Lista de gráficos Gráfico 1 - Distribuição das traduções poéticas de acordo com a língua-cultura do texto-fonte .................................................................................................................................................. 71 Gráfico 2 - Presença de traduções nas obras poéticas de Machado de Assis ........................... 72 Gráfico 3 - Traduções poéticas publicadas em cada década .................................................... 72 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 16 2. DO MÉTODO: A CRÍTICA DE TRADUÇÃO DE ANTOINE BERMAN E A POÉTICA DA TRADUÇÃO DE HENRI MESCHONNIC EM POUR UNE CRITIQUE DES TRADUCTIONS .......................................................................... 28 3. A TRADUÇÃO DE POESIA NO SÉCULO XIX NO BRASIL: ALGUNS APONTAMENTOS ................................ 41 4. MACHADO DE ASSIS E A TRADUÇÃO: DAS PRIMEIRAS PESQUISAS À POSIÇÃO DA TRADUÇÃO NA POÉTICA MACHADIANA ................................................................................................................................ 67 5. 1856-1863: AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES DE POESIA .............................................................................. 90 5.1 “MINHA MÃE” ............................................................................................................................................... 91 5.2 “A UMA DONZELA ÁRABE” .............................................................................................................................. 101 5.3 “SOUVENIR D’EXIL” ....................................................................................................................................... 112 5.4 “O CASAMENTO DO DIABO” ............................................................................................................................ 119 6. AS TRADUÇÕES DE CRISÁLIDAS .......................................................................................................... 134 6.1 “LUCIE” ...................................................................................................................................................... 138 6.2 “A JOVEM CATIVA” ....................................................................................................................................... 152 6.3 “CLEÓPATRA, CANTO DE UM ESCRAVO” ............................................................................................................. 163 6.4 “AS ONDINAS” ............................................................................................................................................. 173 6.5 “MARIA DUPLESSIS” ...................................................................................................................................... 182 6.6 “ALPUJARRA” ............................................................................................................................................... 191 7. AS TRADUÇÕES DE 1865-1869 ........................................................................................................... 206 7.1 “O REI DOS ÔLMOS” ...................................................................................................................................... 206 7.2 “LUA DA ESTIVA NOITE” .................................................................................................................................. 213 7.3 “O PRIMEIRO BEIJO” ...................................................................................................................................... 221 8. AS TRADUÇÕES DE FALENAS .............................................................................................................. 231 8.1 “A ELVIRA” .................................................................................................................................................. 234 8.2 “OS DEUSES DA GRÉCIA” ................................................................................................................................ 241 8.3 “CEGONHAS E RODOVALHOS” ......................................................................................................................... 255 8.4 “ESTÂNCIAS A EMA” ...................................................................................................................................... 267 8.5 “A MORTE DE OFÉLIA” ................................................................................................................................... 282 8.6 “LIRA CHINESA” ............................................................................................................................................ 291 8.6.1 “Coração triste falando ao sol” ................................................................................................... 299 8.6.2 “A folha do salgueiro” ...................................................................................................................... 300 8.6.3 “O poeta a rir” .................................................................................................................................. 302 8.6.4 “A uma mulher”................................................................................................................................ 303 8.6.5 “O imperador” .................................................................................................................................. 304 8.6.6 “O leque” .......................................................................................................................................... 306 8.6.7 “As flores e os pinheiros” .................................................................................................................. 308 8.6.8 “Reflexos” ......................................................................................................................................... 309 9. AMERICANAS E A “CANTIGA DO ROSTO BRANCO” ............................................................................. 313 9.1 A “CANTIGA DO ROSTO BRANCO” .................................................................................................................... 316 10. 1875-1901: AS OCIDENTAIS E AS ÚLTIMAS TRADUÇÕES................................................................. 325 10.1 “DAS HERZ”............................................................................................................................................... 329 10.2 “INOCÊNCIA” ............................................................................................................................................. 334 10.3 “TO BE OR NOT TO BE” ................................................................................................................................. 338 10.4 “SEIS DIAS EM CUIABÁ” ................................................................................................................................ 350 10.5 “O CORVO”, UMA DESLEITURA MACHADIANA ................................................................................................... 356 12.1.1 Edgar Allan Poe no Brasil do século XIX e “O corvo” de Machado de Assis .................................... 362 12.1.2 Vertentes da recepção crítica de “O corvo”.................................................................................... 368 12.1.3 Ecos de Poe e de “O corvo” na obra de Machado .......................................................................... 380 10.6 O “PRÓLOGO” DO INTERMEZZO ..................................................................................................................... 381 10.7 “DANTE” ................................................................................................................................................... 392 10.8 “OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE” ................................................................................................................... 414 11. A TRADUÇÃO COMO APROPRIAÇÃO: O PROJETO DE TRADUÇÃO POÉTICA MACHADIANO ............ 427 12. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 444 13 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 446 14 ANEXO............................................................................................................................................... 462 16 1. Introdução O crítico inglês e tradutor John Gledson publicou, no final da década de 1990, uma pequena coletânea intitulada Machado de Assis & confrades de versos, edição bilíngue que traz uma seleção de poemas traduzidos por Machado de Assis ao lado dos originais. Na sua breve introdução, “De Lamartine a La Fontaine: As traduções poéticas de Machado de Assis”, Gledson afirma que o tal volume pode parecer “[...] apenas um aspecto menor de um aspecto menor”1 da obra de Machado de Assis, que isso “[...] sem dúvida é verdade, mas resulta que até essas obras […] iluminam vertentes da sua personalidade complexa e rica”2 ou mesmo que “[...] até essas ‘obrinhas' acompanham o desenvolvimento de um grande escritor”3, sem se aprofundar na questão. Fica-se com a impressão de que o trabalho tradutório de Machado, mesmo com as ressalvas do autor na introdução, é um trabalho de pouca relevância para o conhecimento do escritor, um trabalho prescindível, uma atividade paralela que pouco ou nada teria a ver com a grande obra que tornou Machado de Assis conhecido. Contudo, o mesmo Gledson admite posteriormente, em Por um novo Machado de Assis (2006), que “[...] para se ter uma visão mais abrangente e profunda da obra de Machado, se faz necessário um exame de trabalhos (supostamente) menores”4. Temos, destarte, alguns motivos para dar alguma atenção a estas “obrinhas”, mas para enquadrá-las no projeto de esboçar um perfil do poeta-tradutor Machado de Assis precisaremos de mais. A proposta de estudar as traduções de Machado de Assis, autor de romances e contos consagradíssimos que engendraram um vasto manancial crítico, e delas tentar tirar alguma lição é, de certo modo, caminhar na contramão do que mais tem interessado a crítica quando se trata de um dos nossos maiores escritores. Como o olhar que lançaremos sobre estas traduções manterá seu foco somente nas traduções de poesia, é preciso reconhecer que o objeto de estudo escolhido é algo que pouco tem interessado a crítica dentro de um campo que também tem recebido pouquíssima atenção, que é a produção poética de Machado, claramente ofuscada pela sua prosa. Este, no entanto, é o nosso objeto: um corpus “menor” pinçado de dentro de outro corpus “menor”, incluindo os trabalhos supostamente menores desse corpus, que são as traduções poéticas de ocasião ou a trabalho que não adentraram os quatro livros de poesia de Machado de Assis. Ou seja, enfrentaremos cada uma das traduções de poesia feitas por 1 GLEDSON, John. (Org.). Machado de Assis & confrades de versos. São Paulo: Minden, 1998, p. 7 Ibid., p. 7 3 Ibid., p. 8 4 Id. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19 2 17 Machado de Assis que pudemos identificar, incluindo aquelas que foram posteriormente preteridas pelo seu autor. Jean-Michel Massa, professor e pesquisador francês autor da biografia intelectual A juventude de Machado de Assis (1971, reeditada em 2009) e de Machado de Assis tradutor (2008), em entrevista para a Revista Teresa, nos oferece mais alguns dos motivos que justificam a atenção que daremos a essas traduções. Segundo Massa (2005), uma parte considerável das traduções poéticas de que nos ocuparemos nesta tese [...] não são traduções a pedido de uma editora, são textos escolhidos por Machado. Neste caso, traduzir é mais que traduzir, é redigir, escrever e ser original, porque há uma escolha que corresponde a uma preferência do escritor. Resulta daí algo que poderia chamar, exagerando um pouco, de antologia da literatura europeia, escolha de Machado de Assis. Isso dá um interesse muito maior a esse conjunto de textos, porque não é uma tradução encomendada, mas uma tradução criadora, que promove nomes, e textos que têm um valor para Machado de Assis.5 De fato, das trinta e cinco traduções que veremos, no mínimo vinte e oito teriam surgido de uma escolha pessoal de Machado de Assis, número bastante conservador e que pode ser ainda maior. Logo, percebe-se que Massa compreendeu, ou pelo menos vislumbrou, a importância das traduções poéticas de Machado de Assis: são textos em que Machado, para além de tradutor, é um poeta, um escritor que deixa transparecer sua força criativa. As traduções passam a fazer parte da sua formação enquanto escritor e crítico na medida em que colocam obstáculos que, pouco a pouco, vão sendo transpostos. São, por fim, uma amostra do gosto e da filiação literária de um dos mais importantes escritores da literatura brasileira. Ao consideramos a opinião de Massa, aquelas “obrinhas” tomam outra dimensão, e negar seu valor, mesmo que por omissão mais que por descrédito, torna-se menos sustentável. Estudar aquilo que Massa chama em Machado de Assis tradutor de “afinidades eletivas” – textos que Machado escolheu traduzir e publicar – ou mesmo aqueles que lhe couberam traduzir, as traduções “alimentares”, feitas a trabalho, talvez por iniciativa em parte alheia à sua vontade, significa ajudar a preencher a considerável lacuna deixada pela crítica quanto às traduções de Machado e ao papel que elas tiveram em sua carreira ou em sua obra. É com isso em mente, e dando continuidade ao projeto iniciado na dissertação de mestrado Machado de Assis, tradutor de Hugo defendida em 2007, que iniciamos esta empreitada: espera-se poder contribuir para o conhecimento do escritor Machado de Assis a partir dos textos traduzidos por ele, avaliando suas escolhas não necessariamente ou 5 MASSA, Jean-Michel. “Entrevista com o Professor Jean-Michel Massa”. In: Teresa, São Paulo, n. 6-7, dec. 2005, p. 466, grifo nosso. 18 exclusivamente em termos de “boas” ou “ruins” – algo demasiado subjetivo e que fala mais sobre o crítico, talvez, do que sobre a obra – mas buscando entender o que as escolhas feitas e, principalmente no caso das traduções poéticas de que esta tese se ocupa, o que os textos escolhidos representam para sua formação na maneira como dialogam com sua vida e obra e de que forma a maneira como foram traduzidos nos ajudam no nosso objetivo de perfilar o poetatradutor Machado de Assis. Esperamos demonstrar que tal perfil, embora sob a aparência de algo em construção, conforme os anos passam para Machado enquanto poeta-tradutor à medida em que avança na sua produção autoral, é consideravelmente coerente consigo mesmo, posicionando-se, fazendo escolhas e adotando procedimentos que se tornam cada vez mais previsíveis e regulares. Além do mais, quando o texto traduzido permitir, procuraremos demonstrar que o poeta-tradutor não é uma figura que existe ao lado do escritor, realizando uma atividade menor, paralela, como se fosse um mero passatempo ou exercício criativo, mas que está associado ao escritor com quem coexiste organicamente, sendo essencial para a formação de sua poética. Isso fica ainda mais evidente nos casos em que, como veremos, é possível traçar interessantes paralelos entre o poema traduzido e a produção “original” de Machado de Assis, seja na poesia, seja na prosa. Trata-se, portanto, de um trabalho de considerável envergadura, que apresenta múltiplos desafios. Jean-Michel Massa nos avisou que “[...] um trabalho de tal amplitude exige um esforço de síntese particularmente delicado, pois deve-se abarcar diversas culturas europeias”6. Dentre as dezenas de traduções feitas por Machado, encontramos nomes como Lamartine, Shakespeare, Heine, Schiller, Dante, Poe, La Fontaine entre os poetas, além, é claro, de outros nomes importantes como os romancistas Dickens e Hugo, ou dramaturgos como Molière e Racine. Mesmo que limitemos nosso escopo somente aos poetas, fica evidente o tamanho do arcabouço que se coloca diante de nós, e o quanto a empreitada intimida, exigindo cautela. Nos acréscimos finais que fez à conclusão de sua tese complementar Machado de Assis tradutor, Massa lembra que Nem antes nem depois de nossa pesquisa estudou-se Machado de Assis tradutor, nem se comparou os textos originais e as versões em português. Aqui e ali alguns estudos, mas geralmente eles retomam nosso trabalho acadêmico […]. O trabalho mais recente, de Eliane Ferreira (2004), está particularmente desconectado da realidade, visto que pretende estabelecer uma teoria da tradução elaborada por Machado de Assis. É exatamente o contrário que acontece. Ele teve práticas diferentes segundo os autores, segundo os textos, segundo o momento.7 6 7 MASSA, Jean-Michel. Machado de Assis tradutor. Belo Horizonte: Crisálidas, 2008, p. 13 Ibid., p. 99 19 Inscreve-se no escopo deste estudo não só ajudar a suprir a lacuna que ainda persiste na crítica da produção tradutória de Machado, mas contribuir com trabalho pioneiro de JeanMichel Massa, dando um passo a mais justamente ao tomar essas traduções como obras críticas de um texto-fonte e apresentá-las em cotejo com esses textos de onde partiram para revelar toda sua complexidade, com estudos críticos de ambos e avaliando em que medida o texto traduzido nos ajuda na nossa principal tarefa, que é delinear, com base no corpus estudado, o perfil do tradutor Machado de Assis e seu projeto de tradução. Veremos que se as práticas foram, como sugere Massa, em certa medida diferentes segundo os autores e textos, também é possível encontrar algo como um fio de Ariadne que une essas práticas e que revela o modus operandi do nosso poeta-tradutor. Entendemos que, para além do que foi apresentado na tese de doutorado de Eliane Ferreira, publicada em livro com o título Para traduzir o século XIX: Machado de Assis (2004), é necessário adotar a ideia de que as traduções de Machado de Assis são obra, e por isso em relevo para que possamos de fato conhecer quem foi e como se desenvolveu Machado de Assis enquanto poeta-tradutor. Esse é o motivo de não escolhermos um ou outro texto, ou os mais ou menos aclamados, mas todas as traduções de poesia que conseguimos encontrar, tanto as que foram incluídas em seus livros de poesia, mesmo que posteriormente rejeitadas pelo autor, quanto as que ficaram esquecidas nas páginas dos periódicos da época. Ao contrário de ser um tradutor subserviente ao texto que traduz, veremos que Machado de Assis se mostrou interessado, particularmente nos casos dos poemas, em manter vivos aqueles elementos que, para ele, fazem do texto literário uma obra de arte, frequentemente adotando caminhos bastante próprios. Pretendemos refletir, principalmente com os aportes teóricos de Henri Meschonnic e Antoine Berman, sobre sua preocupação em oferecer esquemas métricos, rítmicos, visuais e de rima nos poemas traduzidos que raramente refletem a forma como funcionam no texto-fonte, indicando que há uma preocupação do tradutor não só com a qualidade literária dos textos de sua lavra, mas principalmente com a necessidade de marcar sua diferença em relação ao texto-fonte. Tais atitudes apontam, inclusive, para um frequente distanciamento intencional do texto estrangeiro, o que, por sua vez, sugere uma tomada de posição política e ideológica na sua prática tradutória. Isso é algo que pudemos perceber a partir do momento em que começamos a nos colocar algumas perguntas que nos instigaram enquanto líamos e estudávamos as traduções de Machado: Por que aqueles autores e textos? Como Machado procurou resolver os problemas de metro, rima, versificação? Havia uma preocupação em manter as características do texto- 20 fonte? Ou o tradutor seguiu o caminho que achava mais conveniente conforme a ocasião? Quão consistente é o seu resultado no decorrer da sua carreira? Nem sempre foi possível encontrar todas as repostas a essas perguntas, mas as respostas que fomos encontrando aos poucos nos auxiliaram a vislumbrar um perfil do poeta-tradutor Machado de Assis. Jean-Michel Massa, na mesma entrevista concedida à Revista Teresa citada anteriormente, afirma que não havia teoria da tradução no século XIX8, o que não é de todo verdade. Talvez não como disciplina ou escola, ou como um sistema teórico pensado e exposto como tal, mas pensamento sobre a prática tradutória existe há séculos, e no século XIX também se pensou e se escreveu sobre a tradução. Henri Meschonnic (2010), por exemplo, embora reconheça que a teoria é apenas o acompanhamento reflexivo, que é precedido pela prática9, assevera de modo contundente: “[...] não há teoria da tradução sem sua história, nem história da tradução sem implicar aí a teoria”10. Considerando que toda prática tradutória pressupõe um conjunto de crenças por parte do tradutor, crenças essas limitadas pelo contexto sócio-histórico-cultural em que se vive, utilizando os resultados de nossa análise, se não uma teoria da tradução, poderemos demonstrar ao menos quais princípios teóricos pautavam a prática poético-tradutória de Machado de Assis. Com esse objetivo em mente, o corpus deste trabalho foi escolhido de acordo com os seguintes critérios: elegemos, primeiramente, os poemas traduzidos incluídos nos quatro livros de poesia de Machado de Assis: Crisálidas (1864), Falenas (1870), Americanas (1875) e Ocidentais, este último publicado somente nas Poesias completas (1901) porque são as traduções mais conhecidas e estabelecidas. Mesmo sabendo que Machado excluiu todas as traduções de Crisálidas e Americanas, enquanto de Falenas manteve somente os oito poemas da “Lira chinesa” e “A Elvira” quando reeditou seus 3 primeiros livros de poesia em Poesias completas (1901), entendemos que as peças excluídas representam uma importante parte de sua obra que não deve ser desconsiderada. A maior parte dessas traduções incluídas nos livros não era de trabalhos inéditos e, em alguns casos, passaram por reformulações antes de chegar à sua forma final em livro. Algumas dessas reformulações, particularmente as que apresentam modificações mais profundas, serão levadas em consideração em nossas análises. A outra parte do corpus inclui as traduções que não foram incluídas nos livros de poesia, num arco que se estende – considerando-se somente as traduções esparsas – de 1856 com “Minha Mãe”, publicada como uma imitação de um poema de William Cowper, ao “Prólogo 8 MASSA, 2005, p. 466 MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. XVII 10 MESCHONNIC, 2010, p. XLI 9 21 do Intermezzo”, de 1894. A maior parte desses textos esparsos foi identificada e apresentada por Jean-Michel Massa (2008) durante seu doutorado na década de 1970, relação depois ampliada por Eliane Ferreira (2004). Às listas apresentadas pelos pesquisadores acrescentamos mais quatro traduções, elevando o total de traduções esparsas a onze poemas. Escolhemos trabalhar com cada uma das traduções poéticas de Machado de Assis, incluindo os textos menores e atribuídos a ele com base na proposta de Itamar Even-Zohar de que não devemos confinar o estudo histórico dos sistemas literários às obras-primas, conforme veremos em mais detalhes no momento oportuno. Todas as informações acerca das traduções de que nos ocuparemos aqui, incluindo os textos que não foram identificados anteriormente como traduções, foram encontradas nas principais biografias de Machado de Assis, com especial destaque para os quatro volumes de Vida e obra de Machado de Assis (2008) de Raimundo Magalhães Jr., e nos levantamentos bibliográficos sobre a obra do autor, como a Bibliografia de Machado de Assis (1955) , de José Galante de Sousa e os Dispersos de Machado de Assis (1965), de Jean-Michel Massa. Em todos os casos, na medida do possível, confrontamos as informações encontradas com suas fontes primárias – os livros e periódicos da época – o que nos permitiu retificar algumas informações e acrescentar outras. Uma vez estabelecido o corpus, era preciso pensar numa forma de organizá-lo que atendesse ao nosso objetivo e que permitisse verificar de que características este projeto de tradução estava investido. A opção natural seria organizar e estudar as traduções cronologicamente, de modo a facilitar a observação dos caminhos tomados pelo escritor. Estabelecer uma cronologia inequívoca, contudo, não se mostrou uma tarefa simples, considerando que algumas traduções passaram por mais de uma versão em publicações diferentes, e algumas tiveram até cinco publicações que diferem, pouco ou muito, entre si. Vimo-nos diante de dois critérios mínimos que respeitassem aquela cronologia: a primeira opção seria considerar a data de composição – suposta ou informada pelo autor – ou da primeira publicação; a segunda seria considerar a data da última versão revisada pelo tradutor. Como nossas análises revelaram que essas alterações nem sempre eram meras correções, mas mudanças que alteram o teor do texto em diversos graus e sentidos, concluímos que as últimas revisões de cada texto representam um estágio posterior de seu amadurecimento enquanto obra que precisa ser levado em consideração. Muito embora reconheçamos que um trabalho de genética textual seria particularmente interessante, temíamos extrapolar nosso espoco e, por esta razão, não nos aprofundamos nesse ponto. Se é verdade que essas alterações textuais são de pouca relevância para a maioria das traduções, incluindo todas as traduções esparsas, já que tiveram uma única publicação e versão, em alguns casos – que se limitam às traduções incluídas 22 nos livros de poesia – as diferenças textuais e temporais são tão profundas que não podem ser ignoradas. “Dante”, por exemplo, tradução do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia, é publicada pela primeira vez em 1874, mas passa por diversas modificações quando é revisada para ser incluída nas Ocidentais (1901), o que nos levou a considerar a data da inclusão em livro. A adoção deste critério nos levou a estudar as traduções de Crisálidas, Falenas e a única de Americanas em conjunto, tomando como data final de suas respectivas versões a data da publicação do livro. Logo, as traduções de Crisálidas e Falenas são estudadas na ordem em que foram organizadas pelo autor em seus respectivos livros. Isso não se dá com as traduções de Ocidentais porque a data das últimas versões de duas das quatro traduções – “To be or not to be” e “O corvo” – é anterior à publicação do volume. Evidentemente, um problema que surge de imediato para a análise e confronto das traduções é a edição que servirá de base para a análise, tanto para os textos estrangeiros quanto os de Machado de Assis. Para as traduções que foram incluídas em Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais trabalhamos principalmente com o texto estabelecido pela edição crítica preparada pela Comissão Machado de Assis, sempre cotejando-o com outras edições e com as primeiras publicações para nos protegermos ao máximo de possíveis falhas editoriais; para os demais textos – aqueles que não entraram nos quatro livros de poesia de Machado de Assis – utilizamos, quando possível, a edição organizada e anotada por Rutzkaya Queiroz dos Reis, A poesia completa: edição anotada; recepção crítica, que inclui poemas dispersos. Alguns textos que analisamos não foram incluídos nessas edições e, nesses casos, nos baseamos nos textos da primeira publicação em periódicos da época ou da única publicação onde o texto foi localizado quando não foi possível ter acesso à fonte primária da publicação daqueles textos. Quanto aos textos-fonte estrangeiros utilizados por Machado de Assis para fazer suas traduções, procuramos as edições mais próximas temporalmente das que ele poderia ter utilizado, quando possível, confrontando os textos-fonte em mais de uma edição sempre que estivesse ao nosso alcance, na tentativa de minimizarmos os potenciais problemas que poderiam ser causados por divergências textuais em edições distintas. Embora reconheçamos que há edições contemporâneas que fazem um excelente trabalho na organização e apresentação de alguns dos textos e autores com que trabalharemos, acreditamos que a escolha por uma edição mais temporalmente próxima da utilizada por Machado de Assis poderia apresentar características, ou até mesmo desvios, ausentes em edições mais contemporâneas e que isso poderia impactar na análise que faríamos das traduções. Para dar delimitações claras ao nosso objeto de pesquisa, decidimos trabalhar exclusivamente com as traduções interlinguais, conforme o conceito desenvolvido por Roman 23 Jakobson: no ensaio “Aspectos linguísticos da tradução” (1965), o teórico define a tradução interlingual, ou “tradução propriamente dita”, como a “[...] interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua” 11. Todo o trabalho analítico foi inspirado no trajeto de análise proposto no “esboço de método” de Antoine Berman em Pour une critique des traductions: John Donne, de que faremos uma breve exposição no capítulo seguinte desta tese. De acordo com a proposta bermaniana, estar armado de obras de cunho crítico para entender as traduções e seus textos-fonte é imprescindível. Berman sugere, por exemplo, que a análise de uma tradução seja precedida de leituras e releituras da tradução e do texto-fonte, leituras que deveriam ser também informadas por aparatos críticos e teóricos, para que depois seja possível proceder a uma crítica compreensiva, na tentativa de recompor a posição tradutória, o horizonte e o projeto dentro do qual o tradutor trabalhou. Trata-se de observar o modus operandi do tradutor enquanto traduz, partir do pressuposto do criticado, procurando compreender seus a priori e, a partir disso, emitir um julgamento. Somente então chegaríamos ao nosso objetivo, que é obter dados para a construção de um perfil de Machado de Assis enquanto tradutor de poesia12. Logo, também será necessário consultar obras de cunho crítico referentes aos textosfonte, quando houver. Somente após uma leitura minuciosa daqueles textos e com a compreensão adequada deles seria possível avaliar os caminhos escolhidos por Machado de Assis, motivo pelo qual as análises das traduções serão precedidas por breves estudos críticos dos textos-fonte. Por fim, ainda de acordo com a proposta bermaniana, comparar as escolhas de Machado com a de outros tradutores que se debruçaram sobre os mesmos textos pode se mostrar consideravelmente benéfico no momento de delinear as facetas do nosso objeto de estudo. Quanto à fortuna crítica machadiana para dar suporte à nossa análise – material também previsto no trajeto de análise proposto por Berman –, é sabido que, em relação à extensa fortuna crítica de sua obra ficcional, pouca atenção tem sido dada à poesia de Machado de Assis. Cláudio Murilo Leal, no ensaio “The Poetry of Machado de Assis” publicado no volume The author as plagiarist: the case of Machado de Assis (2006) fornece alguns caminhos para o estudo da obra poética de Machado: sua tese de doutorado, também intitulada “A poesia de Machado de Assis”; The poetry of Machado de Assis (1984), de L. C. Ishimatsu, obra ainda sem tradução no Brasil, publicada na Espanha e segundo ele uma das mais importantes 11 JAKOBSON, Roman. “Aspectos linguísticos da tradução”. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Editora Culturix, 1965, p. 63-72. 12 BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris : Éditions Gallimard, 1995, p. 6497. 24 contribuições para o estudo da poesia machadiana; e o trabalho da pesquisadora Flávia Vieira da Silva do Amparo, cujas pesquisas de mestrado e doutorado se voltam para a poesia de Machado13. Esses serão os principais trabalhos de crítica à poesia de Machado que darão apoio ao nosso estudo. À margem, teremos ensaios e resenhas, contemporâneos nossos e de Machado de Assis, que também nos auxiliarão. As pesquisas de Leal, de Ishimatsu e Amparo serão particularmente úteis para a compreensão da poesia machadiana como o todo de que suas traduções fazem parte. Uma vez que neste caso as traduções ajudam a compor uma coletânea de poemas, parece necessário supor que a compreensão do todo ajudará a compreender aquela parte. Antes de adentrarmos os poemas traduzidos, fizemos um levantamento – forçosamente breve, é verdade – do público leitor e da tradução de poesia no século XIX no Brasil objetivando atender a uma das propostas do trajeto de análise bermaniano, que é conhecer o horizonte do tradutor, e situar um pouco da formação do público leitor que primeiro recepcionou aquelas traduções, assunto de nosso terceiro capítulo. Lá procuramos ver quem mais traduziu dentre os contemporâneos de Machado de Assis, incluindo também aqueles que vieram um pouco antes e um pouco depois dele. Não só quem traduziu, mas o que traduziram também nos interessa e nos faz perguntar: que poetas foram traduzidos? Quais poemas foram traduzidos? Como essas traduções são apresentadas? Os outros poetas também publicaram traduções em meio às suas poesias? Traduziram mais ou menos do que Machado? Os gostos se assemelham? Esses poetas expressaram alguma opinião a respeito das traduções que realizaram ou teorizaram, ainda que de forma tateante, a prática da tradução? Tais são as perguntas que fizemos durante o levantamento que apresentamos. No capítulo seguinte, “Machado de Assis e a tradução: das primeiras pesquisas à posição da tradução na poética machadiana”, ajustaremos nosso foco levantando em conta o que já foi estudado a respeito da relação de Machado de Assis com a prática tradutória em geral, seja ela na poesia, prosa ou teatro. Com o objetivo de reconhecer os trabalhos que precederam o nosso e dar a eles o devido crédito, apresentamos o que já foi sugerido pela tese complementar de Massa, Machado de Assis tradutor, que ainda é a melhor fonte que temos sobre o assunto, por Eliane Ferreira em Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, pela nossa dissertação de mestrado, Machado de Assis, tradutor de Hugo e por publicações mais recentes como Machado de Assis: tradutor e traduzido (2012), organizado por Andréia Guerini, Luana Ferreira de 13 LEAL, Cláudio Murilo. “The poetry of Machado de Assis”. In: ROCHA, João Cézar de Castro (Ed.). The author as plagiarist: the case of Machado de Assis. New Bedford: University of Massachusetts Dartmouth, 2006, p. 585586. 25 Freitas e Walter Carlos Costa. Buscamos também textos do próprio Machado, como os ensaios, correspondências e pareceres que emitiu quando atuou no Conservatório Dramático Brasileiro para recuperar, de primeira mão, indícios da opinião que tinha do trabalho tradutório e da literatura como um todo, informações nos auxiliarão na tarefa de delinear seu perfil. Por fim, apresentamos a proposta de ver a tradução como fundamental para a formação do escritor, partindo do pressuposto de que a tradução é um espaço privilegiado dentro do qual o tradutorescritor pode examinar as engrenagens que fazem funcionar o texto traduzido em suas mais íntimas minúcias, e que funcionaria como um sistema próprio dentro do qual a tradução ocuparia um lugar similar àquele ocupado no caso do sistema literário nacional, o que fizemos com base nas formulações de João Cézar de Castro Rocha em Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rocha propõe ler a obra de Machado de Assis como um sistema em si, de dinâmica própria e, portanto, a lógica de funcionamento desse sistema deveria ser investigada em seus próprios termos. Rocha também sugere que Machado opera um resgate da técnica da aemulatio a partir da reação que teve ao romance de Eça de Queiroz. É a partir do resgate da aemulatio, ou mesmo anterior a esse resgate, que a tradução serve de laboratório de observação dos modelos imitados e, posteriormente, emulados. O que fazemos nos capítulos seguintes é observar como o “laboratório” funcionava, termo que emprestamos da contribuição de Meschonnic: [...] a história do traduzir em suas transformações recentes mostra que as traduções, e não somente aquelas de obras teatrais, se fazem mais a mais em função de uma ritmicidade e da prosódia dos textos. Por isso a tradução aparece, e Ezra Pound foi um dos primeiros a ver, como um laboratório da literatura da mesma maneira que as obras ditas originais.”14 Perpassa o nosso entendimento, portanto, que a prática da tradução machadiana seja vista como uma atividade laboratorial, um lugar de experimentações, de testes e ensaios, um lugar de tentativa e erro, um trabalho de palimpsesto, como é a atividade dita autoral. O quinto capítulo aborda as quatro primeiras traduções poéticas publicadas por Machado de Assis entre os anos de 1856 e 1863 e que não foram escolhidas para fazer parte de Crisálidas, tendo somente uma publicação durante a vida do poeta-tradutor. São textos de natureza bem diversa, representativos principalmente da tradição literária francesa. Temos “Minha Mãe”, imitação de um poema do poeta inglês William Cowper feita, provavelmente, via francês; a primeira tradução feita a partir da língua original do poema, “A uma donzela árabe”, de Lamartine; “Souvenir d’Exil”, um poema de ocasião, composto e traduzido durante uma festa e cujo valor reside principalmente na prova que é da excelente proficiência em francês 14 MESCHONNIC, 2010, p. 63 26 atingida por Machado de Assis; e “O casamento do diabo”, que rendeu a Machado de Assis acusações de esnobismo porque o texto foi publicado como uma imitação do alemão quando, na verdade, o original é francês. O sexto capítulo é dedicado exclusivamente às traduções de Crisálidas. São seis traduções que representam bem o gosto romântico de então. Há textos de Alfred de Musset, André Chénier, Mme. de Girardin, Heinrich Heine, Alexandre Dumas Filho e do poeta polonês Adam Mickiewicz, que podem ser lidos como uma amostra do gosto do nosso poeta à época. Ao contrário de algumas das traduções do capítulo anterior, feitas a pedido, estas são produtos do interesse do poeta pelos autores que traduz, retrato de um gosto mais refinado em relação às suas primeiras traduções, anteriores a 1864. Nossos estudos também nos permitiram sugerir que Machado de Assis, muito provavelmente, foi o primeiro tradutor do polonês Adam Mickiewicz entre nós. O sétimo capítulo estuda três traduções publicadas após Crisálidas, mas que não foram escolhidas para fazer parte de Falenas. Duas dessas traduções não haviam sido listadas anteriormente dentre as traduções de Machado de Assis: “O rei dos ôlmos”, atribuída a Machado de Assis e feita a partir de uma balada de Goethe, provavelmente a partir do alemão e publicada anonimamente; e “Lua da estiva noite”, traduzida diretamente do poema em inglês do norte-americano Henry Wadsworth Longfellow e que vários estudos críticos trataram como composição de Machado de Assis de uma letra para uma música de Artur Napoleão. A última peça do conjunto, “O primeiro beijo”, é a única tradução poética feita a partir do espanhol, sugerindo não só conhecimento do idioma, mas também o interesse em difundir a obra do poeta chileno Guillermo Blest Gana. No oitavo capítulo estudaremos as traduções de Falenas. Novamente as preferências de Machado destacam autores que sugerem, de um lado, um gosto cada vez mais refinado, inclusive afastando-se mais dos contemporâneos – há traduções de William Shakespeare e Friedrich Schiller – e caminhando na direção de uma poesia de matizes pré-parnasianos, algo sugerido pela inclusão da “Lira Chinesa”, feita a partir do Livre de Jade de Judith Gautier. O gosto romântico, contudo, ainda está lá, nas traduções de “Versos a Ema” de Dumas Filho, mais uma vez, e “À Elvira”, de Lamartine, também incluída em Lamartineanas – poesias de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros (1869). O nono capítulo trata da única tradução sabidamente interlingual de Americanas: “Cantiga do rosto branco”, poema criado a partir de uma versão em prosa francesa escrita por Chateaubriand e reimaginada poeticamente por Machado de Assis, a “Chanson de la chair 27 blanche”, que por sua vez teria sido recolhida a partir de relatos no idioma muskogee, de nativos norte-americanos. O décimo capítulo será dedicado às últimas traduções de Machado. Das oito peças que estudaremos, duas foram publicadas originalmente entre Falenas e Americanas: “To be or not to be”, de 1873, e “Dante”, que foi publicada pela primeira vez em 1874 sob outro título. Contudo, essas peças sofreram alterações, em 1878 e 1901, respectivamente, motivo que nos levou a estudá-las neste capítulo. Logo, as primeiras traduções que estudaremos são textos que não haviam sido listados anteriormente como traduções de Machado de Assis: “O coração”, tradução anônima do poema alemão “Das Herz” de dezembro de 1875 e que é atribuída a Machado de Assis por Raimundo Magalhães Júnior; e “Inocência”, de que se tem notícia, a única vez em que Machado de Assis transporta um poema em português para uma língua estrangeira – o francês. Esses dois textos serão seguidos de estudos de “To be or not to be” e de outra tradução do alemão, “Seis dias em Cuiabá”, feita a pedido de Capistrano de Abreu. Na sequência está a tradução mais comentada e polêmica de Machado de Assis, “O corvo”, que estudaremos adotando um viés diferente das demais. Temos ainda o “Prólogo do Intermezzo”, de Heine, também traduzido provavelmente a partir do alemão – reforçando a tese de que o autor possuía algum conhecimento do idioma e, a seguir, “Dante” que, além de ter causado certo espanto pela escolha do canto que foi traduzido, é uma tradução bastante peculiar, diferente de muito do que Machado de Assis fizera antes em tradução, considerando a notável atenção que dá não só ao conteúdo, mas à forma, levando-nos até mesmo a aproximações com a prática tradutória dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. A última tradução do conjunto é “Os animais iscados da peste”, publicada originalmente em 1886, mas revisada e alterada antes de ser incluída nas Ocidentais. Encerrada a etapa da análise das traduções, o décimo primeiro capítulo será dedicado a uma discussão dos resultados encontrados durante o comentário das traduções, buscando compreender a atuação de Machado de Assis enquanto tradutor de poesia e, por fim, traçar um “retrato” ou um “perfil” do poeta-tradutor Machado de Assis que esteja de acordo com as análises que antecederam. Por fim, leremos os resultados obtidos, e os conceitos de tradução que se delineiam a partir deles, na tentativa de se obter uma visão propriamente machadiana de tradução poética que se desenha a partir do corpus traduzido. 28 2. Do método: a crítica de tradução de Antoine Berman e a poética da tradução de Henri Meschonnic em Pour une critique des traductions Antes de entrarmos nos pormenores da poesia traduzida por Machado de Assis, precisamos esclarecer alguns pontos que são cruciais em nossa pesquisa. Um deles tem a ver com a maneira como as traduções serão estudadas, ou com a maneira como nos posicionaremos diante dos textos. De forma bastante simplificada, diríamos que a crítica de tradução de poesia pode adotar, por exemplo, as seguintes posições analíticas: o crítico pode tomar o texto-fonte como seu parâmetro, e procurar determinar o quanto a tradução é capaz de conceder acesso ao texto a um leitor que não conhece o texto estrangeiro ou que não poderia lê-lo em seu idioma original, ou seja, o quanto a tradução leva o texto ao leitor, caso se assuma etnocêntrica, ou o leitor ao texto, caso se assuma estrangeirizadora; num escopo um pouco mais amplo, o crítico poderia estudar um conjunto de textos traduzidos de um determinado autor e verificar, a partir daquele corpus traduzido, a maneira como aquele autor estrangeiro está representado na línguacultura receptora. No primeiro caso, privilegia-se a obra original; no segundo, seu autor. Nós escolhemos uma terceira via, pois nosso interesse é outro: o tradutor. As vias de acesso ao tradutor passam, é claro, pelas obras de partida e de chegada e pela sua relação com o primeiro autor daquela obra, mas o nosso destino sempre será o tradutor, e suas traduções serão estudadas como obras suas que estão carregadas de uma subjetividade também sua. Neste ponto, é importante ressaltar que estamos nos alinhando com Meschonnic, que entende a tradução de um texto (poético) como uma operação translinguística equivalente à operação de elaboração de um texto, e que, portanto, “[...] não pode ser teorizada nem pela linguística do enunciado, nem pela poética formal de Jakobson”15. Também estamos nos colocando de acordo com a proposta de que “[...] [t]raduzir um texto situa-se na prática e na teoria dos textos, ambas, já por si, situadas na teoria translinguística da enunciação”16, o que significa dizer que o ato de traduzir um texto não é uma operação mecânica, mas uma atividade pensante, que pensa o fazer enquanto o faz. Trabalharemos, por fim, dentro da definição de tradução postulada por Meschonnic (1972) e pensaremos a prática tradutória machadiana a partir dela e dos seus desdobramentos: A tradução já não é definida como transporte do texto de partida para a literatura de chegada ou, inversamente, transporte do leitor de chegada para o texto de partida (movimento duplo, que repousa no dualismo do sentido e da forma e caracteriza empiricamente a maior parte das traduções) mas sim como elaboração na língua, 15 16 MESCHONNIC, 2010, p. 80 Ibid. 29 descentrar, relação interpoética entre valor e significação, estruturação de um sujeito e história (que postulados formais mantinham separados) e já não sentido. Esta proposição postula que o texto trabalha a língua como uma epistemologia em ato de um saber indissociável desta prática, e que, fora desta prática, não é mais este saber, mas sim um significado17. Trata-se, portanto, de lidar com os textos de partida e de chegada de forma que escapemos à lógica da secundadidade, ou mesmo da defectividade, do texto traduzido para nos aproximarmos do texto traduzido como obra que se inscreve numa outra poética. Para guiar nosso caminho até aquele destino precisávamos de parâmetros dentro dos quais pudéssemos trabalhar e que facilitassem o acesso ao tradutor. Necessitávamos, sobretudo, de uma maneira de abordar aqueles textos que nos permitisse enxergá-los e estudá-los em seus próprios termos, evitando apriorismos quanto ao que se espera de uma tradução literária, de forma que pudéssemos, enfim, encontrar o poeta-tradutor Machado de Assis em toda sua complexidade, seu modo de trabalhar, seu modo de se relacionar com esses textos, sua maneira de incorporá-los à sua obra quando lhe conviesse. O que encontramos em Pour une critique des traductions: John Donne (1995), do tradutor, crítico e teórico de tradução francês Antoine Berman, adequa-se bem ao nosso propósito. Na primeira parte do seu livro, Berman introduz um “Projeto de uma crítica ‘produtiva’” em que apresenta alguns conceitos de crítica da tradução, os diferentes gêneros de análise das traduções, o esboço de um método e uma proposta de como fazer a análise de traduções, enquanto na segunda parte coloca em prática este seu projeto estudando traduções de um poema de John Donne (1571-1631). Estamos, portanto, particularmente interessados na primeira parte do livro, onde Berman propõe que se deve fazer crítica de tradução com base no projeto tradutório, implícito ou explícito, consciente ou não, do indivíduo que se propõe a traduzir um texto literário. Berman baseia-se em Meschonnic e na escola de Tel-Aviv, mas elabora uma “metodologia” e conceitos próprios tentando corresponder ao conceito benjaminiano de crítica de tradução, ressalvando que mesmo seu método arquitetônico pode se modular de acordo com as necessidades particulares de cada crítico. Não se trata propriamente, segundo ele, de um método – embora tenhamos empregado o termo no título deste capítulo, fizemo-lo com intenção puramente didática, de ao leitor uma noção clara do nosso modo de trabalhar os textos daqui em diante –, mas de um trajeto de análise18, do qual faremos uma breve exposição a seguir porque seguiremos, conforme nossas necessidades, diversas etapas 17 MESCHONNIC, Henri. “Propostas para uma poética da tradução”. In: LADMIRAL, Jean-René. A tradução e seus problemas. Lisboa: Edições 70, 1972, p. 85 18 BERMAN, 1995, p. 64, grifo nosso. 30 desse trajeto nos capítulos seguintes, particularmente naqueles em que nos debruçaremos sobre os poemas traduzidos por Machado de Assis. Primeiramente, Berman lembra que desde o Iluminismo, a crítica é o trabalho do negativo, que nada mais é do que a outra face do trabalho do positivo19. Contudo, continua Berman, a crítica é essencialmente positiva e esta positividade é, como o próprio teórico destaca, sua verdade, ou seja, uma crítica negativa não é uma verdadeira crítica. A crítica das obras de linguagem, continua Berman, é claramente necessária – ênfase do autor – à obra, entendendo que esta necessidade parte de um apriorismo ligado às próprias obras, ou seja, as obras pedem e autorizam a crítica porque têm necessidade dela. As obras, para Berman, precisam da crítica para se comunicar, se manifestar se realizar e, até mesmo, para se perpetuar. Berman utiliza ainda a relação metafórica da crítica com o espelho do qual as obras precisam para olhar para si mesmas. É por isso que, por um lado, como escreve Berman, a crítica “[...] afasta, obscurece, sufoca, e no seu extremo mata as obras (pensamos naqueles estudantes que leem apenas livros sobre o livro, e nunca o livro em si). Mas seja qual for o perigo – e ele é inevitável – a crítica está ontologicamente ligada à obra”.20 Por conseguinte, ao entender que a tradução é uma das muitas formas de crítica das obras literárias, Berman chega à conclusão de que “[...] [a] crítica de uma tradução é portanto aquela de um texto que, ele mesmo, resulta de um trabalho de ordem crítica”21. A crítica das traduções é, portanto, uma metacrítica, visto que é crítica de um trabalho ele mesmo crítico. Então, retomando a metáfora bermaniana, diríamos que, assim como as obras, as traduções também têm necessidade daquele espelho metacrítico através do qual poderão se reconhecer como obras. Berman encerra suas considerações a respeito do conceito de crítica de traduções com uma proposta que nos é cara e que permeará todo nosso estudo das traduções machadianas: [...] uma tradução não tem por objetivo, para além de ‘verter’ o original ou ser o seu “duplo” (confirmando, assim, sua secundariedade), se tornar, ser também uma obra? Uma obra de pleno direito? Paradoxalmente, esta última visada, alcançar a autonomia, a durabilidade de uma obra, não contradiz a primeira, reforça-a. Uma vez que ela atinja esta dupla visada, a tradução se torna um “novo original”22. 19 BERMAN, 1995, p. 38 Ibid., p. 39, grifos do autor. No original: “éloigne, obscurcit, étouffe, à la limite tue les œuvres (on pense à ces étudiants qui ne lisent que des ouvrages sur tel livre, et jamais celui-ci). Mais quoi qu’il en soit de ce péril – et il est inévitable – la critique est ontologiquement liée à l’œuvre”. 21 Ibid., p. 41, grifos do autor. No original: “La critique d’une traduction est donc celle d’un texte qui, lui-même, résulte d’un travail d’ordre critique”. 22 Ibid., p. 42. No original: “une traduction ne vise-t-elle pas, non seulement à ‘rendre’ l’original, à en être le ‘double’ (confirmant ainsi sa secondarité), mais à devenir, à être aussi une œuvre? Une œuvre de plein droit? Paradoxalement, cette dernière visée, atteindre l’autonomie, la durabilité d’une œuvre, ne contredit pas la première, elle la renforce. Lorsqu’elle atteint cette double visée, une traduction deviant un ‘nouvel original’”. 20 31 Esta última visada de que fala Berman – a tradução tornar-se obra de pleno direito, autônoma, durável e, finalmente, um novo original – será o elemento central que buscaremos em nossas análises, mas com a diferença de que entenderemos os afastamentos em relação ao texto-fonte como movimentos necessários para se distanciar da lógica do duplo, da secundariedade em direção à autonomia, ou desdobramento e pervivência daquele texto-fonte em outra línguacultura. Do mesmo modo, reconhecendo a natureza e a historicidade de cada um dos textos que analisaremos, tomaremos o cuidado de não pressupor que poemas como “Souvenirs d’Exil”, uma tradução de ocasião, uma diversão entre amigos, ou “Seis dias em Cuiabá”, e poemas como “To be or not to be” ou “O corvo” reverberaram de igual maneira na obra do escritor. Contudo, partiremos aqui da premissa de que todas as traduções de Machado de Assis são obra de pleno direito e daremos a elas aquele espelho metacrítico de que falamos antes, um espelho que tentará ser tão compreensivo e produtivo quanto possível. A partir das análises que diz encontrar mais comumente, Berman conclui que estão todas caracterizadas por sua heterogeneidade, tendo em comum a ausência de forma e de metodologia próprias23, exceção que faz às análises de Meschonnic e dos tradutólogos ligados à Escola de Tel-Aviv, das quais apresenta estudos mais detidos e a partir das quais parece elaborar o seu “esboço de método”, que é o que mais particularmente nos interessa e do qual faremos um breve resumo a seguir, já que neste esboço estão os procedimentos que nos guiarão na direção da resposta à pergunta que postulamos acima. Na primeira etapa do esboço de seu método, Berman propõe que o trajeto de estudo crítico seja iniciado por leituras e releituras da tradução, deixando o texto-fonte completamente de lado. O objetivo seria de verificar se o texto está bem escrito, atendendo às normas e expectativas da língua de chegada24. Evidentemente, neste momento o olhar subjetivo ou até mesmo parcial do crítico se fará presente. Cabe ao crítico tentar manter-se imparcial na medida do possível, no que será auxiliado pelas etapas seguintes do trajeto. Em seguida, Berman propõe verificar a existência do que chama de “zonas textuais problemáticas”, que são aquelas onde afloram a defectividade do texto traduzido, bem como as “zonas textuais miraculosas”, ou passagens em que o tradutor visivelmente logrou êxito na sua tarefa. Para melhor definir o que chama de “zonas miraculosas”, Berman tenta nos alertar para o fato de que, nestes casos, estaríamos 23 24 BERMAN, 1995, p. 45 Ibid., p. 65 32 […] em presença não somente de passagens de visível sucesso, mas de uma escrita que é uma escritura-de-tradução, uma escritura que nenhum escritor francês teria conseguido produzir, uma escritura do estrangeiro harmoniosamente trazida para o francês, sem nenhum choque (ou, se há choque, um choque benéfico).25 Ou seja, o grau de escritura – para utilizar um termo caro à Barthes – na tradução seria tal que seria fácil até esquecermos que se trata de uma tradução. Estaríamos, portanto, diante de algo que não nos causaria nenhum choque, nenhum estranhamento. Portanto, os trechos que escolhemos para comentar as traduções foram pensados a partir desse conceito de “zona textual” bermaniana. Todavia, é necessário abrir um parêntese aqui para matizar este conceito: Berman posiciona-se abertamente contra o que chama de traduções “etnocêntricas”, cujo exemplo máximo talvez sejam as “belles infidèles” francesas, ou as traduções que apagam as marcas do estrangeiro em favor de uma domesticação da experiência do estranhamento. Porém Berman fala de uma língua-cultura historicamente hegemônica, central, e seu posicionamento faz sentido se olhado a partir do lugar que ele ocupa. Já o lugar que o nosso poeta-tradutor ocupou era diferente, praticamente oposto. O que para Berman seria traduzir de maneira etnocêntrica ou domesticadora, aqui se tornará canibalizadora ou antropofágica, uma estratégia de reafirmação da nossa língua-cultura frente ao estrangeiro. Portanto, as nossas “zonas textuais miraculosas” serão aquelas em que a voz apropriadora do tradutor mais se faz presente, e que podem aparecer mais ou menos – ou não aparecer de todo – nesta ou naquela tradução. O passo seguinte pelo trajeto de Berman é fazer as leituras do texto-fonte. Deve-se, neste caso, deixar de lado a tradução, mas manter em mente as tais zonas textuais problemáticas e miraculosas, para que nos preparemos para a confrontação. Agora, caberá fazer uma pré-análise textual, que implicará no “[...] mapeamento de todos os traços estilísticos, quaisquer que sejam, que individualizam a escrita e a língua do original e fazem delas uma rede de correlações sistemáticas”26, ou seja, partir em busca de formas frásticas, formas de encadeamento de proposições, empregos de adjetivos, advérbios, tempos verbais, preposições, etc. palavras recorrentes e palavras-chave. É, de fato, um estudo estilístico da obra e, evidentemente, é preciso recorrer a materiais de apoio, leituras colaterais, outras obras do mesmo autor, obras sobre o autor, sua época etc.27. É isso que, antes de analisar cada um dos poemas-traduções de Machado de Assis, buscaremos na crítica material de apoio a respeito da obra traduzida e 25 BERMAN, 1995, p. 66. No original: “en présence non seulement de passages visiblement achevés, mais d’une écriture qui est une écriture-de-traduction, une écriture qu'aucun écrivain français n’aurait pu écrire, une écriture d'étranger harmonieusement passée en français, sans heurt aucun (ou, s'il y a heurt, un heurt bénéfique)”. 26 Ibid., p. 67. No original: “repérage de tous les traits stylistiques, quels qu’ils soient, qui individuent l’écriture et la langue de l'original et en font un réseau de corrélations systématiques”. 27 Ibid., p. 68 33 apresentaremos uma breve leitura dela, ressaltando seus principais traços estilísticos. Feito este trabalho de pré-análise, com seleção de exemplos estilísticos pertinentes e significativos no original, é chegado o momento de partir em busca do tradutor. Para justificar este movimento, Berman afirma: “Ir ao tradutor”, eis um ponto de virada metodológico ainda mais essencial pois, como vimos anteriormente, uma das tarefas da hermenêutica do traduzir é ter em consideração o sujeito que traduz. Assim, a pergunta quem é o tradutor? deve estar firmemente confrontada com uma tradução.28 Assim, importa saber de quais línguas traduz, qual seu relacionamento com essas línguas, quais obras traduziu, quais são seus domínios linguísticos e literários, se escreveu a respeito de seu trabalho, seus princípios e sobre a tradução em geral. Este foi o trabalho que fizemos nos primeiros capítulos desta tese, em que buscamos conhecer e apresentar não só o que e como era a tradução poética no período em que Machado de Assis traduziu, mas também a sua própria relação com culturas estrangeiras e a tradução, a partir das pesquisas que nos antecederam. Todavia, Berman faz uma ressalva: tudo o que um tradutor pode dizer a respeito do seu trabalho só se realiza na tradução. É exatamente por isso que a pergunta “quem é o tradutor?” deve ser confrontada com o seu trabalho. Seria leviano, ou no mínimo insuficiente, supor conhecer um tradutor somente pelo que ele disse a respeito do seu trabalho ou da tradução em geral, assim como também seria temerário ignorar esses dados. É igualmente necessário conhecer o que Berman chama de posição tradutória, ou seja, compromisso entre a maneira como o tradutor percebe a pulsão de traduzir, saber por que ele traduz, o que o levou à tarefa. No entanto, esta é uma posição que só poderia ser reconstituída através das próprias traduções, onde a pulsão se realiza, e que a expressam implicitamente29. Particularmente no caso de Machado de Assis, que nos deixou tão poucos e tão breves testemunhos a respeito do seu pensamento sobre a tradução, torna-se imperativo estudar o produto de seu trabalho para que se possa, de fato, dar corpo a esta lacuna na crítica machadiana. De tal modo, chegaremos a uma teoria do sujeito tradutor, conhecendo suas posições tradutória, linguística e de escrita, ou seja, chegaremos ao conceito de tradução do poetatradutor Machado de Assis. Feito este trabalho, também estaríamos em condições de identificar um possível projeto de tradução que, segundo Berman, “[...] define a maneira como, de um 28 BERMAN, 1995, p. 73, grifos do autor. No original: “‘Aller au traducteur’, c'est là un tournant méthodologique d'autant plus essentiel que, comme nous l'avons vu plus haut, l'une des tâches d'une herméneutique du traduire est la prise en vue du sujet traduisant. Ainsi la question qui est le traducteur? doit être fermement posée face à une traduction”. 29 Ibid., p. 75 34 lado, o tradutor vai realizar a translation literária e, de outro, assumir a tradução em si, escolher um ‘modo’ de tradução, uma ‘maneira de traduzir’”30. Neste contexto, a tradução torna-se a realização de um projeto, assim como suas falhas são também imputáveis àquele mesmo projeto. Para melhor conhecer e avaliar este projeto, precisamos estar a par também do que Berman chama de “horizonte do tradutor”, ou “o conjunto de parâmetros linguísticos, literários, culturais e históricos que ‘determinam’ o sentir, o agir e o pensar de um tradutor”31. Berman entende que, uma vez que o tradutor é limitado pelo seu arredor, pelos ares que respira naquele momento, pelo conhecimento que se produziu até então, de alguma forma isso estará refletido no seu trabalho de tradução. Meschonnic, por exemplo, sugere que “[...] [t]raduzir é histórico, ainda que em outro sentido. No sentido em que os procedimentos mudam com o tempo, segundo um laço estreito com a coisa a traduzir”32. Por isso não se pode pretender que as traduções de Machado de Assis atendam ao gosto de alguns teóricos ou críticos contemporâneos do traduzir. É preciso apreciá-las na historicidade em que estão inscritas. Cabe ao crítico, portanto, estar a par não só da biografia do tradutor, da sua formação, como da época em que viveu, incluindo aí a vida literária da época, as correntes estéticas em voga e as condições históricas da produção do seu trabalho. Esta etapa do trajeto proposto por Berman explica a nossa escolha por apresentar um estudo panorâmico da prática da tradução no século XIX, bem como o motivo de pincelarmos diversos dados biográficos no decorrer de nossas análises. Cumpria aquela etapa, estaríamos em condições de partir para o confronto dos textos. Berman considera que as primeiras traduções de uma determinada obra são “defeituosas”, daí, se possível, deveríamos buscar comparar o texto-alvo também com outras traduções33. Como se verá, estivemos atentos a esta proposta na medida do possível, cotejando as traduções de Machado com a de outros tradutores, principalmente tradutores contemporâneos a ele, quando encontramos tais traduções e percebemos que o cotejo poderia ser proveitoso. Mas se há casos em que Machado de Assis traduziu textos que são canônicos, grandes clássicos da literatura mundial, também há traduções de textos obscuros de autores que são hoje pouco ou nada conhecidos. Esta confrontação seria feita de modo quádruplo, envolvendo a confrontação de 30 BERMAN, 1995, p. 76, grifos do autor. No original: “définit la manière dont, d'une part, le traducteur va accomplir la translation littéraire, d'autre part, assumer la traduction même, choisir un ‘mode’ de traduction, une ‘manière de traduire’”. 31 Ibid., p. 79. No original: “l’ensemble des paramètres langagiers, littéraires, culturels et historiques qui ‘déterminent’ le sentir, l’agir et le penser d’un traducteur”. 32 MESCHONNIC, 2010, p. XLII 33 BERMAN, 1995, p. 84 35 elementos e passagens do original e tradução, uma confrontação inversa das “zonas textuais”, confrontar com outras traduções e, por fim, confrontar a tradução com o possível projeto do tradutor34. Estes modos de confrontação também deveriam preocupar-se com questões relativas ao estilo, já que, “[...] enquanto trabalho de escritura, o confronto deve enfrentar o problema de sua comunicabilidade, ou seja, de sua legibilidade”35. Berman propõe que este movimento de análise deve ser rico, transparente e aberto a uma pluralidade de questões, e o texto do crítico deve ser marcado por clareza de exposição e reflexividade, deve pensar a tradução e o projeto de tradutor enquanto apresenta a análise. Considerando que o objetivo final do crítico, em geral, é avaliar a qualidade do texto traduzido dentro dos parâmetros mencionados acima, caberá a ele, o crítico, considerar que “[...] a poeticidade de uma tradução reside no fato de que o tradutor fez um verdadeiro trabalho textual, escreveu um texto, em correspondência mais ou menos estreita com a textualidade do original”36. Ou seja, quando propõe que ao verificarmos a poeticidade de uma tradução devemos buscar verificar se o tradutor trabalhou o texto, Berman alinha-se com o que se espera de uma tradução literária conforme Meschonnic, Benjamin e Steiner: que a tradução seja mais do que somente reprodução de conteúdo, mas que procure ser uma obra por si mesma. Deve ficar claro, contudo, que esta “obra” não precisa ser “obra” somente conforme os parâmetros do texto-fonte, como se procurasse alcançá-lo ou repeti-lo. Um de nossos pressupostos é o de que o poema-tradução pode ir além do texto que lhe deu origem, pode e deve partir dele, mas procurar um caminho próprio dentro da poética em que seu poeta-tradutor o circunscreveu, para alcançar sua própria significância. Em parte, pensamos conforme os termos descritos a seguir por Mário Laranjeira (2003): É evidente que o tradutor, que é inicialmente um leitor, deverá partir do poema original com sua estrutura “a ser descrita”, a ser analisada; mas não pode parar aí como diante de um objeto estático, não pode vê-la como um “objeto acabado”. Deve, isto sim, “captar as combinatórias” que constituem a sua significância e, através da dinâmica das relações significantes, “restituir”, “gerar”, na língua-cultura de chegada, uma estruturação que mantenha com a significância do original uma relação homogênea. Ou seja, na tradução do poema, o que se busca transladar não é o sentido, visto como inerente a uma estrutura linguística, mas a significância.37 34 BERMAN, 1995, p. 86 Ibid., p. 87, grifos do autor. No original: “En tant que travail d’écriture, la confrontation doit affronter le problème de sa communicabilité, c’est-à-dire de sa lisibilité”. 36 Ibid., p. 92, grifos do autor. No original: “La poéticité d’une traduction réside en ce que le traducteur a réalisé un véritable travail textuel, a fait texte, en correspondance plus ou moins étroite avec la textualité de l'original”. 37 LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: Edusp, 2003, p. 81 35 36 Como entendemos que o poema-tradução pertence a uma outra poética que não aquela do seu primeiro autor, particularmente no caso dos poemas-tradução que Machado de Assis inseriu em seus próprios livros de poesia, pensamos que a significância do poema-tradução não precisa manter uma relação necessariamente homogênea com o original. Portanto, mais do que nos preocuparmos somente, ou principalmente, com as tais “zonas textuais” bermanianas, buscamos focar nossa atenção neste “fazer obra” das traduções de Machado de Assis, ou seja, em que medida elas pedem para ser lidas como obras que são um desdobramento, pervivência do texto-fonte que lhes deu origem, o que, na maioria dos casos, não se esgota na tradução, mas adentra aquela obra do poeta-tradutor tida como “original”, motivo pelo qual, quando possível ou particularmente interessante, buscaremos pistas desse desdobramento no diálogo, no intertexto entre as traduções de Machado de Assis e o restante de sua obra poética ou ficcional. Concordando mais uma vez com Meschonnic, nesta tese partiremos do entendimento de que “[...] traduzir um texto não é traduzir da língua, mas sim traduzir um texto na sua língua, que é texto pela sua língua, sendo esta, ela mesma, pelo texto”38, o que significa dizer que a prática da tradução poética passa necessariamente por uma reflexão do fazer poético na língua de chegada, e não meramente uma operação mecânica de transposição de significantes e significados. O passo final será fazer a avaliação das traduções poéticas de Machado de Assis como um conjunto em si, um legado de obras que foram construídas em um determinado momento histórico e que foram elas mesmas determinadas por aquele momento, o que pretendemos fazer observando as traduções de Machado de Assis como um sistema próprio que pertence a outro sistema que é a obra poética machadiana, o que nos convida às teorizações de Itamar EvenZohar. Even-Zohar propõe que nos casos em que a produção de traduções ocupa um lugar de destaque num determinado polissistema é comum que encontremos uma situação em que “[...] nenhuma distinção clara é feita entre ‘original’ e ‘tradução’, e que são os principais escritores (ou membros da vanguarda que estão prestes de se tornar os principais escritores) que produzem as traduções mais admiráveis ou apreciadas”39, situação em que podemos incluir não só Machado de Assis, mas vários dos grandes escritores do século XIX. 38 MESCHONNIC, 2010, p. 84 EVEN-ZOHAR, Itamar. “The position of translated literature within the literary polysystem”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader. 2 ed. New York: Routledge, 2000, p. 200. No original: “no clearcut distinction is maintained between ‘original’ and ‘translated’ writings, and that often it is the leading writers (or 39 37 Desta forma, para que se possa dizer que a tradução ocupa um lugar de centralidade em um determinado polissistema literário, Even-Zohar nomeia algumas características geralmente encontradas em tal caso: a primeira é quando o polissistema ainda não se consolidou; a segunda, quando a literatura é “periférica” ou “fraca”; e a terceira quando não há grandes mudanças, crises ou vácuos literários, ou seja, um sentimento de que não há uma literatura nacional ou que esta literatura está estagnada. Even-Zohar propõe ainda que nestes casos de “vácuo”, ou quando há um sentimento de hiato na produção nacional, os modelos estrangeiros tendem a se infiltrar e a literatura traduzida passa a preencher esse espaço, assumindo assim uma posição de centralidade, situação que acaba gerando outra: a tensão criada pela centralidade da tradução faz com que as linhas que dividem “original” e “tradução” tornem-se mais tênues, ou até mesmo “difusas” – termo utilizado por Even-Zohar – de forma que precisemos ampliar nosso conceito de tradução, abandonando uma ideia stricto sensu de tradução em favor de um conceito mais abrangente, que dê conta também das tais “paráfrases”, “imitações”, “pastiches”, etc40. Devese ressaltar que essa “centralidade” de que trata Even-Zohar não é algo tido como aceito, a que os artistas locais “se conformam”. Há, a todo momento, uma tensão na busca por esse papel, e é o resultado dessa “luta” – que é incessante – que engendra a situação que se observa. A situação em que se produziam e circulavam os textos literários no século XIX que veremos no capítulo seguinte pode ser analisada dentro do conceito de polissistema literário teorizado por Itamar Even-Zohar, uma vez que as condições e a realidade relatadas são um dos pontos centrais da teoria dos polissistemas. O pesquisador entende que todo sistema consiste, ao mesmo tempo, de sincronia e diacronia, cada um dos quais também é entendido como um sistema em si mesmo. Todavia, falar de “sistema” não implica a existência de homogeneidade, mas heterogeneidade, como uma estrutura aberta. Não é um sistema único, mas, na verdade, um polissistema que Even-Zohar define como um “[...] sistema múltiplo, um sistema de vários sistemas que se intersectam mutuamente e, em parte, se sobrepõem, utilizando opção concorrentes, embora funcionem como um todo estruturado, cujos membros são interdependentes”41. Even-Zohar sugere a adoção do termo “polissistema” para explicitar a ideia de que o sistema literário é, ao mesmo tempo, dinâmico e heterogêneo, em oposição a members of the avant-garde who are about to become leading writers) who produce the most conspicuous or appreciated translations”. 40 EVEN-ZOHAR, 2000, p. 200-203 41 EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Poetics Today, Volume 11, Number 1, 1990, p. 11. No original: “multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly overlap, using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose members are interdependent” 38 uma abordagem sincrônica42 e uma visão estática e homogênea do mesmo sistema. Uma vez que se decida trabalhar dentro desta hipótese, afirma Even-Zohar, deve-se aceitar também que o “[...] estudo histórico dos polissistemas literários não pode se confinar às chamadas ‘obrasprimas, mesmo que a princípio as consideremos a raison d’être dos estudos literários”43. Ao mesmo tempo em que critica o elitismo da historiografia literária, Even-Zohar entende que para se desvendar os mecanismos da literatura não se deve evitar as obras de valor estético não reconhecido uma vez que elas também são parte daqueles mecanismos, lembrando seus leitores de que não se faz ciência com base em gostos pessoais. Esta foi uma questão central para o objeto deste estudo. Se a crítica deseja conhecer os mecanismos que fazem funcionar a poética machadiana, e consequentemente conhecer melhor o nosso escritor, é necessário olhar também para as obras que participaram de sua formação, e não somente para aquelas de valor estético já reconhecido e admitido pela crítica. Do mesmo modo, dentro de sua produção poética, as traduções – cujo papel dentro da teoria do polissistema de Even-Zohar vamos tratar a seguir – são também parte daquele mecanismo que estava então, e constantemente, em formação, o que significa que também não se poderíamos estudar e comentar somente as traduções bem sucedidas ou polêmicas, mas também os trabalhos menores, de formação, que tenham sido deixados de lado seja por seu valor estético questionável ou por falta de interesse, motivo pelo qual não excluiremos nenhuma das traduções poéticas de Machado de Assis. Conforme veremos no capítulo seguinte, o mercado literário do século XIX era dominado por traduções ao mesmo tempo em que, como uma das bandeiras do Romantismo, se tentava criar uma literatura verdadeiramente nacional, e não somente uma extensão da literatura portuguesa. Um dos que denunciaram a inexistência, ou incipiência, de uma “literatura nacional” foi o próprio Machado de Assis, em mais de um momento, a exemplo já do mencionado ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”. Se havia tal sentimento de necessidade de se dar feições locais à nossa literatura, é porque se entendia que o que se tinha até então não preenchia os requisitos que o período julgava necessário. Este é um dos sintomas previstos na teoria de polissistemas literários. 42 EVEN-ZOHAR, 1990, p. 12. Ibid., p. 13. Tradução: “historical study of literary polysystems cannot confine itself to the so-called ‘masterpieces’, even if some would consider them to be the raison d’être of literary studies in the first place” 43 39 Se de um lado tínhamos escritores empenhados em criar uma identidade literária nacional, de outro tínhamos um mercado dominado por traduções e um ínfimo público leitor em um país de analfabetos. Entretanto, se as traduções inundavam o nosso mercado, assumindo posição central nele, é porque a produção nacional sozinha não daria conta de atender à demanda, ainda que pequena. Para Even-Zohar, dizer que “[...] uma literatura traduzida mantém uma posição central no polissistema literário significa que ela participa ativamente na formação do centro do polissistema”44. Uma análise do período em questão sugere ter sido este nosso caso: as traduções moldaram o gosto do público consumidor de então e, como consequência, os escritores, adotando modelos estrangeiros, tentavam agradar o público ao mesmo tempo em que alguns deles – dentre os quais alguns que se tornaram canônicos posteriormente – almejavam dar um sabor local, particular às obras. Não é preciso ir muito longe para entender a relação que se estabelece entre teoria de polissistemas literários com a realidade da literatura oitocentista brasileira uma vez que o próprio Machado de Assis se encarrega de, em alguns de seus ensaios críticos, pintar um retrato que parece enquadrar-se bem na moldura teórica de Even-Zohar. Ainda em 1858 o jovem Machado já falava da necessidade de se criar uma independência literária, a exemplo da política recém-alcançada, no ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858: Mas após o Fiat político, devia vir o Fiat literário, a emancipação do mundo intelectual, vacilante soba ação influente de uma literatura ultramarina. Mas como? É mais fácil regenerar uma nação, que uma literatura. Para esta não há gritos do Ipiranga; as modificações operam-se vagarosamente; e não se chega em um só momento a um resultado.45 O que o jovem escritor está denunciando no breve trecho é a existência de um sistema literário dependente, ou mesmo de um vácuo no sistema literário nacional, o que é reforçado mais à frente quando Machado trata da inexistência de um romance e um drama nacionais, cuja culpa – particularmente no caso do teatro – Machado não hesita em atribuir às traduções que dominavam a cena, e continua denunciando a presença desnecessariamente predominante da tradução. A crítica à presença sufocante de obras teatrais traduzidas retornará no ensaio “Ideias sobre o teatro” (1859), em que Machado defenderá que o teatro se tornou “uma escola de aclimatação intelectual” enquanto denuncia o surgimento da entidade do tradutor dramático com a metáfora do criado que leva, de sala em sala, os pratos da cozinha estrangeira.46 44 EVEN-ZOHAR, 2000, p. 200. No original: “a translated literature maintains a central position in the literary polysystem means that it participates actively in shaping the center of the polysystem” 45 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 988 46 Ibid., p. 1012-1013 40 Mais de uma década se passa e Machado volta ao tema da necessidade de uma literatura nacional em “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”, de 1873, com o objetivo de falar que há um “geral desejo de criar uma literatura mais independente”, o que é o mesmo que dizer que o Fiat literário de que falava antes ainda não aconteceu, apesar dos esforços que vinham desde os árcades, cujas obras “[...] quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora”47. Enfim, a situação relatada por Machado de Assis conforme seu entendimento, em um espaço de quinze anos de crítica literária, sugere as mesmas condições propostas por Even-Zohar como necessárias para que a tradução assuma um papel central enquanto sintoma de uma literatura jovem, periférica e dependente como a nossa era então. Evidentemente, trata-se, neste caso, de uma visão ampla, nacional de literatura, mas se partirmos para um enfoque mais particular – a literatura machadiana no caso – e entendermos essa produção como um sistema dentro do polissistema da literatura brasileira, é possível propor que a carreira de Machado de Assis enquanto escritor seguiu caminho razoavelmente análogo. Partiremos, portanto, do pressuposto de que a tradução poética ocupou um lugar de destaque no desenvolvimento de uma poética tipicamente machadiana que implica em absorver o estrangeiro e, a partir desse trabalho, alimentar a própria tradição. Consideraremos, ainda, que a tradução precisa ser pensante do fazer poético na língua em que se traduz, e refletir este pensar da poesia enquanto se realiza porque, se a tradução quer ser um texto, este texto precisa se pensar a partir da língua-cultura na qual ele estará inscrito dali em diante. Acreditamos que somente colocando as suas traduções-texto em evidência, como momentos em que se pensa não só a tarefa do tradutor, mas o próprio fazer literário, as relações de influência – e até mesmo políticas – que se estabelecem e o desenvolvimento do escritor durante este trabalho, estaremos aptos a desenhar o perfil do poeta-tradutor Machado de Assis. 47 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1177-1178 41 3. A tradução de poesia no século XIX no Brasil: alguns apontamentos Para Antoine Berman, em A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica (2002), “[a] constituição de uma história da tradução é a primeira tarefa de uma teoria moderna da tradução. Toda modernidade institui não um olhar passadista, mas um movimento de retrospecção que é uma compreensão de si.”48 Não seria possível, portanto, pensar a prática da tradução de Machado de Assis em separado da história de que fez parte, que compreende todos os tradutores e obras traduzidas durante o século XIX. Berman escreve ainda que “[f]azer história da tradução é redescobrir pacientemente essa rede cultural infinitamente complexa e desconcertante na qual, em cada época, ou em espaços diferentes, ela se vê presa. E fazer do saber histórico assim obtido uma abertura de nosso presente”49. O que apresentamos neste capítulo busca atender a uma das etapas sugeridas no trajeto de análise de Antoine Berman, que é compreender o horizonte do tradutor. É, também, uma breve redescoberta deste passado para nos abrirmos ao nosso presente, um trabalho forçosamente panorâmico de uma história da tradução de poesia que ainda anseia por mais investigação, que ainda está por se escrever. Todavia, antes de partirmos para as traduções propriamente ditas, é interessante refletir a respeito do público leitor brasileiro do século XIX de sua formação, de forma que possamos entender o contexto em que elas surgem. Este é um público que se formou principalmente a partir da leitura de obras traduzidas majoritariamente do francês, seja de obras escritas originariamente nesta língua ou das que utilizam o francês como idioma intermediário – caso de obras escritas em outros idiomas, traduzidas para o francês e retraduzidas posteriormente para o português. Marlyse Meyer, em Folhetim: uma história, relata a introdução do romancefolhetim no Brasil, que era traduzido e publicado diariamente nos rodapés dos jornais50 sugere a constituição no Brasil, nas décadas de 1840 e de 1850, de um corpo de leitores e ouvintes consumidores de novelas já em número suficiente para influir favoravelmente na vendagem do jornal que as publica e livro que as retomam.51 Justificam-se assim os interesses dos jornais da época, cuja vendagem dependia, evidentemente, do interesse do público ao passo que este tinha seu gosto moldado pelo que havia à disposição. 48 BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Trad. Maria Emília Pereira Chanut. Bauro, SP: EDUSC, 2002, p. 12 49 Ibid., p. 14 50 MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Compania das Letras, 1996, p. 283 51 Ibid., p. 292 42 Não se deve com isso imaginar que o Brasil fosse já uma nação de leitores ávidos em pleno século XIX, nem que o público francês, cujo gosto ajudou a criar e modelar o nosso, fosse composto de leitores criteriosos. Hélio de Seixas Guimarães, apoiando-se em Eric Auerbach, nos dá uma clara noção de como era composto este público em Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19: Era a burguesia urbana, que encontrava no seu tipo burgeois, descrito por Auerbach como “aquele ser cuja estupidez, preguiça mental, enfatuação, mendacidade e covardia foram repetidamente motivo das mais violentas diatribes dos poetas, escritores, artistas e críticos, desde o Romantismo”.52 Se na França a situação não era animadora, a situação por aqui era ainda pior. A rápida penetração do folhetim e do teatro traduzidos pode dar uma noção equivocada da nossa realidade de então. Um estudo consultado por Guimarães na mesma obra citada acima aponta que menos de 30% da população brasileira era alfabetizada ao longo do século XIX e que o recenseamento de 1872 indicou que apenas 18,6% das pessoas livres e 15,7% dos escravos sabiam ler e escrever, porcentagem que diminui para 14,8% em 189053. Diante da inequívoca carência de leitores é natural que os poucos existentes fossem disputados um a um e que, segundo a lógica de mercado, os produtos de maior vendagem, que mais agradassem o gosto desse parco público, tivessem absoluta preferência nos espaços disputados nos jornais. Até Machado de Assis, muito otimista quanto aos números, comenta a publicação do recenseamento do império em crônica de 15 de agosto de 1876 para constatar que “a nação não sabe ler”, chamando a atenção para o analfabetismo patente e a “profunda ignorância” em que jaz o povo brasileiro, do qual apenas os supostamente 30% letrados podiam se sentir representados: — As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação”; mas — “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: “Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem...” dirá uma coisa extremamente sensata.54 Esta, de maneira forçosamente resumida, era a realidade do público leitor no período no século XIX: uma grande massa de analfabetos, uns poucos que sabem ler e escrever e, dentre esses poucos, menos que realmente leem e, nesses, uma grande maioria interessada tão somente nos folhetins rocambolescos e no teatro de gosto duvidoso. Hélio Seixas Guimarães faz um excelente panorama da nossa situação de então: 52 GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial/Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p. 64 53 GUIMARÃES, 2004, p. 66 54 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 288 43 Num primeiro momento, supõe-se a existência de um público leitor, mas caprichoso e indolente, como acreditavam Alencar e os primeiros românticos; num segundo momento, a pouca repercussão da literatura é associada à exiguidade do público leitor; num terceiro momento, esse público leitor passa a ser encarado como potencial consumidor de literatura, uma mudança de percepção que tem a ver com a organização da produção e comercialização dos livros.55 Esse era o contexto ideal para a proliferação de textos literários traduzidos, mesmo que de maneira deficiente e apressada, primeiramente porque a produção nacional não daria conta de, sozinha, suprir a demanda do nosso incipiente mercado por menor que fosse, mas principalmente porque o governo parecia pouco interessado, a princípio, em desenvolver uma cultura nacional e porque o público parecia mais interessado em alinhar seu gosto com o da Europa, particularmente com o gosto francês, acreditando ganhar com isso ares de sofisticação e modernidade. A tradutora Lia Wyler, autora de um levantamento da história da tradução em nosso país em Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil, nos dá um retrato do começo do século XIX, que coincide com o início da Imprensa Régia no Rio de Janeiro: Entre as muitas novidades trazidas pelos reinóis, incluíam-se a feitura e leitura de traduções do francês e do inglês (através do francês e do espanhol), que logo se incorporaram ao quotidiano dos habitantes da colônia temporariamente impedidos pela guerra de importar os livros em voga na Europa. Eram traduções e adaptações de romances célebres e sentimentais, morais ou tristes, aos quais o editor português suprimia o nome do autor e acrescentava títulos sugestivos e tentadores. A Impressão Régia reimprimiu no Rio de Janeiro mais de vinte desses romances, de 1810 a 1818, bem como peças teatrais, óperas e literatura clássica – Ovídio e Virgílio – ou os mais “modernos” como Racine, Voltaire, Pope, Legouvé, Rousseau e Delille, sempre em traduções portuguesas.56 O retrato que a tradutora segue pintando é desalentador: apesar de a figura do tradutor sofrer com o apagamento, desprestígio e não raro a ausência de remuneração em espécie, não obstante o volume de obras traduzidas e publicadas no período, a pesquisadora afirma que “a julgar pelo número de traduções publicadas e inéditas mencionadas pelos bibliógrafos literários, nunca se traduziu tanto quanto no século XIX, seja pelo prazer de traduzir ou de partilhar traduções com os amigos ou até com o público”.57 Se com a Imprensa Régia as traduções francesas já dominavam o mercado, com a proclamação da independência em 1822 o sentimento antilusitano que se criou e a forte indústria tipográfica francesa constituíram condição ideal para a penetração do romance55 GUIMARÃES, Op. Cit., p. 82 WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 79 57 Ibid., p. 83 56 44 folhetim e do teatro francês o que, por sua vez, cria uma demanda cada vez maior por autores e, em vista da sua produção escassa, principalmente de tradutores. O produto de tal demanda é a proliferação de textos de qualidade questionável publicados sem os créditos ao tradutor, e frequentemente apresentados como imitações, traduções livres, paródias, acomodações, particularmente no caso das peças teatrais58, descuido que favoreceu o desprestígio da atividade tradutória; não obstante, vários dos grandes nomes do nosso passado literário, jornalístico e até político praticaram a tradução, a quem devemos várias traduções das melhores obras da literatura europeia de então59. É um pouco disso que veremos no paciente trabalho panorâmico que se inicia com uma afirmação de Tavares Bastos no levantamento feito em Versões poéticas brasileiras de Victor Hugo (1952): “Vicejou de tal modo, no tempo do Império, o hábito das versões poéticas, que deixar de fazê-las era então motivo de geral estranheza”60, vício que teria se estendido até Raimundo Correia antes de desaparecer. Com Machado de Assis não foi diferente, mas, para melhor compreendermos a produção tradutória de Machado de Assis na seara poética, é interessante nos perguntarmos um instante sobre o cenário em que traduziu os autores que escolheu ou que lhe couberam. A primeira pergunta que se faz necessária é o que considerar “tradução”. Depois, pode ser interessante investigar o que traduziram seus pares, antes e depois dele, dentro do que foi o movimento romântico e a transição para a poesia parnasiana. Ou seja, quem mais traduziu poesia, entre os poetas brasileiros daquele período? O que traduziram? Quais poetas estrangeiros foram traduzidos? Quais foram os mais traduzidos? Que paralelos podemos estabelecer entre os autores traduzidos por Machado e pelos demais poetas? Quanto à primeira pergunta, precisamos de um conceito de tradução que dê conta do que foi produzido na época, seja por Machado de Assis ou por qualquer outro poeta que tenha traduzido. Neste sentido, outros poetas-tradutores como Dryden ou Goethe, que são exemplos do tipo de pensamento sobre a tradução que estava disponível no século XIX, iluminam o nosso caminho. Dryden nos ensina que podemos incluir, dentre as traduções, as “paráfrases” e as “imitações”61, enquanto Goethe propõe que há lugar para as traduções de poesia em prosa, para as traduções que se apropriam somente da ideia que o tradutor apresenta como se fosse sua – a 58 WYLER, 2003, p. 95-98 Ibid., p. 99 60 BASTOS, C. Tavares. Versões poéticas brasileiras de Victor Hugo. Petrópolis: Artes Gráficas Impressora S.A., 1952, p. 5. 61 DRYDEN, John. “From the preface to Ovid’s Epistles”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader. 2 ed. New York: 2000, p. 38 59 45 que chama de época parodística – e para as traduções que buscam perfeita identidade com o texto-fonte, a ponto de reivindicar para si o direito de tomar o seu lugar62. Poderíamos buscar ainda outros conceitos, em outros pensadores contemporâneos, por exemplo, mas esses são exemplos importantes do tipo de discurso sobre a tradução que estava disponível àqueles que se interessassem por pensar a tradução nos primeiros anos do século XIX. É uma época em que encontramos traduções que serão chamadas de “paráfrases”, “imitações”, bem como teremos diversas e bem-sucedidas traduções de poesia em prosa e até mesmo exemplos que poderiam ser aproximados da “transcriação” haroldiana, que, por sua vez, se assemelha à terceira época das traduções de que falou Goethe. Entendemos que, para apreciar da melhor forma possível a maneira como a tradução foi praticada no século XIX, precisamos de uma abordagem que não seja normativa para que possamos abraçar as traduções de fato, tal como são e não como gostaríamos que fossem, na multiplicidade de formas em que se apresentam. Mais do que puramente estético, nosso interesse será também guiado pelo viés histórico e cultural. Tendo por objetivo conhecer o horizonte que se abria diante do poeta-tradutor Machado de Assis, procuramos outros poetas do oitocentos brasileiro que houvessem traduzido e publicado traduções em meio aos seus poemas, como fez Machado de Crisálidas a Ocidentais, ou cujas traduções tenham sido reunidas em volume posteriormente. Talvez a análise ficasse mais interessante se incluísse também algo das traduções que ficaram esquecidas nos periódicos da época, mas aí extrapolaríamos em muito não só o tempo de que dispomos, mas o escopo desta pesquisa. Logo, dentro dos limites a que estivemos sujeitos, procuramos obras literárias que fossem acessíveis, que estivessem disponíveis e que, preferencialmente, tenham sido de alguma relevância para as letras brasileiras, ou estudos anteriores ao nosso que fizeram levantamento parecido. Após a consulta de pouco mais de sessenta volumes de poesia do período com esta finalidade, chegamos à conclusão – que, obviamente, reflete somente a realidade do corpus estudado – de que poucos escritores dentre seus contemporâneos rivalizam com Machado de Assis no interesse por traduzir e publicar os resultados entre seus próprios poemas, o que aparentemente apenas reforça a importância das traduções na obra poética de Machado, tanto em números absolutos (em relação à sua própria obra) quanto relativos (em relação às obras de outros poetas contemporâneos seus). Daqueles poucos escritores que mencionamos, escolhemos os mais relevantes para uma apresentação mais detida. 62 GOETHE Johan W. Von. “Translations”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader. New York/London: Routledge, 2000, p. 64-65 46 Não seria correto tratar da tradução poética no oitocentos brasileiro sem mencionar o nome do maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864), tradutor, entre diversas outras obras, da Eneida, da Ilíada e da Odisseia. Haroldo de Campos (2015) viu em Odorico Mendes “[...] aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da tradução [porque] soube desenvolver um sistema de tradução coerente e consistente, em que seus vícios (numerosos sem dúvida) são justamente os vícios de suas qualidades, quando não de sua época” 63. Nesta teoria da tradução de Odorico estava a tentativa de demonstrar que o português podia ser tão conciso, sintético quanto o grego ou o latim, cedendo aos neologismos que latinizavam ou helenizavam o português, a exemplo do que afirma na sua Eneida: “Adotei palavras do latim e compus não poucas por me parecerem necessárias na ocasião”64. Campos inclui ainda, entre os procedimentos tradutórios de Odorico, a manutenção da crueza das passagens que traduzia e a interpolação de versos de outros poetas, nem sempre com resultados satisfatórios ou irreprocháveis, é verdade, mas isso não deveria ofuscar o mérito das descobertas bemsucedidas. Mas há também outra parte, menos conhecida e mencionada, da produção tradutória de Odorico Mendes e que dá outra dimensão à sua teoria de tradução: as traduções que fez de duas tragédias de Voltaire, Mérope, publicada em 1831, e Tancredo, de 1839. Essas contribuições são lembradas por Raimundo Carvalho no artigo “Retrato do tradutor quando jovem. A Mérope brasileira de Odorico Mendes” (2015). A tradução da Mérope, diz Carvalho, surge num momento crucial da história brasileira como um ato político no atribulado período de instauração da Regência, após D. Pedro I abdicar, como uma forma de introduzir, sutilmente, ideais iluministas65. Quando aparecem, estas peças inserem-se organicamente num momento em que as ideias estão sendo renovadas, e a escolha da forma teatral, ato performativo e intervencionista, presta-se adequadamente ao propósito66. Estas traduções, para Carvalho, “[...] atestam a solidez do pensamento odoriciano a respeito da atividade de tradução poética, assim como a excelência de sua prática”67, e mostram que mesmos estes trabalhos da juventude já 63 CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”. In: TÁPIA, Marcelo; Nóbrega, Thelma Médici (Orgs). Haroldo de Campos: transcriação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015, p. 8-9 64 MENDES In VIRGÍLIO. Eneida brazileira. Trad. Manuel Odorico Mendes. Paris: Typographia de Rignoux, 1854, p. 6 65 CARVALHO, Raimundo. “Retrato do tradutor quando jovem: a Mérope brasileira de Odorico Mendes”. Nabuco, São Luís, ano I, n. 5, 2015, p. 62 (p. 60-73). 66 CARVALHO, 2015, p. 62 67 Ibid., p. 64 47 vieram acompanhados de reflexão sobre o ato de traduzir, a exemplo do trecho que citamos a seguir, que Carvalho pinça de Tancredo: Um tradutor, por mais hábil que seja, em muitas passagens fica abaixo do original; justo parece que, em compensação, lhe disfarce alguns senões, contanto que não falte ao pensamento, e no todo dê igual ou semelhante prazer. O seu ofício não é seguir as palavras servilmente, mas representar na sua língua a mente e o modo de sentir do autor.68 Raimundo Carvalho interpreta este trecho como uma demonstração de que o produto da tradução é uma chance que é dada à obra de refazer sua forma e reencontrá-la, conforme o tradutor se depara com os momentos fortes ou frágeis do original. Ao tradutor caberia retrabalhar a linguagem e colher os frutos de um trabalho que é sobretudo crítico, mas sem perder de vista o pensamento da obra e o prazer que ela deverá proporcionar ao leitor69. Na maneira como Odorico Mendes traduz essas duas tragédias de Voltaire, Carvalho enxerga a mesma concisão e brevidade por que Odorico ficara conhecido ao traduzir os clássicos, guardadas, é claro, as devidas proporções, posto que “[...] Odorico opera, na transposição das peças de Voltaire, a redução do sistema poético clássico francês para o correspondente sistema clássico português”70, ao traduzir os alexandrinos franceses pelos decassílabos brancos portugueses, procedimento que observaremos em vários outros poetas, incluindo Machado de Assis. Isto é exemplo suficiente de que Manuel Odorico Mendes, desde jovem, soube escolher a dicção adequada ao texto com o qual trabalhava71. Outro tradutor digno de nota é apresentado na dissertação de Pedro Falleiros Heise, A introdução de Dante no Brasil: o ‘Ramalhete poético do parnaso italiano’ de Luiz Vicente De Simoni (2007). Trata-se de um caso bastante apropriado para o nosso propósito neste capítulo: dois livros de traduções poéticas publicados por Luiz Vicente De Simoni (1792-1881). Em 1842 De Simoni publica Gemidos poéticos sobre os túmulos, em que são apresentadas quatro traduções, dentre elas os Sepolcri de Foscolo e composições próprias, chamadas “carmes epistolares”72; no ano seguinte De Simoni publica a obra que é, segundo Heise, “a primeira e uma das únicas antologias de poesia italiana no Brasil”73 até então, Ramalhete poético do parnaso italiano, edição bilíngue que traz aquela que é possivelmente a primeira tradução de 68 MENDES apud CARVALHO, 2015, p. 64 CARVALHO, Op. Cit., p. 64-65. 70 Ibid., p. 70 71 Ibid., p. 71 72 HEISE, Pedro Falleiros. A introdução de Dante no Brasil: o Ramalhete poético do parnaso italiano de Luiz Vicente De Simoni. 2007. 102f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 10 73 HEISE, 2007, p. 10 69 48 cantos da Divina Comédia de Dante no Brasil, além de traduções de vários outros poetas, como Petrarca, Ariosto, Tasso e Metastasio. Ambas também incluem textos introdutórios que trazem relevante testemunho da visão que o tradutor tinha do trabalho de tradução poética e seu conceito de fidelidade. Heise sugere que “o percurso utilizado pelo tradutor era o oposto ao apresentado pela corrente francesa, ou seja, a sua ‘fidelidade’ consistia em manter a forma e o conteúdo fiéis ao original, sem mudar, sem subtrair ou acrescentar nada”74. Com efeito, a leitura da “Prefação” de Simoni (1843) nos informa que o projeto do tradutor era de entregar “uma versão análoga, fiel e homeométrica, que para o idioma português fizesse passar essas produções com o mesmo gênio e caráter que elas têm no original”75. O tradutor é ainda mais explícito quando comenta o seu plano de trabalho: Persuadidos de que uma versão é como a cópia de um quadro, e de que a cópia melhor e mais perfeita deste é a que não só o desenho, mas as sombras, cores, estilo e graça do original reproduz sobre outra superfície; geral e constante cuidado nosso foi sempre nas versões que fizemos, o fazermos passar para cada qual delas, ou todos ou o maior número de elementos de beleza, que distinguiam o original, e sobretudo os mais salientes, e que constituíam o seu caráter principal; alvo a que sempre deve dirigir-se a mira de todo bom tradutor.76 Implícita neste projeto está a crítica à maneira de traduzir dos franceses e também de vários de nossos poetas, inclusive de Machado na maioria dos casos, sobre a qual De Simoni discorre no parágrafo seguinte, discordando da tradução que se pauta pela reprodução do conteúdo, que considera “menos essencial e menos apreciável”77, em detrimento dos aspectos formais que compõem o jogo da obra traduzida juntamente ao conteúdo. Se este pensamento não é original, é certamente pouco usual entre os tradutores que consultamos. Quanto aos nossos maiores poetas, entre os primeiros românticos, Gonçalves de Magalhães (1811-1882), considerado o fundador do Romantismo brasileiro78, inclui nos Cânticos Fúnebres (1864) somente uma tradução, “Morte de Sócrates” de Lamartine. “La mort de Socrate” é um longo poema em versos alexandrinos de estrofes irregulares publicado em 1823 na sequência das Premières meditations. O poema de Lamartine, que narra um dos últimos diálogos de Sócrates, pouco antes de tomar a cicuta, já é, em certa medida, uma traduçãoimitação de Fédon, de Platão. Uma visita breve a esta tradução e aos comentários que a 74 HEISE, 2007, p. 29 DE SIMONI, Luiz Vicente. Ramalhete poético do parnaso italiano. Rio de Janeiro: Typ. Imp. E Const. De J. Villeneuve e Comp., 1843., p. V 76 Ibid., p. VII 77 Ibid., p. VIII 78 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. 10 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 377 75 49 precedem nos dão alguma noção sobre o tipo de tradutor que foi Gonçalves de Magalhães. Sua tradução é precedida de dois textos, “Do tradutor”, em que explica as condições que deram origem ao seu trabalho, e uma “Advertência”, de autoria de Lamartine. Sobre seu trabalho, Magalhães escreve: Esmerei-me o mais que pude em conservar a frescura do colorido original, e esses toques ligeiros e transparentes do Mestre, sem estragar a sublimidade dos pensamentos, e a belleza das imagens. Si o consegui, ou não, outros que o digam, si se derem á pena de confrontar a copia com o original. Mas quando mesmo não achem os críticos digno de louvor o meu trabalho, que não emprehendi para merecer louvores, senão para encher honestamente algumas horas ociosas, tão copiosas são as belezas deste Poema, tão elevados os pensamentos, tão sublime a moral, que ao travez da copia sempre apparecerão com algum brilho, para encantar as almas nobres, que, enfastiadas da sensualidade desta vida prosaica, se aprazem alguns momentos com os arroubos da pura e sancta Poesia79. Gonçalves de Magalhães está dizendo que o trabalho de tradução deve buscar trazer para a língua de chegada os elementos que são marcadamente reconhecíveis no texto de partida. Mesmo quando a tradução não alcança este objetivo, as qualidades do texto de partida acabam por transparecer no texto traduzido quando este as possui em abundância. Machado de Assis comenta brevemente esta tradução de Gonçalves de Magalhães em uma de suas crônicas: Não li toda a tradução da Morte de Sócrates, nem a comparei ao original; mas as páginas que cheguei a ler pareceram-me dignas do poema de Lamartine. O próprio tradutor declara que empregou imenso cuidado em conservar a frescura original e os toques ligeiros e transparentes do poema. Essa devia ser, sem dúvida, uma grande parte da tarefa; para traduzir Lamartine é preciso saber suspirar versos como ele. As poucas páginas que li dizem-me que os esforços do poeta não foram vãos80. A verdade, porém, é que as palavras de Gonçalves de Magalhães ou de Machado de Assis só tomam corpo na tradução, de que transcrevemos um dos trechos mais célebres abaixo, seguido do texto de partida francês: Que é pois morrer? — Quebrar o nó infame, Adúltero hymenêo da terra e d’alma, Despojar-se, na campa, de um vil peso! Morrer não é morrer, — é transformar-se!81 Qu’est-ce donc que mourir ? Briser ce nœud infâme, Cet adultère hymen de la terre avec l’âme, D’un vil poids, à la tombe, enfin se décharger. Mourir n’est pas mourir ; mes amis, c’est changer !82 79 MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Cânticos fúnebres. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1864, p. 265266. [Mantivemos a grafia original.] 80 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 191 81 Ibid., p. 281 82 LAMARTINE, Alphonse de. Œuvres poétiques de M. A. de Lamartine. Tome III. Bruxelles: De L’Imprimerie de M. Hayez, 1825, p. 11 50 Comparando os trechos acima percebe-se o quanto Gonçalves de Magalhães é capaz de, verso a verso, recriar o poema de Lamartine no metro clássico português por excelência, o decassílabo, que é mais curto que os alexandrinos franceses, sem que isso signifique qualquer prejuízo semântico à leitura que se faria no texto francês. Gonçalves de Magalhães se mostra um tradutor de finíssima estirpe, empregando a mesma estratégia utilizada por Odorico Mendes na tradução da Mérope de Voltaire. Esta, contudo, não é a única vez que Gonçalves de Magalhães se dedica a traduzir Lamartine. No ensaio “A tradução literária no Brasil” José Paulo Paes (2008) acrescenta que Gonçalves de Magalhães “[...] verteu vários textos lamartineanos, inclusive o célebre ‘O lago’, de onde possivelmente tirou o topos da fugacidade da beleza amiúde versado em sua própria poesia”83. Já nos Cantos (1857) de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) encontramos quatro traduções: “A morte é vária (tradução)”, “Protesto” (Imitação de uma poesia javanesa), “A queda de satanás (tradução)” e “Canção de Bug-Jargal”, tradução de Victor Hugo, a única com alguma indicação de autoria. Esta canção, escrita por Gonçalves Dias em sextilhas rimadas em redondilha maior, foi criada a partir da cena descrita no capítulo VII do romance Bug-Jargal (1826) de Victor Hugo. No romance, o trecho traduzido por Gonçalves Dias está em prosa, mas sabemos tratar-se de uma canção porque o narrador diz ouvir com as “[...] notes graves de la guitare une romance espagnole, dont chaque parole retentit assez profondément dans mon oreille”. Reproduzimos abaixo a primeira estrofe de Gonçalves Dias e, em seguida, o trecho do romance: Maria, porque me foges, Porque me foges, donzella ? Minha voz! o que tem ella, Que te faz estremecer; Tão temível sou acaso? Sei amar, cantar, sofrer.84 « Pourquoi me fuis-tu Maria ? Pourquoi me fuis-tu jeune fille ? Pourquoi cette terreur quand tu m’entends ? Je suis en effet bien formidable ! je sais aimer, souffrir et chanter ! »85 Com este trabalho, Gonçalves Dias demonstra que o trabalho de tradução não é de mera transposição de conteúdo, mas um trabalho criativo que pode até mesmo ir além do texto de 83 PAES, José Paulo. “A tradução literária no Brasil”. In: Armazém literário: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 161 84 DIAS, Gonçalves. Cantos: collecção de poezias de A. Gonçalves Dias. 2 ed. Leipzig: F.A. Brochhaus, 1857, p. 613 85 HUGO, Victor. Bug-jargal. Le dernier jour d’un condamné. Paris: Librarie Hachette et Cie, 1877, p. 31 51 partida, a exemplo do que fez quando toma um texto de prosa romanesca e o recria em poesia. Temos, portanto, um exemplo de que a tradução se torna um trabalho de coautoria a partir da reimaginação poética do texto-fonte. Gonçalves Dias, que teria sido o primeiro tradutor de Hugo no Brasil segundo Tavares Bastos, também inclui nas Segundos Cantos e Sextilhas de Frei Antão uma tradução de um trecho de Victor Hugo na epígrafe de “As duas amigas”. Já no ensaio de José Paulo Paes somos informados de que ele “[...] foi dos pouquíssimos a saber alemão, língua de que verteu Uhland, Roseagarten, Herder e sobretudo Heine; traduziu também um drama de Schiller, A noiva de Messina”86. Paes conta ainda que Gonçalves Dias chegou a preparar uma coletânea de traduções suas e de outros, Ecos d’além-mari, além de ter sido “sensível tradutor de Hugo”87, de quem teria até mesmo emprestado algumas passagens. Outro poeta que merece alguma atenção é Antônio Peregrino Maciel Monteiro (18041868). Na Formação da Literatura Brasileira (2006) Candido informa que ao analisar a sua obra, reunida em livro somente em 1905, encontrou “quatro traduções e vinte e oito poesias originais, algumas de autoria duvidosa”88. De fato, após consulta constatamos que há no volume uma parte intitulada “Traduções poéticas”, onde encontramos peças como “O lago”, “À mademoiselle Michatowska”, “Invocação” e “O ramo de amendoeira”, todas de Lamartine. Ao traduzir “O lago”, um dos mais célebres poemas de Lamartine, Maciel Monteiro escolhe uma disposição visual do poema que remete ao texto-fonte sem, contudo, abrir mão de adequar a forma poética à tradição portuguesa. Os alexandrinos de Lamartine se tornam decassílabos na tradução de Maciel Monteiro, que utiliza também o decassílabo quebrado para corresponder aos versos de menor medida no poema francês: Ó lago, um anno é findo! e em tuas margens Tão queridas, que inda Ela ver quisera Repara: eis-me hoje só sobre esta penha Em que a viste sentada!89 O lac ! L’année à peine a fini sa carrière, Et près des flots chéris qu’elle devait revoir, Regarde ! Je viens seul m’asseoir sur cette pierre Où tu la vis s’asseoir !90 Monteiro pretere as rimas de Lamartine em favor da construção de um poema que recupere os sentidos dos versos mantendo sua concisão e brevidade. O trabalho decerto tem seu mérito, mas 86 PAES, 2008, p. 162 Ibid. 88 CANDIDO, 2006, p. 377 89 MONTEIRO, Maciel. Poesias. Imprensa Industrial: Recife, 1905, p. 149 90 LAMARTINE, 1825, p. 186 87 52 não acreditamos que os versos que dele resultaram sejam tão leves e sonoros quanto os de Lamartine. Na década seguinte, o jornalista e editor que foi um dos primeiros incentivadores de Machado de Assis, Francisco de Paula Brito (1809-1861) publicou algumas traduções em Poesias, de 1863, sem indicar quem era o autor traduzido: “Desejo (imitação do francês)”, “O Doutor (tradução)”, “A Discrição (tradução)”, omissão que nos impossibilita de avaliar o seu trabalho em confronto com os textos-fonte. Em Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil (2003) Lia Wyler acrescenta que Paula Brito era “[...] o ativo tradutor da maior parte dos autores estrangeiros que imprimia: Frédéric Soulié, Augustin Eugène Scribe, Pitre Chevalier, Alexandre Dumas, pai, Critineau Joly e Émile Souvestre”91. Assim como Paula Brito, Jayme Castro apresenta em Poesias (1871) quatro textos, a maioria sem título ou sem clara indicação de quem está sendo traduzido, prática bastante recorrente entre os poetas consultados: “Tradução”, que é a tradução do poema em francês que o antecede e que tem por título “Étincelles de Adrien Roux”; “Traduzido de Burgain”, possivelmente Luís Antônio Burgain, dramaturgo autor de peças bastante representadas que teria nascido na França e se radicado no Brasil na primeira metade do séc. XIX; “(Le séjour des champs) Tradução”, que parece ser um poema criado a partir de um texto em prosa muito comum em gramáticas de língua francesa da época; e “O judeu errante” de Béranger, este último, assim como a tradução de Adrien Roux, editado de forma bilíngue, com o texto francês ao lado da versão brasileira. Nesta sua versão, Castro escolhe um metro curto como o do textofonte – redondilha maior em português para traduzir os octossílabos no francês – e mantém as rimas nos versos pares nos primeiros oito versos, enquanto no texto francês temos rimas cruzadas, conforme se pode observar a seguir: Ao viajor que padece Ó Christão a sede-mata! Eu sou o Judeu Errante Que um turbilhão arrebata. Moço de annos carregado, Peço o fim de meu soffrer: Cada noite espero sempre, Mas sempre o sol á nascer! Sempre, sempre, Gira a terra onde eu caminho, Sempre, sempre, sempre, sempre. Chrétien, au voyageur souffrant Tends un verre d'eau sur ta porte ! Je suis, je suis le Juif-Errant, 91 WYLER, 2003, p. 86 53 Qu’un tourbillon toujours emporte, Sans vieillir, accablé de jours, La fin du monde est mon seul rêve. Chaque soir j’espère toujours ; Mais toujours le soleil se lève. Toujours, toujours, Tourne la terre où moi je cours, Toujours, toujours, toujours, toujours92. Jayme Castro se mostra um tradutor preocupado com aspectos estéticos do texto traduzido, obtendo como resultado uma tradução fidelíssima ao texto-fonte, seja no ritmo breve e ágil dos versos, seja no sentido que é rigorosamente mantido. Também de 1863 é o volume Traduções poéticas de Francisco Pinheiro Guimarães (1809-1857), onde, conforme indicação de José Paulo Paes, encontram-se traduções do Hernani de Hugo e “Childe Harold” de Byron93, além de “O roubo da madeixa” do inglês Alexander Pope. Novamente, não foi possível localizar nenhum exemplar deste volume para obtermos mais dados sobre o trabalho do tradutor. Quem noticia e comenta este volume de Pinheiro Guimarães é o próprio Machado de Assis numa crônica publicada em O Futuro de 15 de fevereiro de 1863. Muito embora o título da obra seja outro na crônica de Machado, Produções poéticas, certamente trata-se do mesmo livro. Vejamos os comentários de Machado de Assis: [...] Tenho em primeiro lugar nas minhas notas as Produções poéticas de Francisco José Pinheiro Guimarães, grosso volume contendo o Child-Harold e o Sardanapalo, de Byron, o Roubo da Madeira de Pope, e o Ernani de Victor Hugo. O nome de F. J. Pinheiro Guimarães é conhecido por quantos estimam e prezam as letras; mas sinceramente creio que a nomeada do finado poeta não está na altura de seu brilhante talento. É que esse talento curava pouco de publicidade; e poetizava por natureza, como as flores dimanam cheiros, como uma necessidade fatal, sem que o pensamento de glória o preocupasse e fizesse pensar detidamente no futuro. Desta desambição, tão rara quanto funesta, deriva o nenhum caso que o poeta parecia fazer de seus versos, mal os acabava, como nos comunica o Sr. Dr. Otaviano no prefácio do livro. Se as Produções Poéticas são, portanto, uma revelação para muita gente, para todos quase é certo, que essa revelação é das mais indisputáveis. Uma locução menos branda, um verso menos correto, são defeitos esses que o leitor perspicaz não deixará de notar nas traduções mais de uma vez; mas o poeta não desceu às terras chãs de revisão literária, e essa é a explicação da ausência de outras belezas que a obra viria a ter. Em qualquer caso serve a declaração do autor do prólogo de que o poeta nacionalizou brasileiro a três poetas94. Nas análises de Onédia Barboza em Byron no Brasil: traduções (1974), o livro é chamado de Traduções poéticas, o que nos leva a acreditar que o erro esteja na crônica de Machado de Assis. Trata-se, possivelmente, de uma publicação póstuma, já que Barboza 92 CASTRO, Jayme. Poesias. Paris: A. Durand e Pedone Lauriel Editores, 1871, p. 88-89 PAES, 2008, p. 163 94 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 90 93 54 informa que consta da introdução das Traduções poéticas que Pinheiro Guimarães faleceu em 1857. Diz também que, embora Pinheiro Guimarães tenha escrito duas peças teatrais, sua principal atividade literária teria sido a de tradutor95. Barboza também elabora com muito mais detalhes os defeitos apontados por Machado de Assis – “uma locução menos branda, um verso menos correto” – que seriam fruto da falta de revisão por parte do já falecido tradutor. Barboza toma para análise a versão de Childe Harold, que considera “o poema mais byroniano de Byron”, e apresenta as seguintes conclusões sobre o trabalho de Pinheiro Guimarães: A tradução de Pinheiro Guimarães é completa e contém não só o mesmo número de cantos, mas também o mesmo número de estanças do original, incluindo ainda a dedicatória a Ianthe que precede o poema. [...] O método de tradução é um tanto irregular. Nas estrofes de 11 versos, por exemplo, usa em geral 9 para traduzir os 8 decassílabos da estança de Spencer, e, sendo eles insuficientes para reproduzir a torrente verbal do original, comprime bastante a linguagem do mesmo. Ao transformar o alexandrino final em dois decassílabos, porém, tem que agir de modo contrário, e torna-se bem mais loquaz que o poeta inglês96. Percebe-se que Barboza pauta sua análise num conceito de tradução que prioriza a reprodução da forma e do sentido. Ainda assim, mesmo depois de concluir que os arroubos no estilo de Byron encontram uma pálida correspondência da versão de Pinheiro Guimarães, que mais se assemelha à estética clássica do que à romântica, reconhece na nela “uma grande força expressiva”97. Ainda em 1863 sai o volume Flores sem cheiro de um dos amigos íntimos de Machado de Assis, José Ignácio Gomes Ferreira de Menezes (1845-1881), publicado no Rio de Janeiro pela Typ. Episcopal de Antonio Gonçalves Guimarães e Cia. A obra divide-se em três seções de poesias, “Soltas”, “Íntimas” e “Traduções”, e uma seção de “Estudos Críticos”. Entre os poetas traduzidos estão, na ordem em que aparecem, Lord Byron, Ossian (pseudônimo do poeta escocês James Macpherson), Friedrich Schiller, Victor Hugo, Charles Hubert Millevoy e André Chénier. Schiller é o poeta mais traduzido, em quatro das onze composições da seção, seguido por Ossian, com duas traduções. Além desses, há um “Fragmento”, uma estrofe traduzida do francês e logo abaixo do texto-fonte, sem indicação de autoria, problema que nossas buscas não conseguiram solucionar. 95 BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974, p. 118 BARBOZA, 1974, p. 123 97 Ibid., p. 126-127 96 55 Particularmente interessante para o nosso propósito é o texto que encerra o volume, “Estudo Crítico”, assinado por Fagundes Varela e datado de setembro de 1863. Este texto se subdivide em três partes, cada uma delas analisando uma das partes da obra de Ferreira de Meneses: “Poesias soltas”, “Íntimas” e “Versões”, esta última dedicada às traduções do volume. Varela inicia o texto tecendo comentários sobre o que pensa do ato de traduzir, critério a partir do qual julga o trabalho de Ferreira de Meneses: “É especialmente nas traduções que melhor se revela qualquer escritor. Verter uma obra de uma língua qualquer para outra supõe sempre conhecimento de ambas, e tina percepção de suas relações”98. Neste sentido, Fagundes Varela avalia que nas traduções de Ferreira de Meneses “[...] encontra-se, a par da perfeita compreensão das composições vertidas, alguma coisa de mais, — esta unção individual, estes toques que, não alterando nem desfigurando a peça, dão-lhe entretanto alguma coisa de novo”99. Esta “alguma coisa de mais” é justamente demonstrar a sensibilidade poética para perceber quando é preciso afastar-se para poder chegar mais perto das obras traduzidas. Assim, o tradutor não precisa se eximir de acrescentar “alguma coisa de novo”, porque é justamente isso que garante a pervivência da obra, algo que, segundo Varela, bastaria ao leitor cotejar as traduções de Ferreira de Meneses e os originais para perceber. Um pequeno volume que segue o mesmo caminho de Traduções poéticas de Pinheiro Guimarães é publicado por Joaquim Serra (1838-1888) em 1865, ano seguinte à publicação de Crisálidas e dedicado a Machado de Assis, também composto só de traduções: Mosaico, poesias traduzidas. Dentre os autores que traduz temos Ampère, Barthelemy, Adam Mickiewicz, A. Barbier, C. Delavigne, Louise Colet, Pindemonte, Emilio Descamps, Victor Hugo, H. Murger, Lamartine, Espronceda, Byron, Zorilla, T. Gauthier, Laprade e Mery. Mais uma vez, o gosto francês impera, e poetas de outras nacionalidades, como Mickiewicz, também são traduzidos via francês. O nome mais recorrente nessa obra é o de Victor Hugo, que aparece em quatro traduções, seguido por Lamartine, de quem traduz três poemas. De Barthelemy, Barbier, Descamps e Mickiewicz traduz dois poemas de cada, e dos demais somente um poema. A presença de Mickiewicz entre os poetas traduzidos nos faz supor uma influência direta de Machado de Assis, já que Serra também vai a Konrad Wallenrod, de onde extrai “O Willia”. Inclui, ainda, o também célebre poema de Mickiewicz “A uma matrona polaca”, poema também imitado por Castro Alves, mas não incluído no volume de suas Obras Completas que 98 VARELA, Fagundes. “Estudo crítico”. In: MENESES, José I. Ferreira de. Flores sem cheiro. Rio de Janeiro: Typ. Episcopal de Antonio Gonçalves Guimarães e Cia, 1863, p. 183 99 Ibid. 56 consultamos. A comoção pelo que ocorria com a Polônia na época é visível também em outra tradução, “Aos emigrados polacos”, com indicação de autoria de Louise Colet. Machado de Assis encerra sua crônica da série Ao acaso de 7 de março de 1865 comentando o livro de seu amigo Joaquim Serra, que “[...] estudou com perfeita madureza e reproduziu com brilhante fidelidade” os poetas do volume, comprometendo-se a transcrever futuramente peças do volume100. Tomamos para um breve comentário uma das traduções que Joaquim Serra fez de Victor Hugo, retirada das Contemplations. É um poema breve, de apenas três estrofes, em que o tradutor mostra suas qualidades: Quadro comparativo 1 – Tradução de Joaquim Serra de poema de Victor Hugo Desce a fonte do rochedo, Gotta á gotta sobre o mar; Diz-lhe irado o torvo occeano: “Que vens gemendo buscar?” La source tombait du rocher Goutte à goutte à la mer affreuse. L’Océan, fatal au nocher, Lui dit : « Que me veux-tu, pleureuse “Trago em meu seio as tormentas, Começo onde acaba o ceo; Pobresinha, eu sou tão grande, Que despreso o feudo teu!” « Je suis la tempête et l’effroi ; Je finis où le ciel commence. Est-ce que j’ai besoin de toi Petite, moi qui suis l’immense ? » Diz a fonte ao fundo pelago: “Dou-te, sem bulha fazer, O que te falta—uma gotta D’agua doce p’ra beber!” La source dit au gouffre amer : « Je te donne, sans bruit ni gloire, Ce qui te manque, ô vaste mer ! Une goutte d’eau qu’on peut boire. » Fonte: Serra (1865); HUGO (1863) Joaquim Serra traduz os octossílabos das quadras de Hugo por redondilhas maiores, mantendo somente as rimas nos versos pares, enquanto no texto francês temos rimas cruzadas. Quanto ao sentido geral do poema, é inegável o quanto Joaquim Serra mantém-se próximo do texto-fonte, prova de seu talento e inventividade poética ao recriar o poema hugoano. Também dedicado a Machado de Assis, Corimbos (1869) de Luiz Guimarães Júnior traz diversas traduções: quiçá seguindo o rastro do amigo, traduz dois poemas de Mickiewicz, “Ao Niemen” e “Dia e noite”, também a partir da tradução francesa de Ostrowski conforme afirma em nota101. Traduz ainda Heine, a partir da versão francesa em prosa de Gérard de Nerval102, além de poemas de Lamartine e François Coppée. Há também “Recordações do mar”, indicada 100 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 247 GUIMARÃES JÚNIOR, Luis. Corymbos. Recife: Typ. do Correio Pernanbucano, 1869, p. 169. 102 Ibid., p. 170. 101 57 como “paráfrase”, mas sem indicar o autor. As notas de Corimbos trazem comentários interessantes sobre a experiência do tradutor ao utilizar traduções em prosa francesa que, segundo afirma, dificultam a tarefa: “Traduções de poesia em prosa, na frase pitoresca de Heine, não passam de ‘clair de lune empaillée’”103, diz a respeito de sua tradução de Mickiewicz, embora elogie, com restrições, as traduções em prosa que Nerval fez dos alemães. A nota ao poema “O cavaleiro Olaf”, elaborado a partir da tradução em prosa de Gérard de Nerval, também nos serve de testemunho do tradutor que Guimarães Júnior quis ser: “Lutei na tradução com duas enormes desvantagens para mim: – interpretar a sutileza do pensamento poético em primeiro lugar, e transportar para o verso alexandrino com a rima obrigada em todos os pés, a prosa embora brilhante e pura do tradutor do Fausto”104. É assim que no seu primeiro livro de poesias Luis Guimarães Júnior, que mais tarde seria um dos membros fundadores de Academia Brasileira de Letras, mostra sua filiação e adquire capital poético, expandindo seus horizontes para além do domínio francês de então, mas ainda seguindo de perto os passos de Machado de Assis. Machado de Assis, que foi um dos primeiros incentivadores do poeta, publicou uma crítica a este livro de Guimarães Júnior na Semana Ilustrada. Na opinião do nosso poetatradutor, “O livro dos Corimbos representa, pois, um talento desenvolvido e refletido”, e dos alexandrinos para os quais Guimarães Júnior transportou os versos de Heine em “O cavaleiro Olaf” Machado diz que são “cadentes, cheios e corretos”105, de que não se pode discordar quando lemos a primeira oitava desta recriação, que transcrevemos a seguir: Eil-os junto á capella os dois homens – são dois: Rubro manto os envolve. Um é rei, outro algoz. Diz o rei ao carrasco: “Eil-o emfim! Eis o instante: Examina o teu braço e a lamina brilhante” A subtil multidão da capella se escoa... Pelo meio do povo os noivos vão passando E um funebre cortejo os vem acompanhando.106 A leitura desses versos nos mostra como estão bem divididos os hemistíquios, os acentos corretamente colocados na 6ª e 12ª silaba de cada verso, conferindo-lhes a cadência correta. Curioso é notar que Machado de Assis não atribui a correção dos versos unicamente ao talento 103 GUIMARÃES JÚNIOR, 1869, p. 169. Ibid., p. 170 105 ASSIS, Machado de. “Um poeta fluminense”. In: Obra completa em quatro volumes. Volume 3. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2015, p. 1159 106 GUIMARÃES JUNIOR, 1869, p. 124 104 58 ou ao “gênio”, mas antes ao estudo árduo de Guimarães Júnior, que para Machado de Assis era “o único meio de chegar à perfeição”107. Também da década de 1860 são as poesias do maranhense Trajano Galvão de Carvalho (1830-1864). Poeta anterior a Castro Alves e Fagundes Varela, suas obras foram reunidas em 1898 sob o título Sertanejas, livro prefaciado pelo poeta parnasiano Raimundo Correa e que traz uma seção de “Traduções”, onde encontramos versões de Hugo, Alfred de Vigny, Pompignan e Béranger, de quem Trajano Galvão teria sido “digno émulo”, conforme se lê nos “Traços Biográficos” que acompanham o volume. Há, ainda, uma “tradução do francês”, sem indicação de autoria, com o título “Os mandamentos do crepúsculo”. De fato, Trajano Galvão emula mais do que traduz a canção de Béranger – poeta, cançonetista e ativo participante da Revolução Francesa, tão popular quanto Hugo e Lamartine – como se pode constatar ao compararmos rapidamente a primeira oitava do poema “O caçador e a leiteira” de Trajano Galvão com o texto francês correspondente: Com doces cantos a calhandra alegra Do almo dia o vermelho despontar; O amante caçador segue, oh! leiteira, Meigas fallas de amor has de escutar; Da primavera as orvalhadas flores Vamos, oh! bella, para ti colher. — Não, caçador, de minha mãe hei medo E o meo tempo não posso aqui perder.108 L’alouette à peine éveillée Chante l’aurore d’un beau jour ; Suis le chasseur sous la feuillée, Laitière ; il parlera d’amour. Dans la rosée allons, ma chère, Cueillir pour toi fleurs du printemps. — Non, beau chasseur, je crains ma mère. Je ne veux pas perdre mon temps.109 Na canção “Le chausseur et la laitière”, Béranger emprega o metro octossilábico, mais ligeiro e frequentemente traduzido pela redondilha maior, conforme já visto anteriormente. Trajano Galvão, contudo, escolhe traduzir em decassílabos, metro clássico português. A consequência é facilmente observável, pois o tom da oitava de Trajano Galvão é mais elevado. Parece-nos que o tradutor se aproveitou do tema para, a partir dele, compor sua versão mais do que procurou se ater ao modo de significar do texto fonte: “Do almo dia o vermelho despontar”, por exemplo, soa mais grave do que “Chante l’aurore d’un beau jour”. Isso não significa dizer, 107 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1159 GALVÃO, Trajano. Sertanejas. Rio de Janeiro: Edição da Imprensa Americana Fabio Reis & C., 1898, p. 101 109 BÉRANGER, Pierre Jean de. Œuvres complètes de Béranger. Paris: H. Fournier, 1839, Vol. 2, p. 265. 108 59 contudo, que a versão de Trajano Galvão seja inferior, mas simplesmente diferente, com um sabor e um toque mais pessoal. Também na edição das Obras completas (1921) de Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) em dois volumes, publicada no cinquentenário de sua morte, há uma seção de “Traduções” no primeiro volume. Os poetas mais presentes são Victor Hugo e Alfred de Musset: do primeiro, há textos apresentados como “tradução” a exemplo de “Perseverando” e “A Olympio”, “paráfrase” como “Palavras de um conservador a propósito de um perturbador”, todos no primeiro volume, e o “Canto de Bug-Jargal”, apresentado também como tradução, mas colocado no segundo volume; de Musset também temos quatro traduções: “Madrid”, chamada “tradução livre”, “Veneza”, apresentada como “ecos de Musset”, “Chanson” e “Octavio”. A relação entre Castro Alves e Musset foi estudada no ensaio “Itinerário mussetiano na poesia de Castro Alves” (1971), de Maria Alice de Oliveira Faria, que vê na poesia dele “presença de um Musset desfigurado pelo byronismo brasileiro”110, em especial pela leitura da obra de Álvares de Azevedo. No ensaio lemos que a publicação dessas traduções não se deu em vida, e que provavelmente foram meros exercícios poéticos de um período em que estava imerso na poesia mussetiana, exercícios cuja publicação mais atestam contra do que a favor da poesia de Castro Alves, crítica que se estende à publicação póstuma de textos que os autores preferiram não publicar em vida111. No levantamento feito por Tavares Bastos, Versões poéticas brasileiras de Victor Hugo, consta que “Sobre uma página de Victor Hugo”, de Espumas flutuantes, seria uma tradução de “Les deux îles” de Hugo112. Cita ainda uma nota onde se lê que Castro Alves teria feito “[...] versões literárias de todas as poesias de Victor Hugo contempladas na coletânea de Ch. André”, com a ressalva de que não há notícias da publicação dessas versões113. Ainda em Castro Alves, Guillermo Blest Gana e Lord Byron aparecem com duas traduções de cada: do primeiro, traduz “Pássaro viajante” e “O junco e o cipreste”; do segundo, “Uma taça feita de crânio humano” e “As trevas”, ambas apresentadas como traduções. Outros autores aparecem com uma tradução cada: de Lamartine traduz “Elegia”, de Lozano “Oitavas a Napoleão”, de E. Berthoud “As três irmãs do poeta”, de Henry Murger “A balada do desesperado” e de Espronceda, “Diabo Mundo”. Percebe-se o interesse de Castro Alves por 110 FARIA, Maria Alice de Oliveira. “Itinerário mussetiano na poesia de Castro Alves”. Alfa: revista de linguística, Vol. 17, 1971, p. 6. Disponível em: <seer.fclar.unesp.br/alfa/article/download/3420/3167>. Acesso em 13 fev. 2017. 111 FARIA, 1971, p. 35. 112 BASTOS, 1952, p. 13. 113 Ibid. 60 traduzir principalmente do francês, seguido do espanhol, e poetas quase exclusivamente contemporâneos a si, mas não incluiu suas traduções entre seus poemas. A maioria dos outros poetas que consultamos publica bem menos traduções em seus livros de poesia, e não raro sem nenhuma indicação de autoria ou indicação de fonte. Byron encontra tradutores em Fagundes Varela, Álvares de Azevedo e Sousândrade: este traduz “To Inez”, que encontramos em duas publicações. Na primeira delas, Impressos, o poema é apresentado como “paráfrase de Byron”, enquanto em Obras Poéticas de Sousândrade figura como “tradução”; Azevedo traduz “Parisina” do poeta inglês, e a única outra tradução que encontramos dele é de um poema de Heine, “Relógios e Beijo”, na Lira dos vinte anos (1853). Varela nos deixou uma versão a que chamou de “Child-Harold” com o subtítulo “sobre uma página de Byron”, acompanhado de nota explicativa informando ser uma imitação do canto “Ignez no poema de mesmo nome, de Byron”. Na obra de Varela encontramos ainda duas “imitações”: “A...” de Espronceda, “Maman”, sem indicação de quem seria o autor imitado, e “Colmar”, apresentado como “paráfrase ossiânica”. A presença de Byron no Brasil foi investigada no já citado livro de Onédia Célia de Carvalho Barboza, autora de Byron no Brasil: traduções, em que faz um minucioso levantamento das traduções que o poeta inglês recebeu no Brasil. Entre os tradutores do século XIX temos, além daqueles já mencionados nos parágrafos anteriores, T. A. Craveiro, possivelmente o primeiro a traduzir Byron, Francisco Otaviano, Antônio Gonçalves de Teixeira e Sousa, A. C. Soído, João Cardoso de Meneses e Sousa, Pinheiro Guimarães, J. M. Ferreira Júnior, Baltazar da Silva Carneiro, Gentil Homem de Almeida Braga, J. S. de Oliveira Silva, Teófilo Dias, Joaquim Dias da Rocha Júnior, Zeferino Vieira Rodrigues e vários outros, além das versões que foram publicadas sem nome do tradutor, ou sob pseudônimo, de forma que não fosse possível identificar o responsável. Nas análises críticas do livro de Barboza Álvares de Azevedo é apresentado como um tradutor que, em sua versão de “Parisina”, cria seu próprio byronismo, transfigurando o crepúsculo de Byron e “[...] tornando-o muito mais sombrio na tradução”114. Sobre Fagundes Varela, que apresenta sua versão como uma imitação, a autora escreve que [...] “justamente por pretender ser uma imitação de Byron, é um documento precioso pelo que revela do próprio Varela e de toda uma tendência do nosso romantismo”115. Para Onédia Barboza, Byron “[...] 114 115 BARBOZA, 1974, p. 163 Ibid., p. 199 61 torna-se anêmico e franzino quando comparado com o byronismo da composição do poeta brasileiro”116 que, por sua intensidade dramática, torna-se mais atraente do que o poeta inglês. Já a versão elaborada por Sousândrade para “To Inez”, “[...] não é a mais fiel, nem a mais infiel, mas é certamente a mais bela das versões brasileiras”117. Esta tradução também é um exemplo do motivo para termos cautela e desconfiança com o emprego de termos como “tradução/imitação/paráfrase”, termos que poderiam ser lidos hoje como maneiras diferentes de praticar a tradução, mas que na maioria das vezes, no período estudado, pareciam ser empregados sem muito critério terminológico. Esta versão de Sousândrade, por exemplo, embora apresentada como “paráfrase”, “apresenta as nove quadras do original e o segue bem de perto, principalmente se a compararmos com as composições de Otaviano e João Júlio”118. Quando, mais tarde, publica esta sua versão como “tradução”, Sousândrade de fato opera algumas mudanças na sua “paráfrase”, mantendo o metro da primeira, mas buscando alterações no sentido que demonstrassem, nas palavras de Barboza, “certo zelo de tradutor”119. Desde o princípio, contudo, estava Sousândrade acima do modelo: “[...] talvez devido à linguagem mais apropriada e mais simples e o movimento mais agradável dos versos, a composição de Sousândrade tem uma nota maior de sinceridade”120. Contudo, o que mais surpreende a pesquisadora é que a versão de Sousândrade toma outro caminho no tom geral da peça: se em Byron domina o tédio da vida e o desencanto, Sousândrade toma o caminho da tristeza e do sofrimento121, demonstrando que a tradução poética não é só reprodução, mas um processo paralelo de concriação que contribui para a pervivência da obra. Do Rio de Janeiro do século XIX também são duas coletâneas de poesias traduzidas que denunciam as preferências do período que disputavam atenção com Byron. A primeira é Lamartineanas — Poesias de Affonso de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros, organizada por Macedo Soares. Com 218 páginas, a obra foi publicada no Rio de Janeiro pela Liv. da Casa Imperial de Dupont & Mendonça, em 1869, ano da morte do poeta francês Lamartine. Hoje rara, e nunca reeditada, não pudemos consultá-la. Não obstante, sabe-se que foi nesse volume que Machado de Assis publicou pela primeira vez sua tradução “A El...”, também incluída em Falenas com o título alterado para “A Elvira”. Nas notas às Hugonianas, 116 BARBOZA, 1974, p. 201 Ibid., p. 207 118 Ibid. 119 Ibid., p. 209 120 Ibid. 121 Ibid. 117 62 de que trataremos a seguir, Mucio Teixeira tece alguns comentários que transparecem um leve desdém às Lamartineanas: “Muito bem andou o Sr. Dr. Macedo Soares, apresentando nas Lamartineanas duas traduções d’O Lago, duas da Invocação, duas do Isolamento, duas d’A El.***, duas da Ischia e duas da Tristeza, muito embora esse interessante volume tenha apenas 192 páginas de versos”122. Acreditamos ser esta uma visão bastante tacanha porque desconsidera por completo que o cotejo de diferentes traduções de um mesmo poema, por diferentes tradutores, é um interessantíssimo exemplo do trabalho crítico e criativo que é a tradução, um trabalho que nunca se esgotará no trabalho de um só tradutor, por mais competente que ele seja. Após consulta aos periódicos da época através da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional ficamos com a impressão de que a obra não recebeu atenção da crítica da época, pois não encontramos um só artigo comentando a publicação. Por outro lado, o volume Hugonianas — poesias de Victor Hugo traduzidas por poetas brasileiros (1885), com organização de Mucio Teixeira e publicado também no Rio de Janeiro pela Imprensa Nacional, recebeu sua segunda edição no mesmo ano. Dentre as dezenas de tradutores das Hugonianas temos nomes como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, José Bonifácio, Castro Alves, Arthur de Azevedo, Raimundo Correa, além do próprio Mucio Teixeira. Ao contrário de Lamartineanas, o volume de quase quinhentas páginas foi anunciado antes mesmo de sua publicação e recebeu algumas resenhas nos jornais da época. O Diário Portuguez (RJ) foi o que mais se encarregou da divulgação da obra: há anúncios de que seria publicada nas edições de 27 de maio123 e 23 de julho de 1885124. Na edição de 13 de agosto do mesmo ano sai no mesmo jornal a primeira resenha após a publicação125. No Diário de Notícias de 26 de julho de 1885 também há notícia de que a obra seria publicada, já com a informação de que se trata de um volume de 500 páginas e com os nomes de alguns dos poetas que assinam as traduções126. Mas é a Gazeta da Tarde de 12 de agosto de 1885 que encontramos a resenha mais extensa, um texto que pinta um interessante retrato do mercado literário daquele ano, de que transcrevemos o trecho a seguir: 122 TEIXEIRA, Múcio. Hugonianas: poesias de Victor Hugo traduzidas por poetas brasileiros. 2 ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1885, p. 476 123 HUGONIANAS. Diário Portuguez, Rio de Janeiro, 27 mai. 1885, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/173878/744>. Acesso em 9 ago. 2017. 124 HUGONIANAS. Diário Portuguez, Rio de Janeiro, 23 jul. 1885, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/173878/968>. Acesso em 9 ago. 2017. 125 HUGONIANAS. Diário Portuguez, Rio de Janeiro, 13 ago. 1885, p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/173878/1053>. Acesso em 9 ago. 2017. 126 FOYER. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 26 jul. 1885, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/369365/179> Acesso em 9 ago. 2017. 63 O Sr. Mucio Teixeira, resolvendo-se a publicar a grandiosa homenagem a Victor Hugo, parou desanimado diante de um grande obstáculo: quem publicaria a obra? Os editores de obras literárias desertaram inteiramente do Brasil, expatriados pela indiferença pública. Um amigo lembrou-lhe então as suas relações com o imperador, e a amizade que se estreitou entre o soberano brasileiro e o soberano intelectual de nosso século. O Sr. Mucio Teixeira agradeceu a lembrança e dirigiu-se a S. Cristóvão, onde recebeu o mais entusiástico e amistoso agasalho. Sua majestade prometeu ao poeta mandar publicar sua obra na Imprensa Nacional e no dia seguinte o ministério da fazenda expedia logo um aviso autorizando a publicação. Se não nos enganamos, o aviso mandou que a Imprensa Nacional se pagasse tirando da edição o número de exemplares que, pelo preço de venda pública, dessem para cobrir a despesa. Foi, pois, pela intervenção patriótica e inteligente do imperador que se publicou, por conta da Imprensa Nacional, o volume das Hugonianas127. No volume que organizou, Mucio Teixeira – que às vezes chama mais atenção para si próprio do que para Hugo – diz que “Victor Hugo é o poeta que maior influência exerce sobre a poesia brasileira”128. Como exemplo disso, afirma que Lamartine inspira Casimiro de Abreu, mas este não lhe traduz nem um verso, ao contrário, [...] enleva-se tanto nos livros de Hugo, que – inconscientemente – decora-lhe uma poesia inteira, recita-a, repete-a, tradu-la e apresenta-a como original, não só quando enviou à redação da Ilustração Luso-Brasileira, como também quando incluiu-a entre as flores de suas Primaveras.129 Nas notas às traduções Teixeira explica a inclusão da poesia de Casimiro de Abreu, “Ontem à noite”, que considera tradução de Hugo: “Esta tradução, quase literal, ainda na 5ª (e última) edição das Obras Completas de Casimiro de Abreu [...], aparece como produção original do cantor das Primaveras”.130 Na introdução às notas Teixeira explicita a gênese do volume, que confessa não ser ideia original sua, mas lembrada pelo Dr. Escragnolle Taunay, que se encontrava com ele e Joaquim Serra na Livraria Faro & Nunes quando receberam a notícia da morte de Victor Hugo. Na ocasião, lembraram-se da homenagem feita após o falecimento de Lamartine – as Lamartineanas de Macedo Soares – e decidiram prestar igual tributo.131 127 HUGONIANAS. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 12 ago. 1885, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/226688/5171>. Acesso em 9 ago. 2017. 128 TEIXEIRA, 1885, p. XXIV 129 Ibid., p. XXXI 130 Ibid., p. 475, grifos do autor. 