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Disputas em torno do espaço urbano 2da edição

2020, Disputas em torno do espaço urbano 2da edição

Os trabalhos reunidos no livro apontam a relevância de se pensar os processos de produção, reprodução e apropriação da cidade “desde baixo”, “acima”, ou nas dinâmicas relações de ida e vinda entre diversos processos culturais e sociais que acontecem nelas. Além do destacado perfil dos(as) autores(as) e do foco interdisciplinar do livro, nele são retomados relevantes debates sobre a [re]construção, produção e apropriação do mundo urbano a partir de perspectivas relacionais dos atores que participam de diversos tipos de disputas, nos mais diversos tipo de contextos urbanos, mostrando a necessidade de se indagar sobre esses processos em todos os setores e grupos societais (elites no poder, grupos subalternos, setores médios, governança, capital imobiliário, etc.).

DISPUTAS EM TORNO DO ESPAÇO URBANO Processos de [re]produção/construção e apropriação da cidade UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA REITOR João Carlos Salles Pires da Silva VICE-REITOR Paulo Cesar Miguez de Oliveira ASSESSOR DO REITOR Paulo Costa Lima EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA DIRETORA Flávia Goulart Mota Garcia Rosa CONSELHO EDITORIAL Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño El-Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel Maria do Carmo Soares de Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo DISPUTAS EM TORNO DO ESPAÇO URBANO Processos de [re]produção/construção e apropriação da cidade John Gledhill Maria Gabriela Hita Mariano Perelman (Organizadores) Salvador | Edufba | 2020 2ª edição 2017, Autores. Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal. Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. 1ª Edição: 2017 CAPA E PROJETO GRÁFICO Igor Almeida REVISÃO Equipe da EDUFBA NORMALIZAÇÃO Francimar Dias Pereira de Carvalho SISTEMA DE BIBLIOTECAS - UFBA Disputas em torno do espaço urbano : processos de [re]produção/construção e apropriação da cidade / John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman, organizadores. – 2 ed. Salvador : EDUFBA, 2020. 469 p. ; 17 x 24 cm Contém biografia. Textos apresentados durante o Colóquio Disputas em torno do espaço público urbano: processos de [re]-produção/construção e apropriação das cidades (Salvador, BA/2014). ISBN: 978-65-5630-087-0 1. Espaços públicos. 2. Cidades e vilas -- Aspectos sociais. 3. Política urbana. 4. Arquitetura - Brasil. 2. Planejamento urbano - Brasil. I. Gledhill, John. II. Hita, Maria Gabriela. III. Perelman, Mariano. CDD – 720 Elaborada por Jamilli Quaresma CRB-5: BA-001608/O Editora afiliada à Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo s/n - Campus de Ondina 40170-115 - Salvador - Bahia Tel.: +55 71 3283-6164 Fax: +55 71 3283-6160 www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br SUMÁRIO A desigualdade em clave contínua: apresentação da segunda edição John Gledhill, Maria Gabriela Hita e Mariano Perelman 9 Prefácio John F. Collins 29 Introdução: a questão urbana, hoje John Gledhill, Maria Gabriela Hita e Mariano Perelman 35 PARTE I – O urbanismo brasileiro: um olhar histórico literário e musical Montagem urbana Paola Berenstein Jacques 51 A modernidade e o caráter sublime da cidade na literatura do fim de século XIX Paulo César Alves 77 Traços e sons da cidade que mais cresce no mundo: São Paulo de Prestes Maia e Adoniran Barbosa Maria Izilda Santos de Matos 105 Boleros e espíritos na Praça da Piedade, centro de Salvador Urpi Montoya Uriarte 129 PARTE II – Disputas atuais na produção socioespacial da cidade: direito à cidade, requalifação urbana, e despejos Dinâmica Urbana e Contextos de Periferização – tendências e cenários sociais locais Iracema Brandão Guimarães 155 Direito à moradia e função social da propriedade: avanços e recuos Angelo Serpa 179 Perícia Popular do Centro Histórico de Salvador: Vida Urbana Negra e Máquina Patrimonial Glória Cecília dos Santos Figueiredo e Brais Estévez 191 Uma comunidade periférica da cidade de Salvador: entre a requalificação urbana e a pacificação policial Maria Gabriela Hita 221 PARTE III – Segurança pública e desigualdades sociais em cidades brasileiras Dilemas, desafios e problemas da UPP no Rio de Janeiro Alba Zaluar 251 As UPPs e o Espaço Urbano: conflitos, política pública e violência Rodrigo Monteiro 271 Problemas da polícia: um olhar de dentro da corporação John Gledhill 297 A circulação das mulheres no espaço público urbano: transgressões, crimes, riscos e danos Ceci Vilar Noronha e Suzana de Magalhães Dourado 321 PARTE IV – Territorialidade(s), poder público e sociabilidade em disputas pelo espaço Territorialidades móveis em áreas populares: a região da Luz, na área central de São Paulo Heitor Frúgoli Jr. 347 Precários e perigosos: possíveis relações entre formalidade e informalidade em processos de administração de conflitos no Rio de Janeiro Lenin Pires 369 Dinámicas territoriales en la producción de la desigualdad de Buenos Aires Maria Mercedes Di Virgilio e Mariano Perelman 387 PARTE V – Panoramas conceituais e teóricos comparativos Espaço público e diversidade: propostas para justiça social nas ruas, parques e praças Setha Low 419 Onde se inventa a cidade do amanhã? Deslocamentos, margens e dinâmicas das fronteiras urbanas Michel Agier 445 Sobre os autores 461 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA apresentação da segunda edição Em 2017, foi publicada a primeira edição deste livro, que reúne trabalhos que foram debatidos pela primeira vez no final do ano de 2014 no colóquio “Disputas em torno do espaço público urbano: processos de [re]produção/ construção e apropriação das cidades”. Hoje esgotada, chegou o momento de lançar uma nova edição, acrescentando à versão original o texto de Glória Cecília dos Santos Figueiredo e Brais Estévez. Glória é professora da Faculdade de Arquitetura na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e participou da mesa-redonda que debateu a primeira edição deste livro, junto ao professor John Collins, que o prefaciou quando do seu primeiro lançamento, em outubro de 2017. Brais, geógrafo, é pesquisador independente e professor colaborador da disciplina Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador, coordenada por Glória. Ao mesmo tempo em que nos alegra poder incluir este novo trabalho, precisamos expressar nossa sincera tristeza pelo falecimento da autora de uns dos capítulos originais, a Dr.ª Alba Zaluar. Uma das mais destacadas figuras no desenvolvimento da antropologia urbana no Brasil, responsável pela formação de muitas novas gerações de pesquisadoras e pesquisadores inspirados 9 pelo seu exemplo de pensamento analítico inovador em combinação com etnografia rigorosa, o trabalho da Dr.ª Zaluar foi amplamente reconhecido e admirado internacionalmente. Sentimo-nos muito honrados pelo privilégio de publicar neste livro uma de suas últimas reflexões sobre as favelas cariocas, informada pela sua profunda e ampla perspectiva conceitual sobre o que a antropologia pode oferecer ao entendimento de nossas realidades sociais. Mais três anos se passaram desde a publicação da primeira edição, e mais de seis desde que a maior parte dos textos que continuam aqui tal como foram escritos, ainda quando todos eles foram reformulados e responderam a pedidos de pareceristas para a sua primeira publicação, mas eles continuam sendo atuais em muitos sentidos. Contudo, desde então, muitas transformações sociopolíticas e sanitárias têm ocorrido na região. Apesar da volta ao poder do peronismo na Argentina ao final de 2019 e do Movimento ao Socialismo na Bolívia em outubro de 2020, América Latina deu um forte giro para a direita a partir de novos governantes, muitos deles no poder a partir de golpes de Estado duros, outros mais brandos, assim como a partir da assunção de governos de direita eleitos de forma “democrática” e em contextos em que as fake news exerceram um papel central. Nesses anos, temos visto uma forte relação entre grupos de direita, empresas que manipulam meios de comunicação e certo setor do poder judicial que tem intentado – na maior parte das vezes, como nos casos do Brasil e Equador – desestabilizar governos populares e democráticos. Para nos centrar em países sobre os quais este livro trata, podemos assinalar que a eleição de Mauricio Macri na Argentina, no final de 2015, e a destituição de Dilma Rousseff pelo impeachment de 2016, com a subida de Michel Temer primeiramente em substituição à presidenta, seguida da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, marcaram uma agenda em que se visibilizou e exacerbou a deterioração das condições de vida de grandes setores da população latino-americana, especialmente dos mais pobres, piorando as condições vividas das quais substancialmente se trata neste livro. A irrupção da pandemia do COVID-19 desde março de 2020 tem levado as transformações a escalas antes não conhecidas, afetando até modos de viver e sociabilização não apenas na região, como no mundo inteiro, enquanto vacinas e modos de controle continuam sendo estudados. A pandemia não só revelou as estruturas de desigualdades sociais e etno-raciais existentes, por causa de seus impactos diferenciados na população 10 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO tanto em termos de saúde quanto em termos econômicos, mas também ameaça aprofundar a desigualdade ainda mais gravemente. Não tratamos desses temas aqui, mas, apesar disso, os capítulos deste livro continuam sendo relevantes para diagnosticar as raízes dos problemas com que temos que lidar pela frente. Se bem muita água rolou embaixo da ponte em que a América Latina se encontra desde então, os textos aqui reunidos não perderam sua vigência. Pelo contrário, é possível que as desigualdades urbanas e as disputas em torno do espaço urbano tenham, na maior parte das cidades, se intensificado mais ainda. Mas é necessário recordar que a “questão urbana” desenvolvida na introdução à primeira edição – e que se reproduz nesta nova edição de modo intacto – não desaparece, mas se transforma à luz de novos acontecimentos. Com isso, queremos dizer que as desigualdades têm uma temporalidade longa e acumulativa. As medidas estatais podem tender a reduzir ou incrementar as desigualdades em diferentes esferas. Também as ações e reações dos grupos sociais vão buscando transformar o acesso à cidade (em sentido amplo) a partir de uma acumulação de experiências sociais. As mudanças podem ser mais ou menos rápidas, mais ou menos permanentes, mas a sedimentação de experiências nunca ocorre do nada. E as cidades como lugares múltiplos e complexos, com suas histórias particulares, são centrais para compreender a derrota de processos de acumulação de desigualdades, de seu incremento ou de sua redução. É possível, então, que a questão urbana esteja construída hoje por lutas pelo reconhecimento e pelo acesso a uma cidade mais desigual. Mas tudo isso ocorre em continuidade ao processo de desigualdades anteriores e persistentes. Realizou-se o colóquio que foi a base original deste livro na cidade de Salvador, Bahia, Brasil, entre 20 e 21 de novembro de 2014. A proposta deste encontro foi gerar um espaço de discussão e debates em torno a quatro eixos temáticos: 1. Perspectivas históricas sobre processo urbano no Brasil; 2. Propriedade do solo e disputas pelo direito à cidade no Brasil; 3. Acesso ao espaço público e securitização do espaço urbano; e 4. Acesso de diferentes atores sociais aos espaços da cidade.1 Organizado pelos coordenadores deste 1 Agradecemos os apoios financeiros recebidos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), da Reitoria e da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal da Bahia (UFBA), através do edital Ações e Programas de 2014 e do Programa de Apoio a Eventos no País (Paep), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), na publicação da primeira edição do livro em 2017. John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 11 livro, John Gledhill, Maria Gabriela Hita e Mariano Perelman, esse colóquio visou reunir investigadores locais, nacionais e internacionais, de distintos campos disciplinares, que têm contribuído de modo original no campo de estudos urbanos, partindo do pressuposto de que diálogos de teor interdisciplinar são essenciais para compreender e amadurecer os debates sobre o que ocorre hoje nas cidades, especialmente nas latino-americanas e brasileiras, como as tratadas neste livro. Trata-se das principais disputas do espaço urbano e aborda-se o tema da construção, reprodução e apropriação das cidades por parte de uma ampla variedade de atores sociais, os quais também participam na produção e no fazer dessas cidades. Os textos que integram o livro dão conta de processos sociais que têm efeitos sobre os modos como as pessoas de carne e osso vivem na cidade. Na primeira parte do livro, sobre o “Urbanismo no olhar histórico, literário e musical”, foram reunidos quatro artigos em que o ponto em comum é sua perspectiva histórica e artística sobre o passado e presente de cidades, especialmente as brasileiras. O primeiro deles, de Paola Berenstein Jacques, inicia a seção com uma reflexão mais geral sobre uma metodologia dos estudos da história do urbanismo e memórias coletivas das cidades, que ela apresenta como uma poderosa ferramenta epistemológica para retratar o fenômeno urbano. Já o conteúdo dos artigos seguintes realiza diferentes exercícios dessa proposta ao buscarem retratar e refletir diferentes momentos históricos de cidades brasileiras, como o Rio Janeiro no início do século, tratado por Paulo César Alves; a São Paulo da década de 1920 a 1940, retratada por Maria Izilda Matos; e um espaço público da cidade de Salvador contemporânea etnografada por Urpi Montoya. Nesses três últimos artigos, se lança mão dessa articulação dos O evento de 2014 reuniu autores deste livro num colóquio internacional de caráter fechado – apenas com convidados escolhidos a priori pelo seu elevado perfil e afinidade de suas linhas de pesquisa com as que desejávamos dialogar –, mas aberto à participação do público mais amplo como ouvintes. De todos os convidados, apenas Mariana Cavalcanti e Angela Gordilho não puderam participar desta coletânea por outros compromissos assumidos anteriormente. Esse colóquio visou conectar especialistas na questão urbana de distintas unidades da UFBA entre si e com os convidados externos, para ampliar e potencializar a criação de redes e parcerias intra e interinstitucionais – o que se concretizou, entre outros produtos diversos que se seguiram a este pela reedição de discussões e debates similares em eventos organizados por outros parceiros nos anos seguintes. As sessões descritas foram as do colóquio, que, de modo geral, mantiveram a mesma lógica das seções deste livro, mas com ligeiras adaptações e mudanças nos títulos e combinações dos textos nos apartados do livro. 12 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO estudos urbanos com os da literatura e música popular, como ferramenta poderosa a partir das quais se constroem diferentes montagens e representações das cidades, recuperando fragmentos essenciais da memória coletiva e história dessas épocas e localidades de que se falam no primeiro deles, de modo mais geral. Berenstein Jacques parte da reflexão de montagem urbana, sugerida na ideia de caleidoscópio – revelador do escondido e microscópico –, como um procedimento formal e metodológico exemplar de estudar as cidades e história do urbanismo, sendo este um poderoso modo de alcançar formas mais complexas e alternativas de ver, produzir, construir, recriar e apreender a realidade social. Para além de uma simples metodologia, a montagem é tratada como uma forma de pensar, atuar e se posicionar crítica e epistemologicamente frente à infinidade, constante devir, efemeridade e complexidade da vida, especialmente a moderna, presente nos pensamentos de vários dos precursores dessa perspectiva desde as décadas de 1920 e 1930 no campo de estudos da história da arte analisados pela autora. E ao analisar como Benjamin praticava a montagem em sua obra das Passagens, atuando quase como um colecionador aficionado ou buscador de pérolas, Berenstein Jacques remete-nos à ideia da operação da seleção e combinação de distintos fragmentos – partes de um todo maior –, como poderosa fórmula de explorar e captar diferentes temporalidades, a incompletude e efemeridade das coisas, no seu constante devir. Numa reflexão que também se inspira nos estudos de arte de Benjamim e na sua pesquisa sobre paisagem urbana e imaginários sociais, em torno do surgimento da moderna cidade do Rio de Janeiro na passagem do século XIX ao XX – realizado em uma amostra de 40 romances e 16 peças de teatro dos mais destacados literatos da época –, Paulo César Alves analisa o papel da elite literária brasileira na construção de significados de novas formas de sociabilidade, ações e afetividades emergentes do mundo urbano. O acelerado processo de transformações vividas pelo espaço urbano nesse período – e nesse processo de emergência da “modernidade” pela superação da “atrasada” sociedade rural, escravista e patriarcal – fascinava esses intelectuais, nas duplas faces de tal processo, tanto pelas suas virtudes quanto pelas suas mazelas. Para além de retratarem o momento e a diversidade de seres e ambiguidades que povoavam os mais diversos cantos da cidade, esses literatos tiveram, na visão de Alves, um papel central na instauração de um novo modelo de John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 13 identidade nacional. Se a metrópole representava para esses intelectuais o símbolo dessa nova civilização e promessas de modernização, onde Paris era vista como o modelo de civilidade a seguir, por outro lado, essa metrópole era tida como a expressão das piores mazelas e ambiguidades resultantes desse caótico e desordenado processo de transição entre o velho e novo mundo, com todas as misérias humanas por eles retratadas no mais puro estilo literário realista do romantismo que Alves estuda, indicando a ruína de valores morais, refletida na degradação humana extrema, vários tipos de corrupção e tentações provenientes do encontro desses dois ideários e modelos de identidade nacional que se enfrentavam: o da sociedade patriarcal e escravocrata em ruínas contra a moderna e industrializada metrópole emergente. De modo similar a Alves, mas num período posterior e outra capital, Maria Izilda Matos retrata mais as grandes transformações pelas quais passou a cidade de São Paulo ao longo de toda sua história, identificando principais vestígios de edificações de seu riquíssimo patrimônio histórico que permaneceram ou foram se transformando em ruínas, as distintas mudanças pelas quais passaram certas regiões e equipamentos ao longo das décadas. Ela centra sua análise na passagem de uma São Paulo cafeicultora para o da moderna e industrializada cidade, que, entre anos 1920 e 1940, crescia a passos vertiginosos, e discute nesse capítulo a produção de dois importantes construtores de São Paulo: o prefeito urbanista Prestes Maia e o compositor Adoniran Barbosa, polemizando sobre os traços e sons da “cidade que mais crescia no mundo”. A riqueza de suas análises e o encantamento produzido pela sua descrição quase literária sobre o conteúdo de letras de ícones da música popular brasileira se devem à sofisticada combinação em sua análise de aspectos da história social, do urbanismo, da política e da vida cultural do cotidiano paulista. Ilustrando essa análise pela ácida e graciosa ironia crítica das letras do Adoniran Barbosa, Maria Izilda vai atravessando temas e problemas da vida cotidiana do brasileiro comum, apontando alguns dos impactos do acelerado crescimento da grande São Paulo, que emergia como principal capital do país. Em diálogo e sintonia com os outros capítulos desta parte do livro, especialmente o de Matos, mas numa perspectiva do presente, e não passado das cidades, Montoya trata também da história e memória coletiva dos lugares. Na sua pesquisa de teor etnográfico sobre a Praça da Piedade em 14 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO dias atuais, localizada nas proximidades do Centro Histórico de Salvador, Montoya busca retratar e reconstituir uma imagem mais vívida desse espaço público. Com o olhar atento do etnólogo e reflexões da sua própria vivência a partir do seu trabalho de campo, a partir de uma perspectiva que privilegia estudos das emoções, a autora busca compor diferentes fotografias ou momentos desse lugar ao refletir sobre principais marcas, cheiros, sons e sensações que emanam desse espaço público e das pessoas que o usam, circulam e transitam em diferentes horas do dia. Montoya destaca o papel central e nucleador exercido especialmente por um de seus interlocutores, o rastafari Bob-Bahiano, que sempre se veste de preto e é o DJ, prosador e vendedor de CDs que diariamente trabalha nessa praça e se autodefine como músico, artista, poeta e produtor cultural. O espaço não é mais por ela descrito como simples lugar de maior concentração de idosos aposentados que lá se juntam para ouvir especialmente os boleros que ali toca o Bob-Bahiano, no final da tarde, e se perderem nas suas memórias. Montoya foi capaz de passar a perceber outros aspectos e caras do espaço e dos distintos espíritos e personagens que o próprio Bob-Bahiano lhe foi introduzindo, como Maria Padilha, o Zé Pilintra, os caboclos, o Gressil, o Pensador, entre outros, sobre os quais a sua música pareceria ter diferentes efeitos terapêuticos. Se o trabalho de Montoya é tanto sobre os traços do passado no presente quanto o próprio presente, as mudanças da cidade na época atual vão ser o tema sobre os quais vão tratar os três trabalhos da seguinte parte do livro. Os capítulos da segunda parte analisam o desenvolvimento urbano da cidade de Salvador em tempos atuais para enquadrar uma discussão crítica da questão urbana contemporânea caraterizada pela centralidade do capital imobiliário e financeiro na formulação de políticas públicas, reconhecendo os aspetos específicos dessa experiência local sem deixar de considerar sua relação com outros processos e escalas mais extensas, a nível nacional e global. A partir de uma discussão das perspectivas teóricas oferecidas pela sociologia clássica e outra mais recente, sobre as relações entre a totalidade da cidade e os bairros como locais de moradia com características sociais próprias, Iracema Brandão Guimarães indaga sobre as transformações da qualidade tanto das relações internas dos bairros quanto da natureza das relações sociais entre os grupos que John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 15 habitam nesses espaços. Observando que a cidade de Salvador deve ser considerada “policentralizada” como consequência das transformações que produziram o estabelecimento do centro comercial do Iguatemi e o desenvolvimento do Acesso Norte, nas imediações do aeroporto internacional, Brandão traça os sucessivos ciclos de “periferização” das camadas mais pobres que têm acompanhado um processo de desenvolvimento urbano. Essa análise considera a variedade das formas de moradias e assentamentos que constituem a categoria oficial de “aglomerados subnormais” nas cidades metropolitanas brasileiras, os impactos da reestruturação dos mercados de trabalho e o aumento da precarização produzidos pelas políticas econômicas neoliberais nos anos 1990, esclarecendo, assim, algumas semelhanças e diferenças a respeito do crescimento das periferias de Salvador e das diferentes metrópoles brasileiras. Enfatizando que em nenhum caso deve-se reduzir a “periferia” a uma categoria espacial, Brandão mostra que morar nos bairros socialmente periféricos de Salvador não só continua prejudicando a qualidade de “acesso à cidade” usufruído pelos moradores dessas comunidades apesar dos avanços no reconhecimento de seus direitos prometidos pela democratização, mas também que, na atualidade, as situações mais extremas de precariedade de modos de ganhar a vida e estigmatizacão territorial podem ter implicações negativas no que se refere à qualidade da sociabilidade e níveis de confiança entre famílias e vizinhos, minando o caráter comunitário da vida desses bairros. Os problemas de habitar na cidade experimentados pelos soteropolitanos de baixa renda também são importantes no capítulo seguinte, junto com a questão de “resistências” aos modelos atuais de desenvolvimento urbano. Com base nas experiências de desapropriações e deslocamentos de famílias e comunidades pobres, associadas com os preparativos para celebrar a Copa Mundial de Futebol e as Olímpiadas, no Rio de Janeiro e em outras cidades, e as campanhas de resistência em contra dessas desapropriações, Angelo Serpa apresenta uma reflexão sobre a ironia com que os movimentos sociais brasileiros conquistaram uma legislação urbanística “de ponta”, na forma do internacionalmente elogiado Estatuto da Cidade, mas as previsões dessa legislação exemplar raras vezes são levadas em consideração na prática, nos processos de planejamento e gestão urbana dentro do país. Usando como exemplos algumas regiões de Salvador que abrigam importantes elementos do patrimônio 16 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO cultural material e imaterial da cidade, Serpa mostra como esse “estado de exceção” tem sido ampliado e estendido além da Copa, em benefício de grandes interesses imobiliários associados ao capital financeiro, embora ainda esteja sendo contestado por moradores dos bairros afetados, que usam os recursos de suas atividades artísticas para resistir e oferecer “um contraponto à lógica oficial dos megaeventos e dos grandes espetáculos”. Ressaltando que ainda existe a possibilidade de usar o Estatuto da Cidade para produzir outra realidade, Serpa conclui seu capítulo com a análise da irracionalidade da lógica atual na relação entre especulação imobiliária e financeira e seu domínio no mundo político brasileiro: alega que a oferta de moradias continuará sendo bem menor que a demanda para as famílias de baixa renda, mas que o superávit da oferta dos imóveis destinados às classes médias e altas ameaça acabar na formação de “espaços fantasmas” por falta de compradores. No trabalho de Glória Cecília dos Santos Figueiredo e Brais Estévez, passamos ao coração do Centro Histórico de Salvador, o Pelourinho, declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 1985. Uma vez que as elites abandonaram seus antigos casarões em busca de um estilo de vida mais “moderno” em novos polos de desenvolvimento urbano, eles foram convertidos em residências multifamiliares por inquilinos pobres realizando uma variedade de formas de trabalho, cujo deslocamento foi imprescindível para levar a cabo o que a elite caracterizou como “o resgate do Centro Histórico” nos anos 1990, sob a liderança do grande cacique baiano Antônio Carlos Magalhães. Como apontam Figueiredo e Estévez, a hipocrisia por trás desse conceito de “resgate” por meio de um projeto turístico-patrimonial “desterritorializador” que pretendia converter o Pelourinho num “shopping center a céu aberto”, anulando os direitos fundiários e sociais dos moradores expropriados e removidos, foi que se tratava “da mesma população que, durante décadas, havia tomado conta, sem qualquer tipo de apoio público, do Centro Histórico de Salvador”. Foi somente nos princípios do novo milênio que, principalmente como resultado da mobilização de grupos de moradores, uma sétima etapa do Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador (PRC), ainda inconclusa, incorporou a uso habitacional no planejamento do desenvolvimento da zona. Contudo, como o capítulo demostra, a experiência John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 17 dos moradores nas mãos dos agentes estatais e corporativos durante a sétima etapa não mudou a matriz colonial e racial que caracterizava as etapas anteriores, mas a atualizou para apoiar o modelo neoliberal de desenvolvimento urbano, ligando “modos contemporâneos de extrativismo financeiro” a “uma violência jurídica-institucional”. O capítulo documenta, nas palavras das mesmas moradoras, as violências raciais que têm caracterizado as respostas da burocracia do PRC a suas demandas, não só para moradia digna, mas, também a uma vida econômica viável. Inclusive, há casos de famílias que têm sofrido graves problemas de saúde por conta das condições de alojamento oferecidas nas moradias provisórias pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder). As experiências e a análise descritas nesse capítulo têm grande relevância não só para outras metrópoles brasileiras, mas também outras cidades do mundo. Porém, o objetivo dessa colaboração urbana foi o de ir além da pura análise crítica desses fatos. A metodologia e o compromisso social de sua iniciativa coletiva de Perícia Popular, baseada na colaboração entre professores, estudantes e a Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico de Salvador (Amach), também oferecem um modelo exemplar para ser replicado em outros contextos por seu engajamento com práticas populares “desobedientes que disputavam as formas convencionais de fazer cidade”. A forma pela qual a desigualdade socioterritorial, apropriação privada da terra, especulação imobiliária e a proliferação de assentamentos humanos precários têm diminuído a qualidade da vida de boa parte das populações urbanas do Brasil e outros países emergentes e pobres também é o ponto de partida para o trabalho de Maria Gabriela Hita, o qual oferece tanto um estudo de caso etnográfico do Bairro da Paz, uma das comunidades carentes mais populosas da cidade de Salvador, quanto um diagnóstico geral dos processos minando o “direito à cidade” dos brasileiros pobres. Sua discussão é teoricamente extensa por considerar a relevância de uma literatura multidisciplinar e comparativa para entender “o novo urbanismo” da época neoliberal na América Latina. Contudo, a autora enfatiza que os processos comuns produzem impactos diversos não só nas várias cidades do Brasil, mas também nos diferentes bairros de uma cidade e até dentro de um mesmo bairro, quando consideramos a “microdiferenciação socioeconômica interna 18 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO de cada local” e as “redes sociais diferenciadas que ligam os indivíduos e famílias a outras comunidades, outras capas sociais e outros segmentos da população urbana”. Ampliando parte da discussão histórica de Brandão, Hita mostra os impactos específicos sobre o Bairro da Paz, como uma “periferia urbana”, na “nova centralidade” em formação no Acesso Norte de Salvador, ressaltando a importância dos impactos de mudanças ligadas a novos projetos de mobilidade urbana, não só sobre a localidade de Bairro da Paz, mas também sobre as futuras articulações de todas as distintas regiões do espaço urbano. Mostra como as específicas formas de organização comunitária têm se desenvolvido nesse lugar nos últimos anos e que têm influenciado positivamente na capacidade dos moradores de negociar com o estado, embora essa seja uma história de altos e baixos. Contudo, a perspectiva etnográfica mostra a complexidade e heterogeneidade das reações dos moradores e das lideranças às mudanças, inclusive suas reações à instalação no bairro de uma Base Comunitária de Segurança (BCS), o equivalente baiano das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro, vistas por alguns críticos como um instrumento a mais para avançar na construção da cidade neoliberal por meio da requalificação urbana. A questão dos impactos das políticas atuais de segurança pública sobre a vida urbana introduzidos no capítulo de Hita é o foco temático principal dos quatro capítulos que formam a próxima e terceira parte do livro. Os primeiros trabalhos, por Alba Zaluar e Rodrigo Monteiro, discutem a experiência das UPPs cariocas. Zaluar começa sua discussão sobre os “dilemas, desafios e problemas da UPP” com uma desconstrução sistemática de um grande número de concepções erradas sobre as favelas cariocas, muitas vezes vistas pelas outras camadas da sociedade brasileira como espaços social e politicamente fechados e habitados por pessoas alienadas ou iludidas, “idiotas culturais”. Tanto para Zaluar como para Hita, precisa-se reconhecer a heterogeneidade social dos favelados, sua capacidade de serem atores políticos e o papel fundamental das redes que conectam os atores sociais dentro das comunidades aos atores sociais e redes políticas e religiosas de fora, na produção de uma importante diferenciação interna, tanto em termos de ideias e perspectivas sociais e políticas quanto em termos socioeconômicos. John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 19 Zaluar argumenta que a ocupação inicial das favelas afastou os traficantes mais importantes para outras áreas da cidade, deixando pessoas mais jovens se encarregarem da venda de drogas nos “becos” das comunidades, já que a presença permanente de policiais dentro das favelas ocupadas impediu a ocupação de lugares mais públicos. Portanto, a UPP também impediu o uso, por parte de traficantes, da exibição pública tanto de armas de fogo quanto de bens de consumo de luxo para ostentar seu poder e atrair “soldados” seguidores e mulheres, o que resultou no sentido de diminuição e humilhação por parte da nova geração. Zaluar também mostra como e por que esse quadro mudou depois do retorno de confrontos armados entre policiais e traficantes, até mesmo em favelas já pacificadas, algo que tem aumentado os registros de mortes de policiais ao número ainda bem maior e assustador dos favelados assassinados. Observa que a UPP não tem se constituído na prática de uma mudança do paradigma estabelecido da segurança pública brasileira. Indaga-se, etnograficamente, sobre as diferenças de perspectivas e disputas que existem dentro da própria corporação policial e sobre os diferentes fatores que explicaram a falta de unanimidade no apoio ao projeto das UPPs entre os moradores. O capítulo de Rodrigo Monteiro estende a discussão desse tema com base em seu trabalho etnográfico nas favelas do Complexo do Alemão e Batan, a única comunidade “pacificada” que anteriormente estava controlada por milicianos, e não por traficantes de drogas. Monteiro usa seus estudos de caso para destacar que, a nível local, “a lógica de implantação das UPPs não atendeu a um único critério”, embora também mostre como se pode explicar a adoção da nova política de segurança pública e descrever suas características e consequências, em termos mais globais. Outro fator específico que Monteiro destaca é que as UPPs cariocas surgiram em um contexto em que a cidade do Rio de Janeiro, depois de experimentar “um esvaziamento econômico provocado pela corrida de indústrias e sedes de setores de finanças e serviços para São Paulo”, buscava retomar sua posição estratégica como cidade global de uma maneira distinta da paulista, por meio de hospedagem de grandes eventos internacionais. A análise de Monteiro traça o perfil quantitativo das taxas de homicídio no Complexo do Alemão, argumentando que os resultados da implantação das UPPs foram positivos, mas ainda decepcionantes quando comparados 20 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO com as expectativas suscitadas pelas reportagens da grande mídia. Seus dados etnográficos nos ajudam a entender as estatísticas, mostrando em detalhe como ocorreu o aumentou de tensões entre a polícia e os moradores como consequência não só da volta dos tiroteios, mas também da falta de diálogo que caracterizou o comportamento dos comandantes num contexto de maior regulação das vidas cotidianas dos favelados e da continuidade de uma “lógica de subalternização” por parte de todas as agências do estado, o que aumentou as divisões internas entre os beneficiados e não beneficiados dos projetos de desenvolvimento social. Monteiro mostra que, em certos sentidos, a regularização diminuiu o papel do clientelismo político no acesso a serviços que são de direito universal, mas que a volta dos tiroteios causou novas falhas no fornecimento dos serviços que obrigaram os moradores a recorrer outra vez aos líderes locais “ou mesmo aos policiais” para resolver seus problemas. No caso do Batan, a presença de Organizações Não Governamentais (ONGs), políticas públicas e empreendimentos da iniciativa privada é muito pequena quando comparada com o caso do Complexo do Alemão. Uma das duas ONGs atuando na comunidade foi instalada após a implantação da UPP, por um oficial da polícia militar da UPP e pastor evangélico, que parece disfrutar de certos privilégios no que se refere ao acesso às verbas públicas disponíveis para empreendimentos sociais. Nesse caso, a associação de moradores estava presidida antes da ocupação por um policial militar aposentado, acusado de ter pertencido à milícia, mas esse personagem decidiu não buscar a reeleição. Contudo, Monteiro observa que a história recente da UPP do Batan não só mostra que os comandantes das UPPs podem acumular poderes de intermediação importantes, mas também que “a inexistência de um protocolo ou doutrina que dê uniformidade aos procedimentos de oficiais e praças das UPPs acaba por permitir que cada comandante tente exercer seus ‘pequenos poderes’ nas favelas que ‘pacificam’”, de uma maneira que “serve aos interesses dos que buscam saídas não convencionais”. O trabalho de John Gledhill indaga mais sobre o processo de policiamento das comunidades pobres, mas no contexto da experiência da “UPP baiana”, a BCS, também discutida por Hita no caso do Bairro da Paz. Sua discussão geral aborda a questão da securitização da pobreza e a militarização do policiamento urbano como um fenômeno global e, ao mesmo tempo, um fenômeno que John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 21 considera suas dimensões especificamente brasileiras, retomando vários dos temas sobre os processos de acumulação por espoliação já discutidos em capítulos anteriores, mas também destacando que a função geral do policiamento de comunidades, tanto na Europa e nos Estados Unidos quanto no Brasil, é a de sustentar uma ordem social caracterizada por um alto grau de desigualdade social e de manter cada qual em “seu devido lugar”. Gledhill oferece uma discussão dos fatores que impedem a substituição de um sistema de policiamento ostensivo por um verdadeiro sistema de “policiamento de proximidade” no contexto baiano, para complementar os dados etnográficos e análises oferecidas por Zaluar e Monteiro no contexto de Rio de Janeiro. Porém, o objetivo principal do seu trabalho foi criar um espaço para escutar as vozes dos mesmos soldados da Polícia Militar (PM) lotados nos programas de “pacificação” baianos. Os sujeitos das suas entrevistas reportados nesse capítulo foram soldados, não oficiais, e principalmente mulheres, que se ofereceram voluntariamente para trabalhar na primeira e provavelmente mais bem-sucedida BCS. Portanto, é um estudo de caso que mostra a cara mais favorável tanto do projeto quanto da PM da Bahia. Contudo, Gledhill argumenta que o compromisso com seu trabalho que caracterizava essas mulheres fortalece o peso dos aspectos críticos de seu discurso sobre a corporação, as políticas de segurança pública, os políticos, a mídia e o público. Gledhill propõe que, no contexto dos debates nacionais sobre as possibilidades de promover uma reforma estrutural de desmilitarização da polícia, prestar mais atenção a essas vozes não só nos ajuda a refletir sobre as causas profundas dos problemas atuais, mas também nos recorda mais uma vez que; da mesma maneira que moradores de comunidades periféricas não constituem um grupo de atores homogêneos, tampouco o fazem os homens e mulheres da PM. Embora questões de gênero tenham sido abordadas de uma forma limitada na análise de Gledhill do mundo policial, o último trabalho dessa seção, de Ceci Vilar Noronha e Suzana de Magalhães Dourado, aborda uma das questões mais fundamentais na segurança publica urbana na atualidade, a segurança das mulheres em espaços públicos. As autoras argumentam que as estatísticas criminais omitem ou sub-registram muitos dos danos que atingem a dignidade sexual das mulheres nos ambientes não domésticos. Seu trabalho enumera os tipos de comportamento masculino que provocam medo e 22 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO uma sensação de insegurança nas mulheres quando circulam por transportes e vias públicas, nos espaços públicos como campi universitários e nos meios virtuais e as tácticas de autodefesa individuais e coletivas que as próprias mulheres adotam para reduzir os riscos. Também mostra que, na cidade de Salvador, um número significativo dos atos de violência física contra mulheres do tipo “doméstico” foi perpetrado em vias ou locais públicos. Observando que a crescente inserção da mulher na vida pública, “em vez de promover a libertação feminina da opressão outrora vivenciada dentre muros do vínculo conjugal, a transporta para experiências de vitimização ambientadas em lugares públicos e em presença de terceiros”, Noronha e Dourado lamentam que a justiça brasileira pareça ser mais eficiente no castigo de crimes contra o patrimônio do que de crimes contra pessoas. Noronha e Dourado discutem os novos riscos provocados pela exploração comercial do corpo feminino para fins de marketing e o medo adicional provocado pelas possíveis consequências de uma abordagem sexual masculina na rua, caso possa resultar em gravidez. Destaca-se a importância das ruas da cidade não só como espaços de vulnerabilidade, mas também como espaços de ação direita para contestar as formas de exploração e dominação abusivas presentes tanto nas relações íntimas quanto nas relações sociais em geral. Nesse sentido, as autoras apresentam as mulheres não só como vítimas, mas também como atores lutando pela transformação da sociedade urbana. A quarta seção do livro, “Territorialidade(s), poder público e sociabilidade em contexto de disputas pelo espaço”, reúne três capítulos nos quais o foco principal, para além de tratar de diferentes tipos de atores sociais que usam/ circulam e se apropriam da cidade, como as mulheres no trabalho anterior e no trabalho de Hita, na segunda seção, está centrado no próprio uso do espaço público e no papel das autoridades na sua regulamentação. Ao oferecerem uma perspectiva analítica enfocada nas relações entre distintos tipos de atores sociais e entre atores sociais e autoridades políticas, judiciais e burocráticas, os trabalhos dessa parte do livro também complementam a discussão das seções anteriores sobre os efeitos sociais das mudanças econômicas e espaço-territoriais que têm resultado de processos de crescimento urbano caracterizados pela falta de suficientes fontes de trabalho estável e bem remunerado e de moradias dignas e economicamente acessíveis, para garantir um nível de John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 23 bem-estar social adequado a todos os que convivem no espaço urbano. Esse é um tema que tanto o capítulo de Mercedes Di Virgilio e Mariano Perelman, nessa seção, quanto o de Iracema Guimarães, na segunda, abordam. Heitor Frúgoli, em seu capítulo, indaga sobre os processos de territorialidades móveis na região da Luz, em área central de São Paulo. A área, historicamente marcada por uma forte ocupação popular de suas ruas e moradias, com práticas de prostituição feminina – e posteriormente, de travestis –, pequeno comércio, comércio informal e várias atividades ilícitas que dialogam há muitas décadas com certo imaginário ligado à chamada “Boca do Lixo” –, convive com uma vida cultural que é objeto de intervenção do governo. A partir da abordagem de três âmbitos – a territorialidade itinerante da cracolândia; as redes de relações entre moradores da região da Luz; e as novas facetas de interação: o bar Nova Luz –, o texto dá conta das diferentes territorialidades presentes, dos conflitos e das formas de sociabilidade que se produzem quando parecem não existir ali. Ao mesmo tempo, indagando nesses três âmbitos de maneira conjunta, é possível observar as mesmas dinâmicas ligadas às da criminalidade, abordadas na terceira seção do livro, mas também a diversidade de agentes cujas múltiplas práticas configuram a própria cidade, assinalada por uma densidade multifacetada de sujeitos, equipamentos urbanos, instituições e práticas de intervenção voltadas a diversos fins, com uma significativa historicidade ligada às classes populares, mas com presenças, práticas e circulações que ampliam sua diversidade interna, bem como incorporam outros marcadores sociais. Dessa forma, pode mostrar como áreas que parecem estar dominadas pela droga, apesar de seus impactos, não englobam todo o território ou espaço em questão. Isso lhe possibilita também diferenciar essa área central de regiões ou bairros mais periféricos. Lenin Pires, a partir de estudo etnográfico dos processos de mudanças sociais e urbanas nas metrópoles que tem como foco principal o trabalho “informal” dos ambulantes e camelôs, reflexiona sobre o tipo de direito à cidade disfrutado por esse tipo de atores. Interessa-se pelo modo como certas construções institucionais, de caráter normativo, podem impactar a vida de determinados segmentos no espaço urbano atual, mais privatizado e mais securitizado, dialogando também com capítulos da seção terceira deste livro. Ao focalizar certas restrições no uso do espaço urbano, no Rio de Janeiro 24 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO – particularmente aquelas impostas para sujeitos sociais que se ocupam da venda ambulante –, mostra que tais utilizações, quando autorizadas, são sempre consideradas de caráter “precário” para ambulantes e camelôs. Isso tem efeitos sobre o direito à cidade. Ao caracterizar a ocupação como precária, os sujeitos estão sempre em condições de serem expulsos. O direito precário é uma forma de intervenção sobre certas atividades que as põe em um constante estado de possibilidade de serem eliminadas. O cruzamento entre um conjunto de políticas voltadas para regular as práticas comerciais de rua – entendidas a partir do direito – e as práticas dos vendedores permite a Pires mostrar o modo como o direito gera um tipo de territorialidade precária. Precariedade e pelicurosidade geram, portanto, um tipo particular de direito, o que pode levar a constantes conflitos pelo uso do espaço urbano. Por último, essa seção se fecha com um texto de Mercedes Di Virgilio e Mariano Perelman sobre a cidade de Buenos Aires. A partir de um escopo teórico bem amplo que dialoga com temas de vários dos capítulos dessa e de outras seções, os autores se centram na análise das principais dinâmicas, nos modos conflitivos de construção e apropriação desigual e precária do espaço urbano. Analisam três tipos de postais (paisagens) em que é possível observar as dinâmicas, narrativas e processos de interação social entre diferentes grupos sociais através dos quais as desigualdades se (re)produzem: a ocupação de terras no Parque Indo-Americano no sul da cidade nos finais de anos 2010, a presença de recoletores informais de resíduos nas ruas dos bairros de classe média e alta – conhecidos localmente como cirujas – e a existência de pessoas em situação de rua ou sem teto nos bairros ou zonas cêntricas da cidade, como os trazidos no capítulo do Frúgoli. A análise das três paisagens permite mostrar os conflitos pelo acesso ao solo urbano, seja para habitá-lo, usá-lo como meio de subsistência ou circular pela cidade. Por sua vez, os casos analisados falam de conflitos entre grupos localizados em posições opostas na estrutura social, mas também entre grupos da mesma posição. Isso é importante porque a desigualdade é vista por eles como um fenômeno relacional, e as relações de desigualdade não só se constroem de cima para baixo – ainda quanto estas sejam as mais fortes –, mas também entre grupos que, em termos objetivos, podem ocupar posições similares na estrutura social. Por último, o texto mostra que processos sobre os quais se cimenta a desigualdade têm John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 25 distintas temporalidades. Os processos de distinta temporalidade – econômicos, simbólicos, morais, espaciais etc. – permitem compreender produções e modos de integração social que promovem vidas mais ou menos precárias. Na última parte do livro, apresentamos as conferências magistrais de abertura e fechamento do evento realizadas por dois distintos convidados internacionais, Setha Low e Michel Agier. Suas palestras abordaram temas de grande importância tanto política quanto teoricamente, com um olhar que levou nossa discussão para além das fronteiras do Brasil e América Latina. Também oferecerem pistas para desenvolver novos temas de pesquisa e debates sobre o campo de estudos urbanos no futuro. A palestra de Setha Low se dirige à questão de como podemos criar uma cidade mais justa e democrática, com base numa revisão crítica de uma série de argumentos teóricos, filosóficos e empíricos sobre os princípios de justiça que devem aplicar-se ao acesso ao espaço público e à sua distribuição equitativa entre cidadãos diferenciados pela diversidade de classe social, raça, etnia, gênero, idade, sexualidade e habilidades, por meio da consideração dos diferentes princípios de justiça que podem ajudar-nos a analisar e avaliar os processos de produção de espaços públicos socialmente justos. Low oferece uma reflexão fundada na etnografia sobre as lições que podemos aprender das experiências das cidades de Nova York e São José, na Costa Rica. Seu trabalho aborda um grande número dos problemas discutidos em outras seções do livro, mostrando que, apesar dos novos tipos de desigualdade produzidos pelo capitalismo neoliberal e as novas tensões provocadas pelos fluxos migratórios internacionais de nossa época, ainda é possível encontrar exemplos positivos da “justiça interacional” e tolerância mútua nas negociações entre diferentes tipos de moradores, pedestres e trabalhadores que compartilham espaços públicos, mas se dedicam a atividades potencialmente conflitivas nas ruas, parques e praças das grandes metrópoles. Low conclui que “uma ética de cuidado e reparação” ainda pode amortecer algumas das interações negativas que ocorrem diariamente na rua, embora não possa eliminar o impacto negativo das formas de discriminação estrutural praticadas pelas autoridades contra alguns tipos de atores sociais, nem a falta de “justiça procedimental” na distribuição de acesso ao espaço público quando, por exemplo, as autoridades pretendem “limpar o centro da cidade” para o benefício da classe média e dos 26 A DESIGUALDADE EM CLAVE CONTÍNUA: APRESENTAÇÃO DA SEGUNDA EDIÇÃO turistas, como o fazem no caso de São José, uma cidade que, nesse sentido, tem muito em comum com Salvador, Bahia. No último capítulo deste livro, Michel Agier oferece uma discussão de como devemos pensar “nas cidades do amanhã” num contexto de globalização – ou, na expressão preferida pelos franceses, a mundialização – cujas consequências vão além da superação do conceito clássico das cidades mercantis e industriais pelo das megalópoles desterritorializadas. Num argumento fundamentado em seus dados etnográficos sobre bairros de forasteiros nas cidades da África ocidental, um acampamento de migrantes na Grécia e uma ocupação irregular (squat) num bairro do Beirute, no Líbano, Agier fala das novas formas de mobilidade em escalas nacional, regional e mundial que resultam dos desplazamentos/deslocamentos ligados às desigualdades sociais e à pobreza, das crises e desequilíbrios econômicos nacionais, regionais e mundiais, das novas guerras civis, insurgências e intervenções militares internacionais e das catástrofes “naturais” – que serão cada vez mais frequentes, precisamente porque, na verdade, não são nada “naturais”, mas consequências de ações humanas difíceis de parar. Agier nos lembra da importância mais que marginal dos espaços liminares, “provisórios, transitórios, intermediários”, na nova “normalidade” social deste mundo em movimento: os squats, os guetos, os campos de refugiados, e os centros de detenção onde as pessoas esperam uma decisão sobre a petição de asilo que, uma vez aprovada, lhes permitiria começar uma vida nova em outro lugar legalmente. Já que, na realidade, muitos não vão conseguir esse tipo de regularização de suas condições de vida numa trajetória de movimento, Agier argumenta que os espaços limiares criam novas fronteiras e espaços heterotópicos. Para entender os diferentes “regimes de urbanidade” que surgem em torno desses espaços limiares, precisamos descentrar nosso olhar analítico para pensar de novo na antropologia da cidade e nas consequências humanas das formas de inumanidade que continuam caracterizando um mundo compartilhado cada vez mais desigual, apesar do surgimento das novas sensibilidades e práticas “humanitárias”. John Gledhill Maria Gabriela Hita Mariano Perelman John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 27 PREFÁCIO A cidade moderna, ou seja a metrópole, é simultaneamente símbolo e lugar da diferença, e da diferenciação. E também palco, resultado e veículo para a mediação e a comunicação que são fundamentais para a construção da esfera pública moderna, tanto quanto para o crescimento e as formas tomadas pelos espaços íntimos da política e da reprodução. Como centro de produção e consumo, e foco de circulação, este espaço urbano jamais poderia albergar uma simples utopia – ao contrário, a cidade historicamente construída no espaço, na pesquisa, e na sociabilidade de pessoas e instituições é uma entidade bastante contraditória. É difícil ela servir como um “não lugar,” apesar do seu poder de confundir, de oferecer caminhos alternativos e sinuosos, e de justapor ou até misturar cenários aparentemente paradoxais para depois crescer, como cidade, através das fronteiras erguidas entre tais milieus. E esta riqueza de contradições – sejam elas as de policiais femininas bem qualificadas cujas práticas desvendam a violência da corporação em geral, ou novos centros de consumo e especulação em bairros até então codificados pelas autoridades e pela burguesia local como espaços “marginais” ou “periféricos” que aparecem nas páginas do livro Disputas em torno do espaço urbano – fica evidente na ficção bem etnográfica de Jorge Amado, o romancista brasileiro, ícone regional, e cronista assíduo de Salvador, Bahia. E esta Salvador, cidade popularmente denominada de “berço do Brasil” e “Roma Negra,” é a metrópole que inspira 29 e que sediou a reunião de especialistas que deu origem à coletânea. Isto é significativo porque, de acordo com o romancista, No regaço do golfo, na brisa da península, plantada na montanha, eleva-se a Cidade da Bahia, de seu nome completo Cidade do Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, enaltecida por gregos e troianos, exaltada em prosa e verso, capital geral da África, situada no oriente do mundo, na rota das Índias e da China, no meridiano do Caribe, gorda de ouro e prata, perfumada de pimenta e alecrim, cor de cobre, flor da mulataria, porto do mistério, farol do entendimento. Sobre esta Cidade da Bahia muito mais se poderia dizer não fossem a modéstia e a prudência. As palavras de Amado introduzem O sumiço da santa, o romance que narra o despertar de uma estátua da figura africana, porém também católica, de Santa Bárbara. Esta santa – ou, quem sabe, esta representação artística em gesso e corante da santa – se anima durante sua peregrinação do Recôncavo baiano a uma exposição no museu de arte sacra, para depois escaparem dos seus guardiães clérigos e perambular como pessoas pela cidade. Mas servem também para introduzir à presente coletânea, um livro animado, dedicado ao desvendamento de fetiches e animismos curiosos, e bem baiano, porém cientifico social, em vez de ficcional. Mas na sua gênese e alcance, a ficção baiana de Amado certamente não é ficção pura – se é que exista tal formação literária ideal em algum lugar do mundo. Ao contrário, uma história de estátuas que se acordam para criar problemas para a sociedade contém um teor, ou um tipo de verdade bastante complexa. Enquanto, por exemplo, fica óbvio que Salvador é hoje a terceira capital brasileira em população, não me parece estranho imaginar que Amado tenha razão ao afirmar que este “porto do mistério, farol do entendimento” fique mesmo “no meridiano do Caribe” enquanto serve também como “capital da África.” Pois é, se tomarmos em conta seu papel no movimento não alinhado da segunda parte do século XX, ou se contamos o número de africanos mandados a essa cidade brasileira que recebeu mais escravos no século XVIII que qualquer outro entrepôt americano, a cidade de Amado poderia bem servir, ou servia, como certo tipo de capital da África. Quer dizer, como fonte histórica, 30 PREFÁCIO base demográfica, e estrutura da e na memoria. Ou, de outro ângulo, se imaginarmos o momento no final do século XVII em que o cultivo da cana de açúcar expandia do Nordeste brasileiro, rumo aos novos engenhos das ilhas do Caribe, bem podemos imaginar Salvador, seu Recôncavo, e sua produção de mercancia agrícola como uma linha central – ou bem no meio – do Caribe. O fundamento de Disputas em torno do espaço urbano parece se consolidar no encontro fértil de etnografia com poesia, aliteração com demografia, e a econômica com a afetividade (como imaginou Adam Smith ao traçar na Teoria dos sentimentos morais o espaço perverso do mercado e a circulação emotiva que o teórico escocês adota como modelo para as trocas de mercadorias e valor no capitalismo). Nos capítulos que seguem, isso gera um jogo de metáfora e de material, de fato e de especulação impossivelmente concreta, e de dados e de interpretações. É como se os contribuintes alcançassem ou saboreassem um pouco do interminável jogo de relações que produzem o espaço urbano que os abrange e os representa simultaneamente. E no livro a seguir esta justaposição digna de Walter Benjamin, o flâneur quem procurou o poético para alcançar o material sem esquecer a importância de se aproximar à representação através da sua própria materialidade relacional, afeiçoa uma coleção de verdades que me parece mais verídico do que qualquer verdade ou compreensão empirista simples. Esta verdade chega a lembrar o que, certa vez, um cantor de reggae baiano identificou para mim como “a verdadeira verdade.” Só que a verdadeira verdade – ou seja, a produção da verdade e dos espaços – de Disputas em torno do espaço urbano tem pouco a ver com Deus e tudo a ver com contradições mais leigas. O conceito e a prática da “disputa” são fundamentais ao argumento central do livro a seguir, já que podemos ler disputa como uma briga feroz e antagónica, ou seja um encontro irregular onde a resistência e os hábitos cotidianos chocam com as mesmas estruturas que os reprimem para depois os animarem. Mas a disputa também pode ser mais sutil, um encontro incubado que venha a dar luz a novas formas de habitar, cogitar, e se expressar no espaço e o tempo sem que os protagonistas revelem suas diferenças de poder ou suas posições realmente contraditórias. É muito difícil que um livro de ciências sociais ocupe com peso o fio da navalha entre descrição e interpretação que eu procuro traçar aqui. É mais John F. Collins 31 difícil ainda encontrar um texto que consiga deslizar entre escalas no espaço urbano tanto quanto na análise e tocar na teoria metropolitana sem perder a noção de onde veio, ou a capacidade de demostrar essa origem a traves de evidência nítida e cuidadosamente coletada. Mas a evidencia garimpada com cuidado está muito evidente em todas suas formas em Disputas em torno do espaço urbano. Eis uma razão para se apoiar contraditoriamente em Jorge Amado – uma figura disputada e já quase folclórica, porém muito influente na definição de uma cultura “baiana” de exportação – cuja interpretação de relações raciais baianas choca com os modelos apoiados pelo Movimento Negro hoje ou as políticas de “cultura popular” apoiadas pelos técnicos tão bem instruídos dos governos federais e baianos. Pois o velho Amado recorre a modelos e afetos, e, eu preciso assumir, misturas que fogem de divisões disciplinares e sociais, que tem tudo a ver com a posterior construção deste espaço Atlântico cruel como um “paraíso tropical” baiano. E este Atlântico Luso-Africano de mercadorias, de trabalho forçado, e de intercâmbios forçados que, através da sua brutalidade, sua eficácia na acumulação do capital, e sua beleza, deu origem ao mundo moderno. E por isso Salvador, onde o Brasil nasceu, permite que o leitor compreenda a eficácia e a inteligência do olhar dirigido na presente coletânea ao espaço urbano. A cidade e o espaço parecem guardar sempre um porém que recusa as pesquisas simples ou monológicas. Um cesto de relações obviamente material, e com um peso até maior a essas relações em conjunto, a cidade estimula e guarda afetos e significados num dispositivo arquitetônico que quebra as divisões entre andar e ler, ou de perceber e compreender. É neste espaço entre a representação poética e a vida cotidiana, e a representação como modo de viver que é material em si mesmo e as ideias que se codifiquem para ganhar peso como barreiras materiais, que Disputas em torno do espaço urbano ganha seu perfil. Tão cosmopolita e historicamente densa quanto o Caribe de Amado e a África no Brasil, a coletânea conta com a participação de baianos, brasileiros especialistas em cidades de outras regiões, ingleses, argentinos, norte americanos e um francês que tem sido um protagonista na redefinição de políticas raciais em Salvador da última década do século XX. Enfim, este livro novo demostra uma certa recursividade que permite que as páginas a seguir abram para um mundo local e detalhado que, de uma forma parecida 32 PREFÁCIO a da sua sede urbana tão integral às ligações históricas e mercantilistas que deram luz à modernidade global, necessariamente engole aquele “lá fora” que jamais existia como um simples lá fora. O espaço analisado em Disputas em torno do espaço urbano não é o espaço da teleologia modernista. Tampouco é simplesmente o da cidade fortaleza ou histórica, monumentalizada e tombada como espaço de uma memória que precisa ser preservada. É mais precisamente o espaço urbano da “requalificação”, ou seja uma prática recursiva. No urbanismo, a requalificação procura reformatar para “desenvolver” as partes da cidade divididas que se codificam como atrasados, quebrados, moralmente suspeitos, e antros dos processos que a socióloga Maria Gabriela Hita descreve como “desenvolvimento da cidade ilegal”, em texto desta coletânea. Mas a palavra “requalificação” é mais do que uma técnica, historicamente especifica, do urbanismo no Brasil. É uma figura rica que provoca, porque remete necessariamente ao passado e ao futuro. Ela enfoca nosso olhar nas técnicas de recuperação do presente que formulam esse presente no espaço e tempo, tanto quanto aos futuros e passados que o apoiam. Como eu tenho assinalado, enquanto foi escrito no nosso presente disputado, Disputas em torno do espaço é chamativo de uma forma dialética. Os seus integrantes enfocam detalhes, e o presente, sem nunca esquecer dos processos que interligam contextos, pessoas e instituições duma forma que nos provoca, em um determinado momento, a considera-los como entes separados para depois lembrar sua imbricação fundamental. Falar em termos gerais desta orientação à pesquisa e à representação parece fácil. Alcançá-la na prática é quase impossível, mesmo valendo a pena. Mas os capítulos a seguir chegam perto dessa meta, e perambulam por terras novas, cidades diferentes, formas de urbanismo e países diferentes, sem nunca deixar Salvador e a Bahia que, ao final, se regaçam na rota das Índias e da China enquanto ficam no meridiano do Caribe. John F. Collins 12 de março de 2017 John F. Collins 33 John Gledhill Maria Gabriela Hita Mariano Perelman INTRODUCÃO a questão urbana, hoje Vista desde uma perspectiva histórica, a cidade tem se constituído em uma utopia para alguns, e uma distopia para outros. A cidade “letrada” (RAMA, 1998) é lugar da “civilização”, uma fonte da produção do conhecimento e das artes, uma forma da vida humana que promove o crescimento moral e as obras criativas de nossa espécie. Neste tipo de construções, a cidade é o que não é o campo, além de ser, como no caso da América Latina e como o tratam os capítulos da primeira parte do livro, uma utopia que as elites locais e classes médias emergentes geralmente definiam a partir do olhar dirigido ao exterior. Mas existem utopias urbanas não elitistas. A cidade pode ser um espaço de encontro entre “diferença(s)”, um lugar onde os cidadãos de diferentes regiões, religiões, classes sociais, gêneros e grupos étnicos, aprendam a conviver, ou um lugar cosmopolita onde as diferenças nacionais, e até os legados imperiais e coloniais, podem ser transcendidos. É importante lembrar-nos das distintas visões utópicas da cidade, especialmente das visões mais igualitárias e inclusivas, já 35 que constituem um antídoto importante às formas mais nefastas das visões distópicas do urbanismo, a cidade como lugar de perigo para as pessoas “civilizadas”, respeitáveis e merecedoras, por causa da presença de grandes multidões de pessoas desarraigadas, delinquentes e sem moralidade, vivendo na miséria e incapazes de fazer uma contribuição positiva à sociedade. Sabemos que esta visão distópica, de cidades cheias de “classes perigosas”, caracterizava os primeiros passos até a “modernidade” tanto no Brasil como na Europa. Mas no século XXI, até as grandes metrópoles brasileiras têm experimentado a desindustrialização, e um segmento importante da população nunca deixou de estar numa condição de precariedade, tanto nas suas condições de moradia quanto nas formas de se reproduzir socialmente e ganhar o sustento. As cidades atuais são, na sua maioria, mais populosas e ecologicamente mais frágeis que no passado. Os desafios de manter a mobilidade urbana, fornecer água limpa aos seus moradores, e lidar com os problemas sociais de consumo de drogas e violência, são cada vez maiores. Não é por acaso que visões distópicas da vida urbana estão novamente em voga, apesar dos avanços, em níveis de vida, experimentados pela maioria das populações dos países “emergentes” durante as últimas décadas. Entretanto, continua sendo possível pensar se não nas utopias pelo menos nas heterotopias, os espaços onde os sonhos cosmopolitas realizam-se na prática da sociabilidade urbana, e as hierarquias e opressões de classe, gênero e raça não se manifestam da mesma maneira que em outros espaços. Talvez não todas as heteropias contemporâneas sejam urbanas, mas, como Setha Low destaca em seu capítulo neste livro, os espaços públicos urbanos são lugares privilegiados para mobilizar uma multidão contra a ordem de coisas existentes e, no caso de todo tipo de grupo ou ator social subalterno, conseguir uma “voz” que os “outros” dos grupos dominantes podem ouvir. As cidades também continuam sendo espaços onde, na prática cotidiana, as pessoas constroem novas formas de vida e novas formas de relações sociais entre distintos grupos sociais. Portanto, este livro trata das disputas em torno do espaço urbano, mas também é um livro sobre sua construção e apropriação por parte de uma ampla variedade de atores sociais, caracterizados por diferenças de poder, ainda que todos eles sejam ativos e que, de seu próprio modo, participam na produção e no fazer das cidades. 36 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE Contudo, pensar o que ocorre nas cidades hoje em dia, especialmente as de América Latina e brasileiras, não é uma tarefa fácil. Primeiramente, porque em nossas cidades existem dinâmicas globais; mas também porque existem processos locais muitos deles relacionados com estas dinâmicas de diferente escala, se não apenas globais, ao menos ocidentais. Assim, abordar a questão social implica se centrar em múltiplos processos e em diferentes escalas. Diálogos de teor interdisciplinar são essenciais para compreender o que ocorre hoje nas cidades, especialmente nas latino-americanas e brasileiras como as tratadas neste livro. Estudos urbanos ganharam espaço nas últimas décadas e apontam para complexos processos sociais implicados na produção/construção e apropriação das cidades. Desigualdades urbanas se acentuaram com a implementação de políticas neoliberais, o que nem as políticas de governos mais propensas à busca de maior equidade social tem logrado reverter. Tudo isso tem motivado várias ações de resistência, como as das manifestações de junho de 2013 do Brasil, clamando por melhorias na mobilidade e sistema de transportes, saúde, educação, acesso à moradia etc. Transformações urbanas em curso fortemente relacionadas à requalificação urbana, à valorização do capital imobiliário, consumismo de classes altas, turismo global e realização de grandes eventos desportivos têm tanto reificado, quanto questionado, imaginários sociais que associam a pobreza à criminalidade e violência urbana e setores populares como áreas segregadas que exigem novas políticas de segurança implementadas no Brasil, como as de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP), em Rio de Janeiro, e Bases Comunitárias de Segurança (BCS), na Bahia. Por outro lado, se apregoa que muitos destes processos e transformações beneficiam interesses tanto de setores do capital imobiliário e financeiro, como de grupos médios e certas elites populares. O espaço urbano é em si mesmo um lugar revelador de todas estas complexidades sociais do mundo contemporâneo. O acesso ao espaço público, a disputa pelo uso do solo, o modo em que os grupos sociais o constroem, o pensam e atuam sobre esse espaço social e público, muitas vezes mostrando sua diferenciação e complexidade interna durante estes processos, dão conta, já seja das transformações passadas e presentes, quanto das dinâmicas sedimentadas nesse próprio espaço urbano. John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 37 A concentração do capital em certos locus (tanto espaciais como em atividades que produzem espaços) tem gerado fortes transformações urbanas. Muitas delas relacionadas com novos modos de acumulação ou velhas formas reatualizadas que têm um forte impacto espacial. Algumas, como o demonstra o capítulo de Agier, a partir de grandes mudanças e desloocamentos das populações, a modificação das formas de socialização e até do próprio espaço físico. Mas também existem muitas resistências a estas mudanças e zonas onde podem se instituir continuidades ou espaços que vêm ficando fora destas transformações que não podem ser explicadas por si mesmas. Diversas políticas neoliberais têm gerado uma série de transformações sociais e urbanas que impactam de modos diferenciados as cidades e seus habitantes. Contudo as elites locais com suas próprias moralidades intentam transformar ou manter uma certa ordem social que muitas vezes se contrapõe aos interesses da concentração de capitais econômicos (e processos dos que eclodem diferentes tipos de protesto social contra as transformações do espaço). Por sua vez, muitos desses movimentos, grupos e atores sociais usam o espaço público para sobreviver ou gerar práticas culturais que se referem a modos de identificação e integração social. É dentro deste contexto mais amplo que urge repensarmos a questão urbana do modo como hoje o mundo foi reconfigurado, ou seja, as questões que estão sendo socialmente problematizadas e sobre o que se busca intervir na atualidade. O presente livro, como dito, é o resultado de uma série de textos apresentados durante o Colóquio “Disputas em torno do espaço público urbano: processos de [re]-produção/construção e apropriação das cidades” que se realizou na cidade de Salvador, Bahia-Brasil em novembro de 2014. Nossas discussões nesse colóquio, presentes nos textos deste livro e nos eixos analíticos que apresentamos a seguir, permitiram mostrar a importância de pensar vários processos de produção da cidade “desde baixo”, “desde cima”, ou nas relações dialéticas e complexas entre os dois tipos de processos que estão acontecendo nos dias de hoje. A mesma forma de pensar nos processos urbanos é o que caracteriza as análises reunidas na primeira parte do livro, cujo foco é mais histórico. Precisamos da perspectiva histórica para entender as mudanças que fazem do presente, algo distinto de épocas e conjunturas similares às do passado, identificando também as continuidades e rupturas em 38 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE termos das dinâmicas e problemas que tais processos implicam. Por sua vez, os trabalhos de Berenstein Jacques, Alves, Matos e Montoya mostram que os tipos de análises inspirados pelas humanidades podem enriquecer as perspectivas das ciências sociais, tanto no estudo da atualidade, na relação que ela tem com o seu passado, como no estudo da historia. As dinâmicas globais e locais É crescente o número de pesquisas sobre a globalização e os efeitos que todo este processo e dinâmicas produzem sobre as cidades. Desde a já clássica noção de “cidade global” (SASSEN, 1991) até os processos de globalização “desde baixo” (MATHEWS; LINS RIBEIRO; ALBA VEGA, 2012), se tem indagado sobre os modos como as conexões globais têm fortemente impactado sobre as distintas cidades. Pressupostos sobre os que se baseiam estas correntes apontam para a debilidade dos estados nacionais por conta dos processos e dinâmicas globais envolvidos (como as consequências de enormes grupos empresariais, cadeias ou circuitos de comércio transnacionais etc.) produzindo competições entre distintas cidades ou se consolidando em fortes trusts e redes transnacionais responsáveis por partes significativas das transformações urbanas. Contudo, é possível afirmar que estes grupos não só requerem os Estados para poder funcionar ou que os processos locais são traduzidos localmente, senão também que as experiências latino-americanas dão conta de uma série de processos – contraditórios por assim o dizer – de forte presença do Estado nas intervenções urbanas. De certo modo toda esta problemática replica os debates mais gerais sobre o papel do estado “neoliberal”, reduzido nas suas funções em algumas áreas (notoriamente, nas garantias oferecidas na área de bem-estar social) mas estendido em outras, inclusive as áreas orientadas à defesa e extensão do controle da vida social pelo capital. Ao mesmo tempo, uma parte importante das transformações urbanas dão conta de uma nova territorialização, especialmente dos setores populares, não só no que se refere aos processos de segregação social e aos impactos das políticas de expulsão de certas zonas da cidade, senão também aos que propõem formas locais de gestão do espaço, o bairro, o trabalho e a política. John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 39 Neste sentido, compreender a nova questão urbana e o novo tipo de urbanismo que tem impactado últimas décadas de América Latina (AL) implica se centrar nas diferentes escalas inter-relacionadas das que falam Smith (2002) e Telles e Cabanes (2006). Mas estas relações não devem ser pensadas apenas como uma afirmação, mas especialmente como uma pergunta, como um ponto de partida para o estudo e análise dos processos urbanos atuais. América Latina foi declarada numa publicação da ONU-Habitat de 2012 como a região mais urbanizada do mundo. Cerca de 80% de suas populações moram em cidades, e como consequência, foi considerada das regiões mais perigosas do mundo, pelo aumento exponencial da violência urbana. Nas últimas décadas, a região passou por grandes transformações urbanas e se considera que está a ponto de se iniciar nova fase de transição apontando para um novo tipo de urbanismo. Apesar dos avanços e mudanças de políticas na região que tem enfrentado problemas de desigualdades e buscam incluir cada vez mais zonas periféricas e as desenvolver cada vez melhor, garantindo-lhes serviços básicos que antes inexistiam ou eram mais deficitários que na atualidade, problemas como os da interconectividade e integração entre o tecido urbano mais amplo não têm sido devidamente enfrentados. Tais problemas, como tantos outros abordados nos conteúdos deste livro, apenas estão em vias de enfrentamento em alguns dos países da região, e no Brasil. Outro agravante assinalado por principais urbanistas deste processo de novo tipo de urbanismo na região tem sido o parco desenvolvimento da dimensão estratégica, e uma que realmente tenha levado em conta marcos de regulamentação democrática e participativa de modos mais consensuais e acordados para o melhor desenvolvimento distributivo regional e espacial das cidades, conforme exigências de marcos jurídicos das cidades no mundo todo. Devido à elevada desigualdade existente nas cidades latino-americanas, elas continuam sendo consideradas duais, divididas e segregadas, tanto espacial quanto socialmente (SOLAC, 2012), temas discutidos e analiticamente aprofundados por Brandão, Serpa e Hita nos seus capítulos na segunda parte deste livro. Como parte relevante destas dinâmicas é importante destacar o papel do capital financeiro na “revalorização” de certas zonas e os deslocamentos populacionais que disto resultam. Estes processos não sempre são apenas de gentrificação no seu sentido mais tradicional, senão também processos nos 40 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE que terras com pouco valor para o mercado se tornam estratégicas ou objeto de especulação, o que trata-se, para muitos especialistas do campo, de distintos tipos de processos de gentrificação ocorrendo em regiões consideradas periféricas. Isto leva ao deslocamento de milhares de pessoas e provoca múltiplas resistências. Processos globais também têm afetado localmente ao Brasil desde a organização dos Mega eventos desportivos como a Copa Mundial de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, cujas consequências são discutidas por vários autores tanto na terceira como na segunda parte deste livro. Para seus preparativos e durante os preparativos desses jogos têm ocorrido grandes transformações urbanas que tem impactado fortemente, e como parte de um processo de larga duração, para além dos mesmos eventos: construção de infraestrutura, valorização de novas terras, expulsão de populações etc. Todas estas transformações vem dando uma nova fisionomia às cidades contemporâneas e tem gerado novos problemas que formam parte da questão urbana atual. Securitização, estigmatização e segregação urbana Sem dúvida, na atualidade, as cidades apresentam verdadeiros problemas de segurança muito sérios e em diversos sentidos. A cidade mesma é vulnerável, em consequência da sua dependência de uma complexa infraestrutura tecnológica de geração de luz elétrica e extensas redes para a transmissão de agua potável e eliminação das enormes quantidades de resíduos humanos (esgoto e lixo) produzidos por elevadas concentrações de população. Ironicamente, é principalmente naqueles países que se dizem mais “avançados” e “civilizados” que nos últimos anos têm-se mostrado serem os primeiros em atacar esta infraestrutura sem escrúpulos e de uma maneira sistemática por meio dos bombardeios aéreos por eles comandados acabando com a vida social civilizada de milhares de pessoas no Meio Oriente, embora também, e ainda mais ironicamente, esta estratégia de guerra sem limites morais tenha sido a responsável pelo aumento de outro tipo de risco da vida urbana atual, tanto no Norte como no Sul global, a dos ataques indiscriminados contra civis concentrados em lugares públicos por terroristas. (GRAHAM, 2010) John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 41 Contudo, nas cidades brasileiras se convive com outro tipo de guerra, ou assim aparece para alguns dos atores políticos e agentes policiais encarregados da manutenção da segurança pública, se trata de uma “guerra contra o crime” na que se persegue, principalmente, as redes do crime organizado nas comunidades carentes das grandes metrópoles. Neste livro, o leitor encontrará enriquecedora reflexão crítica nos capítulos de Zaluar, Monteiro e Gledhill sobre as consequências do se pensar em resolver os problemas de segurança pública pelas estratégias e métodos ligados à metáfora de guerra, especialmente, mas não queremos com isso negar que existem múltiplas ameaças à segurança pessoal de indivíduos no contexto urbano atual. No caso brasileiro e muitos outros países a violência provocada pelo uso de drogas e outros tipos de atividade criminosa têm aumentado nos últimos anos apesar de reduções dos níveis de pobreza e desigualdade, e para entender este fenômeno de uma maneira mais completa, sem dúvida é necessário partir de uma perspectiva mais global, tanto sobre as mudanças sociais e culturais de nossa época quanto sobre as redes transnacionais do crime organizado. Porém, tanto as causas quanto as formas de insegurança pessoal nas cidades vão muito além dos problemas de drogas e crimes como os de homicídios, assaltos e sequestros. Primeiro, precisamos reconhecer os impactos sobre a segurança pessoal e familiar produzidos pelas profundas transformações dos mercados de trabalho e a precarização do trabalho produzidas pelas políticas econômicas neoliberais a partir dos anos 80 do século XX, uma produção de insegurança econômica que parece destinada a continuar no futuro como consequência dos avanços tecnológicos e a condição de crise quase permanente do modelo capitalista dominante a nível mundial. Segundo, precisamos reconhecer que além das consequências domésticas dos problemas econômicos de sociedades que tendem a produzir maiores e não menores níveis de desigualdade e concentração de renda e riqueza, os processos de desenvolvimento desigual no Sul global, junto com as consequências catastróficas das intervenções tanto “humanitárias” quanto bélicas das grandes potencias mundiais, estão produzindo fluxos cada vez maiores de migrantes e refugiados internacionais, outro processo que nos obriga repensar nossos conceitos sobre a natureza do urbanismo e suas características socioespaciais, como bem o mostra 42 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE Michel Agier no seu capítulo neste livro. Terceiro, precisamos reconhecer que os problemas de segurança pessoal têm importantes dimensões de gênero, tema discutido por Ceci Vilar Noronha e Suzana de Magalhães Dourado neste livro. O sentido de insegurança das mulheres nos espaços públicos tem múltiplas dimensões, e os comportamentos masculinos têm múltiplos determinantes, embora a agressividade masculina dentro de contextos domésticos e nas ruas seja por vezes produto da forma em que a precarização econômica mina a autoestima dos homens e algo que compromete o respeito das mulheres pelos seus parceiros. Mas, finalmente, precisamos reconhecer que a “segurança” e “insegurança” não são simples condições “objetivas”. Se trata de construções políticas, ou, em outras palavras, dos processos de securitização das questões sociais. A natureza do policiamento das favelas de Rio de Janeiro e Salvador mostra com clareza como as políticas e práticas da “segurança pública” se baseiam em construções de “lugares” e “espaços” perigosos e criminosos, e de pessoas também vistas como perigosas e criminosas, construções todas elas que combinam preconceitos raciais com preconceitos de classe social. Contudo, as novas políticas de segurança pública que pretendem “pacificar” favelas também constituem parte de uma série de disputas mais gerais para o controle do espaço urbano numa cidade neoliberal onde as lógicas do mercado dominam, já que a “pacificação” pode levar a novos processos de requalificação urbana, gentrificação, e regularização da oferta de serviços em benefício de grandes empresas ao mesmo tempo em que pode estimular o desenvolvimento de pequenos negócios. A militarização do policiamento dos bairros pobres não é um fenômeno exclusivamente latino-americano, já que se manifesta também nas cidades do Norte global, e isso também nos convida a repensar a função social da polícia e a questionar a lógica oficial do discurso da securitização e da sua linguagem de “guerras contra drogas e crime” de um modo mais global. Outros aspectos importantes da securitização da vida urbana são os da construção e defesa de condomínios fechados e o controle do acesso aos espaços de lazer e consumo das classes medias e altas, cujas implicações em termos da estigmatização social das classes populares foram manifestas no Brasil no caso da expulsão de jovens das favelas dos shoppings pelos guardiões John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 43 da segurança quando grupos de jovens de periferias intentaram organizar, via chamados e convocações por redes sociais, invasões sistemáticas, batizadas como os “rolezinhos”, a estes espaços. As novas formas de controle do espaço urbano por meio de novas tecnologias de segurança (câmeras, detectores de metais, e vários tipos de barreiras físicas) e novos corpos privados de agentes de segurança, modificam não só as formas da socialização dos bairros populares, mas também a socialização na cidade inteira, inclusive dentro das mesmas classes medias e altas. Leva à construção de novas fronteiras (visíveis e invisíveis), fazendo mais distante o que estava perto, e aumentando a definição de grupos sociais e vizinhanças como “diferentes” e separadas. Como Setha Low mostra na sua discussão do direito de acesso ao espaço público, o desafio de hoje é o de resgatar a cidade deste processo de fragmentação e segmentação por meio da securitização da vida social e o de manter e recriar os espaços públicos da sociabilidade não só nas distintas vizinhanças ocupadas pelos distintos grupos sociais, mas também entre as distintas camadas sociais e étnicas que compartem o mesmo espaço urbano. Trabalho precário, usos e os modos de produção da cidade Como o demostram os capítulos deste livro, milhares de pessoas fazem uso dos espaços públicos nas cidades. As apropriações podem ser de diferente índole e distintos fins. Nos casos descritos por Di Virgilio e Perelman, assim como por Pires, as apropriações dos espaços públicos se utilizam para trabalhar. Isto gera conflitos entre os atores que se apropriam, assim como com outros atores e as forças de segurança. Os modos de trabalho que se vão configurando como precários impactam no modo em que a cidade se constrói para grandes setores da população como precária. O capítulo de Frugoli da conta de apropriações do espaço público para o consumo de drogas, uma apropriação mais ou menos estável que gera modos de sociabilidade e que constrói territórios. Visto desde baixo, os distintos usos que os atores fazem dos espaços urbanos, assim como os conflitos que emergem por entre eles, 44 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE no marco de processos de regulação do espaço urbano dão conta dos modos cotidianos do direito à cidade. Assim é possível ver como se constroem ordens públicas e dentro delas, a construção de sujeitos legítimos dentro de uma ordem pública determinada que, como mostram os capítulos da primeira seção do livro, têm temporalidades longas. A centralidade que tem o trabalho – ainda quando se fale das enormes transformações pelas que atravessa o mundo laboral – faz que o acesso ao espaço público para poder ganhar a vida seja também um tema central. Nas sociedades capitalistas, a reprodução social costuma se lograr a partir da venda da força de trabalho assim como do modo em que esta é construída. Os processos de trabalho e atividades que se realizam na via pública e que se desenvolvem no espaço urbano costumam ser motivo de disputa, conflito e negociação entre atores com diferente poder de incidência no uso e produção do espaço. As lutas e disputas pelo uso e a apropriação do espaço dão conta da construção de desigualdades nos processos de trabalho, tornando-se esta esfera central para compreender os processos de segregação e desigualdade urbana. Algumas atividades e alguns trabalhos são permitidos, enquanto outros são condenados (e mais ainda não são vistos como trabalho). Algumas tarefas estão regulamentadas no marco de direitos e outras – por estar regulamentadas no marco de direito – são consideradas ilegais. Tudo isto produz negociações e negações em torno à reprodução social e contribuem nas formas de exploração que vão cimentando modos desiguais no acesso à cidade. Pensar na variável territorial permite dar conta da complexidade e das diferentes temporalidades na construção e produção das cidades. Como bem o mostram os capítulos reunidos neste livro, não só basta com se indagar sobre as transformações econômicas (que têm efeitos espaciais concretos). Contudo, o caráter histórico e multidimensional das cidades é muito mais complexo e vai muito além de um simples processo e de algumas temporalidades. Esta postura permite mostrar não só continuidades e rupturas dentro de processos de longa duração, mas também como os diferentes grupos se apropriam e constroem as cidades. Com suas próprias dinâmicas, compreender estes processos de longa duração, permite reconhecer certos núcleos duros da questão social já que dão conta de uma ordem urbana entendida como John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 45 uma ordem moral – ou com uma moralidade hegemônica – e com fronteiras sociais, simbólicas que delimitam espaços. Assim, no espaço urbano da cidade é possível reconhecer a existência de fronteiras simbólicas, como distinções e classificações feitas pelos próprios atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas e espaços. (LAMONT; MOLNÁR, 2002) Essas categorizações – sustentadas em valores morais – produzem identificações para dentro e diferenciações frente a “outros”. O estudo dos processos de construção simbólica se torna, então, um componente central na construção das cidades. (MAGNANI, 2002; AGIER, 2011) É importante ao se indagar sobre os acessos ao espaço público em suas diversas formas que elas são maneiras cotidianas de aceder à cidade, nas práticas e os imaginários que estão associados a elas e do que se põe em jogo nessas interações. Mais ainda com as pessoas que são colocadas fora de lugar ou que devem justificar sua presença para poder estar, vender ou circular. Quando dizemos que certas pessoas devem justificar sua presença não estamos realizando – nem muito menos avaliando – uma visão “desde cima” dos processos sociais. Para isso, é importante lançar mão tanto de investigações de teor quanti quanto qualitativo. Uma das maiores riquezas das investigações de corte qualitativo – especialmente as que têm um enfoque etnográfico, como já o advertiram Claudia Fonseca (2000) e Sherry Ortner (2006) é o poder ver os processos desde “baixo para cima” que são necessários para compreender os modos como as pessoas vivem e constroem a vida, mas também é um modo de agência dos atores que não só se reproduzem, mas também criam, contestam e geram mudanças em diversos outros âmbitos de suas interações. Processos de justificação são processos de disputa onde certos atores podem ter maior capacidade de incidência sobre o modo em que essa disputa será resolvida. Cruzá-los, territorialmente, permite compreender melhor a luta pela apropriação do espaço público, mas permite especialmente compreender modos de inserção social dos atores a longo prazo. Desta forma, o uso do espaço urbano por parte dos setores populares passa a ser visto desde aqui como um componente central da questão urbana atual. Os processos acima descritos (relações global - local; processo de securitização) também têm forte impacto na compreensão do uso e acesso ao espaço urbano por distintos grupos e atores sociais. As forças de seguridade (estatais e privadas) fecham e 46 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE se apropriam do espaço público para beneficiar certos grupos sociais; o capital imobiliário e financeiro, por sua vez, gera impactos restritivos que se entrelaçam com formas históricas de se fazer uso e se ter direito à cidade. Certamente, nem todos os temas trazidos, nem todos os problemas urbanos, se esgotarão nas abordagens desenvolvidas neste livro. Existem outros componentes relevantes das questões urbanas de hoje, como os que podem ser introduzidos desde outros recortes das perspectivas de gênero, raça, idade etc. As posições identitárias de distintos atores dadas pelo lugar das mulheres, homens, homossexuais, travestis, transgêneros, negros, brancos, jovens, velhos e que apontam para distintas capacidades de incidir sobre o território que são objeto de diferentes tipos de processos. A questão ambiental e ecológica também tem ganho centralidade nos últimos anos. Nesta direção, a contaminação de certas zonas, o ambiente como demanda e como discurso expulsório têm gerado mobilizações de diferentes setores e sido utilizado como argumento para despejar populações que estão “em risco”. Portanto, ficam ainda muitas coisas por desenvolver e serem ditas que deverão orientar pesquisas de outros especialistas da questão urbana no futuro, mas podemos ter certeza de que qualquer ampliação dos temas não tratados neste livro e que pretendam como esta coletânea contribuir na compreensão dos processos aqui descritos, precisarão partir da indagação da questão urbana, para entender esta complexidade, tanto desde o olhar desde abaixo (e etnográfico) quanto o olhar desde cima (e desde análises mais gerais em diversas escalas) como a desenvolvida neste livro. Referências AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. Tradução de Graça Índias Cordeiro. São Paulo: Ed. Terceiro Nome, 2011. (Coleção Antropologia hoje). FONSECA, C. Família, fofoca e honra: etnografia das relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000. GRAHAM, S. Cities under siege: the new military urbanism. London Verso Books, 2010. LAMONT, M.; MOLNÁR, V. The Study of Boundaries in the Social Sciences. Annual Review of Sociology, Palo Alto, CA, v. 28, n.1, p. 167-195, 2002. Disponível em: <http://doi. org/10.1146/annurev.soc.28.110601.141107>. Acesso em: 20 dez. 2016. John Gledhill, Maria Gabriela Hita, Mariano Perelman 47 MAGNANI, J. G. C. De perto e de longe: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002. MATHEWS, G.; LINS RIBEIRO, G.; ALBA VEGA, C. Globalization from Below: the World’s Other Economy. Londres ; Novo Iorque: Routledge, 2012. ORTNER, S. B. Anthropology and social theory : culture, power, and the acting subject. Durham, NC: Duke University Press, 2006. RAMA, A. La ciudad letrada. Montevideo: Arca, 1998. SASSEN, S. The global city: New York, London, Tokyo. Oxford: Princeton University Press, 1991. SMITH, N. New globalism, new urbanism: gentrification as global urban strategy. Antipode: a radical journal of geography, v. 34, n. 3, p. 427-450, 2002. SOLAC. Estado de las ciudades de América Latina y el Caribe 2012: Rumbo a una nueva transición urbana. Nairóbi, Quênia: ONU-HABITAT, 2012. Disponível em: <http://www. cinu.mx/minisitio/Informe_Ciudades/SOLACC_2012_web.pdf. />. Acesso em: 20 dez. 2016. TELLES, V. da S.; CABANES, R. (Org.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. 48 INTRODUCÃO: A QUESTÃO URBANA, HOJE PARTE I O URBANISMO BRASILEIRO um olhar histórico literário e musical Paola Berenstein Jacques MONTAGEM URBANA “A montagem seria um método de conhecimento e um procedimento formal nascidos da guerra, capaz de apreender a ‘desordem do mundo’. Ela assinalaria nossa percepção do tempo desde os primeiros conflitos do século XX: ela teria se tornado o método moderno por excelência.” Georges Didi-Huberman (2009, tradução e grifos nosso) Para discutir as disputas historiográficas,1 propomos usar a ideia de montagem urbana: um processo de montagem como forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. Partiremos de um tipo específico de montagem, uma forma singular de pensar por montagens, por deslocações, decomposições e outras disposições, ao buscar apreender, de forma caleidoscópica – forma privilegiada 1 O presente texto foi apresentado oralmente em versão reduzida e com imagens em alguns seminários, em particular, no colóquio internacional Disputas em torno do espaço público urbano (mesa Disputas em torno da historiografia do urbanismo) e no encontro Corpocidade 4 (mesa Memória, narração e história), que ocorreram no final de 2014, em Salvador. Agradeço os diferentes interlocutores nesses encontros pelas perguntas, críticas e comentários. Uma versão mais longa do mesmo texto será publicada no livro – Memória, narração, história - relativo ao encontro Corpocidade 4. 51 da modernidade2 – essa “desordem do mundo”, decorrente tanto da experiência da guerra, como mostra Didi-Huberman, quanto da própria experiência cotidiana da grande cidade, sobretudo a partir dos processos de modernizações urbanas, como as reformas do Barão Haussman em Paris.3 A montagem como procedimento formal buscava formas mais complexas de ver, apreender a realidade, como aquela oferecida pelo caleidoscópio. A montagem como método de conhecimento, como método de criação, problematização ou exposição de ideias, foi praticada sobretudo no período entre guerras por algumas vanguardas modernas (sobretudo pelos surrealistas) e, em particular, por uma constelação de artistas, escritores ou teóricos nos anos 1920 e 1930 – entre eles, Sergei Eisenstein, Bertold Brecht, Walter Benjamin, Georges Bataille e Aby Warburg (nos restringiremos a comentar de forma breve os três últimos) – e, mais recentemente, por Georges DidiHuberman, historiador da arte e professor da EHESS em Paris (antropologia visual). Didi-Huberman atualiza a questão da montagem moderna, em particular na sua forma de atlas de imagens, em várias de suas aulas, palestras e publicações, mas também a pratica na curadoria de exposições. Tanto nas publicações como nas exposições, Didi-Huberman problematiza e amplia o campo da história da arte, agora pensada sobretudo como uma antropologia das imagens, seguindo algumas das pistas deixadas por Warburg. 2 “Nunca houve uma época que não se sentisse ‘moderna’ no sentido excêntrico, e que não tivesse o sentimento de se encontrar à beira de um abismo. A consciência desesperadamente lúcida de estar em meio a uma crise decisiva é crônica na história da humanidade. Cada época se sente irremediavelmente nova. O ‘moderno’, porém, é tão variado como os diferentes aspectos de um mesmo caleidoscópio.” (BENJAMIN, 2006, p. 587) 3 Sobre a relação entre diferentes reformas urbanas e algumas narrativas errantes, que também usaram a montagem como processo, ver nosso livro : Elogio aos errantes, Salvador: Edufba, 2012. 52 MONTAGEM URBANA Montagem como “método de conhecimento” e “procedimento formal” “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os.” Walter Benjamin (Passagens, 2006, p. 502) Esse curto fragmento do livro das Passagens resume bem o processo deste gigantesco trabalho sobre Paris de Walter Benjamin, explicitando o tipo de montagem que Benjamin executava, não só nesse original, que como se sabe ficou inacabado, mas também em outras publicações (como o livro Einbahnstraße de 1928, bom exemplo concluso do exercício benjaminiano de montagem, publicado com uma bela fotomontagem de sua cidade da infância, Berlim, na capa). Não pretendemos entrar na enorme polêmica que mobiliza uma série de estudiosos sobre qual seria o formato final que Benjamin teria preferido publicar o trabalho das Passagens se não tivesse sido obrigado a fugir dos nazistas durante a Segunda Guerra (deixar Paris para tragicamente morrer na fronteira com a Espanha, em PortBou, 1940), o que nos interessa mostrar é precisamente o processo metodológico de seu trabalho e não seu resultado formal, aquilo que o próprio Benjamin chamou de montagem literária. A montagem literária estaria diretamente relacionada com as experiências urbanas surrealistas que tanto fascinaram Benjamin, em particular os livros que partem de deambulações pelas ruas de Paris – verdadeiras montagens tanto do ponto de vista literário (“escrita automática”) como editorial (tipografia, inserção de anúncios, fotografias, etc.) – Le paysan de Paris (O camponês de Paris, 1926) de Louis Aragon, e Nadja (1928), de André Breton. A leitura do livro de Breton, que provocou taquicardia em Benjamin, foi determinante para a escolha da forma (literária e editorial) para a publicação de seu livro de 1928, Einbahnstraße (Rua de mão única), sua publicação mais “surrealista”, Paola Berenstein Jacques 53 montada como uma deambulação por uma rua de Berlim. A leitura de Aragon, em particular o capítulo escrito em 1924 sobre “A passagem da Ópera”, foi crucial também para Benjamin encontrar o tema central – as passagens parisienses – de seu trabalho sobre Paris como capital do século XIX. A passagem da Ópera, tema do texto de Aragon, era um lugar de encontro dos surrealistas e foi demolida, na continuação da reforma haussmaniana da cidade, em 1925. As passagens, gloriosas no século XIX, já pareciam obsoletas nos anos 1920. Para Benjamin, elas moldam a imagem da “modernidade”. Durante seus períodos de pesquisa em Paris, em particular nos seus últimos anos de vida, Benjamin também atravessou essas passagens parisienses – galerias comerciais cobertas com estruturas de vidro e ferro que ligam diferentes ruelas internas criando atalhos supreendentes – a passagem/galerie Vivienne, por exemplo, fica bem em frente à Biblioteca Nacional, onde ele trabalhava, copiando citações e fazendo anotações. Benjamin também possuia uma pequena coleção de fotografias (originais ou cópias, a maioria parece ter se perdido4) da cidade e das passagens, como uma série de Germaine Krull feita em 1928 (Passage du Ponceau, Passage du Caire, Passage de Deux-Sœurs, entre outras). Uma fotografia conhecida, de 1939, de Gisèle Freund, mostra Benjamin em atividade na Biblioteca Nacional de Paris, em pleno processo de montagem (etapa inicial de seleção de fragmentos), podemos vê-lo numa mesa com uma caneta na mão entre várias fichas, copiando referências, citações e escrevendo notas. Benjamin praticava a montagem como um verdadeiro colecionador (a figura do colecionador aparece em várias passagens, assim como a do trapeiro), ou um catador de fragmentos. Colecionava citações, resumos, notas, aforismas, pedaços de textos de campos distintos, em suma, fragmentos.5 A ideia da montagem está diretamente ligada a uma lógica fragmentária, da incompletude e da efemeridade, muitas vezes entendida como um tipo de “desordem”, que o próprio Benjamin já tinha citado como “desordem produtiva” 4 Algumas dessas fotografias foram editoradas junto com o texto “Pequena história da fotografia”, publicado na Literarische Welt em 1931 (versão em português, sem imagens, na coletânea Magia e Técnica, Arte e Política). 5 Segundo Willi Bolle, organizador da versão brasileira do livro das passagens, que ele chamou de “verdadeira enciclopédia urbana”, o livro reúne ao todo 4232 fragmentos, in “Les Passages – livre, archives ou encyclopédie magique?”, Cahier de l’Herne, 2013. 54 MONTAGEM URBANA ou “desordem criadora” ao comentar e citar um fragmento do livro Em busca do tempo perdido de Proust. (BENJAMIN, 2006, p. 246) O interessante da lógica fragmentária é precisamente a problematização pela dúvida, não há qualquer possibilidade, nem interesse, de se buscar uma unidade ou qualquer tipo de lógica unitária. A questão também é temporal, diz respeito a uma ordem incompleta e mutável, mas o inacabado, a ausência de um conjunto, de uma totalidade, também incita à exploração, à descoberta, o que os fragmentos têm de incompleto, de inacabado, possibilita também outras associações, em particular a partir do intervalo (do vazio que os separa) entre eles. Há na lógica fragmentária da montagem uma “teoria do intervalo” (explorada tanto por Warburg quanto por Eisenstein, por exemplo), o intervalo entre os fragmentos é determinante, pois é precisamente nesses intervalos que surgem campos de possibilidades para novos nexos de compreensão. No caso da montagem literária, esses intervalos proporcionam os choques entre ideias diferentes, sobretudo a partir de diferentes citações. Outra questão ligada ao fragmento é seu foco micrológico, microbiano, seu caráter de miniatura, como uma pequena parte de algo maior ou um breve instante de uma situação qualquer, trata-se de uma pequena peça de uma construção feita por pedaços, que fazem parte de um jogo maior, fragmentário: o próprio processo de montagem. Sem dúvida o processo de montagem para Benjamim era uma outra forma de narrar, de escrever a história, no caso do trabalho das passagens, da história de uma cidade, uma capital, Paris, a partir de “elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão”. As passagens em seus diferentes significados são sempre esses elementos recortados, sejam as passagens textuais, citações e recortes de textos variados, que vão de uma ideia para outra, sejam as passagens temporais, de um tempo para outro, que vão de uma época para outra, sejam as passagens arquitetônicas, urbanas, que levam de uma rua para outra. O método da montagem surge assim como uma forma de apreender a complexidade da construção da grande cidade, mas também para “apreender a construção da história como tal” e, para tal, outras formas de narração histórica precisavam ser criadas para “romper com o naturalismo histórico vulgar”. O tema principal da coleção, ou da constelação (para usar outro termo caro à Benjamin e Warburg) de fragmentos no trabalho das passagens era uma Paola Berenstein Jacques 55 cidade. A escolha da constelação de fragmentos para um estudo sobre uma grande cidade moderna não é aleatória, trata-se de buscar um tipo de visão “caleidoscópica” para possibilitar uma apreensão mais complexa de uma experiência urbana específica dessa cidade, Paris, tida como a capital do século XIX. Essa apreensão seria feita a partir do que poderíamos chamar de um tipo de “miniatura urbana” (Kracauer), suas passagens, essas arquiteturas urbanas comerciais, tidas como metáforas privilegiada, tanto de Paris quanto da própria modernidade. As passagens, no século XIX, eram galerias comerciais de luxo, com piso em mármore e cobertas com estruturas de ferro e vidro antes só usadas em importantes estações de trem ou galerias, elas apontavam para o futuro, da mercadoria, da arquitetura, da cidade. Quando Benjamin escreve sobre as passagens, estas já haviam sido suplantadas pelas grandes lojas comerciais, como a “Galeries Lafayette” (1896) e algumas já estavam em vias de demolição. No início do século XX, em menos de 100 anos de existência (a maioria surgiu por volta de 1820), elas já pareciam antiquadas, sendo que no século XIX elas ainda eram o sonho da época seguinte. Benjamin costumava citar Michelet: “Cada época sonha a seguinte”. As passagens eram reminescências desse antigo sonho urbano moderno. A ideia de passagem também funcionava para Benjamin, tanto teórica quanto criticamente, como uma categoria analítica da cidade moderna, da modernidade, e da própria história. Buscava assim uma narração histórica polifônica e aberta (inacabada), mostrando as diferentes passagens temporais de uma época para outra ou ainda as diferentes “sobrevivências” (para citar um termo de Warburg, Nachleben) de uma época em outra. As passagens são sempre espaços liminares, estão entre, nesse intermezzo, entre um espaço e outro mas, sobretudo, elas também estavam entre um tempo e outro, eram restos temporais. O título “livro das passagens” também pode ser visto simplesmente como uma coleção das diversas passagens textuais, os próprios fragmentos selecionados (ou catados), as diferentes citações e anotações realizadas por Benjamin, simples passagens textuais, passagens de um texto citadas em outro. Eram os fragmentos, “os farrapos, resíduos”, tanto temporais quanto textuais, que interessavam Benjamin, e não bastava inventariá-los, seria preciso utilizá-los. 56 MONTAGEM URBANA Para além da figura emblemática do colecionador (ou do catador, do trapeiro), Hannah Arendt formula uma das mais belas descrições de Walter Benjamin, sempre preocupado com a transmissão da experiência passada no presente a partir do uso do que estava escondido, esquecido ou descartado: um pescador de pérolas. E explica, citando o próprio Benjamin, sua forma de usar as citações: “As citações, no meu trabalho, são como os ladrões de grandes caminhos que aparecem do nada e despojam o caminhante de suas convicções” ou a força da citação “não é conservar, mas de purificar, de tirar do contexto, de destruir”. (BENJAMIN apud ARENDT, 2007, p. 87) O pescador de pérolas seria esse colecionador de citações, de “pérolas e corais”, essa “figura aparentemente bizarra do colecionador que vai recolher nos entulhos do passado ses fragmentos e suas peças”. (ARENDT, 2007, p. 101) Em sua coleção “podemos sem dificuldade encontrar ao lado de um poema de amor ignorado do século XVIII, a última notícia do jornal”. (ARENDT, 2007, p. 100) O processo de montagem seria assim uma forma de utilização daquilo que sobrou, que já parece obsoleto, uma forma de usar os restos, farrapos e resíduos da história, através de uma remontagem de antigos fragmentos. Seria assim um processo de mistura temporal mas também de narrativas e narradores, de tempos e narrações heterogêneas, um processo que formaria também uma série de anacronias e de polifonias. Um método crítico a partir da justaposição de fragmentos e de suas diferenças. Dentre as diferentes citações de Benjamin temos textos prioritariamente dos séculos XIX e XX, de vários autores de diferentes campos do conhecimento, particularmente, críticos, artistas, historiadores, literatos, poetas (com destaque para Baudelaire) mas também comentadores de guias de turismo, de artigos de jornal ou de revistas, de anúncios de mobiliário urbano, entre outros. Autores de vários campos mas, também, várias formas de narração são colocadas lado a lado. O trabalho das passagens é uma enorme coleção de fragmentos heterogêneos, um grande arquivo fragmentário composto através de uma criteriosa seleção feita em acervo bem maior, a própria Biblioteca Nacional, que reunia imensa quantidade dos milhares de livros e de outros documentos variados, já escritos sobre Paris. Ao se referir ao livro de Alfred Doblin, Berlin Alexanderplatz, que parte de uma referência urbana – como no trabalho de Benjamin sobre as passagens parisienses e sobre Paris –, uma praça em Berlim (cidade da infância de Benjamin, que surge em vários de seus textos e, em particular no já citado Paola Berenstein Jacques 57 Rua de Mão Única e no Infância em Berlim), Benjamin escreve algo, que se trocarmos os nomes das cidades no texto (Berlim/Paris), poderíamos dizer que o texto se refere também ao seu trabalho/livro das passagens parisienses: “O livro é um monumento a Berlim, porque o narrador não se preocupou em cotejar a cidade, com o sentimentalismo de quem celebra a terra natal. Ele fala a partir da cidade. Berlim é seu megafone.” (BENJAMIN, 1985, p. 57) Nesse mesmo texto Benjamin explicita a importância do difícil e criterioso (que muito raramente pode ser percebido na sua forma final) trabalho de seleção dos fragmentos para uma montagem, que ele exerceu durante vários anos na Biblioteca Nacional para formar o arquivo incompleto do trabalho das passagens e, também, sobre o próprio caráter documental desses fragmentos selecionados: “ O material da montagem está longe de ser arbitrário. A verdadeira montagem se baseia no documento.” (BENJAMIN, 1985, p. 56) Georges Bataille foi editor, entre 1929 e 1931, de uma revista que não por acaso se chamava Documents (Documentos). Bataille, escritor que atravessou diversos campos bem distintos (literatura, filosofia, artes, antropologia, etnografia, numismática), conheceu Walter Benjamin na Biblioteca Nacional, onde trabalhava como arquivista. Foi a Bataille que Benjamin confiou seu arquivo do trabalho das passagens ao deixar Paris quando os nazistas invadiram a cidade. Bataille também criou, com alguns dos colaboradores da revista Documents, o Collège de Sociologie (1937/1939), um grupo literário de vanguarda que Benjamin chegou a frequentar. A valorização do caráter documental na revista, que a princípio era de arte, exposto já em seu título, era um posicionamento editorial claramente crítico a uma visão formalista ou esteticista e, também, mercantil da arte. Um « documento », a princípio, não teria valor artístico. O trabalho de edição de uma revista é sempre um exercício de montagem, uma montagem de textos e imagens, de diferentes autores e debates. No caso da Documents, uma revista de vanguarda, a montagem era abertamente surrealista, mesmo que dissidente (Bataille foi muito próximo dos surrealistas mas rompeu com Breton). A montagem surrealista opera a partir dos choques ou da repulsão entre diferentes imagens, entre diferentes campos ou entre diferentes narrativas (textos e imagens). Nas edições da Documents foram publicados vários trabalhos de artistas, poetas e intelectuais da época 58 MONTAGEM URBANA e, dentre os que mais escreveram na revista, estão o próprio Bataille, seu co-editor, Carl Einstein, crítico e historiador de arte (admirador do “método” de Warburg) e Michel Leiris, escritor e etnógrafo. Bataille, que também escreveu textos sobre numismática, parecia se interessar em dar um outro uso, como Benjamin, para objetos “fora de uso”, como as moedas e medalhas antigas que ele estudava. O interesse da revista parecia ser pelos documentos também pouco usuais, que estavam perdendo sentido precisamente por terem perdido um uso corrente. Dentre os artistas modernos, foram publicados na Documents trabalhos de Picasso, Miró, Arp, Braque, Giacometti, Brancusi, Duchamp, Leger, Klee, Ernst, de Chirico, entre outros, assim como imagens de fotógrafos, como Boiffard, Lotar ou Nadar. Textos e imagens se misturavam e se confrontavam em todos os números da revista. Várias revistas de vanguarda que circularam em várias línguas e países distintos fizeram o mesmo, outras publicações artísticas experimentais exercitavam esse tipo de montagem na mesma época. No Brasil, por exemplo, tivemos a Klaxon (1922/1923) com excelente trabalho tipográfico, textos de vários intectuais (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros) e encartes de trabalhos de artistas modernos brasileiros (Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, etc) e também, talvez a mais surrealista de nossas revistas de vanguarda (e mais próxima, mesmo sendo diferente formalmente, da Documents), a Revista de Antropofagia (1928/1929). O que fazia a revista Documents diferente das demais revistas de arte? Os colaboradores vinham dos mais diferentes horizontes, uma vez que com os escritores situados na ponta extrema, a maioria desertores do surrealismo reunidos em torno de Bataille, avizinhavam-se dos representantes de disciplinas muito variadas. Mistura propriamente ‘impossível’, menos por causa da diversidade das disciplinas – e das indisciplinas – e mais por causa das diferenças entre os próprios homens, uns com um espírito francamente conservador, enquanto os outros buscavam utilizar a revista como uma máquina de guerra contra idéias pré-concebidas. (LEIRIS [1963] apud HOLLIER, 1991, contra capa, tradução e grifo nossos) Paola Berenstein Jacques 59 Além da importância dada aos documentos, explícita no título da publicação, não por acaso no plural – DOCUMENTS (Documentos) – temos no subtítulo o que parece ser a característica mais interessante dessa revista singular, e o que de fato a diferenciava das demais, pois não se tratava exatamente de uma revista de arte, de forma exclusiva. Abaixo do título da revista lê-se, como subtítulo, seus diferentes campos de interesse: “DOCTRINES – ARCHÉOLOGIE – BEAUX-ARTS – ETHNOGRAPHIE” (nos 3 primeiros números) e “ARCHÉOLOGIE – BEAUX-ARTS – ETHNOGRAPHIE – VARIETÉS” (a partir do número 4). As “doutrinas” foram trocadas pelas “variedades”, mas a tríade principal dos campos “arqueologia, belas-artes e etnografia” permanece ao longo dos 15 números publicados da revista. Os documentos reunidos em cada número são sempre um cruzamento desses campos distintos, que vão bem além da arte ou da literatura (pensados como campos disciplinares autônomos) e, só por estarem dispostos lado a lado, os documentos etnográficos ou arqueológicos já tensionavam e problematizavam de forma crítica os trabalhos artísticos, esvaziando assim puros formalismos, daí toda a particularidade e a enorme riqueza de Documents. Documents faz no entanto parte de uma história onde não se separa – é toda a sua riqueza, todo seu valor de modelo – as vanguardas artística e literária da vanguarda das ciências humanas, que via a obra de Mauss perturbar a antropologia, a de Freud perturbar a psicologia, ou ainda a dos Annales perturbar os métodos da história. (DIDI-HUBERMAN, 1995, p. 379, tradução nossa) A não separação entre as vanguardas artística e literária e as vanguardas das ciências humanas, de intelectuais de várias áreas do conhecimento, na prática editorial da revista, forçava também a um tipo de “desmontagem” teórica de certezas de todos os campos. Bataille também buscava um uso crítico dos documentos, um tipo de uso sempre em relação (dissensual, muitas vezes de oposição) a outros documentos, que surgem na revista como que “por acaso” (como se fossem objets trouvés), sem ligações claras ou aparentes, fora de qualquer tipo de continuidade ou linearidade. A revista era abertamente contra o esteticismo, contra o formalismo, como na ideia de informe – ou seja, da transgressão da forma - de Bataille, e fazia uma clara crítica 60 MONTAGEM URBANA a outras revistas da época (como a Gazette de Beaux-Arts, por exemplo), ao propor o que Didi-Huberman chamou de “contra-história da arte – e não uma ‘não-história da arte’. (1995, p. 15) Dennis Hollier (1991), deixa claro, no prefácio da republicação do conjunto de todos os números da revista com o título “O valor de uso do impossível”, que para se opor à proposta de Breton (líder do grupo surrealista com quem Bataille brigou) do “possível da imaginação”, Bataille propunha, sobretudo a partir da proximidade proposta com a etnografia, o “impossível do real”. Trata-se portanto de um tipo de montagem por fricção, o que já fica claro ao se folhear os diferentes números da revista, a cada edição uma constelação de imagens e textos se friccionam o tempo todo e, por vezes, no mesmo ‘documento’ esses campos se misturam como no texto de Marcel Mauss, fundador (com Lévy-Bruhl e Rivet em 1925) do Institut d’Ethnologie, que escreve sobre Pablo Picasso no número 3 (1929). Havia na linha editorial da revista uma crítica tanto ao primitivismo formalista “na moda” naquele momento, quanto ao positivismo nas ciências humanas e sociais. As montagens realizadas não serviam para criar um tipo de documentação específica sobre arte ou etnografia ou, ainda, arqueologia (ou numismática), mas sim para criar friccões entre elas, ou como disse Leiris, criar uma “mistura propriamente ‘impossível’”. Uma montagem de fricção: constante atritar entre diferenças. Em seu último texto publicado na revista, “O espírito moderno e o jogo de transposições”, no número 8 do ano 2 (1930, na parte Variedades), Bataille mostra sua visão moderna mas crítica da própria modernidade, que se aproxima bastante daquela de Benjamin, “o sentimento de se encontrar à beira de um abismo”. O artigo, que foi editorado junto com fantásticas fotografias de detalhes microscópicos de moscas (cedidas pelo instituto de micrografia), coloca claramente o desejo de Bataille, também próximo do desejo de Benjamin, de usar os trapos e farrapos da história, de enfrentar aquilo que os outros não conseguem ou não querem ver, o que ele faz na revista ao juntar documentos pouco vistos ou que sempre são vistos separamente e ao trasgredir as fronteiras entre campos disciplinares. É uma vontade súbita, que intervem como uma rajada de vento noturno que abre uma janela, de viver, mesmo somente um ou Paola Berenstein Jacques 61 dois minutos, retirando repentinamente todas as pesadas cortinas que escondem o que não valeria a pena ver, é uma vontade de um homem que perde a cabeça, que pode se permitir afrontar bruscamente ao que todos os outros fogem. (BATAILLE [1930] apud HOLLIER, 1991, p. 491, v. 2, tradução e grifo nossos) Aby Warburg, cujo trabalho já era conhecido tanto por Bataille quanto por Benjamin, foi literalmente esse “homem que perde a cabeça” ,6 como escreveu Bataille, buscando afrontar aquilo que os outros temem. No seu caso, de um historiador da arte que nunca se restringiu ao campo mais restrito da arte e sempre dialogou com outros campos, em particular, antropologia, arqueologia e etnografia, entre vários outros temas pouco enfrentados, ele buscava afrontar, por exemplo, aquele que seria um dos maiores temores de qualquer historiador: o anacronismo. Warburg também procurou, como Benjamin e Bataille fizeram na mesma época, o que estava escondido ou parecia não ser merecedor de atenção dos historiadores, como pequenos fragmentos, pedaços ou detalhes – lembrando sua célebre frase “o bom Deus se esconde nos detalhes” – e, como Benjamin e Bataille, Warburg também recorreu à montagem como “método de conhecimento” e “procedimento formal”, em particular no seu famoso Atlas Mnemosyne (ou Mnemosine, deusa da memória na mitologia grega) que ele “montou” entre 1924 e 1929. Como o livro das Passagens de Benjamin, o Atlas de Warburg também ficou inacabado com a morte do autor (montador), mas o processo de trabalho (tipo de montagem) pode ser compreendido mesmo sem sabermos qual seria sua forma final, se haveria essa intenção ou se a incompletude faria parte da proposta – o que parece ser mais coerente com seu processo. Se no trabalho de Benjamin os fragmentos eram prioritariamente textuais, e na revista Documents de Bataille os documentos eram tanto textos quanto imagens, que compunham as páginas sempre bem editoradas (ou “montadas”) da revista ilustrada, o Atlas de Warburg era ainda mais visual, composto basicamente por imagens (e detalhes), intercambiáveis. 6 Warburg sofreu de sérios problemas psiquiátricos entre 1919 e 1924, em 1921 ele chegou à clínica Bellevue na Suíça, onde ficou internado até 1924 atendido pelo psiquiatra Ludwig Binswanger (sobrinho do psiquiatra que atendera Nietzche), que conhecia bem Freud, sobre esse período ver: Binswanger, L. ;Warburg A. La guérison infinie: histoire Clinique d’Aby Warburg. Paris: Rivages, 2011. 62 MONTAGEM URBANA Um Atlas (titã, na mitologia grega, condenado por Zeus a carregar os céus nos ombros) já pressupõe um tipo de montagem visual. O Atlas Mnemosine pretende, com seu material de imagens, ilustrar esse processo, que se poderia designar como uma tentativa de introjeção na alma dos valores expressivos pré-formados na representação da vida em movimento. […] A Mnemosine com seu alicerce de imagens (caracterizadas no Atlas por meio de reproduções), a princípio pretende ser apenas um inventário das pré-formações de inspiração antiga que verificadamente influenciaram a representação da vida em movimento na época do Renascimento, contribuindo assim para a formação do estilo.” (WARBURG, Introdução à Mnemosine [1929], 2015) A questão principal, ou foco, de Warburg no Atlas de imagens (Bilderatlas), como na grande maioria de seus trabalhos, era buscar aquilo que ele chamou de Nachleben der Antike, um tipo de sobrevivência – um tipo de “vida” que ressurge em outra época, algo que permanece vivo, principalmente na memória, e assombra épocas posteriores –, da antiguidade no Renascimento. Tratava-se também da sobrevivência de uma civilização, de uma cultura pagã (Nachleben des Heidentums), o que já o levava a um atravessamento do campo específico da arte para o campo da antropologia. Warburg também realizou trabalhos de campo etnográficos7 e, como Bataille, buscou trabalhar no limiar entre esses campos disciplinares sobretudo ao se confrontar com o formalismo esteticista no campo da arte (e com estudos meramente estilísticos, do chamado “método estílistico-formal” ainda dominante na história da arte do século XIX), tensionando também os limites da própria história da arte, buscando sempre trabalhar no limiar, através ou além do campo. Como Benjamin e Bataille, Warburg também cruzava diferentes campos de conhecimento, transgredindo fronteiras disciplinares como em seu Atlas: 7 Sobre a conferência de Warburg sobre o ritual da serpente dos índios norte-americanos, a partir de sua memória do trabalho de campo realizado 30 anos antes (proferida ainda na clínica psiquiátrica logo antes de sua alta médica em 1924) ver: Warburg (2011). Sobre o trabalho etnográfico realizado por ele nos EUA em imagens (base de sua conferência de 1924): Ver: Mann; Guidi, (1998). Paola Berenstein Jacques 63 “Mnemosyne junta o que as fronteiras disciplinares tinham costume de separar”. (DIDI-HUBERMAN, 2011) Segundo Agamben (2009, p.132), Warburg “durante toda sua vida conservou ‘franca repulsa’ pela ‘história de arte estetizante’ e pela consideração puramente formal da imagem”. Nachleben, aqui traduzido por sobrevivência, seria um processo de transmissão, de transformação e de recepção, e de como a memória opera nesses processos, uma forma de herança, como dizia Ernst Bloch (Erbschaft dieser Zeit), de um tempo que ainda sobrevive, mesmo que em breves lampejos mnemônicos, em outro tempo. Uma forma de anacronismo pautado na questão da memória,8 da memória social, cultural, mas também e, sobretudo, da memória involuntária, que pode ser bem exemplificada pela célebre passagem da madeleine do livro de Proust Em busca do tempo perdido (traduzido para o alemão por Benjamin), quando o narrador, ao provar um simples pedaço de madeleine molhada no chá, faz emergir a memória de sua infância. A memória involuntária, como os sonhos, também opera por montagens, criando nexos inesperados, não lineares, de forma anacrônica e fragmentária. O Atlas de Warburg seria um titânico “sistema mneumotécnico” para usar a expressão de Agamben (2009, p.132), que escreveu: “a ‘ciência sem nome’ buscada por Warburg é, como registra uma anotação de 1929, uma ‘iconologia do intervalo’”. Warburg ficou conhecido, em particular a partir dos trabalhos de Panofsky, como o criador – contra uma iconografia formalista e estetizante – da iconologia, “ciência” que iria além das formas da iconografia tradicional, ao incorpor também os significados das imagens. No entanto, a “iconologia do intervalo” de Warburg difere muito da proposta de iconologia, bem menos complexa, de Panofsky. O foco de Warburg, ao contrário de Panofsky e de outros “seguidores”, estaria menos em cada imagem e mais no próprio intervalo entre elas, no vazio entre as imagens, nas suas possíveis relações. Seu interesse nas imagens estava justamente no seu “caráter lacunar”, falho, incompleto, intermediário, aberto. Warburg, como Benjamin (e o caráter 8 Não se trata aqui, obviamente, de um trabalho memorialista, sobre a memória voluntária, a questão da memória involuntária não diz respeito a uma “verdade” do que se viveu, como podemos ver no texto de Benjamin sobre Proust: “[...] o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.” (BENJAMIN, 1985, p. 37) 64 MONTAGEM URBANA fragmentário de sua montagem histórica), buscava uma concepção de história sempre aberta aos “possíveis ainda não dados” ao acolher as descontinuidades e os anacronismos. A definição mais interessante para seu Atlas de imagens da memória seria a do próprio Warburg – a partir da noção de Nachleben, que também pode ser vista como uma vida fantasmática das imagens – ao explicar que o que ele fazia era um tipo de : “história de fantasmas para gente grande”.9 Contra toda pureza epistêmica, o Atlas introduz no saber a dimensão sensível, o diverso, o caráter lacunar de cada imagem. Contra toda pureza estética, ele introduz o múltiplo, o diverso, o caráter híbrido de toda montagem [...] Ele é uma ferramenta, não de esgotamento lógico de possibilidades dadas, mas da inesgotável abertura aos possíveis ainda não dados. (DIDIHUBERMAN, 2011, p.13, tradução e grifo nosso) O Atlas é um conjunto de grandes painéis móveis – painéis simples de madeira cobertos de preto que mediam aproximadamente 2 por 1,5 metros cada – que ficavam expostos na entrada da sala de leitura da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg em Hamburgo (onde a palavra Mnemosyne foi gravada e os livros eram dispostos a partir da “lei da boa vizinhança”) onde Warburg compôs e expôs suas montagens. Essas montagens eram realizadas a partir de um arquivo com centenas (talvez milhares, só nos painéis da última versão são quase mil imagens) de imagens heterogêneas: fotografias de obras de arte, de detalhes de obras, imagens cosmográficas, cartográficas, mapas, desenhos e esquemas variados, recortes de jornais e de revistas daquele momento (1929, última versão, ano de sua morte), entre outros. Warburg usava os painéis em suas aulas, palestras, exposições e apresentações. Os painéis móveis eram constantemente montados, desmontados e remontados por Warburg, em função do andamento de seus estudos, e eram fotografados em suas diferentes configurações momentâneas. A última versão era composta de dezenas 9 Gespenstergeschicthe für ganz Erwachsene, Aby Warburg, em nota datada de 2/7/1929, citado por DidiHuberman, 2002, p. 510, que também cita o enunciado de Nietzsche “a interpretação verdadeiramente ‘histórica’ falaria como um fantasma com fantasmas” (1878) citado por Warburg. Paola Berenstein Jacques 65 de painéis de madeira,10 trata-se de um tipo de “testamento metodológico” de Warburg, que até hoje parece assombrar os modos mais tradicionais e hegemônicos de se pensar a história e, em particular, a história da arte, ao questionar, sobretudo, as relações mais simplistas entre memória e história. A forma de pensar de Warburg opera por montagens e imagens consteladas de detalhes (como os fragmentos de Benjamin ou os documentos de Bataille, para Warburg as próprias imagens são também formas de pensar, um tipo de “pensar por imagens”). O processo de montagem compõe diferentes constelações, trata-se de uma forma complexa e generalista de conhecimento, uma compreensão sinóptica que cruza diferentes campos e disciplinas, e que não pode ser engessada como uma simples metodologia operacional. O importante não seria qualquer tipo de resultado final, fixo, mas sim o próprio processo aberto, uma renúncia do fixar. A partir dos diferentes intervalos – entre as diferentes remontagens de um mesmo painel, entre as montagens de diferentes painéis e, também, entre as imagens de cada montagem – podem surgir outros nexos, a partir de associações, choques ou tensões entre as imagens, podem surgir relações inesperadas, outras constelações imprevistas, provocando uma série de inversões, rupturas, descontinuidades, emergências, anacronismos e sobrevivências (Nachleben). Benjamin também recorreu a ideia de constelação algumas vezes para explicar sua própria forma de pensar por montagens de fragmentos e, em particular, sua forma de pensar e tensionar o campo da história. Não é que o passado lança a luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. (BENJAMIN, 2006, p. 504, grifos nosso) 10 As fotografias dos painéis montados na sala de leitura da biblioteca em Hamburgo, em sua última versão antes da morte de Warburg em 1929 (os painéis em madeira parecem ter se perdido na mudança da biblioteca de Warburg para Londres durante a guerra), foram recentemente publicadas em diferentes línguas: Der Bilderatlas Mnemosyne. Berlim, Akademie Verlag GmbH, 2003; Atlas Mnemosyne. Madri, Akal, 2010 e L’Atlas Mnémosyne. Paris, L’écarquillé, 2012. 66 MONTAGEM URBANA Trata-se de um complexo jogo de forças entre passado e presente, entre os “ocorrido” e os “agora”, através de montagens sinópticas de tempos heterogêneos, forças do passado ressurgem no presente (sobrevivem para além de sua cristalização) como relâmpagos, lampejos, memórias involuntárias. Uma montagem de tempos heterogêneos, uma coexistência de tempos distintos, uma apresentação sinóptica de diferenças. Um tipo de conhecimento específico e complexo é operado pelo trabalho (ou jogo) de montagem que não busca a unidade e pretende mostrar a própria complexidade ao acentuar diferenças e ao misturar, colocando lado a lado, numa mesma superfície, como no Atlas de Warburg, diferentes tipos de fragmentos, documentos ou detalhes de diferentes tempos e campos do conhecimento e, a partir do choque entre suas diferenças, nos fazem compreender outros nexos possíveis, não mais baseados em semelhanças, mas sim na própria diversidade e heterogeneidade que, durante o processo de montagem, faz emergir nexos secretos, escondidos ou invisibilizados por formas de pensar mais lineares ou mais sedimentadas. Ora, só a montagem – como forma de pensamento – permite espacializar essa ‘desterritorialização’ dos objetos de conhecimento. [...] Mnemosyne é um objeto intempestivo, por se atrever, na era do positivismo e da história triunfal, a funcionar como um quebra-cabeça ou um jogo de cartas de tarô. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 406) Montagem como “forma de pensamento” sobre as cidades e o urbanismo Apenas na aparência a cidade é homogênea. Até mesmo seu nome assume um tom diferente nos diferentes lugares. Em parte alguma, a não ser em sonhos, é ainda possível experienciar o fenômeno do limite de maneira mais original do que nas cidades. (BENJAMIN, 2006, p. 127) Paola Berenstein Jacques 67 A partir de um conhecimento pela montagem seria então possível pensarmos as cidades e o urbanismo (e sua história) também de uma forma menos homogênea, mais complexa, a partir de suas diferenças, heterogeneidades e também de seus limiares11 (tanto espaciais quanto disciplinares). Como vimos, a ideia de montagem praticada tanto no trabalho das Passagens por Benjamin, quanto na revista Documentos por Bataille ou, ainda, no Atlas da memória por Warburg, nos mostra uma forma complexa de pensamento que parte da heterogeinidade, particularmente da coexistência de tempos heterogêneos e do atravessamento de diferentes campos de conhecimento para os tensionar e, assim, compreender melhor sua própria complexidade. Essa forma de conhecimento pela montagem, que opera sobretudo pelas diferenças e conflitos, difere muito daqueles métodos que vêm sendo mais correntemente “aplicados” aos estudos urbanos – ao menos desde a maior especialização funcionalista de nosso campo disciplinar (moderno tardio, pós-guerra) –, que operam mais pelas semelhanças e, sobretudo, pela criação de consensos legitimadores de enunciados dominantes já conhecidos e pré-estabelecidos. Para pensarmos os estudos sobre a cidade e sobre o urbanismo a partir da montagem, poderíamos começar por pensar as próprias cidades como montagens complexas, coexistências de tempos e espaços heterogêneos e dissensuais. Poderíamos também tentar apreendê-las em sua complexidade, praticando montagens heterogêneas – a partir do processo de montagemdesmontagem-remontagem – como uma forma, um exercício (ou ferramenta urbanística12), de compreensão da complexidade das cidades. Essa prática busca um tensionamento a partir dos limiares do campo do urbanismo com 11 “O limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira (Grenze). O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar esses significados.” (BENJAMIN, 2006, p. 535) 12 Nos últimos três anos (2013, 2014, 2015) exercitamos essa proposta metodológica, da montagem urbana, como método de apreensão da cidade (análise urbana), na disciplina anual de projeto urbano (ateliê 5), que coordenamos na FAUFBA. O exercício, ou experiência metodológica (montagem-desmontagem-remontagem), também foi “testado” na pós-graduação, na edição de 2015 do tópico especial “Apreensão da Cidade Contemporânea” do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA (PPG-AU/FAUFBA), como parte da pesquisa que coordenamos : Experiências metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea (PRONEM – FAPESB/CNPq). Aproveito para agradecer o entusiasmo dos estudantes que participaram dessas “experiências metodológicas”. Uma análise mais detida dos resultados dessas experiências ainda está em curso. 68 MONTAGEM URBANA outros campos disciplinares, uma transgressão das fronteiras entre as disciplinas, especialmente aaquelas já mencionadas nos três exemplos de montagens citados: etnografia (e antropologia), arte (e cultura) e história (e memória). Um campo passa a tencionar, desafiar ou inquietar o outro, juntanto o que as fronteiras disciplinares especializadas costumam separar. Podemos também problematizar o próprio campo da história das cidades e, sobretudo, do urbanismo e do pensamento urbanístico (circulação de ideias urbanísticas13), a partir de um pensamento por montagens de tempos heterogêneos ou anacrônicos que tornam a própria noção de tempo bem mais complexa e menos linear, ou ainda, podemos, a partir da ideia de montagem, pensar outras formas de narração da experiência urbana, incluindo as narrativas de experiências de alteridade, de subjetividade e, também, de memória, particularmente, da rica discussão sobre a memória involuntária – que também funciona por montagens heterogêneas e complexas, como os sonhos. Ao menos desde a introdução do urban ou civic survey – baseado na observação das cidades existentes que passavam pelos primeiros processos de modernização mais violentos – criado por Patrick Geddes logo no início do século XX, o urbanismo também opera por montagens para realizar suas análises urbanas ou, como se diz ainda hoje, usando um termo médico “sintomático”: os diagnósticos. Geddes, biólogo (botânico) escocês (próximo de Darwin), também era sociólogo, geógrafo e pioneiro do urban planning (traduzido por planejamento urbano), ou seja, um típico generalista que amava viajar para conhecer cidades, fazendo levantamentos urbanos (surveys) que também se aproximavam das pesquisas etnográficas, em particular na sua longa passagem pela Índia. A partir de Geddes, os levantamentos (análises urbanas) passam a ser realizados antes dos planos e dos projetos urbanos (ele proclamava 13 Essa forma de pensar a história do pensamento urbanístico ou da circulação de ideias urbanísticas, tem sido “exercitada” de uma forma mais complexa na pesquisa Cronologia do pensamento urbanístico (CNPq), realizada em parceria com uma equipe na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenada por Margareth da Silva Pereira, de quem usamos a noção de nebulosas – emprestada de Chistian Topalov (EHESS) – para pensarmos uma forma de “cronologia” (ainda mantemos esse título) do pensamento mais complexa, não linear, partindo das inflexões e emergências – rupturas no pensamento dominante em cada momento histórico. A noção de nebulosa (de Pereira) se aproxima bastante da ideia de constelação, de Benjamin. Agradeço às duas equipes da pesquisa, em particular os bolsistas de Iniciação Científica e de Apoio Técnico, que estão nos ajudado a “materializar” as “nebulosas” do pensamento no site da pesquisa. Paola Berenstein Jacques 69 “survey before the plan !”). Podemos encontrar, por exemplo, vários surveys (um tipo de Atlas de uma cidade) de diferentes cidades na biblioteca de Warburg em Londres, dispostos lado a lado (seguindo o princípio da “boa vizinhança”) de outras formas cartográficas mas, também, cosmológicas ou, ainda, outros tipos de Atlas, como um grande atlas da anatomia humana. Além das mostras de cidades, Geddes construiu a Outlook Tower (um tipo de observatório da cidade) em Edimburgo, realizou várias mostras e também publicou livros, como o famoso Cities in evolution (Cidades em evolução), publicado em 1915. Geddes propunha um “conceito sinóptico de estudo” das cidades ao “procurar reconhecer e utilizar todos os pontos de vista – científico, artístico, histórico – e a partir deles interpretar o curso de desenvolvimento futuro da cidade e suas possibilidades”. (GEDDES, 1994 [1915], sumário) Geddes foi o primeiro a ofuscar esse sonho [de simplificação], emergindo de sua Outlook Tower, no norte gelado, para produzir aquele pesadelo de complexidade, o Salão de Edimburgo na grande Mostra de Planejamento Urbano de 1910. Era uma câmara de tortura para as almas simples habituadas a se deslumbrar com as perspectivas maravilhosas ou a se enternecer com as cidadezinhas arrumadinhas exibidas em galerias mais espaçosas. [...] O visitante criticava o seu show – simplesmente uma confusão – cartões postais – recortes de jornal – grosseiros pedaços de madeira – estranhos diagramas – reconstruções arqueológicas; essas coisas, como se dizia, indignas da Real Academia – nem emolduradas estavam – uma completa falta de respeito”. (SIR PATRICK ABERCROMBIE, TYRWHIT [1949, introdução] apud GEDDES, 1994) O tipo de apreensão e compreensão das cidades que, para Geddes, era – sobretudo em sua proposta de mostra itinerante sobre cidades, que reunia uma série pranchas onde novas imagens eram acrescentadas, a cada nova cidade visitada, às montagens (que se perderam no naufrágio do Emden durante a Primeira Guerra Mundial) – uma mistura sempre heterogênea de diferentes campos disciplinares e também de tempos e tipos de narrativas distintas, se tornou, sobretudo na prática mais especializada e funcionalista do urbanismo, 70 MONTAGEM URBANA um tipo de montagem por semelhanças, que busca uma unidade ou totalidade qualquer ou, ainda, uma forma de legitimar narrativas dominantes já dadas. Um tipo de montagem padronizada, transformada em modelo a ser seguido para qualquer cidade, que prioriza a montagem simplesmente como “procedimento formal” em detrimento da montagem como “método de conhecimento”. A ideia de montagem que vimos em Benjamin, Bataille ou Warburg, não parte de ideias já dadas, de nexos prontos, ao contrário, busca encontrar possíveis nexos ainda não conhecidos durante a própria prática (exercício ou jogo) da montagem, ao atuar a partir das diferenças, sem buscar qualquer tipo de unidade ou de totalidade e ao tentar separar o que normalmente está reunido e conectar o que está habitualmente separado. Um tipo de montagem que, assim, também acaba por desmontar as formas mais formalistas ou mais funcionalistas (e positivistas) de se pensar (também a cidade e o urbanismo), um tipo de desmontagem de certezas e pensamentos mais sedimentados. Uma desmontagem também do historicismo, das formas de se pensar e narrar a história baseadas numa simples continuidade ou linearidade histórica como mera sucessão de tempos homogêneos. Como vimos, o conhecimento pela montagem foi uma resposta das vanguardas modernas aos excessos da própria modernidade, de sua cientificidade “positivista”, uma resposta contra os diferentes fechamentos metodológicos funcionalistas do positivismo mas também contra os formalismos estetizantes, ambos ainda dominantes em diferentes campos disciplinares. O conhecimento pela montagem propõe um forma aberta de pensamento por relações, por associações inusitadas de ideias, por “afinidades eletivas” (Goethe e Benjamin), pela “lei da boa vizinhança” (Warburg), que desmorona certezas consolidadas. Um tipo de conhecimento transversal que atravessa campos distintos, explora seus limiares e explode seus limites ou fronteiras. Uma forma de conhecimento processual que se constrói durante a própria prática, na ação mesmo de montar/desmontar/remontar, admitindo o acaso (o “acaso objetivo” dos surrealistas), uma espécie de jogo de cartas (de tarô, de búzios ou de dados, como em Mallarmé) com uma redistribuição permanente das cartas no/em jogo. Os nexos emergem na própria mesa de montagem, vista como um campo de forças e de conflitos, mostrando configurações e constelações não pensadas antes. Um tipo de pensamento em movimento, Paola Berenstein Jacques 71 que expõe a complexidade, a “desordem” das coisas (do mundo e das cidades), que atua por suas heterogeinidades, pelas multiplicidades, um pensamento em transformação permanente, que recusa qualquer síntese conclusiva final e que assume a incompletude como princípio. Um tipo de conhecimento nômade, mutante, desterritorializado ou que desterritorializa, desmontando territorializações sedentárias do pensamento, uma forma de conhecimento próxima ao que Deleuze e Guattari (1997 [1980], p. 25) chamaram de “ciência nômade”, “excêntrica” ou “menor”. A montagem urbana seria uma “ciência nômade” pois está em variação contínua, no infindável processo de montagem – remontagem – desmontagem, quando colocarmos diferentes imagens, detalhes, fragmentos numa mesa/prancha podemos modificar suas posições, criando várias configurações, ao reconfigurar (desmontar e remontar) a ordem da seleção, ou seja, ao fazer com que os fragmentos mudem de posição, podemos criar outras constelações, novos nexos e relações. Uma mesa de montagem não é fixa, é variável, partimos sempre de um arquivo para coletar, selecionar, catar fragmentos que podem ser dispostos de várias formas, respeitando sua multiplicidade e heterogeneidade, trata-se de um trabalho incessante de descomposição e recomposição, ou de “deslocação do mundo” (Brecht), que torna o próprio tempo visível nos seus deslocamentos, ao desmontar a própria continuidade histórica. Podemos buscar apreender, narrar e conhecer uma cidade pela montagem de fragmentos de diferentes narrativas sobre experiências urbanas diversas, de tipos, campos e, também de tempos distintos (agoras e outroras), sobre um mesmo espaço, uma mesma cidade. Não seria possível detalhar aqui todas as possibilidades da montagem urbana,14 só pretendemos mostrar que apesar da montagem estar sendo mais usada hoje, nos estudos urbanos, de forma homogênea e simplificadora, como um mero “procedimento formal”, a montagem poderia ser usada também, de forma heterogênea e complexa, 14 O presente texto é um resumo introdutório de um livro de mesmo nome, em desenvolvimento. A pesquisa específica sobre o tema da montagem foi iniciada durante um estágio sênior (CAPES) no LAA/CNRS, Paris em 2012 (inicialmente sobre narrativas urbanas, sobretudo etnográficas). Agradeço os diferentes interlocutores nos dois grupos de pesquisa (Laboratório Urbano e LAA/CNRS) e, também, Georges DidiHuberman, pelas conversas incentivadores em 2013 (MAR, Rio) e por seus generosos seminários em 2012 e 2013 (Centre Georges Pompidou e EHESS, Paris). 72 MONTAGEM URBANA como um “método de conhecimento” das cidades e do urbanismo, pensando o método a partir de Benjamin, como desvio (umweg, caminho que dá volta).15 Sabemos como a questão da narração (e das narrativas) está diretamente relacionada à questão da memória coletiva e da historiografia, como forma de se narrar a história, de transmití-la. Como narrar as diferentes experiências urbanas? Quais são as possibilidades de experiência da alteridade na cidade e seus modos de compartilhamento e transmissão, ou seja, as relações entre narrativas etnográficas, mnemônicas e historiográficas? A questão da narração e do que chamamos de narrativas urbanas como forma de transmissão de experiências urbanas e, assim, de disputa entre macro e micronarrativas com relação à produção de subjetividades urbanas, é determinante. As narrativas urbanas, além de narrar, também “montam” cidades, ao produzir outras subjetividades urbanas. Vale lembrar a importante diferenciação feita por Benjamin, retomada por Jeanne Marie Gagnebin (2014), entre dois tipos de experiência: Erlebnis, a vivência, o acontecimento, uma experiência sensível, momentânea, efêmera, um tipo de experiência vivida, isolada, individual; e Erfahrung, a experiência maturada, sedimentada, assimilada, que seria um outro tipo de experiência, uma experiência transmitida, partilhada, coletiva. A grande questão para Benjamim não estava no depauperamento da experiência vivida, da vivência, menos ainda na sua destruição (tema recorrente na contemporaneidade), mas na dificuldade para transformá-la em experiência acumulada, coletiva, ou seja, na perda da nossa capacidade de transmissão de experiências. Para Benjamin, era a arte de narrar que estava em vias de extinção na modernidade. Para Gagnebin, a questão hoje está sobretudo na velocidade ou aceleração das formas de comunicação, que tornam cada vez mais difícil a transmissão lenta, que transforma rápidas e fugidias vivências individuais em um bem compartilhado, coletivo. A questão da narração da experiência urbana também está diretamente relacionada com a questão da alteridade e o próprio exercício de narração 15 Sobre a questão ver a entrevista que Jeanne Marie Gagnebin nos concedeu na revista Redobra,v. 14 2014: “A ideia de ‘desvio’ no prefácio da Origem do drama do barroco alemão, primeiramente faz um trocadilho com a palavra ‘método’. Em grego, método quer dizer com (met) caminho (hodos). E desvio, em alemão é umweg, um caminho (weg) que dá volta (prefixo um). Benjamin simplesmente lembra que o caminho não é sempre reto e direto (como propunha Descartes quando se trata de adquirir cetezas no conhecimento, mas que há outras formas de caminho e de caminhar [...]”. (GAGNEBIN, 2014, p. 15) Paola Berenstein Jacques 73 também está associado a uma prática espacial, ao movimento, à viagem ou, ainda, à ação de percorrer uma cidade. Gagnebin também nos relembra a própria etimologia da palavra Erfahrung: do radical Fahr, que quer dizer percorrer, atravessar um espaço. A narração, em qualquer forma narrativa (textual, fotográfica, audiovisual, etc.), não somente exprime uma prática, não somente relata uma ação, nem se contenta em dizer o movimento, ela já o faz ao narrar, como escreve Michel de Certeau (1990), a narração seria, em sua ação, uma outra experiência espacial. Uma narrativa seria então uma prática do espaço, um tipo de ação, que pode ser cartografada, mapeada. Essas cartografias partem de experiências corporais. O próprio corpo pode ser compreendido como um tipo de cartografia da experiência urbana. A prática experimental da montagem urbana busca relacionar essa multiplicidade de narrativas heterogêneas, díspares, da experiência urbana: etnográficas, artísticas, literárias, históricas, mneumônicas, corporais, etc. Trata-se de uma forma de articulá-las, a partir de seus fragmentos, para uma compreensão mais complexa da cidade. Podemos também incorporar, nos estudos históricos da cidade e do urbanismo, formas narrativas menores ou micronarrativas (contrapontos às grandes narrativas modernas ainda hegemônicas), que enfatizem experiências coletivas, do corpo e da alteridade na cidade. Se seguirmos Benjamin no trabalho das passagens (fragmento N 1a, 8, já citado) quando ele escreve “Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar”, passamos a entender que uma prática histórica a partir da montagem buscaria utilizar também esses “farrapos e resíduos”, as ruínas e memórias urbanas, como fazem os trapeiros, e esta montagem urbana disporia estes rastros e restos de narrativas urbanas ao lado de outras narrativas díspares sobre as cidades e o urbanismo (de diferentes tempos, espaços ou campos), para tentar fazer emergir outras possibilidades de compreensão das cidades e do urbanismo durante o próprio processo da montagem. Em resumo: uma remontagem da prática historiográfica (escrita da história) por uma desmontagem do historicismo e, também, uma remontagem da historicidade, a partir da montagem de documentos de diferentes tempos e outros fragmentos heterogêneos. Podemos claramente associar a ideia de constelação de narrativas ou de fragmentos de narrativas (ou micronarrativas) à ideia do caleidoscópio. O caleidoscópio é formado, também, pelos cacos erráticos feitos de restos de outros materiais que, ao se associarem, formam outras e surpreendentes 74 MONTAGEM URBANA imagens diferentes a cada vez que giramos o aparelho/brinquedo. Novamente retornamos à Benjamin que via o próprio historiador como um tipo de trapeiro (Lumpensammler ou chiffonier, a partir da famosa foto de Atget) que cria e narra a história a partir dos “farrapos e resíduos” sobreviventes de outros tempos. O historiador-trapeiro que coleciona resíduos, detritos, restos, cacos, fragmentos ou pequenos detalhes, como diria Warburg. Pela prática da montagem seria possível mostrar outras relações escondidas nesses minúsculos rastros de vida, breves frestas de resistências e potências, poeiras de diferentes experiências urbanas, que ainda sobrevivem entre nós, fragmentos (rastros mnemônicos de vivências urbanas, experiências da cidade) que se insinuam em nossa própria tessitura histórica e provocam outras constelações de narrativas. Como Warburg em seu Atlas ao tentar cartografar as pequenas sobrevivências de um tempo em outro, ou como Benjamin no trabalho das Passagens como um catador de citações, ou ainda como Bataille que tensionava “documentos” pela repulsão entre eles, propomos pensar a montagem de narrativas urbanas por suas diferenças também como uma forma complexa de pensar e praticar a história das cidades e, sobretudo, do urbanismo. Didi Huberman (2000, p. 39) diz que “só há história interessante na montagem”, trata-se portanto de um compreensão da história que ao invés de buscar resolver, busca colocar outros problemas, não segue uma linearidade e busca, assim, uma cronologia não homogênia ou regular, mas que reconheça a coexistência, ou às vezes a colisão, de tempos heterogêneos, anacrônicos, pois “é que no conhecimento pelas montagens ou por remontagens sempre está presente uma reflexão sobre a desmontagem dos tempos”. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 179) A montagem aparece então como “método de conhecimento” histórico no momento em que ela também caracteriza o objeto desse conhecimento: o historiador cata e remonta os fragmentos que sobram porque estes têm a capacidade tanto de desmontar a história hegemônicae homogênea quanto de montar os tempos heterogêneos. Ao buscar então um conhecimento da cidade, que também é um conhecimento da história das cidades e do urbanismo, a partir da ideia da montagem urbana, pelo jogo de montagem, desmontagem e remontagem, pelo choque entre suas diferenças, não procuramos uma síntese, ao contrário, buscamos compreender a complexidade a partir da multiplicidade de narrativas urbanas distintas. Paola Berenstein Jacques 75 Referências AGAMBEN, G. Aby Warburg e a ciência sem nome. Arte e ensaios, Rio de janeiro,v. 19, 2009. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985. BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009. BINSWANGER, L.;WARBURG A. La guérison infinie: histoire Clinique d’Aby Warburg. Paris: Rivages, 2011. CERTEAU, M. de; GIARD, L. L’invention du quotidien. Paris: Gallimard, 1990. DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Éditions de Minuit, 1980. DIDI-HUBERMAN, G. La ressemblance informe, ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille. 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A cidade é 1 O presente capítulo é resultado parcial de um projeto de pesquisa cujo objetivo central é identificar os fundamentos do imaginário social sobre corpo, saúde e doença instituído na passagem do século XIX para o século XX, período no qual se estruturou a biomedicina no Brasil. A referida pesquisa desenvolve a tese de que o processo de popularização da biomedicina ocorreu primariamente na formação de um “imaginário social”, relacionado a uma “cultura de reforma”, com características bastante urbanas, que expressava novas formas de sociabilidade vistas como estratégicas para assegurar as demandas de um “mundo civilizado”. 77 aqui tomada como objeto de discurso e como imagem. Trata-se, portanto, de um estudo sobre paisagem urbana, sobre imaginário social, sobre o “espaço telúrico” da cidade.2 A cidade tem uma paisagem. Se estende por uma superfície onde se convergem construções, redes de sociabilidades, experiências, sentimentos. Paisagem é algo que se “unifica em torno de uma totalidade afetiva dominante, perfeitamente válida ainda que refratária a toda redução puramente científica”. (DARDEL, 2011, p. 31) É uma categoria espacial multifacetada composta por elementos físicos (como terra, água, atmosfera), por seres vivos e por ideias, sensações e significados. Mais precisamente, paisagem é um “entorno” ou um mundo habitado por seres e coisas diversas e “animado” por um certo tom – não no sentido de ideias que sobrepõem a um universo físico, mas no sentido de um mundo que, em sua totalidade, se abre ou se mostra, modulando certas condutas. Nesse sentido, a paisagem não é um círculo fechado, mas “uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma ‘impressão’, que une todos os elementos”. (DARDEL, 2011, p. 30) Explicita, portanto, ligações existenciais do ser humano com o mundo. Em síntese, a cidade é um horizonte existencial formado: pela intervenção humana sobre a terra; pelas relações que se atam; pelos encontros entre indivíduos, coisas e ideias. Um espaço onde a rua é um elemento definidor da vida cotidiana. No dizer do cronista e teatrólogo João do Rio (2007, p. 15),3 “[...] a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!”. Local de movimentação habitual, onde múltiplas possibilidades de existência são combinadas e estão sempre em construção. Vias pelas quais há aproximações, distanciamentos e direções. Assim, a cidade não é apenas espaço da percepção, “objetivo”, da experiência concreta e imediata, algo que se apresenta e age nos nossos receptores oculares. A cidade não se desvela inteiramente por si mesma. Ela sempre se desdobra além do olhar. A cidade é vivida tanto pelas suas determinações perceptivas quanto pelos seus esquemas simbólicos, imaginários. 2 Tomo de Eric Dardel (2011) o termo “espaço telúrico” para se referir à imaginação criativa que é instituída na 3 O ano indicado entre colchete refere-se a data de publicação em livro (e não em folhetim) da obra men- experiência do “terrestre”, ou seja, de “ser no espaço geográfico”. cionada. Cabe observar que grande parte dos livros editados na época surgiram inicialmente em forma de folhetim. 78 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX O termo “imaginário” é aqui central. Palavra complexa e objeto de inúmeras controvérsias. Requer, portanto, um posicionamento. Assumimos a premissa de que o primeiro aspecto a ser observado no conceito de imaginário é de ser um ato de consciência. Diz respeito à maneira pela qual a consciência capta seu objeto ou, em outras palavras, é o modo pelo qual o objeto aparece a consciência. Imaginário se distingue da percepção, embora a ela esteja intrinsecamente ligada. Na percepção, o objeto é colocado como existente, como real, como dado. Nela, a consciência retira o seu saber do objeto, o qual é sempre capaz de revelar o que ignoramos, de nos surpreender ou enganar. Por sua vez, imaginário é uma relação de uma ideia com o objeto. Uma ideia que possibilita presentificar o que é ausente, pois, formar uma ideia implica visar algo através de um análogo que se alimenta de conhecimento, memória, experiência, informação e desejo. Diferente da percepção, o imaginário é algo “postulado” pela consciência. Conforme Sartre (1996, p. 21-22), “[...] a imagem é um ato sintético que une a elementos mais precisamente representativos um saber concreto, não imaginado. Uma imagem não se aprende; é exatamente organizada como os objetos que se aprendem, mas, na realidade, a imagem se dá inteira como aquilo que ela é, desde o seu aparecimento”. Mas é importante enfatizar que o objeto imaginado existe sobre um fundo de mundo real. Para que uma consciência possa imaginar, é necessário que transcenda o mundo e o coloque a distância. Ou seja, é necessário que exista um mundo real, não “produzido” pela consciência, para que o imaginário possa “colocar” seu objeto. Há, portanto, um componente criativo no imaginário e, nesse aspecto, pode-se falar de uma multiplicidade de ações e concepções de que ele é capaz de produzir. Os imaginários são indispensáveis para os atos de compreensão, pois toda elas se fazem acompanhar por esquemas simbólicos que “controlam” o que deve ser compreendido. Poder-se-ia dizer que o imaginário é como uma “força” que compõe o campo no qual a percepção ocorre.4 Esses esquemas simbólicos 4 Jonathan Crary (2012, p. 15-16) observa: “[...] o que determina a visão em qualquer momento histórico não é uma estrutura profunda, nem uma base econômica ou uma visão do mundo, mas, antes, uma montagem coletiva de partes díspares em uma única superfície social [...] Nunca houve e nunca haverá um observador que apreenda o mundo em Paulo César Alves 79 [...] que acompanham o pensamento são, por assim dizer, filtros que adaptam, seletivamente o repertório existente à operação do pensamento. Tal processo se realiza como movimento constante de protensão e retenção, alimentando esses processos de conhecimento e memória, de acordo com as necessidades do pensamento. Os esquemas daí resultantes funcionam como representantes, concretizando possibilidades que o pensamento necessita para os seus atos de apreensão. (ISER, 1996, p. 235) Castoriadis (1986) leva o conceito de imaginário para um outro patamar. Não se trata apenas de um ato de consciência, mas de um pressuposto fundamental na institucionalização da sociedade.5 O imaginário refere-se a um conjunto de formulações sócio-históricas, mais ou menos articulado e coerente, de elementos cognitivos, volitivos e práticos com que os membros de uma sociedade atribuem significados ao seu mundo, representando caracteres relevantes da sociedade em que vivem ou de aspectos dessa sociedade. O imaginário social institui uma “pré-compreensão” imediata de discursos e práticas cotidianas ordinárias, o que permite um senso compartilhado de legitimidade de ordem social. Não se trata de uma “faculdade mental” ou “imitações das coisas que povoam a consciência” e tampouco deve ser confundido com “ideologia”. Designa constituições simbólicas (como linguagem e signos predeterminados culturalmente) através das quais os atores sociais organizam seu mundo e, portanto, a ele se referem. Constituições simbólicas que estão sempre em processos de constante mudanças. Nesse sentido, há um caráter de indeterminação no imaginário social. Para discutir o imaginário social sobre a cidade brasileira nos finais do século XIX e princípios do XX, exploramos a produção literária da época, uma evidência transparente. Em vez disso, há diferentes arranjos de forças, menos ou mais poderosas, a partir dos quais as capacidades de um observador se tornam possíveis.” 5 “A estrutura de uma sociedade se estabelece a partir de suas significações imaginária; estas, no entanto, são de natureza peculiarmente ambíguas. De um lado, têm o caráter de postulados, o que implica uma seleção das facetas da dimensão de referência; de outro, a significação imaginária ultrapassa essa fixação por não ter um ‘núcleo de significação’”. (ISER, 1996, p. 254) 80 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX particularmente romances e peças de teatro.6 A relação das ciências sociais com a literatura não constitui uma novidade no mundo acadêmico. Mas é importante salientar alguns aspectos dessa relação. Desnecessário dizer, explorar a literatura para compreender, pelo prisma das ciências sociais, um período histórico não significa desenvolver uma análise ou crítica literária. Tampouco se pretende entabular uma “sociologia da literatura” no seu sentido “tradicional”, cujo objetivo principal é identificar e caracterizar as bases socioculturais sobre as quais se erguem as narrativas, as formas, os gêneros, as instituições, os sujeitos e o mercado da produção literária. Partimos, inicialmente, da premissa que a literatura é muito mais do que espelho ou resposta de uma sociedade. Ela fornece novas perspectivas de ver o mundo, as coisas e as pessoas. Institui imaginários sociais. A literatura comove, diverte, provoca estranheza e, com isso, exerce efeitos sobre modos de pensar, sobre atitudes coletivas e ideologias. Devemos levar em consideração o fato de que as narrativas literárias contêm noções, descrições, interpretações de eventos pessoais e coletivos que são, de per si, uma forma valiosa de conhecimento dos fenômenos culturais. Além do mais, o “modo de doação”7 da literatura não se constitui apenas pelo seu ser ideativo (mensagens, aspectos da significação e da comunicabilidade da obra, questões miméticas e relações cognitivas-afetivas estabelecidas entre o leitor/ouvinte e a obra literária), mas também pela sua “materialidade” (disponibilidade do produto, o material impresso, a comercialização e a forma de apresentação gráfica da obra). Em resumo, o ponto fundamental a ser discutido sobre o uso do texto ficcional para a compreensão de uma época diz respeito ao fato de que a literatura afeta o “estado de espírito” dos leitores. Mais especificamente, evoca simultaneamente sensações interiores (mood) assim como um clima atmosférico, algo em volta das pessoas e que sobre elas exerce uma certa influência “física” ou “corporal”. O texto literário tanto provoca fruição pela experiência estética e de identificação do leitor com o texto (o que Wolfgang Iser (1996) 6 A pesquisa que circunscreve o presente capítulo utilizou de 40 romances brasileiros e 16 peças de teatro publicados aproximadamente entre 1880 e 1920. 7 Na concepção fenomenológica husserliana, o “modo de dar-se” equivale ao modo de ser do objeto estudado. Paulo César Alves 81 chama de “efeito estético”) quanto cria uma realidade extra-linguística. O texto se escreve e se prova em função do “horizonte de expectativa” do leitor. (JAUSS, 2002) Ou seja, a literatura instaura uma ontologia (GRUMBRECHT, 2014); um modo fundamental do texto (enquanto fato ideativo e material) de entrelaçar com realidades existentes fora dele. No Brasil da passagem para o século XX, a literatura tornou-se mais acessível a vários segmentos do público letrado.8 Na “grande encruzilhada” (COUTINHO, 1986, p. 5) de correntes literárias existentes da época, o “movimento artístico realista” destacou-se. Trata-se de um movimento que floresceu com a chamada “geração de 1870”. Uma geração interessada pelas coisas materiais, pela convergência entre sociologia, pelo darwinismo e impulso humanitário ao “progresso” e à “civilização”, pelo espírito de observação e de rigor fornecidos pela ciência (padrão de pensamento e conduta tido como essencial para explicar o mundo). O realismo está interessado na verossimilhança; na seleção de fatos que, unificados, apontam para uma direção, para valores éticos-morais, tão característicos dos chamados “romances de tese”. O realismo preocupava-se em incitar à empatia, à identificação de lugares e acontecimentos; em criar uma proximidade entre o leitor e uma dada realidade social. Nos romances e peças de teatro, os protagonistas se enveredam nos contextos plurais oferecidos pela cidade. O mundo que surge nos romances do período é composto usualmente por funcionários públicos, donos de botequins, empregados do comércio, lavadeiras, prostitutas, mulatos, homossexuais. As estratégias discursivas de persuasão, sedução, credibilidade e a autoridade das palavras são utilizadas para expor a “conduta civilizada”, para a construção de novos modelos de sociabilidade. O realismo, portanto, tem uma clara proposta pedagógica; uma proposta que preserva, em grande medida, o mito iluminista de que os problemas sociais se resolveriam mediante o aperfeiçoamento intelectual das multidões, com a disseminação do conhecimento e da ciência. 8 Em 1872 a população brasileira era de 9.930.478 habitantes, sendo que 84,2% eram constituídos por analfabetos. No final do século, a taxa de analfabetos diminuiu. Conforme o censo de 1900, o Brasil contava com 17.438.434 e 75,5% desse total eram de analfabetos. Nos grandes centros urbanos esses valores adquirem uma nova proporção. (RENAULT, 1987, p. 17) 82 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX O fin de siècle e o fascínio pela cidade [...] Decididamente, precisava partir para o Rio, para a sua independência ... a grande independência das cidades grandes!” (Julia L. Almeida, A Silveirinha, 1997[1914], p. 226) [...] tudo o que era original, extravagante e absurdo, morreu, ou fugiu com espanto aos silvos do trem de ferro! Presentemente nem o medo de bexiga é como era!” (ALMEIDA, J. L. A Família Medeiros, 1894, p. 323) As duas epígrafes, retiradas de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), renomada romancista e teatróloga, aclamada tanto pelo o público quanto pela crítica do princípio do século XX, sintetizam a ambivalência sobre a cidade demonstrada pelos nossos escritores. É muito comum na literatura ficcional e dramatúrgica da época expressar a cidade como um “ente” que inspira uma atitude tanto de admiração e excitação quanto de preocupação e pessimismo. As epigrafes evocam um “estado de espírito” e um “clima atmosférico” característicos do “romance fin-de-siècle” – termo francês que designar uma atmosfera relacionada à ideia de decadência, de “sensação de fim”, caos, morte, mas também a de renascimento, de novos projetos e promessas para o século que se iniciava. Uma ambivalência reveladora de neofilias e neofobias da cidade, ou melhor, da metrópole. O fascínio do literato pela grande cidade é fato bem conhecido pelos historiadores. Fascínio gestado no processo das transformações materiais e sociais – a “modernidade” – ocorridas ao longo do século XIX. A cidade condensava o impacto social e as tensões psíquicas causadas por essas transformações. (VELLOSO, 2010, p. 52) A metrópole era o símbolo da civilização e Paris o seu emblema. No cenário nacional, o Rio de Janeiro era o espaço mítico e simbólico da nação. O local onde “aconteciam as coisas”. Era quem traçava “os contornos de uma identidade-síntese através de uma cultura urbana de massas”. (LOPES, 2000, p. 22) Era usualmente visto, pela população letrada, como o espaço da consolidação de uma nova moral e ordem sociocultural que despontava no país. O poeta, professor e jornalista Figueiredo Pimentel (1869-1914) expressou esse ideal na sua coluna “Binóculo” (na prestigiosa Paulo César Alves 83 Gazeta de Notícias) ao dizer a famosa frase – “O Rio civiliza-se”. Pimentel era o exemplo do “homem civilizado”, elegante, atento a última moda. Vestia roupas cortadas pela alfaiataria do Almeida Rabelo (rua do Ouvidor), calçava-se no “Incroyable”, usava camisas da Casa Coulon e praticava o five-o-clock- tea nas rodas elegantes em Botafogo e Laranjeiras. (MEADE, 1997) O crescimento do mundo urbano desempenhou um papel importante no processo de modernização da sociedade brasileira pois, entre outros aspectos, exprimiu a superação da sociedade patriarcal, personalista, movida a tração humana (escravo), anti-igualitária do período colonial. A grande cidade representava a superação do passado, visto como “atrasado” e, ao mesmo tempo, apontava para um futuro. Mas, como veremos, um futuro a ser conquistado. O ideal de progresso a ser adquirido está sempre presente nos romances, seja de forma explícita ou não. O Rio de Janeiro, “cartão de visita do país”, é uma cidade que vivenciou, no século XIX, um crescimento urbano acelerado. Chegou ao final do século XVIII com uma população estimada em 50 mil habitantes, sendo a maioria composta por negros e escravos. Com a chegada da corte portuguesa em 1808, o Rio de Janeiro ampliou sua centralidade para os interesses nacionais, tornando-se o mais importante centro comercial do país, com mais de um terço de todas as exportações e importações da colônia passando pelo seu porto. Era o maior mercado de escravos das Américas. O número de negros e mulatos na rua despertava a curiosidade dos visitantes. Nas vésperas da Independência, a cidade contava com 116.444 habitantes (1821), sendo 58.895 composto por homens livres; 74% da população (86.323 indivíduos) viviam nas freguesias urbanas e suburbanas da cidade. (SOARES, 1992) Após 70 anos (1890), a população do município pulou para 522.651 habitantes; 80,9% (422.756) moravam nas freguesias urbanas e suburbanas; um pouco mais de 12% da população viviam em cortiços; aproximadamente 111.935 eram de estrangeiros. (ENGEL, 1989, p. 166) O crescimento urbano expandiu a cidade, aguçou a heterogeneidade e ao mesmo tempo a fragmentou em zonas com características um tanto particulares (regiões de moradia para as classes mais altas, subúrbios, cortiços, centro comercial, áreas de lazer), 84 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX ocupadas por diversos tipos sociais.9 Assim, ao lado de um olhar da cidade como espaço “moderno” e “civilizado”, há também o olhar de fragmentação. A complexidade do crescimento urbano também impõe necessidades de normatização da vida cotidiana e aparelhamento de instituições sociais e políticas para lidar com elas. Em outras palavras, as novas configurações do mercado capitalista (cada vez mais diversificado e onipresente) e a burocratização do Estado impunham rearranjos sociais. Fundamentalmente, o mundo urbano se impessoalizava e, no dizer de Gilberto Freyre (1996), feria paulatinamente as relações sociais baseadas no caráter “pessoal” do domínio senhorial, colonial. O crescimento urbano brasileiro está diretamente relacionado com a “cultura de reforma”. Como bem argumenta Ângela Alonso (2002), o final do século XIX no Brasil, particularmente nos grandes centros urbanos, caracteriza-se por uma “cultura de reforma” que paulatinamente enfraqueceu as instituições sustentadas pelo Império. Abalado pelas “questões sociais” (como a abolição da escravidão) e pelos conflitos entre Estado e Igreja, o Império se desestabilizou. Com isso, ampliou-se o campo de possibilidades para novas formas de ação coletivas. Em consonância com a análise de Sidney Tarrow sobre movimentos sociais, Alonso observa que a “crise política” contribuiu para abrir vias inéditas de ação para atores sociais até então alijados dos centros de decisão.10 Paralelo (ou mesmo decorrente) à modernização da infraestrutura e à expansão de novas formas de ação coletiva houve maior visibilidade da palavra pública. A estrada de ferro, o telégrafo e a impressa, entre vários outros fatores, agilizavam a disseminação de “novidades”, instituíam necessidades, desejos, ansiedades e esperanças para diferentes setores da população. 9 O Teatro de Revista revelou, em grande medida, hábitos e costumes de diversos segmentos da cidade. Como observa Süssekind (1986, p. 16, 17), esse gênero dramático “[...] espacializava a história, vivida como um passeio pelas ruas, praças e paisagens do Rio”. 10 Sidney Tarrow (2009, p. 18) argumenta que “o confronto político é desencadeado quando oportunidades e restrições políticas em mudança criam incentivos para atores sociais que não têm recursos próprios. Eles agem través de repertórios de confronto conhecidos, expandindo-os ao criar inovações marginais. O confronto político conduz a uma interação sustentada com opositores quando é apoiado por densas redes sociais e estimulado por símbolos culturalmente vibrantes e orientados para a ação. O resultado é o movimento social”. Paulo César Alves 85 Na passagem para o século XX, há um crescimento significativo de indivíduos que têm acesso a jornais, revistas e livros. O crescimento do número de tipografias e livrarias no país e as tiragens de jornais são indicadores do prestígio das “letras”. (CRUZ, 2000; HALLEWELL, 1985; MACHADO, 2001; MACHADO NETO, 1973) Havia uma ideia iluminista de que a escrita é um dos meios fundamentais para se abrir horizontes, para expressar opinião pública, para colocar nas mãos das homens informações verdadeiras e úteis, para estar mais afinado com a “moda internacional”.11 Em suma, para o desenvolvimento de condutas tidas como “civilizadas”. A literatura era um meio ameno para satisfazer esses anseios. Nesse contexto, o “mundo da literatura” adquiriu certa aura de sacralidade e, por conseguinte, o papel do literato ascende. Coube, principalmente a ele, expressar o “estado de espírito”, o “clima atmosférico” ou telúrico da grande cidade. “Qualificado” ou “legitimado” a emitir opiniões, avaliar acontecimentos, filtrar tendências e “sensibilidades coletivas”, o intelectual-literato pretendia traduzir em palavras e sentimentos o que acreditava ser vivido por setores da população. A Conquista [1899], romance de Coelho Neto (1864-1934), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e consagrado em 1928 como “Príncipe dos prosadores brasileiros”, sintetiza a atração pela cidade grande. Escreve Coelho Neto (1985, p. 11-12) sobre o personagem Ruy Vaz (representação de Aluísio de Azevedo): E fez-se de rumo para o Rio, a cidade ideal dos que têm na alma uma aspiração. E com ele a divisava através da fantasia! Uma cidade suntuosa, culta, intelectual e nobre, onde os artistas eram olhados com admiração e respeito, como em Florença, nos tempos dos Médicis, quando, diante de Cosme, o Magnífico, Miguel Ângelo animava com o seu cinzel vital os mármores impassíveis e fazia irradiar a tela com a magnificência grandiosa das suas tintas. 11 É interessante chamar atenção para o fato de que o governo brasileiro começou a ter maior preocupação com as instituições públicas de ensino a partir do chamado “tempo saquarema”, no meado do século XIX. (MATTOS, 1987) 86 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX Nesse mesmo romance, a conversa entre Fortunio com Anselmo (o próprio Coelho Neto) é significativa: – Ai! Ai! – suspirou Fortúnio. Quem me dera a minha terra! – Ora, a tua terra ...! Por que vieste? – Sei lá! – Vieste atraído pela vida. Que diabo querias fazer em Maceió? Nós temos muita saudade da terra em que nascemos, por chic: a prova é que nenhum de nós pensa em retornar aos penates natais. A vida é aqui, meu amigo [...]. (COELHO NETO, 1985, p. 188) Casa de Pensão [1884], romance que questiona valores que balizavam alguns juízos coletivos da época, escrito pelo maranhense Aloísio de Azevedo (1857-1913), é um outro exemplo interessante sobre o “mito Rio de Janeiro”. Amâncio, personagem principal do romance, sente-se enfastiado com a vida na província do Maranhão. Nunca saíra do Maranhão; vira de longe a corte através do prisma fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de Janeiro afiguravase-lhe uma Paris de Alexandre Dumas ou de Paulo de Kock, uma Paris cheia de canções de amor, uma Paris de estudantes e costureiras, no qual podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como no diabo da província [...] Queria teatros, bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas, passeios fora d’horas, a carro pelos arrabaldes. (ALOÍSIO DE AZEVEDO, 2005, p. 760) Amâncio deseja ‘gozar sem limites’, ter a ‘surpresa de uma outra vida’, ‘de um mundo vasto, enorme, tão enorme, que sua imaginação mal podia delinear’, de ‘boas conquistas’. ‘A corte era ‘um Paris’, diziam na província, e ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas aventuras, cenas imprevistas, impressões novas, e amores – oh! amores principalmente’. (ALOÍSIO DE AZEVEDO, 2005, p. 770) Paulo César Alves 87 O Rio de Janeiro como sonho de glória, desejo e volúpia, está presente em muitos romances da época. A lista é grande. Lembremos apenas de dois exemplos. O primeiro refere-se a uma idealização da cidade. Em O Paroara (1889), romance de feições etnográficas de Rodolfo Teófilo (1853-1932), o Dr. Vasconcellos, advogado pobre que emigra para Amazonas, queixa-se: A Capital federal fatalmente o attrahiria, não como o azylo dos talentos desprotegidos, mas como um mundo estelar onde brilham os astros de primeira grandeza. E que de ovações não o esperavam na sociedade fluminense, sempre ávida de novidades e de escândalos! Os sábios o levariam ao seu aerópago e os tolos o incensariam com o thuribulo da lisonja. O mundo oficial cortejando-o e o chefe da nação investindo-o no mais elevado cargo da magistratura brasileira. (RODOLFO TEÓFILO, 1899, p. 263) O segundo exemplo descreve a experiência ao se chegar na Capital Federal. Laura, personagem do romance O marido da Adúltera [1882] de Lúcio de Mendonça (1854-1909), ao recordar em carta a sua chegada ao Rio de Janeiro, escreve: Eu estava alheada de tudo mais que não fosse aquele estranho cenário em que me via: sentia-me invadida de uma sensação suavíssima, de uma voluptuosidade superior: parecia-me que fora nascida e criada naquele centro civilizado, que também eu tinha toda a gentileza moderna daquela moça de penteado alto e vestido cor de cinza [...]. (MENDONÇA, 1974, p. 38) O teatro muito ajudou na instituição de imaginários sociais relativos ao mundo urbano. Exemplo significativo é o Teatro de Revista, sobretudo a partir dos anos 1880, no qual a cidade é o centro de atenção.12 Nas suas peças, a 12 Flora Sussekind (1986) observa que subterraneamente a invenção do Rio de Janeiro transmutava-se em invenção do carioca, e nesse processo se inventava o próprio brasileiro, como ele seria vendido ao mundo: malandro, sensual, musical, tendo o humor e o jeitinho como armas, o direito à preguiça como bandeira e a resistência a toda ordem estabelecida como estratégia de vida. O tipo-síntese do carioca-brasileiro seria o perfil de um europeu tropical. 88 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX grande cidade expressa de forma contundente fortes sentimentos, significações, valores. É importante lembrar que o Teatro de Revista foi um dos mais importantes entretenimentos coletivos nos fins do Império e primeiros anos da República. Obteve um sucesso de público que era dificilmente alcançado por outras modalidades da dramaturgia brasileira. (CACCIAGLIA, 1986; FARIA, 2012; MAGALDI, 2001) Talvez mais do que o romance, o teatro alcançava uma maior gama de categorias sociais. Não requerendo grande competência em termos de leitura, podia atender mais amplamente um público recém alfabetizado. Cabe também chamar atenção para o caráter instantâneo e imediato do teatro em geral: a presença do ator auxilia significativamente na criação de um elo entre público e espetáculo. Para o historiador francês, Christophe Charle (2012, p. 23), a simultaneidade da emoção ou da reação provocada na plateia sob a luz dos lustres, que na época permanecem acesos, estabelece uma interação de efeitos morais e políticos imediatos. Assim, é compreensível que o teatro tenha sido, durante o século XIX, um dos principais palcos para proclamações, manifestações, comemorações e apupos políticos. É o caso do Teatro de Revista. Caracterizou uma época e um espírito para se referir à cidade. Sob um manto de ironia, verve satírica, irreverência, apologia, o Teatro de Revista apresentava a cidade através de diversas esquetes, quadros de fantasia e de encantamento. Cenários reproduzindo paisagens do Rio de Janeiro eram constantes nas peças. Apenas para mostrar um exemplo: a peça A Capital Federal (representada pela primeira vez no dia 09 de fevereiro de 1873, no Rio de Janeiro), do mais famoso revisteiro da época, Artur Azevedo (1855-1908). Sob um cenário feérico do Rio de Janeiro (cena do quadro final do primeiro ato) um bonde elétrico passeia sobre os arcos. Uma verdadeira apoteose e um convite aos aplausos. Eusébio, ingênuo sertanejo em visita a cidade, “levantase entusiasmado pela beleza do panorama. Eusébio – Oh! A Capitá Federá! A Capitá Federá!. (Cai o pano)”. (ARTUR AZEVEDO, 1987, p. 349) A epifania da cidade, tal como descrita por Lúcio de Mendonça, Coelho Neto, Rodolfo Teófilo e Artur Azevedo, constitui o aspecto mais visível na vasta produção literária da época13. É a cidade como espetáculo. Cidade 13 No romance realista brasileiro, o campo é usualmente visto sob duas perspectivas: como um ambiente simples, autêntico e sadio ou como atraso, pobreza e doença. A primeira, uma visão urbana e idealizada Paulo César Alves 89 feérica. Mas o que diz precisamente essa imagem de sedução? Aonde está exatamente o seu encantamento? A grande cidade está fundamentalmente associada a uma sensação profunda (e as vezes indescritível) de realização. Mais precisamente, associada a uma perspectiva ou possibilidade de realização, mais do que propriamente de completude ou efetivação. Relendo os trechos acima apresentados, pode-se observar que a cidade significa primordialmente um local de oportunidade e esperança. Sua principal grandeza está na expectativa do que ela pode oferecer. A cidade é o “campo de possibilidades” para formulação e implementação de projetos ou linhas de ação. E projeto, lembremos, consiste em uma antecipação de ações futuras cuja possibilidade prática de desenvolver a ação projetada depende do quadro imposto pela realidade da vida cotidiana e pelo estoque de conhecimento à mão. (SCHUTZ, 1973) Como toda idealização, o projeto traz seu próprio “horizonte de indeterminação” no que se refere ao futuro. A grande cidade não é concebida ou desejada de modo homogêneo pelos indivíduos. É o espaço ideal para realização de diferentes projetos, anseios e ideais: o de “ser moderno”, o da satisfação material e carnal, do mérito, da ascensão social, do reconhecimento. A cidade instituía um “espetáculo do consumo” ou um “espaço de sedução”, no dizer de Renato Ortiz (1991). Afinal, a grande cidade amplia espaços religiosos, de curas, de trabalho e de entretenimentos, como o salão de bilhar e o bordel de luxo (criação tão peculiar da belle époque e tão cuidadosamente retratada na prosa debochada e irônica de Hilário Tácito (1885-1951), em Madame Pommery (1920). As vitrines e magazins expõem uma maior diversidade de objetos de consumo, despertando a gula nos olhares dos transeuntes que passavam a circular com mais facilidades pelas ruas da cidade. Nos fins do século XIX, o erotismo, a pornografia, a prostituta de alta classe, as fotografias (entre elas, as clandestinas do nu (ou estilizada) do campo. O que se enfatiza não é propriamente o mundo rural, mas uma contraposição da vida urbana. Nessa perspectiva, os romances da época quase nada falam sobre as condições da vida rural, do trabalho agrícola. Na outra perspectiva enfatiza-se a falta de recursos, as intempéries do clima, a seca. Exemplo marcante é Rodolfo Teófilo (1853-1932). No seu romance A Fome (1890), cujo tema central é a seca, Teófilo descreve cenas escabrosas, como a de uma mulher que, não de todo morta, é atacada pelos urubus. O banditismo, a retirada, a prostituição, o fanatismo religioso, o abuso da autoridade são temas recorrentes em vários romancistas da época, como José do Patrocínio (1853-1905), Domingos Olímpio (1850-1906), Manuel de Oliveira Paiva (1861-1892), Antônio Sales (1868-1940), Afonso Arinos (1868-1916). 90 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX feminino que fascinam o voyeur) tornam-se mercadorias mais disponíveis nos grandes centros urbanos brasileiros. (EL FAR, 2004; MENEZES, 1992; PRETI, 1983; SOARES, 1992) O lado escuro da urbe Como já observado, para os nossos literatos Paris é o grande modelo, o epicentro da “civilidade”. Embora se espere que venha a tornar-se a “Paris Tropical”, o Rio de Janeiro não é (ainda) Paris. Essa comparação contém um aspecto que deve ser levado em devida consideração: a nossa situação é questionada pelos parâmetros de um modelo de civilização concebido para uma realidade exterior a nossa. Lembremos que “processo civilizatório” é interpretado na época por uma “chave-maior”: o esquema evolucionista. Darwin foi autor de referência na época. Na escala evolutiva, a sociedade brasileira encontrava-se em posição de atraso. Constituíamos uma “subcultura europeia”; inferior por ainda integrar determinados elementos arcaicos, coloniais. Enfatizemos: “determinados elementos”, não a totalidade de um passado. Para muitos dos nossos escritores, estávamos “condenado” pela presença maciça de uma raça mestiça e por um meio hostil, tropical. Pelo esquema evolucionista era crucial identificar e ultrapassar determinados entraves que dificultavam a conquista da “civilidade”. Mas, a conquista da modernidade é também objeto de preocupação. Se a cidade é palco de admiração e excitação é, ao mesmo tempo, objeto de atormentamento e ansiedade. Que imaginários a literatura ajudou a instituir sobre os entraves ao progresso, sobre o lado escuro da urbe? Em primeiro lugar, deve-se levar em devida consideração as premissas do “movimento” estético realista dominante na época. Como já observado, um ponto fundamental desse “movimento” está na sua preocupação em narrar o cotidiano, em fornecer amplas descrições de ruas, dos subúrbios (“o refúgio dos infelizes”, no dizer de Lima Barreto), de ambientes e hábitos populares, do “frege tresandando a azeite e sardinha”,14 em perscrutar o típico e o lugar-comum. No Teatro de Revista, às vistas do 14 Frege era a designação popular de restaurantes de baixa categoria. Paulo César Alves 91 público, desfilavam a moda, a política, os pequenos crimes, as desgraças, as cocotes e a coquetterie, as alegorias da imprensa, da doença. A cidade era exibida e banalizada. Carlos Malheiro Dias (1875-1941), que causou escândalo com o seu romance, A Mulata (1896), faz, logo no primeiro capítulo do livro, um interessantíssimo resumo da proposta realista-naturalista: Assim, na literatura, os homens procuram estudar a grande alma humana, ou um sentimento, ou uma doença dos sentidos, uma enfermidade moral, um caso estranho de temperamento, uma vida levada a empurrões pela fatalidade, tudo o que ensina a desculpar cristianamente os nossos semelhantes, no que eles têm de mau ‘e que só o mundo lhes deu’, tudo o que ensina a compreender, tudo o que ensina a exaltar, tudo o que desperta dentro de nós a piedade, a caridade, os sentimentos bons. (DIAS, 1975, p. 44) No afã de estabelecer uma “objetividade descritiva”, um estreito liame entre a obra ficcional e o mundo social, o realismo usualmente procura perscrutar o típico, o lugar-comum da vida cotidiana. E para conseguir esse objetivo, o escritor “vasculha” a cidade, desvenda-a pelo olhar de um “estrangeiro na própria terra”. Trata-se de um movimento artístico que pressupõe a existência de um observador “neutro”. Mas, é importante chamar atenção, observar uma coisa é ter consciência dela. Tem um significado ligado aos usos que o observador dá ao que vê. Assim, o observador é sempre alguém que vê algo como escrito em um sistema de convenções e restrições. “Convenções” no sentido de uma pluralidade de forças e regras que compõem o campo no qual a percepção ocorre. Assim, a visão é sempre múltipla, sobreposta aos outros objetos e desejos. O observador realista considera-se “científico”, “racional” e “objetivo”. Contudo, seu olhar é de flâneur ou de voyeur. Um observador ambulante, formado pelas novas configurações do espaço urbano, por novas tecnologias, novas funções simbólicas das imagens. Para ele, a cidade é paisagem que, sensorialmente, lhe atinge o olhar, despertando-lhe curiosidade, apossando-se do saber transmitido pela observação e por notícias orais. (BENJAMIN, 1989) João do Rio (1881-1921) nos fornece um significado de 92 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX flanar. Tinha fama de ser dândi, fumava cigarrilha gianaclis, usava capote macfarlene e era membro da Academia Brasileira de Letras. Em A Alma encantadora das ruas escreve: Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a distinção do perambular com inteligência [...] A rua é a civilização da estrda. (JOÃO DO RIO, 2007, p. 17-18, 25) O flanar especializa a cidade. Está muito presente em romances brasileiros, a exemplo de Recordações do escrivão Isaias Caminha [1909] e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) de Lima Barreto (1881-1922); A viúva Simões (1897), de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934); A Capital Federal (1893) e A Conquista (1899) de Coelho Neto (1864-1934); Dois metros e cinco (1905) de Cardoso de Oliveira (1865-1962), entre outros. Observa Ramos (2008, p. 149): “No passeio, o cronista transforma a cidade num salão, no espaço íntimo, mediante esse olhar consumista que transforma a atividade urbana e mercantil [...] em objeto de prazer estético e, inclusive, erótico”.15 O flâneur é o “estranho”, uma mistura de desligamento e participação. Aquele que, sendo de uma dada comunidade cultural, observa os modos de vida de outros grupos sociais para depois os reconstituir de acordo com os seus paradigmas interpretativos. Mais especificamente, aquele que não participa da tradição histórica “vivida” de um grupo, que não é parte integrante da sua biografia, mas que coloca em questão praticamente tudo aquilo que lhe parece inquestionável para os membros do grupo do qual se aproximou. É importante 15 Merece registro o romance “Dona Clarita” (1907), de Rafael Duarte (1867-1958): “É preciso acabarmos, de uma vez por todas, com essa estúpida mania de, em toda parte, se verem cozidos, amarrados, os casais. Olha-se para os Estados Unidos, um povo culto e moralizado, e, sem embargo disso, ali existe a máxima liberdade! Já não são as senhoras casadas, até mesmo as solteiras vão de braços dados com qualquer cavalheiro, e, despreocupadamente, se metem a flanar pelos “boulevards” [...] furam por entre o povo, sem se lembrar ninguém de criticá-las por motivo disso”. (DUARTE, 1907, p. 174-175) O Teatro de Revista revelou, em grande medida, hábitos e costumes de diversos segmentos da cidade. Como observa Süssekind (1986, p. 16-17), esse gênero dramático “[...] espacializava a história, vivida como um passeio pelas ruas, praças e paisagens do Rio”. Paulo César Alves 93 salientar que o literato da época opera cada vez mais em espaços urbanos fragmentados e desconhecidos. Portanto, seu olhar não é de parceiro. É olhar de duvidosa lealdade, de distanciamento. Está voltado para uma apreensão pragmática do outro, governado pelos interesses de uma determinada situação ou de um determinado problema. Assim, o outro é apreendido conforme interesses preestabelecidos pelo flâneur. Porta-voz da “conduta civilizada”, o literato não se identifica com as situações, hábitos e costumes populares. Afasta-se de “lugares de enclave”, de núcleos estigmatizados; desenvolve um “olhar comprazedor” ao descrever o anômalo, o patológico e a fatalidade das leis naturais. Principalmente no caso do naturalismo, o escritor tende a ressaltar o lado do terror, do feio e grotesco, dos “becos” e “vielas”, dos vícios, das anomalias, das transgressões. São espaços que representam o “outro” da civilização. Nessa perspectiva, a cidade torna-se fonte de tensões sociais. Uma das primeiras características que ressalta no romance realista (principalmente na sua vertente naturalista) é a de irritabilidade. Ou melhor, uma sensibilidade irritável que se manifesta em vários sentidos. O romancista da época usualmente se exaspera pelo barulho da cidade. O poeta, jornalista e teatrólogo Luís Edmundo (1878-1961) inicia o seu livro de memórias, O Rio de Janeiro do meu tempo (2003[1938]) lembrando aspectos gerais da cidade. Recorda dos bondes puxados a burro que “atravancam as ruas sujas e estreitas da cidade”, da ausência de arborização nos logradouros públicos e do barulho. Inúmeros vendedores ambulantes cruzam as ruas saltando os “mais histéricos pregões”. São funileiros, mascates vendedores de panos e armarinho, doceiros de caixa, baleiros, carroças de sorvetes, e “o mais vergonhoso de todos esses ambulantes [...] o leiteiro, com a esquelética vaca, que hoje, felizmente, esconde a sua tuberculose no fundo dos estábulos que recuaram para bairros distantes”. (EDMUNDO, 2003, p. 35)16 Como cidade cosmopolita, o Rio de Janeiro é composta por gente de várias nacionalidades, do inglês, do chin, do português, do turco... e do mendigo. 