131 Ibid., p. 473 64 Os diferentes tratamentos dispensados a esses dois volumes é um evidente exemplo do papel da patronagem tanto na concepção quanto na circulação das obras. Em Translation, rewriting and the manipulation of literary fame (1992), no capítulo de dedicado aos sistemas de patronagem que favorecem o aparecimento da obra, Lefevere explica o conceito de “patronagem” como “[...] poderes (pessoas, instituições) que podem promover ou dificultar a leitura, escrita e reescrita de literatura”132, e identifica ainda três elementos que interagem entre si como constituintes do processo de patronagem: o componente ideológico, o componente econômico e o elemento de status133. A patronagem, portanto, deve ser entendida como as forças que podem favorecer ou desfavorecer a leitura, escrita ou reescrita da literatura134. Ou seja, enquanto Lamartineanas teve uma circulação restrita, provavelmente de poucos exemplares, e até hoje não foi reeditada, Hugonianas teve apoio do próprio imperador para a publicação do volume, impresso com recursos da Imprensa Nacional, que foi reimpresso em pouco tempo e mais recentemente foi republicado com o apoio da Academia Brasileira de Letras e prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. Curiosamente, a Academia Brasileira de Letras não deu o mesmo tratamento a Lamartineanas, que contou com a colaboração de seu primeiro presidente entre os tradutores. Mesmo de Múcio Teixeira (1857-1926), que organizou Hugonianas e lá também incluiu traduções suas, encontramos poucas versões nos seus livros de poesia, dentre os que conseguimos consultar: em Novas ideias: poesias de 1880 temos a “Cantiga de Brander (Goethe)”; em Poesias de Mucio Teixeira, Tomo I, há “Fausto Gaúcho (Versão parafrástica. Fragmento)”, sem indicação de autoria do texto parafraseado; no Tomo II encontramos “Byron em Veneza (Versão)”, “O aeronauta (original castelhano)”, ambos sem indicação de autoria, e “Parisina (paráfrase byroniana)” que, em nota, diz: “Livremente traduzido de Byron. Mucio Teixeira finalizou o seu trabalho no episódio que lhe pareceu mais solene”135. Já ao fim do século, Alberto de Oliveira (1857-1937) inclui nas suas Canções Românticas (1878) “Calma no mar”, uma imitação de Mickiewicz, e Raimundo Correia (18591911) reúne em Versos e versões (1887) diversas traduções suas de autores como Théophile Gautier, Leconte de Lisle, Lope, Catulle Mendès, Armand Sylvestre, Le Bailly, Alphonse Karr, Victor Hugo, Heine, Rollinat, Byron, Coppée e Heredia além de “Apóstrofe de um beberrão ao 132 LEFEVERE, André. Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame. London; New York: Routledge,1992, p. 15. No original: “the powers (persons, institutions) that can further or hinder the reading, writing, and rewriting of literature”. 133 LEFEVERE, 1992, p. 16 134 Ibid., p. 13 135 TEIXEIRA, Múcio. Poesias. Tomo II. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903, p. 377. 65 sol” somente com a indicação “versão”, “A lira de Orfeu” como paráfrase, “Flauta do outono” do Livro de Jade, estas sem indicação de autoria. Raimundo Correia produz uma belíssima versão de “Coerulei Oculi”, de Théophile Gautier, recriando as quadras com rimas alternadas e empregando a redondilha maior no lugar dos octossílabos franceses: Na languorosa pupilla Boia uma tristeza vaga, E a lagryma, que vacilla E rola, o seu lume apaga. Lembram-me os cilios suaves, A palpitar, branca e exul Tribu de aquáticas aves Sobre o indefinido azul.136 Dans les langueurs de leurs prunelles Une grâce triste souri ; Les pleurs mouillent les étincelles Et la lumière s’attendrit. Et leurs cils comme des muettes Qui ressent le flot aplani Palpitent, aile inquiète, Sur leur azur indéfini.137 Mais parnasiana que o modelo francês, esta tradução de Raimundo Correia é mais um exemplo de que nossos melhores poetas-tradutores eram frequentemente capazes de superar os modelos que os inspiravam. Francisco Otaviano (1825-1889) também publicou um volume com traduções que não pudemos consultar, Traduções e poesias (1881), lançado em tiragem de apenas cinquenta exemplares, mas que segundo Paes incluiu versões de Ossian e Byron138. Este resumidíssimo levantamento que fizemos mostra o quanto a seara da tradução poética é extensa e o quanto ainda é preciso trabalhar para que tenhamos uma real noção do legado que nos deixaram, seja quanto aos poetas e poemas que traduziram, seja na forma como o fizeram. Muitos poetas estrangeiros ainda não receberam um levantamento minucioso de sua presença entre nós, nem quanto às suas traduções – que são abundantes –, nem pela influência que exerceram sobre nossos poetas e, consequentemente, sobre a formação de nossa identidade literária. Além dos estudos já citados aqui, conhecemos poucos volumes dedicados ao estudo de traduções poéticas, como Capistrano de Abreu e suas traduções (1953) de José de Arimatéia 136 CORRÊA, Raymundo. Versos e versões. Rio de Janeiro: Typ. e Lith. Moreira Maximino & C., 1887, p. 16 GAUTIER, Théophile. Emaux et camées. Paris : Eugène Didier Editeur, 1853, p. 55 138 PAES, 2008, p. 163 137 66 Pinto do Carmo, O corvo e suas traduções (2012), organizado por Ivo Barroso, e O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe (2011), de Claudio Weber Abramo. Percebe-se por essas publicações que talvez haja mais interesse pelo poeta traduzido do que por quem e como traduz. Ainda está por se fazer uma verdadeira “História da tradução literária no Brasil”, considerada por José Paulo Paes “tarefa ciclópica”, pela escassez de bibliotecas públicas, pelos acervos pobres e de catalogação deficiente139. Mesmo com o excelente trabalho de digitalização e disponibilização online de diversas obras – recurso que utilizamos amplamente nesta pesquisa – a sensação que fica é a de que ainda há muito a ser feito, considerando a enorme quantidade de títulos a que não conseguimos ter acesso. Percebe-se, ainda assim, que a prática da tradução entre nossos poetas do oitocentos foi intensa, com volumes dedicados inteiramente a traduções, como Traduções poéticas de Pinheiro Guimarães e Mosaico: poesias traduzidas de Joaquim Serra, ou que tiveram pelo menos uma parte da obra consagrada a elas, como Versos e versões de Raimundo Correia e Traduções e poesias de Francisco Otaviano, além dos volumes em homenagem a Lamartine e Hugo. O exame desta prática, todavia, ainda é amplamente negligenciado. A reversão deste quadro, mais do que resgatar nomes hoje esquecidos, poderia ser um interessante exercício de conhecimento da formação do gosto literário dos nossos românticos e parnasianos, e mesmo da nossa literatura. Viu-se, nos poemas e traduções apresentados, que entre nossos poetas o mais comum parece ser uma atitude mais livre com o texto de partida, afastando-se da tradução decalque do modelo defendido por De Simoni. Só um exame minucioso do comportamento de Machado de Assis enquanto tradutor de poesia, exame que aponte os caminhos que toma e o que faz com as formas e temas dos poemas que traduz, poderá demonstrar se Machado de Assis caminhava na esteira de seus contemporâneos e poderá nos ajudar a repensar novas formas de praticar a tradução de poesia hoje. 139 PAES, 2008, p. 153. 67 4. Machado de Assis e a tradução: das primeiras pesquisas à posição da tradução na poética machadiana Com as pesquisas e publicações recentes, sabe-se mais hoje sobre o Machado de Assis tradutor do que há alguns anos, mas ainda há muito a se descobrir, principalmente quanto ao que pode revelar um estudo que tome esses textos como obra e dê a eles o espelho (meta)crítico de que tanto necessitam, e não meramente como um trabalho tradutório de segunda ordem. Trata-se, aqui, de responder à pergunta sobre quem é o tradutor formulada por Antoine Berman e que ele considera um ponto de virada metodológico. De que temos notícia, só há no Brasil duas publicações dedicadas inteira e exclusivamente à produção de Machado de Assis enquanto tradutor: a primeira, Machado de Assis tradutor, de Jean-Michel Massa, publicada em 2008, mas escrita como tese complementar do trabalho de doutorado da década de 1970 que deu origem à biografia A Juventude de Machado de Assis: ensaio de biografia intelectual; e o livro de Eliane Fernanda da Cunha Ferreira, Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, publicado em 2004, também oriundo de uma tese de doutorado. O pesquisador francês Jean-Michel Massa, ao que parece, foi pioneiro no levantamento das traduções realizadas por Machado de Assis desde a sua juventude. O jovem Machado começa a traduzir em 1856, com “Minha Mãe”. No ano seguinte traduz A ópera das janelas, que se perdeu, e traduz durante quase toda a vida, sendo o Prólogo do ‘Intermezzo’ de 1894, do poeta alemão Heinrich Heine sua última atividade tradutória conhecida. Nas quatro décadas compreendias entre 1856 e 1894 Machado de Assis traduziu em diversos gêneros literários – romance, poesia, teatro, ensaio – e os mais variados autores, de diversos idiomas, como o francês, o alemão, o italiano, o espanhol e, caso mais complicado, o inglês. Dentre os autores que traduz, “imita” ou “parafraseia” estão Alphonse de Lamartine, William Shakespeare, Berninzone, Charles de Ribeyrolles, William Cowper, Alexandre Dumas Filho, Mme. De Girardin, Alfred de Musset, Victor Hénaux, André Chénier, Adam Mickiewicz, Gustave Nadaud, Heinrich Heine, Octave Feuillet, Victor Hugo, Beaumarchais, Victorien Sardou, Guillermo Blest-Gana, Louis-Hyacinthe Bouilhet, Friedrich Schiller, Charles Dickens, Gaillard, Dante Alighieri, Chateaubriand, La Fontaine, entre outros. Massa nos legou duas fontes imprescindíveis para o trabalho que se realiza nesta tese: a biografia intelectual do jovem Machado, A juventude de Machado de Assis e, principalmente, a tese complementar àquela outra, Machado de Assis traducteur, traduzida e publicada pela 68 Editora Crisálida com o título Machado de Assis tradutor em 2008. Nesta tese complementar, Massa justifica seu anseio de examinar as traduções: “Sentíamos o desejo de estudar mais de perto um número limitado de textos para tentar traçar dentro de um domínio preciso o retrato do escritor”140. Massa faz ainda algumas ressalvas a quem deseja se aventurar nesta empreitada: estudar as traduções de Machado de Assis é um trabalho de considerável amplitude, pois abarca não só diversos gêneros e autores, como diversas línguas e períodos literários, o que demanda uma capacidade de síntese particularmente apurada devido à diversidade do material com que se irá tratar. Contudo, Massa também alerta para a relevância do estudo: “As escolhas que ele fez são com frequência indícios de preferências pessoais. Dessa forma, as traduções formam uma espécie de medida para sua experiência das culturas estrangeiras”141. Nesta pequena obra de Jean-Michel Massa lemos que Machado de Assis começa a traduzir com apenas 17 ou 18 anos. Embora as quatro traduções que integram Ocidentais, das Poesias completas de 1901, não tenham sido obras inéditas, datando das décadas de 1870 e 1880, certamente passaram pelo crivo do crítico para adentrar seu último testamento poético. Considerando, portanto, que começou a publicar em 1855 e que viria a falecer em 1908, percebe-se que a tradução ocupou parte significativa de sua vida literária. Durante os dois primeiros anos desta produção já traduzira dos principais gêneros literários, mas até 1859 apenas do francês. A próxima língua a figurar na produção tradutória de Machado de Assis foi o italiano, uma vez que por volta dos vinte anos traduz o libreto da ópera Pipelet, segundo informação encontrada no Correio Mercantil, do qual Machado de Assis foi colaborador142. O passo seguinte no sentido de ampliar os horizontes tradutórios de Machado de Assis se deu na década de 1860, primeiramente com a tradução da opereta As bodas de joaninha, do espanhol que, de acordo com descobertas de Massa, permite estabelecer que aos vinte e dois anos Machado já conhecia o espanhol suficientemente bem143. Em seguida, com a tradução de “Alpujarra”, de Adam Mickiewicz, parte para o domínio da literatura polonesa, embora utilize o francês como língua intermediária. Esta será a primeira tradução poética que reaparecerá posteriormente em Crisálidas. Ainda na mesma década, Machado parte em direção à língua alemã, com “O casamento do Diabo”, que apresenta como uma imitação do alemão, mas que Massa afirma ser uma tradução francesa de Gustave Nadaud e que Machado, portanto, estaria 140 MASSA, 2008, p. 11 Ibid., p. 13 142 Ibid., p. 21 143 Ibid., p. 27 141 69 induzindo o leitor ao erro144. Demostraremos, quando tratarmos dessa tradução, que Machado muito provavelmente estava sendo honesto, conclusão a que foi possível chegar após termos identificado um possível texto-fonte para realizar sua imitação. Há, de qualquer modo, As ondinas, texto escrito com base na versão francesa de um noturno do poeta alemão Heinrich Heine, que também é um testemunho do interesse de Machado em ir além da cultura francesa. Em meados da década de 1860 já é visível que Machado pratica menos a tradução teatral e passa a gravitar em torno da tradução poética. É desta década também a mais extensa e única tradução integral de um romance feita por Machado de Assis, editada e reeditada até hoje: o romance Os trabalhadores do mar, do escritor francês Victor Hugo, publicada primeiramente em folhetim em 1866 e em volume posteriormente, de que nossa dissertação de mestrado Machado de Assis, tradutor de Hugo se ocupou. Com o primeiro volume de poesias – Crisálidas, de 1864 – vem também a primeira leva de traduções recolhidas em volume. Das 29 peças de Crisálidas, seis são traduções: “Lúcia”, de Alfred de Musset, “A jovem cativa”, de André Chénier, “Cleópatra - canto de um escravo” de Mme. Émile de Girardin, “As ondinas” de Heinrich Heine, “Maria Duplessis” de Alexandre Dumas Filho e “Alpujarra”, de Adam Mickiewicz. A presença francesa é notável, e mesmo aqueles poetas que não são franceses, como Heine e Mickiewicz, são traduzidos via francês. No decorrer desta pesquisa nos deparamos ainda com algumas traduções de Machado que, ao que tudo indica, não foram listadas por Jean-Michel Massa ou Eliane Ferreira. Uma delas é “Souvenirs d’Exil”, composto em alexandrinos por Charles Ribeyrolles durante uma festa e traduzido por Machado de Assis na mesma ocasião. Outra é “Lua da estiva noite”, um poema composto por Machado de Assis e musicado por Artur Napoleão para ser cantado com acompanhamento de flauta e piano. Na biografia Vida e obra de Machado de Assis de Raimundo Magalhães Júnior vimos que se trata de uma tradução, datada de 1867, e foi identificado o poeta Henry Wadsworth Longfellow como autor dos versos que Machado traduzira. Temos ainda uma imitação do alemão, “O coração”, de “Das Herz” de Herman Neuman, publicada anonimamente na década de 1870 em A Semana Ilustrada e atribuída a Machado de Assis por Magalhães Júnior. Também do alemão, igualmente atribuída a Machado pelo mesmo biógrafo é “O rei dos ôlmos”, tradução de uma balada de Goethe. Por fim, caso particularmente sui generis, “Inocência” de Luís Guimarães Júnior, também da década de 1870, 144 MASSA, 2008, p. 27 70 foi vertida para o francês por Machado de Assis, constituindo o que aparenta ser o único trabalho do tipo. Ainda na década de 1870 temos a publicação de Falenas que traz mais cinco traduções poéticas de Machado: “Os deuses da Grécia”, de Friedrich Schiller, “Cegonhas e Rodovalhos” de Bouilhet, “Estâncias a Ema” de Alexandre Dumas Filho, a paráfrase “A morte de Ofélia” de William Shakespeare, “A Elvira” de Alphonse de Lamartine e a “Lira Chinesa” composta de oito poemas traduzidos a partir de versões francesas de textos supostamente orientais. Novamente, o francês figura como língua intermediária para a realização de traduções de línguas que Machado desconhecia ou não dominava, como o alemão ou o inglês. É desta década também o segundo romance que Machado de Assis traduziu: Oliver Twist, do inglês Charles Dickens. Machado, contudo, não traduziu todo o romance, interrompendo o seu trabalho após metade do capítulo XXVIII. Massa conclui também que certamente Machado utilizou uma versão francesa para traduzir o romance para o português o que, em sua opinião, não é suficiente para dizer que Machado desconhecia o inglês naquela época145. Ainda nesta década, em 1873, é publicada outra tradução no domínio do inglês, “Monólogo de Hamlet” que, segundo Massa, rendeu críticas a Machado por ter acrescentado versos ao texto Shakespeariano146. Em 1874, é a vez de Dante Alighieri figurar entre os autores abordados por Machado, que traduziu o canto XXV do Inferno. A última tradução relevante do período, a comédia Plaideurs de Racine, está perdida, mas Massa sugere que teria sido uma encomenda, uma vez que foi representada em teatro, sem sucesso147. Americanas, de 1875, ao contrário de Falenas e Crisálidas, trouxe apenas uma tradução, a “Cantiga do rosto branco”, tradução em verso da “Chanson de la chair blanche”. John Gledson, a respeito desta tradução, diz que se trata de um relato recolhido do original muskogee por François René Chateaubriand ou algum conhecido, e incluído em Voyage en Amérique. Nos anos seguintes há uma diminuição sensível na produção tradutória de Machado, ao mesmo tempo em que são publicadas suas melhores traduções, reproduzidas posteriormente em Ocidentais. É dessa época a tradução de “O corvo”, de Edgar Allan Poe que, segundo Massa, “suscita bastante interesse”148. Massa chama a atenção para o fato de que os últimos nomes traduzidos por Machado de Assis são escritores de considerável envergadura, algo que chamou 145 MASSA, 2008, p. 38 Ibid. 147 Ibid., p. 39 148 MASSA, Op. Cit., p. 39 146 71 nossa atenção para este estágio final de sua produção149: há, inegavelmente, uma diminuição quantitativa que em nada reflete na qualidade do trabalho desenvolvido. Machado irá encerrar sua carreira como tradutor de poesia com dois textos do domínio alemão: “Seis dias em Cuiabá”, de 1888, que Massa considera a prova definitiva da fluência que o escritor brasileiro atingiu na língua, e o “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine em 1894, que reforça o interesse do tradutor pela língua e literatura alemãs. Embora nosso foco nesta tese se limite às traduções poéticas de Machado, elas são um ótimo termômetro para medir a variedade e a intensidade da prática da tradução por parte de Machado de Assis. O Gráfico 1 representa a distribuição do quantitativo das traduções poéticas de Machado de Assis em relação à língua-cultura do texto-fonte: Gráfico 1 - Distribuição das traduções poéticas de acordo com a língua-cultura do texto-fonte Fonte: Gráfico elaborado pelo autor É nítida, portanto, a prevalência da literatura francesa em relação às demais. Mesmo a aparentemente expressiva presença de literatura chinesa se deu via francês e, como veremos futuramente quando estivermos estudando os oito poemas da “Lira Chinesa”, passou por um filtro que afrancesou alguns daqueles textos a ponto de os tornarem irreconhecíveis para os sinólogos. Devemos ressaltar também que dentre as trinta e cinco traduções poéticas que estudaremos, apenas 40% foram sabidamente traduzidas diretamente do idioma original. Os outros 60% são de traduções indiretas, feitas a partir de alguma tradução francesa, e em vários casos sugerem que o tradutor pode ter trabalhado com mais de um texto-fonte ao mesmo tempo. Por fim, devemos ressaltar que a maioria das traduções poéticas de Machado de Assis são encontradas nos seus quatro livros de poesia: Crisálidas (1864), Falenas (1870), 149 MASSA, 2008, p. 40 72 Americanas (1875) e Ocidentais (1901). O Gráfico 2 ilustra a quantidade de poemas traduzidos em relação a poemas originais em cada uma das suas obras: Gráfico 2 - Presença de traduções nas obras poéticas de Machado de Assis Fonte: Gráfico elaborado pelo autor O gráfico sugere que há uma intensificação no interesse por traduzir poesia entre a publicação de Crisálidas e Falenas, que traz mais do que o dobro de traduções em relação ao livro anterior. Vê-se, também, que as poesias traduzidas perdem espaço nas publicações seguintes, conforme sua atividade de tradutor de poesia se torna menos intensa. Essa diminuição de intensidade é particularmente visível quando visualizamos, no Gráfico 3, a quantidade de traduções poéticas que foram produzidas e publicadas a cada década, incluindo as que não fizeram parte de seus quatro livros de poesia,: Gráfico 3 - Traduções poéticas publicadas em cada década 14 10,5 7 3,5 0 1850 1860 1870 Fonte: Gráfico elaborado pelo autor 1880 1890 O Gráfico 3 nos mostra que há uma significativa intensificação da atividade tradutória na primeira metade da sua carreira de escritor, com uma queda brusca a partir da década de 1880, 73 coincidindo com a chamada “maturidade” do escritor, o que nos leva a pensar que o primeiro momento desta atividade estivesse intimamente ligado à busca por modelos, a um refinamento de suas habilidades poéticas. Ao contrário do que fizemos no nosso levantamento, é interessante notar que Massa, entretanto, insiste em desconsiderar as “imitações”, como o poema “Minha Mãe” ou a peça Hoje avental, amanhã luva como textos da lavra tradutória de Machado de Assis. Estes textos, à primeira vista, não buscam correspondência rígida com os seus textos-fonte, sendo antes textos criados aproveitando-se o mote ou enredo de uma obra estrangeira, e elaborados a partir de um projeto próprio que não visava, necessariamente, refletir os textos de origem. Massa, ao que parece, está apoiado em uma visão tradicional de tradução que privilegia o decalque, a reprodução, ou que somente considera “tradução” textos que retenham conteúdo informacional e estético que espelhem em grau razoável os textos que lhes deram origem. Eliane Fernanda Cunha Ferreira, em Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, adota um posicionamento mais abrangente do que o de Massa para incorporar também esses textos entre a produção do tradutor Machado de Assis. Em seu livro, Ferreira pretende contemplar a contribuição de Machado como crítico e teórico de tradução a partir de textos que explícita ou implicitamente dizem respeito ao tema, como ensaios, pareceres emitidos enquanto era censor do Conservatório Dramático Brasileiro e até mesmo as crônicas ou romances de Machado. Ferreira busca apresentar Machado como um tradutor também da cultura, cujo trabalho reflete em sua poética o gosto literário do século XIX. Para fazê-lo, Ferreira adota um sentido mais amplo de tradução para poder abarcar outros textos que não foram abordados como traduções por outros pesquisadores, como os mencionados anteriormente. Ferreira propõe que a tradução possibilitou que Machado tivesse um olhar sempre em trânsito e que com o ensaio “Instinto de Nacionalidade” Machado estaria propondo uma expansão territorial e a dissolução de fronteiras e fala até mesmo em hibridização cultural como forma do surgimento do novo. Embora não de todo equivocado, o trecho parece um pouco precipitado. “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, como o próprio título denuncia, é um relato da situação que Machado observava por volta de 1873, quando o texto foi publicado e o objetivo do texto, como escreve o autor, é de “atestar o fato atual”, que é o instinto, o “geral desejo de criar uma literatura mais independente”150. 150 ASSIS, 2005, vol. 3, p. 1178 74 No ensaio, Machado direciona críticas à poesia árcade e ao indianismo e sugere que a literatura em formação deve “alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região”151 sem que se estabeleçam doutrinas que a empobreçam. Critica também o estado dos romances, aos quais faltam análise, da poesia, à qual acusa faltar correção, gosto e preocupação com a cor local, do teatro, que sequer existe para Machado. Talvez a afirmação de Ferreira esteja apoiada no famoso trecho em que Machado afirma que “[n]em tudo tinham os antigos, nem tudo tem os modernos; com os haveres de uns e de outros é que se enriquece o pecúlio comum”152, mas partir desse trecho para afirmar que Machado queria dissolver fronteiras e pretender hibridização cultural soa um pouco temerário. Ao contrário, a proposta parece ser a de que os jovens que entram na literatura sejam mais críticos, cuidadosos, parcimoniosos na escolha das influências e que se busque a tal “cor local” naquilo que há de realmente natural na sociedade, e não uma “cor local” de aparências, assim como se deve levar em consideração que há lições para se aprender com todos, e que por isso mesmo não se deve adotar e copiar servilmente modelos importados. O que se pode depreender de “Instinto de Nacionalidade” é a ideia que Machado tinha de que “[...] tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe”153 ou que “[...] não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal”154. É evidente que Machado estava propondo uma postura nacionalista menos radical, mais aberta à cultura universal, o que pode e deve ser associado ao seu interesse pela tradução, mas no sentido de se formar uma identidade nacional que se alinhe e passe a fazer parte de uma cultura universal. Falar em “dissolução de fronteiras” não parece estar de acordo com a proposta de criar uma identidade nacional, se entendermos identidade como algo que nos individualize, que nos diferencie dos demais, ainda que formada com elementos encontráveis em outras culturas. Machado afirma ainda que “[...] uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece sua região”155, mas também pede que não se estabeleçam “[...] doutrinas tão absolutas que a empobreçam”156, o que pode ser lido como um alerta para que a busca pelos matizes nacionais não ofusque o contato com outras literaturas e se empobreça em virtude disso. 151 ASSIS, 2005, vol. 3, p. 1179 Ibid. p. 1184 153 Ibid., p. 1178 154 Ibid., p. 1179 155 Ibid. 156 Ibid. 152 75 Ferreira propõe inclusive que Machado de Assis entendia por “originalidade” o apropriar-se do texto traduzido e aqui começamos a pensar em ressalvas a respeito desta proposta no que tange à prática da tradução. Primeiramente, porque pouco há publicado quanto a estudos analíticos das traduções feitas pelo escritor que corroborem ou refutem tal afirmação. Há muitos comentários esparsos, alguns pouco aprofundados, e sobre um pequeno punhado de textos, que são obviamente insuficientes para se chegar a qualquer conclusão generalizante a esse respeito. Acrescente-se a isso o fato de que a pesquisadora também não se propõe a estudar, superficialmente ou a fundo, os textos traduzidos por Machado, ou é o que parece já que tais estudos não foram apresentados, o que implica que os seus comentários acabam carecendo de dados – para além das opiniões e metáforas tradutórias do escritor – que os consubstanciem. Jean-Michel Massa, também incomodado com a falta de interesse da crítica pela produção de Machado de Assis como tradutor, em entrevista para a Revista Teresa, é ainda mais contundente ao comentar a tese de Ferreira, da qual discorda com veemência porque não acredita que houvesse “teoria da tradução de Machado”, ou teoria da tradução no século XIX157. Também discordamos de Massa neste caso porque a “teoria”, mesmo que não esteja sistematizada ou exposta como tal, se entendida como um conjunto de ideias que guiam e sustentam determinadas práticas, está implícita e é parte integrante, indissociável do fazer poético de quem traduz, seja ela consciente ou não. Afinal, só se pode traduzir a partir de um pensamento do que seja língua, cultura, literatura já que a tradução literária é muito mais do que uma operação meramente translinguística. Talvez Ferreira não esteja de todo equivocada, e não acreditamos que esteja, nem Massa de todo correto, mas é justamente por isso que um exame mais minucioso das traduções que Machado de Assis se faz necessário, para que seja possível corroborar ou refutar afirmações que foram feitas sem o cuidado que se deveria ter. Massa, por exemplo, parece estar correto ao afirmar que Machado adotou práticas diferentes conforme o texto que traduzia. Isso foi verdade quando traduziu o romance Les travailleurs de la mer de Victor Hugo, em que se percebe uma nítida diferença de postura do tradutor entre os primeiros e os últimos capítulos conforme estudo feito na dissertação Machado, tradutor de Hugo, de 2007, mas não podemos extrapolar esta afirmação para suas traduções teatrais e de poesia antes de examinarmos os textos. Ferreira sugere ainda que se compreenda a tradução naquele período, marcado pela tentativa de formação de uma identidade cultural nacional, não como um empecilho, como 157 MASSA, 2006, p. 466 76 Machado de Assis afirmou, mas como uma atividade que gera um espaço de tensão que, por fim, contribuiria para a o enriquecimento da formação cultural brasileira. A autora, evidentemente, está apoiada nas propostas de Itamar Even-Zohar e seus estudos sobre a formação dos sistemas literários em que a tradução costuma exercer um papel de considerável relevância. Analisando os pareceres emitidos por Machado de Assis quando atuava do Censório Dramático Brasileiro, em que o escritor é incisivo nas críticas feitas aos tradutores dramáticos e empresários de sua época, Ferreira conclui que “[...] Machado não percebia que a tradução cooperava com a expansão dos bens culturais europeus nas terras do Novo Mundo”158, afirmação que também consideramos precipitada e que, como pretendemos demonstrar, nem sempre encontra respaldo na sua própria prática como tradutor. Na elaboração de sua “teoria de tradução de Machado”, Ferreira também lança mão de “metáforas da tradução” obtidas a partir da obra de Machado de Assis, a exemplo da metáfora do tradutor como “criado de servir” tirada de “Ideias sobre o teatro”. Partindo desta metáfora, Ferreira afirma que “O que [Machado] não aceitava era a falta de tempero nacional nos pratos da cozinha estrangeira. O artista, o tradutor, os empresários teatrais podiam buscar a ‘especiaria alheia’, desde que a temperassem com ‘o molho’ de sua fabricação”159 para dar a entender que Machado queria chamar a atenção para os riscos de reproduzir servilmente a estética teatral clássica, romântica ou realista, particularmente de culturas europeias, sem que se contribuísse com a formação de um teatro nacional. Ainda no mesmo tom, Eliane Ferreira afirma que Para Machado [...] uma tradução deve ser bem elaborada, devendo o tradutor ter conhecimento das línguas que traduz, independentemente de se tentar fazer uma tradução ‘literal’, pois o movimento em si, de passar de um idioma para outro, já torna essa pretensão de espelhamento impossível.160 Novamente, em que pese a plausibilidade da proposta, faltam dados que a consubstanciem, dados que só obteremos a partir da análise dos textos por ele traduzidos. Quando, nos pareceres ou nos ensaios, Machado criticava tradutores contemporâneos a si é certo que também deixava transparecer sua opinião sobre como deveria ser levado a cabo o trabalho tradutório: primando pela correção gramatical e respeito à língua, rechaçando os galicismos corriqueiros, e temperando com o sabor local. Embora nada haja de errado com esta linha de pensamento, propor, como Ferreira, que com a peça Hoje avental, amanhã luva, imitação da peça francesa 158 FERREIRA, Eliane F. C. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis. São Paulo: Annablume; Rio de Janeiro: ABL, 2004, p. 71 159 Ibid., p. 77 160 Ibid., p. 78 77 Chasse au lion, “[...] Machado demonstra que o trabalho do tradutor pode ser criativo e livre”161, associando-o aos trabalhos transcriativos de Haroldo de Campos, a impressão que fica é de que a proposta parece, sim, um pouco fora de lugar, além do desconhecimento do que era, na prática, a transcriação haroldiana. O que Machado faz com frequência nas suas imitações é uma apropriação do enredo ou tema para compor uma outra peça adaptada à realidade nacional, sem procurar necessariamente reproduzir as nuances da forma do texto de partida. O trabalho de transcrição de Haroldo de Campos não foge radicalmente do texto de origem. O que há, na verdade, é uma tradução muito menos radical: os resultados são textos facilmente identificáveis como uma tradução que busca recriar, na língua de chegada, o jogo estético elaborado pelo texto de origem, na maior parte das vezes respeitando o que o texto-fonte estipula – métrica, rima, figuras de linguagem, por exemplo – e não raro publicadas em edições bilíngues para que o cotejo entre os textos seja facilmente executado por quem é capaz de ler nos dois idiomas, a exemplo da tradução da Ilíada ou dos poetas provençais que ele e seu irmão Augusto fizeram. Se Ferreira estivesse falando da tradução que Machado fez do Canto XXV do Inferno, talvez a proposta soasse um pouco mais coerente. Afinal, é neste canto que Machado realiza um trabalho de tradução que busca reencenar, nos moldes dos irmãos Campos, o modo de fazer poesia realizado por Dante Alighieri, sendo inclusive elogiado por Augusto de Campos pelo resultado alcançado. Em contraponto, Ferreira afirma que “[...] Machado não perdia de vista o texto ‘original’, sempre respeitando o autor, pois o texto, ao ser traduzido, tornava-se dele na medida em que se permitia algumas licenças, fazendo paráfrases, entendidas como traduções livres”162, o que parece um pouco contraditório. Ora, como pode não perder de vista o original e ao mesmo tempo produzir algo como Hoje avental, amanhã luva, ou “Minha Mãe”, que não buscam manter uma relação formal com os textos de origem, ou, como a própria autora escreve, como ser “criativo e livre” e ao mesmo tempo não perder de vista o original? Nestes textos, há muito mais do que “algumas licenças”. O trabalho criativo nestes casos é interessante, e pode inclusive ser observado sob a lente da tradução, mas sem um exame crítico dos trabalhos em si, afirmações como essas soam fracas. Da mesma forma, afirmar que “[...] Machado de Assis desenvolveu uma teoria da tradução, por subtração, de forma oblíqua e enviesada, formando um mosaico teórico de 161 162 FERREIRA, 2004, p. 84 Ibid., p. 102 78 tradução, paralelamente à sua criação literária”163, demonstrando entender que a tradução tem sua importância na formação cultural, intelectual e mesmo identitária brasileira, também soa particularmente apressado e pouco convincente. Conforme veremos nas análises à frente, Machado teve comportamentos diferentes traduzindo autores diferentes, mas também é possível encontrar muito mais coerência no seu trabalho do que o contrário. Seria imprudente, antes de um exame minucioso de suas traduções, tratar todo o trabalho de maneira generalizante como se houvesse perfeita coerência na sua prática tradutória. Se “Dante”, de Ocidentais, tradução do Canto XXV da Divina Comédia, é quase uma transcriação haroldiana, em “O corvo”, também de Ocidentais, o que se vê na prática é quase o inverso. Considerando que cada trabalho pede por uma abordagem particular, é natural que, lidando com textos diferentes, de autores diferentes, em épocas diferentes, o tradutor reveja alguns de seus posicionamentos anteriores e passe a adotar práticas que estejam de acordo com o que pede a obra com a qual trabalha naquele momento. Isso não quer dizer que não se possa elaborar um perfil de Machado enquanto tradutor ou que se não possa elaborar o que seria uma abordagem teórica utilizada pelo escritor oitocentista. Traçar seu perfil como tradutor é algo que pode ser feito não somente a partir dos textos em que ele afirma o que pensa sobre tradução, principalmente quando os tais textos são tão poucos e tão vagos, mas também, e principalmente, a partir do seu principal legado enquanto tradutor, que são os textos traduzidos por ele e que chegaram até nós. Vale lembrar as palavras do tradutor e teórico de tradução francês Antoine Berman, em Pour une critique des traductions: John Donne, que corroboram o que acabamos de afirmar: “[...] tudo que um tradutor pode dizer e escrever sobre seu projeto só se realiza na tradução”164. Pouco se tem, no entanto, do próprio punho do escritor a respeito das traduções que fizera, e não há texto dedicado exclusivamente a refletir sobre aquele projeto de tradução de que falou Berman. Há uma ou outra nota, um e outro parágrafo introdutório com informações meramente circunstanciais. Sobre as crenças e posicionamento de Machado de Assis a respeito da tradução, sabe-se pouco também. Não há nenhum texto em que Machado se dedique exclusivamente à reflexão da prática tradutória, sua ou de outrem. O que temos são breves comentários, geralmente com críticas severas à má qualidade das traduções praticadas por aqui 163 FERREIRA, 2004, p. 109 BERMAN, 1995, p. 77. No original: “tout ce qu’un traducteur peut dire et écrire à propos de son projet n’a réalité que dans la traduction”. 164 79 no século XIX, como visto em alguns pareceres emitidos por ele enquanto atuava no Conservatório Dramático. Além da já citada crônica em que Machado de Assis dá notícia das Traduções poéticas de Pinheiro Guimarães, há também uma crônica da série Ao acaso, publicada em 22 de agosto de 1864, um dos raros momentos em que Machado comenta explicitamente a tradução de outro poeta. Começa a crônica dizendo que é visitado por dois poetas ilustres, ambos americanos, um do Norte e outro do Sul: são John Greenleaf Whittier e Pedro Luís. Nosso patrício traduz do primeiro a poesia “O grito de uma alma perdida”, que é avaliada por Machado de Assis nos seguintes termos: “A poesia tradução parece poesia original, tão naturais, tão fáceis, tão de primeira mão, são os seus versos”165. Em seguida, temos a reprodução, na íntegra, da tradução de Pedro Luís e a versão em língua inglesa de Whittier, aos quais Machado de Assis chama de “dois originais”. Os comentários de Machado de Assis se limitam a isso. Todavia, ao oferecer ao leitor as duas versões do poema e dizer que ambas são “originais”, pode-se inferir que Machado de Assis concordava com os procedimentos e resultados do trabalho de Pedro Luís. Uma rápida análise do poema nos mostra, de imediato, que o tradutor segue, quanto à forma, caminho completamente independente em relação ao poema de Whittier. O poema estrangeiro tem quinze tercetos de dez pés cada e, em cada terceto, os versos sempre rimam entre si. A primeira diferença que se nota na tradução de Pedro Luís é que os tercetos são substituídos por quinze quadras. O verso a mais certamente foi necessário para melhor acomodar o sintetismo característico da língua inglesa. Os versos ainda têm dez pés, mas rimam somente os versos pares de cada estrofe. Obviamente, Machado de Assis não via problema algum nestas alterações meramente formais. Se considerarmos que essas alterações trazem o poema de Whittier para as formas clássicas da poesia de língua portuguesa, podemos igualmente inferir que Machado de Assis concordava com tais procedimentos. Vejamos rapidamente duas estrofes, original e tradução – ou original e original, como disse Machado –, para avaliarmos melhor o trabalho do poeta: Through sins of sense, perversities of will, Through doubt and pain, through guilt and shame and ill, Thy pitying cry is on thy creature still. Apesar do pecado, da maldade, Do crime, da vergonha e da amargura, 165 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 154 80 Da dúvida, e do mal – sempre ilumina Teu meigo olhar a tua criatura166. O que percebemos é que Pedro Luís soube afastar-se do texto de Whittier, tomar dele as ideias, os conceitos, as imagens e a partir desses elementos compor outro poema em língua portuguesa. Não há um só verso na tradução de Pedro Luís que corresponda literalmente, como um reflexo, a um verso do poema de Whittier. O que temos são dois poemas com uma mesma temática, que narram o mesmo acontecimento, mas cada um à maneira que cada poeta julgou mais apropriada à sua língua e cultura. Conclui-se a partir deste exemplo que, na visão de Machado de Assis, a tradução poética não é simplesmente a busca por reprodução de forma e conteúdo, mas um fazer poético também autoral que busca o sentido dentro ritmo próprio da língua-cultura de quem traduz. É de se lamentar que não tenhamos mais exemplos como este. Em alguns de seus ensaios, como “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858, “Ideias sobre o teatro”, de 1859, ou “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”, de 1873, Machado externa pontualmente sua opinião, severa e contundente, a respeito da maioria dos tradutores, a quem culpa pelo atraso na formação de uma literatura nacional, apontando os equívocos de tradução e os galicismos que ferem a língua pátria. Em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858, o jovem Machado, que ainda não completara 20 anos de idade, pergunta: “Para que estas traduções enervando a nossa cena dramática? Para que esta inundação de peças francesas, sem o mérito da localidade e cheias de equívocos, sensaborões às vezes, e galicismos, a fazer recuar o mais denodado francelho?”167, e mais adiante reclama do fato de a tradução ser preponderante nos teatros e que, observa, traduzir peças francesas “[...] é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda”168, chegando mesmo a sugerir um “imposto sobre traduções dramáticas”169. O mesmo tom é encontrado em “Ideias sobre o teatro”, do ano seguinte, onde afirma que o teatro “tornouse uma escola de aclimatação intelectual”, de onde surge a entidade do tradutor dramático, a que chama de “espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha”, para chegar à conclusão de que o tratamento dado às traduções faz delas “tarefa estéril”170. Quatorze anos mais tarde, em “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, o crítico nos diz que a situação teatral permaneceu praticamente inalterada. 166 Ibid., p. 155-157 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 990 168 Ibid. 169 Ibid. 170 Ibid., p. 1013 167 81 Ao falar do teatro, diz que ele “pode reduzir-se a uma linha de reticência” e que a cena teatral brasileira viveu “sempre de traduções, o que não quer dizer que admitissem alguma obra nacional quando aparecia”171. Reconhecendo na tradução o elemento dominante na literatura de então, particularmente no teatro, critica a mercantilização da arte e a falta de critério na escolha de quem ficará incumbido das tarefas tradutórias. Note-se, contudo, que nesses três ensaios Machado de Assis trata exclusivamente da tradução teatral, e não da tradução poética ou narrativa. Ainda assim, mesmo quanto à tradução teatral, o que ele diz nos ensaios acima não deve ser lido literalmente, como se o crítico abominasse qualquer tipo de tradução teatral. Afinal, ele mesmo assinou algumas, três das quais foram publicadas recentemente por Jean-Michel Massa172, e no seu trabalho como censor teatral a tradução é elogiada quando feita com esmero. Nos pareceres emitidos enquanto membro do Conservatório Dramático despontam as mesmas críticas dos ensaios: excesso de galicismos, escolha de obras valor estético duvidoso, a supressão de trechos que o tradutor não consegue transpor ou a utilização de linguagem que beira o ininteligível. Dos dezesseis pareceres que conhecemos, compreendendo o período entre 1862 a 1864 durante o qual Machado atuou como censor, seis são sobre textos traduzidos. Foram encontrados, segundo relato de José Galante de Sousa, por Eugênio Gomes no acervo do Conservatório Dramático sob os cuidados da Biblioteca Nacional em 1952, e publicados na Revista do Livro, n. 1-2, de junho de 1956173. Todavia, na obra publicada em 2014 pela Fundação Biblioteca Nacional, Os exames censórios do Conservatório Dramático Brasileiro: inventário analítico, no texto introdutório de Marco Lucchesi, “Uma cartografia notável” (2014), fala-se que Machado de Assis “produziu algo como dezessete pareceres, redescobertos em 1953 pelo então presidente da Biblioteca Nacional, Eugênio Gomes”174. De fato, na relação encontrada no “Guia de coleções – Ficha técnica – Divisão de Manuscritos”, no item 2 na página 19, contamos dezessete pareceres. A diferença ocorre porque Machado de Assis emitiu um só documento para duas peças, O filho do erro e Os espinhos de uma flor, ambos avaliados 171 Ibid., p. 1183 Cf. MASSA, Jean-Michel (Org.). Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis (Os burgueses de Paris, Tributos da Mocidade e Forca por forca). Vário Autores. Tradução de Machado de Assis. Belo Horizonte: Crisálida, 2009. 173 ASSIS, Machado de. “Pareceres do conservatório dramático”. In: Revista do Livro, Órgão do Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, n. 1-2, junho de 1956, p. 178 174 LUCCHESI, Marco. “Uma cartografia notável”. In: LEMOS, Valéria Pinto (Org.). Os exames censórios do Conservatório Dramático Brasileiro: inventário analítico. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2014, p. 9. 172 82 no parecer de 8 de janeiro de 1854, conforme se observa na publicação dos pareceres na Revista do Livro. A primeira tradução avaliada por Machado, Clermont ou a mulher do artista, recebeu autorização para ir ao palco e ser representada, mas não sem antes experimentar a aspereza do censor quanto à obra e quanto à tradução: “Se a peça não vale nada por si, a tradução veio tornála mais inferior ainda se é possível. Não só a construção da frase portuguesa se ressente do idioma original, mas ainda há vocábulos disparatadamente traduzidos”175. A avaliação do censor revela que em seu horizonte de expectativas quanto a um texto traduzido está o respeito à língua portuguesa, algo que aparecerá em outros pareceres, seja em forma de elogio, como no caso da tradução de Os descarados – “a tradução está feita em português correto e elegante, fruta rara em teatro”176 – ou na de Os garatujas – “encontrei uma linguagem correta, sem quebra do espírito de que está cheio o original"177 – ou crítica, geralmente severa, como a que encontramos no parecer da peça Os nossos íntimos: A comédia Os nossos íntimos é a mesma que já examinei com o título Os íntimos. Pude reconhecê-la apesar da tradução que está em vasconço. [...] Uma simples e ligeira comparação entre o original e a tradução que tenho presente basta para ver quanto esta é infiel, e como o tradutor suprimiu as dificuldades que não pôde vencer.178 Quando elogia os tradutores, o motivo é quase sempre o mesmo: o cuidado com a língua portuguesa, algo que desponta como de grande importância para Machado. Na última das notas que acompanham os poemas de Falenas, por exemplo, Machado atribui a Feliciano de Castilho a tradução da ode a partir da qual compõe seu texto. A respeito desta tradução, afirma que fora tão “portuguesmente saída das mãos do Sr. Castilho que mais parece original que tradução”, comentário que assinala para duas possíveis leituras: por um lado, Machado preza o cuidado com o vernáculo, um dos seus máximos critérios de julgamento, e, por outro, aprecia traduções que são capazes de, por si próprias, serem lidas como uma obra, e não somente decalque, um pálido reflexo desprovido de valor estético. Resta, ainda, mais uma leitura: a tradução é apreciada quando reforça a tradição literária e a língua portuguesa. O apreço e a importância que Machado de Assis conferia ao trabalho do tradutor, entretanto, ficam ainda mais patentes na carta de 10 de junho de 1899, enviada ao seu editor francês Garnier em que reporta um pedido de autorização de tradução de suas obras para o alemão. Machado acata prontamente, abrindo mão dos proventos oriundos dos direitos autorais 175 ASSIS, 1956, p. 178 Ibid., p. 186 177 Ibid. 178 Ibid., p. 184 176 83 para ver sua obra traduzida, considerando-se pago pelo benefício de ver sua obra em outro idioma. Diz Machado: “Para mim, Senhor, eu não exigiria nenhum outro benefício, crendo que é vantagem me tornar conhecido numa língua estrangeira, que tem um mercado tão diferente e tão distante do nosso”179. O pedido, infelizmente, é negado pelo editor, com o argumento de que os alemães sempre cobram e que, de sua parte, a autorização dependeria do pagamento de cem francos por obra, o que põe fim ao projeto. A troca de cartas, no entanto, explicita o empenho de Machado em ver sua obra traduzida para a língua de Goethe, atestando seu apreço pelo idioma naquele momento, sua crença de que a tradução seria o melhor meio de se tornar visto no exterior e, por conseguinte, o reconhecimento do papel da obra traduzida no diálogo entre culturas e sistemas literários. Na tentativa de contribuir para a elaboração do retrato e da poética tradutória machadiana elaboramos a dissertação de mestrado Machado de Assis, tradutor de Hugo, defendida em 2007. O propósito deste trabalho foi fazer um estudo crítico da tradução que Machado de Assis fez do romance Les travailleurs de la mer, de Victor Hugo, publicado primeiramente em folhetim aqui no Brasil e, posteriormente, em volume. Ao contrário do que a crítica afirma nos poucos comentários encontrados a respeito desta tradução, durante o estudo empreendido percebeu-se que afirmações de que Machado “se permitiu algumas licenças” ou que procurou amortecer as “ruidosas antíteses hugoanas” ganharam outro significado. A pesquisa nos permitiu concluir que “[...] se Machado vez ou outra amortece as antíteses hugoanas, esta não parece ser sua preocupação principal, da mesma forma como o argumento em favor do sintetismo machadiano de forma alguma se comprova sistematicamente na tradução”180 e que [...] não há [em Os trabalhadores do mar] um sistema tradutório perfeitamente definido, não há um conjunto homogêneo de procedimentos que confiram unidade às decisões tradutórias de Machado. Pelo contrário, a aparente contradição de procedimentos em alguns momentos de certa forma testemunha em favor da dinamicidade que sugerimos para a realização da tradução, em que a falta de tempo era uma preocupação constante.181 179 ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; Reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, p. 378. No original: « Pour moi, Monsieur, je ne lui exigerait (sic) aucun autre bénéfice, trouvant que c’est déjà un avantage de me faire connaître dans une langue étrangère, qui a son marché si différent et si éloigné du nôtre. » 180 FLORES, Diego do Nascimento Rodrigues. Machado de Assis, tradutor de Hugo. 2007. 232f. Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007, p. 206 181 Ibid., p. 207 84 Logo, o conceito de fidelidade tradutória de Machado de Assis que foi se desenhando à nossa frente conforme avançávamos no estudo apontava, na verdade, para uma mínima interferência desnecessária do tradutor, tentando reproduzir em português nuances características da obra traduzida, algo que vez ou outra esbarrava e conflitava com o que o tradutor entendia e prezava como as normas de bom uso da língua pátria. Na pesquisa, verificou-se ainda que o tradutor parecia tomar consciência do seu trabalho conforme traduzia e que, devido às condições a que deve ter sido submetido, a tradução deixa transparecer uma certa melhoria na qualidade do trabalho, como se aos poucos e conforme traduzia, a linguagem e o estilo de Machado entrassem em sintonia com o de Victor Hugo. Devido a isso, no caso da tradução do romance Les travailleurs de la mer não se observa um sistema tradutório perfeitamente definido nem um conjunto homogêneo de procedimentos que conferissem unidade às suas decisões tradutórias, o que poderia ser interpretado como uma ausência de reflexão sobre a prática da tradução mas que, no nosso entendimento, parece fruto das condições adversas a que o jovem tradutor foi submetido para realizar um trabalho pelo qual era pago. Se por um lado encontramos escolhas que denotam bastante cuidado com a análise feita antes de se traduzir, há outros bastante literalizantes. Contudo, o que se descobre de mais constante nesta tradução é uma aparente preocupação com os problemas estéticos apresentados pela obra, como se o tradutor entendesse que, para que o romance funcionasse com os leitores de língua portuguesa, precisava recriar o efeito estético o melhor que pudesse nas suas escolhas. Se no começo da tradução encontramos certa preferência por construções mais sintéticas da parte do tradutor, frutos da provável pressa em fazer o trabalho que saía periodicamente nos jornais, posteriormente o procedimento é abandonado em favor de outros que conferissem à tradução características mais próximas do texto francês na construção de parágrafos, no emprego dos tempos verbais e mesmo no respeito às nuances antitéticas do romance de Hugo. De todo modo, mesmo quando Machado distancia-se dos aspectos formais do romance, parece fazê-lo com uma ideia de fidelidade que está atrelada ao efeito estético que se deva produzir através da tradução, mesmo que isto signifique afastar-se de uma tradução literalizante ou decalque. A impressão que ficou após o estudo desta tradução é a de que Machado de Assis foi um tradutor que era também um excelente leitor e crítico literário que, apesar das condições absolutamente adversas durante a tradução do romance francês, soube fazê-lo de forma a sintonizar-se com Hugo. 85 Outro trabalho amplia a visão que tivemos analisando a tradução do romance de Victor Hugo. Trata-se de “Tradução e intermediação: textos dramáticos franceses traduzidos por Machado de Assis”, de Helena Tornquist, publicado em 2012 como parte do volume Machado de Assis: tradutor e traduzido organizado por Andréia Guerini, Luana Freitas e Walter Costa – a mais recente publicação a respeito do trabalho de Machado enquanto tradutor, assim como da recepção da sua obra no exterior. A autora faz um breve relato da relação entre Machado de Assis e a cena teatral do Rio de Janeiro da época, particularmente no que concerne à prática da tradução teatral do escritor. Uma das conclusões a que Tornquist chega é a de que Machado expressa consciência de que há limites para a liberdade do tradutor que são estabelecidos pelo próprio texto a partir de uma crônica de Balas de Estalo, de 1884, que nos leva a pensar que o autor acreditava que o texto de chegada deve respeitar, quanto ao sentido pelo menos, o que fora estipulado pelo texto de origem. Isso não quer dizer, contudo, que Machado quisesse que toda tradução fosse simplesmente uma reprodução servil do texto de partida. Tornquist comenta e analisa o exemplo da imitação Hoje avental, amanhã luva, e avalia as escolhas de Machado: O título Hoje avental, amanhã luva é bem mais expressivo que Chasse au lyon e tem a sustentá-lo uma réplica acrescentada pelo tradutor, prova de que Machado não hesitava fazer supressões ou acréscimos, quando necessários. A tradução não se limitou à transposição de falas para nossa língua nem à busca de palavras e expressões correspondentes: foram eliminados alguns termos (mots d’esprit) e certas réplicas que não funcionariam em português, tais como as “alusões boulevardières” à idade das mulheres ou a recriminação a um empregado.182 A partir do comentário acima, fica evidente o quanto Machado toma liberdades para si, mas ao mesmo tempo evita chamar este trabalho de “tradução” no sentido estrito do termo, preferindo apresentá-lo como uma imitação. Tal escolha sugere que, para o escritor, quando se toma tantas e tais liberdades, reconfigurando o texto de origem e criando outra obra com a qual guarda pouca relação formal, o texto passa a pertencer a uma ordem diferente daquela dos textos traduzidos conforme dita e espera o senso comum, por mais que, contemporaneamente, os estudos de tradução nos permitam aceitar também esta imitação como um trabalho tradutório. 182 TORNQUIST, Helena. “Tradução e intermediação: textos dramáticos franceses traduzidos por Machado de Assis”. In: GUERINI, A.; FREITAS, L. F. de; COSTA, W. C. (Orgs.). Machado de Assis: tradutor e traduzido. Tubarão: Ed. Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2012, p. 65 86 Por outro lado, veremos que o poeta-tradutor não usa com muito rigor conceitual termos como “tradução” ou “imitação”, de forma que seria temerário exigir dele coerência neste sentido. Tornquist ainda tira outras lições estudando a tradução teatral de Machado. Percebe, por exemplo, que “[...] Machado sabe que a clareza é importante pois o texto falado no palco requer compreensão imediata, e isto se pode ver no emprego dos tempos verbais”183 e que o tradutor procura adequar a conjugação dos verbos aos modos de falar de seu público, ou ousa na busca por correspondências na língua de chegada de forma a deixar seu texto mais vivo para os espectadores. Com este texto curto, porém correto e sensato, Tornquist ajuda a contribuir para a formação do perfil do tradutor Machado de Assis com argumentos sólidos, embasados em exemplos tirados diretamente de suas traduções. Por fim, João Cezar de Castro Rocha, em Machado de Assis: por uma poética da emulação, apresenta uma das balizas da nossa argumentação em favor do exame da centralidade da tradução na poética machadiana, retomando um pouco os conceitos teóricos de Even-Zohar que vimos anteriormente: “[...] por que não considerar a obra de Machado um sistema literário próprio, movido por uma dinâmica interna, cuja lógica necessita ser investigada em seus termos?”184. Acreditamos ser viável a proposta de que a produção machadiana possa ser considerada não só um sistema literário próprio, como também pode ser vista como um sistema nos moldes da teoria de polissistemas de Even-Zohar: uma literatura incipiente e periférica que, antes de firmar-se como independente e original, passa por estágios de formação que incluem a presença e até mesmo a centralidade da tradução na sua formação como meio de preencher o vazio deixado pela ausência de uma voz pessoal, ou, como preferimos, como uma forma de se capitalizar poeticamente para construir uma obra que se alimente desse capital para ganhar voz própria. A hipótese-chave com que Rocha trabalha para propor sua poética da emulação e que aproveitaremos aqui é que “[...] uma consequência imprevista da reação machadiana ao romance de Eçaii foi o resgate da noção clássica de aemulatio, que o levou a desenvolver a poética da emulação”185. Daí, “[...] partindo-se da imitação de um modelo considerado autoridade num determinado gênero, busca-se emular esse modelo num determinado gênero, produzindo uma diferença em relação a ele”186. 183 Ibid., p. 69 ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 29 185 Ibid., p. 11 186 Ibid., p. 12 184 87 Embora a virada neste sentido só aconteça, segundo análise de Rocha, com as publicações de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Papeis Avulsos, coincidindo com o que identificamos como sendo uma guinada qualitativa nas suas traduções poéticas, Machado já parecia ter em si uma noção razoavelmente clara do processo que precisaria seguir na sua própria poética quando ainda era o “Machadinho”. Se voltarmos ao ensaio “Ideias sobre o teatro”, por exemplo, encontraremos um Machado que trata da emulação com princípios muito próximos daqueles utilizados por Rocha. Quando afirma, no texto de 1859, que “[c]opiar a civilização existente e adicionar uma partícula, é uma das forças mais produtivas com que conta a sociedade em sua marcha de progresso ascendente”187, Machado está falando exatamente de imitar um modelo estrangeiro, mas com a produção de diferença de que Rocha fala. Sem a produção desta diferença, Machado entende que a cópia se torna “tarefa estéril”188 e a arte deixa de cumprir seu papel de preceptora vanguardista. Veremos, no decorrer das análises, que tal “diferença” aflora quando o poeta-tradutor se inscreve e deixa sua marca no texto que traduz. A ideia de se formar a partir da imitação de modelos estrangeiros variados, ao invés de se deixar iludir pelas modas do momento, continuará a ser desenvolvida por Machado no ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, onde afirma que “[...] tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe”189 ou que “[...] Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros que é que se enriquece o pecúlio comum”190, ideia bastante próxima da que João Cezar de Castro Rocha utiliza para definir a técnica da emulação como “[...] imitação consciente de um modelo prévio, com o objetivo de acrescentar-lhe dados novos” com um “resgate deliberadamente anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio” para transformar “a secundidade da condição periférica em fator potencialmente produtivo”191. Em 1879, no ensaio “A nova geração”, Machado novamente alertará para o fato de que “[...] o erro talvez da geração nova será querer modelar-se por um só padrão”192, quando deveriam nutrir-se não só do que os novos modelos estrangeiros tinham a oferecer, mas também do que os antigos tinham a ensinar, ideia já mencionada alguns anos antes em “Instinto de Nacionalidade”. O que se percebe, portanto, é que o Machado de Assis que coloca em prática a emulação de modelos estrangeiros conforme teoria proposta por Rocha já trabalhava, em certa medida, com tais ideias 187 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1011 Ibid., p. 1013 189 Ibid., p. 1178 190 Ibid., p. 1184 191 ROCHA, 2013, p. 107 192 ASSIS, Op. Cit., p. 1245 188 88 em gestação desde o início de sua atividade de escritor. Assim, devemos entender que as mudanças de curso na carreira do escritor não se deram por meio de guinadas bruscas, mas de um desenvolvimento lento e gradual, uma fase de maturação, visível, por exemplo, em seus primeiros livros de poesia, que para Rocha “[...] não são muito mais do que um adestramento na técnica literária, a fim de experimentar formas diversas de expressão linguística”193. Mas para chegarmos ao ponto que nos interessa mais imediatamente – a relação de Machado de Assis com a tradução e sua relevância na sua produção artística e no seu desenvolvimento como escritor – precisaremos voltar um pouco atrás, mais exatamente no ponto em que tratamos da relação do público leitor brasileiro com as publicações de então de que tratamos no capítulo anterior. João Cezar de Castro Rocha fala de um “imperativo da tradução” nesse período, uma vez que o público leitor brasileiro formou-se através de romances e novelas, contos, enfim, narrativas prioritariamente lidas em tradução, embora uma parcela do público tivesse acesso aos textos lidos em francês; mesmo romances escritos em outras línguas eram geralmente lidos em tradução para o idioma de Montaigne194. A implicação disso para a formação de Machado de Assis é que tal “imperativo” colocaria problemas de difícil resolução, mas que acabou por se tornar o ponto-chave para o desdobramento no desenvolvimento do escritor, descrito por Rocha nas perguntas “Como tornar produtiva, no plano formal, a precedência da leitura sobre a escrita, a precedência da tradução sobre a obra original? Como transformar a secundidade em princípio de invenção?”195, ou quando afirma que “[...] no sistema literário lusófono, isto é, no sistema literário não hegemônico, especialmente no tocante ao gênero romance, a tradução implica um problema teórico de grande alcance: como refletir sobre as condições de criação quando a tradução assume o papel de fonte da tradição?”. A solução foi encontrada com a “imitação consciente de um modelo prévio, com o objetivo de acrescentar-lhe dados novos. Assim, o resgate deliberadamente anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio transforma a secundidade da condição periférica em fator potencialmente produtivo”196. Esta técnica, evidentemente, não foi novidade introduzida por Machado, mas amplamente utilizada anteriormente, antes das ideias românticas de originalidade: A prática artística, anterior à explosão romântica, costumava partir da necessária adoção de modelos consagrados pela tradição, e mesmo pela imitação deliberada de 193 ROCHA, Op. Cit., p. 37 ROCHA, 2013, p. 103, grifos do autor 195 Ibid., p. 103-104 196 Ibid., p. 106 194 89 determinado aspecto de uma obra-prima. Contudo, sempre se buscava acrescentar ao modelo elementos nele ausentes. Buscava-se emular a tradição, em vez de simplesmente perpetuá-la.197 Machado, bom leitor que era da tradição, certamente percebeu qual caminho seguir, expressando isso nos seus textos críticos conforme vimos anteriormente, e encontrando em Shakespeare o modelo ideal para o seu desenvolvimento na concepção de Rocha: Apropriar-se tanto da tradição, isto é, dos clássicos, quanto do engenho dos contemporâneos caracteriza o gênio shakespeariano. Eis uma das principais lições que Machado deve a Shakespeare. Aí se encontra a base de sua poética da emulação, principalmente em seu resgate anacrônico.198 Se Machado de fato deve a lição a Shakespeare, toda sua prática tradutória, como veremos a partir do próximo capítulo, parece estar sempre em busca dessa emulação de modelos em vez de simplesmente repeti-los conforme são nas suas línguas-culturas de origem, algo que talvez atinja seu ápice na tradução de “O corvo”, conforme veremos nas análises a seguir. 197 198 Ibid., p. 36 ROCHA, 2013, p. 62 90 5. 1856-1863: As primeiras traduções de poesia Neste capítulo apresentamos cronologicamente as quatro primeiras traduções feitas por Machado de Assis entre os anos de 1856 e 1863. Neste primeiro conjunto reunimos textos que não foram recolhidos pelo autor em Crisálidas, nem retomados posteriormente. São traduções que abrangem autores de nacionalidades e períodos literários diversos, desde o pré-romantismo inglês de William Cowper ao contemporaneíssimo “Souvenir d’Exil”, composto por Ribeyrolles e traduzido no mesmo dia por Machado de Assis. Como já dissemos anteriormente, nosso objeto de pesquisa se limita aos poemas que são traduções interlinguais, ou seja, poemas que tiveram origem em um texto de partida em uma língua e que foram transportados para outra, que constituem uma obra em si e foram apresentados como tradução, paráfrase, imitação ou qualquer outro termo que conote que o texto se originou em outro texto estrangeiro. As quatro traduções que veremos aqui demonstram que, desde cedo, o poeta-tradutor buscou alargar seus horizontes: embora sejam três textos do domínio francês e um do domínio da literatura inglesa, temos um caso – “O casamento do diabo” – que, como veremos, foi recriado a partir de uma tradução em alemão. No entanto, quanto aos conhecimentos linguísticos do poeta-tradutor, essas traduções só nos dão certeza da invejável fluência com que lia e traduzia a partir do francês, o que é particularmente notável no caso de “Souvenir d’Exil”. As primeiras traduções que veremos também já nos permitem observar que há dois tipos básicos de traduções poéticas feitas por Machado de Assis: aquelas que teriam sido iniciativa dele, a busca por um modelo com o qual poderia ter algo a aprender, a exemplo das duas primeiras que veremos; e aquelas cuja iniciativa pode não ter vindo unicamente do poetatradutor, sendo antes uma atividade laboral e remunerada, como pode ter sido o caso com “O casamento do diabo”, publicado sob completo anonimato e em provável parceria com o editor do jornal em que trabalhava. São, contudo, traduções que prenunciam o que continuaremos a ver nas posteriores: um poeta-tradutor que marca sua diferença em relação ao texto de partida como se estivesse dizendo que suas traduções almejam ir além da reprodução de forma e conteúdo. 91 5.1 “Minha Mãe” Em 1856, aos dezessete anos, Machado de Assis publica sua primeira tradução de um poema. Primeiramente impressa no n. 767, na pág. 4 da edição de 2 de setembro de 1856 da Marmota Fluminense199, não se trata de uma tradução stricto sensu, mas, como o próprio autor considerou, uma “imitação” do poeta inglês William Cowper. Jean-Michel Massa joga alguma luz sobre o problema, mas não vai a fundo na investigação: [...] O primeiro editor do poema, M. N. (Melo Nóbrega?), fez algumas observações úteis sobre Minha Mãe, apresentada pelo autor como uma “imitação de Cowper”. M. N. não chegou a estabelecer uma relação direta entre esta peça e On the Receipt of My Mother’s Picture (1790), de Cowper. Teria Machado de Assis, como a crítica tentou comprovar, se inspirado mesmo no poeta inglês? É pouco provável que o jovem poeta, em 1855, tenha lido o original inglês. Tudo indica que o poema de Cowper não foi traduzido em português. Mas como ele já conhecia o francês, talvez esteja aí a solução.200 Massa informa ainda que, enquanto na França Saint-Beuve despertava o interesse pelo poeta inglês, em nota afirma que também no Brasil Cowper era bem conhecido, tendo Álvares de Azevedo, bem versado na língua inglesa, mostrado certa predileção pelo autor inglês. Para Massa, “[...] há condições para admitir que Machado de Assis conheceu Cowper e seu poema através de Saint-Beuve”201 e cita a existência de uma tradução francesa do poema de Cowper com o título “En Recevant le Portrait de Ma Mère”, por Madame Langlais, que Machado teria lido e utilizado para se inspirar para escrever Minha Mãe. Massa explica ainda que Machado teria tomado emprestado somente o tema, uma vez que o poema de Cowper é longo, o que explicaria apresentá-lo como uma “imitação”. Lorie Ishimatsu, em The poetry of Machado de Assis (1984), afirma que “há pouca afinidade entre as duas composições além do fato de que ambas são evocações do amor materno”202, mas não explica nem detalha seu julgamento além de constatar, de maneira bastante superficial, que há diferenças na métrica e quantidade de versos. No primeiro volume de Vida e obra de Machado de Assis: Aprendizado (2008), Raimundo Magalhães Júnior nos dá mais pistas sobre a motivação de Machado em imitar Cowper. O crítico e biógrafo nos diz que 199 SOUSA, 1955, p. 312. MASSA, 2009, p. 134-135 201 Ibid., p. 135 202 ISHIMATSU, L. C. The poetry of Machado de Assis. Valencia: Albatros Hispanofila,1984, p. 41. No original: “there is little affinity between the two compositions besides the fact that they are both evocations of maternal love”. 200 92 “[...] durante o ano de 1856, Machado de Assis evocou repetidamente a figura de sua mãe”203, de quem ficara órfão em 18 de janeiro de 1849, aos 9 anos. São pelo menos três poemas que Magalhães Junior identifica com esta temática: “O meu viver”, publicado em 16 de fevereiro, “Saudades”, em 15 de abril, e por fim “Lágrimas (À memória de minha mãe)”, em 29 de julho, todos no mesmo ano de 1856 e no mesmo periódico, a Marmota Fluminense, de onde mais tarde também saiu “Minha Mãe”. A respeito do poema imitado por Machado, Magalhães Junior justifica a motivação com a seguinte tese: “Se Machado imitou a poesia de Cowper foi porque os pensamentos do poeta inglês se ajustavam inteiramente aos seus sentimentos de órfão inconsolável, desejoso de morrer para encontrar-se com a mãe amada, tão cedo desaparecida”204. Primeiramente, contudo, conforme trajeto de análise proposto por Berman, devemos nos perguntar quem foi William Cowper, nos ampararmos com alguma informação sobre sua obra, para depois pensarmos nos motivos que talvez levassem Machado a querer “imitá-lo”. William Cowper, que viveu entre os anos de 1731 e 1800, foi considerado um precursor do romantismo inglês. Em vida, gozou de enorme prestígio, sendo um dos poetas mais lidos na geração que também contava com nomes hoje notáveis como William Wordsworth e Alexander Pope. Homem atormentado, passou boa parte da vida à beira da loucura, acreditando ter sido abandonado por Deus, fazendo da poesia uma das maneiras de escapar ao tormento que sofria. David Simpson, no capítulo “The French Revolution” da coletânea The Cambridge History of Literary Criticism, Vol. 5 Romanticism (2008) coloca William Cowper não só como precursor do romantismo inglês, mas como um poeta que se antecipou até mesmo à Revolução Francesa, frequentemente tida como mote inicial do romantismo inglês205. Por sua vez, The Norton Anthology of English Literature (1993) apresenta Cowper como o autor dos poemas mais sãos da língua inglesa, embora escritos por um homem que, periodicamente, se via à beira da loucura. O longo poema “The Task” (1785) é indicado como sua maior realização poética, e Cowper como um poeta que expressa os interesses e gostos de seu tempo, que não lutou para 203 MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2008, vol. 1, p. 44 204 MAGALHÃES JUNIOR, 2008, vol. 1, p. 48 205 SIMPSON, David. "The French Revolution". In: BROWN, Marshall (Ed.) The Cambridge History of Literary Criticism. Vol 5. Romanticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 50 93 figurar entre os grandes mas que, mesmo assim, acabou sendo reconhecido pelos seus pares como dono de uma voz que falava a todos em tom ora piedoso, ora humorístico206. Já Aidan Day, em Romanticism (1996), coloca Cowper entre poetas como James Thomson, Joseph Warton e James Beattie, os quais estabeleceram o gosto pela descrição da vida na natureza, que durou todo o século XVIII, com a predileção por assuntos ligados ao mundo natural e que formariam o contexto adequado para o aparecimento das Lyrical Ballads de William Wordsworth, um marco importante para o romantismo inglês207. Para Day, Cowper teria até mesmo desenvolvido “uma poesia de introspecção que fundia a observação de cenas naturais com um registro dos fluxos e refluxos da mente”, que prefiguraria o que Wordsworth mais tarde faria em “Lines Written a Few Miles above Tintern Abbey” das Lyrical Ballads 208. Escrito e publicado individualmente pela primeira vez em 1798, apenas dois anos antes da morte do poeta, “On the Receipt of My Mother’s Picture out of Norfolk” é um longo poema elegíaco, com 121 versos de 10 sílabas – dísticos heroicos escritos em pentâmetros iâmbicos. O poema versa, obviamente, sobre a mãe do poeta, de quem Cowper recebeu uma foto que mais tarde o inspiraria a escrever o poema. Na leitura do poema, ficam evidentes os sentimentos de saudade, ou mesmo nostalgia, que dominam os primeiros versos do poema: Oh that those lips had language! Life has pass'd With me but roughly since I heard thee last. Those lips are thine—thy own sweet smiles I see, The same that oft in childhood solaced me;209 Evidentemente, a morte também é presença constante no poema, e o poeta se coloca novamente no lugar do filho que perdeu a mãe ainda criança, perguntando-se se a mãe percebera as lágrimas que verteu: My mother! when I learn'd that thou wast dead, Say, wast thou conscious of the tears I shed? Hover'd thy spirit o'er thy sorrowing son, Wretch even then, life's journey just begun?210 206 ABRAMS, M. H. et al. The Norton Anthology of English Literature. 6 ed. New York, London: W. W. Norton & Company,1993, p. 2501-2 207 DAY, Aidan. Romanticism. London: Routledge, 1996, p. 48 208 DAY, 1996, p. 51. No original: “a poetry of introspection which fused observation of natural scenes with a record of the fluxes and refluxes of the mind”. 209 COWPER, William. “On the receipt of my mother’s picture out of Norfolk”. In: RHODES, Nick (Ed.). William Cowper: selected poems. Routledge: New York, 2003. p. 23 210 COWPER, 2003, p. 23 94 O poeta rememora ainda a casa em que viveu na sua infância, agora habitada por outra família, o que imediatamente o leva a outras lembranças de sua infância: Where once we dwelt our name is heard no more, Children not thine have trod my nurs’ry floor; And where the gard'ner Robin, day by day, Drew me to school along the public way, Delighted with my bauble coach, and wrapt In scarlet mantle warm, and velvet capt, ‘Tis now become a history little known, That once we call'd the past’ral house our own.211 O poema é encerrado com o sentimento de contemplação que a foto proporcionou, juntamente com a possibilidade de reviver as alegrias da infância através das memórias evocadas pela foto de sua mãe: By contemplation’s help, not sought in vain, I seem t’ have liv’vd my childhood o’er again; To have renew’d the joys that once were mine, Without the sin of violating thine:212 Por fim, o poeta percebe que a foto é um desafio ao tempo, que fracassa em tentar roubá-lo completamente de sua mãe: And, while the wings of fancy still are free, And I can view this mimic shew of thee, Time has but half succeeded in his theft— Thyself remov'd, thy power to sooth me left.213 O poema de Cowper, de leitura fluida e agradável, embora a linguagem cause um pouco de estranheza ao falante do inglês contemporâneo pouco habituado à sintaxe da época, justificase na sua fama. É difícil não se identificar e se deixar levar pelas lembranças que vemos o poeta evocar e que nos fazem pensar nós mesmos na nossa infância e momentos análogos ao relatados pelo poema, conferindo considerável impacto narrativo ao texto. Cowper é bastante detalhista na descrição de suas memórias e nos entrega um poema de comoção bem articulada, possibilitando aos leitores ver como o poeta traz a mãe e a si mesmo ainda jovem de volta à vida, com detalhes de sua infância com nuances idílicas. Embora o poema mereça uma análise mais detalhada, o nosso objetivo aqui é o de verificar o quanto – se é que de alguma forma – Machado de Assis se apropriou dele, ou de uma versão do poema, para elaborar “Minha Mãe”. Conforme Massa sugere, é pouco provável 211 COWPER, 2003, p. 24 Ibid., p. 26 213 Ibid. 212 95 que Machado de Assis tenha lido a versão em inglês de Cowper e em nossa busca pela versão francesa conseguimos identificar na Bibliotèque Nationale de France uma versão eletrônica do volume 11 das “Causeries du lundi” de Saint-Beuve, seguindo indicação de Massa. Neste volume encontramos uma tradução em prosa do poema de Cowper com o título “En recevant le portrait de ma mère”, publicada em 20 de novembro de 1854. De imediato, estamos diante de uma característica comum a várias traduções que Machado fez de textos que fogem ao domínio da literatura francesa: a utilização do francês como língua intermediária, como parece ter sido o caso com outros autores que também traduziu. Vejamos o poema “Minha Mãe”, de Machado, ao lado da versão francesa que, supostamente, foi o texto de partida para sua versão: Quadro comparativo 2 – “Minha Mãe” e “En recevant le portrait de ma mère” Minha Mãe (Imitação de Cowper) Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera Viver feliz com minha mãe também! C. A. de Sáiii Quem foi que o berço me embalou da infância Entre as doçuras que do empíreo vêm? E nos beijos de célica fragrância Velou meu puro sono? Minha mãe! Se devo ter no peito uma lembrança É dela que os meus sonhos de criança Dourou: – é minha mãe! Quem foi que no entoar canções mimosas Cheia de um terno amor – anjo do bem Minha fronte infantil – encheu de rosas De mimosos sorrisos? – Minha mãe! Se dentro do meu peito macilento O fogo da saudade me arde lento É dela: minha mãe. Qual anjo que as mãos me uniu outrora E as rezas me ensinou que da alma vêm? E a imagem me mostrou que o mundo adora. E ensinou a adorá-la? – Minha mãe! Não devemos nós crer num puro riso Desse anjo gentil do paraíso Que chama-se uma mãe? Por ela rezarei eternamente Que ela reza por mim no céu também; Nas santas rezas do meu peito ardente Repetirei um nome: – minha mãe! Se devem louros ter meus cantos d’alma En recevant le portrait de ma mère Oh ! que ces lèvres n’ont-elles un langage ! La vie ne s’est montrée pour moi que trop dure depuis que je t’ai entendue pour la dernière fois. Ces lèvres sont les tiennes ; — c’est bien ton doux sourire que je vois, le même qui me consola si souvent dans mon enfance : il ne leur manque que la parole ; à cela près, comme elles semblent dire clairement : « Ne te chagrine point, mon enfant, chasse loin toutes tes frayeurs ! » La calme intelligence de ton regard aimé (béni soit l’art qui a pu l’immortaliser et ravir au temps le droit de l’éteindre) brille ici sur moi toujours la même. Et toi qui fidèlement me retraces celle qui m’est si chère, hôte bienvenu quoique inattendu ici, qui m’ordonnes d’honorer d’un vers aimant et simple une mère depuis si longtemps perdue, j’obéirai non seulement de bon gré, mais avec joie, comme si l’ordre me venait d’elle ; et tandis que ces traits viennent renouveler ma filiale douleur, l’imagination ourdira un charme pour me consoler ; elle me plongera dans une rêverie élyséenne : — songe d’un moment qui me fera croire que tu es elle. Ma mère, lorsque j’appris que tu étais morte, dis, est-ce que tu as eu conscience des pleurs que j’ai versés ? Ton esprit, d’en haut, se pencha-t-il sur ton fils désolé, malheureux déjà dans ce voyage à peine commencé de la vie ? Peut-être qu’alors tu me donnas un baiser que je ne sentis pas, peut-être une larme, si les âmes peuvent pleurer dans la béatitude. Ah ! si j’en crois ce sourire maternel, il me répond : Oui ! — J’entendis la cloche sonner pour ton jour de funérailles ; je vis le corbillard qui t’emportait lentement, et dans ma chambre d’enfant, me détournant de la fenêtre, je poussai un long, long soupir, et je pleurai un dernier adieu… Mais est-ce bien le dernier ? — Oui, c’est 96 Oh! do porvir eu trocaria a palma Para ter minha mãe! 2 set. 1856 le dernier. — Là où tu es allée, les adieux sont des sons inconnus. Que je puisse seulement te retrouver sur ce pacifique rivage, et des paroles d’adieu ne sortiront plus de mes lèvres ! Tes servantes, touchées elles-mêmes de ma douleur, me donnèrent plus d’une fois la promesse de ton prompt retour. Longtemps je crus à ce que je désirais ardemment, et, toujours déçu, je me laissais tromper toujours, leurré chaque matin d’une attente nouvelle, et dupe du lendemain, même dès l’enfancet Ainsi vinrent et passèrent bien des tristes lendemains jusqu’à ce qu’enfin, tout mon fonds de douleur d’enfant étant épuisé, j’appris à me soumettre à mon lot ; mais tout en te pleurant moins, je ne t’oubliai jamais. Là, où nous avons habité autrefois, notre nom ne se prononce plus ; des enfants, qui ne sont plus les tiens, ont foulé le parquet où j’appris à marcher, et là où le long de cette rue, le jardinier Robin me traînait chaque matin à l’école, enchanté de ma voiture d’enfant, enveloppé d’un chaud manteau écarlate et coiffé d’une toque de velours, c’est devenu maintenant une histoire peu connue qu’autrefois nous appelions la maison pastorale la nôtre. Possession éphémère ! mais le pieux registre que garde ma mémoire de toutes tes tendresses en ce lieu, survit toujours à bien des orages qui ont effacé mille autres sujets moins profondément gravés. Les visites de nuit que tu faisais dans ma chambre pour savoir si j’étais sain et sauf et chaudement couché ; tes largesses du matin avant le départ pour l’école, le biscuit ou la prune confite ; l’eau odorante que ta main prodiguait à mes joues jusqu’à ce qu’elles fussent brillantes de fraîcheur et luisantes, tout cela, et ce qui fait plus chérir que tout encore, ce courant continu d’amour que rien en toi n’interrompait, que ne troublèrent jamais ces débordements et ces sécheresses que crée une humeur inégale ; tous ces souvenirs, toujours lisibles dans les pages de ma mémoire et qui le seront jusqu’à mon dernier âge, ajoutent le plaisir au devoir, me font une joie de te rendre de tels honneurs que le peuvent mes vers ; un bien fragile témoignage peut-être, mais sincère, et qui ne sera point méprisé au ciel, quand il passerait inaperçu ici-bas… Si le Temps pouvait, retournant son vol, ramener les heures où jouant avec les fleurs brodées sur la robe, — violette, œillet et jasmin, — je les dessinais sur le papier avec des piqûres d’épingle (et toi, pendant ce temps-là, tu étais encore plus heureuse que moi, tu me parlais d’une voix douce et tu me passais la main dans les cheveux, et tu me souriais) ; si les jours rares et fortunés pouvaient renaître, s’il suffisait d’un souhait pour les ramener, en souhaiterais-je le retour ? Je n’oserais me fier à mon cœur ; ce délicieux bonheur semble si désirable ! peut-être j’y voudrais revenir ! — Mais non, ce qu’ici nous nommons la vie est chose si peu digne d’être aimée, et toi, ma mère, tu m’es si aimable que ce serait te payer bien mal que de contraindre ton esprit délivré à reprendre ses fers… Fonte: Assis (2009); Cowper (S/D) 97 É fácil percebemos diferenças suficientes, seja com o poema de Cowper ou a versão francesa, para dizer que não se trata de uma tradução stricto sensu, nem Machado quis que o poema fosse assim considerado, já que o poema foi publicado como uma “Imitação de Cowper”. Fomos até John Dryden, poeta e tradutor inglês do século XVII que é um exemplo do tipo de pensamento sobre a tradução que estaria disponível no século XIX, para tentar encontrar uma definição de tradução que pudesse explicar não só este texto de Machado de Assis, mas as demais imitações que ele fará no decorrer da carreira. No seu Preface to Ovid’s Epistles, Dryden identifica três modos de traduzir: a metáfrase, ou tradução palavra-por-palavra, uma tradução interlinear, cujo resultado nem sempre será um texto real, mas um auxílio à leitura do original; a paráfrase, ou a tradução em que o tradutor se preocupa mais com o sentido do que com as palavras e decide encontrar a melhor forma de expressar aquele sentido em sua língua; e a imitação, em que o tradutor assume as liberdades que toma para se afastar não só das palavras, mas também do sentido quando julgar necessário214. O tradutor, portanto, não estará confinado ao sentido, mas tomando o autor traduzido como um modelo, um padrão para, a partir dele, compor outro texto, como se aquele autor tivesse vivido e escrito na época do tradutor. A respeito da imitação, Dryden afirma ainda: “Para sermos claros, a imitação de um autor é a forma mais vantajosa para um tradutor aparecer, mas é o maior erro que pode ser cometido contra a memória e reputação dos mortos”215. Neste caso em particular, tendo em mente os conceitos de Dryden, apresentar “Minha Mãe” como uma “imitação de Cowper” significa tomá-lo como modelo para, a partir desta relação de intertextualidade com Cowper, produzir um texto que atenda os interesses de quem traduz mais do que as do autor traduzido. Neste caso em particular pouco há do texto de Cowper, provavelmente lido em tradução em prosa em língua francesa, no texto de Machado a não ser o tema sobre o qual ambos os textos versam. O nosso poeta, embora já tenha assinado algumas publicações de poesia nos periódicos da época, ainda é um jovem titubeante em busca de uma voz poética própria. Imitar Cowper, portanto, ou qualquer outro neste contexto, tem ares de demonstração de maturidade dada a medição de forças em que se joga com o poeta inglês. Embora não fosse dos mais conhecidos ou lidos por aqui, é possível encontrar referências a Cowper dentre os primeiros poetas românticos, como na epígrafe de “Quando à noite no leite perfumado”, na Lira dos vinte anos de Álvares de Azevedo216. Imitá-lo, portanto, é colocar-se, pela primeira vez no caso de Machado, numa posição de enfrentamento com um 214 DRYDEN, John. “From the preface to Ovid’s Epistles”. In: VENUTI, Lawrence (Ed.). The translation studies reader. 2 ed. New York 2004, p. 38 215 Ibid., p. 40, tradução nossa. No original: “To state it fairly, Imitation of an author is the most advantageous (sic) way for a Translator shew himself, but the greatest wrong which can be done to the Memory and Reputation of the dead.” 216 AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 33. 98 texto estrangeiro, reconhecendo o débito para com o poeta inglês ao mesmo tempo em que colhe um texto que é mais seu do que de Cowper. Analisando o poema de Machado, observamos que ele é consideravelmente mais curto: apenas 28 versos, contra os 121 versos do poema de Cowper. Formalmente, no entanto, há algumas semelhanças: Cowper utiliza, como mostramos, dísticos escritos em pentâmetros iâmbicos, que são versos bastante próximos do verso clássico português, o decassílabo, apesar da contagem silábico-acentual da língua inglesa. Machado adota decassílabos por todo o poema, à exceção do último verso de cada estrofe, que funciona como uma espécie de refrão escrito usando o verso quebradoiv do decassílabo, compondo estrofes heterométricas conforme as regras de harmonia acentual que preveem o hexassílabo como o verso quebrado respectivo ao decassílabo heroico como verso maior217. Embora o texto francês que Machado provavelmente consultou seja escrito em prosa, Machado escolhe compor sua peça em versos e adota um metro análogo ao do texto de Cowper, embora uma coincidência seja a hipótese mais provável, visto que ambos são metros muito comuns em suas respectivas línguas. Machado também adota um esquema de rimas diferente do texto de Cowper, mas mantém a presença de rimas emparelhadas em todas as estrofes, sempre no quinto e sexto versos, algo que lembra os couplets de Cowper. Analisando os aspectos formais de “Minha Mãe”, encontramos a utilização de decassílabos heroicos em todas as estrofes e em praticamente todos os versos, e alguns outros decassílabos sáficos. Estes, inclusive, abrem a primeira estrofe do poema, nos primeiros dois versos, seguidos por decassílabos heroicos nos versos 4 a 6. Nas demais estrofes, contudo, prevalece o uso do decassílabo heroico entre os primeiros seis versos de cada uma. Este é um dado particularmente interessante porque, analisando o poema de Cowper sob a mesma ótima encontraremos acentuações parecidas nos pentâmetros iâmbicos, que não raro são acentuados nas sílabas pares, particularmente nas sexta e décima sílabas, que carregam as acentuações mais fortes. Este é um dado curioso, mas novamente creditamos esta peculiaridade ao fato de os metros utilizados serem considerados clássicos em ambas as línguas. O decassílabo era um metro bastante comum entre os românticos e a acentuação silábica deste metro guarda, naturalmente, semelhanças com a acentuação silábico-acentual dos pentâmetros iâmbicos dos ingleses, como já demonstrou Péricles Eugênio da Silva Ramos em O verso romântico e outros ensaios (1959)v. 217 CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974, p. 156-157. 99 Ao se observar o conteúdo do poema de Machado, encontramos um leitor interpelado pelo eu-lírico nas três primeiras estrofes, sempre ocupando os quatro primeiros versos de cada uma, para as quais a resposta é sempre a mesma, a mãe do poeta, dada no último verso de cada estrofe com tons de refrão. Embora Machado tenha apresentado “Minha Mãe” como uma imitação de Cowper, pouco há da força descritivo-narrativa de Cowper, nem encontramos a mesma linguagem fluida, quase coloquial do poeta inglês no texto de Machado, que prefere utilizar diversas inversões sintáticas para atingir o efeito desejado, ainda que o sentimentalismo e nostalgia presentes sejam igualmente fortes, o que interpretamos como um indício de que o jovem Machado de Assis, muito provavelmente, não teve qualquer tipo de contato com a versão inglesa do poema, ficando completamente a seu encargo reimaginar poeticamente o tema da tradução em prosa francesa. Para Flávia Amparo, na tese Sob o véu dos versos: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis (2008), em fins da década de 1850 a poesia de Machado estava marcada “[...] pela religiosidade afetiva e melancólica de um Cowper, no lamento pela ausência da mãe”218. Em sua análise, esta imitação do poeta inglês [...] apresenta uma suavização da morte pela evocação sentimental da memória, enfatizando também o vetor religioso, como já se percebia nas outras composições. O eu-lírico reza pela mãe e recebe a proteção dos clamores que ela do céu lhe envia: canção atenuada e sem os acessos melancólicos dos outros versos. Machado escreve com delicadeza e lirismo, naquela que é, sem dúvida, a mais bela composição dedicada à memória da mãe219. De que Machado teve algum contato com o texto de Cowper, em inglês ou francês, não há dúvida, do contrário não haveria motivos para apresentar “Minha Mãe” como uma imitação do poeta inglês. É possível, no entanto, que a inspiração de Machado de Assis, pelo menos em parte, tenha vindo de outro poeta brasileiro, Casimiro de Abreu, que também tem um poema chamado “Minha Mãe”. Amparo é ainda mais contundente quanto ao assunto e afirma haver “inegável influência” de Casimiro de Abreu, que teria sido “a grande inspiração machadiana”220. Vejamos algumas estrofes do poema de Casimiro de Abreu, publicado em Primaveras, de 1855: Da pátria formosa distante e saudoso, Chorando e gemendo meus cantos de dor, Eu guardo no peito a imagem querida Do mais verdadeiro, do mais santo amor: — Minha Mãe! — 218 AMPARO, Flávia Vieira da Silva do. Sob o véu dos versos: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis. 2008. 346f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas). Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 40. 219 Ibid., p. 50 220 Ibid., p. 51 100 Nas horas caladas das noites d’estio Sentado sozinho co’a face na mão, Eu choro e soluço por quem me chamava — “Oh filho querido do meu coração!” — — Minha Mãe! —221 Percebe-se o quanto as escolhas de Machado de Assis lembram, sem querer igualar-se, as de Casimiro de Abreu, particularmente na repetição de “Minha Mãe” ao fim de cada estrofe. É bem verdade que o metro é diferente: Casimiro escreve em hendecassílabos, sempre divididos em dois hemistíquios pentassilábicos, com uma cadência suave e de versos muito espontâneos. As oitavas de Machado de Assis não possuem a mesma cadência regular do poema de Casimiro de Abreu, mas concluem o pensamento desenvolvido da mesma maneira que Casimiro de Abreu: a repetição da frase “Minha mãe”. O poema de Casimiro de Abreu, portanto, parece ter servido como uma das fontes para encontrar o caminho poético para reimaginar o poema de Cowper, já que é “com os haveres de um e de outro” que o jovem Machado consegue chegar ao seu poema. Estamos, de todo modo, diante de uma “imitação”, que seria uma tradução em sentido mais amplo, em que a preocupação é menos a de reproduzir servilmente o aspecto formal ou mesmo o sentido, as ideias e imagens do texto-fonte do que de criar uma obra inspirada por outra, “imitando”, mas que se quer obra original e independente. Ao incorporar o relato empírico em comum com Cowper e transpô-lo para o âmbito do poético, o que Machado traduz é a ideia nascida de uma experiência de vida em comum. Nesta mesma época, o jovem Machado estava evidentemente às voltas com o tema, interesse que culminará na imitação do poeta inglês. Como vimos, primeiramente temos o poema “O meu viver”, publicado em 16 de fevereiro de 1856, o qual inaugura os textos nos quais a figura materna é o assunto principal: Dizer que eu vivo... e minha mãe perdi, Minha alma geme e o coração de amores, É crer que um filho, sem a mãe... sozinho, Também existe, com pungentes dores.222 Alguns meses mais tarde, em 15 de abril do mesmo ano surge “Saudades”, com o mesmo tom de lamento pela morte prematura da mãe: Se perdi minha mãe tão moço, Se padeço de ti tanta saudade, Não posso existir num mundo triste; É melhor eu morrer nesta idade. 221 ABREU, Casimiro de. Obras completas de Casimiro de Abreu. 2 ed. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1955, p. 78. 222 ASSIS, 2009a, p. 419-420 101 O próximo desta leva “Lágrimas (À memória de minha mãe)”, de 29 de julho, que é o que mais se aproxima, nos aspectos formais, de “Minha Mãe”, por utilizar versos decassílabos e seu respectivo quebrado, o hexassílabo: Eu perdi minha mãe... era uma santa, Que tinha a minha vida neste mundo Minh’alma e meu amor! E foi o meu pesar, minha ânsia tanta, Que a vida quis deixar num ai profundo, Morrer também de dor. “Minha mãe”, portanto, sugere um movimento de conscientização do nosso jovem poeta em relação aos modelos com que deseja entrar em diálogo. Até então, a considerar as epígrafes, por exemplo, Machado tinha em seu horizonte intertextual textos de escritores próximos a si, mantendo até mesmo vínculo de amizade com alguns deles, como Francisco Gonçalves Braga, figura constante nos primeiros poemas de Machado. Os temas também remetem a textos de outros românticos brasileiros: “A Palmeira”, primeiro poema de Machado, é clara referência à “Canção do exílio” de Gonçalves Dias. Antoine Berman nos lembra de que para Schlegel “a verdadeira imitação não é ‘a imitação simiesca das maneiras exteriores de um homem, mas a apropriação das máximas de sua ação’”223. Seja a partir de Cowper ou de Casimiro de Abreu, é isto o que o poeta-tradutor parece querer fazer: apropriar-se do outro e fazer dele algo que esteja imbuído de sua própria natureza. Ao imitar Cowper ou Casimiro, ou ambos, o que o jovem Machado nos deixa é uma variação sobre o mesmo tema, transpondo-o para sua oficina literária, numa clara tentativa de capitalizar-se poeticamente e colocar-se em um diálogo-embate, medindo forças com poetas já consagrados da tradição literária ocidental. 5.2 “A uma donzela árabe” No ano em que completaria 20 anos de idade, 1859, o jovem Machado de Assis publica a sua primeiravi tradução stricto sensu de poesia de que temos notícia: “A uma donzela árabe”, poema publicado no n. 15 de O Paraíba em 20 de janeiro daquele ano224. Trata-se de uma tradução de “À une jeune arabe qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep”, do poeta francês 223 BERMAN, 2002, p. 89 SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura/ Instituto Nacional do Livro, 1955, p. 320 224 102 Alphonse de Lamartine, escrito em 1832 e publicado dois anos mais tarde, em 1834, na Révue des Deux Mondes. O texto em questão já contava mais anos do que o seu jovem tradutor quando a tradução foi feita. Ignoramos de que forma Machado conheceu este texto, mas à época da tradução deste poema Machado já tinha traduzido outros textos que atestam o grau de conhecimento da língua francesa que o escritor carioca já alcançara. O contato mais íntimo com Lamartine, a propósito, não se inicia com a tradução deste poema. Jean-Michel Massa reporta que entre setembro e dezembro de 1857 Machado apresentava, na Marmota de Paula Brito, algumas páginas de A literatura durante a Restauração, traduzidas de Histoire de la Restauration, também de Lamartine, em que o poeta francês apresenta escritores do período. A respeito desse período, o biógrafo Magalhães Junior afirma que Machado “[a]os poucos, ia conseguindo dominar a língua francesa e, nesse mesmo mês, praticava como tradutor uma façanhavii que encheu de admiração um grupo de franceses, dos mais cultos entre os que, então, vivam na capital do Império”225. Dada a atenção que recebeu Lamartine, um dos autores mais traduzidos pelos nossos românticos, ao lado de Victor Hugo e Byron, não é de se estranhar o interesse do jovem Machado pelo escritor. Crisálidas ainda estava cinco anos à frente. O poeta Machado de Assis está apenas no começo de sua formação. É de se supor que o jovem estivesse procurando modelos que o ajudassem na busca por uma voz própria. A tradução, portanto, surge como um caminho possível para realizar a tarefa. Alphonse de Lamartine, embora hoje não goze mais do mesmo prestígio de antes, era à época um dos poetas mais lidos e admirados. José Paulo Paes nos lembra, por exemplo, que em 1841 foi editado Cantos de Lamartine, sem indicação de tradutor e com textos que provavelmente foram retirados de Méditations. Mais tarde, em 1869, é publicado Lamartineanas: poesias de Affonso de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros, coletânea que contou com a colaboração de Machado de Assis226. Em 1859, data em que Machado de Assis publica sua tradução e provavelmente a época em que fora realizada, Lamartine já era o consagrado autor das Méditations Poétiques de 1820 que, segundo Jean D’Ormesson (2001), marcaram o início do romantismo poético e lírico227. Lamartine estava então chegando ao fim 225 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 110 PAES, 1990, p. 16 227 D'ORMESSON, Jean. Une autre histoire de la littérature française: le romantisme. Paris: Librio, 2001, p. 37 226 103 de sua vida, vindo a morrer em 1863, vendo seu nome como poeta perder relevância face ao surgimento de nomes como o de Victor Hugo. Na década de 1830, no entanto, Lamartine não escapa à moda orientalista. Lembremos que em 1829 Victor Hugo publica Les orientales, cujo prefácio, segundo o crítico Émile Verhaeren (2002), coloca em questão pela primeira vez o grito pela liberdade poética228 reclamando aos poetas o direito de escrever sobre o que quiserem, como quiserem. No mesmo ano em que escreve “À une jeune Arabe”, Lamartine embarca para o Oriente Médio, visitando Síria, Líbano, a terra santa, Constantinopla e os Bálcãs. Dois anos mais tarde, 1834, o poema foi publicado, segundo referências encontradas durante nossa pesquisa, na Révue des Deux Mondes. Não encontramos o texto na publicação mencionada, mas foi possível identificar o poema na Révue de Paris, nas páginas 250-252, que também o publicou no mesmo ano de 1834 e, a julgar pela nota de rodapé que acompanha a publicação, sem a autorização de Lamartine. A mesma nota nos informa também que o poema foi composto quando da chegada de Lamartine à Síria: Um de nossos amigos nos envia de Marselha versos que M. de Lamartine compôs quando chegou à Síria, para uma jovem dama que fumava o narguilé: cachimbo turco onde a fumaça do tomback passa por uma urna de cristal através de água de rosas. Não acreditamos desagradar o ilustre poeta, hoje ocupado com tão graves interesses, ao publicar sem sua participação versos que deixou cair e que desta forma entraram no domínio comum da bela poesia229. O poema francês é todo composto em versos alexandrinos, em doze quadras, com rimas alternadas em todo o poema. O principal mote é o de que a poesia, os versos, não são suficientes para expressar a beleza da jovem, ainda que o eu-lírico insista na tentativa. Em movimento tipicamente romântico, o eu-lírico se coloca em posição subalterna àquela que admira: Qui ? toi ? me demander l’encens de poésie ? Toi, fille d’Orient, née aux vents du désert ! Fleur des jardins d’Alep, que Bulbul eût choisie Pour languir et chanter sur son calice ouvert ! Rapporte-t-on l’odeur au baume qui l’exhale ? Aux rameaux d’oranger rattache-t-on leurs fruits ? Va-t-on prêter des feux à l’aube orientale, Ou des étoiles d’or au ciel brillant des nuits ?230 228 VERHAEREN, Émile. Hugo et le romantisme. Bruxelas: Éditions Complexe, 2002, p. 47 LAMARTINE, A. “À une jeune arabe (qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep)”. In: RÉVUE de Paris. 2 ed. Tome Premier. Bruxelas, H. Dumont Libraire-Éditeur, 1834, p. 250. No texto-fonte: “Un de nos amis nous envoie de Marseille des vers que M. de Lamartine composa à son arrivée en Syrie, pour une jeune dame qui fumait le narguilé ; pipe turque où la vapeur du tombach passe dans une urne de cristal, à travers de l’eau de rose. Nous ne croyons pas déplaire à l’illustre poète, occupé aujourd’hui d’intérêts si graves, en publiant sans sa participation des vers qu’il a laissés tomber en passant, et qui sont entrés ainsi dans le domaine commun de la belle poésie. (N. du D.)”. 230 Ibid. 229 104 As perguntas feitas nas duas primeiras estrofes do poema colocam exatamente isso em questão: o eu-lírico não está apto a elogiar em versos a jovem árabe. Note-se também o ritmo sincopado do primeiro verso que transmite certa surpresa do poeta com o pedido da jovem, enquanto versos seguintes temos uma cadência mais regular, em que o eu-lírico enaltece a beleza da jovem com imagens que remetem claramente ao oriente, como o pássaro bulbul – semelhante ao nosso rouxinol – e os jardins de Aleppo, na Síria. Esta mesma cesura, elemento típico do verso alexandrino clássico, está presente em todos os versos da segunda estrofe, que reforçam a ideia de inutilidade dos versos para elogiar a beleza da jovem com imagens como o despropósito de se emprestar estrelas aos céus, ideia que é seguidamente reforçada pela terceira estrofe do poema, transcrita abaixo: Non, plus de vers ici ! Mais si ton regard aime Ce que la poésie a de plus enchanté, Dans l’eau de ce bassin contemple-toi toi-même ; Les vers n’ont point d’image égale à ta beauté !231 Ao pedir que a jovem se contemple na fonte, o jovem está dizendo que a beleza do reflexo dela na água é algo superior às imagens que versos seriam capazes de criar. O argumento será reforçado durante as cinco quadras seguintes, todas introduzidas pelo advérbio “Quand”, que descrevem os movimentos da jovem fumando o narguilé e pintam para o leitor um quadro repleto de imagens que remetem tipicamente ao oriente e à idealização da beleza jovem feminina: Quand le soir, dans le kiosque à l’ogive grillée, Qui laisse entrer la lune et la brise des mers, Tu t’assieds sur la natte, à Palmyre émaillée Où du moka brûlant fument les flots amers ; [...] Quand le nuage ailé qui flotte et te caresse D’odorantes vapeurs commence à t’enivrer ; Que les songes lointains d’amour et de jeunesse Nagent pour nous dans l’air que tu fais respirer ;232 Imagens como o anoitecer, a lua, a brisa do mar, palmeiras, a fumaça saindo do narguilé e como que acariciando o rosto da jovem que começa a se intoxicar, trazendo por consequência os amores e juventudes oníricas são imagens que reforçam o papel de Lamartine no nascimento do romantismo lírico francês, inaugurado com suas Méditations poétiques de 1820. Em Lamartine, encontramos o objeto, a jovem árabe no caso, apresentado de maneira evasiva e até 231 232 LAMARTINE, 1834, p. 250-251 Ibid., p. 251 105 impessoal, visto que o poeta não a nomeia nem a individualiza de forma alguma. Assim, a jovem parece antes um conceito, uma abstração do que uma existência. É igualmente notável a presença da fumaça do narguilé, a lua e o tom ditado pelo entardecer enquanto descreve a jovem, itens de presença bem marcada na poesia lamartineana e que reforçam a tese de indefinição do objeto poético defendida pelo crítico Jean-Pierre Richard em Études sur le romantisme (1970): Lamartine adora por exemplo as emanações, ou os perfumes, lentas exalações verticais, transições comoventes de um registro puramente humano em direção ao seu fim celestial. Ele conhece a magia dos nevoeiros e das névoas – sobretudo no outono, ou ao amanhecer, ou mesmo no crepúsculo, todos esses momentos afetados por um certo coeficiente temporal de indecisão […] 233. Nas últimas estrofes, o tom mudará de contemplativo de uma beleza exótica para o elegíaco, lamentoso, de um poeta que enxerga a si mesmo como alguém que já passou da idade para tais amores, cujo coração está morno, mas que na juventude – aos dezesseis, como diz o poeta – teria feito os tais versos que a jovem lhe pede: J’ai passé l’âge heureux où la fleur de la vie, L’Amour, s’épanouit et parfume le cœur, Et l’admiration, dans mon âme ravie, N’a plus pour la beauté qu’un rayon sans chaleur. De mon cœur attiédi la harpe est seule aimée ; Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers Pour un de ces flocons d’odorante fumée Que ta lèvre distraite exhale dans les airs ;234 O curioso do poema é justamente o paradoxo de um poeta que, mesmo não se julgando apto, ou necessário, escrever versos para elogiar a tal jovem árabe, faz justamente o tal poema, os tais versos, dizendo que não serão suficientes para elogiá-la. Acreditamos já ter elementos suficientes, portanto, dos traços estilísticos lamartineanos de que Berman fala na sua proposta para que possamos proceder ao estudo da tradução de Machado de Assis. Conforme dito anteriormente, quando realizou esta tradução, o jovem Machado de Assis já se iniciara em Lamartine traduzindo a Histoire de la Restauration. Parece prudente supor, portanto, que o contato com o poeta francês se intensificou neste período. Sendo Machado um jovem que procurava encontrar seu lugar na poesia brasileira, muito natural também seria a escolha de traduzir Lamartine como uma forma de entender o processo de construção do poema 233 RICHARD, Jean-Pierre. Études sur le romantisme. Paris: Éditions du Seuil, 1970, p. 145, tradução nossa. No original: « Lamartine adore par exemple les fumées, ou les parfums, lentes exhalations verticales, transitions émouvantes d’un registre purement humain vers son aboutissement céleste. Il connaît la magie des brouillards et les brumes – en automne surtout, ou à l’aube, ou bien au crépuscule, tous moments affectés d’un certain coefficient temporel d’indécision » 234 LAMARTINE, 1834, p. 251-252 106 e testar os próprios limites de sua capacidade de criação poética. Lembremos mais uma vez que foi o próprio Machado quem disse que para traduzir Lamartine era preciso saber respirar versos como ele. Vejamos como se sai o nosso poeta-tradutor na sua versão que reproduzimos ao lado do poema de Lamartine: Quadro comparativo 3 – “A uma donzela árabe” e “À une jeune árabe” A uma donzela árabe Quem? Tu? Pedir-me o incenso da poesia, Tu que nasceste aos ventos do deserto, Ó filha do Oriente! Flor d’Alepo, onde o rei da melodia, Bubbul, que preferiu teu seio aberto Desmaia e canta ardente! Traz-se de novo ao bálsamo odores? E os frutos às cheirosas laranjeiras Vai-se de novo unir? À alva oriental dá-se fulgores? E ao céu da noite estrelas feiticeiras Áureas a refulgir? Longe os versos daqui!... Mas se é teu gosto E ver da poesia o que há de mais belo Aos teus olhos convém, Nas águas deste tanque olha o teu rosto; Da beleza esse angélico modelo Os versos, não, não têm! Quando no quiosque de janela arcada, Que em noites belas penetrar consente Luas e brisas do mar, De Palmira na esteira estás sentada Em que ondas de fumaça o moca ardente Começa a vaporar; E quando o tubo de alva cor, dourado Com tua mão aos lábios aproximas Que semiabertos são; E aspirando um incenso perfumado, Do narguilé a água morna animas Em doce ebulição; Quando a nuvem alada te embriaga, E te derrama como um doce ambiente, Balsâmico vapor; E no ar suave em que respiras – vaga Um sonho morto, uma visão ardente De mocidade e amor; Quando descreve o corvel esquivo Sujeito à tua mão enfraquecida, E os freios a espumar: E a luz oblíqua desse olhar tão vivo Semelha a chama ardente e enternecida Do seu triunfante olhar; À une jeune arabe (Qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep) Qui ? toi ? me demander l’encens de poésie ? Toi, fille d’Orient, née aux vents du désert ! Fleur des jardins d’Alep, que Bulbul eût choisie Pour languir et chanter sur son calice ouvert ! Rapporte-t-on l’odeur au baume qui l’exhale ? Aux rameaux d’oranger rattache-t-on leurs fruits ? Va-t-on prêter des feux à l’aube orientale, Ou des étoiles d’or au ciel brillant des nuits ? Non, plus de vers ici ! Mais si ton regard aime Ce que la poésie a de plus enchanté, Dans l’eau de ce bassin contemple-toi toi-même ; Les vers n’ont point d’image égale à ta beauté ! Quand le soir, dans le kiosque à l’ogive grillée, Qui laisse entrer la lune et la brise des mers, Tu t’assieds sur la natte, à Palmyre émaillée Où du moka brûlant fument les flots amers ; Quand, ta main approchant de tes lèvres mi-closes Le tuyau de jasmin vêtu d’or effilé, Ta bouche, en aspirant le doux parfum des roses, Fait murmurer l’eau tiède au fond du narguilé ; Quand le nuage ailé qui flotte et te caresse D’odorantes vapeurs commence à t’enivrer ; Que les songes lointains d’amour et de jeunesse Nagent pour nous dans l’air que tu fais respirer ; Quand de l’Arabe errant tu dépeins la cavale Soumise au frein d’écume entre tes mains d’enfant, Et que de ton regard l’éclair oblique égale L’éclair brûlant et doux de son œil triomphant ; Quand ton bras, arrondi comme l’anse de l’urne, Sur le coude appuyé soutient ton front charmant, Et qu’un reflet soudain de la lampe nocturne Fait briller ton poignard des feux du diamant ; Il n’est rien dans les sons que la langue murmure, Rien dans le front rêveur des bardes comme moi, Rien dans les doux soupirs d’une âme fraîche et pure, Rien d’aussi poétique et d’aussi frais que toi ! J’ai passé l’âge heureux où la fleur de la vie, L’Amour, s’épanouit et parfume le cœur, Et l’admiration, dans mon âme ravie, 107 Quando o teu braço como a asa da urna, Ampara curvo a tua fronte bela, E ao súbito fulgor Que em torno espalha a lâmpada noturna Luz diamantina o teu punhal revela De fulgente cor; N’a plus pour la beauté qu’un rayon sans chaleur. Nada há nos sons suaves que murmura Humana língua, nem na fronte grave De ardente trovador, Nem nos ais de uma alma fresca e pura Como em ti: tanto mimo e luz suave, E mágico frescor! Ou pour fixer du doigt la forme enchanteresse, Qu’une invisible main trace en contour obscur, Quand le rayon des nuits, dont le jour te caresse ; Jette en la dessinant ton ombre sur le mur ! De mon cœur attiédi la harpe est seule aimée ; Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers Pour un de ces flocons d’odorante fumée Que ta lèvre distraite exhale dans les airs ; De mim vai longe a idade da ventura, Em que se abre a amor, a flor da vida, E aroma o coração; E apenas p’ra cantar a formosura Tenho uma chama fraca, esmorecida Sem fogo, sem paixão! Ama a lira o meu peito já cansado. Mas quantos versos não daria outrora E cânticos d’amor, Por um só froco aéreo perfumado Desse fumo suave que vapora Dos lábios teus – a flor; Ou para a forma então fixar com o dedo Que num sítio obscuro estampa e traça Uma invisível mão, Quando da noite o raio ardente e ledo Tua sombra cheio de atrativo e graça Projeta sobre o chão! Fonte: Assis (2009); Lamartine (1834) Observando primeiramente a estrutura da tradução de Machado, observamos que ela mantém as mesmas 12 estrofes, embora o número de versos aumente de 48 para 72. Há, aparentemente, um alongamento do texto lamartineano, considerando que temos 24 versos a mais. Contudo, se considerarmos o número de sílabas poéticas, unidade mínima do poema, teremos 624 sílabas na tradução de Machado contra 576 sílabas no poema de Lamartine, diferença que não é tão significativa – menos de 10% – quanto poderia parecer. A explicação é simples e salta aos olhos: Lamartine escreve quadras em versos alexandrinos. Machado adota outra solução: escreve em sextinas, cada uma com dois decassílabos seguidos por um hexassílabo e novamente, mais dois decassílabos e outro hexassílabo, adotando o verso quebrado. Já é curioso notar a pouca preocupação em querer buscar correspondências formais exatas, ou um espelhamento do texto francês, demonstrando que Machado está mais preocupado em fazer com que sua produção poético-tradutória produza 108 no leitor os efeitos que ele, poeta-tradutor, busca, que estejam de acordo com a tradição poética de sua língua-cultura e que não serão necessariamente os mesmos do texto-fonte. Note-se ainda que, conforme Ishimatsu aponta corretamente, “o decassílabo é sem dúvida o metro mais prevalente nos primeiros poemas de Machado – quatorze são compostos inteiramente de versos de dez sílabas, e quinze são combinações de versos de dez e seis sílabas”235. Assim, a escolha de Machado resulta em outro poema, e não poderia ser diferente se entendermos a tradução como uma prática autoral paralela. Enquanto no poeta francês encontramos um metro e ritmo regulares, com uma cadência cuja monotonia reflete uma visão de mundo igualmente estável, em Machado a adoção do decassílabo intercalando-se com hexassílabos, típico de odes e canções clássicas, mas encontrado também em poetas como Tomás Antônio Gonzaga e Bocageviii, traz uma força de expressão diversa, com um ritmo mais marcadamente enérgico. A posição que o jovem Machado adota como tradutor, portanto, sugere o entendimento de que a recriação do poema em outro idioma, independentemente dos recursos formais utilizados, resultará em um novo poema. A disposição das rimas também muda: se por um lado Lamartine utiliza rimas alternadas por todo o poema, Machado, em virtude de ter adotado estrofes com seis versos combinando dois versos em decassílabo seguido pelo respectivo quebrado, o hexassílabo, escolherá o esquema ABCABC. Machado também faz uso do emprego regular de rimas agudas nos terceiro e sexto versos de cada estrofe, em contraposição com as rimas graves dos demais versos, excetuando-se somente a primeira estrofe do poema em que utiliza somente rimas graves, conforme se observa no exemplo abaixo: Quem? tu? Pedir-me o incenso da poesia, Tu que nasceste aos ventos do deserto, Ó filha do Oriente! Flor d’Alepo, onde o rei da melodia, Bubbul, que preferiu teu seio aberto Desmaia e canta ardente! Traz-se de novo ao bálsamo odores? E os frutos às cheirosas laranjeiras Vai-se de novo unir? À alva oriental dá-se fulgores? E ao céu da noite estrelas feiticeiras Áureas a refulgir?236 235 ISHIMATSU, 1984, p. 42. No texto-fonte: “the decasyllable is by far the most prevalent meter in Machado’s early poems – fourteen are made up entirely of ten-syllable lines, and fifteen are combinations of ten- and sixsyllable lines”. 236 ASSIS, 2009, p. 446 109 Por toda a tradução é clara a preocupação com o metro, e não encontramos um só verso em que o metro estivesse irregular, algo que podemos estender ao esquema de rimas adotado por Machado: uma perfeita regularidade entre rimas graves e agudas, à exceção, novamente, da primeira estrofe. Ao comentar em nota a tradução de Machado que recolhera em Dispersos de Machado de Assis (1965), Jean-Michel Massa afirma sobre a tradução: A tradução é fiel à letra e ao espírito do modelo. Segue passo a passo a poesia sem lhe acrescentar nada e sem remover nada importante. Somente a quadra de Lamartine é substituída por uma sextina, modificação que permite ao tradutor permanecer mais fiel ao original dando-lhe maior liberdade para transpor todas as nuances do texto. A juventude do escritor fez com que ele mudasse o verso: Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers para Mas quantos versos não daria outrora237 Embora, na opinião de Massa, Machado não tenha suprimido ou acrescentado nada de relevante, o fato é que, mesmo seguindo Lamartine passo-a-passo, há sim acréscimos e supressões na tradução. Já na primeira estrofe, os “jardins” de “Fleur des jardins d’Alep” desaparecem e o trecho vira somente “Flor d’Alepo”. Devemos louvar, neste caso, o efeito conferido pela concisão com a eliminação de “jardins”, substantivo que soaria redundante e inútil no poema. Na primeira estrofe ainda, o “calice ouvert” de Lamartine torna-se “seio aberto” em Machado, diferença que supõe uma leitura metafórica do suposto “cálice” que pode ser lido como os seios da jovem em uma relação metafórico-metonímica. Já na segunda estrofe as “étoiles d’or” tornam-se “estrelas feiticeiras”, adjetivo escolhido provavelmente em virtude da necessidade de se encontrar rima, mas que carrega também uma agradável assonância com o substantivo que o precede. De qualquer modo, a mudança também pode ser justificada pela busca de termos que confeririam efeito análogo: o “ouro”, metal precioso que seduz e encanta pelo seu valor e raridade, pode ser aproximado neste sentido do adjetivo “feiticeiras”, que confere às estrelas o mesmo ar de encantamento e sedução. Há outros exemplos como esses, em que pequenas supressões ou acréscimos são feitos, mas de fato somos obrigados a concordar que nada de essencialmente importante fora acrescentado ou suprimido do texto, à exceção do ritmo que se torna diferente o suficiente para não mais soar lento como um poema de Lamartine. 237 MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro,1965, p. 495, tradução nossa. No original: “La traduction est fidèle à la lettre et à l’esprit du modèle. Il suit pas à pas la poésie sans rien y ajouter et sans rien en retrancher d’important. Seul le quatrain de Lamartine est remplacé par se sizain, modification que permet au traducteur de rester plus fidèle à l’original en lui laissant une plus grande liberté pour rendre toutes les nuances du texte. La jeunesse de l’écrivain lui fait modifier le vers : Mais combien à seize ans j’aurais donné de vers en Mas quantos versos não daria outrora” 110 Figura 1 - Reprodução da primeira publicação de “A uma donzela árabe” Fonte: Assis (1859). 111 Vemos, portanto, que as escolhas formais do tradutor brasileiro apontam para o que chamaremos de aclimatação das formalidades poéticas do texto-fonte sem, todavia, desviar-se do tema e das imagens do poema francês. Muito pelo contrário: os traços estilísticos lamartineanos de que tratamos anteriormente estão lá: o mesmo ritmo sincopado no primeiro verso, as mesmas imagens do anoitecer, da lua, da brisa do mar, os perfumes das laranjeiras se misturando à fumaça que sai do narguilé e que parece acariciar o rosto da jovem árabe, mesclando o real e o onírico dos amores da juventude e o distanciamento do poeta em relação ao objeto de que ele trata de maneira tão objetiva quanto Lamartine. O leitor que só puder ler a tradução de Machado não terá dificuldades em chegar à mesma leitura do poema que apresentamos acima, com a diferença que o poema de Machado de Assis tem um ritmo e uma oralidade próprios, pois parece haver um certo rebuscamento na linguagem de Machado de Assis que não encontra correspondente em Lamartine, bem como o poeta-tradutor imprime sua própria dicção, sua própria oralidade ao texto. Por vezes, “A uma jovem árabe” parece mais um poema neoclássico do que propriamente romântico. Meschonnic escreve que “[a] primeira e a última traição que a tradução pode cometer contra a literatura é a de lhe roubar aquilo que a faz literatura – sua escritura – pelo próprio ato que a transmite”238. O texto traduzido, enquanto texto, deve fazer o que faz o texto de partida. Neste sentido, só podemos avaliar que o poeta-tradutor certamente entendia estar sendo “fiel” a Lamartine e, sobretudo, a si mesmo. O que poderia ser visto como “perda” – do ritmo típico dos alexandrinos, por exemplo – ao escolher outra forma para o texto de chegada, por exemplo, na verdade parecem ter sido, para o poeta-tradutor, a única saída possível: a um metro clássico francês deve corresponder um metro clássico português, e a expressão francesa deve ser reduzida às formas de expressão da língua portuguesa tendo por norte absoluto que o resultado seja um poema reconhecível como tal. Percebe-se, ainda, o tributo de Machado a formas já conhecidas e utilizadas na tradição poética em língua portuguesa que antecedem a ele, assim como a regularidade na escolha das formas e metros que já conhecia razoavelmente bem naquela época, e que continuaria a utilizar mais tarde. É notável, por exemplo, a semelhança formal entre esta tradução e “Musa Consolatrix”, que abre Crisálidas: Que a mão do tempo e o hálito dos homens Murchem a flor das ilusões da vida, Musa consoladora É no teu seio amigo e sossegado Que o poeta respira o suave sono.239 238 239 MESCHONNIC, 2010, p. 30 ASSIS, 2009, p. 33 112 No exemplo acima temos os mesmos versos corretos de “A uma jovem árabe”, com ritmo idêntico, algo que, entretanto, já fizera anteriormente nos seus primeiros poemas, dentre os quais há mais de uma dezena que combinam decassílabos e hexassílabos, indício de que o poeta e o tradutor trilhavam o mesmo caminho. 5.3 “Souvenir d’Exil” Ao final de seu livro Para traduzir o século XIX: Machado de Assis, Eliane Ferreira relaciona, em anexo, as traduções de Machado de Assis identificadas durante sua pesquisa. O quinto texto desta relação é “A Ch. F., filho de um proscrito”, de 27 de janeiro de 1859, de autoria de Charles Ribeyrolles240. Este é, segundo a autora, um dos acréscimos que fez à listagem feita anteriormente por Jean-Michel Massa, a partir de levantamento realizando durante a elaboração de sua tese. Há, contudo, um equívoco neste caso: “A Ch. F., filho de um proscrito” não é uma tradução, mas um poema que Machado de Assis compôs, com versos em francês, dedicado a Charles Frond, filho de Victor Frond, o “proscrito” do poema. A data também está incorreta: “A Ch. F., filho de um proscrito” fora publicado em 21 de julho de 1859 no Correio Mercantil, em homenagem aos 6 meses de idade do filho de Victor Frond241. O mesmo equívoco é repetido em A poesia completa, obra organizada por Rutzkaya Queiroz dos Reis: “A Ch. F., filho de um proscrito” é tratado como uma tradução, utilizando o mesmo relato de Raimundo Magalhães Júnior242, sem atentar para o fato de que ele tratava de outro texto. Massa, portanto, estava correto em não incluir este texto em sua lista. “A Ch. F., filho de um proscrito” é um pequeno poema, de quatro estrofes em versos alexandrinos clássicos, que Machado escreve e publica em francês: II est beau. Dans son front où la grâce rayonne, II porte tout un monde embaumé, pur et gai. La nature y étale une fraîche couronne ; C'est la molle beauté des blanches fleurs de mai. Au matin de son jour il ouvre sa paupière, Où se berce en dormant son délicat esprit, Aux baisers de l'amour, aux regards de sa mère, 240 FERREIRA, 2004, p. 203 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 113; SOUSA, 1955, p. 322. 242 ASSIS, 2009, p. 464 241 113 À tout ce qui lui parle et lui chante et lui rit. Un charmant avenir l'attend, là-bas, peut-être, Au couchant de ce siècle où tout parle et combat, Qui sait ? Dans le moment où l'enfant vient de naître L'oppression pâlit — l'ostracisme s'en va... Eh bien ! fils de proscrit — est un cœur plein de flammes Qui te parle penché dans ton ciel adorant : Tu seras un croisé dons le combat des âmes ; C'est moi qui le prédis — moi, tête de vingt ans !243 O poema acima, embora não seja uma tradução, de certo modo está em relação direta com o trabalho do tradutor que veremos adiante. O jovem Machado, quando escreve estes alexandrinos franceses na língua de Lamartine, está exibindo suas habilidades não só no domínio do idioma, mas também no metro clássico francês, o que nos leva a pensar que se Machado não traduzia alexandrinos franceses por alexandrinos em português, como no caso de “A uma jovem árabe”, não era por não conhecer ou não ser capaz de fazê-lo, mas porque não era este seu projeto. O poema, dedicado ao filho de um francês radicado no Rio de Janeiro, Victor Frond, e com quem manteve contato, parece ser uma forma de mostrar aos demais que era digno de sua companhia e que também tinha talentos a exibir. Contudo, isso não quer dizer que Machado não tenha, de fato, traduzido um poema de Charles Ribeyrolles. A data de 27 de janeiro de 1859 mencionada por Eliane Ferreira é, na verdade, o dia em que um grupo de amigos se reuniu na casa de Ribeyrolles, editor do Brasil Pitoresco em que Victor Frond trabalhou como fotógrafo e de quem também era amigo e protetor. Segundo informações do biógrafo Raimundo Magalhães Júnior, Machado esteve presente na celebração entre diversos franceses, dentre os quais Baptiste Louis-Garnier, que mais tarde seria seu editor. De acordo com o relato de Magalhães Júnior, “[n]aquele dia seu protetor e amigo Charles Ribeyrolles tomou da pena e improvisou cinco quadras, em versos alexandrinos, com rimas cruzadas, saudando o menino que iria se chamar Charles Frond”244. Logo abaixo do poema improvisado que recebera o título “Souvenir d’Exil”, Machado compôs sua tradução, mantendo as rimas cruzadas e escrevendo alexandrinos clássicos corretos, no decorrer da festa. O poema de Ribeyrolles e a tradução de Machado – que a pesquisadora Rutzkaya Queiroz dos Reis recolhe entre os “Poemas Dispersos” sob o título “Souvenir d’Exil” e apresenta corretamente como “Tradução de um poema de Charles Ribeyrolles” – seriam 243 244 ASSIS, 2009, p. 464 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 110 114 publicados somente quase dois anos mais tarde, em 2 de dezembro de 1860, no Courrier du Brésil, seis meses após a morte de Ribeyrollesix. Vejamos o poema de Ribeyrolles ao lado da tradução de Machado: Quadro comparativo 4 – “Souvenir d’Exil” e tradução de Machado de Assis Un enfant nous est né, dans l’exil, tête blonde, Fleur qui s’ouvre, il est là. Qu’en ferons-nous ? Les Dieux Autour de son berceau, guettent et font la ronde, Chacun lui veut donner sa carte pour les cieux. Flor a abrir entre nós, surge agora um infante; Fronte loura a sorrir em nossa proscrição. Os numes vêm cercá-lo em seu berço galante, E para erguê-lo ao céu todos lhe abrem mão! Le baptisera-t-on Romain ou Calviniste ? Chérubin de Luther ou fils de Loyola ? Sera-t-il Juif ou Turc, et quel saint sur la liste Lui donnera son nom ? – C’est la règle – … Halte-là ! Mas que ele será? Calvinista ou romano? Ou turco, ou querubim de Lutero, ou judeu? E que santo do céu a este lírio humano, Ao costume fiel, dará o nome seu? Le baptême, chez nous, est le baiser des mères, Ce long et doux regard qui nous berce en naissant ; Nous n’aimons point le dogme aux pieuses colères, Et nous ne suivons pas les Dieux buveurs de sang. É o beijo das mães, entre nós... o batismo, Esse amoroso olhar que nos embala então! Nós não temos por dogma a fé do barbarismo E nem numes fatais de sangue e de opressão. Nous baptisons nos fils en toi, Liberté sainte ! Descends, âme des forts, sur ce berceau d’un jour ; Mets au cœur tes fiertés, au front ta chaste empreinte : Et les vieux s’iront te bénissant d’amour. Batizamo-lo em ti, ó liberdade santa, Alma dos bravos desce; - eis um berço infantil. O teu signo de luz, tua altivez lhe implanta Os velhos bendirão a tua mão viril! Ó les petits enfants ! menez bien vos années : Sur nos vieux os blanchis que de gerbes croîtront ! Mais gardez bien la foi, gagnez les destinées : Le combat est devoir ; - souviens-toi, Charles Frond ! Espírito de luz – eia, marchar – avante! Nossos ossos em pó reflorirão por dom! Mas conservai a fé, e o futuro radiante, Lutar é um dever; - lembra-te, Charles Frond! Fonte: Assis (2009); Ribeyrolles (1860) Machado de Assis ainda estava por completar 20 anos quando participou do encontro em que fez a tradução acima. Esta tradução também não está entre as que foram coligidas por Machado no seu primeiro volume de poesias, e não viu outra publicação a não ser as folhas do Courrier du Brésil enquanto Machado vivia. Qual a relevância deste texto, portanto, para os estudos machadianos? Primeiramente, temos o viés biográfico: esta tradução é um ótimo exemplo do excelente nível de proficiência que Machado tinha no idioma ainda jovem, o que é reforçado pelos primeiros versos que publica em francês na mesma época. Depois, percebemos que a vontade do escritor de participar dos círculos de amizades que favorecessem sua entrada para o mundo das letras e, igualmente, que permitissem aprimorar seus conhecimentos do idioma. A façanha daquele dia parece ter ainda outra intenção: demonstrar aos presentes seus dotes linguísticos e, sobretudo, literários. Estes dotes literários nos interessam porque demonstram que, além da louvável proficiência na língua francesa, também já demonstrava habilidade com as regras de versificação e os alexandrinos clássicos. Machado, que mais tarde seria chamado de “príncipe 115 dos alexandrinos” por Antônio Feliciano de Castilho – autor de Escavações Poéticas e do Tratado de Metrificação Portuguesa, obras que ajudaram a introduzir o alexandrino clássico entre nós – e que usou o metro “elegante e magistralmente desde o seu primeiro livro”245, na opinião de Péricles Eugênio da Silva Ramos (1959), já demonstrava saber usar com desenvoltura o verso francês. Quando participou da festa em que fez esta tradução Machado não era exatamente um poeta iniciante, uma vez que já publicara mais de cinquenta poemas nos periódicos da época. O uso do alexandrino clássico nesta tradução, contudo, é relativa novidade. Antes da tradução de “Souvenir d’Exil” Machado empregara o metro pelo menos uma vez, no poema “O Progresso – hino da mocidade” publicado no Correio Mercantil em 30 de novembro de 1858: Fala mais alto, irmãos, a ardente humanidade! Marchando a realizar uma missão moral; E pregando uma lei, uma eterna verdade, Do progresso a subir a mágica espiral.246 Em Crisálidas, contudo, encontramos o metro em “Versos a Corina”: Tu nasceste de um beijo e um olhar. O beijo Numa hora de amor, de ternura e desejo Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor, Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;247 em “A Caridade”, de 1861: Ela tinha no rosto uma expressão tão calma Como o sono inocente e primeiro de uma alma Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;248 e em “Aspiração”, de 1862, dedicado ao seu futuro cunhado, Francisco Xavier de Novaes: Sinto que há na minh’alma um vácuo imenso e fundo, E desta meia morte o frio olhar do mundo Não vê o que há de triste e de real em mim;249 245 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O verso romântico e outros ensaios. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1959, p. 44 246 ASSIS, 2009, p. 441 247 Ibid., p. 50 248 Ibid., p. 298 249 Ibid., p. 302 116 Figura 2 - Reprodução da primeira publicação de “Souvenir d’Exil” Fonte: Assis (1860) 117 A tradução de “Souvenir d’Exil”, portanto, teria sido um dos primeiros exercícios em verso alexandrino a ser publicado por Machado de Assis. Por todo o poema Machado segue o mesmo esquema de rimas ABAB de Ribeyrolles em sua tradução, e a metrificação dos seus alexandrinos clássicos está impecável: dois hemistíquios hexassilábicos, somando doze sílabas invariavelmente, sempre terminando o primeiro hemistíquio com sílaba aguda250: Flor / a a/brir / en/tre / NÓS,// sur/ge a/go/ra um/ in/FAN//te; Fron/te / lou/ra a / sor/RIR// em / nos/sa / pros/cri/ÇÃO.// Os / nu/mes /vêm / cer/ CÁ//-lo em / seu / ber/ço / ga/LAN//te, E / pa/ra er/guê/-lo ao/ CÉU// to/dos /lhe / a/brem /MÃO!// O que observamos na estrofe acima é observável em todo o poema: as mesmas rimas cruzadas e os mesmos alexandrinos clássicos de “Souvenir d’Exil”. Deve-se perguntar, contudo, com que grau sucesso Machado consegue manter o sentido do poema de Ribeyrolles, uma vez que a forma parece adequada. “Souvenir d’Exil” (Lembrança do Exílio) é um despretensioso poema de ocasião que trata do nascimento de Charles Frond, filho do fotógrafo Victor Frond. A primeira quadra do poema francês anuncia a chegada do rebento que logo é cercado por divindades que parecem disputar a adoração daquela nova alma. Seguindo essa tendência religiosa que se impõe ao nascimento, o poeta pergunta, já na segunda estrofe, e ecoando a pergunta da primeira – “Qu’en ferons-nous ?” – quais caminhos religiosos o jovem deveria seguir, em qual seria batizado, dizendo ser esta a rega: é preciso que seja alguma coisa, pois este é o costume. Mas o poeta logo se desfaz dos caminhos religiosos sugeridos a partir das perguntas da segunda estrofe com uma enérgica interjeição – “Halte-là!” – que interrompe a imposição de uma crença sobre o infante. Na estrofe seguinte o poeta compara, metaforicamente, o batismo ao beijo e ao olhar da mãe que embala o bebê que acaba de nascer. Dizendo que também não são bárbaros nem adoradores de deuses pagãos – “Et nous ne suivons pas les Dieux buveurs de sang” – o poeta encerra a terceira estrofe sugerindo que crê no batismo, mas num batismo que já se sugere diferente da tradição. A resposta vem na quadra seguinte, em cujo primeiro verso o jovem é batizado não em uma denominação religiosa, mas na santa Liberdade, e pede que as almas dos fortes – seriam os que lutaram pela liberdade e contra a opressão? – desçam sobre o berço de Charles Frond e imprimam nele suas qualidades. Na quadra final o poeta se dirige primeiramente a todos os infantes e, por último, a Charles Frond com um pedido: que guardem a fé – na liberdade, certamente, pois é nela que Frond é batizado – e lutem, pois a luta é um dever. Trata-se, portanto, de um poema que festeja a chegada de mais uma alma que terá por obrigação lutar por um ideal iluminista. Os versos de Ribeyrolles 250 CHOCIAY, 1974, p. 125 118 são fluidos, diretos, pouco figurativos, de fácil e imediato entendimento, mesmo sob a rígida égide do verso alexandrino, que soa muito bem aclimatado à língua francesa. A versão de Machado de Assis é rigorosamente atenta não só ao sentido do poema de Ribeyrolles, mas também à forma, como já dissemos, o que aumenta em muito a dificuldade da tarefa. Não há um ponto sequer da leitura que se possa fazer do poema francês que não seja alcançável na leitura do poema de Machado. Por outro lado, percebe-se que a dicção do tradutor-poeta é diferente pois soa mais elevada, mais rebuscada do que o francês, o que se vê, por exemplo, na escolha vocabular – como “numes” em vez de “deuses”, para traduzir “Dieux”, que em nada atrapalharia o metro ou o ritmo – ou nas inversões que o poeta emprega aqui e ali – “dará o nome seu?”, por exemplo. Vez ou outra há alguma supressão, mas em se tratando de tradução poética é algo absolutamente natural. Citamos, por exemplo, a pergunta “Qu’en ferons-nous?”, no segundo verso da primeira estrofe, ou o trecho “ou fils de Loyola?” do segundo verso da segunda estrofe, que não encontram correspondentes na tradução de Machado. Estas pequenas supressões devem lidas não só como exercícios de síntese que devem existir para que a tradução poética seja possível, mas como indícios de operações delicadas e soluções inteligentes e criativas para os problemas apresentados pelo ato de tradução. Por outro lado, há momentos que poderíamos chamar, com Berman, de “zonas textuais miraculosas”, aquelas em que o tradutor tem claro êxito em sua tarefa, como ao traduzir os versos finais “Mais gardez bien la foi, gagnez les destinées: / Le combat est devoir; - souviens toi, Charles Frond!” por “Mas conservai a fé, e o futuro radiante, / Lutar é um dever; - lembra-te, Charles Frond!”. Afinal, o jovem tradutor soube recriar o poema de Ribeyrolles em nosso idioma respeitando não só o sentido, mas a forma, as imagens, tudo o que fosse necessário para que o leitor de língua portuguesa pudesse fruir o texto de similar maneira. A façanha é ainda maior se considerarmos que o resultado foi alcançado tão rapidamente, no decorrer da festa, logo após Ribeyrolles terminar os seus versos, segundo as testemunhas. De um pequeno texto, sem grandes pretensões literárias, ou nenhuma talvez, surge um tradutor versátil, hábil e que demonstra já ser sensível à noção de que traduzir poesia significa, sobretudo, ter como produto outro poema que funcione como tal, o que exige soluções independentes e criativas. Segundo Meschonnic, “[...] A fidelidade não se contenta com uma confrontação termo a termo. Ela impõe a questão do conjunto, a da coerência interna do texto, de sua oralidade, de sua poética como sistema de discurso.”251. Neste caso em particular, é clara 251 MESCHONNIC, 2010, p. LXIV 119 a tentativa de se equiparar ao texto-fonte não nas minúcias de sua engrenagem, mas no seu modo de funcionamento, sucesso que não podemos negar, por mais que seja possível apontar aqui e acolá, no “termo a termo” de que fala Meschonnic, alguns distanciamentos. Este caso interessa ainda mais porque nele observamos um comportamento relativamente raro na seara tradutória de Machado de Assis, que é a manutenção dos aspectos formais – metro, rima, estrofes – do texto-fonte, algo que repetirá quando traduzir o Canto XXV do “Inferno”, mas que é antes exceção do que procedimento padrão em sua oficina. Não acreditamos que devamos atribuir este fato a uma deferência pelo texto-fonte ou seu autor. Ao contrário, parece ser uma clara tentativa de demonstração de virtuosismo poético, linguístico e tradutório que poderia garantir o ingresso do jovem poeta-tradutor num círculo restrito de pessoas que aptas a contribuir com a sua almejada ascensão como escritor. 5.4 “O casamento do Diabo”x Publicado em 29 de março de 1863 na Semana Ilustrada, “O casamento do Diabo” é um caso um tanto peculiar na produção de Machado. O poema seria uma imitação de uma canção francesa de Gustave Nadaud, “Satan Marié”. O texto, pequeno e despretensioso, é uma canção satírica em que o Diabo, enfadado, resolve se casar. Para levar a empreitada adiante, disfarçase cortando os chifres, as unhas e o rabo. Contrariando os conselhos do narrador da canção, o Diabo toma para si uma esposa humana que acabará por traí-lo, o que ficamos sabendo somente ao fim, quando ao Diabo não voltam a crescer nem a cauda, nem as unhas, mas somente os chifres. O poema foi publicado anonimamente naquela data, e acompanhado da indicação de que se tratava de uma “imitação do alemão”, idioma que Machado de Assis desconhecia naquele momento – conforme ele mesmo afirma anos mais tarde em uma nota em Falenas – e do qual não poderia, sozinho, ter traduzido ou imitado. Como Gondin da Fonseca e Jean-Michel Massa não acreditaram na honestidade de Machado, supondo que ele imitara do francês e não do alemão, pretendemos demonstrar aqui que há indícios que sugerem o contrário, como um texto em alemão que pode ter servido de fonte para Machado de Assis. Gondin da Fonseca, em Machado de Assis e o hipopótamo (1961), explica a gênese da imitação informando que Gustave Nadaud – autor de “Satan Marié” – era o grande cancionista da época, sendo que esta composição estava entre suas mais célebres cançonetas. Para justificar o interesse de Machado de Assis pela cançoneta, Gondin da Fonseca escreve: “Já sabemos ser 120 o diabo um dos vários símbolos utilizados pelo Inconsciente de Machado de Assis para a evocação da lembrança paterna. Assim, não poderia deixar de lhe ferir especialmente a atenção a curiosíssima letra de ‘Satan Marié’”.252 A transcrição completa do texto francês da canção é então apresentada, seguida pela avaliação de Gondin da Fonseca: A mulher do Diabo, que lhe pôs os chifres, chamava-se Inês, exatamente como a mulher de Francisco José de Assis, – mãe-substituta de Dom Casmurro. Levado por impulso inconsciente, ele traduziu a poesia de Nadaud (muito mal) publicando-a na Semana Ilustrada (Rio, 29-3-63) sem a assinar e sob o título “O casamento do Diabo (imitação do alemão)”. Despistamento ingênuo, pois Nadaud se tornara, desde 1850, cançonetista celebérrimo. Em todo o caso, quem desconhecesse a letra francesa ficaria na ignorância de que a mulher do Diabo era Inês (Agnès): ele teve o cuidado de não a nomear. O original da sua deplorável tradução foi adquirido, no Rio, pelo Sr. José Carlos de Macedo Soares, que o conserva.253 Quando recolhe o texto no volume Dispersos de Machado de Assis, Jean-Michel Massa, também acreditando que Machado teria induzido o público a acreditar em algo que não era verdade ao publicar o texto como “imitação do alemão”, atribui tal comportamento ao esnobismo de Machado: Gustave Nadaud (1820-1893) publicou entre 1849 e 1882 um conjunto de Chansons (Canções) às quais acrescentou, sucessivamente, novas obras. É na segunda edição, a de 1852, que aparece pela primeira vez o Satan Marié (B.N. Paris Ye 28387). Esta canção será reproduzida nas outras edições. Logo, este poema não foi imitado do alemão! Por que Machado diria isso? Esnobismo ou gosto pelo embuste. Preferimos a segunda hipótese pois as canções de Nadaud, que foi o sucessor de Béranger, deviam ser então igualmente conhecidas na França e no Brasil.254 Talvez tivesse mais sorte no seu comentário se procurasse uma versão em alemão da canção de Gustave Nadaud em que Machado houvesse se baseado, apostando mais na honestidade do escritor do que no seu suposto preciosismo, nada condizente com o que se conhece da índole de Machado. Em Machado de Assis tradutor Massa explica o seguinte a respeito do poema: “O casamento do diabo” é apresentado como uma “imitação do alemão”. Ora, o texto brasileiro segue verso a verso uma obra francesa, “Satan Marié”, do cancionista francês Gustave Nadaud. Não conseguimos explicar o que impeliu Machado de Assis a induzir em erro o público brasileiro sugerindo um conhecimento do alemão. Nadaud era famoso, e suas canções eram quase tão conhecidas como as de Béranger.255 252 FONSECA, Gondin da. Machado de Assis e o hipopótamo. São Paulo: Editora Fulgor, 1961, p. 63. FONSECA, 1961, p. 64-65. 