16 Em Silveirinha (1914), romance de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), encontramos o seguinte trecho: “– Esta cidade entorpece-me. Nem posso conceber que haja outro lugar no mundo tão barulhento. A minha primeira impressão, sempre que desço de Petrópolis, é quase de susto. Sinto um mal-estar esquisito, tal qual como se o meu corpo tivesse passado de umas mãos finas e macias para outras ásperas e calejadas ...”. (ALMEIDA, 1997, p. 198) 94 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX A abundância de mendigos que perambulavam pelas ruas do centro, principalmente à tarde, a hora do aperitivo quando a gente se mete num canto do terasse com uns amigos, para esquecer o resto e falar de coisas cá de dentro, eles vão chegando, vão parando um por um, com seus queixumes muito compridos e ladainhas infindáveis. (REVISTA FON-FON, 30 maio 1914, apud MAUAD, 2000, p. 277) A irritabilidade se manifesta principalmente contra a “massa”. Fenômeno de marcante presença a partir da segunda metade do século XIX, o advento da sociedade de massa não passou despercebido pelos nossos literatos e dramaturgos. A sociedade de massa evidencia a pluralidade humana, a heterogeneidade, desenraiza tradições, põe em cena o anonimato. Principalmente, patenteia a miscigenação, algo tão negado no repertório intelectual da época. A “massa” é um fenômeno amplamente debatido e controverso entre os escritores da época. Se para poucos é motivo de júbilo, para a grande maioria é um agregado de pessoas (o povo, a multidão) politicamente passivas, incapazes de se organizar e de expressar uma vontade própria. Demonstrando inconformismo com a “massa”, a intelligentsia da época procurou “educá-la” mediante preceitos morais retirados de “casos exemplares”, de “cenas da vida cotidiana”. São os profetas que apontam para o correto entendimento dos rumos a serem tomados pela sociedade. Como já observamos, acreditava-se no poder das ideias em guiar as ações humanas. Uma crença no poder da vontade em transformar as vicissitudes da nossa realidade social. Lembremos que Schopenhauer foi uma grande referência na época. Coelho Neto (1864-1934), no seu romance A Capital Federal [1893], escreve: “A multidão... a multidão... a promiscuidade terrível... todas as variadas escamas desse camaleão – o povo [...] tonteava-me [...] Dei alguns passos atônitos, desvairado, julgando-me perdido no oceano tumultuoso da populaça que me aturdia [...]”. (COELHO NETO, 1924, p. 76-77) A multidão está tanto na tão festejada rua do Ouvidor (“artéria da civilização patrícia”, como a chamou Coelho Neto) quanto no cortiço (que parecia “brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco” (Aluízio de Azevedo) e nos subúrbios (cujo “orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo o dia jantar e almoço, muito feijão, muita Paulo César Alves 95 carne seca, muito ensopado”, observa Lima Barreto). O povo é caracterizado pela indolência, pelas crenças atávicas, pela rudeza, falta de higiene. Para o paladino do progresso, Olavo Bilac (1865-1918) (apud PESAVENTO, 2002, p. 185), criticando a revolta popular contra a proposta de vacinação da febre amarela, em 1904, afirmava que não tínhamos povo: E não há povo onde os analfabetos estão em maioria. Quem não sabe ler, não vê, não raciocina, não vive [...] E não sei bem para que servirá das avenidas, árvores, jardins, palácios, a esta cidade – senão derem aos homens rudes os meios de saber o que é civilização, o que é higiene, o que é dignidade humana Critica-se muito os festejos populares, como o entrudo e as romarias. Lembrando o carnaval no princípio do século XX, Luís Edmundo (1878-1961): É o negro. É o branco. É o mulato. É o Brasil. É toda a nacionalidade borbulhando, estorcendo-se, saltando, bocas em os. Faces hílares, pingando suor ou zarcão. Trejeitos. Saracoteios. Chufas. Guinchos. Loucura geral. A rua coalha-se de doidos. Os que têm juízo, fogem... Os irracionais, habituados ao homem melancólico, rosnam e, desconfiados, olham-no de soslaio. E continua a multidão aos boléus, pelas ruas, sanhuda e desenfreada, na sua infatigável barulheira, sem se deter, sem diminuir, sem afrouxar aquela nervosidade que a todos desnorteia. (EDMUNDO, 2003, p. 477) A cidade é palco de desilusão, de corrupção, de engodo, de artificialismo. Nela, desvelam-se as angustias sexuais, como A Carne [1888] de Júlio Ribeiro (1845-1890), O Homem (1887) de Aluísio Azevedo (1857-1913), O Cromo (1888) de Horácio de Carvalho (1857-1933); o adultério em Flor de Sangue (1897) de Valentim de Magalhães (1859-1903), O marido da adúltera (1882) de Lúcio de Mendonça (1854-1909), O hospede (1887) de Pardal Mallet (1864-1895); o sedutor sem escrúpulos, como O Simas (1898) de Antônio Papi Junior (18541934), Clara dos Anjos (1923-24) de Lima Barreto (1881-1922); o sadomasoquismo, a “perversão sexual”, “prazeres envilecedores”, a vileza, hipocrisia e “estados morbosos congênitos”, como nos romances O Bom Crioulo [1895] e A 96 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX Normalista [1893] de Adolfo Caminha (1867-1897), A Mulata [1875] de Carlos Malheiro Dias (1875-1941), Morbus (1898), de Faria Neves Sobrinho (18721927), Hortênsia (1888) de Marques de Carvalho (1866-1910). São romances que revelam a solidão, a vulnerabilidade, a perda de identidade, a vida sofrida. Em síntese, como bem resume Nicolau Svcenko (1989, p. 20), A transformação do espaço público, do modo de vida e da mentalidade cariocas foi regido por quatro princípios básicos: a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante, uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade – que será praticamente isolada para desfrute exclusivo das camadas aburguesadas – e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense. Mas modernidade é também motivo de irritabilidade. Se a metrópole é emblema da “civilização” é também espaço de perigo, tumulto e desastre. A grande cidade é um misto de fascínio e terror. Assim, os romances da época preocupam-se com iniciação na vida urbana. O escritor toma ares de cicerone, alerta sobre as virtudes e vícios dos novos tempos que se desabrocham com a modernidade. O realismo enfatiza as novas temporalidades, velocidades, experiências de fluxos da metrópole. Mas, se o progresso é inevitável, a mudança inquieta. Em uma crônica de 1909, João do Rio (1881-1921) (apud PESAVENTO, 2002, p. 194) observa: A mudança! Nada mais inquietante do que a mudança – porque leva a gente amarrada a essa esperança, essa tortura vaga que é a saudade. [...] Que nos resta mais do velho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moderna é como todas as cidades modernas. Paulo César Alves 97 Olavo Bilac (1865-1918) é outro exemplo interessante. Eleito pela revista Fon-Fon Príncipe dos Poetas Brasileiros (1907) e fundador da Liga de Defesa Nacional (1916), Bilac era ardoroso defensor da modernização do Rio de Janeiro. Em 1904 publicou uma crônica da revista Kosmos louvando os trabalhos de construção da Avenida Central (obra de Pereira Passos), na qual a cidade colonial, “imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições”, chora e “as picaretas regeneradoras” entoam “um hino jubiloso”, “celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte”. Mas Bilac também guardava incertezas, inseguranças e melancolia do Rio de Janeiro que se modernizava. Em crônica datada de 1905 (Gazeta de Notícias) escreve: Interrompamos, por um momento, o coro de louvores justíssimos com que estamos saudando e exaltando a transformação da cidade, e reconheçamos que há no aspecto atual das nossas ruas uma tristeza, um ar de infelicidade, um tom de mágoa que devem merecer algumas palavras de compadecida simpatia [...] Ora, todos os cariocas, nascidos e criados nesse boa cidade, devem estar vivendo, como eu, dias de infinita melancolia, ao assistir à queda e ao desaparecimento dessas casas anciãs, onde foram felizes ou infelizes [...] Ah! Nem tudo é beleza e encanto nesta lufa-lufa benéfica em que se vê a cidade! Os hinos de louvor são justos: mas também deve haver lugar para um pouco de melancolia, - porque as causas de melancolia são muitas... (DIMAS, 2006, p. 732-735) Antes, em crônica publicada na revista A Bruxa (1896), Bilac foi ainda mais contundente. Pois que! Com todos os refinamentos, com todos os seus séculos de progresso material e moral, essa civilização se vê hoje, em 1896, a braços com o pavor de um milhão de problemas insolúveis [...] e, oh espanto! Oh irrisão! Essa mesma civilização que, a pretexto de nos melhorar a sorte, nos quer dar todas as suas dúvidas, todas as suas crenças, todos os seus desesperos! Ora, bolas para a civilização. (DIMAS, 2006, p. 33) 98 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX A Capital Federal [1893] de Coelho Neto (1864-1934), romance que narra a visita de um mineiro ao Rio de Janeiro, sintetiza a ambivalência de sentimentos sobre a grande cidade quando o Dr. Silvério Torres, “deputado de oposição, socialista”, conversa com o personagem principal (Anselmo): [...] a miséria é um resultado da abundância, como a lama é o resultado do excesso de chuva [...] ‘Queres ver um país de fome? Entrai num país de milionários’ [...] O Rio, disse-me mais, vive sitiado pelo varegista. Nós não temos esquinas, temos vendas, barreiras onde o pobre vai diariamente pagar o seu imposto [...] O taverneiro estabelecido torna-se, em pouco tempo, o senhor do quarteirão [...] É das vendas que vêm os grandes desesperos para o proletariado; é das vendas que partem as difamações mais cruéis [...] A venda é o terror do pobre porque é o escoadouro do seu trabalho e, muitas vezes, a causa das suas lágrimas”. (COELHO NETO, 1924, p. 256-259) Mas, cabe observar nesse mesmo romance, Anselmo lembrando-se do Rio de Janeiro, ao retornar para a sua terra, no interior de Minas Gerais: Sonho, puro sonho [...] Porque a verdade é que todos quantos caminharam pelas ruas da cidade excelsa gabam-lhe as maravilhas e de todos ouvi narrações de aventuras que, nem mesmo em sonho, concebi [...] Eu só não vivi: atravessei o Rio como uma sombra perdendo o fio do prazer quando já o tinha seguro e vendo diferentemente de todos, através do meu tio e do meu sonho. Assim foi que achei a rua do Ouvidor ínfima e acanhada [...]. Todos os fatos experimentados, sem remate, interrompidos em meio, justamente como nos sonhos. Teria sido embriaguez? [...] Não creio. Sonhei, foi sonho decididamente. (COELHO NETO, 1924, p. 268-270) E a conclusão desse raciocínio (e do romance) é deverás interessante. A vida é um sonho. Quem sabe se não sonhei? Mas lá fora há uma voz que indaga – se cheguei do Rio [...] Então não, não é Paulo César Alves 99 sonho [...] Então os sonhadores são os outros que me fizeram a descrição do Rio, sonhadores ou mentirosos, sonhadores, em suma, porque a mentira é um produto do sonho [...] E a vida é isto: sonho ou tedio. Antes sonhar”. (COELHO NETO, 1924, p. 270-271) Conclusão O presente capítulo procurou identificar alguns elementos que compõem o imaginário social sobre a cidade na passagem para o século XX. Mais especificamente, analisou, dentro dos parâmetros das ciências sociais, o papel que a elite literária desse período desempenhou, através da obra ficcional e dramatúrgica, no processo de institucionalização de significados relacionados ao mundo urbano e à “modernidade”. Dominante na época, o movimento estético realista procurou identificar e questionar as mazelas do mundo social, dos seus atores e costumes, sem com isso perder o caráter lúdico, prazeroso, ornamental da literatura. Sem perder o “sorriso da sociedade”, como o médico, romancista e crítico literário Afrânio Peixoto (1876-1947) observou a respeito da literatura. Ao narrar ações ocorridas no mundo urbano, a literatura instituía, de forma explícita ou não, imaginários sobre novos modelos de sociabilidades, sobre os novos tempos que despontavam com o progresso e a modernidade. Ou seja, com o “processo civilizatório”, compreendido por uma perspectiva evolutiva. A grande cidade foi objeto de fascínio na literatura realista. A vida urbana desponta para os literatos realistas como espaço revelador da “verdadeira condição humana”. Caracterizada por uma vasta superfície que se desdobra além do olhar, e habitada por um imenso contingente de seres e coisas diversas, a metrópole abre “campos de possibilidades” para sonhos de glória, desejo e volúpia. Nela se instituem novas formas de sociabilidade tidas como sinais indicadores do processo civilizatório. É o emblema de uma nova moral e ordem sociocultural que desponta com o advento da “modernidade”, das conquistas tecnológicas e científicas, da idealização de “ser civilizado”. Mas a grande cidade é também um espaço ambíguo. Se é palco do progresso e do 100 A MODERNIDADE E O CARÁTER SUBLIME DA CIDADE NA LITERATURA DO FIM DE SÉCULO XIX refinamento espiritual, é também local da tentação, da corrupção e degradação, da miscigenação. A epifania da cidade está intimamente ligada ao terror do urbano. Ou seja, há uma ideia de sublime na concepção de cidade.17 Na perspectiva do movimento realista, a grande cidade representa a perda da solidez do mundo. Instaura um descompasso entre as novas formas de sociabilidade – e temporalidades – geradas pelo crescimento urbano e aquelas herdadas do mundo rural, de sobrevivências arcaicas, do personalismo, da família patriarcal. Ao identificar “cidade” e “modernidade”, o romance realista se insurge contra a identidade nacional construída pela sociedade imperial e pelo romantismo. O Brasil não se resume pela “natureza exuberante” ou pela presença do “índio”. O processo de urbanização, pelo olhar da literatura, institui uma nova identidade nacional, uma nova relação com o contexto internacional (leia-se “Europa ocidental”). Agora, analisada pela perspectiva evolucionista (e Darwin foi figura emblemática do realismo), a discussão sobre identidade nacional é feita com um outro referencial: o de civilização ou processo civilizatório. O que está em discussão é a capacidade da nação brasileira em se tornar civilizada, isto é, uma nação edificada e regida por princípios e valores objetivos e “universalistas”, como os da ciência e da tecnologia. Em outras palavras, a identidade brasileira é algo em construção, a ser conquistado pelo progresso, pelo esforço em superar os obstáculos que antepõem a sua realização. Nesse aspecto, o literato tem uma missão de diagnóstico e pedagógica. Cabe a ele traçar as vias da civilização e identificar os empecilhos que possam comprometer esses caminhos. Uma missão ambiciosa, pois não se trata apenas de contribuir para a emancipação de um passado colonial ou de condutas arcaicas, mas também de discernir a dúbia perspectiva da modernidade: por um lado, o aprimoramento do ser humano, a novos comportamentos e hábitos sociais “saudáveis” e, por outro lado, a reprodução em larga escala da miséria humana, cuja salvação será dada pelo progresso, pela a civilização. Cabe à elite civilizada, ilustrada, desenvolver um discurso competente sobre o sentido da modernidade bem como estabelecer as regras de inclusão e exclusão da cidadania. A literatura realista transmite ao leitor a importância do controle, da regulamentação, da fiscalização. Uma cidade e uma cidadania 17 Tant (1998) também identifica na literatura naturalista americana um componente sublime do mundo urbano. Paulo César Alves 101 reguladas. É importante, portanto, identificar quem são os “inadaptados” ao sistema de valores e condutas da civilização e como os “educar”. No ponto de vista da literatura, o Estado e o mercado não são instituições suficientes para concretizar, por si mesmas, o ideal de civilização. É necessário a instituição de uma nova moral e regras de condutas. Uma “ética da virtude”. O cidadão civilizado é resultado do longo processo de regulação interna da conduta. A civilização tem uma dimensão moral e simbólica que está para além da constituição do Estado e da economia. Em síntese, o romance e o teatro instituíam, em novas bases, a figura do “herói moderno”, a do “homem de saber”, racional e objetivista, daquele que se distancia da massa e seja capaz de avaliar e julgar verdadeiramente a realidade. Referências ALMEIDA, J. L. de. A Família Medeiros. 2. ed. São Paulo: Horacio Belfort Sabido Ed.,1894. ALMEIDA, J. L. de. A Silveirinha: crônica de um verão. Florianópolis: Mulheres, 1997. ALONSO, Â. Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. AZEVEDO, A. de. Casa de pensão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. (Ficção completa, v. 1). AZEVEDO, A. Teatro de Artur Azevedo. Rio de Janeiro: INACEN, 1987. 4 v. BENJAMIN, W. O Flâneur. In: BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras Escolhidas 3). CACCIAGLIA, M. 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(RAMA,1985) Nestes sentidos, estas reflexões buscam discutir a produção de dois construtores de São Paulo: a do prefeito urbanista Prestes Maia e do compositor Adoniran Barbosa, polemizando sobre os traços e sons da “cidade que mais cresce no mundo”. 105 Traços da cidade: memórias e intervenções Na sua trajetória e de forma antropofágica São Paulo destruiu grande parte do seu referencial material e alterou seu plano físico, tornando praticamente impossível recuperar vestígios da vila fundada pelos jesuítas no topo do maciço entre o rio Tamanduateí e Anhangabaú (1554), da cidade colonial construída em taipa de pilão e habitada por mulheres sós. Também quase não restaram vestígios, da São Paulo imperial, denominada de “burgo dos estudantes” (1822-1870), que contava com a presença de jovens que se deslocavam de vários pontos do Brasil para cursar a Academia de Direito do Largo São Francisco, filhos da elite, aprendizes do poder, que viveram suas aventuras e boemias dando brilho ao acanhado burgo. (GLEZER, 1993, p. 163-175) Poucos são os vestígios perceptíveis da “São Paulo – cidade do café”, dos finais do século XIX e início do XX. A chegada dos trilhos da Santos-Jundiaí (1863) é considerada como marco de mudança, a ferrovia conectou a cidade com o porto exportador/Santos e com o interior da Província/Estado, zonas produtoras de café. Os trilhos não só transportavam rápida e eficientemente o café, também traziam de várias partes do mundo, particularmente da Europa, toda uma gama de produtos, pessoas e influências, gerando e dinamizando um “vetor modernizador”. (ELIAS, 1994) Perseguir o moderno se generalizou como uma aspiração presente na cidade, nos comportamentos de seus gestores e moradores. 1 Acompanhando o relevo da área, os trilhos do trem cortaram a cidade no sentido sudeste-noroeste, marcando de certa forma o crescimento da urbe. Nas zonas oeste e sul (vetor sudoeste), buscando áreas mais altas, a 1 Modernização, modernismo e modernidade/moderno foram expressões/noções muito em uso durante o século XX, que ora se mesclavam e ora se diferenciavam: modernização se vinculou mais diretamente a aceleração das mudanças econômicas e sociais, urbanas e industriais e também englobando alterações nas formas de comportamentos; modernismo carregou significações vinculadas à cultura, mas envolvendo com múltiplos sentidos e dimensões; já os desejos e aspirações de ser moderno (de modernidade) se difundiam de modo e intensidade variáveis envolvendo pessoas, modos, modas, práticas cotidianas, urbanas e culturais. Todas estas noções foram adquirindo sentidos variados e foram redefinidas em temporalidades diversas, foram construídos e reconstruídos por vários grupos e setores. A construção do moderno, em geral, diagnosticava um presente problemático e projetava um futuro modelar, justificando ações de intervenção que, permeadas de intenções, faziam parte dos jogos de poder. 106 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO elite ocupou bairros com infraestrutura como Campos Elíseos/Higienópolis, altos da Avenida Paulista e que depois se completaria com os loteamentos da Companhia City, nos Jardins. Nestes locais foram erguidos palacetes réplicas dos europeus, surgiram novos loteamentos, novas maneiras de morar e viver, incorporando mudanças de hábito associadas às noções de civilização, luxo e elegância. Ao longo da ferrovia, nas áreas alagadiças dos rios Tiete e Tamanduateí (mais para a região Leste), zonas desvalorizadas constituíram-se em bairros operários e industriais; eram áreas baixas, úmidas e pantanosas que abrigaram precariamente uma massa de imigrantes, trabalhadores e despossuídos, que conviviam com a miséria, desemprego, analfabetismo, dificuldades com a moradia e carestia, ausência de planejamento e atenção das autoridades. Nesta fase, a expansão urbana de São Paulo esteve vinculada diretamente aos sucessos e/ou dificuldades da economia cafeeira. Além de determinar o ritmo de crescimento, o café também definia as épocas do ano identificadas como as da safra, entressafra e colheita; o comércio era movido pelo café e sofria as consequências de suas cotações; as pessoas, sua sobrevivência e até o seu temperamento e conduta, dependiam drasticamente da sorte de um único produto – o “ouro verde”. (MATOS, 2014) Sob a administração do Conselheiro Antônio Prado (1899-1910), do Barão Duprat (1911-14), Washington Luís (1914-19) e Firmiano Pinto (1920-26) a cidade foi aos poucos assumindo seu destino de metrópole. Neste período, o Diretor de Obras da Prefeitura de São Paulo era Vitor da Silva Freire (18991926), que buscou soluções aos problemas de remodelação citadina levando a frente um conjunto de intervenções, tendo como prioridade a área central. Visando solucionar os problemas urbanos e sanitários, buscou coibir velhos hábitos, disciplinando, normatizando, eliminando os indesejáveis, saneando e higienizando a cidade. Em 1910 propôs uma planificação geral para a cidade, denominado “Plano Freire-Guilhem”, que gerou polêmicas, particularmente, com o governo do Estado. Frente tal situação, contratou-se a consultoria de notório reconhecimento do urbanista francês Joseph Antoine Bouvard, que organizou um plano de remodelação da região central (do vale do rio Anhangabaú ao do Tamanduateí). Maria Izilda Santos de Matos 107 As intervenções feitas aspiravam acompanhar os padrões europeus, modernizar e embelezar cidade, alargando, nivelando, realinhando ruas do maciço central, criando parques e remodelando praças, implementando e estimulando a construção de novos prédios públicos,2 particularmente na região da Praça da Sé. Na execução foi dada prioridade à área do Vale do Anhangabaú e imediações, sendo as obras concluídas ainda nos anos 1910, as outras ações foram mais lentamente executadas no correr das décadas seguintes.3 Estes novos e polêmicos projetos transformaram a área central, dinamizando as atividades dos negócios, serviços e comércio, que se tornou amplo e variado. Expandiram-se novas possibilidades de lazer e diversões (confeitarias, cafés, lanternas mágicas), atividades culturais (pinacoteca, teatros) e intelectuais (bibliotecas, livrarias, cursos, além da Faculdade de Direito, Escola de Comércio Álvares Penteado, a Politécnica, o Mackenzie College, a Escola Normal). Buscando enfrentar estas questões urbanas conjugaram-se os esforços dos engenheiros-planejadores às políticas intervencionistas dos poderes constituídos (estado e município), neste processo junto com a questão urbana delineou-se a questão social com o crescimento da pobreza e a identificação do outro – o pobre, o negro e o imigrante.4 O “sonho americano” e a busca por possibilidades levaram a concentração de um contingente de trabalhadores na cidade, constituídos por imigrantes e migrantes e gerando um crescimento demográfico intenso.5 Em 1872, 2 O Governo Estadual centrou suas ações no saneamento e construção de prédios públicos, a Intendência ocupou-se das obras viárias e de embelezamento, enquanto a iniciativa privada erguia novas construções. Pretendia-se abandonar a imagem de atraso, tentava-se criar um centro urbano moderno, com base na arquitetura eclética. Nesse aspecto, cabe destacar as ações do escritório de Ramos de Azevedo, que projetou: o prédio do Tesouro da Fazenda, Secretaria de Agricultura, Escola Normal, Liceu de Artes e ofícios, Escola Politécnica, entre outros. 3 A reurbanização no entorno do Parque D. Pedro II, pela qual se pretendia criar uma área de lazer também visando melhorar o saneamento da Várzea do Carmo, foi implementada com modificações e desprovida da maioria dos equipamentos propostos (quadras esportivas, patinação, ginásio coberto, anfiteatro, etc), sua finalização só ocorreu nos anos 1920, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência. 4 Para enfrentar as dificuldades com a moradia buscou-se implementar projetos de vilas populares e operárias, conjuntos residenciais horizontais e geminados. Buscava-se acabar com os cortiços, propunha-se disciplinar, normatizar, sanear e higienizar os bairros e práticas dos populares. 5 Constituindo uma massa de trabalhadores na busca por possibilidades, enquanto uns dirigiam-se para a indústria e comércio, outros ficavam nas atividades por conta própria ou foram impelidos para o trabalho nas obras públicas e serviços, também se ocupavam em atividades temporárias e domiciliares, 108 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO quando São Paulo já sofria as consequências do surto cafeeiro, aproximava-se de 31.385 moradores; em 1890, este número elevou-se para 64.934 habitantes; em 1900 chegou a 239.820 pessoas e em 1920, a população da cidade mais do que dobrou, atingindo a cifra de 579.033 residentes. (BRASIL, 1926) Estes novos moradores constituíram territórios, (ROLNIK, 1992) deixando suas marcas na urbe: os italianos na Mooca e Bexiga; os japoneses na Liberdade; no Bom Retiro, os judeus; na zona da Rua 25 de Março, os sírio-libaneses e os bairros da Barra Funda, Casa Verde, Bexiga e Lavapés eram as áreas de concentração da população negra. (AZEVEDO, 2006, p. 160-170) A indústria de São Paulo nasceu à sombra dos cafezais, utilizando capitais provenientes da cafeicultura e de uma infraestrutura criada para o café. O crescimento urbano-demográfico e a indústria transformariam São Paulo, entre 1920 e 1940, a população da cidade mais que duplicou, saltando para 1.326.261 habitantes. Apesar das dificuldades enfrentadas nos finais da década de 1920 e início dos anos 1930 (crise mundial de 1929 e a queda dos preços do café, Revolução de 1930, perda da hegemonia política da elite paulista e Movimento Constitucionalista de 1932) a cidade conviveu com a expansão da industrialização, dos setores comerciais e de serviços. A “cidade do café” tornou-se industrial, num processo de metropolização, que a transformou num verdadeiro canteiro de obras. As aplicações dos lucros e capitais excedentes de diferentes atividades dirigiram-se para os investimentos imobiliários que ganharam impulso, possibilitando novas edificações, tornando São Paulo “a cidade de um edifício por hora”, com a redefinição de territórios, como novas áreas comerciais, financeiras e de moradia; se em 1920, eram 1875 novas construções; em 1930, já eram 3.922 e em 1940 atingiu a cifra de 12.490 novos empreendimentos. (MORSE, 1970, p. 365) A “febre de empreendimentos” tornou a cidade um “perpétuo vir a ser”, caracterizada pelo binômio demolição-construção, levando a estranhamentos, conflitos e exigindo novas ações e interferências, que priorizassem previsão, subemprego e emprego flutuante, ampliando uma população que garantia a sua sobrevivência na base das ocupações casuais, à custa de improvisação, de expedientes variados, eventuais e incertos, num processo que simultaneamente englobou participação e exclusão, tensões e conflitos. (MATOS, 2014) Maria Izilda Santos de Matos 109 racionalização e funcionamento, articuladas a programas integradores que procurassem controlar tensões sociais. (AMERICANO, 1962) A partir dos anos 1920, acompanhando tendências internacionais, passou-se a reivindicar um “plano geral” para São Paulo e que fosse coordenado-organizado por técnicos, entre final de 1927 e início de 1930, Prestes Maia6 propôs um projeto de intervenção urbana o “Plano de Avenidas”.7 A remodelação da cidade foi iniciada na gestão de Fábio Prado (1934-38), através de ações e iniciativas de racionalização administrativa, para tanto foi feita uma ampla reestruturação da máquina burocrática do município, com a criação de novos departamentos. A maioria das realizações no setor de obras viárias concentrou-se na região sudoeste da cidade, em torno dos bairros-jardins da Companhia City, com a abertura das avenidas Rebouças e Nove de Julho, com seu túnel, o asfaltamento das avenidas Europa e Cidade Jardim e a implantação da Biblioteca Municipal no centro. (CAMPOS NETO, 2002, p. 480) Prestes Maia assumiu a prefeitura em pleno Estado Novo (1938-45) priorizando as soluções organizadas pelo seu “Plano de Avenidas”,8 este se encontrava assentado nos princípios de centralização, expansionismo, verticalização e rodoviarismo, pelo qual a avenida era identificada como símbolo e protagonista das intervenções, como solução para as questões urbana do tráfego, crescimento e estética. Procurou constituir uma malha viária racionalizada, capaz de dar conta do crescente número de automóveis, centrou a questão do transporte na extensão de linhas de ônibus-trólebus como alternativa mais flexível aos bondes em trilhos. (GALVINO, 2006) Deste modo, centrou suas ações na finalização das obras iniciadas, e em seguida, realizou verdadeiro “bota abaixo”, agindo no tecido urbano de forma inédita, abrindo avenidas, alargando ruas e refazendo ligações viárias. Ele construiu parques, 6 Francisco Prestes Maia (1896-1965) engenheiro, urbanista e professor da Escola Politécnica de São Paulo, elaborou planos de urbanismo para Campos do Jordão, Santos, Campinas e Recife. Ocupou o cargo de diretor de Obras Públicas de São Paulo, foi prefeito da cidade, nomeado pelo interventor federal no governo paulista - Ademar de Barros (1938-45). Voltou a assumir o cargo no período entre 1961-1965. Imagem de Prestes Maia disponível em: <http://www.saopauloinfoco.com.br/prestes-maia-como-prefeito/>. 7 Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia, 1935, Disponível em: <http://www.usp.br/fau/docentes/ 8 Aquarela do Plano de Avenidas, de autoria de Prestes Maia, 1935, Disponível em: <www.vitruvius.com.br/ depprojeto/c_deak//CD/5bd/1rmsp/plans/h2pl-av/pl-av.jpg.>. revistas/read/drops/09.024/1771>. 110 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO jardins, praças, remodelou o vale do Anhangabaú, além de dar início a obras que se completariam na década seguinte (avenidas Itororó – hoje 23 de Maio, Radial Leste, Rio Branco, Sumaré, além do prolongamento da Pacaembu). A inexistência de medidas reguladoras fez com que o crescimento urbano fosse marcado pela desigualdade e heterogeneidade, a extensão das periféricas superou a capacidade dos poderes públicos de prover a infraestrutura necessária. O intervencionismo, traduzido na remodelação do sistema viário, acentuou o potencial de crescimento da cidade, entretanto, passou ao largo de questões sociais, acirrando as contradições e tensões entre centro-periferia, permanecendo o déficit de habitação, as precariedades do transporte coletivo, falta de iluminação, água, esgoto, asfalto, entre várias outras. Os anos 1950, a cidade conviveu com a aceleração da industrialização, a penetração do capital estrangeiro, a modernização da produção, a ampliação de bens de consumo, em particular os automóveis, que tornaram a sociedade mais veloz, também se tornou mais conectada pelo rádio, além de contar com um número crescente de cinemas e teatros. O ritmo da modernidade contaminava São Paulo, transformando-a em um novo território: automóveis, ônibus, caminhões, buzinas, sons e odores, o ritmo acelerado dos transeuntes, o café no balcão, a pressa, a falta de tempo, os novos magazines, os modernos edifícios cada vez mais altos. A urbe assumia o emblema da modernidade, os arranha-céus e as chaminés, “a cidade que não podia parar”. Essa intensificação produzia estranhamento, presentes nas memórias e registrada pelo olhar do estrangeiro: Em São Paulo a mão do arquiteto substitui a mão de Deus. Por que foi Deus que fez o Rio de Janeiro, jogando indiscriminadamente as montanhas contra o mar e o mar sobre as montanhas. Foi o homem que fez São Paulo, e sente-se nesta reviver a vontade sobranceira do bandeirante paulista;... trata-se agora de escalar o céu, de prender as nuvens aos cimos dos edifícios de vinte, de trinta, de quarenta andares, de esmagar as torres das igrejas velhas ou as chaminés longínquas das fábricas modernas sob enormes movimentos de cimento, numa obsessão de verticalidade. (BASTIDE, 1959, p. 129) Maria Izilda Santos de Matos 111 Nesta década de 1950, São Paulo atingiu 2.198.096 moradores, destes mais de 500.000 mineiros, 400.000 nordestinos (baianos, pernambucanos, alagoanos, cearenses). Migrantes do Nordeste e do interior do estado de São Paulo chegavam em número significativo para ajudar a erguer a cidade, a eles se somavam um novo fluxo de imigrantes do pós Segunda Grande Guerra, juntos constituíram uma mescla urbana caracterizada por contrastes, ambiguidades, incorporações e combinações desiguais, formando um mosaico de grupos étnicos com seus descendentes que, simultaneamente, desejavam se incorporar e se diferenciar, impregnando a cidade com múltiplos sotaques e tradições. A metrópole se adensava e se expandia, por um lado ocorria a intensificação da verticalização comercial e residencial, (com edifícios de mais de 30 andares e múltiplas funções, atingindo Higienópolis e a área da Av. Paulista) e reestruturação da centralidade (com o aparecimento de sub-centros em vários bairros, Pinheiros, Lapa, Santo Amaro, Brás e ampliação do centro que envolve Liberdade, Bom Retiro, Santa Ifigênia), por outro a expansão das periferias, com aumento dos contrastes, num processo de segregação de moradia, empregos, comércio e serviços. Em 1961, quando Prestes Maia assumiu novamente a prefeitura, numa das maiores votações já recebidas por um candidato, São Paulo já contava com 3.259.087 habitantes, marcados por profundas desigualdades sociais, vivendo e convivendo nacionais e imigrantes, migrantes, sobretudo nordestinos envoltos em múltiplas tensões urbanas, experiências fragmentadas e diversificadas, o que contrasta com as representações urbanas nas quais a cidade é apresentada como unidade. O crescimento urbano era pleno de nostalgia,9 de uma cidade que não podia mais se recuperar, cujas memórias se alimentavam de lembranças vagas e telescópicas, envolvendo valores tradicionais, vínculos afetivos, amizades, vizinhanças, cadeiras na calçada, serestas na garoa, feiras e festas, espaços e territórios – uma cidade que tentava escapar, por mais que em seu crescimento se estabelecessem novas formas de controle. 9 Nossas reminiscências podem ser temerárias e dolorosas se não corresponderem às histórias ou mitos normalmente aceitos, e talvez por isso tentemos compô-las de modo a se ajustarem ao que é normalmente aceito. (THOMSON, 1997, p. 51-53) 112 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO Sons da cidade: paisagens sonoras As cidades não são só caracterizadas e identificadas por suas vias, pedras, tijolos, prédios e planos, os territórios urbanos possuem polifonia e musicalidade, compondo “paisagens sonoras”,10 peculiares e diferenciadas, compreendendo, influências multifacetadas e específicas numa trama que incluí mudanças e permanências, choques e tensões, confrontos e assimilações, recusas e incorporações. Das ruas paulistanas vinham marcas sonoras desde as primeiras horas da manhã até que a última janela se fechasse à noite: diferentes vozes (idiomas, sotaques), as sonoridades do trabalho e dos ofícios (sapateiros, ferreiros, carpinteiros, entre outros), das fábricas (barulho ensurdecedor das máquinas, apito das fábricas definindo os horários dos bairros operários), os sons de apitos, as gaitas (dos amoladores), os pregões e matracas dos vendedores (padeiros, leiteiros, peixeiros, tripeiros, carvoeiros, lenheiros), os gritos dos carroceiros e carreteiros, somados aos sons das sinetas dos bondes e buzinas dos carros; adicionados ás sonoridades do sagrado, sinos, procissões, ladainhas e rezas dos cultos. Vários sons se tornavam hábitos, alguns deles eram relembrados com afeição e nostalgia numa cidade que se transformava incessantemente, impactando seus moradores e visitantes. Idiomas e dialetos eram correntes pela urbe, particularmente, nos territórios de hegemônica presença de imigrantes, os sotaques se mantinham nos descendentes, circulando pela cidade e chegando a cultura escrita. Os escritores e cronistas denominados “macarrônicos” (SALIBA, 1992) expressavam estilisticamente este hibridismo, disseminado na imprensa, em periódicos como O Parafuso, O Pirralho e outras publicações da década de 1910 e 1920. Merece destaque os escritos de Juó Bananére (pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado), seus textos foram caracterizados pela crítica social e política, denúncias dos contrastes urbanos e do crescimento 10 As paisagens sonoras se caracterizam por: – sons fundamentais (criados pelos elementos da natureza (água, ventos) e também pelas máquinas, que se tornam hábitos auditivos), – sinais (sons destacados e ouvidos conscientemente como sinos, apitos, sirenes, constituem-se em recursos de avisos acústicos, podendo anunciar um acontecimento aprazível e/ou catastrófico) e – marcas sonoras (sons únicos ou que possuam determinadas qualidades, sendo significativo ou notado pelos habitantes do lugar). (SCHAFER, 2001) Maria Izilda Santos de Matos 113 desordenado da cidade.11 Reconhecendo a instabilidade da língua e da estética, sua produção se caracterizou pela frase curta, linguagem telegráfica, misturas, enxertos, anárquicas inversão linguísticas. Tendo como base a anedota e o humor buscava capturar o momento, o contingente, o efêmero e o circunstancial; sintetizava “a artugrafia muderna é uma maneira de scrivê, chi a gentis crive uguali come dice”. Os imigrantes traziam na bagagem seus instrumentos musicais, alguns para o uso próprio e pelo gosto musical, outros para uso profissional como músicos e professores. Na cidade, eram diversos professores de canto e de instrumentos (italianos, espanhóis, alemães), alguns constituíram escolas e conservatórios, outros formaram bandas, grupos musicais e participaram de orquestras. Merecem destaque os que produziam e comercializavam instrumentos musicais e pautas como os Irmãos Vitale, Di Franco, Casa Manon, Casa Tomanasi, Casa Attillio Izzo, os fabricantes dos violões Di Giorgi, Del Rey e Giannini. (MORAES, 1995, p. 145) Nas paisagens sonoras noturnas, pela madrugada, observavam-se as cantilenas e serenatas entoadas por grupos boêmios e músicos. Com o crescimento da cidade, as serestas se popularizaram, com a presença de imigrantes, elas eram realizadas de modo improvisado e informal, tocavam nas ruas, ou em casa de famílias, em dias festivos ou para homenagear a mulher amada. Estas canções de serestas expressavam sensibilidades circulantes, cantadas em versos majoritariamente românticos, algumas vezes, também maliciosos e debochados. Alberto Marino deixou as memórias destes tempos registradas na Valsa choro denominada Rapaziada do Brás Lembrar, Deixe-me lembrar, Meus tempos de rapaz, No Brás As noites de serestas, Casais enamorados, E as cordas de um violão, 11 Juó Bananére escreveu a coluna “Diário do Abaixo Piques”, em O Pirralho, até 1915. 114 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO Cantando em tom plangente, Aqueles ternos madrigais. Sonhar, Deixe-me sonhar, Lembrando aquele amor, Fugaz, Numa sombra envolta na penumbra, Detrás da vidraça, Faz um gesto lânguido, E cheio de graça, Imagem de um passado, Que não volta mais. Tão somente, Numa recordação, Restou daquele grande amor, Daquelas noites de luar, Daquela juventude em flor, Hoje os anos correm muito mais, E as noites já não tem calor, E uma saudade imensa, É tudo o quanto resta, Ao velho trovador. (MARINO, 1917) Nas serestas destacava-se a presença de músicos em pequenos conjuntos (violões, cavaquinhos, bandolins, flautas e o cantor era central), igualmente constituíram rodas de choro como as realizadas no Bexiga. Alguns grupos se profissionalizaram e ganharam popularidade atuando em cinemas, teatros, cafés (cafés concertos e café cantante), salões de bailes e também no rádio. Merece menção Antonio Rago, Antonio D’Área, Canhoto, Américo Jacomino, Roque Ricciardi, conhecido como o “italianinho do Brás”, que depois se tornou o famoso Paraguassu. O samba paulista poderia ser ouvido e dançado na Barra Funda, nos redutos negros do Bexiga e nas quadras das escolas de samba, também nas gafieiras, Maria Izilda Santos de Matos 115 “salões da raça” e salões de dança, como o Teçaimba (Rua São Joaquim), a 28 (Florêncio de Abreu), Estadão (Barra Funda), Cerro de Prata (Pinheiros), Som de Cristal (Rua Formosa) e Caçamba (Quintino Bocaiúva). Sons da cidade: era de ouro do rádio Os anos 1940 e 1950 ficaram conhecidos como a “era de ouro do rádio”, neste período, as rádios expandiram-se por todo o país e passaram a ocupar um tempo maior na vida das pessoas, informando-as, divertindo-as e emocionando-as, conjuntamente dinamizaram a circulação do disco, de publicações especializadas e do cinema. O rádio divulgava uma música que se diversificava rítmica e poeticamente, o mercado musical (fonográfico e radiofônico) se estabeleceu e se generalizou, nele o popular, em transformação, convivia com a música internacional na dinâmica das sonoridades no cotidiano citadino. Em São Paulo, a rádio surgiu fundada por Assis Chateaubriand (Rádio Tupi, em 1935), em 1940 totalizavam 12 emissoras, em 1950 já eram 17, destacando-se como líder de audiência a Record, que teve participação ativa na Revolução Constitucionalista, de 1932. No seu apogeu, a programação incluía rádio-novelas e rádio-teatros, rádio-jornais e programação esportiva, programas de auditório musicais e humorísticos, todos contando com boa audiência. As emissoras de São Paulo mantinham conexões com as do Rio de Janeiro, particularmente, com a Rádio Nacional. Os sucessos circulavam nacionalmente, mas também se veiculava toda uma produção de caráter regional, atingindo diretamente gosto local. No caso do humor, a diversidade cultural foi transportada para os programas, os criadores buscavam conexões com os ouvintes, priorizando o cotidiano. Nesse contexto, Adoniran atuou com maestria, como humorista, compositor, cantor e sambista. Vários narradores e cronistas da cidade deixaram suas referências sobre as modificações e tensões urbanas, entre eles destacou-se Adoniran Barbosa,12 12 Imagem de Adoniran Barbosa, disponível em: < http://albumitaucultural.org.br/secoes/no-bixiga-comona-mangueira/>. 116 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO um observador atento e afetivo, que captava as mudanças e permanências, retratando flashes do cotidiano e fragmentos da cidade. O sucesso de suas canções e a força como se mantém na memória de diferentes gerações foram o reconhecimento da sua representatividade. (MATOS, 2007) Adoniran Barbosa13 nasceu João Rubinatto, em 6 de agosto de 1910, na cidade de Valinhos, era filho de imigrantes italianos, e ainda menino, já residente em Jundiaí, começou a trabalhar com o pai no serviço de cargas da São Paulo Railway. Não terminou o curso primário, ingressando no mercado de trabalho exerceu várias atividades: entregador de marmitas, varredor de fábrica, tecelão, pintor, encanador, serralheiro, metalúrgico e garçom. Em 1932, estabelecido em São Paulo, juntamente com as funções de entregador de uma loja de tecidos da Rua Vinte e Cinco de Março, tornou-se cantor ambulante batucando na caixinha de fósforo, marcando a sonoridade urbana. Frequentava as lojas de músicas do Centro, ponto de encontro de artistas, aventurou-se pelo teatro sem muito sucesso, decidido a fazer carreira artística, arriscou-se em programas de calouros. Fruto de muita insistência, em 1933 ele conseguiu seu primeiro contrato na rádio como cantor e depois como locutor; foi discotecário e passou a atuar em rádio-teatro. Começava sua trajetória pelas rádios, por volta de 1935 foi contratado pela Rádio São Paulo, depois pela Difusora e Cruzeiro do Sul, em 1941 passou a trabalhar na Record. Na década de 1940, Adoniran teve sua trajetória marcada pelas atividades como ator, seus tipos eram inspirados em pessoas comuns, falas e entonações presentes em diferentes territórios da cidade, estas interpretações foram elementos fundamentais para as suas composições musicais. A atuação de Adoniran era cotidiana, entre seus sucessos destacaramse Barbosinha Mal-educado da Silva, aluno da Escolinha Risonha e Franca; o Dr. Sinésio Trombone, o gostosão da Vila Matilde; Moisés Rabinovicht; o Zé Cunversa, do programa Casa da Sogra. Buscava compor os personagens, com vários sotaques e misturas, como o motorista de táxi do Largo Paissandu, Guiseppe Pernafina, com forte marca de sotaque italiano: 13 João Rubinato assumia o pseudônimo Adoniran (nome de um amigo boêmio) e Barbosa (sob a inspiração de sambista carioca Luís Barbosa). Maria Izilda Santos de Matos 117 Estou aqui no ponto desde cinco de la matina, e ainda num virei la chave – e tenho uma dor no amolar esquerdo, que não sei se abstraio ele ou se faço uma anistia geral... por isso te digo que vai mar... (MOURA; NIGRI, 2002, p. 62 ) Seu maior sucesso foi com o programa Histórias das Malocas (1955), com destaque para Charutinho, o malandro malsucedido e desocupado do Morro do Piolho, tangenciando para a crítica social; o malandro era negro, porém adotava uma fala italianada, engolindo silabas e cheia de neologismos. Como artista de rádio, seu sucesso mostrou a afinação com a sensibilidade do público – as camadas populares, o que lhe possibilitava audiência garantida. Trazia um caráter nostálgico de denúncia do ritmo assustador de construçãodestruição da cidade, era algo que muitos sentiam sem saber transmitir, assim, se identificavam com a interpretação. Os textos do programa Histórias das Malocas eram de autoria de Oswaldo Moles, que se somavam aos elementos de oralidade (entonações, sotaques e timbres) criação-recriação de Adoniran, reforçando a crítica social. O humor do programa centrava-se numa construção caricatural do cotidiano dos habitantes da favela do Morro do Piolho, onde não só se viabilizava a comicidade como também se tornava possível apontar as tensões-contradições sociais. As atuações de Adoniran como humorista, seus personagens e falas representavam os burburinhos da cidade em mudança, ele mesmo se definia como “osservatore dos tipos de rua”. Para este cronista observar a cidade implicava no exercício de caminhar a pé (de dia e à noite), aproximar-se, conversar, ouvir, atentar para as entonações, sintaxes (presentes no sotaque ítalo-paulistano) e sonoridades buscando a inspiração para as composições (musicais e humorísticas). Ele andava muito pelas ruas ... foi por meio desse olhar vivo que ele viu e contou o que contou. Contou para São Paulo como São Paulo era... a primeira façanha de Adoniran Barbosa é ter descoberto o sotaque da música paulistana, com os devidos méritos ao sempre admirado [...] Osvaldo Moles e ao conjunto vocal Demônios da Garoa, também originais da Record. A fusão do que cada um percebeu que existia na cidade, do que havia 118 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO de som pelas ruas, é que deu na obra admiravelmente fotográfica de Adoniran Barbosa. Uma obra descritiva, mas reflexiva [...] à beira da tragédia ou da comédia... as dezenas de vozes de Adoniran, ouvidas nos velhos rádios elétricos da época, eram carregadas dos sons das conversas nos corredores da rádio, nos botequins da Quintino, nos campos de futebol de várzea, nos jogos de bocha, nas cantinas, nos bairros populares, nos erros de concordância dos italianos. Aos poucos, o rádio-ator foi-se abastecendo para compor uma obra musical, para transformar sons esparsos aparentemente sem função, em sambas, no samba da cidade, Adoniran foi deixando de interpretar e tornar-se criador. (MELLO, 28 nov. 1982, p. 43) Seus primeiros sambas datam do início dos anos de 1930, Minha vida se consome e Teu orgulho acabou (1933); com a marchinha carnavalesca Dona Boa recebeu o 1º lugar no concurso carnavalesco da prefeitura de São Paulo de 1934. As composições musicais se ampliam a partir de 1935 com estilos variados, diferenciando-se do que posteriormente seriam seus maiores sucessos: Agora podes Chorar, A Canoa Virou, Chega, Mamão, Pra Esquecer, Um amor que já passou. A fusão do humor e da música atingiu a maturidade nos anos 1950, com os sucessos nas vozes dos Demônios da Garoa,14 com Malvina, que em 1951 ganhou o 1º lugar num concurso carnavalesco. Em 1953, era a vez de Joga a Chave, seguido de Saudosa Maloca (1951), Samba do Arnesto e as Mariposas (1955). Dessas experiências surgiram outras composições Segura o apito e Aqui Gerarda, foi em 1964, que ocorreu o sucesso nacional de Trem das onze, seguido de outros. Este foi o momento de maior sucesso do compositor, que coincidiu com a efervescência do desenvolvimento urbano-industrial da cidade. Nos programas e nas composições, Adoniran mostrava uma sintonia com o cotidiano e sonoridades, entonações, sotaques e influências que circulavam na urbe. 14 As interpretações dos Demônios da Garoa deixaram marcas na produção de Adoniran com a introdução de expressões como “jogascascaspralá, jogascascaspracá”, torneios vocais acompanhados melodicamente pelos instrumentos, uma áurea gaiata, reforçando o aspecto cômico já estava presente nas criações de Adoniran. Maria Izilda Santos de Matos 119 Em 1968, na I Bienal do Samba, teve a composição Patrão, mulher e Cachaça (parceria com Oswaldo Moles) desclassificada. Nesse mesmo ano, o programa Histórias das Malocas perdia audiência, e com o suicídio de Moles foi tirado do ar. Adoniran não era mais requisitado, de vez em quando uma ponta na TV em programas de humor e novelas. Morreu, em novembro de 1982, deixando sua imagem inesquecível caracterizada pelo olhar inquieto, gravata borboleta, paletó e chapéu. Adoniran retratava o cotidiano urbano, as transformações irreversíveis, criando uma visão idílica de um tempo-espaço perdido frente ao progresso, gerando um tipo de inconformismo que se aproximava da denúncia. Nas suas canções as referências à cidade foram constantes, apareciam não só em Saudosa Maloca, mas o cortiço poderia ser localizado na Rua Aurora, Guaianazes e imediações; o Arnesto (personagem de outra canção) morava no Brás; o Morro do Piolho, a Casa Verde ou o Bexiga eram territórios para um samba ou outras experiências, ocorriam menções ao viaduto Santa Ifigênia, o trem do Jaçanã, a Vila Esperança. Mostrava uma cidade em crescimento e transformação, que demolia e construía, enfim, uma urbe que avançava antropofagicamente. Desvendava silêncios e ocultamentos, emoções complexas e profundas, invisíveis, carregadas de significados, apontando tensões e dificuldades da população pobre, a vida nas periferias e dos moradores das malocas, as carências, miséria, falta de saneamento, questões de saúde e educação. [...] Letras, na maioria para sambas, tratam episódios singelos com uma linguagem efetivamente coloquial, onde a repetição quase inútil dos mesmos verbos, ou o abuso de pronomes, que soariam até desagradáveis caso fossem analisados pelo lado discurso, dão exatamente esse toque familiar e intimo... desfechos imprevistos, que conferem a essas letras um caráter de fortíssimo sentimento popular e sempre profundamente natural. Irônico, pensativo, boêmio, romântico e com uma permanente ponta de amargura, Adoniran parece um conselheiro distribuindo em suas músicas as amarguras pelas ruas e lugares de São Paulo. Naturalmente os nomes desses lugares, os bairros da cidade, surgem com frequência, dando um aspecto pictórico ao 120 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO conjunto de sua obra, que, então, fica ainda mais centralizada em São Paulo. (MELLO, 1983, p. 4-7) Em várias de suas composições, Adoniran denunciou as questões da cidade: da moradia (Abrigo de vagabundos (1959), Despejo da favela (1969)); dos tempos e ritmos da modernidade (Torresmo a milanesa, Trem das onze); as carências e tensões do cotidiano (Luz da Ligth, As mariposas, Samba do Arnesto), a solidão e exclusão urbana (Iracema, Por onde andará Maria, Apaga o fogo Mané, todas de 1956), entre outras. As estratégias mais frequentes do autor se faziam através do humor, deste modo sua experiência como humorista impregnava as composições. Adoniran se aprimorou em contar casos de despejos, abandono, demolição, desamor, desemprego, através da paródia bem elaborada entre estrutura verbo-musical na tristeza das letras contrastando com a dimensão alegre e contagiante da melodia. Em Conselho de mulher mostrava humoradamente um questionamento a noção de progresso e resistência ao trabalho, tendo como personagens o malandro e a mulher disciplinarizadora. Quando Deus fez o homem/ Quis fazer um vagolinho que nunca tinha fome/ E que tinha no destino/ Nunca pegar no batente/ E viver folgadamente/ O homem era feliz enquanto Deus ansim quis/ Mas depois pegou Adão/ Tirou uma costela e fez a mulher/ Desde então o homem trabalha pr’ela/ Vai daí, o homem reza todo dia uma oração: ‘Se quiser tirar uma coisa de bão/ Que me tire o trabalho/ A mulher não’ Progréssio, Progréssio Eu sempre escuitei fala Que o progréssio vem do trabaio Então amanhã cedo nois vai trabaia Progréssio Quanto tempo nois perdeu na boemia sambando noite e dia Cortando uma rama sem parar Maria Izilda Santos de Matos 121 Agora escuitando os conseio da mulhê amanhã vou trabalhar se Deus quiser (breque) Mas Deus não qué (BARBOSA; MOLES; SANTOS. Conselho de Mulher, 1953) Além da crítica ao progresso, aparecem os questionamentos ao trabalho, e ao caráter que ele assume como sombrio e pesado, manipulado e explorado. Destaca-se na canção o humor e a ironia, inicialmente enaltecendo progresso e o trabalho os signos da cidade e personificados pelos conselhos da mulher, em oposição aparece as referências negativas à boemia “sambando noite e dia/cortando uma rama sem pará”, mas, a ironia e/ou o humor emergem com o breque, que possibilita a inversão do sentido contido na poética, ao romper a melodia que permite a entrada da frase “mais Deus não qué...”. Criticando as noções propaladas de trabalho e progresso, aparecia a trama entre tradicional e moderno, rural e urbano, acomodação e resistência, permitindo perceber o processo de circularidade e questionar as afirmações de que todos incorporavam à modernidade, destacando as múltiplas tensões, subjetivações, apropriações, reapropriações, desvios e recriações presentes no processo. (CERTEAU, 1998) A cidade encontra-se atravessada pelos pressupostos de disciplina e cidadania, passando a ser reconhecida como espaço de tensões. Em Saudosa maloca (1951)15 observam-se as tensões, a questão social e a identificação do outro – o pobre, o migrante, focalizando a questão da moradia. Se o sinhô não tá lembrado dá licença de contá que aqui onde agora está esse edifiço arto, era uma casa véia um palacete assobradado. 15 Saudosa maloca foi composta 1951, veiculada 1954 no programa de Manuel da Nóbrega, na Rádio Nacional de São Paulo, já com a interpretação dos Demônios da Garoa, e foi gravada em 1955. 122 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO Foi aqui seu moço, que eu Mato Grosso e Joca construímos nossa maloca, mas um dia nós nem pode se alembrá veio os home co’ás ferramenta o dono mandô derrubá... Saudosa maloca, maloca querida donde nós passemos os dias feliz de nossas vida (BARBOSA. Saudosa Maloca, 1951) Expressando o inconformismo, acomodação e resistência, envolvido num discurso de denúncia, até certo ponto ingênuo e pleno de sensibilidade, traz a memória para que se lembre e se observe o edifício “arto”, e em torno desse foco que relembra o acontecimento: a expulsão do narrador, juntamente com os companheiros Matogrosso e Joca. A expulsão segue-se à demolição, que permitia a emergência do novo empreendida pelos “homes cas ferramentas”. Matogrosso “quis gritá”, mas foi acomodado – “nóis arranja otro lugá”. O inconformismo ainda se mantém e “só se conformemo/ quando o Joca falou/Deus dá o frio conforme o cobertô”, o que poderia parecer resignação encontra-se pleno de denúncia que emerge no ato de rememorar os dias felizes passados na maloca querida, sendo que o engraçado não se reduz ao imediatamente alegre. O sucesso de Trem das onze consagrou-o nacionalmente, a canção foi vencedora do concurso de sambas do carnaval carioca no ano de comemoração do IV Centenário da cidade (1965). O compositor declarou Não existia trem para voltar pra casa depois desse horário, e todo mundo reclamava, todo mundo sentia na carne esta situação. Acho que não faz bem para as autoridades quando elas ouvem essa música. (BARBOSA, 1973, p. 12-13) Na dita “cidade que mais cresce no mundo”, as noções de tempo se transformavam ancoradas nas de progresso e produtivismo industrial, difundindo a importância de não se perder tempo, não perder a hora, levando a busca pela pontualidade, partindo o coração entre querer ficar e ter que partir. Maria Izilda Santos de Matos 123 Não posso ficar Nem mais um minuto com você Sinto muito amor Mas não pode ser Moro em Jaçanã Se eu perder esse trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã além disso, mulher Tem outra coisa minha mãe não dorme enquanto eu não chegar Sou filho único tenho minha casa pra olhar Não posso ficar Trem das Onze (BARBOSA, 1964) A administração do prefeito Faria Lima (1965-69) se notabilizou pela construção do metrô e por um novo Plano Diretor, implementado por um conjunto de obras, com destaque para a construção das marginais do Tietê e Pinheiros, avenidas Sumaré, Radial Leste, 23 de Maio e Rubem Berta, porém tinha como principal meta de governo a construção do metrô.16 Nestes anos, as desapropriações eram constantes, com o despejo de centenas de residentes, a cidade em obras descaracterizava a urbe.17 Adoniran relatou em o Despejo da favela (1969) a expulsão dos moradores “pelo oficial de justiça”. Os barracos novamente no chão não pertenciam mais aos moradores, afetavam toda a comunidade, com prazos de desocupação curtos. 16 O Grupo Executivo Metropolitano foi criado em 1966 e suas ações foram implementadas em 1968, num projeto que cortava a cidade de Norte a Sul. No dia 14 de setembro de 1974, teve início à operação comercial do metrô, no trecho Jabaquara-Vila Mariana, só em setembro de 1975 e que as ações foram estendidas até Santana. 17 As referências às obras do metro e sua presença no cotidiano urbano aparecem na canção Triste Margarida ou Samba do metrô (1975), no verso “Eu menti pra conquistar seu bem querer. Eu disse a ela que trabalhava de engenheiro, Que o metrô de São Paulo estava em minhas mãos, E que se desse tudo certo, Seria a primeira passageira na inauguração...” 124 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO Quando o oficiá de justiça chegô Lá na favela e contra seu desejo Entregô pra ‘seu’ Narciso Um aviso, uma orde de despejo Assinada: “Seu Dotô, Anssim dizia a petição, Dentro de dez dia Quero a favela vazia E os barraco todo no chão, É uma orde superiô.” Ô, ô, ô, ô, ô, meu sinhô É uma orde superiô Não tem nada seu Dotô Não tem nada não, Amanhã mesmo Vô deixá meu barracão. Não tem nada não, seu dotô, Vô saí daqui Pra não ouví os ronco dos tratô. Pra mim não tem problema Em quarqué canto me arrumo, De quarqué jeito me ajeito. Depois, o que tenho é tão pouco Minha mudança é tão pequena Que cabe no bolso de trás... Mas e essa gente aí, hein? Cume é que faz? (BARBOSA. Despejo na Favela, 1969) Frente ao crescimento de São Paulo que impactava moradores e visitantes, Adoniran Barbosa narrou flashes do cotidiano, experiências de muitos que viveram esse processo, nos cortiços, malocas e nas periferias de então. Reproduzindo o sotaque síntese (ítalo-paulistano-caipira) nas suas composições as menções à cidade eram constantes: o cortiço poderia ser localizado nas ruas Aurora, Guaianases e imediações; aparecem referências ao Brás, Maria Izilda Santos de Matos 125 Morro do Piolho, Casa Verde, Vila Esperança, Bexiga, Jaçanã ou ao viaduto Santa Ifigênia; mostrando uma cidade em crescimento e transformação. Os silêncios e ocultamentos acumulam energias, emoções complexas e profundas, invisíveis, mas carregadas de significados, a invenção da paulistaneidade marcada pelo ufanismo habilmente ocultava os problemas enfrentados com o intenso processo de metropolização. Contudo as questões da população encortiçada morando nas malocas, as carências, a miséria, a falta de saneamento foram silenciadas, mas emergem nas composições de Adoniran. Melhor do que ninguém, Antonio Candido (1975) caracterizou Adoniran Barbosa como a voz da cidade. Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos..., alia com naturalidade às deformações normais do português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumi e não encontremo ninguem, em São Paulo, hoje, o italiano esta na filigrana. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer para onde irá. Já foi a cidade dos mestres de obra italianos, da Rapaziada do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo, das cantinas do Bixiga... Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sai anti-voz-rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da cidade.” Referências AMERICANO, J. São Paulo nesse tempo (1915-35). São Paulo: Melhoramentos, 1962. ANDREWS, G. R. Um perfil dos primeiros trabalhadores da Light. Boletim Histórico: Eletropaulo, São Paulo, n. 2, p. 13-14, jun. 1985. AZEVEDO, A. M. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-Áfricas em São Paulo. 2006. 234 f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. 126 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO BASTIDE, R. Brasil Terra de contrastes. São Paulo: Difel -Difusão Europeia do Livro, 1959. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: T.A.Queiroz: Edusp, 1987. BRUNO, E. da S. História e tradições da cidade de São Paulo. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1984. BRUNO, E. da S. 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Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história e memória. Projeto história, São Paulo, v. 15, p. 51-83, 1997. 128 TRAÇOS E SONS DA CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO Urpi Montoya Uriarte BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Abordarei neste texto, a Praça da Piedade, um lugar específico do centro da cidade de Salvador. Os centros de cidades são lugares que exercem em mim uma grande atração, acho que por um fato óbvio: os centros tudo centralizam (as trocas, as aproximações, as relações etc.).1 Ao centralizar, eles criam o que Henri Lefebvre chamou de “situação urbana”, que é uma forma sem conteúdo específico, a forma do “encontro e reunião de todos os objetos e sujeitos existentes e possíveis”. (LEFEBVRE, 2002, p. 115) É isso que torna os centros fascinantes: tudo se reúne neles e tudo se transforma neles, pois os espaços centrais são mais do que uma forma que reúne, são também uma forma que trans-forma aquilo que reúne. (LEFEBVRE, 2002, p. 159) 1 Em palavras de Henri Lefebvre, “a cidade atrai para si tudo o que nasce, da natureza e do trabalho, noutros lugares [...]. O que ela cria? Nada. Ela centraliza as criações. E, no entanto, ela cria tudo. Nada existe sem troca, sem aproximação, sem proximidade, isto é, sem relações. Ela cria uma situação, a situação urbana, onde as coisas diferentes advêm umas das outras e não existem separadamente, mas segundo as diferença”. (LEFEBVRE, 2002, p. 111) 129 O que me interessa explorar da Praça da Piedade, são as seguintes inquietações: o quê exatamente essa Praça reúne? Como ela reúne? Como ela transforma? Durante o mês de agosto de 2014, frequentei diariamente esse local e é mediante essa experiência etnográfica que partilho, aqui, duas respostas possíveis e iniciais a estas indagações. Como qualquer outro trabalho antropológico, este irá falar de pessoas. As pessoas da Piedade são muitas e diversas. Poderia falar dos ambulantes (de cafezinho, de picolé, de pipoca, de cachorro quente, de água de coco, de mingau etc.) ou da população de rua que costuma se reunir no lado da Praça que está próxima à Igreja de São Pedro Velho, cada um com suas próprias histórias e relações com ela. Poderia falar, igualmente, dos trabalhadores (a mulher que a varre diariamente ou o rapaz que limpa diariamente a grama) ou dos grupos de estudantes que saem do Colégio Nossa Senhora das Mercês, por exemplo, ou dos cursos preparatórios para o vestibular, nas proximidades, e atravessam ou ficam na Praça. Poderia me referir aos moradores das redondezas, que cruzam a Praça com sacolas de supermercado, ou ao grupo de idosos aposentados do Exército que todo dia se reúnem nela para conversar. Poderia ainda discorrer sobre as senhoras idosas que, quase sempre acompanhadas de uma filha ou neta, transitam pela Praça num dia de compras ou num dia de consultas médicas, ou, então, falar dos transeuntes diversos que por ela passam, cada um com seu estilo, seu itinerário e ritmos próprios.2 Entretanto, de quem falarei nesta ocasião, num primeiro momento, é de um personagem especial da Praça e das pessoas que ele consegue reunir ao seu redor, mediante sua especial aura comunicativa, mas, também, e não menos importante, mediante a ambiência que sua música cria; num segundo momento, falarei dos personagens que este personagem percebe na Praça. A Praça da Piedade tem, como qualquer outro espaço, sua própria sonoridade. De meia em meia hora, os sinos das igrejas repicam. De certo em certo tempo, ouvem-se os cantos da missa provenientes da Igreja de São Pedro ou da Igreja da Piedade. Vez ou outra, pode-se ouvir, também, um “tactactac” de uma bengala de um morador de rua que vai e vem. Em período eleitoral, 2 Para os interessados em maiores informações sobre os transeuntes do centro de Salvador, ver Carvalho Filho e Montoya Uriarte, 2014. 130 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR escuta-se o som das kombis fazendo propaganda política. Outro som constante é o do sininho do vendedor de picolé, devidamente acompanhado de seu pregão “Ô picolé, um real, um real, um real”. Mas, definitivamente, acho que o som característico da Praça da Piedade, há seis anos, é o dos boleros, as serestas, os chorinhos, os sambas-canções. Nos primeiros dias de campo, percorri a Praça diversas vezes, alternando momentos sentada e momentos transitando por seus diferentes cantos. Sua música não tinha me afetado ainda, pois estava mais interessada em observar do que em sentir. Tentava ingenuamente camuflar minha presença sentando e lendo, esquecendo que, em campo, o antropólogo é muito mais observado do que observador.3 Até que, em um dia ensolarado – algo raro no meio dos dias chuvosos de agosto em Salvador –, sentada, ouvi a música que reproduzo ao lado. Já tinha ouvido essa música em outras ocasiões, sobretudo na versão de Gal Costa. Nesse dia, quem cantava era Anísio Silva, o mesmo que popularizou a música composta em 1960 pela dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Não foi nesse momento que nasceu meu gosto pelos boleros,4 mas, dessa 3 Alguém me disse Alguém me disse que tu andas, novamente De novo amor, nova paixão, toda contente Conheço bem tuas promessas Outras ouvi, iguais a essas, Esse teu jeito de enganar, conheço bem. Pouco me importa que tu beijes, tantas vezes E que tu mudes de paixão, todos os meses Se vais beijar, como eu bem sei, Fazer sonhar, como eu sonhei, Mas sem ter nunca amor igual Ao que eu te dei... Evaldo Gouveia e Jair Amorim (1960) Um dia, anotei em meu caderno de campo: “me sinto observando como o personagem de Janela indiscreta”. Mas, de fato, não devemos nos iludir. Em qualquer campo todo mundo está observando todo mundo. Lembro de uma conversa com Bob no primeiro dia em que me aproximei dele: em um momento ele me disse “você estava aqui ontem, sentada ali, eu tava observando”, ao que respondi “eu também estava te observando”. Na praça, todo mundo está filmando. Observar não é privilégio de antropólogo. 4 Os boleros musicalizaram as manhãs de minha infância, entre as 6 e 7 horas, quando me preparava para ir à escola. Minha mãe os sintonizava numa velha radiola que tinha pertencido a meu avô. Urpi Montoya Uriarte 131 vez, essa música, esse bolero, teve um significado especial. Me fez fechar os olhos, me fez “sentir a Praça”. Ela me fez perceber que precisava fazer o que todos faziam nela: sentar e ouvir. Figura 1 – Idoso ouvindo, em silêncio, a música Fonte: Acervo da autora. A partir desse momento, meu olhar aquietou, parou de se deixar levar por toda pessoa que passava ou se mexia e cessei de tentar registrar freneticamente qualquer detalhe em meu caderno de campo, para me centrar no sentir do ouvir, meu e dos idosos sentados na Praça. Sem ter me planejado para isso, lá estava eu percebendo fenomenologicamente a Praça da Piedade: deixando o corpo sentir, sem intermediação de representações, sem tentar objetivar minhas sensações.5 Passei, pois, a experienciar corporalmente a Praça e minha primeira reflexão sobre ela advém dessa experiência. Comecei a regis- 5 Merleau-Ponty (1971, p. 242) escreveu: “meu corpo não é somente um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades sensíveis entre outras, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa 132 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR trar em meu caderno de campo anotações como esta que reproduzo a seguir, que mostra a recepção corporal da música por parte de um idoso: O idoso que está sentado do meu lado mexe os pés acompanhando a trilha musical de seu tempo. Às vezes, mexe os braços, como quem canta declamando. Trata-se de um senhor em seus 80 anos. Baixo, careca, impecavelmente vestido. Com sapatos marrons brilhando de limpos, cinto marrom e meias marrons, calça bege e camisa de manga amarela. O refrão ‘amor proibido é mais amor/amor proibido tem mais calor...’ o faz se levantar e cantar em pé. Não conheço essa música, mas ele a conhece bem. Às 11h, se dirige à uma das portas da Praça próxima à Igreja de São Pedro. Tento segui-lo, mas o perco. Ele vem todos os dias, religiosamente, de manhã. Muitos dias depois soube que ele é um professor aposentado, das antigas, daqueles que usavam palmatória em sala de aula. Quem me disse foi um outro frequentador da Praça, que foi coincidentemente aluno dele. Nem todos os idosos que sentam para ouvir música são tão alinhados quanto ele. Há vários com a camisa por fora da calça, com os sapatos que não combinam com o cinto e com as meias nem tão caprichadamente esticadas. De fato, os idosos que sentam na Praça para ouvir os boleros são de várias classes e rendas, mas partilham a faixa etária – são homens idosos – e desfrutam a Que queres tu de mim Que queres tu de mim Que fazes junto a mim Se tudo está perdido, amor, Que mais me podes dar Se nada tens a dar Que a marca de uma nova dorLoucura reviver Inútil se querer O amor que não se tem Por que voltaste aqui Se estando junto a ti Eu sinto que estou sem ninguém. Que pensas tu que eu sou Se julgas que ainda vou Pedir que não me deixes mais. Não tenho que pedir Não sei o que pedir Se tudo que desejo é paz Que culpa tenho eu Se tudo se perdeu Se tu quiseste assim E então que queres tu de mim Se até o pranto que chorei Se foi por ti, não sei Evaldo Gouveia e Jair Amorim (1964) em todos os sons, vibra por todas as cores, e que fornece às palavras sua significação primordial pela forma que lhes acolhe”. Urpi Montoya Uriarte 133 ambiência – sentam nela para ouvir a música de “seu tempo”: tempos de galanteio, de elegância, de dançar junto “dois pra lá, dois pra cá”. Os idosos ouvem as músicas e parecem se transportar àqueles tempos. Poucos falam entre si. Quando querem conversa, vão para o lado de fora da Praça. Há, assim, uma diferença entre os idosos que sentam no interior da Praça e os que sentam fora: os de dentro querem ver, ouvir, pensar, lembrar. Os de fora, querem interagir, conversar, paquerar. Para a maioria dos idosos, hoje entre 70 e 80 anos, a Praça da Piedade remete-os a tempos de sua mocidade, isto é, aos anos de 1960, tempos em que eles tinham seus 20 e poucos anos, tempos em que o centro da cidade que eles frequentam hoje era o local por todos frequentado. Segundo Isaias Carvalho Neto, em seu livro Memórias urbanas (2012, p. 255), nos anos 1960 “as pessoas usavam intensamente as praças, principalmente Piedade e Campo Grande, no centro da cidade”. O centro era o “único espaço onde as pessoas se reuniam como lugar de todos”. (CARVALHO NETO, 2012, p. 394) No que diz respeito à música que se ouvia naquele tempo, Carvalho Neto aponta o bolero: Antes da chegada dos Beatles, que seduziram a juventude, o ritmo que dominava na noite era o bolero. Dançava-se agarradinho, de rosto colado, murmurando galanteios ao pé de ouvido da dama. Foram os áureos tempos das boites XK Bar e Clock. Os homens costumavam vestir paletó e gravata e as mulheres exibiam vistosa soirée. Toda essa formalidade foi tragada pelo ye-ye-ye, quando as pessoas passaram a dançar separadas, com passos rebolados e trejeitos antes inimagináveis para um machão. (CARVALHO NETO, 2012, p. 398) Enquanto a Praça é majoritariamente frequentada por homens idosos, as Igrejas ao seu redor têm um público majoritariamente feminino. Os homens na Praça, as mulheres na Igreja. Comentei certa vez esse fato com uma mulher sentada ao meu lado. “Cada um tem sua terapia. As pessoas têm de se curar em algum lugar”, me disse. 134 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Figura 2 – Grupo de idosos do lado de fora da praça Fonte: Acervo da autora. Figura 3 – Idoso só, no lado de dentro da praça Fonte: Acervo da autora. Urpi Montoya Uriarte 135 Figura 4 – Igreja de São Pedro Velho Fonte: Acervo da autora. Os idosos frequentam a Praça porque é um espaço de seu tempo, mas, principalmente, porque as músicas da Praça provocam um efeito profundo neles. Os seguintes trechos extraídos do meu caderno de campo assim o provam: [...] Senta-se uma senhora de uns 50 anos. Veio ver CDs, mas me viu sentada e, eu acho, se animou a sentar-se também. Diz que mora no Politeama, numa casa de 5 cômodos. Gosta de fazer as coisas ouvindo sua música. Compra um CD de Altemar Dutra. Já comprou em outras ocasiões CDs de Moacyr Franco e Roberta Miranda. Pergunto-lhe o que será que cada idoso está pensando. Ela diz apenas ‘é uma terapia vir à praça. A música nos volta ao passado’. Com efeito, há aqueles que chegam até a fechar os olhos com as músicas. Ela fica meia hora sentada ao meu lado, ouvindo as músicas, até que se levanta e vai embora [...] [...] Aparece um frequentador assíduo. Mora em Itapagipe. Vem todo dia de tarde. Tem aparência altiva, é bem asseado, cabelos brancos bem penteados. 136 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Às vezes canta, soltando uma voz grave poderosa. Às vezes, só cantarola, à meia voz, em surdina. Sabe todas as músicas. Solta a voz num refrão de uma música cantada por Aguinaldo Timóteo. [...] O som continua: Ary Barroso, Roberto Carlos, Lupicínio Rodrigues, Silvio Caldas [...]. [...] (Mais tarde) aparece outro personagem: um senhor negro, careca, magro, de cinto velho, mas de cinto. Tem 86 anos e começa a dançar sozinho, música após música, bem em frente à mesa de livros de Bob. Os passos do bolero dele não são sincopados, são rápidos. Gira e gira. Cada vez que Bob para o som para trocar de CD ele para, chateado, impaciente, se vira para Bob como quem diz ‘vamos DJ!’. Depois, recomeça a sua dança. Só vai embora quando Bob recolhe seu material. Parece que mora no Garcia [...]. Silêncio. Canto. Dança. As reações à música são diversas. Me chamou a atenção a palavra terapia usada pela minha interlocutora eventual na Praça. É possível que seja isso – uma terapia para a solidão e o tédio. Certa vez, um idoso aposentado da Petrobras, viúvo, me comentou de forma sentida, eu diria de forma quase sofrida: “Os dias são longos, oooooooh meu Deeeeeeus!!!!... A tarde não paaaaassa, leio duas ou três vezes o jornal”. A sinceridade de suas palavras foi tanta que fiquei comovida. Depois que sua esposa morreu, ele vem todas as manhãs à Praça, assiste a missa na Igreja de São Pedro e depois alterna momentos no lado de dentro da Praça e no lado de fora dela. Terapia ou não, ou mais do Urpi Montoya Uriarte Meu velho É um bom tipo meu velho Que anda só e carregando Sua tristeza infinita De tanto seguir andando. Eu o estudo desde longe Porque somos diferentes Ele cresceu com os tempos Do respeito e dos mais crentes. Velho, meu querido velho, Agora caminha lento Como perdoando o vento. Eu sou teu sangue, meu velho, Teu silêncio e o teu tempo. Seus olhos são tão serenos Sua figura é cansada Pela idade foi vencido Mas caminha sua estrada. Eu vivo os dias de hoje Em ti o passado lembra Só a dor e o sofrimento Tem sua história sem tempo. Velho, meu querido velho, Agora caminha lento Como perdoando o vento. Eu sou teu sangue, meu velho, Teu silêncio e teu tempo. Velho, meu querido velho, Eu sou teu sangue, meu velho, Teu silêncio e teu tempo. Velho, meu querido velho Autoria de Piero Versão em português de Nazareno de Brito (1993) 137 que terapia, ou não apenas terapia, o que quero frisar é que a experiência da Praça não seria a mesma sem a música. Voltando às nossas perguntas iniciais, eu diria que a Praça da Piedade reúne pessoas e memórias pela música, ela transforma o presente daqueles que ali sentam para voltar ao passado.O interior da Praça da Piedade é, pois, uma reunião silenciosa de memórias, ou seja, de tempos que teimam em ficar, de presenças-ausências – diria Paul Ricoeur (2000) – que insistem em permanecer. A memória como retenção do passado encontra um contexto na Praça. Os idosos frequentam esse espaço, mesmo morando longe, porque se trata de um espaço que faz a memória ser vivida: pela música se revive o tempo da mocidade e pelo espaço se revive a cidade frequentada em seus tempos. É, pois, um espaço de reativar a memória, um contexto de memória. É bom salientar que não se trata de um “lugar de memória”, categoria criada por Pierre Nora (1997) para se referir aos espaços que passaram a ser construídos para rememorar uma vez que a memória deixou de ser vivida. Os “lugares de memória” imortalizam, param o tempo, fixam-no, materializam o que é imaterial. Os contextos de memória, ao contrário, mantêm viva a memória. Acho que a música tem um papel decisivo no contexto de memória específico do qual estamos falando: a Praça da Piedade. E esse papel – abstrato – tem um mentor – corporificado –: seu nome é Bob Baiano. É ele que todo dia faz a seleção musical da Praça. Me aproximei de Bob após vivenciar a experiência sonora da Praça, ou seja, após ter aprendido a captá-la por e através da música. Durante a primeira semana de campo, me limitei a observá-lo de longe, descrevendo-o distanciadamente: [...] Por volta das 8 horas chega alguém e se instala do lado de um dos bustos: arruma seus 2 bancos, 1 microfone, uma mesa, 4 malas pequenas de alça contendo livros e DVDs, uma toalha de mesa, uma vassoura, 2 plásticos para proteção da chuva, uma caixa de som e um guarda-chuva, um banner com a foto de Luís Gama onde se lê ‘poesia livre’ e um cartaz, que pendura nas duas árvores, onde está escrito ‘Afoxé Filhas de Olorum’. É um rasta. Veste-se completamente de preto. Na mesa, instala livros. Bota som moderado na praça: chorinhos, boleros, serestas. 138 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Figura 5 – A mesa de Bob Baiano na Praça, com livros e DVDs, em 2014 Fonte: Acervo da autora. Figura 6 – A mesa de Bob em 2012 Fonte: Foto de Vanessa Pugliese Urpi Montoya Uriarte 139 Talvez intuísse que se me aproximasse dele logo de início a minha percepção da Praça poderia ser outra. Na segunda semana, me acerquei, me apresentei e expus resumidamente o porquê de eu estar ali. Conversamos e, desde então, não paramos de conversar. Peço licença para me deter na descrição de Bob porque acho que a parte interna da Praça não seria o que ela é sem a sua presença. Ele é exatamente o que Jane Jacobs chamou de “personagem público vocacional” (JACOBS, 1973, p. 73): uma pessoa essencial para a vida urbana saudável, uma que estaria a meio caminho entre a intimidade doméstica e particular e a indiferença absoluta de desconhecidos. Bob é esse tipo de “anfitrião público”: ele hospeda na Praça, media relações, promove outras, explica, ouve, aconselha. Ele conhece os frequentadores da Praça, identifica os novos, cumprimenta todo mundo, independentemente da aparência e solvência econômica. Numa tarde, anotei em meu caderno de campo: Um morador de rua, com problemas para mexer um braço e uma perna, com o olho e a boca semiparalisados vem e abraça Bob. O homem de camisa verde o abraça também. Os 2 reais que o camisa verde deu a Bob, ele entrega ao morador de rua. [...] Passa um que ele chama de ‘professor’: um delegado aposentado que mora no Stiep. Ele troca conversa com Bob. Depois, senta um defensor público, de paletó e gravata. Também conversam. Ele quer saber de minha pesquisa. Todos conhecem e respeitam Bob. Ele ouve. Um dos que sentam diariamente, de manhã, perto de Bob, é um senhor idoso, magro, com a dentição pouco cuidada. Chamam-no e chamase de “pesquisador”: ‘O pesquisador’ senta de meu lado, trazido por Bob. Começa a falar, falar, falar, muito e rápido. ‘Você sabe qual é a palavra em português cujo plural se encontra no meio da palavra? Quaisquer!’, ‘Você sabe quais são as três palavras que deram origem à palavra ‘embora’? Em boa hora!’. ‘Qual é a tua religião?’... E as perguntas que me fez continuaram, sem quase me deixar respondê-las. 140 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Bob está no local há seis anos. Quando chegou, diz ele, “a fonte era o banheiro da praça e os bancos eram varais de roupa. Agora a praça está bem melhor”. Está na Praça de segunda a sexta, das 8 h às 17 h. Nos finais de semana ele dedica seu tempo à organização que dirige, Filhas de Olorum. A Praça não é só o seu local de sobrevivência. É também seu espaço de vivência: para divulgar poesia, vender livros de poesia e, às vezes, declamar poesia. Mas só às vezes declama, quando sente que o momento é propício. Um dia, perto das 11h, ele pegou subitamente o microfone e começou a declamar agitadamente uma famosa poesia de Castro Alves. As palavras saiam rapidamente de sua boca, ele se movimentava de um lado para o outro enquanto exclamava: O povo ao Poder “A praça é do povo! como o céu é do condor. É o antro onde a liberdade cria águias em seu calor. Senhor, pois, quereis a praça? Desgraçada a população!...” Castro Alves (1864) É claro que a Praça é também o seu local de sobrevivência. Ele tem um público fiel e expressivo de compradores de CDs das músicas que ele coloca. Os livros de poesia e os DVDs de cantores antigos que expõe na mesa atraem curiosos, mas não compradores. Acho que eles cumprem o papel de convencer as autoridades de seu papel cultural na Praça. Dentre os livros, um especial, de sua propriedade: a Constituição do Brasil: “O artigo V, capítulo 9, diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, recitou de cor para mim numa ocasião. Urpi Montoya Uriarte 141 Figura 7 – Bob e um possível comprador de CDs Fonte: Acervo da autora. O que é realmente impressionante é que muitas pessoas se aproximam para perguntar pelas músicas e acabam sentando para ouvi-las. O banco próximo dele se torna uma sala aberta, onde ele recebe seus hóspedes. Ele está ali, todo dia, disposto a receber quem quiser visitá-lo. Seu ânimo é, pois, hospedeiro, isto é, disposto a ouvir, a entender, a opinar. Nem todos os que sobrevivem em espaços públicos conseguem manter este ânimo. Não o tem, por exemplo, seu Domingo – vendedor de café há 10 anos na esquina da Avenida Sete com o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia –, nem Ana – medidora de glicemia e pressão, que em breve fará nove anos de trabalho na Praça. Ambos trabalham na parte de fora dela, que é mais agitada, mais frequentada, e onde as pessoas falam mais e se conhecem menos. Digamos assim: há nessa parte de fora outra espiritualidade. A seguir, duas anotações extraídas de meu caderno de campo que dizem respeito aos ânimos diferentes de quem trabalha do lado de fora da Praça: Seu Domingo chega todo dia às 7 da manhã e fica até às 11h, volta às 16 e fica até as 19h. Há 10 anos que leva essa vida. Muitos o conhecem, o 142 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR cumprimentam, trocam palavras com ele e até conversam. Vez ou outra liga seu rádio, sempre na Globo FM. Quando tem propagandas, desliga e muitas vezes esquece de ligar novamente. As pessoas que sentam perto dele variam ao longo do dia. De manhã cedo, são comerciários que esperam dar a hora certa para chegar ao trabalho ou alunos do curso de Pré-Vestibular que ocupa parte das instalações do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. As conversas são bastante queixosas e giram em torno da cidade, do prefeito, do sindicato, do governo, do salário. O linguajar não dissimula esse ânimo: muitos ‘porras’, ‘merdas’, ‘sacanas’ etc. A música, quando o rádio toca, acalma um pouco os ânimos. Mais tarde, chegam os aposentados que, em fileira, observam a vida passar pela Avenida e, ao mesmo tempo, conversam. Quando se trata de moça bonita, a observação ganha da conversa. Os ânimos de Ana não são muito diferentes. Há uma atitude blasé tanto nela quanto em seu Domingos. Simmel diria que é indispensável se proteger de tanta falação, tantas queixas, tantas animosidades. Ela trabalha nesse ponto há quase nove anos. Inicialmente, era só ela, depois, chegaram mais duas pessoas. Mas ela diz que essas pessoas fazem uma competição desleal, porque não têm a formação nem o compromisso necessário. Ela é ‘da área de saúde’, trabalha numa UTI e, quando as pessoas não conseguem pagar, ela releva. Os concorrentes ficam falando para seus clientes que ela pega os utensílios da UTI. A atitude de Bob é outra. Ele se define e apresenta como músico, artista, poeta, produtor cultural. Tem experiência no exterior, tendo morado e trabalhado em países da Europa e nos Estados Unidos. Eu diria ser ele uma pessoa muito humana. Ele diria muito espiritual: – Quando você declama? – perguntei, após vários dias vendo o microfone sem uso. – Quando vejo que há condições espirituais – respondeu. – Ah! – me limitei a dizer, sem entender muito bem o que ele quis dizer, mas sem querer insistir. Essa foi a primeira vez que reparei a palavra espiritual em sua fala. No decorrer do tempo em campo ela foi sendo constantemente usada e fui entendendo sua visão: os espaços têm uma vida oculta, que a maioria não vê. E me Urpi Montoya Uriarte 143 ensinou a ver esse espaço como ele o via. Essa é a particularidade e genialidade da Antropologia, pois não se trata apenas de trabalhar com pessoas, mas, principalmente, de aprender com elas: A etnografia urbana e, em particular, a observação participante, costumam ser um conjunto de contatos descontínuos e focalizados em pessoas concretas (os informantes) com quem é possível aprender a ler a realidade cotidiana que se depara diante dos olhos do investigador. (PUJADAS, 2008, p. 144) Aprendi muito com Bob. Tocada pela música, eu vi e vejo a Praça da Piedade como um contexto de memória para idosos solitários. Mas ele a via de outra forma ou, melhor dizendo, também a via de outra forma: “a praça é um ímã”, um “vício espiritual”, dizia repetidas vezes. Hoje, vejo-a dessa forma, também. Mas, para vê-la assim era necessário que eu aprendesse a olhar. Sem pedir permissão nem explicitar, ele se prontificou a ser meu professor e eu aceitei ser aluna no difícil curso de re-aprender a olhar. O curso começou com um vídeo de circulação restrita, que ele me presenteou e assisti no mesmo dia, em casa. O documentário incitava abertamente o espectador a prestar atenção nos detalhes que povoam a cidade de Salvador, os diversos signos que estão espalhados nela, seus significados e sua força (a flor de lis, a concha, o obelisco). Ao assistir o vídeo, me lembrei das obras do escritor Dan Brown, em particular dos Illuminati; pensei também nos maçons e lembrei que eles também vestem roupas pretas. Mas não era o meu interesse encaixar Bob numa definição e, sim, perceber como ele percebe a Praça da Piedade. A Praça da Piedade é, para ele, um espaço povoado por espíritos que passam a atrair e nortear o comportamento dos que eles conseguem dominar. Ela passa a se tornar um vício para eles. Os espíritos são muitos e de muitos tipos. Tem a Maria Padilha (e aponta para a estátua mais próxima dizendo que ela é a própria); o Zé Pilintra; os caboclos; índios; o gressil (que seria o espírito da degradação humana, que não se cuida, não se limpa); os “espíritos musicais”, os “espíritos de princesa”, “de rainha” etc. Pessoas com problemas ficam presas a esses espíritos e passam a agir como eles, adquirindo sua fisionomia, características e personalidade. Um dia lhe perguntei: “quando você sabe que se trata de um espírito e não de uma simples pessoa?”; a sua resposta foi: 144 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR “tudo que é diferente na Praça é manifestação”. Disse não ser de umbanda, nem de candomblé, nem espírita. Até hoje não sei qual é a sua religião. De novo, esse não é meu interesse. Como sabiamente escreveu Viveiros de Castro, “se há algo que cabe de direito à antropologia, não é certamente a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar o nosso mundo”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 132) Sou ateia e a forma de olhar a Praça de Bob resultava bastante incompatível com a minha formação. Fui educada para acreditar nas forças do mercado, na força das massas, na força do capital, mas não na força dos espíritos. Entretanto, tive de admitir que alguns comportamentos eram os mesmos dos comportamentos característicos de certos espíritos.Vejamos um primeiro exemplo, extraído das anotações do caderno de campo: [...] Por volta das 11h, uma mulher de uns 60 anos, vestindo jeans e camisa curta, decotada e apertada, se aproxima da mesa de Bob, onde estávamos em pé ele, eu e ‘o pesquisador’. Ela começa a dançar ao som de uma música do grupo Raça Negra, que tocava na hora. Fazia movimentos com os braços, chamando a aproximação do parceiro de dança inexistente, pois dançava só, embora na frente de nós. Começou a rebolar. Suas cadeiras iam de um lado para outro. Seu olhar era provocador. Senti que Bob e o ‘pesquisador’ ficaram sem jeito. A situação era no mínimo constrangedora. O que fazer diante de seus apelos? Para onde desviar o olhar? Daqui a pouco, ela já estava no chão, demonstrando uma flexibilidade admirável. Subitamente, se levanta e volta para o lado da Praça onde a TV Bahia grava um programa semanal sobre pessoas desaparecidas. Perguntei logo a Bob: ‘você a conhece?’. ‘Nunca vi essa mulher’, me respondeu. Após alguns segundos, acrescentou: ’Eu sei que você não acredita, mas essa daí não é a Maria Padilha toda?’. Tive de concordar. Urpi Montoya Uriarte 145 Figura 8 – Uma das quatro estátuas na fonte da Praça da Piedade. Ela seria a própria Maria Padilha Fonte: Acervo da autora. Figura 9 – Maria Padilha e Zé Pilintra Fonte: Foto de Mariana Mendes. 146 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Um segundo exemplo: [...] Uma mulher de rua, muito, muito, muito magra, usando um vestido simples e desbotado, de malha, grudado no corpo, muito curto, evidentemente sob efeito de drogas, ‘toma banho’ na fonte da praça. Ela molha uma camisa de algodão na fonte e espreme a água no cabelo, molhando a nuca. Depois, passa a camisa molhada pelas pernas e nas partes íntimas. Fica absolutamente visível que ela não está usando calcinha. A cena é patética: os pelos pubianos, a sujeira, a magreza, o seu olhar perdido, que não se fixa, que parece atravessar o visível. Depois, fuma. Lamento enormemente seu estado. Bob percebe minha lamentação interna e me diz que é gressil, o espírito da degradação humana. Os espíritos estão soltos na Praça principalmente no período da tarde. “De tarde tudo é diferente, você vai ver”, me disse Bob um dia, pela manhã. Com efeito, senti também a “energia pesada” na primeira tarde que fiz trabalho de campo na Praça da Piedade. Logo ao chegar presenciei uma confusão que registrei depois em meu caderno de campo: [...] Um jovem visivelmente alcoolizado tenta se deitar no banco, próximo de Bob. Este lhe diz que é melhor ele dormir mais pra lá. ‘Você é autoridade?’, retrucou, chateado. Um cara sujo, mal vestido, provavelmente um morador de rua, sai em defesa de Bob e quer bater no jovem. Bob acalma os dois. Depois, idosos sentados por perto do jovem, já mais calmo, conversam com ele. Ele desabafa: é de Feira de Santana, sua mulher o largou. Chora. As pessoas se apiedam, o aconselham. Parece até uma sessão grupal de análise. Uma dessas pessoas é um senhor de camisa verde, com meias e sem sapatos, com bafo de álcool, com dentes bastante sujos e alguns ausentes, tudo isso tornando sua fala difícil de entender. Deve ter seus 60 anos. Veste uma calça de marca Richards, o que me faz pensar que tem ou já teve certa solvência econômica. Quando sabe que sou antropóloga, me pergunta por ‘José Ordep Trindade Serra’, assim, nome completo, mas não consigo entender como o conhece, só consigo absorver IPAC, faculdade. Em sua língua pouco compreensível, ele recomendou ao jovem choroso ir para o albergue de Roma, na Cidade Baixa. Ele diz que já morou lá e aqui (se refere à Praça), mas agora não mais. Onde será que ele mora? Compra um picolé de Lázaro para Bob, quer pagar um café para mim. Diz que é aposentado da Petrobras (engraçado como todos dizem isso!). Gosta de mostrar seu Urpi Montoya Uriarte 147 RG, e junto com ele algumas notas de 10 e 50 reais. Leio ‘Carlos Roberto’ em seu RG e ele diz ser engenheiro civil. Quando começa a falar demais, Bob lhe pede para ficar quietinho, afastado, e o leva para um canto. Ele obedece. Depois vai embora. Depois volta. Numa música, ele começa a acompanhar o som fazendo os movimentos de um maestro de orquestra. Depois, dá uma nota de2 reais a Bob, querendo pagar a sessão de música. Bob se refere ao homem de camisa verde, de meias e sem sapatos, como “um espírito que não consegue ficar com dinheiro, que tudo dá, que só sossega quando fica zerado. Se tiver 1.000, gasta e dá tudo. Isso é trabalho feito”, diz. E acrescenta: “Sei que você não acredita”. A tarde só estava começando. Muitos espíritos ainda passariam pela Praça. Passou um homem negro com uma camisa com a foto de Antônio Carlos Magalhães (ACM), com broche de luto na altura do peito, fumando um cigarro e com uma folha na orelha. “Porque a folha?”, perguntei. “Salvador está carregada”, respondeu concisamente. Passou, também, uma senhora com seus 70 anos. Vestia de forma chamativa, colorida: uma saia cumprida, uma blusa com enfeites, óculos de sol grandes e redondos. Andava com o guarda-chuva para se proteger do sol. “Você está parecendo uma rainha”, disse Bob. E ela respondeu: “Eu sou uma rainha”. Bob concluiu: “espírito de nobreza”. Passou, depois, uma senhora com traços indígenas, de cabelo comprido e escuro, magra, vestindo jeans. Devia ter mais de 60 anos. Uma hora depois ela passou de novo e Bob a convidou para sentar: “Senta, índia!”. Ela me diz que mora no bairro de Fazenda Grande, mas que não gosta de lá porque só tem cachaceiro. Bob sentencia: “ela tem um espírito de princesa”. Passou um senhor todo alinhado, de paletó e pasta, sentou perto. “Ele não é doutor, não. Esse é Zé Pilintra, alinhado, bom de papo, mas sem recursos. Foi guarda de trânsito a vida toda”. Depois, Bob me conta a vida do vendedor de picolé, um sujeito baixinho e troncudo, sempre sorridente, chamado Lázaro. Praticamente nasceu na Praça, ali está há 30 anos, passou por problemas que o deixaram olhando para o céu durante horas. Agora já está bem. Outro personagem sempre presente é seu “assessor”, que, como Bob, veste todo de preto. É um senhor de uns 80 anos, negro, baixo, de cabelos brancos. Bob o apresenta como aposentado do Exército, mas ele diz que é aposentado da 148 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Petrobras (mais um!). Todo dia vem, chega às 10h e fica até às 17h. Vem de ônibus, de Itapuã. Ele também tem seus problemas. Voltei para casa confusa, pois a Praça que me foi apresentada era bem diferente da que eu vira sob o efeito do bolero. Os pitorescos idosos deram lugar à ambiência e personagens bizarros, problemáticos, estranhos, que Bob chamava de espíritos. Jamais vira uma concentração tamanha de pessoas tão díspares interagindo em um lapso tão pequeno de tempo: o promotor, o rapaz bêbado, a índia, a rainha, o alinhado que não era alinhado, o homem de meias, porém descalço, o espírito musical fugindo do bafo de álcool, o senhor de luto por ACM com uma folha na orelha, Lázaro, o “assessor”. Definitivamente, percebida de outra forma e em outro horário – de tarde –, a Praça da Piedade reúne personagens/espíritos diversos. Para vê-los, entretanto, foi preciso me deixar ser afetada por formas outras de perceber a realidade, que não as de uma ateia objetivista que, inicialmente, se perguntava, “ai, meu Deus, o que vou escrever? Vou escrever que a Praça da Piedade é um conjunto de espíritos? Isso é coisa que se diga num artigo acadêmico!”. Por que não? Num belo artigo, Márcio Goldman (2003) nos conta que ele ouviu atabaques dobrando quando filhas-de-santo faziam um despacho e percebeu que os tambores que ouvira não eram deste mundo. Por outro lado, quando entrava na rua onde se situava o terreiro e a residência de uma mãede-santo, ele nos conta que sentia vertigens que desapareciam assim que ele saía dessa rua. Como eu, ele não tinha nenhuma inclinação mística e sentiu o mesmo dilema de conferir a essas experiências “um grau de dignidade que ultrapassasse as recorrentes anedotas acerca de experiências místicas vividas por antropólogos no campo”. (GOLDMAN, 2003, p. 450) Como ele, eu senti a similar dificuldade de conferir a mesma dignidade à experiência musical do que à experiência espiritual. Com efeito, como ele, conclui: é “mais fácil ser relativista entre os Azande do que entre nós”. (GOLDMAN, 2003, p. 453) Continuo não acreditando em espíritos, mas, como bem argumentou Jeanne Favret-Saada (1977), é possível crer (com frases do tipo “aqui tem coisa”) sem crer nos enunciados (do tipo “a coisa existe”); ou, é possível não acreditar, mas, num momento dado, acreditar. Ela foi afetada pelo sistema da bruxaria que foi estudar no Bocage (França). Quando alguém também enfeitiçado determinou que ela tinha sido pega por um feitiço, ela passou a Urpi Montoya Uriarte 149 frequentar as sessões de desenfeitiçamento. Foi afetada porque aceitou ocupar um lugar no sistema da bruxaria: o lugar de enfeitiçada. Eu também aceitei ocupar o lugar que me foi dado: o de aluna no curso de ver o lado oculto da Praça da Piedade e assim pude ser afetada por uma outra forma não de crer, mas de perceber a Praça: uma forma espiritual. Aceitei, pois, me permitir experienciar a realidade sem despi-la do lado fantasioso que ela contém. E pude ver, assim, o que Crapanzano (2005b) chama de “cenas”, ou seja, fragmentos de realidade cuja percepção está impregnada de possibilidades imaginativas. Este autor nos diz que há um “horizonte imaginativo da percepção”(CRAPANZANO, 2005a, p. 367), eu diria tão válido quanto o que poderíamos chamar de horizonte corporal da percepção. Aceitando este “horizonte imaginativo da percepção” pude perceber a Praça de outra forma, diferente da que tinha experienciado mediante a música. Deve haver muitas outras formas de experienciá-la e, portanto, narrá-la. Todas válidas, todas reais. Elas dependem das experiências que os nativos nos permitem ter, mas também das experiências que nós mesmos nos permitimos ter enquanto pesquisadores. Nesse sentido, concordo plenamente com o seguinte apelo de Michael Taussig: Antes que possa existir uma ciência do homem, é necessário que ocorra uma desmistificação e um reencantamento do homem ocidental, há muito tempo guardados, para que ele se insira em uma confluência bem diferente do eu e da alteridade. (TAUSSIG, 1993, p. 140) Para finalizar, voltemos às perguntas iniciais. O que a Piedade reúne? Como ela transforma? Seja como “imã espiritual” ou como “contexto de memória” marcado pelos boleros, a Praça da Piedade reúne personagens e memórias díspares. E acaba transformando a todos. Ninguém sai igual a como chegou.Essa transformação tem um mentor, um guia experiente, um personagem público essencial para a vida urbana da Praça da Piedade: chama-se Bob Baiano. 150 BOLEROS E ESPÍRITOS NA PRAÇA DA PIEDADE, CENTRO DE SALVADOR Figura 10 – Bob Baiano Fonte: Acervo da autora. Referências CARVALHO FILHO, M.; MONTOYA URIARTE, U. A Avenida Sete e seus transeuntes. 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Inicialmente, cabe lembrar um contexto no qual Simmel (1979) aborda, no plano histórico, uma singularidade da vida em uma metrópole,com o desenvolvimento de atitudes individuais como independência, impessoalidade, reserva, e defesa, o que afeta os tipos e circuitos de relacionamentos, primeiramente, em um círculo pequeno e fechado, contra círculos vizinhos ou antagônicos, e posteriormente, com o crescimento do grupo 155 que tende a trazer perda de unidade e afrouxamento da rigidez aos outros. Em outro instigante exemplo, Park, (1979) também parte de reflexões sobre a cidade interpretada como coletividade humana densa e heterogênea, que provoca o surgimento de um novo tipo de cultura através da passagem das relações primárias (família, unidade de vizinhança, e comunidade) para as relações secundárias, considerando que isto resulta em isolamento, segmentação de papéis, relações instrumentais (interesses, finalidades, resultados). Ainda seguindo a mesma tradição da Escola de Chicago, Wirth (1979) propõe uma definição sociológica de cidade – como modo de vida distinto – entendendo que o urbanismo não se reduz à entidade física da cidade mas à sua capacidade de moldar o caráter da vida social à sua forma especificamente urbana, o que se manifesta (também) em uma tendência ao desaparecimento dos vínculos – parentesco, sociabilidade, redução dos conhecimentos pessoais. Essas breves referências situam um modo de pensar a cidade como um lócus dos chamados centros nervosos dos dilemas atuais: das sociabilidades (isolamento – diante das relações de conhecimento pessoal, vizinhança, confiança, parentesco) ao estranhamento, e às novas formas de comunicação, e vivências urbanas; mas, ainda, das políticas das cidades, às novas configurações do trabalho e do consumo, e a um isolamento resultante das relações estruturais, e da ação (ou falta) do Estado e das classes dominantes. Esta última concepção introduz outros elementos conceituais que se impõem a partir da localização de grupos assemelhados pela relação de trabalho, que vivem em más condições, e moram em espaços-lugares separados, isolados, do restante da cidade.Isto remete, mais uma vez, à relação cidade-bairro, porém, concebida como uma resultante do próprio processo de formação de classe, tanto em um nível de formação política, dos movimentos sociais, como da qualidade de vida e reprodução da força de trabalho, envolvendo o acesso à moradia e aos bens de consumo, os quais passaram a ser considerados como um direito à cidade, como ocorreu em momentos históricos de lutas por melhores condições de vida e políticas públicas. Nesse sentido, Lefebvre (1991) contribui com importante reflexão sobre o lugar do bairro na cidade, introduzindo uma discussão sobre uma ideologia integradora, e indagando: – o bairro é ou não uma unidade de vida social? 156 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO Entre os critérios aqui lembrados para a busca de uma interpretação conceitual sobre a cidade e a dinâmica urbana, cabe agora encontrar critérios complementares que contribuam para uma definição dos bairros residenciais. Castells (1972, p. 155-163) estabelece a esse respeito interessantes diálogos, indagando qual o critério a se seguir para conceber a divisão do espaço (Cidade): – econômico, geográfico, ou por sentimento de filiação, de pertencimento a um lugar-espaço? Assim, os bairros são vistos como histórica e socialmente produzidos a partir de elementos de uma dada prática social e, neste sentido, são observados como resultados da combinação da vida social, vida de trabalho e relações de produção e consumo. Isto sugere que a cidade é uma totalidade e não pode ser resumida sob um só traço cultural, indagandose sobre o alcance de considerar-se a existência de tipos de comportamentos “urbanos”, por exemplo, caracterizados pela superficialidade dos contatos e a importância das relações secundárias. (PARK,1979) Em busca de outras contribuições teóricas a um debate sociológico sobre a relação cidade-bairro, destaca-se Bourdieu na obra Efeitos do lugar (1997) quando afirma que o valor do espaço físico, enquanto reificação do espaço social, pode ser calculado pela relação entre a distribuição de agentes e a distribuição de bens e serviços, convergindo com as definições anteriores sobre a cidade como espaço de consumo. Para este autor, as oposições sociais manifestas no espaço físico, a exemplo do binômio capital/província, são internalizadas de outras formas, através da linguagem e de comportamentos traduzidos em estruturas mentaisque emprestam as singularidades ao espaço social. Esta questão reaparece para Andrade e Silveira (2013), elucidando que na literatura sociológica o “efeito-território” se refere aos benefícios ou prejuízos socioeconômicos que são acometidos a determinados grupos sociais em função de sua localização espacial na cidade, enfatizando a existência de inter-relações entre as características dos espaços e as características dos grupos sociais. Estes argumentos sugerem que a relação cidade-bairro não se transpõe diretamente à relação centro-periferia em função das características e singularidades da urbanização. Por exemplo, Andrade e Silveira (2013) indicam como critérios de uma escala, o isolamento dos pobres, seja através dos limites ao seu deslocamento, seja pela distância da convivência com outros grupos sociais. Ou através de padrões identificados nas favelas incrustradas no Iracema Brandão Guimarães 157 centro de cidades, junto a bairros de classe média e alta, representando uma espécie de segregação de microescala, resultante da tensão pela proximidade entre grupos socialmente diferentes. As consequências de uma expansão periférica A partir da relativa localização de um ou mais eixos entre centro-periferia, torna-se necessário agora encontrar os argumentos que permitem articular algumas questões decorrentes da relação entre cidade-bairro no plano local. Para tanto, consideramos que o processo de urbanização e descentralização local se deu a partir de uma progressiva periferização, ou de seus prováveis novos ciclos, os quais não se referem apenas às formas de ocupação do espaço urbano mas demonstram necessidades e interesses de segmentos sociais, resultantes de “disputas”, de conflitos, que se refletem no plano social – vida social e vida de trabalho. A tendência à descentralização pode ser um processo implícito na urbanização, de caráter planejado, e relativamente controlado, mas em geral, os ciclos de periferização não seguem esta mesma racionalidade, capaz de promover ou assegurar a articulação e integração entre cidade-bairro. No presente trabalho, indagamos: até que ponto a forma como se deu a expansão urbana, enquanto expansão periférica, teve como consequência a criação de bairros estruturados ou consolidados nas áreas centrais e de residência das classes médias, enquanto nas demais áreas evidenciou-se uma negação das condições físicas e qualidades de vida próprias a um bairro. Cabe também indagar sobre a importância dos critérios mais sociológicos da concepção de um bairro – enquanto unidade de vizinhança (PARK, 1979), e enquanto parte de um todo (CASTELLS, 2009), para focalizar algumas tendências observadas e aplicáveis aos bairros da periferia. A tendência ao surgimento de “novos ciclos de periferização” na cidade de Salvador pode estar sugerindo que existe alguma correspondência com certas mudanças na dinâmica social dos bairros populares – naquele sentido de uma passagem (transição) das relações primárias (família, vizinhança, comunidade) para as relações secundárias. (PARK, 1979; WIRTH, 1979) A partir de 158 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO dados empíricos apresentados adiante, sugerimos a pertinência desta primeira consideração, e em um segundo momento, buscamos entender até que ponto é possível encontrar essa correspondência – não uma determinação – com um isolamento, no plano individual ou no plano estrutural, com base na fragilização dos vínculos sociais. A cidade e os bairros A noção de “expansão periférica” tem sido utilizada frequentemente para dar consistência a um complexo processo de ocupação do solo urbano por classes e grupos sociais. Esta expressão, já utilizada em relação à cidade de Salvador, referia-se a uma dinâmica de crescimento horizontal, realizada com ocupações consideradas primárias mas, ao mesmo tempo, pioneiras na conquista de novos espaços urbanos. (BRANDÃO, 1978, p. 157) Isso possibilitou a ocupação, desde o final do século XIX, e em função das migrações rurais, por grupos de baixa renda que formaram “vizinhanças esparsas” à margem das vias de comunicação/transporte, as quais deviam o seu crescimento ao incremento das correntes migratórias que originaram uma “expansão periférica”, processo que se intensificou a partir de 1950. Essa dinâmica de classes gerou uma tendência à segregação de aglomerados e áreas tecnicamente consideradas “subnormais” (IBGE, 2013), segundo o padrão das habitações. Entretanto, antes mesmo do período acima referido, a história da urbanização da cidade se desenrolou através de uma descentralização pouco planejada, gerando quatro tipos gerais de ocupações (BRANDÃO, 1978, p. 160): a) os trechos degradados das zonas norte e sul de transição do centro da cidade; b) as séries de habitações conhecidas por “avenidas”; c) os bairros pobres surgidos ou incrementados na primeira metade do século XX; d) as invasões, ou bairros de crescimento rápido que se intensificaram entre 1950-1970. Contribuindo com a proposta de tipologia da moradia popular em Salvador ai sugerida, Souza (2002, p. 78) propõe ainda a seguinte classificação: vilas habitacionais; loteamentos privados; ocupação coletiva por invasão; conjuntos habitacionais; loteamentos públicos; e outros tipos de parcelamentos Iracema Brandão Guimarães 159 informais. Nesta concepção, devido ao baixo poder aquisitivo da população o problema habitacional até esse período teria sido resolvido pelo “desbloqueio fundiário”, das áreas periféricas de arrendamento, através das ocupações coletivas por “invasão”, marcadas por uma gradativa substituição do sistema de arrendamento pelo chamado capital imobiliário moderno. (SOUZA, 2002, p. 67)E de um ponto de vista mais social, considera-se ainda que a cidade vivenciou um processo de urbanização excludente (CARVALHO; PEREIRA, 2006, p. 86), onde a realização de grandes obras no último período citado “acompanharam e anteciparam os vetores de expansão urbana e uma ocupação informal de famílias de baixa renda na periferia”, convergindo com o argumento da “expansão periférica” já abordado. Atualmente, segundo Santos (2010, p. 2), Salvador pode ser considerada [...] uma cidade policentralizada, possuindo três centros que se encontram formalizados no seu Plano Diretor. O primeiro, o Centro Tradicional, data do século XVI, tendo o seu ápice da mobilidade urbana no século XVIII e XIX, explicitada através da integração entre os diversos modos de transportes – veículos automotores, bondes, ascensores, pedestres – de uma forma que não mais se encontra hoje na Cidade do Salvador. As autoras citadas destacam ainda: O segundo, o Centro do Camaragibe (também conhecido como Centro do Iguatemi) teve sua urbanização iniciada na década de 1970 – considerado um centro pós e pró-automobilístico, baseado em investimentos para o sistema viário. O terceiro, é o Centro do Retiro - Acesso Norte, ainda em fase de formação, e implantado numa área considerada privilegiada em termos de localização, com altos investimentos públicos e privados. (SANTOS; FREITAS; SOUZA, 2010) Esta definição das centralidades não interfere ainda nos vetores de crescimento da cidade, também definidos no Plano Diretor, e situados em três grandes áreas: o Centro (que corresponde ao Centro Tradicional citado acima) 160 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO e Orla Marítima; o Miolo Geográfico; e o Subúrbio Ferroviário. Além disso, cabe registrar que as informações sobre a população da cidade de Salvador se encontram agrupadas segundo outro tipo de divisão identificadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como “Áreas de Ponderação”, que correspondem aos setores censitários delimitadas em até 400 domicílios, existindo 88 áreas que correspondem a “grupos de bairros” de toda a cidade. No plano analítico, é interessante observar que a redefinição das centralidades citada acima, contribuiu para o esvaziamento e a deterioração das funções urbanas do Centro Tradicional que foi consolidado a partir das relações socioeconômicas ali estabelecidas, tendo contribuído também para a fragmentação e segmentação do território urbano. (ROCHA, 2007 apud SANTOS et al., 2010) Diante disso, não se percebe tantas semelhanças com a relação centro-periferia que ocorreu em cidades cujo crescimento foi mais integrado, o que reforça o interesse da tipologia apontada por Brandão para a diversidade da moradia popular nessa cidade – compreendendo desde os trechos degradados das zonas norte e sul de transição do centro da cidade, até as “avenidas”incrustradas entre as áreas centrais, e os bairros pobres surgidos ou incrementados a partir da metade do século XX, seguidos das invasões, ou bairros de crescimento rápido que se intensificaram após os anos 60. O que o ciclo de expansão atual parece indicar é certo esgotamento dessas formas de ocupações, o que mostra uma diversidade (das favelas e da população favelada), permitindo colocar em cheque uma noção homogeneizadora destes espaços. (VALLADARES; MEDEIROS, 2003, p. 15) Compreendemos a afirmação da autora de que isto reforça a necessidade de se dar continuidade ao seu estudo como locais privilegiados – não apenas da habitação popular – mas da pobreza urbana e suas várias dimensões sociais. Seguindo esta sugestão, caberia delimitar alguns traços da tendência de crescimento da população residente nesses locais com vistas a entender os percursos de um amplo segmento da população através de suas necessidades habitacionais que fizeram o “crescimento periférico” ser entendido como a manifestação mais evidente de um processo de segregação, sendo considerado como uma marca da urbanização brasileira. (BONDUKI; ROLNIK, 1982 apud VITTE, 2010, p. 86) Nesse sentido, nos anos 1970/1980 o tema da periferização ganhou relevância e passou a ser utilizado como uma morfologia reveladora da segregação Iracema Brandão Guimarães 161 urbana, cujas causas principais eram, portanto, a evolução da propriedade privada e os interesses do capital imobiliário. Esses estudos passaram a caracterizar a periferia como sendo o espaço ocupado por moradias das classes populares, locais que apresentavam pouca infraestrutura, muitas vezes com autoconstrução, loteamentos irregulares e ausência de serviços públicos básicos, sendo, por tudo isto, espaços por excelência da precariedade e da escassez. Sem merecer, portanto, a denominação de bairros, mas de partes destes, a classificação técnica destas áreas de “precariedade e escassez” pode ser vista – em seu conjunto – na pesquisa sobre os “Aglomerados Subnormais”. (IBGE, 2013) Estes são definidos “de forma a abarcar a diversidade de assentamentos irregulares existentes no País, conhecidos como: favela, invasão, grota, baixada, comunidade, vila, ressaca, mocambo, palafita, entre outros”. (IBGE, 2013, p. 1, grifo do autor). A categoria de aglomerados subnormais, nesse sentido técnico, é formada por [...] áreas constituídas de um conjunto de, no mínimo, 51 (cinqüenta e uma) unidades habitacionais (barracos, casas precárias), em sua maioria destituídas de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. Sem considerar, neste momento, as singularidades de uma história da urbanização, é importante lembrar que o país tem atualmente mais de 80% da sua população total residente em áreas urbanas e quase dois quintos está concentrada em cidades com mais de um milhão de habitantes. Observa-se um significativo aumento do número de áreas (setores censitários) identificadas segundo o critério acima – favelas, invasões, ou aglomerados subnormais – independente de mudanças metodológicas no processo da pesquisa (IBGE, 2013), e do crescimento populacional esperado. Assim, a população residente nas áreas referidas anteriormente era a seguinte: 162 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO Quadro 1 – Brasil- População em aglomerados subnormais ANO CENSITÁRIO POPULAÇÃO RESIDENTE EM AGLOMERADOS 1991 4,4 milhões 2000 6,5 milhões 2010 11.425.644 pessoas Fonte: IBGE (2013). Neste levantamento, identificou-se a existência de 6.329 favelas em todo o País no ano censitário de 2010, o que representa 6% da sua população total. É interessante observar que o crescimento dessa forma de moradia ocorreu, apesar da população total do país apresentar uma tendência à desaceleração das suas taxas de crescimento, desde a década de 60. O acréscimo populacional (nascimentos, migrações) foi de 23,0 milhões de pessoas (15,6%) entre 1991/2000, e passou para 21,0 milhões de pessoas (12,3%) entre 2000/2010. A impressionante grandeza desses números expressa uma taxa média geométrica de crescimento anual em desaceleração, localizada em dois períodos não consecutivos: 2,99 % ao ano, entre 1950 e 60; para 1,17 % entre 2000 e 2010. (IBGE, 2013) Segundo Martine e McGranahan (2010, p. 17) “depois de meio século de urbanização concentradora, o Censo Demográfico de 1991 revelou uma interrupção significativa dessa tendência que parecia, até então, inexorável”. Assim, a taxa de crescimento urbano caiu de 4,2% a.a. na década de 70 para 2,6% a.a. na década de 1980. Todas as categorias de tamanho de cidades sofreram uma redução, mas a queda foi mais significativa nas cidades metropolitanas, as quais tinham se responsabilizado por 41% de todo o crescimento urbano nacional, tendo caído essa proporção para 30%na década de1980. Segundo esses autores, o ritmo de urbanização e de metropolização que tinha perdurado ao longo de meio século, havia sido finalmente interrompido. Esta queda na velocidade do crescimento e também da concentração urbana persistiu durante a década de 1990 e nas seguintes. Os seus fatores preponderantes foram: a culminação de um processo de desconcentração da atividade produtiva; a crise econômica que assolou a região na década de 1980 e, em parte da década de 1990; e a queda acelerada da fecundidade feminina. Houve uma estagnação nos municípios-núcleos das Regiões Metropolitanas Iracema Brandão Guimarães 163 (MARTINE; MCGRANAHAN, 2010, p. 19) mas acompanhada de novas demandas do capitalismo em sua versão mundializada (globalizada), apoiada em discursos sobre a importância da competição entre as cidades e a transferência ao mercado de muitas das funções tradicionais do Estado. Neste contexto de desenvolvimento, “a construção de moradias populares e de interesse social sentiu os reflexos negativos, contribuindo para a descontinuidade das políticas habitacionais”. (BALTRUSIS, 2010, p. 238) Apesar deste não ser o objetivo do presente trabalho, não se pode deixar de mencionar os esforços empreendidos para redução do déficit habitacional nos períodos referidos. Sendo o nosso objetivo trazer uma reflexão sobre algumas implicações do aumento das taxas de crescimento nas periferias das metrópoles, através de “novos ciclos de periferização” (ou descentralização), isso indica que houve continuidade da atração de migrantes de baixa renda – porém sugerindo que houve principalmente a transferência de moradores de outras áreas das próprias cidades. Isto decorreu do fato de que um dos mercados que mais cresceu e se diversificou, desde os anos 1970, em especial no estado de São Paulo, foi o de terras e de imóveis urbanos, com adensamentos de áreas, mas “principalmente com um novo ciclo de expansão periférica” (SPOSITO, 2004 apud VITTE, 2010, p. 86). Para Sposito (2004), tem havido uma redefinição da periferia em termos de formas produzidas e seus conteúdos, e certa justaposição entre conjuntos habitacionais implantados pelo poder público, e loteamentos populares, cuja paisagem frequentemente resulta da autoconstrução, junto a outras formas de ocupação. Estas mudanças na dinâmica urbana das Regiões Metropolitanas e do seu padrão de concentração populacional indicam que as periferias das metrópoles cresceram mais do que os seus núcleos centrais, implicando em aumento relativo das regiões mais pobres. Entre as 12 regiões metropolitanas brasileiras, os municípios centrais cresceram em média 3,1% entre 1991 e 1996, enquanto os municípios periféricos cresceram 14,7%. Dessas metrópoles, as periferias que mais se expandiram, no período, foram: Belém (157,9%), Curitiba (28,2%), Belo Horizonte (20,9%), Salvador (18,1%) e São Paulo (16,3%). (IPEA, 1999) Por outro lado, em algumas metrópoles a diminuição do crescimento dos centros transformou-se em crescimento negativo dos bairros centrais, como já foi mencionado. 164 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO No caso da Região Metropolitana de Salvador, composta por 13 municípios, identificou-se um total de 290.488 domicílios particulares ocupados – segundo o padrão de aglomerados subnormais – dos quais 94,9 % estavam na cidade de Salvador. Admitindo-se a coincidência entre os aglomerados e as favelas, observou-se também uma mudança na relação entre o município núcleo e a periferia desta Região Metropolitana, já observada acima. Isto ocorreu, tanto pela diminuição da migração rural-urbana, como por um aumento dos fluxos intrametropolitanos – e ainda, em função dos custos da moradia na cidade. O quadro seguinte mostra a classificação das metrópoles brasileiras em 2010, segundo a população residente em “aglomerados subnormais” ou favelas, no qual Salvador ocupa o 4º. Lugar. Quadro 2 – Brasil - Regiões Metropolitanas POPULAÇÃO RESIDENTE EM AGLOMERADOS SUBNORMAIS (Nº. ABSOLUTOS) REGIÕES METROPOLITANA TOTAL DA POPULAÇÃO RESIDENTE RM São Paulo 19 611 862 2 162 368 Riode Janeiro 11 793 174 1 702 073 Belém 2 097 287 1 131 268 Salvador 3 564 343 931 662 Recife 3 676 067 852 700 Fonte: IBGE (2013). Detalhando as informações do Quadro 2, as maiores concentrações da população residente nos “aglomerados” em Salvador encontram-se ao norte do município, onde ocupam predominantemente áreas de vertentes e fundos dos vales, e ao longo da Baía de Todos os Santos, entre as regiões de Itapagipe e dos Subúrbios Ferroviários, ocupando, em boa parte, as antigas áreas alagadas. Existem, ainda, grandes concentrações de aglomerados subnormais contínuos, próximos à tradicional área central de Salvador, entre os subdistritos da Vitória (Rio Vermelho e Barra) e Brotas, que correspondem às áreas de ocupações mais antigas. (IBGE, 2010) De um modo geral, a situação fundiária dos assentamentos populacionais é difícil de ser identificada e nem mesmo os governos municipais têm esse conhecimento atualizado, o que dificultaria uma classificação rigorosa. Iracema Brandão Guimarães 165 (MARICATO, 2000) Esta autora lembra que se somar-se o universo dos loteamentos ilegais, deve-se chegar à maior parte da população dos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, naquele período, ainda que os números sejam imprecisos. Essa questão pôde ser observada através de informações levantadas em trabalho de campo realizado em Salvador (MATTEDI; QUEIROZ, 2006, p. 5), com base em uma amostra de 20 assentamentos,1 no qual confirma-se a informação sobre a questão fundiária: [...] a realidade observada mostrou-se de forma não muito diferenciada daquela já conhecida e esperada: apenas 32% dos entrevistados declararam-se proprietários legais; 45%, são proprietários informais, adquiriram o terreno, embora em mãos de terceiros, ou posseiros, não dispondo, portanto, da escritura do mesmo; e, apenas, 22% declararam não se considerar proprietário do terreno. A análise do tempo de moradia em alguns desses locais indica que a maior parte dos assentamentos (ou “aglomerados subnormais”) não é recente. Mattedi e Queiroz (2006, p. 10) observaram que, segundo o tempo de residência, 39% dos domicílios foram construídos nos últimos 10 anos, geralmente como produto de autoconstrução, enquanto, 61% do conjunto, há mais de 11 anos, no período compreendido entre 1970 e 1994. Esses autores concluem sobre a necessidade de se levar em conta [...] um processo freqüentemente longo, algumas vezes interminável, e sempre muito sacrificado do ponto de vista econômico, no qual se assume a responsabilidade de erguer um espaço que sirva de abrigo para si e sua família. Os motivos que levam a tal determinação em geral referem-se à incapacidade deste segmento social em acessar o mercado capitalista de terras e de habitação urbanas. 1 Os Bairros selecionados a partir do PEMAS-SSA foram os seguintes: Engenho Velho da Federação; Uruguai; Pirajá; Liberdade; Macaúbas; Lapinha/Soledade; Vale das Pedrinhas; Boca do Rio; Paripe; Mata Escura; São Marcos; Pau da Lima; Praia Grande; Ondina e São Lázaro; Mussurunga; Castelo Branco; Nova Brasília e Calabar. 166 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO Questão semelhante foi observada em outro trabalho de campo efetivado através de procedimento aleatório em 2014. Os dados mostram que a maior parte das ocupações ou assentamentos populares não é recente e, apenas em poucos casos observam-se ocupações recentes no chamado núcleo urbano desta cidade, por razões específicas como o custo da moradia e o crescimento do mercado informal já citado. Neste segundo procedimento (GUIMARÃES,2014),2 seguiu-se: – a escolha de sete (7) áreas pesquisadas (Narandiba, Acupe de Brotas, Alto do Coqueirinho, Rocinha do IAPI, Roberto Santos, e Águas Claras); – seleção a partir da lista dos aglomerados subnormais em Salvador (IBGE); – realização de entrevistas com 23 moradores. Dentre estes, 2 entrevistados disseram morar de aluguel; 9 disseram que a casa foi comprada e possuem escrituras; 8 não souberam responder; 2 disseram que a casa é própria, porém não explicitaram se possuíam escritura; e apenas 2 disseram que a casa é oriunda de invasão/ocupação. Estas informações permitem levantar suposições sobre semelhanças e diferenças a respeito do crescimento das periferias das metrópoles, sugerindo-se que a moradia nos bairros populares existentes na cidade de Salvador tende a se dar menos através de novas ocupações/invasões e, provavelmente, cada vez mais por adensamento, pelo aluguel dos imóveis construídos pelos antigos moradores/ocupantes, e por esta dinâmica de um mercado informal de habitações nos bairros populares. Descentralização e periferização - o bairro e a cidade Para melhor situar algumas implicações das questões indicadas acima, apresentamos a seguir um desenvolvimento dos argumentos sugeridos ao longo desta abordagem. Tendo em vista que o crescimento e evolução dos bairros em uma cidade como Salvador foram marcados por um longo processo histórico de descontinuidades na economia, no povoamento, e na urbanização, 2 O segundo levantamento referido foi realizado no âmbito do projeto apoiado pelo CNPQ “Dinâmicas Urbanas e Mudanças nas Práticas Comunitárias”, coordenado por Iracema Brandão Guimarães, tendo contado com a participação dos bolsistas Pibic: Poliana Jesus de Souza; Simone Silva Nascimento; Alexnaldo Neves de Jesus; Jéssica Cristine da Silva Costa. Iracema Brandão Guimarães 167 entendemos que existem opiniões divergentes dentro das Ciências Sociais sobre o que venha a ser periferia. No Brasil, a definição clássica de periferia veio à tona com a antropóloga Eunice Durham (1986, p. 86): A população pode estar em toda parte nas grandes cidades. Habita cortiços e casas de cômodos, apropria-se das zonas deterioradas e subsiste como enclaves nos interstícios dos bairros mais ricos. Mas há um lugar onde se concentra, um espaço que lhe é próprio e onde se constitui a expressão mais clara de seu modo de vida. É a chamada periferia. A periferia é formada pelos bairros mais distantes, mais pobres, menos servidos por transportes e serviços públicos. Holston (2013, p. 198-199) lembra que o uso da palavra “periferia” em São Paulo, para se referir às terras nas margens da cidade, provavelmente, data dos anos 1940. Este autor considera que a partir dos anos 1960 se tornou uma forma popular de designar os assentamentos de pessoas, além do perímetro de serviços urbanizados e de infraestrutura da cidade. Prossegue, afirmando que só quando aquelas regiões distantes estavam se enchendo com milhões de moradores pobres foi que este termo substituiu os antigos termos ‘subúrbio’ e ‘zona rural’; depois disso surgiram discursos políticos que se homogeneizaram em um conceito político único de periferia, sem referir-se mais ao espaço externo excluído do capitalismo em que existem as subclasses, mas referindo-se a relações de produção social do espaço e relações de poder. Também para Preteceille (2003) a qualidade dos espaços residenciais não é o resultado natural e imutável da distância em relação ao centro ou da evolução histórica da cidade, mas é também efeito das políticas públicas, que podem transformar essa qualidade através da criação de infraestruturas de equipamentos e serviços. Isto sugere que ao estudar um bairro popular, o papel dos agentes do poder é fundamental por envolver as determinações das desigualdades materiais e simbólicas. Assim, Castells (1972) entende que a forma como uma sociedade está dividida é associada aos processos pelos quais seus espaços 168 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO foram criados e transformados, imprimindo características aos bairros e cidades, o que expressa as disputas e conflitos entre os diferentes grupos sociais. Kowarick (1994) já discutia que a periferia urbana já não se apresentava de maneira tão homogênea quanto no seu processo de formação, como no caso de São Paulo. A periferia não fica somente à margem da cidade, mas a periferia urbana consiste em uma condição de pobreza, indiferente da localização no espaço geográfico. A condição social de pobreza está tanto na periferia como no centro e, embora este autor não negue a importância analítica da relação centro-periferia, argumenta que essa dualidade pode ser mais complexa, o que confirma a discussão colocada na primeira parte deste trabalho. Tanto no centro como na periferia existem territórios empobrecidos e as periferias urbanas são a expressão social da pobreza, percebendo-se a sua existência tanto no centro tradicional, no caso de Salvador, quanto na periferia distante. Cabe agora retomar algumas considerações anteriores sobre uma definição mais sociológica dos bairros. A primeira refere-se a Castells (2009, p. 155-163) quando indaga qual o critério a se seguir para conceber a divisão do espaço (Cidade): econômico, geográfico, ou por sentimento de filiação, de pertencimento a um lugar-espaço? Nesta concepção encontramos uma indicação mais exata de que a definição procurada pode depender dos objetivos da análise e dos princípios teóricos adotados, uma vez que os critérios econômicos e geográficos são necessários para muitas questões práticas, inclusive, para os problemas da gestão urbana e de aplicação das políticas públicas no plano local. Ao lado desta referência, encontra-se a contribuição de Lefebvre (1991) sobre o lugar do bairro na cidade, apoiada em uma discussão mais complexa sobre uma ideologia integradora, o que pressupõe a existência de processos de segregação a partir de uma não integração dos indivíduos no plano cultural. O autor indaga: o bairro é ou não uma unidade de vida social? Essa questão se desdobra em um debate sobre o acesso à cidade e seus recursos, uma questão mais ampla que leva a considerar-se o “acesso à cidade” como um direito que deveria resultar de um processo de democratização e amadurecimento do sujeito político, mas que termina sendo negado à boa parte da população, como nos casos brasileiro e baiano, em decorrência da própria história da urbanização e descentralização dos locais de moradia popular. Até que ponto a negação desse direito faz parte da vida dos moradores Iracema Brandão Guimarães 169 de determinados bairros ou conjunto de bairros como espaços separados, isolados do conjunto da cidade, é uma questão mais ampla que pode merecer um tratamento específico. Entretanto, mesmo representando pressupostos teórico-metodológicos diversos, retomamos alguns argumentos aos quais outros autores se referem, enquanto princípio também aplicável às sociedades mais simples. Referimo-nos a Park (1979) quando admite que a proximidade e os contatos entre vizinhos são as bases mais elementares de associações na vida citadina, considerando esta a mais importante referência sobre um bairro. Mas o autor também admite que pode haver uma perda de significância da vizinhança no meio citadino, atribuída aos meios de transporte e comunicação. Em outros momentos, também se refere aos fatores que transformam um grupo considerado fechado, como a chegada de estrangeiros, migrantes etc. Esta questão remete à indagação já colocada anteriormente sobre até que ponto “os novos ciclos de periferização”, identificados em Salvador, podem também expressar uma passagem das relações primárias (família, vizinhança, comunidade) para as relações secundárias, considerando-se a ocorrência de alguns dos processos anteriores. Esta análise deve ser precedida de uma breve localização das condições de vida da população com vistas a indicar a unidade da presença de trabalhadores empobrecidos, como mostrou Lucio Kowarick (1994). A partir da análise de dados agregados já se tem mostrado algumas relações entre a segregação socioespacial da pobreza e concluído que esta se consolidou e intensificou com o surgimento da Salvador moderna. Para isso, os autores associaram os dados aos vetores de crescimento da cidade, como indicadores das áreas residenciais, segundo o Plano Diretor Urbano de Salvador: Centro Tradicional e Orla, Miolo Geográfico, e Subúrbio Ferroviário. (CARVALHO; PEREIRA, 2006) Com base nas características das famílias e na posição na ocupação/trabalho das pessoas identificadas como responsáveis pelo domicílio, é possível observar como estão relacionadas à distribuição residencial, entendendo-se essa relação como indicadora das condições de vida existentes. Os dados abaixo mostram a classificação dos bairros residenciais nos quais se encontrou os maiores percentuais de “empregados sem carteira assinada”, conforme a categoria do Censo Demográfico que separa esse contingente dos empregados 170 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO “com carteira assinada”, ou seja, com estabilidade no emprego. Essas relações de trabalho podem expressar um tipo de segregação espacial representada na localização dos bairros pobres. (GUIMARÃES, 2009) Quadro 3 – Salvador. Empregados sem registro e local de residência FAZENDA COUTOS JARDIM C. ALVES FAZENDA GRANDE BAIRRO DA PAZ CAIXA D’ÁGUA PERO VAZ ITINGA BONFIM 24,0 23,3 23,7 22,9 20,8 20,3 22,0 22,7 Fonte: IBGE (2000). A denominação genérica de trabalhadores informais pode ser compreendida segundo o critério censitário de “empregados sem carteira assinada” (sem registro), os quais residem com maior frequência em Fazenda Coutos (24%), um antigo bairro do tradicional Subúrbio de Salvador, seguindo-se os bairros de Jardim Castro Alves, Fazenda Grande (no Miolo Geográfico), Bairro da Paz e outros. Esta denominação de trabalho informal também compreende a atividade por conta-própria que sempre representou uma parcela bastante significativa das ocupações em Salvador, abrangendo tanto as atividades na construção civil, exercidas individualmente, como o comércio ambulante e tantas outras atividades nas quais o trabalhador não vende sua força de trabalho, mas apenas seu produto ou serviço. Suas maiores proporções são encontradas entre os responsáveis pelos domicílios residentes em Caixa D’Água e Nova Constituinte (35,6% e 33,9% respectivamente), e as menores estão entre os residentes em Fazenda Coutos (19,3%). Juntando-se as duas categorias de trabalho citadas acima chega-se a perto de 50 % dos responsáveis pelos domicílios nesses bairros aqui selecionados, existindo ainda os desempregados. A isto se deve associar os baixos níveis de rendimentos, e o acesso a trabalhos precários (formais ou informais), que por sua vez decorrem dos baixos níveis de escolaridade, verificando-se que quase metade dos mesmos (48,99%) tem de um ano ao máximo de oito anos de estudo, o que abrange o ensino fundamental. Tal situação encontra-se mais concentrada entre os responsáveis pelos domicílios residentes em bairros como:São Cristóvão (63%); Arenoso (63%); Nogueira e Cajazeiras VIII (61%). Sabendo-se que esta realidade não se afasta do perfil de boa parte dos Iracema Brandão Guimarães 171 trabalhadores do total de Salvador, dos quais 45,60% dos responsáveis por domicílios têm entre um e oito anos de estudo. Corroborando com esta identificação das relações de trabalho, prevalecentes entre moradores dos bairros da periferia, Mattedi e Queiroz (2006) indicam que as necessidades habitacionais dos entrevistados em 20 assentamentos existentes em Salvador e já citados, resultam do fato de grande parte destes se encontrarem fora do mercado de trabalho (50%), embora desenvolvessem frequentemente atividades de pequeno comércio na residência. Segundo os autores, entre os entrevistados que estavam trabalhando, 31% o faziam na condição de assalariados, embora destes, apenas 24% com registro em carteira de trabalho. Estas referências às relações de trabalho podem dar conta da fragilidade da situação econômica que predomina nesta população, condicionando o acesso à moradia e também ao processo de consumo que caracterizam a reprodução cotidiana. Existem, portanto, fatores que agem conjuntamente, provocando a fragmentação dos vínculos e laços comunitários, se admitirmos a existência de correlações entre vida de trabalho e vida social – através de um estudo das práticas sociais que podem influir na constituição de um espaço, atribuindo ou não as particularidades a um bairro – maior ou menor funcionalidade das redes de vizinhança. Entre outros autores, indicamos Rocha (1999) ao refletir sobre os contextos marcados por contínuas crises econômicas e desemprego. Esta autora mostra que os mesmos tendem a provocar uma erosão dos sistemas de apoio e proteção que incidem nas redes sociais, de reciprocidade, e ajuda mútua que emergiam entre trabalhadores informais, como formas de amenizar a escassez do salário, mas elas nem sempre funcionavam como “colchões amortecedores da pobreza”, devido às mudanças na função de proteção social exercidas tradicionalmente pela família – e sua inserção na comunidade ou vizinhança. Isto porque as redes de intercambio e reciprocidade alimentam as expectativas dos participantes de receberem bens e serviços e de retribuí-los, o que exige custos materiais, tempo, dedicação, e “disponibilidade”, trazendo dificuldades de retribuição nas situações de intensa pobreza – e causando rupturas nas redes de vizinhança. 172 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO Estas redes se manifestam em um plano interfamiliar, no qual as relações de confiança são atribuídas a vizinhos e amigos, envolvendo distintos graus de reciprocidade e interação entre as unidades residenciais, nas situações em que compartilham funções domésticas. Nas unidades mais amplas, como o bairro ou a comunidade, amplia-se o foco sobre o papel-chave exercido – nesse plano da sociedade – pelas relações primárias de sociabilidade, que envolvem diferentes formas de vínculos para a obtenção de recursos não monetários – envolvendo o intercâmbio de favores e serviços os mais diversos, como o cuidado dos filhos – ou monetários, a exemplo de empréstimos financeiros. (OLIVEIRA; SALES, 1991 apud GUIMARÃES, 2011) O acesso da população aos serviços e às políticas públicas se agrega aos recursos mobilizados pelas famílias, propiciando-lhes uma complementação da reprodução cotidiana. A partir de um contexto semelhante identificamos certa tendência ao desaparecimento dos laços comunitários e vínculos, em decorrência de um distanciamento e isolamento resultante de um amplo e complexo processo no qual se situam: o aumento da violência, a presença de “estranhos” na comunidade, e a dificuldade de restabelecer as relações de confiança no atual cenário das favelas e periferias. (GUIMARÃES, 2011) O acesso a serviços também indica que as características dos ciclos de periferização e os seus moradores, se refletem em aspectos da dinâmica urbana como um conjunto no qual o acesso à cidade é visto a partir do seu papel de espaço de consumo – sistemas de saúde, educação, transporte, abastecimento e lazer – percebendo-se que a sua organização ou ordenamento tende à descentralização, o que contribuiria para uma gradativa substituição da busca de favores entre vizinhos. Entretanto, existe precariedade dos serviços no próprio bairro, e o acesso à cidade como espaço de consumo oferece dificuldades. Como exemplo empírico, observamos também que no plano interfamiliar citado anteriormente, a residência em um bairro há cerca de dez anos, em média, tende a levar as moradoras ao afastamento das famílias de origem (residentes em áreas rurais ou bairros distantes), e à convivência com situações de fragilização da rede familiar como âmbito de exercício da solidariedade. Na vida cotidiana, elas afirmam, em relação à rede de apoio: Iracema Brandão Guimarães 173 Os parentes estão longe; A família mesmo é mais difícil, tornase mais fácil contar com um estranho; Ter um bom amigo vale mais do que parente; Não recorro à família, apesar de me relacionar bem com irmãos. (GUIMARÃES, 2009, p. 8) Nesse sentido, concordamos com Cabannes (2006) quando considera: se a vizinhança é uma vivência comum em relação ao espaço público (a rua), as famílias das camadas populares são mais expostas às influências externas e apresentam pouco grau de autonomia do espaço privado em relação ao seu mundo social e a espaços públicos – bairro, comunidade. Dando continuidade aos exemplos empíricos indicados anteriormente, tais mudanças vêm sendo observadas em outros bairros de Salvador. As relações de vizinhança, à primeira vista, são apresentadas sob a forma da cordialidade e sociabilidade: Todo mundo se dá, me relaciono com todos; Aqui não tenho o que dizer dos meus vizinhos. Mas, indo além da aparência, o distanciamento se faz presente e sinaliza para as rupturas e perdas do caráter comunitário, que são exemplares nas situações comuns a dois bairros: Todo mundo se dá, mas não conto muito com vizinhos, não costumo conversar sobre problemas pessoais. (Bairro de Coutos, Subúrbio Ferroviário). Não gosto muito de envolvimento com vizinhos, é bom a gente cá e ele lá, aprendi com minha avó.”; “Eu aqui não vou à casa de ninguém, agora, se precisar de ajuda, eu dou, aí é diferente.”; “Gosto dos vizinhos, mas eles lá e eu cá.”; “Porque eu só vivo dentro de casa, não tenho aproximação com ninguém assim da rua, tem gente aí que eu nem conheço. (Bairro do Uruguai, Subúrbio Ferroviário). Observamos que a tendência ao distanciamento se acentua, tanto no caso do bairro de Fazenda Coutos, situado acima por apresentar uma concentração maior de trabalhadores informais, como no bairro do Uruguai, um bairro distante do Centro tradicional desta cidade. Entretanto, estar localizado em uma área geográfica próxima ao centro, e consequentemente, com melhor acesso 174 DINÂMICA URBANA E CONTEXTOS DE PERIFERIZAÇÃO aos serviços básicos e infraestrutura, representa um diferencial para os moradores de bairros populares situados como enclaves entre bairros de classe média e alta. Neste caso, os moradores indicam o quanto são beneficiados na questão do deslocamento e facilidade de transporte público. Porém, nos aspectos sociais, os moradores de “aglomerados subnormais” situados próximos ao centro da cidade também experimentam mudanças nas formas de convivência que são percebidas de forma sutil, através dos estereótipos atribuídos aos moradores de determinado bairro, a exemplo do bairro de Nordeste de Amaralina, considerado um dos bairros mais violentos de Salvador. Trata-se de um bairro conhecido pelas situações de risco a que estão expostos os seus jovens moradores, que enfrentam problemas decorrentes do “efeito do lugar” (BOURDIEU, 1997) como: não ser contratado, após ter revelado em uma entrevista de emprego o bairro onde reside; ou um taxista se recusar a levar um passageiro ao bairro, entre outras situações. Em outro bairro situado como enclave no Centro tradicional da cidade, conhecido com “Alto das Pombas”, os jovens moradores demonstram um distanciamento que apenas tende a ser superado através das suas participações em instituições existentes, ou introduzidas no bairro, possibilitando uma ressignificação de práticas comunitárias. Conclusão A busca de novos espaços de moradia pela população pobre tem sido assim um fator constante que resulta das relações de poder e propriedade em suas dimensões locais. Por tudo o que foi discutido, o uso da expressão “expansão periférica” na atualidade deve ter como referência uma dinâmica de crescimento produzida pela expansão da urbanização e seus movimentos de retração e desconcentração com novos contornos, uma vez que nas maiores metrópoles brasileiras, como também no caso de Salvador, é possível observar o que se denomina de novos ciclos de periferização que decorrem das mudanças dos processos demográficos, dos novos direcionamentos dos fluxos de mobilidade residencial, e do surgimento de um mercado informal de moradia com valorização de imóveis, tal como vem ocorrendo nas favelas situadas nas diferentes cidades brasileiras. Mas toda essa dinâmica urbana Iracema Brandão Guimarães 175 decorre, principalmente, da falta de acesso da população pobre à moradia, como processo histórico. Existem bairros onde os vínculos de proximidade desaparecem e outros onde sobrevivem, em função, geralmente, do tempo de residência e do conhecimento recíproco entre as famílias que definem “a vizinhança”. Observase, acima de tudo, que a ressignificação de práticas comunitárias tende a ocorrer em situações consideradas mais extremas, em emergências como necessidades de socorrer alguém próximo, e ainda, pela existência de interesses comuns diante de situações que implicam em remoção de populações diante de projetos de intervenção. (NUNES, 2006) Em todos os casos, os princípios de reciprocidade – envolvendo solidariedade e confiança – não são vistos como naturais, espontâneos (em um sentido humanitário), uma vez que isto dificultaria a percepção e interpretação do quanto se encontram expostos a ameaças na contemporaneidade, configurando “rupturas do tecido social”. Mas buscamos demonstrar o quanto estes processos de periferização tendem a manifestar correspondências com uma transição da “unidade de vizinhança” em função dos diversos fatores aqui apresentados. Referências ANDRADE, L. T.; SILVEIRA, L. S. Efeito território: explorações em torno de um conceito sociológico. CIVITAS, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 381-402, maio/ago. 2013. BALTRUSIS, N. Transformação do modo de morar nas metrópoles contemporâneas, novos discursos, velhos problemas. Caderno CRH, Salvador, n. 59, maio/ago. 2010. BOURDIEU, P. Efeitos do lugar. In: BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 159-166. BRANDÃO, M. de A. Origens da expansão periférica de Salvador. Revista Planejamento, Salvador, v. 6, n. 2, p. 155-171, 1978. CABANNES, R. Espaço privado e espaço público: o jogo de suas relações. In: TELLES, V. da S.; CABANES, R. (Org.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006. CARVALHO, I.; PEREIRA, G. 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(SOUZA, 2000, p. 275) Os referidos artigos, que tratam do uso capião urbano e da obrigatoriedade da elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) para municípios com população urbana superior a 20 mil habitantes, foram regulamentados apenas em 2001 pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), 179 considerado um avanço jurídico no tocante à garantia de participação nos processos de planejamento e gestão, explicitando as funções sociais da cidade e da propriedade. Nossa carta magna protege e garante, portanto, a propriedade privada, mas lhe atribui uma função social de uso e ocupação, o que em última instância é um princípio básico de combate à especulação imobiliária. Copa das Copas? A estratégia dos megaeventos e as táticas de resistência A urbanista Raquel Rolnik, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, visitou as cidades-sede da Copa – não esquecendo que o Rio também sediou as Olímpiadas em 2016 – e constatou que os direitos das milhares de famílias desapropriadas em função da instalação de infraestrutura para os megaeventos não foram respeitados: as pessoas receberam compensações insuficientes, não houve reassentamento em locais com condições melhores ou equivalentes àquelas onde moravam antes da desapropriação ou, nos casos de reassentamento em conjuntos do Minha Casa, Minha Vida, esse se deu em áreas muito distantes dos locais originais de moradia. (ROLNIK, 2014) Na Região Metropolitana do Recife, Rolnik sequer conseguiu audiência com vereadores ou prefeitos dos municípios envolvidos. De acordo com os órgãos municipais, as indenizações eram baixas porque os moradores não tinham a escritura dos terrenos, contrariando o que dispõe a constituição com relação ao uso capião urbano: mesmo sem o documento os moradores estavam exercendo seu direito de propriedade sobre terrenos que de fato eram seus. No Rio, a relatora viu tratores derrubando casas “com as coisas das pessoas dentro”, sem respeito ao “direito à moradia para todos”. (AMORIM, 2013; VIEIRA, 2014) A Copa 2014 foi, paradoxalmente, muito mais refletida e debatida na Europa do que no Brasil, com disponibilização de muitos dados sobre desapropriações, as obras realizadas e as lutas urbanas dos “novíssimos” movimentos sociais. Há, nesse momento na Europa, um forte interesse sobre as jornadas de junho de 2013 e as novas formas de ativismo social nas cidades brasileiras. Por outro lado, pouco se sabe fora do Brasil sobre o movimento de reforma 180 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE urbana e suas consequências para o surgimento dessa legislação considerada “de ponta” mundo afora (Estatuto da Cidade, função social da propriedade, uso capião urbano, obrigatoriedade de participação popular no planejamento e de elaboração de plano diretor de desenvolvimento etc.), que nem sempre é respeitada por nossos gestores municipais. Na verdade, a Copa serviu para revelar os limites e as possibilidades de sucesso dessas lutas e desses ativismos. Em junho de 2014 a Initiative für Globales Fair Play organizou uma mesa redonda “FIFA: Oásis de Isenção Fiscal”, em Viena, na Áustria, com a auditora fiscal da Receita Federal e fundadora do Instituto de Justiça Fiscal, a economista Maria Regina Duarte, e o jornalista de economia suíço Jean François Tanda que, há anos, se dedica a reportagens sobre a atuação da FIFA ao redor do mundo: as falas de ambos foram esclarecedoras, no sentido de mostrar como a FIFA se beneficia, como organização suíça sem fins lucrativos, de leis de isenção nos países-sede dos grandes eventos esportivos. (VIDC, 2014) Tanda apresentou números relativos aos impostos pagos pela FIFA na Suíça (lá ela não tem isenção fiscal total), sublinhando o fato de os montantes declarados pela organização esportiva em seu site nem sempre corresponderem aos dados divulgados pelo governo suíço, denotando a falta de transparência da organização. Duarte, por sua vez, ressaltou a cultura de isenção de impostos para as grandes empresas e corporações, que nesta Copa atingiu a cifra de 1 bilhão de reais. Foi enfática ao afirmar que 84% dos recursos investidos na infraestrutura para a Copa no Brasil foram públicos, com a atuação decisiva do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e da Caixa Econômica Federal. Chamou ainda atenção para o impacto das desapropriações – cerca de 250 mil famílias atingidas – e a não isenção fiscal para pessoas físicas, pequenas e médias empresas. Os números da Copa 2014 foram de fato grandiosos: 26 bilhões de reais de gastos, com 36% de lucro a mais que na última Copa na África do Sul (que rendeu 7 bilhões de reais de ganhos). Não é à toa: a “Copa das Copas” foi assistida por 46% da população do planeta, permitindo à FIFA e a seus parceiros bons e vantajosos negócios no Brasil. Por outro lado, as conquistas dos movimentos sociais foram na prática revogadas com uma legislação de exceção para a realização do evento esportivo. Finda a Copa, as leis de exceção ainda parecem vigorar nas cidades-sede. Angelo Serpa 181 Em Salvador, por exemplo, donos de serralherias questionam a desocupação de imóveis na Ladeira da Conceição para viabilizar um projeto de requalificação que busca transformar as oficinas em “residências artísticas”, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Um dos moradores produz ferramentas e esculturas para o Candomblé desde sua infância, outro serralheiro alega que tem recibo de compra e venda da propriedade e está com o Imposto sobre a Propriedade Predial Urbana (IPTU) em dia. Agora, são pressionados pela Secretaria Municipal de Urbanismo (SUCOM) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) federal a deixarem seus imóveis, sem garantia de indenização ou transferência para outro local. Na verdade, este projeto é exemplar para sublinhar a falta de transparência e participação da população nos processos de decisão sobre os destinos da cidade. Os serralheiros querem voltar às oficinas após a requalificação: eles são inegavelmente um patrimônio imaterial da cidade que deveria ser preservado com o reconhecimento do lugar como área de proteção cultural e paisagística de Salvador. (MACHADO, 2014; SILVEIRA, 2014) No bairro Dois de Julho, um grupo de artistas vem ocupando a Vila Coração de Maria, convocados pela diretora de teatro Ivana Chastinet, que mora no lugar há mais de quatro décadas e agora se vê ameaçada de despejo pela Irmandade São Pedro dos Clérigos, que quer viabilizar ali a construção de um edifício-garagem. A ocupação artística é um grito de resistência e um alerta para o fato de que a Vila deveria ser preservada, pois está em zona de proteção cultural e paisagística, resguardada por lei municipal de 1983. Chastinet ressalta que o processo de especulação imobiliária vem se estendendo por toda a área, onde o empreendimento Cloc Marina Residence teve momentaneamente suas obras suspensas em 2013 por ação impetrada pelo Ministério Público estadual, pois fere a legislação ambiental (está em área de proteção rigorosa). Mesmo assim, as obras foram retomadas e finalizadas. A Vila Coração de Maria não é um caso isolado. Não longe dali, em um casarão dos anos 1930, funciona a Casa Preta Espaço de Cultura, na Rua Areal de Cima no bairro Dois de Julho, frequentada por artistas e intelectuais. Grupos artísticos residentes como o Vilavox, entre outros, estão engajados nesse momento em um projeto de dinamização do espaço, com uma programação contínua envolvendo atividades de formação e intercâmbios, espetáculos 182 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE teatrais, shows e performances. Para garantir o pagamento do aluguel e a subsistência da casa, os grupos residentes e gestores cedem também espaços para ensaios, apresentações e locações cinematográficas. A Casa Preta interage com os moradores do bairro, onde suas atividades foram bem acolhidas e são frequentadas pela vizinhança do entorno. (PARANHOS, 2014) Percebe-se que as diferentes ocupações artísticas do centro antigo de Salvador são também políticas e oferecem um contraponto à lógica oficial dos megaeventos e dos grandes espetáculos, tão evidente atualmente nas ações dos poderes públicos e da iniciativa privada na capital baiana. São muitos os interesses em jogo no Dois de Julho, com grandes empresas imobiliárias associadas ao capital financeiro para implementar o projeto do Cluster Santa Tereza (e o estereótipo da “decadência” do centro antigo é a principal justificativa para o excludente “desenvolvimento imobiliário” proposto), que busca valorizar ainda mais o lugar, com consequente substituição de população. Alguns moradores se organizam e tentam resistir à especulação através do movimento “Nosso bairro é Dois de Julho”, com manifestações artísticas, oficinas, exposições etc., organizadas regularmente nos últimos anos. Conforme Mourad e Figueiredo (2014, p. 272-273), No Cluster Santa Tereza as características do processo de gentrificação podem ser percebidas através dos empreendimentos residenciais de luxo, que já estão sendo comercializados [...] O valor do imóvel evidencia o tipo de usuário que o projeto pretende atrair, bem distante dos segmentos de baixa renda que demandam moradia. Ao mesmo tempo em que são utilizados os atributos históricos e a vista diferenciada para a Baía de Todos os Santos, vários imóveis desvalorizados, em ruínas ou degradados, estão sendo adquiridos, e funcionam como objeto do capital especulativo. Deve-se insistir nesse contexto na obrigatoriedade da participação popular para elaboração da Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo (LOUOS) e do PDDU. Porém, a participação deveria ser incorporada não só na elaboração dos novos instrumentos, mas também no cotidiano de gestão e planejamento da cidade, se constituindo em um valor inegociável que Angelo Serpa 183 perpassasse governos e instituições, garantindo eficácia operacional aos processos de gestão urbana e de elaboração e implementação de projetos de habitação de interesse social bem como de programas de regularização fundiária em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Participação popular e o papel dos conselhos municipais Manchete do jornal A Tarde destacou em março de 2014 que “PDDU e LOUOS saem em 2015”. (SANTOS, 2014) O compromisso foi firmado pela prefeitura municipal no Seminário Salvador 500 anos, que reuniu especialistas em desenvolvimento urbano em um hotel de luxo da cidade, com o objetivo de “elaborar o planejamento urbano, social e econômico da cidade nos próximos 35 anos”. Os novos PDDU e LOUOS foram ambos aprovados pela câmara municipal e sancionados pelo prefeito em 2016. Para evitar a judicialização, afinal ambos os instrumentos aprovados em 2011 pela câmara foram decretados inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça da Bahia (a LOUOS apenas parcialmente), a prefeitura enfatizou que a elaboração dos projetos teria participação garantida da sociedade, para diagnosticar, projetar e debater a cidade que os soteropolitanos desejam para as próximas décadas. Em um contexto institucional tão adverso, com pouca transparência na disponibilização de informações de interesse social e com conselhos municipais inexistentes ou inoperantes, pergunta-se: que modelo de participação poderia ter sido adotado pelo governo municipal para em tão pouco tempo viabilizar a votação de ambos os instrumentos? Segundo Sean Cornely, já desde a decisão de elaborar determinado plano, programa ou projeto, a participação proporciona uma imagem favorável, com foros de credibilidade junto à população; durante suas diversas fases o processo será participado por amplos setores da sociedade, gerando dados mais realistas e elementos qualitativos, evitando-se desse modo a utilização exclusiva de dados quantitativos que, muitas vezes, escamoteiam informações importantes para o processo de mudança social. A participação estimula os cidadãos a tomar consciência de seus problemas e a desenvolver sua criatividade na busca de soluções. (CORNELY, 1980) 184 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE O planejamento participativo gera planos mais realistas e adaptados à realidade concreta que se quer mudar e aos meios que a sociedade pode dispor, fortalecendo as forças favoráveis à mudança e minando as forças de resistência; amplia e fortalece o foco decisório, incorporando-lhe novos contingentes populacionais; canaliza positivamente os conflitos de interesses, garantindo uma visão mais pluralista com predomínio dos interesses das maiorias. Isso diminui também o risco da descontinuidade político-administrativa comum na execução de planos, programas e projetos. (CORNELY, 1980) Obviamente, como alerta Cornely (1980), a participação pressupõe uma estratégia clara de institucionalização para evitar manobras manipulatórias, que redundem em uma participação aparente, concedida, limitada, vigiada e tutelada pelos governos, como forma de aliviar tensões e pressões e, assim, perpetuar situações indesejáveis, que os planos, programas e projetos deveriam transformar. Isso exige uma reflexão séria sobre o funcionamento dos conselhos municipais (da cidade, de meio ambiente, de desenvolvimento urbano, de transportes etc.), canais institucionais que poderiam possibilitar maior controle sobre as atribuições da prefeitura, devendo ter caráter deliberativo, abrangente e permanente, em todo o processo de formulação e implementação de políticas públicas. Aqui é importante pensar também na legitimidade das representações do governo e da sociedade civil nos conselhos, sua representatividade em termos sociais e territoriais. Em Salvador, o Conselho Municipal – Conselho da Cidade – foi instalado só em outubro de 2014, com a posse de seus 41 membros, às vésperas do início das discussões sobre o PDDU e a LOUOS. Segundo o secretário de Urbanismo e Transportes, a composição da entidade foi definida na Conferência Municipal da Cidade ocorrida em 2013. O Conselho não tem, no entanto, caráter deliberativo. Representantes da Federação das Associações de Bairro de Salvador temem que o Conselho sirva apenas para protocolar projetos de interesse da prefeitura e para atender a pressão do Ministério Público, e não para promover intervenções mais avançadas na cidade, como a destinação de áreas centrais para a construção de moradias populares. Aliás, como o ocorrido com o Conselho Municipal de Transportes, instalado em 2013 às vésperas da abertura de licitação para as linhas de ônibus na cidade. (SILVA, 2014) Assim como o Estatuto da Cidade, os conselhos municipais são inovações institucionais que por si mesmos não garantem maior participação, mas podem Angelo Serpa 185 estabelecer estruturas mais horizontais para a discussão pública de assuntos de interesse da cidade. Com conselhos funcionando plenamente, evitar-se-ia a velha prática de realização de audiências públicas pontuais para legitimar uma frágil participação popular nas discussões sobre os destinos da cidade, evitando-se também futuras batalhas judiciais em torno dos novos PDDU e LOUOS e do mesmo modo garantindo políticas habitacionais mais próximas das realidades baiana e soteropolitana, onde o déficit habitacional se concentra em uma demanda não solvável e a produção habitacional de mercado – majoritária! – está voltada prioritariamente para segmentos de renda média a alta. Sobre o boom imobiliário em Salvador e a construção de cidades fantasmas O boom imobiliário em Salvador baseia-se na produção de imóveis como mercadorias, ou melhor, como investimentos, muito mais rentáveis que os fundos de renda fixa e a caderneta de poupança. Toda a polêmica dos últimos anos em relação ao Plano Diretor e às modificações na Lei de Ordenamento do Uso do Solo não evitou – e até favoreceu – essa situação que pode ser bem ilustrada com a imagem de uma “cidade fantasma”. A professora Ana Fernandes, da Faculdade de Arquitetura da UFBA, considera que esta produção de novos espaços de moradia “se pauta hoje por uma população inexistente”, já que não há demanda possível para essa enorme quantidade de imóveis. (FERNANDES, 2010) Os espaços novos já nascem velhos, devastando e esvaziando áreas inteiras da cidade: são, na verdade, espaços fantasmas, como podem ser observados em diversas cidades norte-americanas e agora também na China. A construção de imóveis na China responde por 12% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Mas muitas dessas casas, torres de escritórios e lojas continuam vazias; há, em algumas cidades, distritos comerciais e residenciais inteiros que sequer chegaram a ser ocupados. A maior parte destes imóveis pertence a investidores privados da classe média em ascensão. Como no Brasil, investir em imóveis rende mais que ações, fundos ou caderneta de poupança. Cerca de 30 milhões de chineses são proprietários de mais de um imóvel. (SETTI, 2012) 186 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Em Salvador, somente a região da Avenida Paralela dispõe de mais de 900 imóveis à venda. (TORREÃO, 2012) Especialistas afirmam que a grande disponibilidade de imóveis é devida aos numerosos lançamentos imobiliários dos últimos anos. A região transformou-se no maior vetor de crescimento da cidade, concentrando muitos empreendimentos. A situação se repete no Cabula, onde um único empreendimento, o Horto Bela Vista, tem 19 edifícios residenciais, agrupados em cinco condomínios. O complexo dispõe também de um shopping, que, depois de inaugurado, valorizou entre 20 e 30% os imóveis mais próximos. Com tantos imóveis disponíveis, era de se esperar uma redução no déficit habitacional da cidade. Mas não é o que ocorre, já que esse déficit se concentra nas famílias de baixa renda, para quem a oferta é bem menor que a demanda. No início dos anos 2000, o déficit habitacional de Salvador era de 81.429 moradias. Em 2007, mais de quatro mil famílias viviam em condições irregulares ou em ocupações do Movimento dos Sem Teto de Salvador. Entre 2005 e 2007, de acordo com dados da Fundação João Pinheiro, houve um discreto decréscimo do déficit habitacional, de 165 mil para 100 mil unidades. Em 2010, o déficit habitacional na cidade era ainda de 106 mil unidades, o quarto maior déficit do país, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília (BRASIL; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2009, 2013), continuando, portanto, bastante significativa a ausência de moradia para a população de baixa renda na cidade. A ausência de moradia para a população de baixa renda é comprovada pelo Censo Demográfico de 2010, que revelou que a Bahia tem cerca de 970 mil pessoas vivendo em aglomerados subnormais. Em Salvador são 882 mil pessoas morando em 272 aglomerados subnormais, o equivalente a 33,07% da população da capital na época. (IBGE, 2010; AZEVEDO; OLIVEIRA, 2011) Ou seja: falta moradia para alguns e, para outros, sobra imóveis para investimento, o que indica finalmente a irracionalidade do desenvolvimento urbano em Salvador na última década, transformando áreas inteiras da cidade em espaços fantasmas. No Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aventa, inclusive, a possibilidade de existência de uma bolha imobiliária que pode estourar caso as taxas de juros se elevem. O aumento dos preços dos imóveis Angelo Serpa 187 é, segundo o IPEA, incompatível com a realidade do mercado brasileiro. O aquecimento do mercado imobiliário no país deve-se em grande parte ao crescimento da oferta de crédito, além da intensificação de programas e obras do governo federal. O volume de crédito habitacional, por exemplo, subiu de 1,5% do PIB em 2007, para mais de 5,5%, em 2012. Por outro lado, os juros caíram e os financiamentos do setor habitacional são feitos hoje a taxas bem mais reduzidas. Isso se reflete na alta do preço de imóveis, inclusive em Salvador, onde, porém, a alta não acompanhou o ritmo de outras capitais (12% entre agosto de 2010 e fevereiro de 2012, contra 58% no Rio de Janeiro, 51% em Recife, 43% em São Paulo, 36% em Belo Horizonte, 27% em Brasília e 22% em Fortaleza). (MENDONÇA; SACHSIDA, 2012) Em bairros como Patamares, na orla atlântica da cidade, os imóveis se valorizaram, segundo especialistas, em até 100% no intervalo de quatro anos. (LOPO, 2012) Isso é resultado, entre outros fatores, de uma articulação entre o sistema financeiro e o mercado imobiliário, assim como ocorre em outras cidades do país. Um forte indício é o crescimento dos investimentos em fundos imobiliários no Brasil: com cotas negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA), esses fundos têm perfil similar às aplicações de renda fixa, mas com características de renda variável, e são isentos de imposto de renda. (SORIMA NETO, 2012) Desse modo, além de investir diretamente no mercado de imóveis, pode-se investir em fundos imobiliários, mas esse tipo de aplicação também oferece riscos, como vacância e desvalorização dos imóveis e inadimplência de aluguel. Seja através do investimento em imóveis comuns ou em fundos imobiliários, modifica-se a paisagem das cidades, com a verticalização e a valorização acelerada do solo urbano e dos novos empreendimentos. Por fim, cabe ressaltar a potencialidade do Estatuto da Cidade, como o faz Rodrigues (2005), bem como a ampliação da obrigatoriedade da elaboração, com participação popular, de um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, a partir do estabelecimento de novos critérios que vão além da dimensão da população urbana, como é o caso dos municípios integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas e também daqueles localizados em áreas de especial interesse turístico e atingidos por impacto ambiental de âmbito regional e nacional. 188 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE No entanto, ainda faltam, para a maioria dos municípios brasileiros, leis específicas que regulamentem Estudos de Impacto de Vizinhança, instrumentos fundamentais para a gestão coletiva e a construção do Direito à Cidade; assim como também “base conceitual ou parâmetros indicativos para limitar a especulação”, já que, “para definir critérios é necessário pensar em censos, levantamentos de dados do intra-urbano”. (RODRIGUES, 2005, p. 105) Como, por exemplo, para identificação dos imóveis subutilizados, averiguando quais destes imóveis foram deixados propositadamente vazios, aguardando valorização. Só assim será possível fazer valer os instrumentos coercitivos previstos no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores, como o IPTU progressivo no tempo e, no limite, a desapropriação dos imóveis sem função social, para diminuir efetivamente o déficit habitacional em nossas cidades. Referências AMORIM, E. Famílias desapropriadas por Copa lutam por indenizações em Pernambuco. Terra Brasil. Recife, 7 dez. 2013. Disponivel em: <http://esportes.terra.com.br/futebol/ copa-2014/familias-desapropriadas-por-copa-lutam-por-indenizacao-em-pernambuco,5b5 a7b11599c2410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html>. Acesso em: 16 nov. 2014. AZEVEDO, M.; OLIVEIRA, M. IBGE: 882 mil pessoas vivem em ocupações irregulares na capital baiana, diz IBGE. A Tarde, Salvador, 2011. p. A4. BRASIL. 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WIENER INSTITUT FÜR INTERNATIONALE DIALOG UND ZUSAMMENARBEIT. Nosso Jogo: Initiative für globales Fair Play. Viena: mai. 2014. 190 DIREITO À MORADIA E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Glória Cecília dos Santos Figueiredo Brais Estévez PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Vida Urbana Negra e Máquina Patrimonial Introdução Neste artigo queremos compartilhar um conjunto de aprendizados e reflexões alcançados pela iniciativa coletiva da Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador (CHS). A Perícia Popular foi um espaço de colaboração urbana, criado em 2016, por meio de uma aliança entre a Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico de Salvador (Amach) e um grupo de estudantes, professoras e pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia (UFBA) – principalmente da sua Faculdade de Arquitetura (FAUFBA). No devir dessa colaboração, as pessoas envolvidas na Perícia Popular, incluindo as autoras deste artigo, participaram da construção de uma expertise 191 coletiva que, dentre outras coisas, fez emergir um conjunto de questões urbanas que vinham sendo ignoradas pelos porta-vozes oficiais da cidade – particularmente, os desejos, as demandas e urgências colocadas por um grupo de moradoras organizadas na Amach. Essa prática investigativa também não restringiu seu papel a uma dimensão crítica, enunciativa ou esclarecedora. Pelo contrário, apostou por produzir um espaço de experimentação política, engajado com algumas práticas desobedientes que disputavam as formas convencionais de fazer cidade. Nomeadamente, aquelas formas de habitar divergentes das definições institucionais do Centro Histórico, que, há quase 30 anos, enfrentam a política racializada de despossessão e cercamentos urbanos executada através do Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador (PRC). Dos primeiros séculos da colonização – com uma marcada presença negra de escravizados, libertos, ganhadores e quituteiras – ao presente, o Pelourinho renova uma contínua importância como lugar, tanto de remanescência como de acolhimento da negritude, que constantemente se reposiciona frente a históricos e reiterados processos de despossessão. Esses processos incluem uma abolição sem integração, crises econômicas severas – como as do açúcar, do cacau ou da reestruturação produtiva industrial metropolitana do século XX –; mas também as remoções promovidas por intervenções urbanas modernizadoras. Dois processos-chave se articulam com o arruinamento físico e a informalização do Pelourinho, que, a partir dos anos de 1960 e mais notadamente nos anos de 1990 – com o advento do PRC –, vão justificar diferentes iniciativas de preservação e tombamento desse espaço. O primeiro é a saída das elites do núcleo colonial tradicional, desde fins do século XIX, movida por valores sanitaristas e pela busca de signos, formas e localizações urbanas da modernidade. O segundo é a formação da centralidade do Iguatemi, em fins dos anos 1970, envolvendo um deslocamento dos órgãos do governo do estado, dos centros financeiros e das atividades comerciais mais rentáveis do Centro tradicional para essa área de expansão, mudança essa associada à emergência da nova ordem urbano-industrial metropolitana. (GOMES; FERNANDES, 1995; VASCONCELOS, 2016) Todas essas iniciativas de tombamento – em um primeiro momento, chamadas de reconstrução e, posteriormente, de recuperação – foram planejadas 192 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR para a preservação da materialidade urbana do Pelourinho. Aquele espaço urbano era um lugar monumental, emblemático e ancestral, reconhecido em todo o Brasil tanto pela riqueza das suas arquiteturas coloniais e barrocas como pelas suas raízes africanas. O empenho institucional com a preservação material desse conjunto urbano acabaria dando lugar, já em 1985, à declaração do Pelourinho como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em 1992, o processo de transformação urbana do CHS foi sistematizado no PRC, um programa de recuperação administrado pelo governo estadual, dirigido na altura pelo oligarca baiano Antônio Carlos Magalhães. Aquele programa articulou um ambicioso projeto de transformação que pretendia converter um conjunto arquitetônico em ruínas – povoado por uma infinidade de formas de vida subalternas e precárias (ESPINHEIRA, 1971) – em um proscênio turístico – normalizado e pacificado. Esse movimento desterritorializador (DELEUZE; GUATTARI, 2010) foi articulado em torno de ideias aparentemente autoevidentes e consensuais, como patrimônio, turismo e cultura. No seu devir, o PRC desmantelou um mundo popular, uma cidade negra, cujas relações de imanência seriam reorganizadas pela ação de uma poderosa e transcendental máquina patrimonial. (COLLINS, 2015) Desse modo, os novos agenciamentos coletivos de enunciação e maquínicos dos corpos, com os quais a máquina patrimonial materializava e avançava no chamado processo de recuperação, nem ampliaram, nem potencializaram as possibilidades de existência dos moradores. Pelo contrário, esses novos agenciamentos em curso implicaram a expulsão da mesma população que, durante décadas, havia tomado conta, sem qualquer tipo de apoio público, do CHS. Com aquela intervenção, o patrimônio deixou de fazer parte de uma relação imanente para se tornar uma representação transcendente mais vinculada ao valor de troca (FERNANDES, 2014) e aos interesses das tecnologias de poder. O PRC, iniciado em 1992, foi pautado pela criação de novos produtos e destinos turísticos, que incluíam a refuncionalização do Pelourinho na forma de um “shopping center a céu aberto”. (SANT’ANNA, 2017) O programa teve sete fases, sendo que as seis primeiras, realizadas de 1992 a 1999, foram um grande fracasso econômico (SANT’ANNA, 2017), além de comportarem uma política de remoções muito violenta, que expropriou pelo menos 4 mil Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 193 pessoas. (MOURAD, 2011) Apenas na sétima etapa, iniciada no ano 2000 e ainda inconclusa, houve a incorporação do uso habitacional, devido às críticas e contestações das fases anteriores, que se deu principalmente pela mobilização e ações de grupos de moradoras. (MOURAD, 2011; SANT’ANNA, 2017) Ora bem, tal e como trataremos neste artigo, a experiência da Amach nos ensina que os processos de despossessão e violência racial – como aqueles conduzidos por agentes estatais e corporativos em intervenções urbanas contemporâneas – sempre se deparam com formas de vida que articulam divergências e praticam uma confrontação generativa. No caso do PRC, tanto a despossessão urbana, como a distribuição assimétrica e seletiva das infraestruturas que esse programa condiciona, são violências raciais que indicam conexões e imbricações entre práticas históricas de banimento racial – como uma forma de violência jurídico-institucional – e modos contemporâneos de extrativismo financeiro. (ROY; ROLNIK, 2020) A inscrição, sobreposição e atualização dos circuitos neoliberais de acumulação operam em Salvador por meio de mecanismos de expropriação sobre a matriz colonial e racial – remarcando as vidas negras como desenraizáveis. (CHAKRAVARTTY; SILVA, 2012) As diferenças raciais são (re)criadas e atualizadas, dando lugar a padrões específicos de subordinação, resistência e negociação. (GILROY et al., 2019) Uma inter-relacionalidade complexa, na constituição e transformação da cidade, se evidencia pelas conexões entre mecanismos de despossessão e reposicionamentos da negritude, que redefinem constantemente as ecologias políticas dos territórios. Isso nos leva, ao mesmo tempo, tanto a reconhecer e denunciar o caráter antinegritude dessas versões hegemônicas de infraestruturas como a afirmar a condição heterogênea e performativa delas. A virada infraestrutural acontecida na última década nas ciências sociais (AMIN, 2014; GRAHAM; MCFARLANE, 2015) propiciou duas mudanças significativas: uma de natureza ontológica, que destacou a condição heterogênea das infraestruturas e a dificuldade de estabelecer uma fronteira nítida entre o técnico e o social; outra, de carácter político, que multiplicou o leque de atores, fenômenos envolvidos e articulações possíveis das infraestruturas. Como efeito desse deslocamento epistemológico, as abordagens tradicionais que entendiam as infraestruturas como questões de fato e de domínio exclusivo dos técnicos e especialistas perderam protagonismo em favor de conceituações mais abertas e descentralizadas. 194 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Partindo dessas discussões, queremos destacar que as infraestruturas não são simples intermediários, técnicos ou passivos, de projetos neutrais administrados por políticos e técnicos. Pelo contrário, elas integram processos complexos que afetam a vida cotidiana da cidade e promulgam determinadas formas de vida em detrimento de outras. Portanto, elas podem ser pensadas como questões de interesse (LATOUR, 2004) – isto é, como questões abertas à discussão pública e, aliás, como questões que “podem ser articuladas e cuidadas, também, por meio de novas relações tecnológicas e coletivas”. (ESTÉVEZ, 2019, p. 18, tradução nossa) Parece-nos importante ter atenção aos conflitos que atravessam a implantação do PRC, entendidos como espaços tanto de litígio como de interação e reformulação das relações (LUGAR COMUM; COLETIVO TRAMA, 2020), em que se articulam campos divergentes e assimétricos que compõem a cidade de Salvador. Essas divergências são aqui entendidas, em diálogo com o trabalho de Blaser e De La Cadena (2017, p. 188, tradução nossa), enquanto diferenças ativas que implicam um processo contínuo, aberto e negociado de mudança da qualidade dessas relações: [...] os incomuns não devem ser conceituados como uma expressão de diferenças fossilizadas preexistentes (isto é, um monte de práticas ou ‘coisas’ que sempre estiveram lá como iguais a si mesmas e diferentes umas das outras), mas sim como um processo contínuo e processo de divergência em constante mudança. Ou seja, esses espaços, socialmente complexos, envolvem formas divergentes de habitar, possíveis por meio de uma variedade de tecnologias de invenção, manutenção e reparo de infraestruturas, diretamente vinculadas às possibilidades emanadas das redes de relações sociais. De algum modo, isso remete à longa história de habitar as cidades negras estudada por Simone (2015, 2019). Quando dizemos que os projetos de infraestruturas oficiais em Salvador são antinegritude, estamos dizendo que eles são pensados e implementados sem nenhum cuidado com as vidas negras dos territórios que dizem querer servir. Como se esses modos de vida – suas dinâmicas internas, circuitos econômicos, infraestruturas, relações e formas de sociabilidade – não Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 195 tivessem valor material nem simbólico diante das abstrações coloniais que nutrem as narrativas da despossessão. (CHAKRAVARTTY; SILVA, 2012; SILVA, 2014) Na tensão entre modernização e modernidade que estimula este estudo, ressoam o tempo todo algumas discussões tratadas pelos Black Studies, pelos urbanismos do Sul e descoloniais que achamos importante trazer à tona. Como afirmou Paul Gilroy (2002, p. 18, tradução nossa), “uma das características definitivas do racismo contemporâneo é sua capacidade de primeiro definir os negros no dístico problema/vítima e depois expulsá-los do ser histórico”. Nesse sentido, notamos a identificação axiomática que muitos discursos modernizadores fazem da população negra como seres humanos incompletos e, também, dos territórios negros como espaços incompletos, “nos termos de normas e valores emergentes da cidade moderna”. (SIMONE, 2017, tradução nossa) Alguns autores têm estudado como esses mesmos discursos modernizadores associaram historicamente a negritude “com um certo senso de decadência” (MOTEN, 2008, p. 177, tradução nossa) e, de maneira mais concreta, com lugares de “deterioração ambiental, social e de infraestrutura”. (MCKITTRICK, 2011, p. 951, tradução nossa) Essa identificação axiomática é também recorrente nos estudos urbanos, sendo que aqui pontuamos algumas abordagens que remetem à (re)produção capitalista do ambiente construído e da cidade, focalizando ora a ação estatal e das corporações, ora as lutas e os conflitos em torno dos movimentos e ativismos urbanos. Nesse campo, tem espaço significativo uma crítica ao mainstream da economia urbana e ao mantra da inevitabilidade da racionalidade do mercado e da precificação do solo como cerne da definição de usos – e do domínio – da cidade. No entanto, essa crítica – ao priorizar a denúncia das hierarquias urbanas como questões de fato – parece apenas confirmar um lugar para sempre subalterno da maior parte das moradoras, que se vincula à naturalização da concentração da propriedade e da instrumentalização capitalista da cidade. Corremos, assim, o risco de cair na armadilha da reificação da cidade pós-política, que reduz a política urbana a uma questão técnica e administrativa de responsabilidade de especialistas e políticos profissionais. (BEVERIDGE; KOCH, 2016) Em grande medida, essa problemática dos estudos urbanos está no fato de seguirmos atados aos esquemas epistêmicos convencionais, dos quais derivam leituras e modos de pensar-fazer cidade a 196 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR partir das nossas conhecidas dicotomias em vôo de satélite – formal/informal, legal/ilegal, regular/irregular –, na qual a outridade da cidade é reduzida a um pólo deficitário, de falta e escassez. Mas a questão torna-se ainda mais grave quando notamos que essas abordagens acabam por corroborar com práticas de violência racial historicamente marcadas pela destituição de humanidade pela atribuição de uma deficiência ontológica da negritude. Ora, como tentamos mostrar neste artigo, as coisas na cidade negra sempre são mais complexas do que as visões dominantes fazem crer; aliás, negritude e modernidade nunca foram alheias. Alguns autores falam de “modernidades fugitivas” (KRUG, 2018) para referir-se às práticas, narrativas e instituições produzidas pela diáspora negra durante e após a escravidão. Outros destacam que a escravidão “não impediu geografias negras, ao invés disso incitou práticas alternativas de mapeamento [...] muitas das quais foram/são produzidas fora dos princípios oficiais da cartografia”. (MCKITTRICK, 2011, p. 949, tradução nossa) Denise Ferreira da Silva (2014, p. 284, tradução nossa) enfatiza a importância de reconhecer práticas capazes de “romper o circuito de despossessão e desenhar mecanismos para reparação do valor total expropriado”. Colaborações entre a universidade e territórios negros, como a Perícia Popular, buscam, de certo modo e dentro dos limites e possibilidades que as condicionam, enfrentar esses desafios ao considerar que as formas de vida e as iniciativas coletivas que povoam, compõem e sustentam a cidade não seriam apenas remendos. Também não são simples arranjos sobrevivenciais de uma cidade sempre em falta, defeituosa ou incompleta diante da cidade formal habitada pelas elites. Muito pelo contrário, todos esses agenciamentos coletivos nos informam sobre modos de conhecer e habitar as cidades ininteligíveis para os marcos conceituais modernos e cuja existência coletiva excede o lugar da falta. Cidades historicamente cercadas e subjugadas, mas onde nunca pararam de emergir formas de vida, sociabilidades e infraestruturas comuns. Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 197 A Perícia Popular do Centro Histórico de Salvador: encontro, colaboração e redistribuição epistêmica Fizemos uma Perícia popular para saber quem e como está aqui; como e o que é este bairro; para saber se o bairro está doente e se precisa remédios. (AMACH, 2017)1 Os aprendizados e reflexões trazidos no corpo deste artigo foram possíveis desde a experiência da Perícia Popular, que reuniu professoras, estudantes, Amach e moradoras do Pelourinho. Por meio desse encontro, foi possível um reconhecimento e uma elaboração coletiva de questões significativas dessas moradoras e dos seus modos e condições de vida, impactados pela intervenção modernizadora do Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador (PRC), quase 30 anos depois do seu início. Essa experiência teve início em 2016, no âmbito de um intercâmbio acadêmico – envolvendo o grupo de pesquisa Lugar Comum, da FAUFBA, o The Bartlett Development Planning Unit of University College London e sete importantes movimentos, associações e coletivos urbanos de Salvador, incluindo a Amach – que se desdobrou nesse mesmo ano na criação de uma disciplina extensionista de Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) da UFBA: a Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador – ofertada pela FAUFBA em colaboração com a Amach. Inicialmente, a Perícia Popular foi concebida como um instrumento de ação coletiva, voltado para o reconhecimento e a avaliação de situações de vida coletiva em contextos de vulnerabilização social – provocados pela ação direta do Estado, notadamente, após acordos formalizados entre as partes envolvidas (AMACH; UFBA, 2017), tensionando os diagnósticos e pareceres autoritários da violência epistêmica do Estado, encarnada em técnicos e dirigentes, para os quais os conhecimentos dos habitantes não tem valor. Nos múltiplos encontros, através da realização de rodas de conversa, reuniões, oficinas de cartografia social, leituras territoriais, entrevistas, relatos 1 Entrevistas diversas com membros da Associação de Moradorese Amigos do Centro Histórico de Salvador (AMACH), Salvador, 2016-2017. 