254 MASSA, 1965, p. 514. No texto-fonte : Gustave Nadaud (1820-1893) a publié de 1849 à 1882 un recueil de Chansons qu’il a successivement enrichi d’œuvres nouvelles. C’est dans la deuxième édition, celle de 1852, qu’apparait pour la première fois le Satan Marié (B.N. Paris Ye 28387). Cette chanson sera reproduite dans les autres éditions. Ainsi ce poème n’est pas imité de l’allemand ! Pourquoi Machado de Assis le déclare-t-il ? Snobisme ou goût de la supercherie. Il faut préférer la seconde hypothèse car les chansons de Nadaud, qui était le successeur de Béranger, devaient être alors aussi connues en France qu’au Brésil. 255 MASSA, 2008, p. 27 253 121 A respeito dessa tradução, Raimundo Magalhães Júnior esclarece que a “[...] publicação foi anônima e, na época, ninguém deve ter suspeitado de que se tratava de obra de Machado de Assis. Nem se ficaria sabendo disso se não houvesse sido preservado o original, com a inconfundível caligrafia de Machado de Assis”256. Consultamos uma reprodução do original, preservado em formato digital pela Biblioteca do Senado, e verificamos que não só a caligrafia, como a assinatura do autor ao fim do poema, cujo título é acompanhado de “imitado do alemão”, atestam a autoria. Figura 3 - Reprodução do manuscrito de “O casamento do diabo” Fonte: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/140962/000586081_1.pdf?sequence=15.>. Acesso em: 27 abr. 2017 É peculiar e digno de investigação que a cançoneta tenha sido publicada anonimamente como “imitação do alemão” quando na verdade é uma versão bastante livre de “Satan Marié” de Gustave Nadaud. Embora Gondin da Fonseca e Jean-Michel Massa tenham sido os primeiros a tecer comentários a respeito do anonimato e da aparentemente falsa indicação quanto ao textofonte, é Magalhães Júnior quem apresenta dados mais sóbrios que poderão explicar a relativa 256 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 240. 122 liberdade da tradução que analisaremos em seguida e, consequentemente, a escolha do termo “imitação” para apresentá-la. Eis a explicação do biógrafo: Provavelmente o editor da Semana Ilustrada, o hanoveriano Henrique Fleiuss – que naquele princípio de ano inaugurava suas oficinas próprias no largo de São Francisco de Paula, não longe da rua do Rosário, em que tinha sua redação o Diário do Rio de Janeiro, onde a pequena revista foi impressa de dezembro de 1860 a fevereiro de 1863 – lera aquela canção traduzida para a sua língua, em alguma publicação alemã e, como a achara divertida, deve ter rascunhado uma tradução literal em prosa para que Machado de Assis, ágil pena a seu serviço, a transformasse em versos. Machado, que a esta altura não havia estudado alemão, não poderia ter escrito tal imitação sem a ajuda de seu patrão e amigo. Fez, certamente, obra apressada, sobre um texto que era a tradução de uma tradução.257 Henrique Fleiuss, apontado por Magalhães Júnior como colaborador neste caso, foi um alemão que fixou residência no Rio de Janeiro, onde fundou a Semana Ilustrada em dezembro de 1860, uma publicação simples, de apenas oito páginas, quatro de texto e outras quatro de gravuras, que sobreviveu até 1875258. À Semana Ilustrada juntar-se-iam nomes hoje consagrados como Joaquim Nabuco, Quintino Bocaiuva e, é claro, Machado de Assis, ora assinando com seu próprio nome, ora sob pseudônimo. O ano de 1860 marca, inclusive, a entrada formal de Machado de Assis para a imprensa, primeiramente no Diário do Rio de Janeiro259 e, ao fim do ano, estreia também na Semana Ilustrada de Fleuiss, onde permaneceu até que o periódico fosse descontinuado. Além disso, não se sabe muito do tipo de relacionamento ou mesmo amizade que Machado possa ter estabelecido com Fleiuss. A julgar, contudo, pelos retratos de Machado de Assis desenhados por Fleiuss e estampados na Semana Ilustrada em novembro e dezembro de 1864, ano da publicação de Crisálidas, com e sem o característico pince-nez, e principalmente pelo tempo em que trabalharam juntos e colaboraram com o trabalho um do outroxi, é de se supor que houvesse algum grau de amizade entre eles. Em 1863, ano em que saiu “O casamento do Diabo”, Machado de Assis já era autor de dezenas de poemas publicados em periódicos, inclusive na Semana Ilustrada, alguns dos quais seriam aproveitados no seu primeiro volume de poesia, Crisálidas. Machado, que a biografia de Magalhães Júnior retrata como um homem modesto, correto e completamente avesso a qualquer esnobismo, sempre foi sincero quanto ao conhecimento que tinha de outros idiomas quando traduzia. Assim também foi descrito por Amaral Tavares em crítica a Crisálidas publicada no Diário do Rio de Janeiro em 16 de novembro de 1864: “Se em algum indivíduo da raça humana encarnou-se a modéstia, foi decerto em Machado de 257 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 242-243. MASSA, 2009, p. 529. 259 Ibid., p. 242. 258 123 Assis”260. Suas traduções de Crisálidas e Falenas, por exemplo, quando feitas de obras escritas em línguas que o autor desconhecia e utilizando o francês como língua intermediária, vêm acompanhadas de notas explicando o procedimento adotado, como fizera com “Alpujarra”: “Não sei como corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Cristiano Ostrowsky”261; e depois com “Os deuses da Grécia” em tom categórico, afirmando: “Não sei alemão; traduzi estes versos pela tradução em prosa francesa de um dos mais conceituados intérpretes da língua de Schiller”262. Não haveria, portanto, razão para mentir no caso de “O casamento do Diabo”, menos ainda por esnobismo, já que o texto foi publicado anonimamente. Quanto à escolha pelo anonimato, Magalhães Júnior explica que Machado de Assis, trabalhando como censor do Conservatório Dramático, talvez não se sentisse confortável vendo seu nome atrelado a um texto cômico tão extravagante. Assim, por acreditarmos na sinceridade de Machado de que se tratava, de fato, de uma “imitação do alemão”, buscamos uma versão alemã da canção de Nadaud, na tentativa de corroborar a hipótese de Magalhães Júnior, e encontramos uma que satisfaz os critérios. A versão alemã que localizamos da canção chama-se “Des Teufels Hochzeit” que, em tradução literal, nos dá exatamente “O casamento do Diabo”, o mesmo título da versão de Machado, enquanto o texto francês, literalmente, se traduziria como “Satã Casado”, dado que de imediato nos deixou em alerta. Além disso, pudemos confirmar que a referência à versão “Des Teufels Hochzeit” que encontramos no site da Bibliothèque Nationale de France fora traduzida no século XIX, pela condessa Wilhelmine Gräfin Wickenburg-Almasy, poetisa que viveu entre 1845 e 1890, e posteriormente musicada por Oscar Straussxii. A poetisa nascida na Hungria foi levada à Áustria, pelo pai, ainda bem jovem, onde foi educada e começou a escrever e publicar poesiaxiii, tendo sido particularmente ativa durante a década de 1860. As datas coincidem, portanto, e reforçam a tese de que esta pode ter sido a versão que Fleiuss consultou e traduziu em prosa livre para que Machado devolvesse à forma poética. Infelizmente, não temos como comprovar de maneira irrefutável esta tese, uma vez que não encontramos nenhuma informação a respeito das condições em que essa versão alemã foi produzida e publicada. Vejamos o texto da tradução de Wickenburg-Almasy: 260 ASSIS, 2009, p. 648. Ibid., p. 329. 262 Ibid., p. 364. 261 124 Des Teufels Hochzeit263 Einst wars dem Teufel verdrießlich zumut: Zum Zeitvertreib Will ich nun sehen, wie Buße tut, Und nehm ein Weib! Und hab ich mir erst Genüge getan, Dann fang ich mein Leben von vorne an! Satan, sieh zu! Das Weib ist klüger als du! Er griff zum Dolch und hieb sich schlau Mit raschem Schnitt Die Borsten ab und Schwanz und Klau, Die Hörner mit! Und blies sich selber mit vielem Geschick Die Funken aus im sprühenden Blick. Satan, sieh zu! Das Weib ist klüger als du! Dann zieht er aus voll Adel fürwahr Und Anmut und Geist, Und sucht nach Schönheit, nach Tugend sogar, Doch nach Geld zumeist – Und findet ein Mädchen, das zugleich So jung als schön, so sittsam als reich. Satan, sieh zu! Das Weib ist klüger als du! Zum Hochzeitsfest führt er am Arm Die schöne Braut, Zur Kirche drängt sich ein gaffender Schwarm, Als man ihn traut. O Mädchen, was sagst du, wenn du erkannt, Daß du dem Teufel gereicht deine Hand?! Satan, sieh zu! Das Weib ist klüger als du! Die Zeiten wanderten allgemach Im alten Tanz, Ihm wuchsen nicht Borsten, noch Klauen nach Und nicht der Schwanz. Sein Auge blieb glanzlos Jahr um Jahr, Nur eins kam wieder: – das Hörnerpaar! Satan, sieh zu! Das Weib ist klüger als du! 263 NADAUD, Gustave. “Des Teufels Hochzeit”. Trad. Wilhelmine Gräfin Wickenburg-Almasy. Disponível em: < http://gutenberg.spiegel.de/buch/-7414/79>. Acesso em: 28 nov. 2016. 125 A versão de Wickenburg-Almasy, ao contrário do poema de Machado, de fato segue bem de perto o texto francês de Nadaud, mantendo as mesmas cinco estrofes e o esquema de rimas ABABCCDD, e com pouquíssimas divergências semânticas, perfeitamente justificáveis quando se trata de traduzir um texto literário. Comparemos com o texto francês, de Nadaud: Satan Marié Satan dit un jour : Je commence A m'ennuyer. Je veux, pour faire pénitence, Me marier. Quand j'aurai passé mon envie, Je veux recommencer ma vie. Satan, crois-moi. La femme est plus fine que toi. Avec sa dague rouge et bleue. Il coupa tout, Griffes et poils, cornes et queue, Jusques au bout. Il éteignit les étincelles Qui jaillissaient de ses prunelles. Satan, crois-moi, La femme est plus fine que toi. Il prend figure, esprit, noblesse, Et va partout Cherchant beauté, grâce, sagesse, Argent surtout. Il avise une jeune fille Sage, bien en dot et gentille. Satan, crois-moi, La femme est plus fine que toi. Avec Agnès sa fiancée Il est uni. La foule à l'église est pressée ; Tout est fini. Que va dire Agnès déplorable, Quand elle connaîtra le diable ? Satan, crois-moi, La femme est plus fine que toi. Un an, puis deux ans se passèrent ; Ne changeait pas. Griffes ni poils ne repoussèrent, Ni queue, hélas ! Ses yeux restaient tristes et mornes ; Rien ne reparut… que les cornes. Satan, crois-moi, 126 Ta femme est plus fine que toi.264 Não sabemos o que Massa quis dizer quando afirmou que Machado de Assis segue verso a verso o texto francês uma vez que há diversas supressões, acréscimos e alterações, embora seja perfeitamente possível estabelecer que existe uma relação entre os textos. Vejamos o texto de Machado: O casamento do Diabo (Imitação do alemão) Satã teve um dia a ideia De casar. Que original! Queria mulher não feia, Virgem corpo, alma leal. Toma um conselho de amigo, Não te cases, Belzebu; Que a mulher, com ser humana, É mais fina do que tu. […] Cortou unhas, cortou rabo, Cortou as pontas, e após Saiu o nosso Diabo, Como o herói dos heróis. Toma um conselho de amigo, Não te cases, Belzebu; Que a mulher, com ser humana, É mais fina do que tu. Casar era a sua dita; Corre por terra e por mar, Encontrou mulher bonita E tratou de a requestar. Toma um conselho de amigo, Não te cases, Belzebu; Que a mulher, com ser humana, É mais fina do que tu. Ele quis, ela queria, Puseram mão sobre mão, E na melhor harmonia Verificou-se a união. 264 NADAUD, Gustave. “Satan Marié”. In: NADAUD, Gustave. Chansons de Gustave Nadaud. 4 ed. Paris: Frédéric Henry Libraire, 1862, p. 162-163. 127 Toma um conselho de amigo, Não te cases, Belzebu; Que a mulher, com ser humana É mais fina do que tu. Passou-se um ano, e ao Diabo Não lhe cresceram por fim, Nem as unhas, nem o rabo… Mas as pontas, essas sim… Toma um conselho de amigo, Não te cases, Belzebu; Que a mulher, com ser humana É mais fina do que tu.265 De imediato, observamos diversas alterações que Machado faz no texto: ao contrário das cinco estrofes originais, o texto passa a ter doze, já que Machado divide as oitavas em quadras, separando o estribilho das demais estrofes; o esquema de rimas, consequentemente, também muda, para ABAB nas estrofes principais, e ABCB no estribilho. A métrica também é diferente, pois enquanto no texto francês temos, alternadamente, versos de oito e quatro sílabas, Machado escolhe exclusivamente o verso de sete sílabas. Curiosamente, embora os esquemas de estrofes, metro e rima sejam diferentes, o manuscrito de Machado, o poema de Nadaud e a versão alemã têm exatamente os mesmos quarenta versos. Por outro lado, a versão publicada em A Poesia Completa (2009) pela Edusp segue o texto estabelecido por Jean-Michel Massa em Dispersos de Machado de Assis, que contém doze estrofes e quarenta e oito versos, indicando que o tradutor reviu o texto antes da publicação, acrescentando-lhe uma estrofe e um estribilho que não constam do texto francês ou alemão. Massa cita como fonte do texto que publica o número 120 da Semana Ilustrada de 29 de março de 1863266, a mesma citada pela Bibliografia de Machado de Assis, de Galante de Sousa267. Não foi possível localizar o número no número 120 da Semana Ilustrada nos arquivos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional onde o texto de “O casamento do diabo” foi publicado para confrontar as versões. De todo modo, essas alterações só permitem que aceitemos a afirmação de Massa de que Machado “segue verso a verso uma versão francesa” se adotarmos uma visão bem ampla e generalista do que significa seguir “verso a verso”. Quanto ao sentido, as alterações são várias também, geralmente envolvendo diversas omissões e acréscimos. Se compararmos a primeira estrofe da versão de Machado: 265 ASSIS, 2009, p. 492-494. MASSA, 1965, p. 174-175. 267 SOUSA, 1955, p. 370. 266 128 Satã teve um dia a ideia De casar. Que original! Queria mulher não feia, Virgem corpo, alma leal.268 com o texto de Nadaud, Satan dit un jour : Je commence A m'ennuyer. Je veux, pour faire pénitence, Me marier. Quand j'aurai passé mon envie, Je veux recommencer ma vie.269 também fica difícil entender as afirmações de Massa a respeito dos procedimentos de Machado quando, na verdade, pouco há de semelhante em uma e outra. As falas em primeira pessoa no texto francês simplesmente desaparecem na versão de Machado, que escolhe narrar tudo em terceira pessoa. Da informação original, somente a vontade de casar-se permanece no texto imitado. Não há referência, no poema de Nadaud, ao fato de a futura esposa precisar ser bonita, virgem ou leal. Estas são todas criações de Machado. É somente na terceira estrofe do texto francês que descobrimos que o Diabo buscava “beauté, grâce, sagesse, / Argent surtout” – “beleza, graça, sabedoria / Sobretudo dinheiro” –, o que mais se aproxima do que Machado escreve. No texto de Machado a fala do Diabo também desaparece, o que o distancia do poema francês. Se, todavia, compararmos o primeiro verso do texto de Machado com o da versão alemã, “Einst wars dem Teufel verdrießlich zumut” – algo como “um dia, o Diabo estava entediado e casmurro” e decide, portanto, se casar –, verifica-se que há neste verso mais em comum com o texto de Machado, considerando-se que ambos apresentam as mesmas omissões. Ou seja, no poema francês, Satanás é sujeito ativo, que fala por quase toda a estrofe, enquanto no texto alemão e no de Machado a narrativa é mais distante. Outras alterações do tipo são facilmente identificáveis por todo o poema de Machado. Sabemos que nessa época seu francês já alcançara níveis louváveis e, a julgar pelas outras traduções que praticou a partir do francês, não haveria motivo para se distanciar tanto do texto de Nadaud se o tivesse lido na língua original, nem era este procedimento comum,xiv o que faz com que a marca pessoal de Machado de Assis nessa tradução fique bastante clara. Nos trechos reproduzidos abaixo, a concisão do poeta brasileiro é aparente. Enquanto Nadaud escreve: Avec Agnès sa fiancée Il est uni. 268 269 ASSIS, 2009, p. 492 NADAUD, 1862, p. 163 129 La foule à l'église est pressée ; Tout est fini. Que va dire Agnès déplorable, Quand elle connaîtra le diable ? […] Un an, puis deux ans se passèrent ; Ne changeait pas. Griffes ni poils ne repoussèrent, Ni queue, hélas ! Ses yeux restaient tristes et mornes ; Rien ne reparut… que les cornes.270 Machado prefere: Ele quis, ela queria, Puseram mão sobre mão, E na melhor harmonia Verificou-se a união. […] Passou-se um ano, e ao Diabo Não lhe cresceram por fim, Nem as unhas, nem o rabo… Mas as pontas, essas sim…271 Os versos de Machado são mais curtos, sintéticos. A personagem Agnès, esposa do Diabo, a “Inês” de que falava Gondin da Fonseca, simplesmente desaparece no texto em português, o tradicional casamento na igreja fica simplesmente sugerido, e a multidão se apertando desaparece, assim como a pergunta a Agnès sobre o que pensaria se soubesse que estava se casando com o Diabo. Mas ao verificarmos que o texto em alemão também omite o nome “Agnès”, traduzindo somente por “bela noiva” – “Die schöne Braut”, em alemão –, notamos mais uma aproximação entre a versão alemã e a de Machado de Assis, algo que poderia explicar a omissão e sugerir que, ao apresentar o texto como “imitação do alemão”, Machado estava sendo, ao que tudo indica, honesto. A proximidade com o alemão também é visível na estrofe seguinte: no texto francês passa-se “um ano, depois dois anos”, enquanto no poema de Machado somente um ano se passa. No texto em alemão este verso é traduzido por “Die Zeiten wanderten allgemach”, ou “Os dias passavam aos poucos”, o que é igualmente distante do texto francês. Além disso, Machado elimina completamente a referência aos olhos “tristes e mornos” do Diabo, presente tanto no texto francês quanto no alemão, que diz que “os olhos permaneceram sem brilho ano após ano” 270 271 NADAUD, 1862, p. 163 ASSIS, 2009a, p. 493-494 130 (“Sein Auge blieb glanzlos Jahr um Jahr”). Assim, parece-nos bastante provável que Machado teve, de alguma forma, acesso ao texto alemão, e a teoria do biógrafo Magalhães Júnior sobre a ajuda de Fleiuss intermediando a leitura do idioma parece perfeitamente plausível. Por fim, o estribilho é dos mais afetados: enquanto no texto de Nadaud e na versão alemã ele ocupa somente dois versos, Satan, crois-moi, La femme est plus fine que toi.272 Machado escolheu uma estrofe de quatro versos: Toma um conselho de amigo, Não te cases, Belzebu; Que a mulher, com ser humana, É mais fina do que tu.273 A elas acrescenta nos três primeiros versos informação que não existe no texto de Nadaud: dirige-se a Belzebu, e não a Satanás, embora praticamente sinônimos e, evidentemente, para facilitar a rima; aconselha-o que não se case; por fim, enfatiza o lado “humano” da mulher, enquanto o texto francês, muito mais sucinto, simplesmente faz o alerta de que a mulher é mais “fina” do que o Diabo. Se Machado faz essas alterações, a versão alemã é praticamente uma tradução literal da francesa: “Satan, sieh zu! / Das Weib ist klüger als du!” (“Satã, olhe! / A mulher é mais esperta do que você!”). É curioso, no entanto, que Machado escolha o adjetivo “fina”, tão próximo ao adjetivo “fine” de Nadaud, não só no significado, mas sonoramente. Não descartaremos a possibilidade de uma coincidência, uma vez que encontramos mais semelhanças com o texto alemão do que com o francês, como as mencionadas anteriormente, mas seria ingênuo acreditar somente nessa possibilidade. Poder-se-ia argumentar que isso, por si só, não justifica a predileção pelo texto alemão sobre o francês, nem podemos nos desfazer por completo da hipótese de que Machado tinha conhecimento do texto francês enquanto escrevia sua imitação, se considerarmos as informações que obtivemos a respeito da popularidade de Nadaud. Após consulta na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, encontramos poucas referências ao nome de Nadaud nos anos anteriores a “O casamento do Diabo” no Rio de Janeiro. Em 1858, por exemplo, há anúncios da representação de Des bêtises, no Diário do Rio de Janeiro, no Correio Mercantil e no Courrier du Brésil. Mas é importante notar que no mesmo ano de 1858, a edição de 30 de maio do Jornal do Comércio anuncia uma “representação extraordinária” de algumas obras, entre elas “Satan Marié”274. Esta é a única 272 NADAUD, 1862, p. 162 ASSIS, 2009, p. 492 274 Cf. CAFÉ Cantante: Salão do Paraíso. Jornal do Comércio, 30 maio 1858, p. 4. 273 131 referência a “Satan Marié” que encontramos em periódicos do Rio de Janeiro em todo o século XIX no acervo consultado. Vale lembrar que entre os anos de 1858 e 1859 Machado colaborava no Correio Mercantil e no Paraíba, neste mesmo ano de 1858 conheceu Charles Ribeyrolles, de quem traduziu “Souvenir d’Exil”, além de já ser relativamente conhecido no meio jornalístico. É de se supor, portanto, que Machado possa, de fato, ter conhecido pessoalmente a canção de Nadaud naquela representação de 1858 ou, pelo menos, dela ouvido falar. Contudo, devemos ressaltar ainda mais um detalhe a respeito do estribilho, detalhe um tanto definitivo em favor da tese de que Machado produziu seu poema a partir do alemão: no texto francês, o verso “La femme est plus fine que toi” (“A mulher é mais fina do que tu”, em tradução literal) se repete por toda a canção, mas somente enquanto o Diabo não se casa. Uma vez casado, esse verso, que também encerra a canção, muda de “La femme” para “Ta femme est plus fine que toi” (“Tua mulher é mais fina do que tu”, em tradução literal). O que ocorre no texto de Machado é um pequeno equívoco: o conselho faz sentido durante todo o poema, mas encerrar o texto com o conselho para não se casar na última estrofe depois de o Diabo já estar casado e traído pela mulher soa no mínimo estranho. Talvez tenha sido distração, ou talvez o equívoco seja produto da leitura do texto alemão, que também simplesmente repete o estribilho, “Satan, sieh zu! / Das Weib ist klüger als du!” (“Satã, olhe! / A mulher é mais esperta do que você!”), sem alterá-lo no último verso para “Tua mulher” como no texto francês. Devemos considerar também que a distração pode ter sido produto do texto autógrafo, que abrevia o estribilho em “Toma um conselho, etc.”, verificável somente no manuscrito preservado, em vez de repetir todo o trecho, embora a semelhança com o texto alemão seja uma hipótese bastante atraente. Portanto, não seria de todo equivocado acreditar que, ao reproduzir tal equívoco do texto da condessa, Machado nos tenha deixado a prova de que não estava enganando o público ao apresentar o texto como “imitação do alemão”. Machado de Assis, afinal, assim como o diabo do ditado popular, está nos detalhes. Uma obrinha tão despretensiosa quanto esta, publicada anonimamente em um periódico há mais de um século, teria facilmente se perdido. Há um pequeno acréscimo, finamente machadiano, no estribilho que nos permite estabelecer um brevíssimo paralelo, embora instigante, com um conto que publicará duas décadas mais tarde em Histórias sem data. Diz o terceiro verso do estribilho de Machado que “a mulher, com ser humana, / É mais fina do que [o diabo]”. A pequena frase destacada não encontra correspondente no texto francês ou alemão. Isso é puramente Machado: ao fazer esse acréscimo, está dizendo que não é só a mulher, em sua condição feminina, que é mais fina do que o Diabo, mas que em sua condição humana é capaz de superá-lo nos seus ardis. A tal frase sequer se justifica por questões de rima, uma vez que 132 aparece no único verso de todo o poema que não rima com nenhum outro. Acréscimo claramente intencional e autoral. Sendo parte do estribilho, é uma ideia que se reforça por todo o poema. O Diabo, o pai da mentira, da enganação, mestre ardiloso, é ludibriado e chifrado pela esposa humana. Ora, não é este o mesmo tema que move, em igual tom de fábula, o conto “A igreja do Diabo”? O conto começa, assim como o poema, com uma ideia do Diabo: no poema, “Satã teve um dia a ideia / De casar”, enquanto no conto referido nos é dito que “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja”275. Em ambos o Diabo toma suas providências e acredita ter alcançado seu objetivo, quando, na verdade, a natureza humana, ou “a eterna contradição humana”276 nas palavras de Deus (ou de Machado), consegue ser ainda mais imprevisível e ardilosa do que o próprio Diabo. Evidentemente, não estamos afirmando que reescrever a cançoneta “O casamento do diabo” foi o que motivou Machado a escrever o conto “A igreja do Diabo”, mas é inegável que a partir da comparação entre ambos o que surge, nos detalhes, é o Machado de Assis que conhecemos, investigador da natureza humana. Se Meschonnic sugere que o tradutor deve fazer parte do texto, uma vez que é “[...] tanto em suas próprias ideias de linguagem quanto no texto que deve trabalhar o tradutor, ideias essas que ele inscreve em sua tradução tanto ou mais do que sua compreensão do texto”277, nesta despretensiosa imitação Machado de Assis elevou a proposta a outro patamar, ampliando o sentido do texto a ponto de se tornar algo reconhecível como tipicamente machadiano e facilmente relacionável a uma de suas melhores obras em prosa. Mesmo em uma imitação como esta, Machado de Assis se revela preocupado não só com os aspectos formais do texto, reconfigurando poeticamente o que pode ter sido uma tradução prosaica de Fleiuss, embora distante da forma poética de origem, mas com o funcionamento autônomo do poema enquanto tal, com a manutenção geral do sentido e tema da obra, fazendo as intervenções que julga necessárias para alcançar o efeito desejado. Igualmente importante é notar que o Machado imitador, re-escritor ou tradutor, em seus acréscimos, deixa ver, com sua liberdade ao imitar o texto, seja ele o francês ou o alemão, traços comuns à sua produção mais tardia, o que nos faz pensar que mesmo textos tão despretensiosos como este podem, de fato, 275 ASSIS, Machado de. Histórias sem data. Edição crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1977, p. 57. 276 277 Ibid., p. 65. MESCHONNIC, 2010, p. 42 133 nos mostrar que há linearidade em sua produção, que traços do Machado de Assis da maturidade estão presentes em textos supostamente menores. 134 6. As traduções de Crisálidas Crisálidas, de 1864, foi o livro de estreia de Machado de Assis como poeta nas letras brasileiras. “Estreia” apenas em livro, já que uma parte dos poemas do pequeno volume já havia sido publicada nas páginas dos jornais. Outras dezenas de poemas anteriores a Crisálidas, publicados em periódicos entre 1854 e 1864, não foram aproveitadas pelo autor, deixando de fora também as traduções que vimos no capítulo anterior, como “Minha Mãe”, de Cowper, e “A uma donzela árabe”, de Lamartine. Havia ainda a falta de unidade temática nos textos que compunham o volume, sugerindo um autor titubeante, que parecia não saber que rumo tomar. Isso e o prefácio de tom exageradamente laudatório de Caetano Filgueiras foram alguns dos senões do livro para a crítica da época: o título que não se justificava, já que o ineditismo das composições ou sua estreia como poeta eram questionáveis, a falta de unidade temática e o prefácio do amigo que exagerava demasiadamente as qualidades do conjunto278. Fabiana Gonçalves, em De poeta a editor de poesia: a trajetória de Machado de Assis para a formação de suas Poesias Completas (2015), faz um contraponto a essa visão explicando que Com efeito, a maioria dos poemas coletados nas Crisálidas são inéditos ou foram impressos pouco antes de serem enfeixados, porém, o fato de pertencerem a uma produção recente não os preservou de reformulações pontuais ou ainda modificações intensas.279 Jean-Michel Massa, por sua vez, sugere em A juventude de Machado de Assis que Crisálidas levanta problemas que “[...] são numerosos e tanto mais complexos quanto esta obra, que nos parece ter tido importância capital na carreira do escritor e corresponder a uma reflexão interior decisiva”280. Os problemas a que Massa se refere são os mesmos: o quanto Crisálidas era, de fato, uma estreia literária, considerando que Machado de Assis já era o autor de dezenas de textos publicados nos diversos periódicos de então, e o questionado ineditismo das composições, que para Massa não se justifica por completo já que “[...] quase metade de Crisálidas é de obras inéditas”281 enquanto os demais poemas eram publicações de recente data. Na avaliação de Lucia Miguel Pereira (1949), “[...] precedendo de pouco a morte de Gonçalves Dias, e de muito a estreia de Castro Alves, Crisálidas aparecia no meio de um silêncio das 278 Cf. LEITÃO, F.T. "Bibliografia", Crisálidas, volume de poesias de Machado de Assis. In: ASSIS, M. de (Org. Rutzkaya Queiroz dos Reis). A poesia completa. p. 653-654 279 GONÇALVES, Fabiana. De poeta a editor de poesia: a trajetória de Machado de Assis para a edição de suas Poesias Completas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, p. 49 280 MASSA, 2009, p. 326 281 Ibid., p. 327 135 grandes vozes poéticas, o que lhe deu maior ressonância ao timbre indeciso”282. Não só o relativo vácuo em que apareceu Crisálidas, mas a figura imponente que o seu autor se tornaria certamente conferiram à obra peso maior do que conseguiria por si só, muito embora o poeta Machado de Assis tenha se tornado vítima do prosador Machado de Assis, como bem colocou Manuel Bandeira283, para quem Machado, como poeta, não se salvaria com Crisálidas ou Falenas, em cujo lirismo o crítico via o comedimento sentimental típico de Machado, ou mesmo com Americanas284. Das vinte e nove composições do volume – praticamente todas posteriores a 1860xv – seis são textos traduzidos/recriados. Segundo Amparo, ao reunir os poemas para Crisálidas, Machado de Assis [...] optaria pela tradução de poemas de autores consagrados, principalmente franceses, recolheria outras composições que escrevera sob pseudônimo e selecionaria poemas recentes, muitos deles declamados publicamente nos saraus, em datas especiais, ou no teatro. Por essas escolhas, percebe-se que o autor elegeu os poemas que contavam com o aval prévio do público e que, por isso, antecipavam a recepção crítica posterior que alcançariam285. As composições, contudo, falham em dar unidade ao volume por não haver um tema central que sirva de fio condutor, apesar do rigor empregado na seleção das obras que compuseram o volume, na opinião de Raimundo Magalhães Júnior286. Jean-Michel Massa foi de mesma opinião, considerando que não era possível classificar cronologicamente, nem agrupando pela natureza dos temas ou qualquer afinidade estética ou métrica as composições de Crisálidas287. Apesar disso Massa, que sugeriu rigor empregado na escolha das obras, entendia ter havido critério estético nas escolhas de Machado de Assis, figurando no livro apenas as peças consideradas de qualidade pelo autor, dignas de serem confrontadas pela posteridade, ao menos na visão do autor naquele momento288. Em The poetry of Machado de Assis, um dos poucos estudos dedicados exclusivamente à produção poética de Machado de Assis, Ishimatsu igualmente avalia que “Machado escolheu os poemas de Crisálidas com muito cuidado, omitindo a maior parte dos seus primeiros poemas (de antes de 1860) porque não estava 282 PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1949, p. 93 283 BANDEIRA, Manuel. “O poeta”. In: ASSIS, 1997, vol. 3, p. 11 284 Ibid., p. 12 285 AMPARO, 2008, p. 65 286 MAGALHÃES JÚNIOR, 2008, vol. 1, p. 359 287 MASSA, 2009, p. 334 288 Ibid., p. 329 136 satisfeito com eles”289. A autora também afirma que apesar de Machado de Assis ter ignorado praticamente toda sua produção anterior à década de 1860, há pouca diferença entre os poemas que apareceram em Crisálidas e as suas primeiras produções, seja na temática, seja na forma da versificação. Cláudio Murilo Leal, autor de O círculo virtuoso: a poesia de Machado de Assis (2008) é de opinião bastante similar, circunscrevendo tanto Crisálidas, quanto Falenas e Americanas no âmbito de um romantismo comedido com tendências classicizantes, dando um tratamento sóbrio aos temas de amor, sociais e mesmo os indianistas290. Ambos concordam até quanto a uma das maiores realizações de Crisálidas, “No Limiar”, poema em terza rima, metro incomum entre os românticos, que Leal considera ser de “qualidade excepcional”291, enquanto Ishimatsu afirma ser este o único poema verdadeiramente machadiano do volume, no qual Machado “[...] utilizou alegorias para lidar com motivos presentes no livro, como esperança e desilusão”292. Evidentemente, Ishimatsu considera “verdadeiramente machadiano” aquilo que lembra o autor da chamada “maturidade”, algo com o que não concordamos necessariamente porque sugere uma diminuição desnecessária da produção da juventude, que foi fundamental para que Machado se tornasse o que se tornou. No entanto, no posfácio – que, aliás, serve de contrapeso ao prefácio exagerado de Caetano Filgueiras – Machado de Assis admite a pressa com que o volume foi composto: “Faltou-me o tempo para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas”293, assim como deixa a marca indelével de seu trabalho como crítico de seus próprios poemas, lembrando que para o pequeno volume de textos, embora tenha coligido alguns que já haviam sido publicados anteriormente, não o fez sem que antes fossem alterados para dar a eles a melhor feição possível. Mas o nosso interesse em Crisálidas recai sobre as traduções que fazem parte do volume. O senso crítico do jovem Machado de Assis o fez preferir algumas de suas traduções mais recentes aos versos que compusera alguns anos antes, implicando certa importância que o poeta-tradutor conferia tanto ao trabalho de tradução poética, quanto à percepção de seu desenvolvimento enquanto escritor, preferindo os trabalhos de data mais recente. De fato, somente duas traduções posteriores a 1860 não aparecem em Crisálidasxvi: “Souvenirs d’Exil”, de 1860, tradução de um poema de ocasião de Charles Ribeyrolles 289 ISHIMATSU, 1984, p. 49, tradução nossa. No original: “Machado selected the poems for Crisálidas with great care, omitting most of his early (pre-1860) poems because he was not satisfied with them”. 290 LEAL, Cláudio Murilo. O círculo virtuoso: a poesia de Machado de Assis. Brasília: Ludens, 2008, p. 70-71 291 Ibid., p. 71 292 ISHIMATSU, Op. Cit., p. 65, tradução nossa. No texto-fonte: “utilized allegory in dealing with the motifs that run throughout the book, hope and disillusionment”. 293 ASSIS, 2009, p. 326 137 composto e traduzido no decorrer de uma festa, e “O casamento do diabo”, de 1863 que, como vimos anteriormente, foi possivelmente um trabalho alimentar, cuja iniciativa provavelmente não partiu de Machado de Assis. É fácil entender por que estas traduções não foram incluídas, já que não foram um trabalho de interesse intelectual do poeta-tradutor, mas um divertimento, no primeiro caso, e possivelmente parte de seu ofício, no segundo que, aliás, em nada combina com os poemas que entraram no livro. Além disso, não são textos de autores de grande relevância para a tradição literária. Para Ishimatsu, “[a]s seis traduções de Crisálidas interessam mais pelo que revelam da cultura literária que Machado assimilara até 1864 do que seu valor literário”294. Concordaremos com o momento em que a autora diz que as traduções revelam algo do gosto literário de Machado de Assis naquele momento, posto que são textos que nos ajudam a perceber aquilo que Berman chama de “horizonte do tradutor” de Machado e as suas primeiras tentativas de diálogo com a tradição literária. Contudo, é preciso dizê-lo, Ishimatsu deixa transparecer um leve desinteresse pelas traduções quando afirma que elas interessam mais pelo que revelam da cultura literária do jovem Machado do que como obras que são, do que discordamos veementemente. Há, nas traduções de Crisálidas, como veremos no momento oportuno, um finíssimo trabalho poético e sobretudo crítico, de autores de primeira estirpe, como Heine, Mickiewicz ou Lamartine. Cláudio Murilo Leal, por sua vez, é sucinto ao comentar as traduções de Crisálidas, limitando-se a ressaltar que Machado “[...] alterou a métrica, geralmente encurtando a medida do original” e que o poeta operou “numa faixa de relativa liberdade, omitiu partes ou acrescentou algo de sua lavra ou, ainda, parafraseou claramente, como nos casos de ‘Cleópatra’ e ‘Ondina’”295, mas referenciando estudos mais detalhados a respeito, como Machado de Assis tradutor de Jean-Michel Massa e a coletânea de poemas traduzidos Machado de Assis & confrades de versos, de John Gledson, embora sejam estudos que também deixam mais perguntas do que respostas. No entanto, cabe a pergunta sobre o que levou Machado de Assis a incluir traduções em Crisálidas e, particularmente, esses textos, pergunta que acreditamos ser tão válida quanto a que questiona os motivos que o levaram, anos mais tarde, a excluí-los quando edita Poesias completas em 1901. Entendemos que a escolha dessas traduções aponta para uma espécie de paideuma machadiano, como se o jovem escritor quisesse, além de se filiar à tradição literária 294 ISHIMATSU, Op. Cit., p. 67, tradução nossa. No original: “The six translations in Crisálidas are of interest more for what they reveal about the literary culture that Machado had assimilated by 1864 than their literary value”. 295 LEAL, 2008, p. 96 138 apresentando composições de sua autoria, deixar para os leitores os caminhos a seguir, quais autores estudar, que modelos imitar e como imitá-los. Independentemente do grau de sucesso estético alcançado com Crisálidas, sabemos que as escolhas de Machado de Assis sugerem certo distanciamento da estética romântica, caminhando em direção a um estilo bastante pessoal. O que o autor parece tentar fazer, mesmo que inconscientemente, é ultrapassar os limites das escolas literárias, mesmo que o faça com débito a elas. A presença das traduções em um volume de poesias autorais pode ser entendida, ao fim, como uma forma de dizer que o trabalho tradutório de recriação de um poema estrangeiro em língua vernácula é também um trabalho autoral, que merece figurar entre os demais trabalhos do autor como parte plenamente integrante da obra, ampliando a visão de que a literatura ultrapassa as linhas do nacional em direção ao universal. Lembremos que embora a prática não fosse incomum entre os poetas do oitocentos brasileiro, o levantamento que fizemos no terceiro capítulo desta tese sugere que Machado de Assis incluiu mais traduções entre seus poemas do que a média de seus pares, pelo que chegou a ser criticado, e não o fez separando as traduções dos demais poemas, como outros. Devemos considerar ainda que os autores escolhidos por Machado de Assis para traduzir e incluir em seu primeiro volume de poesias indicam um reposicionamento crítico e ampliação dos horizontes do escritor. Se nas primeiras traduções que estudamos no capítulo anterior predominam trabalhos alimentares, alguns feitos por encomenda ou por um gesto de amizade, para Crisálidas Machado certamente reservou nomes de maior envergadura: Alfred de Musset, Heinrich Heine, Alexandre Dumas Fils estavam entre os grandes nomes da época. Há, portanto, uma clara tentativa de se colocar entre aqueles autores e recriá-los através da tradução foi um dos caminhos escolhidos. Estudaremos tão minuciosamente quanto possível essas traduções a fim de observar como se comportou o jovem Machado de Assis e, na medida do possível, como o diálogo com outros autores reflete na sua produção autoral. 6.1 “Lucie” O interesse de Machado de Assis pelo poeta romântico francês Alfred de Musset é facilmente identificável, pois é registrado em diversos de seus textos. João Roberto Faria, no ensaio “Machado de Assis, leitor de Musset” (2006), em que estuda duas comédias de Machado 139 de Assis a partir do diálogo com Musset, faz um apanhando da presença do poeta francês na obra de Machado: Convém lembrar que Machado foi leitor de Musset desde muito jovem, que se inspirou nele para escrever o poema “A missão do poeta”, em 1858, aos dezenove anos; que traduziu os versos centrais da bela elegia “Lucie”, em 1860; que escreveu poemas com epígrafes colhidas na obra do escritor francês, como “Nunca mais!” em 1859, e “Quinze anos”, incluído no livro Crisálidas, de 1864. Em 1869, Machado traduziu a peça Un caprice, intitulando-a Como elas são todas, e no importante artigo “Notícia da atual literatura brasileira — Instinto de nacionalidade”, em 1873, incluiu Musset entre os autores estrangeiros que mais seduziam os brasileiros, nestes termos: “Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico; os escritores que se vão buscar para fazer comparações com os nossos — porque há aqui muito amor a essas comparações — são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Victor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals”.296 Musset tem dupla presença no livro de estreia de Machado de Assis: na tradução de “Lucie” e na epígrafe de “Quinze Anos”, cujos versos foram retirados do poema “Rolla”. Fabiana Gonçalves nota que em meio às “[...] poucas epígrafes remanescentes nas Poesias completas, estão dois versos extraídos do poema ‘Rolla’, de Alfred Musset, que foram utilizados pelo poeta na versão impressa de ‘Quinze anos’. A referência prenuncia a filiação e, portanto, a similitude entre as criações”297, enquanto Cláudio Murilo Leal nos dá mais detalhes sobre como o poema de Machado dialoga com o de Musset: O tema desse longo poema, que parece ter inspirado o nosso poeta, é o drama de um libertino, Jacques Rolla, que dissipa sua fortuna no jogo e decide suicidar-se após a ruína financeira. A última noite, Rolla passa-a com uma jovem que é um misto de prostituta e anjo, na idealizada concepção romântica das pecadoras. [...]. Além da epígrafe [...] Machado também se inspira na personagem de Musset para a construção do caráter feminino da sua adolescente prostituída. As duas tem, coincidentemente, quinze anos, e se apresentam na ambígua condição de inocentes que perderam o “paraíso” ao perder a virgindade (um paraíso que se identifica com a recatada vida de uma mulher burguesa, casada, do século XIX)298. Se “Lúcia”, como todas as outras traduções de Crisálidas, foi eliminada na versão final que o autor deu ao seu livro nas Poesias Completas, o mesmo não aconteceu com a presença de Musset na epígrafe que acompanha “Quinze Anos”, insinuando que a epígrafe continuava relevante. A única tradução inédita quando da publicação de Crisálidas, “Lucie” não recebeu a mesma atenção que Leal deu a “Quinze Anos” em O círculo virtuoso: a poesia de Machado de Assis, onde não dedica às traduções de Crisálidas mais do que algumas linhas com comentários breves. Esta tradução merece ser investigada pelo papel que lhe coube em Crisálidas e na vasta 296 FARIA, João Roberto. “Machado de Assis, leitor de Musset”. In: Teresa: revista de Literatura Brasileira [6/7]. São Paulo: Editora 34/Imprensa Oficial, 2006, p. 366 297 GONÇALVES, 2015, p. 59 298 LEAL, 2008, p. 31 140 seara de Machado de Assis, cabendo perguntar, por exemplo, qual o interesse de Machado por “Lucie”, porque preferir este texto às suas poesias autorais, de que modo o nosso escritor decide apresentar “Lucie” para seu público através de tradução e, principalmente, o que isso revela sobre o seu modo de traduzir. Traduzir “Lucie” de Alfred de Musset certamente foi um trabalho de iniciativa do próprio Machado. Iniciativa que ficou engavetada por pelo menos quatro anos, uma vez que em Crisálidas, de 1864, a publicação vem acompanhada da data de 1860, e não se conhece nenhuma publicação anterior à do livro. Do que conhecemos sobre o que sobrou da biblioteca de Machado de Assis, só há um volume de Musset, justamente o livro em que o texto de “Lucie” foi publicado, Poésies Nouvelles: 1836-1852xvii. É certo, contudo, que Machado não utilizou esta sua edição para traduzir “Lucie” já que ela é de 1867, posterior a Crisálidas299. Há, contudo, edições mais antigas da mesma obra, como a de 1852, publicada pela mesma editora. Cabe ressaltar ainda que o primeiro poema desse mesmo volume, Poésies Nouvelles: 1836-1852, é “Rolla”, que inspirou e serviu de epígrafe para “Quinze Anos”, seguido por “Une Bonne Fortune” e, logo depois, “Lucie”. Para fins de análise, adotamos o texto da edição publicada pela Gallimard, com texto estabelecido e anotado por Patrick Berthier, na edição de 1976 do volume Premières Poésies / Poésies Nouvelles, que é o transcrito aqui. Sobre o estabelecimento do texto, em nota ao poema “Lucie” Patrick Berthier nos informa o seguinte: 1. Esta elegia publicada na R.D.M.xviii em 01 de junho de 1835 e incluída nas P.C. xix de 1840 é uma redução, de muitas maneiras, de Saule então inédito do qual ela retoma vários versos (cf. Le Saule, p. 131, n. I). Na edição de 1854, que é a nossa referência, Musset removeu o mais importante destes versos duplicados, substituindo-o por duas linhas de pontos. 2. Estes oito versos que formam a duplicata (p. 154-155) são substituídos por uma linha de pontos a partir da edição de 1857.300 Estas notas são interessantes na medida em que indicam que o texto de “Lucie” deriva de um outro poema de Musset, “Le Saule”. Em verdade, todo o trecho substituído por duas linhas de pontos, que compreende nada menos que quarenta e três versos distribuídos em cinco estrofesxx, são versos retirados daquele poema, então inédito, conforme nota Berthier. Há também alguns 299 Cf. VIANA, Glória. “Revendo a biblioteca de Machado de Assis”. In: JOBIM, J.L. (Org.) A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001. p. 257 300 MUSSET, 1976, p. 457, tradução nossa. No original: “1. Cette élégie publié dans la R.D.M le 1er juin de 1835 et incluse dans les P.C. de 1840 est une réduction, à bien des égards, du Saule alors inédit dont elle reprend de nombreux vers (cf. Le Saule, p. 131, n. I). Dans l’édition de 1854, qui est notre référence, Musset a toutefois supprimé le plus important de ces doublons, le remplaçant par deux lignes de points. / 2. Ces huit vers qui forment le doublon (cf. p. 154-155) sont remplacés par une ligne de point à partir de l’édition de 1857.” 141 outros versos de “Lucie” que foram igualmente aproveitados de “Le Saule”, chegando a cerca de cinquenta versos aproveitados no total. Paul de Musset, irmão de Alfred de Musset, em texto biográfico que acompanha o vol. 10 de The complete writings of Alfred de Musset, explica melhor a relação entre os textos: Uma manhã Alfred recebeu a visita de um velho amigo de escola, chamado Astoin, com quem mantinha um relacionamento agradável. Este jovem desejava se tornar seu editor: veio pedir ao autor de Contes d’Espagne et d’Italie alguns versos para usar em sua coletânea de poemas inéditos. Alfred de Musset nunca soube recusar um favor. Deu-lhe um fragmento do Saule, que acabara de terminar. A coletânea foi publicada em janeiro de 1831, com o título de Keepsake Américain, Morceaux Choisis de Littérature Contemporaine (New York, Philadelphia, Paris), um pequeno volume de 362 páginas. Como Astoin era um editor novo e desconhecido, a publicação não foi notada, e o Saule foi desperdiçado à toa. Alfred de Musset se arrependeria posteriormente de sua liberalidade. O poema continha belezas em um estilo novo, cujo efeito no público estava ávido por descobrir. Mais tarde, quando M. Buloz veio pedir a ele uma contribuição para a Revue des Deux Mondes, com a regra da revista de que ofereceria a seus leitores somente trabalhos inéditos, o Saule não pôde ser incluído. Por fim, em 1835, Alfred desejou tratar do mesmo assunto de forma mais condensada, e reduziu-o a uma simples elegia, o que explica porque certos versos do Saule são repetidos em Lucie.301 Cotejamos, ainda, o texto da edição Gallimard com o da edição de 1852, publicado pela Charpentierxxi, por entender que este está mais próximo do que Machado de Assis poderia ter consultado para fazer sua tradução. Deve-se ressaltar que não encontramos nenhuma divergência no texto desta edição com outras do século XIX consultadas, como a de 1867 que Machado de Assis possuiu ou mesmo a versão que apareceu em edições das obras completas de Musset. Para a tradução de Machado, foi adotado o texto que está na edição crítica de Poesias completas. Vejamos os textos: Quadro comparativo 5 – “Lúcia” e “Lucie” Lúcia (Alfred de Musset) Lucie Nós estávamos sós; era de noite; Ela curvara a fronte, e a mão formosa, Na embriaguez da cisma, Tênue deixava errar sobre o teclado; Élégie 301 Mes chers amis, quand je mourrai, Plantez un saule au cimetière. MUSSET, Paul de. “Life”. In: MUSSET, Alfred de. The complete writings of Alfred de Musset. Vol 10. New York: Privately printed for subscribers only, S/D, p. xix, tradução nossa. No original: “One morning Alfred received a visit from an old school friend, Astoin by name, with whom he had had pleasant associations. This young man wished to become a publisher: he came to ask the author of the Contes d'Espagne et d'ltalie for some verses to be used in a collection of unpublished poems. Alfred de Musset never knew how to refuse a favor. He gave him a fragment of the Saule, which he had just finished. The collection appeared in January, 1831, under the title Keepsake Americain, Morceaux Choisis de Littérature Contemporaine (New York, Philadelphia, Paris), a small volume of 362 pages. Astoin being a new publisher and little known, the work passed unnoticed, and the Saule was thus despoiled to no purpose. Alfred de Musset later regretted his liberality. The poem contained beauties in a new style, whose effect on the public he was anxious to learn. Later, when M. Buloz came to ask him to contribute to the Revue des Deux Mondes, that magazine making it a rule to offer its readers only new works, Saule could not be included. Eventually, in 1835, Alfred wished to treat the same subject in a more condensed form, and reduced it to a simple elegy, which explains why certain verses of Saule are repeated in Lucie.” 142 Era um murmúrio; parecia a nota De aura longínqua a resvalar nas balsas E temendo acordar a ave no bosque; Em torno respiravam as boninas Das noites belas as volúpias mornas; Do parque os castanheiros e os carvalhos Brando embalavam orvalhados ramos; Ouvíamos a noite, entrefechada, A rasgada janela Deixava entrar da primavera os bálsamos; A várzea estava erma e o vento mudo; Na embriaguez da cisma a sós estávamos E tínhamos quinze anos! Lúcia era loura e pálida; Nunca o mais puro azul de um céu profundo Em olhos mais suaves refletiu-se. Eu me perdia na beleza dela, E aquele amor com que eu a amava – e tanto! – Era assim de um irmão o afeto casto, Tanto pudor nessa criatura havia! Nem um som despertava em nossos lábios; Ela deixou as suas mãos nas minhas; Tíbia sombra dormia-lhe na fronte, E a cada movimento – na minh’alma Eu sentia, meu Deus, como fascinam Os dois signos de paz e de ventura: Mocidade da fronte E primavera d’alma. A lua levantada em céu sem nuvens Com uma onda de luz veio inundá-la; Ela viu sua imagem nos meus olhos, Um riso de anjo desfolhou nos lábios E murmurou um canto. J'aime son feuillage éploré ; La pâleur m'en est douce et chère, Et son ombre sera légère À la terre où je dormirai. Un soir, nous étions seuls, j'étais assis près d'elle ; Elle penchait la tête, et sur son clavecin Laissait, tout en rêvant, flotter sa blanche main. Ce n'était qu'un murmure : on eût dit les coups d'aile D'un zéphyr éloigné glissant sur des roseaux, Et craignant en passant d'éveiller les oiseaux. Les tièdes voluptés des nuits mélancoliques Sortaient autour de nous du calice des fleurs. Les marronniers du parc et les chênes antiques Se berçaient doucement sous leurs rameaux en pleurs. Nous écoutions la nuit ; la croisée entr'ouverte Laissait venir à nous les parfums du printemps ; Les vents étaient muets, la plaine était déserte ; Nous étions seuls, pensifs, et nous avions quinze ans. Je regardais Lucie. - Elle était pâle et blonde. Jamais deux yeux plus doux n'ont du ciel le plus pur Sondé la profondeur et réfléchi l'azur. Sa beauté m'enivrait ; je n'aimais qu'elle au monde. Mais je croyais l'aimer comme on aime une sœur, Tant ce qui venait d'elle était plein de pudeur ! Nous nous tûmes longtemps ; ma main touchait la sienne. Je regardais rêver son front triste et charmant, Et je sentais dans l'âme, à chaque mouvement, Combien peuvent sur nous, pour guérir toute peine, Ces deux signes jumeaux de paix et de bonheur, Jeunesse de visage et jeunesse de cœur. La lune, se levant dans un ciel sans nuage, D'un long réseau d'argent tout à coup l'inonda. Elle vit dans mes yeux resplendir son image ; Son sourire semblait d'un ange : elle chanta. ................................ Filha da dor, ó lânguida harmonia! Língua que o gênio para amor creara – E que, herdada do céu, nos deu a Itália! Língua do coração – onde alva ideia, — Virgem medrosa da mais leve sombra, — Passa envolta num véu e oculta aos olhos! Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros Nascidos do ar, que ele respira – o infante? Vê-se um olhar, uma lágrima na face, O resto é um mistério ignoto às turbas, Como o do mar, da noite e das florestas! Estávamos a sós e pensativos. Eu contemplava-a. Da canção saudosa Como que em nós estremecia um eco. Ela curvou a lânguida cabeça... Pobre criança! – no teu seio acaso Desdêmona gemia? Tu choravas, E em tua boca consentias triste Que eu depusesse estremecido beijo; Guardou-o a tua dor ciosa e muda: ........................ ........................ Fille de la douleur, harmonie ! harmonie ! Langue que pour l'amour inventa le génie ! Qui nous vins d'Italie, et qui lui vins des cieux ! Douce langue du cœur, la seule où la pensée, Cette vierge craintive et d'une ombre offensée, Passe en gardant son voile et sans craindre les yeux ! Qui sait ce qu'un enfant peut entendre et peut dire Dans tes soupirs divins, nés de l'air qu'il respire, Tristes comme son cœur et doux comme sa voix ? On surprend un regard, une larme qui coule ; Le reste est un mystère ignoré de la foule, Comme celui des flots, de la nuit et des bois ! Nous étions seuls, pensifs ; je regardais Lucie. L'écho de sa romance en nous semblait frémir. Elle appuya sur moi sa tête appesantie. Sentais-tu dans ton cœur Desdemona gémir, Pauvre enfant ? Tu pleurais ; sur ta bouche adorée Tu laissas tristement mes lèvres se poser, Et ce fut ta douleur qui reçut mon baiser. Telle je t'embrassai, froide et décolorée, 143 Assim, beijei-te descorada e fria, Assim, depois tu resvalaste à campa; Foi, como a vida, tua morte um riso, E a Deus voltaste no calor do berço. Telle, deux mois après, tu fus mise au tombeau ; Telle, ô ma chaste fleur ! tu t'es évanouie. Ta mort fut un sourire aussi doux que ta vie, Et tu fus rapportée à Dieu dans ton berceau. Doces mistérios do singelo teto Onde a inocência habita; Cantos, sonhos de amor, gozos de infante, E tu, fascinação doce e invencível, Que à porta já de Margarida, — o Fausto Fez hesitar ainda, Candura santa dos primeiros anos, Onde parais agora? Paz à tua alma, pálida menina! Ermo de vida, o piano em que tocavas Já não acordará sob os teus dedos! Doux mystère du toit que l'innocence habite, Chansons, rêves d'amour, rires, propos d'enfant, Et toi, charme inconnu dont rien ne se défend, Qui fis hésiter Faust au seuil de Marguerite, Candeur des premiers jours, qu'êtes-vous devenus ? Paix profonde à ton âme, enfant ! à ta mémoire ! Adieu ! ta blanche main sur le clavier d'ivoire, Durant les nuits d'été, ne voltigera plus... Mes chers amis, quand je mourrai, Plantez un saule au cimetière. J'aime son feuillage éploré ; La pâleur m'en est douce et chère, Et son ombre sera légère À la terre où je dormirai. Fonte: Assis (1976); Musset (1976) “Lucie” é um poema escrito em nove estrofes, das quais sete de tamanho irregular, com versos alexandrinos clássicos, rimados, e mais duas sextilhas, em octossílabos rimados, que abrem e encerram o poema. Como vimos, há também duas linhas pontilhadas, que substituem as estrofes aproveitadas na íntegra de “Le Saule”, do qual Musset também aproveitou outros versos que permaneceram na versão de “Lucie” que Machado traduziu. De imediato, o poema apresenta algumas questões quanto às vozes presentes no texto: nas sextilhas que abrem e encerram o poema em francês temos uma voz que se dirige aos amigos, com o pedido peculiar de que plantem um salgueiro em seu túmulo. Essas sextilhas em verdade são consideravelmente significativas. Para justificar nossa afirmação utilizaremos um pouco da leitura que Gilles Castagnés fez de “Lucie” no livro Les femmes et l'esthétique de la féminité dans l'œuvre d'Alfred de Musset, trabalho oriundo de sua tese de doutorado, publicado em 2004. As sextilhas, à primeira vista, guardam pouca ou nenhuma relação com a história de dois jovens de quinze anos, um rapaz, também narrador do poema, e uma moça, por quem diz nutrir um amor fraternal. Da mesma forma, os versos excluídos aprofundam e dão maior coerência à presença de Desdêmona, versos que também trazem outros personagens da peça shakespeariana, como Iago e Cassius. Contudo, como estes versos foram excluídos por Musset e consequentemente não traduzidos por Machado, não serão incluídos em nossa leitura. 144 Nas sextilhas há imagens que servem como anúncio do tema de que o poema irá tratar: o salgueiro, imagem central no pedido que o eu-lírico faz aos amigos, é o elo que une as sextilhas, a tragédia Othello e o destino de Desdêmona, personagem que aparecerá no poema, e a presença da morte que paira sobre as personagens. O poema dá a entender que a ligação que Musset estabelece com o texto shakespeariano está mais intimamente ligada à opera de Rossini, mas basta irmos à cena III do ato IV de Othello, the moor of Venice de Shakespeare para encontrarmos a seguinte fala de Desdêmona: DESDEMONA.My mother had a maid call’d Barbary: She was in love, and he she lov’d prov’d mad And did forsake her. She had a song of ‘willow’; An old thing ’twas, but it express’d her fortune, And she died singing it. That song to-night Will not go from my mind; I have much to do, But to go hang my head all at one side, And sing it like poor Barbary. Prithee, dispatch. (Ato IV, Cena III, 26-33, grifo nosso)302 “Willow” é o nome inglês para o salgueiro que o eu-lírico pede aos seus amigos que plantem. Assim como a empregada da mãe de Desdêmona morrerá cantando a “song of ‘willow’”, canção que expressava sua sorte, agora Desdêmona também cantará a canção nos versos seguintes como prenúncio de seu destino equivalente. Vê-se assim que a presença da sextilha se justifica, mas com a dependência desta leitura apresentada. Castagnès (2004) vê Desdêmona como uma espécie de arquétipo de figura feminina sobre o qual Musset cria sua personagem. Assim, a presença de Desdêmona prenuncia a morte de Lúcia que, por sua vez, anuncia a morte do eu-lírico que é, no entendimento do crítico, o tema principal do poema303. Se formos ao texto do libreto da ópera de Rossini, a ligação entre as sextilhas e a figura de Desdêmona ficará ainda mais clara. No ato III da ópera italiana encontramos a balada cantada por Desdêmona: Assisa a’ piè d’un salice. immersa nel dolore, gemea trafitta Isaura dal più crudele amore: L’aura tra i rami flebile ne ripeteva il suon. I ruscelletti limpidi, a’ caldi suoi sospiri, il mormorio mesceano 302 SHAKESPEARE, Willian. The complete works of William Shakespeare. Glasgow: Harper Collins Publishers, 1994, p. 1201 303 CASTAGNÈS, Gilles. Les femmes et l’esthétique de la féminité dans l’œuvre d’Alfred de Musset. Bern: Peter Lang S/A, 2004, p. 58 145 de’ lor diversi giri; L’aura fra i rami flebile ne ripeteva il suon. Salce d'amor delizia! Ombra pietosa appresta di mie sciagure immemore, all’urna mia funesta. né più ripeta l’aura de’ miei lamenti il suon304 Nos versos finais da balada cantada por Desdêmona destacados acima há o mesmo pedido que a voz das sextilhas faz aos amigos, um salgueiro ao pé de seu túmulo para sombreálo. Torna-se claro, portanto, que a presença das sextilhas, apesar de aparentemente desconectadas do resto devido à voz que não se identifica de imediato com o restante do poema, está em relação direta com a presença de Desdêmona no poema e, consequentemente, com o destino de Lucie. Na cena que abre o poema de Musset a presença sugerida da música também pode ser correlacionada à peça de Shakespeare e à ópera de Rossini. Lucie, como Desdêmona, está com a cabeça inclinada. A voz que narra a primeira estrofe identifica-se com a voz das sextilhas, mas o momento agora é outro. O jovem, que fala utilizando o “imparfait” francês, distancia-se da voz das sextilhas, que usa imperativos, com pedidos que apontam para o futuro. Descobrimos que os dois, o jovem que narra e Lucie, estavam a sós e ela toca em seu cravo uma música suave, como um murmúrio. Somos então apresentados a diversos elementos que apontam para a morte da jovem: a cabeça que pende como a de Desdêmona, os adjetivos sugerindo uma atmosfera melancólica, com a natureza inerte – “Les vents étaient muets ; la pleine était déserte ;” –, os ramos das árvores parecendo chorar – “leurs rameaux en pleurs”. A estrofe seguinte é uma descrição de Lucie, tanto física, quanto da impressão que a beleza da jovem causa no rapaz, evocando nele um sentimento de amor, mas um amor fraternal em virtude do pudor que a menina desperta – “Mais je croyais l’aimer comme on aime une sœur / Tant ce qui venait d’elle était plein de pudeur!”. O amor, que era fraternal, aos poucos cede espaço para as investidas do rapaz – “ma main touchait la sienne” – enquanto Lucie, que antes só tocava, agora canta. O poema é então interrompido pelas duas linhas pontilhadas que omitem as estrofes outrora aproveitadas de “Le Saule”. 304 ROSSINI, Gioachino. Otello: tragedia lirica in tre atti. Londres: Universal Int’l, 2004. 2 CDs.2004, p. 68, grifo nosso. 146 A próxima estrofe traz referências à música e à Itália, dando a entender que a personagem Desdêmona – já sugerida anteriormente e que aparecerá em seguida – é a da ópera de Rossini. O gênio, diz o rapaz, foi um presente dos céus à moça, mas aos demais veio da Itália, referindo-se à ópera. Os quatro versos finais desta estrofe apresentam certa dificuldade pois sugerem que há uma terceira voz, diferente da do rapaz que vem falando até agora, uma vez que esta voz parece se referir ao rapaz em terceira pessoa: “Qui sait ce qu’un enfant peut entendre et peut dire”. Todavia, o comentário do crítico Jean-Pierre Richard no capítulo dedicado a Musset em Études sur le romantisme (1970) talvez jogue alguma luz sobre o método do poeta: Essa dualidade, no entanto, atinge seu aspecto mais interessante quando não afeta mais elementos isoláveis ou reciprocamente opostos da personalidade, mas seu conjunto, sua presença global que parece ter o poder de se destacar psiquicamente, às vezes até objetivamente, em bloco, do que é. Sentir-se isolado de si mesmo, vendo-se falar ou agir de fora, como alguém faria por um estranho: essa é uma das originalidades da vida da consciência de Musset.305 Se seguirmos a orientação do crítico, este distanciamento é uma das técnicas de Musset para que o eu-lírico se observe objetivamente a partir de um descolamento psíquico. O “enfant” desta estrofe, portanto, seria o próprio rapaz que fala de si mesmo no passado de maneira objetiva, distanciada, utilizando a terceira pessoa. Este distanciamento, contudo, logo se desfaz e o eu-lírico volta a falar em primeira pessoa na estrofe seguinte. Lucie aparentemente não está mais tocando e cantando – “L’écho de sa romance en nous semblait frémir” –, mas apoiando sua cabeça sobre o rapaz. Surge então a comparação com a personagem shakespeariana, quando o rapaz pergunta a Lucie se ela sente Desdêmona gemer em seu coração. Desfalecendo, Lucie se deixa beijar nos lábios pelo rapaz e, na mesma estrofe, morre. A estrofe seguinte novamente coloca algumas questões que sugerem o procedimento de distanciamento adotado antes. Até então, Lucie era tratada em terceira pessoa – “Je regardais Lucie” / “Elle appuya sur moi sa tête appesantie”. Agora, parece ser tratada em segunda pessoa, ora por “tu”, que sugere intimidade, ora por “vous”, que conota um distanciamento formal: “Et toi, charme inconnu dont rien ne se défend / Qui fis hésiter Faust au seuil de Marguerite, / Candeur des premiers jours, qu’êtes-vous devenus ?”. O eu-lírico alterna, ainda, entre o mais 305 RICHARD, 1970, p. 207, tradução nossa. No original: “Cette dualité atteint pourtant à son aspect le plus intéressant lorsqu’elle affecte non plus des éléments isolables, ou réciproquement opposables de la personnalité, mais son ensemble, sa présence globale qu’elle semble avoir alors pouvoir de détacher psychiquement, parfois même objectivement, en bloc, de ce qu’elle est. Se sentir coupé de soi, se regarder parler ou agir du dehors, comme on le ferait pour un étranger : c’est l’une des originalités de la vie de la conscience de Musset”. 147 formal “passé simple” de “fis” e o mais corriqueiro “passé composé”, “êtes-vous devenus?”. A voz que narra o poema se questiona a respeito do desaparecimento de Lucie, ressaltando novamente a candura da jovem com outra comparação com um clássico literário, a história de Fausto, rememorando a cena em que o personagem da peça de Goethe, entrando nos aposentos de Margarida, hesita em corrompê-la. O último adeus vem no dístico que encerra a história entre o jovem e Lucie no poema, lembrando que a mão de Lucie não mais flutuará sobre o teclado de marfim, antes da sextilha que abre o poema se repetir. Se observarmos primeiramente os aspectos formais do poema de Musset e da tradução de Machado, de imediato notamos que Machado de Assis não traduz a sextilha inicial, que se repete ao fim do poema. Mas a omissão é mais longa, e provavelmente não por desejo do tradutor: nada menos do que quarenta e três versos distribuídos em cinco estrofes – aqueles de “Le Saule”, como vimos – estão omitidos no espaço ocupado por duas linhas pontilhadas na edição de 1852. Estes versos omitidos na edição de 1852 de Poésies Nouvelles: 1836-1852, editado pela Charpentier, e na que Machado possuiu, de 1867, estão na edição Poésies Complètes de Alfred de Musset da mesma editora Charpentier, de 1849. Há, portanto, uma importante parte do poema não traduzida, seja por opção de Machado de Assis, como parece ter sido o caso da sextilha que abre e encerra o poema, seja por desconhecimento, hipótese mais provável no caso dos versos centrais. Afinal, é quase certo que nosso escritor não conheceu a versão completa do poema, visto que nossa pesquisa nos levou a acreditar que várias das edições da época que encontramos excluíam os versos centrais das cinco estrofes. A dúvida sobre a exclusão das sextilhas, parte importante do poema, permanece e merece investigação. Machado de Assis, ao não traduzir os versos da sextilha, priva o leitor da leitura que apresentamos anteriormente, mas duvidamos que ele não o tenha feito conscientemente. Ao retirar a sextilha, desvia o foco do eu-lírico narrador – que ao fim identifica-se com o próprio Musset, que teve, de fato, um salgueiro plantado no seu túmulo – o que confere maior relevância à personagem feminina, Lúcia, que é quem dá título ao poema. Pensando no conjunto de peças que compõem Crisálidas, e particularmente na falta de unidade do volume, pode-se sugerir que, da forma como Machado traduziu, ao omitir a sextilha ele acaba criando um elo mais forte entre “Lúcia” e outra peça que a antecede e com a qual mantém uma relação mais íntima do que 148 aparenta, “Quinze Anos”, relação que teria ficado mais evidente se os poemas estivessem organizados de maneira diferente no volume, mais próximos um do outro, por exemplo. Acreditamos não poder julgar Machado de Assis por não ter traduzido os versos centrais do poema, uma vez que é muito provável que ele não os tenha conhecido. De qualquer modo, é possível verificar que Machado de Assis, semanticamente, seguiu bem de perto o poema de Musset, as maiores intervenções ficando restritas ao aspecto formal, na apresentação da métrica e da rima. Quanto ao metro, Musset escreve em alexandrinos clássicos, metro bem aclimatado na língua francesa, como vemos no verso a seguir Nous écoutions la nuit ; la croisée entr'ouverte306 Machado, ao optar por estrofes heterométricas, adota a combinação de decassílabos italianos e hexassílabos, perfeitamente de acordo com os princípios de harmonização acentual307, demonstrando predileção por traduzir formas clássicas da literatura estrangeira por formas clássicas da literatura de língua portuguesa, como no exemplo a seguir: Ouvíamos a noite, entre-fechada, A rasgada janela.308 Muito embora, à primeira vista, as estrofes de Musset sejam de tamanhos irregulares, é possível, através da disposição das rimas, dividi-las em quadras com rimas ora interpoladas, ora alternadas, que vez ou outra são intercaladas por dísticos: Un soir, nous étions seuls, j'étais assis près d'elle ; Elle penchait la tête, et sur son clavecin Laissait, tout en rêvant, flotter sa blanche main. Ce n'était qu'un murmure : on eût dit les coups d'aile D'un zéphyr éloigné glissant sur des roseaux, Et craignant en passant d'éveiller les oiseaux.309 Machado, ao abandonar por inteiro as rimas finais preferindo versos brancos, omite este aspecto do poema de Musset o que, em contrapartida, deve ter conferido maior liberdade ao tradutor para estar atento ao aspecto semântico. O tradutor, portanto, ao não deixar seu trabalho se pautar somente pela recriação dos aspectos formais em detrimento do conteúdo, talvez estivesse dizendo que cabe a ele escolher o que deseja para o seu poema: 306 MUSSET, Alfred de. Premières Poésies / Poésies nouvelles. Édition présentée, établie et annotée par Patrick Berthier. Paris: Gallimard, 1976, p. 240-242 307 Cf. CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974. pp. 154-160 308 ASSIS, Machado de. Poesias completas. Ed. Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1976, p. 175176 309 MUSSET, 1976, p. 240 149 Nós estávamos sós; era de noite; Ela curvara a fronte, e a mão formosa, Na embriaguez da cisma, Tênue deixava errar sobre o teclado; Era um murmúrio; parecia a nota De aura longínqua a resvalar nas balsas E temendo acordar a ave no bosque;310 É fácil verificar ainda que ocorrem algumas omissões na tradução de Machado, em geral obedecendo ao que parece ser uma tendência a eliminar passagens que, em sua provável opinião, pouco ou nada acrescentariam ao texto traduzido. Logo no primeiro verso da primeira estrofe, por exemplo, o segundo hemistíquio do verso de Musset – “Un soir, nous étions seuls, j’étais assis près d'elle ;”– simplesmente desaparece na tradução de Machado: “Nós estávamos sós; era de noite;”. Certamente haveria soluções possíveis que evitassem a omissão. Mas se nos perguntarmos o quanto aquele hemistíquio adiciona ao poema, ou o quanto o mesmo seria imprescindível, somos levados a acreditar que pouco. “Eu estava sentado ao lado dela” é informação que se pode supor, ou imaginar, considerando que estavam a sós à noite. Mais uma omissão, na mesma estrofe, sugere o mesmo procedimento: “Je regardais Lucie. - Elle était pâle et blonde.” é traduzido simplesmente por “Lúcia era loura e pálida”, omitindo todo o primeiro hemistíquio desta vez. Ora, se o poeta diz que “Lúcia era loura e pálida” é porque ele a viu. Então, “Je regardais Lucie” (“Eu olhava para Lucie”, em tradução literal) não parece indispensável. Pode-se, todavia, argumentar o contrário e dizer que o hemistíquio omitido reforça a sensação de admiração que o poeta sentia por Lucie, mas isto não parece ter sido relevante para o tradutor. A mesma estrofe ainda terá a terceira das quatro grandes omissões do poema, no seu último verso: “Sa beauté m’enivrait; je n’aimais qu’elle au monde”. Ao traduzir o verso de Musset por “Eu me perdia na beleza dela” Machado de Assis omite todo o segundo hemistíquio e, consequentemente, a informação de que o poeta não amava a mais ninguém no mundo. Do primeiro hemistíquio do mesmo verso, devemos considerar ainda a escolha de “me perdia” para traduzir “m’enivrait” (“embriagava-me”, em tradução literal). Se por um lado a escolha de Machado parece enfraquecer a imagem criada de Musset, de sensação de embriaguez por causa da beleza da jovem, por outro devemos atentar para o fato de que Machado já incluíra a “embriaguez” duas vezes antes no poema, na expressão “Na embriaguez da cisma”, que aparece no terceiro e depois no penúltimo verso da primeira estrofe. Se lermos “cisma” no sentido de “divagação”, 310 perceberemos ASSIS, 1976, p. 174 que Machado, utilizando a técnica conhecida como 150 compensaçãoxxii, já fizera o suficiente para dar ao poema a caraterística omitida na tradução daquele hemistíquio. Há ainda outra omissão relevante do poema de Musset implica agora todo um verso: Qui sait ce qu’un enfant peut entendre et peut dire Dans tes soupirs divins, nés de l’air qu’il respire, Tristes comme son cœur et doux comme sa voix ?311 A maneira como Machado de Assis escolhe traduzir os versos acima simplesmente elimina todo o terceiro verso de Musset no trecho citado, verso que serve para adjetivar os já adjetivados “suspiros”. Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros Nascidos do ar, que ele respira – o infante?312 Os “suspiros” que já não são “divinos” na tradução de Machado, também deixam de ser “tristes como seu coração e doces como sua voz”. Tal solução nos levou a rever o emprego de adjetivos em todo o poema, pois Machado de Assis poderia ter feito isso em outros momentos, o que aconteceu, embora não tenha sido sistemático nem predominante nesta tradução. Há inclusive casos em que Machado acrescenta adjetivos onde não há no texto de Musset, como que para compensar os omitidos, a exemplo do verso “Guardou-o [o beijo] tua dor ciosa e muda”, que traduz o verso “Et ce fut ta douleur qui reçut mon baiser” de Musset. Há também outro verso não traduzido por Machado, desta vez na última estrofe e, novamente, parece que o tradutor não considerou que o verso fosse relevante ou imprescindível para sua tradução. Eis o trecho, em que destacamos em itálico o verso omitido: Telle je t’embrassai, froide et décolorée, Telle, deux mois après, tu fus mise au tombeau ; Telle, ô ma chaste fleur ! tu t’es évanouie. Ta mort fut un sourire aussi doux que ta vie, Et tu fus rapportée à Dieu dans ton berceau.313 O verso omitido poderia ser traduzido por “Assim, ó minha casta flor! Desaparecestes.” Lucie já estava morta, e sabemos disso dois versos antes, porque ela foi beijada “descorada e fria” e, em seguida, sepultada – “resvalaste à campa”. Em que acrescentaria dizer que a “casta flor” desapareceu? O poeta-tradutor Machado de Assis, quando escolhe traduzir o trecho por Assim, beijei-te descorada e fria, Assim, depois tu resvalaste à campa; 311 MUSSET, 1976, p. 241 ASSIS, 1976, p. 175 313 MUSSET, Op. Cit., p. 241-242 312 151 Foi, como a vida, tua morte um riso, E a Deus voltaste no calor do berço.314 demonstra ser pouco afeito a informações que possam soar redundantes, favorecendo a concisão na sua versão, um sintetismo característico que observamos, por exemplo, no início de sua tradução de Les travailleurs de la mer e que ainda veremos outras vezes em outros textos. Feitas essas observações à tradução de Machado, que de maneira alguma devem ser vistas como demérito, cabe refletir sobre o que a tradução de Musset nos sugere quanto à escolha do texto, do tema e de sua inclusão em Crisálidas. Se Machado não “transcria” Musset, certamente recria, reencena o jogo poético do texto francês a contento. Em uma de suas propostas para uma poética da tradução, Meschonnic sugere: “Se a tradução de um texto é estruturalmente concebida como um texto, logo desempenha o papel de um texto, é a escrita de uma leitura-escrita, aventura histórica de um sujeito. Não é transparente em relação ao original”315. Retira-se, assim, o papel de inferioridade do texto traduzido, que é inscrito num plano equivalente ao da elaboração do texto poético: a tradução é a escrita de uma leitura que é leitura e escrita a um só tempo, uma leitura que se inscreve no texto, que se torna o texto agora carregado da subjetividade do seu autor-tradutor e que, portanto, não pode ser transparente em relação ao original. O texto traduzido, recriado ou reimaginado, ainda guarda uma íntima relação com o texto-fonte, mas não é ele. No caso desta tradução de Machado de Assis, se a forma escolhida é outra, se os alexandrinos clássicos são preteridos em favor de decassílabos e hexassílabos, se há omissões e interferências nas imagens do poema, temos, contudo, poesia. Se o poeta autor do texto-fonte trabalha com o que há de mais idiossincrático em seu idioma, o poeta-tradutor escolheu lançar mão também do que há de mais particular no idioma de chegada para que o seu resultado seja, acima de tudo, reconhecido como um poema. Portanto, não há como desqualificar o trabalho de Machado de Assis ao compor “Lúcia”. A maneira como ele traduz Musset sugere que o poeta-tradutor considerava a atividade uma criação autônoma, paralela. As “liberdades” apontadas anteriormente estão ali para reforçar esta ideia. Ao eliminar as sextilhas inicial e final, por exemplo, Machado se desfaz de um elemento importante no poema mas, ao que parece, para conferir-lhe outro tom, aproximando o objeto de reflexão mais da personagem Lúcia e menos do eu que narra o poema, afastando-o da identificação com o próprio Musset e, consequentemente, tornando o poema mais seu do que de Musset. 314 315 ASSIS, Op. Cit., p. 175 MESCHONNIC, 1972, p. 81 152 6.2 “A Jovem Cativa” “Foi com alguma hesitação que eu fiz inserir no volume estes versos. Já bastava o arrojo de traduzir a maviosa elegia de Chénier. Poderia eu conservar a grave simplicidade do original?”316. Este é um trecho da nota de Crisálidas que acompanha a tradução de “La jeune captive” de André Chénier. Pela primeira vez, dentre os textos publicados em livro, temos alguma informação do tradutor, uma breve nota a respeito do seu trabalho, que nos diz ainda que foi convencido por um amigo a “não imolar o trabalho já feito”, a quem culpa caso a poesia não agrade. A “hesitação” e o desejo de “imolar o trabalho” denunciam que o tradutor pretendia revê-lo, como fez tantas outras vezes, inclusive com algumas das traduções que estudaremos. A nota é breve, mas bastante significativa. Descobrimos, por exemplo, que o tradutor considera o texto de Chénier uma “maviosa elegia” cuja “grave simplicidade” pretendeu “conservar”. Desenha-se de imediato um tradutor que anuncia ser seu objetivo e ideal de fidelidade manter aspectos do texto-fonte que considera importantes. Descobrimos ainda que o tradutor provavelmente não estava plenamente satisfeito com o resultado, já que houve “alguma hesitação” antes de incluir a tradução no volume, hesitação vencida pela insistência de um amigo que o convenceu a “não imolar o trabalho já feito”, algo que também sugere que o tradutor tinha intenções de revê-lo ou excluí-lo da coletânea, o que acabou fazendo décadas mais tarde ao editar as Poesias Completas em 1901. Galante de Sousa informa que a tradução em verso foi publicada pela primeira vez n’A Saudade, n. 11, de 21 de setembro de 1862, assinada “M. de A”317. A edição crítica das Poesias completas informa que não há diferença no texto entre a primeira publicação e Crisálidas318. A única diferença, informada por Galante de Sousa, é na datação do texto, que em Crisálidas aparece com o ano de 1861, possivelmente o ano de composição. A pergunta “Poderia eu conservar a grave simplicidade do original?” soa como um convite à leitura, à análise e ao veredito do leitor, a que atenderemos com o intuito de verificar como se sai o jovem poeta-tradutor Machado de Assis. Para nossa leitura do poema de André Chénier utilizaremos a edição crítica de L. Becq de Fouquières, publicada pela editora 316 ASSIS, 1976, p. 214. SOUSA, 1955, p. 349. 318 ASSIS, Op. Cit., p. 87. 317 153 Charpentier, Poésies de André Chénier, de 1872. Antes de decidirmos por esta edição, consultamos diversas outras e não foram encontradas discrepâncias que desabonassem esta edição, que nos pareceu mais adequada por vir acompanhada de fartas notas que foram particularmente úteis para nossa análise. Em relação às outras edições consultadas, somente duas divergências com esta edição foram encontradas: uma refere-se ao verso 46, que na edição crítica, bem como na maioria das demais edições consultadas, aparece como “Et secouant le faix de mes jours languissants” (“E sacudindo o fardo de meus dias lânguidos”), enquanto nas edições de 1840 e 1852 da mesma editora temos “Et secouant le joug de mes jours languissants” (“E sacudindo o jugo de meus dias lânguidos”). A edição crítica de 1872 explica, em nota, a divergência: “Nous avons conservé le texte de la Décade.” (“Conservamos o texto da Décade”), atribuindo a M. de Latouche, editor anterior, a responsabilidade pelo verso divergente. A única outra divergência encontrada nas mesmas edições de 1840 e 1852, diz respeito ao verso 6, que nessas edições aparece como “Je ne veux pas mourir encore”, que se repete no verso 42, enquanto na edição crítica e nas demais consultadas temos “Je ne veux point mourir encore”xxiii, mais enfático do que o outro. Uma nota que acompanha “La Jeune Captive” em Œuvres Poétiques na edição GarnierFrères de 1883 contextualiza a obra: A jovem cativa era uma dama Franquetot de Coigny, que havia casado com o Duque de Fleury em 1784 e que, encarcerada em Saint-Lazare com M. de Montrond, tornase, depois do divórcio, Mme de Montrond. Montrond e Franquetot (ex-duquesa de Fleury) foram removidos da lista de supostos conspiradores pagando uma soma de cem louis em ouro.319 Quando a elegia “La Jeune Captive” foi escrita, Chénier estava na prisão de Saint-Lazare – algumas edições, como a Garnier-Frères de 1889 trazem “Saint-Lazare” como epígrafe da elegia – por conta de seu envolvimento na Revolução Francesa, onde também estava presa a jovem mencionada na nota e que, ao que parece, inspirou a elegia: Aimée de Coigny, duquesa de Fleury e, posteriormente, condessa de Montrond, que acabou imortalizada no poema de Chénier. Acrescente-se a isso que Chénier compõe “La Jeune Captive”, um forte apelo à vida que está por se encerrar cedo demais, às vésperas de sua morte por decapitação e temos uma elegia de forte carga emocional. 319 CHÉNIER, André. Œuvres poétiques de André Chénier. [Organizada e anotada por M. Louis Moland]. Paris: Garnier Frères, 1889, vol. 1, p. 282, tradução nossa. No original: “La jeune captive était une demoiselle Franquetot de Coigny, qui avait épousé le duc de Fleury en 1784 et qui, incarcérée à Saint-Lazare avec M. de Montrond, devint, après divorce, Mme de Montrond. Montrond et la citoyenne Franquetot (ex-duchesse de Fleury) furent effacés de la liste des prétendus conspirateurs moyennant une somme de cent louis en or”. 154 Chénier talvez estivesse falando de Aimée de Coigny em “La Jeune Captive”, mas poderia igualmente estar falando de si próprio, inconformado com a própria morte, ou de/para todos que se encontravam em condição parecida. Se a prisão e a iminência da morte são aspectos mais imediatamente correlacionáveis ao próprio Chénier, as abundantes notas que acompanham a edição crítica da Charpentier apontam para outro aspecto correlacionável ao biográfico: a erudição de Chénier, seu conhecimento de grego, latim e das obras clássicas se traduziram em diversas alusões a obras da literatura da antiguidade clássica, aspecto que certamente merece ser analisado na tradução de Machado de Assis. A primeira publicação de “La Jeune Captive” se deu em dezembro de 1794, seis meses após a morte do seu autor, primeiramente na Décade philosophiquexxiv, depois em Almanach des Muses de l’an IV e ainda no Magasin Encyclopédique de l’an VIII320. André Chénier foi um poeta póstumo. Sua obra só começa a ser reconhecida após seu falecimento, e sua influência só começa a ser sentida depois da publicação dos primeiros volumes de suas poesias a partir de 1819321. Albert Thibaudet nos informa em sua Histoire de la littérature française (de 1789 à nos jours) (1936) que André Chénier, filho de uma grega e nascido em Constantinopla, conhecia a literatura clássica tão bem quanto conhecia Racine e Voltaire322. Percebe-se tal conhecimento nas diversas alusões à literatura clássica em sua obra como um todo, assim como em “La Jeune Captive”. Mas na opinião de Thibaudet, a contribuição de Chénier vai ainda mais longe: a poesia de Chénier transportou para a poesia francesa o que os livros nos fazem imaginar de mais grego, e até mesmo de mais ateniense (não exageramos seu lado alexandrino): a medida, a graça, a melodia da vida em um bosque de oliveiras, a música dos seres, sua passagem eternizada nas estrelas, a captura dos movimentos, de figuras, de cenas, de humanidade, por meio das quais a poesia rivaliza com a pintura – de maneira que a imagem dos cadernos de croquis e quadros de estudo encerram aqui exatamente a realidade.323 320 FAGUET, Émile. André Chénier. Paris: Librarie Hachette et Cie.,1902, p. 158 TIEGHEM, Paul Van. Le romantisme dans la littérature européenne. Paris: Albin Michel, 1969, p. 342 322 THIBAUDET, Albert. Histoire de la littérature française: de 1789 à nos jours. Paris :Éditions Stock, 1936, p. 95 323 Ibid., p. 97, tradução nossa. No original: “la poésie de Chénier a transporté dans la poésie française ce que les livres nous font imaginer de plus grec, et même de plus athénien (n’exagérons pas son côté alexandrin) : la mesure, la grâce, la mélodie de la vie dans un bois d’oliviers, la musique des êtres, leur passage éternisé dans les stèles, la captures des mouvements, de figures, de scènes, d’humanité, par lesquelles la poésie devient rivale de la peinture – de sorte que l’image des carnets de croquis et des cartons d’étude serre ici exactement la réalité”. 321 155 Para Thibaudet, os quatro meses de prisão em Saint-Lazare elevaram ainda mais a poesia de Chénier, a qual considera “voluptuosa e graciosa”, característica coroada por “La Jeune Captive”. Sob aspecto formal, o poema de Chénier é todo escrito em sextinas compostas de um par de versos alexandrinos clássicos seguidos de um octossílabo, e novamente outro par de alexandrinos clássicos e outro octossílabo, conferindo um ritmo menos monótono ao poema do que se tivesse escrito utilizando-se somente os versos de 12 sílabas. Chénier também usa rimas: todas as estrofes seguem o esquema AABCCB. Há variedade, portanto, mas há também unidade nesta variedade, uma rigidez formal que reflete a inconformismo inabalável da personagem. O poema narra, em primeira pessoa nas primeiras estrofes, os últimos momentos de uma jovem prisioneira à beira da morte, mas que decide se não resignar à sua condição: “Quoi que l’heure présente ait de trouble et d’ennui, / Je ne veux point mourir encore.” (“Não importa o que o presente tenha de problemas e tédio / Ainda não quero morrer”). O poema é em primeira pessoa, e quem fala é a própria jovem, que na segunda estrofe traz a imagem de um estoico, contrapondo-se ao seu autocontrole e à sua firmeza com a efusão dos seus sentimentos: “Moi je pleure et j’espère ; au noir souffle du nord / Je plie et relève ma tête” (“Eu choro e espero; ao negro sopro do norte / Eu me curvo e levanto minha cabeça”). Se a jovem não se resigna, é porque sabe que “S’il est des jours amers, il en est de si doux! / Hélas ! quel miel jamais n’a laissé de dégoûts ?” (“Se há dias amargos, também há os doces! / Ai! Que mel nunca deixou desgostos?”), ou seja, que mesmo o infortúnio presente não será perene. A jovem, que acredita e canta sua esperança, diz não se abater diante do encarceramento: “D’une prison sur moi les murs pèsent en vain, / J’ai les ailes de l’espérance” (“Como uma prisão sobre mim as paredes pesam em vão, / Tenho as asas da esperança”). A figura mítica de Filomela, transformada em rouxinol pelos deuses para escapar de seu cunhado Tereu, é lembrada pela jovem como símbolo da luta pela liberdade: “Échappée aux réseaux de l’oiseleur cruel, / Plus vive, plus heureuse, aux campagnes du ciel / Philomèle chante et s’élance” (“Tendo escapado das redes do passarinheiro cruel, / mais viva, mais feliz, nas campanas do céu / Filomela canta e voa”). É assim que a jovem se vê: alguém que não está disposta a se entregar diante do infortúnio da morte e crê que sua vida está longe do fim – “Mon beau voyage encore est si loin de sa fin !”; “Je ne suis qu’au printemps, je veux voir la moisson ;” (“Minha bela jornada ainda está tão longe do seu fim!”; “Só estou na primavera, quero ver a colheita”) – e justamente por isso ainda há muito por realizar. 156 À morte, portanto, pede que se afaste – “Ô mort ! tu peux attendre ; éloigne, éloignetoi ;/ Va consoler les cœurs que la honte, l’effroi, / Le pâle désespoir dévore” (“Ó morte! Tu podes esperar; afasta-te, afasta-te; / Vá consolar os corações que a vergonha, o medo, / O pálido desespero devora”) – e o motivo é o mesmo já expresso antes, ainda na primeira estrofe, um simples “Je ne veux point mourir encore” (“Não quero morrer ainda”), que resume, em poucas palavras, como um refrão, todo o sentimento da jovem. O pedido parece colocar um limite entre seu desejo de viver, suas aspirações expressas na estrofe anterior e a morte que se aproxima. O poema termina com uma outra voz, masculina, que agora se confunde com a do poeta falando da jovem sobre quem canta e que está, também ele, “triste e cativo”. E no entanto, sua lira acorda para lamentações da jovem – “ma lyre toutefois / S’éveillait, écoutant ces plaintes, cette voix, / Ces vœux d’une jeune captive” (“minha lira todavia / acordava, escutando esses lamentos, essa voz, / Esses desejos de uma jovem cativa”) – porque sabe que através destes cantos que ele compôs a sua história e a da jovem poderá ser lembrada: “Ces chants, de ma prison témoins harmonieux, / Feront à quelque amant des loisirs studieux / Chercher quelle fut cette belle” (“Estes cantos, de minha prisão testemunhas harmoniosas, / Farão a algum amante de lazeres estudiosos / Buscar quem foi esta bela”) . Há, portanto, dois motivos que implicam nesta leitura: o adjetivo francês “captif” está no gênero masculino, e os versos que falam de sua lira que acorda com a voz e as lamentações da jovem colocam-na numa perspectiva de terceira pessoa. Os versos de Chénier ainda são repletos de referências a diversas obras literárias, principalmente da antiguidade clássica. A edição crítica de 1872 que consultamos lista diversas referências nas notas que acompanham o texto, como Hécuba, de Eurípedes, em que Polixena não marcha ao suplício sem antes chorar e dar o último adeus à luz do dia. Entre os outros autores a que Chénier alude nesta elegia, conforme as notas do editor, estão nomes como o de Homero, Tibulo, Lucrécio, Píndaro, Plutarco, Ésquilo, Racine... Enfim, há uma profusão de referências sob a superfície do texto que o enriquecem. Que razões teria Machado de Assis para não só traduzir esta elegia de Chénier, mas incluí-la em Crisálidas? Primeiramente, devemos lembrar que este poema alcançou considerável repercussão e acabou reconhecido como a obra máxima do poeta. Também era bastante conhecido em terras brasileiras: uma busca pelo nome de André Chénier na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional retorna mais de cem ocorrências somente nos periódicos do Rio de Janeiro na década de 1850, número que se reduz para pouco menos de 157 sessenta na década seguinte, mesmo que o número de periódicos disponíveis desta década tenha aumentado consideravelmente em relação à década anterior. Para traduzir Chénier, Machado toma suas liberdades que dão ao texto uma feição mais adequada à língua portuguesa e à nossa tradição poética, conforme podemos observar lendo os textos lado a lado: Quadro comparativo 6 – “La jeune captive” e “A jovem cativa” La jeune captive L’épi naissant mûrit de la faux respecté ; Sans crainte du pressoir, le pampre tout l’été Boit les doux présents de l’aurore ; Et moi, comme lui belle, et jeune comme lui, 5 Quoi que l’heure présente ait de trouble et d’ennui, Je ne veux point mourir encore. Qu’un stoïque aux yeux secs vole embrasser la mort, Moi je pleure et j’espère ; au noir souffle du nord Je plie et relève ma tête. 10 S’il est des jours amers, il en est de si doux ! Hélas ! quel miel jamais n’a laissé de dégoûts ? Quelle mer n’a point de tempête ? L’illusion féconde habite dans mon sein. D’une prison sur moi les murs pèsent en vain, 15 J’ai les ailes de l’espérance ; Échappée aux réseaux de l’oiseleur cruel, Plus vive, plus heureuse, aux campagnes du ciel Philomèle chante et s’élance. Est-ce à moi de mourir ? Tranquille je m’endors, 20 Et tranquille je veille, et ma veille aux remords Ni mon sommeil ne sont en proie. Ma bienvenue au jour me rit dans tous les yeux ; Sur des fronts abattus mon aspect dans ces lieux Ranime presque de la joie. 25 Mon beau voyage encore est si loin de sa fin ! Je pars, et des ormeaux qui bordent le chemin J’ai passé les premiers à peine. Au banquet de la vie à peine commencé, Un instant seulement mes lèvres ont pressé 30 La coupe en mes mains encor pleine. Je ne suis qu’au printemps, je veux voir la moisson ; Et comme le soleil, de saison en saison, Je veux achever mon année. Brillante sur ma tige et l’honneur du jardin, Je n’ai vu luire encor que les feux du matin : 35 Je veux achever ma journée. Ô mort ! tu peux attendre ; éloigne, éloigne-toi ; Va consoler les cœurs que la honte, l’effroi, A jovem cativa — “Respeita a foice a espiga que desponta; Sem receio ao lagar o tenro pâmpano Bebe no estio as lágrimas da aurora; Jovem e bela também sou; turvada A hora presente de infortúnio e tédio Seja embora: morrer não quero ainda! De olhos secos o estoico abrace a morte; Eu choro e espero; ao vendaval que ruge Curvo e levanto a tímida cabeça. Se há dias maus, também os há felizes! Que mel não deixa um travo de desgosto? Que mar não incha a um temporal desfeito? Tu, fecunda ilusão, vives comigo. Pesa em vão sobre mim cárcere escuro, Eu tenho, eu tenho as asas da esperança: Escapa da prisão do algoz humano, Nas campinas do céu, mais venturosa, Mais viva canta e rompe a filomela. Deve acaso morrer ? Tranquila durmo, Tranquila velo; e a fera do remorso Não me perturba na vigília ou sono; Terno afago me ri nos olhos todos Quando apareço, e as frontes abatidas Quase reanima um desusado júbilo. Desta bela jornada é longe o termo. Mal começo; e dos olmos do caminho Passei apenas os primeiros olmos. No festim em começo da existência Um só instante os lábios meus tocaram A taça em minhas mãos ainda cheia. Na primavera estou, quero a colheita Ver ainda, e bem como o rei dos astros, De sazão em sazão findar meu ano. Viçosa, sobre a haste, honra das flores, Hei visto apenas da manhã serena Romper a luz, — quero acabar meu dia. Morte, tu podes esperar; afasta-te! Vai consolar os que a vergonha, o medo, O desespero pálido devora. Pales inda me guarda um verde abrigo, 158 Le pâle désespoir dévore. Pour moi Palès encore a des asiles verts, Les Amours des baisers, les Muses des concerts ; 40 Je ne veux point mourir encore. Ainsi, triste et captif, ma lyre toutefois S’éveillait, écoutant ces plaintes, cette voix, Ces vœux d’une jeune captive ; Et secouant le faix de mes jours languissants, Aux douces lois des vers je pliai les accents De sa bouche aimable et naïve. 45 Ces chants, de ma prison témoins harmonieux, Feront à quelque amant des loisirs studieux Chercher quelle fut cette belle : 50 La grâce décorait son front et ses discours, Et, comme elle, craindront de voir finir leurs jours Ceux qui les passeront près d’elle. Ósculos o amor, as musas harmonias; Afasta-te, morrer não quero ainda!” – Assim, triste e cativa, a minha lira Despertou escutando a voz magoada De uma jovem cativa; e sacudindo O peso de meus dias langorosos, Acomodei à branda lei do verso Os acentos da linda e ingênua boca. Sócios meus de meu cárcere, estes cantos Farão a quem os ler buscar solícito Quem a cativa foi; ria-lhe a graça Na ingênua fronte, nas palavras meigas; De um termo à vida, há de tremer, como ela, Quem aos seus dias for casar seus dias. Fonte: Chénier (1872); Assis (1976) As escolhas de Machado de Assis sugerem a liberdade criativa que o tradutor toma para si quando decide recriar a elegia de Chénier. De imediato, quanto aos aspectos formais, vemos que Machado escolhe os decassílabos, ora heroicos, ora sáficos, para traduzir tanto os alexandrinos clássicos de Chénier, quanto os octossílabos. Machado também se desfaz das rimas, preferindo os versos brancos, mas mantém a organização estrófica por todo poema, em sextilhas. Alternar decassílabos heroicos e sáficos já havia sido feito antes por Camões, e a escolha por decassílabos brancos para a tradução tem precedência na tradução que Bocage deixou das Metamorfoses de Ovídio, o que reforça os matizes classicizantes da sua versão. Sob o aspecto semântico, podemos dizer que a tradução de Machado se mantém de acordo com a leitura que apresentamos do poema de Chénier, resguardadas as dificuldades que a tradução poética impõe. Para Jean-Michel Massa, “Machado compõe uma versão literal e literária” sem trair “em português a graça e a harmonia dos versos de André Chénier”, o que consegue por ter se liberado “da férula de uma estrofe desigual e da rima esterilizante”324. Não sabemos que sentido o crítico francês dava ao termo “literal”, mas certamente, devido à característica da tradução de Machado de Assis, a intenção era dizer que, semanticamente, a tradução de Machado corresponderia ao poema de Chénier, sem alterar-lhe o sentido. Gostaríamos de destacar, por fim, que há uma diferença bem marcada na tradução de Machado. A partir da penúltima estrofe, como vimos, no verso 42 há uma mudança de perspectiva no poema, que deixa de ser narrado em primeira pessoa, na voz da jovem cativa, 324 MASSA, 2008, p. 75 159 para que outra voz assuma o primeiro plano e a jovem passe para a terceira pessoa. A partir do verso 42 temos um adjetivo em gênero marcadamente masculino – “captif” – e a respeito da jovem não temos mais a primeira, mas a terceira pessoa: “Ces vœux d’une jeune captive” no verso 44, por exemplo, ou ainda “Et, comme elle, craindront de voir finir leurs jours / Ceux qui les passeront près d’elle” (“E, como ela, temendo ver seus dias chegarem ao fim / Aqueles que os passarão perto dela”), nos versos 52-53. “Ainsi, triste et captif” (“Assim, triste e cativo” é traduzido por Machado de Assis como “Assim, triste e cativa”, trocando o gênero do adjetivo e nos levando a outra leitura já que, no poema de Chénier quem está “triste e cativo” é o homem. Quando Machado traduz o verso por “Assim, triste e cativa, a minha lira / Despertou escutando a voz magoada” somos levados a concluir que quem está “triste e cativa” agora é a lira do poeta. Percebe-se também que há outra voz porque o primeiro verso do poema de Machado é aberto por um travessão e aspas, que são fechadas no verso “Afasta-te, não quero morrer ainda!”. Esta característica está presente em todas as edições consultadas e, infelizmente, o fac-símile da primeira edição de Crisálidas que consultamos só conserva as primeiras duas estrofes do poema. Apesar dos registros de que “A jovem cativa” foi publicada pela primeira vez no n. 11 do periódico A Saudade, não conseguimos localizar esta edição do periódico para confrontar os textos. Encontramos, todavia, outra publicação da tradução de “A jovem cativa”, de 19 de março de 1882, no jornal A Província de Minas, e também lá está a mesma característica apontada aqui, o que nos leva a crer que a mudança foi intencional, e muito adequada, já que confere maior coerência e mais dramaticidade ao verso. Muito bem versado em língua francesa, Machado foi capaz de produzir um poema muitíssimo bem cuidado e realizado, reconhecida como tal pela crítica da épocaxxv. Mais uma vez atendendo à sugestão de Berman de comparar o nosso objeto com outras traduções, percebemos que a originalidade da tradução de Machado é ainda mais palpável quando a comparamos com outras duas traduções que encontramos, como a de José Soares de Azevedo, poeta nascido em Portugal e radicado no nordeste brasileiro onde se tornou um dos mais ativos jovens poetas de sua época, de que conhecemos apenas as duas estrofes publicadas em 1876 no Jornal do Recife, Está tão longe do fim minha viagem Que os olmos que primeiro a estrada ornam Eu apenas passei! No banquete da vida, a branda aragem A taça das ledices, que se entornam Só aos lábios cheguei. Na primavera apenas quero a messe, E quero como o sol, de face a face, 160 O meu anno acabar Eu sou a rosa do jardim que cresce E como inda p’ra mim a manhã nasce Quero o dia findar!325 e a de 1924, do acadêmico Alberto Faria, publicada no periódico Vida Domésticaxxvi em dezembro daquele ano: Longe está de seu fim a minha viagem bella Dos olmos, cujo renque a larga estrada ourella, Sómente alguns passei. No banquete da vida, apenas começado Do licor transbordante ao cálice dourado, Mal os lábios cheguei. Na Primavera estou... Desejo ver o Outomno... Como o sol, de sazão em sazão, ambiciono, O meu anno acabar. Flor, suspensa no hastil e do jardim senhora, Inda não vi brilhar mais que os raios da aurora... Quero o dia findar.326 Ao comparar essas traduções é possível observar o quanto a de Machado de Assis se desprende do texto de Chénier para criar outro poema: Desta bela jornada é longe o termo. Mal começo; e dos olmos do caminho Passei apenas os primeiros olmos. No festim em começo da existência Um só instante os lábios meus tocaram A taça em minhas mãos ainda cheia. Na primavera estou, quero a colheita Ver ainda, e bem como o rei dos astros, De sazão em sazão findar meu ano. Viçosa, sobre a haste, honra das flores, Hei visto apenas da manhã serena Romper a luz, — quero acabar meu dia. Machado de Assis Machado é o único dos três que opta por não manter as rimas, por um verso de tamanho constante, e por sintaxe menos direta e fluida, lançando mão de inversões sintáticas como as encontradas na tradução de Bocage, mencionada anteriormente. Se Soares de Azevedo prefere misturar decassílabos e hexassílabos, e Alberto Faria mantém o metro de Chénier, trocando os octossílabos por hexassílabos, a posição adotada por Machado de Assis sugere uma consciente 325 “ASSOCIAÇÕES. Notícia biográfica do Dr. José Soares de Azevedo”. Jornal do Recife, Pernambuco, 14 jul. 1876, p. 2. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/705110/11967>. Acesso em: 15 fev. 2018 326 “PASSADO Ressurecto”. Vida domética, Ano V, nº 83, Rio de Janeiro, dez. 1924, p. 23. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/830305/3995>. Acesso em: 15 fev. 2018. 161 tomada de liberdade frente ao texto original, querendo criar um texto que seja, talvez, mais seu do que uma reescrita de Chénier. Voltemos, por fim, à nota que o tradutor deixou ao fim de Crisálidas. Lembremos que foi “com alguma hesitação” que a tradução acabou incluída no volume, que deveria bastar o “arrojo de traduzir a maviosa elegia” e que o tradutor pretendia “conservar a grave simplicidade do original”. A tradução de Machado de Assis, bem afeita à tradição poética portuguesa, é de fato bastante grave, e dotada de mais simplicidade do que o texto de Chénier. As variações rítmicas surgem dos acentos alternados entre decassílabos heroicos e sáficos, estratégia rítmica mais sutil do que alternar metros diferentes como o alexandrino clássico e os octossílabos. A escolha pelos versos brancos dá um matiz clássico à tradução, assemelhando-se à maneira como Bocage traduz Ovídio, por exemplo. Se o tradutor queria um texto “grave” e “simples”, o êxito parece ter sido alcançado, o que nos diz mais a respeito do tradutor do que do texto traduzido. Berman cita um caso que poderíamos trazer à baila para refletir sobre o motivo de Machado ter incluído não só esta tradução de Chénier, mas todas as traduções que incluiu entre seus poemas publicados em livro: quando “[...] autores de uma futura coletânea pediram conselho a Goethe para a escolha dos poemas”, o único conselho que receberam foi o de “incluir também traduções alemãs de poemas estrangeiros, primeiramente porque a poesia alemã devia ao estrangeiro o essencial de suas formas – e isso desde suas origens –, depois porque se tratava, ao seu ver, de criações pertencentes autenticamente à literatura nacional”327. Em vista do que vimos até aqui, e do que continuaremos a observar mais adiante, esta visão parece ser perfeitamente aplicável ao caso do poeta-tradutor Machado de Assis: as traduções são muito mais do que uma mera reprodução de um texto estrangeiro. Querem ser obras que passam a pertencer à literatura nacional. Em verdade, é possível ver muito em comum entre Machado de Assis e André Chénier, guardadas as devidas proporções, evidentemente. Vejamos, por exemplo, como o crítico e biógrafo Paul Morillot descreve o poeta francês em sua biografia André Chénier, de 1894: Se o sentimento é bastante breve em André Chénier, não é porque a imaginação predomina. Não, apesar de todas as belas promessas da Invenção, esta não é a qualidade dominante de André. Nele, a imaginação consiste sobretudo em tirar proveito de um material, em adorná-lo, em enriquecê-lo, em descobrir um epíteto, uma palavra, um detalhe, ao colocar cada uma dessas pequenas imagens em sua verdadeira luz. Essa faculdade é rara e preciosa, mas não deve ser confundida com a imaginação verdadeiramente criativa que sustenta e vivifica o pensamento. [...] Portanto, não é nem por sentimento nem pela imaginação que André Chénier se destacou; é pelo uso sábio que ele fez os recursos de sua arte. Tudo somado, e se 327 BERMAN, 2002, p. 106 162 podemos separar esses dois termos, ele é menos poeta do que artista. É reconhecido por alguns sinais muito característicos, mesmo antes de se entrar no exame detalhado de suas obras328 O trecho destacado acima ecoa os comentários de Lúcia Miguel Pereira e outros sobre a poesia de Machado de Assis: “Poesia é síntese, é emoção integradora, e Machado era analista, era dissecador”329, escreveu a biógrafa; Manuel Bandeira, por sua vez, declarou: “O lirismo de Crisálidas e de Falenas não se destaca da poesia do tempo senão por um certo comedimento sentimental, que era inato no homem”330. Ambos concordam que faltava a Machado o sentimento que, quando presente, era contido. Logo, assim como Chénier, Machado não se destacou como poeta pelo sentimento, mas pelo uso analítico, pela desenvoltura formal, pelo bom uso que fez dos recursos de que dispunha. André Chénier, a partir desta tradução, penetrará ainda mais na produção autoral de Machado de Assis. Evidentemente, Chénier não é tão citado quanto Dante ou Shakespeare, mas ainda assim é interessante notar as ocorrências do poeta francês na obra machadiana. Em 1859, por exemplo, e pouco antes de traduzir “La jeune captive”, o nome de Chénier aparece no “Parasita Literário”, da série de crônicas Aquarelas, publicada originalmente em O Espelho entre setembro e outubro daquele ano. Mais de uma década depois, mais referências a Chénier aparecerão em três contos de Machado: “Aurora sem dia”, de Histórias da Meia-Noite, e “Quem conta um conto...”, ambos de 1873, e “Muitos anos depois”, de 1874. “Quem conta um conto...”, aliás, é a mais significativa, pois é neste conto que Machado se reporta ao poema “A jovem cativa” que traduzira anos antes, provavelmente de memória, deturbando sua própria tradução e, obviamente, aproveitando o tema: “Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. ‘Que mel não deixa um travo de veneno?’, perguntava o poeta da ‘Jovem Cativa’, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro”331. O verso citado de memória troca a última palavra do mesmo verso na tradução: “Que mel não deixa um travo de 328 MORILLOT, Paul. André Chénier. Paris: Lecène, Oudin et cie, 1894, p. 208-209, grifo nosso, tradução nossa. No texto-fonte: “Si le sentiment est assez court chez André Chénier, ce n’est pas parce que l’imagination prédomine. Non; malgré toutes les belles promesses de l’Invention, telle n’est pas la qualité dominante d'André. Chez lui, l'imagination consiste surtout à tirer parti d’une matière, à l’orner, à l’enrichir, à découvrir une épithète, un mot, un détail, à mettre chacun de ces petits tableaux dans leur vrai jour. Faculté rare et précieuse, mais qu’il ne faudrait pas confondre avec l’imagination vraiment créatrice qui soutient et vivifie la pensée. [...] Ce n’est donc ni par le sentiment ni par l’imagination qu’André Chénier a excellé; c’est plutôt par le savant usage qu’il a fait des ressources de son art. A tout prendre, et si l’on peut séparer ainsi ces deux termes, il est moins un poète qu'un artiste. On le reconnaît à certains signes bien caractéristiques, avant même d’entrer dans l’examen détaillé de ses œuvres.”. 329 PEREIRA, 1949, p. 93 330 BANDEIRA, 1997, p. 12. 331 ASSIS, 2015, vol. 2, p. 1132 163 desgosto?”. Esta pequena modificação de seu próprio verso nos lembra o que Magalhães Júnior disse a respeito, no ensaio “O deturpador de citações” (1957): “Machado citou muito. Tinha nisto um dos seus prazeres especiais. Gostava de fazer praça de amplos conhecimentos de literatura estrangeira, citando no original o que podia e cabia nos limites de suas crônicas ou de seus contos”332. E assim fez diversas vezes, citando de memória, conforme lembrava, apropriando-se despudoradamente do que era citado da maneira que lhe parecia adequada, conforme Magalhães Júnior bem demonstra. O diálogo com Chénier nesta tradução certamente se mostrou proveitoso. 6.3 “Cleópatra, canto de um escravo” Chegamos à terceira tradução de Crisálidas: “Cleópatra, canto de um escravo”. O próprio poeta nos legou uma breve explicação do poema em nota: “Este canto é tirado de uma tragédia de Mme. Émile de Girardin. O escravo, tendo visto coroado o seu amor pela rainha do Egito, é condenado a morrer. Com a taça em punho, entoa o belo canto de que fiz esta mal amanhada paráfrase”333. Infelizmente, nada sabemos ou descobrimos a respeito de como Machado de Assis veio a conhecer o texto, nem se houve alguma motivação especial para traduzi-lo a não ser o interesse do escritor. A biografia A juventude de Machado de Assis pouco nos diz além de que Machado tinha “lugar de honra” no Espelho, de onde saiu a primeira versão desta tradução334. Magalhães Júnior nos informa que O Espelho viu sair oito poesias de Machado de Assis, das quais somente “Escravo e rainha”, renomeado para “Cleópatra, canto de um escravo”, conseguiu adentrar Crisálidas. A respeito da tradução, diz o biógrafo, em tom um tanto depreciativo, que “[...] não era obra original, mas simples paráfrase de trecho de uma tragédia que Delphine Gay (Mme. Émile de Girardin) extraíra da novela de Théophile Gautier, Une Nuit de Cléopâtre”335. Magalhães Júnior alude à possibilidade de “Escravo e rainha” conter uma mensagem subliminar de admiração e amor de Machado de Assis pela atriz Gabriela da Cunha: 332 MAGALHÃES JR., R. “O deturpador de citações”. In: Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1957, p. 257 333 ASSIS, 2009, p. 328, grifo nosso 334 MASSA, 2009, p. 214 335 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 122 164 Assinadas apenas pela inicial M., essas doze oitavas podiam simbolizar perfeitamente a atitude submissa de quem as traduzira sem essa afinidade, sem a identificação com versos como estes: “Sou um escravo, rainha. / Amo-te e quero morrer!” Ou: “Posso sofrer os teus golpes, / sem murmurar da sentença”.336 Leituras biografistas à parte, quanto ao texto-fonte utilizado por Machado, sabe-se que a Cléopâtre de Mme. Émile de Girardin foi representada pela primeira vez em 13 de novembro de 1847 e, a julgar pelas palavras de Théophile Gautier (1881), teve boa recepção: “Cleópatra, tratada ao mesmo tempo de maneira mais antiga e mais moderna, tragédia e drama, obteve muito sucesso e continuará sendo o melhor poema cênico, escrito por uma mulher. A interpelação ao sol está em todas as lembranças”337. O mesmo questionamento a respeito do gênero em que a peça se encaixaria, se drama ou tragédia, é levantado por Léon Séche (1910): Cleópatra não é nem uma tragédia, nem um drama, mas ela participa ao mesmo tempo nos dois perfis da máscara dramática: tragédia pela dignidade de sua abordagem, pela brilhante pureza do estilo, pelo fundo sóbrio e simples sobre o qual ela irrompe; drama por sua semelhança com a história, pela liberdade de sua aparência, por seus finos e esplêndidos detalhes interiores de trajes, de vida privada, pelo raio do Oriente que a colore e ilumina.338 Séche reproduz também um trecho de carta de Lamartine que, após ver Cléopâtre, afirma em 18 de novembro de 1847: “Nunca uma mulher teve tal triunfo viril desde Vittoria Golonna, a quem se assemelha em traços, gênio e, creio, também no heroísmo”339. Nosso objetivo, contudo, permanece o de estudar o produto da lavra do tradutor Machado de Assis e, neste caso em particular, é possível uma comparação tríplice, uma vez que, como dissemos anteriormente, entre a primeira versão, “Escravo e rainha”, e a de Crisálidas, “Cleópatra, canto de um escravo”, passam-se dois anos e, além do título, são mudados mais da metade dos versos do poema, indicando que o tradutor revisou seu texto inicial e possivelmente preparou a nova versão voltando ao texto francês. Devemos nos perguntar, por exemplo, o que estas mudanças significam esteticamente, em que medida 336 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 145 GAUTIER, Théophile. Portraits et souvenirs littéraires. Paris: G. Charpentier, 1881, p. 94, tradução nossa. No original: “Cléopâtre, traitée à la fois d’une façon plus antique et plus moderne, tragédie et drame, obtint beaucoup de succès et restera le meilleur poème scénique, écrite par une femme. L’apostrophe au soleil est dans toutes les mémoires”. 338 SÉCHÉ, Léon. Delphine Gay: Mme. de Girardin dans ses rapports avec Lamartine, Victor Hugo, Balzac, Rachel, Jules Sandeau, Dumas, Eugène Sue, et Georges Sand. 2 ed. Paris: Mercvre de France, 1910, p. 260, tradução nossa. No original: “Cléopâtre n’est ni une tragédie, ni un drame, mais elle participe à la fois des deux profils du masque dramatique : — tragédie par la dignité de sa démarche, par l’éclatante pureté du style, par le fond sobre et simple sur lequel elle se détache ; drame par sa ressemblance avec l’histoire, par la liberté de son allure, par ses fins et splendides détails d’intérieur de costumes, de vie privée, par le rayon d'Orient qui la colore et l'éclaire”. 339 SECHÉ, 1910, p. 262, tradução nossa. No original: “Jamais aucune femme n’avait eu ce triomphe tout viril depuis Vittoria Golonna, à qui vous ressemblez de traits, de génie et, je crois, aussi d’héroïsme”. 337 165 aproximam ou afastam o texto de Machado do de Mme. Émile de Girardin, ou criam um novo poema. Massa considera a escolha deste texto para figurar em Crisálidas como uma “afinidade pessoal” com o tema da obra romântica, e nota que Machado mantém as doze estrofes mas altera a forma340: enquanto Girardin escreve quadras compostas por alexandrinos e um verso de oito pés, com rimas cruzadas, Machado compõe seu poema em oitavas, com versos de sete pés e com esquema ABBCDEEC, conforme podemos observar nos poemas reproduzidos a seguir: Quadro comparativo 7 – “Cleópatra” e “Cléopâtre” “Cleópatra” (1862) Cléopâtre Filha pálida da noite, Nume feroz de inclemência, Sem culto nem reverência, Nem crentes e nem altar, A cujos pés descarnados... A teus negros pés, ó morte! Só enjeitados da sorte Ousam frios implorar; O fille de la nuit ! ô déesse implacable, Toi qui n’as point de temple, et qu’on craint d’adorer ; Toi que le malheureux, quand le destin l’accable, Seul en tremblant ose implorer… Toma a tua foice aguda, A arma dos teus furores; Venho c’roado de flores Da vida entregar-te a flor; É um feliz que te implora Na madrugada da vida, Uma cabeça perdida E perdida por amor. Era rainha e formosa, Sobre cem povos reinava, E tinha uma turba escrava Dos mais poderosos reis; Eu era apenas um servo, Mas amava-a tanto, tanto, Que nem tinha um desencanto Nos seus desprezos cruéis. Vivia distante dela, Sem falar-lhe nem ouvi-la; Só me vingava em segui-la Para a poder contemplar; Era uma sombra calada Que oculta força levava, E no caminho aguardava Para saudá-la e passar. Um dia veio ela às fontes Ver os trabalhos... não pude, Fraqueou minha virtude, Caí-lhe tremendo aos pés. 340 MASSA, 2008, p. 73 O Mort !... à tes fureurs un fol amour me livre ! Prends ta faux redoutable et parais à ma voix : A la voix d’un heureux que son bonheur enivre, Viens donc pour la première fois ! Une femme régnait sur des peuples sans nombre; De sa beauté les rois, les dieux étaient épris ; Moi, j'étais son esclave et je l'aimais dans l'ombre, Heureux même de ses mépris. Je ne pouvais jamais l’approcher ni l’entendre ; Mais, pour apercevoir ou son voile ou sa main, Je la suivais partout, je vivais pour l’attendre Et me jeter dans son chemin. Un jour, elle vint voir les travaux des fontaines… Je tombai prosterné de crainte à son aspect… O Vénus ! tout l’amour qui dévore mes veines Parla dans ce brûlant respect. Pour la plaire il faut être un héros fier e brave, Et moi, par quels hauts ai-je su l’attendrir ? Je n’ai dit qu’un seul mot : Reine, je suis esclave, Mas j’aime et je voudrais mourir. Et la nouvelle Isis que l’Égypte idolâtre A souri par caprice à l’esclave du port… J’ai vu pâlir d’amour la reine Cléopâtre… Et joyeux je t’appelle… ô Mort ! Viens donc !... tous les orgueils des gloires insensées, Toutes les voluptés, tous les feux de l’amour, Tous les enivrements des royales pensées Je les ai connus en un jour ! 166 Todo o amor que me devora, Ó Vênus, o íntimo peito, Falou naquele respeito, Falou naquela mudez. Je suis prêt à partir pour les rivages sombres ; Prends mon sang et ma vie e mon jeune avenir… Mais permets qu’avec moi j’emporte chez les sombres Le souvenir, le souvenir ! Só lhe conquistam amores O herói, o bravo, o triunfante; E que coroa radiante Tinha eu para oferecer? Disse uma palavra apenas Que um mundo inteiro continha – Sou um escravo, rainha, Amo-te e quero morrer. Sauve-moi de l’oubli, Cléopâtre est si belle !... Choisis pour me punir le plus dur châtiment, Mais que dans les enfers je souffre encor pour elle, Que mon amour soit mon tourment !... E a nova Ísis que o Egito Adora curvo e humilhando, O pobre servo curvado Olhou lânguida a sorrir; Vi Cleópatra, a rainha, Tremer pálida em meu seio; Morte, foi-se-me o receio, Aqui estou, podes ferir. Vem! que as glórias mais lascivas, As fantasias mais vivas, De mais febre e mais ardor, Toda a ardente ebriedade Dos seus reais pensamentos, Tudo gozei uns momentos Na minha noite de amor. Pronto estou para a jornada Da estância escura e escondida; O sangue, o futuro, a vida Dou-te, ó morte, e vou morrer; Uma graça única – peço Como última esperança: Não me apagues a lembrança Do amor que me fez viver. Beleza completa e rara Deram-lhe os numes amigos; Escolhe dos teus castigos O que infundir mais terror, Mas por ela, só por ela Seja o meu padecimento,E tenha o intenso tormento Na intensidade do amor. Deixa alimentar teus corvos Em minhas carnes rasgadas, Venham rochas despenhadas Sobre o meu corpo rolar, Mas não me tires dos lábios Aquele nome adorado, E ao meu olhar encantado Deixa essa imagem ficar. Posso sofrer os teus golpes Sem murmurar da sentença; Nourris tes noirs vautours de ma chair déchirée, Sous des rocs éternels roule mon corps meurtri, Mais laisse à mes regards son image adorée, A me lèvres son nom chéri ! Je subi tes arrêts, ô Mort, sans une plainte, Respecte mon bonheur… il m’est venu de toi… Et sur mon front glacé laisse vivre l’empreinte De ses baisers qui m’ont fait roi. 167 A minha ventura é imensa E foi em ti que eu a achei; Mas não me apagues na fronte Os sulcos quentes e vivos Daqueles beijos lascivos Que já me fizeram rei. Fonte: Assis (1976); Girardin (1847) Na tragédia da Mme. De Girardin, encontramos este canto na Cena III do Ato I. A contextualização do canto depende da cena anterior, em que vemos as duas damas de companhia da rainha Cleópatra, Iras e Charmion, conversarem e descobrimos o motivo pelo qual o escravo foi condenado à morte: apesar de ser um escravo grego, trabalhador do porto, Cleópatra se apaixonou por ele, no que é correspondida. Como tal relacionamento é impossível, o escravo deve morrer. Iras se compadece, por ser compatriota do escravo, mas Charmion está determinada a fazer cumprir a sentença. Na Cena III, que se passa ao amanhecer, vemos um breve diálogo entre Charmion e o escravo, que então toma a taça com o veneno das mãos de Charmion e pede a ela que conte à rainha que ele morreu sem remorso. Charmion, percebendo o quão voluntariamente o escravo decide morrer, pede que não o faça sem antes evocar os deuses dele. O que se segue, então, é o canto traduzido por Machado de Assis. Nas duas primeiras estrofes vemos o escravo invocar a morte, a quem se entrega livremente, reconhecendo a impossibilidade do amor que nutre pela rainha. Pelo relato do escravo, descobrimos que a rainha fora um dia visitar as obras do porto. É então que ele a vê e se apaixona por ela, que se compadece e também se apaixona pelo escravo. O escravo se entrega à morte reconhecendo que já havia sentido todos os prazeres e todas as glórias, não se importa em padecer eternamente pelo amor que nutriu por ela ou de ver suas carnes rasgadas por abutres, mas pede que possa levar consigo a lembrança da beleza da rainha, o seu nome em seus lábios, e que na sua testa fiquem os beijos que recebera da rainha e que dele fizeram rei. Todo este relato é envolto em um metro clássico francês, conferindo certo enobrecimento ao relato. Tomando o poema em seu sentido amplo, percebe-se que o poema de Machado de Assis adequa-se ao relato, sendo possível chegar às mesmas conclusões a respeito da atitude do escravo diante da morte e de suas súplicas. Todavia, ao ajustarmos o foco, percebemos que este relato passa por diversas pequenas modificações e acréscimos que, ao final, só se pode chegar à conclusão de que Machado não quis manter uma relação estreita, rígida com as minúcias imagéticas do texto-fonte, preferindo criar um poema paralelo, o que faz todo sentido. Afinal, a tradução de Machado de Assis não é mais um canto que se inscreve num drama trágico, mas um poema independente que relata a atitude de um amante que se entrega livremente à morte 168 diante de um amor irrealizável, característica em comum com outras traduções que são excertos de outras obras, como “A morte de Ofélia” e “To be or not to be”. Esta tradução importa ainda mais por ser um ótimo momento para observamos a maneira como trabalhou o poeta-tradutor Machado de Assis a partir das alterações a que submeteu seu texto. Massa relata que “[d]o poema brasileiro só se conhece a versão de 1862 [Biblioteca Brasileira], reeditado em 1864 nas Chrysalidas. A versão que encontramos no Espelho, mais elaborada talvez, embora mais fria, é bem diferente da versão definitiva”341. Além da versão que saiu na Biblioteca Brasileira, Galante de Sousa informa que o poema também foi publicado no Almanaque Gazeta de Notícias na edição de 1881, e em O Bananal, no estado de São Paulo, em 1881342. De fato, a versão publicada na edição de 8 de janeiro de 1860 em O Espelho343, possivelmente a primeira publicação, é consideravelmente diferente da versão que está em Crisálidas e que, segundo Massa, reproduz a versão de 1862. Observa-se, ao compará-las, que dos 96 versos encontrados em ambas as versões, 50 versos foram alterados entre a edição de O Espelho de 1860 e a que saiu em Crisálidas em 1864, sendo que duas das doze estrofes foram reescritas por completo. A edição crítica Poesias completas da Civilização Brasileira nos informa que há, entre a versão de Crisálidas e a do Almanaque Gazeta de Notícias uma ligeira alteração no verso 32 que, pelo contexto, “parece erro óbvio”344. Já vimos o quanto Machado altera a forma do texto-fonte: as quadras compostas por alexandrinos e um octossílabo tornam-se oitavas em redondilha maior, consequentemente com esquema de rimas diferente. Pires-de-Mello (2001) nos lembra que a redondilha maior ordinariamente possui ritmo livre, e teve amplo emprego no período romântico, além de ser um dos metros mais comuns em língua portuguesa e metro da poesia popular por excelência, também utilizado na “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias345, por exemplo. A respeito do metro empregado por Mme. de Girardin, O Pétit traité de versification française (1965) de Maurice Grammont esclarece: Nos séculos XII e XIII, o verso de doze sílabas se sobrepôs aos dois mais antigos, especialmente nos poemas épicos e didáticos; é ao século XII que pertence o poema de Alexandre, ao qual ele deve seu nome alexandrino. A partir de meados do século XIV até meados do século XVI sai de moda; está quase completamente abandonado. Ronsard e a Plêiade restauram sua honra e, no século XVII, ele se tornou o verso 341 MASSA, 2008, p. 74 SOUSA, 1955, p. 354 343 ASSIS, Machado de. “Escravo e Rainha”. O Espelho, p. 10-11. 8 de janeiro de 1859. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/737143/94>. Acesso em: 3 jun. 2017. 344 ASSIS, 1976, p. 87. 345 PIRES-DE-MELLO, J. G. Teoria do ritmo poético. 2. ed. São Paulo: Editora Ride, 2001, p. 76 342 169 francês por excelência; aparece em todos os gêneros. Sua sorte não diminuiu desde então.346 Dado relevante, pois sugere que o tradutor buscou em sua língua não um equivalente métrico, rítmico ou sonoro, mas um metro adequado à situação, ao tema e à personagem. A troca sugere um afastamento de um tom mais enobrecedor na direção de uma forma mais popular, mais condizente com a condição de escravo da personagem. A posição adotada reforça o tom de quem quer, a um só tempo, declarar sua independência poética do texto-fonte e reforçar formas típicas da literatura de língua portuguesa. Devido à extensão do poema, seria inviável uma análise comparativa verso a verso, ou mesmo que comentasse todas as alterações que sofreram as duas versões de Machado diante do texto francês. Entretanto, a partir de alguns poucos exemplos é possível perceber que as alterações por que a tradução de Machado passou entre a primeiraxxvii e a segunda versão – doravante denominadas V1 e V2, respectivamente – tiveram por objetivo encontrar soluções que aproximassem semanticamente a tradução do texto francês – sem que isso signifique uma busca por um decalque do texto-fonte –, fizesse correções métricas ou mesmo gramaticais. Tomemos a primeira alteração, por exemplo: no primeiro verso da segunda estrofe de V1 temos “Toma tua foice ímpia” que foi alterado para “Toma tua foice aguda” em V2. Este verso corresponde ao primeiro hemistíquio do segundo verso da quadra francesa: “Prends ta faux redoutable”. Ou seja, em francês a foice é “temível”, o que sugere que a escolha do tradutor por “ímpia” em V1 tentou dar conta dessa característica, mas pode ter percebido depois que o resultado soa um tanto estranho uma vez que a foice, objeto inanimado, não poderia possuir tal qualidade, justificando-se a troca por “aguda”, de sentido mais próximo a “afiada”. O mesmo acontecido com o segundo verso da décima primeira estrofe de V1, que mudou de “Deixa alimentar teus corvos / Em minhas carnes torcidas” (grifo nosso) para “Deixa alimentar teus corvos / Em minhas carnes rasgadas” (grifo nosso) em V2. Estes versos traduzem o primeiro alexandrino da estrofe equivalente no texto-fonte: “Nourris tes noirs vautours de ma chair déchirée”. Ora, o adjetivo “déchirée” quer dizer exatamente “rasgada”, como está em V2, e não “torcidas”, demonstrando que o tradutor estava, de fato, tentando aproximar mais seu poema do texto-fonte. 346 GRAMMONT, Maurice. Pétit traité de versification française. Paris: Librarie Armand Colin, 1965, p. 45, tradução nossa. No original: “Aux XIIe et XIIIe siècles le vers de douze syllabes supplante en partie ses deux aînés, en particulier dans les poèmes épiques et didactiques; c’est au XIIe siècle qu’appartient le poème d’Alexandre auquel il doit son nom d’alexandrin. Du milieu du XIVe siècle au milieu du XVIe il n’est plus à la mode ; on le délaisse presque totalement. Ronsard et la Pléiade le remettent en honneur et, au XVIIe siècle, il devient le vers français par excellence ; il apparait dans tous les genres. Sa fortune n’a pas diminué depuis cette époque”. 170 Também na terceira estrofe encontramos algumas alterações interessantes e alguns dados que iluminam o método tradutório utilizado em algumas das estrofes seguintes. Vejamos os textos: Quadro comparativo 8 – Terceira estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”. “Escravo e rainha” (1860) “Cleópatra” (1862) Cléopâtre Uma mulher... era bela! Como rainha – reinava, E tinha uma turba escrava Dos mais poderosos reis! Eu era apenas um servo E tanto amava-a e tanto Que nem tinha um desencanto Nos seus desprezos cruéis! Era rainha e formosa, Sobre cem povos reinava, E tinha uma turba escrava Dos mais poderosos reis; Eu era apenas um servo, Mas amava-a tanto, tanto, Que nem tinha um desencanto Nos seus desprezos cruéis. Une femme régnait sur des peuples sans [nombre; De sa beauté les rois, les dieux étaient épris [; Moi, j'étais son esclave et je l'aimais dans [l'ombre, Heureux même de ses mépris. Fonte: Assis (1860); Assis (1976); Girardin (1847) Se observarmos atentamente as informações de cada alexandrino francês, percebemos que Machado traduz cada hemistíquio do alexandrino por uma redondilha maior, de forma que os três primeiros versos da quadra francesa correspondem aos seis primeiros versos da oitava de Machado, algo já sugerido pelo fato de as quadras terem se tornado oitavas. Lembremo-nos de que o procedimento de quebrar o verso não é inédito dentre os poemas que já analisamos até agora, e será adotado por diversas estrofes seguintes nesta tradução. Curiosamente, o mesmo procedimento é adotado inclusive para o octossílabo que encerra a quadra francesa, também quebrado nos dois versos finais da oitava de Machado. As alterações incluídas aqui parecem servir ao propósito de recriar o poema francês de maneira necessariamente autônoma em português sem, contudo, perder de vista a mensagem central da obra. As alterações entre V1 e V2 também sugerem que o tradutor quis se aproximar mais do texto francês: é inegável que “Era rainha e formosa / Sobre cem povos reinava” está mais próximo de “Une femme régnait sur des peuples sans nombre;” do que “Uma mulher... era bela / Como rainha – reinava”. Algumas alterações de V1 para V2 foram claramente motivadas por questões simplesmente gramaticais, como o segundo verso da quarta estrofe “Sem lhe falar nem ouvila” de V1 que se torna “Sem falar-lhe nem ouvi-la” em V2. Outras podem ser lidas como problemas na métrica de V1, como o sétimo verso da quarta estrofe de V1, “E que só se reanimava”, que obriga a sinérese no último vocábulo para que a contagem esteja correta, mas que foi alterado para “E no caminho a aguardava” em V2, trocando a sinérese pela sinalefa. O mesmo ocorre no sexto verso da sétima estrofe “Tremer pálida no meu seio...”, de oito pés, corrigido para “Tremer pálida em meu seio” em V2. 171 Como dissemos anteriormente, duas estrofes, a nona e a décima oitavas, foram reescritas por completo entre a V1 e a V2, motivo que acreditamos ser suficiente para darmos atenção particular a pelo menos uma delas. Abaixo temos a nona estrofe das versões de Machado e de Mme. de Girardin: Quadro comparativo 9 – Nona estrofe de “Escravo e rainha”, “Cleópatra” e “Cléopâtre”. “Escravo e rainha” (1860) Agora desprezo a vida, Tenho glória mais dourada; Pronto estou para a jornada, Posso impávido – morrer. Mas só te imploro uma graça, É a última esperança... Desse amor quero a lembrança! Deixa guarda-la sequer! “Cleópatra” (1862) Pronto estou para a jornada Da estância escura e escondida; O sangue, o futuro, a vida Dou-te, ó morte, e vou morrer; Uma graça única — peço Como última esperança: Não me apagues a lembrança Do amor que me fez viver. Cléopâtre Je suis prêt à partir pour les rivages sombres; Prends mon sang et ma vie et mon jeune [avenir... Mais permets qu'avec moi j'emporte chez les [ombres Le souvenir... le souvenir! Fonte: Assis (1860); Assis (1976); Girardin (1847) Comecemos observando as versões de Machado: em V1 percebe-se que o tradutor reorganizou a informação do texto francês, deslocando, por exemplo, a informação do primeiro hemistíquio do primeiro verso da quadra francesa, “Je suis prêt à partir”, para o terceiro verso de sua estrofe. Este, único verso que permanece inalterado entre V1 e V2, é devolvido para o início da oitava em V2, de forma que os dois primeiros versos de V2, “Pronto estou para a jornada / Da estância escura e escondida;” correspondam ao primeiro alexandrino da quadra francesa: “Je suis prêt à partir pour les rivages sombres;” repetindo o procedimento de quebrar o alexandrino em duas redondilhas maiores, como vimos anteriormente. É possível ver o mesmo nos versos seguintes: “O sangue, o futuro, a vida / Dou-te, ó morte, e vou morrer;” traduzem criativamente “Prends mon sang et ma vie et mon jeune avenir…”. Machado toma os substantivos que carregam as ideias centrais do verso francês – “sang”, “vie” e “avenir” – e com estas ideias compõe os seus versos. Mesmo a ideia de morte, aparente acréscimo de Machado, está presente no verbo que abre o alexandrino francês, “Prends mon sang”. Tais mudanças, ora em maior, ora em menor grau, nos fazem considerar que o resultado alcançado com V2 foi tecnicamente superior ao de V1, uma vez que Machado consegue um texto que é ao mesmo tempo mais natural e mais fluido. O meio caminho encontrado pelo tradutor nos parece o mais adequado para recriar o texto francês em nosso idioma: sem perder de vista por completo o texto-fonte, o tradutor reescreve criativamente o canto do escravo. Os procedimentos adotados por Machado de Assis em “Cleópatra, canto de um escravo”, e os resultados que tais procedimentos geraram, nos remetem à proposta de Henri Meschonnic: “[o] objetivo da tradução não é mais o sentido, mas bem mais que o sentido, e que o inclui: o modo de significar”347. Lemos neste “modo de significar” a percepção que o tradutor 347 MESCHONNIC, 2010, p. 43 172 teve para saber ser necessária a substituição da forma poética adotada, optando por outra mais afeita à sua tradição e mais condizente com o tema traduzido: justificam-se, assim, as escolhas pelo metro popular que é a redondilha maior e pelas oitavas que servem bem ao propósito de quebrar os versos das quadras em dois para acomodar melhor o sentido. Poderíamos ainda justificar estas alterações impostas pelo tradutor novamente com Meschonnic: “O sentido está ligado à forma do sentido. A tradição que transpõe faz mais do que traduzir, que é produzir um equivalente de sentido, de valor, de função, e de funcionamento. Ela substitui o traduzir por adaptar”348. Ao produzir sua “mal-amanhada paráfrase” Machado adaptou o que foi necessário para que pudesse produzir um equivalente naqueles termos propostos por Meschonnic, equivalente de sentido, valor, função e funcionamento. Mas de que modo esta tradução dialoga com o restante da produção de Machado de Assis no período? Em A juventude de Machado de Assis Massa identifica entre os “temas principais” da época – início da década de 1860 – o amor não correspondido349, tema em que poderíamos incluir esta tradução de Mme. de Girardin. Vimos anteriormente que o biógrafo Magalhães Júnior sugeriu que esta tradução poderia ter uma mensagem subliminar de admiração pela atriz Gabriela da Cunha, que já tinha sido tema de poema anteriorxxviii pouco menos de duas semanas antes desta. Mas a grande coincidência desta tradução é com o poema “Ícaro”, publicado no mesmo dia de “Escravo e Rainha”, 8 de janeiro de 1860 n’O Espelho, e no dia seguinte na seção “Variedade” do Correio Mercantil. A coincidência não é só de datas, mas de forma – “Ícaro” também é escrito em oitavas com versos em redondilhas maior – e mesmo tema: assim como em “Escravo e Rainha”, em “Ícaro” há o amor não correspondido, inalcançado: “Que queres tu que eu te peça? / Um olhar que não consola?” ou “É audaz o pensamento / Não vez que um olhar é pouco?” e mais ainda em “Foras um sonho que eu tive, / Uma esperança bem pura; / Foras meu céu de ventura / Em toda sua nudez!”350. A semelhança de temas e a proximidade das datas assim corroboram a tese de que esse poema seria uma declaração a D. Gabriela da Cunha, conforme propôs Magalhães Júnior. Ao comentar esta tradução, Jean-Michel Massa alega que “[...] em ambos os casos Machado de Assis afasta-se bastante do texto francês. Essas versões são sobretudo adaptações. O escritor brasileiro inspira-se no tema que ele reescreve alargando o tema do objeto”351. As declarações do biógrafo, agora, ficam mais claras: há, sim, um afastamento do texto francês, 348 MESCHONNIC, 2010, p. 31 MASSA, 2009, p. 215 350 ASSIS, 2009, p. 479-481 351 MASSA, 2008, p. 75 349 173 principalmente no plano formal, mas também em diversos detalhes do texto. Há, por outro lado, uma tentativa de se aproximar do tema geral da obra e, a partir dele, compor um poema que funcione de forma autônoma. Traduzir poesia adaptando ou reescrevendo surge como um dos meios mais proveitosos, se não o único, para se obter como resultado um poema que se reconheça como tal. Se Machado não se afastasse quando necessário, não reescrevesse e não adaptasse, não teríamos outro poema que estende a vida do texto de Mme. De Girardin. 6.4 “As Ondinas” “As ondinas”, do poeta alemão Heinrich Heine, é uma tradução poética, em versos rimados, de um texto em prosa que por sua vez é também uma autotradução feita pelo próprio autor do texto-fonte. Em 1855, Heinrich Heine, então exilado na França, publica Poèmes et légendes, livro que reúne obras como o “Intermezzo”, “Atta Troll”, os “Nocturnes” – de onde Machado extraiu “As ondinas” – e o “Romancero”. Publicado no ano anterior ao de sua morte, o próprio Heine prefacia o seu livro, e nele justifica a escolha dos textos: “O livro que publico hoje contém a tradução francesa de uma parte das produções líricas que me deram em meu país o nome de poeta”352. As traduções, afirma Heine, foram feitas nos seus “heureux loisirs d’autrefois” (“felizes lazeres de outrora”) e reconhece, encerrando o prefácio, a situação em que coloca o leitor como tradutor de seus próprios textos da poesia alemã para a prosa francesa: É sempre uma empresa muito arriscada reproduzir na prosa de um idioma românico uma obra métrica que pertence a uma língua de estoque germânico. O pensamento íntimo do original é facilmente evaporado na tradução, e nada resta além de um luar empalhado, como disse uma pessoa desagradável que ridicularizava meus poemas traduzidos.353 O compatriota de Heine, o poeta e tradutor alemão Johann Wolfgang von Goethe nos fornece os argumentos necessários para justificar traduzir sua poesia em prosa. Goethe acreditava haver três tipos de tradução, cada uma adequada a uma determinada época e propósitos. O primeiro 352 HEINE, Henri. Poèmes et légendes. Paris: Michel Lévy Frères, Editeurs, 1855, p. V, tradução nossa. No original: “Le livre que je publie aujourd’hui contient la traduction française d’une partie de ces productions lyriques qui m’ont valu dans mon pays le nom de poète”. 353 HEINE, 1855, p. IX, tradução nossa. No original: “C’est toujours une entreprise très-hasardée que de reproduire dans la prose d’un idiome roman une œuvre métrique qui appartient à une langue de souche germanique. La pensée intime de l’original s’évapore facilement dans la traduction, et il ne reste que du clair de lune empaillé, comme a dit une méchante personne qui se moquait de mes poésies traduites”. 