198 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR orais e escritos de moradores(as), visitas, vistorias, aulas, ações de comunicação, campanha pela reativação da Cozinha Comunitária e audiências – incluindo uma audiência cidadã convocada pela Amach –, a Perícia Popular reconheceu um leque heterogêneo de problemas ligados à implementação do PRC, que serão tratados mais detalhadamente na próxima seção. Uma questão central colocada pelas moradoras foi a de que o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) conquistado em 2005, que deveria assegurar “o direito que a gente ganhou e que garante a moradia da gente”, vinha sendo desrespeitado, trazendo como consequência um grave processo de abandono e precarização. Figura 1 – Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador. Fonte: elaborada por Flora Menezes Tavares com base em Amach e UFBA (2017). Durante o primeiro ano da Perícia Popular, também iniciamos um processo de diálogo com a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) para que o mundo comum da sétima etapa pudesse ser pensado coletivamente. As moradoras queriam reativar o Comitê Gestor e a Perícia se dedicou a isso com intensidade. Ora, a campanha de mobilizações, conversas e encontros; todas as atividades e iniciativas dispostas, Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 199 fundamentalmente, para reativar o Comitê Gestor foram sabotadas constantemente pela tirania de um poder técnico que simplesmente queria entregar os últimos imóveis e livrar-se definitivamente da sétima etapa. Como se a política urbana e as necessidades da população mais precarizada pudessem se cancelar facilmente. Aquilo que a gente queria, no espírito da cosmopolítica (STENGERS, 2005), era reabrir o processo e manter ele aberto permanentemente por meio de um espaço em que, além de administrar as questões relativas ao TAC, pudessem incorporar as novas questões, demandas e desejos da sétima etapa. Mas isso não foi possível; a Conder não teve a menor intenção de abrir as portas de um processo de experimentação política. O cosmos que os técnicos do Estado imaginavam para um CHS patrimonializado não tolerava a presença de modos de existência subalternos, e aquele excesso deveria desaparecer ou se tornar invisível. A falta de afetividade, cuidado e de ética política por parte dos técnicos coadjuvava no enfraquecimento de uma comunidade muito precarizada, que tinha e tem muitos problemas para se reproduzir: “Não tem uma farmácia, não tem creche, não tem uma cantina, não tem xerox, não tem luz quando escurece”. (AMACH, 2016) Frente à impossibilidade ou à impotência para sustentar o direito à cidade por meio da interlocução com o poder público, a Perícia Popular decidiu apostar por costurar comunidade e agenciar práticas de reinstituição e cuidado dessa comunidade; práticas que defendam e façam possível a existência dessa comunidade. Maria Puig de la Bellacasa (2017) argumenta que defender a necessidade vital do cuidado equivale a defender relações sustentáveis e florescentes, e não simplesmente sobrevivencialistas ou instrumentais. Assim, na linha de menos protestos e mais arranjos autônomos e cuidadosos que fortaleçam a comunidade, a Perícia Popular passou a atuar na campanha pela reabertura da cozinha comunitária – como alternativa de trabalho, mas também como espaço coletivo de convivência e fortalecimento da autonomia e articulação, com base no cooperativismo e na economia solidária e, também, na criação de uma comunidade de práticas e aprendizagem que envolve diferentes movimentos do Centro Antigo de Salvador com o intuito de praticar o encontro e costurar uma comunidade que, com certeza, vai para além da sétima etapa do CHS e cuja fragmentação facilita a expansão da necropolítica. (MBEMBE, 2018) 200 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Articulado a esse sentido, a Perícia Popular decidiu, então, enfrentar um novo desafio. Se até agora nos movimentamos no espaço da crônica: aquilo que diz como as coisas acontecem, decidimos dar um pulo e nos comprometer com a ficção: aquilo que diz como as coisas podem acontecer. A ficção como diz Rancière (2012), não é o oposto da realidade, mas a construção de um senso de realidade. Os sensos de realidade que estamos construindo têm a ver, em primeiro lugar, com um ensaio de política experimental que pensa e quer desenvolver políticas para o Centro fora dos canais tradicionais. A Perícia Popular se coloca, assim, como um experimento coletivo, um espaço de encontro, agenciamento e subjetivação crítica que, por meio de uma política da igualdade cuidadosa – que propõe uma nova “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2009) –, luta coletivamente e, a partir do encontro, contra as ficções necropolíticas (MBEMBE, 2018) da racionalidade político-urbanística implementada pelo Estado. Uma das questões que a Perícia Popular traz à tona tem a ver com o desafio cosmopolítico (LATOUR, 2004; STENGERS, 2005) da construção de um mundo comum. Enquanto a máquina patrimonial (COLLINS, 2015) dirigida pelos portavozes oficiais do Centro Histórico, se esforça em restringir – à maneira dos cercamentos – um processo de transformação urbana que, no seu devir, sacrifica formas de vida e modos de existência – fundamentalmente aqueles da população negra que durante décadas habitou, cuidou e sustentou o CHS –, a Perícia Popular confirma que o acontecimento ainda não terminou. Não se trata, portanto, simplesmente de denunciar descasos e avaliar descumprimentos, mas de articular de maneira coletiva “a produção de capacidades comuns”; isto é, criar difração e pensar a partir dos modos de existência violentados, das vidas negras “descartáveis” (SIMONE, 2016) e da criatividade das lutas, as questões que afetam o futuro comum – e aberto – da sétima etapa. A experiência da Perícia Popular significou também um modo de rearticulação do continuum das historicidades das vidas negras (NASCIMENTO, 2018), buscando interromper as práticas de destituição de sua humanidade, presentificadas em uma intervenção modernizadora como a do PRC, que sobrepõe um circuito de expropriação neoliberal à nossa matriz racial e colonial. (CHAKRAVARTTY; SILVA, 2012) Esse movimento nos possibilitou, a partir da centralidade das questões de interesse colocadas pelas moradoras, revisitar e Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 201 repensar o Pelourinho, emblemático por se fundar, e ao Brasil, sob a perspectiva relacional da despossessão colonial e racial e da reinvenção quilombola da vida coletiva pela negritude em mundos outros, transcriados não apenas por confrontações, mas também por fugitividades que desafiam os processos de subalternização. (HARNEY; MOTEN, 2013; NASCIMENTO, 2018) Pelourinho entre a Máquina patrimonial e as divergências da Cidade Negra Umbigo da primeira capital do Brasil colonial e mito originário do Brasil moderno (COLLINS, 2015), o Pelourinho, sua riqueza arquitetônica, singularidade urbanística e a negritude conformam uma treliça colonial historicamente indissociável, já que resulta da mão de obra escravizada de origem africana, que, com efeito, foi sua verdadeira condição de possibilidade. Boa parte da vida urbana do Pelourinho no Brasil colonial e imperial se sustentava na disponibilidade – quase como infraestruturas vivas – dos corpos da população negra. (REIS, 1993) Em 1985, o Pelourinho se tornaria o núcleo do espaço tombado como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco – formado também por localidades como Maciel, Passo, Saldanha e Barroquinha e Carmo –, passando a ser denominado oficialmente como CHS. Porém, foi sobretudo a partir da década de 1990, com a criação do PRC, que o governo do estado conduziu um amplo processo de transformação urbana, abrangendo uma área de 12 hectares do CHS, pautado pela criação de novos produtos e destinos turísticos, que incluíam a refuncionalização do Pelourinho na forma de um “shopping center a céu aberto”. (MOURAD, 2011; SANT’ANNA, 2017) A recuperação do CHS tem sido conduzida por políticas de patrimonialização pós-coloniais (COLLINS, 2018, 2019) que concebem o patrimônio como recurso econômico subsidiário a uma economia do turismo, especificando um lugar do CHS na economia de serviços traçado para Salvador pela política de desenvolvimento industrial dos anos de 1970 (SANT’ANNA, 2017) e atualizado por tendências neodesenvolvimentistas mais recentes. (PACCOLA; ALVES, 2018) 202 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Quando o PRC se iniciou, em 1992, viviam nos antigos casarões e ruínas coloniais do Pelourinho numerosas famílias, mulheres, muitas crianças, redes de prostituição, tráfico, bares e botecos, fazedoras de bico, trabalhadoras de rua, da reciclagem, domésticas, cabeleieiras, artesãs e alfaiates, entre outras. A maior parte dessas pessoas nasceu ou vivia há décadas nesse vigoroso território, que, embora fisicamente em ruínas, pauperizado, precarizado e pouco infraestruturado pelo Estado, era densamente habitado por essas diferentes formas de vida negra que produziam uma “opacidade” (GLISSANT, 1990) inquietante para as elites. As condições de higiene, as condições sanitárias eram divididas com um grupo de às vezes de 10, 15 famílias morando em um casarão com um banheiro, com uma pia. Dentro de um quarto famílias com 3, 4 crianças, era assim que se vivia. (MELLO, 2009) [...] antigamente aqui no Pelourinho [...] cada prédio morava muita gente, era muito populoso, muita gente em quartos [...] Aqui, o Maciel [...] tinha um pessoal aqui na faixa muito pobre, muito. Muitas crianças aqui no Pelourinho [...] cada prédio morava muita gente, era muito populoso muita gente em quartos [...]. (Mahin, 2017) Naquele momento, o acesso à moradia e a outros usos coletivos dos casarões ainda estava, de modo geral, condicionado ao pagamento de aluguel a alguns poucos herdeiros dos proprietários originais, mas principalmente a posseiros. Os imóveis abandonados eram então alugados ou vendidos por esses posseiros, seja para moradoras que passavam a morar ou desenvolver usos diversos, seja para aquelas que relocavam ou revendiam esses espaços. Mahin2 nos conta sobre o prédio em que morou por quase 30 anos com a sua família, da transição da condição da sua mãe de inquilina a “proprietária” e da interrupção desse regime de posse e de propriedade pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) no contexto do PRC: 2 As identidades da maior parte das moradoras do Pelourinho citadas neste artigo estão mantidas em anonimato, por solicitação delas, sendo que nesses casos usamos nomes ficcionais. Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 203 Esse prédio que eu morava é na Rua do Bispo, assim, um prédio antigo, da família dos Catarinos, quer dizer, esse prédio, foi um prédio que pegou fogo, a família muito tradicional dos Catarinos, entende? Então, um senhor, ele pegou esse prédio [...] quer dizer, botou a laje, aí pegou e alugou pra minha mãe uma parte, né? [...] a gente foi morando lá, ele foi subindo, aproveitou esse prédio que pegou fogo. E eu moro lá. Cheguei lá com oito anos de idade, entendeu? Então, esse prédio não tinha dono, até tem, o dono abandonou porque pegou fogo. Então a gente morou lá [...] quase 30 anos. [...] Aí depois ele arrendou, vendeu, tipo ele vendeu pra ela e saiu fora. Nós já tinha inquilino lá, como ela ficou tipo dona, né? Aí veio o Ipac, começou a tirar o pessoal. (Mahin, 2017) Laudelina assinala a condição da sua mãe de “proprietária”: [...] Então, minha mãe já era proprietária muitos anos daqui da [rua] 21 de setembro, minha mãe tinha bar, tinha casa de pensão [...] Entendeu? Essas coisas todas. Chegamos aqui em 1971 para morarmos na casa [...] no Beco do Seminário [...]. (Laudelina, 2017) A despeito da existência de mecanismos do mercado informal para acesso ao solo urbano (ABRAMO, 2007), esse regime de propriedade factual e de posse estava imbricado aos usos coletivos dos casarões. As dinâmicas socioespaciais em bairros negros de cidades latino-americanas – nas quais seus habitantes têm acesso restrito à economia e a direitos formais – não podem ser entendidas como derivadas única ou predominantemente dos mecanismos do mercado informal do solo. Esses espaços são heterogêneos e neles convivem e se sobrepõem formas mercantis e não mercantis de consumo e produção da cidade. (PÍREZ, 2016) No caso do Pelourinho, o mercado informal de acesso ao solo urbano estava ligado a formas de urbanização precárias, mas também a uma incessante produção comunitária de infraestruturas, bens, serviços, valores, sociabilidades e imaginários que sustentavam e constituíam esse espaço de vida comum, como nos contam suas moradoras: 204 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR [...] meu pai, se você sair perguntando quem foi meu pai, foi uma pessoa que foi importante! Meu pai matou a fome de muitas famílias aqui. Que antigamente aqui no Pelourinho [...] cada prédio morava muita gente, era muito populoso [...] o Maciel tinha um pessoal aqui na faixa, muito pobre, muito, muitas crianças, aí meu pai colocou comida de um real, entendeu? Essa comida de um real quem botou foi ele! (Mahin, 2017) A minha mãe, uma mulher muito sábia, negra e analfabeta, logo percebeu que as mulheres que saíam para trabalhar à noite precisava de alguém para tomar conta de seus filhos, começou a fazê-lo mediante algum pagamento. Fazia sopa de verduras com osso para vender as porções e colhia cabeça de peixes nas peixarias e fazia escaldado com verduras para vender no almoço [...] também alugou alguns prédios e os transformou em pensionatos, as chamadas casas de cômodos. Em cada quarto, morava uma família. A minha mãe ajudou muito essa comunidade, dando moradia a quem não podia pagar, como mulheres grávidas, meninos sem pai, nem mãe. (Sandra, 2017) [...] aconselhamento espiritual, e ações social e cultural com diferencial foram sempre práticas nas missões. Nessa trajetória ações efetivas de assistencialismo vem sendo realizado através de projetos na área de música, esporte, saúde e cursos técnicos e palestras e sem fins lucrativos e outros [...] Atingindo crianças e adolescentes, famílias, no centro da Cidade e sobretudo no Pelourinho, as quais se encontram em situação de risco e vulnerabilidade social, vítimas de exposição ao uso de drogas e prostituição, com fragilidade ou perda da afetividade e do vínculo familiar, com identidade estigmatizada, excluídos pela pobreza e por práticas de atos infracionais, a mercê de política públicas ou ações fraternais. (ONG CANTA PELOURINHO, 2017) O Pelourinho como Centro começa a entrar em decadência e eis que a população negra vai habitar o Maciel [...], o que torna esse bairro um bairro excepcional [...], porque essa população pobre, negra, mestiça resiste aos incêndios, resiste à queima da cidade [...] resiste aos desabamentos e no seu lugar surgem várias matrizes culturais importantes. É nesse lugar que surge o Gandhi, é nesse lugar que surge o Olodum, é nesse lugar que surge a Cantina da Lua Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 205 e é nesse lugar que vai se travar uma das lutas mais importantes para fazer novas políticas de ação afirmativa, é nesse lugar que surge a defesa da Constituição da Bahia do capítulo do negro, do capítulo da cultura [...] é nesse lugar que a luta contra a violência policial se acirrou depois de atentados a pessoas do Olodum que foram baleadas, é nesse lugar que se chama internacionalmente uma imagem de Bahia negra [...]. (RODRIGUES, 2020) Esses experimentos coletivos de autodefesa da vida podem ser lidos, como um emaranhado de ontologias políticas (BLASER; DE LA CADENA, 2018), que incluíam modos de socialidade e solidariedade não completamente capitalistas, mesmo se as moradoras do Pelourinho conviviam com certas dimensões de mercado, principalmente via circuitos não modernos. (SANTOS, 2008) Restaurantes populares com preços módicos, pensionatos, redes de cuidado com as crianças e de apoio a mulheres e prostitutas, organizações culturais afro-brasileiras e de ação assistencialista e religiosa são invenções sociais heterogêneas que, face a uma experiência comum e generalizada de opressão, confrontam generativamente essas condições, agenciando possibilidades, inter-relações e territorialidades diversas, para além e convivendo com formas mais sedimentadas ou já institucionalizadas de existência. Essas performances da negritude podem ser lidas em diálogo com Beatriz Nascimento (2018) e Stefano Harney e Fred Moten (2013) como modalidades de escape que tensionam e transcriam relações de poder, hierarquizações e a própria cidade. Esses modos de vida que habitavam o Pelourinho foram desmantelados e reconfigurados a partir da implantação do PRC pelo governo estadual. A refuncionalização mercantil do CHS, sob o mote da proteção do patrimônio e da cultura, articulou paradoxalmente a estatização da propriedade de mais de 700 imóveis, a despossessão e a anulação de direitos fundiários e sociais dos moradores. O governo estadual promoveu essa expropriação principalmente nas seis primeiras fases do PRC (1992-1999), ao tempo em que direcionou o domínio da posse dos prédios recuperados, praticamente sem ônus, ao capital privado das atividades de comércio e serviços ligadas à economia do turismo patrimonial. Até 2005, pelo menos 4 mil pessoas, cerca de 46% da população do CHS, foram expulsas e dispersas, para adjacências, mas também para bairros distantes como São Caetano, Pau da Lima, Valéria, Cajazeiras e Subúrbio Ferroviário. 206 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Havia ainda as famílias sem destino, que, segundo a Pró Cida, presidenta da Amach (apud MOURAD, 2011), “eram aquelas famílias que ficaram na calçada, embaixo das marquises do Centro Histórico, onde aqueles que os expulsaram eram obrigados a passar todos os dias e continuarem a avistá-los no local”. Esse processo liderado pelo Estado desencadeou uma operação racializada e sexualizada de desigualdades, mobilizando práticas de violência racial e cercamentos associados a atitudes moralizantes. Destacamos a interdição das redes de prostituição na área de Maciel – uma comunidade transgênero de profissionais do sexo, incluindo mulheres, travestis e transexuais; a tentativa de conter a comunidade do reggae na nova Praça do Reggae, inaugurada em 1998, renovando a memória da academização da capoeira (COLLINS, 2018); e a dispersão dos moradores da Rocinha, um espaço cultural do Pelourinho, em aluguéis sociais à espera de uma reabilitação desse espaço que jamais foi concluída. Esses casos indicam uma regulação interditiva e normalizadora dos modos de vida do CHS operada pela governamentalidade patrimonial e sua infraestrutura policial securitizadora. (COLLINS, 2015) Embora os modos de vida reprimidos também incorporassem as celebradas raízes africanas em que se baseava a narrativa afro-baiana subjacente às políticas patrimoniais do Pelourinho, esses modos de vida também carregavam o estigma da negritude como ameaça. Aqui chamamos atenção para o entrelaçamento entre racismo e nacionalismo, como alertado por Abdias Nascimento (2016) e Paul Gilroy (2002), pelo qual a noção de nação multicultural se compatibiliza com o esvaziamento das culturas afrodiaspóricas, tornadas nacionais. Na lógica do PRC, uma reificação da herança afro-brasileira anda de mãos dadas com as ideologias do branqueamento e da democracia racial à brasileira, operando o genocídio da negritude. (NASCIMENTO, 2016) Essa intervenção significou a expulsão de milhares de pessoas e a precarização das suas condições de vida pela incidência em dimensões como propriedade, trabalho e moradia, especificando um circuito de acumulação por expropriação, colonialidade e racialidade. (CHAKRAVARTTY; SILVA, 2012; SILVA, 2014) No entanto, o PRC foi confrontado por grupos de moradoras como a Amach, associação formada em 2002 principalmente por mulheres negras, em uma história de mobilização que contesta o processo de modernização urbana conduzido pelo governo estadual no CHS. Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 207 Em 2005, em meio à luta contra a implementação do PRC, a Amach conquistou o TAC, intermediado pelo Ministério Público. Nesse acordo, o governo estadual e a Conder se comprometeram com a permanência de 108 famílias do CHS. Essa inflexão foi potencializada por uma visita do relator do Direito à Moradia da Organização das Nações Unidas (ONU), que amplificou e repercutiu internacionalmente a visibilidade desses conflitos, e somada ao declínio político do grupo político carlista, hegemônicos nas coalizões de poder do estado da Bahia por 40 anos – que conduzia o governo estadual e o programa. Nesse acordo, o governo estadual se comprometeu a recuperar os prédios para uso residencial e a sua concessão às moradoras organizadas através da Amach na sétima etapa do programa. Além disso, o acordo previa a criação do Comitê Gestor com a participação de representantes da Associação, do Estado e de outras instituições da sociedade civil. Esse comitê deveria zelar pelo cumprimento dos direitos reconhecidos no acordo, notadamente a recuperação dos edifícios destinados aos residentes para moradia e outros destinados para o desenvolvimento de atividades comerciais, como alternativa de emprego e renda, e a implantação de equipamentos coletivos, como uma creche. A partir da atuação da Amach, acontece, então, o reconhecimento de direitos formalizados pelo TAC, levando a uma reformulação do projeto da sétima etapa do PRC. É importante notar aqui não apenas as transformações do CHS mediadas por lógicas de destruição antinegritude encadeadas pelo programa, mas também as reconfigurações dos agenciamentos coletivos das moradoras. Os técnicos e dirigentes da Conder promovem instabilizações das condições de vida das moradoras, fragilizando a posse e impondo a elas recorrentes remoções e deslocamentos forçados. Esses agentes operadores do PRC inscrevem um circuito de acumulação por expropriação da economia do turismo patrimonial sobre a matriz colonial e racial, indissociável do desenraizamento das moradoras enquanto sujeitos racializados (CHAKRAVARTTY; SILVA, 2012; SILVA, 2014), e as moradoras respondem a essas reiteradas instabilizações com também constantes adaptações e improvisações, pelas quais rearticulam condições de vida e confrontam as subjugações. No caso de Firmina, ela morou por 40 anos no CHS e foi reassentada no ano de 2002 em um projeto habitacional em Fazenda Coutos, no Subúrbio Ferroviário. Nos anos em que viveu no CHS, ela ocupou por um tempo um 208 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR ponto comercial, onde funcionava o seu salão de beleza, que era a sua forma de trabalho. Com a mudança para Fazenda Coutos, ela continuou trabalhando no CHS, despendendo um longo tempo com deslocamento e tendo aumentadas as despesas com transporte. Além disso, a concessão do seu ponto comercial nunca foi devidamente formalizada pela Conder, que também mudou diversas vezes a sua localização: Eu fui pra Fazenda Coutos, outros foram pra Barro Duro, lá perto do CIA, outros foram pra o Pirajá. [...] Um ponto comercial é o trabalho, é o seu ganha-pão, você tem que ter isso para poder conseguir realizar todos os seus sonhos, que depende do trabalho, né? Me deu uma casa. Esse ponto aqui ficou. Botou numa sala, bota na outra, bota numa sala, bota na outra. Eu aqui já corri [...]. Quando a Conder fez minha ficha para eu poder pegar a casa e meu ponto comercial, é que eu insisti, aí ele ‘Ah, não tem como lhe dar o ponto agora, mas eu vou lhe dar um ponto provisório’. Esse aqui, quer dizer, vários que me deram [...]. Então nunca teve um acerto comigo. Os documentos [...] Nunca uma conversa séria [...] Então eles ficaram me mudando pra me enfraquecer, e aí meus clientes iam embora. Porque, filha, eu tinha dia aqui que eu cortava três cabelos por dia e agradecia a Deus. Porque eles fizeram isso pra me enfraquecer, mas eu insistindo, insistindo [...]. (Firmina, 2017) Filipa, aposentada e moradora do CHS há 50 anos, apesar de ter sido contemplada pelo acordo, teve que sair da casa onde morava em função das obras da sétima etapa. Ela alugou uma casa no bairro Dois de Julho, onde pretendia ficar até a conclusão das obras. No entanto, esta casa sofreu um incêndio alguns meses antes de ela receber a casa reformada pela Conder na sétima etapa, indicando que o direito formal à permanência não a isentou de situações de risco: [...] eu estava morando no Dois de Julho [...] quando teve um incêndio na casa que eu morei, eu perdi um bocado de coisa, televisão e tudo [...] 2007, no dia 14 de abril [...]. O incêndio que eu perdi minhas coisas foi em abril de 2007, 14 de abril de 2007, quando foi em outubro, dia 3 de outubro de 2007, aí entregou [...] as casas [...]. (Filipa, 2017) Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 209 No caso de Laudelina, quando a sua mãe faleceu no contexto das remoções da 7 Etapa, ela foi obrigada a se mudar para outro município, Alagoinhas. Ela só poderia voltar quando a reforma da moradia a que tinha direito ficasse pronta: a [...] eu estava em Alagoinhas, eu estava morando lá com meu esposo e meus filhos, até aqui ficar pronto, mas não deu certo eu vim embora com as crianças. [...] infelizmente, tive que morar em Alagoinhas [...]. Minha mãe faleceu. Eu fui assim que ela faleceu. (Laudelina, 2017) Algumas das famílias contempladas no TAC de 2005 foram realocadas em moradias temporárias – as chamadas “casas de passagem” – dentro do próprio CHS, sendo o aluguel e os encargos pagos pela Conder. Essas moradoras viveram nessas casas enquanto se realizavam as obras da sétima etapa, até receberem as suas residências permanentes nos edifícios recuperados. A previsão era concluir a obra em um período de 18 meses a 2 anos, no entanto a mesma permanece inconclusa até agora. Como afirmado por Pró Cida: “Terminou a Fonte Nova, vai terminar o metrô, mas não termina a sétima etapa”. Algumas famílias viveram nessas moradias temporárias em condições precárias por quase 12 anos, antes de finalmente receberem suas casas recuperadas. “Uma situação provisória que se tornou permanente”, como descreveu Sandra, moradora e fundadora da Amach. (AMACH; UFBA, 2017) A implementação do PRC configura uma articulação entre propriedade, trabalho e moradia com efeitos racializados específicos. (GILROY, 2002; ROY; ROLNIK, 2020) O regime de posse da sétima etapa do PRC, agora tutelado pelo Estado, supõe uma integração subordinada das moradoras negras na economia do turismo, enquanto as formas pretéritas de trabalho e moradia são removidas. A comercialização informal de bebidas e comidas em dias de eventos de entretenimento no Pelourinho pelas agora moradoras da sétima etapa é uma das imagens da paisagem transformada pela refuncionalização desse bairro. Em muitos casos, a mudança para uma casa de passagem significou uma dissociação entre a moradia e as formas de trabalho anteriores das moradoras, desestruturando meios que viabilizavam as suas alternativas de renda mais sedimentadas. Isso levou à rearticulação de novas possibilidades que incluíam, mas não se limitavam às posições subalternas da economia turística. 210 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Antes da obra da sétima etapa do PRC, Sandra trabalhava em um comércio popular e Dandara trabalhava com reciclagem, nos mesmos locais em que moravam. Essas atividades não puderam ser desenvolvidas nas casas de passagem, nesse longo tempo em que as habitaram, sobretudo por falta de espaço. No caso de Sandra, o prédio onde morava e trabalhava antes desabou durante uma obra da Conder e a ela não foi destinado um novo ponto comercial. [...]. o governo me cadastrou simplesmente como: um ponto comercial e um apartamento [...]. Também os procurei [a Conder] para saber como fica a minha situação com relação ao ponto comercial. Fui cadastrada no ponto [...]. na Rua 28 de Setembro. A cerca de uns dez anos, a Conder mexeu na estrutura interna do prédio e o desabou, deixando-me sem poder trabalhar [...] para algumas pessoas, eles pagaram o aluguel, porém para mim nunca isso foi feito. (Sandra, 2017) No caso de Dandara, ela não conseguiu continuar trabalhando com reciclagem e passou a vender água de coco na Praça da Sé, tentando aproveitar o fluxo de visitantes do Pelourinho. [...] fui moradora da Rua Guedes de Brito [...]. desde 1987. Lá, tive dois filhos, que hoje tem um com 22 anos e outra com 21 anos. Foi lá onde eu tive o meu comércio de reciclagem de onde tirava o sustento da família. [com o] Passar do tempo, minha casa desabou, fui direcionada à casa de passagem através da Associação dos Moradores [Amach]. […] Disseram [a Conder] que eu não vou mais poder exercer este tipo de comércio [reciclagem] e que não vai haver mais ponto de comércio, então hoje eu quero que eles me deem uma indenização. (Dandara, 2017) Em 2017, a Conder alterou a política da moradia temporária nas casas de passagem. Sem discussão com as moradoras, os contratos de aluguel foram encerrados e, em seu lugar, foi oferecida a bolsa aluguel. A partir de então, cada família passaria a receber um valor de cerca de 450 reais, com o qual teria ela própria de alugar uma moradia. Esse valor foi insuficiente para atender aos valores de aluguel então cobrados no CHS, e, por isso, as famílias recusaram-se a abandonar as moradias temporárias nas quais se encontravam Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 211 e a serem submetidas a um novo deslocamento que não fosse para as suas casas definitivas recuperadas. Diante dessa recusa, a Conder promoveu ações de reintegração de posse contra, pelo menos, sete famílias (AMACH; UFBA, 2017), com o objetivo de expulsá-las e sem garantia da entrega de todas as casas recuperadas na sétima etapa. A morosidade da obra e do retorno às moradias recuperadas, a fragilização da posse, deslocamentos e remoções forçadas, as situações de risco, a dissociação de práticas coletivas, a dissolução das formas de trabalho e a precarização da moradia foram frequentemente desferidas pela Conder contra as moradoras, que denunciaram continuamente os problemas de qualidade tanto das moradias provisórias como, de 2007 em diante, das casas recuperadas: São dois quartos minúsculos, são menores do que esse daqui, um pouco maior do que o de lá, mas menores do que esse. Uma sala, pequena, que só tem uma parede, por causa das três janelas que tem na frente. E a cozinha é um negócio bem torto, horrível. O de minha mãe é bem pior [...]. Porque a gente tem que ter um pouco de dignidade, pelo menos, né? A gente saiu daqui com uma ideia e, quando nós voltamos, outra. Cortaram o prédio pelo meio. O prédio não era só esse tamanho. O quintal todo aí era desse prédio. Fizeram um apartamento minúsculo [...]. (Zeferina, 2017) Casa entregue com infiltração nas paredes, paredes mofadas, tubulação antigas e com infiltração, paredes rachadas. Local sem lavanderia, tendo que estender as roupas nas janelas. (Benguela, 2017) [...] fui forçada a seguir [...] um tormento. Fui colocada em uma casa de passagem onde foi minha derrota na saúde e bens materiais [...] desenvolvi uma terrível doença que para a medicina não tem cura, o lúpus, devido às péssimas condições, esgotos estourados, paredes úmidas, cheia de fungos e vários problemas [que] terminou por baixar minha imunidade onde diagnosticou essa terrível doença. Hoje, minha vida é internamento. Muito debilitada, perdi minha saúde. Como se não bastasse eu vim para um subsolo, onde sempre teve problema de rede de esgoto, paredes mofadas [...] colocaram as caixas de esgoto no meu quarto. (Ciata, 2017) O que eu queria da Conder era só isso, que ela desse uma respiração melhor pra mim e pra minha família [...] Todo mundo só dorme com ventilador em 212 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR cima porque não tem ventilação [...]. Quando a gente começou a morar aqui foi que eu comecei a ver esse problema da ventilação. Eu tava com meu filho pequeno. Bebezinho. E aí começou hospital, hospital, hospital, problema de respiração, internado, direto internado [...]. (Machado, 2017) Esses exemplos indicam alguns dos inúmeros problemas apontados pelas moradoras: inadequações dos projetos, da construção, das redes de infraestrutura urbanas ou de manutenção predial, infiltrações, umidade, falta de ventilação, problemas estruturais nas ligações domiciliares de abastecimento de água e esgotamento sanitário, insalubridade associada a problemas de saúde, tamanho das unidades habitacionais inferior ao dos imóveis habitados pelas famílias anteriormente ou ao tamanho das famílias e conflitos condominiais. Algumas casas eram menores que as ocupadas anteriormente ou não atendiam às necessidades, pois algumas famílias haviam crescido no longo intervalo desde o início das obras na sétima etapa. Sandra descreveu as condições de vida de sua família na casa de passagem como o “Inferno de Dante”. (AMACH; UFBA, 2017) Quando as moradoras encontravam esses problemas, elas cobravam soluções da Conder ou tentavam resolvê-los individualmente ou por meio de ações coletivas. A casa que nós estamos de passagem, nós estamos loucos pra sair, lógico. Agora mesmo, nessa chuva que deu ontem, minha casa alagou toda. Eu já perdi guarda-roupa, já perdi rack [...] esses prédios velhos, que lá é um prédio velho, nasceu uma árvore quebrando os telhados, e a Conder que tinha obrigação de tirar, porque é um prédio alto como esse e não tem como. Nós viemos fazer [...]. Eles tiraram foto, disseram que iam mandar uma equipe pra poder fazer, pra cortar a árvore, botar remédio e depois consertar o telhado, e nunca fizeram. E nisso eu já perdi várias coisas [...]. (Zeferina, 2017) Era muita rachadura e infiltração também, que até hoje encontra. Teve um rapaz ali no meio que tentou ainda minimizar a infiltração, porque eu ia direto na Conder, direto lá eles diziam que iam vir resolver o caso, que tirava foto. Então, nada deles resolver […]. (Aqualtune, 2017) Aqui mesmo, eu paguei ontem pro rapaz consertar que estava molhando tudo. Eu creio que esse telhado, a Conder não chegou a mexer nesse telhado, porque Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 213 desde o tempo que eu moro aqui, isso aqui molha, eu mesmo que pago pra consertar, pra dar uma ajeitadinha [...] Eu que arrumo, é, a Conder não faz nada aqui não [...]. Eles falam que vão passar pra engenharia e nada. Nunca vem. O que a Conder faz é pintar fachada [...]. (Benguela, 2017) A inserção dessas moradoras na ordem formalizada e contida da sétima etapa não significou melhorias substanciais da qualidade das suas condições de vida, revelando, aliás, uma reconfiguração da precarização e das desigualdades urbanas, intensificadas pela ação estatal. A questão da concessão de uso dos imóveis reformados pela Conder às moradoras agrava essa tendência. Na sétima etapa do PRC, a Conder definiu o instrumento da Concessão Real de Direito de Uso (CDRU) para a regularização fundiária das casas recuperadas das moradoras. O período de concessão é de no máximo dez anos, insuficientes, considerando que a maioria mora no CHS há várias décadas. Elas tinham, portanto, uma expectativa de uma posse segura e duradoura, mas que não está garantida. A fragilização da posse é agravada pela situação dos equipamentos comunitários previstos no TAC, que jamais foram implementados. Há ainda o problema dos mecanismos de participação e controle social do PRC, que foram arbitrariamente interrompidos pela Conder há cerca oito anos. No entanto, os heterogêneos modos de vida da negritude, relacional e generativamente constituídos, reagem e excedem a violência racial e a subjugação que lhes são reiteradamente dirigidas no jogo do antagonismo geral. (HARNEY; MOTEN, 2013) Uma rearticulação da vida coletiva no Pelourinho continua a desafiar a tentativa de restringir e conter as moradoras em uma sétima etapa segmentada. Internamente, uma esfera um pouco mais expandida de permanência e inserção emerge desse movimento, pela presença de grupos sempre maiores que os detentores da posse formal e individualizante dos títulos de concessão das moradias reformadas. Diferentes gerações de uma mesma família compartilham o usufruto dessas casas e o acesso ao centro de Salvador. Elas reelaboram redes de cuidados interparentais e com seus vizinhos, aproveitando coletivamente vantagens de proximidade e ativando solidariedades territoriais. [...] eu moro aqui com minha mãe e mais cinco filhos, quatro irmãs, duas sobrinhas e meus filhos. Minha mãe ela trabalha aqui [...], é guardadora de automóvel, na zona azul. 214 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR [...] quando a gente morava lá era transporte todo dia e aqui não gasta com transporte. É um custo que reduziu bem. (Dadá, 2017) Eu moro aqui com meu neto, dois filhos, morava minha mãe, faleceu, morava meu companheiro, faleceu, estou eu meus dois filhos e neto. Minha filha trabalha, mas a casa dela é embaixo, na avenida [...] só que ela não tá aí, quem ta aí é umas sobrinhas minhas do interior, eu botei elas pra dormirem aí, porque elas estão esperando também umas respostas. Um negócio de emprego de médico. Tão de passagem aí embaixo. Minha filha que é a dona da casa, ela não está no momento, trabalha em negócio de evento, essas coisas. (Maria Bonita, 2017) O cuidado das crianças, caminhos desviantes do tráfico, melhorias habitacionais, oportunidades educacionais e de trabalho são questões de interesse nesses espaços de solidariedades territoriais. Externamente, a coexistência de outras territorialidades, vizinhas ao Pelourinho, enseja (re)articulações de defesa coletiva frente às ameaças aos diferentes modos de vida que habitam o Centro de Salvador. Em um Pelourinho devastado pela máquina patrimonial, os arranjos coletivos também se transformam e continuam a confrontar velhas e novas condições de subalternidade. Uma inter-relacionalidade complexa entre os processos de despossessão racial e os reposicionamentos da negritude aparece como questão importante acerca da constituição do Pelourinho e de suas ecologias políticas, continuamente redefinidas. Aberturas As tentativas de interdições dos espaços modernizados pela máquina patrimonial são contestadas pelas moradoras, seja por meio da ação coletiva, como aquelas lideradas pela Amach em torno da reivindicação reparatória aos agentes estatais, seja por transformações, negociações sutis e transgressões cotidianas, através de novas práticas incrementais e adaptativas, nas quais as moradoras reajustam os espaços às suas formas de vida. Isso indica que espaços urbanos como o Pelourinho, assediados pela visibilidade governamental e por tecnologias normalizadoras, são, ao mesmo tempo, dotados de uma pulsão política que se ativa historicamente para evitar as tentativas de contenção e interdições. Glória Cecília dos Santos Figueiredo, Brais Estévez 215 Esferas conflitivas em torno de intervenções, como a do PRC, se revelam como espaços de inter-relacionalidade, uma espécie de impasse ou encruzilhada entre mundos (in)comuns (BLASER; DE LA CADENA, 2018) que compõem a cidade, abrindo um campo de possibilidades, disputas e negociações das formas, conteúdos e sentidos das transformações urbanas. E é justamente em meio a esse antagonismo entre as formas de fazer cidade que alianças entre universidade e coletivos urbanos se tornam possíveis e potentes. Não é preciso que uns e outros sejam o mesmo, nem que tenham os mesmos interesses. Tem sido suficiente termos um interesse em comum, como, por exemplo, entendermos que um futuro comum para Salvador talvez tenha a ver com o engajamento com aquilo que – como a infinidade de práticas fugitivas historicamente perseguidas na cidade – não é comum a todos, mas possa nos conduzir até outras formas de fazer cidade. Nesse sentido, alianças por meio de colaborações como a da Perícia Popular, por permitirem o encontro com a outridade da cidade, potencializam rupturas frente ao o circuito da expropriação racializada. Esse convívio engajado pelo envolvimento, cuidado, desierarquização, reflexão, práxis e agências transformadoras pode tensionar os esquemas dicotômicos modernos – dominantes nos estudos urbanos –, implicando mudanças que exigem não apenas novas e outras categorias e conceitos, mas atos de redistribuição epistêmica. *** O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES). Referências ABRAMO, P. 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Salvador: Edufba, 2016. 220 PERÍCIA POPULAR DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR Maria Gabriela Hita UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR entre a requalificação urbana e a pacificação policial Este capítulo pretende discutir os atuais processos de transformação, nas grandes metrópoles brasileiras, por meio de um estudo de caso de um bairro periférico da cidade de Salvador, o que, por motivos explicados adiante, tem características que o faz ser um caso exemplar de aspectos importantes desses processos. Os focos privilegiados nessa discussão são a regulação fundiária e os impactos de novas políticas de segurança pública em comunidades carentes (semelhantes em sua lógica aos programas de “pacificação” das favelas cariocas discutidas por outros autores deste livro), junto com o papel das organizações comunitárias na negociação das mudanças e suas consequências para os moradores. Inicio situando as tendências deste caso, desde um modelo mais geral do “novo urbanismo” na América Latina, seguirei com uma rápida apresentação do atual processo de transformação urbana em Salvador, e terminarei com a exposição do estudo de caso, retomando suas implicações para estes debates mais gerais nas conclusões finais. 221 O novo tipo de urbanização na América Latina Diversos estudos vêm apontando que o atual modelo urbano predominante em países emergentes e pobres, com acelerado processo de urbanização, ambientalmente injusto, e insustentável (como no Brasil), pode ser caracterizado e marcado pela: desigualdade socioterritorial, apropriação privada da terra, especulação imobiliária, proliferação de assentamentos humanos precários e priorização para o automóvel. Estes fatores têm levado à precarização da qualidade de vida de boa parte de populações urbanas. (BONDUKI, 2012; MARICATO, 2012a; SOLAC, 2012) Sabe-se que boa parte de nossas cidades é construída por moradores que nela habitam em áreas de invasão – em regiões ambientalmente frágeis e autoconstruídas – ou adquiridas ilegalmente, denominadas pela literatura como “cidade informal e ilegal”, que se contrapõe à sua outra face, a da “cidade formal”, apenas “simulacro”, na visão de Maricato (2013), dos modos de morar no primeiro mundo, expressando a divisão de classes sociais. Estas duas faces revelam o fenômeno das cidades divididas e segregadas, citadas em estudos especializados mesmo quando nem sempre usam termos equivalentes. (CARVALHO; CORSO PEREIRA, 2006; GORDILHO, 2000; KOVARICK, 1979; MARICATO, 2013; ROLNIK, 2012; SOLAC, 2012) Além disso, a população de favelados continua crescendo em números absolutos. Enquanto em cidades do Sul do Brasil 1⁄4 da população mora em favelas ou áreas irregulares ou ilegais, onde não há legalização do uso do solo – cujo uso é irregular e a propriedade ilegal – no Nordeste, e em cidades como Salvador, por exemplo, quase 60% da população ainda reside em áreas de favela. (GORDILHO, 2000) O crescimento exponencial das favelas nas últimas décadas, aumenta a segregação socioespacial, de pobreza e dispersão urbana, o que costuma ser associado aos elevados índices de aumento da violência e do crime organizado e à venda ou consumo de drogas. (CALDEIRA, 2000; FELTRAN, 2010; MISSE, 2011; ZALUAR; BARCELLOS, 2012) Tudo isto tem apontado para o estado de crise urbana em que vive atualmente o mundo e a população brasileira. Apesar do significativo esforço do governo federal em distribuir mais renda, nos últimos anos, continua havendo insuficiência de políticas de habitação, saneamento, oferta de trabalho digno, acesso à infraestrutura 222 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR adequada e boa localização na cidade para os mais pobres, cuja demanda por mais e melhores serviços, mesmo quando mais accessíveis que outrora, continua insatisfeita. Por outro lado, é já um fato consumado que novas plataformas e práticas urbanas, incentivadoras da participação cidadã e parcerias público-privadas, estão sendo cada vez mais implementadas e estimuladas (Ver o capítulo de Ângelo Serpa neste livro). Privilegia-se hoje a requalificação urbana e desenvolvimento da cidade ilegal ou informal, invisível, até então, para atender aos interesses do urbanismo, capital imobiliário e administração pública. Este processo acontece simultaneamente ao do surgimento de novos quadros jurídicos, como, no caso brasileiro, os do Estatuto da Cidade (2001), criação do Ministério das Cidades (2003), Conselho das Cidades (2004) e diferentes Conferências Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007). (MARICATO, 2013, p. 37) Novos programas habitacionais e de combate à pobreza foram desenvolvidos pelos governos do Partido do Trabalhador (PT), como o Fome Zero, Bolsa Família e, a partir dos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 1 e 2), várias obras de infraestrutura urbana, mobilidade e Programas habitacionais como o Minha Casa, Minha Vida, ou projetos pilotos bem sucedidos como o Morar Melhor ou o Morar Carioca, que ajudaram a criar novos modelos de urbanidade e a redesenhar as cidades, além de os programas de emprego e acesso a renda que, de modo conjunto, visam a diminuir índices de desigualdade no interior do pais. E apesar da grave crise internacional de 2008, que abalou economias do mundo inteiro, em 2009, o Brasil passava por um boom imobiliário, por conta destas novas políticas e conjunto de novos investimentos, incentivados pelos eventos desportivos como a Copa de 2008 e as Olimpíadas de 2016. (GLEDHILL; HITA, 2014; MARICATO, 2013; ROLNIK, 2011) Em sua maioria, esses são os aspectos mais positivos deste novo modelo de urbanismo do que fala Neil Smith (2002) e do processo de requalificação das cidades em andamento, com avanços realizados, potencialmente, no sentido contrário ao da produção de crise, mas que foram também insuficientes ainda em sua total implementação e realização. A principal contradição surge do modo como ocorre esta implantação, dentro de um contexto neoliberal que aponta para as outras tendências não freadas, mas estimuladas, pelas ações Maria Gabriela Hita 223 do estado em todos seus níveis, especialmente, os da incorporação forçada de novos espaços dentro da lógica do mercado neoliberal e a extensão da lógica neoliberal de criar “ganhadores” e “perdedores”. Para Maricato (2013), como a maioria de pesquisadores do tema, as cidades são o locus onde se reproduz a força de trabalho, mas também são um produto (negócio) do capital imobiliário, paradoxo que se traduz no choque de interesses dos que nela vivem e desejam poder usufruí-la, vivendo melhor, com interesses de quem almeja apenas obter ganhos. A apropriação social do espaço é, portanto, desigual e segregado, onde apenas para os mais ricos e os que podem pagar é assegurado o direito a uma boa localização para viver. Caso ilustrativo disso são as transformações pelas quais passa a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, quando estava se preparando para as Olimpíadas. A construtora Carvalho Hosken pretende vender os apartamentos de luxo construídos para atletas e funcionários depois das Olimpíadas, criando assim um novo centro urbano com infraestrutura e facilidades “do primeiro mundo”. Para Carlos Carvalho, dono da empresa e de 6 milhões de metros quadrados da Barra da Tijuca, o parque olímpico será “uma cidade da elite, para pessoas que tem ‘bom gosto’. E os atuais trabalhadores que moram na região devem ser removidos e irem morar em lugares mais indicados, na visão deste empresário, em regiões mais distantes e de ‘periferia urbana’”. (WATTS, 2015) Como o ilustra o exemplo anterior, boas condições de vida não dependem apenas do acesso aos serviços urbanos, como: transporte, moradia, saneamento, iluminação pública, coleta de lixo, segurança, boa educação para filhos, saúde e lazer para toda a família, mas também dependem de políticas urbanas que determinem, regulem e garantam o modo, lugar e qualidade do acesso permitido para as distintas classes sociais. Não é o mesmo morar numa periferia onde é preciso gastar mais de 4 horas diárias para ir e voltar do trabalho do que quando se mora perto do trabalho e pode-se ir a pé ou de bicicleta, sem gastar recursos em transportes ou quando se dispõe de transportes públicos eficientes e rápidos que reduzem tempos de translado e vias rodoviárias expressas que conectem eficientemente as cidades, desafogando o trânsito e evitando engarrafamentos. Segundo o Estatuto das Cidades (2001) e as novas diretrizes desenhadas pela ONU para o desenvolvimento urbano na América Latina (SOLAC, 2012), o direito à cidade – à vida urbana 224 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR (HARVEY, 2012; LEFEBVRE, 2011) – para além do acesso aos serviços básicos, se refere sobretudo ao modo e qualidade como isso ocorre. Porém, como nem todos têm o mesmo acesso a um viver bem e melhores condições de vida na cidade, é patente que o “direito à cidade” dos mais pobres está lhes sendo ainda negado e roubado, ou, nos termos de Kovarick (1979), espoliado, e, na visão de Smith (2002) e Harvey (2005), nada mais é do que um elemento da “acumulação por despossessão” característica do capitalismo na sua etapa neoliberal. (GLEDHILL; HITA, 2014; HARVEY, 2005; KOVARICK, 1979; MARICATO, 2012, 2013; ROLNIK, 2011; SMITH, 2002) Todos estes processos aqui descritos produzem impactos diferenciados em distintas cidades, mas também dentro de uma mesma cidade ou bairro, quando comparado a outros. Não é igual o impacto em populações pobres morando no Bairro da Paz (BP), do que as que ainda restaram nas imediações do Pelourinho e do Pilar, no antigo Centro Histórico. Essas diferenças ocorrem como consequência da micro diferenciação socioeconômica interna de cada local, das redes sociais diferenciadas que ligam os indivíduos e famílias a outras comunidades, outras capas sociais e outros segmentos da população urbana, como tem sido amplamente analisado em outras pesquisas, além das nossas. (GLEDHILL; HITA, 2012; TELLES; CABANES, 2006) Dados desta qualidade não são obtidos por meio de estudos de teor sociológico e estatísticos sobre algumas destas diferentes regiões da cidade, pois exigem partir de outras concepções do que seja a cidade, a pobreza e também de outras perspectivas metodológicas distintas às de nossas linhas de pesquisa de estudos de teor micro, longitudinal e etnográficos. Se o Brasil avançou muito no que diz respeito à geração de indicadores sociais compostos e à produção de metodologias de pesquisa e de utilização de bases de dados, sobretudo, no desenvolvimento de mecanismos para mensurar quantitativamente situações de desigualdades sociais, precarização, índices de miserabilidade e vulnerabilidade; avanços equivalentes, entretanto, não se observaram na caracterização do modo específico pelo qual situações de desigualdade se articulam com diferentes contextos de desenvolvimento urbano e se diferenciam entre distintas regiões de uma mesma cidade. Ausências que abordagens de teor mais qualitativo e etnográfico como o deste tipo de pesquisa buscam suprir. Maria Gabriela Hita 225 Por tudo isso, e convencida de que processos e distintas dinâmicas urbanas devem ser vistas em sua totalidade e de que a produção de desigualdades é também relacional, para realizar estudos sobre o impacto que atuais modelos de desenvolvimento urbano, mobilidade e de requalificação têm sobre populações mais carentes que nelas habitam, é preciso partir dos estudos qualitativos e de redes sociais dessas populações. Para o estudo das dinâmicas urbanas que fazem e constroem/configuram/produzem/usam e se apropriam de diferentes tipos de cidades é preciso reconhecer as diferentes escalas, atores involucrados e especificidades contexto-situacionais de cada lugar/processo em questão. Para tanto faz-se necessário analisar de modo denso e detalhado cada situação e contexto (e as relações entre situações dentro da cidade, cujo desenvolvimento pode ser visto como produto de um complexo de relações) permitindo assim oferecer ao campo de estudos urbanos uma reflexão diferenciada, tanto teórica como empiricamente fundamentada sobre o que seja o urbano em cada momento de determinado lugar. Neil Smith (2002) fala do surgimento de “um novo urbanismo” – em contexto de mundo globalizado – distinto por estar sendo atravessado por novas e mais amplas escalas e redes de articulação (geográficas, financeiras, econômicas, políticas, sociais, culturais, etc.) nas diversas cidades, e que apontam para dinâmicas das chamadas hoje de “cidades globais”. Este termo se refere não apenas aos grandes e velhos centros urbanos da Europa e EUA, mas também é usado para indicar o recente e amplo processo de crescimento urbano ocorrido em continentes como Ásia, América Latina e África, onde a relação entre Estado e Capital tem mudado drasticamente. Smith dialoga com abordagens de Saskia Sassen (1992, 1998, 2000) reconhecendo que ela oferece um argumento central nos estudos das Cidades Globais contemporâneas, ao tratar da importância que exerce o lugar na compreensão deste novo globalismo. Para Sassen, o lugar é central tanto para a circulação de pessoas como do capital que constituem a própria globalização. Com o foco em lugares urbanos específicos, em mundos globalizados, insiste em que a globalização tem lugar com e através de específicas e mais complexas formas sociais e econômicas que ocorrem em espaços localizados. Contudo, Smith (2002) critica as obras de Sassen por adotarem uma perspectiva estado-cêntrica (statecentric) que pouco exploram tema fundamental nas nossas pesquisas sobre o 226 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR Bairro da Paz e a cidade de Salvador, o de como estas cidades se constituem e se distinguem umas de outras, como se constroem e quais as dinâmicas sócio-históricas e culturais concretas que as definem e diferenciam; ou seja, que agentes, que estratos sociais e de que modos específicos se definem espaços e lugares nestas cidades, com especificidades, mas conectadas e em sintonia com o que passa pelo mundo afora. Visão já presente desde pesquisas de Park da Escola de Chicago como apontado por Harvey (2013), dos discípulos da Escola de Manchester como iluminado por Hannerz (1980, [2014]) e também presente na perspectivas de análises urbanas do Michel Agier (2011) no seu Fazer a cidade; José Guilherme Magnani (2002), Desde perto e dentro, e dos estudos de Sociabilidades do Heitor Frugoli (2013), especialmente, em contexto brasileiro. Tratam-se de perspectivas que compartilham um olhar que privilegia compreender as cidades como resultado das ações e intervenções de distintos atores sociais que vivem, interacionam, usam e circulam no/pelo espaço urbano. É desde este foco e perspectivas teóricas que analiso e penso a cidade de Salvador e suas regiões internas – com ênfase na formação local – e o mundo globalizado no qual está inserido, pelas suas conexões com um mundo mais amplo que ultrapassa dimensões territoriais que ocupa. Nesta pesquisa se parte e privilegia a análise de tipo situacional e conjuntural de determinadas relações e interações entre diferentes atores em um dado contexto sócio-histórica e espacialmente diferenciado de outros. Tais analises levam em conta diferentes graus e escalas de abstração e conexões materiais entre distintos tipos de redes existentes nas cidades. A construção de base de dados apoiados principalmente nos de tipo micro fundamentados é o que diferencia este estudo e abordagem de outras pesquisas com temas afins em torno da construção de espaços urbanos. Salvador: principais vetores de crescimento e mobilidade urbana Em contexto de um novo tipo de urbanismo resultante do complexo e multifacetado processo de surgimento de cidades mundiais cada vez mais globalizadas, comandando redes de comunicação, transportes e negócios mundializados, muitos se perguntam como é que cidades históricas, em processo Maria Gabriela Hita 227 de metropolização crescente a exemplo de Salvador, se inserem e articulam a esses processos de escala mundial e quais os impactos deles em âmbito regional e local. A cidade de Salvador, como tantas outras em todo o Brasil, América Latina e Caribe, passa por profunda reestruturação em seus processos de desenvolvimento urbano. Novas obras de mobilidade e transporte urbano estão sendo iniciadas e redesenhando a configuração atual de toda a cidade, afetando diversas populações e obrigando uma quantidade cada vez maior de famílias a serem removidas para dar inicio às obras de construção de novas avenidas, corredores de BRT (Bus Rapid Transit), trilhos de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) e metrô, já planejados, aprovados e em fase avançada de implantação. Este moderno sistema de transporte chega tarde, e era inexistente a um par de anos, apesar da Região Metropolitana de Salvador já contar com aproximadamente 4 milhões de habitantes. No mapa de Salvador, se é possível visualizar três eixos e grandes vetores de crescimento, que iniciam no vértice, no Porto da Barra e proximidades do Centro Histórico, todos em direção ao norte. O vetor que fica entre a Av. Paralela e a Orla Oceânica, à direita, conhecido como vetor Orla, é onde se concentram os mais valorizados empreendimentos imobiliários para fins comerciais e residenciais. O vetor do meio, conhecido como Miolo de Salvador, e o da Esquerda, conhecido como Subúrbio Ferroviário – pelos trilhos que passaram por aí nos anos 40 e o conectaram com o Recôncavo Baiano, região de maior desenvolvimento naquela época – são os dois onde há maior concentração de populações carentes da cidade. (CARVALHO; PEREIRA, 2006) Outro problema grave, até o recente passado, era as escassas conexões que permitiam acessibilidade entre esses três vetores e as distintas zonas da cidade. (vide o mapa) 228 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR Figura 1 – Vetores de expansão da cidade Fonte: Adaptado de Gledhill (2015, p. 63). Pelo vetor do Miolo, passa a recentemente inaugurada e funcionando, depois de mais de 10 anos em obras, linha de metrô 1. Resultante de um acordo entre prefeitura e Estado, esta linha conecta a Estação da Lapa, no centro da cidade, às regiões de Retiro e Pirajá (em vetor do miolo). Se encontra já em obras o novo trecho de expansão dessa linha de metrô, que seguirá até Águas Claras (local para onde será deslocada, futuramente, a Estação Rodoviária interestadual, hoje nas imediações do Shopping Iguatemi e Av. Paralela – no vetor Orla). Águas Claras terá um terminal intermodal – conectando o Metrô 1 ao BRT 2 – que descrevo adiante – e este BRT 2 conectará este local ao VLT que vai ser construído no vetor do subúrbio ferroviário à esquerda, e à nova linha de metrô (2), que passa pela Av. Paralela, no Vetor Orla. A linha de Metrô 2, no vetor Orla, se encontra também em fase avançada de obras, cujo funcionamento até o aeroporto internacional Luís Eduardo Maria Gabriela Hita 229 Magalhães (conhecido anteriormente como o aeroporto 2 de Julho) está previsto para ser inaugurado durante o ano de 2017. Ela vai conectar a Rótula do Abacaxi, com Estação Rodoviária atual, Av. Paralela, Aeroporto e Lauro de Freitas. Pelo vetor do subúrbio ferroviário, se prevê instalar, futuramente, uma linha de VLT que conectará o Comércio (Cidade Baixa), nas proximidades do Centro Histórico, à Calçada e esta à Baía de Paripe (adaptando parte de trilhos de trem já existentes desse segundo trecho). Atravessando e conectando, transversalmente, estas duas linhas de metrô e o VLT do subúrbio, já se encontram em obras de extensão e conexão um conjunto de 4 grandes avenidas que irão operar como os BRT 1 e o BRT 2. O BRT 1 ligará a Av. Pinto de Aguiar, que se inicia na Orla e finaliza na Av. Paralela (na altura do Imbuí) já pronta, com a Av. Gal Costa, iniciando obras, que começa do outro lado da Paralela e irá até Pirajá, por onde já passa uma Estação de Metrô, na linha 1. A Av. Lobato-Pirajá a ser construída depois conectará o Metrô 1 de Pirajá à Estação futura de Lobato, no VLT do subúrbio. Já a BRT 2 com primeira etapa já concluída, ligará a Av. Orlando Gomes, que vai da Orla até a Paralela, na altura do Bairro da Paz, com a Av. 29 de Março, do outro lado da Paralela, em direção ao vetor do Miolo, e que terminará, futuramente, em Águas Claras. Estas são algumas das principais transformações pelas que está passando a cidade de Salvador do ponto de vista de sua mobilidade, que a irão transformar profundamente nos próximos anos e a todo seu entorno, conectando e articulando regiões até então desconectadas e afetando a vida dos cidadãos e modos de se situarem e moverem pela cidade de modo irrevogável. Bairro da Paz: um estudo de caso exemplar O Bairro da Paz, “periferia” urbana de Salvador, onde desenvolvo pesquisas há cerca de uma década, neste contexto e por diversos motivos, é um estudo de caso exemplar para compreender todas as transformações urbanas e outras que a cidade está vivendo. O primeiro, por sua privilegiada localização, no vetor Orla, ao ser uma “periferia urbana” em meio a uma nova centralidade e de maior desenvolvimento, localizado em uma das margens da Av. Paralela (Av. Luís Viana Filho) – a maior e uma das mais movimentada 230 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR avenidas da cidade. Esta via conecta a região do centro da cidade ao aeroporto e Litoral Norte do estado; esta avenida se transformou, nas últimas décadas, no principal vetor de crescimento imobiliário da cidade, onde se localizam zonas residências de classe média e alta. Este vetor se expande cada vez mais em direção à nova zona hoteleira em direção ao Litoral Norte. Nas proximidades do Bairro da Paz, encontra-se hoje o novo business center (deslocado da área do Comércio antigo – próxima ao Centro Histórico – para a região desta via desde década de 1980). O bairro está rodeado de novos empreendimentos imobiliários como o recém implantado parque tecnológico, várias universidades privadas, os mais novos shoppings centers da elite da cidade, o Centro Administrativo do Governo do Estado da Bahia, áreas residenciais da classe média e alta como as do Imbuí e de alto luxo como o Alpha Ville, dentre outros. O segundo motivo de relevância da escolha do Bairro se deve ao fato de nas suas imediações estarem sendo desenhadas algumas das mais importantes rotas de mobilidade urbana da cidade. Dentre várias delas, duas afetam de modo direto aos moradores do bairro: a obra da linha 2 do metrô, na Paralela, que instalará uma das suas estações na frente do bairro e a ampliação da Av. Orlando Gomes, em outra de suas margens, já finalizada, e também já concluído o viaduto que passa por cima da Av. Paralela que conecta a Av. Orlando Gomes com a Av. 29 de Março, do outro lado da Av. Paralela Estas obras conectarão, em futuro próximo, regiões dos três vetores de crescimento da cidade já mencionados, outrora isolados entre si. A ideia é que em duas importantes transversais da Av. Paralela – a da Orlando Gomes-29 de Março e a Pinto de Aguiar-Gal Costa – irão circular em breve diferentes linhas de ônibus BRT num corredor central único para eles, para desafogar o intenso tráfego que atualmente transita pela Av. Paralela e diminuir com isso os diversos pontos de engarrafamentos gerados em toda a cidade. Um terceiro motivo, e no que interessa focar mais a análise na segunda parte deste capítulo, são os programas pilotos de regulação fundiária da prefeitura de Salvador, “Casa Legal”,1 implantado no Bairro da Paz desde 2013 e 1 Em 2007 a Prefeitura Municipal de Salvador sancionou o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) do município, que pretendia adequar-se ao programa nacional Minha Casa, Minha Vida, assegurando aos Maria Gabriela Hita 231 a instalação de uma Base de Segurança Comunitária (BSC) em 2012. É sabido que as políticas de segurança pública implementadas recentemente em distintas comunidades de Salvador/BA fazem parte de projetos mais amplos de requalificação urbana das cidades, e que visavam, entre outras metas, melhor preparar as cidades para a realização de importantes eventos internacionais, como o foram o da Copa das Confederações e a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Salvador, como também ocorreu em outras cidades do pais, e por conta de todos estes investimentos internacionais, vive um momento especial em que muitas das suas políticas públicas também estavam sendo especialmente direcionadas para as favelas, as quais envolviam uma grande quantidade de recursos dos governos em níveis municipal, estadual e federal. (FREEMAN, 2012; GLEDHILL; HITA, 2014, GLEDHILL, 2015) Um quarto e último motivo, não menos importante, é o tempo que minha equipe de pesquisa está atuando nessa comunidade, e o tipo de estudos etnográficos, situacionais e longitudinais que desenvolvo, como discípula dos estudos urbanos da Escola de Manchester, iniciados na África. (BURAWOY, 1998; GLUCKMANN, 1987; HANNERZ, 1980 [2014]; MITCHELL, 1969; VAN VELSEN, 1987) Nossas pesquisas no BP começaram em 2005, quando uma parceria com o Centro de Estudos da Metrópole do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEM-CEBRAP) foi iniciada, na que minha equipe assumiu o estudo etnográfico desta nova periferia: o Bairro da Paz.2 A experiência munícipes o direito à casa própria. Isso é iniciado em 2013 através do programa municipal Casa Legal que oferece regularização fundiária aos munícipes em situação irregular e/ou financiamento da casa própria para sua requalificação. O programa pretendia atender pelo menos a 30 mil famílias soteropolitanas. 2 Se tratou especialmente das pesquisas: “Segregação espacial da pobreza em Salvador” e a de “Pobreza, redes sociais, mecanismos de inclusão/exclusão social” (que tiveram apoios de Fapesb, PIBIC e CEMCEBRAP) e que foram subprojetos de Consórcio de pesquisas nacionais desenvolvido pelo CEM-CEBRAP entre 2005 e 2008, coordenado pelo Prof. Álvaro Comim: “Desenvolvimento regional e desigualdades sócioprodutivas: tendências recentes, redefinições conceituais e desdobramentos em termos de políticas públicas. Proposta de convênio IPEA/CEBRAP/FINEP (2004)”. Projetos de pesquisas e extensão desenvolvidos posteriormente a estes, com novos apoios da Fapesb e do PIBIC, estiveram mais voltados ao estudo, acompanhamento e assessoria técnica prestada pela UFBA ao recém criado Fórum Permanente de Entidades do Bairro da Paz, como um dos subprodutos das pesquisas acima mencionadas e novas parcerias nossas com esta comunidade. Esses projetos subsequentes foram novas fases dessa línea de pesquisa desenvolvida na qual tenho trabalhado até o presente, com o foco de interesse cada vez mais se voltando para o tema das formas de organização popular como a deste Fórum e seu papel na construção do desenvolvimento local e regional da cidade de Salvador, com análise mais próxima aos da antropologia urbana e política. 232 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR no campo de estudos e uso de diversas bases de dados que estão sendo constantemente atualizadas, nos coloca em posição privilegiada para fazer análises a longo prazo sobre o impacto, e de modo mais apurado e microfundamentado sobre quais das transformações urbanas terão efeitos benéficos ou não para distintos grupos de moradores, que nos permitirá em futuro próximo comparar com impactos específicos alcançados em outras regiões da cidade. Elemento central do qual partem nossas pesquisas nos últimos anos, é sobre a questão e importância do tipo de organização comunitária e formas de associação que surgem em cada localidade. Interessa-nos entender a capacidade (ou falta de capacidade) de luta de determinados grupos subalternos, ou seja, o modo como suas lutas, conquistas ou fracassos influem no futuro destas comunidades e das famílias que moram nela. Ao mesmo tempo, acompanhar como todas estas transformações da cidade são capazes de influírem e atuarem sobre a estrutura de oportunidades econômicas, sociais e politicas de diversos grupos e indivíduos no interior de cada localidade ou bairro nas que vão intervindo. Até o momento, as nossas pesquisas realizadas sobre temas urbanos em Salvador e Bairro da Paz estiveram estruturadas pela análise de 4 importante vetores e bases de dados distintas: 1) O papel de distintos atores e do local (lugar) na construção da cidade de Salvador em um contexto de mudanças socioeconômicas importantes e novos padrões de desenvolvimento urbano como os apontados em processos de metropolização crescente. Dentre outros, se destaca os da participação e organização popular como as do Fórum Permanente de Entidades do Bairro da Paz (FPEBP); 2) A relação Estado-Sociedade Civil (Comunidade do Bairro da Paz), ao longo dos anos e depois que o FPEBP foi criado; 3) Distintas entidades que atuam no Bairro da Paz: Organizações Não Governamentais (Ongs), redes associativas políticas, religiosas e sociais que atuam de modo a fazer a cidade, o tipo de cidade que eles reclamam e fazem/ produzem na sua luta pelo direito à cidade de Salvador; 4) Análise de diversas redes sociais (com suas diversas conexões/articulações) que constroem as cidades. Nos nossos estudos temos buscado articular distintos níveis de análise na construção de dados, combinando perspectivas macroestruturais ao de estudos microsociológicos e de redes sociais (inspirados nas pesquisas da escola de Manchester), articulando o estudo da emergência de um novo tipo Maria Gabriela Hita 233 de urbanismo aos estudos de diferentes tipos de redes sociais e familiares, e portanto, a de novos atores/agentes ou lugares (como o Bairro da Paz, por exemplo) desde uma perspectiva que articula e utiliza distintas unidades de análise desde sua multidimensionalidade: focados tanto em unidades de análise do: a) indivíduo e suas redes, b) famílias e suas redes, c) redes e suas relações mais amplas, como com o Estado e Ongs, de modo particular. Neste capítulo, em particular, busco refletir em torno aos efeitos que a implantação, em 2012, de uma Base Comunitária de Segurança (BCS) no Bairro da Paz, assim como do Programa piloto de regulação fundiária Casa Legal implantado pela prefeitura de Salvador em 2013 – em atual conjuntura de novas obras de requalificação em torno da Av. Paralela e Orlando Gomes – estão tendo sobre o Bairro da Paz. E elucidar, ainda que de modo precoce, e hipotético, as possíveis intenções da chegada e articulação destas distintas políticas públicas, sobre este lugar. Questiono-me qual seja a relação, se há alguma, por exemplo, entre a chegada deste Programa de regulação, com o de outras políticas em curso, como o das obras de mobilidade urbana, os interesses que essa BCS defende e quais as possíveis agendas ocultas dessas interfaces. Até onde, me pergunto, por exemplo, o Programa Casa Legal trabalha de modo paralelo e semiarticulado aos interesses da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER) e da OAS empreendimentos imobiliários e CCR Metrô Bahia – responsáveis por obras de mobilidade urbana – responsáveis por obras de mobilidade urbana, BRT 2 e Linha 2 do Metrô – para, por exemplo, delimitar quais as famílias que terão direito a permanecer no bairro e quais serão notificadas a deixar o bairro – em primeira, segunda ou seguintes etapas deste planejamento – seja por conta das obras em curso de mobilidade urbana, seja por conta dos que não têm uma situação regular no bairro. E já que o número de família a ser contemplada, com o título de “uso para fins de moradia”, lega aos moradores apenas o direito de permanecer em suas casas, tratando-se, pois, neste caso, e até o momento, de um título de “uso concedido” e não de posse do terreno, sem real direito “à sua venda”, a priori, o que a qualquer tempo poderia vir a ser revogado e retirado no futuro com novas legislações sobre este tipo de usos concedidos? 234 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR Organização comunitária e luta para permanecer É bem conhecida e famosa a história de luta e resistência desta comunidade, antanho conhecida como invasão das Malvinas3 quando estava se instalando numa das margens da Av. Paralela, em uma época em que quase nada tinha ainda sido construído ao seu redor, e quando o prefeito Mario Kertész, então atrelado à máquina política de direita do velho cacique da Bahia – o já extinto ex-governador e senador Antônio Carlos Magalhães (ACM) – tentou os expulsar destas terras “de ninguém”. Dizia-se que estas terras pertenciam à família Visco, em uma região ainda virgem e densa de mata atlântica, com rica fauna e milhares de reservas mananciais, defendida por ecologistas como importante reserva ecológica da cidade. A zona também tem sido disputada desde sempre por diversos grupos de empreendimentos imobiliários até o presente, com desfechos até sanguinários. (GLEDHILL; HITA, 2014) Como modo de resolver boa parte dos conflitos em torno destas terras onde estava o Bairro da Paz, e por dívidas de impostos não pagos pela família Visco, foi tomada e declarada toda essa área como propriedade municipal que passou a ser regida por um Lei de Ocupação e uso do Solo (LOUS) que impede a titularidade do terreno – e direitos de comprar e vender terras – a todos os moradores do Bairro da Paz. No melhor dos casos, alguns poucos felizardos poderiam vir a conquistar o direito ao título da casa, mas nunca ao terreno. Num –Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – posteriormente assinado com a prefeitura, se negociou que apenas uma pequena poligonal do Bairro, em torno da área central do mesmo, por volta de umas 2 mil casas (famílias) teriam direito a permanecer ou ganhar título de posse da casa. (GORDILHO, 2000) Mas esses títulos nunca chegaram, ou bem poucos dos moradores os receberam ao longo dos anos. Ao parecer, dizem alguns, chegaram até ser distribuídos apenas uns 500. Até o momento não conseguimos o dado preciso de quantas famílias os tem e se foram prometidos novos depois, ou se a cada 3 em alusão à desigualdade de forças da guerra então travada entre Argentina e Reino Unido pelas ilhas Malvinas/Falklands, similar ao da guerra desta invasão com o Estado e prefeitura que investiram pelo seu despejo Maria Gabriela Hita 235 nova oferta, se tratava da distribuição dos antigos negociados e nunca distribuídos por diversos tipos de problemas. Em contrapartida, estes moradores da poligonal e respectivas lideranças deveriam se comprometer a evitar que a comunidade continuasse recebendo novos invasores e a se expandir para além dessa poligonal. Fica evidente que isso não aconteceu, já que na atualidade o bairro tem aproximadamente 60.000 habitantes, o que corresponderia a 15.000 domicílios se o cálculo aproximado for o de quatro pessoas por residência. Novas zonas de invasão surgiram depois, e ao longo dos anos, mas apenas para os lados, não tão verticalmente como foi o caso do Nordeste de Amaralina – outra favela de Salvador que estudei antes, localizada também no vetor Orla, instalada desde anos 40, nas imediações onde depois surgiram áreas residenciais de Elite como a Pituba/Itaigara, Rio Vermelho e lindando em outras de suas margens com outro importante pulmão da cidade: o Parque da Cidade. Em 13 de julho de 2014, um ano após o Programa Casa Legal ter sido inaugurado no Bairro da Paz, o prefeito da cidade em pessoa, ACM Neto, atual líder do Partido Democratas (DEM), e neto do extinto ex-governador da Bahia, ACM, visitou o Bairro da Paz para distribuir primeiros títulos prometidos pelo Programa Casa Legal, declarando que com os de agora, tinham sido entregues 2.500 títulos no Bairro da Paz, e que mais 1.000 ainda estariam por ser tramitados para futuro próximo. Ocasião em que também informou outras melhorias que viriam para o bairro, como a construção de um campo de futebol na Av. Orlando Gomes, pavimentação de duas ruas, inauguração de uma nova praça, renovação do posto de saúde que passaria a ser administrado pela Santa Casa de Misericórdia com equipe de 11 médicos bem treinados. (O Correio da Bahia,13/07/2014) Foi por volta de 1987, após muitas idas e voltas e novas lutas, com a chegada ao poder no estado do Governo de esquerda de Valdir Pires, quando se conquistou por primeira vez o direito a poder permanecer no local, neste valorizado vetor de crescimento imobiliário. Em comemoração por essa vitória, muda-se o estigmatizado nome de Malvinas para o de Bairro da Paz. O mito fundador desta luta e resistência expressa não só a forte organização popular e comunitária que sempre o caracterizou e fortaleceu, mas também se atualiza a cada nova fase e etapas deste espírito de luta, como por exemplo 236 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR foi o da posterior criação em 2007 de seu Fórum Permanente de Entidades do Bairro da Paz (FPEBP), ao qual nossa equipe de pesquisa acompanha e assessora. (HITA, 2012) O Fórum Permanente de Entidades e processos de negociação do futuro urbano Este FPEBP foi criado em 2007 como resultado da iniciativa e parceria de suas principais lideranças, entidades atuantes na comunidade, e participação da nossa equipe da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O FPEBP é uma rede e organização de poder local que opera paralela, e por vezes conjuntamente, à de seu conselho de moradores, da qual este último faz parte como um de seus membros, e é um coletivo que reúne as principais lideranças, moradores e entidades que atuam no bairro. Ele negocia com poderes estaduais e municipais diversos assuntos do interesse do seu desenvolvimento local, mediante a discussão de suas principais demandas e problemas a serem resolvidos, expressos em um conjunto de 7 diagnósticos elaborados e atualizados por suas lideranças ao longo dos anos e que são apresentados em audiências públicas organizadas anual ou semestralmente, geralmente desde baixo para cima (mas também algumas delas promovidas e solicitadas desde os poderes públicos). O que mobiliza este coletivo é o seu constante afã de intentar negociar com poderes públicos o direito à cidade de Salvador de sua população, lutando por conquistar uma melhor posição e acesso à minguada infraestrutura destinada para comunidades carentes. Eles buscam influir também na produção de uma nova imagem, mais positivada e menos estigmatizada, para a sociedade mais ampla e mídia, como sendo o Bairro da Paz um lugar diversificado composto por distintos estratos e grupos sociais, um local com moradores e pessoas dignas, por trabalhadores e famílias decentes. E deste modo, procuram se afastar da outra imagem como costumam ser representados os locais mais pobres, quando homogeneizados e identificados apenas como espaços de concentração de pobreza, criminalidade e violência urbana, como territorialmente estigmatizados, no sentido dado ao termo por Wacquant (2007). Por meio deste coletivo, começou-se a estabelecer um Maria Gabriela Hita 237 novo tipo de diálogo com poderes municipais e estatais para atuar mais eficazmente no planejamento conjunto do tipo de desenvolvimento local que tem sido implantado na região. Assim operou e vinha sendo procurado até hoje, por distintas instâncias municipais e estatais para resolverem, conjuntamente, problemas da comunidade e regiões adjacentes. Contudo, durante o final de 2011 e início de 2012, este coletivo foi temporariamente desativado, por motivos diversos, dentre outros, os que estão fortemente associados a interesses imobiliários, guerras entre diferentes grupos de traficantes que lutavam pela hegemonia do território, interesses conflitantes e partidários entre distintos dos líderes em ano de campanhas pré-eleitorais para vereadores e prefeito, além da já anunciada chegada da nova BCS, frente à qual muitos líderes se mostravam publicamente em oposição, mas que tampouco demonstravam ter a força suficiente de impedir sua instalação. (GLEDHILL, 2015; GLEDHILL; HITA, 2014) Por tudo isso considero que o fato do FPEBP ter estado desativado naquele período foi até parcialmente útil e conveniente para muitas dessas lideranças que abstiveram-se de ter que se manifestar ou pronunciarem contra algo que era irreversível. Paralelamente a isso, novas políticas de requalificação e mobilidade na Av. Paralela que afetam, de modo direto, a região, com destaque para o processo de despejo por parte da CONDER e OAS de algumas das famílias ali instaladas desde início dos anos 80s estavam também já em curso. Todavia, este coletivo voltou a funcionar e a defender seus interesses frente aos poderes locais, justamente quando é instalada na comunidade a Base Comunitária de Segurança (final de 2012), que foi acompanhada da chegada de vários novos programas, a seguir, dentre eles, o de Regulação fundiária Casa Legal (em 2013). O medo de moradores do Bairro poderem vir a ser novamente expulsos da região, continua vigente e é mais eminente hoje. Já se encontra em curso um processo de despejo de mais famílias do que as 75 inicialmente notificadas, como resultado das obras do PAC e de mobilidade urbana que atingirão esta zona, especialmente as obras na Av. Orlando Gomes e a linha 2 de metrô planejado para a Av. Paralela. Até dezembro de 2014, 75 domicílios foram notificadas de despejo, numa primeira fase das obras, dos quais a maioria tinha saído, por volta de abril de 2015. Algumas reuniões promovidas pelo FPEBP foram realizadas entre alguns destes moradores notificados a sair pela 238 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR CONDER – OAS, apenas com intuito de intermediar os primeiros contatos e facilitar a circulação de informações mais concretas sobre como esse processo do despejo e negociações iriam ocorrer, que aconteceram de modo totalmente individual, e não mediante processo coletivo, de modo que o burocrático e controlado processo de decisões por tecnocratas do Estado e prefeitura evadiu-se de realizar este processo de modo aberto e transparente. E ao que lideres se acomodaram, ao serem chamados, por entidades de modo isolado, a negociarem ganhos para suas instituições e projetos, e alguns poucos para a comunidade de modo geral. Segundo entrevistas realizadas com famílias do Bairro da Paz, as negociações sobre valores recebidos da Conder e OAS pela suas casas, definidos de modo individual e pouco transparente, caso a caso, giraram em torno de R$ 15.000 reais, cujo valor era estipulado a depender do tamanho e tipo de materiais de construção usados em cada domicílio. Houveram casos, entretanto, que por serem locais comerciais maiores, conseguiram obter melhores indenizações, mas sobre o que pouco se falava publicamente. Ao que tudo indica lideranças não foram ainda informadas de quantas mais famílias precisarão sair do Bairro, no futuro próximo, com novas etapas de requalificação previstas e as resultantes destas obras de mobilidade urbana. O modo de operar do coletivo claramente mudou desde que este foi reativado, após a chegada da Base em 2012 e desta nova fase de urbanismo, mais voltado para a requalificação das favelas. Ele passou a responder mais aos chamados dos governantes para discutir uma serie de projetos e programas que passaram a chegar sem parar na comunidade (de cima para baixo), e nem todos de real interesse local, do que a terem que decidir de modo coletivo e consensual, exigindo e demandando em suas audiências públicas organizadas por eles mesmos e com muito esforço e dificuldades (de baixo para cima), quais os principais aspectos que mereciam serem atendidos, para o desenvolvimento do Bairro e região. Cabe destacar, também, que hoje muitos dos seus líderes se encontram já inseridos na máquina política, atuando muito deles como assessores de vereadores e outros políticos (já sejam de esquerda, em sua grande maioria, como outros políticos de ala mais conservadora) – observando que a principal e mais realista preocupação atual das lideranças pareceria estar mais voltada para o tipo de ganhos de infraestrutura a serem Maria Gabriela Hita 239 conquistados e negociados para o bairro e comunidade como um todo, e muito menos com o defender os direitos e interesses das famílias que serão despejadas ou realocadas em outras regiões da cidade, como costumava ser a tradição e discurso destes líderes em lutas anteriores. Eles demonstraram estar bem mais interessados com a negociação das contrapartidas (para entidades de modo individualizado ou o conjunto do bairro), do que com o destino e valores a serem recebidos pelos despejados. Esta postura das lideranças do FPEBP nesta nova conjuntura parece diferir bastante daquela outra adotada pelo mesmo coletivo e comunidade na audiência de 2010, quando ao se debater uma série de publicações sobre regulação fundiária da sua prefeitura para toda a cidade e, surpreendentemente, divulgadas no jornal de maior circulação de Salvador (A Tarde), gerou uma conjuntura de pânico e discussões sobre o destino da cidade. Naquela conjuntura, o Bairro da Paz teve um papel central e nucleador de vários dos protestos que reuniram distintos movimentos sociais e políticos da cidade naquele momento. Eles exigiam saber naquele momento, qual seria o impacto das obras de requalificação urbana sendo projetadas e como elas afetariam de modo concreto o Bairro da Paz. Mas quando observaram que a proposta atual seria tirar apenas algumas famílias, e requalificar o lugar para os que ficassem, a postura deles foi se tranquilizando e abrindo a novos tipos de negociações. Mas poderia também ser arguido em seu favor, como algumas das mesmas lideranças afirmam, que nem todos os que estão sendo despejados moram ali desde anos 1980, que tem muitos interessados apenas na negociação e passaram a invadir o local quando souberam que haveriam indenizações, e que muitas destas famílias, ao invadirem esses locais, sempre foram informadas de que não teriam o direito de lá permanecer eternamente, ou de que o processo de negociações com o Estado e OAS teria ocorrido tal qual estipulado e informado nos encontros que o próprio FPEBP ajudou a propiciar. Por outro lado, cabe destacar que seus líderes não se acomodaram totalmente e que travam hoje novas lutas para melhorar a educação e infraestrutura do bairro, apesar do ceticismo que manifestam sobre as tácticas do governo ACM Neto (prefeito líder do DEM), e dos programas da municipalidade como o Parque Social que tenta ser apresentando como contrapartida pelas obras de 240 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR mobilidade em curso que afetam a comunidade. Entretanto, o que moradores e lideranças querem, e pelo que de fato lutam, são por contrapartidas em infraestrutura e requalificação do local para a maioria que vai ficar e não mais programas de capacitação ou tapumes (tapa-olhos). Como tem sido possível observar, as questões das “contrapartidas sociais” das obras continuam sendo muito disputadas por distintos grupos da sociedade civil em toda a sociedade, incluso dentro desta comunidade pesquisada. Contudo, esse processo de desejar e exigir maior inclusão social ocorre de modo simultâneo ao de outras consequências menos positivas na sua prática política, o da incorporação de algumas lideranças nos circuitos dos distintos partidos políticos (que em muitos casos leva à cooptação de alguns) e da participação de muitos deles no movimento negro, duas temáticas igualmente relevantes para as discussões do campo de estudos de movimentos sociais e processos políticos urbanos, mas que não há espaço aqui para avançar muito mais. O papel da Base Comunitária de Segurança Sabe-se já que na área do Beira Rio, onde há maior concentração de pobreza e casebres precários no Bairro da Paz, mas que nada tem a ver com obras de mobilidade urbana mencionadas, por ser em áreas mais internas, estariam sendo feitas novas notificações de despejo, ao parecer, para a construção de um parque e área grande de lazer, bem na fronteira do Bairro com área residencial recentemente construída com altos prédios de classe media e que não se sabe bem ainda a quem servirá. Boatos depois desmentidos, ou sinal de que houve mudança de planos para o futuro mais imediato. No que refere ao destino deste local. Foi no final de 2016 que a CONDER começou a notificar as famílias da Beira Rio sobre o despejo, argumentando que seria pela irregularidade de terem construído em área tão próximo das margens do Rio Jaguaribe, que precisaria ser tratado (e o trecho da Beira Rio, como conhecido no Bairro da Paz, é uma de suas extensões). Chegou a se mencionar a saída de pelo menos 30 casas antecipadamente demarcadas e das mais próximas à margem do Rio. Em poucas semanas já se podiam contar aproximadamente 100 casebres, com novos barracos se instalando precariamente Maria Gabriela Hita 241 a cada novo dia, pela expectativa de alguns destes recém-chegados ao local poder receber alguma indenização. Estava previsto que deixariam o local em janeiro de 2017, mas o despejo definitivo foi adiado para depois do carnaval. Algumas das famílias entrevistadas, informaram que irão receber indenizações entre 15 e 25 mil reais, outros irão preferir se mudar para um apartamento de 2 quartos em região de Cajazeiras que lhes foi prometido dentro do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), mas que até meados de fevereiro de 2017, não tinham entregado as chaves. Tudo isto recoloca de modo cada vez mais evidente a questão de a que interesses a recém instalada Base Comunitária de Segurança (BCS) do Bairro visam de fato servir, se aos das famílias e moradores que nele vivem ou se aos dos vizinhos mais ricos e interesses da “ordem da cidade” e do capital imobiliário de modo mais geral. Estas eram algumas das ansiedades e queixas da comunidade e lideranças nos seus principais embates com a instalação em 2012 dessa BCS. Desde bem antes da instalação desta BCS até o presente, a relação dos policiais com a comunidade e respectivas lideranças foi marcada por momentos de forte tensão, violência e conflito, especialmente durante o ano de 2013, tendo sido também tema de discussão e nova audiência pública organizada pelo FPEBP em fevereiro de 2014 (organizada de baixo para cima), na qual se discutiram muitos dos abusos de policiais desta BCS e incidentes que levaram ao assassinato de jovens na comunidade, demandando às autoridades um outro modelo de policiamento distinto ao do modelo existente. (GLEDHILL, 2015; GLEDHILL e HITA, 2014) Por outro lado, também tem sido visíveis os movimentos e ações de aproximação do comandante desta Base para criar maior empatia com lideranças e moradores do bairro, no sentido de diminuir a resistência inicial a sua instalação, algo que algumas entrevistas mais recentes com moradores do bairro parecem estar confirmando, ao terem imagens mais positivadas do bairro e sua segurança interna desde a chegada da BCS. Conclusão Apesar da maioria de pesquisadores brasileiros reconhecerem as enormes conquistas institucionais que muitos desses novos marcos jurídicos acima mencionados significam e os avanços que eles refletem em relação ao 242 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR passado, no que refere ao tema das cidades, o que ainda falta no Brasil e na América Latina, é para pesquisadores como Maricato, entre outros, a implementação efetiva, acompanhamento e regulamentação das leis resultantes desses novos marcos jurídicos. (MARICATO 2012; 2013; SOLAC, 2012) Os avanços em relação ao passado se referem no Brasil, por exemplo, ao fato de muitas leis sobre estes assuntos ter passado a existir, a ser legisladas e promulgadas desde a constituição de 1988, e demais marcos regulatórios que lhe seguiram em área de saneamento, de mobilidade urbana, na aprovação de vários novos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e Leis de Ordenamento de Uso e Ocupação do Solo (LOUOS) etc. Para urbanistas como Maricato e Rolnik, reiterando o já posto, o eixo central do Estatuto das Cidades está na afirmação ao direito à cidade, isto é, no direito de qualquer pessoa dispor de boa localização dentro dela (e não apenas o acesso à moradia como discutido nos anos 1980). Se o direito à moradia é absoluto, no Estatuto da Cidade, o direito à propriedade, entretanto, é relativo. E não é possível, afirma Maricato (2012b), pensar em cidade sustentável, sem falar em controle e ordenamento do uso e ocupação do solo, sem controlar ou regulamentar interesses de ordem imobiliária geralmente priorizados sobre o de certos grupos sociais. (MARICATO, 2012) E se por outro lado o governo federal vem retomando as políticas de habitação, a exemplo do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), e agora o Morar Melhor, e tantas outras de saneamento, está também fortemente atuando nas de mobilidade urbana, que, após décadas de ausência promovida por um ideário neoliberal que primava pela ausência de investimentos em políticas públicas, agora a situação do Brasil demonstra ser bem diferente de outrora. Hoje, se conta com muitos mais recursos em função de estar o Brasil fazendo parte do BRICS e ter sido apontado como sede da Copa de 2014 e das Olimpíadas que aconteceram no Brasil em 2016, atraindo muitos mais e bem mais significativos investimentos de capital estrangeiro. Várias destas reformas urbanas e de mobilidade são também fortemente impulsadas pelo PAC I e II (Programas de Aceleração do Desenvolvimento nos dois governos da presidenta Dilma Roussef). Mas a retomada destes investimentos sem uma reforma fundiária e imobiliária urbana (de competência municipal), afirma Maricato (2013), trará consequências como a explosão do valor dos imóveis, Maria Gabriela Hita 243 desalojamento de muitas das populações que não podem pagar aumento de preços e novas taxas em terras mais valorizadas e que terminarão sendo expulsas, de um modo ou de outro, pelo mercado, obrigando-as a se transferirem, quando não por ordem de despejo, pela pressão econômica, para regiões cada vez mais periféricas, precárias e distantes de onde estão os seus postos de trabalho, redes de relações, acesso a serviços de saúde e educação dos filhos, dentre outros bens e serviços. (GLEDHIL; HITA, 2014; MARICATO, 2013; ROLNIK, 2011; SOLAC, 2012) Por isso, na visão de muitos dos especialistas trazidos, o cerne da agenda da reforma urbana, fundiária/imobiliária, foi, de fato, esquecida. Não há regulação do uso do solo urbano, pois esta ficou refém de interesses do capital imobiliário, e para o qual as leis foram flexibilizadas ou modificadas sem decoro pelos poderes municipais. Grandes obras viárias para aumentar a mobilidade urbana sendo realizados em todo o Brasil com investimentos do PAC 1 e 2, como as obras em viadutos, túneis, ampliação de avenidas, implantação de novos sistemas de metrô etc., não guardam devida ligação com o planejamento urbano racional exigido, pois estão ao serviço da expansão desse mercado imobiliário e interesses políticos, levando à má gestão do gasto de dinheiro público em obras que não foram em muitos dos casos bem planejadas e democraticamente decididas, e que portanto, poderão não vir a ter os resultados esperados para resolver atuais problemas das cidades, a médio e longo prazo. Por outro lado, a disputa por terras mais valorizadas tem voltado a produzir o fenômeno da expulsão dos mais pobres de áreas mais centrais ou valorizadas para regiões mais distantes das periferias, ferindo direitos a um bom viver, como defendido no Estatuto das Cidades. Agrava-se ainda com o problema dos transportes e mobilidade urbana, sobre os quais têm se erguido inúmeras vozes de manifestantes indignados. Apesar da falta de imobilidade nas cidades ser hoje um problema generalizado, que afeta a todas as classes sociais, é certamente dos grupos mais pobres, afirmam especialistas, que será cobrado o maior preço em imobilidade. (MARICATO, 2013, p. 41; ROLNIK, 2011; SOLAC, 2012; HARVEY et . al, 2013) Por tudo aqui trazido, este estudo de caso é exemplar e elucidativo do processo em curso de requalificação urbana que vem acontecendo nas cidades brasileiras atualmente. Além dos fatores conjunturais dos megaeventos 244 UMA COMUNIDADE PERIFÉRICA DA CIDADE DE SALVADOR esportivos que afetam todas elas, trata-se de um modelo de urbanismo que pretende ser mais socialmente inclusivo, mas que continua sendo influído tanto pelo poder politico quanto pelo poder econômico do capital imobiliário e a logica de uma sociedade de mercado neoliberal ainda marcada por um alto grau de desigualdade social. Neste contexto, a distância entre os princípios nobres do estatuto da cidade e a realidade em curso continua sendo grande, mas o caso do Bairro da Paz oferece uma oportunidade de entender com maior precisão as possibilidades e limitações dos intentos de conseguir uma maior aproximação ao ideal por meio de ação popular. Referências AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. Tradução de Graça Índias Cordeiro. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. (Coleção Antropologia hoje). BONDUKI, N. Sustentabilidade e reforma urbana na Rio + 20. 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Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 81, p. 17-31, 2012. Maria Gabriela Hita 247 PARTE III SEGURANÇA PÚBLICA E DESIGUALDADES SOCIAIS EM CIDADES BRASILEIRAS Alba Zaluar DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO A Antropologia nos legou três ou quatro lições muito importantes. Primeira, que a última palavra está sempre com o nativo, mas que os nativos são muitos. Segunda, que o social é uma trama de relações mais ou menos sistemáticas, com fronteiras mais ou menos definidas. Terceira, que a cultura é uma rede de significados, mais ou menos integrados em sistema, mais ou menos fluidas, mas com certo grau de autonomia, alguns afirmando ser ela irredutível. Quarta, nem sempre aceita ou levada adiante por outros, que processos de mudança são inevitáveis, mesmo nas sociedades mais equilibradas e nas culturas mais duradouramente cristalizadas e que, portanto, é preciso estender a análise o mais longe possível, entendida no duplo sentido do espaço e do tempo, para compreender como tramas e redes se interconectam e se modificam. O problema é que essas ideias que fazíamos das “culturas”, das “sociedades” integradas e estáveis, mesmo que relativamente, estão cada vez mais difíceis de se reconhecer no mundo globalizado de hoje. Fronteiras indefinidas, culturas fluidas, sociedades gelatinosas, hibridismo, sincretismo e creolização (CLIFFORD, 1988; STEWART; SHAW, 1994) são os novos temas a assolar 251 a reflexão daqueles que viam suas próprias sociedades e as dos outros com invejável nitidez e, dentro de cada uma delas, os grupos e categorias com identidades claras e inequívocas. Nessa linha de raciocínio, creio eu estar certa quando afirmava a necessidade de entender a violência atualmente manifesta no Brasil não apenas como efeito geológico das camadas culturais da violência costumeira no país desde o período colonial, mas também no panorama do crime negócio internacional,resultante do processo de globalização, com características econômicas, políticas e culturais sui generis, sem deixar de ser empreendimento capitalista na busca desenfreada do lucro a qualquer preço. Diante das evidências, não se pode negar a necessidade de estender a análise das redes do crime negócio para fora das fronteiras nacionais, ou seja, das tramas que tecem entre si aqueles que optam por viver nem sempre como fora-da-lei, mas numa mistura peculiar dos negócios legais e ilegais. A imagem do menino favelado que com uma AR15 ou metralhadora UZI na mão, que considera símbolos de sua virilidade e fonte de poder e prestígio social, com um boné inspirado no movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína produzida na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro do ano, pelos quais é capaz de matar ou morrer, não pode ser explicado, para simplificar a questão, pelo nível do salário mínimo ou pelo desemprego entre os jovens favelados, nem tampouco pela violência costumeira do sertão. Por um lado, quem levou até ele esses instrumentos do seu poder e prazer, por outro lado quem e como se estabeleceram e continuam sendo reforçados nele os valores que o impulsionam à ação na busca do prazer e do poder, são obviamente questões que independem do salário mínimo local (ZALUAR, 2007), embora contribuam para sua vulnerabilidade e formação subjetiva. Minha démarche tem os seguintes pressupostos teóricos: • Não se pode tratar favela como uma entidade que representa coletividade homogênea, consensual e una. De fato, há, ao contrário, grande diversidade pois a população está segmentada por gênero, idade, religião, renda, escolaridade, profissões, posição ocupacional e até mesmo 252 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO • • • • estado de origem, visto serem em grande parte migrantes de outras cidades e outros estados. A antropologia do cotidiano não pode mais ingenuamente entender que significados coletivos ou individuais sejam espontâneos, autônomos, com marcas claras de ideologia ou interesses de classe, sem passar pelo crivo de interações com outros atores políticos, inclusive de partidos e movimentos sociais, além da mídia e demais agentes da indústria cultural. São muitos atores interagindo e se influenciando mutuamente em intricados processos de interpretação, absorção, redefinição de estilos de vida, ideias e práticas no que tange à política de segurança pública. Hoje em dia, temos problemas adicionais para evitar as armadilhas postas a quem tenta entender o que acontece na execução de políticas públicas que vão afetar vários e diferenciados agentes sociais, passando pelo filtro dos veículos de comunicação de massa. A antropologia do estado ou das margens (DAS, 2004; DAS; POOLE, 2004) não pode se basear em dicotomias que consideram os setores mais pobres, que vivem na precariedade do emprego, dos serviços públicos de baixa qualidade e da vulnerabilidade aos riscos (na saúde, no trabalho, na segurança) como submetidos às mentiras dos governantes e ignorantes das leis e da lógica do estado. Há diversos níveis de conhecimento, decorrentes da escolaridade, da idade, das redes de sociabilidades, discussão das leis aplicáveis assim como da função de policiais e demais agentes do estado lá presentes, dando origem a vários tipos de movimentos sociais. Deve-se evitar a arrogância de tratar favelados como alienados, iludidos ou “idiotas culturais” pela ação da mídia, por sua vez apresentada como um bloco homogêneo e uníssono que engana o povo. Essa dicotomia decorre de outras: dominadores X dominados; incluídos X excluídos; brancos X pretos; estado X movimento social; polícia X favelados, cada uma delas apresentada com uma pesada carga de moralismo chegando muito perto do maniqueísmo, ou seja, do bem e do mal absolutos. A reflexividade também é plural. Como dependemos da nossa interação com os agentes sociais que estão nas cenas e grupos, vivendo os conflitos e problemas que tentamos entender, hoje temos que admitir Alba Zaluar 253 que algo mudou. Desde o início da pesquisa em favelas com UPP notei que o discurso de muitos líderes comunitários reiterava expressões e ideias de grupos políticos mais amplos, fora daquelas “comunidades” para as quais o discurso se dirigia. Então, o que se pode considerar como a “cultura” dos favelados? A nova política de segurança pública na cidade, baseada na ocupação de favelas por Unidades de Polícia Pacificadora (UPP)iniciada em 2008, tem possibilitado diversas alianças e estratégias entre agentes de segurança e moradores de favelas pacificadas. Embora antigas tensões não tenham desaparecido, verifica-se que surgiram novos conflitos entre moradores e policiais, muitas vezes resultados de interesses divergentes ou de arbitrariedades, truculências e corrupções ainda exercidas pela força policial que pretendia basear-se na proximidade com os moradores. No Complexo do Alemão,uma vez que a ocupação em 2010 deu fim ao domínio armado de traficantes, sem prender a maioria dos traficantes locais, apenas afastando os traficantes com registros policiais para outras áreas da cidade, traficantes mais jovens, sem ficha policial e com menos prestígio dentro da hierarquia do tráfico continuaram vivendo e atuando nas favelas deste Complexo de forma discreta, sem a exibição e o uso de armas de fogo. Mesmo assim, relatos de confrontos com policiais, disputas armadas pelo controle de bocas de fumo e até de território, ordens para fechamento de comércioetc. foram se tornando mais e mais comuns, o que poderia, em linhas gerais, ser considerado um retorno ao modelo inicial de tráfico de drogas ilegais tal como era praticado desde a década de 1970, antes do domínio territorial exercido pelas facções, iniciado no final dos anos 1980, assumindo a forma sistêmica da corrupção e da guerra a partir de meados dessa década. Os donos de boca aderiram às facções, armaram-se como se estivessem numa corrida armamentista para dissuadir seus inimigos, e tornaram-se os donos do morro. Tal retrocesso para um modelo anterior teria atingido fortemente tais grupos de traficantes que aderiram às facções com seus esquemas de corrupção e de guerra permanente. Eles desenvolveram também o estilo de masculinidadebaseado na exibição de armas, carros luxuosos, joias de ouro e motos nas favelas dominadas, símbolos da riqueza que, junto com as 254 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO práticas de consumo conspícuo características do estilo de hipermasculinidade (ZALUAR, 2004), garantiam o prestígio social e o poder que exerciam no local. O domínio armado não se restringia apenas ao uso de armas, mas à exibição delas, bem como a exibição dosoutros bens associados à riqueza que serviam para ostentar seu poderio, exercer seu domínio, assim como seduzir mulheres e atrair novos “soldados”que, se continuassem vivos, cresceriam na hierarquia. (ZALUAR, 2004) Entre as reclamações dos atuais comerciantes da droga ilegal estava justamente a perda do prestígio e a impossibilidade de exibir seu poderio em armas, joias, carros de luxo, motos de elevado custo, nem dar as festas em que ostentavamseu poder econômico e simbólico. A instalação das UPPs neste complexo de favelas em 2012 gerou, portanto,tensões entre policiais e traficantes. Alguns traficantes entrevistados1estariam se sentindo diminuídos e humilhados pela presença da UPP no local. Nas atividades comerciais, estariam circunscritos ao “beco”, onde teriam de se conformar a apenas vender drogas “em paz” e garantir o seu “sustento”. Nas redes de sociabilidade locais, estariam perdendo o poder de atrair as mulheres e impressionar os meninos que os admiravam anteriormente. Pior, as mulheres estariam sendo atraídas pelos policiais militares que lá passaram a estar. Após as manifestações de 2013 e do retorno de confrontos armados entre policiais e traficantes até mesmo nas favelas já pacificadas, esse quadro se modificou. O projeto hoje está mais fragilizado e é preciso pensar se, e como, pode vir a seguir os preceitos e filosofia iniciais que o tornaram aceito pela grande maioria dos moradores da favela e do asfalto do Rio de Janeiro, salvando vidas e trazendo esperança para os seus moradores. Esta política baseada na ocupação de territórios antes dominados por grupos armados de traficantes ou milicianos, foi fruto de muitas disputas de poder e de concepções de polícia, mas tentou responder a desafios de diversas esferas. Segundo a página da UPP/RJ, a situação em agosto de 2014 era a seguinte:38 UPPs instaladas em favelas desde 2008, atingindo 1,5 milhão de pessoas em 221 territórios ocupados por forças policiais permanentes compostas de 9.543 policiais com treinamento de polícia de proximidade em 9.446.047 m² de área ocupada. Os números mostram que o programa avançou, mas nada 1 Entrevistas feitas pelos pesquisadores do NUPEVI Rodrigo de Araújo Monteiro e Ana Cristina Alba Zaluar 255 dizem sobre os problemas, dilemas e desafios que os policiais enfrentam na ocupação e na relação com os moradores. Vamos primeiro examinar os dados estatísticos consolidados que demonstram os benefícios relativos da nova política, embora ainda em índices modestos. Publicados no portal Rio Como Vamos, dados do DATASUS revelam queda na taxa de homicídio juvenil masculino na Região Administrativa do Complexo do Alemão: 85/100.000 em 2009, 79,92/100.000 em 2010 e 47,69/100.000 em 2011. Para toda a cidade, os dados mostram igualmente queda nesse item: 115,81 em 2009, 100,26 em 2010 e 63,74 em 2011. O jornal O Globo de 24 de março de 2013 revela também a queda no número de disparos de armas de fogo de policiais: em 2007 foram 40.332 disparos, em 2008 foram 53.657, 28.484 em 2009, 23.334 em 2010, 4.244 em 2011 e 2.395 em 2012. Outras pesquisas apontam para essa tendência na cidade. Zaluar e Monteiro (2012) mostram queda de 40% na mortalidade de pessoas de 15 e 30 anos de idade nas Regiões Administrativas mais pobres. Dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC)2 reiteram a queda na taxa de homicídios por 100.000 habitantes no Rio de Janeiro (capital e estado): na capital, 45,7/100.000 em 2002 e 22,4/100.000 em 2011, enquanto no estado do Rio de Janeiro, sai de 46,6/100.000 em 2002 para 26,3/100.000 em 2011. Ainda que considerado fator elevado pelos padrões da Organização Mundial da Saúde (OMS), os dados revelam queda das taxas de homicídios no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Mas pesquisas recentes feitas pelo Laboratório de Análises da Violência da UERJ com os dados oficiais de homicídios do Instituto de Segurança Pública de 2012 e 2013, revelam que os homicídios em 30 áreas de UPP do Rio caíram ainda mais do que na cidade e no estado. A queda foi de 26,5% entre 2013 e 2012, revelando tendência contrária ao que ocorreu na cidade, onde houve aumento de 9,7% (de 1.206 casos em 2012 para 1.323 em 2013), ou seja, os homicídios diminuíram mais nas favelas com UPP do que na cidade. De acordo com os números, 36 pessoas foram assassinadas em 2013 nas regiões pacificadas citadas na estatística, contra 49 em 2012. Os casos de autos 2 Disponívelem:<http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wpcontent/uploads/2011/04/ Homic1991_2011.jpg>. Acessado em 24/02/2013. 256 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO de resistência (mortes em confrontos com a polícia) também caíram: foram 19 em 2012 e 12 em 2013. Os resultados do ano passado indicavam, portanto, diminuição nos assassinatos, mas os números ainda são modestos, considerando a expectativa da mudança na forma de abordagem. Outra estudo,realizadopelo jornal O Dia e uma ONG, afirma que entre 2007 e 2013 pouparam-se 7348 vidas no estado do Rio de Janeiro, considerando a proporção existente em 2007 e projetando-a para 2013. Vidas foram poupadas, mas o número de pessoas assassinadas continua assustador. Comemora-se a taxa de 28 por 100 mil habitantes no estado, mas ela ainda é quase três vezes maior do que a recomendada pela OMS. Nos primeiros 55 dias de 2014, tivemos pelo menos 45 mortos em operações policiais em favelas do Rio de Janeiro. Os resultados modestos podem ser explicados pelos vários desafios presentes na ocupação feita pela UPP e no contexto político pré-eleitoral, portanto de fim de governo, e das manifestações contra os eventos internacionais que terão lugar na cidade. O primeiro desafio está na própria engenharia institucional da segurança pública em que pouco ou nada se modificou no que os estudiosos desta no Brasil apontaram como obstáculos a serem afastados: • A segregação entre os sistemas policial, judicial e de execução penal, além das divisões dentro de cada um desses sistemas, o que provoca dificuldade na comunicação e cooperação entre seus diversos órgãos e corporações, produzindo conflitos entre os agentes públicos e o consequente isolamento na ação; • A estratégia das demais políticas de segurança que continua sendo de combate ao criminoso ou “bandido” ou de guerra às drogas visto que não ter havido mudança na legislação e na política relativa àquelas substâncias que permanecem ilegais e que continuam demandadas como fonte de prazer imediato por setores da população. A militarização tem mais a ver com os armamentos pesados e a política de caça ao bandido do que com o nome “militar” de uma das quatro polícias existentes no país. • O foco do sistema de justiça no país e no estado continua sendo a punição de criminosos e a vigilância da população, especialmente dos que Alba Zaluar 257 habitam as áreas mais desprovidas de serviços públicos e onde se concentram os mais pobres, menos escolarizados e mais desempregados. • Ausência de um etos profissional pelo qual os policiais se entendam e ajam como atores na constituição do espaço público no estado democrático de direito. • A predominância de ações reativas baseadas na repressão dos mais despossuídos, portanto sem modelo de investigação, baseado na racionalidade com princípios, normas e regras básicos claros para todos os agentes e, sobretudo, para aqueles que são o objeto da ação policial. • Pouco ou nenhum planejamento nas novas estratégias adotadas para minorar os problemas anteriores nem discussão dos novos problemas, entre os quais o estresse pós-traumático que os policiais vivenciam após a morte de colegas, seja no posto de vigilância da favela, seja em confrontos armados com traficantes. As provocações e ameaças a estes policiais em favelas como a Rocinha e o Alemão tornaram-se cotidianas, constantes, na tática do terror. O contingente de policiais empregados nas UPPs, 9.349 novos recrutas que recebem treinamento de seis meses em polícia de proximidade, cresceu muito rapidamente em cincoanos, trazendo jovens do interior do estado para trabalhar na capital em favelas onde, embora ocupadas pela PM, ainda acontece o comércio ilegal de drogas que, a partir principalmente de meados de 2013, voltaram a andar armados e disputar os pontos naqueles complexos de favelas mais lucrativos para os traficantes, como a Rocinha, Vila Cruzeiro e Alemão. Nessa época, justamente, começaram a acontecer quase que diariamente manifestações de grevistas seguidas sempre de quebra-quebras (riots) que atingiam prédios públicos, veículos (principalmente ônibus), pontos de ônibus, bancas de jornais e terminais eletrônicos de bancos. Para enfrentar os manifestantes reprimindo-os como faz a Polícia Militar convencional ou o batalhão de choque, foram enviados muitos desses jovens recrutas que tinham recebido breve formação para lidar pelo diálogo e respeito com os moradores das favelas ocupadas. Durante as manifestações, os policiais das UPPs tiveram de aprender e assimilar as técnicas da repressão e o abuso no uso da força que caracterizavam a PM em situação de enfrentamento. A inércia da 258 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO lógica da ação que impera na cultura organizacional ganhou ainda mais momentum pela situação crescentemente tensa que se formou na cidade e nas favelas ocupadas. Nestas, com menos policiais presentes, os traficantes voltaram a exibir armas e a se comportar provocativamente, sem se esconder nos becos como faziam nos últimos anos. Pelo sistema de disputa de pontos de venda (bocas de fumo) que envolve três facções no Rio de Janeiro, os pontos que continuaram a funcionar precariamente nas favelas ocupadas por UPP voltaram a ser alvo da cobiça das facções inimigas por estarem em dificuldades de exibir armas e arregimentar soldados, imprescindíveis na estratégia dissuasória adotada para amedrontar os inimigos. Confrontos entre traficantes voltaram a ocorrer, o que obrigou o uso cada vez mais visível e constante das armas de fogo. Confrontos entre policiais e traficantes voltaram a ocorrer e a caça aos “bandidos” hoje periga vir a ser novamente o modus operandi de policiais militares mesmo nas UPPs. Vários confrontos com traficantes armados resultaram na morte de dezenas de policiais, o que aumentou ainda mais a tensão, o medo e o estresse no trabalho dentro das favelas. Nesses confrontos morreram ainda mais jovens moradores, alguns acusados pelos policiais de fazerem parte das quadrilhas, todavia quase sempre inocentados pelos moradores. Disso resultou o surgimento de um novo movimento social congregando as mães desses jovens e coordenado sem hierarquias. Este movimento tem recebido uma crescente atenção da imprensa nacional e internacional. A história de cada comunidade e o estilo de gestão das UPPs locais são as chaves para compreender os conflitos e as trocas entre moradores e policiais. Uma vez que as comunidades não têm as mesmas histórias e formações, que o estilo de comando de cada UPP é muito importante para entender como será a relação entre policiais e moradores, que não há homogeneidade entre as lógicas de ação de oficiais e praças das UPPs, é impossível generalizar a avaliação da nova política de segurança baseada no policiamento dentro das favelas da cidade. As práticas policiais das UPPs de fato variam conforme o comandante, a favela ocupada, a cooperação obtida com os moradores. Há exemplos bem sucedidos de mediação por associações de moradores, escolas de samba e ONGs, há comandantes que acolhem e defendem mais o projeto e que Alba Zaluar 259 conseguem manter os praças na linha proposta na pacificação. Mas há vários casos de insucesso que provocaram denúncias de abusos no uso da força, corrupção e outras violações dos direitos dos moradores, algumas resultando na substituição do comandante. Na pesquisa feita em 2012 e 2013, entrevistamos vários comandantes da UPP em diversas regiões da cidade que tinham visões muito diferentes do projeto das UPPs e do que seria polícia de proximidade. Enquanto vários revelaram desconhecimento ou pouca adesão a esta nova polícia, um dos comandantes da favela da Mangueira assim a definiu: Quando a gente fala de polícia, lembro que o termo vem do grego: poli-tia – em companhia da cidade – a polícia está para preservar a cidade. Preservar a integridade física, preservar os bens dessa cidade, dessa comunidade. Quando a comunidade está próxima da polícia, se integra para poder dar solução aos problemas de segurança; isso é ’polícia de proximidade’, desenvolvendo com a polícia questões que vão beneficiar essas comunidades. O que a gente quer é que o morador participe das nossas atividades, inclusive dos nossos planejamentos. Por isso mesmo, favelados se queixam quando comandantes respeitosos são removidos e pedem a saída urgente dos autoritários e corruptos. Se as práticas e ideias dos comandantes não são as mesmas, isso revela que não há uniformidade na formação profissional e na gestão das unidades, provavelmente por conflitos internos e problemas graves no planejamento da própria PM, a instituição responsável pela coordenação das UPPs. As primeiras tentativas de aproximação foram feitas por meio de aulas de esporte e de música dados por policiais militares. Mas logo surgiram reclamações de que o lugar dos policiais não era nos programas socioeducativos destinados aos jovens, pois tendiam a aplicar as regras hierárquicas e de disciplina vigentes na PM ao ensino do esporte, denominando tal tentativa de “adestramento” de crianças e jovens por policiais militares. Em algumas favelas já existiam vilas olímpicas, em outras, como em Cidade de Deus, projetos liderados por moradores que ensinavam voluntariamente esportes variados e atividades culturais crianças e jovens há muitos anos. 260 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO Na avaliação do projeto da UPP, há que evitar os falsos consensos criados a partir de uma situação conflituosa pela incorporação forçada de uma voz dissidente pela outra, oficial e armada. Isso é especialmente claro nas relações entre a nova polícia nas UPPs e parte da juventude que se rebela contra a sua presença. Novas tensões foram surgindo porquanto policiais entendem sua missão também como a de impor ordem, pelas leis do país e prender criminosos no local. Como disse outro comandante: O que a gente quer é fazer diferente: que a comunidade saiba que ela tem que andar certinha, a moto documentada, de capacete, o veículo dele com tudo em dia, dirigindo habilitado. Não pode ter nada de errado. Não pode ter um som muito alto para não incomodar o vizinho, não pode cometer crime, não pode agredir a mulher. A pessoa sabe de tudo isso, sabe também que a polícia está presente caso cometa algum tipo de irregularidade, e vai lá para poder prendê-lo. Então a comunidade passa a perceber que funciona, que a lei está sendo cumprida. Antes, nas comunidades dominadas pelo tráfico, hoje pacificadas, não se tinha como prender um marginal que estivesse traficando numa determinada localidade, que tivesse matado uma pessoa que foi comprar um saquinho de pó com ele. Foi lá, se estranhou com o cara, matou e sumiu, correu. Como é que prende esse cara? Como é que entra no morro com cento e tantos fuzis, carro blindado e tal. Agora não, agora a gente sabe, fulano de tal matou sicrano ou então a investigação vai fluir melhor, as operações vão fluir melhor para poder prender aquele homicida que matou uma pessoa que esteve lá para comprar um saco de pó com ele. O segundo desafio enfrentado na execução deste projeto diz respeito ao contexto social das favelas. Um levantamento, em 20 favelas pacificadas do Rio feita pelo Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (IETS), mostra que 93% dos empreendedores trabalham por conta própria. São donos de pequenos negócios que tocam sozinhos, de guias turísticos a mecânicos de oficinas, de donos de botecos a serviços como correios e até provedor de internet. A pesquisa encontrou renda média dos empreendedores das 20 favelas de R$ 1.137,29. No Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, esse valor cai para R$ 737,94, metade dos R$ 1.435,52 do Chapéu Mangueira, no Leme, na Zona Sul, o que se Alba Zaluar 261 explica pela localização. Enquanto o Chapéu Mangueira fica no Leme, na Zona Sul, cercado de bairros de renda mais alta, o Morro dos Prazeres está incrustado num complexo de favelas em bairro de menor renda. A média geral dos trabalhadores brasileiros é de R$ 1.345, de acordo com o Censo Demográfico de 2010. O empreendedorismo, muito criticado pelos que o veem como um dispositivo do mercado, ou seja, do capitalismo, tem ajudado famílias a encontrarem fonte de renda mais estabilizada do que o biscate, termo anterior usado para definir o trabalho sem carteira assinada. Entre os empreendedores, as mulheres dominam: 53%. O Censo da Juventude de dez UPPs, feita pelo Instituto Pereira Passos no final de 2013 e o Instituto TIM, entrevistou 5.400 jovens entre 14 e 24 anos. Destes, surpreendentemente quase 40% (39,26%) afirmaram não ter religião, 30% serem católicos e 27% evangélicos. O acesso à internet atinge quase 90% desses jovens, 73% dos quais acessam todos os dias, sendo que quase 70% disseram acessar de casa e 5% de lan houses. Parecem, portanto, estar inseridos na pós-modernidade e aptos a fazer uso das novas formas de se comunicar no mundo. Porém, 20% deles não estudam nem trabalham nem procuram emprego, candidatos ao uso de drogas ilegais e envolvimento com crimes. A escolaridade é ainda um grande problema não resolvido, o que certamente afeta o sucesso da política de UPP. De acordo com os dados levantados, 36% não completou o ensino médio e apenas 3,6% concluiu o universitário. Não acho que é nessas favelas que moram os alunos beneficiados pela política de quotas. Por isso mesmo, está longe de haver unanimidade no apoio ao projeto das UPPs entre os moradores. Há razões que remetem às demandas socioeconômicas não atendidas, mas há também as que se referem às práticas sociais que se desenvolveram em contexto de relativo isolamento da vida política e social da cidade, o que poderíamos chamar de mentalidade de gueto ou de espaço exclusivamente paroquial. Querem fazer parte da cidade sem perder a independência relativamente às leis federais ou às posturas urbanas da cidade. Querem os benefícios da urbanização sem perder as vantagens propiciadas pela economia informal que permite receberem luz, água, sinal da TV a cabo sem pagar quase nada. Mas há também muita diferença entre favelas antes dominadas por milicianos e traficantes que “vendiam” tais serviços com a mediação das associações de moradores, assim como cobravam taxas sobre 262 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO todos os negócios imobiliários que ocorrem na favela sem o registro feito em cartórios, apenas com documentos feitos na associação, sem valor jurídico formal. A mentalidade de gueto é resultado de tornar a favela ordem social única, fechada em si mesma, fora da cidade, com sua própria “lei” que recusa as do mundo urbano do qual ao mesmo tempo quer fazer parte. A desfavelização é mesmo apresentada por certos grupos políticos externos como traição ao caráter proletário e anti-cidade formal das favelas. Em algumas, moradores se referem às favelas como “locais de bagunça e desordem” que “devem ser dispensadas de regras”, embasando a resistência à nova ordem com policiais cotidianamente presentes impondo limites aos bailes funk e festas barulhentas nas lajes ou biroscas. Outros querem e aceitam a proximidade com os policiais, além de ressaltarem a necessidade de novo ordenamento comunitário. Não por acaso, os jovens estão mais entre os primeiros e os adultos e idosos entre os segundos. Há um conflito geracional claro assim como um efeito do medo bastante generalizado de que os traficantes voltem devido ao possível fracasso da UPP ou à mudança de governo nas eleições de 2014. Há uma tensão, talvez mais importante embora não a mais evidente, entre as esferas privada, paroquial e pública, sendo que a maior tensão gira em torno do que seria a “ordem pública”, decorrente da diversidade de significados atribuídos à nova presença policial e às muitas contradições das posturas que dizem respeito à liberdade individual e privada e aos espaços públicos que são de todos e devem ser geridos por regras que valem também no resto da cidade. Não se trata tampouco de tentativa de regular a vida cotidiana local, segundo padrões de conduta fortemente invasivos da privacidade dos moradores, pois que de fato existem, entre os moradores, posturas diversas e interesses opostos em relação ao barulho das festas e bailes. O que há de manifestação concreta de direitos civis é a demanda para que se discuta com os moradores, deixando claras as regras do uso do espaço pública e dos horários permitidos para sua realização. Outra demanda importante, esta sim referida aos direitos individuais, particularmente à privacidade e aos direitos civis, diz respeito ao que denominam “esculacho” ou a forma usual de tratamento dos favelados pela polícia: a invasão com pé na porta de domicílios para inspeção bem como a revista de Alba Zaluar 263 bolsas e mochilas dos estudantes à procura de drogas e armas. Aquela, passado o momento da ocupação, deixa de ser praticada pelas forças militares, mas a última tornou-se a maior razão de conflito entre policiais e jovens de ambos os sexos, principalmente dos homens. Por conta da volta de traficantes ao tráfico armado com confrontos entre eles e policiais, estes mantiveram a velha prática de parar jovens para revistá-los cotidianamente, o que os humilha e revolta. Mais uma vez são os jovens os que mais criticam a presença policial por imporem limites à sua liberdade. Há também diferentes graus de proximidade e identificação com os antigos “donos”, os traficantes armados, dos quais alguns dependiam ou de cuja presença lucravam, fora as relações de amizade ou parentesco que sempre existiram entre traficantes e moradores. A equação é complexa pois também nunca houve unanimidade para com a presença armada e o domínio exercido pelos primeiros. Os grupos de traficantes que dominavam favelas por estarem fortemente armados, afirmavam o poder pela exibição de armas, carros de luxo, joias e motos, além de consumo conspícuo em festas e bailes oferecidos em qualquer lugar e horário. O domínio armado não se restringia ao uso de armas, mas à exibição delas e ostentação de outros símbolos de poder dos “donos” do pedaço, que atraíam mulheres e novos jovens “soldados”. Estes precisavam sempre ser renovados por conta da alta taxa de mortalidade decorrente dos embates com facções inimigas e com policiais repressores ou corruptos. Ora, a exibição de armas, joias, carros de luxo, motos caras tornou-se quase impossível, assim como as festas e os bailes realizados pela madrugada adentro por conta da presença constante de policiais que obrigou os operadores do comércio local de drogas ilegais a serem discretos para não serem presos. Limitados aos becos, obviamente, os traficantes foram os mais prejudicados na sua atividade econômica, pois o acesso dos consumidores também ficou mais limitado. O prejuízo foi econômico e também social, no poder exercido ostensivamente sobre os moradores e o prestígio obtido dele. Embora a vida social e comunitária nas favelas não tenha sido destruída pelos traficantes, convém lembrar que muitos líderes comunitários independentes e movimentos sociais foram mortos ou desarticulados por eles. A presença armada e vigilante, assim como o mapeamento do entorno em favelas 264 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO amigas e inimigas limitava o acesso de parentes, amigos ou meros visitantes de outras áreas da cidade. Políticos e gestores locais desde o início afirmaram que as UPPs recuperaram o direito de ir e vir de moradores das favelas ocupadas, direito que se estendeu aos moradores e turistas da cidade, o que muitos moradores confirmavam. As associações e os comerciantes locais passaram a contar com a presença de cada vez mais frequentes visitantes que já não vinham apenas para comprar drogas ilegais. De acordo com o jornal O Globo de 19 de maio de 2013, o teleférico do Alemão recebe 12.000 passageiros por dia, e aos fins de semana 60% desse público seria de não moradores, o que daria ao teleférico do Alemão um número maior de visitantes do que outros pontos turísticos tradicionais da cidade do Rio de Janeiro.3 Porém novos problemas surgiram, tais como o perigo de gentrificação e a acusação de que a favela estava sendo invadida por turistas, como ocorreu no Complexo do Alemão, ou pelos gringos, como ocorreu no Vidigal, a favela com a mais bela vista da cidade, bem próxima da abastada Zona Sul, que passou a ser habitada por estrangeiros. Nas favelas com UPPs, portanto, não houve apenas uma reconfiguração das relações de poder, com o aparecimento de novas lideranças e fortalecimento das antigas que estavam submetidas ao controle ou despotismo de traficantes armados. Houve também mudanças na economia local com florescimento de novos comércios, novas transações imobiliárias informais e empreendimentos produtivos, como o de cooperativas de produtos artesanais. Tampouco encontra-se unanimidade entre os comerciantes das favelas. Entre aqueles ouvidos pelos pesquisadoresdo Núcleo de Pesquisa das Violências(NUPEVI),4 muitos revelaram grande alívio com o fim do tráfico armado e dos tiroteios constantes que “prejudicavam a comunidade”, mas sobretudo eles próprios, coagidos que eram a fornecer alimentos, dinheiro ou bebidas a alguns traficantes. Entre os novos problemas surgidos agora estão as mesmas reclamações que atormentam os pequenos empresários ou 3 Disponivel em: <http://oglobo.globo.com/rio/teleferico-do-alemao-bate-icones-do-rio-em-numero-devisitantes-8433461>. Acesso em: 21 maio 2013. 4 Os entrevistadores foram: Rodrigo de Araújo Monteiro e Ana Cristina e as entrevistas e observações foram feitas entre 2010 e 2014. Alba Zaluar 265 trabalhadores autônomos na cidade formal: alta carga tributária, concorrência desleal de produtos não regulamentados, concorrência de comércio ambulante, fiscalização irregular. Mas há os comerciantes prejudicados com o advento da ocupação e das UPPs, por terem sido os fornecedores privilegiados para as festas e bailes funks promovidos pelos traficantes, obtendo lucros com a presença de usuários de drogas muito consumidas nessas ocasiões, que eram frequentadores assíduos desses bailes. Uma vez que a ocupação tinha de dar um fim ao domínio armado de traficantes, prendendo ou afastando os mais poderosos e com registros policiais para outras áreas da cidade, os menos importantes na hierarquia do tráfico continuaram atuando nas favelas, de início discretamente nos becos, com raros relatos de confrontos com policiais e traficantes de facções inimigas, assim como ordens para fechamento de comércio e escolas, que se tornaram novamente constantes nos principais centros do comércio ilegal de drogas na cidade: Rocinha e Complexos da Penha e do Alemão.Sem o apoio do setor de inteligência, coube à PM reforçar o patrulhamento após os ataques, voltando nessas favelas às velhas práticas de caça aos bandidos que caracterizava sua ação anteriormente. A dificuldade, no combate ao crime em áreas pacificadas, é consequência da falta de planejamento estratégico do setor de inteligência. Para piorar, segundo eles, há corrupção, falta de transparência nas ações e disputas entre os próprios policiais. Em visitas a muitas obras feitas pelo PAC foi possível observar certo descompasso destas com os usos feitos pelos moradores: a forma como foram construídos conjuntos habitacionais populares, a baixa democratização do uso de espaços públicos e um distanciamento entre instituições responsáveis por preparar para o mercado de trabalho e para a cidadania e os jovens mais vulneráveis à violência. É preciso considerar também como se vinculam as localidades ao poder político dos representantes no Legislativo e, por meio deles ou diretamente, ao poder Executivo da cidade ou do Estado, pois tais vínculos, pelos intermediários ou pelas associações voluntárias e ONGs locais, são parte do quadro que se quer entender. São essas configurações do poder local que podem ou não favorecer, incentivar e bloquear a capacidade ou a disposição de vizinhos 266 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO em se organizar para resolver problemas comuns. A socialização dos jovens seria um deles, vinculados sempre, segundo dados etnográficos, à existência, na localidade, de escolas de ensino fundamental e médio, além de cursos de profissionalização. Em algumas delas, menos politizadas, a prática do clientelismo via cabos eleitorais, hoje feita principalmente em ONGs que constituem o neoclientelismo, intermedia a relação dos moradores com o Poder Público, dificultando a construção das redes de relações necessárias para participação dos vizinhos nas soluções que atendam o bem comum. Há notícias de que os policiais ligados às UPPs, em particular ao nível da chefia, têm sido muito procurados na condição de autoridade, tanto para resolver pequenos problemas cotidianos que fazem parte da atividade diária de qualquer instituição policial, porém não compõe o núcleo da função, quanto para funcionar como mediadores no acesso a outras instituições e serviços públicos. Mesmo em estágio inicial, é possível perceber que as UPPs começam a desempenhar o papel de mediador político-administrativo que, por longo período, foi desempenhado pelas associações de moradores. É cedo para afirmar se perderam força e legitimidade, tanto interna quanto externamente frente ao poder armado de traficantes e milicianos e se conseguem hoje negociar algum nível de autonomia frente ao novo poder do comandante da UPP. Eu acho que houve uma mudança muito boa, porque antes as crianças não podiam ficar de noite na rua; era muito bandido subindo e descendo de moto, não deixava as crianças brincarem. Nós tínhamos medo de deixar os nossos filhos andarem nas ruas, tínhamos medo de deixar os nossos filhos irem para escola, porque tinham que passar por onde eles estavam. Então hoje já não temos medo, temos uma sensação de segurança bem melhor. Hoje eu vejo como ajuda, pelo menos para mim, eu, morador, vejo isso como uma melhora que foi da água para o vinho. Os policias da UPP são bem presentes, não importa o dia nem a hora; seja de madrugada com sol ou com chuva nós estamos sempre vendo os policiais ao redor da nossa residência, onde nós moramos, na rua principal, e nunca mais eu ouvi um barulho de tiro, ninguém gritando, brigando; nada disso, porque tudo está sendo direcionado para a autoridade, e a autoridade real é o poder do Estado, é o Estado se fazendo presente com os seus policias na comunidade; para mim está sendo de grande valia, e eu espero que tenham vindo para a comunidade e que permaneçam; eu espero Alba Zaluar 267 que não saiam nunca mais, que realmente prossigam esse plano do governo do Estado, que eles continuem com isso por longa data. Nós já ficamos aqui na subida da comunidade sem poder ir para a casa, porque os bandidos não deixavam passar, e hoje não tem nada disso, você entra e sai. Antigamente o motorista de táxi não queria deixar a gente lá na porta da nossa casa. Porque antes o infrator fazia com que as pessoas imaginassem que o policial fosse o inimigo, então o Estado acabava sendo o inimigo. Toda vez que alguém era atropelado, fecha a via, coloca fogo nos carros e nos ônibus, está errado isso. Porque o Estado não tinha ação no lugar onde era para ser de domínio do Estado. Espero que venha a ter mais cursos, que tenha mais atividades, que possamos passar por um policial e dizer, como eu faço: bom dia, boa tarde, boa noite. Tem gente que ainda tem medo de falar, ainda estão oprimidos. Eu não, graças a Deus ele está ali representando o Estado, o Estado, é um dos nossos. Ao invés de ficar sendo reprimido por fulano, sicrano e beltrano você sabe que o Estado se faz presente. Então, bom dia, boa tarde e boa noite é obrigação de todo mundo. É obrigação mesmo passar e cumprimentar, até porque faz parte da educação. Mas eu espero que eles tenham mais atividades conosco, que eles se aproximem ainda mais da gente. Para não ter aquele clima de opressão, de você olhar para o policial e pensar. Meu Deus do céu, o que será que vai acontecer? É preciso, sim, respeitar a liberdade e a dignidade dos jovens, bem como dos que lidam, há muito tempo, com os jovens vulneráveis na vizinhança onde moram, tentando prepará-los para adquirir o “capital de personalidade”, assim como a rede de relações sociais que os tornarão capazes de vencer os desafios e obstáculos colocados na sua transformação em adultos responsáveis, civis e participantes na vida social local. E é de bom alvitre reconhecer que, como acontece em todo o Brasil, jovens oriundos das camadas menos favorecidas, ou populares, aumentaram sua escolaridade, conhecem as novas tecnologias de comunicação e estão prontos para participar da vida política no país. Vai depender de como os jovens serão recebidos, qual a escolha dos seus métodos de ação, se violentos e destrutivos, se apostando na política em que se gasta a saliva para mudar o que consideram errado. O aumento registrado, nos assaltos nas ruas da cidade, depois da instalação das UPPs também aponta claramente para outra grande deficiência da 268 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO política de segurança entendida como reunindo vários órgãos do governo em várias secretarias, não apenas a Polícia Militar. Faltou, como já sugerimos, investir mais na socialização para a convivência cidadã e pacífica dos jovens, instalando programas específicos de prevenção à violência e à criminalidade que acaba por matá-los tão cedo. Na escola, é preciso que se converse abertamente sobre o uso de drogas psicoativas e seus efeitos, convidando inclusive usuários para falar de suas experiências e do que teve de enfrentar quando se o uso se tornou abusivo. É preciso que se discuta e se exponha os problemas advindos da atração pelo dinheiro e pelo poder adquirido com a arma de fogo propiciados pela aproximação e convivência com os traficantes armados, chamando inclusive ex-traficantes para falar sobre o alto preço pago por quem embarcou no que muitos deles chamam “ilusão”. Como explicou-me um ex-traficante entrevistado por mim: Então aquela criança que está com oito, nove anos, saindo da escola todo dia, quando chega em casa, troca de roupa, vai pra rua brincar e está vendo aquilo tudo ali. Daqui a pouco já está com 12, 13 anos já começa a ter as necessidades, quer uma roupa, quer um tênis, e a mãe não tem condições de dar. Aí, já começa a falar “quando eu crescer vou ser igual fulano”. Daqui a pouco abandona a escola, se encosta lá, começa ficando na esquina de vigia, de fogueteiro, até chegar a portar uma arma. Então, se o Governo investisse, ia estudar, ia praticar esporte, ia se ocupar. Se tivesse pelo menos um salário de aprendiz de alguma coisa, ele não ia ter tempo pra estar ali o dia todo olhando para aquela bandidagem. Ia ter o dinheiro dele. Aí, mudaria, ia enfraquecer o tráfico. No decorrer dos anos seguintes, ia faltar soldado, porque soldado é igual ventania, mata um vem outro. Mas se travar aqueles que estão embaixo e não vão chegar lá, esses que já estão vão morrer ou vão pra cadeia e, no decorrer dos anos, vai faltar soldado pro tráfico. Aí, dariaresultado sim. Alba Zaluar 269 Referências CLIFFORD, J. The Predicament of Culture: twentieth-century ethnography, literature, and art. Cambridge; Londres: Harvard University Press, 1988. DAS, V. The signature of the state: The paradox of legibility. In: DAS, V.; POOLE, D. (Org.). Anthropology in the Margins of the State. Santa Fé, N. M.: School of American Research Press; Oxford: James Currey, UK, 2004. DAS, V.; POOLE, D. State and its Margins: Comparative ethnographies. In: DAS, V.; POOLE, D. (Org.). Anthropology in the Margins of the State Santa Fé, N. M.: School of American Research Press; Oxford: James Currey, UK, 2004. STEWART, C.; SHAW, R. Syncretism and Anti-Syncretism. Londres; Nova Iorque: Routledge, 1994. ZALUAR, A. Integração Perversa: pobreza e trafico de drogas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. ZALUAR, A. Democratização Inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados, São Paulo, v.21, n.61, 2007. 270 DILEMAS, DESAFIOS E PROBLEMAS DA UPP NO RIO DE JANEIRO Rodrigo Monteiro AS UPPS E O ESPAÇO URBANO conflitos, política pública e violência1 Introdução Desde a primeira favela no Rio de Janeiro, em 1897 até hoje, as relações entre a cidade formal e as áreas favelizadas foram marcadas por tensões e exibem a desigualdade social, uma das mais perversas marcas de nosso Estado-Nação. O Brasil, que construiu a universalidade da cidadania formal somente ao longo do século XX, tendo muitos de seus direitos universalizados na Constituição de 1988, não se torna exemplo do modelo evolutivo de direitos proposto por Marshall (1967). Para alguns autores, o Brasil construiu um modelo de cidadania que era regulada (SANTOS, 1979), ou seja, concedida pelo Estado a determinados grupos e segmentos sociais de acordo com alianças e estratégias políticas, especialmente nos anos 1930. Cumpre destacar que embora esses argumentos 1 Pesquisa realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). 271 tenham ampla aceitação nas ciências sociais, eles também são alvo de críticas, como a de Vale (2008) ao afirmar que “houve uma crescente inclusão e ampliação dos cidadãos concomitante aos avanços trabalhistas, permitindo-nos supor que, ao menos, os direitos sociais e políticos foram instituídos juntos”. Para José Murilo de Carvalho (2001), experimentamos aqui a estadania, que seria uma relação onde o Estado promovia a segmentos específicos, envolvimento nos órgãos estatais para que estes buscassem interesses privados. No Brasil, o combate à pobreza e à desigualdade entrou na agenda de governos nacionais desde os anos 1990, embora tal enfrentamento já tivesse sido consagrado na Constituição Federal de 1988. Na mesma Constituição, definiu-se o esporte como direito social e criou-se a imperiosa necessidade de associá-lo às políticas públicas (MONTEIRO, 2010) e atribuiu-se a ele papel de inclusão social, e ainda associado à política de saúde e de educação, muito embora não exista, de forma efetiva, uma política pública nacional de massificação do esporte em marcha no país, apesar de sediar os maiores eventos esportivos globais. Nesse período, a sociedade brasileira ganhou complexidade, tornou-se mais plural, sem deixar de expor suas práticas preconceituosas e de intolerância, sobretudo no campo religioso. Mas ao mesmo tempo, a sociedade brasileira se tornou menos desigual (sem deixar de ser desigual) e tratou alguns de seus problemas, como a universalização do acesso ao ensino fundamental, sem, no entanto, dar conta da melhoria da qualidade do ensino público fundamental. Desafios e muitos ainda a serem encarados e tratados. Uma desigualdade, dentre muitas, persistentes no Brasil, diz respeito ao acesso à justiça: a forma como ricos e pobres acessam o sistema judiciário não é igual, fato que ofende até mesmo noções de Direitos Humanos. (PINHEIRO, 2008) A sensação de injustiça e impunidade pode ter feito com que ao longo do século XX, as classes populares se identificassem sobremaneira com o futebol, pois esse apresentaria sensação de justiça não encontrada na justiça formal. (DAMATTA, 1985) Sensação de impunidade que talvez se aplique mais a uma classe social do que a outras, uma vez que temos, atualmente, a terceira maior população carcerária do planeta,2 composta em sua maioria 2 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/06/1465527-brasil-passa-a-russia-e-tem-aterceira-maior-populacao-carceraria-do-mundo.shtml>. Acesso em: 18 abr. 2015. 272 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO por pobres. Ainda assim, revela Misse (2011), no Rio de Janeiro, o índice de esclarecimento3de casos de homicídio pela polícia civil é de 15%, o que não quer dizer, necessariamente, a condenação judicial dos culpados. No entanto, as questões legais ligadas à segurança pública foram pouco elaboradas para acompanhar ou dar sentido a uma democratização na Constituição de 1988. Em linhas gerais, definiu-se segurança pública como um direito social, sem, no entanto, alterar significativamente as instituições responsáveis por sua execução. Os dramáticos contornos de questões ligadas à violência urbana, à segurança pública e à desigualdade social tomaram força no cotidiano de grandes cidades brasileiras a partir das últimas décadas do século XX. Tais questões, construídas em um longo processo socioeconômico, levaram as grandes cidades brasileiras a serem representativas de espaços claramente marcados por desigualdades. Também no Rio de Janeiro, uma entre muitas cidades partidas, esses contornos terminaram por criar áreas conhecidas por no go zone, ou seja, a imagem que se atribuiu às favelas cariocas de espaços proibidos de circulação aos não favelados, constituindo uma violência segregadora. As favelas se tornaram, na cidade do Rio de Janeiro, palco de violência a partir do final dos anos 1970 e suas causas já foram exaustivamente analisadas por cientistas sociais. Clientelismo, pobreza, patrimonialismo, crescimento desordenado, ausência de política e instituições democráticas de segurança pública, baixo engajamento cívico, políticas públicas descontinuadas, hipermasculinidade são palavras chaves facilmente encontradas em artigos, teses, dissertações dos que se dedicaram ao tema. Os anos 1980 e 1990 levaram a um poderoso incremento do poder de traficantes de drogas responsabilizado por desarticular associações populares (ADORNO, 2002; ZALUAR, 1985), como associações de moradores e até mesmo escolas de samba, pequenos clubes de futebol locais, entre outros. Por outro lado, como local de imagens ambíguas, as favelas (resultados não apenas da desigualdade e de crescimento desordenado das grandes cidades brasileiras, entre outros) não deixaram de produzir uma infinidade de imagens 3 Quando a polícia civil aponta os culpados e esclarece os motivos dos crimes. Rodrigo Monteiro 273 e discursos: local de trabalhadores ou vagabundos, local de gente ordeira ou desordeira, beleza ou horror, vida ou morte, saúde ou doença. Dentro desses dualismos, vale tentar não reproduzir no século XXI um aspecto da antropologia em suas mais remotas eras, exemplificado pelo debate em 1550 na Espanha entre Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda sobre a humanidade das populações indígenas das Américas: a do bom ou do mal “selvagem” e a do bom e do mal “civilizado”. Tal discurso que projeta a imagem dos moradores de favelas ou como extremamente inocentes ou como bárbaros confessos ajuda, ainda hoje, especialistas e estudiosos a cair em armadilhas capazes de cegá-los. Durante os anos 1990, a cidade do Rio de Janeiro registrou uma das suas mais altas taxas de homicídios4, explicada, entre outros, pela disputa dos pontos de vendas de drogas nas favelas. Em 1994, a taxa de homicídios alcança 73,2/100.000 habitantes, mas em ritmo de queda a partir de 2002: 46,6/100.000 habitantes, até chegar à marca de 22,4/100.000 em 2011, porém com tendência de crescimento. É nesse contexto de extrema desigualdade, ocupação da maioria de favelas por comandos armados de traficantes e milicianos, e com instituições de segurança pouco ou nada democratizadas, mas divididas em, ao menos, dois grupos (policiamento profissional e comunitário/proximidade), que a partir de 2008, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) tiveram início no Rio de Janeiro. Hoje presentes por 38 unidades que abrangem, ao todo, 264 favelas na cidade do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense, onde também está presente uma UPP. Nesse capítulo, tentarei discutir alguns dos aspectos inerentes às transformações, conflitos e disputas envolvidas nas dinâmicas das UPPs em dois territórios do Rio de Janeiro: Complexo do Alemão e Batan. Na primeira parte, apresento o contexto local e global que podem ter contribuído para a formação das UPPs, bem como argumento o que pode ter norteado seu desenvolvimento, na segunda parte, apresento um breve panorama das relações entre policiais e moradores, a partir de pesquisa de campo realizada 4 Fonte: CESeC, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. 274 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO entre 2012 e 2013, no Complexo do Alemão e, por fim, faço também uma breve contextualização da UPP no Batan. Como norte teórico, usarei aqui da sociologia figuracional de Norbert Elias e da sociologia formal de Simmel para entender conflitos, sociações e interações perceptíveis por uma microssociologia relacional. Entendo também que os dados apresentados fazem parte de processos sociais mais amplos, porém brevemente capturados aqui. O contexto local e global das UPPs Nos últimos 30 anos, a forma com que a política de segurança pública tentou tratar do problema da violência nas favelas cariocas era basicamente por intervenções pontuais por um ou dois dias quando havia confronto e depois deixavam a segurança das favelas à sua própria sorte, aos traficantes ou aos milicianos e aos que se associam a esses dentro das instituições de segurança. A influência do discurso a favor de um policiamento de tipo comunitário e de uma polícia orientada para os direitos humanos chegam, de forma mais evidente, à Polícia Militar do Rio de Janeiro pelo coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira (ALBERNAZ; CARUSO; PATRÍCIO, 2007) e são parte do cenário que comporá o Grupamento de Aplicação Prática Escolar (GAPE), realizado no Morro da Providência, experiência que ocorreu durante os anos 1990. Em 2000, o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) se torna uma experiência mais sólida, mas também descontinuada, inicialmente implantado nas favelas do Pavão-Pavãozinho-Cantagalo e depois replicado na cidade de Niterói. A esse tipo de policiamento, o comunitário, se contrapõe o “policiamento profissional” (RIBEIRO, 2014), de caráter ostensivo, centralizado, sem buscar consenso na comunidade e tomando suas decisões de forma independente do conjunto das populações de onde atua. Embora apresentado como policiamento comunitário, muito da lógica do policiamento profissional está presente na gestão e atuação das UPPs.A ideia de forças de segurança para a manutenção da ordem, controle social, em especial dos mais pobres, proteção dos mais “afortunados”, e defesa das elites e seus interesses está presente desde a origem das instituições de segurança do Rio de Janeiro. (HOLLOWAY, 1997) Rodrigo Monteiro 275 As UPPs representaram uma inédita política pública de policiamento no Rio de Janeiro, devido à sua amplitude, às articulações envolvendo os três níveis de governo (federal, estadual e municipal), à articulação com o setor privado, por promover uma ocupação permanente nas favelas com policiais que são, em sua maioria, recém-formados e pelo impacto que estas tiveram na vida da cidade. Implantadas na cidade do Rio de Janeiro desde 2008, inicialmente na favela Santa Marta, atualmente, as UPPs estão em 38 unidades,5 envolvendo mais de 9000 policiais, e atingem um total de 1,5 milhão de pessoas.6 O processo de implantação de uma UPP além de ser anunciado pelo governo estadual como tentativa de encerrar o domínio armado de traficantes ou milicianos, anuncia a entrada de diversos serviços oferecidos por órgãos públicos (serviços de saúde, coleta de lixo, iluminação pública, construção de creches, etc.) e outros serviços que podem ser oferecidos por órgãos públicos ou por parcerias com a iniciativa privada, como oferta de cursos profissionalizantes, projetos sócio-esportivos, entre outros. Em alguns casos, mais recorrentes em favelas da Zona Sul e algumas no Centro da Cidade do Rio, sob a alegação de obras estruturais ou por alegações de riscos de desabamento, argumenta-se a necessidade de remoções de moradias, levando grupos organizados, pesquisadores, partidos políticos e movimentos sociais a acusarem o governo estadual e municipal de promoverem a especulação imobiliária. É possível notar também uma valorização imobiliária de áreas agora pacificadas que prejudica alguns moradores e beneficia também aqueles que promovem especulação imobiliária dentro de suas próprias comunidades, além das próprias Associações de Moradores que, em geral, recebem um percentual ou uma taxa diante de cada negociação. Estabelecimentos comerciais novos e vindos de empreendedores de fora da favela também passam a compor esse cenário com a compra de imóveis e terrenos de antigos moradores das favelas. 5 Disponível em: <http://www.upprj.com/>. Acesso em: 16 abr. 2015. 6 Esse número corresponderia a quase 1/3 do total de moradores residentes em favelas na cidade do Rio de Janeiro, estimado pelo IBGE em 1,7 milhão de moradores de favelas para toda a região metropolitana do Rio de Janeiro, o que inclui, evidentemente, outras cidades. Disponível em: <http://www.vivafavela.com.br/ materias/censo-2010-rio-tem-17-milh%C3%A3o-de-moradores-de-favelas>. Acesso em: 276 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO Em particular, a questão de albergues e pequenos hotéis, sobretudo nas favelas “pacificadas” da Zona Sul remetem, também, a questões polêmicas como gentrificação (aburguesamento de determinados espaços da cidade) e remoção branca. Tais fatos são citados até mesmo pelo geógrafo David Harvey (2014), em seu livro Cidades rebeldes. Como causa e efeito desse processo. Observe-se o papel do mercado imobiliário na economia urbana de grandes cidades brasileiras como Rio de Janeiro e Salvador, onde Gledhill (2012) também sinaliza para a relação da especulação imobiliária com as “Bases de Segurança Comunitárias”, espécie de UPP soteropolitana. Observando o mapa das UPPs, nota-se que elas estão concentradas em quase todas as favelas do Centro da cidade e da Zona Sul, em parte de favelas da Zona Norte e em apenas duas favelas da Zona Oeste. Inicialmente restrita às favelas da Zona Sul, Centro e Tijuca, as UPPs foram se expandindo para além dessas regiões e isso não obedeceu apenas à lógica antes presente no discurso do senso comum de que as UPPs seriam restritas apenas à Zona Sul e áreas específicas, no entorno dos principais estádios e palcos, para o turismo ligado à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016, como o estádio do Maracanã, o Estádio Olímpico João Havelange, mais conhecido como Engenhão, e nos acessos ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Nos primeiros anos da UPP e ainda hoje, é comum encontrar no discurso dos moradores de favelas a ideia de que as UPPs só existiriam até os jogos olímpicos. A lógica de implantação de UPPs não atendeu a um único critério. Tal afirmação é evidenciada, por exemplo, quando demandas locais como o caso da UPP de Cidade de Deus, originada pela disposição e vontade da pessoa do comandante do batalhão local levam à instalação, e de eventos específicos, como o caso da UPP Batan (única anteriormente ocupada por milicianos) que resulta do sequestro de jornalistas de O Dia por milicianos locais, mas também por demandas políticas, como as que levaram à instalação de UPPs na Baixada Fluminense, como a de Duque de Caxias e as versões mais simples de UPPs, como as chamadas Companhias Destacadas, já presentes em São João de Meriti e Niterói. Tais fatos também demonstram a adesão de setores da própria polícia militar, bem como de segmentos da sociedade a esse projeto, muito embora, a definição e o conceito sobre o que é o projeto das UPPs acabe por variar entre esses agentes e grupos. Rodrigo Monteiro 277 As UPPs também surgem em um contexto em que a cidade do Rio busca retomar sua posição estratégica como cidade global, perdida nos anos 1980 para São Paulo. (SASSEN, 2000) A autora também sinaliza que a disputa entre cidades do mesmo país ocorre também entre Mumbai e Nova Déli, Sydney e Melbourne, Montreal e Toronto. Some-se ao processo de derrocada da cidade do Rio de Janeiro, o esvaziamento econômico provocado pela corrida de indústrias e sedes de setores de finanças e serviços para São Paulo, um processo também de desmetropolização, ocorrido no estado do Rio de Janeiro, com a ida de indústrias e serviços para cidades do interior do estado. Além de um processo de desindustrialização que transformou algumas fábricas em importantes shoppings centers.7 Na tentativa de recuperar o deslocamento dessa posição para a cidade de São Paulo, estariam a hospedagem de grandes eventos internacionais, como Jornada Mundial da Juventude, Jogos Olímpicos de 2016, Final da Copa de 2014. Nesse sentido, a cidade do Rio de Janeiro não estaria competindo com São Paulo diretamente, mas mostrandose complementar a ela em termos de diferentes funções na economia global e local. Para garantir a retomada e o reposicionamento da cidade do Rio de Janeiro, seria preciso também dar garantias de um efetivo combate à violência, com redução de índices de homicídio e criminalidade violenta. Nesse capítulo, tentamos exercer uma característica da antropologia desde suas primeiras horas: estudar de forma empírica as diferenças entre grupamentos humanos, aqui representados por duas comunidades pacificadas: Batan (40.000 habitantes) e Complexo do Alemão (60.000) habitantes. Autoridade, Exu e conflito: o Complexo Dominado por comandos de traficantes armados desde os anos 1980, o Complexo do Alemão foi ocupado por forças do Exército em novembro de 2010, após uma sequência de distúrbios (atribuídos a traficantes) causados na cidade do Rio de Janeiro. Entre esses incidentes, havia ataques a ônibus e 7 Casos do Shopping Nova América, onde antes se localizava uma fábrica de tecidos e do Shopping Bangu, onde também operava fábrica de tecidos. 278 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO veículos que eram incendiados. Em meados de 2012 as forças do Exército dão lugar às quatro8 UPPs, responsáveis por 14 favelas. A presença das UPPs no Complexo do Alemão contribuiu para a diminuição de taxas de homicídios e demais índices de criminalidade, como vemos a seguir. Publicados no portal Rio Como Vamos,9 dados do DATASUS revelam oscilação na taxa de homicídio total na Região Administrativa do Complexo do Alemão:10 Gráfico 1 – Homicídio população total no Complexo do Alemão por 100.000 habitantes, 2006 a 2013 Fonte: DATASUS/Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (Rio de Janeiro), disponíveis no portal “Rio Como Vamos”. Outros dados revelam oscilação nos números de mortes de jovens por intervenção legal, mas uma acentuada queda quando comparado com o período anterior às UPPs no Complexo do Alemão.11 8 Alemão, Nova Brasília, Fazendinha e Adeus/Baiana. 9 Outro dado para ilustrar a situação do Complexo do Alemão é o de analfabetismo, que na região é de 6,95%, enquanto o percentual de analfabetos para toda a cidade é de 2,9%, ambas menores que a média nacional que é de 9,6% (CENSO 2010). 10 Em 2013, a taxa de homicídios para toda a cidade do Rio de Janeiro foi de 23,5/100.000 habitantes. 11 Em 2013, a taxa de morte juvenil masculina por intervenção legal para toda a cidade do Rio de Janeiro foi de 3,03/100.000 habitantes. Rodrigo Monteiro 279 Gráfico 2 – Morte juvenil por intervenção legal no Completo do Alemão, por 100.000 habitantes de 2006 a 2013 Fonte: DATASUS/Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (Rio de Janeiro), disponíveis no portal “Rio Como Vamos”. Por fim, quando focamos exclusivamente nos homicídios juvenis apenas entre homens de 15 a 24 anos, notamos um elevado número, relativo exclusivamente a essa população do Complexo do Alemão. Para toda a cidade, a variação foi de 187,21/100.000 habitantes em 2006 para 38,17/100.000 em 2013: Gráfico 3 – Homicídio juvenil masculino no Complexo do Alemão, por 100.000 habitantes, de 2006 a 2013 Fonte: DATASUS/Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (Rio de Janeiro), disponíveis no portal “Rio Como Vamos”. Apesar dos dados apresentarem oscilação com tendência de redução das taxas de homicídios quando comparados com números da década passada, a expectativa de uma polícia pacificadora oriunda de uma maciça propaganda na grande mídia, do significativo apoio de muitos setores da sociedade civil 280 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO organizada e de todo o investimento feito na Polícia Militar, sobretudo com a contratação de novos 9.000 policiais em cinco anos, o que corresponde a quase 20% de aumento do efetivo, os resultados das UPPs são por demais questionáveis. Especialmente quando observamos uma taxa de homicídio juvenil masculino apenas 10 pontos inferior ao que era em 2006. No que pese a exitosa redução da taxa de homicídio para o conjunto da população e das mortes por intervenção legal, observa-se que homens jovens ainda são as maiores vítimas das políticas de segurança pública, mesmo com a redução significativa. Em toda a cidade, no entanto, os números apresentam quedas, mas quando focados no Complexo do Alemão e em sua juventude, esses dados deixam de ser animadores e mostram ainda a existência de uma lógica de enfrentamento violento, disputa e incapacidade das forças de segurança daquela localidade em obter aquiescência. A importância do trabalho de campo se dá para complementar informações estatísticas. Dessa forma, o trabalho de campo pôde mostrar a presença de policiais militares operando nas vielas, becos e ruas do Complexo do Alemão não identificados com a prática ideal de uma polícia de proximidade, mas orientados para o confronto. Dessa forma, por mais que os números revelem queda nos dados de violência, pode-se dizer que o que ocorre nas penumbras, vielas e becos das favelas pode não ser revelado pela frieza e distância de números. Sem negar a importância da redução de letalidade, não é possível assegurar ‘paz’ ou mesmo legitimidade para a ação policial com práticas de terror e de ameaça aos pobres. Um entre vários exemplos é o de um policial militar que circulou, segundo muitos moradores, durante alguns anos na comunidade afirmando que era uma entidade da religião afro-brasileira que o mandava matar. Ainda segundo moradores, tal policial resistiu a algumas trocas de comandos da UPP local e teria ameaçado e matado moradores. A presença por tanto tempo de um praça com tais posturas nos faz pensar por que ele perdurou tanto tempo sem qualquer remoção ou afastamento dos quadros da UPP. Durante os primeiros dois ou três anos da ocupação no Complexo do Alemão, o discurso de políticos, lideranças, moradores e gestores locais apontava para afirmação da recuperação do direito de ir e vir de moradores das comunidades. De fato, esse direito se estendeu a moradores de toda a Rodrigo Monteiro 281 cidade e também de turistas que visitavam o Complexo do Alemão tendo como porta de entrada o teleférico.12 Essa conjuntura abriu espaço para novas lideranças e reconfigurou as relações de poder nas comunidades, permitindo trocas culturais entre moradores e turistas oriundos do Brasil e do mundo. Esse período envolveu sentimentos variados, mas que oscilaram entre os moradores com um moderado otimismo e um pessimismo nem tão moderado. Alguns moradores afirmavam que o projeto das UPPs só existiria até os Jogos Olímpicos de 2014, outros tomaram iniciativas empreendedoras e abriram novos bares, albergues, pequenas barracas na última estação de teleférico, onde era possível fazer visita guiada pelas favelas num serviço explorado por um morador do Complexo do Alemão. A partir do segundo semestre de 2013, após sucessivos eventos desastrosos na atuação da segurança pública, tanto perante as manifestações de rua, quanto com o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza na Rocinha, e com a instalação de uma delegacia dentro do Complexo do Alemão, o cenário que até então apontava para novos rumos, passou a tomar, na visão dos próprios moradores, contornos de aumento da tensão com retorno dos constantes tiroteios. Essa nova fase, tem resultado na morte de moradores de diversas idades, vítimas de policiais ou de traficantes, na morte de jovens ligados ao tráfico de drogas e também na morte de policiais militares no interior das favelas do Complexo do Alemão.13Moradores entrevistados revelaram não haver mais aviso ou qualquer sinalização prévia que apontasse para a ocorrência de trocas de tiros. Segundo os moradores, os tiroteios poderiam ocorrer a qualquer hora do dia ou da noite, não havendo mais qualquer previsibilidade. Essa comparação se remete ao período anterior das UPPs quando a troca de tiros vinha antecedida de sinais da chegada da polícia que preparavam os moradores. 12 De acordo com o Jornal O Globo de 19 de maio de 2013, o teleférico do Alemão recebe 12.000 passageiros por dia, e aos fins de semana 60% desse público seria de não moradores, o que daria ao teleférico do Alemão um número maior de visitantes do que outros pontos turísticos tradicionais da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: <http://oglobo.globo.com/rio/teleferico-do-alemao-bate-icones-do-rio-em-numero-devisitantes-8433461>. Acesso em: 19 abr. 2013. 13 Apenas em uma semana de abril de 2015, três moradores foram mortos no Complexo do Alemão. A morte que causou mais indignação e revolta dos moradores das favelas do Complexo do Alemão e da sociedade em geral, foi a de um menino de 10 anos, e cujo principal suspeito é um policial militar. 282 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO Uma vez que a ocupação em 2010 deu fim, naqueles anos iniciais, ao domínio armado de traficantes no Complexo do Alemão, sem prender a maioria dos traficantes locais, apenas afastando aqueles mais conhecidos e que estavam fichados pela polícia para outras áreas da cidade, assim, traficantes menos conhecidos e com menos prestígio dentro da hierarquia do tráfico continuaram vivendo e atuando nas favelas do Complexo do Alemão de forma discreta, ainda que fossem relatados confrontos com policiais, ordens para fechamento de comércio, etc. Isto poderia, em linhas gerais, ser considerado o retorno ao modelo inicial de tráfico de drogas ilegais como era praticado na década de 1970. Traficantes ouvidos por essa pesquisa em 2012 e no primeiro semestre de 2013 reivindicavam “os becos” para que pudessem comercializar suas drogas e informavam também queda severa na venda de drogas, uma vez que apenas moradores estariam comprando drogas ilícitas. No entanto, com o processo de desgaste das UPPs, o território voltou a ser disputado por policiais e traficantes, e antes o que significava retomada do território, passou a ser conflito constante pelo mesmo. Durante o período em que a ocupação policial retomou grande parte do território, os grupos de traficantes que tinham como estilo de masculinidade, a exibição de armas, carros, joias e motos para todas as suas comunidades ‘dominadas’, práticas de consumo conspícuo entendidas como estilo de hipermasculinidade14 (ZALUAR, 2004), pois o domínio armado não se restringia apenas ao uso de armas, mas, como Zaluar ressalta em suas analises, à sua exibição, bem como na exibição de símbolos de consumo, como carros e joias e bens que serviam para ostentar e demonstrar quem eram os ‘donos’ poderosos, servindo para seduzir mulheres e atrair novos ‘soldados’, que se continuassem vivos e seguissem na estrutura, cresceriam na hierarquia (Zaluar, op. cit). A instalação das UPPs, em 2012, gerou um progressivo aumento na tensão entre policiais e traficantes. Esse aumento de tensão evoluiu a partir daí para o constante confronto armado entre policiais e traficantes, deixando moradores ‘não envolvidos com o crime’ reféns dentro de seu próprio local 14 Hipermasculinidade:a exacerbação de valores e práticas masculinas associadas ao poder e controle pelos “machos”. Rodrigo Monteiro 283 de moradia. Essa evolução da tensão fez aumentar a ‘invisibilidade’ de policiais, comparados por moradores a árvores, postes, ou seja, a objetos instalados na favela e com os quais a interação era vedada. Um dos focos dessa tensão é a relação entre os comandantes das UPPs e os mototaxistas, serviço utilizado por boa parte de moradores das favelas cariocas para a subida e descida de ladeiras, e não regulado por qualquer órgão oficial sendo um dos diversos serviços dentro da favela que lutam por legitimidade, embora façam parte de uma nova dinâmica do trabalho e sejam parte do processo da economia global que informaliza e precariza, como aponta Sassen (2010). No caso do Complexo do Alemão, a tentativa de alguns comandantes de UPPs em regular o serviço às suas maneiras contribuiu para a escalada da tensão, uma vez que essa regulação não foi exercida a partir do diálogo. Esse vazio de regulação não se dá apenas frente aos mototaxistas, mas tem a possibilidade de gerar novos e grandes poderes nas mãos de comandantes de UPPs que se sentem dispostos a exercer a regulação de atividades do dia a dia das favelas. Também à medida que políticas públicas prometidas não se fazem presentes nas favelas, os serviços não oferecidos, mas prometidos, podem passar a ser oferecidos por vontade do comandante da UPP local, se responsabilizando por projetos sócio-esportivos, reforço escolar e até mesmo alimentos aos moradores mais pobres, o que pode ser entendido como tentativa dessa parte da polícia querer controlar até mesmo as atividades lúdico-educativas, o que daria continuidade ao clientelismo, agora, no entanto, mediado diretamente por policiais militares. Por outro lado, é possível também afirmar que em muitas áreas, as favelas passaram a receber serviços e políticas públicas. A regularização de serviços públicos, como água e esgoto, energia, TV a cabo e telefonia, por exemplo, impacta diretamente no clientelismo local, uma vez que à medida que alguns serviços passam a ser oferecidos diretamente pelas concessionárias, os moradores se desvinculam dos intermediários locais que promovem as pontes entre as legalidades e as ilegalidades (pequenas ou grandes). Tais regularizações são chaves importantes para enfraquecer os vínculos que dão sentido à pessoa do político local e ao seu representante que se anuncia como direto intermediário entre o serviço universal e a sua oferta real, chamando para si, através 284 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO de associações e organizações comunitárias (DINIZ, 1982) a responsabilidade e o dever eleitoral da gratidão por serviços que são de direito universal. No entanto, à medida que o serviço deixa de ser oferecido por falhas das concessionárias ou pela retomada dos tiroteios que inviabilizam o acesso para a prestação dos serviços, nota-se que os moradores retornam a recorrer aos líderes locais ou mesmo aos policiais para que o serviço seja reparado. A interrupção desses serviços pelos tiroteios não prejudica apenas o fornecimento de eletricidade, telefonia, ou entregas de mercadorias, mas também o acesso de ambulâncias do SAMU para o socorro a moradores enfermos. É possível notar um enfraquecimento ou uma redefinição do poder de presidentes de associações com a chegada das UPPs. Isso porque quando há necessidade de solicitação de serviços públicos, como energia, telefonia ou outros, se esse não for feito diretamente com as empresas concessionárias, a figura do policial militar também poderá ser invocada para essa função. Outro dado de importante impacto no Complexo do Alemão foram as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujo maior símbolo é o teleférico. Mas, algumas práticas dos gestores durante o processo de obras do PAC contribuem para divisões sociais internas a essas comunidades, e entre as beneficiadas e as não beneficiadas. Ações desses agentes pareciam orientadas por uma lógica de subalternização ao não ouvir e dialogar com os moradores sobre quais as melhores formas de pensar nos espaços. Isso consistia, por exemplo, em construir apartamentos sem espaços adequados para instalação de aparelhos de ar-condicionado, ou ainda sobre a decisão dos usos de espaços coletivos, como quadras de esporte que permaneciam fechadas enquanto jovens ficavam sentados à frente dessas sem poder acessá-las e executar práticas de esporte e lazer. Batan: a paz pela ordem e religiosidade? Cidade de Deus e Batan são as duas únicas UPPs localizadas em áreas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Essa região da cidade também é a mais dividida entre milicianos e traficantes. A área da UPP do Batan corresponde a seis pequenas comunidades: Jardim Batan, Morrinho, Vila Jurema, Cristalina e, Rodrigo Monteiro 285 mais recentemente, o Fumacê. Por ser um micro bairro dentro de Realengo, os dados sobre homicídios no Batan não estão disponíveis, via DATASUS como no Complexo do Alemão, que é uma região administrativa exclusiva, mas são possíveis de serem recuperados pelo Instituto de Segurança Pública. Na UPP Batan foram registrados cinco homicídios dolosos em 2007, contra nenhum em 2014. Em 2007 foram registrados dois autos de resistência, contra nenhum em 2014. Pesquisa divulgada pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade e da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro(IETS/FIRJAN), em outubro de 2010, revelou que a população do Batan possuía a menor renda per capta de todas as UPPs, R$ 406,00, cerca de U$ 200 à época. O Batan também era a comunidade com o maior percentual de pobres (36,6%), e de indigentes (12,3%). Era a menor população em idade ativa (79,1%), dentre esses, a população com menor percentual de empregados (80,3%) e o maior de desocupados (19,7%). Paradoxalmente, o Batan era o terceiro maior percentual de moradores funcionários públicos e militares (2,2%) e o segundo maior percentual de pessoas empregadas, mas sem carteira assinada (22,4%). O Batan registrava ainda o mais baixo percentual de moradores com documentos de identidade (94,9%), carteira de trabalho (93%), CPF (91,8%) e título de eleitor (91,3%). A população do Batan tinha média de 6,5 anos de estudo. Estavam no Batan também os piores índices de utilização de espaços culturais. Ao mesmo tempo era a região com o maior interesse por áreas culturais. Apesar disso, logo após a instalação da UPP, o Batan também recebeu (como parte do programa das UPPs) uma unidade do Centro de Ensino Técnico Profissionalizante (CETEP), órgão da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia, que oferece cursos básicos de idiomas, camareiras, cabeleireiras e manicures e noções de informática. As transformações e ofertas de serviços públicos e privados no Batan ocorreram em um ritmo muito mais lento do que no Complexo do Alemão, embora, a política de pacificação desenvolvida no Batan também tenha resultado em transformações nas relações sociais, nas relações com o espaço público e nas práticas cotidianas de democracia e cidadania. Instalada desde fevereiro de 2009, ocupando o lugar de um Posto de Policiamento Comunitário, que 286 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO foi resultado da expulsão de uma milícia que ganhou fama por torturar jornalistas do jornal O Dia.15 É preciso reconhecer, entretanto, que parte do Batan não pode ser considerada um exemplo clássico de favela, ou seja, casas mal conservadas, com ligações clandestinas de energia, água e esgoto sanitário. Ao contrário, a parte central se parece mais com um bairro pobre de subúrbio do que com uma favela, ainda que não exista uma única agência bancária ou correspondente como uma simples casa lotérica. Moradores entrevistados relataram práticas muito violentas tanto por parte de traficantes quanto por parte de milicianos que controlaram a região antes da UPP. Não há consenso sobre qual domínio teria sido pior. Até mesmo práticas de trabalho escravo durante o período da milícia foram relatadas. Segundo entrevistas com moradores do Batan, um dos grandes dramas dessa região seria a questão fundiária. Até a instalação da UPP, a venda de terras ilegais seria feita pela Associação de Moradores, que cobrava não só pela venda da terra como exigia uma comissão no momento darevenda da propriedade. O título de posse dessas propriedades construídas em áreas ilegais era um documento da Associação. No entanto, há relatos de pessoas expulsas de algumas dessas casas pela Associação, pelos traficantes e pelos milicianos. A presença de Organizações Não Governamentais (ONGs), 16políticas públicas e novos empreendimentos da iniciativa privada no Batan podem ser considerados tímidos, se comparados aos do Complexo do Alemão, por exemplo. No bairro, não há equipamentos culturais, embora a Lona Cultural de Realengo seja próxima. Não há sala de cinema, biblioteca pública ou Praça do Conhecimento e, como já há uma UPP instalada, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) e o Serviço Social da Indústria (SESI) já oferecem cursos profissionalizantes (camareira, cabelereira, manicure, entre outros) de educação de jovens e adultos, de alfabetização, além de cursos esportivos. Entretanto, parece haver apenas duas ONGs na localidade. Uma delas é denominada de Centro Social e Cultural Tatiane Lima (CSCTL) e atua na comunidade desde 1998. A outra é ligada ao grupo chamado Rio de Retribuição 15 Importante jornal impresso da cidade do Rio de Janeiro. 16 Destaque-se a ausência de qualquer uma das grandes ONGs do Rio de Janeiro no Batan. Rodrigo Monteiro 287 e foi instalada após a implantação da UPP, por um oficial da polícia militar da UPP e pastor evangélico. Tal projeto parece ser apoiado pela UPP do Batan e pela FIRJAN/SESI, como visualizado em placas publicitárias colocadas á frente de suas sedes. Essa ONG também é acusada, por moradores, de receber a maior parte das verbas, deixando outras instituições à míngua. Chama a atenção o número elevado de igrejas neopentecostais no Batan, havendo inclusive um local no alto de um morro que serve como ponto de oração a céu aberto para pedir ou agradecer graças alcançadas. É aqui também intrigante a relação entre o discurso religioso e o discurso da ordem policial, uma vez que um dos comandantes da UPP era também pastor e diretor de ONG, como também relata Esperança (2012). Pude acompanhar a eleição para a presidência da associação de moradores, até então ocupada por um policial militar aposentado, já morador do bairro desde a ocupação de milicianos, mas que não estava concorrendo nesse pleito. Esse então presidente sofreu acusações de ter pertencido à milícia que ocupou a comunidade antes da pacificação. Ele também era acusado de vender remédios que eram distribuídos gratuitamente aos moradores, além de uma série de agressões realizadas por ele contra moradores. Outra frente em que os policiais se envolveram no Batan foi o da mediação de conflitos. Uma sala na sede da UPP, especialmente reservada para isso, celebraria tal fato. Entretanto, alguns policiais entrevistados informalmente para essa pesquisa reconheceram que tal projeto de mediação de conflitos no Batan não tem avançado conforme esperado. Tempos depois, na sede da Coordenação de Polícia Pacificadora, tive a informação de que a UPP do Batan possuía um dos melhores números de resolução de conflitos. Provavelmente, algo pode ter sido aperfeiçoado por lá. Durante o trabalho de campo também pude observar moradores levarem diversos tipos de demandas à policiais da UPP local. Desde relatos detalhados de comportamento de usuários de drogas no bairro até pedidos de intervenção junto a agentes de concessionárias de serviços públicos para que fizessem reparos na rede elétrica ou telefônica, assim como relatado no Complexo do Alemão. Se isso, por um lado, representa a retomada da confiança na Polícia Militar, também representa, prática e simbolicamente, a consolidação da Polícia 288 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO Militar com poderes além do que dela se deveria esperar: seja mediando conflitos, seja gerenciando projetos esportivos, seja ensinando esportes, seja solicitando reparos a funcionários de concessionárias de serviços públicos. Nenhum morador relatou ser vítima direta de abusos ou desvios de policiais militares. Entretanto, relatam haver ruídos e boatos de desvios de conduta quanto à pequena corrupção e supostas festas informais na sede da UPP. A tentativa de aproximação da Polícia Militar com a comunidade vai além. A realização de cafés comunitários, às últimas sextas-feiras do mês, com qualquer morador da comunidade, é um exemplo disso. Nesses cafés comunitários, moradores e comerciantes levam suas demandas e denúncias para os policiais e para os outros moradores e tentam solucionar esses problemas em conjunto, em uma prática que não é regra das UPPs. Um dos problemas levados pelos moradores e não resolvidos foi o do transporte público para ligar o Batan à área mais comercial de Realengo, onde estão supermercados, bancos, lojas e serviços. Como revela Patrício (2013), a dinâmica da reunião também pode demonstrar alianças e oposições ao observar a quem é dado a palavra, o tempo de uso e os temas levantados em cada reunião. Por conta de tais demandas oriundas dessas reuniões, o comandante da UPP teria solicitado a uma das empresas de ônibus que atendem à região que fizesse uma linha ligando o Batan ao centro comercial de Realengo. A linha funcionou por pouco tempo, tendo sido logo depois descontinuada. O transporte era feito basicamente por meio de vans e kombis que operam no chamado transporte alternativo. Um fato curioso que vem se sucedendo com a UPP do Batan e de outras favelas pacificadas diz respeito à imagem da policial feminina. Seja resultado da maior autonomia das mulheres, ou seja, resultado de uma estratégia de aproximação da PM com as favelas, têm sido observadas policiais militares mulheres mais feminizadas, com imagens menos masculinizadas, mais maquiadas, com cabelos tingidos, mostrando uma imagem até certo ponto fragilizada ou menos brutalizada de tais profissionais da segurança. Outro ponto abordado por moradores diz respeito ao consumo de drogas na localidade. Embora “pacificada”, e a grande maioria dos moradores e profissionais que trabalham em escolas ou projetos sociais ouvidos reconheça que a UPP gerou ganhos reais para a comunidade, muitos demonstravam Rodrigo Monteiro 289 desapontamentos pelo fato da favela situada do outro lado da Avenida Brasil, o Fumacê não ter sido pacificada (até a realização da pesquisa de campo) e ser motivo de constantes riscos por conta de trocas de tiros.17 Preconceitos e rivalidades estão presentes entre moradores do próprio Batan, que segundo o discurso dos moradores, é “divido” em três regiões: a parte central, com comércio mais forte e, provavelmente, de maior densidade; outra região, localizada atrás da atual sede da UPP, o chamado Morrinho, região de casas de pau a pique, e com a população local mais pobre; e, por fim, os Ipês, região de conjuntos residenciais recém construídos para receber moradores da Serrinha e do Morro do Urubu. Divisões que podem passar pelo tempo de moradia ou por outros critérios de identidade social, aceitação e recusa. Ou seja, embora a favela possa passar a imagem de algo homogêneo, como uma comunidade, ela possui suas divisões internas, com uma elite e classes mais baixas. As políticas públicas (sociais) também parecem pouco integradas de forma intersetorial. Embora o bairro já conte com Clínica da Família, que funciona no Fumacê, Projetos SocioEsportivos, Escolas Públicas e Centros Profissionalizantes, ao exemplo do Complexo do Alemão não há integração e diálogo entre os diferentes setores das políticas públicas. Conclusão As UPPs não podem ser entendidas como um simples fenômeno. Mas a partir de complexos e múltiplos processos ocorrem a partir do seu desenrolar e a partir do que podem desencadear. Elas envolvem diversos atores, interações e trocas, além das disputas e alianças entre atores envolvidos em suas demandas por legitimidade. Entre os vários aspectos positivos ressaltados pelo discurso oficial da Secretaria de Segurança e do Governo Estadual estava o acesso a instituições 17 No segundo semestre de 2012, porém, o Fumacê foi incluído na UPP Batan. 290 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO policiais para registros de ocorrências em áreas com UPPs.18 Se observarmos os índices dos últimos anos relativos às quatro UPPs do Alemão e ao Batan, observaremos uma oscilação com tendência de retorno a padrões anteriores às UPPs. Pesquisas de vitimização poderão apresentar um quadro mais exato do que está em andamento nessas localidades, mas é preciso investigar mais a fundo o que pode vir a revelar os dados apresentados nesse gráfico: Gráfico 4 – Registros de ocorrências nas UPPs Fonte: Instituto de Segurança Pública (Rio de Janeiro). Em geral, quedas nos registros de ocorrências podem estar relacionados a quedas nas ocorrências de fato, mas também ao declínio da confiança na atividade policial. Podem sinalizar ainda para a percepção da presença policial como parte da rotina, não sendo mais uma “novidade” para os moradores dessas localidades. Apesar do programa das UPPs ter ocupado 38 favelas da cidade do Rio de Janeiro e Região Metropolitana e de ter sido sinalizado por diversos atores do governo estadual que essa “retomada” levaria à consolidação da cidadania, como que uma dádiva do Estado, observa-se que em muitas favelas “pacificadas” segue em curso um processo de concentração de poderes 18 Os registros de ocorrências são responsáveis por formar um corpo de estatísticas capazes de dar subsídios para pesquisas acadêmicas e para o planejamento das ações policiais e de outras políticas públicas. Os registros de ocorrência, não reproduzem, no entanto, todo o conjunto de crimes e delitos ocorridos, uma vez que por diversas razões, as vítimas podem optar por não declarar à polícia que foram vitimadas. Rodrigo Monteiro 291 de intermediação nos oficiais das UPPs, que passam a se ocupar não só do policiamento, mas também de papéis como a gestão de ONGs, a mediação de conflitos, a oferta de projetos socioesportivos, a intermediação com concessionárias de serviços públicos, a regulação de atividades econômicas das favelas, bem como das atividades lúdicas, que deveriam ser deixados a cargo de moradores locais, ou então, que esses fossem estimulados e encorajados a assumir diversas funções nesse cenário, fato que acaba por não favorecer o fortalecimento das próprias comunidades e podem torná-las reféns de novos autoritarismos. Às novas e velhas lideranças oriundas das próprias favelas, ativistas, movimentos sociais e formuladores de políticas públicas, cabe criar pontes e novas alianças que vislumbrem possibilidades de transformar a ocupação policial de forma sustentável a fim de garantir que ela possa deixar as favelas um dia sem que elas sejam novamente ocupadas por comandos de traficantes ou milicianos. Em ambos os casos apresentados, as tensões ainda existentes entre “novos”’ e “velhos” donos dos morros e que dizem respeito ao controle de atividades chaves dentro das favelas representam não só a conquista de poder econômico, mas também de imenso poder simbólico. A inexistência de um protocolo ou doutrina que dê uniformidade aos procedimentos de oficiais e praças das UPPs acaba por permitir que cada comandante tente exercer seus “pequenos poderes” nas favelas que “pacificam”. Cada comandante encontrará adesão ou resistência em Associações de Moradores, Movimentos Sociais, ONGs, gestores de políticas públicas e demais protagonistas das favelas, bem como dos traficantes que permanecem. A ausência desses protocolos também serve aos interesses dos que buscam saídas não convencionais, fortalecendo poderes políticos, econômicos e simbólicos. A história de cada comunidade e o estilo de gestão das UPPs locais são as chaves para compreender os conflitos e as trocas entre moradores e policiais. Uma vez que assim como as comunidades não têm as mesmas histórias e formações, o estilo praticado por cada comandante de UPP é muito importante para entender como será a relação entre policiais e moradores. Associações e alianças, oposições e disputas são também meios importantes para a compreensão da complexa e ampla realidade que orienta a vida social nas favelas atingidas por UPPs. Conflitos que produzem laços sociais, ou, 292 AS UPPS E O ESPAÇO URBANO como diria Simmel (1983), são também formas de sociação, sendo oriundos de elementos dissociativos da vida social. A sociologia figuracional de Nobert Elias pode nos dar pistas para pensar as UPPs e, por meio delas, a relação entre Estado e Sociedade. Nessa sociologia, não se ignora a estrutura social, mas se entende que as mudanças que nela ocorrem não se dão senão como resultado de processos, definidos pelo autor como sociogenese e psicogênese. No primeiro, são as mudanças na estrutura da sociedade que levam a mudanças no comportamento dos indivíduos; no segundo processo, são as mudanças nas estruturas de comportamento que levam às mudanças na estrutura e nas relações sociais. Mais: na sociologia figuracional, não cabe pensar no Estado, na família, na escola, como instituições separadas, distantes, alheias aos indivíduos, numa estrutura de sociedade pensada no senso comum e em parte da sociologia, como egocêntrica. Aqui as “forças sociais são forças exercidas por pessoas, sobre outras pessoas e sobre elas próprias” (ELIAS, 2008) e são elas que perfazem o entendimento das tensões e associações entre moradores de favelas, policiais e lideranças locais. Apesar de tratar do processo civilizatório na Europa e de toda a particularidade desse processo, Norbert Elias (2001, p. 57) sinaliza que: ... é, portanto, necessário dizer que o grau relativamente alto de proteção contra a violência causada por terceiros, de que gozam os membros das sociedades mais desenvolvidas, e o tratamento da morte violenta como algo excepcional e criminoso não surgem da visão pessoal das pessoas envolvidas, mas de uma organização muito específica da sociedade – um monopólio relativamente eficaz da violência física. Tal monopólio não pode ser alcançado de um dia para outro; resulta de um longo e, em larga medida, não planejado desenvolvimento. As UPPs mostram, entre outras questões, a necessidade de repensar a construção da legitimidade e da aquiescência às instituições da ordem pública, bem como a qualquer outro tipo de autoridade em sociedades globalizadas, diversas e atingidas por fortes processos de informalização (WOUTERS, 2012) em que antigas instituições não-reformadas ou revisitadas se tornam instituições casca. (BECK; GIDDENS; LASH, 1995) Rodrigo Monteiro 293 Referências ADORNO, S. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias, Porto Alegre, n. 8, p. 84-135, jul./dez. 2002. ALBERNAZ, E. R.; CARUSO, H.; PATRICIO, L.Tensões e desafios de um policiamento comunitário em favelas do Rio de Janeiro: o caso do grupamento de policiamento em areasespeciais. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2007. BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1995. CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 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Rodrigo Monteiro 295 John Gledhill PROBLEMAS DA POLÍCIA um olhar de dentro da corporação1 Parece que o desafortunado Washington Luiz, ex-Secretário Estadual de Justiça e Segurança Pública de São Paulo e último presidente da República Velha, nunca pronunciou a notória frase que lhe foi atribuída: “questão social é questão de polícia”. Contudo, mais de 80 anos depois deste ponto de origem mítico do conceito parece que muitos políticos brasileiros continuam pensando assim, e não só políticos de direita mas também alguns que supostamente veem as reivindicações da classe operária mais favoravelmente que a oligarquia paulista da República Velha. A atual estrutura das corporações policiais brasileiras é um legado da ditadura militar. Os reformadores que veem este legado como nefasto propõem a desmilitarização, junto com a proposta de substituir a divisão atual do trabalho entre a polícia militar e 1 Agradecimentos - A pesquisa na qual este trabalho se baseia faz parte de um projeto maior sobre Brasil e México, realizado com a ajuda de um Major Research Fellowship da Fundação Leverhulme Trust e intitulado Segurança para todos na época da securitização? Meus melhores agradecimentos ao apoio generoso da Leverhulme, enquanto enfatizo que apenas eu sou responsável pelos argumentos do trabalho. Agradeço também a Daniela Miranda por sua valiosa assistência com as entrevistas, realizadas em 2012 dentro das instalações das Bases Comunitárias de Segurança de Calabar e Fazenda Coutos, em Salvador, Bahia. 297 civil pelo ciclo completo: trabalho preventivo, ostensivo, investigativo. Além destas reformas, os autores da Proposta de Emenda à Constituição (PEC51), que incluem o antropólogo Luiz Eduardo Soares,2 por um breve período Secretário de Segurança Pública de Rio de Janeiro, também advogam pela carreira única, em lugar do sistema que dificulta a promoção de soldados e recruta oficiais sem experiência para policiamento das ruas. Pela via da desmilitarização, o PEC-51 pretende “modernizar” o sistema de segurança pública brasileiro para produzir uma polícia “de primeiro mundo”. Ironicamente, pelo menos no caso dos Estados Unidos, parece que “o primeiro mundo” vem optando por uma trajetória oposta, a da maior militarização de suas próprias corporações policiais. As consequências negativas da militarização da polícia estadunidense foram cada vez mais patentes no contexto dos protestos que resultaram das mortes de cidadãos negros em mãos da polícia durante 2014 e 2015. Os distúrbios urbanos começaram a replicar os níveis de violência dos anos sessenta do século XX e voltaram a comover a vida social de cidades metropolitanas. No caso de Baltimore a violência da polícia é produto da necessidade de manter um certo nível de “ordem” aceitável para os cidadãos mais privilegiados, em sua maioria brancos, dentro de uma cidade pós-industrial onde a reestruturação urbana e gentrificação em combinação com um alto nível de desemprego, agravada pela política estadunidense de encarcerar em massa, deixou a população negra em uma situação de exclusão social extrema. Tanto na França, onde o alvo principal da repressão policial é a população de imigrantes africanos, como nos Estados Unidos, se pode dizer que a função da polícia na periferia urbana não é a de sustentar um estado de direito, mas a de sustentar uma ordem social caracterizada por um alto grau de desigualdade social e de manter cada quem em “seu devido lugar”. (FASSIN, 2013) A mesma lógica predomina no Brasil. Levando em conta os preconceitos coloniais que ainda se manifestam no tratamento brutal das populações civis dos países do Sul global recentemente invadidos pelas grandes potencias do Norte global, e a conversão tanto dos imigrantes quanto dos pobres “nativos” 2 Luiz Eduardo Soares. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública. Disponível em: <http://www.luizeduardosoares.com/?cat=8>. Acesso em: 14 mar. 2015. 298 PROBLEMAS DA POLÍCIA em problemas de segurança pública nos países do Norte, o geografo Stephen Graham propõe que o “urbanismo militar” deve ser analisado como um fenômeno global e integrado na época atual. (GRAHAM, 2010) Até certo ponto, podemos entender a lógica do policiamento militarizado no Brasil em térmos macroestruturais ligados à forma atual de desenvolvimento urbano. Convém que um corpo policial cuja função principal é a de defender os direitos de patrimônio seja uma polícia que “baixe o pau” nas cabeças das pessoas que pretendem apropriar-se da propriedade de seus donos, mesmo que os donos sejam especuladores financeiros, ou trate-se de uma fábrica abandonada onde invasores, expulsados de seus lares originais pelos processos de requalificação urbana, pretendem encontrar um lugar para abrigar-se, como aconteceu no caso da reintegração de posse conseguida pela empresa telefônica Oi, no Rio de Janeiro. Tal modelo de policiamento é ainda mais conveniente para defender um processo geral de requalificação urbana que implica o despejo de famílias pobres das periferias que o capital pretende valorizar mediante uma “pacificação” que não só aumenta o valor do solo, dos prédios, e o custo dos alugueis, mas também, mediante a regularização do consumo da luz e outros serviços, converte a segurança pública em grande negocio para todos, com exceção dos pobres e outros moradores obrigados a sacrificar suas casas para a construção de obras, inclusive obras que beneficiam outras classes sociais e estrangeiros. (FLEURY, 2012; FREEMAN, 2012) Além disso, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos e Europa, a segurança mesma, tanto pública quanto privada, é um grande negócio, não só pela venda de armas, mas também pela venda de tecnologias de vigilância electrónica cada vez mais sofisticadas para serem usadas nas cidades e nas fronteiras internacionais. (ANDERSSON, 2014; LOW, 2017) Em outras palavras, “a sociedade de controle” militarizada é bom negócio, e também “o estado penal” cujas prisões são cada vez mais administradas pelas corporações capitalistas transnacionais especializadas neste setor. (WACQUANT, 2009) Juntando ao cenário, os conflitos sociais ligados aos projetos neo extrativistas na América Latina, e as tensões com tons raciais associadas com a reestruturação econômica, austeridade fiscal, e aumento da desigualdade social na maioria dos países do mundo do capitalismo “avançado”, um ambiente de acumulação por espoliação (HARVEY, 2007) milita em contra da reforma policial. John Gledhill 299 O problema visto desde abaixo No entanto, o problema da polícia visto desde abaixo tem outras dimensões, na forma, por exemplo, da agressividade cotidiana das abordagens nas ruas, uma agressividade que pode ter tons raciais mesmo que seja no contexto de jovens negros defrontando-se com agentes que também são pessoas de cor e moradores da periferia. Teoricamente, os atuais programas de formação profissional dos agentes lotados nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro, um sistema analisado neste livro com mais profundidade e devida atenção às distintas experiências de diferentes favelas cariocas nos capítulos de Rodrigo Monteiro e Alba Zaluar, devem eliminar este tipo de problemas e produzir um estilo de policiamento mais “próximo”, comunitário.3 Contudo, parece que tanto as lógicas das relações sociais e subjetividades individuais configuradas pelas relações de poder existentes quanto a cultura da corporação militar e a lógica da securitização com frequência continuam impedindo a realização do sonho de convivência polícia-moradores, sem falar da eliminação das “ligações perigosas” (MISSE, 1997) que reproduzem a corrupção policial e as operações clandestinas de extermínio e “limpeza social”. As mortes de moradores da periferia urbana em mãos da polícia têm uma diversidade de causas: as vezes são simples “erros” e consequências de falhas de treinamento e da ansiedade provocada pela necessidade de confrontar adversários bem armados nos becos de comunidades carentes, mas outras vezes, sem dúvida, resultam de problemas sistêmicos. Muitas mortes ocorrem como “danos colaterais” durante trocas de tiros entre policiais e traficantes, nos quais as mortes dos traficantes são justificadas pelos policiais por outro legado da ditadura, o “auto de resistência”. Embora estejam menos dispostos a culpar os “bandidos” pelas mortes provocadas por “balas perdidas” nestes confrontos (PENGLASE, 2011), e não deve ser subestimada a importância da violência e ameaças da violência no exercício quotidiano do poder por 3 Existe um modelo de “policiamento comunitário” distinto ao modelo brasileiro atual que se fundamenta no controle democrático do trabalho de aqueles policiais que atendem a comunidade pela comunidade mesma. Embora um modelo deste tipo pode ser considerado algo utópico no caso brasileiro, existem quadros institucionais para conseguir um maior controle local e democrático sobre a segurança pública que poderiam ser desenvolvidos e aperfeiçoados. (GLEDHILL, 2015) 300 PROBLEMAS DA POLÍCIA parte dos traficantes (ZALUAR, 2014), os moradores de bairros pobres com frequência têm razão em acusar a polícia de “chegar atirando” num lugar sem preocupar-se pelas consequências. Elas defendem a inocência das pessoas mortas, e veem os “autos de resistência” como uma licença para matar, sobretudo uma licença para matar jovens negros. Lamentavelmente, houve um caso em Salvador, Bahia, o que, ao parecer, se encaixou neste padrão em fevereiro de 2015: tratou-se da morte de 12 pessoas jovens no bairro do Cabula durante uma operação de policiais das Rondas Especiais (Rondesp), que foram denunciadas como extermínio não só por vizinhos do bairro, mas também pela Amnistia Internacional. O Ministério Público chegou à mesma conclusão, embora a polícia continuava afirmando que as mortes resultaram de “legítima defesa” e de conseguirem um parecer favorável à sua postura por parte de uma juíza. No contexto do Rio de Janeiro, o assassinato do pedreiro Amarildo de Souza por policiais lotados na Unidade de Polícia Pacificadora da favela da Rocinha foi um acontecimento que seriamente ofuscou o brilho do programa de “pacificação”, lançando dúvidas sobre a possibilidade de conseguirem uma mudança profunda nas práticas do policiamento das comunidades carentes cariocas. O caso Amarildo está longe de ser único. Contudo, a diferença é que casos como esses não costumam ser esclarecidos em Salvador, e tampouco no Rio de Janeiro. Em agosto de 2014, Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos de idade, foi abordado no bairro soteropolitano do Lobato, e colocado no porta-malas de uma viatura da Rondesp. Este caso foi esclarecido devido aos esforços resolutos do pai do jovem, um comerciante, que denunciou o sumiço e, descontente com a resposta oficial, buscou seu filho por conta própria, encontrando imagens da abordagem registradas numa câmera de segurança privada. A cabeça e mãos e o resto do corpo do jovem foram encontrados dias depois, em lugares diferentes. Segundo o laudo, Geovane foi “vítima de decapitação seguida de carbonização, ações de extrema violência, associadas a requisitos de característica dantesca com a mutilação e retirada das mãos, dos testículos e do pênis e das tatuagens”. (WENDEL, 2014, p. 1) Dois dos soldados envolvidos na abordagem de Geovane Mascarenhas já tinham respondido a processos judiciais por “auto de resistência” em outras ocasiões. A promotora do Ministério Público denunciou 11 policiais da Rondesp como John Gledhill 301 responsáveis pelo sequestro e assassinato do jovem e pelos intentos de encobrir o crime. Geovane foi executado dentro de uma sede da Rondesp e sua motocicleta e celular foram roubados pelos agressores. (WENDEL, 2015) O inquérito do Ministério Público mostrou que os policiais desligaram o GPS da sua viatura e cortaram a fiação da câmera instalada no carro da guarnição, num eco sinistro não só do sequestro de Amarildo de Souza, mas também de outros casos semelhantes em todo o Brasil. A morte de Geovane é só a ponta do iceberg de uma história de violência policial na capital baiana, na qual o extermínio de “marginais” tem sido e continua sendo um elemento importante. (NUNES; PAIM, 2005; GLEDHILL, 2015) Portanto, não faltam problemas e queixas contra o modo de atuar da polícia brasileira nem, tampouco, com a ideia de que uma presença permanente de agentes policiais em comunidades carentes sempre seria bem vinda aos moradores e fortaleceria o seu desenvolvimento social. Contudo, para avaliar a situação atual, reconhecer seus aspectos mais positivos, alcançar uma perspectiva mais completa sobre as raízes dos problemas sistêmicos, e pensar nas possibilidades de reforma policial, precisamos escutar as vozes não só dos moradores da periferia, mas também de membros da corporação da polícia mesma. Os sujeitos deste estudo Neste trabalho, apresento as vozes de soldados da Polícia Militar (PM), lotados em duas unidades designadas para levar a cabo a “pacificação” de comunidades carentes soteropolitanas, dentro do programa de instalação de Bases Comunitárias de Segurança (BCS), o equivalente baiano da UPP carioca. O primeiro grupo de policiais foi o de mulheres, trabalhando na primeira base instalada, numa comunidade relativamente pequena, e, portanto, destinada a servir como “modelo” para o projeto mais amplo (dotada de ótimos recursos econômicos e humanos). As mulheres foram todas voluntarias, pessoas que apostaram no projeto por ter um compromisso social com ele, embora também tinham suas próprias aspirações de ascensão social e suas queixas sobre questões de salário e carreira. Portanto, a seleção destas sujeitas foi um intento de estudar um caso que poderia mostrar a cara mais 302 PROBLEMAS DA POLÍCIA favorável da PM da Bahia, e a sua capacidade de mudar suas práticas e ideias. Ao mesmo tempo o compromisso com seu trabalho que caracterizava estas mulheres, aumenta o peso dos aspectos críticos de seu discurso, sobre a corporação, as políticas de segurança pública, e, por outro lado, como policiais orgulhosas de seu desempeno profissional, sobre os políticos, a mídia e o público. O segundo grupo de entrevistados, todos homens, foi lotado em outra região da periferia urbana (na maioria dos casos obrigados a servir nestas Bases, e não de modo voluntário). Aqui apresento dados sobre três policiais, de gerações diferentes, para mostrar diferentes perspectivas relacionadas tanto com a idade dos servidores públicos quanto com os de um contexto diferente em termos do desenvolvimento do projeto das BCS. Outro contexto das entrevistas foram as disputas entre o governo do estado petista, comandado pelo ex-sindicalista Jaques Wagner, e um sindicato de membros da PM, a Associação dos Policiais, Bombeiros e dos seus Familiares do Estado da Bahia (ASPRA). A ASPRA fez duas greves, em fevereiro de 2012 e outra em abril de 2014. As greves da PM foram momentos de crise que revelaram bastantes coisas, ao mesmo tempo que tanto a reação do público quanto a justiça de suas reivindicações, na primeira greve, foram pontos de referência importantes para as pessoas entrevistadas. Por ter uma perspectiva feminina, os comentários que apresento também se dirigem a questões de gênero, tanto com respeito à posição da mulher dentro da corporação, quanto com respeito aos modelos da segurança pública que veem o papel da policial mulher como central numa mudança que aposta na possibilidade de oferecer à população carente uma polícia de proximidade. Primeiramente, veremos como as pessoas entrevistadas falam da imagem pública da polícia na atualidade, com referências ao papel da mídia e às reações do público durante a primeira greve. Elas queixaram-se também de seus salários e a progressão funcional nas suas carreiras, mas insistiram que tanto o público quanto os políticos não reconhecem sua ética de serviço público, sem falar dos riscos da sua vocação. John Gledhill 303 O que é ser policial O mais velho dos entrevistados, o cabo Carlos, com seus 24 anos de serviço, disse o seguinte: Há 20 anos, o serviço de policial não era o que acontece hoje, nós tínhamos orgulho de mostrar a farda e não medo. Hoje nada é valorizado. Era prestigioso ser policial, pedreiro, mecânico, ter uma profissão. Hoje o que dá prestígio é ser bandido, jogador de futebol, a vida fácil. Eu entrei, porque eu achava o máximo ver um policial fardado e a consideração que ele tinha no bairro. A policial feminina mais experimentada, Jussara, de 35 anos, expressou sua decepção com a carreira da seguinte forma: Ser policial é difícil. Você anda no fio da navalha. E chega certo momento em que você cansa. A realidade de um policial, não é o que passa nas novelas. Um policial é como qualquer outro ser humano, e, que como todo ser humano tem as mesmas necessidades, desejos, qualidades e, sobretudo defeitos, que nem sempre são entendidos pela sociedade. A cobrança em torno da nossa profissão é extrema, eu me lembro que quando estávamos em greve, eu ficava triste em ouvir as pessoas nos chamando de vagabundo, que se nesse Estado o governador fosse homem, sentava a porrada em todo mundo e obrigava a trabalhar, do contrário demitia. Só que as pessoas não entendem que temos necessidades como elas, e por sermos funcionários públicos não ganhamos milhões. Somos a cauda do funcionalismo público. Sua companheira mais jovem Eliene se queixou tanto da falta de reconhecimento dentro da corporação quanto da postura da mídia: Eu acho que a instituição não aproveita as qualidades de nossos profissionais, e o público toma a imagem que a televisão passa, infelizmente. Ainda vivemos num país que o melhor jornal, é o Jornal Nacional, que é simplesmente a leitura de um pedaço de papel e que a referência de tudo é o Rio de Janeiro e os policiais corruptos deles. Isso, logicamente, reflete na população e no julgamento ruim que eles fazem a nosso respeito. 304 PROBLEMAS DA POLÍCIA Eu digo que servir ao próximo é o melhor em ser policial. Só que existe o outro lado da moeda, nós não somos super-homens, nem super-mulheres, no entanto somos responsabilizados por todos os problemas de insegurança pública, sendo que as pessoas esquecem que existem outros agentes, a sociedade acha que todos nós somos corruptos. Eu não nego que existem desvios de conduta dentro da corporação, mas as instituições policiais são compostas em sua maioria, por pessoas que sabem que sua obrigação é servir ao próximo, mesmo que isso signifique sua vida. Kátia se estendeu sobre o mesmo tema, ligando o papel dos políticos ao papel da mídia: A sociedade brasileira é muito preconceituosa, ignorante mesmo, no sentido da palavra pega o bonde passando e colhe. Fica assistindo essas porcarias aí que passam na TV, que desmoralizam a polícia e diminuem nós guerreiros e guerreiras da corporação. Daí o público acha que todo PM é ladrão, é corrupto, mas isso é consequência da falta de dignidade que o governo transmite aos seus policiais, com salários miseráveis. Só que o público em geral e o governo esquecem algo importante. Não somos acadêmicos, não vivemos agarrados aos livros, mas conhecemos a realidade das ruas, o que nenhum curso superior pode fabricar. No dia que essa classe se organizar e parar, acabou-se Bahia, Brasil. As experiências de Bases Comunitárias de Segurança Contudo, todas as mulheres entrevistadas mostravam estar orgulhosas de ser voluntárias participando em um novo projeto de segurança pública que poderia melhorar a imagem pública da polícia. Kátia, por exemplo, comentou que: As bases comunitárias são uma alternativa interessante para a crise de credibilidade que nós policiais vivemos. A aproximação da organização com a população para manter a ordem pública, permitirá à sociedade ter outra visão sobre a polícia. John Gledhill 305 Entretanto, também é muito importante ressaltar que a postura das policiais mulheres não deixou de ser crítica e realista sobre o Programa como um todo, ao mesmo tempo em que se mostraram orgulhosas de sua própria prática como sendo a de um verdadeiro policiamento de proximidade. Clara disse o seguinte a este respeito: Eu posso dizer que a experiência do Calabar é super exitosa, não precisa nem eu falar, a mídia mesma se encarrega disso. Em outras comunidades onde bases foram instaladas, as experiências não têm sido muito boas. Aí a gente pode citar vários fatores. O Calabar é pequeno? É. Foi mais fácil? Não, pois fomos os primeiros, então se aqui dêsse errado iria ser muito ruim para as próximas experiências, posso dizer uma calamidade no Projeto da Secretaria de Segurança Pública. Como eu falei, é exitosa, mas se restringe ao Calabar, em volta temos outras comunidades, como Roça da Sabina e Alto das Pombas, reféns do tráfico e que serviram como rota de deslocamento de traficantes que atuaram no Calabar. A polícia sabe disso? Sabe, mas não tem pessoal suficiente para controlar isso. Aí, nós temos um problema, se não atua ao redor, o que acontece? O tráfico se fortalece na redondeza, o que se não for tratado a tempo, pode se tornar um problema para a própria base do Calabar. Eu acho que o maior problema de não reduzir [com] o tráfico, ou ainda as reclamações de que o tráfico permanece em lugares onde a base comunitária já foi instalada, se deve ao simples fato de não estudarmos, não sabermos o mínimo sobre o tipo de pessoas com a qual irei lidar. Eu posso chamar de Operação Suicida o que acontece no Nordeste, os policiais foram jogados lá, muitos sem querer, diferente de nós, que viemos de livre e espontânea vontade, e acontece isso que a gente vê, policiais correndo risco de vida e a comunidade contra. As mulheres falaram abertamente sobre os limites do que pode ser conseguido com os recursos disponíveis, e sobre o que a ação policial pode conseguir sem o respaldo de outras políticas sociais. Falaram também sobre as formas de treinamento oferecidas pela corporação, inclusive sobre o uso de armas de fogo, avaliadas como ruins, também criticando a política de separar os soldados novos dos mais experimentados, para se evitar a “contaminação” 306 PROBLEMAS DA POLÍCIA dos novatos. Sobre o curso para formar os policiais das Bases Comunitárias de Segurança, Jussara comentou: Vou aproveitar pra falar desse curso aí para os policiais das bases comunitárias. É doce que você promete a criança e na hora H, não dá. Cheiro puro! Como diz o povo, várias queixas. Eles enchem a boca para dizer que a capacitação é baseada no modelo Koban.4 O Japão se visse como aplicam seu modelo aqui ficaria assustado com o absurdo. A carreira: perspectivas de género Com respeito às perspectivas sobre a carreira, emergiram diferenças entre as perspectivas masculinas e femininas. Primeiro, apresentarei as perspectivas das mulheres sobre o papel da mulher no policiamento das comunidades carentes e as relações de gênero dentro da corporação, mostrando que algumas das entrevistadas veem a extensão do modelo comunitário de policiamento como um modo de avançar na posição da mulher-policial. Cláudia, uma mulher de vinte-oito anos, disse o seguinte sobre as relações de gênero dentro da corporação: Tem homem que diz que trabalho ostensivo é de homem e que as mulheres deveriam ser excluídas do serviço de rua. Mas isso quem fala são os mais antiquados, chatos de todas as idades. Eu sempre digo o que faz um bom policial não é o sexo, não é opção sexual, mas o preparo ou despreparo, tem policial homem na corporação com a barriga arrastando no chão, que não suporta correr 500 metros. Então não é ser homem ou mulher, e sim ser competente. Os colegas homens têm aquele cuidado em relação às colegas mulheres que reforça a ideia de proteção à fragilidade, muitas vezes eles se colocam como 4 No Japão, existe uma divisão de trabalho entre delegacias centrais e as delegacias chamadas Kōban, pequenas delegacias localizadas dentro dos mesmos bairros que atendem, encarregando-se da maioria dos assuntos locais e estabelecendo relações de confiança no dia a dia entre os policiais e os moradores. O sistema Kōban não só pretende estabelecer um verdadeiro sistema de “policiamento de proximidade”, mas também permite maior controle democrático local do corpo policial, o que continua sendo difícil de realizar no contexto brasileiro, sobre tudo no caso de comunidades carentes. John Gledhill 307 nossos protetores. Eu não tenho problema nenhum em relação a isso, só não sou encosto de ninguém. No policiamento comunitário, diz, Ser mulher ajuda. Em uma relação mais comunitária a mulher tem essa vantagem. As crianças tem uma aproximação surpreendente conosco, se aproximam mais da gente do que os adultos. Ser policial não é sinônimo de grosseria, falta de educação, gentileza gera gentileza. A mulher tem aquele aspecto mais humano. Eu mesmo digo logo: não sou extraterrestre, sou gente da gente como vocês, moro em periferia, e sei dos problemas que vocês passam, tem que ter uma postura de aproximação, não de afastamento. Nós temos que ser uma referência para os moradores. Devemos ser pessoas em que eles confiem e ser alguém com quem eles possam contar, e isso a mulher sabe fazer melhor. Márcia concorda: As mulheres sempre tentaram colocar uma lógica mais humana, mais próxima da comunidade, e hoje estamos no auge do reconhecimento do papel da mulher. Então foram duas coisas que combinaram no momento certo. As mulheres estão mais atentas às necessidades da população e, por isso, somos bem recebidas. Eliene sintetizou as duas líneas de argumento assim: Dificilmente você vai ver uma mulher chegar lá já direto esbofeteando, chamando de vagabundo, e dessas coisas todas que acontecem geralmente com o efetivo masculino. Eles usam mais a brutalidade, a força física que eles têm, né, e a gente já vai com mais jeitinho, até pela nossa estrutura física. Eu acho que é uma questão de educação também, nossa sociedade diz que as mulheres são mais educadas, enquanto os homens são brutais. Aqui na base comunitária os policiais são organizados em duplas para fazer visitas nas residências. Você não chega na seca pedindo as informações, você conversa, pergunta sobre coisas do dia-a-dia, das atividades de casa, como estão os meninos na escola, a saúde. Geralmente, homem não tem esse tipo de conversa. Eu acho que na relação com o público as mulheres nos saímos muito 308 PROBLEMAS DA POLÍCIA melhor, e se a tendência for ter mais bases comunitárias, haverá mais vagas para mulheres nos concursos também. A pesar do elemento essencialista de seu discurso é possível detectar alguns contrastes interessantes entre estes resultados e os resultados do estudo das Delegacias da Polícia dos Direitos da Mulher realizado por Sarah Hautzinger em outra época, os anos noventa, e com elementos da Polícia Civil. (HAUTZINGER, 2007) A identidade de classe dos dois grupos de mulheres é diferente, e influi na maneira em que as mulheres lotadas na BCS veem a BCS como um projeto social que deve ser orientado à segurança dos moradores da periferia. Portanto, criticam não só a configuração atual do projeto, mas também o processo de “captura” da polícia pelos comerciantes e outros interesses privados dentro dos bairros “nobres” da cidade. Classe social e segurança pública Apresentarei a seguir as reflexões de Clara sobre o tema: Antes de ser policial eu só estudava. Aí me deu na telha ter uma renda, estabilidade. Primeiro foi o dinheiro, pouco depois veio o amor pela polícia. Mas, logo que saí do treinamento, eu fui trabalhar no Caminho das Árvores.5 Eu pensei que estava indo pro céu, mas foi meu calvário na terra. Que povo arrogante, pedante, um povo imediatista, acha que seus problemas devem ser resolvidos de forma mágica. Eu não sei em outros bairros, mas lá no Caminho das Árvores, os moradores forneciam alimento, água mineral, eles davam um suporte legal, principalmente os comerciantes. Mas nada vem de graça, nem o pão nem a cachaça. Então a troca era tomar conta dos seus estabelecimentos, vigiar suas casas, parecia segurança particular, então não foi uma experiência positiva. 5 Caminho das Árvores é um bairro “nobre” na zona sudeste da cidade, localizado entre a Pituba e o Iguatemi. Um novo centro comercial para a cidade foi criado nesta região durante a segunda parte do século XX, num processo associado com a colonização da orla atlântica pela classe média-alta e a construção de muitos novos condomínios. A maioria dos moradores do bairro pertence às camadas mais economicamente privilegiadas da cidade. John Gledhill 309 Quando eu vim para o Calabar, o choque foi grande. Se lá o problema era a arrogância, cá foi a desconfiança e a falta de educação. Eu acho que a periferia tem um problema muito grande da carência, o povo é carente de escola, de saúde, o que se manifesta na falta de educação. Aqui não tem como chegar na tora, você tem que chegar de mansinho e ir na base do convencimento. Policial bruto aqui dentro da base não tem vez, mesmo nossa orientação sempre foi tratar moradores com extrema educação e respeito. Então eu acho que todo problema está centrado na falta. No momento em que o Estado provém o mínimo de maneira decente, muitos problemas são resolvidos. Jussara, que lamentava a falta de uma base na comunidade onde ela morava, mostrou um grau significativo de solidariedade com os moradores e criticou colegas que não compartiam esta solidariedade: Tem que ser melhor, pois [é] aqui que o povo sofre, que pega ônibus, que dá um duro para pagar as contas do mês e não pode viver sob o terror. O rico tem tudo e o pobre sempre tem que correr atrás. Eu fico triste quando eu vejo policiais das periferias, pobres, criminalizar o morador da periferia, sem chance de defesa. A fala de Eliene adotou um tom à primeira vista convencional sobre a necessidade de continuar o policiamento ostensivo na periferia, mas evitou culpar a vítima, e também acabou questionando a lógica classista das atuais políticas de segurança pública: Acho que cada contexto social demanda um tipo de modelo de policiamento diferente. Não sejamos ingênuos. Existem crimes que acontecem com maior frequência em algumas localidades do que em outras por conta da questão social. Isso se deve a inúmeros fatores, tais como a ausência de políticas sociais, a má distribuição de renda. Logo, diante dessa realidade presente, acho que os contextos de pobreza reclamam um modelo de policiamento mais ostensivo do que em outros, por conta da maior incidência de crimes contra a vida. Sem falso moralismo, eu me pergunto quando irão instalar uma Base em Cajazeiras, por exemplo, que tem aquele complexo, mora uma classe pobre, classe média baixa e os miseráveis e a violência dispensa comentários. Daí vem a minha decepção com o Estado. A Base do Calabar é um sucesso, 310 PROBLEMAS DA POLÍCIA benéfica a pobres e ricos. Então vamos estender e fazer algo exclusivamente para os pobres? Por que não? Neste sentido também houveram diferenças interessantes nas atitudes das mulheres e homens entrevistados. Ainda que por causa do pequeno tamanho da amostra de homens é difícil distinguir diferenciais de gênero dos de geração. Só o mais jovem dos homens estava inclinado a ver as BCS como um projeto social, e os outros insistiram fortemente que deve ser considerado uma questão de “ordem social”. Gustavo, com quarenta e dois anos, comentou: Sou favorável ao policiamento comunitário, pois perto da comunidade a PM consegue saber seus anseios, suas falhas. Enfim, torna o trabalho mais eficiente. Mas deve existir uma adequação. Existem policiais que não servem para trabalhar em bases. Gostam do trabalho ostensivo, nas ruas, gostam de ver o bicho pegar. Tem a turma que prefere o trabalho comunitário, as bases, estar mesmo perto da população, ser o PM amigo. Os dois tipos de policiais e policiamentos são necessários, e é necessário ter os dois aqui na base. Muitas vezes, policiais são punidos por alguma falta indo trabalhar em bases por duas semanas, um mês. Base Comunitária não é projeto social, mais uma estratégia dentro de uma política de segurança que visa estabelecer a ordem pública. O que você entende disso? Eu entendo que a base vai para lugares onde a desordem pública é predominante. Infelizmente quem é mais prejudicado é a periferia. Então temos que atuar nesses bairros. Não é uma estratégia pra periferia, mas beneficia a periferia e os bairros vizinhos. Seu companheiro Henrique, de 24 anos, foi mais cético sobre a racionalidade política das bases: O que alterou foi a relação entre a polícia e as comunidades soteropolitanas. A forma de policiamento permanece a mesma, mesmo por que quem sempre pensou na lógica radical de polícia, mantém seus cargos na instituição. Na minha opinião, o Estado só buscou medidas midiáticas, por que a mídia tava batendo violento nesse governo, por conta do aumento da criminalidade, Salvador, a Bahia tá um caos. Bater na população não atrai boa mídia, então a base aproxima o morador que vai ser um facilitador do seu trabalho. John Gledhill 311 Deve ser dada uma atenção maior às regiões menos favorecida para se buscar corrigir problemas históricos, decorrentes do descaso das autoridades com esses locais, as quais sempre abandonaram seus habitantes à própria sorte. Desse modo, as organizações criminosas se instalam nessas regiões, prejudicando a grande maioria das pessoas que habitam nelas, composta de cidadãos honestos, reféns da violência. Infelizmente, a preocupação das autoridades e dos habitantes das regiões mais abastadas da cidade é apenas com a segurança dos locais em que eles residem. Assim, as bases comunitárias foram criadas em regiões cruciais para o combate à violência nas regiões mais favorecidas de Salvador. Pra mim a intenção não é combater as raízes do problema, porque o incremento das atividades policiais não é acompanhada, ainda, por políticas públicas que visem retirar as pessoas do mundo da criminalidade, dando-lhes saúde, educação e perspectivas de uma vida digna. Os bicos e a captura do poder público O assunto final que quero trazer para a discussão é a questão dos “bicos”, aqueles trabalhos secundários que uma pessoa empregada por tempo completo numa profissão pode fazer durante seus momentos de folga. A fala das policiais entrevistadas mostrou que é possível sobreviver economicamente na força sem dedicar-se às atividades secundárias ilegais ou socialmente questionáveis, mas também mostrou a naturalização sistêmica do recrutamento de membros da polícia militar, por parte de empresas de segurança privadas, inclusive redes clandestinas que oferecem serviços de segurança cujo funcionamento pode beneficiar-se da impunidade oferecida pelas relações internas da corporação. Por exemplo, Cláudia comentou que: Eu tinha muito interesse no início pra ganhar um dinheiro extra, mas este mercado não é tão fácil assim para as mulheres, os colegas homens conseguem as coisas piscando os olhos. Tem policial que tem empresa de segurança nos bairros. Eu já fiz um bico no carnaval, mas é muito stress e bagaceira, pra mim que sou evangélica não dá. O dinheiro não compensa, sem falar que eu tenho um filho que precisa de mim, não é atraente. 312 PROBLEMAS DA POLÍCIA Jussara disse que: Não faço bicos por que meu marido não quer, e também não vou ter tempo pra família, mas já recebi convites de um sargento, colega, que tem empresa de segurança, mas nunca fui. Contudo, apesar de não estar interessada em fazer bicos, Jussara, a mais velha das mulheres entrevistadas, mostrou estar bastante decepcionada com a carreira e apoiou a greve ativamente. Nenhuma das entrevistadas estava muito contente com a imagem pública da polícia nem com os salários, nem tampouco com a situação das mulheres dentro da corporação, embora algumas tinham uma perspectiva mais otimista sobre o futuro. A crítica que Jussara fez da estrutura atual da carreira mostrava sua frustração pessoal com a falta de promoção, mas seu maior valor e relevância para nossa análise, foi por ela operar justamente como uma crítica aguda da discriminação estrutural feita desde dentro da própria corporação policial, um olhar que poderia ser igualmente relevante tanto para os homens quanto para as mulheres que entram a carreira como soldados. Ela disse ao respeito: Chega a ser revoltante ver um soldado esperar 30 anos para subir três patentes, enquanto praça, e os oficiais subindo de patente muito mais rapidamente que os praças. Acho que deveria ser igual ou então que os soldados pudessem subir de patente mais rápido, incentivados pelo aumento salarial e com a exigência de nível superior, seria mais justo. Acho também que todo oficial deveria ser soldado por no mínimo três anos antes de assumir como oficial. Tem que passar por tudo que um soldado passa. Fazer faculdade na UNEB e depois chegar metendo bronca que sabe tudo, e deixar todo o serviço nas mãos dos soldados que entendem do trabalho é fácil, né?! Existem exceções, mas acho [que] só quem está aqui sabe bem o que eu estou falando, é muita injustiça. Eu tenho 11 anos e não sou cabo ainda?! A importância tanto do problema da captura do poder público pelos interesses privados no setor da segurança quanto do problema de salários e carreira saiu à luz publicamente durante a primeira greve da PM baiana, junto com outros problemas do uso de táticas violentas e quase terroristas, cujo John Gledhill 313 resultado, depois da segunda greve de 2014, foi o arresto pelas autoridades federais do líder da greve, Marco Prisco (que descansava num ressort de alto luxo no litoral norte). Prisco foi aprisionado depois da primeira greve pelo governo estatal petista, mas de repente saiu e foi eleito vereador pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) (foi o candidato em quarto lugar em termos de votos). Em 2014, foi preso outra vez e apesar de sofrer acusações mais sérias (comprovadas) o “soldado Prisco” pode ainda candidatar-se a deputado estadual pelo partido tucano. No fim das contas ganhou em terceiro lugar entre os 63 deputados eleitos. Em 2015, a Justiça Federal revogou as medidas cautelares de restrição impostas a este líder sindical. No contexto da primeira greve, Prisco foi politicamente útil para defender a postura do governador Wagner contra as reivindicações da ASPRA fazer públicas algumas informações sobre a participação de membros da polícia militar em ações de extermínio na periferia urbana. (BRITO; CIRINO, 2012) Porém, o novo governador petista eleito em 2014, Rui Costa, uma pessoa orgulhosa de sua origem dentro das camadas mais populares da cidade de Salvador, tentou melhorar a relação com os membros da corporação. Defendeu durante sua campanha a criação de uma nova força de elite no estilo do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) carioca. Reagiu à chacina do Cabula acreditando na versão oficial dos acontecimentos oferecida pela polícia militar, uma versão que insistiu em se tratar de um grupo de criminosos preparando-se para explodir caixas eletrônicas quando foram surpreendidos pelos policiais da Rondesp, e que atuaram suas armas só para defender-se, descartando a interpretação alternativa de que a Rondesp estava cobrando vingança pela morte de um policial a mãos dos traficantes do bairro. Portanto, o novo governador recebeu os aplausos de policiais numa cerimônia durante o Carnaval quando lhes assegurou de que: “Nós defendemos, assim como um bom artilheiro, acertar mais do que errar. E vocês terão sempre um governador disposto a não medir esforços, para defender desde o praça ao oficial, a todos que agirem com a energia necessária, mas dentro da lei.”6 6 “É como um artilheiro em frente ao gol”, diz Rui Costa sobre ação da PM com doze mortos no Cabula. Correio da Bahia, Salvador, 6 fev. 2015. Disponível em: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/ 314 PROBLEMAS DA POLÍCIA Conclusões Apostar na repressão violenta como uma solução aos problemas de segurança pública continua sendo uma postura compartida entre alguns políticos de esquerda e políticos de direita. Não só porque pode produzir benefícios eleitorais, mas também, como parece ser no caso de Rui Costa, porque poderia ser resultante de uma convicção pessoal. Contudo, hoje mais do que nunca parece necessário questionar a racionalidade social de um sistema de policiamento militarizado que continua “errando” demais. Não se deve absolver de suas responsabilidades, os policiais que matam pessoas quando sabem que não apresentam nenhum risco à sua segurança física, menos ainda os membros de grupos de extermínio e corruptos. Em 2014, o ocupante do terceiro lugar dentro da hierarquia da PM carioca e comandante de suas tropas de elite dedicadas às operações especiais, o coronel Alexandre Fontenelle, foi acusado de chefiar um esquema de propina e extorsão no qual participavam pelo menos 22 outros membros da corporação.7 Contudo, tampouco se deve culpar os soldados da PM por todas as contradições que existem no policiamento de segurança pública. Como por exemplo a volta da violência nas favelas “pacificadas” do Rio de Janeiro que ultimamente tem custado tantas vidas, tanto de policiais, quanto de moradores. A “resistência” cada vez mais ousada e agressiva dos traficantes nos grandes complexos de favelas dificulta mais que nunca a substituição de um modelo repressivo de policiamento por um modelo verdadeiramente comunitário, enquanto as represálias por parte de policiais de que estes ataques tendem a provocar minam a legitimidade do processo da “pacificação”.8 Porém, tão inteligíveis quanto sejam em função da cultura atual da corporação policial e da psicologia dos policiais que sentem-se noticia/e-como-um-artilheiro-em-frente-ao-gol-diz-rui-costa-sobre-acao-da-pm-com-treze-mortos-nocabula/>. Acesso em: 6 fev. 2015. 7 Patrimônio de PM suspeito de chefiar esquema de propina é de R$ 4 milhões. Disponível em: <http:// g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/09/patrimonio-de-pm-suspeito-de-chefiar-esquema-de-propina-e-de-r-4-milhoes.html>. Acesso em: 25 set. 2014. 8 Ironicamente, apesar do abraço de um modelo de “policiamento de proximidade” e a promessa de complementar o trabalho da polícia para melhorar a segurança pública com novas iniciativas em matéria de desenvolvimento social (a “UPP social”), a escalada de violência está produzindo uma volta atrás aos problemas que surgirem durante a ocupação em 2007, durante os Jogos Pan-Americanos, das favelas John Gledhill 315 os donos da razão para “darem uma lição” nos “marginais”, as reações repressivas só criam mais violência, ódio (sobretudo entre os jovens) e maior deslegitimação das instituições do poder público, criando um círculo vicioso. Para pacificar de verdade, precisa-se respeitar as pessoas e o direito do outro, adotando um comportamento defensivo e verdadeiramente pacificador, conciliador, e educado, sejam quais sejam as provocações. No entanto, a relação polícia-moradores também está influída por outros fatores além do nível de violência, sobretudo algumas intervenções não desejadas pela maioria na vida social da comunidade (FLEURY, 2012), novas desigualdades socioeconômicas associadas com a maior regulamentação do uso de serviços e mudanças na valorização de casas e negócios no mercado, e, num contexto de requalificação urbana, o medo da remoção forçada. Também é importante reconhecer que a luta para controlar o território urbano não é apenas entre a polícia militar cumprindo sua função oficial e os traficantes. No caso de Rio de Janeiro, Christovam Barcellos e Alba Zaluar estimaram que em 2010 milícias controlavam favelas com uma população total de aproximadamente 422 mil moradores, enquanto grupos de traficantes dominavam 557 mil favelados da cidade, e as UPPs apenas 142 mil. Nos anosseguintes apenas os traficantes perderam terreno. (BARCELLOS; ZALUAR, 2014, p. 97-98) As milícias, até certo ponto a outra cara da polícia, continuam desafiando o estado de direito numa percentagem importante do território carioca. Embora têm recebido menor publicidade, as operações de milícias também se manifestam no contexto soteropolitano. Estamos falando de realidades que só podem ser entendidas num contexto de processos e relações de poder muito mais amplas que as relações sociais que existem dentro de uma periferia urbana que, na verdade, é socialmente cada vez mais socialmente heterogênea e diferenciada. É um clichê dizer que toda sociedade tem a polícia que merece. Não é verdade, no sentido de que alguns atores e interesses sociais, inclusive os altos mandos da polícia mesma, têm mais peso dentro das estruturas de poder do que em outros. Como mostram outros capítulos deste livro, a dinâmica do Complexo do Alemão, também comandada pelo mesmo Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame. (MOREIRA ALVES; EVANSON, 2011) 316 PROBLEMAS DA POLÍCIA do desenvolvimento urbano atual continua sendo dominada pelos interesses imobiliários e por outros interesses capitalistas que pretendem aumentar a capacidade dos espaços ocupados pelos pobres de produzir “valor” para seus acionistas nacionais e internacionais. Como sublinha detalhadamente o trabalho de Ângelo Serpa neste livro, apesar do conteúdo aparentemente “progressista” do Estatuto da Cidade federal, e das iniciativas estatais e municipais, o que pode ser feito com base num conceito de “interesse social” orientado ao direito à cidade das camadas sociais menos privilegiadas fica circunscrito por esta realidade. No lugar de promover a convivência no espaço urbano de classes sociais diferentes e melhorar as condições de moradia das famílias de baixa renda por meio de investimentos nos espaços atualmente ocupados por elas, os governos municipais declaram zonas habitadas pelos pobres como “áreas de utilidade pública para fins de desapropriação”, assim promovendo ainda mais segregação espacial para fortalecer a gentrificação das grandes metrópoles, com a consequência pouco desejável de aumentar a especulação imobiliária. Precisamos reconhecer, como Teresa Caldeira mostrou no seu trabalho etnográfico em São Paulo, que numa situação de insegurança pública generalizada, as classes populares também contribuem para a manutenção de um estilo de policiamento repressivo e violento (CALDEIRA, 2000), mas sua racionalidade imediata é produto de um contexto moldado pelo poder e privilégios de outros. Além disso, às vezes os cidadãos menos privilegiados mostram maior responsabilidade social quando se trata das questões centrais na segurança pública. Não se pode culpar nem os moradores de comunidades carentes do Nordeste, nem as mulheres brasileiras em geral, pela derrota do referendum nacional de 2005 sobre o controle de armas de fogo. (CAVALCANTI, 2013) Isso foi coisa de burguês (numa campanha apoiada pela Associação Nacional do Rifle estadunidense). Contudo, o que os dados apresentados aqui mostram é que há um elevado grau de apoio à reforma radical da polícia brasileira começando dentro mesmo das corporações. Nas quais mais jovens podem fazer diagnósticos bastante argutos dos problemas atuais. Ao passo que muitos soldados do setor preventivo-ostensivo se sentem vítimas de um sistema de segurança pública mal financiado e configurado pelos interesses das classes às quais eles não pertencem. Na maioria dos casos, vão acomodar-se a esta realidade, com John Gledhill 317 resultados que tendem a ser socialmente indesejáveis, ou sair da corporação, mas isso serve para reforçar a urgência de uma reforma estrutural profunda, elemento chave para conseguir um projeto de segurança pública para todos, se realmente existir a vontade política de insistir que este deve ser o projeto. Nenhuma das corporações policiais e sistemas de segurança mais sofisticados pode resolver as questões sociais de nossa época, nem sequer o Robocop. Referências ALVES, M. H. M. ; EVANSON, P. Living in the crossfire: favela residents, drug dealers, and police violence in Rio de Janeiro. Philadelphia, Pa: Temple University Press, 2011. ANDERSSON, R. Illegality, Inc.: clandestine migration and the business of bordering Europe. Oakland, CA: University of California Press, 2014. BARCELLOS, C.; ZALUAR, A. Homicídios e disputas territoriais nas favelas do Rio de Janeiro. 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Sociability in crime: culture, form of life, or ethos? Vibrant, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 12-46, 2014. John Gledhill 319 Ceci Vilar Noronha Suzana de Magalhães Dourado A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO transgressões, crimes, riscos e danos Introdução Um conjunto de problemas é característico das cidades latino-americanas dentre eles: a proliferação de favelas, equipamentos educacionais e de lazer inapropriados e insuficientes, a falta de destinação adequada dos resíduos sólidos e do saneamento básico para a totalidade dos moradores, a insegurança, a invasão dos espaços públicos por parte de empreendedores privados e generalizada degradação dos aspectos arquitetônicos e estéticos. Há um rol de problemas comuns e em tais proporções que o marketing político não consegue apagar ou riscar da nossa visão, inclusive a insegurança quanto à integridade física e a posse de bens ou propriedades. 321 Também é sabida a forte associação entre crime e urbanização. As cidades são vistas como espaços que favorecem a anomia nas relações interpessoais, compreendendo situações ambíguas de contato entre indivíduos e grupos sociais o que oportuniza a ocorrência dos mais diversos delitos. Estudos que mapeiam crimes costumam mostrar manchas de concentração dos mesmos em grandes cidades e nestas em determinadas áreas. Destacando uma questão específica em relação ao mosaico das cidades e os comportamentos criminosos, nos interessa discutir níveis de insegurança no espaço público, considerando a perspectiva do gênero feminino e os obstáculos ou constrangimentos colocados a sua livre circulação. Para tanto, iremos argumentar que muitos riscos e danos que atingem mais comumente à dignidade sexual das mulheres são negligenciados, maciçamente sub-registrados ou não fazem parte das estatísticas criminais. Deste modo, insultos verbais e juízos depreciativos sobre o corpo ou o modo de andar são lançados por homens como atos banais e pouco suscetíveis de serem punidos. A esse respeito, o assédio moral e o sexual, em qualquer ambiente, figuram como delitos com grande dificuldade na comprovação das responsabilidades. Pesquisas têm reconhecido mais frequentemente o uso da violência física contra mulheres e violências sexuais em relação a crianças e adolescentes, identificando com clareza que os principais agressores são parceiros íntimos, familiares e conhecidos. Permanece na obscuridade, entretanto, uma parcela de sofrimento oriunda de atos transgressores e agressivos praticados por desconhecidos em ambiente não doméstico. Também é necessário enfatizar que não apenas diferem as experiências femininas com a criminalidade de rua, como são discrepantes os riscos e danos provocados por episódios de violência, sobretudo no que tange à saúde reprodutiva. Consequentemente, o cotidiano das mulheres à circular por ruas e praças é marcado pela adoção de comportamentos de hipervigilância, de alto custo emocional, a fim de evitar situações e envolvimentos não desejados, configurando o que já foi denominado o “paradoxo do medo”. (MADRIZ, 1998) Uma vez que as mulheres participam menos das atividades típicas denominadas como crimes de rua (furto, roubo, assalto e latrocínio), se envolvem pouco em disputas violentas interpessoais e apresentam taxas mais baixas de mortes por arma de fogo. 322 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO Comparativamente aos homens, elas declaram sentirem-se mais inseguras nos espaços públicos. Cabe indagar sobre a presença forte desse sentimento de insegurança, visto como desproporcional, comportando levantar respostas provisórias e intercambiáveis. Uma relaciona o fato a algo próprio à trajetória de ascensão das mulheres à condição de sujeito político, de forma tardia e secundarizada; outra defende que as mulheres seriam socializadas de modo a expressar mais insegurança ontológica, sobretudo na esfera pública; ainda se pode advogar que as mulheres podem ser particularmente sensíveis à percepção de riscos em função de atos violentos intencionais. Circulação nos espaços públicos e o medo das ruas O medo do crime foi menosprezado por décadas em estudos acadêmicos sobre crime e criminalidade de rua. Já nos anos 1990, no entanto, pesquisas relativas à vitimização passaram a incluir esta dimensão como parte do conceito de segurança pública e os achados centrais apontam que não há uma relação direta e unívoca dos níveis declarados de temor ao crime/criminoso e as experiências concretas de vitimização, captadas em fontes de registros estatísticos oficiais ou pesquisas eventuais. Talvez, o fenômeno tenha a ver com as cifras ocultas dos crimes, que apesar do alto número deles não registrados se tornam de algum modo conhecidos no espaço urbano, ou com o imaginário relativo ao crime, que faz com que o medo seja maior do que as estimativas estatísticas. A esse respeito, em 1999, um pesquisador latino-americano destacou que: Santiago é uma cidade com medo. Atualmente, existe uma alta percepção de insegurança relacionada à violência criminal que não se sustenta nas taxas de vitimização. A percepção de insegurança é muito maior que a vitimização direta e indireta. Se estima que nos 12 meses que antecederam a realização da pesquisa feita para este estudo, 23% dos habitantes de Santiago haviam sido vítimas diretas ou indiretas de uma ação violenta; e cerca de 77% dos não vitimizados alegaram sentirem-se inseguros em Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 323 suas casas, na vizinhança, nos transportes coletivos ou no centro da cidade.1 (OVIEDO; RODRÍGUEZ, 1999) Em um estudo de 2012, realizado com base em amostra representativa da população feminina, com 16 anos e mais, residente em Feira de Santana, as mulheres expressaram altos níveis de insegurança na circulação por vias públicas, quer seja em seu bairro residencial ou fora dele. No âmbito mais próximo ao endereço residencial, 46,2% afirmaram haver locais em que não se pode passar ou frequentar; 76,6% sentiram-se inseguras ou muito inseguras ao andar por ruas do bairro à noite e tais sentimentos se ampliam em relação aos outros bairros da cidade. Nestas localidades, 83,5% se sentem vulneráveis durante o dia e 94,3% ao sair à noite. (CASTRO; NORONHA; LOURENÇO, 2013) Especialmente e de modo peculiar, as mulheres temem circular sozinhas em determinados horários e lugares nas urbes, pois paira o espectro de constrangimentos vários e das possibilidades de ataques masculinos de natureza sexual. Tal situação marca o cotidiano das mulheres como “grupo minoritário“, detentor de papéis e funções simbólicas definidos e atualizados, historicamente, por meio de instituições, normas e valores que asseguram as desigualdades entre os gêneros. Em que pese à polêmica aberta, é possível acrescentar que há a participação das próprias mulheres nestas construções. Sobre as mulheres no Brasil, compartilha-se um imaginário coletivo que salienta o seu lado narcísico, a sua vaidade e frivolidade e, ao mesmo tempo, existe uma construção simbólica que as vincula estreitamente aos valores relativos à família, à reprodução social e da espécie, sendo ela própria um agente de vigilância sobre os demais membros deste grupo. As mulheres reúnem, por conseguinte, qualidades contraditórias e distintas de dedicação ao cuidado no lar e predileção por profissões relacionadas ao cuidado nos espaços públicos (MONTENEGRO, 2003), como também pelo exibicionismo de 1 Santiago es una ciudad con temor. Actualmente existe una alta percepción de inseguridad relacionada con la violencia delictiva que no se sustenta en las tasas de victimización. La percepción de inseguridad es mucho mayor que la victimización directa y indirecta. Se estima que en los 12 meses que precedieron la realización de la encuesta de este estudio, 23% de los habitantes de Santiago habían sido víctimas directas o indirectas de una acción violenta; y alrededor de 77% de los no victimizados manifestaron sentirse inseguros en su casa, en su vecindario, en los transportes colectivos o en el centro de la ciudad. 324 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO formas e atributos físicos. Coube ao movimento feminista atuar ativamente na desconstrução de tais imagens estereotipadas e no sentido da igualdade formal de direitos, visando abrir espaços para a autonomia das mulheres. Recordando o momento expressivo de saída das mulheres dos lares aos espaços públicos com Margareth Rago (1997), vê-se que o movimento operário masculino falava da mulher trabalhadora como sexo frágil, no plano físico e moral, e da necessidade de protegê-la com relação aos conquistadores (pegadores) que trabalhavam nas fábricas. Se nos anos iniciais da industrialização no Brasil, o operariado de fábrica era objeto de intervenções por parte dos médicos, higienistas, criminologistas e inspetores públicos, o segmento das mulheres trabalhadoras também não escapava às ações moralizadoras que recaiam sobre elas dentro e fora dos lares. Ao afastar-se cotidianamente do interior do núcleo familiar para os locais de trabalho, a mulher era criticada por desleixar-se dos cuidados com a prole e o marido e, ao mesmo tempo, expor-se aos perigos das ruas e praças. No Brasil, desde meados do século XIX, com a participação da Igreja, políticos e especialistas em diversos campos disciplinares se formulou um novo conjunto de regras de comportamento e de etiqueta que se difunde para todas as camadas sociais exaltando a laboriosidade, a castidade e o esforço pessoal. (RAGO, 1997) Com a saída das mulheres ao mundo do trabalho, sobretudo o valor atribuído à castidade, acompanha e assombra os seus passos ao se deslocar no espaço urbano, frequentar os mais distintos ambientes e manterem-se virgens até o casamento. Depois, fidelidade irrestrita ao marido. À época, uma das dimensões socioculturais em relevo para se conferir o lado virtuoso da mulher consistia na sua capacidade de opor resistências a todo e qualquer ataque de natureza sexual, mesmo sendo ela o sexo frágil. Tal dimensão se aprofunda quando em situações de tentativas de estupro, as autoridades judiciais irão decidir sobre a culpabilidade do réu, considerando nos autos a descrição da resistência física da mulher ao seu agressor. Qualquer omissão relativa ao modo como ela teria tentado se defender, poderia implicar na situação em que a vítima teria consentido ou até mesmo incentivado a agressão sexual. Interessante é que atitudes e posicionamentos preconceituosos em relação ao comportamento feminino em contendas de natureza sexual, por parte Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 325 das instituições jurídicas e operadores do direito, não se restringem aos primórdios da industrialização e do urbanismo como estilo de vida, esse tipo de mentalidade atravessa séculos da sociedade brasileira. Estudo, publicado em 2002, pontua a ênfase dos magistrados em suas práticas cotidianas acerca da figura jurídica da “mulher honesta” nas suas decisões e julgamentos. (ALMEIDA, 2002) Desnecessário dizer que qualquer suposição de testemunhas, inclusive por parte do acusado, pode acarretar prejuízos sérios à construção deste status singular. A esse propósito afirmou Haroche (2013) sobre as relações entre gêneros na França: Se a lei, nas sociedades democráticas ocidentais, chegou a contestar a visibilidade da dominação, a colocar em questão o seu caráter “natural”, a limitar a sua intensidade, a distanciá-la de alguns excessos, ela, entretanto, foi incapaz de suprimi-la completamente de onde vem, então, a permanência da desigualdade entre homens e mulheres, presente inclusive nas sociedades que reconhecem a igualdade como um valor, como um ideal, mais ainda, como um direito? Pois esta dominação aí se conserva sob formas muitas vezes insidiosas, difíceis de combater – uma dominação que prolonga uma desigualdade profunda e tenaz entre os homens e as mulheres na detenção do poder. (HAROCHE, 2013, p. 16) O uso ou mau uso da autoridade para ter acesso ao corpo feminino tem, portanto, uma longa trajetória, envolvendo vínculo empregatício ou mesmo a hierarquia familiar, ainda que este acesso venha ocorrendo também mediante trocas monetárias em propostas de compra de contatos e atos sexuais, sendo quase ilimitadas tais possibilidades de intimidação e sujeição das mulheres a partir do sexo e da sexualidade. Neste sentido, alguns cenários serão utilizados nesta comunicação para ilustrar como as iniquidades de gênero reforçam a vulnerabilidade das mulheres ao circular em espaços públicos. 326 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO Cena 1 – Assédio sexual e moral nos transportes coletivos Caso emblemático da peculiaridade nos deslocamentos femininos no espaço urbano é constituído pelo decantado problema do assédio sexual nos vagões de trens, metrô e ônibus nas cidades brasileiras. Algo que pode ser generalizado a outras cidades em muitos países. Nestes ambientes em que há aglomeração de pessoas e pressa em acessar o veículo tais condições servem de pretexto a contatos e apalpadelas que invadem os limites do corpo feminino. Qualquer mulher que utilize com frequência os transportes coletivos em nossas cidades, já passou por experiências de assédio sexual, o que faz com que seu modo de circular pela cidade seja marcado por sentimentos de temor e mal-estar. Em decorrência disso, as mulheres, sobretudo, as mais jovens deixam de sair por não se sentirem seguras, acionam companhias masculinas como “senha de acesso protegido” a determinados locais do espaço urbano, ou mesmo desistem de sair se a finalidade é lazer. Por seu turno, os homens parecem se sentir confiantes que nenhuma punição contra si virá. Raciocinam que pela pressa dos deslocamentos e o estresse em razão do cumprimento de horários e obrigações ninguém irá parar para registrar esse tipo de delito. O que se revela uma verdade parcial, uma vez que o problema vem sendo denunciado e medidas de intervenção como o “vagão rosa” já foi implantada em algumas cidades brasileiras, a exemplo de Rio de Janeiro e Brasília. No entanto, a instituição de vagão (em trens ou metrô) exclusivo para mulheres gera polêmica, uma vez que se argumenta que a medida promove a segregação dos gêneros e, de certa forma, pune as vítimas reais ou potenciais. Em São Paulo, a iniciativa do legislativo para instituir o “vagão rosa” foi vetada pelo governador com apoio de feministas que defendem que os homens deverão mudar seus comportamentos e não se pode restringir a entrada e circulação das mulheres. Por paradoxal que seja os homens não só atuam no sentido de impor constrangimentos às mulheres nos transportes coletivos, como exibem, em meio virtual, fotos ou vídeos sobre isso: “[...] Investigações apontaram a existência de mais de 70 comunidades relacionadas ao assunto, uma delas, chamada ‘Encoxadores’, com mais de 10 mil participantes”. (PASSOS, 2015, p. 7) Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 327 Cena 2 – Exibicionismo e violência sexual em terrenos não construídos ou outros sítios abandonados Nas cidades, qualquer “desorganização do espaço” também pode servir de local para práticas de atos sexuais forçados. Caso publicado, em Salvador, dá conta de que a existência de terrenos não construídos em meio a outras habitações servia de local para estupro de adolescentes. O agressor homem, adulto, se dirigia aos portões de uma escola pública de bairro periférico atraia adolescentes a acompanhá-lo e mais adiante ele as conduzia sob coação para um terreno baldio, onde tentava realizar seus intentos sexuais. Certamente que este não é um caso único, tais práticas se reproduzem em inúmeras cidades e com agressores diferentes, valendo a ressalva de que os predadores sexuais costumam construir carreiras transgressoras, atentando contra a integridade física e sexual de muitas vítimas. (SALTER, 2009) Ressalvas também devem ser feitas quanto ao local, se não for utilizado um terreno baldio, é possível levar suas vítimas para uma praia deserta ou uma rua mal iluminada. As cidades são pródigas em proporcionar oportunidades não consensuais para contatos e encontros de cunho sexual. Por vezes, os predadores sexuais almejam um tipo de aproximação da vítima diferenciado, promovendo seu envolvimento involuntário no jogo do que pode ser classificado como atos de exibicionismo do órgão sexual ou da prática da masturbação realizada em locais públicos na presença de meninas, jovens ou mulheres adultas. Em Salvador nos anos 1970, frequentadoras das praias da Barra e Itapuã, onde há pedras próximas aos locais de banho, encontravam ou sabiam da presença de homens que procuravam se ocultar nos rochedos para se masturbar, enquanto desfrutavam da visão dos corpos de mulheres e meninas estendidos à areia. À mesma época, nas conversações entre pares femininos falava-se dos “tarados” (exibicionistas) que atuavam em seus respectivos bairros. As precauções eram tomadas de forma individual e estávamos longe de campanhas preventivas ou repressivas sobre estes assuntos. Certamente, que tais comportamentos masculinos não desapareceram por completo de nossas ruas, mas há no século XXI maior conscientização e mecanismos de defesa e denúncia. 328 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO Cena 3 – Estupro e assédio em campi universitários Como uma ilustração dos comportamentos típicos da masculinidade hegemônica, mulheres jovens universitárias também são alvos de ataques por seus pares. Em matérias divulgadas em 2014, via imprensa e televisão, alunas da Universidade de São Paulo (USP) denunciaram episódios de assédio e estupro no campus. Inclusive, elas estariam se organizando para “escrachar” homens que já praticaram ou tentaram praticar abuso sexual durante eventos festivos na Universidade. Não houve citação de estatísticas, mas sim relatos de casos de abusos e estupros entre as universitárias, o que motivou que estas se organizassem para a autodefesa. As notícias acrescentam que o epicentro destes atos de violência seria a Faculdade de Medicina e a Superintendência de Segurança da USP iria ajudar a Guarda Universitária a lidar com casos de agressão a mulheres através da realização de uma oficina de sensibilização para os funcionários, incluindo aula sobre legislação relativa ao problema. (EM FESTAS..., 2014) Nos relatos das vítimas, há situações em que os estudantes (também funcionários) estão em grupos e a vítima é capturada sozinha, seja nas dependências das universidades ou nas áreas de estacionamento, sendo mais comuns após encontros festivos com a presença de álcool e, possivelmente, outras drogas. Em universidades norte-americanas, o mesmo tipo de delito ocorre e em proporções consideradas como elevadas, sendo alvo de debate público e ensaios em termos de medidas de prevenção. Com relação aos acontecimentos e às reações que isso vem causando fala-se em rape culture e cada universidade disputa o lugar daquela que mais debate o problema. (MARTIN; HUMMER,1989) Entretanto, as vítimas têm em comum a queixa de que são deixadas sozinhas a enfrentar as consequências e muitas pensam em abandonar o estabelecimento de ensino. Alguns agressores já foram expulsos de universidades e têm sua condição de agressor sexual amplamente difundida em meios midiáticos, inclusive com fotos, conforme práticas e costumes da sociedade estadunidense. Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 329 Assédio no meio virtual Com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, o assédio moral e sexual chegou às vítimas através da web, criando um universo paralelo, com ameaças e extorsões às vítimas femininas através da divulgação rápida de imagens consideradas inapropriadas, íntimas ou de natureza pornográfica. Em decorrência disso, casos de suicídio de vítima desta modalidade de delito já foram registrados no Brasil e tendem a crescer. Por seu turno, a internet coloca-se como ponto estratégico de aproximação dos predadores sexuais em relação às suas vítimas e disso participam homens adultos pedófilos e crianças e adolescentes, como investigado pela Organização Não Governamental (ONG) Safernet e a Polícia Federal, principalmente nas páginas do Orkut, em 2007. Essas possibilidades contribuíram para a criação do fenômeno revengeporn (pornografia de vingança), que ocorre, principalmente, entre pares que vivenciaram laços afetivo-sexuais. Após a separação, ele pode chantagear a ex com a ameaça de divulgação de fotos ou vídeos considerados impróprios para o público e, sobretudo, sem o consentimento da ex-parceira. Por razões sobejamente conhecidas, a recriminação moral recairá mais fortemente sobre o polo feminino da relação desfeita. Os meios de comunicação, com seu potencial para fabricar celebridades, tem se revelado um tipo de ambiente de trabalho em que as trocas sexuais forçadas emergem com frequência. A BBC de Londres foi palco de um exemplo clássico, conhecido como “caso Savile”, só denunciado após a morte do apresentador do canal de TV, visto como um homem de grandes virtudes, benfeitor de crianças e enfermos, mas que assediou sexualmente centenas de crianças e adolescentes. Violência doméstica no espaço público Em que pese todo o debate teórico sobre as frágeis fronteiras entre o mundo público e o privado (ABOIM, 2012), esta ainda é uma distinção útil para pensarmos no processo paulatino de regulação por parte do Estado no âmbito das relações de intimidade. Particularmente no Brasil, houve reivindicações 330 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO do movimento feminista dos anos 1970 a fim de evitar taxas mais elevadas de feminicídio, como também suprimir o danoso dispositivo legal relativo à defesa da honra, que na prática, só beneficiava os homens nos julgamentos relativos a casos de adultério. (CORRÊA, 1983) A violência doméstica é usualmente definida como aquela que tem como referencial primeiro o domicílio ou a residência em virtude de, etimologicamente, vir do latim domesticus: da casa, da família, do particular. (HOUAISS, 2014; SAFFIOTI, 2004) Em consequência desta acepção, tem sido cogitada como um fenômeno exclusivo da ordem do privado e, por muito tempo, admitida socialmente quando praticada dentro do “sagrado espaço” do lar. No entanto, a violência contra a mulher exercida por alguém do seu círculo afetivo (na grande maioria dos casos, parceiros amorosos), genericamente chamada de violência doméstica, tem se estendido para além do domínio privado. Na cidade de Salvador, um estudo abrangendo o período de 2004 a 2008, mostrou que 20,5% dos atos de violência física contra mulheres, praticados por parceiro íntimo, denunciados à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM), foram perpetrados em vias ou locais públicos. (DOURADO; NORONHA, 2015) O que significa dizer, que foram 67 agressões às mulheres que procuraram a delegacia especializada num total de 326, em que pese haver registros que não discriminavam o local. Esta informação parece revelar que o “doméstico” passa a se constituir também numa ocorrência extramuros, transpondo as possíveis sanções sociais à prática da violência em presença de pessoas alheias às pessoas/casal em conflito. Por outro lado, pode-se pensar que estas violações físicas contra a mulher em ambiente externo ao domicílio, ainda continuam a serem significadas, em nossa sociedade, como “brigas conjugais”. A crescente inserção da mulher na vida pública, através de uma maior participação em atividades laborais e eventos sociais, em alguns casos, em vez de promover a libertação feminina da opressão outrora vivenciada dentro muros do vínculo conjugal, a transporta para experiências de vitimização ambientadas em lugares públicos e em presença de terceiros. Ou seja, o território urbano também se transforma em palco no qual se desenrolam cenas da “vida privada”, reatualizando a dinâmica e os contornos de uma violência antiga, cujas raízes e tentáculos parecem, a cada dia, adquirir novas dimensões. (FEMENÍAS; ROSSI, 2009) Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 331 Acrescente-se que parte da violência letal sobre as mulheres ocorre em espaços públicos porque coincidem com situações de separação do casal, quando ele já perdeu o acesso ao domicílio da ex-companheira, mas encontra-se inconformado com o fim do relacionamento. A mulher, ameaçada pelo ex-parceiro, muda de endereço residencial, mas o do trabalho não pode ser substituído, sendo esta, uma informação que o ex pode manter ou obter com facilidade. Nestas situações, prevalece a lógica da vingança de ordem pessoal e sem uso de intermediários para arbitrar sobre o conflito. (DaMATTA, 1994) De todas as contendas domésticas só um percentual baixo e não fácil de ser quantificado chega a ser registrado nas agências estatais. Ademais, é sabido que os aparelhos de controle social formal não atuam com a mesma diligencia em casos de “brigas de casais”. Policiais norte-americanos e latinos se sentem pouco predispostos a atender situações como essas, por considerarem que se desviam dos seus objetivos principais de combate à criminalidade de rua. Há que considerar também que estes litígios da esfera íntima trazem à tona conteúdos que causam constrangimentos ao modelo de masculinidade hegemônico no meio policial. Mulheres, que denunciaram seu companheiro por violência conjugal, apontam que os policiais não priorizam sua chamada e agem no sentido de minimizar os atos e ameaças relatadas. Na justiça, por sua vez, há estudos que sinalizam para um andamento lento dos casos que chegam aos tribunais. Em que pese a autoria dos atos delitivos serem fáceis de identificação, os rituais da justiça implicam na recriação da vida social das pessoas em litígio e abrem possibilidades para que os acusados sejam representados como pessoas dignas em outras esferas e com isso confundem a cabeça dos julgadores. Em estudo que demonstra que a justiça parece ser mais eficiente no julgamento de crimes contra o patrimônio em detrimento dos crimes contra a pessoa, declarou o defensor público Daniel Nicory: A maioria dos processos das varas de Violência Doméstica que nós estudamos ainda estavam no início, o que pode indicar falta de pessoal para cumprir os autos. No caso da violência doméstica, há uma explicação lógica aí. A lei Maria da Penha é relativamente recente. (MENDONÇA, 2015, p. 8) 332 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO O tempo da pesquisa referida compreendeu os processos que tiveram origem na Vara de Violência Doméstica em 2011, os quais foram acompanhados até 2014, sem que houvesse uma só sentença proferida em Salvador, neste período. Corpo feminino: natureza versus cultura A mulher, em razão da anatomia e fisiologia, foi primordialmente alocada no domínio da natureza, corroborando na mesma direção as famosas qualidades femininas relacionadas à emoção e à sensibilidade mais aguçadas. As formas e funcionalidades do corpo feminino também estiveram sujeitos a controvérsias na medicina sobre o que lhe faltava ou sobrava, sem dispensar argumentos robustos sobre o sexo invertido e a reduzida dimensão craniana. A isso se seguiu toda uma trajetória de estudos e posicionamentos políticos voltados à desconstrução dos elementos “naturais” no corpo feminino. Badinter (1985) se encarregou da (des)naturalização do chamado “instinto materno”, em tudo dependente das condições socioculturais e das elaborações simbólicas coletivas e individuais. Da maternidade como local de destino pouco sobrou entre mulheres escolarizadas nas sociedades capitalistas ocidentais. Polêmica intelectual coloca em discussão a frase seminal escrita por relativa ao “tornar-se mulher”. Existe uma contradição intrínseca neste enunciado, por um lado, soa como opção ou escolha aludindo ao “[...] conjunto de atos propositais e apropriativos, a aquisição gradual de uma postura, um ‘projeto’ em termos sartrianos, assumir um estilo e significado corpóreo culturalmente estabelecido”. (BUTLER,1987, p. 139, grifo do autor) Por outro, nos lembra Butler (1987), o quê neste corpo gestado nas teias de normas e significados culturais pode ser chamado de natural? Considera-se ainda vigente no plano analítico, a existência de outra clivagem que marca o lugar das mulheres e as separa do mundo masculino em fronteiras extremas, como as oposições entre o privado e o público. Arendt (2010) chamou a atenção para as armadilhas do mundo privado, situando-o como local de privação e isolamento em que as mulheres realizam incessantes atividades manuais, repetitivas e desvalorizadas socialmente. Para que Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 333 algumas mudanças ocorressem no trabalho doméstico, tais atividades tiveram que ser discutidas no público e tematizadas como bandeiras políticas, por parte das mulheres, e formuladas reivindicações explícitas ou implícitas acerca da dupla jornada de trabalho. Bourdieu (2005) em seus argumentos relativos à dominação masculina assinalou, enfaticamente, o modo como os corpos são modelados pela divisão social e sexual do trabalho que se estabelece baseada em critérios culturais. Ademais, coloca os corpos em evidência no que tange às questões relativas à honra e seus princípios que favorecem o polo masculino: O corpo tem sua frente, lugar da diferença sexual, e suas costas, sexualmente indiferenciadas e potencialmente femininas, ou seja, algo passivo, submisso, como nos fazem lembrar, pelo gesto ou pela palavra, os insultos meditarrâneos contra a homossexualidade (sobretudo o famoso ‘bras d’honneur’ – ‘dar uma banana’); tem suas partes públicas, face, fronte, olhos, bigode, boca, órgãos nobres da apresentação, nos quais se condensa a identidade social, o ponto de honra, o nif, que obriga a enfrentar ou a olhar os outros de frente, e as partes privadas, escondidas ou vergonhosas, que a honra manda dissimular. (BOURDIEU, 2005, p. 26, grifos do autor) Na análise bourdieusiana (2005), não passa despercebido que a própria relação sexual é configurada como uma relação social de dominação, com base na oposição clássica dos elementos passivos (femininos) e ativos (masculinos), situar-se por baixo ou por cima, ser objeto de penetração ou penetrar. Neste jogo, o desejo feminino é visto como uma “subordinação erotizada”. O amplo uso de corpos femininos para fins de marketing comercial parece explorar esta veia erótica subjacente e analógica entre o desejo sexual e o de posse de certos produtos muito cobiçados. Chauí (1985) colocou isso bem claro, quando destacou que imagens de mulheres são intensivamente utilizadas para a venda das mais diversas mercadorias, mesmo as mais distantes dos afazeres domésticos. Se essa associação entre corpos e mercado sugere, também, que as próprias modelos são mercadorias com valores de uso e de troca, a mentalidade masculina mais conservadora e patriarcal tende a considerar 334 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO que ao casar ou conviver com alguém, torna-se proprietário deste ser. Muito da violência entre casais provém desse fértil e ativo filão de sentimentos e atitudes que se esconde ou expande nas relações cotidianas numa rede de intricados nós. Outros riscos de ataques violentos, à integridade física das mulheres, ocorrem nas ruas. É fato que a circulação das mulheres em espaços públicos ocasiona alguns riscos, não restritos à sociedade brasileira apenas. A propósito da sociedade inglesa e norte-americana, Jock Young (2002) recupera concepções de Goffman acerca da noção de Umwelt, definido como a necessidade de manter um núcleo de normalidade em torno de si a fim de realizarem suas atividades triviais. O Umwelt tem duas dimensões: a área em que o indivíduo se sente seguro e a área que ele está em guarda, a área de apreensão. A leoa dorme tranqüila na veld, os olhos a observar ocasionalmente as atividades à distância. Na sociedade humana, há uma bolha movente que se retrai e expande onde quer que esteja o indivíduo: se, por exemplo, em casa ou numa rua urbana. A natureza do Umwelt varia segundo a categoria social. É fortemente marcada por gênero: Goffman observou que o Umwelt das mulheres era diferente do dos homens. Claramente, reconhecer sinais sexuais predatórios bem como sinais de possível violência da parte dos homens, tanto em público como em casa, constitui uma parte importante do repertório social das mulheres. (YOUNG, 2002, p. 112, grifos do autor) Sublinha-se a discussão de como os indivíduos são extremamente dependentes das sensações de conforto físico e mental em torno de si e para que isso ocorra tem-se que desenvolver habilidades e capacidades para a identificação dos perigos no entorno e desenvolver meios para evitá-los ou neutralizá-los. Necessário deixar em destaque que sinais de “risco” ou “perigo” não são exatamente crimes, mas percepções sobre os mesmos, as quais podem ser construídas por experiências próprias ou vicárias. Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 335 Riscos à saúde sexual e reprodutiva As mulheres experienciam atos de violência em idade precoce, sobretudo aqueles de conteúdos sexuais, cujos impactos à saúde vêm sendo respondidos de modo insatisfatório pelas agências públicas. Estudos que se debruçam sobre o tema da violência sexual contra a mulher têm sido pródigos em enfatizar os sérios danos físicos e emocionais, originários do evento vitimizador, à vida de meninas, adolescentes e mulheres adultas que sofreram este tipo de abuso. (HANE; ELLSBERG, 2002) Entre as sequelas mais frequentes, estão os sintomas do transtorno de estresse pós-traumático, síndrome do pânico, bem como os danos diretamente ligados à saúde sexual e reprodutiva feminina, a exemplo de lesões vaginais e anais, comprometimento uterino, alto risco de exposição às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e disfunções sexuais crônicas, como a anorgasmia. Quer dizer, são efeitos de curto, médio e longo prazo que vão se converter em consequências permanentes, se não adotadas medidas adequadas por setores competentes, como serviços de saúde e de atenção psicossocial. (DREZETT, 2003; FAÙNDES et al., 2006; LANE; ELLSBERG, 2002) Deve ser assinalado que nem todo o estupro deixa traumatismos físicos genitais, perigenitais ou em outras partes do corpo da mulher, especialmente, se o agressor usou uma arma branca ou de fogo para intimidação. Esse tipo de lesão é mais frequente em crianças e adolescentes em razão da desproporcionalidade de porte físico entre aquele que pratica o crime e a vítima. (FAÚNDES et al., 2006) Essa presumida falta de “prova material” em mulheres adultas leva alguns agentes da segurança pública e mesmo do setor saúde a minimizar o sofrimento decorrente da violação sexual, transpondo o ônus do delito para a vítima, como se ela carregasse a culpa de não levar sobre seu corpo sinais “suficientes” do dano que sofreu. (DREZETT, 2003) Em casos de ataques sexuais praticados por estranhos, uma série de protocolos de intervenção e prevenção deve ser seguida a fim de proteger a mulher das DSTs (entre estas a contaminação pelo HIV) e de uma possível gravidez resultante do ato criminoso. (FAÚNDES et al., 2006) Revela-se assim, a ressonância gerada pela violência vivida, uma vez que, após a ocorrência do fato, seguem-se semanas até que as medidas aplicáveis sejam concluídas. Ou seja, 336 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO a cada atendimento, a cada ingestão de medicamentos, o evento traumático é rememorado, caracterizando uma revitimização contínua, ainda que com vistas à redução dos danos consequentes ao ataque sexual sofrido. Para além dos agravos já enunciados, a gravidez resultante de um estupro pode ser considerada uma das mais complexas consequências a serem enfrentadas pela mulher vítima do abuso. Somada a um possível conflito pessoal gerado por interromper a gestação numa cultura, na qual a maternidade tangencia a sacralidade, associa-se a dificuldade encontrada por aquelas que optam pelo aborto, em achar serviços de saúde que realizem o procedimento, ainda que este esteja amparado legalmente desde o ano de 1940, pelo artigo 128 do Decreto-Lei nº 2848 – Código Penal Brasileiro. (BRASIL, 1940) Como resultado destes entraves, um número grande de mulheres termina recorrendo ao abortamento em clínicas ilegais, em condições insalubres e precárias, correndo o risco de comprometerem sua saúde reprodutiva e até de perderem a vida em decorrência da intervenção executada por pessoal não habilitado e que atua na clandestinidade. É imperativo, portanto, que os serviços de saúde estejam aptos e aparelhados para acolher e respeitar a opção autônoma da mulher, vítima de violência sexual, que decide pela interrupção da gravidez, exercendo um direito seu. (DREZETT, 2003; FAÚNDES et al., 2006) Portanto, o medo e o estado de hipervigilância presentes no cotidiano da maioria das mulheres residentes nos espaços urbanos contemporâneos podem estar associados, não “apenas” a uma possível abordagem masculina criminosa de caráter sexual, mas também aos efeitos a posteriori implicados nesta modalidade de vitimização. Reações e resistências feministas No século XXI, segmentos urbanos dentre a população feminina brasileira têm uma percepção mais aguçada dos riscos e prejuízos gerados pelo assédio moral e sexual, práticas masculinas presentes nas ruas e locais de grande aglomeração humana, e tomam iniciativas para colocar em discussão o que isso representa em suas vidas. Neste sentido, a campanha Chega de FiuFiu, promovida pelo blog Think Olga, por exemplo, tematizou esses fenômenos Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 337 nos espaços públicos. A semelhança de outras ações feministas, a campanha visa à troca de experiências entre mulheres assediadas e tende a reforçar o caráter delitivo desses atos cerceadores da liberdade feminina. Outras iniciativas vão florescendo com o mesmo intuito, dado o interesse dos jovens pelo ativismo on-line, alunas de comunicação do Rio de Janeiro criaram o blog “Hoje eu quero voltar sozinha” também centrando nos debates em torno do assédio psicológico e físico. Tais campanhas nacionais são, por sua vez, inspiradas na militância das norte-americanas via a ONG Hollaback!. De modo coletivo e organizado, as mulheres se posicionam demandando por desatenção civil, nos termos utilizados por Goffman (2010), sobretudo nas interações com estranhos. Ou seja, se agem de maneira apropriada nos ambientes públicos, elas não devem ser objeto de olhares acintosos e insidiosos. Mais recentemente, novos movimentos feministas têm buscado dar sentidos diversos ao valor simbólico do corpo feminino e de seu suposto status de “objeto de sedução/subjugação” diante do outro masculino. Como exemplos podem ser citados o movimento Femen, originado na Ucrânia, em 2008 e o SlutWalk (Marcha das Vadias), nascido em 2011, no Canadá. (CARR, 2013; FEMEN, © 2017) No primeiro, as ativistas usam o próprio corpo como arma de protesto. Usando o topless (às vezes, nudez total) em passeatas, elas objetivam chamar a atenção da mídia e da sociedade a fim de denunciar a opressão do patriarcado e pregar aquilo que denominam em seu site oficial de sextremismo: FEMEN é um movimento internacional de mulheres formado por corajosas manifestantes fazendo topless, com slogans pintados em seus corpos e usando coroas de flores na cabeça. As ativistas do FEMEN são mulheres com treinamento especial, física e psicologicamente preparadas para implementar ações humanitárias de qualquer grau de complexidade e nível de provocação. As ativistas do FEMEN estão prontas para resistirem às repressões a elas impostas, e são impulsionadas unicamente pela causa ideológica. Nossa Missão é Protestar! Nossas Armas 338 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO são os seios nus! E assim o FEMEN nasceu e o sextremismo foi lançado.2 (FEMEN,© 2017 tradução nossa) Como fica claro neste excerto, o corpo aqui é significado como uma arma, assumindo papel ativo de protagonista. Ocorre, então, uma transformação do corpo feminino que, historicamente, foi visto como objeto passivo e muitas vezes vitimizado pelo poder masculino. (FEMENÍAS; ROSSI, 2009) Na Marcha das Vadias, movimento que, assim como a Femen, tem alcance transnacional, as manifestantes usam o corpo como instrumento de denúncia. No entanto, este grupo age intencionando, primordialmente, dar uma resposta à concepção misógina que tende a culpabilizar mulheres vítimas de estupro, alegando o uso de roupas “provocativas” ou atribuindo a elas o rótulo de “vadias”, o que na cultura do estupro é considerado como um incentivo ao crime. O termo slut/vadia foi adotado originalmente por um policial, em conversa com alunas de uma universidade de Toronto, nos seguintes termos: “Mulheres devem evitar vestirem-se feito putas a fim de não serem vitimizadas”.3 (CARR, 2013, p. 1, tradução nossa) A repercussão midiática deste pronunciamento machista resultou numa rápida reação contrária. A adesão de setores sociais variados é uma das peculiaridades deste movimento, pois além de mulheres feministas, acorrem às marchas: mães levando seus filhos, famílias, homens, transexuais, freiras e outros segmentos em vários países do mundo. Válido ressalvar que alguns grupos feministas mais tradicionais têm sérias críticas aos movimentos aqui citados e questionam a validade do uso do corpo como meio de protesto. (OLIVEIRA; KORTE, 2014) De qualquer forma, percebe-se, notadamente, uma tendência ao levantamento de questões que tragam à pauta o simbolismo do corpo feminino na 2 FEMEN is an international women’s movement of brave topless female activists painted with the slogans and crowned with flowers. FEMEN female activists are the women with special training, physically and psychologically ready to implement the humanitarian tasks of any degree of complexity and level of provocation. FEMEN activists are ready to withstand repressions against them and are propelled by the ideological cause alone. Our Mission is Protest! Our Weapons are bare breasts! And so FEMEN is born and sextremism is set off.. 3 Women should avoid dressing likes luts in order not to be victimized. Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 339 sociedade contemporânea e, inquestionavelmente, trata-se de reflexão necessária, senão imprescindível, para o avanço das relações entre os gêneros. Considerações finais Reitera-se, que atitudes e comportamentos agressivos dos homens em relação às mulheres no espaço público, constituem dispositivos difusos e sempre atualizados do exercício de controle social informal sobre elas. (MADRIZ, 1998) Representações sociais relativas aos crimes, criminosos e às “vítimas inocentes” reforçam que a casa é “o lugar” da mulher. Circular na esfera pública, sobretudo para desfrutar de atividades de lazer, demanda, por vezes, estratégias diversas de proteção a fim de reduzir riscos e possíveis ataques, especialmente os de natureza sexual, o que promove um reforço aos papéis tradicionais de gênero. Em diversos países do mundo ocidental, as polícias relutam ou não priorizam os crimes mais comuns que atingem às mulheres, sobretudo aqueles de cunho sexual, que apresentam muitas dificuldades na apresentação de provas materiais para a incriminação do autor. Por sua vez, os predadores sexuais, quando julgados e condenados, continuam afirmando-se inocentes ou alegando que se trata de sexo consentido. Valores machistas largamente compartilhados classificam dicotomicamente as mulheres em “honestas” e “desonestas”, “sérias ou vadias” em função do modo de vestir e se portar. No sistema de justiça, os operadores do direito, em geral, também não se afastam muito dos mesmos parâmetros. Ainda nesse sentido, torna-se válido acrescentar que a grande maioria dos crimes contra a mulher referidos neste trabalho, por ocorrerem no espaço público e serem praticados por desconhecidos, não se enquadram no escopo da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), uma vez que esta ampara legalmente e fornece mecanismos de proteção apenas às mulheres que sofreram abusos no âmbito doméstico e familiar. Esta legislação, ainda que represente uma inegável conquista na luta feminista, em defesa dos direitos humanos das mulheres, não fornece guarida àquelas que sofreram ataques sexuais perpetrados por estranhos em via ou local público. Nestes 340 A CIRCULAÇÃO DAS MULHERES NO ESPAÇO PÚBLICO URBANO casos serão aplicadas tão somente as disposições previstas no Código Penal e no Código de Processo Penal. Destarte, somando-se aos riscos e danos à saúde física e mental das vitimizadas, já enunciados anteriormente, instala-se uma perspectiva nebulosa das dificuldades a serem enfrentadas nas esferas policial e jurídica para que o ato criminoso seja investigado, julgado e finalizado com a justa punição aplicada ao transgressor. Fica evidenciada, assim, uma violência secundária, derivada da ineficiência exercida pelo aparelho estatal, cujo papel primordial seria o de resguardar o direito e a justiça na vida de suas cidadãs. Tomando como referência mudanças em relação às estratégias para aumentar a confiança dos cidadãos nas metrópoles, admite-se a falência dos agentes públicos, ao tempo em que se fortalece a presença de agentes não-estatais, os quais atuam com metas de segurança flutuantes e baseadas em inovações tecnológicas, o que não parece promissor às mulheres. No limite, esse movimento tende a reforçar valores sociais como a incivilidade, a intolerância e a discriminação nas ruas e praças. (CALDEIRA, 2000) É condizente com o desejo cada vez maior por segurança e com o aumento da desconfiança nas relações de sociabilidade. Processo ativo que clama por exclusões, levaria ao monitoramento crescente dos espaços públicos urbanos através da fabricação de imagens. Tais imagens/informações relativas aos habitantes de territórios delimitados provocariam outros medos e suspeitas, reafirmando-se que qualquer indivíduo pode ser um gerador de perigos, cuja configuração e intensidade variam a depender do observador. Um ambiente, controlado tecnologicamente, com farta produção de imagens aliado aos padrões de dominação masculina, poderia dar motivos para restringir o direito de ir e vir das mulheres. Câmeras poderiam mudar de alvo no sentido de prover outro tipo de monitoramento, voltado para o âmbito privado, por exemplo, e para o registro de cenas indiscretas a serviço de quem deseja pagar e dominar. Conclui-se que, da perspectiva feminina, formas de enfrentamento mais eficazes aos olhares e atos agressivos aqui expostos dependem da politização do problema protagonizada pelos movimentos de mulheres, tais como a “Marcha Mundial das Mulheres” e a “Marcha das Vadias” que se posicionam de modo radicalmente oposto aos estratagemas masculinos de acesso Ceci Vilar Noronha, Suzana de Magalhães Dourado 341 não consentido ao corpo feminino e têm pautado o direito das mulheres à circulação com segurança pelos espaços públicos das metrópoles. O âmbito de luta também se amplia na sociedade globalizada e os contatos instantâneos em redes podem favorecer a construção de alianças, inclusive com homens que se mostram contrários à mentalidade machista. Referências ABOIM, S. 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Agradecimentos aos integrantes do Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC-USP), do qual vários participaram da pesquisa que gerou esse texto (ver detalhes em FRÚGOLI JR., dez. 2012); sou também grato pelos retornos obtidos quando da exposição desse trabalho no GT “De cidades à cidade no Brasil: tempos e/ou espaços”, coordenado por Fraya Frehse e Julia O’Donnell (ANPOCS, out. 2014), especialmente os comentários de Mariana Cavalcanti, e no Colóquio Internacional “Disputas em torno do espaço público urbano”, ocorrido na UFBA (nov. 2015), incluindo os comentários de John Gledhill. 