174 destes tipos era justamente a tradução em prosa, que serviria ao propósito de familiarizar a cultura receptora com o estrangeiro conforme os critérios de quem recebe, porque neutraliza as características formais do objeto traduzido e doma as exuberâncias do texto poético354. Sob esse aspecto, o método que Heine escolhe para traduzir os seus “Nocturnes” parece adequado à proposta de deixar para o público de língua francesa uma forma de acesso introdutório à sua obra. Massa alega que Machado de Assis utilizou a tradução em prosa feita pelo próprio Heine e publicada em 1855 em Poèmes et légendes, edição que servirá de base para nosso cotejo. Massa, que também apresenta breves comentários sobre a tradução de Machado, considera que Machado seguiu o andamento de Heine afirmando, em seguida, que “[...] dessa vez a forma não pesa demais a poesia, exceto talvez na segunda estrofe”355, provavelmente criticando as inversões sintáticas daquela estrofe em contraposição à linguagem direta e simples de Heine em francês. A crítica é suavizada na sequência, quando afirma que “[...] o toque leve de Heine, o caráter diáfano e sutil de sua expressão é geralmente traduzido com espírito”356. Outro crítico, Amaral Tavares (2009), quando escreveu sobre Crisálidas, também dedicou umas linhas para comentar esta tradução de Heine: “Dize-me: já leste alguma coisa de mais mimoso e suave? O verso, o conceito, a melodia de Machado de Assis desdizem a de Henrique Heine?”357. Curioso tratarem assim a tradução de Machado, que é um poema escrito a partir de uma tradução em prosa de outro poema escrito originalmente em alemão. Afinal, o “caráter diáfano e sutil” da expressão de Heine, de que fala Massa, ou o conceito e melodia de que fala Tavares, referiam-se ao texto francês? O texto alemão teria essas mesmas características? São questões inquietantes que merecem investigação. Outra questão ainda se impõe: sabemos que na década de 1860 Machado de Assis sequer começara a estudar formalmente o alemão. Em 1863, mesmo ano da primeira publicação de “As ondinas”, Machado também publicou “O casamento do diabo”, traduzido, ou “imitado”, do alemão com a provável ajuda de Henrique Fleiuss, algo que pode ter se repetido na tradução da balada de Goethe “O rei dos olmos”, como veremos posteriormente. Não há dúvidas de que a cultura teutônica estava numa posição privilegiada entre os interesses de Machado, talvez pela convivência com Fleiuss. Teria Machado de Assis conhecido o texto alemão de “As ondinas”? 354 GOETHE, 2000, p. 64 MASSA, 2008, p. 76 356 Ibid., p. 76 357 TAVARES, Amaral. “Crisálidas. A Quintino Bocaiúva”. In: ASSIS, Machado de. A poesia completa: edição anotada: recepção crítica. Organização e fixação dos textos de Rutzkaya Queiroz dos Reis. São Paulo: Nankin/Edusp 2009, p. 649 355 175 Se traduziu a partir somente de uma tradução em prosa francesa, Machado não teria conhecimento da forma poética do texto alemão e, no entanto, a forma poética que ele escolhe para compor “As ondinas”, mesmo não sendo idêntica, é bastante próxima da versão alemã de Heine: quadras rimadas, com a diferença de que Heine utiliza rimas alternadas, enquanto Machado rima somente os versos pares de cada estrofe. A métrica certamente é diferente devido à diferença entre as línguas, algo que importa pouco, considerando que Machado quase sempre traduz poesia alterando a métrica do texto fonte. A única certeza que temos é de que a forma escolhida era bastante popular e comum à poesia de várias literaturas oitocentistas, o que pode lançar certa dúvida quanto à hipótese de contato direto com o texto alemão. Desconhecemos de que modo Machado de Assis conheceu este texto de Heine, seja em sua versão francesa, seja na alemã. Estimamos que o contato com Fleiuss possa ter introduzido o tradutor à alguns nomes da literatura alemã. Sabe-se que a versão francesa “Les ondines” publicada em Poèmes et légendes de 1855 foi traduzida da segunda coletânea de poemas de Heinrich Heine, Neue Gedichte, de 1844, onde o poema “Die Nixen” é encontrado na seção “Romanzen”. Heine também publicou traduções francesas de seus poemas na Révue des Deux Mondes, mas os “Nocturnes” não foram contemplados. Sobre Neue Gedichte, o crítico e editor do volume A companion to the works of Heinrich Heine (2002), Roger Cook, autor do ensaio “Riddle of love: romantic poetry and historical progress”, afirma que, nos poemas publicados durante a década de 1840, o topos do enigma da esfinge dá lugar ao tema do segredo sobrecarregado, que o poeta divulga seletiva e cautelosamente. Como resultado, os poemas de Neue Gedichte trazem a marca da ambiguidade mesmo nos poemas em que o “segredo” correlaciona-se aos mistérios do amor com alusões implícitas às forças ideológicas que atuam nas idealizações religiosa e secular do amor irrealizado. Assim, Cook vê na temática de Neue Gedichte o retorno ao complicado mundo da poesia romântica relacionada ao amor, em que o poeta admite ter o conhecimento privilegiado de que o amor sempre vem a um preço a se pagar, e que as oportunidades amorosas perdidas são parte da tragédia humana358. No mesmo volume, Michel Perraudin afirma, no ensaio “The experiential world of Heine’s Buch der Lieder” (2002), que na seção “Romanzen” de Neue 358 COOK, Roger F. “Riddle of love: romantic poetry and historical progress”. In: COOK, Roger F. (Ed.). A companion to the works of Heinrich Heine. New York: Camden House, 2002, p. 114-118 176 Gedichte temos exemplos das múltiplas identidades em que o poeta se projeta enquanto tenta estabelecer um estilo baladesco pessoal359. Em “Les ondines/Die Nixen”, em prosa na versão francesa, mas em sete quadras de rimas alternadas na versão alemã, encontramos exatamente os temas e características que os críticos apontaram acima: em primeiro lugar, o “segredo” que é duplo. Afinal as ondinasxxix que encontram o jovem cavaleiro na praia se aproximam do objeto de sua admiração e desejo acreditando que o rapaz está dormindo, sem saber que o jovem se finge desacordado para poder aproveitar a oportunidade de ser beijado pelas belas criaturas. Trata-se, portanto, de uma obra que reforça a ideia da fruição em segredo de um objeto fruto de desejo que precisa ser reprimido. Vejamos como nosso tradutor se sai ao lado do texto francês: Quadro comparativo 10 – “As ondinas” e “Les ondines” As ondinas. (nocturno de H. Heine.) Les ondines. Beijam as ondas a deserta praia; Cai do luar a luz serena e pura; Cavaleiro na areia reclinado Sonha em hora de amor e de ventura. Les flots clapotent amoureusement contre la plage solitaire, la lune s'est levée, et un jeune chevalier repose étendu sur la blanche dune ; il se laisse aller aux mille rêveries de sa pensée. As ondinas, em nívea gaze envoltas, Deixam do vasto mar o seio enorme; Tímidas vão, acercam-se do moço, Olham-se e entre si murmuram: «Dorme!» Les belles ondines, vêtues de voiles blancs, quittent les profondeurs des eaux. Elles s'approchent à pas légers du jeune chevalier, qu'elles croient réellement endormi. Uma — mulher enfim — curiosa palpa De seu penacho a pluma flutuante; Outra procura decifrar o mote Que traz escrito o escudo rutilante. Esta, risonha, olhos de vivo fogo, Tira-lhe a espada límpida e lustrosa, E apoiando-se nela, a contemplá-la Perde-se toda em êxtase amorosa. L'une touche avec curiosité les plumes de sa barrette, l'autre examine son baudrier et son haume. La troisième sourit, et son œil étincelle ; elle tire l'épée du fourreau, et, appuyée sur l'acier brillant, elle contemple avec ravissement le beau jouvenceau. La quatrième sautille çà et là autour de lui, et chantonne tout bas : « Oh ! que ne suis-je ta maîtresse, chère fleur de chevalerie ! » Fita-lhe aquela namorados olhos, E após girar-lhe em torno embriagada, Diz: «Que formoso estás, ó flor da guerra, Quanto te eu dera por te ser amada!» La cinquième baise la main du chevalier avec une ardeur voluptueuse ; la sixième hésite et s'enhardit enfin à lui baiser les lèvres et les joues. Uma, tomando a mão ao cavaleiro, Um beijo imprime-lhe: outra, duvidosa, Audaz por fim, a boca adormecida Casa num beijo à boca desejosa. Le chevalier n'est pas un sot, il se garde bien d'ouvrir les yeux, et il se laisse tranquillement embrasser par les belles ondines, au clair de la lune. Faz-se de sonso o jovem; caladinho 359 PERRAUDIN, Michel. “The experiential world of Heine’s Buch der Lieder”. In: COOK, Roger F. (Ed.). A companion to the works of Heinrich Heine. New York: Camden House, 2002, p. 47 177 Finge do sono o plácido desmaio, E deixa-se beijar pelas ondinas Da branca lua ao doce e brando raio. Fonte: Assis (1976); Heine (1855) A versão em prosa de Heine contém sete parágrafos, cada um correspondendo a uma das estrofes do poema alemão, em que vemos um jovem cavaleiro que está à beira do mar, à noite sob a luz da lua, sobre a areia branca, absorto enquanto descansa. Seis ondinas – seres mitológicos, como sereias – então surgem e se aproximam do jovem cavaleiro, acreditando que ele está dormindo. Os parágrafos seguintes descrevem como as seis ondinas, cada uma mais ousada do que a anterior, tocam o rapaz, suas roupas, seus pertences e brincam ao redor dele, até que a última resolve beijá-lo nos lábios e no rosto. Ao final do poema temos a certeza de que o jovem cavaleiro não estava dormindo, mas fingia estar desacordado, mantendo os olhos fechados, para se deixar beijar e tocar pelas belas criaturas. Para compor sua versão, Machado escolhe devolver o texto de Heine à forma poética, adotando quadras de versos decassílabos heroicos e sáficos, porém rimando somente o segundo e quarto verso de cada estrofe. Se a forma lembra a versão alemã, mesmo que não seja idêntica, isso não é suficiente para afirmar que Machado teria conhecido o texto alemão. A forma escolhida era bastante comum na poesia de Heine – os poemas de Neue Gedichte foram escritos majoritariamente em quadras rimadas – mas também era comum entre os românticos em geral. A mesma forma poética – quadras de versos de dez sílabas, rimando somente o segundo e quarto versos de cada estrofe – foi utilizada, por exemplo, na tradução de “Maria Duplessis”, também de Crisálidas, que analisaremos a seguir. Se Machado de Assis faz algumas alterações esparsas no conteúdo do poema, o resultado é satisfatório e demonstra tomar caminhos bastante próprios. A alteração mais sensível introduzida por Machado que percebemos está no fato de que as ondinas não são contadas em sua tradução. Tanto no texto francês quanto no alemão fica bem claro que são seis criaturas, algo que o leitor do texto de Machado não identificaria facilmente dispondo somente de referências mais vagas como “esta”, “aquela”, “uma” ou “outra”, embora fique nítida a presença de múltiplas criaturas que se debruçam, tocam, admiram e beijam o jovem que finge ter adormecido. No plano semântico, portanto, vemos mais uma vez os procedimentos adotados nas ocasiões anteriores: há claramente uma busca por manter o sentido geral do texto, mas sem se apegar às minúcias imagéticas, que vão sendo reconstruídas pelo poeta-tradutor segundo seu projeto para o poema. 178 A autonomia do texto de Machado fica mais evidente se compararmos a sua tradução com a de Edgar Alfred Bowring, que traduziu para a língua inglesa e publicou, no fim do século XIX, um volume com toda a poesia de Heine “no metro original”, segundo o próprio. Atendendo mais uma vez à sugestão de Antoine Berman de que é benéfico, para conhecermos nosso tradutor, comparar suas escolhas com as de outros tradutores, comparemos, por exemplo, a terceira estrofe na versão de Machado: Uma — mulher enfim — curiosa palpa De seu penacho a pluma flutuante; Outra procura decifrar o mote Que traz escrito o escudo rutilante.360 E na de Bowring: The plume of his helmet the first one felt, To see if perchance it would harm her; The second took hold of his shoulder belt, And handled his heavy chain armour361. Conforme a tradução de Bowring, o “metro original” que ele manteve foi o pentâmetro iâmbico, conservando também as rimas alternadas que Heine emprega. Percebemos, pela comparação acima, que o terceiro e quarto versos da versão de Machado e de Bowring colocam a mesma criatura realizando ações completamente diferentes: uma examina algo escrito no escudo do jovem cavaleiro e outra toma-lhe partes da armadura, sendo que a de Bowring mantém-se mais próxima do que diz as versões do próprio Heine. Se por um lado, sob alguns aspectos – como a manutenção do metro e de todas as rimas – a versão de Bowring é mais próxima da primeira versão alemã, tanto a versão de Machado quanto a de Bowring precisam, vez ou outra, afastar-se semanticamente do texto-fonte para recriar o poema: Bowring, por exemplo, acrescenta o verso “To see if perchance it would harm her”, inexistente nas versões de Heine em francês ou alemão. Machado faz os acréscimos que comentamos acima, no terceiro e quarto versos da terceira estrofe. Todavia, a liberdade que ambos tomam para si é autorizada pelo próprio Heine quando, por exemplo, ao traduzir seu próprio texto do alemão para o francês, mesmo que em prosa, troca a “Waffenkette” – espécie de arma pendurada em uma corrente, como uma maça – do verso “Und an der Waffenkette” por um “haume” – “elmo”, tipo de capacete que os cavaleiros medievais usavam – na sua versão francesa, que, por sua vez, se torna uma “heavy chain armour” na tradução de Bowring e um “escudo rutilante” na versão de Machado. 360 ASSIS, 1976, p. 197 HEINE, Heinrich. The poems of Heine: complete. Trad. Edgar Alfred Bowring. London: George Bell and Sons, 1891, p. 147 361 179 Figura 4 - Reprodução da primeira publicação de “As ondinas” 180 Fonte: Assis (1863) 181 Lembremos por um momento o que Octavio Paz (2012) pensava a respeito da tradução poética: “O poema é uma totalidade viva, feita de elementos insubstituíveis. A verdadeira tradução só pode ser, então, uma re-criação”362, pensamento que complementa o que Meschonnic diz: “[...] O alvejador esquece que um pensamento elabora alguma coisa na linguagem, e é aquilo que ela faz que fica por traduzir. Daí que a oposição entre fonte e alvo não tenha mais nenhuma pertinência. Só o resultado conta.”363 A lição que os poemas-traduções de Machado de Assis, Bowring ou mesmo o próprio Heine nos deixam é a de que podemos pensar além do que o texto de partida fez: Não o que ele fez somente, mas como ele fez, e em que o tradutor pode contribuir para que o texto continue relevante. Mesmo que breve, esta tripla comparação entre as versões traduzidas por Heine, Bowring e Machado de Assis nos mostram que a tradução de um poema passa pela re-criação do mesmo, por vezes significando que é preciso trocar um significante por outro de que não é tradução exata, mas que pode exercer função equivalente, como o “Waffenkette”, que ora se torna “haume”, ora “chain armour” ou “escudo rutilante”. A admiração que Machado de Assis nutria por Heine não é nenhuma novidade. André Vallias, no “Poeta dos contrários”, coloca Heine numa posição que não se encaixa no modelo binário de Nietzsche, porque não seria apolíneo ou dionisíaco, pertencendo a outra categoria relegada às sombras pelo Ocidente364, explicação que poderia muito bem ilustrar o interesse de Machado de Assis pelo poeta desde muito antes de ficar famoso entre os compatriotas brasileiros na última década do século XIX. Poucos autores foram traduzidos mais de uma vez por ele: Heine, Shakespeare e Lamartine foram os únicos que receberam tal atenção. Embora seja de presença frequente nas crônicas, alimentando o refinamento da ironia machadiana, nos romances e contos as alusões a Heine são poucas: uma em Memorial de Aires, em que o Conselheiro Aires alude ao poema “Das Sklavenschiff” (“O Navio Negreiro”), outra no conto “Uma senhora”, de Histórias sem data, e mais uma no conto “Sales”, publicado na Gazeta de Notícias em 1887, em que Machado cita Heine em alemão. Mas é no conto “Uns braços”, de Várias histórias (1895)xxx, que Jean-Michel Massa encontra um tema que lembra o desta tradução: “‘As ondinas’ apresentam […] uma situação que ‘Uns braços’ evocará em 1885, a de um beijo que não se sabe se é real ou sonho. É o tema da ‘Virgem adormecida’, mas em que o homem e a mulher trocaram seus lugares”365. O conto narra um episódio na vida do jovem 362 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 53 MESCHONNIC, 2010, p. XXXI 364 VALLIAS, 2011, p. 31 365 MASSA, 2008, p. 75-76 363 182 Inácio, de 15 anos, que mora com o solicitador Borges e D. Severina, com quem vive maritalmente e que traz os braços sempre nus, despertando desejos no rapaz por quem D. Severina, ao desconfiar dos seus desejos, acaba se sentindo atraída. Na verdade, o beijo secreto é ao mesmo tempo real e sonho: real para D. Severina, que beija o jovem Inácio enquanto ele dorme em uma rede e sonha estar sendo beijado pela dona dos braços que povoam seus sonhos: E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que, inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até a porta, vexada e medrosa.366 Certamente a situação do conto lembra a do poema “As ondinas”: o duplo segredo da atração mútua, o objeto do desejo que está fora do alcance por pressões externas, a inversão de papeis, com a figura masculina adormecida – ou fingindo dormir – sendo beijada pela figura feminina. Seria exagerado afirmar que a ideia para o conto veio da tradução de “As ondinas” feita mais de duas décadas antes, mas não seria de todo despropositado imaginar que a situação pode ter sido ruminada pelo leitor/re-escritor de Heine nos quatro estômagos do cérebro durante aquelas duas décadas resultando num de seus contos mais conhecidos. 6.5 “Maria Duplessis” Ao incluir “Maria Duplessis”, que saíra primeiramente no Diário do Rio de Janeiro em 15 de abril de 1860, em Crisálidas, Machado toma o cuidado de incluir uma nota de fim explicando a gênese de seu texto: Em 1858, eu e meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer uma tradução livre ou paráfrase destes versos de Alexandre Dumas Filho. No dia aprazado apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele foi publicada, não me lembro em que jornal367. Em um artigo publicado no final de 2018, Wilton José Marques não só identifica o jornal em que a tradução de Braga foi publicada como levanta a instigante hipótese de que esta teria sido, afinal, a primeira tradução de Machado de Assis. Marques identifica que a tradução que Braga, amigo de Machado, também fez desse poema é de 1856368, sendo incluída no mesmo ano no 366 ASSIS, 2015, vol. 2, p. 449 ASSIS, 1976, p. 215 368 MARQUES, Wilton José. Machado De Assis e "Maria Duplessis": A Talvez Primeira Tradução. Machado Assis Linha, São Paulo , v. 11, n. 25, dez. 2018, p. 36. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198368212018000300033&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em: 22 jan. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/1983-6821201811253. 367 183 seu livro Tentativas Poéticas (1856), e não 1858, como Machado afirma na nota acima, enquanto em Crisálidas a versão de Machado é acompanhada da data de 1859. Não restam dúvidas, portanto, de que há inconsistências no relato de Machado de Assis. Marques sugere ainda que tanto Braga quanto Machado de Assis teriam trabalhado não diretamente do francês, mas a partir de outra versão em português feita pelo folhetinista Leonel de Alencar369, que publicou uma versão em prosa com características que correspondem exatamente às traduções em verso de Braga e Machado de Assis: a inversão das mesmas duas estrofes, a omissão de outras, e as similaridades textuais entre as versões de Braga e Machado com a tradução em prosa de Alencar. Nem Braga, nem Machado de Assis, portanto, teriam lido o texto francês, mas somente versificado a tradução em prosa de Alencar370, com a ressalva de que não é possível garantir que a versão que Machado de Assis publica em 1860 no Diário do Rio de Janeiro seja a mesma que ele teria feito quatro anos antes para comparar os resultados com seu amigo Braga371. De fato, as traduções de Machado de Assis e Gonçalves Braga guardam várias semelhanças entre si, corroborando a tese de que ambos trabalharam a partir da versão em prosa de Leonel de Alencar: Machado compõe a sua em 16 quadras, de versos decassílabos italianos em que rimam somente os versos pares. A de Gonçalves Braga contém uma quadra a mais do que a de Machado, com o mesmo metro, rimando também os versos pares de cada estrofe. A conclusão inevitável a que se chega quando comparamos as duas é a de que ambos utilizaram o mesmo texto-fonte. Massa é também dos primeiros a notar que a tradução de Machado, bem como a de Gonçalves Braga, sob o título “Maria Duplessis, a transviada” e feita anos antes, não correspondiam às versões do texto francês de Dumas que encontrou, como a do volume VII de Théâtre, publicado em Paris em 1868. Esta versão do texto francês possui somente treze quadras, algumas das quais não são traduzidas por Machado. Na Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa a fonte do original é praticamente a mesma: “O original dessa tradução encontra-se em: Alexandre Dumas Fils, Théâtre Complet, VIII, Notes Inédits, Paris, Calman-Lévy, Editeurs, s.d.”372. Como tanto Massa e Galante de Sousa referenciam as mesmas páginas 23-25, mas em volumes diferentes, cremos que houve equívoco da parte da Bibliografia de Machado de Assis, uma vez que consultamos o texto no VII do referido Théâtre Complet de 369 MARQUES, 2018, p. 45 Ibid. 371 Ibid., p. 51 372 SOUSA, 1955, p. 335 370 184 1868 conforme indicação de Massa. A respeito do suposto texto-fonte que encontrou, Galante de Sousa informa: Das treze quadras de que se compõe o original, só se encontram na tradução de Machado de Assis a 1a, 2a, 3a, 4a, 7a, 8a, 9a e 10a. Há, ao contrário, na tradução, algumas estrofes que não correspondem ao original. Certamente não foi nesta edição tardia que Machado de Assis baseou sua imitação. Possivelmente usou mesmo algum volume da edição reduzida de La Dame aux Camélias373. Além de traduzir somente as estrofes mencionadas por Galante de Sousa, elas aparecem em ordem diferente da encontrada no texto-fonte francês conforme encontramos no VII do Théâtre Complet. Não nos deteremos em tais pormenores porque, conforme Galante de Sousa afirma, Machado de Assis certamente não se baseou nesta edição. Todavia, devemos ressaltar que o texto-fonte de “Maria Duplessis” não veio de La Dame aux Camélias, conforme explicaremos adiante. 373 SOUSA, 1955, p. 335 185 Figura 5 - Reprodução da primeira publicação de “Maria Duplessis” Fonte: Assis (1860) 186 Encontramos outra versão do poema, desta vez com 22 estrofes no Causeries de Alexandre Dumas (pai) publicado em Paris também pela Calman-Lévy Editeurs, s.d. No capítulo “Les trois dames”, Dumas apresenta o poema do filho: “Aqui estão os versos que ele fez durante a noite; não se esqueça que Alexandre, quando os fez, mal tinha vinte anos”374. Em seguida, é transcrito o poema com 22 quadras de versos alexandrinos e rimas cruzadas. Além desta fonte, José Américo Miranda (2017) encontrou a mesma versão do poema com 22 estrofes em Péchés de Jeunesse de 1847, obra da juventude de Dumas Filho375. Reproduzimos, a seguir, os poemas de Machado e de Dumas Filho: Quadro comparativo 11 – “Maria Duplessis” e “M.D.” “Maria Duplessis” “M. D.” Dédié à Théophile Gautier. Fiz a promessa, dizendo-te que um dia Eu iria pedir-te o meu perdão; Era dever ir abraçar primeiro A minha doce e última afeição. Nous nous étions brouillés ; et pourquoi ? je l'ignore ; Pour rien ! pour le soupçon d’un amour inconnu ; Et moi, qui vous ai fuie, aujourd'hui je déplore De vous avoir quittée et d'être revenu. E quando ia apagar tanta saudade Encontrei já fechada a tua porta; Soube que uma recente sepultura Muda fechava a tua fronte morta. Je vous avais écrit que je viendrais, madame, Pour chercher mon pardon, vous voir, à mon retour ; Car je croyais devoir, et du fond de mon âme, Ma première visite à ce dernier amour. Soube que, após longo sofrimento, Agravara-se a tua enfermidade; Viva a esperança que eu nutria ainda Despedaçou cruel fatalidade. Et quand mon âme accourt, depuis longtemps absente, Votre fenêtre est close et votre seuil fermé ; Et voilà qu'on me dit qu'une tombe récente Couvre à jamais le front que j'avais tant aimé. Vi, apertado de fatais lembranças, A escada que eu subia tão contente; E as paredes, herdeiras do passado, Que vêm falar dos mortos ao vivente. On me dit froidement qu'après une agonie Qui dura quatre mois, le mal fut le plus fort, Et la fatalité́ jette avec ironie, A mon espoir trop prompt, le mot de votre mort ! Subi e abri com lágrimas a porta Que ambos abrimos a chorar um dia; E evoquei o fantasma da ventura Que outrora um céu de rosas nos abria. J'ai revu, me courbant sous mes lourdes pensées, L'escalier bien connu, le seuil foulé souvent, Et les murs qui, témoins des choses effacées, Pour lui parler du mort, arrêtent le vivant ! Sentei-me à mesa, onde contigo outrora, Em noites belas de verão ceava; Desses amores plácidos e amenos Tudo ao meu triste coração falava. Je montai ; je rouvris, en pleurant, cette porte Que nous avions ouverte en riant tous les deux, Et dans mes souvenirs j'évoquai, chère morte, Le fantôme voilé de tous nos jours heureux. Fui ao teu camarim, e vi-o ainda Brilhar com o esplendor das mesmas cores; E pousei meu olhar nas porcelanas Onde morria inda algumas flores... Je m'assis à la table où, l'un auprès de l'autre, Nous revenions souper aux beaux soirs du printemps, Et de l'amour joyeux, qui fut jadis le notre, J'entendais chaque objet parler en même temps ! 374 DUMAS, Alexandre. Causeries. Première série. Paris: Michel Lévy Frères, 1860, p. 13, tradução nossa. No texto-fonte: “Voici les vers qu’il avait fait, pendant la nuit; qu’on n’oublie pas qu’Alexandre, lorsqu’il les fit, avait vingt ans à peine”. 375 MIRANDA, José Américo. “Machado de Assis e as traduções que publicou em Crisálidas”. Revista Texto Poético, [S.l.], v. 13, n. 22, 2017, p. 224 187 Vi aberto o piano em que tocavas; Tua morte o deixou mudo e vazio, Como deixa o arbusto sem folhagem, Passando pelo vale, o ardente estio. Je vis le piano dont mon oreille avide Vous écouta souvent éveiller le concert ; Votre mort a laissé l'instrument froid et vide, Comme, en partant, l'été́ laisse l'arbre désert ! Tornei a ver o teu sombrio quarto Onde estava a saudade de outros dias... Um raio iluminava o leito ao fundo Onde, rosa de amor, já não dormias. J'entrai dans le boudoir, cette oasis divine, Égayant vos regards de ses mille couleurs ; Je revis vos tableaux, vos grands vases de Chine, Où se mouraient encor quelques bouquets de fleurs ! As cortinas abri que te amparavam Da luz mortiça da manhã, querida, Para que um raio depusesse um toque De prazer em tua fronte adormecida. J'ai trouvé votre chambre, à la fois douce et sombre, Et là, le souvenir veillait fort et sacré ; Un rayon éclairait le lit donnant dans l'ombre, Mais vous ne dormiez plus dans le lit éclairé́ ! Era ali que, depois da meia-noite, Tanto amor nós sonhávamos outrora; E onde até o raiar da madrugada Ouvíamos bater – hora por hora! Je m'assis à côté́ de la couche déserte, Triste à voir comme un nid, l'hiver, au fond des bois, Et je rivais mes yeux à cette porte ouverte, Que vous avez franchie une dernière fois ! Então olhavas tu a chama ativa Correr ali no lar, como a serpente; É que o sono fugia de teus olhos Onde já se queimava a febre ardente. La chambre s'emplissait de l'haleine odorante Des souvenirs joyeux, et pâle, j'entendais Le murmure alterné de l'horloge ignorante Qui sonnait autrefois l'heure que j'attendais ! Lembras-te agora, nesse mundo novo, Dos gozos desta vida em que passaste? Ouves passar, no túmulo em que dormes, A turba dos festins que acompanhaste? Je rouvris les rideaux qui, faits de satin rose, Et voilant, au matin, le soleil à demi, Permettaient seulement ce rayon qui dépose La joie et le réveil sur le front endormi. A insônia, como um verme em flor que murcha, De contínuo essas faces desbotava; E pronta para amores e banquetes Conviva e cortesã te preparava. Or, c'est là qu'autrefois, ma chère ombre envolée, Nous restions tous les deux lorsque venait minuit, Et, depuis ce moment jusqu'à l'aube éveillée, Nous écoutions passer les heures de la nuit. Hoje, Maria, entre virentes flores, Dormes em doce e plácido abandono; A tua alma acordou mais bela e pura, E Deus pagou-te o retardado sono. Alors vous regardiez, éclairée à sa flamme, Le feu, comme un serpent, dans le foyer courir. Car le sommeil fuyait de vos yeux, et votre âme Souffrait déjà̀ du mal qui vous a fait mourir. Pobre mulher! em tua última hora Só um homem tiveste à cabeceira; E apenas dous amigos dos de outrora Foram levar-te à cama derradeira. Vous souvient-il encor, dans le monde où vous êtes, Des choses de ce monde, et sur les froids tombeaux Entendez-vous passer ce cortège de fêtes Où vous vous épuisiez pour trouver le repos ? Vous souvient-il des nuits où, brûlante, amoureuse, Tordant sous le baiser votre corps éperdu, Vous trouviez, consumée à cette ardeur fiévreuse, Dans vos sens fatigués le sommeil attendu ? Ainsi qu'un ver rongeant une fleur qui se fane, L'incessante insomnie étiolait vos jours, Et c'est ce qui faisait de vous la courtisane – Prompte à tous les plaisirs, prête à tous les amours ! Maintenant vous avez, parmi les fleurs, Marie, Sans crainte du réveil le repos désiré́ ; Le Seigneur a soufflé sur votre âme flétrie, Et payé d'un seul coup le sommeil arriéré́ . 188 Pauvre fille ! On m'a dit qu'à votre heure dernière Un seul homme était là pour vous fermer les yeux ; Et que, sur le chemin qui mène au cimetière, Vos amis d'autrefois étaient réduits à deux ! Eh bien, soyez bénis, vous deux qui, tête nue, Méprisant les conseils de ce monde insolent, Avez, jusques au bout, de la femme connue, En vous donnant la main, mené́ le convoi blanc ! Vous qui l'aviez aimée et qui l'avez suivie ! Qui n’êtes pas de ceux qui, duc, marquis ou lord, Se faisant un orgueil d'entretenir sa vie, N'ont pas compris l'honneur d'accompagner sa mort ! Fonte: Assis (1976); Dumas (1847) De todo modo, as traduções de Machado de Assis e Gonçalves Braga certamente foram feitas a partir de alguma versão de “M.D.” conforme publicado em Péchés de Jeunesse e Causeries. Das 22 estrofes, Machado não traduz a 1ª, 11ª, 12ª, 17ª, 21ª e 22ª, enquanto Gonçalves Braga inclui a 17a em sua tradução. Esta estrofe que Machado não traduz, mas traduzida por Braga, traz uma cena carregada de erotismo intenso, o que deve explicar a eliminação, já que o escritor não era afeito a tais descrições. Além disso, percebemos que na tradução de Machado a 8ª e 9ª estrofes do texto francês foram invertidas. Curiosamente, a mesma inversão das 8a e 9a estrofes é vista na tradução de Gonçalves Braga, como ocorre na tradução em prosa de Leonel de Alencar, mais um indício de que ambos trabalharam a partir dela. Além dos outros indícios, apontados por Wilton José Marques, de que Machado de Assis não traduziu a partir do francês, mas de uma tradução em prosa de Leonel de Alencar, há outros, mais pontuais, que corroboram a tese de que esta teria sido a fonte de Machado de Assis. Comparemos, por exemplo, os dois primeiros versos da sexta estrofe no poema de Dumas e nas versões de Machado e Alencar: Dumas: Je montai ; je rouvris, en pleurant, cette porte Que nous avions ouverte en riant tous les deux, Machado de Assis: Subi e abri com lágrimas a porta Que ambos abrimos a chorar um dia; Leonel de Alencar: Subi, tornei a abrir essa porta, chorando, que um dia ambos chorando abrimos tão infelizes. Repare-se que no poema em francês o poeta lembra que ambos um dia abriram a porta rindo (“en riant tous les deux”), enquanto nas versões de Alencar, de 1856, e de Machado eles estão 189 chorando. Temos mais um exemplo na estrofe seguinte, da qual citaremos, novamente, somente os dois primeiros versos: Dumas: Je m'assis à la table où, l'un auprès de l'autre, Nous revenions souper aux beaux soirs du printemps, Machado de Assis: Sentei-me à mesa, onde contigo outrora, Em noites belas de verão ceava; Leonel de Alencar: Assentei-me a essa mesa onde vínhamos cear nas noites de verão. Novamente reparamos que tanto na versão de Alencar quando na de Machado de Assis eles ceavam em noites de versão, enquanto no poema francês era uma noite de primavera. Ainda que se possa argumentar que Machado escolheu “verão” em vez “primavera”, como no texto francês (“aux beaux soirs de printemps”), por causa da métrica, a similaridade com a versão de Alencar é inegável. Conjeturas à parte, cabe de fato discutir como Machado procede ao traduzir Dumas, como se sai na empreitada e o que nos revela sobre sua prática. Neste ponto, concordamos com a avaliação final de Jean-Michel Massa: possivelmente comovido e inspirado com a leitura do texto de Dumas, compõe um novo texto, mais comovente, com outro tom, que oculta sua banalidade original376. Apesar dos elogios, Massa se refere ao texto de Machado como “cópia”. Ora, se o tom é novo, se a peça comove mais, se oculta a banalidade da elegia francesa, chamarlhe “cópia” é diminuir o seu valor. Assim como nos casos anteriores, compor um novo texto, como sugere Massa, é uma necessidade quando se trata de traduzir poesia de forma que se obtenha um poema como resultado. Definitivamente esta era a intenção de Machado de Assis quando cria sua versão de “M.D.”: mais do que uma tradução, um poema. Mas o que leva Massa a observar um novo tom, menos banal e mais comovente na tradução de Machado de Assis? A elegia de Dumas Filho é um texto bastante visual, com um poeta que rememora seu relacionamento com a falecida Marie Duplessis: a carta com a promessa do retorno que só se dá após a morte, as janelas e portas fechadas simbolizando a inacessibilidade da amada, a morte após certa agonia relatada por outros, os aposentos e objetos pessoais, as memórias dos dois juntos que tais lugares e objetos evocaram. O poema tem um tom bastante elegíaco, mas às vezes peca no excesso de detalhes que nada acrescentam às lamentações de quem perdeu um 376 MASSA, 2008, p. 72 190 ente querido. Apesar de manter-se bastante próximo do sentido geral do poema, se observarmos as supressões de Machado de Assis, veremos que o tradutor parece ter percebido alguns excessos e procurado dar um tom mais conciso, mais sintético ao seu texto. O poema de Machado não nos diz, por exemplo, que o sofrimento de Maria Duplessis “durou quatro meses” (“dura quatre mois”), que o ouvido ávido do jovem escutava o piano que agora está mudo, algo suficientemente implícito, que as cortinas eram de “cetim rosa” (“satin rose”), que um só homem estava à cabeceira “para fechar os olhos” (“pour vous fermer les yeux”) ou que somente dois amigos levaram-na à cama derradeira “pelo caminho que leva ao cemitério” (“sur le chemin qui mène au cimetière”). Esses são apenas alguns exemplos de supressões que denotam claramente que Machado procurou eliminar do texto o que lhe parecesse supérfluo. A última estrofe é um dos melhores exemplos do resultado que o trabalho de supressão atinge, conferindo ao texto a condensação necessária ao texto poético, Pobre mulher! em tua última hora Só um homem tiveste à cabeceira; E apenas dois amigos dos de outrora Foram levar-te à cama derradeira.377 bem diferente do prosaísmo expansivo do texto francês: Pauvre fille ! on m’a dit qu’à votre heure dernière, Un seul homme était là pour vous fermer les yeux, Et que, sur le chemin qui mène au cimetière, Vos amis d’autrefois étaient réduits à deux !378 Machado até mesmo emenda uma inconsistência do texto francês nos versos “Un rayon éclairait le lit dormant dans l’ombre” que traduz primeiramente por “Um raio iluminava o leito à sombra”, conforme se lê no Diário do Rio de Janeiro, mas que em Crisálidas lê-se “Um raio iluminava um leito ao fundo”, sem alterar a métrica ou a distribuição dos acentos no verso. Afinal, se um raio iluminava o leito, não faria muito sentido dizer que o leito estava “à sombra”. Em geral, percebe-se que o texto de Machado, mesmo que derivado de uma tradução em prosa para a língua portuguesa, recria livremente o poema de Dumas Filho. O produto do trabalho nos mostra que o tradutor não deixou o texto-fonte ditar as regras para o seu texto, mas procurou compor um poema que retome a temática, as imagens, as cenas do texto-fonte e com estes elementos criar um poema seu. O tom elegíaco não só é mantido na tradução, como é reforçado pelo caráter mais conciso, sintético de Machado em face do prosaísmo de Dumas 377 378 ASSIS, 1976, p. 201 DUMAS FILS, 1847, p. 397 191 Filho; as imagens são mantidas, ou mesmo emendadas, adaptadas em conformidade com o efeito que se procurou atingir, deixando de lado todo material que não fosse imprescindível à tarefa. 6.6 “Alpujarra” A última das traduções de Crisálidas, “Alpujarra”, foi publicada pela primeira vez, conforme anota Galante de Sousa, no Jornal das Famílias de julho de 1863, pp. 216-218. Informa ainda que na versão do periódico há 17 quadras, das quais a 15ª foi omitida em Crisálidas. Conquanto não tenhamos encontrado a edição do Jornal das Famílias em que o texto foi publicado pela primeira vez, há notícia da publicação na edição de 27 de junho de 1863 do Diário do Rio de Janeiro, em que se lê que no nº 7 do Jornal das Famílias, na seção “Poesias”, está a tradução “Alpujarra” de Machado de Assis379. Esta publicação original apresenta variantes textuais em relação à que saiu em Crisálidas, onde o texto está datado como sendo de 1862. É com esta tradução que Machado de Assis inicia seu período de colaboração no Jornal das Famílias, conforme nota o biógrafo Magalhães Júnior380. Note-se que a indicação do ano de 1862, presente tanto em “Alpujarra” quanto em “Polônia” na primeira edição de Crisálidas, não deve estar certa: “Polônia”, poema publicado pela primeira vez com o título “O Acordar da Polônia” n’O Futuro em março de 1863, foi muito provavelmente inspirado pela Revolta de Janeiro, insurreição polonesa contra a Rússia tzarista, iniciada em 22 de janeiro daquele ano. Logo, não teria como ser anterior ao evento. Isso também poderia explicar o interesse de Machado de Assis por Adam Mickiewicz, cujo nome aparece na epígrafe de “Polônia” e de quem Machado traduz a balada presente em Konrad Wallenrod. Na avaliação de Massa, [...] “Alpujarra” é uma balada patriótica em que a escolha comporta um significado menos literário que nacional. Machado de Assis desejou marcar uma identidade de visão com o herói do poema. Traduzindo “Alpujarra” o jovem escritor brasileiro oferece um exemplo a seus compatriotas e se alista no campo dos defensores do Brasil no momento do caso Christie. Desse modo, “Alpujarra” abre o ciclo de poesias patrióticas compostas por nosso escritor.381 As primeiras pistas sobre o texto-fonte utilizado para fazer esta tradução foram deixadas pelo próprio Machado de Assis que, em nota ao poema, escreve: “Este canto é extraído de um 379 Cf. DIÁRIO do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 jun. 1863, p. 1 MAGALHÃES JR., 2008, p. 384 381 MASSA, 2008, p. 76 380 192 poema do poeta polaco Mickiewicz, denominado Conrado Wallenrod. Não sei como corresponderá ao original; eu servi-me da tradução francesa do polaco Cristiano Ostrowski”382. É, portanto, mais uma tradução indireta, como “As ondinas”, que estudamos anteriormente, e “Deuses da Grécia”, que aparecerá em Falenas. Em nota que acompanha “Alpujarra” no volume A poesia completa, Rutzkaya Queiroz dos Reis informa que a “[...] expressão usada por Machado de Assis, ‘extraída’, não esclarece se houve tradução, adaptação, ou simples aproveitamento do tema”383. Como Konrad Wallenrod é um longo poema narrativo de Mickiewicz, e a balada “Alpujarra” é somente um excerto da obra, acreditamos que por “extraída” Machado quisesse dizer exatamente isso: trata-se de um trecho que narra um episódio de uma obra mais longa e que pode ser lido isoladamente sem grandes prejuízos na compreensão do episódio. O Konrad Wallenrod de Adam Mickiewicz (1798-1855) foi publicado em 1828, durante seu exílio na Rússia, que durou de 1824 a 1829. A data da publicação do poema de Mickiewicz é bastante significativa, pois está bastante próxima da gênese do romantismo polonês, que se iniciou através do próprio Mickiewicz com a publicação do seu primeiro volume das Baladas e romances em 1822 e de outra data importante, o levante de 1830, que levará vários poetas, entre eles o próprio Mickiewicz, ao exílio no estrangeiro384. Konrad Wallenrod foi escrito por Mickiewicz em protesto pela divisão do território em que hoje está a Polônia entre o Império Russo, Áustria e o Reino da Prússia. Na História da Literatura Polonesa (2000) de Henryk Siewierski, o herói de Konrad Wallenrod é descrito como “[...] um novo tipo de herói, um rebelde trágico” de um poema que valoriza “[...] a visão de mundo do povo, o fantástico, o sentimento, a espiritualidade”385. O levante armado de 1830 que inspirou os poetas da geração de Mickiewicz se repetiu em 1863: o “Levante de Janeiro” daquele ano foi mais uma revolta na tentativa de recuperar a liberdade do país através da luta armada386, o que provavelmente despertou o interesse de Machado pela poesia polonesa. Mickiewicz torna-se assim um dos expoentes do romantismo polonês, que para Paul Van Tieghen, em Le romantisme dans la littérature européenne (1969), é o romantismo de um país mártir, de caráter essencialmente nacional387. Mickiewicz, de certa forma, inaugura a poesia polonesa romântica, de cuja primeira geração foi integrante, e se mostra um dos 382 ASSIS, 1976, p. 216 Id., 2009a, p. 322 384 SIEWIERSKI, Henryk. História da literatura polonesa. Brasília: UnB, 2000, p. 72 385 Ibid., p. 75 386 Ibid., p. 73 387 TIEGHEM, 1969, p. 199-200 383 193 exemplos mais completos e perfeitos do romantismo europeu. Dono de uma obra extensa e variada, o leitor encontra nele desde a imaginação fantástica ao realismo épico e o misticismo. Mickiewicz é um poeta inspirado pela reflexão, e em sua poesia a sensação forma uma perfeita unidade com a expressão, uma vez que é um mestre da forma poética388. Natural, portanto, que o poeta Machado de Assis se deixe inspirar por ele e procure traduzi-lo, como se quisesse desvendar os mecanismos que fazem sua obra funcionar, demonstrando claro interesse em estabelecer uma filiação com o poeta polonês, ampliando seus horizontes literários e acrescentando na literatura brasileira algumas páginas que nos fazem refletir sobre o processo de independência frente a uma força estrangeira. O longo poema narrativo Konrad Wallenrod (1828) é introduzido por um breve prefácio do próprio autor que esboça a história da região, a formação da nação lituânica. Mickiewicz afirma que a história ainda não havia sido capaz e explicar como uma nação tão frágil como a Lituânia foi capaz de enfrentar todos os seus inimigos, mantendo-se em constante guerra com a Ordem Teutônica, de um lado, enquanto pilhava a Polônia, de outro, exigindo tributos e avançando até as fronteiras de Volga e da península da Crimeia. Ao final do prefácio, Mickiewicz explica que as circunstâncias por ele relatadas, que cobrem alguns séculos de história, pertencem agora ao passado e se tornaram tema para poesia. Curiosamente, depois de explicar como o poeta deve se comportar diante dos eventos – investigar a fundo e dar um tratamento artístico aos assuntos sem levar em conta os anseios do público –, Mickiewicz encerra seu prefácio com dois versos finais de um poema de Friedrich Schiller que Machado de Assis também traduzirá e incluirá em Falenas anos mais tarde: “Os deuses da Grécia”. Os versos – “Was unsterblich im Gesang will leben, / Muss im Leben untergehen” – pedem que as musas imortalizem aquilo que se foi para sempre do plano terreno e que sobreviverá somente na poesia. É esta a lição de Schiller que Mickiewicz pedem que os poetas sigam. Teria Machado de Assis se inspirado nesta lição e partido daí seu interesse por conhecer e traduzir o poema de Schiller? Obviamente, não podemos afirmar isso, mas se trata de uma hipótese interessante. O poema Konrad Wallenrod é dividido em seis cantos – “Élection”, “La Récluse”, “L’entretien”, “Orgie”, “Une croisade” e “Les Adieux”, na tradução de Ostrowski – que narram a história de Wallenrod, que fora capturado pela Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, inimigos de sua nação, e por eles criado dentro da fé cristã. Wallenrod ascende à posição de Grão-Mestre da Ordem Teutônica para, da mais alta posição de comando, vingar seu povo levando deliberadamente a ordem que comanda a uma grande derrota militar, traição que lhe rende a 388 TIEGHEM, 1969, p. 205 194 pena de morte, da qual escapa cometendo suicídio quando sua companheira se recusa a acompanhá-lo na fuga. Trata-se, portanto, de uma personagem claramente byroniana, que possui características ainda mais nobres que as criadas pelo próprio Byron: Wallenrod é um herói que sofre e se sacrifica por um bem maior do que si mesmo. Alpujarra, a balada que Machado traduz, é cantada pelo próprio Konrad Wallenrod durante uma noite de festas – no canto “Orgie” – e logo após os presentes ouvirem um relato de um velho bardo que evoca a própria condição de Wallenrod: um traidor infiltrado que derrota seus inimigos unindo-se a eles. A canção escolhida por Wallenrod, em tom de resposta ao bardo que há pouco narrara uma história semelhante à sua, como se dissesse que entendera a alusão a si próprio, reforça o tema do relato anterior e é uma forma de Wallenrod admitir ser ele mesmo um traidor, sem deixar cair sua máscara, ao tratar da derrota dos muçulmanos e a tomada do castelo de Alpujarra pelos espanhóis. O líder muçulmano, Almansor, se entrega e pede para falar com os chefes dos vencedores, prostra-se diante deles e diz estar disposto a, unido a eles, professar a fé cristã. Esta é a última estratégia de Almansor para infligir seu golpe final sobre os inimigos: fingindo rendição, afeto e conversão, ao cumprimentá-los com abraços e beijos, transmite-lhes a peste negra, condenando-os à morte. Estamos, portanto, diante de um poema que faz amplo uso das máscaras sociais como forma de ascensão ao poder e à aceitação social, embora voltado principalmente para a representação de uma figura nobilíssima, que entrega sua própria vida, que entra em profundo conflito com seus mais caros valores, em prol de um bem maior. É possível, portanto, especular um pouco e ir além de Massa nos motivos que podem ter ensejado a inclusão de “Alpujarra” em Crisálidas: sob a roupagem de uma defesa patriótica e da soberania nacional, com a “desculpa” de apresentar um modelo aos jovens que defendiam a nação, o que se apresenta também é um interessantíssimo estudo da índole do homem, do uso da dissimulação para se conseguir os objetivos desejados, algo que qualquer leitor atento de Machado de Assis reconhecerá facilmente em diversos momentos de sua obra ficcional. Na sua versão, Machado de Assis escreve dezesseis quadras em versos decassílabos heroicos e sáficos não rimados. A de Ostrowski possui dezoito quadras de versos decassílabos e octossílabos, com rimas no esquema ABAB, ambas reproduzidas abaixo: Quadro comparativo 12 – “Alpujarra” e versão francesa de “Alpuhara” de Mickiewicz Alpujarra (Mickiewicz- 1862) Alpuhara Ballade Jaz em ruínas o torrão dos mouros; Déjà du Christ l’étendard triomphant 195 Pesados ferros o infeliz arrasta; Inda resiste a intrépida Granada; Mas em Granada a peste assola os povos. Des Maures a vu fuir le reste ; Seule et sans peur Grenade se défend, Mais Grenade en proie à la peste. Cum punhado de heróis sustenta a luta Fero Almansor nas torres de Alpujarra; Flutua perto a hispânica bandeira; Há de o sol d’amanhã guiar o assalto. Almanzor seul des tours d’Alpuhara Sème d’atroces funérailles ; Demain, le chef espagnol les prendra, Car demain il monte aux murailles. Deu sinal, ao romper do dia, o bronze; Arrasam-se trincheiras e muralhas; No alto dos minaretes erguem-se as cruzes; Do castelhano a cidadela é presa. Voici le jour !... Déjà des toutes parts Le canon gronde, le fer brille; Déjà la croix flotte sur les remparts : En avant, Burgos et Castille ! Só, e vendo as coortes destroçadas, O valente Almansor após a luta Abre caminho entre as imigas lanças, Foge e ilude os cristãos que o perseguiam. Le roi, voyant ses meilleurs chevaliers Morts ou prisonniers, prend la fuite Vole à travers champs, manoirs et halliers Des vainqueurs trompant la poursuite. Sobre as quentes ruínas do castelo, Entre corpos e restos da batalha, Dá um banquete o Castelhano, e as presas E os despojos pelos seus reparte. Campéador fait servir un festin Au milieu des palais en flammes ; Les Espagnols partagent le butin, Appellent du vin et des femmes. Eis que o guarda da porta fala aos chefes: “Um cavaleiro, diz, de terra estranha Quer falar-vos; notícias importantes Declara que vos traz, e urgência pede.” Soudain la garde annonce aux généraux Qu’un Maure au sinistre visage, Sans doute un prince, un guerrier, un héros, S’avance et présente un message. Era Almansor, o emir dos Muçulmanos, Que, fugindo ao refúgio que buscara, Vem entregar-se às mãos do Castelhano, A quem só pede conservar a vida. C’est Almanzor, le chef des musulmans ! Qui, voyant Grenade asservir, Vient se livrer à la foi des serments Et ne demande que la vie. “Castelhanos, exclama, o emir vencido No limiar do vencedor se prostra; Vem professar a vossa fé́ e culto E crer no verbo dos profetas vossos. « Fiers Espagnols, je reviens dans ce lieu « Converti par tant de défaites, « Bénir vos lois, adorer votre Dieu, « Croire enfin à tous vos prophètes. “Espalhe a fama pela terra toda Que um árabe, que um chefe de valentes, Irmão dos vencedores quis tornar-se, E vassalo ficar de estranho cetro!” « Vous triomphez ! Allah ! c’était écrit. « Qu’il soit dit par toute la terre « Qu’hier un prince, à présent un proscrit, « Du chrétien sera tributaire. » Cala no ânimo nobre ao Castelhano Um ato nobre... O chefe, comovido, Corre a abraçá-lo, e à sua vez os outros Fazem o mesmo ao novo companheiro. Les Espagnols estiment la valeur ; Chacun, déplorant sa disgrâce, Lui tend la main, console son malheur : Le roi salue et l’embrasse. Às saudações responde o emir valente Com saudações. Em cordial abraço Aperta ao seio o comovido chefe, Toma-lhe as mãos e pende-lhe dos lábios. Lui dans ses bras étreint tour à tour ; Et dans un baiser plein de fièvre, Au souverain témoignant son amour, L’embrasse et se pend à sa lèvre. Súbito cai, sem forças, nos joelhos; Arranca do turbante, e com a mão trêmula O enrola aos pés do chefe admirado, E junto dele arrasta-se por terra. Puis il chancelle, il pâlit en tombant ; Mais sa main tremblante, ó mystère ! Aux pieds du prince attache son turban : Il rampe après lui sur la terre. Os olhos volve em torno e assombra a todos: Sur l’assemblée il jette ses regards 196 Tinha azuladas, lívidas as faces, Torcidos lábios por feroz sorriso, Injetados de sangue ávidos olhos. Pleins d’un feu sinistre et farouche ; Un rire affreux crispe ses traits bagards : L’écume a jailli par sa buche. “Desfigurado e pálido me vedes, Ó infiéis! Sabeis o que vos trago? Enganei-vos: eu volto de Granada, E a peste fulminante aqui vos trouxe.” « Regardez-moi tous, je vous ai trahis. « Giaours ! Almanzor vous déteste ! « Je vais mourir ; Grenade est mon pays : « Je suis l’envoyé de la peste ! « Dans un baiser j’ai transmis à vos cœurs « Le feu mortel qui me dévore. « Vous mourrez tous comme moi, mes vainqueurs ! « Voici la vengeance du Maure ! » Il tord ses bras, se roule à leurs genoux ; Le sang inonde sa prunelle : Contre son cœur il veut les presses tous D’une étreinte horrible, éternelle ! Ria-se ainda – morto já́ – e ainda Abertos tinha as pálpebras e os lábios: Um sorriso infernal de escárnio impresso Deixara a morte nas feições do morto. Il rit encore avec férocité ; Son regard pâlit et s’efface : Riant, il meurt : et pour l’éternité Ce rire est figé sur sa face. Da medonha cidade os castelhanos Fogem. A peste os segue. Antes que a custo Deixado houvessem de Alpujarra a serra, Sucumbiram os últimos soldados. L’Espagnol fuit ; mais la mort suivra : Une mort honteuse et funeste. Sujet ou prince, autour d’Alpuhara Rien ne doit survivre à la peste ! Fonte: Assis (1976); Mickiewicz (1859) Percebe-se, portanto, que faltam duas estrofes à tradução de Machado, as destacadas em itálico na tradução de Ostrowski, ausência que Massa atribuiu ao excesso de violência da cena omitida, que poderia chocar os leitores do Jornal das Famílias389. O poema de Mickiewicz em tradução de Ostrowski é, decerto, carregado de violência e de intensa carga dramática. Estamos diante da narrativa dos últimos momentos do mouro Almanzor, que vê seu reino cair diante da invasão espanhola ao mesmo tempo em que é assolado pela peste negra. Nas primeiras estrofes somos apresentados a um Almansor que luta ferozmente para proteger o que resta das torres de Alpujarra enquanto vê seus últimos guerreiros morrer. Mais à frente, descobrimos que um mouro de aspecto sinistro, mas que parece alguém de elevada posição social, se entrega aos espanhóis e pede para ser levado aos comandantes dizendo-se convertido ao cristianismo e disposto a servir os conquistadores. Os espanhóis alegram-se com a rendição e Almansor é saudado com beijos e abraços. Após cumprimentar o soberano espanhol, Almansor cambaleia e cai, tomado de febre, rastejando atrás do monarca e lançando sobre todos um olhar cheio de ódio, rindo assustadoramente e espumando pela boca. Almansor então admite que se entregou com o único propósito de 389 MASSA, 2008, p. 76 197 transmitir a peste aos inimigos numa atitude que lembra o presente dos gregos aos troianos. Nas estrofes não traduzidas por Machado de Assis descobrimos que com um beijo Almansor havia transmitido aos conquistadores a peste que o mataria, mas também daria fim a todos os demais, executando sua vingança. Almansor então se contorce e sangra, desejando abraçar a todos e, assim, transmitir-lhes a peste negra. O mouro morre sorrindo, sabendo que a peste negra perseguirá até o último espanhol, seja ele nobre ou não. Evidentemente, há alterações pontuais na versão de Machado de Assis, com alguns acréscimos, supressões e divergências dos quais tomaremos alguns exemplos para comentarmos adiante, mas que em nada implicam em uma leitura diferente da que apresentamos. É nítido o quanto o poeta-tradutor buscou se ater ao sentido central do textofonte. Com o estudo que fizemos de “O casamento do diabo”, ao demonstrarmos que Machado quase certamente foi sincero ao afirmar que o texto era “imitado do alemão”, abriu-se o precedente de que Machado pudesse ter contado com a ajuda de amigos para intermediar sua leitura de textos em língua que desconhecesse, como o alemão naquele caso. Isso é algo que passamos a considerar em todas as outras traduções indiretas. Como não há nenhuma notícia de que Machado sequer tenha se interessado pelo estudo do polonês, e diante de sua admissão de que utilizou a versão francesa de Ostrowski, o caminho mais fácil seria limitar o estudo da tradução de Machado à comparação com a versão francesa indicada por ele, principalmente porque o autor diz não saber como esta versão corresponderia ao original. Todavia, o artigo de Edgar C. Knowlton, Jr., “Mickiewicz and Brazil’s Machado de Assis”, de publicado no periódico The Polish Review em 1981, traz uma leitura instigante sobre esta tradução de Machado. O autor chama a atenção para a falta de estudos sobre a influência do poeta polonês sobre os latino-americanos, e apresenta como evidência dessa influência o caso de Machado de Assis, de quem estuda os poemas “Polônia”, que traz uma epígrafe de Mickiewicz, e “Alpujarra”, ambos de Crisálidas. Sobre “Polônia”, que cita na íntegra e traduz em prosa livre, o crítico é breve e diz ser este um dos mais impressionantes poemas que Machado inclui em seu primeiro livro de poesia390. Todavia, o que sugere a partir de sua análise de “Alpujarra” desperta maior curiosidade e interesse: primeiramente, informa que na época em que Machado realiza sua tradução a versão de Ostrowski para o poema de Mickiewicz havia sido publicada em diferentes edições, o que o 390 KNOWLTON, Jr., Edgar C. “Mickiewicz and Brazil’s Machado de Assis”. The Polish Review, v. 26, n. 1, 1981, p. 51 198 leva a colocar em dúvida a afirmação de Jean-Michel Massa de que Machado de Assis “sem dúvida” utilizou a versão “de Christian Ostrowski, Paris, 1845, p. 315-316”391, sem explicar o que o levou a tal conclusão392. Informa ainda que há pelo menos quatro edições das traduções de Ostrowski, todas publicadas em Paris nos anos de 1841, 1845, 1849 e 1859, além de uma quinta, citada por ele anteriormente: trata-se de Adama Mickiewicza Konrad Wallenrod i Grażyna z przekładem francuskim Kryst. Ostrowskiego, angielskim Leona Jabłońskiego, de 1851, que traz o texto em polonês e duas traduções, a francesa de Ostrowski e outra para o inglês feita por Leon Jabłońskiego. Para Knowlton, Jr., se Machado de Assis teve acesso a essa edição, ele poderia ter utilizado as duas traduções para compor a sua versão, supondo que conhecia as duas línguas. Esta é a sua “hipótese atraente”: quando examina as correspondências palavra-por-palavra das versões polonesa, francesa, inglesa e brasileira, a sugestão de que Machado de Assis teria utilizado aquela edição se torna uma suposição interessante, ainda que deva ser vista com reservas. Reproduzimos a seguir, na íntegra, o quadro criado por Knowlton, Jr.393 para acompanhá-lo em suas conclusões e propor as nossas: Quadro comparativo 13 - Correspondências da tradução de Machado de Assis com as versões polonesa, francesa e inglesa Polonês Francês Inglês Português (Mickiewicz) (Ostrowski) (Jabłoński) (Machado de Assis) w gruzach Maurów źelaza jeszcze Ale w Grenadzie zaraza z garstką Alpuhary Jutro mur Jeden widząc groty ruinie ucztę rycerz z obcéj krainy nowiny muzułmanów w ręce źycie Hiszpanie Waszym prorokom 391 Des Maures chains still la peste the plague D’Alpuhara Demain Alpuhara’s walls voyant un festin Campéador un message des musulmans la vie Espagnols vos prophètes MASSA, 2008, p. 111 KNOWLTON, Jr., Op. Cit., p. 54 393 KNOWLTON, Jr., 1981, p. 54-55 392 lances ruins a feast life Spaniards em ruínas dos mouros ferros Inda Mas em Granada a peste com punhado de Alpujarra amanhã Muralhas Só Vendo Lanças Ruínas um banquete um cavaleiro da terra estranha Notícias dos Muçulmanos às mãos a vida Castelhanos profetas vossos 199 Że Arab Wassalem tributaire inni towarzysza ręce Na ustach jego Fonte: Knowlton, Jr (1981) vassal the rest his hand upon his lips Que um árabe Vassalo os outros Companheiro as mãos dos lábios A partir do exame do quadro acima, Knowlton, Jr. observa que há muito em comum entre a versão inglesa e a de Machado de Assis, assim como há casos em que Machado está mais próximo do texto polonês do que mesmo as versões inglesa ou francesa, daí sua sugestão de que Machado poderia ter utilizado as versões traduzidas como guia que não seria seguido à risca, mas utilizado em cotejo com o texto em polonês394. Observemos os números mais atentamente por um instante: dos 29 casos sugeridos por Knowlton, Jr., oito só possuem correspondentes diretos com o texto inglês, sete só possuem correspondente direto com o texto francês e apenas três possuem correspondentes tanto no texto inglês quanto no francês. São particularmente interessantes as sete escolhas de Machado não possuem correspondente nas versões inglesa ou francesa, e que, tomadas isoladamente, são traduções diretas e praticamente literais dos termos poloneses. É curioso notar ainda o considerável equilíbrio entre aquilo que Machado poderia ter pinçado ora do texto francês, ora do inglês, ora do polonês. É possível que nunca tenhamos certeza a respeito do texto-fonte utilizado por Machado de Assis, mas admitir unicamente a fonte indicada por Massa a partir da nota que o próprio Machado de Assis deixou é algo certamente problemático. Vejamos, por exemplo, a primeira estrofe do poema, que contém dois exemplos de que, segundo Knowlton, Jr., Machado teria consultado diretamente o texto polonês, e outro que teriam vindo da versão inglesa: Jaz em ruínas torrão dos mouros; Pesados ferros o infeliz arrasta; Inda resiste a intrépida Granada; Mas em Granada a peste assola os povos.395 Już w gruzach leżą Maurów posady, Naród ich dźwiga żelaza, Bronią się jeszcze twierdze Grenady, Ale w Grenadzie zaraza.396 394 KNOWLTON, Jr., 1981, p. 55 ASSIS, 1976, p. 211 396 MICKIEWICZ, Adam. Konrad Wallenrod i Grażyna z przekładem francuskim Kryst. Ostrowskiego, angielskim Leona Jabłońskiego. Paris: W Drukarni Benard I SPki Niegdyś Lacrampe I SPki , 1851, p. 110 395 200 Destacamos em itálico os trechos que Knowlton, Jr. sugere terem sido traduzidos diretamente do polonês. Há a possibilidade de que o primeiro verso fosse traduzido exatamente daquela forma, sem que Machado tivesse visto o texto polonês, por mera coincidência, mas seria imprudente rechaçarmos a possibilidade. Nos primeiros versos da versão de Ostrowski lemos: Déjà du Christ l’étendard triomphant Des Maures a vu fuir le reste Seule et sans peur Grenade se défend, Mais Grenade en proie à la peste.397 Ao passo que na tradução inglesa do mesmo volume encontramos: Low lie the forts of the vanquished Moor; He groans’ neath the chains of the conqueror. Grenadas regal citadel Fiercely beleaguered, holds out still But the plague is raging there.398 Knowlton, Jr. observa que somente no texto polonês há a informação de que o castelo estava em ruínas, e que, portanto, Machado teria conhecido o texto. Entre tal possibilidade e a de que a tradução é fruto de mera coincidência, preferimos a hipótese de Knowlton, Jr. neste caso. Porém, ele também sugere que “Mas em Granada” na tradução de Machado teria vindo diretamente de “Ale w Grenadzie” que, embora seja de fato traduzível daquela forma, a versão francesa, “Mais Grenade”, é igualmente próxima, diferenciando-se somente pela ausência da preposição “w”/“em”. É igualmente concebível que no caso em questão Machado tivesse se valido também da versão inglesa, mais expansiva no trecho, mas que também utiliza a conjunção adversativa no verso “But the plague is raging there”, sendo que “there” refere-se, obviamente, a Granada. Menos convincente, portanto, do que o caso anterior. Por outro lado, as sugestões de que Machado teria consultado primariamente a versão inglesa em outros casos da mesma estrofe são igualmente convincentes: “Pesados ferros o infeliz arrasta” de fato parece provir de “He groans’ neath the chains of the conqueror”, assim como “holds out still” ecoa diretamente em “Inda resiste”. Nos dois primeiros versos da estrofe seguinte também temos na tradução de Machado fortes indícios de que teria consultado o texto polonês conforme sugere Knowlton, Jr., embora a versão inglesa também seja próxima da tradução de Machado, enquanto a francesa 397 398 MICKIEWICZ, 1851, p. 110. Ibid. 201 definitivamente não contém a mesma informação que as demais. Vejamos o trecho nas três línguas, com o destaque em itálico na informação que nos interessa: Broni się jeszcze z wież Alpuhary Almanzor z garstką rycerzy,399 In Alpuhara’s towers, a band With the brave Almanzor still keeps their stand.400 Cum punhado de heróis sustenta a luta Fero Almansor nas torres de Alpujarra;401 Na versão de Ostrowski, ao contrário das demais como se lê acima, Almansor está “só” (“seul”); na tradução para o inglês há duas referências ao fato de que Almansor não está, de fato, só: “a band” e “their stand”; Machado é o único que traduz literalmente o que está no texto polonês: “z garstką” pode ser vertido exatamente como “com um punhado de”. Assim, a tradução de Machado mostra-se bastante próxima do texto polonês, do qual inverte a informação que está nos dois primeiros versos da segunda estrofe. Conclui-se que a sugestão da consulta direta ao texto polonês instiga a imaginação, mas é preciso cautela. Se de fato utilizou o texto francês, poderia ter chegado a tais resultado com o auxílio de algum conhecido – como provavelmente fizera em traduções a partir do alemão – ou mesmo com o auxílio dicionários, considerando que os trechos que supostamente são traduções diretas do polonês não apresentam grande dificuldade, principalmente se lidos ao lado de versões para outros idiomas melhor conhecidos, o que podemos afirmar com base em nossa própria experiência estudando esses versos sem saber polonês, contando unicamente com o auxílio de obras de referência. Independente de qual ou quais fontes tenha utilizado, a versão de Machado de Assis é um poema que se destaca entre os que compõem Crisálidas pelo forte tom nacionalista, que só é encontrado em “Epitáfio do México” e “Polônia”, este igualmente inspirado em Mickiewicz. “Alpujarra” traduz finamente, na forma e no tom, a balada polonesa, à qual dá nova roupagem: mantêm-se as quadras, mas o metro passa ser exclusivamente o decassílabo italiano, e as rimas cruzadas dão lugar ao verso branco, emprestando matizes classicizantes ao relato, como fizera antes com “A jovem cativa”. Assim, Machado nos diz que não entende a tradução como necessária rigorosa reprodução de conteúdo e forma conforme as medidas do texto-fonte, mas como uma criação independente de um poema ao mesmo tempo autônomo e com diferenças 399 MICKIEWICZ, 1851, p. 110 Ibid. 401 ASSIS, 1976, p. 211 400 202 marcadas em relação ao texto-fonte, embora ainda mantenha estreita relação com ele. Desta forma, o poeta-tradutor Machado de Assis demonstra ser capaz de colocar em prática algo postulado por Meschonnic: “[...] Traduzir segundo o poema no discurso é traduzir o recitativo, a narração da significância, a semântica prosódica e rítmica, não a estúpida palavra a palavra que os alvejadores veem como a procura do poético.”402 Percebemos seu sucesso neste sentido quando vemos que seu poema não está apegado ao palavra-a-palavra da tradução de Ostrowski, mas consegue, justamente a partir dos distanciamentos, reencenar a batalha e a vingança de Almansor. O mérito de Machado de Assis, contudo, não se limita a isso. Na sua História da Literatura Polonesa, Henryk Siewierski identifica em “A mãe do cativo”, de Castro Alves, aquele que foi “talvez o primeiro contato entre a poesia brasileira e a polonesa”: No dia 24 de junho de 1868, Castro Alves terminou de escrever um poema iniciado alguns anos antes por Adam Mickiewicz. “A mãe do cativo” de Castro Alves começa com a transcrição de duas estrofes do poema “A mãe polonesa” (“Do Matki Polki”) de Adam Mickiewicz em tradução francesa e continua com a sua paráfrase.403 Pensando cronologicamente, é mais provável que o mérito pelo primeiro contato caiba a Machado de Assis, que cinco anos antes, em março de 1863 publica n’O Futuro “O acordar da Polônia”, também com epígrafe de Mickiewicz em português, poema aproveitado em Crisálidas (1864) com o título alterado para “Polônia”, mantendo a epígrafe. Machado de Assis certamente tinha algum apreço pelo seu poema, pois o revisou antes de incluí-lo em Crisálidas, alterando-lhe o título e alguns versos, mantendo-o na sua edição final em Poesias completas. É certo que o poema de Machado de Assis não dialoga com Mickiewicz da mesma forma e com a mesma intensidade de Castro Alves, que associa o jugo estrangeiro sobre a pátria mãe à situação de privação de liberdade do escravo. Siewierski sugere inclusive que o poema de Castro Alves “[...] não deixa de ser uma espécie de tradução do poema de Mickiewicz: uma tradução imperfeita, indireta, porém fiel”404, identificando a fidelidade na “[...] preservação da estrutura retórica do original, na transposição de seus motivos principais e nas semelhanças do ritmo e do verso, mas, antes de tudo, na analogia estabelecida entre a situação da mãe polaca e a mãe do cativo”405. Machado de Assis não parecia ser muito afeito aos arroubos nacionalistas comuns a outros românticos. Antes da publicação de Crisálidas, são poucos os poemas que podemos 402 MESCHONNIC, 2010, p. XXXII SIEWIERSKI, 2000, p. 86 404 Ibid., p. 87 405 SIEWIERSKI, Op. Cit., p. 87 403 203 listar ao lado de “Epitáfio do México” e “Polônia”. Um desses é “À Itália”, publicado no Correio Mercantil em 10 de fevereiro de 1859. Trata-se de um poema de dezesseis estrofes decassilábicas, em que pede o retorno da Itália à sua antiga glória no refrão que se repete nos dois últimos versos das estrofes pares: “Pálida Itália – ressuscita agora/ O ardor nos peitos – na esperança a fé”406. Em “À Itália” encontramos também uma referência, na décima segunda estrofe, à situação polonesa, que Machado cantará anos mais tarde no poema que entra em Crisálidas: Olha, a Polônia escravizada chora: E o sol dos livres inda espera e vê. Pálida Itália – ressuscita agora – O ardor nos peitos – na esperança a fé.407 O outro poema é “Hino Patriótico”, publicado na Semana Brasileira e no Diário do Rio de Janeiro em 18 de janeiro de 1863. Escrito em onze quadras de versos em redondilha maior, sendo as estrofes ímpares o estribilho que se alterna com as estrofes pares, o poema de Machado é clara referência à “Questão Christie”xxxi, expressando o inconformismo do povo brasileiro diante das reparações que a Inglaterra exigia, tendo gozado de boa recepção conforme os registros da época. Na avaliação do biógrafo Magalhães Júnior, “[o] hino de Machado de Assis, contribuição de um moço vibrante e cheio de patriotismo, devia ter soado, naquele momento, como uma clarinada cívica, despertando entusiasmo entre os frequentadores dos teatros da Corte”408. Como a data de composição de “Epitáfio do México” é incerta, é provável que “Hino Patriótico” abra o ciclo de poemas nacionalistas que ensejará a criação de “Alpujarra”. “O Acordar da Polônia” foi publicado em março de 1863, “Alpujarra” em julho daquele ano, e de “Epitáfio do México” sabemos que foi publicado pela primeira vez em novembro do mesmo ano no Diário do Rio de Janeiro. Assim, “Alpujarra” insere-se nesse conjunto de poemas com temas nacionalistas. Em “Epitáfio do México” o poeta está dizendo que é necessário que os povos sejam respeitados em suas individualidades e à sua inalienável liberdade, com “Polônia” o poeta continua o discurso do poema anterior, levantando-se contra o império russo que não respeita a liberdade dos poloneses. O poema remete a Mickiewicz não só na epígrafe, mas nas referências às marcas da poesia de Mickiewicz e do romantismo polonês, conforme Siewierski expõe: o messianismo 406 ASSIS, 2009, p. 448 ASSIS, 2009a, p. 449 408 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 1, p. 218 407 204 que atribui à Polônia uma missão salvadora, a nação crucificada à semelhança de Cristo e sua ressurreição, que levaria paz e liberdade a todas as nações409. A epígrafe do poema funciona como uma chave de leitura: “E ao terceiro dia a alma deve voltar ao corpo, e a nação ressuscitará”410; a Polônia é tratada como “mãe”, assim como nos poemas de Mickiewicz e Castro Alves: Em teu ventre de mãe, a liberdade Parecia soltar esse vagido Que faz rever o céu no olhar materno;411 As referências à ressurreição e à liberdade aparecem na última estrofe do poema de Machado, uma das mais belas do poema: Pobre nação! – é longo o teu martírio; A tua dor pede vingança e termo; Muito hás vertido em lágrimas e sangue; É propícia esta hora. O sol dos livres Como que surge no dourado Oriente. Não ama a liberdade Quem não chora contigo as dores tuas; E não pede, e não ama, e não deseja Tua ressureição, finada heroica!412 “Alpujarra”, na medida em que é reescrita de Mickiewicz, é a inserção por Machado de Assis de um pouco da literatura polonesa na nossa, um gesto ofertório por parte do nosso poeta que expande os horizontes da poesia de Mickiewicz e, consequentemente, da nossa poesia. Por meio da tradução, Machado de Assis renova a si mesmo, pois, como bem colocou Massa, com “Alpujarra” “[...] Machado atinge uma violência que não é habitual em sua poesia (violência que estará ainda mais marcada na tradução do canto XXV da Comédia)”413. Com esta que é a última das traduções de Crisálidas Machado de Assis nos ensina que a tradução poética, para além de não precisar ser necessariamente reprodução de forma e conteúdo, pode e deve ajudar a expandir os horizontes poéticos de quem e para quem traduz por meio de experimentações temáticas ou formais. Neste caso, se considerarmos válida a hipótese de Knowlton, Jr., a lição de Machado de Assis torna-se ainda mais interessante na medida em que a possibilidade de ter se servido de mais de uma versão, em diferentes idiomas, para compor a sua mostra que a poesia não está presa a uma determinada língua, cultura, povo ou poeta, mas a serviço daquele que souber utilizar as ferramentas de que dispõe para reencenar 409 SIEWIERSKI, 2000, p. 76 ASSIS, 2009a, p. 41 411 Ibid., p. 42 412 ASSIS, 2009a, p. 43 413 MASSA, 2008, p. 77 410 205 a obra poética. Assim, a tradução é elevada do patamar do decalque, da mera reprodução servil de um texto estrangeiro para a recriação poética que segue um caminho que é próprio de quem traduz. 206 7. As traduções de 1865-1869 As três traduções que incluímos neste capítulo apareceram entre a publicação de Crisálidas e a de Falenas, não tendo sido recolhidas em nenhuma das obras que Machado de Assis publicou em vida. São poemas que, embora guardem pouca relação com o restante da obra do poeta-tradutor, reforçam seu interesse por diversas culturas literárias: em um espaço de apenas quatro anos temos incursões pelos domínios da literatura alemã, norte-americana e chilena. Vê-se, portanto, que o poeta-tradutor deixa de gravitar quase que exclusivamente em torno do domínio francês, especialmente quando se considera que mesmo as traduções de Crisálidas que não pertenciam à literatura francesa foram traduzidas pelo intermédio da língua francesa. Se ainda não é possível dizer que a esta altura Machado de Assis já sabia alemão, a considerar as traduções “Lua da estiva noite” e “O primeiro beijo” pode-se dizer, com alguma segurança, que já possuía um conhecimento corrente das línguas inglesa e espanhola. 7.1 “O rei dos ôlmos” Na edição nº 241 da Semana Ilustrada, publicada em 23 de julho de 1865, encontra-se, logo após uma das crônicas do Dr. Semana – pseudônimo utilizado também por Machado de Assis – uma tradução de um poema de Goethe, “O rei dos ôlmos (Balada de Goethe)”, assinado por Y. Galante de Sousa não inclui esta tradução na sua Bibliografia de Machado de Assis. Apesar de acreditarmos na hipótese de Magalhães Júnior, mesmo considerando que o pseudônimo “Y.” tem precedentes na produção de Machado, devemos nos manter abertos à possiblidade de não ser, afinal, obra dele. Reproduzimos a seguir o poema ao lado do textofonte alemão: Quadro comparativo 14 – “O rei dos ôlmos” e “Erlkönig” O rei do ôlmos (Balada de Goethe) Erlkönig – Johann Wolfgang von Goethe Por noite e vento quem cavalga a est’hora? É o pai com seu filho: ei-lo que avança! Nos seus braços conduz e leva agora Contra o peito a aquecer sempre a criança. Wer reitet so spät durch Nacht und Wind? Es ist der Vater mit seinem Kind; Er hat den Knaben wohn in dem Arm, Er faβt ihn sicher, er hält ihn warm. 207 - Meu filho, porque escondes tão medroso No meu seio o teu rosto? – Pai, não vês? O rei dos ôlmos com coroa e cauda? - Meu filho, isto é a neblina ali talvez. Mein Sohn, was birgst du so bang dein Gesicht? “Siehst, Vater, du den Erlkönig nicht? Den Erlenkönig mit Kron und Schweif?” Mein Sohn, es ist ein Nebelstreif. “Meu querido menino, vem comigo! “Na praia há muitas flores matizadas; Lindos brinquedos brincarei contigo; Minha mãe te fará vestes douradas.” ‘Du liebes Kind, komm, geh mit mir! Gar schöne Spiele spiel ich mit dir Manch bunte Blumen sind an dem Strand. Meine Mutter hat manch gülden Gewand.’ - Meu pai, não ouves o que o rei dos ôlmos Baixinho me promete e diz-me a mim? - Acalma-te, meu filho, a voz do vento Nas folhas secas murmuram assim. “Mein Vater, mein Vater, und hörest du nicht, Was Erlenkönig mir leise verspricht?” Sei ruhig, bleibe ruhig, mein Kind; In dürren Blättern säuselt der Wind. “Queres, gentil menino, vir comigo? “Minhas filhas de ti terão cuidado; “O ril noturno dançarão contigo, “Dormirás por seus cantos embalado” ‘Willst, feiner Knabe, du mit mir gehn? Meine Töchter solln dich warten schön; Meine Töchter führen den nächtlichen Reihn, Und wiegen und tanzen und singen dich ein.’ - Meu pai, meu pai, do rei dos ôlmos as filhas Naquele escuro tu não vês além? - Meu filho, aquilo são salgueiros velhos Que ao longe alvejam – eu os vejo bem. “Mein Vater, mein Vater, und siehst du nicht dort Erlkönigs Töchter am düstern Ort?” Mein Sohn, mein Sohn, ich seh es genau; Es scheinen die alten Weiden so grau. “Teu formoso perfil de amor me cega! “Se não vens por vontade, eu serei forte.” - Meu pai, meu pai! Agora ele me pega! O rei dos ôlmos fez-me um mal de morte! ‘Ich liebe dich, mich reizt deine schöne Gestalt; Und bist du nicht willig, so brauch ich Gewalt.’ “Mein Vater, mein Vater, jetzt fasst er mich an! Erlkönig hat mir ein Leids getan!” Arrepia-se o pai, e avança e avança Com seu filho a gemer, inda absorto! A custo e com trabalho a casa alcança; Nos seus braços o filho estava morto.414 Dem Vater grauset’s, er reitet geschwind, Er hält in Armen das ächzende Kind, Er reicht den Hof mit Mühe und Not; In seinen Armen das Kind war tot. Fonte: Goethe (1865); (1966) Sabe-se que esta mesma assinatura, “Y.”, foi utilizada por Machado de Assis anteriormente, conforme relato do biógrafo Raimundo Magalhães Júnior: O que aconteceu com “O casamento do Diabo” deve ter acontecido com a tradução da balada de Goethe, “Erlkönig”, publicada com o título de “O rei dos olmos”, no nº 241 da Semana Ilustrada, a 23 de julho de 1865, e assinada com a letra “Y”. Assim Machado assinou, em 1864, versos alusivos ao casamento da Princesa Isabel e, cinco anos mais tarde, voltaria a utilizá-la no Jornal do Commercio, a 29 de julho e a 28 de agosto de 1870, ao publicar trechos da elegia indianista “Potira”, em versos brancos.415 Supondo que este seja de fato um dos poemas de Machado, teríamos assim mais uma tradução dele que não fora coligida ou relacionada por Jean-Michel Massa ou Eliane Ferreira. Considerando ainda a presumível colaboração com Fleuiss, é provável que esta seja mais uma das traduções chamadas “alimentares” por Massa, fruto de trabalho que não teria sido 414 GOETHE, J. W. “O rei dos ôlmos”. In: SEMANA Ilustrada, n. 241, 23 jul 1865, p. 1925. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702951/1941. Acesso em: 20 ago. 2017. 415 MAGALHÃES JR., 2008, vol 1., p. 243 208 necessariamente, ou unicamente, iniciativa de Machado de Assis, embora não tenhamos meios para confirmar ou rechaçar esta possiblidade. Machado certamente não teria traduzido sozinho diretamente do alemão, visto que os seus estudos formais da língua de Goethe só começariam, a que sabemos, muito mais tarde, na década de 1880. Assim, só podemos supor com alguma segurança que esta tradução foi intermediada por alguém ou por outra tradução, como fizera nas traduções que utilizaram o francês como língua intermediária publicadas no ano anterior em Crisálidas ou depois em Falenas, em que o próprio Machado admite, categórico, não saber alemão. Esta balada de Goethe trata de uma criatura chamada Erlkönig, “rei dos olmos” na tradução de Machado, cuja representação é bastante comum em diversos poemas e baladas alemãs. No poema de Goethe, há dois personagens, pai e filho, que atravessam uma floresta a cavalo durante uma tempestade, o filho doente sendo carregado pelo pai. A criança parece ver a criatura e se assusta, enquanto o pai tenta acalmá-la dizendo ser apenas uma neblina. O menino insiste que está vendo a criatura que o chama para ir brincar com suas filhas, ao que o pai desmente acreditando ser somente uma alucinação do menino que está vendo árvores velhas e ouvindo o barulho das folhas. A visão do rei dos olmos permanece, e o menino crê estar sendo levado à força já que não foi voluntariamente. Quando a viagem acaba, o menino está morto. A tradução é bastante fiel à narrativa e mantém a tendência de optar por outros caminhos formais para trazer a balada de Goethe para o nosso idioma. Machado escolhe para sua tradução o metro decassílabo, ora heroico, ora sáfico, mas altera o esquema de rimas do poema alemão, que apresenta rimas emparelhadas por todo o texto. Na sua tradução, Machado utiliza rimas alternadas em cinco estrofes, enquanto nas outras três escolhe rimar somente o segundo e quarto versos de cada. Como compõe sua tradução em quadras, Machado pratica nesta tradução o que é descrito por Antônio Feliciano de Castilho no seu Tratado de Metrificação Portuguesa (1874): que quadras admitem que se rime o quarto verso com o segundo, ficando soltos o primeiro e o terceiro, bem como há quadras todas rimadas, em que o primeiro rima com o terceiro, e o segundo com o quarto, exatamente o que encontramos na tradução de Goethe416. Devemos considerar ainda que a escolha de rimar alternadamente seus versos confere um caráter mais congenial à poesia popular no Brasil, o que está de acordo com a proposta do texto, que é uma balada de tema folclórico. Há, também, o uso de rimas pobres, como na repetição do par “comigo/contigo” em duas estrofes, característica que não é só de Machado, já que Goethe 416 CASTILHO, Antônio Feliciano de. Tratado de metrificação portuguesa, seguido de considerações sobre a declamação e a poética. 4 ed. Porto: Livraria Moré-Editora, 1874, p. 132 209 também repete o par “Kind/Wind” na primeira e quarta estrofes, além do par “geschwind/Kind” na última estrofe, escolha que reflete o tom popular e mesmo folclórico da balada. A tradução de Machado de Assis ainda levanta outras questões quanto aos procedimentos adotados, sugerindo que ele possa ter tomado como intermédio a língua francesa. Um exemplo disso é a escolha de Machado para o título do poema que, no original alemão de Goethe é Erlkönig. Em alemão, o substantivo “König” que compõe o título significa “rei”, enquanto o outro, “Erl”, é de tradução problemática já que o termo não existe isoladamente em alemão. O “Erlkönig”, no folclore nórdico, é uma criatura mítica que habita as florestas e leva as crianças para a morte. Um dos tradutores deste poema de Goethe para o inglês, Edgar Alfred Bowring, escolheu manter a forma “Erl-King”417, que é a que se encontra dicionarizada atualmente na língua inglesa. De acordo com informação etimológica para o verbete “erlking” do Collins English Dictionary, a palavra alemã “Erlkönig”, de tradução particularmente complicada, pode ser aproximada de “alder king”, e teria sido cunhada em 1778 por Johanm Gottfried Herder a partir de uma tradução equivocada do dinamarquês “ellerkonge”, que significa “o rei dos elfos”. O título do poema de Goethe e o nome da criatura, “Erlkönig”, teriam seguido a palavra criada por Johann Gottfried Herder. O fato, contudo, é que o termo alemão “Erlkönig”, cunhado por Herder, não admite uma tradução unívoca e livre de debates. Mesmo traduzi-la para “alder king” em inglês tem seus problemas uma vez que o termo alemão para “alder” – uma espécie de árvore que em nosso idioma é conhecida como ulmeiro ou amieiro, e encontrada na península ibérica – é “Erle”, e não somente “Erl”, o que justifica a manutenção do termo “Erl-king”, como fez Edgar Bowring. De qualquer forma, já nos aproximamos da tradução de Machado de Assis, que também escolhe a referência a uma árvore – o olmo – em sua tradução de “Erlkönig” como “O rei dos olmos”, embora de outra espécie. Teria sido possível chegar a essa tradução somente a partir de uma versão traduzida livremente por Fleiuss e posteriormente poetizada por Machado de Assis? Não podemos afirmar, bem como não temos como refutar definitivamente esta hipótese. 417 GOETHE, J. W. The poems of Goethe: translated in the original meters. Trad. Edgar A. Bowning. London: George Bell and Sons, 1891, p. 102 210 Figura 6 - Reprodução da publicação de “O rei dos ôlmos” na Semana Ilustrada Fonte: Semana Ilustrada (1865) 211 É possível, contudo, levantar uma outra hipótese que soa igualmente válida, a que aludimos anteriormente. Há uma tradução para o francês de “Erlkönig”, de Jacques Porchat, que traduziu a obra de Goethe em 10 volumes. Machado inclusive possuiu em sua biblioteca os volumes com a tradução de Porchat, intitulados Œuvres de Goethe, conforme levantamento de Glória Viana (2001). Os volumes que foram de posse de Machado datam de 1869 a 1874; posteriores, portanto, à tradução de 1865. Certamente Machado não consultou os seus tomos, mas edições anteriores das Œuvres de Goethe em tradução de Jacques Porchat, como a que consultamos, datam pelo menos de 1861, e poderiam ter sido consultadas por ele em algum momento. Outra possibilidade é Machado ter consultado uma reprodução da versão de Porchat em periódicos da época, o que é não é de todo improvável. Porchat verte “Erlkönig” para “Le roi des aunes”418, bastante próximo sonoramente de “O rei dos olmos”, embora se refira corretamente à árvore cuja leitura seria possível no nome alemão, “aune”, que é o mesmo que o alemão “Erle”, o inglês “alder” ou o português “ulmeiro” ou “amieiro”. Logo, é possível sugerir que Machado teria trocado a espécie de árvore por uma questão de sonoridade se aceitarmos a hipótese de que sua versão se fez a partir da francesa. A versão de Porchat para “Erlkönig” foi escrita em prosa, e isto poderia ajudar a explicar o fato de Machado se distanciar formalmente da versão de Goethe, sem que isso signifique desconsiderar escolhas deliberadas do tradutor. Como escolhe traduzir em prosa, sem as preocupações de metro e rima, a versão de Porchat é bastante literalxxxii, o que não nos permitiu encontrar mais elementos que apontassem para o fato de que Machado traduziu a partir desta versão e não diretamente do alemão. Se por um lado o metro de Goethe é relativamente próximo dos versos decassílabos de Machado, apesar, é claro, das diferenças do método de contagem silábico-acentual da língua alemã, devemos levar em consideração que a escolha pelo verso de dez sílabas era uma das mais comuns nos poemas de Machado. Comparando as versões de Goethe e Machado, é possível perceber o quanto Machado reorganiza o texto em suas quadras, eliminando paralelismos e escolhendo um esquema de rimas diferente, que não se manterá fixo no decorrer do poema. Enquanto Goethe escolhe, em três dos quatro versos da quadra a seguir, começar sempre com a construção sujeito e verbo Wer reitet so spät durch Nacht und Wind? Es ist der Vater mit seinem Kind; Er hat den Knaben wohl in dem Arm, Er faßt ihn sicher, er hält ihn warm419. 418 GOETHE, J.W. Œuvres de Goethe. Tomo I. Trad. Jacques Porchat. Paris: Librarie de L. Hachette, 1861. p. 6263. 419 GOETHE, J. W; GRAY, Ronald. Poems of Goethe. New York: Cambridge University Press, 1966, p. 106 212 Machado em nenhum momento se aproxima desta construção, preferindo a adoção de enjambement nos dois últimos versos: Por noite e vento quem cavalga a est’hora? É o pai com seu filho: ei-lo que avança! Nos seus braços conduz e leva agora Contra o peito a aquecer sempre a criança420. Outra característica do texto de Goethe que não encontramos na versão de Machado – mas presente na de Porchat – é a repetição de algumas frases, como “Mein Vater, mein Vater”, que aparece três versos no texto alemão, mas que Machado mantém em somente dois, ou “Mein Sohn, mein Sohn”, que Machado simplifica para “Meu filho”, fazendo o mesmo com “Meine Töchter”, que inicia dois versos da quinta estrofe, enquanto na versão de Machado a tradução correspondente, “Minhas filhas”, só aparece uma vez. Há situações também em que Machado altera bastante a forma como as informações se apresentam em alemão, como no verso “Meine Mutter hat manch gülden Gewand”, que Porchat traduz por “Ma mère a maintes robes d’or” enquanto Machado prefere “Minha mãe te fará vestes douradas”. Outro caso em que Machado simplifica o texto alemão está nos dois últimos versos da quinta estrofe: Goethe escreve “Meine Töchter führen den Nacht lichen Reihn, / Und wiegen und tanzen und singen dich ein” que Machado transforma em “O ril noturno dançarão contigo, / Dormirás por seus cantos embalado”. Nos versos “Mein Sohn, mein Sohn, ich seh’ es genau / Es scheinen die alten Weiden so grau.”, Machado praticamente inverte a posição dos versos, mantendo somente o vocativo “Meu filho” na mesma posição ao traduzir por “Meu filho, aquilo são salgueiros velhos / Que ao longe alvejam – eu os vejo bem”. Logo, pensamos que não é de todo despropositado imaginar que Machado não trabalhou necessariamente a partir da versão francesa somente, ou do alemão somente, mas que o trabalho com ambos deve ficar dentro do campo do possível, ou até do provável. Este é um dado relevante, pois sugere que o poeta-tradutor pode ter buscado outras versões do mesmo texto, ou se apoiado em leituras de outros, como Fleiuss, como forma de ter acesso ao sentido do texto em cuja língua não podia ler ou de que tinha conhecimento insuficiente. Não é difícil encontrar outros exemplos de escolhas bastante pessoais no texto de Machado que o afastam do texto-fonte ao traduzir esta balada de Goethe. Neste caso em particular, considerando a hipótese de que tenha sido pressionado pelo tempo que tinha para realizar a tarefa, trabalhando com uma tradução em prosa de Fleuiss, de Porchat, com ambas, 420 “O rei dos ôlmos”. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, p. 1925, 23 jul. 1865. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/702951/1941 >. Acesso em: 27 jan. 2017. 213 ou ainda alguma outra que não conhecemosxxxiii, Machado escolheu o caminho da criatividade independente que soasse mais natural para si, o que nos leva em direção a um tradutor que aparenta estar mais preocupado com o resultado final do que com uma fidelidade estrita ao texto-fonte, seja ele uma retradução ou sua versão original. Berman afirma que se o tradutor “[...] escolher por patrão exclusivo o autor, a obra e a língua estrangeira, ambicionando ditá-los em sua pura estranheza a seu próprio espaço cultural, ele se arrisca a surgir como um estrangeiro, um traidor aos olhos dos seus”421. Machado de Assis claramente toma o caminho oposto neste caso: seu “patrão exclusivo” é a sua própria língua-cultura, escreve como e para os seus, mas sem perder de vista o texto traduzido. Devemos ter em mente que esta é a primeira tradução de poesia após a publicação de Crisálidas (1864), e já dá indícios de algo que veremos com mais frequência daqui em diante: o interesse pela literatura alemã, primeiro com Heine, agora com Goethe e depois Schiller, e uma gradativa aproximação de poetas de maior envergadura. Os objetivos e os resultados de Machado até agora demonstram e continuarão a demonstrar que o tradutor busca que seu texto seja visto como uma criação independente, que existe no lugar do outro, mas sem perder de vista a tradição poética local e sem adotar servilmente a forma estrangeira. 7.2 “Lua da estiva noite”xxxiv Lua da estiva noite, embora não esteja incluída em nenhuma edição das poesias de Machado que consultamos, não é desconhecida pela crítica machadiana. Trata-se de uma pequena composição em versos, em três estrofes, com versos hexassílabos dos quais o último de cada estrofe está desdobrado em dois, um de quatro e outro de duas sílabas. A serenata fora composta para ser cantada acompanhada de flauta e piano, com música de um dos amigos próximos a Machado de Assis, o pianista Artur Napoleão, que acompanhou a futura esposa de Machado, Carolina Xavier de Novaes, em sua vinda para o Brasil e que mais tarde seria seu padrinho de casamento. Eis o texto da composição: Lua da estiva noite, Que surges no horizonte: Vai por além do monte Cair! Cair! Cair! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! 421 BERMAN, 2002, p. 15 214 Dormir! Vento da estiva noite, Que andas soprando as vagas, Vai nas remotas plagas Rugir! Rugir! Rugir! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! Dormir! Sonho da estiva noite, Visão suave e bela, Vem sobre a fronte dela Sorrir! Sorrir! Sorrir! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! Dormir!422 Tomada isoladamente, a letra composta por Machado é uma típica serenata, com tema romântico que traz no estribilho – os três últimos versos de cada estrofe – uma jovem que cujo sono em uma noite quente de verão é ignorado pela lua que surge no horizonte e desaparece por detrás das montanhas, e depois pelo vento que sopra as ondas da praia e ruge ao longe, também alheio ao sono da moça. Na última estrofe, a jovem é visitada por em sonho por alguém que sorri sobre ela, que é a “visão suave e bela”. Parece ser o próprio poeta que, impedido de vir vê-la pessoalmente, vem visitá-la e sorri sobre a fronte dela, mas que, por estar longe, não a vê dormir. Na Correspondência de Machado de Assis: Tomo II, 1870-1889 (2009), na nota biográfica dedicada ao músico Artur Napoleão, encontramos somente uma menção a esta parceria entre Machado e o músico: “Da obra publicada, faz parte a serenata ‘Lua da estiva noite’, para canto, flauta e piano, com versos de Machado de Assis. A música, a viva inteligência e a paixão pelo xadrez ligaram, por cinco décadas, o pianista amigo de Carolina e o autor de Dom Casmurro”423. A partir dessa nota, particularmente da frase “com versos de Machado de Assis”, somos levados a acreditar que o texto é uma composição de autoria exclusiva de Machado, o que ocorre também em outros textos que consultamos. O que se pretende demonstrar aqui é que, embora os versos sejam de Machado, também são tradução – não identificada como tal por Jean-Michel Massa ou por Eliane Ferreira – de um poema do poeta norte-americano Henry Wadsworth Longfellow. 422 MORAES FILHO, Mello. Serenatas e saraus. Rio de Janeiro: Garnier, 1902, p. 110-111 ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo II, 1870-1889. Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; Reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL 2009, p. 476 423 215 No ensaio “Machado de Assis, a música, a ópera” (2011), do professor de Literaturas Portuguesa e Brasileira da Università di Roma Tor Vergata Aniello Angelo Avella, que trata da relação de Machado de Assis com a música, a referência feita à composição de que nos ocupamos aqui sugere o mesmo desconhecimento. Não há menção de que se trata de uma tradução de Machado de Assis, sendo listada entre outras de suas poesias, como “Lágrimas de Cera” ou “Coração triste falando ao sol” de Falenas, que também foram musicadas: Temos ainda uma serenata (canto, piano e flauta) que nasce da união de dois grandes talentos: Machado, autor dos versos, e Arthur Napoleão, um pianista português que chegou ao Rio de Janeiro em 1866 e em sociedade com Leopoldo Miguez fundou uma editora especializada em música. A serenata intitula-se “Lua da Estiva Noite”424 O mesmo tratamento é dado na tese de doutorado Machado de Assis em contos: uma constelação de partituras (2006), em que Auristela Crisanto da Cunha observa a manifestação da musicalidade em contos de Machado, sem mencionar que se trata de uma tradução, além do equívoco com a datação do texto: Sua prosa teria muito bem canalizado as diversas modalidades artísticas de que se mostrava conhecedor. Em 1865 compusera para ser musicada a letra da “Cantata da Arcádia”, ouvida de pé pelo imperador Pedro II, de cujo conteúdo restam apenas cinco versos esparsos. Antes disso, em 1863, havia composto um “Hino Patriótico”, visando angariar fundos para a subscrição nacional em favor do armamento; e mais tarde, 1880, uma serenata para piano e flauta, “Lua da estiva noite”.425 É na biografia de Raimundo Magalhães Júnior que encontramos as primeiras sementes de dúvidas a respeito desta composição. Segundo o biógrafo, “Não era um trabalho original, mas uma adaptação de poesia inglesa. Letra e música com o título ‘Lua da estiva noite’ – serenata para canto, flauta e piano – foram incluídas no álbum Ecos do passado, lançado em junho de 1867 [...].”426. Após reproduzir a letra da canção, o biógrafo afirma que esta parece ter sido a única colaboração entre Machado de Assis e o músico Artur Napoleão427. Em nota a esta passagem, ele corrige José Galante de Sousa que afirmara ser a composição de 1880, conclusão a que deve ter sido levado por uma notícia da seção “Bibliografia” da Revista Ilustrada, no n. 214 de 3 de julho daquele ano. Visto que o mesmo erro de datação aparece na tese de Auristela Cunha, é de se supor que ela também tenha consultado somente a obra de José Galante de 424 AVELLA, Aniello Angelo. “Machado de Assis, a música, a ópera”. In: MORUJÃO, Isabel; SANTOS, Zulmira. Literatura popular em Portugal e no Brasil: homenagem a Arnaldo Saraiva. Porto: CITCEM, 2011, p. 58 425 CUNHA, Auristela Crisanto da. Machado de Assis em contos: uma constelação de partituras. 2006. 174 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,2006, p. 44 426 MAGALHÃES JR., 2008, v. 2, p. 55, grifo nosso. 427 Ibid., p. 56 216 Sousa. Magalhães Júnior acrescenta ainda que Melo Moraes Filho a transcrevera no terceiro volume das Serenatas e saraus, publicada pela Garnier em 1902, como “tradução de Machado de Assis”428. A informação de que se trata de uma adaptação de língua inglesa, sem mencionar quem seria o autor estrangeiro, deve ter vindo de uma das crônicas do Dr. Semana, publicada em 9 de junho de 1867 – mesmo ano do lançamento do álbum de Artur Napoleão – no N. 339 da Semana Ilustrada: Concluo com uma nota interessante. O Sr. Narciso Braga com casa de pianos e músicas, á rua dos Ourives, acaba de publicar uma serenata de Arthur Napoleão. A serenata denomina-se Lua da estiva noute. A poesia é imitada do inglez pelo Sr. Machado de Assis429. De fato, encontramos no terceiro volume Serenatas e saraus (1902) a composição “Lua da estiva noite”, digitalizado pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, que vem acompanhada da seguinte informação: “Tradução de Machado de Assis”. Poder-se-ia argumentar, talvez, que se trata de um equívoco da edição ao publicar o texto da composição como uma “tradução”. Depois de consultarmos os três volumes, no entanto, verificamos que somente “Lua da estiva noite” é publicada com a informação de que se trata de uma “tradução” e não uma composição “original”. Em todos os outros casos, nos três volumes, ou não há indicação alguma de autoria, ou a canção é seguida da indicação “poesia de” seguida da indicação do autor da poesia. De posse destes dados, tentamos encontrar a fonte que Machado de Assis pudesse ter utilizado para compor os versos de “Lua da estiva noite”. Supondo, com base nos dados fornecidos na biografia de Magalhães Júnior e na informação trazida pela crônica citada acima, que se tratava de um poeta de língua inglesa, o próximo passo seria procurar o texto entre os poetas de língua inglesa por quem Machado se interessara. Sabíamos que Machado mostrara interesse pelo poeta inglês William Cowper quando jovem, chegando a publicar uma “imitação”, o poema “Minha mãe”. Outros poetas de língua inglesa também se destacam, como William Shakespeare, ou Edgar Allan Poe, sabidamente traduzidos por Machado. As primeiras investigações neste sentido, contudo, foram absolutamente infrutíferas. 428 MAGALHÃES JR., 2008, v. 2, p. 59-60 “Pontos e vírgulas”, Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, p. 2710, N. 339, 9 jun. 1867. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/702951/2712. Acesso em: 17 jan. 2019 429 217 Foi o professor José Américo Miranda que, após nosso pedido de ajuda, conseguiu identificar “Serenade”, de Longfellow, como o texto do qual partiu Machado de Assis para compor “Lua da estiva noite”, depois de se lembrar da insistência de Machado para que Quintino Bocaiúva, que estava então nos EUA, não se esquecesse dos exemplares da poesia de Longfellowxxxv. Verificada a fonte de Machado, foi possível correlacionar com outros dados biográficos: há na sua biblioteca, de fato, exemplares em inglês das poesias de Longfellow, os quatro volumes de The poetical works, de 1866 – mesmo ano, portanto, da correspondência de Machado e Bocaiúva – dos quais o primeiro está bastante manuseado430. Talvez seja mera coincidência, mas o primeiro volume de The poetical works é o que contém a peça “The Spanish Student”, e é na cena III desta peça que está o texto de “Serenade”. Tínhamos assim a coerência adequada entre os fatos: em 1866 Machado, por duas vezes, pede a Quintino Bocaiúva exemplares de Longfellow; supomos que o pedido tenha sido atendido uma vez que há na biblioteca de Machado de Assis exemplares de Longfellow daquele ano; no ano seguinte, 1867, “Lua da estiva noite” é publicada em Ecos do Passado. Longfellow ainda apareceria mais duas vezes na produção de Machado em momentos muito próximos entre si e do período da escrita de “Lua da estiva noite”, prova do interesse de Machado pelo poeta norte-americano na época. A primeira é no conto “Miss Dollar”, recolhido no volume Contos Fluminenses de 1869, e em 1870, como epígrafe do “Prelúdio” em Falenas. Outra referência a Longfellow aparecerá somente quase duas décadas mais tarde, no conto “O espelho” em Papéis Avulsos, de 1882. Observando o texto de “Serenade” e as correspondências entre este e “Lua da estiva noite” não resta dúvidas de que se trata da fonte em que Machado se baseou. Ignoramos, ainda, o motivo de não traduzir a primeira estrofe. Talvez a canção ficasse desnecessariamente longa, ou o tradutor tenha percebido que os versos não acrescentariam nada de imprescindível ao texto, ou, mais simplesmente, não tenha ficado satisfeito com o resultado, mas não saberemosxxxvi. Comparando-os lado a lado, observa-se imediatamente que, além da primeira estrofe não traduzida, as estrofes de Machado possuem um verso a mais: Quadro comparativo 15 – “Serenade” e “Lua da estiva noite” Serenade 1 Stars of the summer night 2 Far in yon azure deeps 3 Hide, hide your golden light 4 She sleeps! 430 VIANNA, 2001, p. 225 218 5 My lady sleeps! 6 Sleeps! 7 Moon of the summer night! 8 Far down yon western steeps, 9 Sink, sink in the silverlight! 10 She sleeps! 11 My lady sleeps! 12 Sleeps! Lua da estiva noite, Que surges no horizonte: Vai por além do monte Cair! Cair! Cair! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! Dormir! 13 Wind of the summer night! 14 Where yonder woodbine creeps, 15 Fold, fold thy pinions light. 16 She sleeps! 17 My lady sleeps! 18 Sleeps! Vento da estiva noite, Que andas soprando as vagas, Vai nas remotas plagas Rugir! Rugir! Rugir! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! Dormir! 19 Dreams of the summer night! 20 Tell her, her lover keeps 21 Watch! while in slumbers light 22 She sleeps! 23 My lady sleeps! 24 Sleeps! Sonho da estiva noite, Visão suave e bela, Vem sobre a fronte dela Sorrir! Sorrir! Sorrir! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! Dormir! Fonte: Longfellow (1893); Moraes Filho (1902) A partir da leitura do poema de Longfellow chega-se à mesma interpretação que demos anteriormente da letra de Machado de Assis, com a presença dos mesmos elementos – a lua, o vento, os sonhos – mas agora com a certeza de que na estrofe final o amante pede aos sonhos que digam a ela que ele mantém vigília enquanto ela dorme, a diferença mais sensível que encontramos entre as serenatas de Longfellow e de Machado de Assis. O primeiro verso de cada estrofe de “Lua da estiva noite” traduz perfeitamente os versos 7, 13 e 19 correspondentes no texto de Longfellow. Embora a versificação inglesa siga outro sistema de contagem, a correspondência métrica também é evidente: os versos hexassílabos de um, com acentos na 1ª e 6ª sílabas são igualmente encontrados no outro: MOON / of / the / SUM / mer / NIGHT; LU / A / da es / ti / va / NOI / te. No texto de Machado, somente o verso “A virgem dos meus sonhos”, parte do estribilho da canção, não contém os mesmos acentos dos demais, sendo acentuado na 2ª e 6ª sílabas. Nenhum pecado nisso, considerando que o verso hexassílabo admite tal acentuação. Devemos considerar também que na produção poética de Machado anterior a esta tradução encontramos hexassílabos acentuados na 2ª sílaba com certa facilidade: “Stella” e “O Dilúvio”, de Crisálidas, apresentam tais versos, enquanto em “Fé” encontramos hexassílabos com acento na 4ª sílaba. 219 O procedimento de desdobrar o hexassílabo em dois versos, de 4 e 2 sílabas também é observado tanto na versão inglesa: 10 She / sleeps! 11 My / la / dy / sleeps! 431 quanto na tradução de Machado de Assis: Não / vês / dor / mir! Dor / mir!432 Mesmo este procedimento não é inédito na produção de Machado. Em Crisálidas é encontrado nos poemas “Horas vivas” e “As rosas”, por exemplo. Em ambos os casos, no entanto, temos um decassílabo decomposto em dois versos que, analisados separadamente, seriam versos de seis e três sílabas, mas, se lidos juntos, contamos decassílabos heroicos: em “As rosas” encontramos versos como “Aos suaves resplendores / matinais” e, em “Horas vivas”, “Noite: abrem-se as flores / Que esplendores”. Notamos ainda que Machado se afasta, às vezes, do sentido literal do texto, mas fica claro que o afastamento tem a função de manter o seu caráter poético, priorizando a reconfiguração dos aspectos formais sem, contudo, se submeter ao que o texto-fonte estipula. Longfellow, por exemplo, termina quase todos os seus versos com as mesmas palavras, que rimam entre si: o par night/light que se repete nas quatro estrofes, sempre no primeiro e terceiro versos, enquanto sleeps que termina os três últimos versos de cada estrofe. A exceção ocorre no segundo verso de cada estrofe, que rimam entre si: deeps/steeps/creeps/keeps e com sleeps nos três últimos de cada estrofe. Assim, Longfellow segue o esquema de rimas ABABBB, com estrofes de seis versos. Além de acrescentar um verso a cada estrofe, o esquema que Machado escolhe seguir é levemente diferente: ABBCDCC. No texto de Machado a repetição ocorre com o substantivo noite e nos três últimos versos que constituem o estribilho do poema. O tradutor Machado demonstra ter plena ciência do modo de significar do poema, mas também toma para si liberdades que lhe permitem reconfigurar o texto-fonte em outro poema, afastando-se de alguns aspectos formais, mas adotando outros que possam substituí-los a contento. Sob o aspecto fonético-sonoro, o poeta-tradutor Machado está igualmente atento ao que ocorre no poema de Longfellow, ou pelo menos preocupado com a percepção sonora de seu 431 LONGFELLOW, Henry Wadsworth. The poetical works. New York: Houghton, Mifflin and Company, vol. 1, 1893, v. 1, p. 110 432 MORAES FILHO, 1902, p. 111 220 poema: as aliterações dos versos 13 e 14 em Wind/where/woodbine tornaram-se, no texto de Machado, as aliterações em “v” de Vento/ estiva/vagas/vai, cujo som reforça a ideia do vento a soprar. Semanticamente, o poema de Machado também se mantém bastante próximo do texto de Longfellow, embora escolha imagens diversas para alcançar resultados análogos, a exemplo do segundo e terceiro versos da segunda estrofe do poema de Machado nos quais, enquanto Longfellow fala de woodbine e pinions – trepadeiras e pinhões em português, embora pinion possa estar associado também a penas das asas de pássaros – Machado fala de ondas e praias. As imagens são diferentes, mas ambas remetem à natureza. Julgamos as imagens de Machado até mais interessantes uma vez que o “vento”, presente no primeiro verso, associa-se mais convenientemente a praias e formação de ondas para sugerir a atmosfera de paz e tranquilidade do que a trepadeiras e pinhões, particularmente se pensarmos que o poeta escreve para o público do Rio de Janeiro, certamente mais familiarizado com praias e ondas do que com pinhões. Procedimento similar ocorre também nos versos 20 e 21: Longfellow utiliza a imagem de um amante que observa e cuida da amada enquanto ela dorme. Machado enfraquece a presença da imagem do amante, enquanto mantém a imagem da amada que dorme pacificamente. Observando esta tradução de Longfellow, o tradutor que se nos desvela é um tradutor consciente dos elementos que compõem um objeto poético. O tradutor que demonstra preocupar-se com os aspectos formais do texto que lhe servira de fonte, mas não às expensas do modo de significar da obra. Este tradutor não se posiciona servilmente diante do texto, nem dá maior atenção à informação conteudística do que à informação estética. É exatamente o oposto que ocorre: Machado demonstra saber que traduzir um poema significa, sobretudo, recriar um poema em sua própria língua, lançando mão do repertório que tem à disposição. O tratamento ao conteúdo e à forma parece equilibrado na tradução. Para Antoine Berman, em A prova do estrangeiro, “[f]azer história da tradução é redescobrir pacientemente essa rede cultural infinitamente complexa e desconcertante na qual, em cada época, ou em espaços diferentes, ela se vê presa. E fazer do saber histórico assim obtido uma abertura de nosso presente”433. Apesar de conhecido, o fato de esta peça de Machado de Assis ser uma tradução estava relativamente apagado. Ao recuperarmos esta informação estamos escrevendo uma parte da história do nosso passado literário, restabelecendo conexões esquecidas que, inclusive, dão mais coerência e outro relevo à 433 BERMAN, 2002, p. 14 221 presença de Longfellow, ainda que tímida, na obra de Machado de Assis. Mais do que isso, ao recuperar esta tradução, descobrimos que o nosso poeta-tradutor soube transpor e renovar os valores formais do poema de Longfellow assim como soube conferir poeticidade ao texto de sua lavra de forma que fosse possível musicá-lo. Foi sensível o bastante para perceber que a mensagem exata do poema não era essencial para o seu modo de significar e assim, quando necessário, soube afastar-se para manter-se próximo. Não satisfeito, consegue criar um poema mais interessante, menos repetitivo do que o de Longfellow. A posição que Machado assume quando traduz é a de um escritor, sobretudo, que entende estar criando não um texto de segunda ordem, de qualidade inferior, mas uma outra obra, um outro original, um poema. 7.3 “O primeiro beijo” “O primeiro beijo”, publicado em 19 de setembro de 1869 no número 458 da Semana Ilustrada, é o único poema traduzido do espanhol por Machado de Assis que chegou até nós. Na edição, o poema traduzido veio acompanhado de comentários do Dr. Semana, anunciando a tradução de um amigo – ele mesmo, talvez – ao passo em que pede por um diálogo mais íntimo entre as literaturas brasileira e de língua espanhola: O atual ministro de Chile nesta corte e no Rio da Prata, Sr. Guilherme Blest Gana, é um distinto poeta, autor de um volume de versos, algumas comédias, e dramas. Os poetas da América espanhola são pouco conhecidos entre nós, do mesmo modo que os nossos são pouco conhecidos nas repúblicas do continente. Grande e recíproca vantagem seria, se houvesse relações íntimas entre as duas literaturas. Blest Gana, Matta, Palma, Cortes, Cisneros apertariam gostosamente as mãos a Alencar, B. Guimarães, Macedo, Varela e tantos. Traduziu um amigo nosso uma das mais mimosas poesias do Sr. Blest Gana; damos em seguida a tradução; é uma amostra do talento do distinto chileno. Dr. Semana434 Jean Michel-Massa recolheu esta tradução em Dispersos de Machado de Assis com o texto citado acima. No entanto, quando publica o volume Massa afirma que não fora possível encontrar o texto em espanhol do poema no único volume de poesia recolhida do poeta chileno que conhecia435. Massa certamente encontrou o texto posteriormente, pois em Machado de Assis tradutor os breves comentários que acompanham a tradução de Machado também contam 434 435 MASSA, 1965, p. 255-256 Ibid., p. 528 222 com o texto espanhol, que Massa utiliza para apreciar o conhecimento que o nosso escritor tinha da língua de Blest Gana afirmando que a tradução “[...] atesta então um conhecimento corrente do espanhol por Machado de Assis”436 que poderia ter contado com Quintino Bocaiúva, de mãe argentina, o poeta argentino Carlos Guido y Spano, ou o próprio Guillermo Blest Gana, que era seu amigo, como preceptores no idioma. Na Bibliografia de Machado de Assis Galante de Sousa informa que Rosendo Moniz também traduziu este poema, sendo que sua tradução saiu também na Semana Ilustrada, n. 595, de 5 de maio de 1875. Sousa informa ainda que a tradução de Rosendo Moniz possui 91 versos, sendo que 21 são idênticos aos de Machado de Assis, o que o leva a supor certa influência deste último sobre o primeiro437. A respeito desta amizade não foram encontradas muitas informações. A biografia de Raimundo Magalhães Júnior faz uma única referência, ocorrida em junho 1876, ao convívio entre Machado e Blest Gana e à tradução de que nos ocuparemos aqui: O acontecimento que os reunira fora o banquete de despedida do diplomata Guillermo Blest Gana, removido por seu Governo após longa permanência com o ministro na capital do Império. Sem lembrar que fora o tradutor do seu poema O primeiro beijo, publicado na Semana Ilustrada, a 19 de setembro de 1869, Machado escrevera que era “amigo do ilustre chileno há dez anos”.438 Na correspondência de Machado de Assis, contudo, há elementos que confirmam o relacionamento entre ambos. A primeira e única carta entre Machado de Assis e Guillermo Blest Gana que consta da correspondência publicada tem data de 1866. Há, entretanto, referências à amizade de ambos nas correspondências entre Machado e Salvador de Mendonça e, em carta aberta a Felipe Lopes Neto publicada no Jornal do Comércio, Machado é elogioso em seu comentário que avalia Blest Gana: “[...] maviosíssimo poeta e um dos mais notáveis e polidos talentos do Chile”439. 436 MASSA, 2008, p. 50 SOUSA, 1955, p. 436 438 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 256 439 ASSIS, 2009b, p. 65 437 223 Figura 7 – Reprodução da primeira publicação de “O primeiro beijo”. Fonte: Assis (1869a) 224 Se era pouco conhecido no século XIX, é provável que o nome Guillermo Blest Gana não conte, hoje, com mesmo o reconhecimento e envergadura de outros poetas chilenos como Neruda. Não obstante, foi um dos principais expoentes do romantismo no Chile. Blest Gana, que veio de “[...] uma das famílias de melhor posição econômico-social [...] em Santiago por aqueles anos [...], e sua casa era muito visitada, sobretudo pela beleza e distinção de suas mulheres”440, também produziu prosa e teatro, mas é a sua poesia que, ao contrário da do nosso Machado, ganhou maior relevância. O poema que Machado traduz, “El primer beso”, deve ter sido composto no início da década de 1860, enquanto Blest Gana viajava pela Europa, pois Alfonso Escudero (1970) nos diz que é durante esta viagem que “[n]o Ateneu de Madrid recita uma tarde El primer beso, que o fazem repetir muitas vezes”441. Ainda a respeito de “El primer beso”, Escudero afirma que “[e]sta composição foi recolhida em 1884, em Armonías, mas já havia sido recitada em 1861, com excelente acolhida em Madrid. E figura em pelo menos duas antologias de José Domingo Cortés: Parnasso chileno (Santiago, 1871) e América poética (Paris, 1875)”442. O poema aparece também no segundo tomo das Obras Completas de Don Guillermo Blest Gana, de 1907, que foi a edição que consultamos e utilizamos para o cotejo com a versão de Machado. “El primer beso” é um poema que narra uma lembrança – o primeiro beijo – entre um rapaz e sua prima, ambos com catorze anos, a quem é obrigado a abandonar “à beira do mar” – o que nos faz pensar no período imediatamente anterior à viagem de Blest Gana à Europa – e de quem guarda somente a lembrança. Há no poema descrição da beleza da prima, dos tempos saudosos que passaram juntos, a história do tal beijo associando-os à inocência de Adão e Eva e, por fim, o momento da despedida. Há também, evidentemente, a prevalência do uso dos pretéritos imperfeito e perfeito, que reforçam o tom distante do narrado, mas que contrastam com momentos em que o presente é utilizado, deixando a narrativa mais próxima. Alfonso Escudero faz uma leitura biográfica do poema e cita diversas hipóteses a respeito da identidade da prima citada no poema. Este aspecto autobiográfico, no entanto, importa menos do que entender que estamos diante de um poema tipicamente subjetivista, que retrata uma infância 440 ESCUDERO, Alfonso M. “Don Guilhermo Best Gana”. REVISTA Aisthesis Nº 5. Pontifícia Universidad Católica de Chile, 1970, 119. No original: “[u]na de las familias de mejor posición económico-social […] en Santiago por aquellos años […], y su casa era muy visitada, sobre todo por la belleza y distinción de sus mujeres”. 441 ESCUDERO, 1970, p. 121. No original: “En el Ateneo de Madrid recita una tarde El primer beso, que le hacen repetir muchas veces”. 442 Ibid., p. 125. No original: “[e]sta composición fue recogida en 1884, en Armonías, pero ya en 1861 la había recitado, con excelente acogida en Madrid. Y figura por lo menos en dos antologías de José Domingo Cortés: Parnasso chileno (Santiago, 1871) y América poética (París, 1875)”. 225 idealizada com matizes idílicos, de leitura bastante agradável devido, particularmente, à forma adotada por Blest Gana, já comentada por Alfonso Escudero: Além da sextina inicial e da final, o poema é composto de sete estrofes de onze octossílabos e entre seus recursos o fato de que o primeiro verso de cada estrofe se conclua com a mesma palavra que o décimo primeiro não é dos menos eficazes. Em outras palavras, trata-se de uma coisa simples como a repetição, mas tal repetição é eficaz porque se baseia no fato de que o que se repete não é fundamental.443 Devemos atentar para o fato de que Escudero, falante de espanhol, adota, naturalmente, o método de contagem de seu idioma, que é grave, levando em consideração uma sílaba além da última tônica, daí a contagem de octossílabos em todas as estrofes, excetuando-se a primeira e a última, que possuem versos de sete sílabas. De qualquer modo, o metro utilizado é bastante popular e foi muito utilizado durante o período romântico, e confere ao poema um ritmo bastante leve. Cada uma das estrofes do poema, como bem nota Escudero, termina seu primeiro e último verso sempre com a mesma palavra. A disposição das rimas também é bastante regular, com rimas alternadas por quase todo o poema, exceção feita aos dois últimos versos da primeira e última estrofes, e aos sexto e sétimo versos das estrofes que contém onze versos, casos em que são emparelhadas. Vejamos o poema de Blest Gana, acompanhando da tradução de Machado de Assis: Quadro comparativo 16 – “El primer beso” e “O primeiro beijo” El primer beso O primeiro beijo Recuerdos de aquella edad de inocencia y de candor, no turbéis la soledad de mis noches de dolor: pasad, pasad, recuerdos de aquella edad. Lembranças daquela idade De inocência e de candor, Não turbeis a soledade Das minhas noites de dor; Passai, passai, Lembranças do que lá vai. Mi prima era muy bonita, y no sé por qué razón al recordarlo, palpita con violencia el corazón. Era, es cierto, tan bonita, tan gentil, tan seductora, que al pensar en ello ahora, algo como una ilusión aquí en el pecho se ajita, y hasta mi fría razón me dice: ¡era muy bonita! Minha prima era bonita... Eu não sei por que razão Ao recordá-la, palpita Com violência o coração. Pois se ela era tão bonita, Tão gentil, tão sedutora, Que agora mesmo, inda agora, Uma como que ilusão Dentro em meu peito se agita, E até a fria razão Me diz que era bem bonita. Ella, como yo, contaba catorce años, me parece, Como eu, a prima contava Quatorze anos, me parece; 443 ESCUDERO, 1970, p. 128. No original: “Aparte de la sextina inicial y la final, se compone de siete estrofas de once octosílabos, y entre sus recursos no es el menos eficaz el hecho de que el primer verso de cada estrofa concluya con la misma palabra que el undécimo. En otras palabras, se trata de una cosa tan simple como la repetición, pero esa repetición es eficaz porque se basa en que no repetido es fundamental.” 226 más mi tía aseguraba que eran solamente trece los que mi prima contaba. Dejo a mi tía esa gloria, pues mi prima en mi memoria jamás, jamás envejece, y siempre está como estaba cuando, según me parece, ya sus catorce contaba. Mas minha tia afirmava Que eram só, — nem tal me esquece! Treze os que a prima contava. Fique-lhe à tia essa glória, Que em minha vivaz memória Jamais a prima envelhece, E sempre está como estava, Quando, segundo parece, Já seus quatorze anos contava. ¡Cuántas horas, cuántas horas de dicha pasé a su lado! ¡Pasamos cuántas auroras los dos corriendo en el prado, ligeros como esas horas! ¿Nos amábamos? Lo ignoro: sólo sé lo que hoy deploro, lo que jamás he olvidado, que en pláticas seductoras, cuando me hallaba a su lado, se me dormían las horas. Quantas horas, quantas horas Passei ditoso ao seu lado! Quantas passamos auroras Ambos correndo no prado, Ligeiros como essas horas! Seria amor? Não seria; Nada sei; nada sabia; Mas nesse extinto passado, De conversas sedutoras, Quando me achava a seu lado Adormeciam-me as horas. De cómo le di yo un beso, es peregrina la historia; hasta ahora, lo confieso, con placer hago memoria de cómo la di yo un beso. Un día, solos los dos, cual la pareja de Dios, cuya inocencia es notoria, nos fuimos a un bosque espeso, y allí comenzó la historia de cómo la di yo un beso. De como lhe eu dei um beijo É curiosíssima história. Desde esse ditoso ensejo Inda conservo a memória De como lhe eu dei um beijo. Sós, ao bosque, um dia, qual Aquele antigo casal Cuja inocência é notória, Fomos por mútuo desejo, E ali começou a história De como lhe eu dei um beijo. Crecía una hermosa flor cerca de un despeñadero; mirándola con amor ella me dijo: 'Me muero, me muero por esa flor'. Yo a cogerla me lancé, más faltó tierra a mi pie; ella, un grito lastimero dando, llena de terror, corrió hasta el despeñadero... y yo me alcé con la flor... Crescia formosa flor Perto de uma ribanceira; Contemplando-a com amor, Diz ela desta maneira; — Quem me dera aquela flor! De um salto à flor me atirei; Faltou-me o chão; resvalei. Grita, atira-se ligeira Levada pelo terror, Chega ao pé da ribanceira... E eu, eu não lhe trouxe a flor. Dos lágrimas de alegría surcaron su rostro bello, y diciendo-. '¡Vida mía!', me echó los brazos al cuello con infantil alegría. Fuego y hielo sentí yo que por mis venas corrió, y no sé cómo fue aquello, pero un beso nos unía..., dejando en su rostro bello dos lágrimas de alegría. De ventura e de alegria A coitadinha chorava; Vida minha! repetia, E em meus braços me apertava Com infantil alegria. De gelo e fogo me achei Naquele transe. E não sei Como aquilo se passava, Mas um beijo nos unia, E a coitadinha chorava De ventura e de alegria. Después... ¡Revoltoso mar es nuestra pobre existencia! Depois... revoltoso mar É nossa pobre existência! 227 Yo me tuve que ausentar, y aquella flor de inocencia quedó a la orilla del mar. Del mundo entre los engaños he vivido muchos años, y, a pesar de mi experiencia, suelo a veces exclamar: ¡La dicha de mi existencia quedó a la orilla del mar! Recuerdos de aquella edad de inocencia y de candor, alegrad la soledad de mis noches de dolor; ¡llegad, llegad, recuerdos de aquella edad! Fonte: Gana (1907); Assis (2009) Fui obrigado a deixar Aquela flor de inocência Sozinha à beira do mar. Ai! do mundo entre os enganos Hei vivido muitos anos, E apesar dessa experiência Costumo ainda exclamar: Ditada minha existência, Ficaste à beira do mar! Lembranças daquela idade De inocência e de candor, Alegrai a soledade Das minhas noites de dor. Chegai, chegai, Lembranças do que lá vai. Jean-Michel Massa, quando coloca os textos de Blest Gana e Machado lado a lado, tem a intenção de atestar o conhecimento corrente do espanhol por Machado de Assis, e apontar preceptores no idioma, conforme citamos acima, eximindo-se de comentar a qualidade, ou o sucesso da tradução. Não é preciso muito para verificar que Machado de Assis alcança um resultado louvável neste caso. Evidentemente, a proximidade do parentesco entre as duas línguas certamente facilitou a tarefa, mas isto somente não seria suficiente para garantir que a tradução funcionasse como poesia, e a de Machado claramente atinge tal objetivo. Primeiramente, todo o sentido do poema, é rigorosamente preservado, salvo algumas ínfimas alterações aqui e ali, bem como a narrativa é exatamente a mesma, salvo por um detalhe digno de nota e que comentaremos mais adiante. Em termos formais, a escolha óbvia para traduzir os octossílabos de Blest Gana seria o nosso heptassílabo, que é o metro que Machado escolhe e com o qual já estava bastante familiarizado. Quando esta tradução é publicada, Machado já era o autor de Crisálidas (1864) e o lançamento de Falenas (1870) aconteceria no ano seguinte. O metro escolhido aqui foi utilizado desde muito cedo por Machado, aparecendo pela primeira vez na sua produção em 1855, como no poema “Ela”, e certamente se sentia bastante confortável com ele. Em somente um momento Machado adota um caminho formal diferente do adotado pelo poeta chileno. Conforme vimos na citação de Escudero, Blest Gana sempre termina o primeiro e último versos de cada estrofe com a mesma palavra e, no caso das sextinas, o último verso repete o primeiro: Recuerdos de aquella edad de inocencia y de candor, alegrad la soledad de mis noches de dolor; ¡llegad, llegad, 228 recuerdos de aquella edad! 444 Machado, possivelmente por imposição da necessidade de encontrar rimas, precisou optar, e optou por rimar, como faz Blest Gana, o último verso da sextina com o anterior, ficando impossibilitado de repetir o primeiro verso no último das estrofes inicial e final: Lembranças daquela idade De inocência e de candor, Alegrai a soledade Das minhas noites de dor. Chegai, chegai, Lembranças do que lá vai.445 Este é o único caso em que Machado cria um recurso diferente do de Blest Gana, que aproveita a forma imperativa do verbo “llegar” para rimar com “edad”, algo impossível em nossa língua. Contudo, esta escolha mostra que o diferente não é necessariamente menor ou menos válido em tradução. O resultado é diferente, mas não “pior”. Machado mantém rimas nas mesmas posições, metro equivalente em todos os versos e o mesmo ritmo agradável, muito diferente do que costumou fazer nas suas demais traduções de poesia. Nas demais estrofes, o êxito formal é louvável: há emprego regular dos heptassílabos por todo o poema de Machado, o recurso de terminar o primeiro e último verso de cada estrofe com a mesma palavra também é mantido, assim como a distribuição das rimas é rigorosamente mantida. Na Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa encontra-se a seguinte passagem a respeito desta tradução: “Observe-se ainda que ao último verso na tradução de Machado de Assis – ‘E eu, eu não lhe trouxe a flor’ – corresponde, na de Rosendo Moniz, o seguinte: ‘E eu levanto-me c’o a flor’. Um de ambos foi infiel”446. É a esta diferença notável de sentido que nos referimos anteriormente. Podemos dizer com certeza, após consultar o texto em espanhol, que o “infiel” é Machado de Assis. A estrofe em questão narra a cena imediatamente anterior ao beijo na prima, que avista uma flor próxima a uma ribanceira e a deseja, ao que o primo se lança para colhê-la, quase despenca, mas sobe com a flor: Crecía una hermosa flor cerca de un despeñadero; mirándola con amor ella me dijo: 'Me muero, me muero por esa flor'. Yo a cogerla me lancé, más faltó tierra a mi pie; ella, un grito lastimero dando, llena de terror, corrió hasta el despeñadero... 444 BLEST GANA, Guillermo. Obras completas de don Guillermo Blest Gana. Tomo segundo. Santiago de Chile: Imprenta Cervantes, 1907, p. 206 445 ASSIS, 2009a, p. 509 446 SOUSA, 1955, p. 436. 229 y yo me alcé con la flor...447 Entretanto, a conclusão – a flor colhida – é alterada por Machado, com o acréscimo de um “não”: Crescia formosa flor Perto de uma ribanceira; Contemplando-a com amor, Diz ela desta maneira; — Quem me dera aquela flor! De um salto à flor me atirei; Faltou-me o chão; resvalei. Grita, atira-se ligeira Levada pelo terror, Chega ao pé da ribanceira... E eu, eu não lhe trouxe a flor.448 Desconhecemos a razão que teria levado Machado de Assis a alterar o trecho. Rima e métrica certamente não são motivos suficientes. Acreditar que fora um deslize também parece fazer pouco sentido, porque se trata de um acréscimo e não uma supressão. Este “não” está presente em todas as publicações de “O primeiro beijo” consultadas: no fac-símile do periódico com a primeira publicação disponibilizado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e em todas as edições de poesia coligidas posteriormente e consultadas nesta tese. Supondo, todavia, que o acréscimo tenha sido intencional, poderíamos argumentar que fora feito com a intenção de conferir mais dramaticidade à cena. Afinal, sem a flor, a aventura no penhasco e a quase queda ficam um tanto mais interessantes, pois de um lado mostram o empenho do primo em agradar a prima arriscando a própria vida e, por outro, o choro e o alívio que acabam por selar o beijo entre eles fortalecem os laços entre ambos, com a flor funcionando como mero acessório. Ou será que a verve criativa de Machado, diante de tanto apego formal e conteudista ao restante do poema, não resistiu à pressão e quis deixar uma pista de sua presença, inscrevendo-se sutilmente no texto, para o deleite dos leitores mais atentos? Há outras alterações no texto, mas nada significativo como esta. Todas as demais são, aparentemente, fruto da necessidade de atender e respeitar os limites impostos pela métrica e a rima necessários para criar o efeito desejado. Significativa é a posição que Machado adota enquanto tradutor deste texto: o diálogo mantido com Blest Gana nos revela um tradutor que segue mais de perto o modo de funcionamento do texto-fonte, desde os aspectos formais, como métrica, rima e demais características do texto, até a linguagem simples, fluida e direta que garantem à tradução o tom leve e agradável equivalente ao sentido na leitura do texto-fonte. 447 448 BLEST GANA, 1907, p. 207-208 ASSIS, 2009a, p. 511 230 Parecemos estar, neste caso, diante de um dos desdobramentos trazidos pelo pensamento da tradução nas últimas décadas, resumido por Meschonnic: Descobre-se que uma tradução de um texto literário deve fazer o que faz um texto literário, pela sua prosódia, seu ritmo, sua significância, como uma das formas de individuação, como forma-sujeito. O que desloca radicalmente os preceitos de transparência e fidelidade da teoria tradicional, fazendo-os aparecer como os álibis moralizantes de um desconhecimento cuja caducidade das traduções não é mais do que o pagamento justo. A equivalência procurada não se coloca mais de língua a língua, tentando fazer esquecer as diferenças linguísticas, culturais, históricas. Ela é colocada de texto a texto, ao contrário, trabalhando para mostrar a alteridade linguística, cultural, histórica, como uma especificidade e uma historicidade449. Mais uma vez, portanto, o tradutor Machado de Assis se mostra não só atento ao que faz um texto literário funcionar como tal, mas sensível à necessidade de, enquanto tradutor, recriar em língua portuguesa um texto que contenha qualidades que façam de sua tradução, sobretudo, um texto literário, sem que isso signifique ter que acompanhar rigorosamente o texto de partida. 449 MESCHONNIC, 2010, p. XXIV 231 8. As traduções de Falenas As poesias publicadas em Falenas (1870) eram quase todas inéditas. O número de traduções de Machado de Assis mais que dobrou em relação a Crisálidas (1864), aumentando para treze, considerando individualmente as oito peças da “Lira chinesa”. Algumas traduções não eram inéditas e foram publicadas em jornal antes do livro, como “Versos a Ema”, que no livro se chama “Estâncias a Ema”, e “Cegonhas e Rodovalhos”, em 1865. As Lamartineanas, onde também foi publicada “A Elvira”, apesar de estarem com data de 1869, só foram colocadas à venda no ano seguinte, juntamente a Falenas. As traduções, portanto, também eram majoritariamente inéditas. Das treze traduções que compõem o volume, nove foram mantidas pelo autor nas Poesias completas (1901): todas as oito peças de “Lira chinesa” e “A Elvira”, de Lamartine. Este é um período de mudanças na vida de Machado de Assis e um período em que começa a se consolidar definitivamente como escritor. Em 1869 casa-se com Carolina Xavier de Novais. No mesmo ano, assina um contrato com B. L. Garnier para a publicação de Contos Fluminenses, Falenas, Ressureição, Histórias da Meia-noite e o Manuscrito do Licenciado Gaspar, que não chegou a ser publicado. Falenas foi o primeiro volume a sair, seguido dos Contos Fluminenses. O segundo livro de poesias de Machado de Assis foi divido em quatro partes independentes: “Vária”, “Lira chinesa”, “Uma Ode de Anacreonte” e “Pálida Elvira”. Para Flávia Amparo, Falenas [...] nascia com a promessa de fundir os três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Assim, o livro comportaria desde poemas curtos até os longos e narrativos, e o escritor se enveredaria por vias profusas, ora esboçando um gosto por temas dramáticos e trágicos, ora explorando o viés herói-cômico, inspirado num Cruz e Silva e num Boileau, como nas estrofes de “Pálida Elvira”450. A primeira parte é composta de 25 poemas, dentre os quais estão as traduções que analisaremos adiante: “A Elvira”, “Os deuses da Grécia”, “Cegonhas e Rodovalhos”, “Estâncias a Ema” e “A morte de Ofélia”. A “Lira chinesa”, segunda parte do livro, é toda de traduções de poesia chinesa feitas a partir da tradução em prosa de Judith Walter, que também fazem parte do nosso objeto de estudo. A terceira e a quarta parte são, respectivamente, compostas da peça em versos 450 AMPARO, 2008, p. 86 232 “Uma ode a Anacreonte” e do longo poema “Pálida Elvira”, que ironiza as convenções românticas. A recepção de Falenas serve de termômetro para avaliarmos a obra e ratifica algumas questões que já foram observadas em diversas traduções, como o pendor classicista na poesia de Machado de Assis. A primeira resenha do livro saiu em janeiro de 1870, de possível autoria de Joaquim Serra, segundo Ubiratan Machado451. Entre as qualidades apontadas em algumas poesias comentadas estão a simplicidade, a clareza e a naturalidade, de “[...] esmeradíssimos versos [feitos] com a delicadeza de cinzelador”452. Os senões ficam por conta da falta de cunho brasileiro, particularmente no romance-poema “Pálida Elvira”, já que as paisagens do poema, embora magníficas, “[...] podem ser tanto nossas como da Suíça”453. A crítica de Luís Guimarães Júnior, do mês seguinte, retoma alguns pontos e reforça outros. Ressalta, por exemplo, a feição diferente desta obra em relação a Crisálidas, mas critica a sujeição do poeta “[...] às regras metódicas do velho classicismo latino e português”, e que se não fosse o nome de Machado de Assis no volume, seria aceito “[...] no arquivo literário português em fundo e forma”454. O crítico parece incomodar-se com o fato de que Falenas não se filia a nenhuma escola, assim como o livro não é classificável como somente lírico, elegíaco ou histórico, criticando também a falta da originalidade que se encontrava em Crisálidas. É verdade que Falenas, em vários aspectos, mas principalmente na investigação da forma, aponta para um caminho que levaria à poesia parnasiana, algo que o crítico ainda não poderia perceber. Guimarães Júnior elogia as peças de Falenas, mas critica a carência de feições que se assemelhem ao nacional. Neste quesito, “Pálida Elvira”, embora reconhecidamente belíssima, é “[...] tão própria para ser recitada em uma gôndola veneziana, como em um quiosque oriental ou no mais democrático de todos”455. É como se Machado de Assis fosse mais universal do que brasileiro, e essa falta de espírito nacional é apontado como o único defeito do livro. Os problemas trazidos por esse apego ao cuidado formal são igualmente ressaltados na crítica assinada por Oscar Jagoanharo, pseudônimo de Tristão de Alencar Araripe Júnior. O 451 MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 71 452 Falenas. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 71-72. 453 Ibid., p. 72 454 GUIMARÃES JÚNIOR, L. “Literatura: estudos literários”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 76 455 Ibid., p. 77 233 crítico observa que nas composições de Machado de Assis há algo “[...] de indefinível na forma que parece antes oprimir e sufocar o pensamento por mais belo que ele seja, do que elevá-lo e traduzi-lo”456. A causa do que chama “atrofia de pensamento” seria o desejo irrefreável de evitar a qualquer custo o menor deslize formal. O exemplo do contrário seria justamente uma das traduções, “Estâncias a Ema”, na qual Machado teria se deixado levar pelos “arroubos poéticos de Dumas Filho”, dando “liberdade ampla ao estro” e experimentando “o fervente gotejar da aflição do poeta em seu coração”457. A crítica mais contemporânea endossa algumas dessas questões, mas também mostra outros caminhos. Ishimatsu, por exemplo, diz ser óbvio que Machado intencionava demonstrar maturidade poética com Falenas, além de se notar o desenvolvimento de elementos préparnasianos. O orientalismo introduzido pela “Lira chinesa” seria um desses elementos que serviriam de gradual transição entre o Romantismo e o Parnasianismo, assim como o interesse pela antiguidade clássica demonstrado em “Uma Ode a Anacreonte”458, a que acrescentaríamos também a tradução de “Os deuses da Grécia”, de Schiller. Ishimatsu atina igualmente para a pesquisa formal característica de Falenas, como a tentativa de introduzir o triolet na poesia luso-brasileira459. Cláudio Murilo Leal destaca a mesma conquista no aspecto formal da poesia machadiana, que considera “mais decantada”, junto aos novos temas introduzidos que teriam “[...] dimensões mais amplas e abstratas ao enveredar pelos caminhos da reflexão filosófica”460. Falenas, alega Cláudio Murilo Leal, também teria poemas mais bem estruturados se comparados com os de Crisálidas, mostra de que o poeta amadurecera461. Tomadas isoladamente, as traduções de Falenas também representam uma nova guinada na obra poética de Machado de Assis. Dentre as seis traduções de Crisálidas, quatro eram de autores franceses e somente uma era de um poeta anterior à estética romântica, “A jovem cativa”, de Chénier. Com Falenas essa relação praticamente se inverte: somente três peças são de autores franceses, e somente esses são contemporâneos de Machado de Assis. É bem verdade que o francês ainda é a língua intermediária de todas as traduções, mas há uma clara tentativa de se buscar novos horizontes, visitando desde a Inglaterra elisabetana de Shakespeare, a Alemanha de Schiller até o extremo oriente com a “Lira chinesa”. Mesmo 456 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. “Falenas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 77 457 Ibid., p. 78 458 ISHIMATSU, 1984, p. 74 459 Ibid., p. 80 460 LEAL, 2008, p. 104 461 Ibid., p. 110. 234 “Cegonhas e Rodovalhos”, de Bouilhet, francês e contemporâneo de Machado de Assis, nos remete tematicamente à Roma antiga. Para Jean-Michel Massa, as traduções de Falenas marcam o início de um novo caminho, “[...] o de uma homenagem dirigida a seus mestres ou a seus pares” e associa o espaçamento entre as traduções a partir da década de 1870 a uma atividade criadora pessoal mais intensa que relega a prática da tradução a uma posição secundária, conquanto ressalte que “[...] todas as traduções publicadas entre 1870 e 1894 correspondem a uma escolha madura e lúcida”462. Estas traduções são demonstram não só apuro técnico e expansão de interesses literários, mas também, como veremos, nos ajudarão a consolidar um conceito machadiano de tradução de textos poéticos. 8.1 “A Elvira” A primeira das traduções de Falenas, “A Elvira”, é um poema criado a partir de “A El***” de Lamartine, e teve sua primeira publicação nas Lamartineanas – poesias de Affonso de Lamartine traduzidas por poetas brasileiros, lançado quase simultaneamente a Falenasxxxvii por ocasião da morte de Lamartine. Em Falenas, O poema teve seu título alterado para “A Elvira” quando foi incluído na seção “Vária”. Além disso, o verso 17 foi levemente alterado, conforme informado pela edição crítica das Poesias Completas. Para Jean-Michel Massa, “[a] escolha de ‘A El***’ parece [...] ditada por uma preferência pessoal, pois Machado de Assis está então prestes a se casar”463, e sugere que Machado não se afasta “quase nada” do tema lamartineano, sugerindo até mesmo que, através de Elvira, Machado se dirigia a Carolina464. Embora a validade da leitura biográfica seja viável, ou mesmo provável, interessa-nos saber mais sobre o modo de traduzir empregado por Machado de Assis que levou Massa a dizer que o tradutor não se afastou “quase nada” do tema lamartineano. “A El***” faz parte das Nouvelles Méditations Poétiques, publicadas por Lamartine em 1823, apenas três anos após a sua estreia com Méditations Poétiques. Após consulta a diversas ediçõesxxxviii da obra, notamos que já a partir da segunda edição, de 1824, as novas meditações 462 MASSA, 2008, p. 80 Ibid., p. 80 464 Ibid., p. 81 463 235 são reorganizadas pelo autor, e “A El***” passa de décima primeira para a décima posição já na segunda edição, de 1824. Embora os versos permaneçam inalterados, nota-se que o poema apresenta duas estrofes nas duas primeiras edições, mas passa a ter uma só estrofe nas edições seguintes, de 1838, 1853 e 1878. É somente na edição de 1885 que o poema volta a ter as duas estrofes das primeiras edições. Consultamos também duas edições das poesias recolhidas de Lamartine. A mais antiga, Œuvres poétiques de M. A. de Lamartine, publicada em 1825 em Bruxelas pela L’imprimerie de M. Hayez, traz as Méditations Poétiques no segundo volume. “A El***” é apresentada como a décima primeira meditação, com duas estrofes, assim como na primeira edição. Já nas Œuvres complètes, publicadas em 1851 em Paris pelos editores Charles Gosselin, Furne ET Cie, Pagnerre, Dufour et Mulat, “A El***” é a décima meditação, também com duas estrofes. Embora haja diferenças mínimas na pontuação nas diferentes edições, o número, o teor e a disposição dos versos não foram alterados. Considerando-se que a data limite para composição de “A Elvira” é o fim do ano de 1869, por ocasião do lançamento de Lamartineanas, pode-se estabelecer que Machado de Assis consultou uma das primeiras edições, ou alguma reprodução do poema conforme as edições de 1823 e 1824, ou ainda alguma edição das poesias coligidas que apresentam o poema conforme as duas primeiras edições, já que sua tradução possui as mesmas duas estrofes lá encontradas. Para Thibaudet (1936), as poesias de Nouvelles Méditations Poétiques, embora menos novas, são mais ricas porque nelas o poeta cresce, se expande465. Dentre os poemas destacados pelo autor estão “Ischia”, “Bonaparte”, “Le Poète mourant”, “Les Préludes” e, obra-prima do volume, “Le Crucifix”466. A recepção um pouco mais fria das Nouvelles Méditations Poétiques foi sentida de imediato. Na edição de 1853, Lamartine inclui um “Préface – A M. Dargaud” em que discute a recepção do seu segundo volume de poesias e a falta de entusiasmo do público: Em uma das inúmeras conversas que tivemos juntos por vinte anos, e nas quais abri de todo o coração toda a minha alma, você me perguntou por que as segundas Méditations não despertaram, a princípio, o mesmo entusiasmo que as primeiras, e por que então elas não tomaram seu lugar ao lado das outras? Eu respondi: ‘As primeiras foram as primeiras, e as segundas foram as segundas.’ Não havia outro motivo; mas esta razão é uma, embora pareça pueril. De fato, a novidade em tudo é um imenso elemento de sucesso. O espanto faz parte do prazer da aparência de uma beleza da arte como da beleza da criação, como de uma beleza viva. Uma vez que este primeiro assombro se esgotou ou embotou, a coisa permanece tão bonita, mas não é mais tão admirada. O arrebatamento em si se torna um hábito; e o hábito, como diz Montaigne, ‘tira todo o sabor’. Você acredita que o primeiro raio do sol, que inunda os olhos do homem acordado pela manhã, é mais puro e mais 465 466 THIBAUDET, 1936, p. 160 Ibid., p. 160-161. 236 deslumbrante do que os raios que o seguem, e dos quais já não percebemos? Não, mas ele é o primeiro.467 A comparação com os primeiros raios de sol que tanto encantam ao amanhecer com os seguintes dos quais mal nos damos conta para se referir aos seus dois primeiros livros de poesia dá uma razoável impressão da diferença de recepção entre ambos. A explicação do prefácio vai longe ainda e, em defesa de seus poemas, Lamartine afirma que todos, tanto os do primeiro quanto os do segundo volume, foram compostos mais ou menos na mesma época, pelo mesmo homem de mesma idade e que, ao fim, se os novos poemas não pareciam ter o mesmo viço, o problema era mais do público do que dele: “É que se meus versos eram ainda tão novos para esse público, o público já não era igualmente novo para meus versos”468. O poema “A El***”, conforme publicado nas duas primeiras edições, possui duas estrofes. A primeira é composta de vinte e quatro versos alexandrinos clássicos e um octossílabo no verso 19. A estrofe é rimada de forma que possa se imaginar uma divisão em quadras com rima ABBA entre os primeiros dezesseis versos. Entre os versos 17 e 21 temos rima em ABCCB e entre os quatro últimos versos o esquema muda ABAB. A segunda estrofe é bem menor que a primeira, contando 13 versos. Novamente, as rimas permitem visualizar duas quadras dentro da estrofe, a primeira com rimas em AABB, e a segunda com rimas em ABBA. Depois, entre os versos 9 e 13 temos versos rimados em AABBA. Na segunda estrofe Lamartine segue compondo em alexandrinos combinados com octossílabos, um no verso 33, e depois nos três últimos versos. O poema francês pinta a cena íntima em que dois amantes estão juntos, de mãos dadas, sentados um ao lado do outro, vendo o tempo correr, e eu-poético faz juras de amor eterno: “Je te jure à mon tour de n’adorer que toi”. A jovem a quem ele se dirige, possivelmente a Elvira 467 LAMARTINE, M. de. Nouvelles méditations poétiques. Paris: Pagnerre, V. Lecou, Furne et Cie Editeurs, 1853, p. 1-2, tradução nossa. No original: “Dans l’un des innombrables entretiens que nous avons ensemble depuis vingt ans, et dans lesquels je vous ai ouvert péripatétiquement toute mon âme, vous m’avez demandé pourquoi les secondes Méditations n’avaient pas excité d’abord le même enthousiasme que les premières, et pourquoi ensuite elles avaient repris leur rang à côté des autres ? Je vous ai répondu : « C'est que les premières étaient les premières, et que les secondes étaient les secondes. » / Il n’y a pas eu d’autre raison ; mais cette raison en est une, bien qu’elle paraisse une puérilité. En effet, la nouveauté en tout est un immense élément de succès. L’étonnement fait partie du plaisir à l’apparition d’une beauté de l’art comme d'une beauté de la création, comme d’une beauté vivante. Une fois ce premier étonnement épuisé ou émoussé, la chose reste aussi belle, mais elle n’est plus aussi admirée. Le ravissement même devient une habitude ; et l’habitude, comme dit Montaigne, « enlève sa primeur à toute saveur. » Croyez-vous que le premier rayon du soleil qui inonde le matin les yeux de l’homme qui s’éveille, soit plus pur et plus éblouissant que les rayons qui le suivent, et dont on ne s’aperçoit plus ? Non, mais il est le premier.”. 468 LAMARTINE, 1853, p. 3, tradução nossa. No original: “C’est que si mes vers étaient encore aussi neufs pour ce public, ce public n’était plus aussi neuf pour mes vers”. 237 de outros poemas, então se deita em seu colo, o que desperta no narrador da cena sentimento de insegurança que continuará a perturbá-lo durante o restante do poema: Souvent alors, souvent, dans le fond de mon cœur Pénètre comme un trait une vague terreur ; Tu me vois tressaillir ; je pâlis, je frissonne, Et troublé tout à coup dans le sein du bonheur, Je sens couler des pleurs dont mon âme s’étonne469. A jovem percebe que algo o perturba e o interroga, assim como ele, chorando ao ver que seu companheiro não está bem, e oferece consolo: « De quel ennui secret ton âme est-elle atteinte ? Me dis-tu : cher amour, épanche ta douleur ; J’adoucirai ta peine en écoutant ta plainte, Et mon cœur versera le baume dans ton cœur. »470 Porém o que perturba o seu companheiro é fruto das incertezas dele e do seu medo de perdê-la. O que era para ser um momento ditoso, de tranquilidade, cumplicidade torna-se motivo de aflição por algo que ainda não aconteceu, de nostalgia por algo que ainda não se perdeu. Ao mesmo tempo em que reconhece a boa fortuna que vive naquele momento – “Nul mortel sous les cieux n’est plus heureux que moi!” – sabe que sua sorte pode mudar a qualquer instante, pois há uma voz dentro de si que não o deixa esquecer: Mais jusque dans le sein des heures fortunées Je ne sais quelle voix que j’entends retentir Me poursuit, et vient m’avertir Que le bonheur s’enfuit sur l’aile des années, Et que de nos amours le flambeau doit mourir !471 Essa voz que o lembra o quanto tudo é efêmero não o deixa fruir o momento como deveria. Ele sabe que tudo tem seu fim e o medo de que isso aconteça, junto à sensação de que acontecerá, são o suficiente para perturbá-lo: D’un vol épouvanté, dans le sombre avenir Mon âme avec effroi se plonge, Et je me dis : Ce n’est qu’un songe Que le bonheur qui doit finir.472 É nesta característica do poema que Massa teria encontrado o motivo do interesse de Machado de Assis por traduzir “A El***”. A escolha deve ter sido mesmo bastante pessoal já que este poema sequer foi citado pelos críticos consultados. O poeta de Corina, segundo Massa, estaria utilizando Elvira para se dirigir à sua esposa Carolina, e relatando a ela a insegurança 469 LAMARTINE, 1853, p. 74 Ibid. 471 Ibid., p. 75 472 Ibid. 470 238 que sentia em virtude de desilusões anteriores. Biografismos à parte, interessa-nos de fato verificar como Machado procede nesta tradução. Vejamos, lado a lado, os poemas de Machado e Lamartine: Quadro comparativo 17 – “A Elvira” e “A El***” A ELVIRA A El*** Quando, contigo a sós, as mãos unidas, Tu, pensativa e muda; e eu, namorado, Às volúpias do amor a alma entregando, Deixo correr as horas fugidias; Ou quando às solidões de umbrosa selva Comigo te arrebato; ou quando escuto – Tão só eu, – teus terníssimos suspiros; E de meus lábios solto Eternas juras de constância eterna; Ou quando, enfim, tua adorada fronte Nos meus joelhos trêmulos descansa, E eu suspendo meus olhos em teus olhos, Como às folhas da rosa ávida abelha; Ai, quanta vez então dentro em meu peito Vago terror penetra, como um raio! Empalideço, tremo; E no seio da glória em que me exalto, Lágrimas verto que a minha alma assombram! Tu, carinhosa e trêmula, Nos teus braços me cinges, – e assustada, Interrogando em vão, comigo choras! “Que dor secreta o coração te oprime?” Dizes tu, “Vem, confia os teus pesares... Fala! eu abrandarei as penas tuas! Fala! Eu consolarei tua alma aflita.” Lorsque seul avec toi, pensive et recueillie, Tes deux mains dans la mienne, assis à tes côtés, J’abandonne mon âme aux molles voluptés Et je laisse couler les heures que j’oublie; Lorsqu’au fond des forêts je t’entraîne avec moi, Lorsque tes doux soupirs charment seuls mon oreille, Ou que, te répétant les serments de la veille, Je te jure à mon tour de n’adorer que toi; Lorsqu’enfin, plus heureux, ton front charmant repose Sur mon genou tremblant qui lui sert de soutien, Et que mes doux regards sont suspendus au tien Comme l’abeille avide aux feuilles de la rose; Souvent alors, souvent, dans le fond de mon cœur Pénètre comme un trait une vague terreur; Tu me vois tressaillir; je pâlis, je frissonne, Et troublé tout à coup dans le sein du bonheur, Je sens couler des pleurs dont mon âme s’étonne. Tu me presses soudain dans tes bras caressants, Tu m’interroges, tu t’alarmes, Et je vois de tes yeux s’échapper quelques larmes Qui viennent se mêler aux pleurs que je répands. « De quel ennui secret ton âme est-elle atteinte? Me dis-tu : cher amour, épanche ta douleur; J’adoucirai ta peine en écoutant ta plainte, Et mon cœur versera le baume dans ton cœur. » Vida do meu viver, não me interrogues! Quando enlaçado nos teus níveos braços A confissão de amor te ouço, e levanto Lânguidos olhos para ver teu rosto, Mais ditoso mortal o céu não cobre! Se eu tremo, é porque nessas esquecidas Afortunadas horas, Não sei que voz do enleio me desperta, E me persegue e lembra Que a ventura co’ o tempo se esvaece E o nosso amor é facho que se extingue! De um lance, espavorida, Minha alma voa às sombras do futuro, E eu penso então; “Ventura que se acaba Um sonho vale apenas.” Ne m’interroge plus, ô moitié de moi-même! Enlacé dans tes bras, quand tu me dis : « Je t’aime », Quand mes yeux enivrés se soulèvent vers toi, Nul mortel sous les cieux n’est plus heureux que moi ! Mais jusque dans le sein des heures fortunées Je ne sais quelle voix que j’entends retentir Me poursuit, et vient m’avertir Que le bonheur s’enfuit sur l’aile des années, Et que de nos amours le flambeau doit mourir! D’un vol épouvanté, dans le sombre avenir Mon âme avec effroi se plonge, Et je me dis : Ce n’est qu’un songe Que le bonheur qui doit finir. Fonte: Assis (1976); Lamartine (1853) Tomado em seu conjunto, o poema de Machado de Assis apresenta o mesmo relato do poema Lamartineano: quando os dois amantes se encontram sozinhos, o rapaz faz juras de amor eterno, mas também deixa entrever os sentimentos de insegurança quanto ao futuro, receoso de 239 perder aquele amor, mas se recusa a confessar o que o aflige. Os caminhos para se chegar a isso, contudo, divergem a ponto de dar ao poema de Machado de Assis outro tom, em boa medida fruto das escolhas formais do tradutor. O poema de Machado também está divido em duas estrofes, a primeira com vinte e cinco versos, como a de Lamartine, e a segunda com quinze, dois a mais do que o poema francês. Como nas outras traduções analisadas, Machado troca o alexandrino clássico de Lamartine por versos decassílabos heroicos e sáficos. Certamente os alexandrinos não o intimidavam, já que somente em Falenas o metro é utilizado em sete poemas. A escolha dos decassílabos, portanto, certamente foi intencional. Por outro lado, Machado mantém o uso do verso quebrado, ainda que em posições diferentes e com maior frequência do que no texto-fonte: na primeira estrofe, Machado usa o verso quebrado três vezes, contra uma de Lamartine; na segunda, ambos utilizam o verso quebrado quatro vezes, mas em posições diferentes, visto que Lamartine concentra três deles nos últimos versos. Observamos tentativas de compensação formal, mas o que se destaca dessas opções formais é que o verso mais curto, mais sintético, sem rimas, parece refletir melhor tensão causada pela angústia que o jovem guarda dentro de si, algo que se nota nitidamente nos versos abaixo: Ai, quanta vez então dentro em meu peito Vago terror penetra, como um raio! Empalideço, tremo;473 que traduzem os seguintes versos franceses: Souvent alors, souvent, dans le fond de mon cœur Pénètre comme un trait une vague terreur ; Tu me vois tressaillir; je pâlis, je frissonne,474 Observamos que, embora o poema de Machado de Assis tenha dois versos a mais do que o de Lamartine, sente-se que sua versão é mais sintética. De imediato, uma simples contagem de palavras revela que o poema de Machado possui exatamente sessenta palavras a menos do que o poema francês. Um bom exemplo deste sintetismo do tradutor é observado entre os versos 19 e 21 da tradução de Machado, que traduzem os versos 18 a 21 do poema de Lamartine: Tu, carinhosa e trêmula, Nos teus braços me cinges, – e assustada, Interrogando em vão, comigo choras!475 473 ASSIS, 1976, p. 236 LAMARTINE, 1853, p. 74 475 ASSIS, Op. Cit., p. 236-237 474 240 Tu me presses soudain dans tes bras caressants, Tu m’interroges, tu t’alarmes, Et je vois de tes yeux s’échapper quelques larmes Qui viennent se mêler aux pleurs que je répands.476 Os três alexandrinos clássicos e o octossílabo de Lamartine se tornam um hexassílabo e dois decassílabos. A redução é perceptível tanto no número de palavras quanto no de sílabas poéticas. Machado alcança o efeito eliminando, por exemplo, o advérbio “soudain”, e traduzindo os dois alexandrinos finais do trecho acima – que, se traduzidos literalmente, nos dariam algo tão expansivo, caudaloso, exagerado quanto “E vejo de teus olhos escaparem algumas lágrimas / que vêm se juntar aos prantos que derramo” – por um simples “comigo choras”. O efeito alcançado com uma descrição que parece buscar somente o essencial, mais uma vez, reflete melhor a angústia, a aflição, de que o jovem poeta está tomado. Machado, por outro lado, também faz poucos acréscimos na sua tradução, como no segundo verso “Tu, pensativa e muda; e eu, namorado”, ou nos dois últimos versos da primeira estrofe, “Fala! Eu abrandarei tuas penas/Fala! Eu consolarei tua alma aflita.”, em que os trechos destacados em itálico não encontram nenhuma correspondência no poema francês. Ainda assim, esses exemplos nos sugerem que o poeta-tradutor buscava um sentimento dramático mais intenso nos seus versos. Um procedimento bastante comum que se observa, na verdade, é a reformulação do trecho empregando frequentemente alguma forma de inversão sintática. O terceiro verso do poema francês, por exemplo, “J’abandonne mon âme aux molles voluptés”, se torna “Às volúpias do amor a alma entregando”. O mesmo ocorre com o verso “Comme l’abeille avide aux feuilles de la rose”, que é traduzido por “Como às folhas da rosa ávida abelha”. Evidentemente, essas inversões não foram meros caprichos, mas movimentos necessários para se encontrar o metro e ritmo adequados aos versos. Por um lado, a leitura que se pode fazer do poema de Machado é, em termos gerais, a mesma da que fizemos do poema de Lamartine: dois jovens apaixonados aproveitam o momento que passam juntos. O rapaz, em meio às juras de amor eterno, deixa sua insegurança antecipar o sentimento de perda, sentimento que o deixa desconcertado a ponto de fazer a sua amada perceber que há algo de errado. Por outro, é nítido o quanto o tradutor reescreve o texto de Lamartine, afastando-se da letra para recompor as cenas à sua maneira. 476 LAMARTINE, Op. Cit., p. 74-75 241 O tradutor é menos efusivo, menos afeito aos arroubos langorosos de Lamartine, não obstante a admiração que nutria por ele. O Machado de Assis poeta-tradutor que se apresenta a partir da análise desta tradução – e de outras que veremos a seguir – parece colocar em prática o que Novalis chamou de tradução “transformante”, que Berman define e explica nos seguintes termos: “[...] traduções que modificam pura e simplesmente o original e suas formas, ou porque se traduz uma obra versificada em prosa, ou porque se traduz um tipo de verso por outro, etc.”477. Este tipo de tradutor “transformante” é chamado por Berman de “‘poeta do poeta’ – expressão reflexiva que nos é agora familiar e que indica o movimento de potencialização evocado acima”478. Para Berman, na tradução “[...] transformante duas visadas poéticas se complementam potencializando a obra”479. Aqui, o poeta busca reimaginar o texto-traduzido, o que significa buscar uma nova forma poética que transmita os sentimentos que deseja imprimir em seu poema e que não serão, necessariamente, os mesmos do texto de partida. Não há “deferência” diante do poema de Lamartine. Há uma busca para se criar um poema a partir dele, de dar um passo além daquele dado por Lamartine. Desta forma, a prática da tradução machadiana que se delineia demonstra uma crescente regularidade nos procedimentos que prezam, sobretudo, pela liberdade criativa e original do tradutor. 8.2 “Os deuses da Grécia” “Não sei alemão; traduzi estes versos da tradução em prosa francesa de um dos mais conceituados intérpretes da língua de Schiller”480. Assim, categórico e despretensioso, Machado de Assis comenta sua única tradução do poeta alemão. Se Machado, como ele mesmo afirma, traduz a partir do francês, precisamos verificar qual foi o texto-fonte utilizado para estudar sua tradução. Galante de Sousa indica uma possibilidade na sua Bibliografia de Machado de Assis: Possivelmente a tradução de que se serviu Machado de Assis foi a seguinte: Poésies de Schiller – Traduction nouvelle par Ad. Régnier – Paris – Librairie de L. Hachette et Cie. – 1859. (É o 1o vol. de Œuvres de Schiller). Aí se encontra a dita peça, vertida em prosa francesa, em 16 estrofes, nas pp. 414-418, sob o título LES DIEUX DE LA GRÈCE. 477 BERMAN, 2002, p. 200 Ibid., p. 201 479 Ibid. 480 ASSIS, 1976, p. 346 478 242 Em nota, diz o tradutor francês, que, na versão primitiva, havia quatro outras estrofes em lugar da 6a na sua tradução. Como a essa 6a estrofe correspondem as estrofes 11a e 12a da tradução de Machado de Assis, parece lícito concluir que o mesmo baseou sua composição na tradução de Régnier481. Esta informação é rebatida por Jean-Michel Massa, que sugere que Machado de Assis teria utilizado outra tradução: “Machado usou mesmo a de X. Marmier, Poésies de Schiller, traduction nouvelle, Paris, 1862 (B.N. Paris Y th 3490)”482 sem apresentar os dados que o levaram a tal conclusão. Esta é uma dúvida que pretendemos dirimir no decorrer desta análise. Quanto à escolha do texto, Massa tece as considerações a seguir: Ao escolher “Les dieux de la Grèce”, de Schiller, o escritor antecipa no Brasil o gosto de sua época, pois o poeta alemão, apreciado e traduzido na França, era em seu país quase um desconhecido. Lembremo-nos de que Machado de Assis usou uma tradução francesa, pois não conhecia o alemão. “Os deuses da Grécia” é um hino à idade de ouro hoje desaparecida do mundo moderno. Schiller, como Machado de Assis, admirava a alegria e harmonia que reinava então, e mais ainda a beleza e a arte. Em 1869, é sem dúvida esse aspecto parnasiano que seduziu o jovem escritor. [...] Parecenos significativo que entre as obras líricas de Schiller, Machado de Assis escolheu uma poesia em que certos versos têm acentos pré-parnasianos483. Massa diz que Schiller era “quase um desconhecido” e, em nota, explica que na época da publicação de Falenas só se conhecia uma tradução de poetas alemães em português, e feita em Portugal: Ecos da lira teutônica. Informa ainda que das trinta e cinco obras do volume, apenas três são de Schiller e que no Brasil, Schiller teve como seu tradutor Gonçalves Dias, que traduziu a peça A noiva de Messina484, cuja versão definitiva perdeu-se com seu autor no naufrágio que o matouxxxix. Mas, além de Gonçalves Dias, há também José Inácio Gomes Ferreira de Menezes, conhecido de Machado de Assis e com quem manteve correspondência. Ferreira de Menezes também traduziu Schiller, além de Hugo, Byron, Ossian e Chénier em Flores sem Cheiro (1863), que contém toda uma seção de “Traduções”. Do poeta alemão, representado em quatro das onze traduções, Menezes verte “O amor triunfante”, “A Emma”, “O Fugitivo” e “Enlevo” sem informar se diretamente do alemão ou se por intermédio de alguma outra versão. Não sabemos em que medida Massa considerou Schiller “quase um desconhecido”, ou o que o levou a tal conclusão, mas é possível encontrar diversas referências ao poeta alemão em dezenas jornais e periódicos da época, inclusive naqueles em que Machado de Assis colaborou. Régnier, autor da tradução sugerida Galante de Sousa como texto-fonte, ao traduzir em prosa “Les dieux de la Grèce” – cujo título em alemão é “Die Götter Griechenlands” – afirma 481 SOUSA, 1955, p. 448. MASSA, 2008, p. 111 483 Ibid., p. 81-82 484 Ibid., p. 111 482 243 em nota que a primeira publicação do poema se deu em 1788 no Mercure Allemand (“Der Deutsche Merkur”), provocando reações imediatas. Ao republicar o poema, Schiller suprime quatro estrofesxl que ocupavam o lugar da sexta na segunda versão do poema. Régnier mantém a forma final do poema de Schiller na sua tradução, mas inclui em nota a tradução das quatro estrofes suprimidas da primeira edição. A tradução de Régnier possui dezesseis estrofes, a de Marmier, texto-fonte sugerido por Massa, quatorze. Considerando a forma alemã do poema em Gedichte von Schiller, de 1873, em que “Die Götter Griechenlandes” possui dezesseis estrofes485 de oito versos cada, com rimas alternadas, sempre no esquema ABABCDCD, a de Régnier estaria mais próxima do texto fonte quanto à organização do texto. Não sabemos se por escolha do tradutor ou se por problemas editoriais, mas o fato é que a versão de Marmier possui menos estrofes por juntar duas estrofes em uma só em dois momentos: à primeira estrofe na tradução de Marmier correspondem as duas primeiras na tradução de Régnier, e à quinta estrofe de Marmier correspondem as estrofes seis e sete de Régnier. Abaixo lemos a reprodução da tradução de Machado de Assis ao lado de um dos possíveis textos de partida, na tradução de Régnier: Quadro comparativo 18 – “Os deuses da Grécia” e “Les Dieux de la Grèce” Os Deuses da Grécia (Schiller) Quando, coos tênues vínculos de gozo, Ó Vênus de Amatonte, governavas Felices raças, encantados povos Dos fabulosos tempos; Quando fulgia a pompa do teu culto, E o templo ornavam delicadas rosas, Ai! quão diverso o mundo apresentava A face aberta em risos! Na poesia envolvia-se a verdade; Plena vida gozava a terra inteira; E o que jamais hão de sentir na vida Então sentiam homens. Lei era repousar no amor; os olhos Nos namorados olhos se encontravam; Espalhava-se em toda a natureza Um vestígio divino. Onde hoje dizem que se prende um globo Cheio de fogo, — outrora conduzia Hélios o carro de ouro, e os fustigados Cavalos espumantes. 485 Les Dieux de la Grèce Quand vous gouverniez encore le bel univers, que vous meniez encore les races fortunées avec les rênes légères du plaisir, êtres charmants du pays des fables!... ah! quand brillait encore votre culte délicieux, comme tout alors était tout autre!... quand on couronnait encore tes temples de guirlandes, Vénus d’Amathonte ! Quand le voile magique de la poésie entourait encore gracieusement la vérité.... alors par toute la création coulait la plénitude de la vie, et ce qui jamais ne sera sensible sentait. Pour la presser sur le sein de l’Amour, on donnait à la nature une plus haute noblesse ; tout, aux regards initiés, tout montrait la trace d'un Dieu. Où maintenant, comme le disent nos sages, ne se meut plus qu’un globe de feu sans vie, Hélios, dans sa paisible majesté, conduisait son char d’or. Ces cimes, les Oréades les peuplaient ; dans cet arbre vivait une Dryade; et des urnes des aimables Naïades jaillissait l’écume argentée des torrents. Ce laurier autrefois s'est tordu implorant du secours ; la tille de Tantale est muette dans ce rocher; la plainte de Syrinx s’échappe de ce roseau , la douleur de Philomèle de ce bocage. Ce ruisseau reçut les larmes que Cérès pleura sur Proserpine, et de cette colline Cythérée appelait.... en vain, hélas! son ami charmant. SCHILLER, F. Gedichte von Schiller. 2 ed. Berlin: G. Grote, 1873, p. 62-66 244 Povoavam Oréades os montes, No arvoredo Doríades viviam, E agreste espuma despejava em flocos A urna das Danaides. Refúgio de uma ninfa era o loureiro; Tantália moça as rochas habitava; Suspiravam no arbusto e no caniço Sírinx, Filomela. Cada ribeiro as lágrimas colhia De Ceres pela esquiva Perséfone; E do outeiro chamava inutilmente Vênus o amado amante. Entre as raças que o pio tessaliano Das pedras arrancou, — os deuses vinham; Por cativar uns namorados olhos Apolo pastoreava. Vínculo brando então o amor lançava Entre os homens, heróis e os deuses todos; Eterno culto ao teu poder rendiam, Ó deusa de Amatonte! Jejuns austeros, torva gravidade Banidos eram dos festivos templos; Que os venturosos deuses só amavam Os ânimos alegres. Só a beleza era sagrada outrora; Quando a pudica Tiêmone mandava, Nenhum dos gozos que o mortal respira Envergonhava os deuses. Eram ricos palácios vossos templos; Lutas de heróis, festins, e o carro, e a ode, Eram da raça humana aos deuses vivos A jucunda homenagem. Saltava a dança alegre em torno a altares; Louros c’roavam numes; e as capelas De abertas, frescas rosas, lhes cingiam A fronte perfumada. Anunciava o galhofeiro Baco O Tirso de Evoé; sátiros fulvos Iam tripudiando em seu caminho; Iam bailando as Mênades. A dança revelava o ardor do vinho; De mão em mão corria a taça ardente, Pois que ao fervor dos ânimos convida A face rubra do hóspede. Nenhum espectro hediondo ia sentar-se Ao pé do moribundo. O extremo alento Escapava num ósculo, e voltava Um gênio a tocha extinta. Alors les habitants des rieux descendaient encore parmi la race de Deucalion. Pour triompher des belles filles de Pyrrha, le fils de Latone prenait la houlette du berger. Entre les hommes, les dieux et les héros, l’Amour nouait de beaux nœuds ; les mortels, les héros et les dieux ensemble portaient leurs hommages à Amathonte. La gravité sombre et le triste renoncement étaient bannis de votre culte serein ; tous les cœurs devaient battre heureux et contents, car les heureux vous étaient alliés. Rien alors n’était saint que le beau ; le dieu n’avait honte d’aucune joie, là où la Muse, rougissant avec pudeur, où la Grâce commandait. Vos temples étaient riants comme des palais; les jeux des héros vous célébraient aux fêtes de l’Isthme, riches en couronnes ; et les chars tonnaient roulant au but. S’entrelaçant avec grâce, des danses pleines de vie entouraient l’autel splendide. Des guirlandes triomphales ornaient vos tempes ; des couronnes, votre chevelure parfumée. Le joyeux Évohé de la troupe armée du thyrse, et le superbe attelage des panthères annonçaient l’approche du grand dieu qui apporte la joie ; le Faune et le Satyre marchent en chancelant devant lui ; autour de lui bondissent les Ménades en délire ; leurs danses louent son vin, et les joues brunies du divin hôte invitent gaiement à vider la coupe. En ce temps-là, un hideux squelette ne se dressait pas devant le lit du mourant. Un baiser recueillait le dernier souffle sur les lèvres ; un Génie retournait son flambeau. Aux Enfers même, la sévère balance de la Justice était aux mains du petit-fils d’une mortelle, et la plainte touchante du poète de Thrace attendrissait les Euménides. L’ombre heureuse retrouvait ses joies dans les bosquets de l’Élysée ; l’amour fidèle, son fidèle époux, et le conducteur de char, sa carrière ; la lyre de Linus fait entendre ses chants accoutumés ; Admète tombe dans les bras d’Alceste ; Oreste reconnaît de nouveau son ami ; Philoctète, ses flèches. De plus nobles prix fortifiaient alors le lutteur dans le rude sentier de la vertu. D’héroïques auteurs de grandes actions gravissaient au rang des Immortels. La troupe muette des dieux des Enfers s'inclinait devant celui qui venait réclamer les morts. Du haut de l'Olympe, le couple des Gémeaux éclairait le pilote parmi les vagues. Monde charmant, où es-tu ? Reviens, aimable printemps de la nature ! Hélas ! ce n’est que dans le pays de fées de la poésie que vit encore ta trace fabuleuse. La campagne est triste et dépeuplée ; nulle divinité s’offre à mon regard. Hélas ! de cette image, toute chaude de vie, l’ombre seule est restée. Toutes ces fleurs sont tombées au souffle glacé du nord. Pour enrichir un seul entre tous, ce monde de dieux a dû périr. Je cherche tristement sur la voûte étoilée.... ô Séléné, je ne t’y trouve plus. Je crie dans les bois, dans les flots.... hélas ! le vide seul me répond ! 245 E além da vida, nos infernos, era Um filho de mortal quem sustentava A severa balança; e coa voz pia Vate ameigava as Fúrias. Nos Elíseos o amigo achava o amigo; Fiel esposa ia encontrar o esposo; No perdido caminho o carro entrava Do destro automedonte. Continuava o poeta o antigo canto; Admeto achava os ósculos de Alceste; Reconhecia Pilades o sócio E o rei tessálio as flechas. Nobre prêmio o valor retribuía Do que andava nas sendas da virtude; Ações dignas do céu, filhas dos homens, O céu tinham por paga. Inclinavam-se os deuses ante aquele Que ia buscar-lhe algum mortal extinto; E os gêmeos lá no Olimpo alumiavam O caminho ao piloto. Onde és, mundo de risos e prazeres? Porque não volves, florescente idade? Só as musas conservavam teus divinos Vestígios fabulosos. Tristes e mudos vejo os campos todos; Nenhuma divindade aos olhos surge; Dessas imagens vivas e formosas Só a sombra nos resta. Do norte ao sopro frio e melancólico, Uma por uma, as flores se esfolharam; E desse mundo rútilo e divino Outro colheu despojos. Os astros interrogo com tristeza, Selene, e não te encontro; à selva falo, Falo à vaga do mar, e à vaga, e à selva, Inúteis vozes mando. Da antiga divindade despojada, Sem conhecer os êxtases que inspira, Desse esplendor que eterno a fronte lhe orna Não sabe a natureza. Nada sente, não goza do meu gozo; Insensível à força com que impera, O pêndulo parece condenado Às frias leis que o regem. Para se renovar, abre hoje a campa, Foram-se os numes ao país dos vates; Das roupas infantis despida, a terra Inúteis os rejeita. Ignorant les joies qu’elle donne, n’étant jamais ravie de sa propre grandeur, ne connaissant pas l’esprit qui la gouverne, ne jouissant pas de ma félicité, insensible même à la gloire de son auteur, la nature, dépouillée de sa divinité, obéit servilement, comme le battement mort de l’horloge, à la loi de la pesanteur. Pour renaître demain, elle se creuse aujourd’hui son propre tombeau, et les lunes, d’elles-mêmes, s’enroulent et se déroulent sur un fuseau éternellement pareil. Les dieux oisifs s’en sont allés chez eux, dans le pays des poètes, inutiles désormais à un inonde qui, trop grand maintenant pour qu’ils le mènent à la lisière, se soutient par son propre balancement. Oui, ils s’en sont allés chez eux, et ils ont emporté toute beauté, toute grandeur, toutes les couleurs, tous les tons de la vie, et il ne nous est resté que la parole inanimée. Arrachés au déluge du temps, ils flottent, sauvés du naufrage, sur les hauteurs du Pinde : ce qui doit vivre immortel dans les chants des poètes, est condamné à périr dans la vie réelle. 246 Foram-se os numes, foram-se; levaram Consigo o belo, e o grande, e as vivas cores, Tudo que outrora a vida alimentava, Tudo que é hoje extinto. Ao dilúvio dos tempos escapando, Nos recessos do Pindo se entranharam: O que sofreu na vida eterna morte, Imortalize a musa! Fonte: Assis (2009); Schiller (1859) “Les dieux de la Grèce”, conforme se lê nas versões francesas que segundo Massa (2008) e Sousa (1955) Machado poderia ter consultado, compara a vida e a natureza conforme eram na antiguidade clássica grega com a realidade da vida cristã de então. A antiguidade, governada pelos deuses gregos, é considerada uma época de saudosa e harmoniosa alegria: “Lorsque vous gouverniez encore ce monde riant, avec légers liens de la joie / [...] Venus Amathonte, ah! Comme tout était autre qu’à présent”486. Uma leve crítica ao presente austero da era cristã aparece já quinta estrofe na tradução de Marmier: “La gravité sombre, l’autère abstinence étaient bannies de votre joyeuse religion”487. Esta época graciosa desapareceu, e seus vestígios só são percebidos na poesia: “Monde riant, où es-tu? reviens âge fleuri de la nature. Hélas ! tes vestiges fabuleux n’ont été conservés que dans les régions féeriques de la poésie”488. Agora o homem, ao contrário de antes, está distante da divindade: “nulle Divinité ne s’offre à mon regard”. Até mesmo a natureza mudou, agora insensível à presença do divino e do homem: “Elle ne sent pas l’esprit qui la dirige, elle ne se réjouit pas de ma joie;”. Os deuses se foram porque não têm mais utilidade neste mundo: “Les Dieux sont retournés dans la terre des poètes, inutiles désormais à un monde qui, rejetant ses lisières, se soutient par son propre poids”. Este mundo idealizado por Schiller vive somente na poesia, e seu desaparecimento da vida dos homens é a condição para que continuem sua existência poética, como o poeta expressa nas últimas palavras do poema: “ce qui doit être immortel dans la poésie doit périr dans la vie”489. Otto Maria Carpeaux (2013) coloca Goethe e Schiller, a quem considera os dois melhores dramaturgos do Sturm und Drang, entre os melhores poetas do período imediatamente 486 SCHILLER, F. Poésies. Trad. M. X. Marmier. 4 ed. Paris: Charpentier et Cie., Libraires-Éditeurs, 1874a, p. 149. 487 Ibid., p. 150. 488 Ibid., p. 151. 489 Ibid., p. 152. 247 posterior na literatura alemã490. Carpeaux considera ainda que, como poeta, faltava a Schiller a real veia lírica: “[...] mais didático do que lírico e mais eloquente do que realmente poético”491, Schiller poderia muito bem ter escrito seus poemas filosóficos em prosa. Lúcia Miguel Pereira e outros fizeram críticas similares à poesia de Machado de Assis, sugerindo que as feições que ele ganhou como poeta refletem, ao menos em parte, aqueles em quem se espelhou. Ao comentar o poema “Os deuses da Grécia” em tradução de Machado de Assis, Pedro Süssekind, no artigo “A recriação da Grécia. O debate de Goethe e Schiller sobre a recriação dos antigos” (2007), afirma que “[a] leitura da Ifigênia influenciou Schiller a escrever o poema Os deuses da Grécia, publicado em março de 1788, no qual se encontram reflexões acerca do desaparecimento dos deuses, antecipando um tema de Hölderlin e dos românticos”492. Süssekind sugere que o poema de Schiller, citado em tradução de Machado no artigo, aponta para uma recuperação dos tempos antigos através da poesia, o que se daria a partir da recriação dos antigos através da imitação deles, sendo a Ifigênia de Goethe um modelo, um exemplo de como fazê-lo. A obra de Goethe ainda levaria Schiller a estudar grego e traduzir textos antigos a fim de apurar sua técnica493. Süssekind conclui seu artigo dizendo que para Schiller o poeta deveria, ao imitar os antigos, não apenas copiar os modelos, mas criar outra Grécia através da sua expressão poética494. Este conceito já estaria anunciado no poema “Os deuses da Grécia” e Machado, ao recriá-lo, estaria seguindo o rastro de Schiller e passando a mensagem adiante. Além disso, a leitura apresentada no artigo mostra que a tradução de Machado de Assis se atém ao sentido central do poema de Schiller, conforme lido na tradução francesa que apresentamos. Por outro lado, a tradução de Machado de Assis nos coloca de imediato diante de dois problemas: o primeiro é determinar qual foi o texto-fonte utilizado pelo tradutor para recuperarmos o histórico de suas leituras, já que as duas principais referências no caso, as pesquisas de Galante de Sousa e Jean-Michel Massa, apresentam soluções diferentes. Em seguida, sabendo que Machado traduz a partir de uma versão em prosa francesa, mas devolvendo o texto à forma poética, interessa investigar mais atentamente a maneira como o tradutor-poeta, a partir da forma que escolhe dar ao seu texto, cria um poema capaz de estabelecer o mesmo diálogo sugerido pelo poema de Schiller e que se tornou um tema caro aos românticos alemães: não a imitação, mas a emulação de modelos da antiguidade como forma 490 CARPEAUX, Otto Maria. História concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013, p. 60. Ibid., p. 71 492 SÜSSEKIND, Pedro. “A recriação da Grécia. O debate de Goethe e Schiller sobre a imitação dos antigos”. In: Kleos: revista de filosofia antiga, v. 11, 2007, p. 82 493 Ibid., p. 82 494 Ibid., p. 88 491 248 de renovar a poesia contemporânea, algo que resvala no papel que parece reservado à tradução na poética machadiana. Quanto ao primeiro problema, após comparar as três versões do poema – nas traduções de Régnier, Marmier e Machado de Assis – estamos inclinados a acreditar que a indicação de Massa estava correta. Seria temerário fazer qualquer afirmação definitiva neste sentido, uma vez que as escolhas de Machado de Assis tomam necessariamente um caminho mais próprio, tendo em vista a devolução do texto à forma poética. Ainda assim, algumas escolhas vocabulares são indício de que ele trabalhou a partir da tradução de Marmier. O primeiro exemplo disso pode ser observado na terceira estrofe de sua tradução: Na poesia envolvia-se a verdade; Plena vida gozava a terra inteira; E o que jamais hão de sentir na vida Então sentiam homens495. Comparemos, por exemplo, os dois versos finais da estrofe acima com o trecho correspondente na versão de Marmier: “et ce qu’on ne sentira jamais on le sentait dans ces temps-là” (“E o que nunca se sentirá, sentia-se naquele tempo”xli), e o mesmo trecho na tradução de Régnier: “et ce qui jamais ne sera sensible sentait” (“e o que nunca será sensível sentia”). O primeiro verso da sétima estrofe na tradução de Machado de Assis também é indício de que ele trabalhou a partir da versão de Marmier. Em sua tradução lemos “Refúgio de uma ninfa era o loureiro” e, tradução quase literal da versão de Marmier, “Ce laurier est le refuge d’une nymphe” (“Este louro é o refúgio de uma ninfa”), enquanto Régnier traduz o mesmo trecho por “Ce laurier autrefois s’est tordu implorant du secours” (“Este louro torceu-se outrora implorando socorro”). Outro exemplo em que as escolhas de Machado espelham as de Marmier encontra-se nos primeiros versos da estrofe 17 na tradução de Machado de Assis: “Nenhum espectro hediondo ia sentar-se / ao pé do moribundo. [...]”, em que o termo destacado em itálico é exatamente o mesmo que Marmier usa em sua tradução: “Alors nul spectre hideux ne se plaçait au chevet du mourant” (“Nenhum espectro hediondo colocava-se à cabeceira do moribundo então”). Comparando o trecho acima nas versões de Machado e Marmier com as escolhas de Régnier percebe-se o quanto esta distancia-se das escolhas de Machado: “En ce temps-là, un 495 ASSIS, 1976, p. 325 249 hideux squelette ne se dressait pas devant le lit du mourant” (“Naquele tempo, um esqueleto hediondo não se erguia diante do leito do moribundo”). Mesmo quando Machado – um tanto incoerente com o restante do poema – nomeia uma das divindades do poema da mesma forma que Régnier, trocando uma deusa grega por sua equivalente romana, sua tradução ainda é mais próxima da versão de Marmier. Nos dois primeiros versos da oitava estrofe na tradução de Machado lemos “Cada ribeiro as lágrimas colhia / De Ceres pela esquiva Perséfone”. Ceres, deusa romana da agricultura, equivale à deusa Deméter, que é o que encontramos na versão de Marmier: “Chaque ruisseau recevait les larmes que Demètre répandait sur Perséphone” (“Cada ribeiro recebia as lágrimas que Deméter derramava sobre Perséfone”). Régnier traduz o mesmo trecho por “Ce ruisseau reçut les larmes que Cérès pleura sur Proserpine” (“Este ribeiro recebeu as lágrimas que Ceres chorou sobre Proserpina”), trocando não só Demètre por Céres, mas Perséphone por Proserpine, também romana, coerente com a primeira escolha. Embora seja possível encontrar mais exemplos que sugerem que Machado trabalhou a partir da versão de Marmier, acreditamos que o que foi apresentado seja suficiente para corroborar e embasar a sugestão de Massa quanto ao texto-fonte utilizado por nosso tradutorpoeta. Soma-se a isso o fato de que a Galante de Sousa apenas sugere – lembremos do “possivelmente” – que Machado teria trabalho a partir da tradução de Régnier, deixando a questão em aberto. Resta avaliar os méritos da tradução de Machado como um poema, o que faremos cotejando suas escolhas com as de outro tradutor que já nos auxiliou anteriormente na tradução de Heine, o inglês Edgar Alfred Bowring, contemporâneo de Machado, que traduziu, além de poemas de Heine e Schiller diretamente do alemão, exibindo considerável destreza na recriação dos poemas, também obras poéticas e dramáticas de Goethe e tragédias de Vittorio Alfieri. Antoine Berman, mais uma vez, nos respalda nesta escolha quando nos lembra que “[...] mais essencial é o fato e que, mesmo que se considere apenas uma tradução de uma obra, é sempre proveitoso compará-la também a outras traduções, quando houver”496. Acreditamos que esta comparação é particularmente benéfica neste caso já que Machado de Assis, como ele próprio admite, só teve acesso ao poema de Schiller através de uma versão francesa. 496 BERMAN, 1995, p. 84, grifos do autor, tradução nossa. No original: “[p]lus essentiel est le fait que, même si l’on ne considère fondamentalement qu’une traduction d’une œuvre, il est toujours fructueux de la comparer aussi à d’autres traductions, quand il y en a”. 250 Ao contrário de Machado de Assis, que na sua carreira de tradutor pinçou somente alguns textos que considerava relevantes ou com os quais desejava manter um diálogo mais íntimo, Bowring procurou trazer, na íntegra, as obras poéticas dos românticos alemães para o inglês. The poems of Schiller, tradução de Bowring que consultamos na segunda edição de 1874, foi publicada pela primeira vez mais de vinte anos antes, em 1851. No prefácio à primeira edição – reproduzido na segunda – o tradutor é explícito quanto ao seu projeto: de início, explica que para se apreciar apropriadamente a obra poética de Schiller foi preciso traduzir todos os poemas encontrados nas versões autorizadas de sua obra na época497. Quanto à forma que escolhe dar às suas traduções, Bowring nos deixou as seguintes considerações: o metro do original foi mantido sempre que possível, e em somente poucas situações sem importância deixou-se de lado esta regra. Quanto às Elegias em particular, o Tradutor preservou o hexâmetro e o pentâmetro do alemão, não só porque elas permitem uma versão mais fiel do original, mas também porque ele entende que um metro que foi empregado com tanto sucesso pelo poeta alemão não pode ser completamente inadequado em uma língua tão próxima na origem e construção ao alemão quanto a nossa498. Além disso, Bowring diz organizar os poemas na mesma ordem das mais recentes edições alemãs autorizadas499. De acordo com essa organização, “Os deuses da Grécia” figura entre os poemas do segundo período, o menos volumoso dos três períodos em que a poesia de Schiller é dividida. A versão de Bowring contém dezesseis oitavas, sem nenhuma menção às estrofes suprimidas e às alterações feitas no texto da primeira versão do poema publicada por Schiller. Assim como na versão alemã, as oitavas de Bowring são rimadas, no esquema ABABCDCD, frequentemente empregando o pentâmetro iâmbico. Machado de Assis, ao devolver o poema de Schiller à forma poética, compõe sua versão em trinta e uma quadras heterométricas, compostas de três decassílabos italianos seguidos por um hexassílabo, sem rimas. O poema é rigorosamente metrificado, embora em alguns momentos seja necessário fazer uso de sinérese para que a métrica esteja correta, como nos versos 9 (“Na poesia envolvia-se a verdade;), 36 (“Apolo pastoreava”), 65 (“Nenhum espectro hediondo ia sentar-se”) e 77 (“Continuava o poema o antigo canto”). Em todas as quadras de 497 BOWRING in SCHILLER, F. The poems of Schiller. Trad. Edgar A. Bowring, C.B., M.P. 2 ed. London: George Bell and Sons, 1874b, p. v 498 Ibid., p. v-vi, tradução nossa. No No original: “the metre of the original has been adhered to as closely as possible, and in only a few unimportant instances has this rule been departed from. With regard to the Elegiacs in particular [...] the Translator has preserved the hexameter and pentameter of the German, not only because they admit of a more faithful rendering of the original, but also because he conceives that a metre which has been employed with such singular success by the German poet, cannot be entirely unsuited to a language so closely allied in origin and construction to the German as our own”. 499 Ibid., ix 251 Machado de Assis lemos três versos de dez sílabas, seguidos por um verso quebrado, o hexassílabo. O ritmo predominante é o do decassílabo heroico, e mesmo quando o sáfico é empregado, o hexassílabo não soa inapropriado. Além disso, os princípios harmonização acentual não são regras inquebráveis, como Chociay (1974) nos ensina: “[...] os poetas nem sempre se preocuparam demais com esse critério de harmonização acentual, cuidando às vezes de apenas manter a arrumação da silábica da estrofe heterométrica [...]” fazendo, inclusive, “[...] livres combinações de sáficos e heroicos quer com hexassílabos, quer com tetrassílabos”500. Note-se ainda que cada duas quadras de Machado correspondem a uma oitava na versão alemã, com exceção da quadra 29 da tradução de Machado, que corresponde à décima quinta oitava. Além disso, algumas oitavas do poema alemão possuem o último verso em metro menor do que os demais, lembrando o emprego que Machado faz do verso quebrado, como se observa logo na primeira estrofe, por exemplo: Da ihr noch die schöne Welt regieret, An der Freude leichtem Gängelband Selige Geschlechter noch geführet, Schöne Wesen aus dem Fabelland! Ach, da euer Wonnedienst noch glänzte, Wie ganz anders, anders war es da! Da man deine Tempel noch bekränzte, Venus Amathusia!501 Ao devolver o poema de Schiller à forma poética Machado obteve resultado certamente louvável e inevitavelmente diverso da forma da versão alemã. A escolha pelos decassílabos brancos combinados com hexassílabos dá o tom clássico adequado à temática, e o uso do pretérito imperfeito reforça o distanciamento e o ar saudosista da antiguidade. Edgar Bowring, trabalhando diretamente do alemão, reescreveu Schiller em uma língua em que ritmos análogos ao do texto germânico são mais facilmente alcançados: When the magic veil of Poesy Still round Truth entwin'd its loving chainThrough creation pour'd Life's fulness free. Things then felt, which ne'er can feel again. Then to press her 'gainst the breast of Love, They on Nature nobler power bestow'd, All, to eyes enlighten'd from above, Of a God the traces show'd502. Ao compararmos a versão de Bowring com a de Machado de Assis percebe-se o quanto o poeta brasileiro aproveita o tema e dele cria outro poema de leitura mais fluida e natural do que a 500 CHOCIAY, 1974, p. 157-158. SCHILLER, 1873, p. 62 502 SCHILLER, 1874, p. 72 501 252 versão inglesa, que às vezes parece praticar contorcionismos sintáticos para que o significado central seja mantido: Na poesia envolvia-se a verdade; Plena vida gozava a terra inteira; E o que jamais hão de sentir na vida Então sentiam homens. Lei era repousar no amor; os olhos Nos namorados olhos se encontravam; Espalhava-se em toda a natureza Um vestígio divino503. Machado é também, como outras vezes, mais sintético. Nas estrofes acima, o decassílabo de linguagem simples e direta “Na poesia envolvia-se a verdade” corresponde a dois versos da versão de Bowring: “When the magic veil of Poesy / Still round Truth entwin’d its loving chain” (Quando o mágico véu da Poesia / Ainda envolvia a Verdade em sua trama amorosa). A clareza da versão de Machado também fica evidente se comparamos os seus versos “Espalhava-se em toda a natureza / Um vestígio divino” com os de Bowring em “They on Nature nobler power bestow’d, / All, to eyes enlightened from above / Of a God the traces show’d” (“Eles à Natureza poder mais nobre conferiram/ Todos, aos olhos iluminados de cima / de um Deus os traços mostravam”). Soma-se a isso que, talvez, e sem que o tradutor tenha notado, o último verso de Bowring carrega um certo ar de cristandade monoteísta ao se referir à divindade no singular e em letra maiúscula, o que é contrário à proposta do poema. A tradução de Machado também se difere da de Bowring por não ter a linguagem demasiadamente arcaizante adotada pelo tradutor inglês. Ambas são hoje traduções centenárias, mas a de Machado de Assis ainda tem uma linguagem perfeitamente acessível ao leitor contemporâneo: Onde és, mundo de risos e prazeres? Porque não volves, florescente idade? Só as musas conservavam teus divinos Vestígios fabulosos. Tristes e mudos vejo os campos todos; Nenhuma divindade aos olhos surge; Dessas imagens vivas e formosas Só a sombra nos resta.504 A de Bowring, por outro lado, soa datada, devido ao emprego de formas já em amplo desuso no inglês corrente, como os pronomes de segunda pessoa “thou” e “thy” ou a forma verbal 503 504 ASSIS, 1976, p. 328 Ibid. 253 “art”, e construções sintáticas que lembram a poesia romântica e mesmo vitoriana inglesa, como observamos nos versos a seguir: Beauteous World, where art thou gone? Oh, thou. Nature's blooming youth, return once more! Ah, but in Song's fairy region now Lives thy fabled trace so dear of yore! Cold and perish'd, sorrow now the plains. Not one Godhead greets my longing sight Ah, the Shadow only now remains Of yon living Image bright!505 O porém da tradução de Machado é não conseguir captar a mensagem dos dois versos que encerram o poema da mesma forma que as outras. Schiller encerra seu poema com uma mensagem sobre o lugar da poesia: Was unsterblich im Gesang soll leben, Muß im Leben untergehn.506 Estes versos finais praticamente explicam o momento que Schiller acredita estar vivendo: o passado clássico idealizado por ele como aquele vivido pelos gregos se foi, e esse desaparecimento, essa morte é necessária para que dela uma nova poesia possa surgir. Marmier, autor da tradução em que Machado se baseia, nos dá a seguinte tradução do trecho: “ce qui doit être immortel dans la poésie doit périr dans la vie”507. Régnier, mais prolixo, traduz: “ce qui doit vivre immortel dans les chants des poètes, est condamné à périr dans la vie réelle”508. Possivelmente, tanto Marmier quanto Régnier tiveram menos empecilhos do que Bowring ou Machado para criar suas versões, já que traduziram em prosa, e por isso mesmo, talvez, aproximem-se mais do sentido imediato do texto alemão. A tradução de Marmier, mais sintética e direta, é igualmente mais agradável do que a de Régnier, deixando ecoar em “poésie/vie” uma agradável rima interna, algo reforçada pelo paralelismo sintático de “doit être/doit périr” que coloca em direta oposição ideias centrais no poema de Schiller: poesia e vida, imortalidade e morte. Bowring, buscando uma forma poética para sua tradução tentando conciliar metro, rima alcança o seguinte resultado: All that is to live in endless song, Must in Life-time first be drown'd509. 505 SCHILLER, Op. Cit., p. 74 SCHILLER, 1873, p. 66. Tradução: “O que vive imortalmente na canção, deve perecer na vida”. 507 Tradução: “O que deve ser imortal na poesia deve perecer na vida”. 508 Tradução: “O que deve viver imortalmente no canto dos poetas, está condenado a perecer na vida real”. 509 SCHILLER, 1874b, p. 75. Tradução: “Tudo que deve viver em canção sem fim, deve na vida primeiro ser afogado”. 506 254 O tradutor inglês, para atender às imposições formais, precisa procurar outra forma de expressar a mensagem de Schiller. O resultado não é tão forte, nem tão direto, quanto a tradução de Marmier: tanto a morte quanto a imortalidade ficam apenas sugeridas na sua tradução, resultado de sua escolha ao traduzir o adjetivo “unsterblich” (“imortal”) por “endless” (“sem fim”) e o verbo “untergehn” – que significa, entre outras coisas, “afundar”, mas também “decair”, “chegar ao fim”, e por conseguinte “perecer” – por um de seus significados figurativos que é “ser submergido” ou “afogar”. Ainda assim, é possível ler em seus versos que aquilo que vive na poesia, na canção deve perecer na vida, ou seja, que aquele passado idealizado por Schiller precisou desaparecer para que pudesse ter sobrevida poética. Todavia, a versão que soa mais enigmática é a de Machado de Assis. Se conhecêssemos somente a versão de Machado de Assis, talvez não chegássemos à leitura que se faz a partir dos versos alemães e de suas traduções em prosa francesa. Machado toma um caminho bastante próprio, livre, reescrevendo o trecho à sua maneira. Ao traduzir “ce qui doit être immortel dans la poésie doit périr dans la vie” por O que sofreu na vida eterna morte, Imortalize a musa!510 Machado de Assis inverte, em seus versos, a informação dos versos finais, mas ainda permite a mesma leitura que fizemos no poema de Schiller se os lermos como “Que a musa imortalize o que sofreu eterna morte na vida”. O poeta desfaz-se da ideia de que é primeiro necessário morrer na vida terrena para que possa ser imortalizado na poesia porque a morte irrevogável já é um fato – “O que sofreu na vida eterna morte” – expresso por um pretérito perfeito (“sofreu”) e um adjetivo que expressa o caráter irremediável da morte (“eterna”), e, portanto, resta ao poeta pedir que a musa imortalize aquilo que a morte inevitavelmente levará. Diferente das demais, a versão de Machado mantém a mensagem do poema de Schiller, de que para imortalizar-se na poesia é preciso desaparecer do plano terreno, ficando assim justificado o fim da idade clássica dos gregos. Desta forma, Machado de Assis mais uma vez demonstra que em seu horizonte poético-tradutório a liberdade criativa está acima do modo de significar estipulado pelo texto-fonte. 510 ASSIS, 1976, p. 329 255 8.3 “Cegonhas e Rodovalhos” “Cegonhas e Rodovalhos”, tradução de um poema do francês Louis-Hyacinthe Bouilhet, foi publicada pela primeira vez no n. 424 da Semana Ilustrada, jornal satírico que contou com a colaboração de Machado de Assis, em 24 de janeiro de 1869511. A peça, que não foi aproveitada pelo autor nas Poesias Completas (1901), é uma tradução em dez oitavas heterométricas de “Cigognes et turbots”, publicado dez anos antes, na França, em Festons et Astragales. A edição crítica das Poesias Completas (1976) informa que a única alteração encontrada entre a primeira publicação e Falenas está no título: na Semana Ilustrada a tradução é publicada com o título “Cegonhas e Rodovalhos”, seguido da dedicatória “A Anísiusxlii Sempronius Rufus” e da informação “(Traduzido de Bouilletxliii)”. Em Falenas, Machado de Assis adapta à língua portuguesa o nome do personagem a quem o poema é dedicado, “A Anísio Semprônio Rufo”, e elimina a informação “Traduzido de”, deixando somente o nome do autor, grafado da mesma forma, “Bouillet”. Contudo, ao compararmos as versões publicadas na Semana Ilustrada e em Falenas encontramos outras diferenças. As mudanças ortográficas são as mais frequentes, assim como as de pontuação, principalmente no que diz respeito ao acréscimo ou subtração de vírgulas. O quadro abaixo apresenta as alterações mais significativas que encontramos, como o primeiro decassílabo da sexta estrofe, em que há a troca de “romano” para “marujo”, mudança que implica numa aliteração bastante sonora, e reforça a assonância no “a” aberto em “Maior/marujo/estripava”: Quadro comparativo 19 – Diferenças entre as versões da Semana Ilustrada e Falenas do poema “Cegonhas e Rodovalhos” Semana Ilustrada “A mesa em que, – três séculos contados, –” “Onde os reis vencidos beijavam!” “Maior que esse romano que estripava” “Aos teimosos desejos que nutrias O voto da pretura...” Fonte: Semana Ilustrada (1869); Assis (2009) Falenas (1870) “A mesa em que, três séculos contados,” “Onde os reis vencidos beijavam;” “Maior que esse marujo que estripava,” “Aos teimosos desejos que nutrias O voto da pretura.” Louis Bouilhet nunca figurou entre os maiores poetas do período. Já em 1888, pouco menos de vinte anos após a morte do autor, um crítico escrevia: Louis Bouilhet, dramaturgo, é hoje desconhecido ou quase isso. Se algumas pessoas delicadas leram e apreciaram seus Festons e Astragales, seus ‘Melœnis’, suas Dernières chansons, pouquíssimos conhecem seu teatro. Na verdade, suas comédias e dramas não foram reencenadas; e não tendo sido, como seus poemas, recolhidos em 511 SOUSA, 1955, p. 432 256 volume, restam apenas brochuras soltas, algumas das quais são quase impossíveis de encontrar512. Dado que quase não se menciona o seu nome nos manuais de literatura francesa, supomos que hoje sua obra seja hoje ainda menos conhecida e, em vista da dificuldade de encontrar estudos sobre ela, que seja, igualmente, pouco lida. Encontramos uma tímida exceção na Histoire de la littérature française (1936) de Albert Thibaudet, que nos pede: “[...] não devemos esquecer entre os parnasianos da grande época um poeta provincial bem-formado, Louis Bouilhet. Sainte-Beuve viu nele um discípulo de Musset: erroneamente, embora haja alguma ligação entre a estrofe épica de Melænis e a de Namouna”513. Thibaudet corrige SainteBeuve dizendo que a obra de Bouilhet filia-se, na verdade, à de Leconte de Lisle e à de Flaubert, de quem foi amigo íntimo e conselheiro. Bouilhet teria até mesmo levado Flaubert a voltar seu olhar para a província514, algo que poderia estar ligado à escrita de Madame Bovary. O pedido de Thibaudet encontra uma resposta no ensaio “Una passione oscura: modernità su sfondo antico nel poema di Louis Bouilhet” (2012), de Federica Fortunata, que estuda a relação entre “Melænis” e uma ópera de Ricardo Zandonai, inspirada na obra de Bouilhet. Neste ensaio a autora nos fornece uma avaliação da poesia de Bouilhet que pode proporcionar algumas pistas quanto ao que poderia ter despertado o interesse de Machado de Assis pelo poeta francês: [...] é na poesia ‘pura’ que Bouilhet persegue sua busca de estilo e expressão, produzindo as páginas mais originais; Aquela mania para a perfeição, para a sábia redondeza do verso que mais de um crítico reprova na cena, se tornam aspectos salientes nas duas coleções, Festons et Astragales (1859) e Dernières chansons (póstuma, 1872)515 Além disso, Fortunata corrobora a leitura de que a poesia de Bouilhet, de certo modo, antecipou a estética parnasiana na França – “[...] em sua gratuidade e estranheza, a preciosidade do verso 512 MIRMONT, H. de La Ville de. Le poète Louis Bouilhet. Paris: Nouvelle Librairie Parisienne, 1888. p. 8, tradução nossa. No original: “Louis Bouilhet, auteur dramatique, est aujourd’hui inconnu ou peu s’en faut. Si un certain nombre de délicats ont lu et apprécié ses Festons et Astragales, sa “Melœnis”, ses Dernières chansons, bien peu connaissent son théâtre. En effet ses comédies et ses drames n’ont pas été repris ; et n’ayant pas été, comme ses poésies, recueillis en un volume complet, il n’en reste que des brochures dépareillées, dont quelquesunes sont presque introuvables”. 513 THIBAUDET, 1936, p. 36, tradução nossa. No original: “il ne faut pas oublier parmi ces Parnassiens de la grande époque un poète provincial bien doué et bien en place, Louis Bouilhet. Sainte-Beuve voyait en lui un disciple de Musset: à tort, bien qu’il y ait quelque liaison entre la strophe épique de Melaenis et celle de Namouna”. 514 Ibid., p. 58 515 FORTUNATA, Federica. “Una passione oscura: modernità su sfondo antico nel poema di Louis Bouilhet”. In: CESCOTTI, Diego (Org.). Il miele e le spine: Melenis - Un’opera ritrovata di Riccardo Zandonai. Rovereto: Edizione Osiride, 2012. Disponível em: http://www.agiati.org/UploadDocs/12287_Art03_fortunato.pdf, p. 71, tradução nossa. No original: “è nella poesia ‘pura’ che Bouilhet persegue la sua ricerca di stile e di espressione, producendo le pagine più originali; quella mania per la perfezione, per la rotondità sapiente del verso che più di un critico gli rimprovera sulla scena, diventano aspetti salienti nelle due raccolte, Festons et Astragales (1859) e Dernières chansons (postuma, 1872).”. 257 marca uma oposição ao desleixo imposto pela sociedade de massa nascente, antecipando a atitude dos parnasianos”516 –, algo que nos lembra o que já se disse sobre as Falenas de Machado de Assis aqui no Brasil. Fortunata, contudo, faz algumas ressalvas a esta afirmação para não dar a entender que Bouilhet teria sido um precursor do movimento parnasiano, visto que ainda estava bastante preso à estética romântica e aos seus clichês517. Festons et Astragales, livro em que nosso poeta-tradutor encontrou “Cegonhas e Rodovalhos”, contém uma série de poemas que invocam a antiguidade romana, como “Melænis”, provavelmente a peça mais conhecida do conjunto, “Louve”, “Danseur Bathylle” e “Cigognes et turbots”, um poema burlesco dedicado a um “Asinius Sempronius Rufus”. A dedicatória coloca o poema em diálogo direto com uma das sátiras de Horácio, mais precisamente a Sátira II do Livro II, um sermão a favor da frugalidade, que busca ensinar que o prazer que se tem em comer depende muito mais do apetite de quem come do que do alimento em si. Nesta sátira há uma alusão ao cozinheiro romano Asinius Sempronius Rufus no trecho que citamos aqui, na tradução de Antonio Seabra: Nem de todo a pobreza está banida Das lautas mezas; ainda hoje o's ovos Tem seu lugar, e as negras azeitonas. Do pregoeiro Gallunio, ha pouco, a meza Era pelo Acipenser infamada: Que? Menos rodovalho o mar criava? Certo não — mas em paz viveo nas ondas. Como a Cegonha em seu quieto ninho, Té que as lições pretorias recebestes518. Os dois últimos versos do trecho acima relatam a introdução da cegonha na mesa romana por ensinamento de um “prætorius”. Esta seria uma alusão sarcástica de Horácio a Asinius Sempronius Rufus, que se candidatou ao cargo, mas nunca se elegeu. Em nota, o tradutor explica que a cegonha não fazia parte da dieta dos romanos antes de Augusto, cabendo a Asinius Sempronius Rufus a introdução da ave à mesa. 516 FORTUNATA, 2012, p. 71, tradução nossa. No original: “nella sua gratuità ed estraneità il preziosismo del verso segna un’opposizione alla sciatteria imposta dalla nascente società di massa, prefigurando l’atteggiamento dei parnassiani.” 517 Ibid., p. 72-73. 518 HORACIO. Satyras e epistolas de Quinto Horacio Flacco. Trad Antonio Luiz de Seabra. Porto: Em casa de Cruz Coutinho, 1846. p. 77-78. 258 Figura 8 - Reprodução da primeira publicação de “Cegonhas e Rodovalhos” 259 Fonte: Assis (1869b) 260 Foi daí que Louis Bouilhet colheu o tema para seu poema. Em “Cigognes et turbots”, poema escrito em sextinas heterométricas compostas de cinco alexandrinos clássicos seguidos por um octossílabo, o poeta canta uma ode ao chef romano, que transcrevemos ao lado da tradução de Machado de Assis: Quadro comparativo 20 – “Cigognes et Turbots” e “Cegonhas e Rodovalhos” Cigognes et turbots À Asinius Sempronius Rufus. Salut, Sempronius, mortel inimitable ! Ô toi qui le premier fis servir sur ta table La cigogne au pied rouge et le turbot marin. L’artiste, éternisant ta divine effigie, Devait tailler pour toi les marbres de Phrygie Et graver tes traits sur l’airain. Pour te montrer plus grand aux nations béantes, Père des bons festins et des sauces piquantes, Ton siècle s’épuisa dans ton enfantement. Les destins dès longtemps préparaient ta venue, Et quelque astre inconnu dut briller sous la nue À ton premier vagissement ! Avant toi, les Romains, dans leur instinct vulgaire, De la chair des troupeaux et des fruits de la terre Rassasiaient leur faim, digne de vils pasteurs ; Et l’écuelle de bois et la salière antique Ornèrent, trois cents ans, cette table rustique Où ruminaient les sénateurs. Quand ils se rassemblaient pour sauver la patrie, Souvent l’odeur de l’ail emplissait la curie, Jusqu’au portique sombre où s’inclinaient les rois, Et laissant à moitié quelque brouet immonde, Ils s’élançaient, d’un bond, à l’empire du monde, Gorgés de raves et de pois. Au retour des combats, après quelque victoire, Leur nef jetait au port sa cargaison de gloire, Tétrarques, chefs vaincus, étendards en lambeaux… Mais ils se trompaient tous, honneur à toi, grand homme, Ta voile triomphante a rapporté dans Rome Des cigognes et des turbots ! Plus fort que ce marin dont le croc d’abordage Éventrait à grand bruit les vaisseaux de Carthage, Aux hérissons de mer tu lanças tes réseaux, Et, conquérant gourmet, ceint de myrte et de lierre, Avec tes cuisiniers tu parcourus la terre, Pour assiéger des nids d’oiseaux ! Rome alors, ô Rufus, méconnut ton génie, Et l’on dit que le peuple, avec ignominie, Refusa la préture à tes vœux obstinés… Mais que t’importe, à toi, le bruit que fait la foule ? Cegonhas e Rodovalhos (Bouillet) A Anísio Semprônio Rufo Salve, rei dos mortais, Semprônio invicto, Tu que estreaste nas romanas mesas O rodovalho fresco e a saborosa Pedirrubra cegonha! Desentranhando os mármores de Frígia, Ou já rompendo ao bronze o escuro seio, Justo era que mandasse a mão do artista Teu nobre rosto aos evos. Por que fosses maior aos olhos pasmos Das nações do Universo, ó pai dos molhos, Ó pai das comezainas, em criar-te Teu século esfalfou-se. A tua vinda ao mundo prepararam Os destinos, e acaso amiga estrela Ao primeiro vagido de teus lábios Entre nuvens luzia. Antes de ti, no seu vulgar instinto, Que comiam Romanos? Carne insossa Dos seus rebanhos vis, e uns pobres frutos, Pasto bem digno deles; A escudela de pau outrora ornava, Com o saleiro antigo, a mesa rústica, A mesa em que, três séculos contados, Comeram senadores. E quando, por salvar a pátria em risco, Os velhos se ajuntavam, quantas vezes O cheiro do alho enchia a antiga cúria, O pórtico sombrio, Onde vencidos reis o chão beijavam; Quantas, deixando em meio a mal cozida, A sem sabor chanfana, iam de um salto À conquista do mundo! Ao voltar dos combates, vencedores, Carga de glória a nau trazia ao porto, Reis vencidos, tetrarcas subjugados, E rasgadas bandeiras.... Iludiam-se os míseros! Bem hajas, Bem hajas tu, grande homem, que trouxeste Na tua ovante barca à ingrata Roma Cegonhas, rodovalhos! Maior que esse marujo que estripava, 261 Sa rumeur éphémère est un flot qui s’écoule, Tes beaux jours ne sont pas sonnés ! Ils viendront, ils viendront, quand, sur la capitale, Soufflera mollement la brise orientale ; Quand, sous sa mitre d’or, le pale citoyen Traînant par le forum sa démarche indolente, Secoûra les parfums de sa robe volante, Comme un satrape assyrien. Ils viendront quand, la nuit, l’impériale orgie Jettera sous les cieux sa lueur élargie Ou de sa chaude haleine embaumera les mers ; Et tu t’éveilleras, et ton ombre sacrée Viendra planer parfois sur les rocs de Caprée, Au bruit des nocturnes concerts. Ô martyr des festins ! le luxe d’Italie Vengera largement ta mémoire avilie, Et tu pourras surgir de la poudre du sol, Le jour où fumera, sur la table romaine, Un sanglier sauvage, à la sauce troyenne, Plein de langues de rossignol. Co’o rijo arpéu, as naus cartaginesas, Tu, Semprônio, co’as redes apanhavas Ouriçado marisco; Tu, glotão vencedor, cingida a fronte Co’o verde mirto, a terra percorreste, Por encontrar os fartos, os gulosos Ninhos de finos pássaros. Roma desconheceu teu gênio, ó Rufo! Dizem até (vergonha!) que negara Aos teimosos desejos que nutrias O voto da pretura. Mas a ti, que te importa a voz da turba? Efêmero rumor que o vento leva Como a vaga do mar. Não, não raiaram Os teus melhores dias. Virão, quando aspirar a invicta Roma As preguiçosas brisas do oriente; Quando co’a mitra d’ouro, o descorado, O cidadão romano, Pelo foro arrastar o tardo passo E sacudir da toga roçagante, Ás virações os tépidos perfumes Como um sátrapa assírio. Virão, virão, quando na escura noite A orgia imperial encher o espaço De viva luz, e embalsamar as ondas Com os seus bafos quentes; Então do sono acordarás, e a sombra, A tua sacra sombra irá pairando Ao ruído das músicas noturnas Nas rochas de Capreia. Ó mártir dos festins! Queres vingança? Tê-las-ás e à farta, à tua grã memória; Vinga-te o luxo que domina a Itália; Ressurgirás ovante Ao dia em que na mesa dos romanos Vier pompear o javali silvestre, Prato a que der os finos molhos Troia E rouxinol as línguas. Fonte: Bouilhet (1859); Assis (2009) Os três primeiros versos do poema de Bouilhet já o colocam em relação direta com a sátira de Horácio mencionada, pois saúda Semprônio – “Salut, Sempronius, mortel inimitable!” –, o que primeiro introduziu à mesa a cegonha e o rodovalho, e sugere que os artistas deveriam talhar os mármores frígios em sua homenagem. Assim, Bouilhet filia seu poema à tradição clássica não só pelo personagem que escolhe, tomado emprestado das sátiras horacianas, mas pelas imagens que inscreve em seu poema e por cantar uma espécie de ode a este personagem, forma poética que deveria se restringir a assuntos elevados, mas que Bouilhet escolhe, paródica e 262 satiricamente, para cantar um personagem baixo. O poema de Bouilhet, rimado no esquema AABCCB, é composto de maneira bastante regular, empregando ao final da estrofe o verso quebrado que confere à estrofe a sensação de conclusão. O metro alexandrino, para o crítico e biógrafo Letelier (1919), foi crucial na composição do volume de que “Cigognes et turbots” faz parte, conforme explica: É no alexandrino que Bouilhet revela de bom grado as teorias das palavras sonoras. Não só os grandes poemas ‘Melaenis’, ‘Fósseis’, ‘Amor Negro’ estão em versos de doze pés, mas metade das peças contidas em Festons et Astragales e Last Songs estão escritas neste modo: nenhum outro ritmo seria mais conveniente às descrições, às restituições do passado, às teorias filosóficas e às explosões de pessimismo519 O efeito cômico-burlesco, portanto, é realçado até mesmo na escolha de um metro considerado nobre para tratar de um personagem tão trivial. Para ressaltar as supostas qualidades de Sempronius Rufus, o poeta lembra que antes dele os romanos alimentavam-se vulgarmente, comparando-os a simples pastores: Avant toi, les Romains, dans leur instinct vulgaire, De la chair des troupeaux et des fruits de la terre Rassasiaient leur faim, digne de vils pasteurs ;520 Mesmo os espólios trazidos pelas vitórias dos exércitos romanos são diminuídos diante da contribuição de Sempronius Rufus, que introduziu suas “iguarias” que seriam superiores a todas aquelas conquistas: Mais ils se trompaient tous, honneur à toi, grand homme, Ta voile triomphante a rapporté dans Rome Des cigognes et des turbots !521 O exagero com que Semprônio é descrito também é observado nos versos da estrofe seguinte, segundo os quais as habilidades do cozinheiro romano eram até mesmo superiores às dos bravos marinheiros à costa de Cartago: Plus fort que ce marin dont le croc d’abordage Éventrait à grand bruit les vaisseaux de Carthage, 519 LETELLIER, L. Louis Bouilhet (1821-1869): sa vie et ses œuvres. Paris: Librairie Hachette, 1919. p. 222, tradução nossa. No original: “C’est dans l’Alexandrin que Bouilhet déroule le plus volontiers ces théories de mots sonores. Non seulement les grands poèmes «Melaenis», «Les Fossiles», «l’Amour noir » sont en vers de douze pieds, mais la moitié des pièces contenues dans « Festons et Astragales» et «Dernières Chansons» sont écrites sur ce mode : nul autre rythme ne convenait mieux aux descriptions, aux restitutions du passé, aux théories philosophiques, aux explosions du pessimisme.”. 520 BOUILHET, Louis. Poésies: festons et astragales. Paris: Librairie Nouvelle, 1859, p. 114 521 Ibid., p. 115 263 Aux hérissons de mer tu lanças tes réseaux,522 Contudo, nem assim Roma soube reconhecer os talentos do chef e o povo, em sua ignomínia, não deu a ele o merecido cargo de pretor: Rome alors, ô Rufus, méconnut ton génie, Et l’on dit que le peuple, avec ignominie, Refusa la préture à tes vœux obstinés…523 A última estrofe do poema reforça as supostas injustiças sofridas por Semprônio, que será vingado um dia: Et tu pourras surgir de la poudre du sol, Le jour où fumera, sur la table romaine, Un sanglier sauvage, à la sauce troyenne, Plein de langues de rossignol.524 Por todo o poema, Semprônio é descrito como uma grande figura, merecedora de epítetos – “mortel inimitable”, “Père des bons festins et des sauces piquantes”, “conquérant gourmet” ou “Ô martyr des festins !” – que são empregados como se fossem enobrecedores e, por isso mesmo, conferem um tom cômico. O último epíteto empregado reforça a ideia, já presente desde o início do poema, de que Semprônio seria uma espécie de mártir, ou mesmo de um messias, cuja vinda era preparada pelo destino e cujo nascimento ofuscaria até os astros: Les destins dès longtemps préparaient ta venue, Et quelque astre inconnu dut briller sous la nue À ton premier vagissement !525 Não há dúvidas, portanto, de que se trata de um poema cômico-burlesco, escrito em um metro nobre, com diversas referências à antiguidade clássica que, por algum motivo, interessou o nosso Machado de Assis. Muito provavelmente, quando publicado pela primeira vez na Semana Ilustrada, o poema foi escolhido por se encaixar naturalmente na linha editorial do periódico. Lembremos que o periódico de Fleiuss era marcado pelo tom irônico e burlesco, que ria de tudo e de todos, conforme a expressão latina “Ridendo castigat mores” que estampava as capas das suas edições. Mas se “Cegonhas e Rodovalhos” chega a Falenas, mesmo que posteriormente excluído pelo autor, é porque Machado viu no poema algo que merecia atenção e que poderia figurar entre os seus melhores poemas do período. Há no poema, além do tom 522 BOUILHET, 1859, p. 115. Ibid. 524 Ibid., p. 116 525 Ibid., p. 114 523 264 burlesco, um sério trabalho de linguagem que busca roupagens latinas numa ode cômica que traz um germe da poesia parnasiana. Na avaliação de Jean-Michel Massa, “Cigognes et turbots”, de Louis Bouilhet é uma poesia heroi-cômica e burlesca, dedicada à glória de Asinius Sempronius Rufus. Machado de Assis se diverte como se divertiu o autor. Como este, ele admira, louva, soa a trombeta para cantar a glória do ilustre cozinheiro romano526. Massa considera ainda que Machado de Assis parece à vontade com a “falsa eloquência exagerada” do poeta francês e, sobre a tradução, limita-se a dizer que Machado modifica a estrofe de Bouilhet latinizando o texto, agregando efeitos cômicos, sem dar muitos detalhes527. Machado de Assis certamente ficou bastante à vontade com o poema de Bouilhet, tão à vontade que, como de praxe, não hesitou em dar à sua tradução um toque bastante pessoal, abandonando por completo o esquema de rimas e trocando os alexandrinos e octossílabos das sextinas de Bouilhet por oitavas compostas de três decassílabos e seu verso quebrado, o hexassílabo, seguidos por mais três decassílabos e mais um hexassílabo, mais uma vez demonstrando que, no plano formal, seu método de trabalho implicava na adaptação da poesia estrangeira às formas da literatura de língua portuguesa. Considerando o poema de Bouilhet uma ode, poderíamos dizer que a forma escolhida por Machado de Assis encontra precedentes, por exemplo, em algumas odes de Bocage, como “Allegorico – Moral: o quadro da vida humana”, de onde transcrevemos a estrofe abaixo: De porto mal seguro a turvo pego Sáe mesquinho baixel com raras velas, Vae crespas ondas pávido talhando A discrição dos ventos: Nauta inexperto lhe dirige o leme, Chusma bisonha lhe marêa o panno; De um lado fervem Syrtes, d'outro lado Navífragos penedos:528 A semelhança é notável não só na forma que Machado escolhe para seu poema, mas também no tom utilizado, adicionando matizes latinizantes ao seu texto: Salve, rei dos mortais, Semprônio invicto, Tu que estreaste nas romanas mesas 526 MASSA, 2008, p. 78 Ibid., p. 79 528 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras poéticas de Bocage, vol. 2. Porto: Imprensa Portugueza – Editora, 1875. p. 21 527 265 O rodovalho fresco e a saborosa Pedi-rubra cegonha! Desentranhando os mármores de Frígia, Ou já rompendo ao bronze o escuro seio, Justo era que mandasse a mão do artista Teu nobre rosto aos evos.529 As várias alterações introduzidas pelo poeta-tradutor só podem ser entendidas como um movimento consciente e deliberado. Os alexandrinos de Bouilhet certamente não o teriam intimidado, pois publica, no mesmo dia e no mesmo jornal, ao lado de “Cegonhas e Rodovalhos”, “Menina e Moça”, todo escrito em alexandrinos clássicos, que também fez parte de Falenas, além das várias outras peças escritas em alexandrinos e incluídas no livo. Machado adota para sua tradução exatamente a mesma forma que adotara em “Os Deuses da Grécia”, de que tratamos anteriormente, com a diferença de que aqui temos oitavas, e não quadras como lá. O toque de Machado nesta tradução é tão pessoal que até dificulta comparações linha a linha. Ele compõe, de fato, outro poema, que se aproveita do tema do poema francês, de suas imagens e recursos, para se fazer outra obra, sem que isso signifique, contudo, afastamento ao sentido central do poema de Bouilhet, que é cantar uma ode, em tom supostamente elevado mas com intenções claramente cômicas, a uma personagem baixa. Diríamos até mesmo que Machado em vários momentos excede o texto-fonte, como quando fala da “Pedi-rubra cegonha”, recurso morfológico que não encontra correspondente em Bouilhet – “La cigogne au pied rouge” – mas nos “Nauvífragos penedos” de Bocage ou no “velocípede” Aquiles de Odorico Mendes. A fidelidade machadiana não é à forma, ao verso, mas à maneira de significar do poema que traduz, o que inevitavelmente leva o poeta-tradutor a colocar-se em situação de paridade com o autor traduzido. O contraste entre os textos de Bouilhet e Machado é bastante claro, por exemplo, na segunda estrofe. Na sua tradução Machado de Assis consegue criar uma tensão muito mais forte entre a linguagem, a forma que utiliza e o assunto de que trata do que Bouilhet. O poeta francês utiliza rimas finais e internas – “béantes/piquantes”, “enfantement/vagissement”, “venue/inconnu/nue” –, muitas das quais são rimas pobres, como vemos na estrofe a seguir: Pour te montrer plus grand aux nations béantes, Père des bons festins et des sauces piquantes, Ton siècle s’épuisa dans ton enfantement. Les destins dès longtemps préparaient ta venue, Et quelque astre inconnu dut briller sous la nue À ton premier vagissement !530 529 530 ASSIS, 1976, p. 330 BOUILHET, 1859, p. 114 266 Machado, por sua vez, escolhe os versos brancos à maneira de Bocage e Odorico Mendes, por exemplo. Se Bouilhet prefere exprimir-se de forma mais direta, como em “Les destins dès longtemps préparaient ta venue”, Machado opta por inversões sintáticas – “A tua vinda ao mundo prepararam / Os destinos, [...]” – como Odorico na abertura da sua Ilíada: “Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles/a ira tenaz [...]”: Por que fosses maior aos olhos pasmos Das nações do Universo, ó pai dos molhos, Ó pai das comezainas, em crear-te Teu século esfalfou-se. A tua vinda ao mundo prepararam Os destinos, e acaso amiga estrela Ao primeiro vagido de teus labios Entre nuvens luzia.531 Esta tradução de Machado de Assis é um exemplo de que uma “fidelidade” aferroada à forma do original não é necessariamente o melhor, ou o único, caminho a tomar, assim como também é exemplo de que a tradução não precisa se limitar a reproduzir as nuances do textofonte. A tradução, conforme muito bem demonstra Machado de Assis, constitui um espaço de experimentação poética que pode resultar em obras cuja qualidade pode até mesmo superar aquela do seu “original”. Em La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain, Antoine Berman propõe uma reflexão que nos parece apropriada a esta tradução de Machado: “[...] esta infidelidade à letra estrangeira é necessariamente uma fidelidade à própria letra. O sentido é captado na língua que traduz. Para isso, é preciso que ele seja despido de tudo que não se deixa transferir nesta. A captação do sentido sempre afirma a primazia de uma língua”532. O poetatradutor Machado de Assis, sistematicamente – e esta tradução de Bouilhet é um ótimo exemplo disso – se mostra muito mais interessado em manter-se fiel à tradição literária de língua portuguesa, ao seu projeto para o texto traduzido, à sua própria letra, reafirmando-a na maneira como traduz, com um posicionamento claramente etnocêntrico, mas que por pertencer a um sistema periférico ganha outros matizes, que sugerem o abandono da reprodução passiva – ou mesmo estrangeirizante – do modelo central para uma medição de forças a ponto de, nos casos de maior sucesso, superar o modelo. 531 ASSIS, 1976, p. 330 BERMAN, Antoine. La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain. Paris: Éditions du Seuil, 1999, p. 34, tradução nossa, grifos do autor. No original: “cette infidélité à la lettre étrangère est nécessairement une fidélité à la lettre propre. Le sens est capté dans la langue traduisante. Pour cela, il faut qu’il soit dépouillé de tout ce qui ne se laisse pas transférer dans celle-ci. La captation du sens affirme toujours la primauté d’une langue”. 532 267 8.4 “Estâncias a Ema” Assim como “Cegonhas e Rodovalhos”, “Estâncias a Ema” também não era inédita. A Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa indica que a obra fora publicada antes com o título “Versos a Ema” no Diário do Rio de Janeiro, em 6 de abril de 1865, e republicada anos mais tarde no Semanário Maranhense, em 23 de fevereiro de 1868533, já com o título “Estâncias a Ema”, o mesmo adotado em Falenas. Galante de Sousa não registra, mas há outra publicação do poema que saiu no espaço reservado a folhetins na primeira página do nº 231 do jornal O Ypiranga, de São Paulo, em 10 de maio de 1868, também com o título “Estâncias a Ema”. O texto é exatamente o mesmo publicado no Semanário Maranhense, notando-se diferenças apenas na grafia de algumas palavras e, raríssimas vezes, na pontuação. Com quatro publicações entre 1865 e 1870, esta tradução é uma das mais republicadas em vida do autor, feito que seria igualado somente por “O corvo” anos mais tarde, indício de que, se hoje o texto soa pouco interessante, não era essa a percepção da época. Galante de Sousa informa também que “Versos a Ema” é a tradução de versos tirados do romance La Dame aux Perlesxliv, de Dumas Filho. No romance, o texto-fonte sobre o qual Machado de Assis teria se baseado se divide em dois poemas e se passa em dois momentos diferentes. Possuem, ao todo, quarenta e três quadras, sendo que vinte estão no capítulo X e as demais no capítulo XXIX. A tradução de Machado de Assis, todavia, possui uma quadra a mais534, o que apresenta um problema para aceitarmos este texto de La Dame aux Perles como texto-fonte. Ainda assim, esta é a mesma fonte indicada por Jean-Michel Massa em Machado de Assis tradutor. Há outras versões do mesmo poema, como a que aparece na abertura da versão do drama Diane de Lys, publicado no Théâtre complet de Al. Dumas Fils de 1863, com o título “Saint-Cloud”535, mas sem aquela quadra a mais traduzida por Machado; acreditamos que uma terceira versão, publicada por Alexandre Dumas (pai) no ensaio “Les trois dames” em Causeries536, ou alguma outra publicação do mesmo texto, tenha sido o texto-fonte de Machado de Assis, já que esta é a única que possui a décima terceira quadra da segunda parte. Além desta quadra, há também outras pequenas diferenças entre os textos presentes no romance indicado por Galante de Sousa e Massa e em Causeries. 533 SOUSA, 1955, p. 404 Ibid. 535 DUMAS FILS, Alexandre. “Saint-Cloud”. Théâtre complet de Al. Dumas Fils. Paris: Calmann-Lévy Editeurs, 1864, p. 487-493. 536 DUMAS, Alexandre. “Les trois dames”. Causeries. PARIS: Calmann-Lévy Editeurs, s/d. p. 7-52. 534 268 José Américo Miranda e Gabriela Jucá, no ensaio “Poesias de Alexandre Dumas traduzidas por Machado de Assis: comentários e questões” (2017), chegaram às mesmas conclusões a que chegamos quanto ao possível texto-fonte de Machado, com o acréscimo de que, aparentemente, Machado de Assis foi o único a traduzir e publicar os versos de Dumas, já que em traduções do romance para a língua portuguesa os poemas são omitidos: Foi possível aos autores deste artigo a consulta a duas traduções diferentes, para o português, do romance A dama das pérolas: a primeira foi publicada pela editora Guimarães, em Lisboa, sem declaração do tradutor, sem data, mas certamente no início do século XX; a segunda, também sem declaração do tradutor, embora com “revisão de Roberto Magalhães”, foi publicada pela editora Marisa, no Rio de Janeiro, em 1932. Nenhuma delas traz os versos inseridos no romance por seu autor; os tradutores simplesmente os ignoraram. Na edição francesa, a primeira parte do poema vem no capítulo X, e a segunda, no capítulo XXIX, último do livro (Cf. DUMAS FILHO, s.d.; DUMAS, 1932; DUMAS FILS, 1869)537. Esta tradução, quando publicada pela primeira vez no Diário do Rio de Janeiro, veio introduzida por uma nota que explicita as intenções do tradutor: Todos sabem que Dumas Filho copiou Margarida Gauthier, Diana de Lys e Susana d’Ange por três modelos que encontrou no mundo parisiense. A cada uma das mulheres que lhe serviram de modelo o autor da Dama das Pérolas consagrou algumas estrofes de sua musa singela e original. Tivemos ocasião de publicar, traduzida em versos portugueses, a poesia consagrada a Maria Duplessis. Faremos o mesmo agora com duas poesias feitas à condessa Emma (a dama das pérolas). À primeira demos o título de Um passeio de carro – e à segunda – Um ano depois. Procuramos conservar a simplicidade, às vezes prosaica, do texto francês. Se os pensamentos viçosos e originais não se perderam nesta transplantação, decidam-no os competentes538. O tradutor nos deixou ali qual era seu projeto de tradução neste caso, no qual admite que tentou reproduzir o que considerava a “simplicidade, às vezes prosaica, do texto francês” e os “pensamentos viçosos e originais”, deixando para os críticos, “os competentes”, a tarefa de avaliar o resultado. Lemos, a seguir, a versão de Machado ao lado da versão francesa: Quadro comparativo 21 – “Estâncias a Ema” e poema francês extraído do romance “La Dame aux Perles” Estâncias A Ema (Alex. Dumas, Filho) Extraído do romance « La Dame aux Perles » I I 537 MIRANDA, José Américo; JUCÁ, Gabriela. “Poesias de Alexandre Dumas traduzidas por Machado de Assis: comentários e questões”. Interfacis. Belo Horizonte, v. 3, n. 2, 2017, (p. 2-21) p. 19 538 ASSIS, Machado de. “Versos a Emma (A dama das pérolas)”. Diário do Rio de Janeiro. N. 85, 6 de abril de 1865. p. 1. 269 Saímos, ela e eu, dentro de um carro, Um ao outro abraçados; e como era Triste e sombria a natureza em torno, Ia conosco a eterna primavera. Hier, nous sommes partis au fond d’une voiture, Enlacés l’un à l'autre, ainsi que deux frileux, Emportant, à travers une sombre nature, Le printemps éternel qui suit les amoureux. No cocheiro fiávamos a sorte Daquele dia, o carro nos levava Sem ponto fixo onde aprouvesse ao homem; Nosso destino em suas mãos estava. Nous avions confié le sort de la journée Au cocher, qui devait nous mener au hasard, Ou bon lui semblerait, et notre destinée Reposait dans ses mains à compter du départ. Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! Pois vamos! É um sítio de luz, de aroma e riso. Demais, se as nossas almas conversavam, Onde estivessem era o paraíso. Cet homme pour Saint-Cloud avait des préférences ! Eh bien ! va pour Saint-Cloud, c'est un charmant pays ! D’ailleurs, quand nous melons nos douces confidences, Peu m’importe l'endroit, je suis bien ou je suis. Fomos descer juntos ao portão do parque. Era deserto e triste e mudo; o vento Rolava nuvens cor de cinza; estavam Seco o arbusto, o caminho lamacento. A la grille du parc il nous fit donc descendre. Le parc était désert, triste, silencieux : Le vent roulait au ciel des nuages de cendre ; Les arbres étaient noirs et les chemins boueux. Rimo-nos tanto, vendo-te, ó formosa, (E felizmente ninguém mais te via!) arregaçar a ponta do vestido Que o lindo pé e a meia descobria! Nous nous mîmes à rire. En vérité, madame, C'était risible à voir ; mais on ne voyait pas, Et j'en suis enchanté, la belle et noble dame Qui relevait sa robe et laissait voir ses bas. Tinhas o gracioso acanhamento Da fidalga gentil pisando a rua; Desafeita ao andar, teu passo incerto Deixava conhecer a raça tua. Vous aviez l’embarras, embarras plein de grâce, Des femmes comme il faut qui marchent, n'ayant pas L'habitude d'aller à pied, et votre race Aurait pu se prouver rien que par vos faux pas. Uma das tuas mãos alevantava O vestido de seda; as saias finas Iam mostrando as rendas e os bordados, Lambendo o chão, molhando-te as botinas. Vous teniez d’une main votre robe de soie Relevée en deux plis par devant ; vos jupons, Dentelés et brodés, se donnaient cette joie De rire avec la boue en battant vos talons. Mergulhavam teus pés a cada instante, Como se o chão quisesse ali guardá-los, E que afã! Mal podíamos nós ambos Da cobiçosa terra libertá-los. Vos pieds, à chaque instant, s’enfonçaient dans la terre, Comme si cette terre eût voulu vous garder, Pour les ravoir, après, c’était tout une affaire, Et vous n'aviez pas trop de moi pour vous aider. Doce passeio aquele! E como é belo O amor no bosque, em tarde tão sombria! Tinhas os olhos úmidos, — e a face A rajada do inverno enrubescia. La belle promenade ! et la charmante chose Que l’amour dans un bois par un temps pluvieux ! La bise vous faisait un petit nez tout rose, Empourprait votre joue et mouillait vos grands yeux. Era mais belo que a estação das flores; Nenhum olhar nos espreitava ali; Nosso era o parque, unicamente nosso; Ninguém! estava eu só ao pé de ti! Eh bien ! c’était charmant plus qu’en la saison verte. Le parc était à nous, à nous seuls, à nous deux ; Pas un visage humain sur la route déserte ; Pas d’importun témoin qui nous cherchât des yeux. Perlustramos as longas avenidas Que o horizonte cinzento limitava, Sem mesmo ver as deusas conhecidas Que o arvoredo sem folhas abrigava. Nous avons traversé les longues avenues Que terminait toujours le même horizon gris, Sans même regarder les déesses connues, Posant en marbre blanc, sous les arbres maigris... O tanque, onde nadava um níveo cisne Placidamente, — o passo nos deteve; Era a face do lago uma esmeralda Que refletia o cisne alvo de neve. Nous sommes arrivés près d'un bassin où rôde Un cygne encore plus blanc que le lait, et nageant Silencieusement, et, comme une émeraude, L’eau verte reflétait le bel oiseau d’argent. 270 Veio este a nós, e como que pedia Alguma cousa, uma migalha apenas; Nada tinhas que dar; a ave arrufada Foi-se cortando as águas tão serenas. Il vint nous demander quelque chose, une miette De pain ; et pour nous plaire, il tordait son long cou ; Vous lui dîtes alors : « Pauvre petite bête, Je ne le savais pas, et je n'ai rien du tout. » E nadando parou junto ao repuxo Que de água viva aquele tanque enchia; O murmúrio das gotas que tombavam Era o único som que ali se ouvia. Si bien qu’il nous quitta, nous méprisant sans doute, Et s'en alla, rayant le miroir du bassin, A côté du jet d'eau, qui, tombant goutte à goutte, Faisait, à lui tout seul, tout le bruit du jardin. Lá ficamos tão juntos um do outro, Olhando o cisne e escutando as águas; Vinha a noite; a sombria cor do bosque Emoldurava as nossas próprias mágoas. Nous restâmes alors appuyés l’un sur l’autre, Regardant le beau cygne, écoutant le jet d’eau. La tristesse du bois faisait cadre à la nôtre ; Et le soir commença d’étendre son rideau. Num pedestal, onde outras frases ternas, A mão de outros amantes escreveu, Fui traçar, meu amor, aquela data E junto dela por o nome teu! Dans ma poche je pris une clef de ma chambre, Et, sur un piédestal plein de mots au crayon, A mon tour j’incrustai ces mots : Trente décembre, Puis, auprès de ces mots, je gravai votre nom. Quando o estio volver àquelas árvores; E à sombra delas for a gente a flux, E o tanque refletir as folhas novas, E o parque encher-se de murmúrio e luz, Maintenant, quand l’été va rire dans les arbres ; Quand les gais promeneurs repeupleront le bois ; Quand les feuilles auront leurs reflets sur les marbres ; Quand le parc sera plein de lumière et de voix ; Irei um dia, na estação das flores, Ver a coluna onde escrevi teu nome, O doce nome que minha alma prende, E o que o tempo, quem sabe? já consome! A la saison des fleurs, enfin, j'irai, madame, Revoir le piédestal portant le nom tracé, Ce doux nom dans lequel j’emprisonne mon âme, Et que le vent d’hier a peut-être effacé. Onde estarás então? Talvez bem longe, Separada de mim, triste e sombrio; Talvez tenhas seguido a alegre estrada, Dando-me áspero inverno em pleno estio. Qui sait où vous serez alors, ma voyageuse ? Je serai seul peut-être, et vous m'aurez quitté. Aurez-vous donc repris votre course joyeuse, En me laissant l’hiver au milieu de l’été ? Porque o inverno não é o frio e o vento, Nem a erma alameda que ontem vi; O inverno é o coração sem luz, nem flores, É o que eu hei de ser longe de ti! Car l’hiver, ce n’est pas la bise et la froidure, Et les chemins déserts qu’hier nous avons vus ; C’est le cœur sans rayons, c’est l’âme sons verdure : C’est ce que je serai quand vous n'y serez plus.539 II II Correu um ano desde aquele dia Em que fomos ao bosque, um ano, sim! Eu já previa o fúnebre desfecho Desse tempo feliz, — triste de mim! Un an s’est accompli depuis cette journée Où nous fûmes au bois nous promener tous deux. Hélas ! j'avais prévu la triste destinée Qui devait succéder à quelques jours heureux. O nosso amor nem viu nascer as flores; Mal aquecia um raio de verão Para sempre, talvez, das nossas almas Começou a cruel separação. Notre amour ne vit pas la saison près de naître ! A peine un doux rayon de soleil luisait-il, Que l'on nous séparait ; et, pour toujours peut-être, A commencé le double et douloureux exil. Vi esta primavera em longes terras, Tão ermo de esperanças e de amores, Olhos fitos na estrada, onde esperava Ver-te chegar, como a estação das flores. Moi, j’ai vu ce printemps sur la terre lointaine, Sans parents, sans amis, sans espoir, sans amour, Les yeux toujours fixés sur la route prochaine Par où tu m'avais dit que tu viendrais un jour. 539 DUMAS FILS, Alexandre. La dame aux perles. Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1863, p. 100101 271 Quanta vez meu olhar sondou a estrada Que entre espesso arvoredo se perdia, Menos triste, inda assim, menos escuro Que a dúvida cruel que me seguia! Que de fois mon regard a sondé cette route Qui se perdait parmi des forêts de sapins, Moins obscurs, moins épais, moins triste que le doute Qui m’escortait depuis un mois par les chemins ! Que valia esse sol abrindo as plantas E despertando o sono das campinas? Inda mais altas que as searas louras, Que valiam as flores peregrinas? A quoi bon ce soleil qui fleurissait les branches, Réchauffait la nature et les champs assoupis ? Marguerites, à quoi servaient vos têtes blanches, Plus hautes en avril que les jeunes épis ? De que servia o aroma dos outeiros? E o canto matinal dos passarinhos? Que me importava a mim o arfar da terra, E nas moutas em flor os verdes ninhos? A quoi bon les senteurs de la colline grasse ? A quoi bon les oiseaux caquetant leurs chansons ? Que me faisaient, à moi, le cœur pris sous la glace, La chaleur de la terre et les nids des buissons ? O sol que enche de luz a longa estrada, Se me não traz o que minh’alma espera, Pode apagar seus raios sedutores: Não é o sol, não é a primavera! Qu’à jamais le soleil se voile, s'il éclaire En vain le long chemin au bout duquel j’attends : S'il ne ramène pas ce que mon cœur espère, Il n'est pas de soleil, il n'est pas de printemps ! Margaridas, caí, morrei nos campos, Perdei o viço e as delicadas cores; Se ela vos não aspira o hálito brando, Já o verão não sois, já não sois flores! Marguerites, tombez et mourrez dans la plaine, Perdez vos doux parfums et vos tendres couleurs, Si celle que j’attends n’aspire votre haleine : Vous n’êtes pas l’été, vous n’êtes pas les fleurs ! Prefiro o inverno desfolhado e mudo, O velho inverno, cujo olhar sombrio Mal se derrama nas cerradas trevas, E vai morrer no espaço úmido e frio. Oh ! je préfère à vous l’hiver morose et sombre, Avec ses arbres noirs et ses sentiers déserts, Avec son œil éteint qui s’entr’ouvre dans l’ombre, Et qui, sans nous toucher, expire dans les airs. É esse sol das almas desgraçadas; Venha o inverno, somos tão amigos! Nossas tristezas são irmãs em tudo: Temos ambos o frio dos jazigos! C’est là le vrai soleil des âmes désolées : Rendez-moi donc l’hiver, nous nous connaissons bien ; Ma tristesse est la sœur de ses longues allées, Et le feu de mon cœur est froid comme le sien. Contra o sol, contra Deus, assim falava Dês que assomavam matinais albores; Eu aguardava as tuas doces letras Com que o céu perdoasse as belas cores! C’est ainsi que dès l’aube, assis à ma fenêtre, Je parlais, maudissant et le soleil et Dieu : Puis, le jour commençait, j’espérais une lettre Qui m’eût fait pardonner au ciel d’être si bleu. Iam assim, um após outro, os dias. Nada. – E aquele horizonte tão fechado Nem deixava chegar aos meus ouvidos O eco longínquo do teu nome amado. Et le jour s’enfuyait comme avait fui la veille. Bien ! — pas un mot de vous ! — l’horizon bien fermé Ne laissait même pas venir à mon oreille L’écho doux et lointain de votre nom aimé. Só, durante seis meses, dia e noite Chamei por ti na minha angústia extrema; A sombra era mais densa a cada passo, E eu murmurava sempre: — Oh! minha Ema! Un morceau de papier, c’est pourtant peu de chose Quatre lignes dessus, ce n’est pourtant pas long. Si l’on ne veut écrire, on peut prendre une rose Éclose le matin dans un pli du vallon ; Um quarto de papel – é pouca coisa; Quatro linhas escritas – não é nada; Quem não quer escrever colhe uma rosa, No vale aberta, à luz da madrugada. On la peut effeuiller au fond d’une enveloppe, La jeter à la poste ; et, l’exilé venu Du fond de son pays, presque au bout de l’Europe, Peut sourire en voyant que l’on s’est souvenu. Mandam-se as folhas num papel fechado; E o proscrito, ansiando de esperança, Pode entreabrir nos lábios um sorriso Vendo naquilo uma fiel lembrança. Que de fois vous avez oublié de le faire ! Et chaque jour, c’était un désespoir nouveau. Mon cœur se desséchait, comme ces fruits qu’on serre, A la fin de l’été, dans l’ombre d’un caveau. 272 Era fácil fazê-lo e não fizeste! Meus dias eram mais desesperados. Meu pobre coração ia secando Como esses frutos no verão guardados. Si l’on pressait ce cœur aujourd’hui, c’est à peine S’il en pourrait jaillir une goutte de sang. Il n’y reste plus rien : c’était la coupe pleine Qu'un enfant maladroit fait tomber en passant. Hoje, se o comprimissem, mal deitava Uma gota de sangue; nada encerra. Era uma taça cheia: uma criança, De estouvada que foi, deitou-a em terra! Nous voici revenus à la fin de l’année, Et le temps patient, qui ne s’arrête à rien, Nous rend le même mois et la même journée OU vous parliez d'amour, votre front près du mien. É este o mesmo tempo, o mesmo dia. Vai o ano tocando quase no fim; É esta hora em que, formosa e terna, Conversavas de amor, junto de mim. C’est bien le même aspect : les routes sont désertes, Le givre, de nouveau, gerce les étangs bleus. Les arbres ont usé leurs belles robes vertes, Le cygne rôde encore triste et silencieux. O mesmo aspecto: as ruas estão ermas, A neve coalha o lago preguiçoso; O arvoredo gastou as roupas verdes, E nada o cisne triste e silencioso. Voilà votre doux nom que ma main vient d’écrire ; Il est là qui sourit, dans le marbre incrusté ! Allons ! j’ai fait un rêve, et j’étais en délire ; Allons ! j’étais un fou ! tu ne m’as pas quitté. Vejo ainda no mármore o teu nome, Escrito quando ali comigo andaste. Vamos! Sonhei, foi um delírio apenas, Era um louco, tu não me abandonaste! La voiture, là-bas, nous attend à la grille : Partons ! et s'il fait beau nous reviendrons demain. Baisse ce voile noir sur ton regard qui brille : Prends garde de glisser et donne-moi la main ; O carro espera: vamos. Outro dia, Se houver bom tempo, voltaremos, não? Corre este véu sobre teus olhos lindos, Olha, não caias, dá-me a tua mão! Car il a plu. La pluie a détrempé les terres. Approche donc ! Hélas ! mes sens sont égarés ; Les feuilles que je foule, aux chemins solitaires, Sont celles du printemps qui nous a séparés. Choveu: a chuva umedeceu a terra. Anda! Ai de mim! em vão minha alma espera. Estas folhas que eu piso em chão deserto São as folhas de outra primavera! Non ! non ! tu n’es plus là, toi que j’appelle et j’aime ! J’ai pris le souvenir pour la réalité. Et loin de cet amour, encore, toujours le même, J’ai vécu deux hivers de suite sans été. Não, não estás aqui, chamo-te embalde! Era ainda uma última ilusão. Tão longe desse amor fui inda o mesmo, E vivi dois invernos sem verão. Car l’été, ce n’est pas cette saison qui dure Six mois, et que novembre éteint d'un pied transi. C’est du cœur rayonnant l’éternelle verdure ; C’est ce que je serai quand tu seras ici. Porque o verão não é aquele tempo De vida e de calor que eu não vivi; É a alma entornando a luz e as flores, É o que hei de ser ao pé de ti! Fonte: Assis (1976); Dumas Filho (1863) A tradução não agradou a um desses críticos, Jean-Michel Massa, que considerou o trabalho do poeta “[...] medíocre como é prosaico o texto original, embora Machado de Assis tentasse animar certas expressões particularmente pesadas. O realismo terra-a-terra de Dumas toma uma coloração neoclássica que o torna quase incongruente”540. A explicação que Massa dá para a inclusão desta tradução em Falenas estava na fama que acompanhava Dumas Filho e, evidentemente, concorda com a supressão da tradução quando Machado edita as Poesias 540 MASSA, 2008, p. 81 273 Completas em 1901 com a justificativa: “Quaisquer que fossem os dons do tradutor, o prosaísmo de Dumas condenou toda tentativa”541. A opinião de Massa é compartilhada por Lorie Ishimatsu, que considerou a tradução “[...] uma versão entediante de um poema medíocre de La Dame aux Perles de Dumas Filho, em que a voz enunciadora recorda com saudade uma tarde no parque com sua amada”542. A opinião desses críticos certamente revela um gosto que diverge daquele em voga quando a tradução foi realizada. A avaliação do crítico Araripe Júnior, contemporâneo de Machado, é um exemplo do quanto as opiniões dissentiam em relação a “Estâncias a Ema”. Para ele, esta era uma “magnífica tradução do francês de Alexandre Dumas Filho”, ou mesmo até “a mais linda poesia do livro”, na qual o tradutor “[...] deu liberdade ampla ao estro, experimentou o fervente gotejar da aflição do poeta em seu coração e consentiu que todas as emoções procurassem a forma que melhor lhes convinha”543. Os poemas de Dumas Filho são longas narrativas que rememoram uma tarde que o enunciador – Jacques, no romance – passa com a sua amada que, no poema, não tem nome. Mas como o poema é parte do romance, sabemos tratar-se da Madame de Wine. Hoje o poema soa bastante datado, principalmente pelo tom carregado do romantismo idealizado, em que a figura feminina ausente é o objeto de desejo e causadora do sofrimento expresso em versos introspectivos, em que o rapaz parece falar consigo mesmo. No primeiro poema do romance, Jacques de Feuil – personagem que vive os amores com a duchesse – lembra dos acontecimentos da véspera, quando saem, ele e a Madame de Wine, sem rumo, para passarem a tarde juntos: Hier, nous sommes partis au fond d'une voiture, Enlacés l'un à l'autre, ainsi que deux frileux, Emportant, à travers une sombre nature, Le printemps éternel qui suit les amoureux. Nous avions confié le sort de la journée Au cocher, qui devait nous mener au hasard, Ou bon lui semblerait, et notre destinée Reposait dans ses mains à compter du départ544. Jacques é músico, mas se torna poeta em função da paixão que vive, e os versos que lemos são a letra de uma canção que toca ao piano para seu amigo e narrador do romance. A descrição do 541 MASSA, 2008, p. 81 ISHIMATSU, 1984, p. 93, tradução nossa. No original: “a tedious version of a mediocre poem from Dumas Fils’ La Dame aux Perles in which the speaker wistfully recalls an afternoon in the park with his beloved”. 543 ARARIPE JÚNIOR, 2003, p. 78 544 DUMAS FILS, Alexandre. La dame aux perles. Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1863, p. 100 542 274 parque por onde passeiam, em certa medida, prenuncia o tom triste que o poema tomará mais à frente: A la grille du parc il nous fit donc descendre. Le parc était désert, triste, silencieux : Le vent roulait au ciel des nuages de cendre ; Les arbres étaient noirs et les chemins boueux545. O clima chuvoso deste primeiro encontro parece ideal para as situações que Jacques descreve em sua canção: os caminhos lamacentos fazem com que a dama, pouco afeita a caminhadas, ande com dificuldade, mostrando a porção inferior das pernas, o que os leva a rir da situação que só não é mais desconfortável porque estão sozinhos: “Le parc était à nous, à nous seuls, à nous deux/ Pas un visage humain sur la route déserte”546. Narra em seguida o caminho que leva ao lugar onde irão permanecer um tempo, descrito com imagens que contrastam com o que se viu até então: Nous sommes arrivés près d'un bassin où rôde Un cygne encor plus blanc que le lait, et nageant Silencieusement, et, comme une émeraude, L'eau verte reflétait le bel oiseau d'argent547. Os tons escuros, de cinza, expressos antes nas “nuages de cendre”, nas “arbres [...] noires”, no “temps pluvieux”, no “horizon gris” dão lugar a brancos marmóreos nos versos“ [...] les déesses connues,/ Posant en marble blanc [...]” e principalmente no cisne “plus blanc que le lait” (mais branco que o leite) que observam nadar em um lago que é verde “comme une émeraude” (como uma esmeralda), criando um nítido contraste entre o clima triste de antes e a paz que encontram agora, quando podem finalmente aproveitar a presença um do outro. Nas estrofes finais desta primeira parte do poema, Jacques pega a chave de seu quarto e escreve a data, trinta de dezembro e o nome da Madame de Wine, em um pedestal já marcado por outros amantes que passaram por ali. À diferença dos demais, que escreveram a lápis, as marcas que Jacques incrustou no pedestal ainda estarão lá, mesmo que eles estejam separados: Maintenant, quand l'été va rire dans les arbres ; Quand les gais promeneurs repeupleront le bois ; Quand les feuilles auront leurs reflets sur les marbres ; Quand le parc sera plein de lumière et de voix; A la saison des fleurs, enfin, j'irai, madame, Revoir le piédestal portant le nom tracé, Ce doux nom dans lequel j'emprisonne mon âme, Et que le vent d'hier a peut-être effacé548. 545 DUMAS FILS, 1863, p. 100 Ibid., p. 101 547 Ibid. 548 Ibid. 546 275 A possibilidade de separação é particularmente forte nas duas estrofes finais do poema: enquanto na penúltima Jacques se pergunta onde estaria sua amante nesse futuro em que se vislumbra só, na última compara a sua situação ao próprio inverno que viverá em pleno verão, numa das mais belas estrofes desta primeira parte: Car l'hiver, ce n'est pas la bise et la froidure, Et les chemins déserts qu'hier nous avons vus ; C'est le cœur sans rayons, c'est l'âme sons verdure : C'est ce que je serai quand vous n'y serez plus549. O segundo poema se passa um ano após a caminhada descrita na primeira parte e Jacques termina a primeira estrofe confirmando as previsões que fizera a respeito da separação inevitável: “Hélas! J’avais prévu la tristesse destinée/ Qui devait succéder à quelques jours heureux” (Ai de mim! Eu tinha previsto a tristeza destinada / Que sucederia alguns dias felizes”). Desta vez, sozinho, Jacques relembra a caminhada no mesmo parque em que estivera um ano antes com a Madame de Wine, e fala do amor que poderiam ter vivido, mas que não vingou: Notre amour ne vit pas la saison près de naître ! A peine un doux rayon de soleil luisait-il, Que l'on nous séparait ; et, pour toujours peut-être, A commencé le double et douloureux exil550. Nas estrofes seguintes o poeta, tomado pela tristeza e pela falta de esperança, discorre sobre o quanto é inútil toda a beleza natural que vê diante de si porque nada disso dá a ele o que ele quer, a volta de sua amante: A quoi bon ce soleil qui fleurissait les branches, Réchauffait la nature et les champs assoupis ? Marguerites, à quoi servaient vos têtes blanches, Plus hautes en avril que les jeunes épis ? A quoi bon les senteurs de la colline grasse ? A quoi bon les oiseaux caquetant leurs chansons ? Que me faisaient, à moi, le cœur pris sous la glace, La chaleur de la terre et les nids des buissons ? Qu’à jamais le soleil se voile, s’il éclaire En vain le long chemin au bout duquel j’attends : S’il ne ramène pas ce que mon cœur espère, Il n'est pas de soleil, il n'est pas de printemps !551 549 DUMAS FILS, 1863, p. 101 Ibid., p. 312 551 Ibid. 550 276 Figura 9 – Reprodução da publicação de “Versos a Emma” Fonte: Assis (1865). 277 Jacques nos diz que, na ausência de sua amada, nada do que vê é capaz de satisfazê-lo porque não trazem a ele o que deseja, a ponto de afirmar que, sem ela, o sol não é sol, e a primavera não é primavera. Mas a amargura dele é também direcionada a ela, que deixou passar muito tempo sem nem ao mesmo uma carta ou bilhete, ou mesmo uma rosa embrulhada em um envelope: Un morceau de papier, c’est pourtant peu de chose Quatre lignes dessus, ce n’est pourtant pas long. Si l’on ne veut écrire, on peut prendre une rose Eclose le matin dans un pli du vallon ; On la peut effeuiller au fond d’une enveloppe, La jeter à la poste ; et, l’exilé venu Du fond de son pays, presque au bout de l’Europe, Peut sourire en voyant que l’on s’est souvenu. Que de fois vous avez oublié de le faire ! Et chaque jour, c’était un désespoir nouveau. Mon cœur se desséchait, comme ces fruits qu’on serre, A la fin de l’été, dans l’ombre d’un caveau552. Na ausência dela, ele volta ao parque como se tentasse reviver aqueles momentos e encontra tudo como estava naquele dia: Nous voici revenus à la fin de l'année, Et le temps patient, qui ne s'arrête a rien, Nous rend le même mois et la même journée Où vous parliez d'amour, votre front près du mien. C'est bien le même aspect : les routes sont désertes, Le givre, de nouveau, gerce les étangs bleus. Les arbres ont usé leurs belles robes vertes, Le cygne rôde encore triste et silencieux553. A diferença é que, desta vez, ele está sozinho e se deixa levar pela imaginação crendo que ela estaria ali com ele. O segundo poema se encerra de maneira bastante similar à do primeiro: se lá o poeta, que ainda gozava da presença de sua amada, comparava sua ausência ao inverno, agora que estão longe um do outro pensa que só encontrará outro verão quando estiverem juntos novamente: Non ! Non ! tu n'es plus là, toi que j'appelle et j'aime ! J'ai pris le souvenir pour la réalité. Et loin de cet amour, encore, toujours le même, J'ai vécu deux hivers de suite sans été. Car l'été, ce n'est pas cette saison qui dure 552 553 DUMAS FILS, 1863, p 313 Ibid. 278 Six mois, et que novembre éteint d'un pied transi. C'est du cœur rayonnant l'éternelle verdure ; C'est ce que je serai quand tu seras ici554. Os poemas de Dumas filho, conforme publicados no romance La Dame aux Perles, não têm título. “Versos a Ema” e, depois, “Estâncias a Ema” são, portanto, títulos escolhidos pelo tradutor, bem como a escolha de juntar ambos, que aparecem em momentos diferentes tanto no romance quanto no ensaio “Les trois dames”, em um só que se divide em duas partes. A começar pelo título, Machado de Assis se apresenta neste caso como um tradutor em nada diferente do que já foi observado antes: o texto-fonte é utilizado como ponto de partida para uma criação autônoma que se apega menos à forma do texto-fonte do que ao sentido geral da narrativa. O tradutor, como disse Araripe Júnior, é deveras livre, sem que isso signifique perder de vista o texto-fonte. Como de praxe, a começar pela forma, Machado opta por trocar as quadras escritas em alexandrinos clássicos de rimas cruzadas de Dumas por quadras de versos decassílabos heroicos e sáficos, rimando somente os versos pares de cada estrofe. Considerando que o poema é essencialmente uma narrativa, o leitor que tiver acesso apenas à tradução não estará privado de nenhum elemento relevante dela. O primeiro ponto que se destaca na tradução de Machado de Assis é, inevitavelmente, a estrofe que não existe no texto-fonte indicado por Galante de Sousa e corroborado por JeanMichel Massa, que transcrevemos a seguir, a partir da edição das Causeries de Dumas (pai)xlv: Seul pendant six longs mois, le jour, le soir, dans l'ombre, Sans écho que mon cœur, ma bouche vous nomma, Entrant à chaque pas dans une nuit plus sombre, Et, plus triste, disant sans cesse : « mon Emma ! »555 A edição consultada, de 1885, é bastante posterior às publicações da tradução de Machado de Assis. Todavia, a primeira edição das Causeries de Dumas (pai) de que consta o ensaio “Les trois dames”, que contém o poema conforme traduzido por Machado de Assis, data de pelo menos 1860. Veja-se ainda que é somente nesta estrofe que a personagem é chamada pelo nome “Ema”, sendo, portanto, crucial para que Machado pudesse dar à sua versão o nome de “Estâncias a Ema”, como se observa na seguinte estrofe correspondente à versão francesa: Só, durante seis meses, dia e noite Chamei por ti na minha angústia extrema; A sombra era mais densa a cada passo, E eu murmurava sempre: - Oh! minha Ema!556 554 DUMAS FILS, 1863, p. 314 DUMAS, Alexandre. “Les trois dames”. Causeries. Paris: Calmann-Lévy Frères, 1885, p. 33. 556 ASSIS, 1976, p. 341 555 279 Na estrofe transcrita acima já temos um exemplo da liberdade de que fala Araripe Júnior: o tradutor toma somente ideia do segundo e terceiro versos, em que o poeta diz chamar angustiadamente por Ema enquanto vê cair sobre si a sombra da solidão, e faz da tradução uma reescrita dos versos buscando outros elementos que deem conta da cena que precisa narrar. O mesmo procedimento é adotado diversas vezes no decorrer do poema, demonstrando que Machado de Assis entende a tradução como um processo criativo autônomo, como se vê, por exemplo, na terceira estrofe, que mostra o quanto Machado de Assis era capaz de ser sintético, abreviando o texto de Dumas sem tirar-lhe nada que fosse imprescindível. Ao compararmos a seguinte estrofe de Dumas: Cet homme pour Saint-Cloud avait des préférences ! Eh bien ! va pour Saint-Cloud, c’est un charmant pays ! D’ailleurs, quand nous melons nos douces confidences, Peu m’importe l'endroit, je suis bien ou je suis557. com a versão de Machado de Assis: Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! pois vamos! É um sítio de luz, de aroma e riso, Demais, se as nossas almas conversavam, Onde estivessem era o paraíso558. percebe-se que, se por um lado é verdade que o resultado final da tradução se ressente da pobreza poética e do prosaísmo do texto-fonte, é preciso reconhecer que o poeta-tradutor encontrou soluções criativas, que sugerem que o tradutor às vezes buscou manter não só os aspectos narrativos do poema, mas também suas características estéticas, como a aliteração no verso “Le parc était à nous, à nous seuls, à nous deux” recuperada em “Nosso era o parque, unicamente nosso”, ou em “Moins obscur, moins épais, moins triste que le doute”, vertido em “Menos triste, inda assim, menos escuro / Que a dúvida cruel que me seguia”. A tradução é também consistente nas marcas que o poeta deixa de sua busca por correção e apuro no emprego da forma, assim como na concisão e precisão empregadas, antecipando alguns aspectos que ganhariam força na poesia parnasiana, como a cena em que é descrito o encontro com o cisne no lago: Nous sommes arrivés près d'un bassin où rôde Un cygne encore plus blanc que le lait, et nageant Silencieusement, et, comme une émeraude, L'eau verte reflétait le bel oiseau d'argent. 557 558 DUMAS, 1885, p. 28 ASSIS, 1976, p. 336 280 Il vint nous demander quelque chose, une miette De pain ; et pour nous plaire, il tordait son long cou; Vous lui dîtes alors : « Pauvre petite bête, Je ne le savais pas, et je n'ai rien du tout. »559 e que Machado de Assis traduz por: O tanque, onde nadava um níveo cisne Placidamente, — o passo nos deteve; Era a face do lago uma esmeralda Que refletia o cisne alvo de neve. Veio este a nós, e como que pedia Alguma coisa, uma migalha apenas; Nada tinhas que dar; a ave arrufada Foi-se cortando as águas tão serenas560. A busca por descrições sintéticas e precisas do tradutor fica patente em exemplos como “Un cygne encore plus blanc que le lait” que se torna “um níveo cisne”, sendo mais consistente do que Dumas – que primeiro compara o cisne à brancura do leite, e depois à prata – ao descrever novamente o cisne como sendo “alvo de neve”, com agradável aliteração; ou quando transforma toda a fala “Pauvre petite bête, / Je ne le savais pas, et je n’ai rien du tout” num simples e direto “Nada tinhas que dar”, eliminando, inclusive, boa parte do segundo verso da décima terceira estrofe da primeira parte do poema francês (“et pour nous plaire, il tordait son long cou”). Por todo o poema há, como estes, diversos outros exemplos em que hemistíquios ou versos inteiros são simplesmente eliminados na tradução, assim como é possível encontrar também acréscimos feitos pelo tradutor, ou mesmo escolha de imagens completamente diferentes como nos versos “Ce doux nom dans lequel j’emprisonne mon âme, / Et que le vent d’hier a peut-être effacé”, que Machado reescreve por “O doce nome que minha alma prende, / E que o tempo, quem sabe? Já consome!”. Escolha acertada, pois ao dizer que o nome daquela que foi uma vez amada se perde com o passar do tempo é uma imagem mais palpável, mais compreensível do que dizer que o mesmo nome foi “apagado pelo vento de ontem”. Com igual frequência o tradutor se apropria do tema do poema francês e com ele recompõe a obra à sua maneira, reorganizando o texto para oferecer ao leitor um poema que soe como um poema narrativo que é. Isso se observa principalmente nos três primeiros versos da sétima estrofe da segunda parte do poema, por exemplo, em que o texto francês diz: Qu'à jamais le soleil se voile, s'il éclaire En vain le long chemin au bout duquel j'attends : 559 560 DUMAS, Op. Cit., p. 29 ASSIS, Op. Cit., p. 338 281 S'il ne ramène pas ce que mon âmexlvi espère, Il n'est pas le soleil, il n'est pas le printemps !561 Na tradução de Machado de Assis percebemos que o terceiro verso da estrofe francesa foi deslocado para a segunda posição, enquanto os versos 1 e 3 da tradução são muito mais de Machado de Assis do que os de Dumas: O sol que enche de luz a longa estrada, Se me não traz o que minh’alma espera, Pode apagar seus raios sedutores: Não é o sol, não é a primavera!562 O movimento não é gratuito, pois permite que mantenha a rima entre o segundo e quarto versos de cada estrofe, esquema adotado por toda a tradução, conseguindo ainda agradáveis assonâncias e aliterações no par “longa estrada/minh’alma espera”, obtendo um resultado final mais sintético e mais agradável do que o de Dumas. Seria possível continuar a discussão apresentando diversos outros exemplos que reforçam as mesmas características – sintetismo, concisão, sobretudo liberdade criativa – que atestam o tipo de tradutor que Machado de Assis se tornava. Estes, no entanto, bastam por hora como exemplos que são do que vimos se desenhando até o momento. Ainda assim, uma última discussão sobre o papel desta tradução na produção autoral de Machado de Assis se faz necessária. Apesar do desdém com que Jean-Michel Massa se referiu à tradução – “A tradução é medíocre como é prosaico o texto original” – outros leitores como Mario Curvello (1982) e Adriana Silvina Pagano (1996) viram nesta tradução uma das peças que ajudou a pavimentar o caminho para a narrativa satírica de “Pálida Elvira”. Curvello escreve que em Falenas a apropriação do alheio aparece como uma importante aquisição do processo de composição machadiano, possibilitando-lhe desenvolver sua técnica de montagem utilizando-se de elementos encontrados na tradição. Parte deste processo, “Pálida Elvira”, na avaliação de Curvello, é exemplo de uma criação de Machado de Assis feita a partir de traços do verso lamartineano – de quem Machado também traduziu dois poemas, como “A Elvira”, e de onde aproveita a personagem – e da estrutura narrativa que recriou em “Estâncias a Ema” a partir dos poemas de Dumas563. Na tese de doutorado Percursos críticos e tradutórios da nação: Argentina e Brasil, Adriana Silvina Pagano retoma os mesmos argumentos de que em Falenas as traduções servem como exemplo de apropriação do alheio que permitem que Machado de 561 DUMAS, 1885, p. 33 ASSIS, 1976, p. 340 563 CURVELLO, Mario. “Falsete à poesia de Machado de Assis”. In: BOSI, Alfredo et alli. Machado de Assis: São Paulo: Ática, 1982. p. 477-496. 562 282 Assis, a partir de outros poemas do volume como “A Elvira” e “Estâncias a Ema” crie um outro poema, “Pálida Elvira”. Este, por sua vez, ajuda a ampliar o debate acerca dos limites da prática crítico-tradutória: Um estudo de "Pálida Elvira" revela que há nesse texto literário uma teorização da criação poética e da tradução, uma vez que ele questiona a prática da imitação não produtiva, aquela que está limitada a apenas reproduzir um modelo. No poema, as reflexões acerca da tradução e da criação estão acompanhadas de pontuações sobre a poética do romantismo. Num momento em que as traduções dos românticos europeus eram tantas, que se chegou a falar em “epidemia” ou “surto” de traduções de Victor Hugo, Byron e outros Machado de Assis apresenta a Elvira de Lamartine como uma “pálida Elvira”, imitação das convenções do romantismo francês, e critica a cópia pela voz de um narrador que, em tom irônico e brincalhão, questiona essas convenções [...]564. Estas reflexões servem para nos lembrar que mesmo exercícios modestos de tradução, de objetos e resultados questionáveis, que não raro são subestimados por alguns críticos, podem ter sido o caminho que o escritor precisou trilhar para conseguir dar os passos necessários para a criação da obra sólida que o tornou conhecido. 8.5 “A morte de Ofélia” “A morte de Ofélia” pertence ao grupo de poemas inéditos de Falenas. Trata-se de uma cena aproveitada do ato IV, cena VII de Hamlet, em que a rainha descreve a Laertes a morte da filha de Polônio, que se afogara em um riacho à beira de um salgueiro. São cinquenta e um versos, escritos em decassílabos e heroicos quebrados, de rimas assimétricas. Massa atribui a escolha deste episódio a um conhecimento superficial da literatura inglesa565, talvez por se tratar de uma cena célebre e bastante citada. Discordando de Massa, entendemos que a escolha ressalta uma demonstração de apreço e reconhecimento do cânone, no qual pretendia se inserir pela emulação do modelo inglês. O crítico e teórico norte-americano Harold Bloom (2004) considera a cena descrita pela rainha Gertrudes “[...] um dos grandes trechos de Shakespeare [pois] propicia à peça o esplendor lírico que contribui para justificar o 564 PAGANO, Adriana Silvino. Percursos críticos e tradutórios da nação: Argentina e Brasil. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1996. p. 244. 565 MASSA, 2008, p. 86 283 elogio de Samuel Johnson à riqueza do texto”566. Mais à frente o crítico conclui sua avaliação sobre a cena afirmando que o páthos ali contido [...] enseja um efeito estético extraordinário, exclusivo a Ofélia. O contraste entre ‘sufocar no lodo’ e a visão da jovem ensandecida, flutuando e cantando velhas canções, provoca uma ressonância sublime, semelhante à percepção de Hamlet, de ser ele mesmo, igualmente, tudo e nada, “infinito em faculdades” e “quintessência do pó”567. Deve-se considerar ainda que a imagem de Ofélia, figura feminina que comete suicídio, teve amplo prestígio no século XIX entre diversos pintores pré-rafaelitas e poetas simbolistas e decadentistas. Há pinturas de Eugène Delacroix, Alexandre Cabanel, Paul Delaroche, John Everett Millais e diversos outros que retratam a morte da jovem. Na literatura, Rimbaud se rendeu ao tema, assim como o próprio Machado de Assis que já publicara, em 1859, um poema com o título “Ofélia”. Eugênio Gomes (1976) nota ainda que de Hamlet, além da cena que inspirou este poema, há referências por toda a obra de Machado de Assis, e cita como exemplo uma das crônicas de A Semana, “A cena do cemitério”, de 1894568. Acrescente-se a isso a avaliação de Francine Ricieri (2016), que reforça a relevância do tema à época da realização da tradução: A virgem que se torna suicida após o desengano amoroso, de certo modo reproduzia, naquele imaginário, o destino da poesia (e da pintura) desiludidas ambas após seu desengano amoroso com uma sociedade que lhes negava espaço e existência. Loucas ambas, Ofélia e a representação artística por ela evocada falaram eloquentemente, no final do XIX, sobre este não-lugar, sobre este suicídio que marcava uma impossibilidade e simultaneamente uma recusa569. Assim, parece-nos que a escolha de Machado de Assis evidencia um senso crítico bastante afiado, capaz de reconhecer numa das grandes obras da literatura inglesa, fonte onde ele foi beber inúmeras vezes, uma cena de inquestionável relevância. Quanto à paráfrase/tradução de Machado de Assis, Massa faz a seguinte avaliação: “A morte de Ophelia” (1869) suscita um texto que Machado de Assis não chama de “tradução”, mas de “paráfrase”. Os versos são de extensão desigual (seis e dez pés), e a atmosfera crepuscular é acentuada. A poesia de Machado de Assis banha-se em um halo romântico abrandado pelos acréscimos do tradutor. [...] Por certo que a paráfrase autoriza infidelidade ao original. Mas nossa reserva diante de “A morte de Ophelia” provém, sobretudo, da inatualidade dessa versão que parece um pouco envelhecida em sua insistência verbosa e em seu langor quase lamartiniano.570 566 BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 51 Ibid., p. 52 568 GOMES, Eugênio. Machado de Assis: influências inglesas. Rio de Janeiro: Pallas S.A./Instituto Nacional do Livro/MEC, 1976. p. 19 569 RICIERI, Francine Fernandes Weiss. “A poesia machadiana: versões, traduções, revisões e diálogos – uma musa de roupas embebidas”. Manuscrítica: revista de crítica genética. N. 14. Vitória, ES. Dezembro de 2016. p. 235 570 MASSA, 2008, p. 87 567 284 Citamos o trecho acima porque alguns pontos da avaliação de Massa merecem revisão: nossa pesquisa tem demonstrado que Machado de Assis, assim como boa parcela dos poetas e tradutores da época, não utilizava com muito critério ou rigor terminológico ou conceitual palavras “tradução” ou “paráfrase”, ou mesmo “imitação”. “Cleópatra”, de Crisálidas, por exemplo, também é chamada de “paráfrase”, embora seja muito mais próxima do texto-fonte do que “A morte de Ofélia”. Da mesma maneira, o fato de apresentar o texto como uma “paráfrase” não é, por si só, condição suficiente para “autorizar infidelidade ao original”, já que o tradutor sempre se autoriza a alterar o que julga necessário quando lhe convém, principalmente no que tange a forma dos poemas que traduz, como visto anteriormente em praticamente todos os outros textos que analisamos até aqui, dando indícios de que via na tradução um trabalho de coautoria. Não se pode negar, contudo, que em “A morte de Ofélia” as liberdades do tradutor alçam voos muito mais altos, afastando-se do texto-fonte como nunca fizera antes. A propósito do texto-fonte utilizado para esta tradução, inclusive, pouco se sabe. Se Massa (2008) compara alguns trechos da tradução com o texto no inglês de Shakespeare, Ishimatsu (1982) afirma não ser possível dizer se Machado de Assis trabalhou a partir do francês ou do inglês571. Até mesmo a Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa, que frequentemente aponta quais poderiam ter sido os textos-fonte dos textos traduzidos, não dá nenhuma indicação neste caso. Sabe-se, pelos levantamentos feitos tanto por Massa quanto por Glória Vianna que Machado de Assis possuiu em sua biblioteca particular versões em inglês e em francês – na tradução de Émile Montégut – da obra de Shakespeare. Além dessas edições, havia também em sua biblioteca um volume intitulado The beauties of Shakespeare, com excertos da obra do bardo inglês que, segundo anotações de Glória Vianna, foi muito manuseado, com diversas marcas nas margens das páginas572. Esse volume, que contém excertos escolhidos por um Rev. William Dodd, parece ter sido bastante popular já que encontramos diversas edições dele, em diferentes formatos, publicados por diversos editores ao longo dos anos. Um desses excertos é justamente a cena em que a rainha descreve a morte de Ofélia. Infelizmente não conseguimos encontrar a mesma edição que Machado de Assis possuiu, mas como o conteúdo das outras edições consultadas permanece praticamente inalterado, isso não seria um agravante. Consultamos também uma das edições com a tradução 571 572 ISHIMATSU, 1982, p. 93 VIANNA, 2001, p. 211 285 em prosa de Émile Montégut com o intuito de encontrar indícios que apontassem para uma ou outra versão. Como o poema não é muito extenso, comparemos o texto da tradução de Machado de Assis: A morte de Ofélia Junto ao plácido rio Que entre margens de relva e fina areia Murmura e serpenteia, O tronco se levanta, O tronco melancólico e sombrio De um salgueiro. Uma fresca e branda aragem Ali suspira e canta, Abraçando-se à trêmula folhagem Que se espelha na onda voluptuosa. Ali a desditosa, A triste Ofélia foi sentar-se um dia. Enchiam-lhe o regaço umas capelas Por suas mãos tecidas De várias flores belas, Pálidas margaridas, E ranúnculos, e essas outras flores A que dá feio nome o povo rude, E a casta juventude Chama - dedos da morte - O olhar celeste Alevantando aos ramos do salgueiro, Quis ali pendurar a ofrenda agreste. Num galho traiçoeiro Firmara os lindos pés, e já seu braço, Os ramos alcançando, Ia depor a ofrenda peregrina De suas flores, quando Rompendo o apoio escasso, A pálida menina Nas águas resvalou; foram com ela Os seus - dedos da morte - e as margaridas, As vestes estendidas Algum tempo a tiveram sobre as águas, Como sereia bela, Que abraça ternamente a onda amiga. Então, abrindo a voz harmoniosa, Não por chorar as suas fundas mágoas, Mas por soltar a nota deliciosa De uma canção antiga, A pobre naufragada De alegres sons enchia os ares tristes, Como se ali não visse a sepultura, Ou fosse ali criada Mas de súbito as roupas embebidas Da linfa calma e pura Levam-lhe o corpo ao fundo da corrente, Cortando-lhe no lábio a voz e o canto. As águas homicidas, Como a laje de um túmulo recente, Fecharam-se; e sobre elas, 286 Triste emblema de dor e de saudade, Foram nadando as últimas capelas573. com a versão inglesa de Shakespeare: There is a willow grows aslant the brook, That shows his hoar leaves in the glassy stream; Therewith fantastic garlands did she make Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples, That liberal shepherds give a grosser name, But our cold maids do dead men's fingers call them: There on the pendent boughs her coronet weeds Clambering to hang, an envious sliver broke; When down her weedy trophies, and herself. Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide; And, mermaid-like, awhile they bore her up: Which time she chanted snatches of old tunes; As one incapable of her own distress, Or like a creature native and indued Unto that element: but long it could not be. Till that her garments, heavy with their drink, Pull'd the poor wretch from her melodious lay To muddy death574. E a tradução em prosa de Montégut: La reine. — Près d'un cours d'eau , il y a un saule qui mire ses feuilles blanchâtres à la glace de l'onde ; c'est lu qu'elle s'est rendue avec des guirlandes fantasques composées de renoncules, d'orties, de marguerites, et de ces longues fleurs pourprées que nos bergers au langage indécent nomment d'un nom plus grossier, mais que nos chastes vierges appellent doigts de morts : pendant qu’elle grimpait à ce saule pour accrocher à ses rameaux pendants sa couronne d'herbes fleuries, une branche envieuse s'est cassée, et alors, elle et ses trophées de verdure sont tombés dans le courant. Ses vêtements se sont déployés sur la surface de l'eau, et ils l'ont soutenue un instant pareil à une sirène : pendant ce temps-là elle chantait des fragments de vieux chants, comme une personne sans conscience de sa détresse, ou comme une créature native ou habitante de cet élément : mais il ne s'est pas écoulé longtemps avant que ses vêtements pesants de l'eau qu'ils avaient bue arrachassent la pauvre malheureuse à ses lais mélodieux pour la conduire à un tombeau de vase575. O poema criado por Machado de Assis a partir da cena aproveitada da peça de Shakespeare abre com uma descrição da paisagem em que encontraremos Ofélia: os nove primeiros versos descrevem um rio calmo que corta as relvas e a areia fina, um tronco solitário de um salgueiro que desponta à margem, balançado por uma suave brisa. Esta primeira descrição já é bem mais detalhada do que qualquer uma das versões estrangeiras que acompanham a tradução de Machado acima. É ali que vai se sentar Ofélia, trazendo ao colo capelas de flores tecidas por ela mesma, flores que incluem as “pálidas margaridas e 573 ASSIS, 1976, p. 343-344 SHAKESPEARE, William. Complete works of William Shakespeare. Glasgow: Harper Collins Publishers, 1994, p. 1117 (Ato 4, cena VII, v.167-183). 575 Id. Œuvres complètes de Shakespeare. Trad. Émile Montégut. Paris: Librairie Hachette et Cie, s/d., p. 531. 574 287 ranúnculos” mas também aquelas conhecidas como “dedos da morte”, mas que possuem também um “feio nome”, alusão ao formato fálico da planta que, de imediato, nos faz pensar no contraste entre a delicadeza e feminilidade das margaridas e ranúnculos e o formato fálico, de um azul arroxeado e agourento dos “dedos da morte”. Ofélia, já tomada pela loucura na peça de Shakespeare, tenta pendurar a oferenda no salgueiro – árvore que também conota tristeza e melancolia – mas é traída por um “galho traiçoeiro” e cai na água. Ao cair no rio, leva consigo os ramos com as margaridas, ranúnculos e dedos da morte, criando sobre as águas a imagem de uma criatura mítica, com suas vestes lembrando a cauda de uma sereia. Louca, em vez de tentar salvar-se, Ofélia canta como se a morte não fosse iminente. Como não luta, suas vestes logo se encharcam e a levam para o fundo do rio enquanto canta, alheia ao que se passa. Novamente, a descrição que Machado faz da cena é bem mais detalhada do que qualquer uma das versões estrangeiras. Também o ritmo de seu poema, um entrecortado de versos brancos ora mais longos, ora mais curtos, afastam do leitor qualquer regularidade denotando a tensão que a cena tenta evocar e levando-nos à inevitável conclusão de que esta peça deve ser lida como um poema em si, uma obra independente que remete a outra, e não somente como um excerto de uma obra de Shakespeare traduzido para o português. Comparando as versões estrangeiras entre si, percebe-se que a tradução em prosa francesa de Montégut deixa de lado quaisquer preocupações estéticas com os pentâmetros jâmbicos do texto inglês para traduzir, de maneira literalizante, somente o sentido dos versos da fala da rainha, com algumas poucas alterações que conferem ainda mais prosaísmo ao texto. É, de fato, impossível afirmar com certeza qual texto Machado de Assis teria utilizado como fonte para sua tradução. Por outro lado, é bastante provável que a escolha não tenha caído sobre um ou outro necessariamente, mas que ambos tenham sido utilizados na tarefa, algo que parece ter precedentes em outras traduções que já analisamos. Um pequeno detalhe, contudo, nos faz pender levemente para o argumento de que o texto francês, se não foi a única fonte, pelo menos serviu de apoio: uma das dificuldades impostas pelo texto de Shakespeare está no nome das flores citadas nos versos que narram a guirlanda feita por Ofélia. Não há consenso sobre de que planta Shakespeare estaria falando na primeira espécie mencionada, “crow-flowers”. O dicionário Shakespeare’s words (2002), organizado pelo linguista David Crystal e Ben Crystal, seu filho e ator especializado em montagens modernas de Shakespeare na pronúncia original, explica que o termo é de “significado obscuro; provavelmente a ragged-robin; usado como parte de uma ‘guirlanda 288 fantástica’ ‘de matiz amarelo’; possivelmente o botão-de-ouro, ou um nome”576. Diante desta dificuldade, o tradutor francês escolhe traduzir “crow-flower” por “renoncules”, enquanto Machado de Assis escolhe a tradução direta do termo francês empregado por Montégut: “ranúnculos”. A responsável pela clássica tradução de Hamlet (2004) para o português, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, segue o caminho de Machado de Assis e traduz “crowflowers” da mesma maneira: Ali, com suas líricas grinaldas De urtigas, margaridas e rainúnculos577 Se por um lado é verdade que os “renoncules/ranúnculos” e as “crowflowers” (também conhecidas como “crowfoot”) pertencem ao mesmo genus Ranunculus, as flores a que aludem Machado de Assis e Montégut lembram rosas, enquanto as “crowflowers”, como o nome diz, tem o formato dos pés das aves que lhe emprestam o nome, o corvo, e são venenosas. Mas talvez o que mais importe seja a sutil referência à ave associada ao mau agouro em uma cena que retrata a morte, algo que não se encontra na escolha do tradutor francês e, consequentemente, na de Machado de Assis. É interesse notar que esta tradução aborda um tema faz parte de uma linhagem de textos que ocupam a pena do poeta-tradutor desde mais de uma década antes da publicação de Falenas, indício de que o trabalho do tradutor nem sempre está desconectado do restante da produção do autor. O poema “Ofélia”, por exemplo, publicado no Correio Mercantil em outubro de 1859, demonstra que Machado de Assis já conhecia a cena descrita em Shakespeare e compõe, inspirado nela, uma versão alternativa, em que pede à sua Ofélia que não cometa suicídio: Pálidas flores que uma vaga incerta Ali suspensas traz Vicejam aos borrifos, do meu pranto, Oh! essas flores que te prendem tanto Deixa-as, Ofélia, em paz! Não te curves à borda dessas águas De superfície anil Ébria de amores, – do teu sonho casto Não acharás ali o mundo vasto Nem o rosado abril.578 Para além das referências a Shakespeare já mencionadas por Eugênio Gomes no capítulo dedicado ao bardo inglês em Machado de Assis: influências inglesas, há menções diretas a 576 CRYSTAL, David; CRYSTAL, Ben. Shakespeare’s words: a glossary and language companion. London: Penguin Books, 2002. p. 330, tradução nossa. No original: “of unclear meaning; probably the ragged robin; used as part of a ‘fantastic garland’ ‘of yellow hue’; possibly the buttercup, or an invented name”. 577 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. In: BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 284. 578 ASSIS, 2009, p. 470 289 Ofélia e à cena do seu suicídio em alguns de seus contos como “Cinco Mulheres” (1865), “Muitos anos depois” (1874) e “A chave” (1879-1880). “Muito anos depois” já foi citado antes por conta da alusão a André Chénier. Neste conto, o Padre Flávio idealiza em Ofélia e Marília – a pastora no poema de Tomás Antônio Gonzaga – as mulheres que busca: “[...] ansiava por encontrá-las, amava-as antecipadamente, em solitárias chamas. Como era natural, o moço exigia mais do que poderia dar a natureza humana”579. Contudo, a personagem Ofélia aparece de maneira apenas circunstancial, sem grandes implicações para a trama do conto. Muito mais curioso e relevante é a presença da personagem shakespeariana nos outros dois contos. No primeiro, “Cinco mulheres”, o narrador diz ter desenhado rapidamente, “[...] um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na mesma coleção, como em um álbum de fotografias [...]conforme apareciam, sem intenção de precedência, nem cuidado de escolha” de forma que cada uma delas pudesse ser examinada “entre o charuto e o café”. A primeira dessas mulheres, Marcelina, é assim descrita pelo narrador logo no primeiro parágrafo: Marcelina era uma criatura débil como uma haste de flor; dissera-se que a vida lhe fugia em cada palavra que lhe saía dos lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido como os últimos raios do dia. A cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava ao céu. Quinze anos contava, como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava destinada a colher a um tempo as flores da terra e as flores da morte580. Marcelina, assim como Ofélia, é uma figura frágil, que padece de uma enfermidade que permanece oculta até quase o fim de sua história: a enfermidade é o amor que nutre pelo jovem que se casa com sua irmã. O sofrimento silencioso leva a jovem à morte, e a causa só é revelada primeiramente ao médico e, depois do falecimento, à mãe de Marcelina por meio de uma carta. A morte de Marcelina é quase um suicídio, visto que a jovem recusa qualquer tentativa de buscar a cura pela felicidade em outro lugar e se entrega completamente à tristeza do amor não realizado. Anos depois do falecimento, o cunhado, Júlio, encontra a carta em que Marcelina confessa à mãe o motivo da doença. O cunhado lê a carta, acende um charuto e vai ao teatro. O conto “A chave” – o mais maduro e interessante dos três – nos coloca diante de outra Marcelina: antítese da primeira, esta jovem é forte, resoluta e pouco disposta a se entregar ao primeiro pretendente. Esta Marcelina é uma exímia nadadora e é no mar que se passam os primeiros eventos do conto. Enfrentando um mar bravio, Marcelina dispensa o escravo que a acompanha para exibir-se aos demais banhistas. Quase se afoga e é salva por Luís Bastinhos, 579 580 ASSIS, 2015, Vol. 2, p. 1233 Ibid., p. 799 290 outro exímio nadador que ganha, primeiramente, o coração do pai da moça – o major Caldas – que sonha em vê-los casados. Passada esta introdução, a cena da morte de Ofélia reaparece no conto e desta vez com uma citação no idioma de Shakespeare, uma fala de Laertes que acabara de receber a notícia da morte da irmã: Saiamos do mar que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer um conto marítimo, a ponto de casar os dois heróis nos próprios ‘paços de Anfitrite’, como diria o major Caldas. Não; saiamos do mar. Já tens muita água, boa Marcelina. Too much water hast thou, poor Ophelia! A diferença é que a pobre Ofélia lá ficou, ao passou que tu sais sã e salva, com a roupa de banho pegada ao corpo, um corpo grego, por Deus!581 Como é de se esperar, quando o conto acaba ambos estão casados, mas não sem que antes o narrador desenhe uma Marcelina que é a antítese da primeira, opondo-se, consequentemente, à Ofélia de Shakespeare. Luís Bastinhos, por outro lado, apesar de atlético e excelente dançarino – a “chave” para o coração da moça, descobrimos, é saber dançar a valsa como nenhum outro – carrega traços da indecisão hamletiana: como não sabe se é ou não correspondido, planeja muito e não realizada praticamente nada, a ponto de pedir a mão da moça ao pai sem antes ter confessado o amor a ela. Por fim, é preciso uma iniciativa de Marcelina – depois de impressionada com os dotes do valsista –, que a princípio rechaça a ideia de casamento, para que os dois acabem juntos. A partir do que foi exposto até aqui, percebe-se que o assunto da cena recriada na paráfrase machadiana esteve com o autor durante décadas, fazendo-se presente na sua poesia, nas crônicas e na sua narrativa ficcional. Não se pretende dizer com isso que a tradução tenha precedência, mas que é parte indelével e expressiva do desenvolvimento do escritor e é um dos fios de sua malha poética no tratamento do tema. Meschonnic sugere que traduzir deve extravasar a interpretação porque “[...] é na enunciação do sujeito do poema que se faz a historicidade de um texto”582. Isso implica a recusa de que a interpretação é uma tradução. A tradução está além da interpretação porque se faz em uma nova enunciação, como esta tradução de Machado é a reescrita, a reenunciação poética de uma cena de Hamlet. Ao traduzir reescrevendo a cena da morte de Ofélia, Machado de Assis se apropria completamente do texto shakespeariano, tornando-o seu, como já ensaiara antes no poema “Ofélia”, para depois transformá-lo mais uma vez e utilizá-lo de forma irreverente nas crônicas até criar uma espécie de “Ofélia às avessas” com a Marcelina de “A chave”. 581 582 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 33-34 MESCHONNIC, 2010, p. 20 291 8.6 “Lira chinesa” A “Lira chinesa”, uma das quatro partes que subdivide Falenas, é composta de oito poemas atribuídos a poetas chineses, traduzidos – ou imitados – por Machado de Assis a partir do francês. A respeito do texto-fonte utilizado, em nota, Machado de Assis informa: “Os poetas postos nesta coleção são todos contemporâneos. Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela Sra. Judith Walter, distinta viajante que dizem conhecer profundamente a língua chinesa, e que os traduziu em simples e corrente prosa”583. Trata-se do Livre de Jade, publicado por Judith Walter – pseudônimo Judith Gautier, filha de Théophile Gautier – pela editora Alphonse Lemerre. As imprecisões desta nota de Machado de Assis já foram apontadas em diversas ocasiões: há, por exemplo, um engano na data, já que o livro é não é de 1868, mas de 1867. O deslize talvez se justifique porque o Livre de Jade foi colocado à venda no Rio de Janeiro em maio de 1868, pela Livraria Garnier584, o que poderia ter levado Machado a considerar que o livro fora publicado no ano em que possivelmente tomou conhecimento dele. Além disso, os poetas a quem os textos são atribuídos, à exceção de um deles, não são contemporâneos. Segundo Pauline Yu, no ensaio “Your alabaster in this porcelain: Judith Gautier’s ‘Le livre de jade’” (2007), os autores pertencem, em sua maioria, à Dinastia Tang ( , 618-907)585, dentre os quais se destacam Li Bai () e Du Fu (). A exceção mencionada se refere ao poema “As flores e os pinheiros”, atribuído a Tin-Tun-Sing na versão de Machado – Tin-Tun-Ling, no Livre de Jade –, a quem o livro é dedicado e que teria sido o preceptor de Judith Gautier na língua chinesa, por intermédio de seu pai. Sobre o suposto conhecimento que Judith Gautier tivesse do idioma, o eminente sinólogo português Joaquim Guerra (1995), no ensaio “A Lira chinesa de Machado de Assis”, afirma recear que não era tão profundo como Machado supôs586. A opinião é compartilhada também por Pauline Yu, que afirma: “O domínio que Gautier tinha do chinês era, na melhor das hipóteses, incerto”587. A “distinta viajante” tampouco teria viajado tanto quanto Machado de Assis acreditou: “A 583 ASSIS, 1976, p. 511 “Livraria Garnier, Rua do Ouvidor, 69 - Novidades”. Jornal do comércio. Rio de Janeiro,11 de maio de 1868, p. 3. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/364568_05/13711>. Acesso em: 17 de janeiro de 2018. 585 YU, Pauline. “Your alabaster in this porcelain: Judith Gautier’s ‘Le livre de jade’”. PMLA, Vol. 122, No. 2 (Mar 2007), p. 468. 586 GUERRA, 1995, p. 96 587 YU, op. cit, p. 469, tradução nossa. No original: “Gautier’s mastery of Chinese was at best uncertain”. 584 292 escritora e tradutora francesa transpôs uma única vez as fronteiras europeias, apenas em 1914, aos 69 anos de idade, quando é convidada a visitar a Argélia”588, de acordo com “A Lira chinesa em trânsito: de Machado de Assis a António Feijó” (2013), de Marta Pacheco Pinto. Fontes indicam que Le livre de jade teve boa recepção desde seu lançamento, tendo cinco edições subsequentes na França entre 1867 e 2004589. Yu informa que cada uma das três primeiras edições do livro difere da anterior, sendo que a primeira – a que serviu de fonte para a composição da “Lira chinesa” – era menor do que as posteriores, com 71 composições, a maior parte de poetas da Dinastia Tang, um poema da Dinastia Song – Su Dongpo – e um poema do preceptor de Judith Gautier, como dito anteriormente. O livro também foi objeto de traduções para vários idiomas, como o alemão, inglês, italiano, russo, espanhol, polonês e português, não só pelas mãos de Machado de Assis, que foi possivelmente seu primeiro tradutor para o nosso idioma, mas também pelo português António Feijó, que o traduziu no seu Cancioneiro chinês de 1890. Algumas informações apresentadas nos artigos de Pauline Yu, e também em “Sur les sources du Livre de Jade de Judith Gautier”, de Ferdinand Stocès, nos levam a considerar a possibilidade de tratar o trabalho de Judith Gautier menos como uma tradução/imitação de poetas chineses e mais como um trabalho de composição, inspirado naqueles poetas. Yu afirma, por exemplo, que Gautier procurou “[...] se afastar da abordagem acadêmica e versões minuciosamente trabalhadas do sinólogo”590 d’Hervey-Saint-Denys, que traduziu poetas chineses da Dinastia Tang antes dela. Além disso, Yu nota que Primeiramente, Gautier dispensou quase todos os títulos de poemas originais e substituiu-os pelos seus próprios títulos. Em segundo lugar, ela substituiu quase todas as referências específicas a pessoas e lugares com termos genéricos. Por fim, em várias ocasiões ela não traduziu o poema inteiro, geralmente selecionando apenas as primeiras linhas e às vezes alterando sua ordem.591 Segundo Yu, Judith Gautier teria adotado essas estratégias por não conseguir lidar adequadamente com o que não compreendia, embora a hipótese mais provável seja a intenção de dar um tom mais conciso à sua antologia, como se fosse uma obra única e não um apanhando 588 PINTO, Marta Pacheco. “A Lira chinesa em trânsito: de Machado de Assis a António Feijó”. Scientia traductionis, n. 14, 2013, p. 97. 589 YU, op. Cit., p. 465; PINTO, op. Cit., p. 95 590 YU, 2007, p. 468, tradução nossa. No original: “depart from the scholarly approach and work-manlike renditions of the sinologist”. 591 Ibid., p. 470, tradução nossa. No original: “First, Gautier dispensed with almost all the original poem titles and substituted her own. Second, she replaced almost all specific references to person and place with generic terms. Third, more often than not she did not translate an entire poem, usually selecting only the first few lines and sometimes altering their order” 293 de diversos autores. Gautier sequer teria tentado manter ou replicar a prosódia dos textos-fonte com os quais trabalhou, compondo, ao invés disso, seus pequenos poemas em prosa, o que leva Yu à conclusão de que esta obra de Gautier está no limite entre a tradução e a adaptação592. Ferdinand Stocès (2006) complementa as considerações de Yu afirmando que sempre existiram dúvidas sobre as traduções de Gautier. Afirmou-se até mesmo que as traduções seriam “[...] pastiches e pseudo-traduções que mostravam, sobretudo, o talento inventivo da poeta”593. Para reforçar esta tese, Stocès lembra que antologias mais recentes, que retomam alguns dos poemas traduzidos por Gautier, apresentam uma distância enorme entre as versões da jovem e as feitas por outros tradutores594. Todavia, o que talvez pese a favor dessa proposta é o fato de que alguns dos poemas que viriam a compor a primeira edição do Livre de Jade foram publicados alguns anos antes na Revue L’Artiste, em janeiro de 1864xlvii, com o título “Variations sur des thèmes Chinois d’après des poésies de Li-Taï-pé, Thou-fou, Tan-jo-su, Houan tchan-li, Haon-ti”595, já sob o pseudônimo Judith Walter, o que ocorre poucos meses depois de Gautier iniciar seus estudos no idioma chinês, que Stocès diz ter acontecido em meados de 1863. Obviamente, os poucos meses e a suposta dificuldade de comunicação entre professor e aluna – há relatos de que Tin-Tun-Ling falava com dificuldade o francês – não teriam sido suficientes para engendrar traduções no sentido mais estrito do termo. Logo, é perfeitamente compreensível que os textos tenham sido publicados como “Variations”, versões livremente inspiradas em textos cuja compreensão era, na melhor das hipóteses, deficiente. Outra edição das “Variations” foi publicada no ano seguinte na mesma revista. Stocès informa que somente três das dezesseis peças que compuseram essas duas publicações poderiam ser consideradas reais tentativas de tradução, embora em todas elas Gautier não tenha se privado de dar liberdade à sua imaginação para preencher as lacunas do que não conseguia ler nos textos-fonte. Acrescente-se a isso que, depois de comparar os resultados de Gautier com alguns textos-fonte identificáveis, Stocès conclui ter sido possível verificar “quanto esforço foi necessário para traduzir diretamente o chinês e quanto Judith Gautier e seu guardião tinham poucos elementos – apenas alguns caracteres decifrados – para 592 YU, 2007, p. 470 STOCÈS, Ferdinand. “Sur les sources du Livre de Jade de Judith Gautier (1845-1917). (Remarques sur l'authenticité des poèmes)”, Révue de littérature comparée 2006/3, (no 319), p. 335-350., p. 335, tradução nossa. No original: “pastiches et de pseudo-traductions démontrant avant tout le talent inventif de la poétesse” 594 STOCÈS, 2006, p. 336. 595 Ibid., p. 337. Grifos do autor. 593 294 compreender o significado e o espírito dos textos chineses”596, o que explicaria o fato de algumas de suas versões serem bastante diferentes das de outros sinólogos e tradutores. Dúvidas quanto ao conhecimento e leitura dos textos orientais também surgem no estudo feito por Edgar Knowlton Jr. em “Machado de Assis e a sua Lira chinesa” (1995): “Parece claro, observando as discrepâncias entre as traduções dela e as do estudioso d’HerveySaint-Denys, que ela se preocupou menos com a correção linguística do que com a reprodução da paixão dos poetas chineses”597, o que leva o autor a sugerir que a obra pertence à literatura francesa e não à sinologia. Estas considerações importam porque nos mostram que devemos tratar os textos da “Lira chinesa” não necessariamente, ou unicamente, como uma tradução/imitação de outra tradução/imitação. Assim como Livre de Jade deve ser lido mais como uma obra da literatura francesa do que uma obra de sinologia, podemos igualmente sugerir que a “Lira chinesa” de Machado de Assis, depois de todas as transformações por que os textos franceses passaram, pertence mais à literatura brasileira e ao seu autor do que à literatura francesa ou chinesa. Não seria de todo equivocado dizer que Livre de Jade possui poemas em prosa tão “originais” quanto os textos-fonte de que se serviu, assim como Machado de Assis se serve desses originais para, a partir deles, compor a sua “Lira chinesa”. Portanto, julgar o trabalho de Machado de Assis em termos de tradução em sentido estrito – ou como algo que deve respeitar o que estipula o “original” – poderia levar o crítico a conclusões equivocadas. Cláudio Murilo Leal (2008) atribui ao fato de serem “traduções” a pouca atenção que esses poemas têm recebido da crítica especializada598, o que consideramos lamentável, visto a inegável demonstração de inventividade poética de Machado de Assis. Nestes oito poemas ele se teria deixado envolver pelo que Élide Valarini Oliver (2006) chama de “[...] as formas lapidares, as elipses indicativas, a sabedoria explícita ou implícita, a concisão e precisão formal, a simbologia cosmológica embutida nas descrições da natureza, etc.”599, mesmo que sob o véu da pena de Judith Gautier. 596 STOCÈS, 2006, p. 339, tradução nossa. No original: “combien il fallait d’efforts pour traduire directement du chinois et combien Judith Gautier et son tuteur avaient peu d’éléments — quelques caractères déchiffrés seulement — pour saisir le sens et l’esprit des textes chinois”. 597 KNOWLTON Jr, E. C. “Machado de Assis e a sua Lira chinesa”. Revista de Cultura, Macau, n.22, II série, p. 81-94, jan-mar 1995, p. 85 598 LEAL, 2008, p. 101 599 OLIVER, Élide Valarini. A poesia de Machado de Assis no século XXI: revisita, revisão. In: 1º Concurso Internacional Machado de Assis. Ensaios premiados: a obra de Machado de Assis. Ministério das Relações Exteriores, 2006, p. 139 (pp. 119-178). 295 Ainda que não tenha recebido muita atenção da crítica como sugere Leal, ao contrário de parte considerável das traduções poéticas de Machado de Assis, muitas das quais nunca foram antes examinadas ao lado dos seus respectivos textos-fonte, a “Lira chinesa” já conta com alguns estudos em que pudemos nos apoiar para apresentar algumas conclusões, tendo sido objeto de análise e comparação com os textos de Gautier, como o ensaio de Edgar Colby Knowlton Jr – “Machado de Assis e a sua Lira chinesa” – e, em menor grau, o já citado “A Lira Chinesa de Machado de Assis” do sinólogo Joaquim Guerra, além do trabalho pioneiro de Massa (2008). Um dos primeiros comentários que a “Lira chinesa” recebeu foi publicado pelo folhetinista português Júlio César Machado (2003) por ocasião do lançamento de Falenas, onde compara os poemas de Machado de Assis, sobretudo “O Imperador”, a Heinrich Heine pela “ironia preciosíssima”600, ponto a que retornaremos mais à frente. A opinião de Massa é bastante favorável ao trabalho de Machado de Assis. Massa entende que, ao entrar em contato com a obra de Gautier, “[...] Machado de Assis foi cativado por um estilo novo: os apólogos desabusados expressos em uma forma lapidar. [...] A escolha a que ele se dedica confirma sua atração por uma forma de literatura cujo canto lhe parecia novo”601. Com esse novo canto, Machado de Assis teria sido capaz de dar a esses poemas orientais uma forma que “é às vezes mais vigorosa e seca que a tradução francesa”602, e cita, como exemplo, “Um poeta a rir”. A “Lira chinesa”, na opinião do crítico e biógrafo francês, também traria “[...] o mesmo tom trocista ou desiludido, geralmente expresso de forma mais breve que nos poemas do Livre de jade, com uma pesquisa literária constante, mesmo nos casos em que o tradutor não usa a rima”603 para, em seguida, concluir afirmando que com aqueles oito poemas Machado de Assis estaria anunciando “[...] um gosto poético muito bem cuidado (rebuscado), de flores preciosas que exalam um perfume raro. A tradução torna-se premonição”604. Ishimatsu, em The poetry of Machado de Assis, assim como Massa sugere em alguns momentos, viu um Parnasianismo avant la lettre em Falenas, particularmente na “Lira chinesa”. Dentre as características elencadas na obra para justificar a afirmação estão a “dicção 600 MACHADO, Júlio César. “Falenas, do poeta brasileiro Machado de Assis” In: MACHADO, U. (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 81 601 MASSA, 2008, p. 82 602 Ibid. 603 Ibid., p. 83 604 MASSA, 2008, p. 83 296 lapidar e versificação variada e cuidadosa”605, embora os temas escolhidos por Machado de Assis estivessem ainda apegados, na opinião da autora, aos temas dos outros poemas do volume, particularmente o amor visto positivamente – de fato, cinco das oito composições da “Lira chinesa” foram retiradas da parte do Livre de Jade intitulada “Les amoureux” –, mas também nas demais manifestações que seriam “muito machadianas em seu tom irônico e pessimista”606. Embora não possa haver dúvidas de que Machado de Assis consultou as versões de Judith Gautier, Marta Pacheco Pinto sugere que ele pudesse ter consultado os textos em outro suporte que não o livro: Embora o empréstimo ou circulação de livros entre amigos fosse, na altura, uma prática comum, é plausível supor que Machado tivesse contactado com as versões francesas através da sua leitura em periódicos e não propriamente no livro de Judith Gautier, o que justificaria, de igual modo, a seleção de poemas que imita. Até à data não encontrei informação que sustentasse esta hipótese607. De fato, alguns poemas que viriam a compor a “Lira chinesa” já haviam sido objeto de publicação anterior na França. Foi possível verificar, por exemplo, que dentre as versões da “Lira chinesa” de Machado de Assis, o texto-fonte de “Coração triste falando ao sol” já estava na primeira versão das “Variations” de Gautier, publicada em janeiro de 1864, enquanto os textos-fonte de “O poeta a rir” e “As flores e os pinheiros” aparecem pela primeira vez nas “Variations” publicadas também na Revue L’Artiste, em julho de 1865. Considerando que ainda faltaria encontrar uma outra fonte além do Livre de Jade para os outros cinco textos da “Lira chinesa”, a hipótese mais provável ainda é a que de Machado trabalhou a partir do livro de Gautier. Esta hipótese é reforçada pelo fato de que há um anúncio da venda do Livre de Jade pela Livraria Garnier no Rio de Janeiro em maio de 1868, conforme mencionado anteriormente, além do fato de que o próprio Machado de Assis indica o livro como sua fonte. O contrato para a publicação de Falenas só foi assinado um ano mais tarde, maio de 1869608. Isso significa que Machado de Assis teve cerca de um ano para compor as versões que vieram a fazer parte da “Lira chinesa”, seja por ter possuído o livro em algum momento ou por empréstimo de algum amigo. Um dos amigos que intermediou o contato de Machado de Assis com o oriente, segundo Jean-Michel Massa (2001), foi Artur de Oliveira, que apresentou Machado “[...] a um tipo de obra que certamente não lhe era familiar. Artur de Oliveira possuía em sua biblioteca um certo 605 ISHIMATSU, 1984, p. 93, tradução nossa. No original: “lapidary diction and careful and varied versification”. Ibid., p. 93-94, tradução nossa. No original: “very Machadian in their pessimistic, ironic tone”. 607 PINTO, op. Cit., p. 96 608 MASSA, 2009, p. 504 606 297 número de livros do campo do Oriente e do Extremo-Oriente que foram dados a Machado de Assis pela viúva do falecido”609. Todavia, a dúvida permanece: Arthur de Oliveira, embora tenha conhecido e travado amizade com Théophile Gautier e sua filha, vem a falecer somente em 1882, enquanto em 1867 contava apenas 16 anos, período anterior, portanto, à sua passagem pela Europa, de onde traria as novidades parnasianas, sendo que seu retorno ao Brasil, em 1872, só se dá dois anos após a publicação de Falenas. Por isso, ainda parece mais plausível acreditar que Machado de Assis teve contato com o Livre de Jade que, em sua primeira edição, não possuía nenhum paratexto que pudesse desfazer os equívocos cometidos pelo nosso poetatradutor na nota que acompanha seus poemas. Feitas essas considerações, veremos como se saiu Machado de Assis ao compor a sua “Lira chinesa”. Um dos quesitos mais particulares e comum às versões de Machado é ter devolvido os textos à forma poética, já que as versões francesas estão, nas palavras do próprio, em “simples e corrente prosa”. Como se trata de poesia, a primeira pergunta que se apresenta é se a forma poética escolhida por Machado – ainda que varie de uma versão a outra – teria alguma similaridade ou relação com as formas poéticas chinesas que ele não conhecia, justamente porque traduziu por intermédio de outra tradução em prosa. Caberia, então, nos perguntarmos sobre quais teriam sido as formas poéticas encontradas na poesia da Dinastia Tang, de onde supostamente vieram sete das oito versões de Machado de Assis. A resposta encontramos na introdução do volume Antologia da poesia clássica chinesa: Dinastia Tang (2013), assinada por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. Os tradutores informam que o poema daquela época “[...] é estruturado sobre um padrão onde predominam os versos de cinco ou de sete sílabas: se os há de metro menor, serão ‘cortes’, interrupções, não aleatórias, mas com dimensões apropriadas à estrutura global da composição” 610 . Para as traduções do volume, explicam que escolheram verter as “[...] métricas dos originais em cinco sílabas para frases em decassílabos ou versos de nove sílabas. Os de sete sílabas para doze ou onze sílabas”611, escolha que não seria arbitrária: “[...] se quantificarmos os morfemas nos versos chineses [...] chegaremos aproximadamente a uma duplicação silábica em português [...]. Interessante o fato de que, justamente, o verso clássico português por excelência, conforme fixado desde Camões, é o decassílabo”612. 609 MASSA, Jean-Michel. “A biblioteca de Machado de Assis”. In: JOBIM, José Luis (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, p. 25-26. 610 PORTUGAL, Ricardo Primo; XIAO, Tan (Orgs). Antologia clássica chinesa: Dinastia Tang. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 36 611 PORTUGAL; XIAO, 2013, p. 37 612 Ibid. 298 Ora, esse é justamente o metro empregado regularmente por Machado de Assis na maioria das peças que compõem a da “Lira chinesa”, conforme anotado na edição crítica das Poesias completas: I – Coração triste falando ao sol – Rimas alternadas em 3 quadras. Metro decassílabo. II – A folha do salgueiro – No mesmo metro, associado ao heroico quebrado, 3 quadras e 3 dísticos. III – O poeta a rir – Duas quadras simétricas, idênticas à da peça anterior. Versos brancos. IV – A uma mulher – Decassílabos e heroicos quebrados alternando-se em 4 quadras. Não há rima, sendo o efeito sonoro obtido através de proparoxítonos no final do 2º e 4º versos. V – O imperador – Em versos brancos, 5 quadras assimétricas, ainda na mesma medida das peças anteriores. VI – O leque – Três estrofes assimétricas quanto à medida e à disposição de rimas. Ao todo, 19 versos. VII – As flores e os pinheiros – Da mesma estrutura da peça IV, 4 quadras. Rimas alternadas. VIII – Reflexos – Composição de 4 quadras com os 3 primeiros versos em redondilha maior e o último, tetrassílabo; rimas alternadas613. As exceções ficam por conta de “Reflexos” e “Coração triste falando ao sol”, composto em versos alexandrinos, e não em decassílabos como se lê nas anotações da edição crítica. É certo que as escolhas formais de Machado de Assis estão solidamente ancoradas na tradição da versificação portuguesa e estão perfeitamente de acordo com a sua poesia e a poesia de seu tempo. Todavia, é interessante notar que essas escolhas aproximam, mais do que afastam, as escolhas do poeta brasileiro da poética chinesa. A organização dada aos poemas da “Lira chinesa” quando editadas as Poesias completas ressalta essas diferenças métricas. A ordem passa de I-II-III-IV-V-VI-VII, na edição de 1870, para III-IV-V-VI-II-VII-VIII-I na edição preparada para publicação em 1901. Na nova organização, “Coração triste falando ao sol” vem por último, logo após “Reflexos”, de forma que as seis primeiras peças, mais semelhantes entre si do ponto de vista métrico, fiquem juntas, e as demais, que apresentam metros diferentes, aparecem ao fim. Além disso, o tom mais lânguido e melancólico de “Coração triste falando ao sol” parece mais adequado para encerrar a “Lira chinesa” do que o leve e suave “Reflexos”. Apesar de o conteúdo dos poemas ter permanecido inalterado, comentaremos os poemas de Machado na ordem em que aparecem nas Falenas, o que representa o estágio de maturidade do autor naquele momento. Serão levados em conta, como não poderia deixar de ser, os comentários feitos anteriormente sobre essas traduções, aos quais acrescentaremos as nossas considerações. 613 ASSIS, 1976, p. 40-41. 299 8.6.1 “Coração triste falando ao sol” O primeiro poema do conjunto, “Coração triste falando ao sol”, foi atribuído a SuTchon que, segundo Knowlton Jr614 e Guerra615, ninguém soube identificar. Lembremos que este é um dos primeiros poemas do Livre de Jade a serem publicados na Revue L’Artiste dentre as “Variations” e, portanto, é quase certo que seja criação independente de Gautier. Esta é a única peça do conjunto composta inteiramente em alexandrinos clássicos por Machado, em quadras cujas rimas alternadas brotam naturalmente dos versos, proporcionando uma leitura agradável. Novamente, os elementos da natureza aparecem como forma de fazer uma analogia entre os fenômenos naturais e a condição humana. A sombra que a montanha impõe ao vale, por exemplo, se torna a sombra da tristeza que se abate sobre ele, enquanto confia que o mesmo sol que derrete o gelo do inverno também amolecerá seu triste coração: Quadro comparativo 22 – “Coração triste falando ao sol” e “Le cœur triste au soleil” Coração triste falando ao sol. (Imitado de Su-Tchon) Le Cœur Triste au Soleil Selon Su-Tchon. No arvoredo sussurra o vendaval do outono, Deita as folhas à terra, onde não há florir E eu contemplo sem pena esse triste abandono; Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair. LE vent d'automne arrache les feuilles des arbres et les disperse sur la terre. Como a escura montanha, esguia e pavorosa Faz, quando o sol descamba, o vale enoitecer, A montanha da alma, a tristeza amorosa, Também de ignota sombra enche todo o meu ser. Transforma o frio inverno a água em pedra dura, Mas torna a pedra em água um raio de verão; Vem, ó sol, vem, assume o trono teu na altura, Vê se podes fundir meu triste coração. Je les regarde s'envoler sans regret, car seul je les ai vues venir, et seul je les vois partir. La tristesse projette son ombre sur mon cœur, comme les hautes montagnes font la nuit dans la vallée. Les souffles d'hiver changent l'eau en pierre brillante ; mais au premier regard de l'été elle redeviendra cascade joyeuse. Quand l'été sera de retour, j'irai m'asseoir sur la plus haute roche, pour voir si le soleil fera fondre mon cœur. Fonte: Assis (1976); Walter (1867) Na avaliação de Knowlton Jr. “o facto de se apostrofar o sol, aqui, trai o ponto de vista ocidental de Machado de Assis; ao mesmo tempo, transmite uma qualidade e um poder indiscutíveis”616. Minimizaremos o “ponto de vista ocidental de Machado de Assis” nesta ocasião porque 614 KNOWLTON Jr., 1995, p. 95 GUERRA, J. A. de J. “A Lira chinesa de Machado de Assis”. Revista de Cultura, Macau, n.22, II série, janmar 1995, p. 97 616 KNOWLTON JR., Op. Cit., p. 94 615 300 entendemos que o processo de tradução é perfeitamente compatível com tais resultados. O que deve importar é o resultado final do trabalho de Machado de Assis que, neste caso, é memorável porque eleva o texto de Gautier a um nível poético não encontrado no texto-fonte, como nos versos finais, “Vem, ó sol, assume o teu trono na altura, / Vê se podes fundir meu triste coração”, em que os alexandrinos de Machado de Assis soam muito mais intensos do que a formulação prosaica de Gautier, “Quand l’été sera de retour, j’irai m’asseoir sur la plus haute roche, pour voir si le soleil fera fondre mon cœur” (“Quando o verão retornar, sentar-me-ei sobre a mais alta rocha, para ver se o sol fundirá meu coração”). 8.6.2 “A folha do salgueiro” A segunda peça do conjunto, “A folha do salgueiro”, também foi retirada de “Les amoureux” e é atribuída a Tchan-Tiou-Lin por Gautier. Knowlton Jr. acredita tratar-se de Chang Chiu-Ling (), que viveu entre 673-740617. A romanização de Guerraxlviii na identificação da fonte é diferente, mas acreditamos tratar-se do mesmo poeta, já que as datas coincidem, apesar da incerteza na data de nascimento: “Parece tratar-se de Tyão Keuleq (672-740)”618. Na Antologia da poesia clássica chinesa o poeta é identificado com a romanização Zhang Jiuling (678-740), e considerado “poeta muito prestigiado em seu tempo”, um período “marcado por um grande florescimento da poesia”619. “A folha do salgueiro”, carregada pela brisa, leva o nome do poeta escrito nela por sua amada, da sua casa à beira do rio até o barco dele, enquanto explica os motivos de seu amor pela moça, pela brisa e pela folha que traz seu nome: Quadro comparativo 23 – “A folha do salgueiro” e “La feuille de saule” A folha do salgueiro (Tchan-Tiú-Lin) La Feuille de Saule Selon Tchan-Tiou-Lin. Amo aquela formosa e terna moça Que, à janela encostada, arfa e suspira; Não porque tem do largo rio à margem Casa faustosa e bela. La jeune femme qui rêve accoudée à sa fenêtre, je ne l'aime pas à cause de la maison somptueuse qu'elle possède au bord du Fleuve Jaune ; Amo-a, porque deixou das mãos mimosas Verde folha cair nas mansas águas. Amo a brisa de leste que sussurra, 617 KNOWLTON JR., 1995, p. 89 GUERRA, 1995, p. 97 619 PORTUGAL; XIAO, 2013, p. 238 618 Mais je l'aime parce qu'elle a laissé tomber à l'eau une petite feuille de saule. 301 Não porque traz nas asas delicadas O perfume dos verdes pessegueiros Da oriental montanha. Je n'aime pas la brise de l'est parce qu'elle m'apporte le parfum des pêchers en fleurs qui blanchissent la Montagne Orientale ; Amo-a porque impeliu coas tênues asas Ao meu batel a abandonada folha. Mais je l'aime parce qu'elle a poussé du côté de mon bateau la petite feuille de saule. Se amo a mimosa folha aqui trazida, Não é porque me lembre à alma e aos olhos A renascente, a amável primavera, Pompa e vigor dos vales. Et la petite feuille de saule, je ne l'aime pas parce qu'elle me rappelle le tendre printemps qui vient de refleurir ; Amo a folha por ver-lhe um nome escrito, Escrito, sim, por ela, e esse... meu nome. Mais je l'aime parce que la jeune femme a écrit un nom dessus avec la pointe de son aiguille à broder, et que ce nom, c'est le mien. Fonte: Assis (1976); Walter (1867) Ao comentar esta versão de Machado de Assis, Knowlton Jr. ressalta os elementos que o poeta carioca deixa de incluir em seu poema, como a referência explícita ao Rio Amarelo (“Fleuve Jaune”, na versão de Gautier), o segundo maior rio da China, e à “Montagne Orientale” que, grafada em maiúsculas no texto francês, sugere um lugar preciso, e não simplesmente uma “oriental montanha”620. Talvez o nosso tradutor não soubesse, mas a Grande Montanha Oriental é uma das cinco montanhas sagradas no taoísmo chinês. Dentre as cinco montanhas sagradas, a Grande Montanha Oriental é a que está posicionada mais ao leste associando-se ao nascer do sol e à renovação. Outra omissão da tradução de Machado de Assis está no parágrafo final da versão de Gautier: “A utilização de uma agulha de bordar para escrever o nome do poeta é um detalhe do poema chinês, tal como foi registrado por Mademoiselle Gautier. O mesmo detalhe não aparece na versão portuguesa;”621. É verdade que a omissão dos topônimos e o detalhe da agulha de bordar trazem alguns prejuízos ao poema. O Rio Amarelo à margem do qual a jovem mora numa “casa faustosa”, que se torna “largo rio” na tradução de Machado de Assis, remete à fertilidade e, consequentemente, à riqueza, já sugerida pelo adjetivo que acompanha a residência da moça. Esses elementos importam porque realçam que não é por isso que ele a ama, mas porque mandou a folha pelas águas. O mesmo se pode dizer da “Montagne Orientale”. Por outro lado, Machado reforça que a brisa que traz o “perfume dos verdes pessegueiros” vem de leste, do lado da montanha oriental. Assim, um leitor mais atento poderia associar a brisa também ao nascer do sol e à renovação. Outro elemento relevante neste trecho, talvez não observado por Knowlton Jr., é o fato de que os tais pessegueiros “blanchissent la Montagne Oriental” (“embranquecem a Montanha Oriental”), sugerindo que estão na primavera devido às flores 620 621 KNOWLTON JR., 1995, p. 90 Ibid. 302 branco-róseas dos pessegueiros, estação também associada ao nascimento e à renovação da vida, referência que Machado inclui na sua tradução e que, por isso mesmo, demonstra que na recriação poética há compensações. Quanto à agulha de bordar com que a jovem escreve o nome, a ferramenta em si parece ser de menor consequência do que o objeto em que o nome é escrito, a folha do salgueiro, árvore associada à imortalidade na cultura chinesa, mas também comumente utilizada como metáfora para tristeza e despedida622. 8.6.3 “O poeta a rir” O terceiro poema da “Lira chinesa” é “O poeta a rir”, transcrito abaixo ao lado da versão francesa de Judith Gautier (1867): Quadro comparativo 24 – “O poeta a rir” e “Un poète rit dans son bateau” O poeta a rir (Han-Tiê) Un poète rit dans son bateau Selon Ouan-Tié. Taça d’água parece o lago ameno; Têm os bambus a forma de cabanas, Que as árvores em flor, mais altas cobrem De verdejantes tetos. Le petit lac pur et tranquille ressemble à une tasse remplie d'eau. As pontiagudas rochas entre flores, Dos pagodes o grave aspecto ostentam... Faz-me rir ver-te assim, ó natureza, Cópia servil dos homens. Sur ses rives, les bambous ont des formes de cabanes, et les arbres, au-dessus, font des toitures vertes. Et les grands rochers pointus, posés au milieu des fleurs, ressemblent à des pagodes. Je laisse mon bateau glisser doucement sur l'eau, et je souris de voir la nature imiter ainsi les hommes. Fonte: Assis (1976); Walter (1867) Knowlton Jr. diz não ter conseguido identificar o poeta chinês a quem o poema, que considera “breve e impressionante”, é atribuído623. É possível que a romanização de Gautier tenha sido falhaxlix, ou mesmo que o texto seja pura criação dela. O crítico avalia, ainda, que “[...] Machado preservou quase tudo o que era essencial no poema, exceto o fato de o poeta estar a rir no seu barco”624. Todavia, é certo que o riso é evocado pelo título do poema, de maneira que no poema de Machado os versos explicam por que o poeta estava “a rir”. É verdade que Machado de Assis suprime o trecho “Je laisse mon bateau glisser doucement sur l’eau” (“Deixo meu barco deslizar suavemente sobre a água”), omissão que reflete aquela do título: o 622 PORTUGAL, Ricardo. “Poesia clássica chinesa – Dinastia Tang: princípios e roteiro de uma antologia”. In: Cadernos de Literatura em tradução, n. 14 (2013), p. 130. 623 KNOWLTON JR, 1995, p. 85 624 Ibid., p. 86 303 poeta de Machado está “a rir”, mas não “em seu barco”, como no título francês. Logo, faz sentido a não ter aproveitado aquele trecho do poema francês. O poema é uma breve descrição de uma cena da natureza que, nas formas observadas pelo poeta, parecem criações humanas – o pequeno lago se torna uma taça d’água, os bambus lembram cabanas cujos tetos são as copas das árvores, as rochas se tornam templos orientais – e isso faz o poeta rir, porque a natureza, supostamente, deveria impressionar o homem no seu aspecto selvagem, errático. No entanto, o homem, o poeta, só consegue observar aqueles elementos que o fazem rir porque é ele quem os traz consigo. A forma escolhida por Machado, os versos concisos, imprimem um ritmo e tom neoclássico, quase parnasiano, ao poema, o que o torna particularmente belo e certamente mais interessante do que a versão de Gautier. 8.6.4 “A uma mulher” A próxima peça recebeu um título mais sintético na versão de Machado de Assis, “A uma mulher”, enquanto o título francês diz “À mais bela mulher do barco de flores”: Quadro comparativo 25 – “A uma mulher” e “A la plus belle femme du bateau des Fleurs” A uma mulher A La Plus Belle Femme du Bateau des Fleurs (Tchê-Tsi) Selon Tché- Tsi. Cantigas modulei ao som da flauta, Da minha flauta d’ébano; Nelas minh’alma segredava à tua Fundas, sentidas mágoas. Cerraste-me os ouvidos. Namorados Versos compus de júbilo, Por celebrar teu nome, as graças tuas, Levar teu nome aos séculos. Olhaste, e, meneando a airosa frente, Com tuas mãos puríssimas, Folhas em que escrevi meus pobres versos Lançaste às ondas trêmulas. Je t’ai chanté des chansons en m’accompagnant de ma flûte d’ébène, des chansons où je te racontais ma tristesse ; mais tu ne m’as pas écouté. J’ai composé des vers où je célébrais ta beauté ; mais en balançant la tête tu as jeté dans l’eau les feuilles glorieuses ou j’avais tracé des caractères. Alors je t’ai donné un gros saphir, un saphir pareil au ciel nocturne, et, en échange du saphir obscur, tu m’as montré les petites perles de ta bouche. Busquei então por encantar tu’alma Uma safira esplêndida, Fui depô-la a teus pés...tu descerraste Da tua boca as pérolas. Fonte: Assis (1976); Walter (1867) O poema é atribuído a Tchê-Tsi, mas na opinião de Knowlton Jr. “corresponde a um atribuído a Wang Chi, intitulado The jewel (A jóia) nas versões inglesas, publicado no Chinese 304 love poems e no Chinese love poems from most ancient to modern times, de D.J. Klemer”625. A identificação sugerida não é inequívoca, e é com ressalvas que Guerra aceita a tese: “Duvido que se trate do poeta Wão Tsec, do séc. VII, se bem que este deixou uma poesia intitulada ‘The jewel’ nas versões inglesas”626. Knowlton Jr. sugere ainda que as escolhas tradutórias de Judith Gautier ocultam um dado importante do poema: o “barco de flores”, tradução literal de “Hua ch’uan ( )”, seria na verdade um “bordel flutuante”. A leitura é corroborada no ensaio de Stephen Reckert (1993), “A fono-estilística de Camilo Pessanha”, em que, comentando um trabalho acadêmico, deixa a pergunta: “quem havia, na Lisboa de há mais de trinta e cinco anos, que explicasse a uma jovem aluna da Faculdade de Letras que o delicado eufemismo chinês ‘barco de flores’ designava um bordel flutuante?”627. É perfeitamente compreensível, portanto, que Machado de Assis também não percebesse a importância da imagem do “barco de flores”. Essa omissão, e a troca de “où j’avais tracé des caractères” por “Folhas em que escrevi meus pobres versos”, apagam os traços orientais do poema, o que leva à avaliação de Knowlton Jr, que considera este o “menos sugestivo da cultura chinesa”628. Some também o contraste entre o azul “pareil au ciel nocturne” da safira, que se torna “esplêndida”, e o tom das pérolas a que são comparados os dentes da mulher. Fica, não obstante, a sugestão de que a figura feminina a quem o poema é dirigido só se deixa agradar pelo bem material – a safira – depois de recusar as cantigas na flauta de ébano e os versos do poeta, o que faz mais sentido quando se tem a informação de que se trata de uma cortesã. Isso não torna a versão de Machado de Assis menos bela e agradável, embora seja inegavelmente menos oriental no tratamento do tema do que a de Gautier e tenha mais em comum com a poesia romântica ocidental do que a clássica chinesa e seja, no tratamento do tema, nas sugestões e no implícito, muito mais machadiana do que francesa. 8.6.5 “O imperador” “O imperador”, peça elogiada e comparada à poesia de Heine, como mencionado anteriormente, é atribuída a um dos mais célebres poetas da Dinastia Tang, Du Fu. Sobre os 625 KNOWLTON JR., 1995, p. 88 GUERRA, 1995, p. 97. 627 RECKERT, Stephen. “A fono-estilística de Camilo Pessanha”. In: Revista Colóquio/Letras. N. 129/130, Jul. 1993, p. 89 (p. 87-96) 628 KNOWLTON JR., Op. Cit., p. 89 626 305 poemas atribuídos a ele no Livre de Jade, Knowlton Jr. cita um estudo de William Hung, que afirma que dos catorze poemas que lhe foram atribuídos, dois seriam “[...] traduções bastante adulteradas dos poemas originais”, enquanto os demais seriam fruto da imaginação criativa de Gautier, chegando a considerar o trabalho dela pseudo-traduções629. Esta peça traduzida por Machado de Assis seria uma delas. Knowlton Jr. também considera a atribuição de “L’Empereur” a Du Fu falsa ou espúria, enquanto a outra, “Sur le fleuve Tchou” – “Reflexos”, na versão de Machado – seria de fato do poeta chinês. O sinólogo Joaquim Guerra concorda que “L’Empereur” é uma das poesias espúrias, fornecendo mais detalhes: “Dá a impressão que o Mestre de Judith Walter era de raça e língua Hakka (Xhakca), pois o Livro de jade traz ThouFou, aspirando o apelido do poeta. A aspiração no 6º tom (3º inferior) é típica do Xhakca”630. Espúria ou não, há muito de Machado de Assis na sua versão: Quadro comparativo 26 – “O imperador” e “L’empereur” O imperador (Thu-Fu) L’empereur Selon Thou-Fou Olha. O Filho do Céu, em trono de ouro, E adornado com ricas pedrarias, Os mandarins escuta: — um sol parece De estrelas rodeado. Sur un trône d'or neuf, le Fils du Ciel, éblouissant de pierreries, est assis au milieu des Mandarins ; il semble un soleil environné d'étoiles. Os mandarins discutem gravemente Coisas muito mais graves. E ele? Foge-lhe O pensamento inquieto e distraído Pela janela aberta. Além, no pavilhão de porcelana, Entre donas gentis está sentada A imperatriz, qual flor radiante e pura Entre viçosas folhas. Pensa no amado esposo, arde por vê-lo, Prolonga-se-lhe a ausência, agita o leque... Do imperador ao rosto um sopro chega De rescendente brisa. “Vem dela este perfume”, diz, e abrindo Caminho ao pavilhão da amada esposa, Deixa na sala olhando-se em silêncio Os mandarins pasmados. Les Mandarins parlent gravement de graves choses ; mais la pensée de l'Empereur s'est enfuie par la fenêtre ouverte. Dans son pavillon de porcelaine, comme une fleur éclatante entourée de feuillage, l’Impératrice est assise au milieu de ses femmes. Elle songe que son bien-aimé demeure trop longtemps au conseil, et, avec ennui, elle agite son éventail. Une bouffée de parfums caresse le visage de l'Empereur. « Ma bien-aimée d'un coup de son éventail m'envoie le parfum de sa bouche; » et l'Empereur, tout rayonnant de pierreries, marche vers le pavillon de porcelaine, laissant se regarder en silence les Mandarins étonnés. Fonte: Assis (1976); Walter (1867) No livro de Gautier, “L’empereur” pertence à série “Les Amoureux”. A versão de Machado, todavia, parece ressaltar, com leve ironia, não o relacionamento amoroso, mas o desapego e a indiferença às coisas mundanas. O imperador deixa pasmados seus mandarins que 629 630 KNOWLTON JR., 1995, p. 86 GUERRA, 1995, p. 96 306 discutem gravemente coisas graves – a repetição do “grave”, também presente no texto francês, parece sugerir que tenhamos opinião contrária, de que as “coisas graves” na verdade importam pouco ou nada perto do amor que o imperador tem pela sua esposa – quando abandona a sala do trono para ir atrás da sua imperatriz, de quem sente o perfume de longe. O acréscimo da interrogação “E ele?” reforça o ar indiferente do imperador, assim como os adjetivos “inquieto e distraído”, que sugerem que o imperador estivesse ruminando outras coisas nos seus estômagos, completamente alheio às “graves” discussões dos mandarins. A reimaginação poética de Machado de Assis, com seus finos acréscimos, supera o prosaísmo de Gautier, deixando como legado um belíssimo poema machadiano. 8.6.6 “O leque” O próximo poema da coleção é “O leque”, atribuído a Tan-Jo-Lu. Knowlton Jr. diz ser de um poema cuja autoria é de difícil identificação, mas ainda assim sugere ser de “[...] uma mulher conhecida pelo nome de Pan Chien-yü”631. Joaquim Guerra parece mais seguro quanto à autoria, e utiliza essa informação para ressaltar o quanto Machado de Assis se enganara ao dizer que os poetas eram todos contemporâneos, já que este poema “[...] é até anterior à era cristã! Trata-se duma obra bem conhecida na Literatura Chinesa, com o nome de ‘Tsheo shyen uyn’, título bem expressivo, que quer dizer: Queixa (Uyn) dum leque (shyen) no Outuno (tsheo)”632. A peça teria sido escrita por uma Dama Paen Dsiedwe, que a deixou escrita, num leque de seda, ao Imperador Zdyeqtey (Sintar), quando abandonou o palácio633. Apesar de escrevem o nome de maneira diferente, acreditamos que Knowlton Jr. e Guerra estejam falando da mesma pessoa. Stocès, por outro lado, apresenta uma hipótese que consideramos mais plausível: “L’éventail” teria sido composto a partir da leitura de comentários que o sinólogo e tradutor d’Harvey-Saint-Denys faz a respeito de um poema no prefácio da sua obra. Este poema seria o mesmo sugerido por Guerra e Knowlton Jr., e Judith Gautier, “[...] sem ter travado contato com o texto original trabalha a partir de algumas notas”634. “O leque” é um dos poemas com forma mais irregular das peças da “Lira chinesa”. Knowlton Jr. avalia que houve “[...] fidelidade na interpretação, figurando na versão portuguesa 631 KNOWLTON JR., 1995, p. 83 GUERRA, 1995, p. 96 633 Ibid. 634 STOCÈS, 2006, p. 341, tradução nossa. No original: “n’ayant pas eu de contact avec le texte original brode à partir de ce quelques notes”. 632 307 uma escolha de palavras que é devida ao desejo do poeta de encontrar rimas adequadas”635, o que pode ser observado a seguir: Quadro comparativo 27 – “O leque” e “L’éventail” O leque (De Tan-Jo-Lu) L’éventail Selon Tan-Jo-Su. Na perfumada alcova a esposa estava, Noiva ainda na véspera. Fazia Calor intenso; a pobre moça ardia Com fino leque as faces refrescava. Ora, no leque em boa letra feito Havia este conceito: La nouvelle épouse est assise dans la Chambre Parfumée, où l’époux est entré la veille pour la première fois. “Quando, imóvel o vento e o ar pesado, Arder o intenso estio, Serei por mão amiga ambicionado; Mas volte o tempo frio, Ver-me-eis a um canto abandonado”. Lê a esposa este aviso, e o pensamento Volve ao jovem marido. “Arde-lhe o coração neste momento (Diz ela) e vem buscar enternecido Brandas auras de amor. Quando mais tarde Tornar-se em cinza fria O fogo que hoje lhe arde, Talvez me esqueça e me desdenhe um dia.” Elle tient à la main son éventail où sont écrits ces caractères : « Quand l’air est étouffant et le vent immobile, on m’aime et l’on me demande la fraîcheur ; mais quand le vent se lève et quand l’air devient froid, on me dédaigne et l’on m’oublie. » En lisant ces caractères, la jeune femme songe à son époux, et déjà des pensées tristes l’enveloppent. « Le cœur de mon époux est maintenant jeune et brûlant ; mon époux vient près de moi pour rafraîchir son cœur; « Mais lorsque son cœur sera froid et tranquille, il me dédaignera peut-être et m’oubliera. » Fonte: Assis (1976); Walter (1867) Na maneira como Machado de Assis organiza estes poemas, “O leque” articula-se bem com “O imperador”, em que pese a omissão do uso do leque no poema atribuído a Du Fu. Em ambos, o leque é um instrumento que acaba por ligar os dois amantes. Se neste o motivo é a mensagem inscrita no objeto, mensagem que leva a jovem esposa a associá-la à possibilidade do seu marido deixá-la quando sua presença não mais refrescar o coração dele, naquele é com o leque que a imperatriz envia seus perfumes ao seu imperador, que em seguida vai ao seu encontro. Em ambos há uma certa materialidade que acaba por ligar os amantes: neste, o leque e a mensagem inscrita nele cumprem o papel de fazer a jovem esposa associar a mensagem do leque à própria realidade, o objeto material levando-a ao pensamento abstrato; naquele, os pensamentos abstratos e distantes do imperador são trazidos de volta à materialidade com o perfume da imperatriz que chega até ele pelo vento criado pelo leque. Em ambos os casos temos peças memoráveis. 635 KNOWLTON JR., Op. Cit., p. 85 308 8.6.7 “As flores e os pinheiros” O poema seguinte, “As flores e os pinheiros”, é o único que, de fato, pode ser atribuído a um poeta contemporâneo de Machado de Assis e Judith Gautier, já que se trata de um texto que foi supostamente escrito por seu mestre no idioma oriental, Tin-Tun-Ling, a quem o livro é dedicado: Quadro comparativo 28 – “As flores e os pinheiros” e “Les petities fleurs se moquent des graves sapins” As flores e os pinheiros (Tin-Tun-Sing) Les petites fleurs se moquent des graves sapins Selon Tin-Tun-Ling. Vi os pinheiros no alto da montanha Ouriçados e velhos; E ao sopé da montanha, abrindo as flores Os cálices vermelhos. Sur le haut de la montagne, les sapins demeurent sérieux et hérissés ; au bas de la montagne, les fleurs éclatantes s’étalent sur l’herbe. Contemplando os pinheiros da montanha, As flores tresloucadas Zombam deles enchendo o espaço em torno De alegres gargalhadas. Quando o outono voltou, vi na montanha Os meus pinheiros vivos, Brancos de neve, e meneando ao vento Os galhos pensativos. En comparant leurs fraîches robes aux vêtements sombres des sapins, les petites fleurs se mettent à rire. Et les papillons légers se mêlent à leur gaieté. Mais, un matin d’automne, j’ai regardé la montagne : les sapins, tous habillés de blanc, étaient là, graves et rêveurs. J’ai eu beau chercher au bas de la montagne, je n’ai pas vu les petites fleurs moqueuses. Volvi o olhar ao sítio onde escutara Os risos mofadores; Procurei-as em vão; tinham morrido As zombeteiras flores. Fonte: Assis (1976); Walter (1867) Na avaliação de Knowlton Jr., Machado de Assis “[...] tende a ser fiel ao sentido geral, expressando claramente os seus pensamentos, fixando-se menos na sugestão do que Mademoiselle Gautier. Não há dúvidas de que as duas versões revelam da parte dos autores mérito artístico e mestria no uso da língua”636. Ser “fiel ao sentido geral”, aqui, parece menos importante do que ser capaz de reimaginar poeticamente o texto de forma que ele ressurja como um objeto estético que encerra em seus versos a mensagem e a moral do poema francês. Este é um poema altamente alegórico sobre o que é perene, representado pelos pinheiros que sobrevivem às estações, e o que é efêmero, como a beleza e a leveza das flores e a vida curta das borboletas. Se as flores, insufladas por sua beleza, riem e zombam da aparência grave e velha dos pinheiros, o seu riso é breve e sua beleza logo se vai, com o fim da primavera. Há, 636 KNOWLTON JR., 1995, p. 83 309 portanto, uma crítica àqueles que se deixam iludir por coisas efêmeras, desdenhando do que, na verdade, é capaz de perdurar, lição que poderia ser aplicada a inúmeras situações da vida. 8.6.8 “Reflexos” O último poema da “Lira chinesa”, “Reflexos”, é o único que foi reconhecido por Knowlton Jr. 637 e Guerral como tendo origem em um texto de Du Fu ( ), poeta da Dinastia Tang que viveu entre 712-770. Na nota biográfica sobre o autor na Antologia da poesia clássica chinesa: Dinastia Tang, somos informados de que Du Fu é considerado pela tradição “como o maior poeta da literatura chinesa, juntamente com Li Bai”, cuja poesia “[...] se destaca por um realismo marcado pela materialidade, o aspecto físico do mundo. Sua descrição dos aspectos sensíveis chega, por vezes, perto do escatológico”638. A poesia de Du Fu também é marcada pela compaixão, embora seja nas aquisições formais que o poeta demonstra sua força639. Em “Reflexos”, a cena desenhada é a do poeta em seu pequeno barco, à noite, vendo na água o reflexo da lua e das nuvens. A analogia feita aqui é a do coração que copia as graças da amada assim como a água reflete o firmamento: Quadro comparativo 29 – “Reflexos” e “Sur le fleuve Tchou” Reflexos (Thu-Fu) Sur le fleuve Tchou Selon Thou-Fou Vou rio abaixo vogando No meu batel e ao luar; Nas claras águas fitando, Fitando o olhar. MON bateau glisse rapidement sur le fleuve, et je regarde dans l'eau. Das águas vejo no fundo, Como por um branco véu, Intenso, calmo, profundo, O azul do céu. Le ciel est aussi dans le fleuve; quand un nuage passe sur la lune, je le vois passer dans l'eau ; Nuvem que no céu flutua, Flutua n’água também; Se a lua cobre, à outra lua Cobri-la vem. Alors je songe que ma bien-aimée se reflète ainsi dans mon cœur. Da amante que me extasia, Assim, na ardente paixão, As raras graças copia Meu coração. 637 KNOWLTON JR., 1995, p. 87 PORTUGAL; XIAO, 2013, p. 101 639 Ibid. 638 Au-dessus est le grand ciel, où se promènent les nuages. Et je crois que mon bateau glisse sur le ciel. 310 Fonte: Assis (1976); Walter (1867) Knowlton Jr. é menos elogioso neste caso do que nos demais: “[...] Apesar de o pensamento deste poema ser bastante claro, os versos portugueses parecem sensivelmente menos livres do que os franceses”640. Além disso, sua crítica também se estende ao tom que Machado de Assis escolhe para seu texto, afastando-se do tom do poema francês: “[...] esta alteração de tom não é um defeito da versão portuguesa, contudo tenho a sensação de que Machado de Assis nas suas outras versões captou não só as ideias como também o humor geral do original francês”641. De fato, o poema em prosa de Gautier é bastante claro, simples e direto, enquanto o poema de Machado de Assis parece mais tributário da tradição poética ocidental do que da oriental, resultado, talvez, do metro utilizado e de sua busca por rimas que servissem à forma que pretendeu dar ao poema. Dentre as omissões deste poema, a primeira que se destaca é a referência a um rio específico na versão de Gautier que Machado, assim como nos casos anteriores, elimina. O “fleuve Tchou” a que Gautier se refere parece tratar-se do Zhu Jiang ( ), também conhecido como Rio das Pérolas, que atravessa, dentre diversas outras, a última província em que Du Fu viveu: Hunan. A manutenção do nome talvez desse um ar mais oriental ao poema de Machado, tornando-o mais consistente com a proposta de uma “Lira chinesa”. Outra omissão que nos parece relevante é a do trecho “Et je crois que mon bateau glisse sur le ciel”, belíssima imagem em que o poeta, depois de dizer que a água reflete o céu noturno, crê navegar no próprio firmamento, para então fazer a analogia entre o reflexo na água do céu, da lua e das nuvens e a de sua amada em seu coração. Ainda assim, já que não estamos julgando as versões de Machado de Assis unicamente sob os termos dos textos em que elas se baseiam, “Reflexos” é um belíssimo poema que nos mostra muito da força e criatividade poética de Machado e dispensa o texto francês. Cecília Meireles (1996), que também criou uma versão deste poema, escolhe o caminho da prosa poética e obtém resultado admirável, mantendo a imagem do barco que parece navegar no céu, excluída por Machado: Minha barca desliza rápida. Contemplo o rio. Há nuvens passando pelo céu. A água é também uma noite clara. Quando uma nuvem escorrega por cima da lua, vejo-a escorregar no rio e parece-me que vago em pleno céu. 640 641 KNOWLTON JR., 1995, p. 88 Ibid., p. 88 311 Penso em minha amada, que se reflete assim no meu coração642. Talvez a “Lira chinesa” de Machado de Assis não seja tão oriental quanto supôs seu autor. Para Knowlton Jr., a ocidentalização de Machado é bastante transparente nas suas versões, enquanto as de Judith Gautier deixariam ao leitor mais liberdade para a imaginação643. Isso não é necessariamente uma crítica negativa, mas um elogio, pois nos sugere que as oito peças desta parte de Falenas nos mostraram mais sobre o poeta que foi Machado de Assis e seu modo particular de lidar com a reimaginação poética de textos estrangeiros do que sobre os textos-fonte em que se inspiraram. Os poemas do Livre de Jade certamente teriam atraído o poeta das Falenas pela novidade apresentada, servindo ao propósito de dar fôlego à literatura brasileira em formação, algo que se deu a partir do processo de tradução e corroborando nossa tese de que foi com este intuito que Machado traduziu os textos que tão cuidadosamente escolheu. Pelo trabalho poético, pelos resultados alcançados e pelas novidades introduzidas na poesia brasileira, não deveria haver dúvida de que esses poemas merecem um lugar de destaque na produção da poética tradutória de Machado de Assis. Em A prova do estrangeiro, Antoine Berman apresenta uma leitura de um poema de Goethe – “Ein Gleichnis” – como símbolo para tradução, que nos parece muito apropriado a este conjunto de textos a que Machado deu o nome de “Lira Chinesa”: O poeta colheu as flores dos campos e as carregou para casa. Privadas de seu solo materno, elas começam a murchar. Ele as coloca então em água fresca e eis que elas desabrocham de novo: assim se passou comigo quando ouvi, maravilhado, meu canto na língua estrangeira. Aquele que colhe as flores é o tradutor. Arrancado de seu solo, o poema corre o risco de perder seu frescor. Mas o tradutor o coloca na taça fresca de sua própria língua e ele floresce de novo, como se ainda estivesse sobre o solo materno. Há aí uma maravilha, pois nem o poema, nem as flores estão mais sobre seu terreno natal. Mesmo que o desabrochar das flores simbolize o que se passa com o poema na tradução, é o poema na totalidade que é um símbolo. Ou ainda: é a tradução que é um símbolo. Um símbolo de quê? Seguramente, da maravilha que se produz todos os dias nas múltiplas translações que constituem o próprio tecido do mundo – presença, em nossas vidas, dos rostos inumeráveis da metamorfose e da metempsicose”644. As flores orientais que vieram a fazer parte da “Lira Chinesa” foram colhidas do vaso de Judith Walter e posteriormente plantadas em solo brasileiro, onde refloresceram, mas sob o clima tropical, e já não são mais nem as flores orientais, nem francesas, mas flores brasileiras que carregam consigo marcas do percurso que percorreram até chegar aqui, tornando-se uma continuação da vida da obra estrangeira. Com a “Lira Chinesa”, bem como com as demais 642 PO, Li. FU, Tu. Poemas chineses. Trad. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 106 KNOWLTON JR., 1995, p. 93 644 BERMAN, 2002, p. 122 643 312 traduções que observamos até aqui, Machado de Assis demonstra que a tradução é experiência, ou mais precisamente, como Berman afirma, “[e]xperiência das obras e do ser-obra, das línguas e do ser-língua. Experiência, ao mesmo tempo, dela mesma, de sua essência. Em outros termos, no ato de traduzir está presente um certo saber, um saber sui generis”645. 645 BERMAN, 1999, p. 16, tradução nossa, grifos do autor. No original: “Expérience des œuvres et de l’être-œuvre, des langues et de l’être-langue. Expérience, en même temps, d’elle-même, de son essence. En d’autres termes, dans l’acte de traduire est présent un certain savoir, un savoir sui generis”. 313 9. Americanas e a “Cantiga do rosto branco” O terceiro livro de poesias de Machado de Assis, Americanas, publicado em 1875, embora contenha menos poemas que Falenas ou mesmo Crisálidas, é composto majoritariamente de longos poemas narrativos. Ao contrário de em Crisálidas e Falenas, as treze peças de Americanas se organizam em torno de um tema central, adotando o poema narrativo como principal meio de expressão poética. O volume contém ainda uma “Advertência” – posteriormente excluída nas Poesias completas – em que o autor explica o seu projeto: “O título Americanas explica a natureza dos objetos tratados neste livro, do qual excluí o que podia destoar daquela denominação comum. Não se deve entender que tudo o que aqui vai seja relativo aos nossos aborígenes”646, e cita como exemplo “Cristã Nova” e “Sabina”, que se passam no centro da civilização, mas poderíamos incluir pelas mesmas razões “José Bonifácio”, poema de ocasião em homenagem ao patriarca da independência, ou “A Gonçalves Dias”, ode ao falecido poeta indianista. Dentre as traduções não aproveitadas no volume, estão a do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia e a do monólogo de Hamlet que, como o próprio autor explica, destoariam daquela denominação, motivo pelo qual foram incluídas posteriormente em Ocidentais. De forma alguma, portanto, o autor pretendia que seu livro fosse um livro unicamente de um indianismo atrasado, e diríamos até mesmo ser equivocado avaliar que o autor quisesse mostrar filiação a alguma escola ou movimento, como ele mesmo declara: Algum tempo, foi opinião que a poesia brasileira devia estar toda, ou quase toda, no elemento indígena. Veio a reação, e adversários não menos competentes que sinceros, absolutamente o excluíram do programa da literatura nacional. São opiniões extremas, que, pelo menos, me parecem discutíveis647. Machado de Assis está claramente escolhendo uma terceira via, que não nega o elemento indígena como parte do material de que se possa extrair poesia, mas este elemento, bem como qualquer outro, não é necessariamente melhor ou pior, nem mais ou menos “brasileiro” ou “nacional” que os demais. O que o autor está dizendo é que, em suas próprias palavras, “[...] tudo pertence à invenção poética, uma vez que traga os caracteres do belo e possa satisfazer as condições da arte”648. Estas palavras ecoam aquelas ditas poucos anos antes no ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de Nacionalidade”: “[...] tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe”649. Esta era, portanto, 646 ASSIS, 2009, p. 369 Ibid. 648 Ibid. 649 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1178 647 314 uma opinião que acompanhava o poeta há algum tempo. Natural concluir que o objeto sobre o qual a poesia versa, seja ele local e presente, ou distante e remoto, é “a parte acessória”: “O essencial é a alma do homem”650. A recepção crítica das treze peças escolhidas para compor o volume foi, em geral, positiva. Uma exceção foi a primeira resenha que o livro recebeu, no mesmo ano da sua publicação: na “Bibliografia” publicada em 20 de dezembro de 1875 – de possível autoria de Sílvio Romero – lemos que “[...] o sentimento americano ainda não se apossou de sua alma, mais subjugada por natureza alheia”651, sem deixar de reconhecer as ressalvas feitas na “Advertência”. O autor desta primeira resenha conclui suas considerações avaliando que as poesias de Americanas são “[...] frouxas narrações, cronimetrificadas, quadros sem coloridos nem vigor [que sonegam] calculada e cruelmente à pátria os frutos que todas as inteligências vigorosas lhe devem oferecer”652. Esta opinião diverge um tanto da publicada na “Crônica Bibliográfica” da Gazeta de Notícias de 11 de janeiro de 1876, assinada pelo pseudônimo “L.”li. Para o autor é desnecessário saber que se trata de obra de Machado de Assis, porque “[...] ninguém mais no Brasil escreveria livro igual”, já que a “correta e artística simplicidade de estilo” do poeta atestaria por si só a autoria da obra, comparando-o a Almeida Garret e a Teófilo Gautier. Ainda assim, o crítico esperava algo mais “americano” do que Machado ofereceu, algo que “palpitasse nas páginas”, e não o estilo “demasiado português” que encontrou653. Não obstante, se o leitor prescindir daqueles quesitos que o crítico considera verdadeiramente americanos (“os pensamentos virgens como a flora opulenta de nossas selvas”, “as grandes paixões generosas e indômitas como os leões de nossos ermos”, a “singeleza do dizer primitivo”) tem-se “muita perfeição digna de eterna glória”. Ou seja, as Americanas de Machado de Assis não eram tão americanas quanto gostaria o crítico, livro que “[n]ão é o belo, não; mas é o elegante”654. No ano seguinte, desta vez em um periódico do estado de São Paulo, temos “Americanas”, crítica publicada no Correio Paulistano de 16 de janeiro de 1876 e de autoria de Carlos Ferreira. O crítico avalia que [o] último trabalho do conceituado poeta, se não é uma revelação perfeita do que deve ser a poesia propriamente dita, é pelo menos muito mais aceitável e crucial do que a 650 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1178 ROMERO, Silvo [?]. “Bibliografia”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 99 652 Ibid., p. 101 653 ARAÚJO, Ferreira de [?]. “Crônica Bibliográfica”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 102 654 Ibid., p. 103 651 315 infeliz tentativa de alguns outros poetas brasileiros que, a pretexto de fazerem poesia nacional, foram imitando a torto e a direito o gênero quase selvagem iniciado por Gonçalves Dias655. Dentre as peças de Americanas, o crítico destaca “Potira”, “Niâni” e “Cristã Nova”, e elogia a adoção do verso branco, empregado por Machado “[...] com tanto esmero e donaire de forma que cativa desde logo as boas graças do mais exigente leitor”656. Por fim, o autor considera o livro “esplêndida novidade”, contente por não ver influência do byronismo já tão presente nos demais poetas daquela geração. A última crítica publicada saiu com o título “Americanas” em O Novo Mundo, periódico publicado em Nova Iorque em agosto de 1876 e de autoria de um dos amigos de Machado de Assis, Salvador de Mendonça, embora tenha sido publicada sem assinatura. O crítico destaca “Cristã Nova” dentre as peças do volume e ressalta o “metro rico e fluente” do escritor, a quem diz que devemos assinalar “um lugar eminente nas letras pátrias”657. A opinião da crítica mais contemporânea é menos favorável do que as primeiras que o livro recebeu. O juízo de Ishimatsu, em The poetry of Machado de Assis, revela que a pesquisadora viu uma certa contradição entre o que o autor apresentou em Americanas e aquilo que expusera alguns anos antes em seus ensaios críticos: Embora fosse evidente em seus ensaios de 1870-75 que Machado acreditava que a poesia brasileira precisava de uma nova direção, sua própria poesia desse período parece mostrar interesse por uma preocupação tipicamente romântica, o conceito de nacionalismo literário.658 Ainda assim a pesquisadora reconhece que a tese dela deve ser vista com reservas e perfilha a ideia de que Machado parece colocar em prática o tipo de poesia que ele defendia no ensaio “Notícia atual da literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade”, onde aponta esses novos caminhos, colocando em diálogo o novo e o antigo. Em Americanas a pesquisadora reconhece haver o emprego criterioso das formas clássicas da língua portuguesa – por que foi criticado, como vimos anteriormente – aliado a temas de cunho não necessariamente nacional, mas americano, aos quais são dados um tratamento quase neoclássico. Por fim, a pesquisadora conclui que “[...] as peças em Americanas tem, em sua maior parte, um tom muito sombrio, e 655 FERREIRA, Carlos. “Americanas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 103-4 656 Ibid., p. 104 657 MENDONÇA, Salvador de. “Americanas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p. 105 658 ISHIMATSU, 1984, p. 99, tradução nossa. No original: “Although it was evident from his essays from 187075 that Machado believed that Brazilian poetry was in need of a new direction, his own poetry from this period seems to show an interest in a typically Romantic preoccupation, the concept of literary nationalism”. 316 todos, exceto um dos poemas narrativos, são escritos em versos de dez sílabas não-rimados, o metro tradicionalmente apropriado para assuntos de natureza séria” e considera a maioria dos poemas “[...] tediosos e não convincentes, de dicção um tanto arcaica”659. Mais recentemente, a pesquisa de Cláudio Murilo Leal descreve Americanas como um conjunto de poemas cujo “[...] denominador comum [...] é o gradual abandono da veia subjetiva e confessional”, em que se transfere a inspiração lírico-amorosa “[...] para as tensões da ação dramática e do sentimento trágico”660. Leal também destaca o trabalho de linguagem poética em Americanas, mas com um viés mais elogioso: Machado não se exime de manejar uma linguagem impregnada de palavras eruditas e construções não usuais. Ao contrário do que se possa imaginar, este apuro e até anacronismo lexical aguça a curiosidade do leitor, despertada para o desvendamento do significado de um vocabulário raro, a par de que esse procedimento é capaz de nobilitar o tom da narração poética661. Esse pendor por poemas narrativos já foi associado ao seu crescente interesse pela prosa ficcional naquele período, e Leal parece concordar que estas qualidades de poeta-narrador, já presentes nos livros de poesia anteriores, estão muito mais presentes em Americanas, levando o autor a propor que aí teríamos “[...] uma renovação do estilo poético de Machado de Assis, que se independentiza da subjetividade romântica”, pois sua poesia vai tomando “[...] uma dicção pessoal e única, diferenciada de seus predecessores e contemporâneos”662. É nesse contexto que aparece a “Cantiga do Rosto Branco”, tradução que analisaremos a seguir. 9.1 A “Cantiga do Rosto Branco” Em nota que acompanha este poema, Machado de Assis ressalva: Não é original esta composição; o original é propriamente indígena. Pertence à tribo dos mulcogulges, e foi traduzida da língua deles por Chateaubriand (Voy. dans l’Amer.). Tinham aqueles selvagens a fama de poetas e músicos, como os nossos Tamoios. “Na terceira noite da festa do milho, lê-se no livro de Chateaubriand, reúnem-se no lugar do conselho; e disputam o prêmio do canto. O prêmio é conferido 659 ISHIMATSU, 1984, p. 101, tradução nossa. No original: “the pieces in Americanas are, for the most part, very somber in tone, and all but one of the narrative poems are written in unrhymed ten-syllable verse, the meter traditionally appropriate for matters of a serious nature”, e considera a maioria dos poemas “tedious and unconvincing”. 660 LEAL, 2008, p. 126 661 Ibid., p. 126-127 662 Ibid., p. 130 317 pelo chefe e por maioria de votos: é um ramo de carvalho verde. Concorrem as mulheres também, e algumas têm saído vencedoras; uma de suas odes ficou célebre”. A ode célebre é a composição que trasladei para a nossa língua. O título na tradução em prosa de Chateaubriand é – Chanson de la Chair Blanche. Sobre o talento das mulheres para a poesia, também o tivemos em tribos nossas. Vejase FERNÃO CARDIM, Narrativa de uma Viagem e Missão.663 Esta nota, a mais longa e detalhada do volume, contém não só a fonte de que se serviu Machado de Assis, mas uma sugestão enviesada de que, embora estrangeira, a peça traz um retrato de costumes que são comuns aos nossos nativos: os índios estrangeiros praticam a música e a poesia como os Tamoios brasileiros, e as nossas índias, assim como as deles, também demonstram talento para isso, apontando a fonte onde tal informação poderia ser conferida. De igual maneira, a nota também confere matizes acadêmicos à poesia traduzida, posto que fica claro tratar-se de uma obra que é fruto de pesquisa e estudo, e não somente “inspiração” de um certo “gênio poético”. Notamos, contudo, um pequeno deslize nesta nota de Machado de Assis: o autor indica como fonte Voyg. dans l’Amér. (abreviação de Voyage dans l’Amériquelii), mas a obra de Chateaubriand chama-se, na verdade, Voyage en Amérique. Assim como parece ser o caso das demais traduções de Machado de Assis, a presença de Chateaubriand em Americanas revela não só um aspecto do gosto do nosso autor, mas também da cena literária brasileira. As referências a Chateaubriand na obra de Machado de Assis vão desde seus primeiros textos, como o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, de 1858, passando por diversas crônicas e cartas, até seus últimos textos críticos, como “Garret” e “Cenas da vida amazônica, por José Veríssimo”, de 1899. A obra de François-René de Chateaubriand pertence àquela geração de jovens que viu eclodir a Revolução Francesa em 1789, geração que também abriu o caminho para o surgimento da estética romântica entre os franceses. Chateaubriand é o primeiro autor abordado por Albert Thibaudet na sua Histoire de la littérature française (de 1789 à nos jours), a quem descreve nos seguintes termos: Chateaubriand, como Napoleão e Madame de Stäel, é um homem do século XVIII, que atinge sua maioridade em 1789 e amadurece com o espírito do novo século. Ele se tornará menos o pai do romântico do que seu clássico. Muito de sua obra entrou no esquecimento. Mas o prestígio de sua personalidade continua maior do que parece comportar a leitura que se faz do que sobrevive.664 663 ASSIS, 1976, p. 440-441 THIBAUDET, 1936, p. 39, tradução nossa. No original: “Chateaubriand comme Napoléon et Mme de Stäel, est un homme du XVIIIe siècle, qui atteint sa majorité en 1789, et qui mûrit avec l’esprit du siècle nouveau. Il 664 318 Chateaubriand, célebre no século XIX pelos seus romances folhetinescos Atala (1801) e René (1802) – ambos frequentemente citados nas crônicas de Machado de Assis – deixou em seu legado a perspicácia na descrição da natureza e na análise dos sentimentos. Serviu, portanto, de modelo a ser superado por toda uma geração de escritores românticos franceses, incluindo Victor Hugo, e, na mesma esteira, brasileiros. Com O gênio do cristianismo (1802) – escrito durante seu exílio na Inglaterra – Chateaubriand defende a fé católica. Sua obra máxima será Mémoires d’outre-tombe, publicação póstuma, e que teria influído sobre o título Memórias póstumas de Brás Cubas. Chateaubriand não escapou da onda de exotismo e, em certa medida, ajudou a difundir o indianismo exótico entre os escritores de então, incluindo os nossos. É nesse contexto que surge a Voyage en Amérique (1826), livro escrito a partir da viagem que o autor precisou fazer em 1791 em virtude da Revolução Francesa, e de onde nosso tradutor pinçou a “Chanson de la Chair Blanche”. A presença de François-René Auguste de Chateaubriand na nossa literatura foi brevemente examinada por Regina Zilberman no artigo “Memórias de Chateaubriand no Brasil” (2017), onde lemos que aceitar as sugestões do escritor francês era, para a nossa nascente literatura romântica, “integrar-se às vertentes do pensamento historiográfico, emergente nas primeiras décadas do século XIX”665. Assim Zilberman resume o papel de Chateaubriand na obra de Machado de Assis e, consequentemente, na literatura brasileira: A obra de Machado de Assis, desde o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, até Memórias Póstumas de Brás Cubas, ponto de partida, segundo o romancista, de uma nova fase de sua produção ficcional, faculta, pois, acompanhar o percurso da participação de F. de Chateaubriand na literatura brasileira do século XIX. Um ídolo, uma voz a imitar, um exemplo a copiar; depois, um autor a ser apropriado, diante do qual cabe tomar respeitosa posição, mas, de alguma maneira, passível de ter suas formulações alteradas ou utilizadas para atestar a superioridade das criações nacionais; enfim, uma lembrança remota, talvez a evitar666. Em Americanas, Zilberman identifica traços do idealismo e o catolicismo de Chateaubriand, que se tornariam insustentáveis mais tarde e levariam ao “[...] abandono daquele autor, que, como as cegonhas do Ilisso, é transportado para praias distantes, [...] sintoma de que o escritor alçava voo no caminho de nova etapa de sua vida artística e intelectual”667. deviendra moins encore le père des romantiques que leur classique. Une grande partie de son œuvre est entrée dans l’oubli. Mais le prestige de sa personne reste plus grand que ne semble comporter la lecture qu’on fait de ce qui survit”. 665 ZILBERMAN, Regina. “Memórias de Chateaubriand no Brasil”. Revista Brasileira de Literatura Comparada. Vol. 17, n. 31, 2017, pp. 3-17, p. 4. 666 Ibid., p. 13 667 Ibid. 319 O mais evidente desses traços é o tributo ao escritor francês através da tradução de “Chanson de la Chair Blanche”. O texto foi retirado da parte de Voyage en Amérique em que Chateaubriand descreve os costumes dos índios “Muscogulges”, que faziam parte da Confederação dos Creek. Chateaubriand (1838) inicia seu relato tratando da forma de governo dos Muscogulges e, ao fim, tece comentários sobre as mulheres da tribo que, segundo Chateaubriand, “[...] são a menor raça de mulheres conhecida na América”668, tímidas, de traços bastante delicados, e com uma voz que lembra a das crianças. Essas mulheres também trabalham menos que as outras índias, mas participam igualmente das festividades que envolvem música e poesia669. A ode que Chateaubriand apresenta na sua versão em prosa, a “Chanson de la Chair Blanche”, seria uma dessas célebres odes femininas, que reproduzimos a seguir, ao lado da tradução de Machado de Assis: Quadro comparativo 30 – “Cantiga do Rosto Branco” e “Chanson de la Chair Blanche” Cantiga do Rosto Branco Chanson de la Chair Blanche Rico era o rosto branco; armas trazia, E o licor que devora e as finas telas; Na gentil Tibeíma os olhos pousa, E amou a flor das belas. La chair blanche vint de la Virginie. Elle étoit riche : elle avoit des étoffes bleues, de la poudre, des armes, et du poison françois. La chair blanche vit Tibeïnia, l’Ikouessenliii. “Quero-te!” disse à cortesã da aldeia; “Quando, junto de ti, teus olhos miro, A vista se me turva, as forças perco, E quase, e quase expiro. Je t’aime, dit-elle à la fille peinte ; quand je m’approche de toi, je sens fondre la moelle de mes os; mes yeux se troublent ; je me sens mourir. E responde a morena requebrando Um olhar doce, de cobiça cheio: “Deixa em teus lábios imprimir meu nome; Aperta-me em teu seio!” “Uma cabana levantaram ambos, O rosto branco e a amada flor das belas... Mas as riquezas foram-se coo tempo, E as ilusões com elas. Quando ele empobreceu, a amada moça Noutros lábios pousou seus lábios frios, E foi ouvir de coração estranho Alheios desvarios. Desta infidelidade o rosto branco Triste nova colheu; mas ele amava, Inda infiéis, aqueles lábios doces, E tudo perdoava. Perdoava-lhe tudo, e inda corria A mendigar o grão de porta em porta, Com que a moça nutrisse, em cujo peito Jazia a afeição morta. 668 « La fille peinte, qui vouloit les richesses de la chair blanche, lui répondit : « Laisse-moi graver mon nom sur tes lèvres ; presse mon sein contre ton sein. » « Tibeïma et la chair blanche bâtirent une cabane. L'Ikouessen dissipa les grandes richesses de l’étranger, et fut infidèle. La chair blanche le sut ; mais elle ne put cesser d’aimer. Elle alloit de porte en porte mendier des grains de maïs pour faire vivre Tibeïma. Lorsque la chair blanche pouvoit obtenir un peu de feu liquide, elle le buvoit pour oublier sa douleur. « Toujours aimant Tibeïma, toujours trompé par elle, l'homme blanc perdit l’esprit et se mit à courir dans les bois. Le père de la fille peinte, illustre Sachem, lui fit des réprimandes : le cœur d’une femme qui a cessé d’aimer est plus dur que le fruit du papaya. « La chair blanche revint à sa cabane. Elle étoit nue, elle porloit une longue barbe hérissée ; ses yeux étoient creux, ses lèvres pâles : elle s’assit sur une natte pour demander l’hospitalité dans sa propre cabane. L’homme blanc avoit faim : comme il étoit CHATEAUBRIAND, François-Réné de. Voyage en Amérique suiviz des Natchez. Paris: Lefèvre Librairie, 1838, p. 181, tradução nossa. No original: “sont la plus petite race de femme connue en Amérique”. 669 Ibid., p. 181 320 E para si, para afogar a mágoa, Se um pouco havia do licor ardente, A dor que o devorava e renascia Matava lentamente. Sempre traído, mas amando sempre, Ele a razão perdeu; foge à cabana, E vai correr na solidão do bosque Uma carreira insana. devenu insensé, il se croyoit un enfant, et prenoit Tibeïma pour sa mère. « Tibeïma, qui avoit retrouvé des richesses avec un autre guerrier dans l'ancienne cabane de la chair blanche, eut horreur de celui qu’elle avoit aimé ; elle le chassa. La chair blanche s’assit sur un tas de feuilles à la porte, et mourut ; Tibeïma mourut aussi. Quand le Siminole demande quelles sont les ruines de cette cabane recouverte de grandes herbes, on ne lui répond point. » O famoso Sachém, ancião da tribo, Vendo aquela traição e aquela pena, À ingrata filha duramente fala, E ríspido a condena. Em vão! É duro o fruto da papaia, Que o lábio do homem acha doce e puro; Coração de mulher que já não ama Esse é inda mais duro. Nu, qual saíra do materno ventre, Olhos cavos, a barba emaranhada, O mísero tornou, e ao próprio teto Veio pedir pousada. Volvido se cuidava à flor da infância (Tão escuro trazia o pensamento!) “Mãe!” exclamava contemplando a moça, “Acolhe-me um momento!” “Vinha faminto. Tibeíma, entanto, Que já de outro guerreiro os dons houvera, Sentiu asco daquele que outro tempo As riquezas lhe dera. Fora o lançou; e ele expirou gemendo Sobre folhas deitado junto à porta; Anos volveram; coos volvidos anos, Tibeíma era morta. Quem ali passa, contemplando os restos Da cabana, que a erva toda esconde, Que ruínas são essas, interroga. E ninguém lhe responde. Fonte: Assis (1976); Chateaubriand (1838) A “Chanson de la Chair Blanche” (“Canção da Carne Branca”, em tradução literal) de Chateaubriand relata a história de “Carne Branca”, homem branco, possivelmente um europeu ou descendente de europeus, que vem de um estado mais ao norte dos EUA, a Virgínia – lembremos que a nação creek, da qual fazem parte os “Muscogulges” do relato de Chateaubriand, ocupava o território onde hoje estão os estados do Tennessee, Alabama, Georgia e norte da Flórida – trazendo riquezas quando encontra Tibeïma, a Ikouessen, ou “cortesã”, 321 segundo Chateaubriand explica em nota. O homem branco se apaixona e decide casar-se com Tibeïma, que aceita interessada unicamente nas suas riquezas. Constroem juntos uma cabana, mas Tibeïma está unicamente interessada em dissipar as riquezas dele, buscando os braços de outros assim que essas riquezas se acabam. O homem, mesmo sabendo da traição, não deixa de amá-la, e passa a mendigar meios de mantê-la, mas também se entrega à bebida como forma de sufocar a dor da traição. O alcoolismo e as traições de Tibeïma levam o homem branco à loucura, correndo pelos bosques. Mesmo o pai de Tibeïma a repreende, mas reconhece que “le cœur d’une femme qui a cessé d’aimer est plus dur que le fruit du papaya” (“o coração de uma mulher que deixou de amar é mais duro do que o fruto da papaya”). Um dia, ao retornar à sua própria cabana nu e desgrenhado pedindo por comida e abrigo, completamente tomado pela loucura, acreditando ser uma criança e filho de Tibeïma, o homem branco encontra a esposa com outro guerreiro de posses. Tibeïma, horrorizada pela figura à sua frente, expulsa dali o homem que antes dizia amar, deixando-o morrer do lado de fora da cabana. Com a morte de Tibeïma e a cabana em ruínas, todos se calam quando os Seminolesliv questionam sobre o que se passara ali. Imediatamente notamos que a tradução de Machado de Assis, uma tradução de outra tradução, transporta a prosa de Chateaubriand para a forma poética. O poeta-tradutor adota quadras compostas de três decassílabos e um hexassílabo, com rimas nos versos pares. Se a forma escolhida, clássica na tradição poética de língua portuguesa, corresponderia ou não ao poema indígena – se é que este de fato existiu – não sabemos. Como se pode observar, quando traduz reimaginando poeticamente este texto de Chateaubriand, Machado de Assis mantém praticamente todos os detalhes da história no texto francês, conforme a tendência que temos observado até aqui: busca-se a preservação do sentido geral do texto, mas sob uma roupagem que esteja de acordo com os costumes da tradição poética de língua portuguesa. Há, somente, duas omissões de certa relevância: a partir da tradução de Machado não se sabe que o homem veio da Virgínia, assim como omite também a presença da tribo seminola no seu poema. Quando se passa a conhecer melhor as minúcias do emaranhado da tradução machadiana, percebe-se que essas omissões não são incidentais. Referências geográficas já foram omitidas antes, como na “Lira Chinesa”, por exemplo, em que Machado não menciona a Montanha Oriental ou o Rio Amarelo quando surgem nos poemas que traduziu. Da mesma forma, informações que permitam localizar que um texto pertence necessariamente a uma determinada cultura, de determinada época, geralmente são preteridas em favor de um tom mais amplo, universal, como se quisesse demonstrar que o texto literário pertence a todos. Tal recorrência e 322 regularidade de procedimentos quanto a isso afastam qualquer possibilidade de que tais alterações ou omissões sejam obras do acaso ou meras coincidências. Nota-se mais uma vez que o tradutor também se concede a prerrogativa de acrescentar ao seu texto detalhes que talvez possam enriquecê-lo, mas que certamente deixam rastros de uma marca bastante pessoal. Neste caso em particular, destacamos os dois primeiros versos da terceira estrofe no poema de Machado: “E responde a morena requebrando / Um olhar doce, de cobiça cheio”. No trecho correspondente no texto-fonte lemos: “La fille peinte, qui vouloit les richesses de la chair blanche, lui répondit” (“A moça pintada, que queria as riquezas da carne branca, respondeu-lhe”). Não há, portanto, nenhuma referência ao fato de a moça requebrar e muito menos ao seu olhar “cheio de cobiça”. Os leitores da obra de Machado de Assis saberão, contudo, que referências ao olhar das mulheres são frequentes em sua obra e uma de suas marcas, cujo exemplo máximo será, sem dúvida, os olhos de Capitu. Ainda naquele mesmo artigo citado anteriormente, Regina Zilberman avalia que na “Cantiga do Rosto Branco” o autor Machado de Assis se faz ouvir ao “[...] equiparar práticas poéticas entre os povos nativos do norte e do sul da América, chamando a atenção para as habilidades artísticas de nossos indígenas, tema que fertilizara o debate intelectual sobre a propensão dos primeiros habitantes do território para a criação literária”670. Mais do que ao apontar as semelhanças entre as práticas dos índios de lá e de cá, a voz autoral de Machado de Assis se faz ouvir no trabalho poético dispensado na criação do poema, e principalmente naquelas interferências do tradutor que deixam marcas tipicamente machadianas no texto. Ishimatsu corrobora nossa opinião quando diz que a “Cantiga do Rosto Branco” “[...] não poderia ser mais machadiana, já que a infidelidade da mulher leva ‘o rosto branco’ não a um ato de vingança, mas à loucura”671. Machado adota a representação de uma mulher que Ishimatsu descreve como fria, inconstante e ingrata, o que diz ser típico da ficção em prosa da maturidade do escritor. Na avaliação de Jean-Michel Massa, a “Cantiga do Rosto Branco” não é só uma homenagem a Chateaubriand, mas “[...] representa uma garantia no espírito de Machado de Assis quando ele reúne suas Americanas”, no formato de uma “[...] ode que vestiu em versos à europeia”, e “[...] atesta uma intenção louvável, a de alargar as fronteiras da poesia indianista até as margens setentrionais da América”672. O crítico não estava equivocado, mas mais do que 670 ZILBERMAN, 2017, p. 10 ISHIMATSU, 1984, p. 103, tradução nossa. No original: “could not be more Machadian in character, as the woman’s infidelity drives ‘o rosto branco’ not to an act of vengeance, but to madness”. 672 MASSA, 2008, p. 90. 671 323 meramente uma intenção, esta obra de Machado é uma realização de um projeto cujos horizontes estão muito além de um alargar de fronteiras indianistas. John Gledson, por sua vez, sugere que a “Cantiga do Rosto Branco” seria um exemplo do que Machado faria com mais frequência na maturidade: escolher obras que se adaptassem à sua personalidade e ao seu programa estético literário, “na medida que o tinha”673, ressalva o crítico e tradutor inglês. Gledson insinua ainda que a atração fundamental desse poema venha do retrato da degradação que pode causar o choque de cultura dessemelhantes, sobretudo quando, como neste caso, o sexo e o álcool facilitam o encontro inicial. É uma Iracema sem Jurema, com cachaça e com um europeu bem mais perto da realidade cotidiana que Martim. Noutros poemas de Americanas, os resultados desses conflitos podem ser trágicos – aqui, com apoio em Chateaubriand, Machado nos mostra apenas o sórdido674. Novamente, uma opinião que, apesar de não estar equivocada, resvala em apenas um aspecto desta obra. Além disso, alguns comentários de Gledson merecem revisão: em nenhum momento, na obra de Machado ou de Chateaubriand, é dito que o homem em questão, apesar de branco, era europeu. Poderia muito bem ter sido um descendente nascido em território norteamericano. Mais importante ainda, o “choque entre culturas” de que fala Gledson não parece ser central à peça, já que o que move a narrativa do poema não são as diferenças de costumes, mas a índole dos personagens: uma mulher interessada somente nos bens materiais e um homem fraco e frívolo, que se deixa enganar e se entrega ao alcoolismo que o leva à morte. O tema poderia ser transportado para qualquer outra situação em que não houvesse tal “choque de culturas” e funcionaria da mesma forma. Na “Lira chinesa”, por exemplo, temos o poema “A uma mulher” que relata acontecimentos parecidos, sem explorar as consequências. O fato de serem uma índia e um homem branco, neste caso, soa como algo meramente episódico para o poeta-tradutor explorar aspectos da índole humana, como já fizera diversas vezes antes e faria ainda depois. As opiniões de Zilberman, Ishimatsu, Massa e Gledson demonstram que a “Cantiga do Rosto Branco” não passou incólume pela crítica. A pesquisadora brasileira viu ali uma tentativa de Machado de Assis aproximar as práticas das culturas indígenas dos dois países através da tradução; a norte-americana creditou à tradução características tipicamente machadianas na representação da mulher; o crítico francês enxergou uma tentativa de alargar a poesia indianista para além das fronteiras nacionais, enquanto o inglês viu ali um fascínio pelo sórdido e pela degradação de um personagem que sucumbe diante de suas fraquezas. São visões de 673 674 GLEDSON, 1998, p. 9 Ibid., p. 9 324 nacionalidades diferentes que se alargam e se complementam, demonstrando que inegavelmente há frutos a colher nas traduções poéticas de Machado de Assis. 325 10. 1875-1901: As Ocidentais e as últimas traduções As oito traduções que veremos neste último capítulo de análise dos textos podem ser divididas em duas partes: uma parte desse corpus é composta de textos que nunca chegaram a fazer parte de livros de Machado de Assis. São textos de ordem bem diversa e feitos com os mais diferentes propósitos. “O coração”, uma das traduções que não haviam sido listadas por pesquisas anteriores, é a versão de um pequeno poema alemão de um autor hoje obscuro, publicada em um jornal satírico – Semana Ilustrada – e atribuída a Machado de Assis por Raimundo Magalhães Júnior. Trata-se de uma obra despretensiosa, provavelmente feita a trabalho. Em seguida temos “Inocência”, a peça mais peculiar do conjunto, visto que é a única vez em que Machado transporta um poema em português para um idioma estrangeiro – o francês – para servir de letra de uma música. “Seis dias em Cuiabá”, por sua vez, interessa principalmente por demonstrar o grau de domínio do idioma alemão por parte de Machado de Assis nesta tradução feita a pedido de Capistrano de Abreu. Por fim, o “Prólogo do Intermezzo” é outra obra cuja iniciativa deve ter sido somente em parte de Machado de Assis, visto que a tradução foi pensada e feita para fazer parte de uma obra mais ampla, que seria uma versão completa do Intermezzo de Heinrich Heine. Também pertencente à literatura alemã, esta tradução, que certamente é a melhor obra desta parte do corpus, apresenta indícios de que Machado de Assis tinha conhecimento do alemão. A outra metade do corpus apresentada aqui inclui as quatro traduções que foram incluídas nas Ocidentais, última parte das Poesias completas (1901), que foi último livro de poesias publicado por Machado de Assis: “To be or not to be”, “O corvo”, “Dante” e “Os animais iscados da peste”. Nas Ocidentais Machado de Assis reuniu 27 composições, quase todas já publicadas anteriormente. Somente quatro são dadas como inéditas por Galante de Sousa. José Américo Miranda (2016) ressalta ainda que, embora Ocidentais seja considerado na poesia o equivalente à obra ficcional da maturidade do escritor, Machado inclui entre os poemas de Ocidentais composições bem antigas: 16 são anteriores a 1880, sendo que “Clódia” é de 1869675, anterior até mesmo a Falenas e Americanas. A primeira recepção crítica das Poesias completas contou com textos de detratores já conhecidos, como Múcio Teixeira e Sílvio Romero. Teixeira publica sua crítica entre 20 e 27 675 MIRANDA, José Américo. “Uma aproximação às poesias completas de Machado de Assis”. Scripta, Belo Horizonte, v. 20, n. 39, p. 331-349, 2º sem. 2016, p. 332. 326 de maio de 1901, em cinco longos folhetins, apontando os defeitos da obra poética de Machado de Assis, em quem não via a menor vocação para a poesia. Guimarães Júnior, por outro lado, ironiza o esforço do crítico: “[...] como poderia ter gasto tanta cera crítica com tão ruim defunto literário?”676. Ainda assim, para Múcio Teixeira “O corvo”, tradução de Edgar Allan Poe incluída em Ocidentais, “[...] passa a ser uma das suas melhores produções”677, elogio que vem acompanhado de severas críticas às rimas empregadas por Machado de Assis. Sílvio Romero, que também não se impressionou com as Poesias completas, destacou não só “O corvo”, mas as outras três traduções de Ocidentais – “Dante”, tradução do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia, “Os animais iscados da peste”, de La Fontaine e “To be or not to be”, de Shakespeare –, como as “melhores peças da coleção”678, apesar de inconformado com os quês de Machado de Assis. Mas é no artigo “O Sr. Machado de Assis, poeta”, publicado por José Veríssimo no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em maio de 1901 que encontramos a avaliação mais objetiva e sensata desta primeira leva de críticos que escreveu sobre as Poesias completas. O crítico reconhece que Machado de Assis era um poeta de emoção contida, no que se diferenciava facilmente dos poetas de sua geração e, até mesmo, do “tom comum da poesia brasileira”, que o crítico diz ser “[...] de um sentimentalismo fácil, que frequentemente frisa à pieguice, entusiasta, hiperbólica, palavrosa, mais carnal que sensual, vulgarmente até lúbrica”679. O resultado desta diferença é a patente dificuldade em categorizar ou classificar o poeta que foi Machado de Assis, “uma forma da personalidade e da originalidade”, diz Veríssimo, reconhecendo em Machado um poeta que “[...] não foi propriamente romântico, nem propriamente parnasiano, nem propriamente naturalista, e foi simultaneamente tudo isto junto”680. A conclusão de Veríssimo não deveria surpreender, já que o próprio Machado, quando inicia sua carreira de poeta com Crisálidas, afirma categoricamente em seu posfácio: “[...] não curo de escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel 676 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 4, p. 174 TEIXEIRA, Múcio. “Poesias completas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 240. 678 ROMERO, Sílvio. “Poesias completas”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 255 679 VERÍSSIMO, José. “O Sr. Machado de Assis, poeta”. In: MACHADO, Ubiratan (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 245-246. 680 Ibid., p. 248. 677 327 obscuro da vasta multidão dos fieis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o meu livro; nem mais, nem menos”681. Nas Ocidentais Veríssimo diz não haver mais nada de americano ou local, visto que as peças são inspiradas pelo pensamento comum ocidental, o que se percebe claramente nas obras que escolhe traduzir. A novidade do conjunto fica por conta das que chama “poesias de pensamento, ou filosóficas”, sem esconder o pesar por encontrar nelas menos emoção que nos primeiros livros de poesia de Machado de Assis682. Veríssimo reconhece ainda que Machado não era nem podia ser um poeta do amor, razão pela qual naturalmente o escritor caminharia na direção de temas mais objetivos, já presentes desde seus primeiros poemas como “Epitáfio do México”, “Polônia” ou “La Marchesa de Miramar”. Das Ocidentais, cita “Círculo vicioso”, “Uma criatura” e “A mosca azul” como obras dignas de um grande poeta683. Veríssimo também elogia as traduções de Machado, destacando “Dante” – “surpreendente de fidelidade e de reprodução” – e “O corvo” – “assombrosa de expressão e de força” 684. O artigo é encerrado descrevendo Machado como um poeta de pensamento que se destaca por sua capacidade de transformar as dúvidas e o trabalho interior da consciência em tema lírico, e conclui suas considerações, sensatas e diretas, dizendo que a poesia que recebemos de Machado de Assis é frequentemente encantadora e deliciosa, mas tão depurada pela forma, tão recatada de sentimento, de comum, tão intelectual que raro irá ao fundo da nossa vida sentimental e afetiva. Regalo para outros poetas, para intelectuais, gozo para espíritos literários e para refinados, não satisfará talvez aos que não o forem. É para mim seu defeito capital; o poeta lhe achará porventura a sua principal virtude... E ambos talvez tenhamos razão...685 Há ecos desta avaliação de José Veríssimo em ensaios da crítica contemporânea, como o estudo de Ishimatsu, que chama de “em geral Parnasiana” a poesia da maturidade machadiana, pela disciplina técnica empregada na composição dos poemas e pelo interesse na antiguidade clássica, ainda que esta não seja o foco das Ocidentais, resultando numa poesia que se caracteriza pela introspecção686. Para Ishimatsu, que considera Ocidentais uma resposta às 681 ASSIS, 2009, p. 326 VERÍSSIMO, op. Cit., p. 249 683 Ibid., p. 250 684 Ibid., p. 251 685 VERÍSSIMO, 2003, p. 252 686 ISHIMATSU, 1984, p. 114 682 328 Orientales de Victor Hugo687, a originalidade da poesia tardia de Machado de Assis encontrase no seu conteúdo filosófico e na expressão do pessimismo e melancolia da maturidade que, em Ocidentais, estaria expressa nos poemas que a autora divide entre os de “filosofia amarga” e aqueles em que há tributo a humanistas e amigos688. Nesta mesma esteira, Cláudio Murilo Leal também corrobora a visão de que em Ocidentais o domínio da forma é pleno, e através dele Machado apresenta “[...] uma cosmovisão que permite superar o episódico e construir uma poesia em que são questionados os metafísicos problemas do Ser e do Mundo”, o que leva o autor também a dar ao poema filosófico ou introspectivo o lugar antes reservado à lírica amorosa689. Amparo apresenta opinião análoga, ao afirmar que [...] podemos penetrar no ponto central da lírica de Ocidentais, percebendo a obra como uma releitura dos grandes clássicos da civilização ocidental, passando por Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Hugo, dentre outros, e fazendo, inclusive, uma revisão de certas tendências do pensamento filosófico690. Se as quatro traduções incluídas em Ocidentais – “O corvo”, “To be or not to be”, “Os animais iscados da peste” e “Dante” – corroboram as avaliações apresentadas, não são todas obras da chamada “maturidade” do escritor. “Dante” e “To be or not to be”, por exemplo, são anteriores até mesmo às Americanas, algo que não é exclusivo das traduções. Lembremos que que cerca de metade das poesias de Ocidentais é anterior à 1880 – ano marcado pela publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas – e somente dois são da década de 1890. No entanto, como veremos, essas quatro traduções, se tomadas em conjunto, resumem e ilustram a práxis tradutória machadiana: um poeta-tradutor que está a serviço do texto de chegada e na sua recepção como um texto literário, poético, um objeto estético, que pode tanto adotar um novo modo de significar a partir de uma nova configuração estética, afastando-se sobremaneira do texto-fonte, como em “O corvo”, ou até mesmo aproximar-se do texto-fonte para recriá-lo em nossa língua a ponto de aproximar-se da transcriação haroldiana ou da tradução-arte de Augusto de Campos, como em “Dante”. 687 ISHIMATSU, 1984, p. 116 Ibid., p. 117 689 LEAL, 2008, p. 144. 690 AMPARO, 2008, p. 123 688 329 10.1 “Das Herz” “O coração”, tradução do poema alemão “Das Herz” de Hermann Neumann é mais uma das traduções atribuídas a Machado que não foram coligidas por Jean-Michel Massa ou Eliane Ferreira, nem mencionado por Galante de Sousa em sua Bibliografia de Machado de Assis. O texto alemão, acompanhado da tradução, foi publicado em 1875 na edição 782 da Semana Ilustrada, em que Machado colaborava. Este texto, que ainda não está recolhido nas edições das poesias reunidas de Machado de Assis consultadas nesta tese, foi identificado por Raimundo Magalhães Júnior e descrito no segundo volume de Vida e obra de Machado de Assis: Ascensão. O relato de Magalhães Júnior nos informa que no ano de 1875 Joaquim Nabuco começa a colaborar em uma publicação intitulada “A Época”, sob o pseudônimo de Ninguém, à qual Machado de Assis também se juntara adotando o nome Manassés. Segundo o relato de Magalhães Junior, verificável nos facsímiles disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o nº 2 da revista trouxe um desafio aos tradutores do alemão: Transcreveu um poemeto de Herman Neuman, com a declaração de que seria premiado com uma assinatura de um trimestre da revista “quem traduzir esta pequena poesia, que um crítico chamou de uma pérola de Cleópatra, em verso português, conservando a simplicidade e o perfume do original”.691 Estamos razoavelmente certos de que os editores de A Época consultaram um periódico inglês publicado naquele mesmo ano, em 23 de outubro de 1875, pois no volume III de The Academy: a weekly review of literature, Science and art publicado em Londres encontramos o seguinte trecho de um artigo que trata de canções alemãs, assinado por A.D. Atkinson: “[...] Talvez seja permitido encerrar esta notícia citando um dos compositores contemporâneos da Pátria. Esta pequena e delicada canção, de Hermann Neumann, é digna de cair em nossa memória como uma pérola de Cleópatra”692 , a que se segue o texto em alemão do poema de Neumann. Aquele “crítico” a que a chamada de A Época faz referência terá muito provavelmente sido este A.D. Atkinson. As datas coincidem uma vez que o periódico inglês foi publicado em outubro de 1875, enquanto o nº 2 de A Época só sairia em dezembro do mesmo ano. 691 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 251 ATKINSON, A.D. “Deutsch Lyrik. Selected and arranged with notes and a Literary Introduction. By C. A. Buchheim, Phil. Doc., F.C.P. (London: Macmillan&Co., 1875). In: THE ACADEMY: a weekly review of literature, science and art. July-December, Volume III. London: Robert Scott Walker, 1875, p. 425, grifo nosso, tradução nossa. No texto-fonte: “It may be permitted, perhaps, to close this notice by quotation from one of the contemporary lyrists of Fatherland. This little delicate song, by Hermann Neumann, is worth dropping into one’s memory like a Cleopatra’s pearl”. 692 330 O número seguinte da Semana Ilustrada já traria a resposta com o poema traduzido um tanto anonimamentelv, uma vez que o Dr. Semana, colaborador da revista e também pseudônimo de Machado de Assis, assumiu para si a tarefa de traduzir o poemeto, conforme palavras do próprio publicadas naquela edição: Aos Ilmos. Srs. redatores da revista quinzenal intitulada A Época – Não me levem a mal se hoje respondo esboçadamente à chamada que fizeram na sua bela publicação em o número 2, que ontem me veio à mão. O esboço é o do lápis – o da pena talvez não seja tão ruim como aquele; mas, enfim, o curto espaço que me ficou, a chuva, o aniversário do imperante, o batismo do príncipe do Grão-Pará e afinal ainda a abertura da Exposição Nacional, todos estes motivos não me deixaram o tempo de fazer coisa capaz. Conto com a indulgência de VV. SS., e creio que os senhores veem na minha pronta resposta apenas um sinal de consideração, apreço, estima e veneração do/ de VV.SS. / atº criado e obrigado – DR. SEMANA.693 Abaixo temos o poema “Das Herz” com a tradução com o título “O coração”, conforme publicação da Semana Ilustrada: Quadro comparativo 31 – “Das Herz” e “O coração” “Das Herz” – Hermann Neumann “O coração” Zwei Kammern hat das Herz Drin wohnen Die Freude und der Schmerz Há duas alcovas, duas No coração Que da Dor e da Alegria Moradas são. Wacht Freude in der einen So Schlummert Der Schmerz still in der seinen O Freude, habe Acht Sprich leise Das nicht der Schmerz erwacht! Enquanto a Alegria vela, Sem descansar Dorme a dor seu leve sono Sem acordar. Modera a voz, Alegria! Menos rumor Podes acordar do sono Vizinha Dor! Fonte: Semana Ilustrada (1875) Supõe-se que nesta época Machado de Assis ainda não conhecia o alemão, uma vez que seus estudos formais do idioma só começariam em 1883. A explicação que Magalhães Junior dá para estes versos que considera “tipicamente machadianos” é que Machado provavelmente procedeu da mesma forma que provavelmente fizera com “O casamento do diabo”: Certamente Henrique Fleuiss, autor do desenho alegórico publicado na Semana Ilustrada, traduzira literalmente o texto germânico, que Machado de Assis em seguida versificara. Esse caso e o da balada de Goethe, publicada dez anos antes, explicam o de “O casamento do diabo”, mostrando que tal método e trabalho se repetiu por várias vezes, quase sempre sob o anonimato.694 693 694 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 251 Ibid., p. 253 331 Figura 10 - Reprodução da primeira publicação de “Das Herz / O Coração” Fonte: Semana Ilustrada (1875) 332 Sobre o autor Hermann Neumann pouco descobrimos além do fato de ter sido um poeta – provavelmente menor – do romantismo alemão, autor de diversos poemas épico-narrativos, letras e sonetos, que morreu exatamente no ano da publicação de “Das Herz” em A Época e sua tradução na Semana Ilustrada. O poema “Das Herz”, contudo, certamente alcançou certo prestígio na época porque encontramos nada menos do que três volumes com traduções do mesmo para o inglês: um publicado em 1877 em Londres no volume English Echoes of German Song, editado por N. D’Anvers e traduzido por Dr. R. E. Wallis, Dr. J. D. Morell e F. D’Anvers, que é o tradutor do poema em questão; outro, intitulado Chambers Twain – que também é o título da tradução do poema de Hermann Neumann, que abre o volume – editado e traduzido por Ernest Radford também em Londres em 1890; e por fim Echoes from Kottabos, editado por R. Y. Tyrell e Sir Edward Sullivan e publicado também em Londres, em 1906, no qual o poema aparece somente com o título “From the German”, sem indicação da autoria de Hermann Neumann ou de que se trata de uma tradução, assinado por T.W.H.R. Vejamos, lado a lado, a reprodução dos textos das traduções: Quadro comparativo 32 – Versões em inglês do poema alemão “Das Herz” The Heart Chambers Twain Hermann Neumann Two chambers hath the heart Where slumber Sorrow and Joy apart. When Joy in her awaketh Still sleeping, Sorrow no moan maketh. Hush Joy! Ah, have a care; Speak softly; Sorrow lies sleeping there. From the Germanlvi The heart hath chambers twain, Wherein Dwell Joy and Pain. Two chambers hath the heart: There Dwelling, Live Joy and Pain apart. Joy in his chamber stirs, While Pain Sleeps on in hers. Is Joy in one awake? Then only Doth Pain his slumber take. Oh, Joy, refrain, refrain! Speak low; You may awaken Pain. Joy, in thine hour, refrain – Speak softly, Lest thou awaken Pain. T. W. H. R. Hermann Neumann F. d’A. Fonte: D’Anvers (1877); Radford (1890); Tyrell; Sullivan (1906) No trajeto de análise proposto por Antoine Berman, como vimos, é sugerido que se compare o texto-alvo – a tradução de Machado de Assis, neste caso – com outras traduções, quando houver, principalmente porque Berman considera que as primeiras traduções tendem a ser “defeituosas”. Comparar as traduções acima – todas posteriores à do nosso poeta-tradutor – com a de Machado é particularmente interessante porque elas nos revelam que as escolhas dos tradutores ingleses adotam procedimentos bastante similares entre si, mas bastante diferentes das escolhas feitas por Machado. Enquanto os tradutores ingleses buscam manter aspectos 333 formais como métrica e rima bastante próximos do texto alemão, Machado adota um caminho mais independente. O texto alemão possui apenas uma nona, com rimas dispostas em ABACDCEFE, em que os versos que não rimam com nenhum outro são mais curtos que os demais. Os tradutores ingleses transformam a nona em três tercetos, mantendo a distribuição de rimas e o verso mais curto ao centro de cada terceto. Machado, por sua vez, traduz o poema em três quadras e adota versos septissílabos intercalados por versos de quatro sílabas, o que faz com que seu poema tenha três versos a mais do que “Daz Herz”. Embora não muito comum na poética machadiana, é possível encontrar a combinação de versos de sete e quatro sílabas nos poemas “Reflexos”, da “Lira Chinesa”, e “Quando Ela Fala”, ambos de Falenas. Consequentemente, o esquema de rimas também muda, e somente rimam o segundo e quatro versos de cada estrofe. As alterações introduzidas por Machado, no entanto, são meramente formais, posto que o sentido e as imagens do poema são mantidos. O poema de Neumann diz que há duas câmaras (Zwei Kammern) no coração, ocupadas uma pela Alegria (Freude) e outra pela Dor (Schmerz) e enquanto a Alegria vela (Wacht Freude) em uma das câmaras, a Dor dorme em outra (So schlummert / Der Schmerz in der seinen). À Alegria é pedido que preste atenção (O Freude, habe Acht) e fale baixo (Sprich leise), caso contrário acordará a Dor (Daß nicht der Schmerz erwacht). É um poemeto cuja narrativa remete ao teatro de moralidades medieval com a personificação de sentimentos como “Alegria” e “Dor”, escrito com o ritmo ágil dos versos curtos e, a exemplo do teatro medieval, com o ensinamento de que a alegria deve ser comedida para não despertar a dor. Machado, sem se eximir de fazer seus acréscimos, alcança com sua recriação este mesmo resultado, sem recorrer, contudo, à linguagem desnecessariamente arcaizante e enobrecedora escolhida pelos três tradutores ingleses, a exemplo das formas em segunda pessoa dos verbos – hath, awaketh, maketh – ou do possessivo de segunda pessoa thine, todos em desuso no já no século XIX, e que causam ainda mais estranheza atualmente. Machado escolhe, ao contrário, uma linguagem simples e direta, perfeitamente compreensível mesmo hoje, mais de 140 anos após a publicação do trabalho. Se há um distanciamento no plano formal, o sucesso na reescrita do poema não nos permite enxergar nenhuma “defeituosidade” por ser uma primeira tradução em língua portuguesa, pelo menos. 334 10.2 “Inocência” De todas as traduções que analisamos nesta tese, “Inocência”, de autoria de Luís Guimarães Júnior, é o caso mais sui generis. De 1876, este é o único exemplo – dentre os textos de que temos notícia e que chegaram até nós – em que Machado de Assis transporta um texto poético da língua portuguesa para uma língua estrangeira. Quando Machado conheceu o autor de “Inocência”, Luís Guimarães Júnior tinha pouco mais de 15 anos. Travaram uma amizade que duraria pelas próximas décadas, até o fim da vida de Machado de Assis. O primeiro encontro de ambos chegou a ser relatado por Machado quando noticiava, no nº 473 Semana Ilustrada, de 2 de janeiro de 1870, a publicação de Corimbos, que contém o poema que deu origem a “Inocência”: Há coisa de seis anos, encontrei na rua um moço desconhecido, melhor dissera uma criança, - e que gentil criança ele era - o qual me disse rapidamente com a viveza impetuosa da sua idade: / -Está no prelo um livrinho meu. É oferecido ao senhor. Parto hoje mesmo para São Paulo; já dei ordem na tipografia para lhe mandarem um exemplar. / - Obrigado. Como se chama o senhor? / - Luís Guimarães. / Poucos dias depois recebi o livrinho anunciado. Eram as primícias de um talento legítimo, inexperiente, caprichoso, que poderia vir a ser a águia mais tarde, mas que não passava ainda de um beija-flor, galante e brincão, todo asas, todo travessuras, todo sede de aromas e de mel. / Noticiei o livrinho ao público, e escrevi ao poeta agradecendo-lhe o mimo e convidando-o a que não parasse naquela primeira obra.695 O artigo em questão, intitulado “Um poeta fluminense”, era sobre a publicação de Corimbos, a respeito do qual Machado se demonstra bastante elogioso nos parágrafos seguintes dizendo que “[o]s traços gerais da poesia de Luís Guimarães de hoje são os mesmos de outrora; mas o livro dos Corimbos destaca melhor a sua fisionomia poética, e a esse respeito como a outros é a verdadeira data de sua vocação literária.”; ou quando diz que “[o] livro dos Corimbos representa, pois, um talento desenvolvido e refletido, que nada perdeu das suas graças nativas, antes as melhorou com o estudo e o trabalho” e que “ [o]s seus versos tem a novidade da forma e da ideia que interessa e arrasta, e a naturalidade do sentimento que transmite ao leitor as emoções do poeta”; mas elogia também o emprego do metro de que era conhecido como um dos mestres dizendo que “[o]s alexandrinos de Luís Guimarães são cadentes, cheios e corretos” para concluir que “[...] este livro dos Corimbos é uma vitória e uma obrigação. Colha o poeta os louros da primeira, mas não esqueça a responsabilidade da segunda”696. O artigo é encerrado com a assinatura de Machado de Assis – somente um “M.” – acompanhado da reprodução de 695 696 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1158 Ibid., p. 1159-1160 335 um dos poemas de Corimbos, “Estâncias”, a que chama de “[...] melhor notícia que posso dar do poeta e da obra”. Devemos considerar que o crítico Machado não era de fazer elogios vazios ou somente por conta de amizades literárias, práticas que, aliás, condenava. Além disso, Corimbos é dedicado a Machado de Assis, que de certa forma apadrinhou o poeta Luís Guimarães Júnior. É compreensível, portanto, que Machado de Assis tenha sido convidado para contribuir no projeto musical com a versão francesa de “Inocência”. O poema em questão é derivado de “Candura”, que está em Corimbos. O relato deste texto e da colaboração entre Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior está no segundo volume de Vida e obra de Machado de Assis: Ascensão do biógrafo Magalhães Junior e também não consta dos levantamentos dos textos traduzidos por Machado feitos por Jean-Michel Massa ou por Eliane Ferreira: Machado repetiu, em fins de 1876, a experiência de 1869, quando, para servir ao compositor Artur Napoleão, adaptara a uma de suas canções uma poesia inglesa, convertida em “A lua da estiva noite”. De novo servia aos interesses desse amigo, mas com duas diferenças: não era ao compositor, mas ao editor de músicas, que prestava tal favor e, além disso, dessa vez não traduzira um poema estrangeiro para o vernáculo. Ao contrário, transportara do português para o francês um poema de seu amigo, Luis Guimarães Júnior, musicado por Luísa Leonardo, jovem compositora e pianista brasileira, hoje esquecida, mas cujo talento então rivalizava com o de Chiquinha Gonzaga.697 O relato de Magalhães Juniorlvii continua com a biografia da artista e as condições que deram origem ao trabalho, que é o que nos interessa, informando que quando Luísa Leonardo ainda se encontrava na França, a firma Narciso & Artur Napoleão editou uma série de canções de Luísa com letras em português, escritas por Luís Guimarães Júnior, e em francês, traduzidas pelo poeta e violinista Francisco Moniz Barreto Filho. Este relato pode ser confirmado na seção de “Fatos Diversos” do jornal A Reforma: órgão democrático, no n. 186, de 20 de agosto de 1876: Acabamos de receber algumas composições da talentosa menina Luísa Leonardo, uma brilhante vocação artística, que desde tenra idade revelou-se pianista muito notável. As composições que temos presentes, e que foram editadas pela casa dos Srs. Narciso e Napoleão, constam de várias canções, barcarolas e romances para canto e piano sob a denominação de Souvenir et Regrets. [...] As letras das diferentes composições que acabam de vir a lume são do distinto poeta dos Corimbos, versos suavíssimos, apaixonados, e que já de si são música, como os sabe fazer o Dr. Luiz Guimarães. 697 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 268 336 São esses versos transladados para o francês, e, também nesse idioma, adaptados à música, pelo nosso insigne violinista Francisco Moniz Barreto, um poeta que vibra tão bem o arco da rabeca como a lira de Apolo, e que exprime-se em português ou em francês falando sempre a linguagem das musas698. Além desta publicação, encontramos, na Gazeta de Campinas, vários anúncios dessas composições de Luísa Leonardo, listando entre as peças a canção “Inocência”, sendo que o mais antigo encontrado data de 5 de setembro de 1876699. Ainda segundo Magalhães Júnior, um caso fugiu à regra: “[...] a letra de uma das canções, ‘Inocência’, foi traduzida para o francês por Machado de Assis. Seu texto em português era uma redução do poema ‘Candura’, publicado no livro Corimbos”700. Não só somente uma redução, mas também alteração e reorganização de alguns versos, conforme podemos observar abaixo, nos textos de “Candura”, “Inocência” lado a lado com a tradução de Machado de Assis: Quadro comparativo 33 – Poema “Candura”, letra de “Inocência” e versão francesa de Machado de Assis Candura (1868) Inocência Tradução de Machado de Assis Teus dias correm suaves Bordados de loira luz, Como o pipilo das aves Nos horizontes azuis. Teus dias correm suaves, Bordados de loira luz, Como o pipilar das aves Nos horizontes azuis. O tem pensamento, à toa, Corre, corre, sem parar Como um barquinho que voa, que voa Na correnteza do mar. Ton âme au ciel, au ciel qu’on adore, Monte sur l’aile, sur l’aile du jour, Et revient avec l’aurore Toute réchauffée d’amour. Dans ton sein, ma bien-aimée, Tu as la sainte, la sainte pudeur. Elle y vit, c’est la rosée Qui dort, qui dort au fond de la fleur, Nada prende teus encantos, Teus passos nada detém Choras e ris, e teus prantos, Teus prantos, são de alegria também. Mas esse encanto, encanto profundo, Há de acabar por fim, por fim, Quando pensares no mundo, Quando pensares em mim. Dans la liberté des charmes Que le ciel t’a départis, Tu ris et pleures. Tes larmes Ce sont encore des ris. Ah ! la vie, la vie est si profonde ! Tu sauras quelle est sa loi Quant tu penseras au monde, Quand tu penseras à moi. Tu’alma vai como a prece Dormir no coxim dos céus; O dia rompe e ela desce Quente dos braços de Deus! Nada prende os teus encantos. Teus passos nada detem: Choras e ris, - e teus prantos São de alegria também. Que doce existência a tua! Que meigo e puro arrebol! Macio raio de lua Ardente raio de sol! E teu pensamento à toa Corre, corre sem parar Como um barquinho que voa Na correnteza do mar. Mas esse encanto profundo Há de acabar-se por fim, Quando pensares no mundo, Quando pensarem em mim. Fonte: Guimarães Júnior (1869); Magalhães Júnior (2008) 698 FATOS DIVERSOS, A Reforma: órgão democrático, n. 186, 20 de agosto de 1876, p. 3. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/226440/8612>. Acesso em: 19 jan. 2019. [Ortografia atualizada conforme as regras vigentes.] 699 GAZETA de Campinas, n. 836, 5 de setembro de 1876, p. 3. Disponível em: < http://200.144.6.120/uploads/acervo/periodicos/jornais/GC18760905.pdf> . Acesso em: 19 jan. 2019. 700 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 269 337 Esta comparação tripla é interessante porque através dela pode-se inferir que Machado possivelmente utilizou o texto original de “Candura” para compor sua versão francesa que Magalhães Júnior considera “mais uma adaptação do que mesmo uma tradução, embora aproveitando na segunda oitava alguns dos versos originais”701. “Candura” segue um esquema métrico e de rimas fixo em todo o poema, com versos heptassílabos e rimas cruzadas, ao passo que “Inocência”, reestruturado para ser cantado, é um bocado mais livre: as quadras tornam-se oitavas, conservando as rimas cruzadas, mas com alguns versos de metro variável dividindo espaço com os versos de sete sílabas aproveitados de “Candura” sem modificação. A versão de Machado de Assis é, mais do que uma tradução, outro poema. Machado mantém as rimas cruzadas e a maior parte dos seus versos é de heptassílabos, bem como também compõe o seu texto em duas oitavas, como “Inocência”. Entendemos, contudo, que essa diferença é bastante reveladora do poeta e tradutor que era Machado de Assis, que foi sensível à necessidade de criar outro texto que, mais do que funcionar como poema, deveria ser melodicamente agradável para ser cantado e se encaixar na melodia da canção, como já fizera em “Lua da estiva noite”, sem que isso significasse criar um texto que em nada lembrasse o texto-fonte. Os poemas “Candura” e “Inocência” de Luís Guimarães Júnior são variações sobre o tema da fugacidade da vida cândida, inocente diante da revelação do mundo e do amor, escritas com a leveza do verso de sete sílabas com imagens e temas românticos, como a própria inocência, mas também o apelo ao mundo natural e à religião, presente em “Candura”, expressos através da presença dos astros, de pássaros, do mar, mas também de Deus e da alma imortal. O viés religioso, todavia, não está presente em “Inocência”, visto que não há nenhuma referência à alma ou à presença divina. Note-se que esse mesmo viés está presente logo nos primeiros versos da versão machadiana: “Ton âme au ciel, au ciel qu’on adore, / Monte sur l’aile, sur l’aile du jour,” (“Tua alma no céu, no céu que se adora / Monta as asas, as asas do dia”). Estes versos, pela temática, nos remetem à segunda quadra de “Candura”: Tu’alma vai como a prece Dormir no coxim dos céus; O dia rompe e ela desce Quente dos braços de Deus! 701 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 270 338 Evidentemente há diferenças, posto que não se trata de uma tradução que busque exata correspondência semântica. Observa-se, apesar disso, que Machado de Assis soube preservar elementos presentes no poema de Guimarães Júnior, como uma alma que desce dos céus com o raiar do dia. Nos quatro últimos versos da primeira estrofe Machado se afasta consideravelmente do texto de Guimarães Júnior, escolhendo dizer que no seio da amada reside a pureza, o santo pudor, que dorme como uma rosa ainda em botão, esperando o momento de desabrochar. É neste momento também que a versão de Machado escolhe o gênero feminino – “ma bien-aimée” – como objeto do poema, algo que não está claro nos textos de Guimarães Júnior, embora sugerido. Na oitava seguinte, Machado mantém a presença do choro, do riso e das lágrimas, e escolhe ser mais direto, trocando o “encanto profundo”, metáfora para a ingenuidade no texto de Guimarães Júnior, por “la vie est si profonde”, desfazendo-se da figura de linguagem. Também escolhe um caminho diferente para tratar da perda da inocência, embora igualmente metafórico: enquanto Guimarães Júnior escreve que “esse encanto profundo / Há de acabar por fim, por fim” – clara referência ao fim da vida ingênua que a moça leva – Machado de Assis escolhe “la vie est si profonde! / Tu sauras quelle est sa loi”, escolha um pouco mais impactante por afirmar que mais do que a inocência simplesmente acabar, esta é a lei da vida, é assim que as coisas são. É preciso notar também que Machado soube que era necessário preservar os dois últimos versos do poema, os mais belos e sonoros do conjunto, conseguindo um belíssimo resultado que mantém os mesmos paralelismos, assonâncias e aliterações do texto de Guimarães Júnior, algo certamente facilitado, é verdade, pela possibilidade de construção próxima nas duas línguas e pelos cognatos que soam de forma bastante similar. É razoável supor que esta tradução, sem paralelos na lavra tradutória machadiana, foi um trabalho que o tradutor fez a pedido de um amigo e que pouca relação guarda com a sua obra autoral ou sua poética. É inegável, entretanto, o quanto este pequeno trabalho revela o cuidado e arte empregados na feitura do trabalho, um testemunho do empenho de poeta no tradutor. 10.3 “To be or not to be” A tradução em verso “Monólogo de Hamlet” foi publicada pela primeira vez, segundo levantamento de Galante de Sousa, no nº 13 do Arquivo Contemporâneo, no Rio de Janeiro, em 339 22 de fevereiro de 1873. A peça foi posteriormente republicada no Jornal do Comércio, também no Rio de Janeiro, em 8 de janeiro de 1878, e em seguida n’O Cruzeiro em 13 de janeiro do mesmo ano, com a informação de que era uma transcrição do texto publicado no Jornal do Comércio, já sob o novo título “To be or not to be”, mantido em Ocidentais702. Apesar de a primeira publicação datar de 1873, Galante de Sousa anota que esta peça devia estar realizada desde 1871, pois, no trabalho anônimo Histórias da Meia-Noute de Machado de Assis em A Reforma (Rio, 18 de novembro de 1873), diz o crítico: “Machado de Assis dá ao publico o que de melhor ha em suas excellentes composições; mas que de paginas interessantíssimas não tem ele ao abrigo da curiosidade humana? Ainda ha dous annos vimos a traducção por ele feita do famoso To be or not to be de Shakespeare, e com que dificuldade nos mostrou aquele mimo de que nem ao menos guardamos uma copia.”703 Na edição crítica das Poesias completas somos informados de que não foi possível encontrar a publicação da tradução em O Cruzeiro, inviabilizando o cotejo. Notamos, contudo, que a edição crítica traz uma data equivocada para esta publicação: 13 de agosto de 1878, e não 13 de janeiro de 1878, como informado por Galante de Sousa. Na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional é possível consultar a tradução de Machado publicada n’O Cruzeiro na data indicada na Bibliografia de Machado de Assis, introduzida pelo texto que reproduzimos a seguir: No famoso monologo de Hamlet teem naufragado tantos tradutores, que com verdadeira surpresa e prazer lemos ultimamente uma nova versão, que está destinada, segundo parece, a satisfazer os proprios inglezes, que conhecem a nossa lingua, e que são naturalmente os mais difficies de contentar. Dizemos isso porque da parte de um dos mais distinctos filhos da Inglaterra, há longos annos residente entre nós, nos vem a indicação para transcrevermos esse trecho que elle denominou uma “Literary Gem”. Satisfazemol-o com a melhor vontade, até porque veio ao encontro da nossa intenção. O vencimento de uma tal difficuldade não deixa de logar a sentimento algum de surpreza, quando se sabe que o traductor foi o sr. Machado de Assis. Eis a versão tal qual foi publicada no Jornal do Commercio.704 Há, ainda, uma errata publicada dois dias depois corrigindo dois versos da tradução para “Assim da reflexão á luz mortiça / A viva cor da decisão desmaia”. Considerando esta errata, a única divergência entre o texto que saiu em O Cruzeiro e o que apareceu em Ocidentais surge no verso 7, corrigido de “Da nossa dor eternamente apaga” para “Da nossa dor eternamente acaba”, quase certamente um deslize tipográfico. Portanto, é possível afirmar que em 1878 o 702 SOUSA, 1955, p. 467 Ibid., p. 468 704 NOTAS LITERÁRIAS. O Cruzeiro, 13 de janeiro de 1878, p. 3. Disponível em: <http:// memoria.bn.br/DocReader/238562/115>. Acesso em 17 mai. 2018. 703 340 poema já tinha a sua forma final conforme publicada em Ocidentais nas Poesias completas de 1901. Além das republicações anotadas por Galante de Souza, encontramos mais duas de “To be or not to be”: uma na página 2 de O Repórter de 25 de julho de 1879, e outra na primeira página do Jornal da Tarde de São Paulo, em 1 de junho de 1881. Ambas reproduzem fielmente o texto publicado em O Cruzeiro, sem atentar para as correções da errata publicada dois dias depois. O biógrafo Raimundo Magalhães Júnior explica que esta tradução foi “[...] feita sob o entusiasmo experimentado quando da representação dessa tragédia pelo ator italiano Ernesto Rossi”705. A companhia italiana de Ernesto Rossi – que chegou ao Rio de Janeiro em 1871 encenando primeiramente Otelo, seguida de Romeu e Julieta, Hamlet e, por fim, Macbeth – não teve sucesso nas bilheterias na sua primeira passagem pelo Brasil706, apesar do prestígio de que o ator gozava. Rossi interpretou Hamlet no Teatro Lírico Fluminense em 12 de junho de 1871, o que corrobora a sugestão de Galante de Sousa de que a tradução, embora publicada só em 1873, data daquele ano. O impacto da atuação de Ernesto Rossi sobre Machado de Assis pode ser apreciado por meio de dois textos escritos na época: “Macbeth e Rossi” e “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça”. Até então, o público brasileiro conhecia as peças de Shakespeare principalmente a partir das montagens de João Caetano que, segundo levantamentos, trabalhou a partir das adaptações francesas de Ducis707. O problema das versões de Ducis estava no fato de que as peças foram reescritas “de acordo com os preceitos defendidos na França daquele momento”, levando a profundas alterações do texto shakespeariano, como mudanças nos nomes das personagens e unidade de tempo e ação forçadas sobre o texto, eliminando passagens importantes que comprometiam até mesmo a coerência da peça708. Essas alterações foram 705 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 2, p. 230 O’SHEA, José Roberto. “As primeiras estrelas shakespearianas nos céus do Brasil: João Caetano e o teatro nacional”. In: MARTINS, Marcia A. P. (Org.). Visões e identidades brasileiras de Shakespeare. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2004, p. 204. 707 TELES, Adriana da Costa. Machado e Shakespeare: intertextualidades. São Paulo: Perspectiva/Fapest, 2017, p. 5 708 TELES, 2017, p. 6 706 341 consideradas inaceitáveis por Ernesto Rossi, que buscou dar ao público versões mais próximas às concebidas pelo bardo inglês709. Isso é atestado por Machado de Assis em “Macbeth e Rossi”, publicado na Semana Ilustrada de 25 de junho de 1871: com a interpretação de Rossi, “[...] vai-se conhecendo Shakespeare, de que o nosso público tinha apenas uma notícia por uns arranjos de Ducis (duas ou três peças apenas) ou por partituras musicais”, concluindo em seguida que “Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente”710, dando a entender que o que conheciam do bardo até então era consideravelmente diverso do revelado pelo ator italiano. Em “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça” Machado de Assis deixa mais uma vez sua impressão do ator italiano e suas montagens de Shakespeare: Não te fallo de Hamlet, de Othelo, de Cid, de todos esses typos que a posteridade consagrou, e que o Rossi tem reproduzido ante o nosso publico, fervente de enthusiasmo. Um d’elles, o Hamlet, nunca o tinha visto pelo nosso ilustre João Caetano. A representação d’essa obra, a meu ver (perdoe-me Villemain) a mais profunda de Shakespeare, afigurou-se me sempre um sonho difficil de realizar. Difficil era, mas não impossível. Veiu realizar m’o mesmo actor que sabe traduzir a paixão de Romeu, os furores de Othelo, as angustias do Cid, os remorsos do Macbeth, que conhece em summa toda a escala da alma humana. O que elle foi n’aquelle typo eterno de irresolução e da duvida, melhor do que eu poderia dizer, já outros, e competentes, o disseram nos jornais. Para mim era antes quasi uma chimera, hoje é uma indelevel recordação. Aquelle gesto é pois uma pura invenção do Rossi, mas uma invenção logica, natural, não extranha ao caracter, mas complemento d’elle; é uma colaboração do interprete na obra original. Um artista que reproduzisse aquelle gesto, com a mesma felicidade, mas por advertência do autor, seria digno de fervorosos aplausos; não seria porém tão creador como o Rossi711. Hamlet é chamada de “teatro do mundo” em Shakespeare: the invention of the human (1998) de Harold Bloom, que equipara a peça do bardo inglês a grandes obras da literatura mundial como a Divina Comédia, Fausto, Ulisses e Em busca do tempo perdido712. Nesta tragédia de vingança, o príncipe Hamlet, enlutado pela morte de seu pai, o rei Hamlet, e inconformado com o casamento de sua mãe Gertrudes com seu tio Claudius – irmão do falecido rei – é instado a vingar-se pelo suposto fantasma de seu pai, que revela ter sido sua morte um fratricídio. A vingança, contudo, não se realiza facilmente e o príncipe Hamlet passa quase toda a peça em busca da certeza do assassinato e questionando a moralidade de matar seu tio. Hamlet, incapaz de seguir adiante depois da morte do pai, mata acidentalmente Polonius, pai de Ofélia 709 TELES, Adriana da Costa. “Machado de Assis crítico teatral: Ernesto Rossi e as encenações de Shakespeare no Brasil no ano de 1871”. Estudos Linguísticos, São Paulo, 40 (3): p. 1842-1851, set-dez 2011, p. 1844 710 ASSIS, 2015, vol. 3, p. 1164 711 ASSIS, Machado de. “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça”. In: A Reforma, 20 de julho de 1871, p. 2. Disponível em: <memoria.bn.br/DocReader/226440/2583>. Acesso em 22 mai. 2018. 712 BLOOM, Harold. Shakespeare: the invention of the human. New York: River Head Books, 1998, p. 383 342 – que vai à loucura com a morte do pai e com o comportamento de Hamlet, por quem estava apaixonada, acabando por suicidar-se – e Laertes, que retorna da França para vingá-lo. Temos, assim, três círculos concêntricos de vingança: no centro da ação está a vingança de Hamlet contra seu tio Claudius; em seguida, temos a de Laertes, que deseja matar Hamlet para vingar seu pai; e por fim temos Fortinbras, que invade a Dinamarca para vingar a morte de seu pai – também ele chamado Fortinbras – assassinado pelo pai de Hamlet. Destarte, desenham-se algumas das principais características da peça: personagens presas a um passado ao qual precisam constantemente retornar, a inação diante da dúvida, e os duplos, Hamlet e seu pai, de quem herda o nome e a quem está inexoravelmente preso a ponto de quase perder sua identidade, algo duplicado na figura de Fortinbras que, mesmo praticamente ausente em toda a peça, paira sobre ela de forma agourenta, ou mesmo a peça-dentro-da-peça, The mousetrap, um mise-en-abîme cênico que Hamlet utiliza como artifício para testar as acusações do fantasma de seu pai. Isso se reflete inclusive na linguagem empregada na peça, de acordo com Frank Kermode (2006): Hamlet é “[...] dominada a um ponto sem paralelo no cânone por um recurso retórico específico: é obcecada por duplos de toda espécie, e mais notadamente por seu uso da figura conhecida como hendíade”713. Os duplos, as alternativas, a dúvida, encontram seu ápice no mais famoso monólogo escrito por Shakespeare, o “ser ou não ser” da primeira cena do terceiro ato. Ainda segundo Kermode, neste monólogo estamos “[...] desde logo pousados entre duas alternativas. Ser ou não ser? Sofrer ou tomar armas?”, e mais adiante completa: “[...] Hamlet está relacionando sua situação pessoal a uma visão mais geral da condição humana, o que, penso eu, é um novo uso para o solilóquio – normalmente usado apenas para transmitir informações à plateia – como um meio de encarar de forma mais ampla a condição humana”714. Já Harold Bloom oferece uma interpretação instigante sobre a suposta incapacidade de agir de Hamlet: A vontade de Hamlet deixa de ser denominada ação, mas não deixa de ser ação, que permanece na exaltação da mente. É viável objetar: onde estaria tal exaltação nesse solilóquio? A resposta é a seguinte: na íntegra dos versos, em cada frase, em cada pausa, enquanto essa que é a maior das consciências escuta a sua própria música cognitiva715. 713 KERMODE, Frank. A linguagem de Shakespeare. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 149. 714 KERMODE, 2006, p. 168 715 BLOOM, 2004, p. 45 343 O monólogo em questão, portanto, parece resumir a questão central da peça ao colocar o homem diante dos únicos caminhos a seguir, situação que Bloom analisa em Hamlet: poema ilimitado: Ao ser, à consciência, é possibilitada uma escolha: sofrer estoicamente, ou tomar armas contra o mar e, destarte, apressar o fim, tragado pelo fio da corrente, cuja imponência as nossas empresas supremas não são capazes de alcançar. Temos aqui duas grandes metáforas em conflito: a libertação com respeito ao corpo (invólucro mortal), tudo o que haveremos de perder, e o país ignorado, o reino da morte, de onde nunca ninguém voltou, mas de onde o espectro do Rei Hamlet escapa duas vezes durante a peça. O fantasma busca vingança, e ela chega, ainda que não o faça por meio da vontade do Príncipe Hamlet716. Crítica teatral, tradutora e escritora especializada em Shakespeare, Bárbara Heliodora (2001) nos lembra que “[...] a tragédia apresenta um processo de conscientização de um indivíduo, tanto em relação a si mesmo quanto em relação ao universo em que existe, atingindo por intermédio de uma vivência dolorosa que o compele à reavaliação e o conduz à morte”717. Nesse sentido, Hamlet seria o que ela chama de “uma metáfora da própria vida”, na qual “[...] a um homem é imposta uma tarefa que ele não buscou, mas da qual tem que se desincumbir, como a todos nós é dada a vida que temos de levar avante”718. O príncipe Hamlet é esse homem que está constantemente em busca do sentido de seu lugar no mundo e sente sobre si o peso de uma responsabilidade jogada sobre ele à sua revelia, algo que se revela nitidamente na fala da quinta cena do primeiro ato, após encontrar-se com o fantasma de seu pai: The time is out of joint. O cursèd spite, That ever I was born to set it right!719 Ainda assim, Northrop Frye (1999) considera que Hamlet seja “[...] uma tragédia desprovida de catarse, uma tragédia na qual tudo o que é nobre e heroico é sufocado sob brutais códigos de vingança, sob a traição e a espionagem e sob as consequências da fraqueza gerada pela repressão dos desejos”720. Evidentemente, o crítico canadense não pretendia diminuir a dimensão da obra com esses comentários, mas demonstrar que Hamlet, por não se conformar às amarras do gênero, “[...] é um estudo de sua personagem principal, é talvez o exemplo mais impressionante, na literatura, de um espírito titânico que se debate na prisão formada pelo que ele é”721. Para Bárbara Heliodora, o monólogo “ser ou não ser” é o momento em que Hamlet, 716 BLOOM, 2004, p. 44 HELIODORA, Bárbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 93 718 Ibid., p. 100 719 SHAKESPEARE, 1994, p. 1091 (Ato 1, Cena 5, verso 190) 720 FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. Org. Robert Sandler. Tradução e notas Simone Lopes de Mello. São Paulo: Edusp, 1999, p. 116 721 FRYE, 1999, p. 126 717 344 num estado puramente reflexivo, enfrenta sua finitude diante da vida e da morte, e neste caso, diz a escritora, o monólogo tem uma função específica, a de expressar o interior de um temperamento especial, que se encontra efetivamente isolado do ambiente em que vive, e com o qual está em conflito desde o início, agravando-se tanto o conflito quanto o isolamento com a revelação do assassinato, ainda no primeiro ato722. A centralidade deste monólogo para a peça, apenas sugerido por Heliodora, é abertamente descrito como tal tanto por Northrop Frye quanto por Harold Bloom em Shakespeare: the invention of the human. Para o crítico canadense, o monólogo, “[...] fundamentalmente organizado num fluxo de infinitivos, essa misteriosa parte do discurso que não é nem verbo nem substantivo, nem ação nem coisa” expressa o que chama de “[...] uma visão que encara a consciência como uma espécie de vácuo, um nada, no centro do ser”723. Harold Bloom vai ainda mais longe e assevera: “[...] este solilóquio é o centro de Hamlet, ao mesmo tempo tudo e nada, uma plenitude e um vazio jogando um contra o outro. É a base de tudo que ele dirá no Ato IV, e pode ser considerado seu discurso-de-morte adiantado, a prolepse de sua transcendência”724. Não surpreende, portanto, que o nosso poeta-tradutor, muito provavelmente impactado pelo Hamlet trazido à vida por Ernesto Rossi, sentisse a necessidade de apropriar-se dele recriando-o à sua maneira em nossa língua. É certo que Machado de Assis já conhecia o monólogo desde muito antes, visto que há referências não só à peça, mas à “dúvida de Hamlet” em sua obra ficcional desde a década de 1860, pelo menos, conforme a cronologia da presença de Shakespeare na sua obra elaborada por Adriana da Costa Teles725. É igualmente certo, contudo, que as referências a esta peça em particular se intensificam após a passagem de Rossi pelo Rio de Janeiro: são apenas dez menções à peça até 1870, das quais quatro se referem a Ofélia e à sua morte, contra vinte e quatro menções na década seguinte, após 1871, quase todas remetendo o leitor aos questionamentos mais filosóficos da tragédia. Northrop Frye lembra que Durante o século XIX e por um bom tempo no início do século XX, Hamlet foi considerada a peça principal e mais significativa de Shakespeare, porque dramatiza a preocupação fundamental da era do romantismo, ou seja, o conflito entre a consciência e a ação, a consciência como um recuo diante da ação, que poderia conduzir à vacuidade, mas que, por outro lado, era a única coisa que poderia impedir que a ação se tornasse completamente insensata726. 722 HELIODORA, 2001, p. 110 FRYE, Op. Cit., p. 127 724 BLOOM, 1998, p. 409, tradução nossa. No original: “this soliloquy is the center of Hamlet, at once everything and nothing, a fullness and an emptiness playing off against each other. It is the foundation for nearly everything he will say in Act IV, and can be called his death-speech-in-advance, the prolepsis of his transcendence””. 725 Cf. TELES, 2017, pp. 225-262 726 FRYE, 1999, p. 127 723 345 Observando a maneira como o nosso poeta-tradutor passa a se relacionar com a peça após sua tradução, fica-se com a impressão de que a recriação do texto permitiu ao escritor interiorizar de maneira bastante particular o que Frye chama de “conflito entre a consciência e a ação”, aproveitado por Machado de Assis à sua maneira tão canibalizadora quanto irreverente. Ainda assim, mesmo diante de uma força criadora tão pungente como Shakespeare, e de um texto cuja força expressiva é reconhecida unanimemente pela crítica, o tradutor Machado de Assis não se intimida e, principalmente, não se deixa apagar. Jean-Michel Massa avalia que “[...] o ‘Monólogo de Hamlet’ (III, 1) afasta-se sensivelmente do original e não está isento de afinidades com as traduções de Le Tourneur e de Delloye”727, conclusão a que chega depois de demonstrar que algumas expressões inglesas não encontram correspondente na versão de Machado de Assis. Após um breve cotejo, Massa conclui que a tonalidade da versão machadiana corresponde ao seu talento de escritor, ocultando a violência dramática – um resquício, talvez, de seu primeiro contato com Shakespeare através das adaptações de Durcis por intermédio de João Caetano –, tornando abstrato o que é mais concreto em Shakespeare, mas com a ressalva de que “[...] ganha em poesia o que perde em potência dramática”, medida em que a tradução “[...] não está deslocada em Ocidentais”728. Apesar de Massa sugerir que a versão de Machado possui afinidades com as traduções de Le Tourneur e Delloye, a verdade é que a tradução machadiana se afasta tanto dessas e de outras versões que chega a ser impossível determinar qual teria sido a versão utilizada por Machado de Assis, reforçando a nossa tese de que ele deve ter trabalhado com mais de uma ao mesmo tempo. Conforme Berman sugere no trajeto de análise que propõe, além das versões citadas por Massa, consultamos as versões com as traduções de Émile Montégut – que ele possuiu em sua biblioteca em edição anterior a esta tradução – e Laroche, e até mesmo a versão italiana utilizada por Ernesto Rossi, além, é claro, do texto em inglês de Shakespeare. Em face de tais fatos, o cotejo entre as versões nos levou naturalmente para outro caminho, um que realça as guinadas independentes no poema de Machado de Assis – é imperativo, agora, considerá-lo um original em si mesmo – justamente a partir das diferenças entre o seu poema e os demais. Diante da impossibilidade de determinar quais teriam sido os textos-fonte com alguma precisão, tomamos o texto em inglês de Shakespeare como parâmetro para apreciar a versão de Machado de Assis. 727 728 MASSA, 2008, p. 88 Ibid., p. 89 346 Vejamos o poema de Machado ao lado do texto de Shakespeare: Quadro comparativo 34 – Poema “To be or not to be” e versão inglesa do trecho do monólogo de Hamlet Ser ou não ser, eis a questão. Acaso É mais nobre a cerviz curvar aos golpes Da ultrajosa fortuna, ou já lutando Extenso mar vencer de acerbos males? Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas, Que as angústias extingue e à carne a herança Da nossa dor eternamente acaba, Sim, cabe ao homem suspirar por ele. Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe! Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono, Quando o lodo mortal despido houvermos, Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre. Essa a razão que os lutuosos dias Alonga do infortúnio. Quem do tempo Sofrer quisera ultrajes e castigos, Injúrias da opressão, baldões do orgulho, Do mal prezado amor choradas mágoas, Das leis a inércia, dos mandões a afronta, E o vão desdém que de rasteiras almas O paciente mérito recebe, Quem, se na ponta da despida lâmina Lhe acenara o descanso? Quem ao peso De uma vida de enfados e misérias Quereria gemer, se não sentira Terror de alguma não sabida cousa Que aguarda o homem para lá da morte, Esse eterno país misterioso Donde um viajor sequer há regressado? Este só pensamento enleia o homem; Este nos leva a suportar as dores Já sabidas de nós, em vez de abrirmos Caminho aos males que o futuro esconde, E a todos acovarda a consciência. Assim da reflexão à luz mortiça A viva cor da decisão desmaia; E o firme, essencial cometimento, Que esta ideia abalou, desvia o curso, Perde-se, até de ação perder o nome. To be or not to be, that is the question: Whether ‘tis nobler in the mind to suffer The slings and arrows of outrageous fortune, Or to take arms against a sea of troubles And by opposing end them. To die—to sleep, No more; and by a sleep to say we end The heart-ache and the thousand natural shocks That flesh is heir to: ‘tis a consummation Devoutly to be wish’d. To die, to sleep; To sleep, perchance to dream—ay, there’s the rub: For in that sleep of death what dreams may come, When we have shuffled off this mortal coil, Must give us pause—there’s the respect That makes calamity of so long life. For who would bear the whips and scorns of time, Th’oppressor’s wrong, the proud man’s contumely, The pangs of dispriz’d love, the law’s delay, The insolence of office, and the spurns That patient merit of th’unworthy takes, When he himself might his quietus make With a bare bodkin? Who would fardels bear, To grunt and sweat under a weary life, But that the dread of something after death, The undiscovere’d country, from whose bourn No traveller returns, puzzles the will, And makes us rather bear those ills we have Than fly to others that we know not of? Thus conscience does make cowards of us all, And thus the native hue of resolution Is sicklied o’er with the pale cast of thought, And enterprises of great pitch and moment With this regard their currents turn awry And lose the name of action. Fonte: Assis (1976); Shakespeare (1994) Ao tomarmos para análise os primeiros quatro versos do poema acima, entendemos que é preciso contradizer Massa quanto à abstração da poesia de Machado pois acreditamos que o poeta pinta uma cena muito mais concreta, física do que qualquer outro texto, inclusive o de Shakespeare: o Hamlet de Machado de Assis questiona se deve prostrar-se, cabisbaixo diante dos males ou lutar contra eles, numa pergunta quase retórica. Este Hamlet, por enquanto, não parece querer se dar por vencido, nem parece duvidar de que agir é o melhor caminho. O Hamlet de Shakespeare – bem como o dos franceses, a propósito – não pergunta se deve baixar cabeça ou lutar, mas se deve a mente sofrer “the slings and arrows of outrageous fortune”, ou seja, 347 suportar estoicamente o sofrimento no plano interior, intelectual ou, como escreve Shakespeare, “to take arms against a sea of troubles, / And by opposing end them?”. O Hamlet de Shakespeare se opõe aos problemas; o de Machado luta contra eles, mesmo que sejam um “extenso mar de acerbos males”, com adjetivos intensos e sem paralelo em nenhuma das versões consultadas. A fisicalidade do poema de Machado também é mais aparente nos versos [...] Ao perpétuo sono, Quando o lodo mortal despido houvermos, Que sonhos hão de vir? [...]729 O Hamlet de Machado de Assis fala em despir-se de um “lodo mortal”, nossa forma corpórea, remetendo inclusive à tradição judaico-cristã segundo a qual o homem teria vindo do pó, que aqui se torna “lodo”, exacerbando a ideia da decomposição e decadência física. No seu verso correspondente, Shakespeare fala em “shuffle off this mortal coil”, em que o substantivo central aqui – “coil” – significa “confusão”, “tumulto”730, remetendo-se claramente à necessidade de se livrar das atribulações da vida, o que em nada se parece com a intensa corporeidade da solução machadiana. Novamente, nenhum dos franceses sequer se aproxima da força imagética de Machado ou Shakespeare: Le Tourneur, por exemplo, fala em “nous serons soustraits au tumulte de cette vie?”; Montégut resolve por “nous avons échappé à cette tourmente de la vie mortelle?” enquanto Laroche escreve “nous aurons rejeté loin de nous une existence agitée?”. É curioso notar, por fim, como os cinco versos finais da tradução de Machado: Assim da reflexão à luz mortiça A viva cor da decisão desmaia; E o firme, essencial cometimento, Que esta ideia abalou, desvia o curso, Perde-se, até de ação perder o nome.731 correspondem exatamente aos mesmos cinco versos finais da versão shakespeariana: And thus the native hue of resolution Is sicklied o’er with the pale cast of thought, And enterprises of great pith and moment With this regard their currents turn awry, And lose the name of action. 732 729 ASSIS, 1976, p. 463 CRYSTAL; CRYSTAL, 2002, p. 82 731 ASSIS, 1976, p. 464 732 SHAKESPEARE, William. “Hamlet, Prince of Denmark”. In: Complete Works of William Shakespeare. HarperCollins: Glasgow, 1994, p. 1100 730 348 Obviamente, trata-se de uma semelhança que mais tem a ver com a posição final e a forma – já mencionamos anteriormente que o parentesco entre os decassílabos e o pentâmetro iâmbico foi sugerido e demonstrado por Péricles Eugênio da Silva Ramos – do que com o texto em si. Machado, como diversas outras vezes, retorna à ideia dos versos de partida e a partir dela cria outros versos que trazem um modo bastante próprio de se expressar, que não parece buscar no estrangeiro outra coisa além da ideia. Neste trecho final do monólogo, Hamlet está dizendo que, diante da morte, diante da perspectiva de ir para o “undiscover’d country”, aquele lugar desconhecido de onde nenhuma alma jamais voltou – a não ser a de seu pai, que retorna clamando por vingança – os homens acovardam-se, o que era resolução enfraquece-se, perde o rumo diante do medo da morte e deixa de ser ação. Esta é a mesma ideia que Machado de Assis expressa, mas com imagens que são pura invenção sua, como a “luz mortiça” e a “viva cor da decisão”, novamente acrescentando adjetivos que não existem no texto de Shakespeare ou em qualquer uma das versões francesas que consultamos. As “enterprises of great pith and moment” – “empresas de grande importância e consequência” – de Shakespeare se tornam o “firme, essencial cometimento” que em Machado é “abalado” por aquela ideia de morte, um acréscimo do tradutor que explicita uma sugestão do texto shakespeariano, e que por isso se perde e, consequentemente, o que seria ação deixa de existir. Esta tradução, feita cerca de trinta anos antes de sua última e definitiva publicação, é exemplar no que mostra um poeta que não curva a cerviz aos potentes golpes do texto shakespeariano, desvia o curso, mas não se perde nas caudalosas correntes do poema do bardo inglês. Ainda que aceitássemos a proposta de que poema de Machado de Assis perde em dramaticidade – o que não é o caso e de forma alguma se justifica, a não ser, talvez, pelo registro elevado de seu texto – como afirma Massa, esta perda seria sensata, justificável e, diríamos, talvez até mesmo proposital, visto que não se trata mais de versos da fala de uma personagem em uma peça teatral, mas versos de um poema filosófico sobre a finitude do próprio ser, seu lugar no mundo, suas dúvidas, sua impotência diante da morte, enfim, sobre o que significa ser humano. Na sua Poética do traduzir Henri Meschonnic apresenta uma reflexão que pode nos ajudar a pensar este poema-tradução de Machado de Assis: “[...] traduzir não é mais difícil, mas diferente. A tradução também será diferente. E se ela não confunde retórica e poética, métrica e ritmo, sentido e significância, rebatendo a alteridade na identidade, sim, a tradução será melhor, simplesmente porque, em ligação com um texto, ela funcionará como um texto. Ela não será 349 simplesmente conduzida por uma interpretação, mas será, por sua vez, portadora. Terá alcançado sua própria literalidade”733. Este não é mais o monólogo de Hamlet na primeira cena do terceiro ato da tragédia. É um poema das Ocidentais de Machado de Assis, é uma continuação, um desdobramento, um rebento do texto de William Shakespeare que porta seu próprio significado, que deve ser lido e apreciado em seus próprios termos e que teve, também ele, sua continuação, seu desdobramento, seus rebentos, na obra do poeta que o criou. Eugênio Gomes já o demonstrava em Machado de Assis: influências inglesas, onde nos lembra de que Hamlet foi a peça que mais impregnou Machado de Assis desde o começo, principalmente o monólogo To be or not to be que acabou por recriar734. “Esse solilóquio”, escreve Gomes, “tornou-se por bem dizer a matéria-prima da erudição a que Machado de Assis não se cansava de recorrer, especialmente em suas crônicas, ao comentar os acontecimentos da semana”735. Foi matéria-prima, por exemplo, do conto que leva o mesmo título de sua tradução do monólogo, “To be or not to be”, cuja moralidade, para Eugênio Gomes, “[...] baseia-se na ruminação filosófica de Hamlet, no sentido de que ‘o suicídio depende mais das impressões e disposições do momento, que da gravidade do mal’”736. De igual modo, Gomes acredita que há nas Memórias Póstumas de Brás Cubas “[...] um humour macabro, que tudo indica provir de uma larga absorção de Hamlet”737. Lembra, por exemplo, que se afirmou que “[...] Machado de Assis levara consigo um exemplar de Hamlet, quando foi convalescer de grave enfermidade em Nova Friburgo, por volta de 1878”738. O biógrafo Magalhães Júnior nota que foi durante tal enfermidade que “[...] Machado de Assis ditou à esposa alguns trechos do romance em que vinha trabalhando, Memórias Póstumas de Brás Cubas”739, corroborando a sugestão de que há certa assimilação de Hamlet no romance. A presença de Hamlet, e particularmente do monólogo “To be or not to be” na obra de Machado de Assis é tão vasta e rica que não daria, aqui, para entrar neste mérito, que em muito extrapola nosso escopo e espaço. Além do mais, há diversos estudos neste sentido, como os já citados de Eugênio Gomes e, muito recentemente, o livro de Adriana da Costa Teles, Machado de Assis & Shakespeare: intertextualidades, que já fizeram este trabalho. Basta, por hora, ter demonstrado que, mais uma vez, o trabalho de tradução na obra de um escritor não é sempre 733 MESCHONNIC, 2010, p. 6 GOMES, 1976, p. 17 735 Ibid. 736 Ibid., p. 16 737 Ibid., p. 24 738 Ibid. 739 MAGALHÃES JR., vol. 2, 2008, p. 326 734 350 um trabalho à parte, isolado, que nada tem a ver com sua ocupação principal, mas pode fazer parte e interagir organicamente com o restante de sua produção autoral. 10.4 “Seis dias em Cuiabá” O caso do poema “Seis dias em Cuiabá”, listado por Jean-Michel Massa e Eliane Ferreira como uma das traduções poéticas de Machado de Assis, é particularmente delicado e ao mesmo tempo interessante. Delicado porque Massa apresenta informações diferentes a respeito do texto e não apresenta todas as fontes consultadas, mas particularmente curioso por ser, talvez, o único texto cujo original é em português, traduzido para o alemão e posteriormente retraduzido do alemão para o português. A publicação do texto em questão se deu na Gazeta de Notícias no dia 1 de agosto de 1888 como parte de um breve artigo intitulado “Na gema do Brasil (À procura do Xingú)” que, por sua vez, fora traduzido do alemão por Capistrano de Abreu a partir do livro Durch Central-Brasilien (1884) do explorador e antropólogo alemão Karl von den Steinen, conforme demonstraremos posteriormente. Em Machado de Assis tradutor Massa escreve o seguinte a respeito deste poema: Um texto serve de pedra de toque para avaliar o conhecimento que Machado de Assis tinha do alemão em 1888. Por encomenda de Capistrano de Abreu, ele retraduziu em português uma décima brasileira, transcrita em alemão em uma obra científica do etnólogo Karl von den Steinen.740 Na sua tese complementar Massa afirma que a tradução fora encomenda de Capistrano de Abreu, sem indicar as fontes de tal informação. Quando recolhe o mesmo texto em Dispersos de Machado de Assis o que encontramos é um pouco diferente, deixando margens para dúvida a respeito da colaboração entre Capistrano de Abreu e Machado de Assis: A tradução é fiel e a poesia, divertida. Pode-se concluir que Machado conhecia o alemão? O texto é breve e, além disso, é bastante fácil. Além do mais, a tradução poderia ter sido feita em colaboração com Capistrano. A tarefa de Machado teria sido somente a de fazer os versos rimarem. O texto é pequeno e nos faltam provas conclusivas.741 Com o intuito de pelo menos fornecer fontes que comprovem ou refutem as afirmações de Massa, tentamos identificar algo que atestasse o papel de Machado de Assis neste texto. A publicação na Gazeta de Notícias mencionada acima, jornal de que Machado era colaborador, 740 MASSA, 2008, p. 51, grifo nosso MASSA, 1965, p. 562, grifo nosso, tradução nossa. No texto-fonte: “La traduction est fidèle et la poésie amusante. Peut-on conclure que Machado de Assis connaissait l’allemand ? Le texte est très bref, et, en autre, il est très facile. De plus, la traduction a peut-être été faite en collaboration avec Capistrano. La tâche de Machado de Assis n’était-elle pas principalement de faire rimer les vers. Le dossier est mince et nous manquons de preuves certaines.” 741 351 se dá sem nenhuma indicação de autoria do texto ou da tradução. Encontramos, todavia, um livro intitulado Do Rio de Janeiro a Cuyabá: notas de um naturalista (1922), de Herbert H. Smith que traz, em apêndice, “um capítulo de Carlos von den Steinen sobre a capital de Matto Grosso”. Este volume de Herbert Smith contém um prefácio assinado por Capistrano de Abreu, informando que Smith pediu à Gazeta de Notícias que publicasse suas impressões de viagens antes de voltar do sertão cuiabano, no que foi atendido742. Neste mesmo prefácio, Capistrano de Abreu escreve ainda: “A continuação do trabalho de Herbert Smith, que devia estudar a remota província, nunca veio. Para Cuiabá não figurar só na folha do rosto, juntam-se algumas páginas do livro de Carlos von den Steinen, também traduzidas por mim e impressas na Gazeta.”743 Acreditamos que seja esta a obra que Massa consultou porque nela encontramos, no apêndice traduzido e anotado por Capistrano de Abreu, o poema original e anônimo que fora traduzido para o alemão, possivelmente por von den Steinen, e publicado no livro Durch Central-Brasilien, e retraduzido por Machado de Assis para acompanhar a publicação de Capistrano de Abreu na Gazeta de Notícias, de acordo com a nota de rodapé que acompanha esta publicação: “Esta décima foi bondosamente retraduzida do alemão ao vernáculo por Machado de Assis, a pedido de quem escreve esta nota. Particularmente mão amiga indicou o original nas Datas Mattogrossenses de Estevão de Mendonça, Rio 1919”744. No livro indicado por Capistrano de Abreu, Datas Mato Grossenses de Estevão de Mendonça, há o relato completo do incidente: em 18 de março de 1884 uma figueira foi cortada criminosamente, não se sabe por quem, e o fato virou caso de polícia. A investigação, contudo, foi encerrada porque o caso logo se revestiu de um tom ridículo alimentado pela imprensa local, que publicava versinhos sobre o ocorrido. É de uma dessas publicações, anônima, que sai a décima traduzida por Machado de Assis. O texto original contém, na verdade, uma quadra que apresenta o mote e uma glosa com mais cinco estrofes, das quais a décima traduzida por Machado é a primeira. Estevão de Mendonça informa que o texto foi publicado com o pseudônimo “Um devoto de Sant’Anna” e diz que vários nomes – dentre os quais destaca Pedro Placido Peixoto Pitaluga, Custódio Alves Ferreira ou Flavio de Mattos – foram sugeridos, mas nunca se chegou a descobrir o autor dos tais versos745. 742 ABREU, Capistrano de. “Prefácio”. In: SMITH, Herbert H. Do Rio de Janeiro a Cuyabá: notas de um naturalista. São Paulo: Companhia Melhoramentos de S. Paulo, 1922, p. 5 743 ABREU In SMITH, 1922, p. 6 744 Ibid., p. 328 745 MENDONÇA, Estevão de. Datas Mato Grossenses. Vol. 1. Niterói: Escola Typ. Salesiana, 1919, p. 150-151 352 Figura 11 – Reprodução da primeira publicação de “Seis dias em Cuiabá” Fonte: Gazeta de Notícias (1888) 353 Capistrano de Abreu ainda nos fornece mais algumas informações a respeito desta publicação da tradução do livro de Steinen nos jornais: A tradução do livro do Dr. Carlos von den Steinen, Durch Central-Brasilien, Leipzig, 1886, começou a ser publicada sob o titulo “Na gema do Brasil” no numero 203 da Gazeta de Noticias de 22 de Julho de 1888 e prosseguiu nos números 204, 205, 206, 207, 208, 209. 210, 211, 212. 213, 214, 215, 217,218, 220, 222, 225, 231, 234, 254, 261, 264, 267. Foi suspensa no número 302, 29 de Outubro, pelos motivos expostos no prefácio. A parte vertida compreende as primeiras 115 páginas do original alemão.746 Assim, considerando que a tese complementar que deu origem a Machado de Assis tradutor é posterior à publicação de Dispersos de Machado de Assis, é possível que as dúvidas deixadas por Massa nos Dispersos tenham sido sanadas posteriormente durante a elaboração da sua tese de doutorado, provavelmente a partir do mesmo volume que consultamos, o que, todavia, não podemos assegurar. De todo modo, temos agora depoimento de primeira mão de que, de fato, este texto foi traduzido por Machado de Assis, embora seja mais um trabalho feito em favor a um amigo do que uma afinidade intelectual. Para fins de comparação e análise dos resultados obtidos por Machado de Assis, colocaremos os três textos lado a lado – a primeira versão, sua tradução para o alemão e a de Machado de Assis, respectivamente – aproveitando do poema original somente a décima traduzida por Steinen e Machado de Assis: Quadro comparativo 35 – Poema “Seis dias em Cuiabá”, versão alemã e a tradução de Machado de Assis Seis dias em Cuiabá Durou horrendo estampido, Na policia, sem sentidos, Desmaiou o Ali -Babá; Desde as margens do Aricá A's minas do Cabaçal, Houve um sussurro geral; Morreu gente em Poconé, Abalou o Lava-pé A queda de um vegetal. Sechs Tage lang hört Cuyabá Ein lantes, fürchterliches Klagen: Ohnmächtig ist er hingeschlagen Im Amte der Ali-Babá, Vom Ufer lern des Aricá Zum Bergwerk hin von Cabaçal Ertönt des Jammers Widerhall. Es starben Menschen in Poconé, Es schwankt der Thurm des Lava-Pe Das war des Baumes Tod und Fall. Seis dias em Cuyabá Ouviu-se um grande ruido, Desmaiou esmorecido Na chefia Ali -Babá. Lá da margem do Aricá, Dentro, a dentro da mineira, O clamor tomou carreira, Morreu gente em Poconé Tremeu terra em Lavapé Foi a queda da figueira. Fonte: Smith (1922); Steinen (1886); Smith (1922) A leitura do texto português original ao lado da tradução de Machado de Assis nos mostra que o sentido foi razoavelmente mantido. Trata-se, afinal, de um poemeto de débil força poética, parecendo mais um breve relato ou divertimento do que uma página de antologia. De imediato, percebemos que Machado escolhe como seu metro o verso de sete sílabas, o mesmo 746 ABREU in SMITH, 1922, p. 331 354 utilizado no texto anônimo, porém com uma cadência rítmica muito mais agradável, uma vez que há maior regularidade na distribuição dos acentos nos versos, atestando a superioridade do artífice: os dois primeiros com acento na segunda e sétima sílabas e todos os demais com acentos na terceira e sétima sílabas. Observamos também que os três textos seguem rigorosamente o mesmo esquema de rimas. Machado, muito fiel semanticamente a ambos os textos, afasta-se com clareza em somente um momento, quando o topônimo “minas do Cabaçal / Bergwerk hin von Cabaçal” desaparece e se torna mais genérico, “a dentro da mineira”. É interessante notar também que no primeiro e oitavo versos Machado utiliza exatamente as mesmas palavras do texto anônimo: “Seis dias em Cuiabá” para traduzir “Sechs Tage lang hört Cuyabá” e “Morreu gente em Poconé”, traduzindo “Es starben Menschen in Poconé”. Teria Machado conhecido o texto anônimo? Embora não acreditemos nesta hipótese, a dúvida surge uma vez que não só os versos citados são idênticos, mas também porque no texto alemão o verbo “hören” (“ouvir”) está no primeiro verso, mas deslocado para o segundo no poema de Machado, aproximando-o mais do texto anônimo do que do alemão. Acrescente-se a isso o fato de que no poema alemão o verbo está no presente e o seu sujeito é “Cuiabá”, enquanto no texto de Machado está no pretérito, assim como no texto anônimo, porém acompanhado de pronome apassivador. Por outro lado, sabendo do apreço de Machado pelo uso correto do idioma, é mais provável que o tradutor estivesse buscando coerência no uso dos tempos verbais e optasse por usar somente o pretérito por todo o texto, que é o que predomina no texto alemão, caso em que poderíamos atribuir a semelhança ao acaso. Quanto ao outro verso idêntico, “Morreu gente em Poconé”, é de se esperar que o resultado fosse este uma vez que o verso alemão se expressa nos mesmos termos, podendo ser traduzido literalmente por “Morreram pessoas” ou “Morreu gente em Poconé”, sendo que a última soa mais natural em nosso idioma e certamente teria soado assim para o tradutor, não sendo, portanto, o suficiente para justificar que Machado tivesse consultado o texto anônimo neste caso. Massa sugere que este texto era suficiente para “[...] atestar que a partir de 1888 Machado de Assis atingiu um nível honroso em alemão, que algumas liberdades no texto atestam”747, residindo aí a principal razão para darmos algum crédito a esta tradução: um atestado de conhecimento corrente do alemão. Cremos, todavia, ser difícil acreditar que Machado não teve nenhuma ajuda nesta tarefa em razão do curto período em que, sabidamente, se dedicou aos estudos do idioma. 747 MASSA, 2008, p. 52 355 O que se sabe com algum grau de certeza a respeito do conhecimento que Machado de Assis possa ter alcançado do alemão não nos permite afirmar categoricamente que o conhecimento que o escritor tinha da língua germânica fosse suficiente para traduzir um texto poético, por mais simples que este fosse. O biógrafo Raimundo Magalhães Júnior nos informa que, em 1883, Machado se une ao Clube Beethoven e é neste período que o escritor demonstra interesse pela língua de Goethe de forma que pudesse conviver melhor entre os associados alemães. Então se juntam alguns homens de letras com esta finalidade, que eram ensinados coletivamente sob a tutela do professor Carlos Jansen, a quem Machado prestara serviço no ano de 1882 como prefaciador de uma edição dos Contos das mil e uma noites. Capistrano de Abreu, um dos membros do grupo que durou de 1883 a 1884, recorda o fato em carta a José Veríssimo em 1908, relatando que Machado de Assis não só era membro do grupo, mas também que tivera bom aproveitamento. Fizeram parte deste grupo, além de Capistrano de Abreu e Machado de Assis, figuras como Raul Pompéia e Ferreira de Araújo, que era diretor da Gazeta de Notícias e que aprendeu muito bem o idioma, tendo inclusive aulas particulares com Jansen748. Entretanto, Magalhães Júnior nos informa que O catálogo da Exposição Machado de Assis, publicado no centenário de seu nascimento, declara que o primeiro exercício de seu caderno de alemão tinha a data de 16 de agosto de 1883 e o último de 10 de novembro do mesmo ano. Assim, ou Capistrano se enganou na data, ou Machado se afastou do grupo antes de completar três meses de estudos”749 Ficamos, portanto, em dúvida quanto ao conhecimento alcançado pelo escritor no idioma. Afinal, pouco menos de três meses de estudo não seriam suficientes para conhecê-lo bem a ponto de se aventurar a traduzir poemas. Devemos considerar, contudo, que é possível que Machado tenha continuado os estudos por conta própria como autodidata, ou com preceptores irregulares no idioma, e que o sabido convívio com falantes da língua germânica teria auxiliado na tarefa. Assim, é plausível que Machado, com a ajuda de dicionários ou mesmo de alguns amigos, fosse capaz de recriar em português textos em alemão. Magalhães Júnior nos informa ainda que o catálogo da Exposição Machado de Assis, em ocasião do centenário de seu nascimento em 1939, assinala o desenvolvimento do escritor naquele breve período em que, sabidamente, se dedicou ao estudo da língua de Goethe750. Fato é que a tradução de “Seis dias em Cuiabá” se dá cinco anos após o início dos estudos no idioma, em 1888, e seis anos mais tarde, em 1894, Machado fará a última tradução de poesia de que temos conhecimento, o Prólogo do Intermezzo de Heinrich Heine, a partir do alemão e, talvez, sem o intermédio de 748 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 3, p. 69 Ibid., p. 70 750 Ibid. 749 356 nenhuma outra tradução como fizera anteriormente nos casos das traduções de Schiller, do próprio Heine ou de “O casamento do diabo”. A tradução do Prólogo do Intermezzo seria, portanto, a mais provável evidência do nível de conhecimento que o escritor alcançou no idioma, embora também deixe dúvidas, como veremos adiante. 10.5 “O corvo”, uma desleitura machadiana “The Raven”, do poeta norte-americano Edgar Allan Poe, foi publicado pela primeira vez na edição de 29 de janeiro de 1845, no Evening Mirror de Nova Iorque, onde é apresentado como “o mais eficaz exemplo de ‘poesia escapista’ jamais publicado neste país”751. No mês seguinte é republicado pela American Review, desta vez sob o pseudônimo “Quales”752. Richard Kopley (2004), autor da primeira parte do ensaio “Two verse masterworks: ‘The Raven’ and ‘Ulalume’” incluído em The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe, descreve “The Raven” como um poema que, se por um lado não possui ainda os traços da poesia moderna, por outro traz “[...] uma mistura sedutora de acessibilidade e mistério que lhe garantem uma afeição duradoura”753. O autor ressalta ainda o uso de uma aliteração descrita como “[...] convincente, que efetivamente contribui para a qualidade embaladora e encantatória da linguagem”754, com referências à mitologia clássica, nas figuras de Palas e Plutão, e à Bíblia755. Nas dezoito estrofes que compõem o longo poema lemos a história de um encontro entre um jovem e um corvo que invade seus aposentos em um “bleak December”, narrado em primeira pessoa por alguém que perdeu a mulher que amara, Lenore, e que tenta em vão esquecê-la, entregando-se aos seus livros. A narrativa começa com a clássica abertura de tom fabular que nos lembra o “once upon a time” (“era uma vez”), mas que aqui se torna “Once upon a midnight dreary”, ditando o clima lúgubre que o leitor encontrará dali em diante: é à meia-noite, e o adjetivo “dreary” nos diz que aquela meia-noite foi como outras, tediosa, 751 WILLIS, N.P apud KOPLEY, Richards; HAYES, Kevin J. “Two verse masterworks: ‘The Raven’ and ‘Ulalume’”. In: HAYES, K. The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 195, tradução nossa. No original: “the most effective single example of ‘fugitive poetry’ ever published in this country”. 752 Ibid. 753 Ibid., p. 191, tradução nossa. No original: “an alluring mix of accessibility and mystery that earns it enduring affection” 754 Ibid., p. 193, tradução nossa. No original: “compelling, effectively contributing to the lulling, incantatory quality of the language” 755 Ibid., p. 194 357 repetitiva, deprimente, fria. Sabemos que o rapaz estava extremamente cansado das suas leituras (“pondered, weak and weary”) quando ouve alguém bater à porta. Na segunda estrofe o poeta nos diz que era dezembro – fim de um ciclo, portanto – e que ele esperava que viesse um amanhecer, metáfora para a renovação, enquanto buscava inutilmente alívio ou conforto nos seus livros (“vainly I had sought to borrow / From my books surcease of sorrow”) pela amada que se fora, Lenore, descrita como uma “rare and radiant maiden”. O arcaico adjetivo “maiden” importa consideravelmente por conotar que a jovem além de solteira, era também virgem. A estrofe seguinte narra o medo despertado pelo farfalhar das cortinas púrpuras, habilmente sugerido pelas aliterações sibilantes do verso “And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain”. O jovem então se dirige a quem acredita estar batendo à porta, se desculpa por ter cochilado e não ter atendido logo às suaves batidas mas, quando abre a porta, não encontra ninguém. O fato de não ter encontrado ninguém, e a certeza de ter ouvido as batidas, levam-no a pensar e cogitar possibilidades extremas, quando resolve sussurrar o nome de sua amada, acreditando que talvez fosse o espírito dela a bater. Ouve então um eco do nome “Lenore” e, de volta ao quarto, ouve mais uma vez as batidas, desta vez mais altas, e o jovem nos diz estar certo de que há algo na sua janela, o vento talvez, e resolve verificar. Na sétima estrofe o corvo, sempre grafado com maiúscula no poema, “a stately Raven of the saintly days of yore” (“um Corvo imponente dos santos dias de outrora”), aparece pela primeira vez, adentrando sem cerimônias o quarto quando o rapaz abre a janela. Pousa então sobre o busto da deusa Palas, criando claro contraste do branco do mármore com o negro da sua plumagem. Expressões como “stately”, “not the least obeisance” e “mien of lord or lady” são empregadas para nos indicar que se tratava de uma ave grande, imponente, com ares de superioridade. Novamente, as aliterações das consoantes fricativas do primeiro verso – “Open here I flung the shutter, with many a flird and flutter” – nos remetem diretamente ao som que as asas da ave fariam. A estrofe seguinte nos traz mais detalhes sobre a aparência do corvo e sua possível origem: sabemos que a crista da ave era “shorn and shaven”, ou seja, que ela havia sido cortada, indício de que não se tratava de um animal selvagem. Ainda assim o rapaz reconhece que o corvo não é um animal medroso – “art no craven” – e o porte grave e sisudo da ave faz com que o rapaz esqueça sua tristeza por um momento, tomado pela curiosidade, talvez. Quando pergunta o nome do corvo, recebe por resposta o famoso refrão: “Quoth the Raven, ‘Nevermore’” (“Disse o Corvo: Nunca mais”). Surpreso por descobrir que a ave era capaz de 358 falar, ainda que a fosse uma fala de pouca relevância – “Though its answer little meaning – little relevancy bore;” (“Embora sua resposta carregasse pouco significado, pouca relevância”) – o jovem afirma em seguida nunca ninguém ter visto algo parecido, um corvo chamado “Nevermore”. Na décima estrofe, o jovem diz que o corvo irá embora na manhã seguinte, assim como suas esperanças, e novamente recebe da ave a mesma resposta de antes: “Nevermore”. As duas estrofes subsequentes reforçam a surpresa e a curiosidade do jovem rapaz com a fala do corvo. Embora afirme ter certeza de que aquela fala do corvo era seu único repertório, aprendido com algum mestre – “‘Doubtless’, said I, ‘what it utters is its only stock and store, / Caught from some unhappy master [...]” (“‘Sem dúvida’, disse, ‘o que ele diz é tudo o que sabe, / Tomado de algum mestre infeliz”) – o rapaz ainda assim se vê encantado com a ave – “But the Raven still beguiling all my fancy into smiling” (“Mas o Corvo ainda me iludia e fazia sorrir”) – e resolve tentar descobrir o que a ave, agora descrita com uma série de adjetivos negativos como “grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous” (“sisudo/sombrio/sinistro, desajeitado, sujo e agourento”) queria dizer ao grasnar o “Nevermore”. Interessado em entender a ave, agora descrita como possuindo “fiery eyes” (“olhos ardentes”) que “burned [his] bosom’s core” (“queimavam o cerne do [seu] peito”), o jovem reclina-se sobre uma almofada. Sente, então, o ar ficar mais pesado com o perfume de um incenso que parecia trazido por um Serafim cujas pegadas acreditava ouvir. O jovem crê que os anjos lhe trouxeram nepentes – bebida com poder de acabar com a angústia – que o livrariam do sofrimento pela perda de Lenore, mas o corvo nega com o “nunca mais”. A partir daí o rapaz passa a dirigir-se diretamente ao corvo, a quem chama de “Profeta” e “coisa maligna”, e pergunta à ave se há o bálsamo em Galaad, se ele voltará a abraçar Lenore, novamente descrita como “sainted maiden” (“virgem santificada”) e pede que aquela seja a última conversa entre ele e o corvo, exige que a ave retorne às plagas da noite plutoniana, sem deixar para trás nenhuma pluma como símbolo das mentiras contadas. Solicita, por fim, que o corvo tire o bico de seu coração e saia de sua porta. A resposta para todas as súplicas é sempre a mesma, “nevermore” (“nunca mais”). Os versos finais reforçam que o corvo – cujos olhos, agora, “have all the seaming of a demon’s that is dreaming” (“tem a aparência de um demônio que está sonhando”) – permanece impassível, pousado sobre o branco busto de Palas sobre a porta do quarto. A sombra da ave é projetada no chão, e a esta sombra está presa a alma do jovem, e dela “nunca mais” se libertará. O desfecho do poema nos remete a um aspecto constante da literatura poesca: o homem é, em certa medida, responsável pelo seu próprio sofrimento e o mal, o “sobrenatural” nada 359 mais é do que a projeção de uma mente perturbada. Ainda assim, a narrativa, bem como suas consequências para o personagem, se mantém num plano muito particular, em que a dor expressada é fruto de uma perda pessoal, que mais tem a ver com o indivíduo que sofre do que com a condição humana em geral, por mais que a experiência possa ser uma experiência potencialmente comum a qualquer ser humano. Se em “The Raven” temos uma ave negra que surge da escuridão da noite que contrasta com a luz do quarto, pousando em um símbolo da sabedoria sobre o umbral entre os dois mundos, repetindo sempre a mesma fala, do ponto de vista racional teríamos apenas uma ave domesticada e perdida que busca abrigo e conforto. É o que Poe (2012) explica no seu famoso ensaio “A Filosofia da Composição”: “Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer apenas ‘Nunca mais’ e tendo escapado à vigilância de seu dono, é levado à meia-noite, em meio à violência de uma tempestade, a buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda uma luz a brilhar”756. Porém, o luto em que o rapaz se encontra e a vontade de reencontrar a Lenora falecida fazem com que ele imagine ser ela a bater à porta e, posteriormente, imagine ser o corvo um arauto do além, projetando nesta presença animal, que é ao mesmo tempo literal e simbólica, que vem de uma escuridão também ela, a um só tempo, literal e simbólica, toda a escuridão que reside dentro de si. Poe explica ainda: “O Corvo, interrogado, responde com seu costumeiro ‘Nunca mais’, frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante”757. Mais do que um eco, entendemos que há a projeção deste sofrimento sobre a ave, ao ver que ela fala, repetindo sempre a mesma frase, levando o rapaz a mergulhar numa espiral de autotortura que culmina em ver sua alma escura presa na sombra negra da ave, que “nunca mais” sairá dali. No ano seguinte à publicação de “The Raven”, Poe apresenta “A Filosofia da Composição”, ensaio em que explica a gênese do poema, supostamente composto “[...] com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático” em que nenhum aspecto da composição do poema “[...] se refere ao acaso ou à intuição”758. A considerar que o autor estaria falando a verdade – há dúvidas neste sentido, mas não vem ao caso –, estaríamos, portanto, diante de um poema puramente racional, em que nenhum aspecto é gratuito ou acidente de percurso, mas friamente calculado para atingir um objetivo específico. Isso já seria mais do que suficiente para traçar paralelos com a poesia de Machado de Assis, que Veríssimo disse ser uma 756 POE, Edgar A. “A Filosofia da Composição” (tradução de Milton Amado). In: O corvo e suas traduções (Org. Ivo Barroso). 3 ed. São Paulo: Leya, 2012, p. 60 757 POE, 2012, p. 61 758 POE, 2012, p. 50 360 poesia objetiva, intelectual, do pensamento. Tais reflexões, veremos adiante, nos ajudarão na tarefa de observar e entender o trabalho de tradução do poema. A extensão do poema é uma das questões trazidas à baila por Poe: para alcançar o efeito desejado, deveria ser possível ler um poema de uma assentada, já que “[...] a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido”, considerando conveniente para o seu propósito a extensão de cerca de cem versos – sem explicar como chegou ao quantitativo –, a que “The Raven” se conformaria perfeitamente bem com seus cento e oito versos759. Outro ponto é o fato de o tema da obra precisar ser apreciável por todos (ênfase do autor). A conclusão a que o autor diz chegar é a de que isso só seria alcançável com o emprego do tom correto, um tom que mais altamente manifestasse a Beleza, “[...] e todas as experiências tem mostrado que esse tom é o da tristeza”, porque a melancolia seria “[...] o mais legítimo de todos os tons poéticos”. Nesse mesmo sentido, o uso do refrão também se explica para a construção desse efeito, servindo de nota-chave em torno da qual giraria a estrutura do poema, utilizando da “força da monotonia” para “impressionar”: aderir “[...] à monotonia do som, porém continuamente variando na da ideia”. Para funcionar, faz-se necessária a divisão do poema em estâncias de maneira que o refrão, que “[...] devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada”760, servisse de fecho de cada uma delas. Poe explica a escolha do fonema prolongado da sílaba final de “nevermore”, e consequentemente a escolha desta palavra, por ser aquele fonema sonoro e sua conexão com o r por ser “a consoante mais aproveitável”761. Quanto à ave, diz o poeta que precisava de algo ou alguém que fosse capaz de repetir monotonamente o refrão já estabelecido em volta do o prolongado associado ao r. Atribuir a um ser humano este papel traria dificuldades, levando-o à escolha de uma “criatura não racional, capaz de falar”, pensando primeiramente num papagaio, que foi logo substituído pelo corvo, “[...] igualmente capaz de falar e infinitamente mais em relação com o tom pretendido” por ser uma “ave do mau agouro”762. Há, todavia, questões trazidas pela escolha do corvo que não são exploradas pelo poeta, mas que lançam ainda mais luz sobre a importância da ave. O pássaro entre nós chamado singularmente de “corvo”, em inglês pode ser tanto aquele conhecido como “crow” quanto o “raven” do poema de Poe. De fato, ambos pertencem ao mesmo genus Corvus, o que explica a 759 Ibid., p. 51 Ibid., p. 52-53 761 Ibid., p. 53-54 762 POE, 2012, p. 54 760 361 recorrente confusão na correta identificação das aves. Ainda assim, há singularidades que tornam o “raven” mais adequado ao poema: ele é maior, mais imponente do que o “crow”, com um bico mais longo e pronunciado. Além disso, o “raven” tem um grasnar mais profundo, grave e áspero que, certamente não por acaso, soa muito próximo do fonema /ɔ:/, um o prolongado junto a um /r/ um tanto gutural, presente em palavras-chave do poema, como o “nevermore” insistentemente repetido pelo corvo, além de encerrar em rima final quatro dos seis versos de cada uma das estrofes. Não se deve desconsiderar, além disso, que o nome “raven” contém, em si, o verbo “to rave”, que em inglês significa falar de forma incoerente, como um louco ou alguém que delira ou, ainda, dirigir-se a alguém com raiva e de maneira descontrolada, em interessante consonância com aspectos da narrativa poética. Quanto à forma, admitindo não haver nenhuma originalidade no metro ou no ritmo de “The Raven”, Poe explica ter empregado o ritmo trocaico e, no metro, o “octâmetro acatalético, alternando-se com o heptâmetro catalético, repetido no refrão do quinto verso, e terminando com um tetrâmetro catalético”763. A originalidade não estaria no ritmo ou no metro, mas na combinação de ambos da forma como o fez, “nada já havendo sido tentado que mesmo remotamente se aproximasse dessa combinação”764. Outro ponto de relevância e que foi tratado de maneiras bastante díspares entre os tradutores do poema está no busto da deusa grega em que pousa a ave. No poema em inglês, o poeta se refere à deusa pelo nome Pallas e, no ensaio, explica: Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva [“Pallas”], também para o efeito de contraste entre o mármore e a plumagem – sendo entendido que o busto foi absolutamente sugerido pelo pássaro – e escolhido o busto de Minerva, primeiro para combinar mais com a erudição do amante e, em seguida, pela sonoridade da própria palavra Minerva765. Ora, no verso em inglês em que a cena ocorre lemos: “And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting / On the pallid bust of Pallas just above my chamber door”. É obvio, portanto, que a sonoridade a que Poe se refere no ensaio tem a ver com as aliterações das consoantes oclusivas bilabiais nos versos que abrem a estrofe final, algo que a escolha por “Minerva” – versão romana da deusa grega Palas Atena – de Milton Amado, tradutor deste ensaio e também do poema, não guarda. Se no poema a escolha por Minerva pode ser 763 Ibid., p. 57 Ibid., p. 58 765 Ibid., p. 59 764 362 justificável a depender de como procede o tradutor, no ensaio a defesa fica um pouco mais complicada. Em certa medida, esta reflexão exposta em “A Filosofia da Composição” reflete o trabalho do tradutor que, se pautado pela lógica da reprodução e do decalque, se vê diante do problema lógico de encontrar artifícios equivalentes aos empregados por Poe, sem ultrapassálo ou ser-lhe inferior. 12.1.1 Edgar Allan Poe no Brasil do século XIX e “O corvo” de Machado de Assis Antes de tratarmos diretamente dos desdobramentos trazidos pela tradução que Machado de Assis fez de “The Raven” de Poe, precisamos, conforme sugerido no trajeto de análise proposto por Berman, estar cercados de informações que contextualizem o momento em que surge a tradução e sua recepção. Nossas investigações neste sentido nos mostraram que no Brasil as primeiras menções a Edgar Allan Poe nos jornais aparecem já na década de 1850, após a morte do autorlviii, principalmente no Rio de Janeiro. Do que pudemos constatar, seu nome é citado pela primeira vez em 1853, no Diário do Rio de Janeiro766. Em 1856 é publicada n’O Cearense (CE) uma tradução do conto “A verdade do que se passou no caso do Sr. Valdemar”, assinada por J.S.767. Em 1857, na seção “Correspondência de Paris” do Correio Mercantil, um cronista, ao comentar um vaudeville de Milesville, faz uma breve comparação com a obra de Edgar Poe e dá indícios do estatuto do poeta em nossas terras: “A obra é tanto mais desagradável, quanto lembra uma das mais engenhosas composições daquele americano bêbado e doudo que morreu ultimamente, e cuja reputação está quasi a firmar-se entre nós, Edgar Poe”768. Raimundo Magalhães Júnior situa o ano de 1883 – ano da publicação da tradução de “O corvo” – como um ano literariamente fecundo para Machado de Assis: é publicado um dos seus melhores contos, “A igreja do diabo”, além de vários outros contos que saíram nas páginas da Gazeta de Notícias, A Estação e na Gazeta Literária769. Em vista das várias publicações e 766 Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 jan. 1853, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/38030 767 POE, Edgar A. “A verdade do que se passou no caso do Sr. Valdemar”. Trad. J.S. O Cearense, Fortaleza, 12 ago. 1856, p. 3-4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/709506/3777 768 Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 18 abril 1857, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/217280/13180. 769 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 3, p. 55 363 comentários que esta tradução recebeu quando Machado ainda estava vivo e, mais ainda, após sua morte, parece certo tratar-se de sua mais famosa e comentada tradução, tanto pelo prestígio de Poe, quanto pelo nome que Machado de Assis construiu para si. Sabe-se que a primeira publicação de “O corvo” aconteceu em 28 de fevereiro de 1883 no jornal A Estação, sendo reproduzida posteriormente no Almanaque Vassourense e na Gazeta de Notícias, ambos em 1888, e novamente na Gazeta de Notícias em 7 de março de 1892, antes de ser finalmente incluída nas Ocidentais, das Poesias completas de 1901. Machado de Assis foi, com razoável grau de certeza, o primeiro tradutor de “O corvo” no Brasil. Não se sabe, contudo, a data exata da composição do trabalho, nem quando Machado de Assis teria tomado conhecimento ou lido o poema pela primeira vez. A edição crítica das Poesias completas informa, a propósito, que as duas primeiras publicações divergem em muito da quarta publicação e da versão definitiva incluída em Ocidentais, além de divergirem ligeiramente entre si. As diferentes versões dessa tradução nos mostram o quanto, no decorrer de quase duas décadas e até o fim de sua vida, o tradutor voltou à sua oficina para lapidar pacientemente o texto até que chegasse à última versão. Quando compõe e publica, em 1883, sua versão de “The Raven”, reapresentando-a posteriormente em Ocidentais, Machado de Assis introduz aos leitores um poema novo, que adota caminhos bastante pessoais em relação à versão em inglês. Muito já se escreveu a respeito da fonte de que Machado de Assis teria se servido para compor seu poema, sendo sugerido inclusive que ele teria trabalhado a partir da versão francesa de Charles Baudelaire770. Não entraremos no mérito da questão porque, além de não ser possível determinar definitivamente uma coisa ou outra, é muito mais plausível que o tradutor tenha trabalhando com mais de uma versão, em mais de um idioma, algo que não seria sem precedentes. Isto fica ainda mais patente na tradução de “O corvo”, considerando que a versão de Baudelaire é em prosa, mas Machado escolhe uma forma poética que mantém íntimas relações com a do poema em inglês. Abaixo, “O corvo” de Machado de Assis ao lado do “The Raven” de Poe: Quadro comparativo 36 – “O corvo” e “The Raven” O corvo The Raven Em certo dia, à hora, à hora Da meia-noite que apavora, Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, Ao pé de muita lauda antiga, De uma velha doutrina, agora morta, Ia pensando, quando ouvi à porta Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, Over many a quaint and curious volume of forgotten lore— While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of some one gently rapping, rapping at my chamber door. “’Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door— Only this and nothing more.” 770 Cf. ABRAMO, Cláudio Weber. “Uma infelicidade machadiana”. In: O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011, pp 76-84. 364 Do meu quarto um soar devagarinho, E disse estas palavras tais: “É alguém que me bate à porta de mansinho; “Há de ser isso e nada mais.” Ah! bem me lembro! bem me lembro! Era no glacial dezembro; Cada brasa do lar sobre o chão refletia A sua última agonia. Eu, ansioso pelo sol, buscava Sacar daqueles livros que estudava Repouso (em vão!) à dor esmagadora Destas saudades imortais Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora, E que ninguém chamará mais. E o rumor triste, vago, brando Das cortinas ia acordando Dentro em meu coração um rumor não sabido, Nunca por ele padecido. Enfim, por aplacá-lo aqui no peito, Levantei-me de pronto, e: “Com efeito, (Disse) é visita amiga e retardada “Que bate a estas horas tais. “É visita que pede à minha porta entrada: Há de ser isso e nada mais.” Minh’alma então sentiu-se forte; Não mais vacilo e desta sorte Falo: “Imploro de vós, — ou senhor ou senhora, “Me desculpeis tanta demora. “Mas como eu, precisando de descanso, “Já cochilava, e tão de manso e manso “Batestes, não fui logo, prestemente, “Certificar-me que aí estais.” Disse; a porta escancaro, acho a noite somente, Somente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, Que me amedronta, que me assombra, E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, Mas o silêncio amplo e calado, Calado fica; a quietação quieta; Só tu, palavra única e dileta, Lenora, tu, como um suspiro escasso, Da minha triste boca sais; E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; Foi isso apenas, nada mais. Entro coa alma incendiada. Logo depois outra pancada Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: “Seguramente, há na janela “Alguma cousa que sussurra. Abramos, “Eia, fora o temor, eia, vejamos “A explicação do caso misterioso “Dessas duas pancadas tais. “Devolvamos a paz ao coração medroso, “Obra do vento e nada mais." Abro a janela, e de repente, Vejo tumultuosamente Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. Não despendeu em cortesias Um minuto, um instante. Tinha o aspecto De um lord ou de uma lady. E pronto e reto, Movendo no ar as suas negras alas, Ah, distinctly I remember it was in the bleak December; And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor. Eagerly I wished the morrow;—vainly I had sought to borrow From my books surcease of sorrow—sorrow for the lost Lenore— For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore— Nameless here for evermore. And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain Thrilled me—filled me with fantastic terrors never felt before; So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating “’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door— Some late visitor entreating entrance at my chamber door;— This it is and nothing more.” Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer, “Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore; But the fact is I was napping, and so gently you came rapping, And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door, That I scarce was sure I heard you”—here I opened wide the door;— Darkness there and nothing more. Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, [fearing, Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before; But the silence was unbroken, and the stillness gave no token, And the only word there spoken was the whispered word, “Lenore?” This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!”— Merely this and nothing more. Back into the chamber turning, all my soul within me burning, Soon again I heard a tapping somewhat louder than before. “Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice; Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore— Let my heart be still a moment and this mystery explore;— ’Tis the wind and nothing more!” Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter, In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore; Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he; But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door— Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door— Perched, and sat, and nothing more. Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum of the countenance it wore, “Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no [craven, Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore— Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!” Quoth the Raven “Nevermore.” Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly, Though its answer little meaning—little relevancy bore; For we cannot help agreeing that no living human being Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door— Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door, With such name as “Nevermore.” But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only That one word, as if his soul in that one word he did outpour. Nothing farther then he uttered—not a feather then he fluttered— Till I scarcely more than muttered “Other friends have flown [before— On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before.” Then the bird said “Nevermore.” 365 Acima voa dos portais, Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas; Trepado fica, e nada mais. Diante da ave feia e escura, Naquela rígida postura, Com o gesto severo, — o triste pensamento Sorriu-me ali por um momento, E eu disse: “O tu que das noturnas plagas “Vens, embora a cabeça nua tragas, “Sem topete, não és ave medrosa, Dize os teus nomes senhoriais; Como te chamas tu na grande noite umbrosa?” E o corvo disse: “Nunca mais.” Vendo que o pássaro entendia A pergunta que lhe eu fazia, Fico atônito, embora a resposta que dera Dificilmente lha entendera. Na verdade, jamais homem há visto Cousa na terra semelhante a isto: Uma ave negra, friamente posta Num busto, acima dos portais, Ouvir uma pergunta e dizer em resposta Que este é seu nome: “Nunca mais.” No entanto, o corvo solitário Não teve outro vocabulário, Como se essa palavra escassa que ali disse Toda a sua alma resumisse. Nenhuma outra proferiu, nenhuma, Não chegou a mexer uma só pluma, Até que eu murmurei: “Perdi outrora “Tantos amigos tão leais! Perderei também este em regressando a aurora.” E o corvo disse: “Nunca mais!” Estremeço. A resposta ouvida É tão exata! é tão cabida! “Certamente, digo eu, essa é toda a ciência “Que ele trouxe da convivência “De algum mestre infeliz e acabrunhado “Que o implacável destino há castigado “Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga, “Que dos seus cantos usuais Só lhe ficou, na amarga e última cantiga, “Esse estribilho: “Nunca mais.” Segunda vez, nesse momento, Sorriu-me o triste pensamento; Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; E mergulhando no veludo Da poltrona que eu mesmo ali trouxera Achar procuro a lúgubre quimera, A alma, o sentido, o pávido segredo Daquelas sílabas fatais, Entender o que quis dizer a ave do medo Grasnando a frase: – Nunca mais. Assim posto, devaneando, Meditando, conjeturando, Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava, Sentia o olhar que me abrasava. Conjeturando fui, tranquilo a gosto, Com a cabeça no macio encosto Onde os raios da lâmpada caíam, Onde as tranças angelicais Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken, “Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster Followed fast and followed faster till his songs one burden bore— Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore Of ‘Never—nevermore’.” But the Raven still beguiling all my fancy into smiling, Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door; Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore— What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore Meant in croaking “Nevermore.” This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core; This and more I sat divining, with my head at ease reclining On the cushion’s velvet lining that the lamp-light gloated o’er, But whose velvet-violet lining with the lamp-light gloating o’er, She shall press, ah, nevermore! Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen [censer Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor. “Wretch,” I cried, “thy God hath lent thee—by these angels he hath [sent thee Respite—respite and nepenthe from thy memories of Lenore; Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!” Quoth the Raven “Nevermore.” “Prophet!” said I, “thing of evil!—prophet still, if bird or devil!— Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore, Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted— On this home by Horror haunted—tell me truly, I implore— Is there—is there balm in Gilead?—tell me—tell me, I implore!” Quoth the Raven “Nevermore.” “Prophet!” said I, “thing of evil!—prophet still, if bird or devil! By that Heaven that bends above us—by that God we both adore— Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore— Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.” Quoth the Raven “Nevermore.” “Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked, [upstarting— “Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken! Leave my loneliness unbroken!—quit the bust above my door! Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!” Quoth the Raven “Nevermore.” And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming, And the lamp-light o’er him streaming throws his shadow on the [floor; And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted—nevermore! 366 De outra cabeça outrora ali se desparziam, E agora não se esparzem mais. Supus então que o ar, mais denso, Todo se enchia de um incenso, Obra de serafins que, pelo chão roçando Do quarto, estavam meneando Um ligeiro turíbulo invisível; E eu exclamei então: “Um Deus sensível “Manda repouso à dor que te devora “Destas saudades imortais. “Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora”. E o corvo disse: “Nunca mais.” “Profeta, ou o que quer que sejas! “Ave ou demônio que negrejas! “Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno “Onde reside o mal eterno, “Ou simplesmente náufrago escapado “Venhas do temporal que te há lançado “Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo “Tem os seus lares triunfais, “Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?" E o corvo disse: “Nunca mais”. “Profeta, ou o que quer que sejas! “Ave ou demônio que negrejas! “Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! “Por esse céu que além se estende, “Pelo Deus que ambos adoramos, fala, “Dize a esta alma se é dado inda escutá-la “No éden celeste a virgem que ela chora “Nestes retiros sepulcrais, “Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!” E o corvo disse: “Nunca mais.” “Ave ou demônio que negrejas! “Profeta, ou o que quer que sejas! “Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa! “Regressa ao temporal, regressa À tua noite, deixa-me comigo. “Vai-te, não fique no meu casto abrigo “Pluma que lembre essa mentira tua. Tira-me ao peito essas fatais Garras que abrindo vão a minha dor já crua." E o corvo disse: “Nunca mais.” E o corvo aí fica; ei-lo trepado No branco mármore lavrado Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um demônio sonhando. A luz caída Do lampião sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e, fora Daquelas linhas funerais Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais! Fonte: Assis (1976); Poe (1975) Jean Michel Massa, primeiramente, e depois Claudio Abramo demonstraram haver diversas aproximações semânticas entre as traduções de Machado de Assis e a tradução em prosa de Baudelaire. Sem negar essas evidências, acreditamos que há indícios, no plano formal, 367 de que Machado de Assis pode ter também trabalhado com o poema em sua língua original, mais uma vez indicando que o poeta-tradutor estava interessado em ter acesso ao poema por outras vias, quando possível. Anteriormente, vimos que Poe emprega rimas internas no primeiro e terceiro versos, por exemplo. Vimos também o emprego de um metro longo, o octâmetro acatalético, com ritmo trocaico. O que se observa na tradução de Machado de Assis é um desmembramento do metro longo de Poe em seus dois hemistíquios, que se tornam, no caso do primeiro verso, por exemplo, os dois primeiros octossílabos na tradução machadiana. Esses dados reforçam a nossa tese, conforme já observado anteriormente, de que para ter o acesso mais completo possível ao texto Machado de Assis, quando necessário e possível, lançava mão de diferentes versões do mesmo texto para a partir desse conjunto de fragmentos elaborar algo novo. Embora possua o mesmo número de estrofes, na tradução brasileira as estrofes são mais longas, com dez versos que seguem o esquema métrico 8-8-12-8-10-10-10-8-12-8. À primeira vista Machado estaria em desacordo com um dos princípios postulados por Poe em “A Filosofia da Composição”, segundo o qual a extensão ideal do poema seria de cerca de cem versos. Ao empregar estrofes de dez versos cada, sua tradução acaba por ter cento e oitenta versos. Mas se o número de versos é consideravelmente maior, a extensão do poema na tradução é praticamente a mesma, sendo até mesmo possível reorganizar os versos de Machado de forma que, visualmente, a sua estrofe fique parecida com a de Poe como, por exemplo, na estrofe final: And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming, And the lamp-light o’er him streaming throws his shadow on the floor; And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted—nevermore!771 E o corvo aí fica; ei-lo trepado / No branco mármore lavrado Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. / Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um demônio sonhando. A luz caída / Do lampião sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e, fora / Daquelas linhas funerais Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais!772 Sob esta ótica, portanto, a extensão da tradução de Machado de Assis não está em desacordo com o proposto por Poe. Também não estaria se considerarmos os outros pontos levantados por Poe em seu ensaio, como o emprego de um tom melancólico e de um refrão que 771 772 POE, Edgar A. Complete tales & poems. New York: Vintage Books, 1975, p. 946 ASSIS, 1976, p. 458-459 368 expressasse a força da monotonia, a utilização do corvo como uma criatura não-racional capaz de falar e todos os significados que a acompanham, o contraste entre o negro da ave e a brancura do busto de Palas, assim como a sonoridade do nome da deusa grega ou, até mesmo, a originalidade na combinação de metro e ritmo, já que a estrofe construída por Machado apresenta uma configuração bastante peculiar feita a partir de elementos comuns na tradição poética de língua portuguesa. Machado de Assis seguramente privilegiou um ritmo diferente em sua tradução, menos lento e arrastado do que o verso inglês, preferindo que a narrativa versificada soasse mais ágil, contrastando a concisão do octossílabo com o clássico alexandrino, algo a que o emprego misto de metros de oito, dez e doze sílabas se prestou adequadamente. A leitura da versão de Machado de Assis é fluida, natural, e certamente menos monótona do que a versão inglesa. É certo que, no plano semântico, há omissões em relação ao texto de Poe, mas é igualmente certo que, desde a forma até os caminhos escolhidos para elaborar a narrativa, Machado não quis que sua versão fosse mera reprodução do conteúdo ou da forma da fonte, mas um poema criado a partir daquele outro. Há, pelo contrário, uma busca por recursos poéticos, equivalentes ou não, que deem ao seu texto o caráter de poesia que não se pauta pela lógica de uma “secundidade” tradutória. Talvez resida aí a explicação para a crítica ter recepcionado este texto de maneira tão díspar. 12.1.2 Vertentes da recepção crítica de “O corvo” Ao contrário de quase todas as outras traduções de Machado de Assis, a crítica tem sido unânime na atenção dada a esta. Em que pese as dezenas de tradutores que trouxeram “O corvo” para a língua portuguesa, permanece o fato de que quase não se fala do poema de Edgar Allan Poe em português sem se mencionar o nome de Machado de Assis. Temos, de um lado, comentários como os de Mattoso Câmara Jr. e Sérgio Bellei, que observaram o trabalho do tradutor a partir de um viés positivo; de outro, há nomes igualmente importantes como Haroldo de Campos e Ivo Barroso, que a consideraram uma versão malograda, opinião que parece ser a mais corrente. Esta é a avaliação defendida por Cláudio Weber Abramo, autor de um livro dedicado a comentar o poema e suas traduções. Júlio Cortázar (1993), comentando a má disposição de Aldous Huxley para com Edgar Allan Poe, propõe uma reflexão que se encaixa perfeitamente bem aos detratores da tradução de Machado de Assis: “[...] cabe perguntar porque esses poemas estão presentes em sua 369 memória e na sua irritação, quando outros de impecável fatura dormem esquecidos por ele e por todos nós”773. É o que nos perguntamos aqui, porque este é o caso das traduções de “The Raven”: há muitas que agradariam mais os críticos que se pautam em conceitos bastante pessoais de “tradução” além da de Machado de Assis e, no entanto, é à dele que invariavelmente voltam. Considerando a extensa fortuna crítica já dedicada a esta tradução de Machado de Assis em seus mais de 100 anos de circulação, dizer o mesmo com outras palavras examinando as minúcias de seu trabalho seria menos proveitoso do que refletir sobre os conceitos de tradução poética que permeiam esses estudos e como isso pode nos ajudar a pensar Machado de Assis como tradutor e seu projeto de tradução. Portanto, em vez de analisar e comentar diretamente os pormenores da tradução de Machado de Assis, confrontaremos os comentários e as análises de Cláudio Weber Abramo, Ivo Barroso e Haroldo de Campos, que adotam um viés mais negativo, com as opiniões de Jean-Michel Massa, que se coloca em posição ambígua, ainda preso a uma visão tradicional de tradução embora reconhecendo a força poética criativa de Machado de Assis, e as de Mattoso Câmara Jr. e Sérgio Bellei, que tomam caminhos mais positivos. Tentaremos, assim, demonstrar que as diferenças de juízo surgem quando se parte de a prioris distintos quanto ao que é tradução de poesia e, principalmente, de concepções de rígida normatização da tradução, desconsiderando o horizonte dentro do qual o tradutor trabalhou, o que pode ofuscar todo um projeto de tradução com o qual há muito a aprender. Apesar da contribuição, em muitos aspectos valiosíssima, de Cláudio Weber Abramo em O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe, a má vontade – não há como chamar por outro nome – do crítico para com os tradutores estudados acaba por encobrir o mérito da obra. Abramo está absolutamente comprometido com o aspecto semântico e narrativo do poema, mesmo que em detrimento do poético, deixando o leitor com a impressão de que todo tradutor falhou em sua tarefa se não foi capaz de reproduzir integral e fielmente – seja lá o que isso queira dizer para o autor – todas as nuances semânticas do poema, conforme estipulado pelo crítico. Fica evidente, por exemplo, o quanto o viés narrativo em detrimento do poético é importante para o crítico quando ele defende a tradução em prosa de Baudelaire afirmando que o tradutor francês “[...] compreendeu que a força do poema reside em sua 773 CORTÁZAR, Júlio. “Poe: o poeta, o narrador, o crítico”. In: Valise de Cronópio. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 104 370 narrativa” 774, mesmo com os “erros” que seriam “consertados” posteriormente pela versão, também em prosa, de Mallarmé. Abramo dedica todo um capítulo exclusivamente à tradução de Machado, chamado por ele de “Uma infelicidade machadiana”. Pelo título já se sabe o que esperar: para o crítico, a tradução de Machado é “infeliz” porque é semanticamente “infiel” ao texto de Poe, por causa da “[...] ocorrência dos mesmos erros, das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas palavras nos mesmíssimos lugares na tradução de um e de outro [Baudelaire]”775 e porque “[...] sacrifica um acompanhamento pari passu da sequência textual em nome da manutenção dos sentidos mais gerais do conjunto e de cada bloco”776. O que se lê dali em diante neste capítulo é um apanhado minucioso dos “erros” de Machado de Assis, principalmente aqueles oriundos da leitura da tradução de Baudelaire, sem considerar em momento algum os efeitos poéticos evocados pela versão machadiana. Sua visão a respeito do que deveria ser a tradução poética fica ainda mais evidente na versão preliminar do capítulo do livro dedicado à tradução de Machado de Assis, publicada, com o mesmo título, no suplemento Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 1999. Claramente incomodado com o que chama de “[...] gravíssimos problemas semânticos em que incorrem [os tradutores]”777, Abramo (1999) ataca também a tradução de Fernando Pessoa, que diz ser “[...] a que mais mutila e distorce o original”778. A origem do problema estaria igualmente na versão de Baudelaire, cujos erros “[...] foram responsáveis pela multiplicação de equívocos em uma grande quantidade de versões do poema, em todas as línguas neolatinas”779. Mas a culpa não seria só do tradutor francês, mas inclusive do próprio Poe, que “praticamente silencia” quanto à narrativa do poema em “A Filosofia da Composição”, o que para Abramo é um “estímulo à irresponsabilidade”. Para Abramo, Essa concentração nos aspectos formais da composição poética contribuiu de forma não pouco relevante para uma certa tendência acadêmica que prefere apresentar e analisar a poesia como um simples ajuntamento de sons, deixando para um longínquo segundo plano questões relacionadas ao significado. A filosofia da composição comparece infalivelmente entre as fontes mencionadas como embasamento “teórico” por adeptos dessa concepção780. 774 ABRAMO, Cláudio Weber. O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011, p. 76 775 Ibid. 776 Ibid., p. 77 777 ABRAMO, Cláudio Weber. “Uma infelicidade machadiana”. In: Leitura. Ano 17, nº 5, setembro de 1999, p. 36. 778 ABRAMO, 1999, p. 37 779 ABRAMO, 1999, p. 37 780 Ibid., p. 37-38 371 Isso explica a crítica de Abramo tanto a Joaquim Mattoso Câmara Júnior quanto a Haroldo de Campos e Ivo Barroso, embora entrincheirados em posições diversas, quase opostas, por observarem as traduções de “O corvo” pelo plano estético e dando pouca importância ao semântico. Obviamente, um crítico tão preocupado com o aspecto semântico da tradução de poesia encontrará em quase toda tradução que se queira poética farto pasto para suas reclamações. Não surpreendem, portanto, as afirmações abaixo: Como a versão de poema é considerada o non plus ultra da atividade de tradução, esse gênero de consideração acaba por estimular a irresponsabilidade de tradutores de qualquer tipo de texto. Boa parte deles assume implicitamente (e, por vezes, abertamente) que seu compromisso fundamental é com eles próprios, ficando a fidelidade quanto ao original como incidentalidade.781 É patente o quanto Abramo, ao privilegiar o aspecto semântico da tradução poética, está claramente compromissado com uma lógica de tradução servilmente reprodutora sobretudo do sentido, que não pensa o fazer poético nem considera a tradução uma atividade pensante da própria poesia, que desconsidera qualquer tipo de projeto de tradução inscrito numa poética mais ampla, mesmo que este projeto seja o de ajudar a formar uma identidade literária nacional ou seja um projeto vanguardista que enxerga na tradução um espaço privilegiado para forçar as barreiras estéticas a que uma literatura esteja presa ou a que esteja comodamente acostumada. Jean-Michel Massa, por sua vez, é capaz de enxergar as qualidades e a relevância do trabalho do poeta carioca, embora também tenha apontado Baudelaire como a fonte mais que provável para a versão que Machado de Assis fez do poema de Poe782, adotando um posicionamento ainda apegado a uma visão bastante tradicional da tarefa tradutória. Primeiramente, Massa identifica em “O corvo” um desejo similar àquele que engendrou a tradução de “A Cantiga do Rosto-Branco”: o de ampliar os horizontes da poesia nacional a partir de elementos estrangeiros. Depois, passa a identificar as afinidades entre “O corvo” e o “Corbeau” de Baudelaire, com diversos exemplos que justificariam a tese de que Machado de Assis utilizou o texto de Baudelaire. Curiosamente, contudo, Massa diz que não encontrou “[...] nenhuma correspondência evidente com ‘The raven’”783. Só poderia estar se referindo ao plano semântico, pois se Machado reproduz, ou mesmo decalca e não extrapola os desvios semânticos de Baudelaire, no plano formal é possível sugerir que Machado tomou conhecimento das rimas internas do poema no seu idioma original para que pudesse torná-las rimas finais em seu poema, 781 Ibid., p. 38 MASSA, 2008, p. 91 783 MASSA, 2008, p. 91 782 372 visto que a tradução em prosa de Baudelaire – supondo que ele também trabalhou a partir dela – não continha tal informação estética. Se tomarmos, por exemplo, os dois primeiros versos de qualquer uma das estrofes de “O corvo” e os compararmos com o trecho correspondente de “The Raven” e do “Le Corbeau” de Baudelaire veremos claramente o quanto as rimas finais de Machado de Assis correspondem às rimas internas do verso de Poe: Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary (Poe) Em certo dia, à hora, à hora / Da meia noite que apavora (Machado de Assis) Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je métiais, faible et fatigué (Baudelaire) Observando os versos acima, fica difícil acreditar que semelhança entre as rimas finais dos octossílabos de Machado de Assis (“à hora”/“apavora”), que correspondem posicionalmente à rima de cada um dos hemistíquios do verso de Poe (“dreary”/“weary”) seja mero fruto do acaso e somente da leitura da versão de Baudelaire (“lugubre”/“fatigué”). Talvez o conhecimento que Machado de Assis tivesse da língua inglesa na época não fosse suficiente para compreender o sentido do poema de Poe, e por isso tenha utilizado a versão francesa de Baudelaire como apoio para captação do sentido, enquanto a inglesa teria servido de objeto de observação da forma poética. Ou talvez Machado de Assis tenha vistos os “desvios” de Baudelaire como algo produtivo, cuja alteração sensível da mensagem do poema inglês tenha aberto novas possiblidades para o poema. Apesar da insistência de que Machado reproduz os desvios baudelairianos, Massa reconhece estar “[...] diante de uma poesia profundamente diferente daquela proposta por Baudelaire”784. Esta poesia, presa em um rígido esquema métrico e de rimas, obrigou-se a infidelidades que resultaram em um poema que é “[...] uma recriação, em língua portuguesa, escrita segundo sua estética pessoal” e confirma, contrapondo-se a Abramo: “O que ‘O corvo’ perdeu em exatidão textual foi compensado pela integração à literatura de língua portuguesa de uma página de antologia”785. O crítico francês conclui que “O corvo” deve ser lido como uma “[...] obra pessoal de Machado de Assis que parece ter querido igualar ou talvez superar seu modelo”786, o que seria uma mensagem positiva e conforme o pensamento mais contemporâneo 784 Ibid., p. 93 MASSA, 2008, p. 94 786 Ibid. 785 373 da tradução se não fosse a ressalva de que “[...] o resultado não parece estar à altura das intenções do escritor brasileiro”, mesmo que afirmação esteja matizada pela positividade de que “[...] o fracasso importa menos que o élan criador que ele suscitou”787. Ivo Barroso (2012), por sua vez, mesmo reconhecendo que Machado de Assis estava “[c]omprometido com os vezos parnasianos de sua época – entre os quais o da insustentabilidade de versos com mais de 12 sílabas”, não se exime considerar que “[...] Machado já começa mal, ao engordar a compacta estrofe poesca de seus versos numa estança de dez, com métricas irregulares”788. A consequência desta escolha pessoal de Machado de Assis, segundo o crítico, é a perda do “[...] andamento lento majestoso do poema, bem como sua aceleração no final da estrofe”, fruto de uma estrofe “[...] diluída e, em muitos casos, repetitiva, repleta de enchimentos inúteis, que explicam demais, em prejuízo da síntese e acumulação enérgica do original”, nas quais Machado parece mais interessado “[...] em seu empenho de contar uma história”789, constatação curiosa, já que afirma o oposto do que Abramo via no poema de Machado: excessivo apego às questões formais em detrimento da narrativa. Desde o princípio o crítico já demonstra estar plenamente comprometido com uma lógica tradutória que toma o “original” como uma verdade a ser reproduzida. Ou seja, mesmo admitindo que Machado estaria “comprometido com os vezos parnasianos” que inadmitiam versos maiores que os alexandrinos, Barroso condena Machado por alterar o andamento do poema e por diluir a estrofe em versos menores. No entanto, demonstramos acima que a “diluição” ou “engorda” da estrofe poesca de que fala Barroso é unicamente visual, visto que ambas, de Machado e de Poe, possuem, na contagem de sílabas poéticas, quase a mesma extensão. Ainda assim, a opinião de Barroso não surpreende quando uma leitura atenta do seu ensaio revela que seu pensamento sobre a tradução poética se arrola a um conceito que privilegia a reprodução e o decalque que deve respeitar o que estipula o texto-fonte em detrimento da criação poética derivada. Isso é facilmente observável através dos termos que emprega para se referir à prática tradutória: “reproduzir”, “salvar”, “mesmo”, “clone linguístico”, “equivalências (isotopias)”, e até mesmo expressões que remetem à lógica capitalista de perdas e ganhos como “moedas de troca”, “taxa de câmbio” e “valor aproximado”. 787 Ibid. BARROSO, Ivo. “‘O corvo’ e suas traduções”. In: POE, Edgar Allan. O corvo e suas traduções (Org. Ivo Barroso). 3 ed. São Paulo: Leya, 2012, p. 23 789 Ibid., p. 24 788 374 Mesmo quando reconhece nos tradutores a criatividade que lhes é devida, fala em “excesso de virtuosismo” ou “mais invenção que tradução”. Os comentários de Ivo Barroso, em vários aspectos, ecoam os de Haroldo de Campos (1976) que, antes dele, já havia considerado a tradução de Machado de Assis “[...] demasiadamente explicativa e contaminada por vezos parnasianos”790. A consequência disso é que “[...] o marmóreo estatismo de seu texto não consegue captar, implícito, o voo iminente, mas sempre talhado, da ave pousada”791. Haroldo de Campos, ele mesmo comprometido com sua visão vanguardista de uma tradução que deveria ser “transcriadora” da forma e do conteúdo, falha em reconhecer que o projeto de tradução de Machado de Assis era consideravelmente diverso do seu, e parece exigir resultados que o nosso poeta-tradutor nunca buscou alcançar. Em nota de rodapé, Haroldo de Campos expressa ainda sua discordância em relação à leitura que Mattoso Câmara Jr. fez da tradução de Machado de Assis, sugerindo haver nos ensaios de Mattoso Câmara Jr. “um gosto estético tradicionalizante”, definido por ele como “parnasianoacadêmico”. Em contraponto, apresenta as inovações estéticas introduzidas pelo Modernismo, cita o que Goethe chama de o estágio mais avançado da tradução de poesia em que ocorreria o “estranhamento” 792, mas desconsidera que Mattoso Câmara Jr. avaliava a tradução de Machado considerando o meio e o contexto em que produziu. Machado talvez não quisesse, ou sequer pudesse, fazer uma tradução “de vanguarda” no sentido desejado por Haroldo de Campos porque sua proposta não era essa e a época era outra. As outras traduções que já analisamos até aqui o atestam: a prática mais comum sempre foi a de aclimatar os metros e ritmos estrangeiros àqueles que soassem mais em conformidade com a tradição poética de língua portuguesa, prática que nos leva a considerar que essa talvez fosse uma estratégia para reafirmar a força poética de nossa tradição frente ao estrangeiro. Em “O corvo” certamente não agiu de outro modo. Quando Haroldo de Campos avalia a tradução de Machado de acordo com seu próprio projeto de tradução “transcriadora”, deixa de lado questões que são tão pertinentes quanto as defendidas por ele. As críticas feitas por Haroldo de Campos a Mattoso Câmara Jr. referem-se ao que o crítico escreveu no ensaio “Machado de Assis e ‘O corvo’ de Edgar Poe”. Lembrando a suposta inaptidão de Machado de Assis para a poesia, Mattoso Câmara Jr. (1977) ressalva que Machado 790 CAMPOS, Haroldo de. “O texto espelho (Poe, engenheiro de avessos)”. In: A Operação do Texto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 32 791 Ibid., p. 33 792 CAMPOS, 1977 p. 34 375 de Assis possuía “[...] os predicados essenciais da expressão poética: a capacidade da sugestão encantatória e a percepção, por assim dizer, sensual dos elementos sine qua non da verdadeira poesia”793. Este é ponto de partida para afirmar que a tradução de “O Corvo” teria sido um “desmentido por antecipação” à crítica que viria a receber – e que já recebia, na verdade – à sua poesia. O linguista lembra, por exemplo, que a métrica inglesa impõe dificuldades pois é “[...] fundamentada no ritmo intensivo, ou seja, a distribuição regular dos ictos”794, base sobre a qual Poe construiu seu verso de dezesseis sílabas em que alterna fortes e fracas. Daí sua conclusão de que “[...] um verso de dezesseis sílabas ou quinze, pela contagem até a última tônica, é inteiramente anômalo em português”795. Ademais, Mattoso Câmara afirma desconhecer tentativas espontâneas desse verso em português, lembrando a dificuldade que até mesmo o alexandrino teve para aclimatar-se em nossa língua e quão poucos foram os que souberam empregá-lo adequadamente. Para Mattoso Câmara Jr., o emprego do verso de dezesseis sílabas na tradução seria infeliz porque “[...] o tradutor não encontra na sua experiência rítmica um modelo firme para plasmá-lo”, mas também porque tal verso “[...] foge do idiomatismo rítmico, tão necessário numa tradução como o idiomatismo léxico e o sintático para integrar a obra nas criações estéticas da língua e tirar-lhe o caráter de mera adaptação de uma criação estética peregrina”796, sentimento encontrado nas traduções de Fernando Pessoa e Gondim da Fonseca, segundo o crítico. Veja-se que o linguista não diz que o verso de dezesseis sílabas não deveria ser tentado, ou que seria uma aberração, mas que não há precedentes para sua prática e tentá-lo equivaleria a uma estrangeirização linguística. É certo que há correntes de pensamento da tradução que privilegiam o estranhamento forçado pela tradução, mas parece-nos igualmente certo, em vista do que já se observou em seus outros trabalhos tradutórios, que Machado de Assis nunca foi partidário dessas correntes. Com a forma adotada em “O corvo” foi possível manter “[...] a insistência das rimas próximas, feitas rimas finais dos versos” em compensação pelo apagamento das rimas internas. Quando comenta o esquema estrófico de Machado de Assis, Mattoso Câmara Jr. parece resumir 793 MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. “Machado de Assis e ‘O Corvo’ de Edgar Poe”. In: Ensaios machadianos. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S/A, 1977, p. 111 794 Ibid., p. 113 795 Ibid., p. 115 796 Ibid. 376 aquilo que vem se desenhando como o projeto de tradução de Machado desde os seus primeiros trabalhos: mercê de seu novo esquema estrófico, em que se afasta da literalidade em proveito de uma maior integração do poema nas tradições métricas portuguesas, elaborou uma distribuição de rimas mais complexa, que faz dessas rimas – como sucede em inglês – um fator positivo para a sugestão das pancadas repetidas e soturnas797. Mesmo no emprego dos sons para as rimas Mattoso Câmara Jr. demonstra que o tradutor “[...] não abriu mão do efeito escuro da vogal velar, que aliás lhe foi fácil manter na adaptação do nome próprio Lenora; assim, rimando ou não com esse nome, multiplicam-se as rimas em -ora (além de outras aproximadas, na base de uma vogal tônica em -o-), e isto desde os primeiros versos”798. Isso não é feito por Fernando Pessoa, que suprime até mesmo o nome da falecida. Quanto ao estribilho “Nunca mais!”, reconhecendo não ser possível uma tradução que mantivesse a um só tempo o significado e o efeito sonoro de “Nevermore!”, Mattoso Câmara Jr. avalia que o tradutor, “[...] com a profunda intuição de um verdadeiro poeta, resolveu, contudo, a dificuldade, aproveitando no a tônico a sensação de amplitude, consequente de se tratar da vogal mais aberta em articulação, e a de desespero, que evoca a sua associação com interjeições do tipo – ah!, ai!”799. O efeito, portanto, seria reforçado a partir da multiplicação das rimas em a em meio a outras mais pesadas. Assim, percebe-se o quanto as análises de Mattoso Câmara Jr. afastam-se de a prioris quanto ao que supostamente deveria ser uma tradução para buscar no trabalho de Machado de Assis traços de poesia criativa, independente, respeitando o horizonte dentro do qual o autor trabalhou. Um desdobramento ainda mais interessante desta linha de pensamento sobre a tradução de “O corvo” está num artigo de Sérgio Bellei, “‘The Raven’, by Machado de Assis” (1987). O autor reconhece que Machado altera significativamente o ritmo de Poe e quase anula a lentidão suave do original, praticamente ignora o poderoso efeito das rimas internas de Poe, substituídas por rimas finais, escolhendo ainda abandonar o ritmo arrastado de Poe, marcado pela alternância entre sílabas fortes e fracas, em favor de outro mais ligeiro800. Bellei constata que a tradução de Machado de Assis deixa de realizar dois objetivos comuns à tradução poética: reproduzir os padrões sonoros do original e reproduzir o sentido801. Ao invés de atacar o 797 MATTOSO CÂMARA JR, 1977, p. 118 Ibid., p. 119 799 Ibid., p. 120 800 BELLEI, Sérgio. “‘The Raven’, by Machado de Assis”. Ilha do Desterro, n. 17, 1º semestre de 1987, p. 48 801 BELLEI, 1987, p. 49 798 377 tradutor por esta suposta “falha”, aponta outro caminho, em certa medida político, de que Machado definitivamente não está tentando reproduzir esses aspectos. Na verdade, a intenção do tradutor parece ser a de ignorar a lógica da reprodução para atender à da produção: “[...] Machado desvia-se tão frequentemente e tão sistematicamente do original que seria difícil acreditar que esses desvios sistemáticos do ritmo e do sentido não são intencionais”.802 Neste ponto de seu ensaio o crítico adota um conceito que parece emprestado de Harold Boom: a “desleitura intencional”. Apesar de seu ensaio utilizar um termo utilizado pelo crítico norte-americano em A angústia da influência e O mapa da desleitura, Bellei oferece ao leitor sua própria definição do termo que emprega, chamando de “desleitura” “[...] não somente traduções distorcidas de palavras e frases específicas, mas mudanças intencionais de ênfase, expansões e reduções do sentido original e adições e subtrações de significado”.803 Ainda que não se remeta abertamente aos conceitos de Bloom, o parentesco conceitual é inegável. A angústia da influência de Bloom traz a seguinte proposta: “A influência poética – quando envolve dois poetas fortes, autênticos – sempre se dá por uma leitura distorcida [misreading] do poeta anterior, um ato de correção criativa que é na verdade e necessariamente uma interpretação distorcida [misinterpretation]”804. Um desdobramento deste pensamento surge em O mapa da desleitura: “Para que uma leitura (desleitura) seja ela mesma produtora de outros textos, é obrigatório que afirme sua singularidade, sua totalidade, sua verdade”805. Ou seja, a partir da “desleitura”, ou leitura distorcida, à imagem de quem lê, produz-se um texto que se afirma sobre outro, mantendo com ele uma relação de parentesco, mas sem se submeter a ele, exibindo, ao contrário, toda sua singularidade que se constituiu a partir de uma apropriação daquela outra. A leitura que Bellei faz da tradução de Machado de Assis e as propostas que apresenta em seguida gravitam em torno desses conceitos. Bellei escreve, por exemplo, que as mudanças de significado que Machado impõe ao original tendem a produzir uma mudança de ênfase em sua tradução, quando não um significado quase inteiramente novo no sentido de que o amante é retratado não como um homem enlutado que ainda 802 Ibid., p. 50-51, tradução nossa. No original: “Machado deviates so often and so systematically from the original that it would be difficult to believe that these systematic deviations in rhythm and sense are not intentional”. 803 Ibid., p. 51, tradução nossa. No original: “not only mistranslations of specific words and sentences, but also intentional shifts of emphasis, expansions and reductions of the original sense and additions or subtractions of meaning”. 804 BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago 2002, p. 80 (grifos do autor) 805 BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 85 378 é racional o bastante para notar um corvo a repetir irracionalmente uma única palavra melancólica, mas como a vítima quase completamente passiva de um pássaro que traz uma mensagem obscura e incompreensível.806 Ali, o crítico está dizendo que Machado opera aquele tipo de leitura forte de que fala Bloom, apropriando-se do texto de Poe e desviando-se intencionalmente dele de forma que o resultado seja um poema tão ou mais seu do que do autor traduzido. O mesmo pode ser dito a respeito da afirmação de que Machado de Assis “[...] reescreve o poema de Poe como a história de um corvo e sua obscura e secreta mensagem a ser transmitida para o homem”807 ou quando diz que “[...] há na sua tradução um certo sentido da tragédia universal da condição humana que não é tão óbvia em Poe”808, que aponta para, mais do que uma desleitura, uma expansão no sentido do texto original, ampliando seus horizontes na sua pervivência. Contudo, a potência da tradução machadiana não se esgotaria aí. Essa desleitura intencional que faz de Poe, segundo Bellei, teria a ver com a própria condição periférica do escritor e mesmo da literatura brasileira e identidade nacional ainda em formação. Bellei pergunta: Como um escritor conseguiria ser original e estabelecer a base para a fundação do nacionalismo literário nos trópicos se ele está ciente de que esse novo começo está condenado a surgir em uma relação problemática de dependência de uma origem anterior representada pela Tradição Literária Ocidental? A carreira de Machado como escritor pode ser vista em termos da tentativa de encontrar uma resposta para essa questão de origens e princípio.809 A resposta estaria na apropriação de modelos estrangeiros, na leitura forte, ou desleitura desses modelos para, a partir deles, fazer ouvir uma voz própria que precisa encontrar sua força. O poeta-tradutor, segundo Bellei, não pode negar que a tradição literária ocidental é uma origem que se opõe à cor local. A saída é encontrada quando o escritor decide juntar o local e o universal, tornando-se, conjuntamente, um homem de seu país e de seu tempo, e a tradução seria um meio de, através das desleituras, distorções e apropriações tornar próprio o que antes 806 BELLEI, Op. Cit., p. 52, tradução nossa: “the changes of meaning Machado imposes on the original tend to produce a shift of emphasis in his translation, if not altogether an almost entirely novel meaning in the sense that the lover is portrayed not as a bereaved man who is still rational enough to perceive a raven irrationally repeating a single melancholy word, but as the almost entirely passive victim of a bird that brings a dark, incomprehensible message”. 807 Ibid., p. 54, tradução nossa. No original: “re-writes Poe’s poem as the story of a raven and its dark secret message to be conveyed to man”. 808 Ibid., p. 57, tradução nossa. No original: “there is in his translation a certain sense of the universal tragedy of the human condition that is not so obvious in Poe”. 809 Ibid., p. 59, tradução nossa. No original: “How can a writer be original and establish the basis for the foundation of literary nationalism in the tropics if he is aware that this new beginning is doomed to arise in a problematic relationship of dependence on a previous origin represented by the Western Literary Tradition? Machado's career as a writer can be viewed in terms of the attempt to find an answer to this question of origins and beginning”. 379 pertencia a outro. Até mesmo a seleção dos textos a serem traduzidos parece de certa forma ecoar as tendências temáticas de seus próprios poemas810, algo que as análises das outras traduções feitas anteriormente parecem corroborar. Diríamos até que as traduções não necessariamente, nem sempre, ecoam os temas das obras ditas “autorais”, já que o eco seria algo secundário, posterior, e frequentemente mais fraco. Em alguns casos parece ocorrer o contrário: as traduções exercem o papel de uma anterioridade que irá reverberar nas obras posteriores ou até mesmo alimentá-las. Para Bellei, Machado estaria sofrendo de um tipo peculiar de ansiedade da influência – remetendo-se novamente à teoria de Harold Bloom – e ciente do que isso significava e suas implicações na formação de uma literatura brasileira811, de forma que a prática de traduções que não fossem apropriadoras seria, como o próprio Machado chama em um de seus ensaios, “tarefa estéril”. Assim, o ensaio de Sérgio Bellei revela um crítico de tradução ciente de que seu papel não é julgar o trabalho do outro dentro de seus próprios conceitos ou definições do que deveria ser a tradução poética, mas entende que o trabalho do tradutor deve ser julgado dentro de seus próprios termos e conforme um projeto próprio, revelando, assim, um tradutor que está muito mais comprometido com a formação de uma voz própria e de uma literatura nacional do que na divulgação de autores, obras ou modelos estrangeiros. Aproxima-se, portanto, das já discutidas propostas bermanianas para a crítica da tradução conforme expostas em Pour une critique des traductions: John Donne. Quando Ivo Barroso e Haroldo de Campos apontam as “falhas” e os “problemas”, erram eles mesmos ao deixar de perceber que esses tais “problemas” não eram necessariamente fruto de uma inépcia poética, linguística ou tradutória, mas movimentos intencionais de apropriação de um texto estrangeiro, de uma guinada que busca intencionalmente um caminho que não seja o da reprodução ou decalque do obra estrangeira, mas um posicionar-se politicamente diante do estrangeiro, afirmar sua singularidade diante dele e até mesmo utilizá-lo como meio de fecundar a própria produção poética. Para Meschonnic, “[q]uanto mais o tradutor se inscreve como sujeito na tradução, mais, paradoxalmente, traduzir pode continuar o texto. Quer dizer, em outro tempo e uma outra língua, dele fazer um texto. Poética pela poética”812. Talvez resida aí a explicação para a surpreendente durabilidade e inegável atração que “O corvo” de Machado de Assis tem 810 BELLEI, 1987, p. 60 Ibid., p. 61 812 MESCHONNIC, 2010, p. XXXIV 811 380 exercido sobre a crítica: mais do que traduzir, Machado reescreve Poe e, ao fazê-lo, faz com que seu poema seja uma continuação do poema de Poe, como um filho continua a existência do pai, mas ao mesmo tempo é outro indivíduo, de personalidade própria. Meschonnic entende ainda que há um estatuto sociológico contemporâneo da literatura que se baseia na oposição entre texto e tradução, entre o ato de escrever e o de traduzir, privilegiando sempre os primeiros813, o que se observa com alguma clareza em algumas das críticas que vimos a respeito de “O corvo” de Machado de Assis. Para que a tradução escape a esta oposição e estabeleça o que Meschonnic chama de uma contra dominância paratática é preciso que a tradução seja mais do que tradução: ela precisa ser texto, produto de um trabalho textual que é um trabalho de linguagem, através do qual ela alcançará certo grau de prestígio. No caso de “O corvo”, todo o trabalho de distanciamento do(s) texto-fonte(s) levou o poema de Machado de Assis a ganhar um status deveras independente do seu texto-fonte, talvez o mais alto exemplo do grau de distanciamento ideológico que podemos encontrar na sua produção de poeta-tradutor. 12.1.3 Ecos de Poe e de “O corvo” na obra de Machado Sabe-se, como dito anteriormente, que a primeira publicação de “O corvo” se deu 1883 no jornal A Estação, passando por mais três republicações e revisões até chegar à sua forma definitiva e ser finalmente incluída nas Ocidentais, das Poesias completas de 1901. Pode-se dizer, com segurança, que na década de 1860 Machado de Assis já conhecia o escritor norte-americano, pois o conto “Uma excursão milagrosa”, de 1866, traz uma referência direta a Poe e às Histoires extraordinaires, que já circulavam naquela década na tradução de Charles Baudelaire: “Suponho que os leitores terão lido todas as memórias de viagem, desde as viagens do capitão Cook às regiões polares até as viagens de Gulliver, e todas as histórias extraordinárias desde as narrativas de Edgar Poe até os contos de ‘Mil e uma noites’”814. A próxima menção ao escritor norte-americano só aconteceria em 1882, no conto “O anel de Polícrates” de Papeis avulsos, aludindo novamente à contística fantástica de Poe. O nome ressurge depois em outro conto, “Só!”, de 1885, novamente com alusão à contística do escritor. Da mesma forma, na “Advertência” às Várias histórias (1896) Machado de Assis demonstra o apreço que tinha pelo escritor norte-americano ao comparar humildemente os contos que 813 814 Ibid., p. 82 ASSIS, 2015, vol. 2, p. 816 381 publicava, chamando-os “um modo de passar o tempo”, já que “[n]ão são feitos daquela matéria nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritos da América”815. A apropriação do corvo de Poe, contudo, se mostra plenamente em um dos capítulos de Quincas Borba, de 1890. A cena descrita no capítulo XXXVII narra a desventura de d. Tonica, uma solteirona à beira dos quarenta anos e ansiosa por um casamento qualquer antes que fosse tarde demais, que resolve insinuar-se para Rubião, o rico capitalista de Minas Gerais herdeiro de uma fortuna deixada por um familiar: “Desde que Rubião ali chegou, não cuidou ela mais que atraí-lo. Os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas”816. As fagulhas não foram suficientes para atiçar nem a mais minguada flama. Desde o capítulo anterior, os olhares de Rubião só se dirigiam a Sofia Palha, que retribuía na mesma medida. As investidas de D. Tonica eram, afinal, inúteis. Tão inúteis a ponto de, enfim, perceber que os olhares trocados entre Rubião e Sofia “[...] não eram olhares aparentemente fortuitos, breves, como até ali, era uma contemplação que eliminava o resto da sala. D. Tonica sentiu o grasnar do velho corvo da desesperança. Quoth the raven: NEVER MORE.”817 Talvez o narrador estivesse se referindo aqui à décima sexta estrofe de “O corvo”, quando o jovem pergunta à ave se um dia terá Lenore novamente: “Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, / It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore –”. Assim como o jovem nunca mais há de ter a Lenore perdida, D. Tonica encontra-se passivamente impotente diante da desesperança inexorável que se desvela diante dela. Machado de Assis demonstra como apropriar-se do molho estrangeiro em sua própria cozinha. 10.6 O “Prólogo” do Intermezzo Esta tradução de 1894 encerra, cronologicamente, as atividades do poeta-tradutor Machado de Assis. Publicada em 14 de abril daquele ano em A Semana, o texto veio seguido da notícia que reproduzimos abaixo: Publicamos hoje, e é o caso de parabéns dos nossos leitores, o “Prólogo” do Intermezzo de Heine, traduzido pelo grande mestre, o delicioso poeta Machado de Assis. Não é o “Prelúdio” que se encontra na versão francesa de G. de Nerval, como poderiam supor alguns que não conhecem a edição definitiva e completa do 815 ASSIS, 2015, vol. 2, p. 434 ASSIS, 2015, vol. 1, p. 764 817 Ibid. 816 382 Intermezzo que contem o prólogo e diversos números que não se acham na edição francesa. Publicamos o “Prólogo” em lugar separado, mas quando o Intermezzo for tirado à parte será colocado no lugar devido. A nossa edição do Intermezzo conterá ainda um lindo retrato de Heine, traçado pelo mimoso e incomparável lápis do Belmiro818. Da notícia acima podemos inferir algumas coisas: um volume sairia posteriormente com a versão completa do Intermezzo de Heinelix, versão essa que seria ainda mais completa do que a de Nerval, que omite diversos trechos do poema alemão; era um trabalho colaborativo, do qual Machado de Assis traduziu somente o Prólogo; por fim, dada a crítica à edição francesa de Nerval, sabemos que os tradutores não trabalharam a partir dela, mas de alguma outra. JeanMichel Massa nos informa que Machado de Assis teria à sua disposição duas ou três traduções francesas que poderia ter consultado para traduzir o Prólogo, mas sugere ter sido a tradução de Ristelhuber o texto-fonte de Machado819, embora deixe a questão em aberto. Massa nos informa ainda que esta é uma tradução alimentar, de iniciativa dos diretores da revista: A iniciativa não vem senão parcialmente de Machado de Assis. Mas trata-se de uma empresa coletiva, da qual participaram diversos poetas brasileiros: Lúcio de Mendonça, Raul Pompeia, Teixeira de Melo, Gonçalves Crespo. Machado de Assis, que já era um mestre reverenciado, pode talvez ter escolhido seu texto. Coincidência ou escolha deliberada, é o prólogo que lhe coube, e essa peça põe em cena um cavaleiro taciturno e uma graciosa ondina. A atração que Machado sentia pelo mundo aquático não desapareceu. A afinidade eletiva se duplica em um trabalho de elaboração literária, pois, segundo um hábito inveterado, Machado de Assis molda o texto de forma a lhe dar um tom pessoal e transformar o “Prólogo de Intermezzo”.820 Apesar de sugerir que Machado teria se baseado na versão de Ristelhuber – dentre duas ou três disponíveis – para traduzir o Prólogo, Massa não apresenta os dados que o levaram à conclusão nem comparações de trechos da tradução de Machado com a versão francesa ou alemã que o justifiquem. Procuramos, portanto, as edições francesas disponíveis então e encontramos quatro edições diferentes do Intermezzo: Vers d’um flâneur, de 1850, traduzidos por Ernest Perrot Chezelles; Intermezzo, poème de Henri Heine traduit en français par Paul Ristelhuber, de 1857; Intermezzo, poème de Henri Heine traduit par Albert Mérat et Léon Valade, de 1868; e L’Intermezzo, poème de Henri Heine, de 1884, sem indicação concreta do autor tradução, mas com os nomes E. Vaughan e Ch. Tabaraud , todas publicadas em Paris. Destas, a única que podemos afirmar que Machado poderia ter consultado é a de Ristelhuber porque é a única que possui o “Prólogo” traduzido por ele. Curiosamente, Massa não sugere que Machado pudesse ter traduzido diretamente do alemão, como fez quando tratou da tradução de “Seis dias em Cuiabá”, conforme vimos anteriormente. Ressalte-se que, como dito antes, Machado de Assis 818 “Gazetilha Literária”, A Semana, Rio de Janeiro, 14 de abril de 1894, p. 295. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/383422/1622?pesq=>. Acesso em: 7 fev. 2017 819 MASSA, 2008, p. 95 820 Ibid., p. 95 383 começou a estudar o alemão formalmente em 1883, mais de dez anos antes desta tradução de Heine, portanto. Sabemos também que, de acordo com os registros preservados, seus estudos duraram menos de três meses: Machado de Assis começou a tomar lições de inglês e alemão com o professor Alexander, que ele conhecera em casa da Condessa de São Memede. Juntamente com Machado de Assis, aprendia também essas disciplinas Capistrano de Abreu. O primeiro exercício de alemão de Machado de Assis tem a data de 16 de agosto de 1883. O último de 10 de novembro do mesmo ano. É interessante assinalarem-se os progressos realizados pelo escritor nesse breve período de menos de três meses. Percebe-se que, vencidas as primeiras dificuldades de um idioma tão diferente do seu, Machado de Assis procura aprender a melodia da língua e sentir-lhe o caráter próprio, acima da correção gramatical821. O trajeto de análise proposto por Antoine Berman, como vimos anteriormente, sugere que para irmos ao tradutor é preciso que tenhamos sempre em mente quem era o tradutor, o que inclui saber quais línguas conhecia e das quais traduzia, e seu relacionamento com elas. Mais, talvez, do que a língua inglesa, o conhecimento que Machado de Assis pode ter alcançado do alemão ainda é uma grande incógnita. A julgar pelas informações que pudemos colher a partir do catálogo da exposição em comemoração ao centenário de nascimento do escritor, os registros encontrados limitam-se àqueles três meses. A página do caderno de exercícios de Machado com as correções do preceptor reproduzida em fac-símile no volume sugere um nível ainda elementar no idioma. Contudo, se considerarmos os comentários citados acima, é de se imaginar que o progresso foi rápido. Magalhães Júnior relata ainda que Capistrano de Abreu, em carta a José Veríssimo, acentua o bom aproveitamento de Machado no período em que estudaram juntos822. Sabemos também que Machado foi um autodidata que atingiu níveis excelentes de proficiência em francês sem que tivesse instrução formal que se possa substanciar. O mesmo pode ser dito, com alguma segurança, de sua proficiência em italiano ou mesmo em espanhol. Logo, se considerarmos os dez anos passados entre o início de seus estudos formais em língua alemã e esta tradução de Heine, acreditamos que deveríamos estar abertos à possiblidade de que Machado teria consultado o texto alemão original e dele feito uma leitura de primeira mão para ajudá-lo a compor sua tradução, mesmo que com auxílio de outra pessoa ou de outra tradução intermediando o trabalho, o que reforçaria a tese de que o acesso ao texto-fonte em diferentes versões, particularmente nos casos em que o francês não era o idioma original, deve ter sido recorrente. Acreditamos ser este um dado relevante porque sugere que o poeta-tradutor 821 EXPOSIÇÃO Machado de Assis: centenário do nascimento de Machado de Assis, 1839-1939. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Saúde, 1939, p. 101-102 822 MAGALHÃES JR., 2008, vol. 3, p. 69 384 não se satisfazia com uma única via de acesso ao texto, e que sua versão beneficiaria caso tivesse acesso a várias versões de um mesmo texto. Ainda de acordo com o trajeto de análise bermaniano, devemos nos perguntar também a razão do interesse de Machado por Heine, de quem traduziu não só este Prólogo, mas também “As ondinas”, que publica primeiramente na Biblioteca Brasileira em 1863 e, posteriormente, inclui no seu primeiro volume de poesias, Crisálidas. No texto introdutório da coletânea Heine, hein? (2011), “Poeta dos contrários”, André Vallias lembra que Heine esteve bastante em voga na última década do século XIX, sendo traduzido por Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães antes da empresa de que Machado participou, que também contou com nomes como Raul Pompeia, Raimundo Correia, Luis Delfino, João Ribeiro, Afonso Celso, Francisca Júlia e outros823. Direta ou indiretamente, Heine aparecerá também em romances e contos de Machado de Assis, como Memorial de Aires, “Uma senhora” de Histórias sem data, e “Sales” de Outros Contos. Várias alusões ao poeta alemão também se encontram nas suas crônicas, particularmente na série A semana em que cita, em alemão, a frase “Es ist heute eine schöne Witterung!” em crônica de 16 de agosto de 1896, que começa com uma tradução desta mesma frase logo nas primeiras linhas: “Esta semana é toda de poesia. Já a primeira linha é um verso, boa maneira de entrar em matéria. Assim que podeis fugir daqui, filisteus de uma figa, e ir dizer entre vós, como aquele outro de Heine: ‘Temos hoje uma bela temperatura.’”824. A que mais nos chama a atenção, contudo, é a feita na crônica de 1 de janeiro de 1894, mesmo ano em que traduz o prólogo, cujos parágrafos em questão que reproduzimos a seguir: Imaginemos um homem que haja nascido com o século e morra com ele. Victor Hugo já o achou com dois anos (ce siècle avait deux ans), e pode ser que contasse viver até o fim; não passou da casa dos oitenta. Mas Heine, que veio ao mundo no próprio dia 1 de janeiro de 1800, bem podia ter vivido até 1899, e contar tudo o que passou no século, com a sua pena mestra de humour... Oh! página imortal! Assistir à Santa Aliança e à dinamite! Vir do legitimismo ao anarquismo, parando aqui e ali na liberdade, eis aí uma viagem interessante de dizer e de ouvir. Revoluções, guerras, conquistas, uma infinidade de constituições, grande variedade de calças, casacas, chapéus, escolas novas, novas descobertas, ideias, palavras, dança, livros, armas, carruagens, e até línguas... Viver tudo isso, e referi-lo ao século XX, grande obra, em verdade. Deus ou a paralisia não o quis. Heine notaria, melhor que ninguém o advento do anarquismo, se é certo que este governo inédito tem de sair à luz com o fim do século. Ninguém melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princípio com o anarquismo do fim, Carlos X e Nada. Que excelentes conclusões! Nem todas seriam cabais, mas seriam todas belas. Aos homens da ciência ficam razões sólidas com que 823 VALLIAS, André. “Poeta dos contrários”. In: HEINE, Heinrich. Heine, hein?: poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva; Goethe Institut, 2011, p. 27-28 824 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 1220. 385 afirmam a marcha ascendente para a perfeição. Os poetas variam; ora creem no paraíso, ora no inferno, com esta particularidade que adotam o pior para expô-lo em versos bonitos. Heine tinha a vantagem de o saber expor em bonita prosa825. Heinrich Heine, que Carpeaux (2013) afirma ter reivindicado para si o título de “último romântico”, foi autor de uma poesia de subjetivismo extremo, tratando, supostamente, dos próprios sentimentos do poeta, fossem eles grandes ou pequenos, mas que colidia com a fina e penetrante ironia com que desmentia aqueles mesmos sentimentos, o que leva Carpeaux a considerá-lo “coveiro do romantismo”. O exemplo que o crítico dá para justificar sua opinião é tirado do Buch der Lieder (Livro das Canções), que “[...] está cheio de poemas em que um conteúdo sentimental e comovido é ridicularizado pela irônica última linha. Chora o pôr-dosol, mas ‘é uma peça antiga, amanhã voltará’”826. Há nisto, certamente, características que encontramos no nosso próprio Machado, o que pode justificar o apreço do nosso escritor pelo poeta e jornalista alemão, cujo humor e prosa admirava o suficiente para incluí-los em sua crônica, em prosa dotada de mesma finura de humor. 825 826 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 966, grifo nosso. CARPEAUX, Otto Maria. História concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013, p. 116. 386 Figura 12 – Reprodução da publicação do “Prólogo do Intermezzo” em A Semana Fonte: Assis (1894) 387 Enfim, qualquer conclusão a respeito da tradução de Machado de Assis e suas possíveis fontes só pode ser alcançada a partir do confronto dos textos, que faremos agora, com as traduções de Machado e Ristelhuber e o texto alemão de Heine. Para efeitos de comparação, reproduzidos a seguir a versão de Machado de Assis ao lado do texto alemão de Heine: Quadro comparativo 37 – “Prólogo do ‘Intermezzo’” e “Prolog” Prólogo do “Intermezzo” Prolog Um cavalheiro havia, taciturno, Que o rosto magro e macilento tinha. Vagava como quem de algum noturno Sonho levado, trépido caminha. Tão alheio, tão frio, tão soturno, Que a moça em flor e a lépida florinha, Quando passar tropegamente o viam, Às escondidas dele escarneciam. Es war mal ein Ritter trübselig und stumm, Mit hohlen, schneeweißen Wangen; Er schwankte und schlenderte schlotternd herum, In dumpfen Träumen befangen. Er war so hölzern, so täppisch, so links, Die Blümlein und Mägdlein, die kicherten rings, Wenn er stolpernd vorbeigegangen. A miúdo buscava a mais sombria Parte da casa, por fugir à gente; Daquele posto os braços estendia Tomado de desejo impaciente. Uma palavra só não proferia. Mas, pela meia-noite, de repente, Estranho canto e música escutava, E logo alguém que à porta lhe tocava Furtivamente então entrava a amada O vestido de espumas arrastando, Tão vivamente fresca e tão corada Como a rosa que vem desabrochando; Brilha o véu; pela esbelta e delicada Figura as tranças soltas vão brincando; Os meigos olhos dela os dele fitam, E um ao outro de ardor se precipitam. Com a força que amor somente gera, O peio a cinge, agora afogueado; O descorado as cores recupera, E o retraído acaba namorado, O sonhador desfaz-se da quimera... Ela o excita, com gesto calculado; Na cabeça lhe lança levemente O adamantino véu alvo e luzente. Ei-lo se vê em sala cristalina De aquático palácio. Com espanto Olha, e de olhar a fábrica divina Quase os olhos lhe cegam. Entretanto, Junto ao úmido seio a bela ondina O aperta tanto, tanto, tanto, tanto... Vão as bodas seguir-se. As notas belas Vêm tirando das cítaras donzelas. As notas vem tirando, e deleitosas Cantam, e cada uma a dança tece Erguendo ao ar as plantas graciosas. Ele, que todo se embevece, Oft saß er im finstersten Winkel zu Haus; Er hatt‘ sich vor Menschen verkrochen. Da streckte er sehnend die Arme aus, Doch hat er kein Wörtlein gesprochen. Kam aber die Mitternachtsstunde heran, Ein seltsames Singen und Klingen begann – An die Türe da hört er es pochen. Da kommt seine Liebste geschlichen herein, Im rauschenden Wellenschaumkleide, Sie blüht und glüht, wie ein Röselein, Ihr Schleier ist eitel Geschmeide. Goldlocken umspielen die schlanke Gestalt, Die Äuglein grüßen mit süßer Gewalt – In die Arme sinken sich beide. Der Ritter umschlingt sie mit Liebesmacht, Der Hölzerne steht jetzt in Feuer, Der Blasse errötet, der Träumer erwacht, Der Blöde Wird freier und freier. Sie aber, sie hat ihn gar schalkhaft geneckt, Sie hat ihm ganz leise den Kopf bedeckt Mit dem weißen, demantenen Schleier. In einen kristallenen Wasserpalast Ist plötzlich gezaubert der Ritter. Er staunt, und die Augen erblinden ihm fast, Vor alle dem Glanz und Geflitter. Doch hält ihn die Nixe umarmet gar traut, Der Ritter ist Bräut‘gam, die Nixe ist Braut, Ihre Jungfraun spielen die Zither. Sie spielen und singen, und singen so schön, Und heben zum Tanze die Füße; Dem Ritter dem wollen die Sinne vergehn, Und fester umschließt er die Süße – Da löschen auf einmal die Lichter aus, Der Ritter sitzt wieder ganz einsam zu Haus, In dem düstern Poetenstübchen. 388 Deixa-se ir nessas horas amorosas... Mas o clarão de súbito fenece, E o noivo torna à pálida tristura Da antiga, solitária alcova escura. Fonte: Assis (2009); Heine (1827) O “Prolog” de Heine nos coloca diante de uma situação vivida por um cavaleiro que anda trôpego e triste, sendo zombado pelas jovens que o veem passar. A segunda estrofe nos diz que o cavaleiro tinha por hábito se esconder nos cantos escuros de casas, evitando contato com as pessoas, até que chega a noite e ele ouve alguém à porta. Na estrofe seguinte descobrimos que era sua amada que entra com seu vestido que parece feito de espumas das ondas do mar, sugerindo tratar-se de uma ninfa, com cachos de cabelos dourados. Os dois se olham intensamente e se abraçam. Neste momento já se pode desconfiar de que se trata, na verdade, de um sonho. Indiferente, o jovem cavaleiro se deixa levar e abraça a ninfa. Os versos ressaltam o quanto o jovem vai se tornando o oposto do que era antes conforme a amada o provoca com o seu véu. O cavaleiro é então transportado pela ninfa a um palácio de cristal sob as águas. Impressionado com o esplendor do lugar, ele e a ninfa ficam noivos e ouvem virgens tocarem cítaras. Na última estrofe vemos as virgens tocarem e dançarem enquanto o cavaleiro aos poucos perde os sentidos, até que acorda e se vê de volta aos seus tristes aposentos de poeta. O cavaleiro é insistentemente descrito de forma tão débil que mais parece uma paródia dos heróis dos romances de cavalaria enquanto o poema, tomado isoladamente, nos remete a um ciclo de inevitável desilusão: o débil “cavaleiro”, que na verdade parece ser um poeta que se imagina cavaleiro – já que o último verso do poema de Heine diz que ele retornou à sua alcova de poeta – se entrega a uma ilusão amorosa com uma ninfa e se deixa levar para o fundo do oceano, mas tudo não passa de um sonho cujo ápice o leva de volta ao seu estado original. No plano semântico geral, portanto, a versão de Machado de Assis é bastante próxima da versão de Heine, a mais notável exceção residindo no fato de que, a partir do poema de Machado, não sabemos que o cavaleiro retorna, no verso final, ao seu pequeno quarto de poeta (“Poetenstübchen”, em alemão). No plano formal, reparamos, primeiramente, no título: Machado chama seu texto de “Prólogo”, mais próximo sonoramente do “Prolog” de Heine, e diferente de Ristelhuber, que prefere “Prélude”. No texto alemão encontramos um poema em sétimas, com esquema de rimas ABABCCB, assim como na versão francesa. Quanto à métrica, devido à diferença entre os sistemas – a metrificação germânica é silábico-acentual, enquanto o português é silábico –, temos um problema que já foi estudado no artigo “Questions de Traduction: Le Lyrisches 389 Intermezzo De Heine et Ses Versions Françaises” (1990) de Béatrice Lamiroy, cuja explicação do problema da métrica também se aplica ao nosso idioma: A comparação de um poema alemão e sua tradução francesa, no nível do metro, apresenta um problema pelo simples fato de que a prosódia francesa é fundamentalmente diferente da prosódia alemã. Enquanto em francês o verso repousa sobre o isossilabismo – o número de sílabas é constitutivo de um tipo de verso –, o verso alemão é, antes de qualquer outra coisa, isocrômico – somente importam os ‘Hebungen’, indiferentemente do número de sílabas não acentuadas –. O único ponto de comparação, que pode ser adotado como critério, deverá ser, portanto, o efeito global do verso, abstração feita, na medida do possível, do sistema prosódico determinado que aparece nos respectivos textos. O verso de Heine parece responder a uma dupla característica. Em geral, o poeta opta por um verso curto e leve: o ‘drei-hebiger Vers’ é o mais frequente. O verso da Lyrisches Intermezzo é ainda marcado por uma relativa liberdade: o número de ‘Hebungen’ por verso varia – mais comumente entre dois e quatro – dentro da coleção827 Portanto, se não é possível comparar a métrica, cabe verificar o quanto o tradutor manteve as características do verso de Heine. À primeira vista, mesmo uma análise superficial demonstra que a tradução de Machado já apresenta características bastante próprias: as sétimas em Heine se tornam oitavas na versão de Machado que, consequentemente, adota outro esquema de rimas, ABABABCC, com decassílabos cuja acentuação varia de um verso para outro, construção que lembra vagamente o soneto shakespeariano, com o característico dístico final. Comparemos, por exemplo, a primeira estrofe da tradução de Machado de Assis: Um cavalheiro havia, taciturno, Que o rosto magro e macilento tinha. Vagava como quem de algum noturno Sonho levado, trépido caminha. Tão alheio, tão frio, tão soturno, Que a moça em flor e a lépida florinha, Quando passar tropegamente o viam, Às escondidas dele escarneciam.828 com a versão alemã: 827 LAMIROY, Béatrice. Questions de traduction. Le Lyrisches Intermezzo de Heine et ses versions françaises. Fragmentos: Revista de Língua e Literatura Estrangeiras, Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 21-58, jan. 1990, p. 42, tradução nossa. No texto-fonte: “La comparaison d’un poème allemand et de sa traduction française, au niveau du metre (sic), pose un problème par le seul fait que la prosodia (sic) française est foncièrement différente de la prosodie allemande. Tandis qu’en français le vers repose sur l’isosyllabisme - le nombre de syllabes est constitutif d’un type de vers -, le vers allemand est avant tout isochronique - seules sont importantes les “Hebungen”, indifféremment du nombre de syllabes non accentuées -. Le seul point de comparaison, qui peut être adopté comme critère, devra donc être l’effet global du vers, abstraction faite, dans la mesure du possible, du système prosodique déterminé qui apparaît dans les textes respectifs. / Le vers de Heine semble répondre à une double caractéristique. Le poète opte en général pour un vers court et léger: le “drei-hebiger Vers” est le plus fréquent. Le vers du Lyrisches Intermezzo est marqué en outre par un certain flottement, une liberté relative: le nombre de “Hebungen” par vers varie - le plus souvent de deux à quatre - à l’intérieur du recueil”. 828 ASSIS, 2009a, p. 536 390 Es war mal ein Ritter trübselig und stumm, Mit hohlen, schneeweißen Wangen; Er schwankte und schlenderte schlotternd herum, In dumpfen Träumen befangen. Er war so hölzern, so täppisch, so links, Die Blümlein und Mägdlein die kicherten rings, Wenn er stolpernd vorbeigegangen. 829 Como vimos, Massa sugere que Machado de Assis teria utilizado a versão de Ristelhuber para compor a sua versão. Mas a leitura da versão francesa sugerida nos apresenta pelo menos um problema digno de nota. Vejamos o trecho que traduz para o francês a mesma estrofe reproduzida acima: Il était une fois un chevalier morose Et triste, avec l’œil cave et le front blanchissant ; Il errait vacillant et se traînait sans cause, Abimé dans un rêve étrange et séduisant ; Lourd comme un soliveau, dadais et malitorne, Que fleurette et fillette, en le voyant si morne, Ricanaient à la ronde et le trouvaient plaisant.830 A tradução acima nos mostra que Ristelhuber escolheu manter os mesmos sete versos para esta estrofe, e o mesmo esquema de rimas, mas adotando o alexandrino como metro. No plano da métrica ou da rima, portanto, as diferenças parecem circunstanciais, oriundas do projeto que o poeta-tradutor tinha para seu poema. O quinto verso desta estrofe, contudo, apresenta um dado interessante, já que a tradução de Machado parece ter mais em comum semanticamente com a versão alemã de Heine do que com a francesa de Ristelhuber: a repetição do advérbio em “Tão alheio, tão frio, tão soturno” é idêntica no texto de Heine, que intensifica cada adjetivo repetindo o mesmo advérbio “so” em “Er war so hölzern, so täppisch, so links”, característica que não encontramos no texto francês “Lourd comme un soliveau, dadais et malitorne”. Os últimos versos desta estrofe também apontam para maior similaridade entre o texto de Machado e o alemão do que com a versão francesa. Machado, como vimos, acrescenta um verso a cada uma das estrofes de Heine. Assim, os dois últimos versos de cada estrofe em alemão correspondem aos três últimos da tradução de Machado. No caso da estrofe transcrita acima, Machado desdobra o sexto verso de Heine – “Die Blümlein und Mägdlein die kicherten rings” – em dois, que na sua tradução se tornam o sexto e oitavo versos – “Que a moça em flor e a lépida florinha”, para traduzir o trecho “Die Blümlein und Mägdlein”, e “Às escondidas dele escarneciam”, para traduzir o trecho “die kicherten rings” –, mantendo a informação do sétimo verso de Heine – “Wenn er stolpernd vorbeigegangen” – no sétimo verso de sua versão – “Quando passar 829 HEINE, Heinrich. Buch der Lieder. Hamburg; Berlin: Hoffmann und Campe Verlag, 1827, p. 77 HEINE, Henri. Intermezzo. Trad. Paul Ristelhuber. Paris: Poulet-Malassis et de Broise Libraires-Editeurs, 1857 p. 9 830 391 tropegamente o viam”. Este sétimo verso de Heine – que significa, em tradução literal e livre, algo como “Quando ele passara aos tropeços” – é traduzido de maneira muito próxima semanticamente por Machado, mas não por Ristelhuber, que simplesmente omite o trecho e escreve “Ricanaient à la ronde et le trouvaient plaisant” (“Zombavam em torno dele e o achavam engraçado”), verso que continua o anterior que termina dizendo simplesmente que as moças viam-no triste, o que mantém menos semelhança com o texto de Heine do que a versão de Machado. É possível encontrar mais exemplos do tipo comparando as três versões, mas o que foi exposto até aqui basta para demonstrar que há problemas em sugerir que Machado trabalhou exclusivamente a partir da versão de Ristelhuber, ou que não teria consultado o poema em alemão. Além disso, a opção pelo alexandrino faz com que a versão francesa tenha, ao fim, mais acréscimos que a de Machado, provocando um alongamento do texto e tornando-o mais morno, solene, devido ao metro utilizado. Machado, optando por versos decassílabos, consegue manter um ritmo mais ondulatório, sem optar pela regularidade estrita na distribuição dos acentos nos seus versos, demonstrando excelente habilidade poética no verso “O aperta tanto, tanto, tanto, tanto...” da quinta estrofe, em que acentua todas as sílabas pares, alcançando resultado de máxima regularidade que sugere o movimento das ondas justamente na estrofe em que o elemento aquático é presente. Escusado é dizer que este verso e este ritmo são obra de Machado, não sendo encontrados na mesma estrofe no poema de Heine ou na tradução de Ristelhuber. A opção pelas oitavas em vez de sétimas, como fez Heine, também aponta para o fato de que este modelo de estrofe fora de largo emprego no período romântico além de, pelo verso a mais, permitir que tivesse mais espaço para transpor o poema de Heine, como vimos anteriormente. O resultado final – e utilizamos o termo aqui em duplo sentido, tanto em relação à tradução em questão quanto à prática tradutória de Machado de Assis, que se encerra com este trabalho – é bastante machadiano: o poeta, que é mais poeta do que tradutor, não se prende ao que estipula o texto-fonte, mesmo porque parece ser afeito a trabalhar a partir de mais de uma fonte, mas busca na sua tradição elementos que o permitam recriar o poema em língua portuguesa, demonstrando pleno domínio da versificação portuguesa e de suas formas clássicas, de forma que não seja só um poema alemão traduzido, mas um poema brasileiro criado a partir de um poema alemão, mas que não depende daquele para se afirmar como obra literária. Demonstrando que a figura do poeta e do tradutor não se excluem, mas se complementam, Machado de Assis nos lega, por fim, um texto que é tão – ou mais – seu quanto de Heine e, assim, alça a prática da tradução literária ao patamar criativo que lhe é de direito. 392 10.7 “Dante” A última tradução de Ocidentais, “Dante” é a versão do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia do poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321). Foi publicada primeiramente no jornal carioca O Globo, em 25 de dezembro de 1874, sendo depois republicada no semanário A Instrução Pública, em 28 de fevereiro de 1875 e finalmente incluída em Ocidentais831. R. Magalhães Junior sugere que Machado teria tentado emular este canto ao lado de José Pedro Xavier Pinheiro, com quem viria a trabalhar no Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Púlicas e que traduziu a Divina Comédia na íntegra832, publicada postumamente, em 1888. É difícil determinar quem teria sido o primeiro a iniciar o trabalho. Xavier Pinheiro também publica uma tradução do mesmo Canto XXV, ao lado do texto italiano, em 18 de fevereiro de 1875, no mesmo jornal que primeiro publicou a tradução de Machado de Assis833, e apenas dez dias antes da republicação da versão de Machado de Assis em outro jornal. Por conta deste fato, Lúcia Miguel Pereira, em nota de rodapé, questiona se haveria nisso uma velada acusação de infidelidade a Machado de Assis834. Não acreditamos que seja o caso, ainda mais tendo em vista a análise que apresentaremos a seguir. A única certeza que temos é a de que Machado de Assis foi o primeiro a publicar o seu trabalho. Por equívoco, na primeira edição de Ocidentais nas Poesias completas (1901) a tradução do canto é referenciada como sendo não do “Inferno”, mas do “Purgatório”, equívoco que não observamos na última publicação em jornal, por exemplo. O interesse de Machado de Assis pelo poeta florentino não foi gratuito, nem surpreende. Tanto Erich Auerbach, em Ensaios de literatura ocidental (2012), quanto Harold Bloom em The western canon (1994) sugerem que a estética romântica foi responsável por redescobri-lo, na forma como o conhecemos835, imitá-lo e até mesmo idolatrá-lo836. Machado de Assis, sabidamente, não ficou imune a esta influência. Segundo Auerbach, que considerou Dante o “Homero toscano”837, os poetas da época expressavam-se “[...] numa forma de imensa 831 MANUPELLA, G. Dantesca luso-brasileira: subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de Dante Alighieri. Coimbra: Coimbra Editora, 1966, p. 49 832 MAGALHÃES JR., vol. 1, 2008, p. 187 833 MANUPELLA, Op. Cit., p. 49 834 PEREIRA, 1949, p. 174 835 AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica (Org. Davi Arrigucci Jr e Samuel Titan Jr.). Trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. 2 ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Editora 34, 2012, p. 289. 836 BLOOM, 1994, p. 84 837 AUERBACH, 2012, p. 292 393 evidência sensível, plástica, direta e viva, numa linguagem que era um retrato da natureza para eles viva e vivificada, cujas palavras não pareciam ser o símbolo convencional para o referente, senão o próprio referente”838. Muito possivelmente, este seria um dos motivos que atraíram os românticos para aquela estética: o frescor, o viço, a virilidade da poesia dantesca eram fartos materiais para renovar as formas de expressão poética, já insatisfeitos com as possibilidades deixadas pelas estéticas anteriores. Para Auerbach, a admiração dos românticos por Dante e seu interesse por trechos poéticos isolados do poema e deram um novo alimento e grande difusão àquele desfrute parcial e desarticulado de Dante – que, sem dúvida, é também uma porta de entrada. Os românticos instauraram desde o início como que um culto a Dante; o nome de Dante surge então ao lado dos de Shakespeare e Goethe, por vezes também ao lado de Shakespeare e Cervantes, numa tríplice constelação da nova poesia europeia839. August Wilhelm Schlegel dizia que traduzir Dante era “[...] penetrar na composição da essência alheia, conhecê-la tal qual é, espreitar como veio a ser”840. Harold Bloom também é de opinião de que Dante, detentor de um espírito selvagem e politicamente incorreto para nossos dias841, foi capaz de produzir uma obra improvável, que desafia o leitor e sobrevive tanto às seguidas traduções quanto à sua própria erudição842, desfazendo a fronteira entre a escrita sagrada e a secular, como fazem todas as obras canônicas843. A última colocação de Harold Bloom nos remete diretamente a outro estudo de Erich Auerbach, Dante: poet of the secular world (2001), publicado originalmente em 1929. Nesta obra, Auerbach propõe que a poesia de Dante surge antes de um evento do que de uma ideia, já que os eventos de sua poesia são como visões844. Dante, sempre em busca de uma unidade articulada, visível na forma como organiza o conteúdo e na estruturação de suas orações845, cria uma poesia em que os homens por ele retratados na Divina Comédia “[...] já foram removidos do tempo terrestre e do destino temporal. Dante escolheu para sua representação um cenário muito especial que, como dissemos acima, abriu possibilidades totalmente novas de expressão para ele e unicamente para ele”846. Neste novo cenário escolhido 838 AUERBACH, 2012, p. 291 Ibid., p. 295 840 SCHELGEL apud AUERBACH, 2012, p. 297 841 BLOOM, 1994, p. 76 842 Ibid., p. 78 843 Ibid., p. 81 844 AUERBACH, Erich. Dante: poet of the secular world. Trad. Ralph Manheim. New York: New York Review Books, 2001, p. 41 845 AUERBACH, 2001, p. 59 846 Ibid., p. 86, tradução nossa. No original: “are already removed from earthly time and temporal destiny. Dante chose for his representation a very special setting which, as we have said above, opened up wholly new possibilities of expression to him and to him alone”. 839 394 pelo poeta estão as três partes em que se divide a sua obra, “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”, para onde são enviadas as almas dos homens conforme seu comportamento em vida. Como a narrativa não se dá por meio de um enredo linear, mas uma série de episódios individuais em que Dante e Virgílio interagem com personalidades da época e da antiguidade, o poeta se vê livre, o que não quer dizer, em hipótese alguma, que a Divina Comédia seja uma obra sem uma estrutura narrativa fixa. Auerbach explica que o poema se organiza sobre “[...] três sistemas entrelaçados e mesclados que são concebidos como correspondentes na ordem divina. Existe um sistema físico, ético e histórico-político; cada um deles, por sua vez, envolve uma síntese de diferentes tradições”847. Há, é claro, uma inegável conotação numerológica em volta do número três no poema: três partes, “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”, cada uma com trinta e três cantos – há um canto introdutório, que eleva o total de cantos a cem – escritos em tercetos de rimas alternadas e encadeadas, criando uma intricada tessitura poética em que nada é gratuito, nenhum verso pode ser retirado ou acrescentado sem que se afete toda a estrutura do poema. Diante de tal rigidez estrutural e na obsessão pelo número três, pensa-se imediatamente na Santíssima Trindade e na perfeição da criação divina, agregando tal ordem na criação deste perfeito edifício poético que a menor interferência faria desmoronar todo o conjunto. Ainda assim, a estrutura não-linear da narrativa permitiu que episódios fossem tomados isoladamente, contribuindo para a difusão da obra, como fizeram diversos tradutores. Das três partes do poema, o “Inferno” é a que certamente mais atraiu interessados, especialmente entre os primeiros românticos que, segundo Auerbach, foram responsáveis pela redescoberta do poeta. No livro dedicado ao poeta italiano, Auerbach considera as cenas e castigos que encontramos no “Inferno” “[...] a base da fama que Dante tem desfrutado em períodos românticos e não inteiramente sem justificativa, eles ainda têm muito a ver com a estimativa popular dele”848. Ainda sobre a composição do “Inferno”, diz Auerbach: Ao conceber as punições do Inferno, Dante emprega material mítico e elementos da fé popular; são enormemente imaginativas, mas cada uma delas é baseada em uma reflexão rigorosa e precisa, na posição e no grau do pecado em questão, em um conhecimento profundo de sistemas racionais de ética; e cada uma, como uma realização concreta da idéia da ordem divina, é calculada para provocar um 847 AUERBACH, 2001, p. 101, tradução nossa. No original: “three merging, interwoven systems which are conceived of as corresponding in the divine order. There is a physical, an ethical, and a historical-political system; each of them, in turn, involves a synthesis of different traditions”. 848 AUERBACH, 2001, p. 110, tradução nossa. No original: “the basis of the fame that Dante has enjoyed in romantic periods and not entirely without justification they still have a good deal to do with the popular estimate of him”. 395 pensamento racional concernente à natureza do pecado, isto é, a maneira como ele desvia da ordem divina.849 Cada um dos cantos do “Inferno”, portanto, narra um episódio em que é posto em cena o condenado e seu castigo, sempre adequado à gravidade do pecado, denotando a perfeita realização da ordem divina e demonstrando o castigo proveniente da desobediência àquela ordem. Machado de Assis, curiosamente, não escolheu traduzir cantos mais célebres do “Inferno”, como o Canto V que conta a história de amor adúltero de Paolo e Francesa, ou o Canto X, em que estão Farinata Degli Uberti e Cavalcanti di Cavalcanti, pai do poeta Guido Cavalcanti, no círculo destinado aos hereges. Escolheu um canto que, por não figurar entre os mais ilustres, denota um interesse que não se justifica pela moda ou fama do texto traduzido, mas por uma escolha bastante pessoal e deliberada, como se só dele pudesse extrair a lição desejada. Edoardo Bizzarri, em Machado de Assis e a Itália, afirma que o canto escolhido, que estranha a princípio por não ser dos mais famosos da Divina Comédia, será “[...] posteriormente reconhecido pela crítica como um dos mais interessantes e complexos do Poema, devido aos problemas de técnica expressiva e de linguagem poética impostas pela ousadia da figuração”850 o que para ele comprovaria a sensibilidade instintiva de Machado para questões de estética, além de uma leitura atenta da Divina Comédia. Já o crítico francês Jean-Michel Massa (1966) apresenta a seguinte explicação para a escolha de Machado: Esta escolha do canto XXV, por paradoxal que tal afirmação pareça, não seria uma homenagem à Beleza? Mimigliano, no seu célebre comentário, evoca Michelangelo; este canto talvez tenha interessado o poeta brasileiro pelo estudo escultural e plástico que evocava para si.851 849 AUERBACH, 2001, p. 111, tradução nossa. No original: “In conceiving the punishments of Hell, Dante employs mythical material and elements of popular faith; they are enormously imaginative, but each single one of them is based on strict and precise reflection, on the rank and degree of the sin in question, on a thorough knowledge of rational systems of ethics; and each one, as a concrete realization of the idea of divine order, is calculated to provoke rational thought concerning the nature of sin, that is, the way in which it deviates from the divine order”. 850 BIZZARI, Edoardo. Machado de Assis e a Italia. Caderno, São Paulo, 1, 1961, p. 22 851 J.-F. BOTREL; JEAN-MICHEL MASSA; A. POUPET. « La présence de Dante dans l’oeuvre de Machado de Assis ». Études Luso-Brésiliennes, Paris, XI, 1966, p. 22, tradução nossa. No original: “Ce choix du chant XXV, pour paradoxale qu’une telle affirmation paraisse, n’est-il pas un hommage à la Beauté? Momigliano, dans son célèbre commentaire, évoque Michel-Ange; ce chant a peut-être intéressé le poète brésilien par l’étude sculpturale et plastique qu’elle évoquait pour lui.” 396 A afirmação de Massa não é necessariamente paradoxal. A aproximação entre o belo e o grotesco era cara aos românticos, como Mario Praz explica em La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica (1948): A descoberta do horror como fonte de prazer e beleza acabou reagindo ao próprio conceito de beleza: o horrível, da categoria do belo, acabou se tornando um dos próprios elementos da beleza: do belamente horrível passou-se por graus insensíveis ao horrivelmente belo. A beleza do horrível certamente não pode ser considerada como uma descoberta do século XVIII, embora só então a ideia tenha atingido a plena consciência852. Logo, não é descabido sugerir que ao traduzir este canto Machado de Assis estivesse ensaiando um estudo de outro tipo de beleza, redescobrindo em Dante o frescor necessário ao seu trabalho de reflexão sobre a natureza humana. Tanto Bizzarri quanto Massa apontam possíveis e prováveis motivos para a escolha tão peculiar de Machado de Assis. Ainda assim, devemos acrescentar que tradução Canto XXV da Divina Comédia é uma rara exceção quanto ao silêncio do tradutor que cerca as suas traduções. Quando reeditada em A Instrução Pública, a tradução veio introduzida por um texto em que o poeta-tradutor explicita suas intenções: Destaco dos meus papeis a seguinte tradução do canto XXV do “Inferno”, tão justamente admirado como um dos melhores quadros saídos da imaginação daquele homem extraordinário que Florença deu ao mundo. Rivarol, que aliás não poupa censuras ao poeta, dá livre expansão ao entusiasmo que lhe causa o canto que se vai ler. “Dante (diz ele) mostra neste quadro aquele magnífico horror que fazia pasmar Tasso. Atrevimentos de estilo, grandeza de desenho, severidade de expressão, tudo aqui se acha. Os três versos com que a descrição termina fazem estremecer de admiração, porquanto já não é italiano, non mortale sonans; é o mens divinor; é o inferno em toda a sua majestade: Cosi vid’io la settima zavorra Mutar e transmuttare; e que(sic) me scusi La novità, si fior la pena aborra. Comecei esta tradução por curiosidade, e conclui-a creio que por aposta comigo mesmo. Pus todo o escrúpulo em que a reprodução me saísse fiel; mas se as descrições, as imagens e as ideias passaram à nossa língua, não passou, nem poderia passar o estilo do poeta, estilo ao qual dizia Macaulay que os mais nobres modelos da arte grega deveriam ceder o passo. Esse não se traduz: soletra-se ou lê-se, conforme se conhece pouco ou muito a língua original853. 852 PRAZ, Mario. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. 3 ed. Firenze: Sansoni Editore, 1948, p. 29-30, tradução nossa. No original: “La scoperta dell’orrore come fonte di diletto e di bellezza finí per reagire sul concetto stesso della bellezza: l’orrido, da categoria del bello, finí per diventare uno degli elementi propri del bello: dal bellamente orrido si passò per gradi insensibili all’orribilmente bello. Quella bellezza dell’orrido non può certo considerarsi come una scoperta del secolo decimottavo, sebbene allora soltanto l’idea giungesse a piena coscienza”. 853 ASSIS, Machado de. “Dante: o Canto XXV do Inferno”. A Instrução Pública, 28 jan. 1875, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/233048/1324. Acesso em: 6 nov. 2016. 397 Figura 13 – Reprodução da primeira publicação da tradução do “Canto XXV” do “Inferno” 398 Fonte: Assis (1875) 399 Os motivos que levaram Machado a escolher tal canto estão ali, como uma súmula de seu projeto: decerto, Machado teve algum tipo de contato com a tradução em prosa que Antoine de Rivarol fez do “Inferno”. Ao citar o tradutor francês, Machado também expõe os motivos que chamaram sua atenção no poema de Dante: “atrevimento de estilo, grandeza de desenho, severidade de expressão”. Dizendo que começara “por curiosidade” e em aposta consigo mesmo, é como se nos dissesse que estava testando seus limites criativos. Machado é sincero quanto ao seu empenho e objetivos, e modesto quanto aos resultados: considera-se escrupuloso na busca pela fidelidade na reprodução, mas não julga ter conseguido reproduzir o estilo do poeta, que considera intraduzível. Sua tradução soa, de fato, mais “machadiana” do que “dantesca”, o que não é nenhum demérito. Em Machado de Assis e o cânone ocidental (2016), Sonia Netto Salomão, tratando da escolha deste canto, acrescenta que Machado de Assis teria ficado impressionado, primeiramente, com “[...] o distanciamento artístico que regula a técnica descritiva e orienta a fantasia, liberando-a numa espécie de divertimento humanístico de incrível capacidade inventiva e figurativa gerada a partir de um estado de ânimo cruel e de um soberbo juízo moral”854. Segundo a autora, Machado e Dante também se aproximariam pela gélida curiosidade anatômica em que se desenvolvem as prodigiosas transformações dos homens em répteis e que se explica no âmbito dessa disposição do poeta que se identifica, assimila e confunde com a justiça de Deus e contempla, com estupor atônito, os infinitos recursos de sua arte punitiva, obtendo prazer, mas também sentindo horror [...]855. O Canto XXV continua o trecho da jornada que se iniciara no canto anterior: no Canto XXIV, Dante e Virgílio estão na sétima vala do oitavo Círculo do Inferno, lugar destinado aos ladrões que, quando atacados por serpentes gigantescas e picados por elas, tornam-se cinzas e depois renascem para sofrer novamente. No Canto XXIV até mesmo Virgílio, espírito sem corpo e sem peso que representa a razão humana, mostra-se imperfeito e vacila. Dante também deixa transparecer as limitações de sua forma humana, mostrando-se cansado com a subida. É neste canto que surge Vanni Fucci, que se apresenta a Virgílio depois de indagado sobre sua identidade. Fucci então dirige-se a Dante, diz estar envergonhado por ser visto naquela condição, e então explica o motivo de estar ali: roubara a sacristia de uma igreja e acusara a outro pelo crime. O Canto XXIV encerra-se com a profecia de Vanni Fucci, que, intencionando desaminar Dante, assegura-lhe que Pistóia expulsaria a facção dos negros, mas que depois do combate todos os brancoslx estariam feridos. 854 SALOMÃO, Sonia Netto. Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura. Rio de Janeiro: Eduerj, 2016, p. 83 855 Ibid., p. 83 400 No primeiro terceto do Canto XXV encontramos o mesmo Vanni Fucci, posteriormente descrito por Dante como o pecador mais orgulhoso que vira em todo o inferno, oferecendo uma figa a Deus, o que equivaleria, hoje, a um gesto obsceno como mostrar o dedo médio. Uma serpente enrola-se, então, no pescoço de Fucci por ter blasfemado, e outras envolvem seus braços. O que se segue, neste canto em que não há diálogos, é uma longa e vívida descrição da metamorfose dos ladrões em serpentes, que Dante observa e descreve ao mesmo tempo fascinado e horrorizado. Dante interpela o leitor, afirmando não se surpreender se o leitor não acreditar no que ele vai narrar, pois ele mesmo mal acreditava. Descreve, então, como uma serpente de seis pés se enlaça em um dos três ladrões que observava, fundindo-se a ele como em um amálgama de cera derretida em que homem e serpente se confundem, tornando-se um só ser, enquanto os outros dois ladrões também observam atônitos. O canto continua com a descrição ainda mais horrenda de outra metamorfose, dando a entender que enquanto um homem se torna serpente, outra serpente se transmuta em homem. Neste canto vemos os ladrões perderem seus corpos, sua substância, por terem roubado o que não lhes pertencia. O castigo, portanto, está perfeitamente ajustado ao pecado. Talvez não haja nenhum outro momento em o todo o “Inferno”, ou mesmo em toda a Divina Comédia, em que encontremos descrições tão vívidas e intensas quanto esta, escrita numa linguagem direta, sem floreios, sem nem ao menos evitar termos que soam obscenos ao leitor mais pudico. O próprio Dante se desculpa pelo linguajar empregado, como no terceto citado por Machado de Assis nos parágrafos que introduzem sua tradução: “qui mi scusi / la novità se fior la penna abborra”. Se Machado de Assis não foi o primeiro publicar traduções de Dante no Brasil, primazia que cabe a Luiz Vicente De Simoni que traduz e publica alguns cantos da Divina Comédia em Ramalhete poético do parnasso italiano em 1843856, certamente esteve entre os primeiros. Entre Machado de Assis e Luiz Vicente de Simoni, somente Gonçalves Dais traduziu alguns versos do “Purgatório” da Divina Comédia em 1844. Se considerarmos, contudo, os cantos traduzidos na íntegra, Machado de Assis só é precedido por De Simoni857, sendo que sua tradução do Canto XXV do “Inferno” é a primeira em língua portuguesa a ser publicada no Brasil ou em Portugal858. Machado de Assis, portanto, só poderia ter lido versões do canto que traduziu em outras línguas, como o francês. Mesmo as primeiras traduções integrais da Divina Comédia no Brasil só foram publicadas mais de dez anos depois da sua: a primeira, feita pelo Barão da Villa 856 HEISE, 2007, p. 10 MANUPELLA, 1966, p. 48 858 Cf. MANUPELLA, 1966, pp. 34-50 857 401 da Barra, foi publicada pela Imprensa Oficial em 1887, e a de Xavier Pinheiro sai no ano seguinte, 1888, pela Livraria J. L. de Freitas859, tendo seguidas reedições até hoje. Para os fins da análise que se seguirá, procuraremos identificar no “Canto XXV” elementos que desvelem características do Machado tradutor. Como dissemos na introdução, apesar de esta tradução datar originariamente de 1874, antes de sua inclusão nas Ocidentais o texto passou por algumas mudanças que, a propósito, não foram identificadas pela edição crítica, conforme se verifica na anotação a seguir: Cronologicamente, o 1º poema da coleção, publicado em O Globo de 25.12.874. D é a 2ª publicação. Não encontramos a referida publicação na B.N., nem nos foi possível consultá-la no G.P.L., cuja seção de periódicos se encontrava em reforma quando da elaboração deste trabalho. Por esse motivo, fica em aberto o problema.860 Como tivemos a felicidade de encontrar não a primeira, mas a segunda publicação em um jornal da época – A Instrução Pública, reproduzida na Figura 13 – foi possível cotejar a versão de fevereiro de 1875 com a versão de 1901 e resolver, ao menos em parte, o problema deixado em aberto pela edição crítica. Para fins de comparação, chamaremos de “A” a versão publicada em A Instrução Pública em 1875 e de “B” a versão publicada nas Ocidentais em 1901; os versos serão referidos por “V.” e o seu respectivo número. Estas foram as variantes que encontramos: Título: A: Inferno. Canto XXV B: Dante (Canto XXV do “Inferno”) V. 1 A: Tinha fallado o roubador, e, erguendo B: Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo V. 34 A: Elle falava, e o monstro foi andando; B: Ele falava, e o outro foi andando V. 35 A: E em baixo vinham caminhando a nós B: No entanto em baixo vinham para nós V. 60 A: Os membros todos do infeliz cingia. B: Ao pecador os membros envolvia. V. 67 A: Os outros dous olhavam-no: – Ora pois, B: Os outros dois bradavam: “Ora pois, V. 68 A: Agnel, – diziam, – que mudança é essa? B: Agnel, ai triste, que mudança é essa? 859 860 MANUPELLA, Op. Cit., pp. 20-21 ASSIS, 1976, p. 82 402 V. 105 A: E a alma os pés ajuntára estreitamente. B: E a alma os pés ajuntava estreitamente. V. 112: A: Vi em cada sovaco entrar um braço, B: Em cada axila vi entrar um braço, Para criar um contraste com as escolhas do Machado tradutor, sempre de acordo com uma das etapas do trajeto de análise proposto por Berman, cotejaremos a sua tradução com outras traduções do mesmo canto, como a de seu contemporâneo José Pedro Xavier Pinheiro, já na 12ª edição pela Editora Nova Fronteira, e a de Ítalo Eugênio Mauro, publicada em 1998 pela Editora 34 que, por ser bilíngue, também nos servirá de base para o texto-fonte em italiano. Comecemos com a leitura da versão de Machado de Assis, ao lado do texto italiano: Quadro comparativo 38 – “Dante” e Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia Dante (Inferno, canto XXV) Canto XXV Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo As mãos em figas, deste modo brada: “Olha, Deus, para ti o estou fazendo!” Al fine de le sue parole il ladro le mani alzò con amendue le fiche, gridando: “Togli, Dio, ch'a te le squadro!”. E desde então me foi a serpe amada, Pois uma vi que o colo lhe prendia, Como a dizer: “não falarás mais nada?” Da indi in qua mi fuor le serpi amiche, perch’ una li s'avvolse allora al collo, come dicesse `Non vo' che più diche'; Outra os braços na frente lhe cingia Com tantas voltas e de tal maneira Que ele fazer um gesto não podia. e un’altra a le braccia, e rilegollo, ribadendo sé stessa sì dinanzi, che non potea con esse dare un crollo. Ah! Pistóia, por que numa fogueira Não ardes tu, se a mais e mais impuros, Teus filhos vão nessa mortal carreira? Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi d'incenerarti sì che più non duri, poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi? Eu, em todos os círculos escuros Do inferno, alma não vi tão rebelada, Nem a que em Tebas resvalou dos muros. Per tutt’ i cerchi de lo ‘nferno scuri non vidi spirto in Dio tanto superbo, non quel che cadde a Tebe giù da' muri. E ele fugiu sem proferir mais nada. Logo um centauro furioso assoma A bradar: “Onde, aonde a alma danada?” El si fuggì che non parlò più verbo; e io vidi un centauro pien di rabbia venir chiamando: “Ov’ è, ov’ è l’acerbo?”. Marema não terá tamanha soma De reptis quanta vi que lhe ouriçava O dorso inteiro desde a humana coma. Maremma non cred’ io che tante n’abbia, quante bisce elli avea su per la groppa infin ove comincia nostra labbia. Junto à nuca do monstro se elevava De azas abertas um dragão que enchia De rogo a quanto ali se aproximava. Sovra le spalle, dietro da la coppa, con l’ali aperte li giacea un draco; e quello affuoca qualunque s'intoppa. “Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, — 403 Que, sob as rochas do Aventino, ousado Lagos de sangue tanta vez abria “Não vai de seus irmãos acompanhado Porque roubou malicioso o armento Que ali pascia na campanha ao lado, “Hercules com a maça e golpes cento, Sem lhe doer um decimo ao nefando, Pôs remate a tamanho atrevimento.” Ele falava, e o outro foi andando. Na entanto embaixo vinham para nós Três espíritos que só vimos quando Atroara este grito: “Quem sois vós?” Nisto a conversa nossa interrompendo Ele, como eu, no grupo os olhos pôs. Eu não os conheci, mas sucedendo, Como outras vezes suceder é certo, Que o nome de um estava outro dizendo, Lo mio maestro disse: “Questi è Caco, che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, di sangue fece spesse volte laco. Non va co’ suoi fratei per un cammino, per lo furto che frodolente fece del grande armento ch’elli ebbe a vicino; onde cessar le sue opere biece sotto la mazza d’Ercule, che forse gliene diè cento, e non sentì le diece”. Mentre che sì parlava, ed el trascorse, e tre spiriti venner sotto noi, de’ quai né io né 'l duca mio s'accorse, se non quando gridar: “Chi siete voi?”; per che nostra novella si ristette, e intendemmo pur ad essi poi. Io non li conoscea; ma ei seguette, come suol seguitar per alcun caso, che l’un nomar un altro convenette, “Cianfa aonde ficou?” Eu, por que esperto E atento fosse o Mestre em escutá-lo, Pus sobra a minha boca o dedo aberto. dicendo: “Cianfa dove fia rimaso?”; per ch’io, acciò che ‘l duca stesse attento, mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. Leitor, não maravilha que aceitá-lo Ora te custe o que vás ter presente, Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo. Se tu se’ or, lettore, a creder lento ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. Eu contemplava-os, quando uma serpente De seis pés temerosa se lhe atira A um dos três e o colhe de repente. Coos pés do meio o ventre lhe cingira, Com os da frente os braços lhe peava, E ambas as faces lhe mordeu com ira. Com’ io tenea levate in lor le ciglia, e un serpente con sei piè si lancia dinanzi a l'uno, e tutto a lui s'appiglia. Os outros dous às coxas lhe alongava, E entre elas insinua a cauda que ia Tocar-lhe os rins e dura os apertava. A hera não se enrosca nem se enfia Pela árvore, como a horrível fera Ao pecador os membros envolvia. Como se fossem derretida cera, Uma só vulto, uma cor iam tomando, Quais tinham sido nenhum deles era. Tal o papel, se o fogo o vai queimando, Antes de negro estar, e já depois Que o branco perde, fusco vai ficando. Os outros dous bradavam: “Ora pois, Agnel, ai triste, que mudança é essa? Olha que já não és nem um nem dois!” Faziam ambas uma só cabeça, Co’ piè di mezzo li avvinse la pancia e con li anterior le braccia prese; poi li addentò e l'una e l'altra guancia; li diretani a le cosce distese, e miseli la coda tra ‘mbedue e dietro per le ren sù la ritese. Ellera abbarbicata mai non fue ad alber sì, come l’orribil fiera per l’altrui membra avviticchiò le sue. Poi s’appiccar, come di calda cera fossero stati, e mischiar lor colore, né l’un né l’altro già parea quel ch'era: come procede innanzi da l'ardore, per lo papiro suso, un color bruno che non è nero ancora e 'l bianco more. Li altri due 'l riguardavano, e ciascuno gridava: “Omè, Agnel, come ti muti! Vedi che già non se' né due né uno”. 404 E na única face um rosto misto, Onde eram dois, a aparecer começa. Dos quatro braços dous restavam, e isto, Pernas, coxas e o mais ia mudado Num tal composto que jamais foi visto. Todo o primeiro aspecto era acabado; Dous e nenhum era a cruel figura, E tal se foi a passo demorado. Qual cameleão, que variar procura De sebe às horas em que o sol esquenta, E correndo parece que fulgura, Tal uma curta serpe se apresenta, Para o ventre dos dous corre acendida, Lívida e cor de um bago de pimenta. E essa parte por onde foi nutrida Tenra creança antes que à luz saísse, Num deles morde, e cai toda estendida. O ferido a encarou, mas nada disse; Firme nos pés, apenas bocejava, Qual se de febre ou sono ali caísse. Frente a frente, um ao outro contemplava, E à chaga de um, e à boca de outro, forte Fumo saia e no ar se misturava. Cale agora Lucano a triste morte De Sabello e Nasídio, e atento esteja Que o que lhe vou dizer é de outra sorte. Cale-se Ovídio e neste quadro veja Que, se Aretusa em fonte nos há posto E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja. Pois duas naturezas rosto a rosto Não transmudou, com que elas de repente Trocassem a matéria e o ser oposto. Tal era o acordo entre ambas que a serpente A cauda em duas caudas fez partidas, E a alma os pés ajuntava estreitamente. Pernas e coxas vi-as tão unidas Que nem leve sinal dava a juntura De que tivessem sido divididas. Imita a cauda bífida a figura Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo Que a pele do homem se tornava dura. Em cada axila vi entrar em braço, A tempo que iam esticando à fera Os dous pés que eram de tamanho escasso. Os pés de traz a serpe os retorcera Già eran li due capi un divenuti, quando n'apparver due figure miste in una faccia, ov' eran due perduti. Fersi le braccia due di quattro liste; le cosce con le gambe e 'l ventre e 'l casso divenner membra che non fuor mai viste. Ogne primaio aspetto ivi era casso: due e nessun l'imagine perversa parea; e tal sen gio con lento passo. Come 'l ramarro sotto la gran fersa dei dì canicular, cangiando sepe, folgore par se la via attraversa, sì pareva, venendo verso l'epe de li altri due, un serpentello acceso, livido e nero come gran di pepe; e quella parte onde prima è preso nostro alimento, a l'un di lor trafisse; poi cadde giuso innanzi lui disteso. Lo trafitto 'l mirò, ma nulla disse; anzi, co' piè fermati, sbadigliava pur come sonno o febbre l'assalisse. Elli 'l serpente e quei lui riguardava; l'un per la piaga e l'altro per la bocca fummavan forte, e 'l fummo si scontrava. Taccia Lucano ormai là dov' e' tocca del misero Sabello e di Nasidio, e attenda a udir quel ch'or si scocca. Taccia di Cadmo e d'Aretusa Ovidio, ché se quello in serpente e quella in fonte converte poetando, io non lo 'nvidio; ché due nature mai a fronte a fronte non trasmutò sì ch'amendue le forme a cambiar lor matera fosser pronte. Insieme si rispuosero a tai norme, che 'l serpente la coda in forca fesse, e 'l feruto ristrinse insieme l'orme. Le gambe con le cosce seco stesse s'appiccar sì, che 'n poco la giuntura non facea segno alcun che si paresse. Togliea la coda fessa la figura che si perdeva là, e la sua pelle si facea molle, e quella di là dura. Io vidi intrar le braccia per l'ascelle, e i due piè de la fiera, ch'eran corti, tanto allungar quanto accorciavan quelle. 405 Até formarem-lhe a encoberta parte, Que no infeliz em pés se convertera. Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte A cor lhes muda e põe à serpe o velo Que já da pele do homem se lhe parte, Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo Aquele torvo olhar com que ambos iam A trocar entre si o rosto e o vê-lo. Ao que era em pé as carnes lhe fugiam Para as fontes, e ali do que abundava Duas orelhas de homem lhe saíam. E o que de sobra ainda lhe ficava O nariz lhe compõe e lhe perfaz E o lábio lhe engrossou quanto bastava. A boca estende o que por terra jaz E as orelhas recolhe na cabeça, Bem como o caracol às pontas faz. A língua, que era então de uma só peça, E prestes a falar, fendida vi-a, Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa. A alma, que assim tornado em serpe havia, Pelo vale fugiu assobiando, E esta lhe ia falando e lhe cuspia. Logo a recente espádua lhe foi dando E à outra disse : “Ora com Buoso mudo; Rasteje, como eu vinha rastejando!” Assim na cova sétima vi tudo Mudar e transmudar; a novidade Me absolva o estilo desornado e rudo. Mas que um tanto perdesse a claridade Dos olhos meus, e turva a mente houvesse, Não fugiram com tanta brevidade, Nem tão ocultos, que eu não conhecesse Puccio Sciancato, única ali vinda Alma que a forma própria não perdesse; O outro chorá-lo tu, Gaville, ainda.861 Poscia li piè di rietro, insieme attorti, diventaron lo membro che l'uom cela, e 'l misero del suo n'avea due porti. Mentre che 'l fummo l'uno e l'altro vela di color novo, e genera 'l pel suso per l'una parte e da l'altra il dipela, l'un si levò e l'altro cadde giuso, non torcendo però le lucerne empie, sotto le quai ciascun cambiava muso. Quel ch'era dritto, il trasse ver' le tempie, e di troppa matera ch'in là venne uscir li orecchi de le gote scempie; ciò che non corse in dietro e si ritenne di quel soverchio, fé naso a la faccia e le labbra ingrossò quanto convenne. Quel che giacëa, il muso innanzi caccia, e li orecchi ritira per la testa come face le corna la lumaccia; e la lingua, ch'avëa unita e presta prima a parlar, si fende, e la forcuta ne l'altro si richiude; e 'l fummo resta. L'anima ch'era fiera divenuta, suffolando si fugge per la valle, e l'altro dietro a lui parlando sputa. Poscia li volse le novelle spalle, e disse a l'altro: «I' vo' che Buoso corra, com' ho fatt' io, carpon per questo calle». Così vid' io la settima zavorra mutare e trasmutare; e qui mi scusi la novità se fior la penna abborra. E avvegna che li occhi miei confusi fossero alquanto e l'animo smagato, non poter quei fuggirsi tanto chiusi, ch'i' non scorgessi ben Puccio Sciancato; ed era quel che sol, di tre compagni che venner prima, non era mutato; l'altr' era quel che tu, Gaville, piagni. Fonte: Assis (1976); Alighieri (1998) Ao observarmos a tradução de Machado encontramos, de imediato, métrica impecável: todos os versos escritos em decassílabos, em vários dos quais encontramos alternância binária 861 ASSIS, 1976, p. 484-489 406 do acento ora na 4ª e 10ª sílabas, como no verso 2 abaixo, mas bastante comum no decorrer da tradução, ora decassílabos heroicos, acentuados na 6ª sílaba, como nos versos 1 e 3: Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo as mãos em figas, dêste modo brada: «Olha, Deus, para ti o estou fazendo!»862 Se Machado não utilizou exclusivamente o decassílabo heroico, de herança italiana, nem mesmo Dante restringiu-se a ele, pois até na Divina Comédia há exemplos de decassílabos nada ortodoxos, com acento na 7ª sílaba, conforme aponta Péricles Eugênio da Silva Ramos em O verso romântico e outros ensaioslxi. Nos versos citados acima é admirável também a naturalidade dos versos de Machado, que conservam a linguagem simples e direta de Dante, algo que fica ainda mais evidente ao compararmos a tradução de Machado com a dos tradutores Ítalo Eugênio Mauro: No final de sua fala, esse ladrão Ambas as mãos ergueu, fazendo figas E gritou: “Toma, Deus, que pra ti são”863. e José Pedro Xavier Pinheiro: Assim dizia o roubador e, alçando Ambas as mãos, que figuravam figas: “Toma, ó Deus”, exclamou, “o que te mando”864. É difícil concordar que qualquer uma das traduções acima soe tão natural hoje quanto a de Machado. As aliterações de fazendo figas de Mauro ou figuravam figas de Pinheiro não correspondem sonoramente à utilizada por Dante, embora se note a preocupação dos tradutores com a necessidade de se recuperar este traço estilístico do poema. Há, no verso de Dante, uma aliteração com o fonema “m” em mani/amendue, que Machado soube conservar no par “mãos/modo”, cujo som reforça e remete às mãos e ao gesto feito. Além disso, a escolha de “brada” por Machado para compor a rima do segundo verso remete sonoramente ao par ladro/squadro utilizada por Dante, feito que nenhum dos outros tradutores alcançou. Por outro lado, soa pouquíssimo agradável e até cacofônico o trecho “pra ti são” na tradução de Mauro. No terceto a seguir, em tradução de Machado, Dante interpela o leitor – artifício bastante 862 ASSIS, 1976, p. 484 ALIGHIERI, 1998, p. 169 864 ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno. Ilustração de Gustave Doré. Trad. Xavier Pinheiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 126. 863 407 utilizado pelo próprio Machado – para anunciar o que narrará em seguida: a transfiguração de dois homens em um só ser: Se tu se' or, lettore, a creder lento ciò ch'io dirò, non sarà maraviglia, ché io che 'l vidi, a pena il mi consento865. Machado, novamente, produz decassílabos perfeitos em sua tradução, com acento na 6ª sílaba no primeiro verso do terceto acima e na 4ª sílaba nos demais. O mais interessante, no entanto, é notar que no plano semântico seus versos atingem uma fluidez natural, versos acessíveis que mesmo o leitor moderno consegue ler e acompanhar sem dificuldade, mostrando compreender bem o que Dante queria dizer com a creder lento, ou seja, ter dificuldade em acreditar: Leitor, não maravilha que aceitá-lo, ora te custe o que vai ter presente, pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo866. Os demais tradutores não atingem o mesmo resultado. A tradução de Pinheiro, embora contemporânea à de Machado de Assis, causa estranheza devido à sintaxe pouco usual, distante da sintaxe direta do texto italiano: Em crer o que eu contar se fores lento, não há de ser, leitor, para estranhado; Quase o que eu vi descrê meu pensamento867. A tradução de Mauro, embora menos obscura, ainda fica aquém da naturalidade dos versos de Machado. Curiosamente, nota-se que, ao contrário do que realiza Machado, ambos atribuem o advérbio lento do verso italiano ao leitor, tornando-o um adjetivo e, por conseguinte, de certo modo desqualificando o leitor, o que não é o caso no texto de Dante. É possível que Mauro estivesse tentando estrangeirizar o português, adotando o mesmo sentido que “lento” tem em italiano, mas não é a leitura mais imediata que se faz da tradução dele: Se acreditar, leitor, tu serás lento, no que eu direi, não me será surpresa, pois eu, que o vi, a custo inda o sustento868. O que foi visto até aqui é reforçado pelo trecho abaixo, em tradução de Machado: Os outros dois bradavam: «Ora pois, 865 ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 171 ASSIS, 1976, p. 485 867 ALIGHIERI, 2017, p. 127 868 Ibid., p. 171 866 408 Agnel, ai triste, que mudança é essa? Olha que já não és nem um nem dois!» Faziam ambas uma só cabeça, e na única face um rosto misto, onde eram dois, a aparecer começa. Dos quatro braços dous restavam, e isto, Pernas, coxas e o mais ia mudado Num tal composto que jamais foi visto869. quando lido em comparação com o trecho correspondente em italiano: Li altri due 'l riguardavano, e ciascuno gridava: «Omè, Agnel, come ti muti! Vedi che già non se' né due né uno». Già eran li due capi un divenuti, quando n'apparver due figure miste in una faccia, ov'eran due perduti. Fersi le braccia due di quattro liste; le cosce con le gambe e 'l ventre e 'l casso divenner membra che non fuor mai viste870. Como antes, temos ótimos decassílabos com a manutenção das terza rimas sem precisar recorrer a rimas fáceis ou pobres, ou sacrificar a imediata compreensão dos versos e, consequentemente, do que está sendo narrado. Mais notável ainda é o quanto Machado é capaz de distanciar-se do texto italiano sem, contudo, parecer-lhe infiel, exagerado ou equivocado. A única alteração mais radical de Machado se dá no verso 74, que em Dante diz, em tradução literal, a coxa com a perna e o ventre/barriga e o peito, que Machado traduz por pernas, coxas e o mais ia mudado, em que ventre/peito somem, aparentemente, mas de que a frase e o mais dá conta adequadamente. Ao compararmos com as demais traduções transcritas a seguir, encontraremos rimas muito menos interessantes do que as de Machado: Mauro chega a rimar um com um, e não é difícil encontrar outros exemplos de rimas igualmente pobres, como em restara/anulara ou mistos/malquistos/vistos: Os outros dois olhavam; deles, um gritava: “Agnel, como mudou tua cara! olha, que já não és nem dois nem um!” Das duas cabeças já uma só restara; surgiam agora os dois semblantes mistos num rosto só, que os outros anulara. 869 870 ASSIS, 1976, p. 486 ALIGHIERI, 1998, p. 171 409 Fez-se dois braços dos quatro malquistos; coxas co’ as pernas, barriga co’ o peito, transformaram-se em membros nunca vistos871. O mesmo é encontrado na tradução de Pinheiro, que rima percebendo/podendo, ou mudado/misturado, ainda utilizando uma linguagem que hoje soa datada, com trechos que obrigam o leitor moderno a voltar e ler novamente para tentar entender o que se está dizendo, como em “Um já não é mas dois ser não podendo!”, que Machado consegue transportar habilmente em “Olha que já não és um nem dois!”: Os dois, a maravilha percebendo gritavam-lhe: - “Ai! Agnel, quanto hás mudado! Um já não é mas dois ser não podendo!” Numa cabeça as duas se hão tornado; Confundidos estavam dois semblantes num rosto em que se haviam misturado. São os dois braços, que eram quatro de antes Foram coxas e pernas, ventre e peito Membros, que nunca hão tidos semelhantes872. Reconhecemos que a crítica feita aos tradutores Ítalo Eugênio Mauro e José Pedro Xavier Pinheiro talvez seja severa demais, dada a envergadura da obra e a inestimável contribuição que deram às letras brasileiras disponibilizando versões completas em nossa língua do texto de Dante. Mas é perceptível que a tradução de Machado de Assis tem feições que lhe dão um frescor que não encontramos nas outras duas, sem que para isso o tradutor precisasse distanciarse semanticamente do texto italiano. Nesta tradução, ainda que não seja a última tradução do poeta, encontramos aquele que talvez seja o seu melhor trabalho nesta seara, reconhecido como uma das mais primorosas traduções da obra de Dante por poetas-tradutores a estirpe de Augusto de Campos (2003), que disse ter Machado de Assis elaborado “[...] uma das mais bemsucedidas traduções de um canto dantesco já feitas entre nós”, adotando caminho oposto àquele seguido por Xavier Pinheiro que, pelo uso excessivo de contorcionismos sintáticos, produz uma “desconcertante distorção” que lhe emperra o passo873. Estamos, sem dúvida, diante do que Meschonnic chamou de boa tradução: “[...] aquela que segue o que constrói o texto, não apenas em sua função social de representação (a literatura), mas em seu funcionamento semiótico e semântico”874. É nítido o quanto neste caso – e bem diferente do que se observou até aqui – 871 ALIGHIERI, 1998, p. 171 ALIGHIERI, 2017, p. 128 873 CAMPOS, Augusto de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003, p. 181 874 MESCHONNIC, 2010, p. 28 872 410 Machado de Assis recria o canto de Dante dando igual atenção não só à narrativa, que é transportada habilmente para a nossa língua, mas à forma do poema, mesmo com toda a dificuldade imposta pela terza rima e o desejo de se chegar à uma sintaxe direta e natural como a de Dante. Sonia Netto Salomão, que também apresenta um estudo desta tradução em Machado de Assis e o cânone ocidental, salienta “[...] a coerência com seu projeto estético e ideológico”, em que Machado de Assis “[...] traduz um modelo, um cânone da literatura universal, e, ao mesmo tempo, faz uma adaptação no âmbito da língua e da cultura brasileira de seu tempo. O resultado é o de uma tradução moderna, que segue muitos dos preceitos da ciência da tradução dos nossos dias”875. A autora considera a versão de Machado de Assis “bastante fiel”, com a ressalva de que Machado não faz uma “versão literal”. Nem poderia fazê-lo se quisesse que sua tradução fosse, sobretudo, poética. Não se deve entender, com isso, que a autora estivesse diminuindo o trabalho de Machado. Na verdade, a sua avaliação, assim como a nossa, é a de que a estratégia adotada pelo tradutor, neste caso assim como nos demais, “[...] demonstra uma percepção pessoal da empresa tradutória”876. A autora também nota a técnica de compensação utilizada pelo tradutor, que consiste em “[...] recuperar em determinadas passagens o que teve que sacrificar antes”877, também já vista em outras traduções que estudamos, como na de La Fontaine que veremos a seguir. A análise de Sonia Salomão também revela que as outras estratégias adotadas pelo tradutor neste caso já foram observadas anteriormente em nosso estudo, como o sintetismo, opções por traduções mais comunicativas do que literais ou literalizantes, adoção de perspectivas levemente diversas, tendo em vista sempre a fluidez e comunicabilidade no poema recriado. O estudo de Sonia Salomão também se estende para a reverberação de Dante na obra de Machado de Assis, particularmente no que chama de “enxerto no Quincas Borba: Rubião no Inferno”, mais um exemplo de como o contato com determinados textos via tradução pode enriquecer outras searas de sua obra autoral, a exemplo do que faz com uma fábula de La Fontaine neste mesmo romance. O “curioso ‘enxerto’” que Machado faz do canto XXV por ele traduzido no capítulo CXLVIII de Quincas Borba (1890) caracteriza, para a autora, “[...] particular exemplo de intertextualidade e lançando o olhar brasileiro para uma peculiaridade que é afim ao seu trabalho”878. Nos dois capítulos anteriores a este no romance vemos Rubião 875 SALOMÃO, 2016, p. 400 Ibid., p. 390 877 Ibid. 878 Ibid., p. 81 876 411 tirar a barba com o auxílio de um barbeiro francês, que molda o rosto de Rubião à imagem de um busto de Napoleão. Segue-se um breve delírio em que Rubião vê a si mesmo governando um Estado e ouvindo ministros e embaixadores. De volta a si, vai a um jantar com os seus comensais que elogiam o novo rosto e fazem com que se sinta novamente como o imperador dos franceses. Surge então a passagem a que a autora se refere: Dante, que viu tantas coisas extraordinárias, afirma ter assistido no inferno ao castigo de um espírito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente único, se dois. Rubião era ainda dois. Não se misturavam nele a própria pessoa com o imperador dos franceses. Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais879. A autora identifica neste episódio “[...] uma perda de identidade que também é expressa por Dante nas metamorfoses em que os ladrões perdem a identidade física, sendo destruídos por um processo que beira o autofágico porque se confundem com as serpentes e com a própria encarnação do mal”880. Deste episódio Sonia Salomão conclui que “[...] a metamorfose de Rubião se dava, principalmente, no nível psicológico; esta a novidade machadiana em relação a Dante, seguramente: a loucura de Rubião. Loucura que, na sua esquizofrenia, vai sempre apontar para aquela sugestão dantesca das figuras híbridas”881. Machado também alude ao canto XXV do “Inferno” em “As academias de Sião”, de Histórias sem data (1884). O conto é uma demonstração magistral da capacidade que o escritor tinha de abordar determinados temas deixando para o leitor todo o trabalho de pensar sobre as suas implicações. A partir da leitura do conto, algumas referências sugerem que a ação se passa no oriente hindu, possivelmente onde hoje se encontra a Tailândia, antigamente conhecida como Sião. Não entraremos em detalhes do conto, visto que nos interessa como Machado se aproveita do canto XXV e tece com ele uma interessante trama intertextual que sugere uma desleitura do poema dantesco. O dilema que se apresenta às academias é o porquê de existirem homens femininos e mulheres masculinas e, portanto, se a alma é sexual ou neutra. O dilema se apresenta devido à índole do rei: “Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas”882. Após uma das academias decidir que a alma é neutra, enquanto as demais acreditavam na alma sexual, Kinnara, uma das concubinas, pede que o rei se posicione. Diante da recusa do monarca, Kinnara propõe uma troca de corpos para 879 ASSIS, 2015, vol. 1, p. 864 Ibid., p. 85 881 SALOMÃO, Op. Cit., p. 86 882 ASSIS, 2015, vol. 2, p. 427 880 412 ajudá-lo a decidir, utilizando uma fórmula de invocação que fora utilizada por Mukunda, rei dos hindus. O rei concorda com a troca, desde que por somente um semestre, e a troca é feita. Após a transmutação dos corpos, encontramos o trecho em que o narrador nos remete ao canto XXV do “Inferno”: Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados, continuam a falar e a viver juntos - cousa evidentemente mais dantesca, em que me pese à modéstia883. O narrador não só pede que os leitores reparem que a situação era aquela vista no “Inferno”, como ainda destaca sua “audácia”: considera-se superior ao poeta italiano e àqueles que ele cita, e cria uma situação mais dantesca do que a de Dante, pois seus heróis convivem entre si com naturalidade mesmo após a estranha metamorfose. Os frutos do contato de Machado de Assis com a Divina Comédia, evidentemente, também são observáveis desde muito cedo na sua poesia. Machado já empregava a terza rima, encerrando seu poema em um quarteto à maneira de Dante, desde seu primeiro volume de poesias, Crisálidas (1864), como em “No Limiar”, de 1863: Caía a tarde. Do infeliz à porta, Onde mofino arbusto aparecia De tronco seco e de folhagem morta Ele que entrava e Ela que saía Um instante pararam; um instante Ela escutou o que Ele lhe dizia; [...] Ambos, com um olhar se compreenderam. Um penetrou no lar com passo ufano; Outra tomou por um desvio. Eram: Ela a Esperança, Ele o Desengano884. Ishimatsu, que considera este o único poema verdadeiramente machadiano de Crisálidas, lembra que esta alegoria lida com os temas recorrentes no livro, esperança e desengano, e ressalta que a forma empregada não era comum entre os românticos brasileiros885, afirmação corroborada por Sonia Netto Salomão, que também destaca Machado de Assis dos demais no que diz respeito ao culto aos versos dantescoslxii, acrescentando que, “[...] no que diz 883 ASSIS, 2015, vol. 2, p. 429 ASSIS, 2009, p. 300 885 ISHIMATSU, 1984, p. 65 884 413 respeito aos tercetos, Machado de Assis era um dos mais preparados”886. Cláudio Murilo Leal concorda com Ishimatsu e considera este poema “um dos mais bem realizados” de Crisálidas, de “qualidade excepcional” pois “[...] inova, principalmente pela adaptação da escritura do verso ao ritmo e às entonações da oralidade, sem abandonar as mais elaboradas soluções linguísticas do sermo nobilis”887. A terza rima também é empregada a partir da segunda estrofe da parte IX de “A Cristã Nova” e nas duas partes de “Última Jornada”, ambos de Americanas (1875). Machado emprega a terza rima também em “Uma Criatura” e “José de Anchieta”, nas Ocidentais de Poesias completas (1901). O poema “Uma Criatura”, contudo, difere dos demais por empregar alexandrinos clássicos em vez de decassílabos italianos: Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas Com a sofreguidão da fome insaciável. [...] Traz impresso na fronte o obscuro despotismo, Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo. Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso. [...] Pois essa criatura está em toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; E é nesse destruir que as suas forças dobra. Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida888. “Uma Criatura”, uma das melhores realizações poéticas de Machado de Assis, mostra que o nosso poeta é capaz de aprender com o modelo estrangeiro e superá-lo. É nítido o contraste entre esta peça e “No Limiar”: lá o poeta adota um tema mais introspectivo, mais afeito à estética romântica, embora já ensaiasse o contraste que irá explorar com muito mais profundidade posteriormente. Se em “No Limiar” temos um diálogo entre a “Esperança” e o “Desengano”, opostos claramente divididos e delimitados, “Uma Criatura” descreve um único ser que carrega os opostos consigo, posto que “cinge ao coração o belo e o monstruoso”889. A 886 SALOMÃO, 2016, p. 389 LEAL, 2008, p. 71 888 Ibid., p. 226-227 889 ASSIS, 2009, p. 226 887 414 “criatura” descrita no poema é, a um só tempo, a Morte e a Vida, porque uma não existe sem a outra. É possível ver que neste poema Machado de Assis empresta da Divina Comédia muito mais que a terza rima: o grotesco e o sublime, o horror do belo e a beleza do horror, tão caros ao “Inferno” de Dante, particularmente do canto que traduziu, estão aqui amalgamados em uma só criatura, como o ladrão e a cobra. Em um artigo publicado em 2017lxiii, propusemos uma aproximação dos métodos tradutórios de Machado de Assis e Augusto de Campos para demonstrar que, pelo menos no caso desta tradução, Machado de Assis alça seu trabalho a um patamar razoavelmente moderno quanto à percepção do que é o fazer tradutório. Com Machado de Assis, aprendemos que a tradução poética é muito mais do que mera reprodução de sentido, ou simples imitação da forma, mas um trabalho constante de recuperação do modus operandi do texto traduzido, do seu modo de significar, de um entendimento mesmo do que é o texto literário para que, a partir desses elementos, seja possível recriá-lo, reencená-lo, fazendo com que renasça por outras mãos, em outro tempo, língua e cultura. Por fim, uma última distinção deve ser feita entre o trabalho de Machado de Assis e o de Ítalo Eugênio Mauro e José Pedro Xavier Pinheiro: a tradução de Machado de Assis é mais do que uma tradução do Canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia de Dante Alighieri. Quando ganha outro título, “Dante”, e passa a figurar entre os poemas de seu livro de poesias Ocidentais, ela se torna também uma peça original de Machado de Assis em que o poetatradutor carioca apresenta e presta homenagem ao poeta florentino à sua maneira, legando ao público um poema que apresenta uma espécie de síntese de um pensamento poético que ele procura resgatar. “Dante” é uma tradução, mas também é um original machadiano e deve ser lido em diálogo com a proposta das demais peças de Ocidentais e com o restante da obra do autor. 10.8 “Os animais iscados da peste” Esta foi, muito provavelmente, a última tradução francesa de Machado de Assis. Foi também a penúltima tradução poética do escritor, sucedida apenas pela tradução do “Prólogo” do Intermezzo de Heinrich Heine, mas a última a ser revista por ele. Antes de ser incluída nas Ocidentais, foi publicada em um volume que saiu em Portugal, impresso em Paris, intitulado Fábulas de La Fontaine, em 1886, ilustrado por Gustave Dorélxiv. Além de Machado de Assis, há traduções de diversos poetas brasileiros e portugueses, entre eles Bocage, Barão de 415 Paranapiacaba, Gonçalves Crespo e Teófilo Braga. A respeito desta edição, a Bibliografia de Machado de Assis de Galante de Sousa informa que a primeira publicação se deu em fascículos e estabelece como data limite para a tradução de Machado de Assis a data em que saiu o fascículo com a sua tradução, 12 de julho de 1886890, podendo, é claro, ser anterior a essa data. As fábulas de Jean de La Fontaine foram publicadas pela primeira vez em março de 1668891, chegando ao aniversário de 350 anos quando este texto foi redigido. “Les animaux malades de la peste”, contudo, só foi incluída no conjunto dez anos mais tarde, na edição de 1678-1679892, abrindo o Livro VII. Assim, a poesia de La Fontaine – nascido em 1621 – é obra de uma maturidade já avançada. Quando publica a primeira coleção de suas fábulas, já contava 47 anos893, coincidentemente a mesma idade de Machado de Assis em 1886, quando sua tradução é publicada. As fábulas de La Fontaine, um painel da vida humana e da sociedade francesa da época, são obra de um escritor que, conforme a Histoire de la littérature française (1920) de Gustave Lanson, “[...] conhece o homem como Molière, a sociedade como SaintSimon”894. Ainda segundo Lanson, La Fontaine não teria inventado nada: toda sua matéria vem dos fabulistas de profissão ou de ocasião que o precederam, de um acontecimento contemporâneo ou de versos cedidos por algum conhecido895. Na sua introdução, Jean-Pierre Collinet (1991), responsável pela edição crítica das Fables de La Fontaine publicada pela Gallimard, explica que a poesia das fábulas se deixa mais sentir do que analisar896 porque La Fontaine sabia “[...] que a linguagem poética, graças aos recursos expressivos do metro, da rima e da música verbal, tira a densidade da prosa”897. Ainda segundo Collinet, o sistema de La Fontaine surpreende pela simplicidade, sendo frequente a mistura de dois metros, em geral alexandrinos e octossílabos, ou três, quando são incluídos também os decassílabos ou heptassílabos, ou mesmo outro verso mais curto. As fórmulas não são inventadas pelo fabulista, mas emprestadas, assim como ocorre com os assuntos das 890 SOUSA, 1955, p. 586 DANDREY, Patrick; CALINON, Monique. “Mars 1668: les Fables de La Fontaine voient le jour”. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/blog/06032018/mars-1668-les-fables-de-la-fontaine-voient-le-jour>. Acesso em 16 mar. 2018. 892 LA FONTAINE, Jean de. Fables. Édition critique de Jean-Pierre Collinet. Paris: Éditions Gallimard, 1991, p. 17 893 LANSON, Gustave. Histoire de la littérature française. 14 ed. Paris: Librarie Hachette, 1920, p. 558. 894 Ibid., p. 560, tradução nossa. No original: “connait l’homme comme Molière, la société comme Saint-Simon” 895 Ibid., p. 561 896 COLLINET, Jean-Pierre. “Introduction”. In: LA FONTAINE, Jean de. Fables. Paris: Éditions Gallimard, 1991, p. 7 897 Ibid., tradução nossa. No original: “que le langage poétique, grâce aux ressources expressives de la mesure, de la rime et de la musique verbale, l’emporte en densité sur la prose”. 891 416 fábulas. Jean de La Fontaine, portanto, apropria-se de obras e textos mais sutilmente do que qualquer outro entre seus contemporâneos e é a partir desse material que as fábulas são construídas898. O editor explica que La Fontaine se apoia no “[...] postulado de uma correspondência simbólica entre o macrocosmo e o mundo pequeno, que é o homem” e por isso sua fábula “[...] relaciona-se com a parábola e apresenta a criação na sua totalidade como uma vasta metáfora do mundo moral”899. Contudo, com a publicação do segundo conjunto de fábulas – do Livre VII em diante, onde, como dissemos, se encontra a fábula traduzida por Machado de Assis – a poesia de La Fontaine eleva suas fábulas “ao limiar da poesia filosófica”900 o que leva Collinet a concluir que “[...] nenhuma obra dá uma imagem mais fiel nem mais completa do século XVIII, e expressa melhor a alma em toda sua complexidade, com seus conflitos e suas contradições”.901 Mencionamos anteriormente que Jean de La Fontaine colhia os temas de suas falas de diversas fontes e lhes dava sua forma pessoal, num trabalho que se assemelha ao de um tradutor cultural. Com “Les animaux malades de la peste” não teria sido diferente. De acordo com anotação de Collinet, a tripla confissão do Leão, absolvido pela Raposa, do Lobo e do Burro, deriva de uma tradição medieval e cristã que se observa nos sermões (Holkot, Barleta, Raulin), depois entre os fabulistas ou autores de emblemas (Philelphe, 12, Haudent, II, 60, Gueroult, Emblema 15 e Fábula Moral do Leão, o Lobo e o Burro), bem como nos contadores de histórias (Larivey em sua tradução de Strapole, Facetious Nights, XIII, I ). Não mais religiosa e dirigida contra o clero, mas política e dirigida aos ministros e conselheiros dos reis, a sátira deriva de uma fonte oriental, atestada no Panchatantra, na Hipotadeça, no Livro de Kalila e Dinna e no Livro das Luzes (pp. 118-122). Uma cópia manuscrita - não autógrafa - da fábula na coleção de Trallage (coleção reunida por Jean-Nicolas de Trallage e guardada na Biblioteca do Arsenal) traz a data ‘1674’.902 “Les animaux malades de la peste” é composta dentro das características já anotadas por Collinet em sua introdução: sessenta e quatro versos em alexandrinos clássicos e 898 COLLINET, 1991, p. 8 Ibid., p. 9., tradução nossa. No original: “s’apparente à la parabole, et présente la création dans son ensemble comme une vaste métaphore du monde moral”. 900 Ibid., p. 14., tradução nossa. No original: “au seuil de la poésie philosophique” 901 Ibid., tradução nossa. No original: “nulle œuvre ne donne du XVIIIe siècle une image plus fidèle ni plus complète, et n’en exprime mieux l’âme dans toute sa complexité, avec ses conflits et ses contradictions”. 902 LA FONTAINE, 1991, p. 493-494, tradução nossa. No original: “la triple confession du Lion, absous par le Renard, du Loup e de L’Âne dérive d’une tradition médiévale et chrétienne qu’on suit chez les sermonnaires (Holkot, Barleta, Raulin), puis chez les fabulistes ou les auteurs d’emblèmes (Philelphe, 12, Haudent, II, 60, Guéroult, Emblème 15 et Fable morale du Lion, du Loup et de l’Âne), ainsi que chez les conteurs (Larivey dans sa traduction de Strapole, Facétieuses nuits, XIII, I). Non plus religieuse et dirigé contre le clergé, mais politique et visant les ministres et conseillers des rois, la satire découle d’une source orientale, attestée dans le Panchatantra, l’Hipotadeça, le Livre de Kalila et Dinna et le Livre des lumières (pp. 118-122). Une copie manuscrite – non autographe – de la fable dans le recueil de Trallage (collection réunie par Jean-Nicolas de Trallage, et conservée à la Bibliothèque de l’Arsenal) porte da date « 1674 »”. 899 417 octossílabos que não seguem uma distribuição regular, com rimas finais, sempre mistas, e algumas rimas internas. Como se trata de uma fábula, o leitor deve estar atento à moral ou ensinamento que o texto transmite. Neste caso, as diferentes espécies de animais, cujos nomes são sempre grafados com letras maiúsculas na edição francesa consultada, representam diferentes estratos sociais e há uma clara demonstração do poder da eloquência, da manipulação não só da fala, mas dos lugares de fala, em benefício próprio. É, sem dúvida, uma demonstração do quanto saber expressar-se bem e compreender o discurso do outro privilegia determinados grupos em detrimento dos demais, principalmente dentro de um sistema jurídico que se mostra parcial, condenando o sujeito não conforme sua culpa, mas segundo sua posição social. No enredo da fábula, o que move a ação é a doença – a peste – de que os animais foram acometidos, doença que espalha a morte e o terror, e atinge a todos indistintamente. Em nota ao texto, Collinet explica que a referência à peste nos primeiros versos da fábula remete a várias fontes literárias, como Lucrécio (De Natura Rerum, VI, v. 1135-1283), A Ilíada (I, v. 8-10 et 43-53), Édipo Rei (v. 22-30), Tucídides (II, 2, 47-54), as Geórgicas (III, v. 474-566), o Decamerão de Boccacio no preâmbulo da “Primeira Jornada” e até mesmo ao versículo 12 do Primeiro Livro de Reis903. Considerando que o mal que os assola é um castigo divino, o Leão convoca todos os seus súditos e sugere que cada um confesse seus pecados. Aquele que for culpado do maior pecado deverá sacrificar-se para aplacar a ira divina: “Que le plus coupable de nous / Se sacrifie aux traits du céleste courroux, / Peut-être il obtiendra la guérison commune”. O Leão, chamado de “Roi” (“rei”) pela raposa, é o primeiro a confessar seus pecados: assume ter devorado muitos carneiros e, por vezes, até o pastor. A Raposa sai em defesa do Rei, justificando a morte dos carneiros como uma honra por serem devorados por tão bom rei. Mesmo o Pastor, segundo a Raposa, teria merecido ser devorado por exercer sobre os animais “empire chimérique” (“império quimérico”). Interessante é notar que em todo o seu discurso, aplaudido pelos outros animais, a Raposa “esquece” do principal: confessar seus pecados para ser jugada como os outros. Também nada grave é encontrado nos animais nobres, que se consideram “petits saints” (“pequenos santos”), até que vem o Burro, com toda ingenuidade, confessar-se, numa fala que deixa transparecer certo embaraço ao expressar seu pensamento, construindo um período longo, fragmentado, com muitas vírgulas, quebrando o ritmo dos versos: L’Âne vint à son tour et dit: J’ai souvenance Qu’en un pré de Moines passant, 903 LA FONTAINE, 1991, p. 494 418 La faim, l’occasion, l’herbe tendre, et je pense Quelque diable aussi me poussant, Je tondis de ce pré la largeur de ma langue. Je n’en avait nul droit, puisqu’il faut parler net.904 No verso seguinte, “À ces mots on cria haro sur le Baudet”, surge a locução popularizada por esta fábula de La Fontaine e corrente até hoje na língua francesa: “crier haro sur le baudet” significa, além de expressar uma indignação, acusar injustamente um inocente, como ocorre com o Burro da fábula. Em seguida, há o relato do Lobo “quelque peu clerc” (“um pouco instruído”) que faz um longo e tedioso discurso – “prouva par sa harangue” – a favor do sacrifício do Burro pois era certo que o mal que se abatia sobre eles se originava no “crime abominável” do Burro: “Manger l’herbe d’autrui!” (“Comer a grama alheia!”). Também sem confessar seus pecados, o discurso do Lobo leva o Burro à morte, e a fábula é concluída com a máxima que encerra uma constatação sobre a sociedade humana: “Selon que vous serez puissant ou misérable, / Les jugements de Cour vous rendront blanc ou noir” (em tradução livre, algo como “A depender de sua condição de poderoso ou miserável / Os julgamentos da Corte te farão inocente ou culpado”). Trata-se, é claro, de uma ferrenha crítica a um senso deturpado de justiça que pune ou absolve não conforme o grau da culpa, mas conforme a posição social, a erudição ou poder do julgado. Deve-se ressaltar ainda que nesta máxima há uma alteração nos tempos verbais: se antes havia o emprego constante de tempos verbais passados, como o passé simple e o imparfait, a moral é expressa no futur simple (serez/rendront), sugerindo a atemporalidade do ensinamento. Evidentemente, os animais desta fábula remetem a grupos sociais em diferentes camadas da sociedade humana da época, e mesmo de hoje: num extremo, temos o Leão representando o governo, a monarquia, as posições mais altas de poder; noutro, o Burro simbolizando o gentio inculto que não sabe se expressar ou se defender, nem compreender de fato o que se passa, e que por isso mesmo fica à mercê daquela parcela da população que, como a Raposa e o Lobo, se aproveita de sua posição privilegiada para fazer valer sua vontade, amparada pela capacidade de discursar e convencer. É certo que La Fontaine se referia à realidade de seu tempo, porém a situação descrita continua hoje tão atual quanto antes, assim como deve ter parecido muito atual à época de Machado de Assis. O desfecho da fábula, com o Burro sendo condenado ao sacrifício para aplacar uma suposta ira divina de que não é culpado, é certamente um tanto trágico. Por isso mesmo serve para explicitar a hipocrisia de uma sociedade que é controlada por quem detém o poder e as condições de ascender a esse poder. 904 LA FONTAINE, 1991, p. 198 419 Esta fábula ilustra bem um dos comentários de Lanson a respeito de La Fontaine em suas fábulas: “Ele não versificou os temas de Esopo e Phedre: ele traduziu visões pessoais da vida, que sua reflexão fazia transparecer através de linhas magras e sem caráter dos temas tradicionais”905. Agindo assim, La Fontaine teria sido uma espécie de tradutor cultural que primeiramente assimila o estrangeiro para depois expressá-lo segundo uma visão pessoal. Não muito diferente, portanto, da maneira de agir de Machado de Assis. Pouco mais adiante, Lanson continua com avaliações que podem conter uma explicação do interesse de Machado pelo fabulista francês: Para dizer a verdade, o lirismo está por todo lado nessas fábulas: a individualidade do poeta se manifesta com uma graça encantadora, uma individualidade que nada tem de romântico, ardente, barulhenta, que é de uma sutileza irônica, uma sensibilidade discreta. Há uma mistura singular de descrição objetiva e expansão subjetiva, uma transição contínua e fácil de uma para outra.906 “Sutileza irônica”, “sensibilidade discreta” ou “descrição objetiva e expansão subjetiva” são expressões facilmente aplicáveis ao Machado de Assis da maturidade. Certamente o contato entre La Fontaine e Machado de Assis trouxe alguma contribuição para a formação da índole do escritor, não sendo sensato negar a afinidade entre eles. Quando de sua primeira edição, a fábula traduzida por Machado saiu com o título levemente diferente: “Os animais enfermos da peste”. A troca de “enfermos” por “iscados” no título conota que o tradutor buscava ampliar as conotações do texto já pelo título. “Enfermos” traduz mais proximamente o termo francês “malades” do título original – “Les animaux malades de la peste” –, mas ao rever o poema para incluí-lo em Ocidentais o poeta resolve dizer que os animais não estão “enfermos”, ou “doentes”, mas “contaminados” ou “contagiados” pela peste. Não devemos esquecer, contudo, que o verbo “iscar”, tão incomum aos nossos ouvidos de hoje, também significa engodar, ou enganar, algo que amplia e enriquece a polissemia do texto. Assim, o contágio deixa de ser somente físico para se tornar também moral. Além desta variação, há outras relatadas pela edição crítica das Poesias completas, como o verso oito, que foi alterado de “Já nenhum pode dar vida ao moribundo alento / Catava mais nenhum sustento” para “Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento, / Catava mais nenhum sustento”. As 905 LANSON, 1920, p. 562, tradução nossa. No original: “Il n’a pas versifié les sujets d’Ésope et de Phèdre : il a traduit des visions personnelles de la vie, que sa réflexion faisait transparaitre à travers les lignes maigres et sans caractère des thèmes traditionnels”. 906 LANSON, 1920, p. 562, tradução nossa. No original: “A vrai dire, le lyrisme est partout dans ces fables : l’individualité du poète s’épanche avec une grâce charmante, une individualité qui n’a rien de romantique, de fougueux, de tapageur, qui est toute en finesse ironique, en sensibilité discrète. Il se fait un mélange singulier de description objective et d’expansion subjective, un continuel et facile passage de l’une à l’autre”. 420 demais divergências são, em sua maioria, aparentes falhas da edição anterior corrigidas nas Poesias completas. Para o cotejo entre tradução e texto-fonte, é sempre uma preocupação saber qual foi a edição utilizada pelo tradutor ou, diante da impossibilidade de precisar qual teria sido a edição, ver o que estava no horizonte de possibilidades. No caso das fábulas de La Fontaine, foi possível consultar seis edições diferentes anteriores à tradução de Machado de Assis, publicadas entre 1838 e 1878. Não encontramos entre elas nenhuma discrepância digna de nota, mas uma coincidência que pode explicar um dos procedimentos do tradutor: em nenhuma dessas edições consultadas os nomes dos animais são escritos com letras maiúsculas, mesmo procedimento adotado na tradução de Machado de Assis, ao contrário da edição crítica preparada por JeanPierre Collinet, utilizada como texto-base do cotejo que faremos a seguir. Esta edição crítica foi preparada com base na edição original de 1668 para os seis primeiros livros, e a edição de 1678-1679 para os demais, excetuando-se o último livro, que segue a edição de 1693lxv. O editor diz ter modernizado a ortografia a não ser nos casos em que a medida, rima ou eufonia exigia que se mantivesse a grafia original. Feitas essas considerações, leiamos lado a lado os poemas de La Fontaine e Machado de Assis para apreciarmos as decisões do nosso poeta-tradutor: Quadro comparativo 39 – “Les animaux malades de la peste” e “Os animais iscados da peste” Les animaux malades de la peste Os animais iscados da peste Un mal qui répand la terreur, Mal que le Ciel en sa fureur Inventa pour punir les crimes de la terre, La Peste (puisqu’il faut l’appeler par son nom) Capable d’enrichir en un jour l’Achéron, Faisait aux animaux la guerre. Ils ne mouraient pas tous, mais tous étaient frappés : On n’en voyait point d’occupés À chercher le soutien d’une mourante vie ; Nul mets n’excitait leur envie ; Ni Loups ni Renards n’épiaient La douce et l'innocente proie. Les Tourterelles se fuyaient ; Plus d’amour, partant plus de joie. Le Lion tint conseil, et dit : « Mes chers amis, Je crois que le Ciel a permis Pour nos péchés cette infortune ; Que le plus coupable de nous Se sacrifie aux traits du céleste courroux, Peut-être il obtiendra la guérison commune. L’histoire nous apprend qu’en de tels accidents On fait de pareils dévouements : Ne nous flattons donc point ; voyons sans indulgence L’état de notre conscience. Mal que espalha o terror e que a ira celeste Inventou para castigar Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste, Capaz de abastecer o Aqueronte num dia Veio entre os animais lavrar; E, se nem tudo sucumbia, Certo é que tudo adoecia. Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento, Catava mais nenhum sustento, Não havia manjar que o apetite abrisse, Raposa ou lobo que saísse Contra a presa inocente e mansa, Rola que à rola não fugisse, E onde amor falta, adeus, folgança. O leão convocou uma assembleia e disse: “Sócios meus, certamente este infortúnio veio A castigar-nos de pecados. Que o mais culpado entre os culpados Morra por aplacar a cólera divina. Para a comum saúde esse é, talvez, o meio. Em casos tais é de uso haver sacrificados; Assim a história no-lo ensina. Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência, Pesquisemos a consciência. 421 Pour moi, satisfaisant mes appétits gloutons J’ai dévoré force moutons. Que m’avaient-ils fait ? Nulle offense : Même il m’est arrivé quelquefois de manger Le Berger. Je me dévouerai donc, s’il le faut ; mais je pense Qu’il est bon que chacun s'accuse ainsi que moi : Car on doit souhaiter, selon toute justice Que le plus coupable périsse. – Sire, dit le Renard, vous êtes trop bon Roi ; Vos scrupules font voir trop de délicatesse ; Et bien, manger moutons, canaille, sotte espèce, Est-ce un péché ? Non, non. Vous leur fîtes Seigneur En les croquant beaucoup d’honneur. Et quant au Berger l’on peut dire Qu’il était digne de tous maux, Étant de ces gens-là qui sur les animaux Se font un chimérique empire. » Ainsi dit le Renard, et flatteurs d'applaudir. On n’osa trop approfondir Du Tigre, ni de l’Ours, ni des autres puissances, Les moins pardonnables offenses. Tous les gens querelleurs, jusqu'aux simples mâtins, Au dire de chacun, étaient de petits saints. L’Âne vint à son tour et dit : « J’ai souvenance Qu’en un pré de Moines passant, La faim, l’occasion, l’herbe tendre, et je pense Quelque diable aussi me poussant, Je tondis de ce pré la largeur de ma langue. Je n’en avais nul droit, puisqu’il faut parler net. » À ces mots on cria haro sur le baudet. Un Loup quelque peu clerc prouva par sa harangue Qu’il fallait dévouer ce maudit animal, Ce pelé, ce galeux, d’où venait tout leur mal. Sa peccadille fut jugée un cas pendable. Manger l’herbe d’autrui ! quel crime abominable ! Rien que la mort n’était capable D’expier son forfait : on le lui fit bien voir. Selon que vous serez puissant ou misérable, Les jugements de Cour vous rendront blanc ou noir. Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glotão, Devorei muita carneirada. Em que é que me ofendera? em nada. E tive mesmo ocasião De comer igualmente o guarda da manada. Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto. Mas, assim como me acusei, Bom é que cada um se acuse, de tal sorte Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto Justo) caiba ao maior dos culpados a morte”. “Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei Bom demais; é provar melindre exagerado. Pois então devorar carneiros, Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado? Não. Vós fizestes-lhes, senhor, Em os comer, muito favor. E no que toca aos pegureiros, Toda a calamidade era bem merecida, Pois são daquelas gentes tais Que imaginaram ter posição mais subida Que a de nós outros animais". Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso. Ninguém do tigre nem do urso, Ninguém de outras iguais senhorias do mato, Inda entre os atos mais daninhos, Ousava esmerilhar um ato; E até os últimos rafeiros, Todos os bichos rezingueiros, Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos. Eis chega o burro: “– Tenho idéia que no prado De um convento, indo eu a passar, e picado Da ocasião, da fome e do capim viçoso, E pode ser que do tinhoso, Um bocadinho lambisquei Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade". Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!" Um lobo, algo letrado, arenga e persuade Que era força imolar esse bicho nefando, Empesteado autor de tal calamidade; E o pecadilho foi julgado Um atentado. Pois comer erva alheia! ó crime abominando! Era visto que só a morte Poderia purgar um pecado tão duro. E o burro foi ao reino escuro. Segundo sejas tu miserável ou forte Áulicos te farão detestável ou puro. Fonte: La Fontaine (1991); Assis (1976) Não é preciso saber francês para perceber que a tradução de Machado de Assis não espelha o texto francês. Não só a distribuição dos versos de metros curtos e longos está diferente como é evidente que a tradução de Machado de Assis é mais longa. Do mesmo modo, a distribuição das rimas também é alterada, bem como não parece haver uma preocupação estrita com a reprodução exata do sentido dos versos. Nada disso surpreende, contudo, quando se 422 conhece o comportamento do tradutor Machado de Assis em outras ocasiões. A reprodução espelhada, conforme o texto-fonte, não era um princípio que regia seu modo de trabalhar. Ainda assim, ao contrário de outras traduções francesas, os metros utilizados por La Fontaine – o alexandrino clássico em combinação com os octossílabos – são mantidos aqui, embora em configuração radicalmente diferente. Trata-se de uma demonstração da sensibilidade tradutória de Machado de Assis em perceber que esta é uma característica que, se mantida, empresta força poética à maneira de La Fontaine ao texto, ao mesmo tempo em que permite que o tradutor dê a ela seu toque pessoal. Machado está demonstrando não ser necessário que um alexandrino corresponda a outro, ou um octossílabo a outro, para que se obtenha por resultado uma tradução poética, o que pode ser estendido ao sentido dos versos e às omissões e acréscimos do tradutor. A lição parece ter sido aprendida com o próprio La Fontaine: se o francês toma os assuntos e se inspira em diversas fontes para depois reescrever as fábulas em verso à sua maneira, dando a elas o toque pessoal, conforme o espírito da língua de chegada, assegurando-lhe um lugar no panteão da literatura mundial, o poeta-tradutor demonstra entender o modo de funcionamento da obra de maneira que busca encontrar, em sua própria língua, os elementos que farão o texto funcionar como obra poética. É preciso que o tradutor seja capaz de encontrar a relação entre forma e sentido que coloque em movimento o texto traduzido buscando nele a independência em relação ao texto-fonte. Tal é o trabalho que se desenha nesta tradução. Desde os primeiros versos, por exemplo, vê-se que o tradutor conserva ao menos algumas das sutis referências a passagens de textos clássicos utilizados por La Fontaine, como a peste que surge como um castigo divino e o rio Aqueronte, através do qual o barqueiro Caronte transportava as almas dos mortos. Chega a ser notável o parentesco entre a escolha vocabular de Machado de Assis ao dizer que a peste “Veio entre os animais lavrar” e o verso 10 da Ilíada, na tradução de Haroldo de Campos: “A peste então lavrou no exército”907. De igual modo, a fala do Leão na tradução de Machado é correta, eloquente e por vezes até mais incisiva e polissêmica do que a do texto francês. Comparemos, por exemplo, os versos “Que le plus coupable de nous / Se sacrifie aux traits du céleste courroux” de La Fontaine com os de Machado de Assis: “Que o mais culpado entre os culpados / Morra por aplacar a cólera divina”. Quando escolhe dizer “o mais culpado entre os culpados” em vez de simplesmente algo mais próximo ao texto-fonte – “o mais culpado de nós” – o poeta-tradutor reforça que entre eles não 907 CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero: vol. 1. 4 ed. São Paulo: Arx, 2003, p. 31 423 há inocentes. Igualmente, há mais vigor em ordenar que o “mais culpado entre os culpados morra” a pedir que ele “se sacrifique”. Assim como as nuances da fala do Leão não só são mantidas como reforçadas, também as da fala do Burro trazem toques pessoais do poeta-tradutor que dão à fala da personagem o ritmo pausado e lento, denotando certa dificuldade em se expressar, e conferindo um tom coloquial que dá ao texto traduzido um notável viço de originalidade que uma tradução apegada à reprodução do sentido dos versos franceses não conseguiria. Quando Machado de Assis toma um verso como “Je tondis de ce pré la largueur de ma langue” (“Cortei deste prado a largura da minha língua”) e o recria em “Um bocadinho lambisquei / da plantação”, ou quando traduz “Quelque diable” por “tinhoso”, dá ao seu poema o frescor da linguagem simples e popular que produz no poema o efeito necessário e desejado. Machado de Assis também demonstra nesta tradução que as compensações por determinadas “perdas” não precisam acontecer necessariamente nos mesmos lugares, dando dois exemplos disso em sua tradução. No quarto verso da fábula original, por exemplo, La Fontaine escreve “La Peste (puisqu’il faut l’appeler par son nom)”, utilizando os parênteses para introduzir um comentário. No trecho correspondente da tradução, o mesmo recurso não é utilizado, e Machado traduz todo o comentário entre os parênteses por “em suma”. Na tradução, o recurso aos parênteses para buscando o mesmo efeito ressurge na fala do Leão, como um recurso retórico que funciona organicamente no trecho “Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto / Justo) caiba ao maior dos culpados a morte”. O mesmo procedimento é adotado para compensar a perda rítmica de “Même il m’est arrivé quelquefois de manger / Le Berger”, em que um alexandrino clássico é seguido por um verso trissílabo com o qual rima e que lhe completa o sentido. A combinação rítmica adequada provém do próprio ritmo do alexandrino clássico de La Fontaine, divido em dois hemistíquios de seis pés cada que, por sua vez, podem ser lidos ritmicamente em dois conjuntos de três pés, de forma que o verso trissílabo “Le Berger” corresponda a uma das unidades rítmicas do verso alexandrino que o antecede. Na sua tradução, Machado verte o trecho em “E tive mesmo ocasião / De comer igualmente o guarda da manada”, em que o alexandrino segue um octossílabo, não guardando qualquer semelhança rítmica com o texto francês. Contudo, aquele efeito é recuperado mais à frente na fábula, quando Machado traduz “Sa peccadille fut jugée un cas pendable” por “E o pecadilho foi julgado / Um atentado”, em que há uma combinação de versos de oito e quatro pés cujo ritmo em muito se assemelha àquele outro, empregando a combinação de versos de oito e quatro pés conforme o princípio de harmonização acentual. Embora os metros e as passagens sejam diferentes, os 424 efeitos rítmicos são análogos, pois o tetrassílabo corresponde a cada uma das unidades rítmicas que o antecede. Há, por fim, uma última intervenção do tradutor digna de nota. Nos versos “Era visto que só a morte / Poderia purgar um pecado tão duro. /E o burro foi ao reino escuro”, Machado age um pouco como La Fontaine e deixa um rastro de outra obra literária no seu texto. Sabendo que Machado de Assis foi leitor atento de Camões, parece-nos possível sugerir que a frase “reino escuro” pode ter vindo de Os Lusíadas, onde ocorre em três momentos: Canto III, estrofe CXVII (“E se tu tantas almas só pudeste / Mandar ao reino escuro de Cocito”)908, Canto IV, estrofe XXXIII (“Se lá no reino escuro de Sumano / Receberdes gravíssimos castigos”)909 e no Canto V, estrofe XXXVI (“Nos pudessem mandar ao Reino escuro / Por nos roubarem mais a seu seguro”)910. Assim como La Fontaine se vale do arcabouço comum da tradição universal, deixando rastros de suas leituras no tecido de suas fábulas, é possível imaginar que Machado de Assis tenha se valido de sua posição de tradutor para também deixar a marca da tradição portuguesa e reafirmá-la na fábula que recria. O contato entre Machado de Assis e La Fontaine – certamente anterior a esta tradução – foi profícuo e deixou diversas marcas na produção do escritor. Já no primeiro romance de Machado de Assis, Ressurreição (1872), há alusões a pelo menos duas fábulas que poderiam ter sido lidas nas versões de La Fontaine, ou mesmo de Esopo (séc. VII a.C) ou Fedro (séc. I a.C), que serviram de fonte para o francês. Certamente La Fontaine aparece em Quincas Borba (1891), citado ao fim do capítulo XC do romance. No trecho, Rubião está abotoando o colete diante de uma janela depois de ter passado um vexame por ter ameaçado de morte uma mulher para que lhe mostrasse outra que, acreditava, poderia ser Sofia. No parapeito da janela passa uma caravana de formigas que levam dois golpes de toalha de Rubião, matando uma porção delas. Arrepende-se imediatamente do ato e, em seguida, ouve uma cigarra cantar algo que parece o nome de Sofia. Vem, então, a conclusão: Oh! Precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensá-las. Essa reflexão é do leitor. Do Rubião não pode ser. Nem era capaz de aproximar as coisas, e concluir delas – nem o faria agora que está a chegar ao último botão do colete, todo ouvidos, todo cigarra... Pobres formigas mortas! Ide agora ao vosso Homero gaulês, que vos pague a fama; a cigarra é que se ri, emendado o texto: Vous marchiez? J’en suis fort aise. 908 CAMÕES, Luiz Vaz de. Os lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 117 CAMÕES, 2002, p. 123 910 Ibid., p. 154 909 425 Eh bien! mourez maintenant.911 O “Homero gaulês” de que fala o narrador é La Fontaine, e o texto que a cigarra emenda é a fábula “La Cigale e la Fourmi”. Na fábula, a Cigarra, depois de cantar durante todo verão, vai pedir alimento à Formiga quando chega o frio. A Formiga, que trabalhou para garantir seu sustento enquanto a Cigarra cantava, dá a lição: –Vous chantiez? j’en suis for aise: Eh bien! dansez maintenant.912 Machado de Assis, como se vê, se apropria da lição da fábula e inverte sua lógica, dando à cigarra de Rubião a revanche pelo tratamento da formiga: Marchavam? Pois agora morram! Mais alusões a La Fontaine – ou talvez a Esopo, fonte de que La Fontaine bebeu – aparecerão em contos de Machado, como “Último Capítulo”, de Histórias sem data (1884), que nos remete à fábula “As rãs que pediam um rei” e “O astrólogo”lxvi, que acena para a fábula “O astrólogo que se deixou cair num poço”. Ambas também surgem no romance Ressurreição (1872), mas é na crônica de 7 de junho de 1896, da série “A semana”, que Machado de Assis toma para si um dos versos de La Fontaine, justamente da fábula que traduzira alguns anos antes, identificação que creditamos à dissertação de Fernanda Oliveira Cunha, Fabulosas crônicas: La Fontaine nas crônicas de Machado de Assis (2015). A crônica trata de um projeto de lei que propunha a transferência da capital da república para outra cidade, proposta que leva o cronista, movido pela “tristeza de ver decapitada a [sua] boa cidade carioca”, a tratar do tema mesmo que esta seja “matéria alheia à [sua] esfera de ação”913. É nesse contexto que Machado de Assis se vale de um dos versos de La Fontaine para descrever o Rio de Janeiro e construir seu argumento: Podeis redarguir que, convertida em Estado, esta cidade teria o seu governador, a sua Constituição, as suas câmaras; mas também se vos pode replicar que se o nosso Rio de Janeiro, Ce pelé, ce galeux, d’où nous vient tout le mal, Tem por perigo o cosmopolitismo, este mesmo cosmopolitismo seria um aliado inerte da rebelião, e a autoridade de um pequeno estado poderia menos, muitos menos, que a do próprio governo federal.914 911 ASSIS, 2015, vol. 1, p. 815 LA FONTAINE, 1991, p. 53. Tradução: “A senhora cantava? Agrada-me sabê-lo. / Pois bem! Agora dance”. 913 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 1199; 1200 914 Ibid., p. 1200 912 426 Conforme a acertada análise que a pesquisadora faz do texto, Machado utiliza a fábula de La Fontaine para reafirmar sua ideologia, “[...] reafirmada com a expressão ‘cosmopolitismo’, que significa justamente o olhar de desprezo lançado para a História e o passado, valorizando somente o mundo moderno e pregando a total indiferença à cultura e aos interesses nacionais”915. Assim como na fábula de La Fontaine, a vontade de um grupo que detém o poder se sobrepõe aos demais, manipulando a opinião pública de forma que a vontade de uma determinada elite pareça a vontade de todos. Fernanda Cunha sugere que tal fato está principalmente identificado na crônica quando o escritor pergunta: “Qual foi o movimento popular que impôs ao Congresso a necessidade de mudança da capital? Realmente, não houve movimento algum”916. É assim que, para Cunha, Machado de Assis, se apropriando do verso de La Fontaine, critica refinadamente a hierarquia social carioca da nascente república917. O Rio de Janeiro é equiparado ao Burro da fábula de La Fontaine, que tem sua morte justificada pelo Lobo que, eloquente como nossos deputados, faz crer que aquela seria a vontade de todos. 915 CUNHA, Fernanda Oliveira. Fabulosas crônicas: La Fontaine nas crônicas de Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015, p. 120 916 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 1200 917 CUNHA, Op. Cit., p. 122 427 11. A tradução como apropriação: o projeto de tradução poética machadiano Em Memorial de Aires (1908), último romance de Machado de Assis, o narrador cita um verso do poema “To ---”, do poeta romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822), que reproduzimos a seguir: One word is too often profaned For me to profane it, One feeling too falsely disdained For thee to disdain it; One hope is too like despair For prudence to smother, And pity from thee more dear Than that from another. I can give not what men call love, But wilt thou accept not The worship the heart lifts above And the Heavens reject not,— The desire of the moth for the star, Of the night for the morrow, The devotion to something afar From the sphere of our sorrow?918 “I can give not what men call love”, primeiro verso da segunda oitava do poema “To --”, é o verso citado pelo narrador do romance de Machado de Assis. Ao dizer que “não pode dar o que os homens chamam amor” o poeta recusa o termo profanado pelo uso insincero, do qual ele não deseja fazer parte. Em vez dar o que os homens chamam “amor”, oferece à pessoa a quem o poema é destinado a devoção da mariposa pelas estrelas, ou da noite que chama pela manhã, deixando claro que sua devoção, muito maior e mais sincera do que aquilo que os homens chamam “amor”, vai além da existência mundana, dos sofrimentos terrenos, e assemelha-se à constância da natureza. Quando inclui o verso “I can give not what men call love” em seu último romance, Memorial de Aires (1908), Machado de Assis faz muito mais do que citar e traduzir o verso de Shelley: é uma apropriação que, de certa forma, ilustra e resume sua prática tradutória, particularmente aquela de que nos ocupamos nesta tese: a tradução de poesia. Para além das implicações intertextuais trazidas por este verso, como o fato de o Conselheiro Aires nutrir por Fidélia admiração análoga à de Percy Shelley por Jane Williams – a quem o poema supostamente se dirige – ou de que ambos, Aires e Shelley, não acreditam que sejam capazes de poder expressar o que sentem com uma palavra tão vilipendiada como “amor”, a maneira 918 SHELLEY, Percy Bysshe. The poetical Works of Percy Bysshe Shelley. London: Edward Moxon, 1840, p. 299 428 como o narrador do romance se apropria do verso ao traduzi-lo é, de certa forma, uma síntese da poética tradutória machadiana. Na anotação de “25 de janeiro” do romance epistolar lemos: [...] Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes, em casa, como lá ficou dito atrás, e tirado de uma das suas estâncias de 1821: I can give not what men call love. Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: “Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!”919 Primeiramente, Aires não cita simplesmente o verso: ele pensa em verso, e pensa em verso de Shelley. Isso quer dizer que o verso de Shelley agora pertence tão intimamente a Aires que o conselheiro exprime/imprime nele seu próprio pensamento. Em seguida, após repetir consigo em inglês o verso de Shelley, o narrador transforma-o em “prosa nossa” seguida de um acréscimo, “um fecho da [sua] composição”. O verso é traduzido em prosa, e a prosa é acrescida de palavras que expressam sentimentos ainda mais particulares do narrador, extrapolando o âmbito do verso de Shelley. A apropriação, portanto, alcança outro patamar: o que seria tradução se torna, para além de tradução, uma desleitura intencional, uma intervenção poética que se apropria de um texto estrangeiro transportando-o para outro tempo, língua, cultura e obra, dos quais passa a fazer parte. Mais do que somente uma apropriação, o verso tem seu significado ampliado pelo acréscimo do conselheiro, tornando-se um dos fios que compõe a trama machadiana. No começo desta tese traçamos como um dos objetivos do trabalho perfilar o poetatradutor Machado de Assis a partir do estudo dos poemas que traduziu, estudo que seria inspirado no trajeto de análise proposto por Antoine Berman em Pour une critique des traductions: John Donne. As etapas finais deste trajeto de análise proporcionariam, após a análise das traduções, a obtenção de dados para reconstruir o modus operandi do poeta-tradutor, o que, por sua vez, poderia nos ajudar a encontrar e entender o que Berman chama da pulsão de traduzir, os motivos que levaram o poeta-tradutor a traduzir, algo que só se realiza de fato na tradução. Esta seria a realização de um projeto que traz implícito um modo de traduzir escolhido pelo poeta-tradutor, projeto este que seria delimitado por um horizonte, pela maneira como o tradutor percebia a sua língua, literatura, cultura, história, enfim, tudo o que de alguma forma seria determinante para sua maneira de pensar e agir. Por isso nos cercamos de 919 ASSIS, 2015, vol. 1, p. 1203 429 informações e dados a respeito não só do tradutor e de sua época, investigamos os limites dos seus conhecimentos linguísticos a partir de suas traduções, verificamos afirmações que foram feitas anteriormente, mas também pesquisamos como e o quê outros poetas-tradutores traduziram. Alinhando-nos também com o conceito de historicidade da tradução proposto por Henri Meschonnic, procuramos observar o trabalho do tradutor tendo em mente a historicidade em que as traduções de Machado de Assis estavam inscritas. Em maior ou menor grau, no decorrer das análises apresentadas anteriormente, vimos que o processo de apropriação observado naquele verso incluído no Memorial de Aires, um processo de apropriação de um texto estrangeiro via tradução e, em alguns casos, sua inclusão na obra dita “autoral”, foi observado desde o início de sua carreira de poeta e tradutor, estando intimamente ligado aos diferentes momentos de seu desenvolvimento. Se Machado tinha de fato um projeto de tradução, consciente ou não, este trazia indícios de passar por uma prática que favorecesse a autonomia do tradutor frente ao texto traduzido. Autonomia para recriar e “aclimatar” à língua de chegada, mas que também revelava, quando reduzia os alexandrinos ao decassílabo português, por exemplo, o estado embrionário da lenta introdução do metro francês na poesia brasileira. Isso poderia explicar a recorrente adoção de uma forma métrica diversa e já consagrada na nossa língua, no que poderia estar sendo “fiel” ao modo de significar do poema estrangeiro, buscando correspondência não ao metro, mas ao que o metro representa no sistema literário a que pertence. Há que se ressaltar, por fim, que é nítida a abertura gradual dos horizontes do escritor para além dos círculos de poetas nacionais e portugueses e a internacionalização das suas influências, afastando-se, de forma igualmente gradual conforme os anos avançavam em sua carreira, do gosto romântico mais tradicional. Contudo, as implicações dessas mudanças que são fortes características de seu projeto não se esgotam aí. Essas informações nos levaram a cogitar a possibilidade de dar um passo além do que o estudo que tentasse contribuir para delinear o Machado de Assis poeta-tradutor ao tomar as traduções poéticas de Machado de Assis como obras e dar elas o devido tratamento crítico. Passamos ao desenvolvimento da ideia de que a tradução também ocupou um papel fundamental, ou talvez até mesmo central, no desenvolvimento de sua poética, uma vez que é praticando a tradução, reescrevendo, recriando modelos estrangeiros que o poeta-tradutor, atuando igualmente como crítico, teve a oportunidade de observar, do modo mais íntimo, as engrenagens que põem a obra para funcionar. Para esclarecer esta proposta, retomaremos em nosso argumento três pontos que evidenciam a relevância que pretendemos dar à prática da tradução na poética machadiana faça sentido. 430 O primeiro deles está relacionado ao que vimos em relação ao público leitor brasileiro do século XIX e à sua formação a partir da leitura de obras traduzidas, principalmente, do francês, coincidindo com a chegada do romance-folhetim que ocupava o rodapé dos jornais num cenário de um desolador analfabetismo da população, o que dificultava ainda mais a captação de um público leitor e espectador cativo, já que era preciso disputar a atenção dos poucos que podiam ser dar ao luxo de ler e ir ao teatro, e que estavam mais interessados em ganhar ares de modernidade e cosmopolitismo alinhando-se com o gosto europeu. Ainda assim, a produção nacional, sozinha, não dava conta de atender aos anseios daquele público e, em meio a isso, vivia-se a falta de incentivos e políticas públicas para desenvolver a cultura nacional. Tinha-se, portanto, condições muito próximas das que vimos ser descritas por EvenZohar em seu conceito de polissistemas literários e a posição da literatura traduzida dentro desse polissistema e que consiste no segundo ponto de nossa argumentação: o espaço deixado pela produção nacional – ou que poderia ser ocupado pela produção nacional fosse ela forte o suficiente para fazer frente ao influxo estrangeiro – era ocupado por traduções de obras estrangeiras que, a um só tempo, educavam o gosto do público consumidor daquela literatura e criavam um lugar de tensão em que o escritor que desejasse conquistar aquele público precisava, de certo modo, adequar-se aos modelos e emulá-los ou mesmo imitá-los. Tinha-se, portanto, as condições que vimos Even-Zohar nomear como necessárias para a centralidade da tradução na nossa literatura: a posição periférica em relação ao “centro” europeu, uma literatura brasileira ainda não consolidada e que estava em discussão em meio aos ideais românticos e, no momento em que Machado de Assis surge com Crisálidas, o silenciamento das grandes vozes literárias que deixaram um vazio na literatura brasileira que mal nascia, situação que o jovem Machado de Assis descreve, de certa forma, em um ensaio de 1858. Essas propostas de Even-Zohar, aliadas às formulações que vimos em Machado de Assis: por uma poética da emulação de João Cézar de Castro Rocha nos levam ao terceiro ponto de nosso argumento: Rocha propôs considerar a obra de Machado de Assis como um sistema literário próprio que é movido uma dinâmica interna também própria e que poderia ser vista também dentro da teoria dos polissistemas de Even-Zohar: a literatura machadiana surge como uma literatura periférica que passa por momentos que incluem a presença da tradução e até mesmo sua centralidade nos períodos que antecedem sua consolidação, que para Rocha coincide com o ponto de virada na carreira de Machado de Assis, marcada pela publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas e o desenvolvimento daquilo que chama de “poética da emulação”. O que vimos no decorrer das análises, no entanto, era que esta prática da emulação 431 já existia em germe desde suas primeiras traduções poéticas e foi ganhando contornos mais nítidos no decorrer de sua carreira. Nas trinta e cinco traduções poéticas que estudamos nesta tese, compreendendo textos amplamente conhecidos, outros quase de todo ignorados, alguns sabidamente seus, outros que foram atribuídos a Machado de Assis, foi possível observar aquele processo de apropriação ganhando contornos mais nítidos aos poucos: desde o princípio, no poema-imitação “Minha Mãe”, em que o poema de Cowper, possivelmente lido em prosa francesa, é mais um mote temático do que propriamente um texto-fonte para tradução até suas últimas traduções, onde vemos um poeta mais à vontade para reescrever e se inscrever nos textos que traduz, por vezes dando sinais de uma medição de forças e até mesmo tentando – e conseguindo – superar o modelo. As análises dos poemas nos trouxeram dados relevantes sobre sua atuação como tradutor que, em grande medida, reforçam a tese de que a tradução ocupou lugar relevante no período de formação como escritor, sendo particularmente mais intensa no início de sua carreira. Vimos que a quase totalidade das traduções poéticas concentraram-se nas décadas de 1860 e 1870, justamente os anos em que publica seus primeiros livros de poesia e prosa. Se incluirmos na conta também suas traduções teatrais e narrativas, como os romances de Victor Hugo e Charles Dickens, a intensidade prática da tradução nessas décadas é ainda mais evidente, já que mais de três quartos de todas as suas traduções concentram-se naqueles anos. Há, portanto, intensa atividade na primeira metade da carreira do escritor, e uma queda quantitativa brusca a partir da década de 1880, coincidindo com a guinada que dá em sua carreira a partir da publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) – o ponto de virada de que fala Rocha – e reforçando a tese de que se observamos a obra machadiana como um sistema com dinâmica própria, a tradução parece emergir e ser mais intensamente praticada justamente naquele período formativo. A queda brusca na frequência com que traduz poesia, no entanto, não quer dizer necessariamente que a tarefa tenha se tornado menos relevante ou mesmo secundária. Embora haja, inegavelmente, uma acentuada redução quantitativa conforme os anos avançam, há um trabalho de inegável qualidade que persiste e parece reservado a interesses cada vez mais particulares do escritor. Se adaptarmos as formulações teóricas dos polissistemas de EvenZohar e pensarmos as traduções de Machado de Assis como um sistema de círculos concêntricos, colocaríamos no círculo central aquelas traduções que reverberaram fortemente no restante de sua obra, aquelas através das quais, como vimos, foi possível estabelecer pontes entre o poeta tradutor e o ficcionista ou o cronista, a exemplo das traduções que proporcionaram 432 contato mais íntimo com escritores como Shakespeare e Dante. Mais à periferia deixaríamos aqueles poemas-tradução que, embora sejam vistas como obras que proporcionaram farto pasto para o crítico, não reverberaram de igual maneira no restante de sua obra. Este esboço de classificação nos ajuda a concluir que os textos que estão no centro certamente têm um relevo maior em relação aos demais. É interessante notar que várias das últimas traduções feitas pelo poeta-tradutor Machado de Assis se encontrariam entre esses textos que elencamos como centrais, muito embora o aprendizado com as primeiras traduções seja inegável e, não raro, tenha produzido obras que parecem manter íntima relação com o restante da produção machadiana. Pensamos aqui, por exemplo, na despretensiosa cançoneta “O casamento do diabo” e a instigante conversa que estabelece com “A igreja do diabo”. Não surpreende, portanto, que sejam justamente esses textos que elencamos como centrais os que deixaram marcas mais profundas no restante da produção literária de Machado de Assis, reforçando igualmente a tese de que a emulação que se apropria de modelos estrangeiros se intensifica após Memórias póstumas de Brás Cubas – com as devidas ressalvas de que não ocorre somente ali, depois da década de 1880 –, conforme sugerido por João Cézar de Castro Rocha. Notamos ainda que a ideia de que a tradução de poesia passava por algum grau de apropriação do texto traduzido, algo visível após estudarmos cada uma de suas traduções, já era uma ideia em germe desde o início de sua carreira como crítico e forma um arco que se estende por toda sua carreira de tradutor. Lembremos, mais uma vez, que quando Machado de Assis comenta a tradução de “A Morte de Sócrates” por Gonçalves de Magalhães numa crônica do Diário do Rio de Janeiro de 17 de outubro de 1864, afirma que “para traduzir Lamartine é preciso saber suspirar versos como ele”920. Como vimos, Machado também traduziu Lamartine, e o fez em mais de uma ocasião, tanto na prosa quanto na poesia. O “suspirar versos como ele” de que Machado fala pode ser interpretado de dois modos: por um lado, poderíamos pensar que o crítico estava dizendo que o tradutor deveria buscar se tornar Lamartine, e fazer o que ele fez, nem mais, nem menos. Sabemos agora que este não era o poeta-tradutor Machado de Assis. Por outro lado, “suspirar versos como ele” poderia significar que o tradutor devesse se tornar ele mesmo um poeta e, como poeta, encontrar seus próprios suspiros, apoiando-se nos suspiros lamartineanos, como Lamartine encontrara os dele. Os versos, portanto, não seriam reproduções ou espelhamentos dos versos de Lamartine, mas versos do próprio poeta-tradutor 920 ASSIS, 2015, vol. 4, p. 191 433 que se coloca em relação com Lamartine, relação que produz um fruto, um rebento, o poematradução. O poeta-tradutor se apropria do tema, das imagens, dos suspiros talvez, mas eles serão expressos em outra roupagem, uma que carrega as marcas da pena do poeta pelo qual passaram e da tradição literária em que se insere, que é a brasileira, mas que também é a de língua portuguesa como um todo. É o que Machado de Assis fez com Lamartine tanto na sua primeira tradução stricto sensu, “A uma jovem árabe” em 1859, quanto em “A Elvira”, que é uma de suas traduções centrais, publicada dez anos mais tarde nas Lamartineanas (1869), republicada em Falenas (1870) e mantida nas Poesias completas (1901): o metro clássico francês, o alexandrino, dá lugar ao metro clássico da língua portuguesa, o decassílabo, enquanto a expansão lânguida sofre cortes que introduzem um sintetismo mais frio, mais objetivo e racional. O resultado, bastante exemplar de sua maneira de traduzir, traz matizes machadianos aos versos de Lamartine e demonstra que o poeta-tradutor, desde muito cedo e até o fim de sua vida, foi consideravelmente coerente consigo mesmo. Isso, contudo, não parece ser um comportamento exclusivo de Machado de Assis, mas algo comum à maneira de traduzir poesia de sua época. Pelo menos no que tange o tratamento que Machado de Assis, em geral, deu à forma dos poemas que traduziu, aclimatando a forma estrangeira à tradição literária de língua portuguesa, observamos que outros tradutores apresentados no terceiro capítulo desta tese procederam de maneira semelhante: Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias quando traduz da prosa para a poesia, Maciel Monteiro, Pedro Luís e outros também reduziram as formas dos sistemas estrangeiros aos da língua portuguesa nos poucos poemas que estudamos tão brevemente. Embora este ainda seja um ponto que mereça mais investigação, ao menos no caso de Machado de Assis podemos afirmar que, em seu horizonte de tradutor, a ideia de fidelidade incluía um alinhamento formal à tradição poética de língua portuguesa combinado com uma tentativa de reencenar o modo de significar dos textos traduzidos. Logo, traduzir alexandrinos clássicos por decassílabos, por exemplo, algo que parece um típico afastamento formal em suas traduções, não significava “infidelidade” à forma para o tradutor, mas o contrário: o efeito atingido por um metro clássico ou popular estrangeiro seria alcançado através do emprego de um metro clássico ou popular da língua portuguesa. Estrangeirizar a tradição portuguesa, forçar o estranhamento ou a presença e as marcas do “outro” via tradução no plano formal não estava entre as principais diretrizes de seu projeto, o que não quer dizer que ele fosse absolutamente contra esta prática. Lembremos, por exemplo, da tentativa de introdução do triolet em Falenas 434 ou das diversas vezes que utilizou os tercetos dantescos em sua poesia, sendo um dos primeiros e mais versados na forma italiana àquela época. Esta prática, contudo, parecia estar reservada àquilo que o poeta-tradutor considerava “aclimatável” e que não encontrava analogia em nosso repertório. No plano semântico, o que se observou foi, em geral, uma busca pelo caráter universal, a investigação da natureza humana e da relação do homem com o mundo que existia em potencial nos textos, o que poderia explicar o motivo de o poeta-tradutor, quase que sistematicamente, omitir referências que pudessem limitar o texto a uma língua-cultura específica. Há, segundo Berman, um lugar ambíguo ocupado pela tradução e que pode nos ajudar a entender o projeto que Machado de Assis tinha para suas traduções: Por um lado, ela se submete a essa injunção apropriadora e redutora, constitui-se como um de seus agentes. O que acaba por produzir traduções etnocêntricas, ou o que podemos chamar de “má” tradução. Mas, por outro lado, a visada ética do traduzir opõe-se por natureza a essa injunção: a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada”921. Neste momento cabe uma reflexão: na maneira como Machado traduz, apropriando-se, adotando formas que remetem à sua própria tradição poética, eliminando marcas que estrangeirizariam seu texto – caso dos topônimos e outras referências culturais eliminados nas suas versões para a “Lira Chinesa”, por exemplo – seria possível acusá-lo de “etnocêntrico” e, por conseguinte, de mau tradutor. Entendemos, todavia, que há uma diferença fundamental entre os lugares de fala de Berman, sua língua-cultura, os tradutores que analisa e o lugar de Machado de Assis. Berman era europeu, falante de uma língua europeia de considerável influência, especialmente durante o período em que Machado de Assis trabalhou, que apresenta principalmente estudos de tradutores europeus em Pour une critique des traductions: John Donne e A prova do estrangeiro. Pertencem, portanto, ao que nos habituamos a chamar de “centro”. São línguas-culturas autóctones, cujo processo de formação de uma identidade nacional foi distinto do nosso. A posição-situação do poeta-tradutor Machado de Assis é radicalmente diferente, porque pertence a uma nação que empresta sua língua-cultura de outra – Portugal – que representa o colonizador, uma língua-cultura que é adotada por uma nova nação que se tornara politicamente independente há apenas algumas décadas, sem um passado histórico ou uma língua e tradição próprios, se tomados por medida os modelos europeus. Tudo está por se fazer, e só se pode fazê-lo a partir de um legado – o português – que é, a um só tempo, estrangeiro e nacional. Não somos “centro”, mas uma nação periférica que mantém 921 BERMAN, 2002, p. 17 435 laços linguísticos e culturais com outra nação periférica no sistema europeu. Não há como, portanto, descentralizarmo-nos porque somos periferia e porque a necessidade é outra: a autoafirmação que se dará por diversas vias, inclusive, e principalmente, talvez, a anexação do estrangeiro, do Outro, ao Próprio, mesmo que “etnocentricamente” à primeira vista. Ainda assim, em vista do que observamos nas traduções de Machado de Assis, parece-nos bastante claro que há uma “mestiçagem” no seu modo de trabalhar, deixando suas marcas no diálogo que abre com o outro, há um “descentramento” não de si, mas do outro que vem com a autoridade de um modelo que será absorvido sob a ótica da poética de quem traduz. Se Berman chama de má tradução aquela que, “[...] geralmente sob o pretexto da transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza da obra estrangeira”922, Meschonnic apresenta outra formulação que nos parece mais apropriada ao nosso caso: “Para a poética, é má a tradução que substitui uma poética (a do texto) por uma ausência de poética: ou seja, a língua pela estilística ou pela retórica – as unidades da língua; a tradução que substitui o ritmo e a oralidade como semântica do contínuo pelo descontínuo do signo;”923. Sob o ponto de vista bermaniano, seria possível incluir Machado entre os “maus” tradutores, já que no plano formal, pelo menos, vimos que Machado de Assis nega a estranheza da obra estrangeira, salvo raros exemplos, enquanto no plano semântico, embora as interferências ocorram em menor grau e de forma mais sutil, não raramente se desfaz por completo de marcas que denunciam ser aquele um texto estrangeiro. Todavia, isso não é feito “sob o pretexto da transmissibilidade” porque o que faz em sua oficina de tradutor não é meramente tornar as obras acessíveis ao leitor que não compreende as línguas de partida, mas reimaginá-las poeticamente dentro de seu projeto de tradução e da tradição de sua língua-cultura, tratando-as como novos poemas. Então, sob a formulação de Meschonnic, Machado não seria um mau tradutor porque seus poemastraduções substituem uma poética – a do autor estrangeiro – por outra, a do próprio poetatradutor; o poeta-tradutor troca o ritmo do texto de partida não por uma ausência de ritmo poético, mas por um ritmo e tom próprios, inscrevendo-se textos que traduz o que, por conseguinte, reforça a hipótese de que a tradução – ou pelo menos a tradução poética – não teve um papel meramente coadjuvante em sua carreira literária, mas talvez tenha auxiliado o escritor no desenvolvimento do que vemos em toda a sua obra. Como vimos, Rocha sugere que Machado teria aprendido com Shakespeare, que se apropriava despudoradamente tanto dos clássicos quanto dos contemporâneos, e teria 922 923 BERMAN, 2002, p. 18 MESCHONNIC, 2010, p. 74 436 encontrado no bardo inglês as bases para a sua poética da emulação. Vemos que não só sua obra “autoral”, mas que toda a prática tradutória de Machado de Assis, ou pelo menos a parte que tangenciou a nossa pesquisa, está permeada desta ideia, e chega ao seu ponto máximo com as traduções de Ocidentais, em especial, “O corvo”. Sérgio Bellei, por exemplo, se antecipa às perguntas formuladas por Rocha quando se pergunta sobre como conciliar a busca por uma voz poética e contribuir para o estabelecimento de uma base que ajude a fundar um nacionalismo literário se o começo desta nova literatura – a brasileira – já surge de uma relação problemática de dependência a algo anterior, que é a tradição literária de língua portuguesa e mesmo a tradição literária ocidental. Ao mesmo tempo em que busca originalidade, o poeta-tradutor se vê nesta posição problemática de dependência. A saída que encontra, no caso das traduções centrais que analisamos, de que “O Corvo” e “To be or not to be” são ótimos exemplos, é a desleitura intencional que por um lado marca sua diferença em relação ao texto-fonte e, por outro, assume, reforça e trabalha conforme o que preconiza a tradição literária de língua portuguesa. Esta é uma reflexão que, na verdade, poderia ser estendida a qualquer uma de suas traduções centrais. O poeta-tradutor Machado de Assis – e possivelmente vários outros tradutores do século XIX –, por mais que se afirme e deixe marcada sua diferença diante do texto, ainda é razoavelmente conservador quanto aos caminhos escolhidos em suas traduções já que deixa transparecer um considerável apego à tradição de língua portuguesa. Ao estudar os tradutores românticos alemães em A prova do estrangeiro, Berman afirma que a língua alemã carecia de “cultura” e necessitava de um alargamento, o qual pressupunha que a fidelidade estivesse bem marcada nas traduções924, explicando que aquelas traduções teriam sido bem-sucedidas justamente porque estrangeirizavam o alemão. Porque esperar, ou desejar, que Machado de Assis fizesse o mesmo se a realidade era diferente, se, embora a nação brasileira fosse jovem, a língua portuguesa não era, e era uma língua de grande e riquíssima tradição literária, um amplo e sólido repertório no qual poderia se apoiar para incorporar as obras estrangeiras? Com Machado de Assis a tradução parece ter outro papel que nos leva a pensar no enfraquecimento, ou revisão, desta dicotomia “domesticar/estrangeirizar”: o de enriquecer o “pecúlio comum” com elementos colhidos alhures, reafirmando, mesmo que conservadoramente, a força da tradição de sua língua cultura através da tradução. Propomos, portanto, que as traduções de Machado de Assis sejam lidas como um laboratório de experimentação técnica em que o tradutor, ao mesmo tempo em que observa os mecanismos de funcionamento da obra e busca meios de recriá-la, elabora conceitos e 924 BERMAN, 2002, p. 69 437 mecanismos para criar outra obra que assuma seu lugar na tradição de língua portuguesa e que ajude a consolidar uma literatura brasileira. Gérard Genette afirma em Palimpsestes que “[o] mais sábio para o tradutor seria, sem dúvida, admitir que ele só pode fazer mal e, contudo, se esforçar para fazer o melhor possível, o que frequentemente significa fazer outra coisa”925. As traduções de Machado, portanto, ao fazerem a “outra coisa” de que fala Genette, ensinam o escritor a caminhar da imitação e tradução de modelos estrangeiros para a emulação destes modelos em suas obras da maturidade. Se as traduções podem nos levar para além daquele laboratório de experimentação técnica, outro problema que se impõe com esses textos, evidentemente, é o da influência que eles possam ter exercido sobre o escritor e o influxo de métodos e temas sobre sua obra. Em Um mapa da desleitura, Harold Bloom alega que não existem textos, apenas relações entre os textos. Estas relações dependem de um ato crítico, uma desleitura ou desapropriação, que um poema exerce sobre outro, e isto não difere em gênero dos necessários atos críticos que todo leitor forte realiza com todo texto que encontra. A relação de influência governa a leitura assim como governa a escrita, e a leitura, portanto, é uma ‘desescrita’ assim como a escrita é uma desleitura. Com o prolongamento da história literária, toda poesia se torna necessariamente crítica em verso, bem como toda crítica se torna poesia em prosa”926. A tradução, se considerada uma das formas mais íntimas de leitura de uma obra, pode se tornar um dos melhores canais através do qual a influência, ou “apropriação poética”927, se manifesta. No caso de Machado, encontramos diversos graus deste tipo de apropriação nas suas traduções, começando com tentativas de diálogos com autores estrangeiros, repetindo os temas que primeiro encontra nas traduções que pratica, até ser capaz de deglutir completamente a obra estrangeira a ponto de torná-la sua, como faz com o verso de Shelley que citamos no início. Desde seus primeiros trabalhos, como no caso de “Minha Mãe”, mas também em “A uma jovem árabe” ou “O casamento do diabo” observamos sempre o mesmo comportamento: a tendência de aclimatar o texto, apropriar-se dele, afastando-se, muito ou pouco conforme a ocasião, e reimaginá-lo poeticamente. Contudo, quando a situação exigia, o jovem poetatradutor era perfeitamente capaz de agir de modo completamente contrário: se os alexandrinos de Lamartine são preteridos em favor do decassílabo português, se detalhes e imagens que parecessem redundantes ao tradutor são eliminados em favor de um texto mais sintético, o 925 GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au seconde degré. Paris: Éditions du Seuil, p. 297. No original: “Le plus sage, pour le traduteur, serait sans doute d’admettre qu’il ne peut faire que mal, et de s’efforcer pourtant de faire aussi bien que possible, ce qui signifie souvant faire autre chose”. 926 BLOOM, 2003, p. 23 927 BLOOM, 2002, p. 58 438 poema de Ribeyrolles é traduzido com um acompanhamento impecável dos alexandrinos, numa clara tentativa de recriar os traços estilísticos do poema em francês. Porém, o caso é que “Souvenirs d’Exil” era um poema de ocasião, uma evidente demonstração de virtuosismo poético e literário, e não necessariamente uma afinidade intelectual com a qual se deseja aprender e/ou ultrapassar. Não se tratava de uma obra feita com a intenção de estabelecer um diálogo, como parece ter sido o caso de Lamartine. A tradução, quando é uma prática eletiva, parece surgir de uma medição de forças com o texto estrangeiro com o objetivo de marcar sua diferença em relação a ele e até mesmo superá-lo, e é isso que se destaca ainda mais nas traduções de Crisálidas e cada vez mais nas posteriores. Parece certo, portanto, que todo esse “modo de traduzir”, tão rico, independente e intenso, não existiria sem aquela “pulsão” de que fala Antoine Berman, o motivo que foi a força motriz por trás das penas machadianas e que só poderia ser reconstituído de fato a partir do estudo das obras traduzidas. Estamos agora em campo puramente especulativo, embora informados pelo que observamos ao longo deste percurso. Não se pode, evidentemente, generalizar esta “pulsão” como sendo algo que sempre existiu por detrás de toda e qualquer tradução que estudamos. Há traduções que, como vimos, são obviamente frutos de iniciativa alheia, em maior ou menor grau, à vontade de Machado de Assis ou que não devem ter sido pensadas e realizadas com o intuito de integrá-las à sua obra. A força motriz que encontramos é latente nas traduções incluídas em seus três primeiros livros de poesia, mas é principalmente visível naquele grupo de textos que elencamos e classificamos como centrais e está intimamente relacionada com toda sua atividade autoral: o Machado de Assis poeta-tradutor buscava naqueles autores e textos centrais de sua produção tradutória o mesmo que buscava nos autores que lia e com quem dialogava na sua produção ficcional, teatral ou poética: ora uma medição de forças, ora um revisionismo intenso, ora uma apropriação despudorada e, mais comumente, um amálgama de tudo isso. As traduções de Crisálidas sugerem que há mais regularidade do que diferentes métodos de traduzir quando se trata de traduzir poesia, mas também denunciam uma busca por tensão, por um tipo de embate com o texto estrangeiro que pudesse favorecer o surgimento de uma voz própria. Os modelos apresentados são mais sofisticados do que os primeiros e, embora as escolhas mudem conforme o caso, há uma visível regularidade na maneira como o tradutor insiste em se afastar dos textos no aspecto formal e a imprimir sua subjetividade nas constantes e sutis interferências que vai acrescentando aos poemas. O sentido geral dos poemas traduzidos é preservado, mas não é passado sem que antes ganhe cores que denunciam a inscrição de uma 439 nova subjetividade no texto. Continuamos a observar a mesma preferência por traduções mais sintéticas, mais diretas, indícios da tendência classicizante de sua poesia, que mais tarde iria desembocar numa poesia que já traz em si matizes parnasianos. A preocupação é muito menos com a reprodução do que com a produção de um poema, produção que carrega as marcas de um novo autor em aberto diálogo com o antigo. Desde Crisálidas, portanto, percebe-se que entre os motivos que movem o poeta a traduzir e a incluir sua produção tradutória entre seus outros poemas estão a busca por modelos que tragam novidades que possam levar sua poesia por caminhos que os modelos sobre os quais se apoiava até então não poderiam. Embora ainda pareça que o tradutor está “preso” a temas e autores da estética romântica, há certa ousadia em trazer para sua obra peças como “A jovem cativa” de Chénier e, principalmente, “Alpujarra”, de Mickiewicz, introduzindo o poeta polonês entre nós. Com as traduções de Falenas isso fica ainda mais evidente: é nítido o quanto o poetatradutor buscou ampliar sua cultura literária, oferecendo aos leitores um panorama ainda mais diversificado de suas referências literárias quando comparamos as traduções de Falenas com as de Crisálidas. Percebe-se, ainda, o quanto o tradutor dá um passo à frente na sua relação e na sua experiência com a tradução: desenha-se uma maior tomada de consciência do papel de coautoria que cabe ao tradutor, fazendo escolhas que denotam clara intenção de dar ao produto do trabalho tradutório feições que permitam que o texto assuma a condição de obra; buscam-se novos horizontes estéticos que ultrapassam os limites geográficos, culturais e temporais a que até então estava inscrito. Neste segundo agrupamento de traduções o papel de coautoria do poeta-tradutor é patente em traduções como “A Elvira” e, principalmente, nas reimaginações poéticas da “Lira Chinesa”, mas também quando transforma a cena do suicídio de Ofélia em um poema ou quando devolve à forma poética “Os deuses da Grécia” de Schiller conforme um esquema próprio, mas que empresta o tom adequado à poesia. Considere-se, por exemplo, que a partir de “A Elvira” vemos que não há “deferência” diante do poema de Lamartine. Há uma busca para se criar um poema a partir dele, de dar um passo além daquele dado por Lamartine. As traduções de Falenas são inegavelmente mais ousadas e reforçam a tese de que a pulsão de Machado de Assis era movida por uma busca por novidades que não seriam encontradas no seu entorno mais imediato, algo de que a “Lira chinesa” é um ótimo exemplo. Enriquecendo-se a si mesmo pelo contato com o outro, Machado de Assis revela que por trás desta atividade tão negligenciada pela crítica encontramos um intenso trabalho que reflete o próprio pensamento do autor sobre o que é fazer poesia, fazer literatura. Há um saber sobre a tradução no sabor machadiano inserido nos textos. 440 Mesmo quando a presença de textos traduzidos em meio a seus outros poemas é reduzida ao mínimo, como em Americanas, ainda assim a presença da “Cantiga do Rosto Branco” é mais do que uma reimaginação poética de um suposto poema indígena traduzido em prosa por Chateaubriand: é um poema machadiano criado a partir de uma intensa apropriação que busca mostrar que as semelhanças entre os problemas que afligem o homem transbordam as fronteiras culturais ou políticas. Novamente, isso reforça a tese de que o modo de traduzir machadiano passava por uma aclimatação formal do texto estrangeiro numa tradução-recriação que é movida por uma vontade de integrar o texto à língua-cultura de chegada, mas sem encerrálo nela, de forma que as marcas deste processo sejam facilmente visíveis nos rastros deixados pelo tradutor que se posiciona como um novo autor do texto. Por fim, as quatro traduções de Ocidentais – “O corvo”, “To be or not to be”, “Animais iscados da peste” e “Dante” – representam um dos pontos mais altos a que chegou a poética tradutória machadiana. São textos que, mesmo muito anteriores à sua publicação definitiva nas Poesias completas, sobreviveram à última revisão do autor, que decidiu apresentá-los em seu último volume de poesias entre os poemas que escolheu para representar suas Ocidentais. São traduções que continuam confirmando as mesmas tendências observadas antes: um distanciamento cada vez maior de autores contemporâneos seus, um interesse ainda mais amplo por nomes representativos da cultura literária ocidental, um pendor maior por poemas menos introspectivos ou emotivos e mais representativos de um tipo de investigação da natureza das relações humanas, ou até mesmo do homem consigo mesmo. No plano formal, o que se observou desde o princípio, desde suas primeiras traduções, continua a se confirmar aqui, praticamente sem novidades: o afastamento da forma do texto-fonte é tão regular e constante, apesar dos diferentes graus em que isso ocorre, que só pode ser deliberado, parte do “modo de traduzir” machadiano, mas que aparenta ser também o “modo de traduzir” da época – e há indícios disso, que merecem mais investigação. A novidade fica por conta do que faz no “Canto XXV”, em que se comporta de maneira tão diversa da habitual ao traduzir que nos rendeu, em artigo publicado em 2017, aproximações com as traduções de Augusto de Campos, que disse ser esta uma das melhores traduções de um canto dantesco já feitas entre nós. Ressaltamos, mais uma vez, que as interferências do tradutor não se restringem ao plano formal, visto que suas marcas também são encontradas no plano semântico, desde as guinadas independentes de “To be or not to be”, reforçando a concretude e a intensa fisicalidade do texto shakespeariano, passando pelo frescor com que consegue reimaginar e recriar poeticamente as terrivelmente belas cenas do canto dantesco, pela sutil mudança na mensagem central ou ao escolher ressaltar 441 determinados aspectos de “O corvo” em detrimento de outros, produzindo um poema novo, até praticamente superar o modelo com “Os animais iscados da peste”, demonstrando, desde o título, que é capaz de ampliar as possibilidades semânticas do texto que recria. Se é isso que observamos nas traduções, na produção autoral de Machado, a apropriação do texto-fonte se torna observável por meio de citações, não raro intencionalmente distorcidas – lembremos, aqui, do que fez com aquele verso de “A jovem cativa”, por exemplo – em sua fase madura, epígrafes e principalmente na utilização de recursos tomados de outros textos. Este argumento alinha-se com o de João Cezar de Castro Rocha quando escreve que “o método machadiano dessacraliza o texto-origem”928 ou que A relevância da tradução na obra machadiana é bem conhecida; reforçando a centralidade da tarefa do tradutor na formação do cânone em culturas nãohegemônicas. Em alguma medida, traduzir e aclimatar são ações familiares. Muitos versos machadianos se originam da apropriação de traduções.929 Este comportamento de Machado culminou, em sua fase madura, na poética da emulação de que fala Rocha, de deliberado anacronismo com o “[...] poder de restaurar o passado, corrigindo, na medida do possível, assimetrias políticas e culturais cujo controle escapa ao autor”930. Dessacralizar o texto-origem é, afinal, o que há de mais constante na maneira como Machado de Assis traduz poesia. Assim, pressupõe-se que a prática da tradução, a apropriação e recriação de textos considerados modelos hegemônicos favoreceram o desenvolvimento de uma poética própria, exercendo inevitável influência sobre a poética do tradutor. Deste modo, (re)conhecer o poetatradutor nas obras traduzidas foi necessário e imprescindível para compreender a formação de sua poética, uma vez que através das traduções, e consequentemente das escolhas de autores, textos e procedimentos adotados, foi possível não somente conhecer o tradutor, mas sobretudo o poeta e o crítico que se formaram e se apresentaram por meio das traduções, bem como foi possível sugerir que as obras traduzidas não são fruto do acaso, desconectadas da obra reconhecida como autoral, mas integram organicamente a obra do autor, sendo possível, em vários casos, encontrar reverberações desses poemas-traduções no restante de sua obra. É o que buscamos demonstrar nas análises apresentadas. No posfácio de seu primeiro livro de poesias, Crisálidas, o jovem Machado de Assis, afirmando não curar de escolas ou teorias, admite um desejo secreto de expansão presente em 928 ROCHA, 2013, p. 307 Ibid., p. 244 930 Ibid., p. 305 929 442 seus versos e se apresenta não como um sacerdote no culto das musas, mas um “fiel obscuro da vasta multidão de fiéis”. Modestamente, conclui seu parágrafo com as seguintes palavras: “Tal sou eu, tal deve ser apreciado meu livro; nem mais, nem menos”. Embora adote um tom categórico, entendemos que o autor pretendeu dar ao leitor uma súmula do que pretendia com a sua poesia naquele momento, o que incluía reconhecer seu lugar tal como ele o percebia, uma posição modesta que lhe cabia, mas também exigindo para si que ao menos aquele lugar fosse respeitado. Refeito todo este percurso, por mais que as práticas, em suas miudezas, tenham sido diferentes conforme os textos e conforme a época, é inegável que há também uma coerência interna ao modo de traduzir machadiano, uma recorrência de escolhas e objetivos comuns identificáveis desde seus primeiros trabalhos até os últimos. A tradução poética machadiana que observamos é uma tradução apropriadora do texto estrangeiro, uma tradução que não se coloca ao lado, ou abaixo, e nem mesmo no lugar do texto, mas uma tradução que busca seu próprio lugar na tradição de que passa a fazer parte. A tradução machadiana, no mais das vezes, parte de um texto estrangeiro não com o único objetivo de dar aos leitores que desconhecem o texto-fonte uma possibilidade de leitura, mas um poema que desdobra, amplia e/ou ressignifica o texto de partida, tornando-se, portanto, um outro original que deve ser lido como tal, algo que fica ainda mais evidente quando se percebe que suas traduções de poesia não estão diretamente interessadas em apresentar um conjunto de poemas de um determinado autor, ou de uma época ou escola e dadas ao público como tal, a exemplo do que fizeram alguns dos outros tradutores que vimos, como De Simoni fez com os poetas italianos ou Edgar Bowring com os alemães. O que temos, na verdade, é um pequeno paideuma machadiano da literatura mundial composto de poemas recriados à sua imagem e semelhança. As principais traduções poéticas de Machado de Assis são incluídas entre seus outros poemas, integrando-se a uma obra mais ampla e devem ser lidas como algo que compõe aquele conjunto, como fios que fazem parte de uma intricada renda poética que alinhava tanto essas obras negligenciadas quanto aquelas mais célebres. Se são derivadas de outros poemas como traduções que são, também os outros poemas daqueles conjuntos o são, embora de natureza diversa. Assim como o verso de Percy Bysshe Shelley é ingerido, digerido e inserido no Memorial de Aires passando a constituir e a dar forma ao pensamento do conselheiro, os poemas traduzidos buscam integrar-se organicamente à obra em que são apresentados e, em alguns casos, a outras vertentes da obra do escritor, deixando nela as marcas de sua passagem. 443 Seriam as traduções que realizou durante toda a vida parte da resposta àquele “desejo secreto de expansão” que anuncia quando publica seus primeiros poemas em livro? Cremos que sim, ou que pelo menos tal possibilidade deveria ficar no campo do provável. Ao menos, agora, temos alguma noção do que foram os poemas-tradução de Machado de Assis e desejamos que a eles seja dado o estatuto merecido, de obras que são. Assim como o jovem Machado de Assis em seu posfácio de 1864, concluímos: tais são as traduções poéticas de Machado de Assis, como tal devem ser apreciadas; nem mais, nem menos. 444 12. Considerações finais Nos capítulos anteriores percorremos quase quarenta anos de um aspecto da carreira de Machado de Assis até então pouco examinado: as traduções de poesia feitas entre os anos de 1856 a 1894, desde a imitação “Minha Mãe” de William Cowper ao “Prólogo do Intermezzo” de Heinrich Heine, passando por diversas outras, das que ficaram esquecidas nas páginas dos jornais da época àquelas que foram recebidas como obras suas em seus primeiros livros de poesia e às grandes traduções da maturidade, como “Dante”, “O corvo” e “To be or not to be”. Vimos também que, se o poeta-tradutor Machado de Assis não era tão diferente de seus contemporâneos no tratamento que dava aos textos, ao menos agora sabemos que os textos que escolheu traduzir eram, de fato, escolhas bastante pessoais e que se pautavam por um tom diferenciado do texto de partida, denunciando uma busca mais peculiar de modelos e diálogos. Vimos ainda que o poeta-tradutor, embora nem sempre procedesse da mesma forma quando traduzia, ou reimaginava, os poemas estrangeiros que elegia, também deixou marcas que, sob uma visão panorâmica do conjunto, denunciam alguma regularidade de comportamento. Nem tão errático, nem tão constante nos procedimentos; nem tão previsível, nem tão surpreendente nos modelos, Machado de Assis demonstrou que sua obra buscava e encontrava a si mesma em outros, como um construtor que colhe a argamassa em um lugar, os tijolos em outro, junta as partes que vai encontrando pelo caminho para construir um edifício que é seu. Ensinou-nos, por exemplo, que a tradução de poesia pode ser mais do que reprodução, almejar ser mais do que o texto de partida foi, ir além, fazer algo de diferente, novo e, assim, abrir naquele seu novo edifício portas e janelas que arejam nossas mentes, nossa cultura, nossa literatura, sem nos tirar de casa, sem que precisemos deixar de ser quem somos. Há uma grandeza surpreendente nesta lição, em tempos de portas e janelas que se fecham cada vez mais sobre nós. O trabalho, contudo, não está findo. Esta tese, como a dissertação que a precedeu, buscou ser um tímido passo em direção a um (re)conhecimento mais amplo e detalhado de algo que ainda não havia sido examinado como merece, focando o interesse na pessoa do tradutor, em especial de um tradutor de inquestionável relevância para as letras brasileiras. Se mais tempo e estudo for dedicado a esses mesmos textos, estamos certos de que será possível descobrir ainda mais sobre o poeta-tradutor que foi Machado de Assis e sobre as possibilidades que a tradução de poesia abre para uma literatura. O teatro traduzido por Machado de Assis, por exemplo, ainda 445 não foi examinado com a mesma atenção minuciosa que buscamos dar aqui às traduções de poesia. Recentes achados sugerem que muito ainda pode estar esquecido nas páginas dos jornais. Para além de Machado de Assis, ainda há diversos outros tradutores, de poesia, prosa e teatro, que trabalharam arduamente e em muito contribuíram para a formação de nossa literatura e que ainda não tiveram sua obra examinada sob o ponto de vista de quem foram como tradutores. Entre grandes nomes da nossa literatura até os menores e menos conhecidos há uma enorme quantidade de escritores que nunca foram estudados na condição de tradutores. Apontamos para alguns deles no terceiro capítulo desta tese, que de forma alguma pretendeu ser definitivo. Este seria um dos passos essenciais para uma história da tradução literária brasileira, a “tarefa ciclópica” de José Paulo Paes que é imprescindível para conhecermos melhor a história da literatura brasileira. 446 13 Referências ABRAMO, Cláudio Weber. O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011. _____. “Uma infelicidade machadiana”. In: Leitura. Ano 17, nº 5, setembro de 1999. ABREU, Capistrano de. “Prefácio”. In: SMITH, Herbert H. Do Rio de Janeiro a Cuyabá: notas de um naturalista. São Paulo: Companhia Melhoramentos de S. Paulo, 1922. ABREU, Casimiro de. Obras completas de Casimiro de Abreu. 2 ed. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1955. ABRAMS, M. H. et al. The Norton Anthology of English Literature. 6 ed. New York, London: W. W. Norton &Company, 1993. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. Italo Eugenio Mauro. 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Vol. 17, n. 31, 2017, p. 3-17. 462 14 Anexo Traduções poéticas de Machado de Assis em ordem cronológica Livro em que é Data da primeira Título Original Título da Tradução publicada publicação Autor Original William Cowper Alphonse de Lamartine Alexandre Dumas Fils On receipt of my mother's picture À une jeune arabe qui fumait le narguilé dans un jardin d’Alep Maria Duplessis Alexandre Dumas Fils Local da primeira publicação Minha mãe 02/09/1856 Marmota Fluminense, n. 767 A uma donzela árabe 20/01/1859 O Paraíba, n. 15, p. 3 Maria Duplessis Crisálidas (1864) Diário do Rio de Janeiro (subtítulo "A dama das Camélias", Imitação de Dumas 15/04/1860 Filho) Estâncias a Ema / Versos a Ema Falenas (1870) 06/04/1860 Diário do Rio de Janeiro Courrier du Brésil (RMJ, v. 1, p. 02/12/1860 110-112, 118) Charles Ribeyrolles Souvenirs d'Exil Alfred de Musset Lucie Lúcia Crisálidas (1864) 1860 André Chénier La Jeune Captive A jovem cativa Crisálidas (1864) 1861 A Saudade, n. 11 Crisálidas (1864) Biblioteca Brasileira, I - Lírica Nacional sob o título "Cleópatra 1862 e o escravo Cleópatra - canto de um escravo Mme. Émile De Girardin Gustave Nadaud Satan Marié O casamento do diabo 29/03/1863 Semana Ilustrada, Rio, n. 120 Heinrich Heine Les Ondines As ondinas Crisálidas (1864) Mickiewicz Alpujarra Alpujarra Crisálidas (1864) Goethe Le Roi des Aulnes O Rei dos Olmos 08/1863 Biblioteca Brasileira, n. 2 1863 Jornal das Famílias 23/07/1865 Semana Ilustrada 463 H.W. Longfellow Serenade/The Spanish Student Lua da Estiva noite Bouilhet Cigognes et Turbots Cegonhas e Rodovalhos Guilherme Blest-Gana El primer beso O primeiro beijo Ecos do Passado (álbum 1867 musical) Falenas (1870) 24/01/1869 Semana Ilustrada 19/09/1869 Semana Ilustrada, Rio, n. 458 Alphonse de Lamartine À El*** À Elvira Falenas (1870) Lamartineanas - Poesias de Afonso de Lamartine traduzidas 1869 por poetas brasileiros Han-Tiê/J. Walter Un poète rit dans son bateau O poeta a rir Falenas (1870) 1870 Tchê-Tsi/J. Walter À la plus belles femme du bateau des fleurs A uma mulher Falenas (1870) 1870 Thu-Fu/J. Walter L'empereur O imperador Falenas (1870) 1870 Tan-Jo-Lu/J. Walter L'évantail O leque Falenas (1870) 1870 Tchan-Tiu-Lin/J. Walter La feuille du saule A folha do salgueiro Falenas (1870) 1870 Tin-Tun-Sing/J. Walter Les petites fleurs se moquent des graves sapins As flores e os pinheiros Falenas (1870) 1870 Thu-Fu/J. Walter Sur le fleuve Tchou Reflexos Falenas (1870) 1870 Su-Tchon/J. Walter Le coeur triste au soleil Coração triste falando ao sol Falenas (1870) 1870 Friedrich Schiller Les Dieux de la Grèce Os Deuses da Grécia Falenas (1870) 1870 William Shakespeare Hamlet A morte de Ofélia Falenas (1870) 1870 William Shakespeare Hamlet To be or not to be / Monólogo de Hamlet Ocidentais (1901) 22/02/1873 Arquivo Contemporâneo Dante Alighieri Canto XXV - Inferno Dante Ocidentais (1901) 25/12/1874 O Globo Herman Neuman Das Herz O Coração Chateaubriand Chanson de la Chair Blanche Cantiga do Rosto Branco Luís Guimarães Junior Inocência/Candura Edgar Allan Poe The Raven 1875 Semana Ilustrada Americanas (1875) 1875 1876 Música O corvo Ocidentais (1901) 28/02/1883 Almanaque Vassourense 464 Jean de La Fontaine Les Animaux Malades de la Peste Os animais iscados da peste Ocidentais (1901) Fabulas de La Fontaine (Ilust. 1886 Gustavo Doré), Tomo I Anônimo Seis Dias em Cuiabá Seis dias em Cuiabá 01/08/1888 Gazeta de Notícias Heinrich Heine Prólogo do "Intermezzo" Prólogo do "Intermezzo" 14/04/1894 A Semana 466 i Esta obra é mencionada na pág. 162 do Vol. 72, de 1852, dos Anais da Biblioteca Nacional, onde se lê: “Peregrinas ou Ecos d’além mar, coletânea de traduções feitas por poetas brasileiros, inclusive Antônio Gonçalves Dias, coligidas por este. S.I. n.d. Original. 117 p. Formatos diversos”. Não conseguimos localizar nenhum exemplar para consulta. ii O autor trata da crítica de Machado de Assis ao romance O crime do Padre Amaro, do escritor português e da polêmica que se seguiu. iii O autor da epígrafe é Carlos Augusto de Sá, “português radicado no Brasil”. Cf. MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis, Vol. 1, Aprendizado, p. 47. iv Segundo a teoria de versificação de Castilho, a que Machado de Assis se afeiçoaria, o verso decassílabo heroico constitui-se de dois hemistíquios, um de seis e outro de quatro sílabas – outras combinações também são aceitas, contudo –, sendo o primeiro hemistíquio frequentemente utilizado em combinação com versos de dez sílabas. v Ver, a propósito, o capítulo “Os princípios silábico e silábico-acentual”, p. 23-31 da obra em questão. vi Veremos, posteriormente, que há indícios de que esta não seja, afinal, a primeira tradução stricto sensu, posto que caberia à tradução de um poema de Alexandre Dumas filho incluído em Crisálidas. Como a publicação desta outra tradução é inegavelmente posterior, e como não é possível determinar peremptoriamente a data de sua composição, manteremos esta tradução de Lamartine como a primeira tradução propriamente dita. vii A façanha a que Magalhães Jr. se refere é a tradução de um poema de Ribeyrolles, de que trataremos mais adiante. viii Vide, por exemplo, os poemas “Marília de Dirceu”, de Gonzaga, ou “À Excelentíssima Senhora D. Maria De Guadalupe Topete Ulhoa Galfim”, de Bocage (Cf. CHOCIAY, 1974, p. 88). ix Esta edição do Courrier du Brésil está disponível online e nela encontramos, na página 4, o poema “Souvenirs d’exil” de Ribeyrolles, seguido da tradução de Machado com a indicação “Traductor d’Assis” e o nome dos que testemunharam a façanha. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/709719/per709719_1860_00049.pdf. x Uma versão deste texto foi publicada na revista Machado de Assis em linha, vol. 10, n. 21, Maio/Agosto de 2017, com o título “Uma fonte alemã para ‘O casamento do diabo’ de Machado de Assis”. xi O periódico de Fleiuss publicou poemas e traduções de Machado, ajudando a divulgar sua produção. xii Disponível em: http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb43285771j. xiii Informação encontrada no site A Digital Library of Works by German-Speaking Women. xiv Até abril de 1863, Machado já tinha traduzido ou imitado e publicado em periódicos pelo menos sete textos poéticos do tipo. xv Somente “Monte Alverne” é de 1859. xvi Ishimatsu conta apenas uma, “O casamento do Diabo”, provavelmente por desconhecer a tradução de “Souvenirs d’Exil”. Cf. ISHIMATSU, 1984, p. 51 xvii Acreditamos que houve um erro no título apresentado na relação feita por Glória Viana que consultamos, pois as edições digitalizadas de Poésies Nouvelles que encontramos no decorrer desta pesquisa – uma datada de 1852 e outra de 1867, possivelmente a mesma que Machado de Assis possuiu – traziam como subtítulo a data “18361852”, e não “1846-1852” como no trabalho de Glória Viana. xviii “R.D.M.” refere-se à Revue de Deux Mondes. xix “P.C.” refere-se à Poésies Complètes. xx A versão do poema publicado na edição de 1835 Révue des Deux Mondes contém seis estrofes. Duas quadras que saíram na revista tornam-se uma oitava na edição em livro. xxi A edição que Machado possuiu era desta mesma editora. xxii Segundo Heloísa Barbosa, “A compensação consiste em deslocar um recurso estilístico, ou seja, quando não é possível reproduzir no mesmo ponto, no TLT, um recurso estilístico usado no TLO, o tradutor pode usar um outro, de efeito equivalente, em outro ponto do texto”. Cf. BARBOSA, H. G. Procedimentos técnicos da tradução. Campinas: Pontes Editores, 1990, p. 69 xxiii A diferença, como se vê, reside somente na troca de “pas” por “point”. Em francês, a negação feita com “ne... pas” é menos enfática do que aquela feita com a construção “ne... point”. xxiv Esta foi a publicação que serviu de base para a edição crítica que consultamos. xxv M. A. Major diz ser “A jovem cativa” “luxuosa tradução” em crítica publicada em 1 de novembro de 1864, na Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, enquanto Amaral Tavares, em tom mais generalista, escreve no Diário do Rio de Janeiro em 16 de novembro do mesmo ano que, nas traduções, “o poeta tradutor levanta-se a uma esfera quase superior de uma esfera ao original”. xxvi A tradução de Alberto Faria é publicada ao lado do texto de Chénier, na íntegra, no periódico citado. xxvii Utilizaremos o texto d’O Espelho para fins de comparação, atualizando a ortografia do mesmo. xxviii Cf. “A Dona Gabriela da Cunha”, publicado n’O Espelho em 25/12/1859. 467 xxix As ondinas, uma espécie de sereia, são figuras mitológicas, espíritos da natureza que habitam as águas de rios, mares ou lagos. xxx A primeira publicação do conto é de 5 de novembro de 1885, na Gazeta de Notícias. xxxi De acordo com o biógrafo Magalhães Júnior, que dedica todo um capítulo ao problema – “Machado e a Questão Christie” –, no fim de 1862 as relações diplomáticas entre o Império brasileiro e o Reino da Grã-Bretanha são abaladas por uma série de eventos dando início a uma crise entre os dois países, aprofundada pela insolência dos representantes dos ingleses no Brasil, o cônsul Vereker e o ministro plenipotenciário William Christie, que exigiram indenização por uma suposta carga saqueada e tripulação assassinada em decorrência de um naufrágio na costa brasileira. xxxii No livro Procedimentos técnicos da tradução (1990), a tradução literal é definida como “aquela em que se mantém uma fidelidade semântica estrita, adequando porém a morfo-sintaxe às normas gramaticais da LT” (AUBERT apud BARBOSA, p. 65), que é o entendimento que adotamos aqui. xxxiii Localizamos outras traduções francesas da mesma época, mas as escolhas dos tradutores nos permitem dizer com alguma segurança que não foram as que consultou por serem muito diferentes das de Machado, algo que não ocorre com a tradução de Porchat. xxxiv Uma versão deste texto foi publicada na revista Machado de Assis em Linha, n. 20 de Abril/2017, com o título “Machado de Assis, tradutor de Longfellow”. xxxv Os pedidos de Machado aparecem nas cartas de 29 de outubro e 24 de dezembro de 1866. Período anterior, portanto, à composição de “Lua da estiva noite”. Cf. ASSIS, 2008, p. 171; 203. xxxvi Na tentativa de entender a dificuldade do exercício, tentamos uma tradução da primeira estrofe. Foi perceptível a dificuldade de encontrar rimas adequadas em versos que respeitassem a métrica dos demais. De todo modo, eis o resultado a que chegamos: ‘Strela da estiva noite Ao fundo de um céu anil Não deixe esta luz vil Luzir! Luzir! Luzir! A virgem dos meus sonhos Não vês dormir! Dormir! xxxvii Apesar de ter sido publicado em 1869, percebe-se nos jornais da época que o volume Lamartineanas só foi colocado à venda em 1870, mesmo ano de lançamento de Falenas. É possível encontrar diversos anúncios de ambos juntos. xxxviii Foram consultadas, além da primeira edição de 1823, as edições de 1824, 1838, 1853, 1878 e 1885. Desconsideramos as duas últimas para um exame mais minucioso porque são posteriores à data da tradução. xxxix Esta informação foi incluída na edição traduzida da obra e não se encontra no original francês da tese complementar de Massa, sugerindo que quando redigiu o trabalho talvez não tivesse conhecimento da tradução de Gonçalves Dias. xl Segundo a edição de 1856 de Gedichte von Friedrich Schiller, as estrofes suprimidas foram três, conforme se vê na p. 90. xli Acrescentaremos uma tradução nossa para cada citação do texto-fonte para fins de comparação com as escolhas de Machado de Assis. xlii A consulta ao fac-símile do jornal nos mostra que a grafia correta do nome é “Asinius”, e não “Anísius”, como saiu na edição crítica. Na edição francesa consultada lê-se, também, “Asinius”. xliii Na edição francesa de 1859 o nome do autor está grafado como “Bouilhet”. A grafia utilizada tanto na Semana Ilustrada quanto em Falenas, “Bouillet”, pode ter sido uma confusão com o nome do autor do Dictionnaire Bouillet, nome informal do Dictionnaire universel d’histoire et de géographie, de Marie-Nicolas Bouillet e Alexis Chassang, que teve sua primeira edição em 1842 e era bastante citado nos jornais do século XIX. Na mesma edição em que sai “Cegonhas e Rodovalhos”, por exemplo, há duas menções ao Dictionnaire Bouillet. xliv O romance foi publicado em folhetim pelo Correio Mercantil no mesmo ano de publicação na França, entre agosto e novembro de 1854. xlv Para fins de cotejo, utilizamos a versão francesa do poema conforme publicada por Alexandre Dumas pai em Causeries. xlvi Na versão do poema publicada no romance La dame aux perles, os dois versos finais desta estrofe possuem algumas diferenças destacadas em itálico a seguir: “S’il ne ramène pas ce que mon coeur espère, / Il n'est pas de soleil, il n'est pas de printemps !” xlvii A edição da revista pode ser consultada em: [http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k229232r/f42.image] 468 xlviii Knowlton Jr., ao que tudo indica, utilizou neste caso o sistema Wade-Giles de romanização, o que pode explicar a diferença entre ambos. xlix Em seu ensaio, Joaquim Guerra explica os problemas que existiam com a transcrição dos nomes chineses para o alfabeto latino na época em que a tradução foi feita, já que inexistiam as regras de que dispomos hoje. l Joaquim Guerra, na verdade, não confirma a autoria de Du Fu neste caso, mas também não a contesta, ao contrário do que faz com “O imperador”, o que nos leva a acreditar que ele considerou a atribuição correta. li Possivelmente Ferreira de Araújo, segundo Ubiratan Machado. lii Há uma obra chamada Voyage dans l’Amérique meridionale, de Alcide d’Orbigny, e outra chamada Voyage dans l’Amérique septentrionale, Victor Collot, ambas publicadas também nas primeiras décadas do séc. XIX. Talvez expliquem este pequeno deslize de Machado de Assis. liii “Cortesã”, segundo nota de Chateaubriand. liv Tribo indígena que, no relato de Chateaubriand, estava entre os escravos dos Muscogulges. lv Tanto o fac-símile do nº 2 de “A Época” quanto desta edição da “Semana Ilustrada” estão disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. lvi Esta tradução vem acompanhada de uma epígrafe, em grego, da peça Agamênon, de Ésquilo, que não reproduzimos aqui. lvii Procuramos os documentos originais desta tradução, ou cópias dos mesmos, junto à Biblioteca Nacional a fim de confirmar as afirmações do biógrafo Magalhães Júnior. Até o fechamento deste trabalho nossas pesquisas foram infrutíferas, o que nos obrigou a acreditar no relato deixado pelo biógrafo. lviii Edgar Allan Poe faleceu em 1849, sem ter conhecido a divulgação de sua obra na Europa e no restante da América. lix Há notícia publicada em A Semana da publicação do Intermezzo em livro, pelos livreiros Fauchon & Comp., ainda no ano de 1894. Não localizamos nenhum exemplar para consulta. A notícia pode ser conferida em: http://memoria.bn.br/DocReader/383422/1844 lx “Negros” e “brancos” eram os partidos políticos que disputavam o poder na Toscana. Dante Alighieri pertencia aos “brancos”. lxi Caso do verso "Se vuoi campar desto loco selvaggio", citado por Ramos que acrescenta haver "muitos outros" na Commedia. In: RAMOS, P. E. S. O verso romântico e outros ensaios, p. 51 lxii Outros nomes citados pela autora, dentre os poetas que empregaram a terza rima, incluem “o barroco Gregório de Matos, os árcades Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, os românticos Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo, e os parnasianos Olavo Bilac e Alberto de Oliveira” (SALOMÃO, 2016, p. 388), sem desconsiderar autores menos conhecidos. lxiii Cf. FLORES, Diego do Nascimento Rodrigues. “Diálogos em tradução: Augusto de Campos e Machado de Assis”. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 37, n. 3, p. 117-138, set. 2017. ISSN 2175-7968. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p117>. Acesso em: 25 jul. 2018. lxiv No Brasil, a obra foi reeditada pela Editora Landy em 2003, em dois volumes de capa dura, que tiveram pelo menos mais duas edições em 2004 e 2005, conservando as ilustrações de Gustave Doré, mas sem os estudos críticos de Pinheiro Chagas e Teófilo Braga que acompanharam a primeira edição. lxv Após consulta à edição de 1696 foi possível verificar que o uso de maiúsculas para alguns nomes como os dos animais, “Peste”, “Ciel”, “Berger”, “Diable”, etc. está conforme a edição crítica preparada por Collinet. lxvi Publicado no Jornal das Famílias, novembro-dezembro de 1876 e janeiro de 1877. Consta do vol. 2 da Obra completa em 4 volumes, pp. 1437-1443.