2 Para uma abordagem sobre relações entre proximidade e distância no contexto da metrópole, sob vários pontos de vista, ver Simmel (2013, 2006, 2005, 1983) e Joseph (2005). 347 em geral exigem de seus transeuntes cotidianos algum conhecimento prévio e atento de tais espaços.3 De um modo sintético, trata-se de uma área historicamente marcada por uma forte ocupação popular de suas ruas e moradias, com práticas de prostituição feminina (e mais tarde, de travestis), pequeno comércio, comércio informal e várias atividades ilícitas que dialogam há décadas com certo imaginário ligado à chamada “Boca do Lixo”, que entre 1960 e 1980 também concentrou, ali, a produção de filmes pornoeróticos.4 Tal como em outras áreas do Centro, encontram-se muitos cortiços, e desde os 1990, várias ocupações de edifícios por movimentos de sem-teto, residentes que no conjunto buscam se beneficiar da proximidade a diversos serviços e equipamentos urbanos, bem como de oportunidades de trabalho (ainda que informais e precárias). (AQUINO, 2009; FRÚGOLI JR., 2006; KOWARICK, 2007; RIZEK, 2011; PATERNIANI, 2013) Justaposto a esse contexto popular, configurou-se desde os anos 1990 o uso do crack em diversos espaços públicos da região, que aos poucos passou a ser identificada como “cracolândia”,5 termo ampliado pela própria imprensa, com forte estigmatização sobre a população local, fixando-se uma representação posteriormente aplicada aos demais lugares marcados por usos de crack em outras cidades brasileiras, apesar de escalas e densidades variadas. (FRÚGOLI JR.; SPAGGIARI, 2010) Tais usos recorrentes do crack ensejaram a partir de então uma série crescente de ações e intervenções por parte de múltiplos agentes – estado (em atuações muitas vezes conflitantes entre seus planos constitutivos), Organizações Não Governamentais (ONGs), igrejas etc. – com desdobramentos de longo prazo e em andamento, ligados à complexidade do tema. Tal região também abriga diversos espaços culturais, que ensejaram desde os anos 1980 uma série de iniciativas do poder público (sobretudo do 3 4 Para um approach etnográfico desses tipos de territórios, ver Arantes (2000) e Silva (jul./dez. 2009). Sobre narrativas da malandragem e da criminalidade na “Boca do Lixo” na literatura, ver Antônio (2002) e Joanides (1977); sobre a cinematografia dessa área, ver Barros e Lopes (2004) e Díaz-Benítez (2013); sobre territórios da homossexualidade, ver Perlongher (1987, p. 76-86). 5 Sobre tal configuração inicial, ver Uchôa (1996) e Mingardi e Goulart (2001). 348 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES governo estadual) voltadas ao fortalecimento de tais instituições, sem falar da criação de novos centros culturais (em edifícios em geral restaurados ou reformados para a ampliação de seus públicos frequentadores). (TALHARI; SILVEIRA; PUCCINELLI, 2012) Em meados dos anos 1990, tais iniciativas se desdobraram num projeto urbano de requalificação para uma área mais abrangente, denominado Nova Luz,6 cujas ações posteriores acirraram um quadro de conflitos, seja pelas polêmicas inerentes ao próprio projeto, seja pela tentativa de intervenção num contexto urbano com as características socioculturais e históricas já delineadas. Nesse sentido, o presente capítulo busca enfocar aspectos fundamentais de uma pesquisa etnográfica realizada nessa região, de caráter coletivo e partilhado, com linhas de investigação articuladas entre si, realizadas por integrantes do Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC), as quais coordenei e também participei. (FRÚGOLI JR., 2012) Pretende-se aqui sublinhar achados da pesquisa que, nas suas articulações e escalas, permitem um determinado olhar argumentativo sobre tal área da cidade de São Paulo, à busca de nexos e diálogos mais explícitos com outras pesquisas e temas recorrentes de análise sobre o contexto paulistano. Trata-se basicamente de tomar as cidades como contextos assinalados por linhas de força amplamente diversificadas e heterogêneas, em que o enfrentamento etnográfico constitui uma prática decisiva na reconstituição de redes de relações e conexões, dadas a princípio pelos próprios citadinos, em suas relações entre si e com equipamentos e artefatos urbanos. A investigação se assenta, portanto, em uma dada territorialidade, a partir das quais se possa investigar, de forma articulada, seus aspectos mais relevantes e recorrentes, que se abririam para aprofundamentos em múltiplas direções, mas cujo núcleo relacional permite concentrar dados resultantes de cruzamentos de recortes, que enfim configuram a cidade, em sua diversidade e densidade constitutivas. 6 Sobre o projeto, ver Prefeitura do Município de São Paulo (dez. 2005). Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_luz/201108_PUE.pdf>. Acesso em: 9 maio 2015. Heitor Frúgoli Jr. 349 Com base nessas referências iniciais, pretende-se abordar basicamente três âmbitos da presente pesquisa, voltados ao mesmo tempo a uma gradativa contextualização e argumentação, como se verá a seguir. A territorialidade itinerante da cracolândia Apesar de a região da Luz ser encarada pela ótica do abandono, a mesma é alvo, como já foi dito, de uma série de ações de entidades, de naturezas diversas, voltadas não apenas aos usuários de crack, mas a outros agrupamentos vulneráveis, eventualmente também envolvidos com o uso do crack: população de rua (incluindo crianças de rua), mulheres e travestis em situação de prostituição, catadores de material reciclável etc. Isso difere parcialmente do momento presente, em que é mais clara a presença do poder público, como se verá adiante. Uma das entidades com a qual houve uma significativa interação na pesquisa foi a “É de Lei”, que atua na área de redução de danos junto a usuários de crack, com ações nas ruas da região da Luz e um centro de convivência. Através do acompanhamento do atendimento da mesma, foi possível não apenas ver de perto muitas situações envolvendo tais usuários, bem como reconstituir um não usuários de crack, agentes de ONGs, religiosos, seguranças privados, policiais, residentes, transeuntes, frequentadores da região etc. Tais observações permitiram que aos poucos compreendêssemos essas relações – entre os usuários de crack, bem como desses com os outros agentes em questão – como uma modalidade de territorialidade itinerante,7 ligada a práticas espaciais que combinam fixação e movimento,8 com um epicentro na região da Luz, a partir da qual se dão ocupações flexíveis do espaço, a depender do tipo de intervenção a que tais agentes são submetidos; em 7 Ver mais detalhes em Perlongher (1987, 1991) – embora se sublinhe a componente espacial dessa conceituação e não se explore a ideia de código-território do autor (1987, p. 108-154), que enfatiza a proliferação identitária e se inspira em Deleuze e Guattari (1972, 1980). 8 O conceito de práticas espaciais se baseia em Certeau (1994); a pesquisa sobre usos de crack inspirou-se parcialmente em Bourgois (2003), embora com ênfase etnográfica nos usuários de crack, não nos drugdealers (por mais que, no contexto em questão, uso e tráfico se entrelacem(ver RUI ET AL., 2014); para uma abordagem aprofundada sobre usos do crack em diversos espaços, incluindo a Luz, ver Rui (2014). 350 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES períodos de repressão mais sistemática, passam a ocupar de forma mais permanente outros espaços da cidade (principalmente na área central), prática essa adotada, em escalas distintas, pelo menos desde 2000.9 Territorialidade é, nesse sentido, distinta de território, como ficou claro no decorrer da pesquisa, pois se o termo “cracolândia” é muito recorrente na mídia impressa, no local em questão, era mais comum ouvir menções aos próprios usuários, no caso os “noias”, ou seja, uma ênfase maior às pessoas do que a um espaço fixo específico.10 Como já dito, há outras entidades que estabelecem relações com atores sociais vulneráveis na região, cujas ações acompanhamos, cabendo aqui mencioná-las sinteticamente: as agentes do Grupo Mulher, Ética e Libertação (GMEL) e da Pastoral da Mulher Marginalizada (ligada à Igreja Católica), que atuam nas ruas junto às profissionais do sexo, na qual a questão do uso do crack tem se tornado um tema de preocupação crescente, seja pelo mesmo passar a ser consumido e traficado pelas mais idosas, em decorrência da gradativa diminuição de clientes, ou por ser consumido pelas mais novas, que barateiam a prática sexual (ou aceitam sexo sem preservativos) e com isso criam conflitos com as profissionais mais experientes. (SILVA, 2000, p. 54-63) Revela-se aqui uma territorialidade da prostituição que não coincide com a do crack, embora haja justaposições, por abranger mais claramente certos espaços públicos da região, como a Estação da Luz ou o Parque da Luz. Há também entidades ligadas ao campo evangélico que atuam nessa área, como a Comunidade Evangélica Nova Aurora (CENA), cujo atendimento (alimentação, albergue, atividades esportivas, alfabetização etc.) ocorre nas dependências da associação, voltado a um arco mais amplo de sujeitos – crianças de rua, prostitutas, moradores de rua, travestis e usuários de drogas –, com ações de resgate, restauração e reintegração, todas mediadas pela tentativa mais explícita de conversão religiosa. Posteriormente, a Igreja Batista 9 Conforme matérias publicadas na Folha de São Paulo já em 2000. 10 Noia deriva de paranoia, com referência a um estado mental decorrente do uso regular do crack. (FRÚGOLI JR.; SPAGGIARI, 2010) Tanto a presente pesquisa quanto a de Perlongher (1987) dialogam criticamente com o conceito de região moral (PARK, 1973), reconhecendo-se uma dimensão espacial recorrente de marginalidade, mas abrindo-se para a compreensão de dimensões de acirramento da mesma, e não necessariamente para possibilidades integrativas. Heitor Frúgoli Jr. 351 também criou na região uma ação assistencialista combinada à tentativa de conversão centrada nos usuários de crack, cujas atividades, voltadas à conversão e reabilitação para o trabalho, se concentram num espaço denominado “Cristolândia”. Em suma, há nessa região uma série de entidades distintas quanto a interesses de ação, estrutura de organização, captação de recursos, serviços oferecidos e formas de atuação dos agentes, que ocorrem tanto em locais de convivência como nas próprias ruas, sendo que as últimas interessaram mais diretamente à pesquisa, à medida que dão visibilidade aos diversos usos do espaço por sujeitos marcados pela vulnerabilidade (cujo uso do crack é uma prática recorrente, embora não totalizante), bem como permitem perceber aspectos relevantes da interação dos agentes de tais entidades com seus públicos-alvo, o que envolve basicamente tentativas de criação de vínculos de reciprocidade mais duradouros através da conversa, de orientações ou da doação de objetos ou folhetos informativos. Os trajetos recorrentes adotados por tais agentes permitem a reconstituição de toda uma territorialidade de usos do espaço. (SPAGGIARI; RODRIGUES; FONSECA, 2012; FROMM, 2014) Durante janeiro de 2012, novas tentativas ostensivas da polícia para retirar usuários de crack das ruas dessa região ganharam forte visibilidade da mídia impressa e também televisiva. Destacaram-se novos temas bem como questões mais antigas, com alcances variados, mas com crescente realce: a polêmica das internações involuntárias (almejadas pelo poder público e obstadas por profissionais da saúde), novas dispersões territoriais dos usuários de crack por diversos bairros (com prejuízo para o atendimento feito por distintas entidades locais, sobretudo ONGs), comportamentos defensivos das populações locais (alvos de fiscalizações e novas demolições pela prefeitura), articulações de ativistas contra a violência policial e pelos direitos humanos, investigações do Ministério Público Estadual sobre critérios e práticas das operações policiais em andamento, caracterizações mais precisas sobre os usuários de crack pela imprensa (incluindo mulheres grávidas, ou então parentes em busca de usuários na área em questão) e ações diversificadas e capilares do tráfico.11 11 Com base em diversas matérias nos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo ao longo de jan. 2012. 352 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES Ações como essas acarretam prejuízos consideráveis quanto à eficácia pretendida por aqueles que atendem aos usuários de crack, porque basicamente os impelem a se espraiarem por outros locais da cidade, numa circulação vertiginosa que interfere na própria capacidade de se estabelecer uma interação mais regular e pautada por vínculos de confiança. Já existem ali ações intersecretariais há um bom tempo. Foi o que ocorreu em 2005, durante a Operação Limpa (2005, organizada pela prefeitura) e durante a Operação “Centro Legal” (2009-2010, também organizada pela prefeitura), ambas de caráter repressivo aos usuários de crack (sem um combate ao tráfico propriamente dito), embora a segunda contivesse uma preocupação também ligada ao campo de saúde. A já citada operação de janeiro de 2012 – intitulada Operação “Sufoco”, pela estratégia de criar “dor e sofrimento” aos usuários de crack – por sua vez, envolveu articulações do governo municipal e estadual, cujas ações predominantemente repressivas resultaram num debate mais abrangente e nacional sobre a questão, incluindo questionamentos mais profundos sobre as práticas então ligadas à internação compulsória.12 O quadro mais recente, desde 2014, traz novos aspectos quanto à territorialidade local. A área em questão é hoje abrangida por dois programas do poder público, “De Braços Abertos” (prefeitura) e “Recomeço” (governo estadual), assinalados por concepções distintas quanto ao enfrentamento da questão do uso do crack, além de ligados a gestões com orientações políticas distintas. Configurou-se, em decorrência, ao invés das circulações incessantes anteriores, uma concentração significativa de usuários de crack na confluência da Alameda Cleveland com a Rua Helvetia, curiosamente chamada de “fluxo” – nome dado a princípio ao espaço daqueles que não aderiram ao programa “De Braços Abertos” – submetida a forte vigilância e repressão policial. (RUI et al., 2014) Trata-se de uma espécie de fixação territorial mais delineada, quando comparada a formas espaciais anteriores, ainda que incerta quanto à sua duração, com a existência de barracas e um conjunto de usos assinalados por hierarquias locais a serem melhor pesquisadas, sobretudo quanto ao papel desempenhado pelo tráfico de crack, bem como quanto à 12 Com base nas já mencionadas matérias dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo durante jan.2012. Heitor Frúgoli Jr. 353 quantidade de pessoas que ali chegam e permanecem, articuladas ao mundo das ruas, dos albergues e também das prisões.13 Outro desdobramento desafiante é uma busca criteriosa de comparação das chamadas “cracolândias”, cuja aventada proliferação das mesmas pelas metrópoles brasileiras exige uma atenção quanto à proliferação do próprio léxico. Mariana Cavalcanti e eu empreendemos, com base no conceito de territorialidade, uma abordagem a respeito nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo (FRÚGOLI JR.; CAVALVANTI, 2013): se no Rio é possível observar certa localização e migração das mesmas por diversos entornos de favelas, com base nas dinâmicas ligadas sobretudo à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) (BARBOSA, 2012), em São Paulo há uma permanência em torno da Luz, ainda que agora se fale de “minicracolândias” em vários bairros (CANCIAN, 2014), algo que, de toda forma, mereceria passar por crivos empíricos. Redes de relações entre moradores da região da Luz Outra dimensão captada na pesquisa sobre a Luz diz respeito a dinâmicas de relações entre moradores da região (FRÚGOLI JR.; CHIZZOLINI, 2012), bem como desses com outros sujeitos nos espaços públicos, além de se ter em vista, em ambos os casos, as relações dos agentes com os equipamentos urbanos. Apesar da significativa diversidade de arranjos ali existentes – cortiços,14 ocupações de sem-teto,15favela do Moinho16 – centramo-nos na observação mais detida de residentes de determinados edifícios com distintos graus de 13 Para uma reflexão recente sobre o contexto decorrente do programa “De Braços Abertos”, ver Rui (7 fev. 2015) 14 Sobre esse campo, há décadas trabalhadas pelas ciências sociais, e sem esgotar a bibliografia disponível, ver Kowarick (1988; 2007), Bonduki (1998), Kohara (1999) e Marques e Saraiva (2005). 15 Ver, a respeito do tema, Aquino (2009) e Paterniani (2013). Alguns militantes dessa região, principalmente os moradores da ocupação da R. Mauá, nos receberam e auxiliaram de forma substantiva na pesquisa, mas por estarem naquele espaço recentemente e por conta das prioridades políticas dos movimentos, suas redes de relações nos levavam geralmente a outros militantes, a outros movimentos de ocupação e a outros espaços urbanos. 16 Localizada no Bom Retiro, há anos em luta pela urbanização, e vítima de três grandes incêndios desde 2011 (Folha de São Paulo, 12 set. 2013). 354 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES precariedade, um tema menos tratado pela bibliografia com relação às formas de moradia na região central. Tal investigação teve início quando um residente que se dispôs a nos receber em seu apartamento, com o qual buscamos reconstituir novas redes e conexões locais (inevitavelmente parciais) formadas a partir dessa interação inicial. Ele era, na época, síndico do edifício17 – em diálogo com síndicos de outros prédios do entorno, para trocas sobre as experiências objetivando a realização de fins práticos comuns – habitado na maioria por migrantes nordestinos, além de asiáticos (coreanos e chineses), e não encarava os “noias” como uma real ameaça. Nessa época, ele se empenhava em fazer melhorias no prédio, mas passou a ter atritos com moradores (um número considerável deles ligados ao comércio informal das cercanias), o que culminou num episódio de agressões físicas que o levaram a renunciar ao cargo e, logo depois, a abandonar o local, por ter descoberto tardiamente que havia enfrentado um grupo que, simultaneamente, explorava o “comércio pirata” e o tráfico de cocaína a partir do prédio. No mesmo edifício, tivemos contato com um universitário, vindo do interior do estado, que morava ali há seis anos pela facilidade de acesso a equipamentos urbanos e disponibilidade de serviços e de lazer, além da própria história do lugar, compondo o que ele chamava de “cenário diversificado”. Tal visão positiva, contudo, não é partilhada por seus amigos, visto que muitos têm receio de visitá-lo pelo medo de serem assaltados por alguém do perímetro da “cracolândia”. Sua vivência no bairro lhe permite identificar detalhes referentes aos moradores em situação de rua, às pessoas alcoolizadas, aos próprios “noias”, aos traficantes locais, aos deslocamentos dos usuários de crack pelo bairro ao longo do dia e à dificuldade resultante de se delimitar de forma fixa onde seria a “cracolândia”. Evidencia-se assim, um significativo conhecimento da multiplicidade de situações do entorno, que envolve distintas estratégias de interação. (FRÚGOLI JR.; CHIZZOLINI, 2012) 17 Esse e os demais edifícios pesquisados e mencionados, a partir daqui, terão o nome e localização preservados, por questões éticas. Heitor Frúgoli Jr. 355 Chegamos ao segundo edifício novamente através do contato com um síndico, ligado à rede desses agentes há pouco citada, por meio de quem tivemos acesso a alguns moradores. É assinalável o contato prolongado que tivemos com uma senhora que faz doces e salgados sob encomenda e mora com o marido e o filho, além de ter uma filha em outro apartamento do mesmo prédio. Embora afirmasse desconhecer o bairro, o acompanhamento de suas caminhadas pela região – para entrega de encomendas, ida à igreja, supermercado, lotérica, padaria, visita a amigas etc. – revela uma significativa teia de sociabilidades. É comum inclusive certa interação com os usuários de crack – que já lhes eram familiares há 11 anos, desde que se mudara para ali –, com rápidas interações e por vezes pequenas doações, além de um conhecimento bastante preciso, e já mencionado, sobre os transeuntes em condições precárias: “noia”, homem de rua, um trabalhador que se embebedou etc. Isso realmente evidencia códigos mais abrangentes de identificação nos espaços públicos, uma espécie de sistema classificatório a partir dos quais se estabelecem critérios para relações corporais de proximidade ou distância em interações e situações cotidianas nas ruas. (AGIER, 2011; GOFFMAN, 1985; JOSEPH, 2005; SIMMEL, 2005) Cabe ainda assinalar, durante nossas interações com essa moradora, a menção à sua presença em uma reunião com Andrea Matarazzo – então Subprefeito da Sé e Secretário de Coordenação das Subprefeituras –, que incentivava que os síndicos dos edifícios da região promovessem melhorias substanciais nos mesmos, caso contrário a prefeitura o faria, mas por meio da desapropriação do imóvel. Tal reforma começara a ser realizada, mas sofria a resistência de parte dos inquilinos, que entendia que tais melhorias podiam vir a despertar interesses dos proprietários e elevação do preço dos aluguéis. Meses depois ocorreu ali o suicídio de uma senhora (que se jogou da janela), viúva e cujo filho era dependente de drogas e morava com ela, de forma intermitente, com desentendimentos crescentes entre ambos. Embora isso não pautasse necessariamente o cotidiano observado, é preciso admitir a ocorrência de uma série de conflitos marcados pela violência ao longo da investigação. Chegamos a iniciar a pesquisa de um terceiro prédio, onde nossa já mencionada interlocutora havia residido e no qual alugava um imóvel. Tal edifício 356 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES apresentava uma fachada bastante desgastada e havia grandes filas para uso do elevador. Vários moradores dali eram bolivianos e trabalhavam nos arredores (provavelmente nas confecções do Bom Retiro), além de outros que eram predominantemente camelôs.18 Naquele dia, fora possível conhecer um rapaz ligado à administração daquele edifício, que numa segunda visita, semanas depois, soubemos que fora assassinado. Há indícios de que a vítima estava envolvida com a compra e venda de apartamentos do próprio prédio, valendo-se de informações privilegiadas propiciadas pelo tipo de trabalho, o que causava atritos com outros moradores.19 Foi possível portanto captar um sistema de classificação acionado por muitos residentes locais na relação cotidiana com atores sociais das ruas, destinado justamente à identificação dos mesmos, o que se articula, em alguns casos, a estratégias de interação e de dádivas (principalmente dinheiro ou alimentos), sobretudo com usuários de crack, voltadas justamente à demarcação de novas distâncias. De certo modo, estamos frente a um sistema de moralidades, através do qual os residentes locais classificam e realizam interações muitas vezes incontornáveis nos espaços da rua, que é também regido, quanto aos agrupamentos em situação de rua, por determinados valores morais de conduta, como mostram várias pesquisas. (DE LUCCA, 2007; FREHSE, 2013; GREGORI, 2000; ROSA, 2005) Outra esfera considerável, ainda relacionada ao cotidiano de tais residentes, diz respeito à configuração de uma série de conflitos, que não se dão necessariamente em interações nas ruas, mas no próprio interior dos prédios pesquisados – ameaças, agressões físicas, casos pontuais de assassinatos e suicídios, tráfico de drogas, práticas ostensivas de especulação imobiliária, embates em torno de usos de recursos condominiais –, práticas essas que nos conduziriam às abordagens em andamento sobre ilegalismos, mercados populares e influências crescentes do mundo do crime, com fortes ressonâncias 18 Sobre migrantes bolivianos em São Paulo, ver (sem esgotar o assunto) Silva (1997) e Silva (2011a); sobre aspectos do comércio informal no centro de São Paulo e em outros contextos paulistanos, Frúgoli Jr. (1999), Silva (2011b) e Hirata (2014). 19 Em virtude de tal evento, preferimos interromper a pesquisa no local. Heitor Frúgoli Jr. 357 em diversos estudos urbanos recentes,20 que são potencializadas por dinâmicas de requalificação urbana, presentes no conjunto de intervenções urbanas em curso naquela região. Novas facetas de interação: o bar “Nova Luz” Pretende-se, por fim, apresentar uma observação detida de redes de relação em torno de um bar situado na região já referida, estabelecimento que poderia ter sido demolido pelas operações do projeto de intervenção urbanística “Nova Luz”, mas que além de contornar a ameaça, passou a se beneficiar de acordos posteriores com o próprio poder local. O proprietário de tal bar e de um time de futebol amador21 ali sediado conta com uma capacidade relacional significativa, visível nas relações com frequentadores locais, agentes do poder público, jogadores de “futebol de várzea”, moradores da região, integrantes de movimentos de luta por moradia e sujeitos mais vulneráveis que transitam por ali, incluindo vários usuários de crack, o que exemplifica uma participação situacional (CEFAÏ; VEIGA; MOTA, 2011) em diversos mundos sociais (VELHO, 1999) (e suas moralidades específicas) que, nesse caso, estão próximos territorialmente e conectados entre si. A etnografia detida desse contexto traz duas contribuições ao presente capítulo: a) uma complexificação de certo dualismo, que ressalta apenas os que são a favor ou contra intervenções urbanísticas em andamento na região; b) uma configuração popular que certamente dialoga com a informalidade, mas não necessariamente com o crime, algo que talvez passasse desapercebido caso olhássemos apenas para as dimensões razoavelmente marginais e violentas dessa região. A observação atenta desse bar da região da Luz, em diálogo com as outras investigações ali realizadas, permitiu apreender aspectos relevantes das redes de relação locais, sobretudo quanto à sua densidade de um ponto de vista 20 Atendo-me aqui apenas aos estudos sobre o contexto de São Paulo, ver Telles e Cabanes (2006), Feltran 21 Para uma análise sobre a formação de diversas redes de relações no contexto paulistano em torno de (2011), Telles (2013) e Cabanes (2014). práticas futebolísticas amadoras, ver Hirata (2005) e Spaggiari (2009). 358 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES intensivo – localmente circunscrito – bem como pela capacidade de exemplificar sínteses particulares de vários temas relevantes do lugar. Trata-se de um estabelecimento curiosamente chamado “Nova Luz”, mas cuja origem não guarda relação com o projeto do mesmo nome (embora possa evocar uma referência ambígua). É que o local é sede de um time de futebol amador, cujo nome original era Portuguesinha da Luz, mas que durante a disputa de um torneio perdera um jogo por W.O. (pois os integrantes não conseguiram chegar a tempo ao local) e fora eliminado. Tal ausência involuntária implicou mudanças posteriores, quando da disputa da nova edição do mesmo torneio, tendo sido preciso mudar o nome, daí a “Portuguesinha da Luz” ter se transformado em “Nova Portuguesinha da Luz” e, depois, “Nova Luz”... O proprietário desse bar é também o dono e administrador do time, que atua quinzenalmente em vários locais da cidade, assumindo a maioria das despesas, principalmente o aluguel do campo. Nascido no Nordeste, veio para São Paulo onde tentou seguir a carreira de jogador de futebol, tendo depois trabalhado como segurança privado e finalmente no comércio. Além de comerciante, é também morador de um edifício das cercanias, no qual já foi subsíndico. Além disso, colabora há alguns anos com um dos movimentos de moradia que atua na região central da cidade. Sua ligação com movimentos sociais do Centro também pode ser observada na própria composição do time Nova Luz, pois a maioria dos jogadores mora na área central e muitos participam das já mencionadas ocupações de edifícios por parte dos sem-teto da região.22 Por vezes há usuários de crack que adentram o bar, mas que são imediatamente rechaçados. Trata-se, no entanto, de frequência bem mais escassa quando comparada há anos atrás. Ele comentou não saber exatamente como eles conseguem ganhar dinheiro para o crack, embora mencionasse eventuais roubos, desmontes etc. De um modo geral, a referência aos “noias” ocorre nas conversas entre os integrantes do time (evidentemente não usuários do crack), muitas vezes em situações jocosas. 22 Uma parcela desses últimos, na maioria migrantes nordestinos, tinha também seu próprio time amador, representante de um dos movimentos da ocupação da Rua Mauá (o Movimento Sem-Teto do Centro, MSTC) e que mantinha, com o time do Nova Luz, alianças situacionais. Heitor Frúgoli Jr. 359 Como já dito, o bar quase foi derrubado em 2007. Na época, foram consultados advogados que provaram que a ação de fiscalização (que em certos casos antecede a desapropriação) fora fraudulenta. Assim, após quase perder o estabelecimento, e depois das demolições de casas, comércios e prédios nos arredores, a situação surpreendentemente melhorou, pois foi fechado um contrato com a prefeitura para o atendimento a quase trezentos operários que trabalhavam na reurbanização do local. No bar, cabem por volta de trinta pessoas, mas havia dias em que comiam oitenta ou mais operários, e já se pensava em convidar um grupo para tocar samba, o que ocorre em alguns locais do entorno.23 Um importante comentário à parte: é claro que tal habilidade de negociação e mesmo certa sorte não se estende a outros comerciantes dessa área, que foi alvo de várias demolições em 2007. Em meados de 2008, foi possível fazer alguns contatos: um deles estava há 14 anos no local, onde administrava um estacionamento, em um terreno alugado, cuja clientela era formada basicamente por lojistas e consumidores da Santa Ifigênia, além de funcionários de escritórios da região.24 Outra comerciante – nascida no Ceará e há 23 anos em São Paulo – perdera a lanchonete após sua desapropriação (que ocorreu um mês após a notificação), e ainda sem ter recebido a indenização, havia decidido abrir outro estabelecimento a algumas quadras dali, mas o negócio não ia bem. Ela então empregava uma pessoa – de Alagoas e há 26 anos em São Paulo – que anteriormente morava em um sobrado da região demolida, cujo andar térreo era usado como minimercearia; a desapropriação e derrubada da casa fez com que o marido ficasse sem emprego e que ela passasse a trabalhar então como funcionária; o dinheiro obtido com a indenização levou o casal a tentar a compra financiada de um apartamento em um conjunto habitacional em construção na periferia, enquanto moravam com os três filhos em uma quitinete da região. Retornando às redes de relação observadas no bar “Nova Luz”, revela-se um conjunto de questões significativas, principalmente quando relacionadas às outras linhas de investigação sobre a região da Luz, à medida que se trata 23 Sobre o tema, ver Aderaldo e Fazzioni (2012). 24 Tal local fora desapropriado pela prefeitura, sem qualquer resistência do proprietário, e na época esse comerciante lutava para obter na justiça uma indenização pelo valor do ponto comercial. 360 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES de um lugar que poderia ter sido demolido, mas que além de contornar tal ameaça, passou a se beneficiar de acordos com o poder local, o que complexifica certo dualismo, que tende a ressaltar apenas os que são a favor ou contra as intervenções urbanísticas locais em andamento. Parte dos integrantes do time é residente na região, a começar pelo dono, o que engloba participantes de ocupações daquela área, que embora criem relações bastante definidas pela agenda dos próprios movimentos de moradia, também se abrem para outras conexões. Cabe, portanto, constar que o contexto articulado pelas observações etnográficas, do próprio local, bem como de lugares e situações que se articulam ao mesmo, revela um quadro com configurações relacionais e decisões políticas que não coincidem necessariamente com o modo dual, polarizado e isolado que organiza em geral as narrativas sobre esse espaço urbano, nem são atravessados por uma organização que se relaciona diretamente com a criminalidade. Considerações finais A vinculação, ainda que não exclusiva, do presente trabalho às ideias de Certeau (1994) não é fortuita: trata-se de enfrentar questões relacionadas à capilaridade do poder e sua espacialidade, reconhecendo as contribuições de Foucault (1977), mas buscando captar procedimentos táticos infinitesimais cujas práticas disseminadas (para além de resistências ou inércias) são marcadas por discursos silenciados a serem desvelados através da investigação. Não se trata, portanto, de negar as posições defendidas por Foucault, mas de incorporá-las criticamente numa busca mais precisa de aspectos reveladores da agência humana. Desse modo, há uma atenção especial às articulações entre práticas espaciais (a mais elementar dessas, o próprio caminhar pela cidade) e os relatos sobre as mesmas, na busca de uma multiplicidade dos modos de apropriação do espaço praticado. (CERTEAU, 1994) Da mesma forma, alinho-me à perspectiva de submeter conceitos foucaultianos como biopoder (FOUCAULT, 1977, 2004) e heterotopia (FOUCAULT, 2013) a uma verificação etnográfica sistemática (AGIER, 2012, 2013), pensando na possibilidade de práticas inesperadas, inéditas ou dramáticas de Heitor Frúgoli Jr. 361 enfrentamento, através das quais não se nega a existência de um biopoder, mas que reformula os próprios termos do seu alcance efetivo.25 Nesse sentido, voltando ao contexto aqui pesquisado, é evidente que um certo grau de aspectos ligados ao mundo do crime26 se torna parcialmente visível, seja quando pensamos em determinadas redes de relação articuladas em torno do uso do crack, ou mesmo quando reconstituímos a vida cotidiana de residentes de determinados edifícios locais. Entretanto, os arranjos e redes reconstituídos principalmente no terceiro contexto pesquisado (que se justapõe espacialmente aos anteriores) revelam outras dimensões também constitutivas de uma sociabilidade popular e urbana que não incorpora, até onde foi possível observar, as mesmas dinâmicas ligadas à criminalidade. Assim, é preciso atentar para a diversidade de agentes cujas práticas múltiplas configuram a própria cidade, algo bastante visível numa região como a Luz, assinalada por uma densidade multifacetada de sujeitos, equipamentos urbanos, instituições e práticas de intervenção voltadas a diversos fins, com uma significativa historicidade ligada às classes populares, mas com presenças, práticas e circulações que ampliam sua diversidade interna, bem como incorporam outros marcadores sociais. A existência ali de territorialidades do uso do crack não engloba, apesar de seus impactos, todo o território ou espaço em questão, o que diferencia em alguma medida essa área central de regiões ou bairros mais periféricos, sobretudo aqueles ainda pouco consolidados em termos de infraestrutura urbana, com populações fragilmente organizadas do ponto de vista político-comunitário,27 em que as dinâmicas de pobreza, marginalidade e violência ganham contornos mais nítidos. Nesses contextos periféricos referenciais, emergem sujeitos que constituem um certo “limiar do urbano” e uma alteridade referencial para diversos estudos 25 Refiro-me aqui às pesquisas do autor sobre os campos de refugiados. (AGIER, 2002, 2013) Sua principal crítica se dirige a Agamben (1995, 1997) quanto às articulações abstratas e circulares entre biopoder e política, que equivocadamente prescindiriam de uma exploração empírica da questão dos sujeitos e da subjetivação política. (AGIER, 2012, p. 489) 26 Pensado como uma espécie de articulação que avança no espaço deixado pela crise do Estado e do mercado de trabalho, em diálogo com autores já mencionados, tais como Feltran (2011), Telles (jul./dez. 2013) e Rui (2014). 27 Ver, a respeito de distintos significados de pobreza urbana, Almeida, D’Andrea e De Lucca (nov./2008) e Marques e Torres (2005). 362 TERRITORIALIDADES MÓVEIS EM ÁREAS POPULARES sobre a cidade, incluindo evidentemente a antropologia, mas é também preciso atentar para outros agentes e arranjos que produzem a vida citadina, evitando-se um holismo centrado na marginalidade que pretenda abranger suas múltiplas experiências constitutivas. Referências ADERALDO, G. A.; FAZZIONI, N. H. Choro e samba na Luz: etnografia de práticas de lazer e trabalho na R. Gal. Osório. Ponto Urbe, São Paulo, n. 11, dez. 2012. Disponível em: <http://pontourbe.revues.org/1159>. Acesso em: 1 mar. 2017. AGAMBEN, G. Moyens sans fins: notes sur la politique. 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O estudo etnográfico dos processos de mudanças sociais e urbanas nas metrópoles estimula a reflexão sobre o direito à cidade. Em minha perspectiva, 369 me interessa indagar como certas construções institucionais, de caráter normativo, podem impactar a vida de determinados segmentos nestes contextos. O presente capítulo buscará focalizar certas restrições ao uso do espaço urbano no Rio de Janeiro. Particularmente aquelas impostas para sujeitos sociais que se ocupam da venda ambulante. Chamarei a atenção para o fato de que tais utilizações, quando autorizadas, são sempre consideradas de caráter “precário” para ambulantes e camelôs. Minha percepção é de que tais atores são imaginados por determinadas moralidades como “predestinados” a viverem sob limitações permanentes em termos econômicos e de direitos. Howard Becker, quando comenta Goffman e seu “Manicômios, Conventos e Prisões”, alerta para os riscos que nós pesquisadores corremos de naturalizar e utilizar as categorias veiculadas nos discursos das pessoas ou grupos detentores de poder. No exercício da antropologia, essa é uma questão que se coloca permanentemente. Daí desconfiarmos não só das palavras, como também das entonações. Tal exercício me levou a pensar na forma como se dá a naturalização do uso da categoria “precariedade” nos contextos por mim estudados, na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Particularmente no que se relaciona aos aspectos discursivos envolvendo marcos legais que limitam as atividades da venda ambulante. Minhas reflexões recorrem a dados construídos a partir de etnografias realizadas em duas regiões metropolitanas, em especial a do Rio de Janeiro,1 desde 2000. Dados comparados contrastivamente, envolvendo contextos de estudos sobre a venda ambulante também em Buenos Aires. Contudo, também tenho realizado etnografias onde recepciono práticas policiais, de órgãos e sistemas de controle urbano. Exercício que, por razões diversas, me levaram a me dedicar às leituras de doutrinadores do Direito. Particularmente de Direito Administrativo, mas não só. Esse conjunto de esforços tem me ajudado a enquadrar a questão que aqui pretendo abordar sobre algumas lógicas concernentes aos processos de administração de conflitos no Rio de Janeiro. 1 A Região Metropolitana é constituída de 21 municípios, sendo o principal entre eles a cidade do Rio de Janeiro. Em 2013, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contava com cerca de 13 milhões de habitantes (12.890.607) e é considerado o segundo maior polo de riqueza do país, após a RM de São Paulo, com um Produto Interno Bruto da ordem de 172,5 bilhões. 370 PRECÁRIOS E PERIGOSOS No Rio de Janeiro, particularmente na capital,2 há um conjunto de políticas voltadas para regular as práticas comerciais de rua. É razoavelmente conhecido, por exemplo, o repertório de ações da Prefeitura denominado sugestivamente por “Choque de Ordem”.3 Esta não é a única iniciativa. Mas, certamente, é a mais relevante na percepção dos meus interlocutores. Em linhas gerais, as práticas e discursos dos agentes estatais parecem fundamentados em significativo preconceito estético. Estas são amparadas por tecnologias envolvendo o emprego de equipamentos e táticas para controle e repressão de supostas incivilidades, como também formas específicas de territorialização das práticas sociais. Em seu conjunto, modificaram nos últimos anos a configuração dos espaços públicos da cidade. Alteraram de modo significativo, a meu ver, os padrões de sociabilidade da cidade carioca. Os lugares antes frequentados por diferentes classes sociais passaram a ser mais seletivos, constrangendo a participação de estratos considerados subalternos. Isso se deu através do encarecimento de mercadorias e serviços, assim como pela imposição de ritmos e padrões de relacionamento diferenciados em relação aos costumes antes verificados.4 Soma-se a isso as dificuldades de acesso em decorrência da oferta limitada de transportes públicos. Linhas de ônibus, que não se integram com outros modais, deixaram de circular em determinadas regiões da cidade ou, como é mais recorrente, interrompem suas circulações após certo horário. Vários espaços, assim, foram vedados a públicos constituídos pelos estratos menos aquinhoados da sociedade carioca, formado 2 A Cidade do Rio de Janeiro, além de ser a principal da Região Metropolitana com cerca de 7 milhões de habitantes, é a capital do Estado do Rio de Janeiro desde 15 de março de 1975. Naquele ano ocorreu a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, com base na Lei Complementar nº 20, de 1/7/1974. Esta última dispunha sobre a criação de estados e territórios e determinou a fusão dos dois estados. A Guanabra, criada em 1960, se restringia à cidade do Rio de Janeiro. Com a fusão a capital do estado se deslocou de Niterói para a outrora capital federal do país. 3 Patrocinado pela Secretaria de Ordem Pública da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, consiste em ações que buscam, de forma predominantemente repressiva, regular a utilização dos espaços públicos por vendedores ambulantes, moradores de rua e, eventualmente, por populares que disponham dos mesmos para entretenimento ou outras necessidades. 4 Neste ponto tanto faço alusão tanto aos preços praticados nos espaços de entretenimentos, como a imposição de padrões de gostos muito diferenciados, atendendo às estratégias de agentes do mercado musical e artístico de apresentar de maneira pasteurizada “o que é bom”, em detrimento dos espaços amplamente criativos que se observavam, sem maiores retalhamentos, entre as zonas norte e sul da cidade, passando pelo centro. Um exemplo é a proibição do funk em certos Lenin Pires 371 por trabalhadores de baixa renda e parte significativa da população desempregada. Foram, assim, descaracterizados enquanto espaços de convivência múltipla. Desta forma, se promoveu um pretenso reordenamento urbano. Predisposições foram forçosamente alteradas para os segmentos médios, como procurar imóveis para comprar ou alugar, em regiões da chamada zona sul. Com isso, abriu-se espaços para o predomínio dos chamados interesses de mercado, particularmente imobiliários. Transformações arquitetônicas e urbanísticas foram feitas, sem que tenha sido explicitado, de forma abrangente, um sentido universalista de ordenamento. Em outras palavras, a cidade não parece ser mais para todos. Os alvos principais das ações do “choque de ordem” foram e são, sobretudo, sujeitos representados enquanto marginalizados: moradores de rua, prostitutas, flanelinhas, ambulantes, camelôs, entre outros. Via de regra, são destinatários de estratégias de repressão. Numa hipótese feliz, estas se configuram em remoções das ruas para alguma instituição acolhedora. Mais comumente, porém, se praticam contra eles violências de ordem moral e física. Neste último caso, numa gradação de iniciativas que vão do constrangimento legal ao “esculacho”.5 Não, aleatoriamente, se pode ouvir falar em “limpeza” dos espaços urbanos quando as chamadas “operações”, conforme representado no termo nativo, retiram ou dispersam das ruas esses sujeitos ou grupos. Minha pesquisa se detém sobre comerciantes de rua e nas soluções estatais pensadas para o “problema da venda ambulante”. Seja através de sua erradicação ou do ordenamento seletivo de suas práticas ou de seus membros. Por outro lado, é crescente a delimitação de espaços circunscritos para essa atividade, em caráter transitório. Com diferentes dimensões e formatos, estes constituem “feirinhas”, “shoppings” ou “mercados populares”, mais conhecidos como camelódromos. Tais empreendimentos envolvem vidas e histórias, expectativas por viabilizar “sobrevivências”, como representado por alguns atores, ou mesmo estratégias de ascensão social. Mas também são iniciativas que promovem exclusões. Tais espaços também não estão livres da lógica 5 O esculacho, como demonstrei (PIRES, 2011), é um insulto insuportável que combina constrangimento físicos mas, sobretudo, morais. 372 PRECÁRIOS E PERIGOSOS repressiva a que fiz alusão. E, por isso mesmo, são também do meu interesse. Estar nestes lugares não garante, necessariamente, direitos. Para ilustrar essa minha última afirmação vou discorrer sobre dois casos. Neles, chamo a atenção para as relações entre formas territorializadas de organização para a venda ambulante, os conflitos daí decorrentes e para uma certa recorrência estrutural nas formas de administração dos mesmos. Para começar com o primeiro caso, retorno ao período em que Galego era presidente da Associação de Ambulantes da Praça Procópio Ferreira e parecia não saber o que passara naquela madrugada em que as barracas foram desalojadas. No fundo, porém, Galego sabia. Como um ativo representante de sua categoria, ele participara de reuniões de ambulantes na região do centro da cidade. Como vim saber depois, ele já havia sido alertado da situação pelos representantes dos políticos que volta e meia compareciam às reuniões. A pergunta dele pode ser traduzida como: com que “direito” eles fizeram isso? Uma resposta possível é: com o Direito que classifica as existências de práticas e vidas como aquelas enquanto precárias. Mas, adiante, voltarei sobre esse ponto. Naquele mesmo momento, enquanto Galego se via com uma mão na frente e outra atrás, Bezerra não se sentia incomodado. E citando-o, começo a narrar o segundo caso. Este último era Presidente da Associação do Comercio Alternativos da Central do Brasil. Ou seja, do camelódromo localizado a menos de 300 metros da área desobstruída pela ação conjunta da Polícia Militar (PM), Guarda Municipal e da Companhia Municipal de Coleta de Lixo Urbano (COMLURB). Diante dos acontecimentos com os outros comerciantes, ele dizia não se incomodar. Afinal, o camelódromo dele estava melhor estruturado. Não era aquele “mafuá”. Além do mais ele e os demais comerciantes atuavam na parte dos fundos do mesmo prédio da Central. Portanto, menos visíveis e capazes de incomodar determinadas expectativas estéticas. Entretanto, o que era decisivo no comportamento do então presidente, na época, era a certeza de que ninguém iria mexer com eles. Seus contatos políticos eram mais influentes na Prefeitura do Rio, como também no Governo do Estado. Além disso, era sabido que o verdadeiro “manda-chuva”6 da área era um Sargento da Polícia Militar. Bezerra era um 6 Expressão que significa liderança. Lenin Pires 373 “testa-de-ferro”7 leal e eficiente. Trabalhava diuturnamente na administração daquele espaço. Entretanto, poucos anos depois o pretenso presidente assistiu seu castelo de cartas ruir. Primeiramente com o assassinato do sargento em circunstancias atribuídas à “natureza do serviço policial”, conforme me foi dito por interlocutores mais próximos. Acontecimento que antecedeu o tensionamento sobre aquela região diante do “interesse público” em instituir o consórcio público-privado responsável pelo projeto “Porto Maravilha”.8 A área do camelódromo era desejada pelo consórcio para, por um lado, redimensionar o terminal rodoviário; por outro, para estabelecer um terminal de teleférico para o Morro da Providência.9 Ora, em decorrência de diversos interesses o terreno onde ficava o “camelódromo” despertou cobiças de pessoas mais influentes. E uma queda de braço desigual passou a ter lugar. Reuniões e mais reuniões foram realizadas, na tentativa de convencer os ambulantes a se retirarem do mercado que de tão institucionalizado que estava contava até com um supermercado pertencente a um comerciante coreano. No entanto, em meio às discussões, e em circunstâncias igualmente não apuradas, um incêndio no camelódromo acabou contribuindo para que o impasse fosse solucionado. Os comerciantes tiveram que deixar o local contra a vontade e se parte deles instalar no Mercado Leonel Brizola, cerca de 200 metros mais distante do terminal rodoviário e meio quilômetro em relação 7 Termo que designa pessoas que se apresentam como representantes proativos de uma outra pessoa que se sabe atuar na penumbra. Esta última, em situações de formulação intelectual, pode ser chamada de “eminência parda”. 8 O Porto Maravilha é um consórcio constituído pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e um conjunto de empresas privadas que, uma vez reunidos, buscam operar a chamada “revitalização” da área do cais do porto, na capital fluminense. Através da demolição de parte das construções existentes, remoção de moradores e aproveitamento de prédios antigos para novas estratégias de negócios, ele busca dotar aquela região de um novo sentido para exploração de negócios, considerando a introdução do Rio de Janeiro no calendário internacional dos grandes eventos e atrações internacionais de entretenimento. 9 O teleférico do Morro da Providência, construído com recursos do chamado Porto Maravilha, se assemelha àquele construído no Morro do Alemão, na zona norte da cidade, e se destina a possibilitar o acesso aos pontos mais elevados da localidade à população, de um modo geral. Ocorre, porém, que tem sido visitado por populares de outras localidades, interessados em fazer viagens panorâmicas sobre as favelas. Neste sentido, se insere como uma tecnologia capaz de promover visitas rápidas e distanciadas a essas localidades. Como, mau comparando, quem visita um parque ecológico e contempla a vida existente em dinâmicas estratificadas em uma combinação que envolve enquadramento e velocidade. 374 PRECÁRIOS E PERIGOSOS à principal avenida do centro da cidade.10 Um prédio de difícil acesso para o público e que em nada se pode comparar ao efervescente mercado do antigo camelódromo, estrategicamente posicionado entre a Central do Brasil e o terminal rodoviário Menezes Cortes. Os dois exemplos servem para pontuar uma característica estruturante das atividades de camelôs e ambulantes. Seja nas ruas, enfrentando os “choques de ordem” da vida, seja nos mercados onde são atingidos por “arregos”11 e achaques de toda ordem, vivem a incerteza de sua permanência no espaço e no tempo. É como me dizia um dos ambulantes associados ao camelódromo de Galego: “De um dia para o outro tudo acaba. É quando descobrimos que, na verdade, nunca tivemos direito a nada”. Um dia pode-se estar em um lugar; em outro, não. E isso porque, na percepção desses atores, eles são permanentemente objeto de diferentes expressões de violência física ou moral. Os conflitos envolvendo os agentes estatais e esses atores não são necessariamente ilegais. Mas a legalidade expressa é de um tipo muito instigante. Para se perceber sua natureza é necessário ajustar as lentes e entender sua correspondência com a noção de “precariedade” disposta na lei. Em minha experiência de pesquisas com populações marginalizadas tenho aprendido que há um domínio de conhecimento, no Brasil, que não declina das oportunidades que se apresentam para estabelecer enquadramentos, classificações, interpretações e juízos sobre os conflitos sociais. Nestas formas discursivas ele se constitui e se expressa enquanto poder. Esse domínio de conhecimento eu chamarei aqui, de maneira imprecisa, de “Direito”. Um conhecimento cioso de tudo classificar, tipificar e definir. Mas que, como argumentarei mais adiante, parece ter aberto mão de definir o caráter do que é “precário”. O Direito, em termos disciplinares, é um campo de conhecimento que estuda as relações entre a lei e a ordem social, em diferentes domínios. 10 Leonel de Moura Brizola foi governador do Estado do Rio de Janeiro em duas ocasiões. Entre 1982-1985 e 1990-1994. Político arguto, controverso, foi considerado durante muito tempo enquanto herdeiro da tradição trabalhista introduzida pelo ex-presidente Getúlio Vargas. Faleceu em 2006, no Rio de Janeiro. O Mercado com seu nome parece ser uma homenagem pelo fato dele, enquanto governador, ter se comprometido com a causa dos mesmos criando o primeiro dos chamados “camelódromos” na região da Praça Onze, no centro do Rio. 11 Arrego é como são chamadas as extorsões feitas por autoridades públicas, geralmente policiais, a guisa de negociação para a não aplicação da lei ou outra forma de sanção a disposição da autoridade pública. Lenin Pires 375 Também pode ser considerado o sistema de normas de conduta criado – ou sistematizado a partir de práticas sociais – e imposto por instituições voltadas para a regulação social. Contudo, tenho também aprendido que há segmentos profissionais e mesmo sociais que representam o Direito como um conhecimento que repousa nos códigos. E nestes termos uma ciência absoluta para a submissão e controle normativo da sociedade, independentemente de sua diversidade.12 Entretanto, para os antropólogos o Direito é, como opina Shirley (1987) muito mais do que consta em códigos assentados. Geertz (2002), por sua vez, sugeriu que o mesmo se constitui enquanto saberes locais que relacionam fatos e leis, configurando um determinado senso de justiça. Na experiência etnográfica se trata, portanto, de um objeto que deve ser construído com base na observação das relações éticas e morais que os indivíduos podem empreender, em maior ou menor grau, tendo como pano de fundo as normas e leis. O que envolve, portanto, as práticas ensejadas nos processos de esgrima do sistema de normas que regulamentam a vida social, seja para aplica-lo ou contorna-lo, como também seu ensino. Assim, eu entendo que existe um nível de tensão que corresponde ao ato de interpretar os fatos em relação a lei e, neste sentido, promover justiça. O exercício hermenêutico que pode fascinar mentes criativas que pensam o Direito como um conhecimento dinâmico. Mas parece existir um outro nível de tensão, no Brasil, que se superpõe a este primeiro. Quero dizer com isso que a interpretação dos fatos em relação as leis não é atividade autônoma. Ela pode se exercer acossada pela crença de que a lei deve ajustar os fatos. Não o contrário. A tensão entre esses níveis de compreensão das relações entre o que acontece no mundo e o mundo das normas, e seu desnivelamento material e simbólico no âmbito das instituições jurídicas e judiciárias, corresponde ao que eu chamo de “Direito” na reflexão que exercito aqui. Um campo de lutas que envolve diferentes sujeitos, hierarquicamente justapostos que disputam, 12 Aqui faço alusão a uma matriz específica do Direito, que pode ser representada como dogmática e positivista. Adversária, portanto, de visões mais críticas e inclinadas a uma perspectiva interdisciplinar para compreensão dos fenômenos normativos. 376 PRECÁRIOS E PERIGOSOS explicita ou implicitamente, a faculdade de interpretar a lei frente aos fatos ou os fatos perante a lei. Feita essa ligeira digressão, recorro a Walter Benjamin e à sua “crítica da violência”. Uma crítica que pode ser definida com base em suas relações com o Direito e a Justiça. A violência, nos termos do autor, pode ser pensada enquanto um efeito que interfere em relações éticas instituídas dentro de uma ordem jurídica. Esta última uma relação entre meios e fins, sendo a violência um “dispositivo” que se estabelece como meio. Como tal, pode se inclinar para o alcance de fins justos ou injustos. A questão de Benjamin é interessante. A violência pode ser considerada moral quando persegue fins justos? Através dessa pergunta o autor nos leva a refletir sobre as relações entre o chamado Direito Natural e o Direito Positivo, que surge da modernização das instituições ocidentais. Decorre de sua análise que o Direito Natural concebe a violência como legítima por ser capaz de fundar o poder do Estado. Logo, a percebe enquanto criadora. Para o Direito Positivo, que funda as instituições liberais modernas, ela só se legitima se tiver como corolário a preservação dessas mesmas instituições. Logo, de acordo com essa perspectiva, a violência tem um conteúdo conservador. Nem estamos no século XX, nem tampouco na sociedade de Benjamin. Mas a hipótese teórica do autor pode obter rendimentos interessantes para os contextos que analiso se a tomamos como uma idéia para pensar a violência sobre os comerciantes ambulantes como “dispositivo”.13 Ou seja, como meio de expressão de um modo específico de exercício de poder calcado numa forma de imaginar o Direito. Uma violência em termos morais e físicos que busca remover do espaço público aquilo que é “incerto, instável, duvidoso” ou, simplesmente, precário. Essa violência, ao mesmo tempo que parece potencializar uma representação estética de cidade – construindo no ordenamento uma imagética de relação ideal onde formas e cores são organizados e combinados para produzir 13 Emprego o termo fundamentado na noção desenvolvida por Michel Foucault para quem o dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos”. (FOUCAULT, 2000, p. 244) Lenin Pires 377 distinção social –, parece ter por sentido conservar o Estado. No caso, a tradição jurídico-repressiva do Direito brasileiro, que está solidamente representada na maneira como se organiza e se pensa a relação do Estado com a sociedade. Nela, a regra da igualdade é tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Foi como referiu Rui Barbosa, artífice de nossa primeira constituição republicana, em um momento de reflexão definitiva em que parece ter dado testemunho sobre a tensa arquitetura responsável pela passagem do antigo regime para a modernidade à brasileira.14 Quando falamos na tradição jurídico-repressiva proponho deslocarmos a atenção comumente dispensada ao Direito Penal (que possui código e processo) para depositá-la sobre o direito administrativo. Este último é o corolário normativo que regula a relação do Estado para com a sociedade. Entre outras coisas, disciplina os atos voltados para a autorização e concessão do espaço público, por exemplo, para ambulantes e camelôs. Neste diapasão, há determinados atos no âmbito administrativo que definem limites na possibilidade de concessão, autorização e, em decorrência disso, da utilização de determinados bens. Com isso, estabelece que seu usufruto tem caráter “precário” para comerciantes e camelôs. Mas por que precário? O que isso significa? Isso o Direito Administrativo, aparentemente, não diz. Supostamente ficaria a cargo do intérprete da norma exercitar uma compreensão de um determinado conflito, envolvendo atores específicos, em um contexto particular. Em meus primeiros movimentos para interagir com essa questão recorri ao dicionário de sinônimos da língua portuguesa. Nele, “precário” seria aquilo que é incerto, frágil, de pouca duração. Por isso mesmo instável. Mas será que é esse o mesmo significado para o Direito? Creio ser necessário indagar sobre o caráter indefinido do que é precário neste caso. Por que, como referi, nossa tradição legislativa, em sua associação com o pensamento jurídico-repressivo, não se propõe a deixar brechas e lacunas para o exercício criativo da sociedade na administração de seus 14 Faço alusão à celebre “Oração aos Moços”, palestra proferida em 1920 para estudantes de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na qual ele apresenta sua própria reflexão sobre as possibilidades de internalização dos valores liberais atinentes à igualdade formal na sociedade brasileira. Sobre o tema ver Teixeira Mendes (2004). 378 PRECÁRIOS E PERIGOSOS conflitos. É neste diapasão, portanto, que se reproduz o Direito com base na tensão a que fiz alusão, ajustando os fatos às leis e não ao contrário. Assim, ao se analisar os discursos que buscam regular a relação entre as pessoas e os bens, devemos considerar como possível que quando menciona a categoria “precário” o Direito Administrativo – sobretudo enquanto doutrina – não recorra ao dicionário, mas aos cenários dramáticos de construção de outros ramos do próprio Direito enquanto experiência social para, a partir do que é plasmado como categorias e conceitos,15 olhar para o mundo. Assumindo essa possibilidade enquanto perspectiva, a investigação me levou a uma discussão complexa sobre as distinções entre posse e propriedade que, por fim, apresenta uma definição sublimada de que a precariedade resulta da quebra do vinculo jurídico obrigacional existente entre um sujeito que detêm uma posse autorizada pelo seu proprietário. Em termos jurídicos, é quando alguém que possui a posse direta de uma coisa rompe o vínculo com aquele que, ao autorizar o uso, manteve a posse indireta. Assim, é a quebra da confiança entre o possuidor – que anteriormente exercia de maneira justa e direta a posse sobre a coisa – e o proprietário de quem partiu o desdobramento da posse que fará nascer nela, a propriedade, o caráter de precariedade. Para que a posse seja considerada precária, segundo a doutrina jurídica, é necessário que haja um vínculo obrigacional válido que possibilite o exercício regular da condição de possuidor e no momento do rompimento desse vínculo haja a resistência do possuidor em restituir a coisa devida. Logo, que este último que faz a propriedade se tornar precária, não permitindo que dela resulte direitos jurídicos, seja o usurpador da posse legítima sobre uma coisa. Em outras palavras, um sujeito que viola a confiança depositada ou a tolerância sobre sua posse temporária. Um indivíduo, portanto, potencialmente um invasor. Quero chamar a atenção, neste ponto, que a noção de precariedade no exercício imagético a partir do “Direito das Coisas”16 se remete a classificação 15 Aqui penso na utilização que Michel Foucault faz da construção do conhecimento a partir de sua interpretação de Nietzche, para quem é no embate entre dois elementos que surge a possibilidade do surgimento de um terceiro. 16 Direito das coisas “é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem. Tais coisas são, ordinariamente, do mundo físico, porque sobre elas é que é possível exercer o poder de domínio”. (BEVILACQUA apud GONÇALVES, 2002) Lenin Pires 379 do que é precário em função de um ato pretérito cujos efeitos levam a esta condição a propriedade. No âmbito do Direito Administrativo, porém, podemos encontrar um emprego alternativo da noção, consagrando uma representação de poder capaz de criar e, ao mesmo tempo, ser potencialmente conservadora. Por que ele funda uma noção de precariedade, no caso da possibilidade da utilização do espaço público por camelôs, antecipando o rompimento do vínculo. Isto é, classifica aprioristicamente como “precarizador” aquele sujeito para o qual sequer lhe foi creditado a confiança. Explico. Segundo a doutrina as leis municipais tendem a organizar a atividade comercial “devido a razões sanitárias e de defesa do consumidor” nas formas de concessão e autorização. Ambulantes e camelôs dependem de autorização para o exercício de suas atividades. Tais autorizações, porém, são dadas sempre a título precário e podem ser cassadas a qualquer tempo pela autoridade pública. Diferentemente das concessões que, ainda que tenham prazos pré-fixados, se instituem como modalidades de contratos. Mesmo que o “interesse público”, ou seja, do Estado se interponha, há necessidade de compensações ou redefinições. Nas autorizações como as que são expedidas para os camelôs e ambulantes dos camelódromos citados nestes textos, ou que estão correndo pelas ruas neste momento, os titulares, via de regra, não podem argumentar eventual direito adquirido. Mesmo que tenham recolhido impostos ou taxas, em função do exercício de suas atividades, não podem reclamar direitos. Os atos normativos que regem a concessão de espaço público para a atividade da camelotagem geralmente estipulam que “a autorização do ambulante ou camelô é pessoal e intransferível e concedida a título precário”. (SLAIBI FILHO, 2008) No discurso da doutrina,17 que rege boa parte de um direito administrativo não codificado, visa dar consequência a “atividades transitórias e irrelevantes 17 Assim se chama o corolário resultante dos estudos de pensadores, juristas e filósofos do direito que se debruçam sobre a teoria do direito, ou exercitnado a interpretação dos sistemas jurídicos positivos e a valiação de sua aplicação às relações sociais. A doutrina é, em termos práticos, um dispositivo que envolve, em certa medida, a elaboração da norma jurídica, sua interpretação e aplicação pelos tribunais. Os profissionais do Direito se relacionam com a doutrina na perspectiva de aclarar pontos que resultem obscuros envolvendo a intencionalidade do legislador, em um dado período histórico, combinado com a expectativa da sociedade por justiça. Neste sentido, se espera o estabelecimento de novos parâmetros, a descoberta de caminhos não refletidos e a apresentação de soluções justas para aperfeiçoamento do sistema jurídico. 380 PRECÁRIOS E PERIGOSOS para o Poder Público”. Ou seja, para o poder estatal. Bastando que ‘se consubstancie em ato escrito, revogável sumariamente a qualquer tempo e sem ônus para a Administração”. Tais autorizações, segundo um eminente doutrinador, “não geram privilégios contra a Administração ainda que remuneradas e fruídas por muito tempo, e, por isso mesmo, dispensam lei autorizativa e licitação para o seu deferimento”. (MEIRELES, 1990, p. 428) Aliás, por razões de Política da Administração, sequer interessa ao Poder Municipal a existência de tal norma que, se existente, poderá restringir a discricionariedade administrativa. A autorização somente está submetida aos próprios termos da norma que a prevê ou do despacho que a concedeu. Se houver norma, a ela ficará vinculado o despacho. (SLAIBI FILHO, 2008) A passagem acima me parece encapsular o sentido onde a reflexão voltada para conferir agilidade a ação do Estado na regulação do bem comum (o espaço público) parece desprezar que há outros intérpretes da doutrina, muitas vezes não tão ciosos do valor da equidade. Afinal, onde não há norma, o que pode restringir em limites aceitáveis a discricionariedade administrativa imposta pelos agentes do Estado? Assim, a autorização é considerada precária desde o início, declinando o estabelecimento de um vinculo obrigacional entre as partes balizada pela noção de confiança. Resta criativo conceber uma autorização que, ao mesmo tempo que se veicula, não é válida para criar obrigações recíprocas. Com isso, o autorizado parece um ser potencialmente transgressor. Logo, um ser desviante em essência e, portanto, passível da violência autojustificável em prol da preservação das autoridades e discricionariedade administrativas. O ato criador dessa “autorização-não-autorizada” me parece, em si mesmo, a violência capaz de fundar e preservar o poder do próprio Estado no seu efeito-demonstração, neste caso, sobre camelôs e ambulantes. É isso o que contém em germe essa categoria – a precariedade – que condena milhares de pessoas aos desígnios do próprio estado de, diuturnamente, aplicar-se para transformar essa relação em uma profecia auto-cumprida. Lenin Pires 381 Conclusão Creio ser prudente dizer a essa altura que o Direito no Brasil, enquanto sistema normativo, é extremamente complexo. As relações entre posse e propriedade, e dos agentes vinculados a essas dimensões que envolvem os homens e as coisas, são passíveis de classificações sofisticadas. Elas, porém, correspondem ao exercício do dever-ser. Nada a ver com o que se pode observar através das etnografias que fiz e faço. Com meu exercício no presente capítulo não quero, por um lado, negar tamanha complexidade inerente àquele exercício disciplinar. Por outro lado, não me interessa adentrar num debate epistemológico envolvendo esse conhecimento inserido no âmbito das ciências sociais aplicadas. O que proponho aqui, portanto, tem a ver com um aspecto que requer nossa imaginação. Por que, por exemplo, o espaço público é representado como limitado para os atores aos quais me refiro e não para outros? Por que o acesso a uma propriedade, por parte de um indivíduo que queira, por exemplo, estabelecer um comércio formalizado gera direitos e para um mercador de rua uma demanda por direito (e reconhecimento) não é possível? Por que ele adquire um status “precário”, representando sua atividade e sua trajetória, seus interesses, como algo não apenas incerto, instável mas, como sugeri, potencialmente transgressor? Como referi, o Direito Administrativo brasileiro não é codificado. Está vinculado ao que dispõe a Constituição Federal e com autonomia interpretativa das esferas políticas – União, Estados e Municípios – para sobre ele dispor. Isso significa que boa parte das coisas que aparecem neste texto, a maioria colocada entre aspas ou parênteses e, tanto quanto possível, referenciadas, são exercícios de doutrinadores. Ou seja, intérpretes legitimados e bem posicionados no campo do Direito, cujas contribuições ou glosas são apresentadas como corpus teórico a auxiliar as práticas de tomadores de decisão no âmbito judicial. No interior das administrações públicas, particularmente no Rio de Janeiro, é usual o temor que a autorização do uso do espaço público seja confundida com permissão, admissão, licença e até mesmo concessão. Em socorro a tal temor a doutrina propõe que a autorização “é ato administrativo discricionário, 382 PRECÁRIOS E PERIGOSOS unilateral, pelo qual se faculta, a título precário, o exercício de determinada atividade material, que sem ela seria vedada”. (BANDEIRA DE MELO, 1969, p. 493) De acordo com essa leitura, portanto, a precariedade rege a autorização que o município concede ao ambulante e ao camelô. Ao serem autorizados, portanto, confirmam sua condição desviante. A definição do que é precário nada tem a ver, portanto, com o que é incerto, inexato, instável. A precariedade se define em relação à necessidade do poder do Estado em se apresentar como dotado de “discricionariedade máxima” a se exercitar na relação com a sociedade, se expressando nas formas de afetação/desafetação do espaço público. O que nos leva a pensar, enfim, que precário não é o caráter da autorização/concessão, mas o próprio sujeito em seu direito a se reproduzir socialmente, através do acesso igualitário a utilização do espaço público. Segundo os discursos presentes na doutrina, entre as vantagens do Estado – representado aqui pela esfera municipal – figuraria a possibilidade de que uma autorização concedida por prazo determinado possa ser revogada antes do prazo. Pode ser previsto que se dê ciência ao autorizado da decisão do poder estatal. Mas isso não é obrigatório. Tal previsão pode visar tão somente não fragilizar o município no acionamento do devido processo legal a que se refere o art. 5°, LIV, da Constituição. Essa inclinação, neste caso, me parece coerente com a noção demonstrada por Ferreira (2005) para quem, analisando o âmbito do direito penal no Brasil e nos EUA, afirma que o processo entre nós é uma garantia do Estado contra o cidadão.18 Em outras palavras, o Estado se institui como o criador da imprevisibilidade na relação com parte de seus cidadãos. E por isso mesmo a violência conserva – ou confirma – a noção do Estado em relação a incerteza, a inadequação desse sujeito sem direito. O meu olhar distanciado, leigo, mas interessado, concebe o Direito, portanto, como um saber que persegue toda possibilidade de se posicionar e, neste sentido, exercer domínio sobre a sociedade. A partir do corolário existente das leis, em suas hierarquias de instâncias legislativas, de objetos, e sujeitos mais ou menos autorizados, o exercício interpretativo se arroga mesmo em 18 O autor analisou a recepção pelo direito brasileiro – inserido na tradição da civil law – de noções presentes na tradição jurídica da common law – como os Estados Unidos. Lenin Pires 383 ato de criação. Particularmente quando o que está em jogo é o complexo exercício de aplicar as regras da igualdade aos desiguais, na medida em que se desigualam, dando provimento a um senso específico de justiça. Pesquisando os camelôs do Rio de Janeiro, eu me deparei com o chamado instituto da precariedade. E percebi uma coisa. Esse instituto, embora seja estruturante nas discussões do direito administrativo e mesmo do direito civil, parecia carecer de definição. Isto é, o Direito tão cioso de tudo classificar, nomear, intervir, para melhor interpretar, parecia ter se descuidado de uma definição. Mas como espero ter demonstrado, isso é apenas uma ilusão. Estamos lidando com uma forma sofisticada de exercício de poder, onde não estabelecer um padrão é, por excelência o padrão que permite, vez por outra, o recrudescimento de formas violentas de lidar com cidadãos que, a priori, são precários em sua própria existência. Referências BACKHEUSER, E. Comércio ambulante e ocupações de rua no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano 6, 1, p. 3-29, jan./mar. 1944. BANDEIRA DE MELLO, O. A. Princípios gerais do direito administrativo.Rio de Janeiro: Forense, 1969. v. 1. BOURDIEU, P.Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998. CANELLAS, L. 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Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 386 PRECÁRIOS E PERIGOSOS Maria Mercedes Di Virgilio Mariano Perelman DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES Introducción Este escrito tiene por objetivo contribuir a la comprensión del modo en el que se producen las desigualdades sociales en Buenos Aires. Para ello nos centraremos en las dinámicas territoriales de la ciudad que se expresan, en parte, en los modos conflictivos de construcción y apropiación desigual del espacio urbano. Se analizan tres postales en las que es posible observar las dinámicas, narrativas y procesos de interacción social entre diferentes grupos sociales a través de y en los que las desigualdades se (re)producen: la ocupación de tierras en el parque Indoamericano en el sur de la ciudad a fines 2010, la presencia de recolectores informales de residuos en las calles de los barrios de clase media y alta, y la existencia de personas en situación de calle en los barrios céntricos de la ciudad. En la primara de las postales nos centramos en el habitar y nos 387 adentramos en los conflictos por el acceso al suelo urbano. En el segundo caso, es el circular por la ciudad lo que se pone en el centro de indagación. Nos enfocamos aquí en los modos en los que ciertos grupos sociales acceden (o buscan hacerlo) a la Ciudad de Buenos Aires, en las pugnas por el uso del espacio, en el modo en que se construyen la territoralidad y los órdenes urbanos. En el tercero, abordamos las dinámicas concomitantes del circular y el habitar tomando como base la experiencia de las personas en situación de calle. Los modos de habitar, transitar y circular en la ciudad –en tanto ámbito de reproducción social- contribuyen a (re)producir las desigualdades socio-urbana. Las desigualdades se construyen con base en elementos materiales y simbólicos, históricamente producidos y social y territorialmente contextualizados. Las desigualdades son socialmente producidas y tienen manifestaciones y articulaciones espaciales claras y, a su vez, se nutre de ellas. Las manifestaciones y articulaciones espaciales de la desigualdad se ven afectadas por la doble naturaleza del territorio: territorios fijos y territorios móviles. (SACK, 1986) La desigualdad, como dice (REYGADAS, 2008, p. 12) no puede comprenderse al margen de las relaciones de poder que operan en diferentes niveles y dimensiones de la vida social. De acuerdo con esta perspectiva relacional, la distribución de los bienes ocurre en el marco de configuraciones estructurales y de interacciones entre diversos actores, en la que se disputan las apropiación de esos bienes. En la sociedad capitalista, la estructura de clases y la estructura urbana constituyen, por excelencia, los marcos de la disputa. Los casos que se presentan permiten comprender las dinámicas territoriales de la ciudad y son entendidos en el contexto de un proceso socio-histórico de experiencia de clase que permite dar cuenta de los rasgos de la urbanización de la ciudad así como los imaginarios y disputas sobre el espacio como lugar de vida y de trabajo. Mirando los casos en su conjunto es posible dar cuenta de una matriz de desigualdades que recupera los diferentes modos en los que las personas de menores ingresos pugnan por el acceso y el uso del espacio urbano y en el que sectores medios y altos actualizan su capacidad de incidir sobre éste. Los tres 388 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES casos, entonces, habilitan a pensar tanto las modalidades de tolerancia y rechazo “desde arriba” así como las estrategias, manipulaciones y luchas “desde abajo”. Daremos cuenta de que los modos de acceder, permanecer y transitar la ciudad –en tanto lugar para acceder a la reproducción social– contribuyen a (re)producir las desigualdades sociales. Entendemos que la desigualdad se construye tanto en base a elementos materiales como simbólicos históricamente construidos y socialmente contextualizados. Los casos analizados en este trabajo permiten, asimismo, recuperar las narrativas de la desigualdad, al mismo tiempo que las producciones de sentidos en torno a los conflictos por el orden urbano. El texto contribuye a entender los modos en los que se construye la legitimidad de las apropiaciones más o menos estables del espacio urbano en Buenos Aires. Estos distintos modos de legitimación y los conflictos territorializados en torno a ellos permiten, a la vez, advertir las diferencias que existen en los sectores subalternos. Finalmente, mostraremos que si bien existen “habitantes más legítimos que otros”, unos y otros no son siempre los mismos en términos de clase, género y nacionalidad. Los casos también iluminan, también, la complejidad y las diferentes temporalidades de los procesos de desigualdad, en especial en las desigualdades con una fuerte base urbana. Para indagar sobre las desigualdades urbanas, particularmente sobre el modo en el que estas se producen, mantienen y se impugnan (al tiempo que se refuerzan), los conflictos que se estructuran en relación a cada uno de los casos a analizar constituyen una pieza clave. Dichos conflictos buscan redefinir permanentemente el orden urbano entendido como un conjunto de normas y reglas tanto formales (pertenecientes a alguna jerarquía del orden jurídico) como convencionales a las que recurren los habitantes de la ciudad explícita o tácitamente a través de prácticas de uso y apropiación de los espacios y bienes públicos o de uso colectivo que, más allá de la vivienda, son los elementos constitutivos de la ciudad. (DUHAU; GIGLIA, 2004, p. 258) En este sentido, es posible pensar al orden urbano como un orden moral – o con una moralidad hegemónica – y con fronteras sociales, simbólicas que lo delimitan. En el espacio urbano es posible reconocer la existencia de fronteras simbólicas, en tanto distinciones y clasificaciones hechas por los propios actores sociales para categorizar objetos, personas, prácticas y espacios. Esas categorizaciones –sustentadas en valores morales– producen identificaciones hacia adentro y diferenciaciones frente a “otros”. Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 389 Conflictos por el habitar: el Indoamericano La vivienda es un componente básico de la calidad de vida de las personas y de los colectivos. El habitar va más allá del hábitat o de la vivienda, pero ella tiene un rol central. Según Giglia (2012, p. 13) el habitar es un conjunto de prácticas y representaciones que permiten al sujeto colocarse dentro de un orden espacio-temporal, al mismo tiempo reconociéndolo y estableciéndolo. Se trata de reconocer un orden, situarse dentro de él, y establecer un propio orden. Es el proceso mediante el cual el sujeto se sitúa en el centro de unas coordenadas espacio-temporales, mediante su percepción y su relación con el entorno que lo rodea. El habitar, dice Cosacov (2014), es una constante lucha por un tipo de apropiación del espacio, a partir de un tipo de tenencia de bienes patrimoniales, como así también un derecho a transitar y hacer uso del espacio más o menos libremente. Según la autora, resulta de vital importancia tener presente la localización (el barrio) en el que se habita ya que ésta habilita o restringe usos y consumos. Así, la vivienda (y el barrio como extensión) se configura como un punto de referencia ineludible sobre el que se generan apropiaciones locales y globales de la ciudad. Acceder a una vivienda en la Ciudad de Buenos Aires no es cosa sencilla. Tener acceso a la vivienda se torna central no solo en tanto posibilidades de apropiación de la ciudad sino también, como ámbito productor de la experiencia urbana. Los datos del último censo nacional (2010) pusieron en evidencia la gravedad del problema del acceso a la vivienda en la Ciudad de Buenos Aires: actualmente en la Ciudad 142.924 hogares desarrollan su vida cotidiana en condiciones habitacionales deficitarias. En esos hogares conviven 470.966 habitantes que representan al 16,7% de la población porteña.1 Además de las cifras, otra de las expresiones más evidentes del déficit habitacional en la Ciudad es el conflicto en torno a los escasos espacios y 1 Para un análisis del déficit habitacional en Buenos Aires ver Di Virgilio y Rodriguez (2013). 390 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES predios vacantes susceptibles de ser ocupados. Algunos de ellos dramáticos,2 como son las veredas o, incluso, parques públicos. Quizá el caso más difundido en los últimos años haya sido el del Parque Indoamericano. La experiencia del Indoamericano, en diciembre de 2010, mostró crudamente que el déficit habitacional no era sólo una cuestión de guarismos en el censo de ese mismo año. Puso en evidencia que habitar la ciudad para las familias de menores ingresos parece ser un derecho negado. El Indoamericano está localizado en el sur de la ciudad, en el barrio de Villa Soldati. Asentado sobre los terrenos de la antigua quema municipal, su origen es tributario de las intervenciones urbanísticas que la última dictadura militar llevó adelante en la ciudad. La construcción del parque se puso en marcha en 1977 durante la dictadura cívico – militar. El puntapié inicial fue el cierre de la quema y la implementación de un nuevo sistema de tratamiento de basura a cargo del CEAMSE (Coordinación Ecológica Área Metropolitana Sociedad del Estado). A partir de entonces, se propició la recuperación de los terrenos y su refuncionalización como espacios verdes. En ese marco, se inició la construcción del parque. En 1978, el entonces intendente de la Ciudad durante dictadura, Osvaldo Cacciatore, impulsó un monumental proyecto para la parquización del predio, la construcción de un parque de diversiones y uno zoofitogeográfico. Sin embargo, se inauguró solamente el de diversiones, quedando truncos los planes de creación del parque zoofitogeográfico. Sólo se construyeron los piletones que serían utilizados para abastecer de agua al parque.3 Recién en 1995, se inaugura lo que se conoce actualmente como Parque Indoamericano que fue incluido en el plano oficial de la ciudad en 1999.4 Sin embrago, el estado del predio no se modificó merced al constante arrojo 2 El adjetivo dramáticos alude a que la ocupación de dichos espacios pone en evidencia las situaciones desesperantes y límites por las que atraviesan las familias de menores ingresos que no logran satisfacer sus necesidades de vivienda. 3 Los terrenos luego abandonados, hoy son parte de la villa miseria Los Piletones. 4 El proyecto había sido elaborado en 1993 por Carlos Louzán. Ver Ordenanza Nº 52.273BOCBA 426 Publ. 15/04/1998; Ver Diario La Nación, 03 de agosto de 1999 “La ciudad ya tiene nuevo mapa”, Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 391 clandestino de containers de basura y la contaminación del predio.5 Fueron muchas las iniciativas y los anuncios de recuperar el parque. Pese a ello, para el año 2005, el área seguía sin ser recuperada. (DI VIRGILIO et al., 2011) En diciembre de 2006, se inauguró el Paseo de los Derechos Humanos6 para conmemorar a las víctimas del terrorismo de Estado, que como gran parte del predio, fue a posteriori nuevamente descuidado.7 En 2007, la Corporación Buenos Aires Sur (CBAS) construyó allí una serie de infraestructuras en el inmenso predio que pretendía emular el ambiente palermitano en el sur de la ciudad.8 A pesar de ello, la suerte del predio no cambió demasiado, intento tras intento, nunca logró ser recuperado en su totalidad. Figura 1 – Localización del Parque Indoamericano Fuente: Ministerio de Desarrollo Urbano (2010) 5 Tanto fue así que en el año 2004 la legislatura Declaró en estado de emergencia ambiental al parque Indoamericano. 6 Diario Clarín 11 de diciembre de 2006, “Un nuevo espacio verde dedicado a la memoria”; Diario La Nación, 12 de diciembre de 2006, “Una plaza por los derechos humanos”. 7 Diario Página12, 9 de diciembre de 2010 “El Indoamericano, el segundo más grande”. 8 En alusión a los Bosques de Palermo, ubicados en el barrio de Palermo en la zona norte de la ciudad. 392 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES La toma y los conflictos por el habitar Fue ese espacio, que en sucesivas oportunidades intentó ser civilizado por la parquización, el que fue tomado por un centenar de personas afectadas por la crisis estructural de vivienda de la ciudad. La toma fue relativamente corta, duró apenas una semana. Sin embargo, en ese breve tiempo, se produjo una fuerte represión, muchas personas resultaron heridas y se registraron 3 víctimas fatales. Asimismo, la violencia desatada, en su dimensión material y simbólica, tuvo expresiones elocuentes en todos los medios de comunicación de cobertura nacional (diarios Clarín, La Nación, Página 12, entre otros), dejando al descubierto las marcas de violencia asociadas al conflicto por el habitar. El episodio del Indoamericano permite revisar la construcción discursiva de las formas legítimas de habitar la ciudad. Si bien, la ocupación de tierras no es una cuestión novedosa en la Ciudad de Buenos Aires, no todas las formas de ocupación parecen ser aceptadas o toleradas.9 Como atañe a todo bien, el acceso a la vivienda está sujeto a valoraciones socialmente construidas acerca de las formas legítimas de apropiación y las que no lo son. (REYGADAS, 2008) Si bien toda toma de tierras supone confrontar con el instituto de la propiedad privada individual como modo hegemónico de apropiación del suelo urbano y con el mercado formal como mecanismo –también hegemónico– de acceso (ARQUEROS MEJICA, 2013); en algunos casos –como es el de las viejas villas de la ciudad– dicha confrontación es socialmente tolerada. A nadie le inquieta demasiado la presencia o el crecimiento exponencial de la Villa 3110 –en términos de población y de densificación edilicia–, ni el de las otras 17 villas consolidadas que existen en la ciudad.11 De este modo, 9 De hecho, los procesos de toma de tierra vacante se desarrollan en la ciudad desde fines de la década de 10 Las villas son ocupaciones de tierra urbana vacante que producen tramas urbanas irregulares. Es decir, 1930. Son éstos los que dieron origen a las villas de emergencia. no se trata de barrios amanzanados ni integrados a la ciudad formal, sino organizados a partir de pasillos por los cuales generalmente no pueden pasar vehículos. Su desarrollo responde a prácticas individuales y diferidas en el tiempo – a diferencia de otras ocupaciones protagonizadas por colectivos más o menos integrados que proceden planificadamente. En la Ciudad de Buenos Aires, se asentaron habitualmente en tierras de propiedad fiscal (Cravino, 2001). La Villa 31 es una de las villas actualmente más pobladas y de mayor superficie de la Ciudad de Buenos Aires y se localiza en el barrio de Retiro – uno de los barrios en los que el precio del m2 es el más caro de la Ciudad. 11 En cierta medida las villas siguen siendo la expresión – al menos en los imaginarios sociales- de la pobreza. Sin embargo, como lo han demostrado las tomas de tierras en la ciudad, ellas dan cuenta no sólo de Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 393 es posible pensar que la toma de tierras en las villas ha sido históricamente construida como el mecanismo legítimo de acceso informal al suelo urbano en la Ciudad de Buenos Aires versus nuevas formas de apropiación del suelo que tienen como escenarios áreas de la ciudad no previstas para tales fines. La ocupación de tierras, en general, y las villas, en particular, ocupan un lugar estigmatizado en la producción discursiva de los medios de comunicación. De hecho, “el discurso de La Nación [sobre las villas] trabaja sobre el paradigma de la carencia y el atraso, enmarcado en un discurso legalista –condición de producción: la justicia liberal burguesa– de control, de denuncia, de indignación; y miserabilista (GRIGNON; PASSERON, 1991) en términos culturales. Por eso, en su discurso las villas son un problema a resolver por parte de las burocracias de estado. Y la denuncia, construida en forma miserabilista como una pobreza de la cultura, reproduce discursivamente aquello que pareciera, quiere combatir: la situación de miseria de los sectores populares. Entonces, todo lo que tienen es miserable, en su abundancia o en su carencia”. (DUKUEN, 2009, p. 149) Sin embargo, ese lugar de otredad se exacerbó en el conflicto del parque Indoamericano. No solo por el papel que jugaron los medios sino, también, porque los vecinos – muchos de ellos villeros – devinieron en ilegítimos en cuanto al modo de acceso al suelo urbano. La construcción de formas legítimas de ocupación así como aquellas que se impugnan supone la puesta en juego de diversas materialidades discursivas un problema relativo a la pobreza sino al mercado formal e informal de vivienda. Sin duda las tomas no pueden desvincularse del problema habitacional que tiene la ciudad (Cf. por ejemplo Fairstein et al., 2012). Según Cravino (2011) existe un agotamiento de un ciclo de crecimiento de las villas. “Todo esto sucede en el marco en que muchos habitantes de la ciudad se ven desplazados a estos barrios por no acceder a una vivienda en el mercado y por la falta de programas de vivienda o el desfinanciamiento de los existentes”. Los datos relevados en el último Censo Nacional realizado en octubre de 2010, muestran que el crecimiento de la población en la ciudad fue de 4 %, en villas y asentamientos fue de más de 50 % con respecto al realizado en 2001. De hecho, el 50 % del crecimiento total de la ciudad se debe al incremento poblacional en villas. Pero además, como sostiene Cravino (2011), las trayectorias habitacionales han mutado profundamente: si durante la década de 1990 se llegaba a casa de parientes o paisanos y luego de un tiempo se ocupaban lotes vacíos, si cuando se agotó el suelo a ocupar se comenzó a construir en altura, esas posibilidades se han agotado. Los inquilinos no pueden adquirir una vivienda y deben buscar otras formas de adquirir una vivienda. Ahora, este proceso no puede comprenderse si no se tiene en cuenta, también, el alza en el precio promedio del suelo (del “mercado formal”) que pasó de U$S 550 por m2 en 2001 a U$S 1.285,6 en 2010. Esto también es observable en el alza de los precios del alquiler y venta de locales, casas y departamentos. Ello se entrelaza, por supuesto con los modos legítimos grupalmente construidos. 394 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES transmisoras de sentidos sobre la acción y sobre el reclamo que acompaña a esa acción. ¿Cuáles fueron esas materialidades discursivas –discursos, gestos, imágenes, etc.– que acompañaron la toma del Indoamericano? ¿Qué redes de clasificación u ordenamiento jerárquico se construyeron con base en ellas? Tanto en el trabajo de campo como en la lectura de los medios es posible distinguir los distintos actores del conflicto: por un lado, las personas que viven en las zonas aledañas a la toma, los denominados vecinos. Ellos constituyen un grupo heterogéneo de nivel socioeconómico medio-bajo, que se siente afectado al ver en la toma una salida simplista a los problemas para acceder a una vivienda. Conviven, en la construcción mediática, con una sensación de miedo a que la ocupación se extienda hacia sus propiedades, por lo que se pide una solución a los gobiernos. Asimismo, los medios hacen referencia a los ocupantes, personas marginadas que provienen, en buena medida, de países limítrofes cuyos problemas laborales y económicos los llevan a impulsar estas iniciativas. Entre los ocupantes, algunos medios, identifican a los oportunistas que teniendo en su posesión terrenos fuera del parque se dedicarían a lotear y vender parcelas a los que no consiguieron asentarse. (LAGRUTTA, 2012) De este modo, el conflicto del parque Indoamericano se estructuró en torno al enfrentamiento entre categorías sociales dicotómicas: ocupantes vs vecinos, usurpadores vs vecinos, manifestantes contra policías (aun cuando en algunos casos se habló de familias y vecinos para referirse a quienes permanecían dentro del Parque). Esta polarización primó y muy pocos medios mostraron la heterogeneidad propia de estos colectivos o dieron cuenta de la existencia de terceras posiciones en el ámbito de lo social. Esa presentación de los hechos y actores en clave de los unos vs los otros opacó la pluralidad de las manifestaciones sociales y reforzó interpretaciones de la realidad en las que la definición de una parte conllevó la definición negativa de la otra (principio de tercero excluido). (Observatorio de la Discriminación en Radio y Televisión, 2010,sin dato de página) También los vecinos cuestionaron a los tomadores. Las tomas no son la única opción para el acceso del suelo urbano, sino la elegida por algunos ante Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 395 condiciones específicas. Todos los tomadores que entrevistamos y visitamos se consideraban legítimos o, al menos, argüían fundamentos legítimos para tomar el parque. La mayoría de ellos remitían a la imposibilidad de acceder a una vivienda. Para los que vivían en las cercanías del parque, los que buscaron obtener un terreno en el parque, fueron vistos como tomadores. De hecho, existieron importantes conflictos entre unos y otros. Muchos vecinos y tomadores dicen que los primeros se armaron y dispararon contra los segundos. Desde la perspectiva de los vecinos, los ocupantes no pueden tener sus mismos derechos, aún cuando estos estén consagrados en los marcos normativos. Los derechos están reservados para los habitantes de la ciudad, nativos y trabajadores, no para los ocupantes (aun cuando éstos padezcan las mismas necesidades habitacionales). Son los habitantes legítimos los que merecen ser considerados ciudadanos. Este proceso clasificatorio y de diferenciación involucró incluso a personas que habían adquirido una vivienda por fuera del mercado formal. Asimismo, las características que se eligieron para caracterizar a los grupos involucrados en el conflicto no resultaron de una operación aleatoria, sino de la existencia de estructuras simbólicas de clasificación socialmente compartidas: cuerpos semi-desnudos, caras tapadas por remeras, palos en mano reúnen una serie de imágenes que dan cuenta de ciertas caracterizaciones que definen a los otros, los que no habitan la ciudad formal. A partir de ellas se construye la oposición entre un sujeto (de clase media pobre) que permite una distinción con ese sujeto peligroso. Por lo tanto, y más allá de que se trató de situaciones en las cuales algunos ocupantes de los predios respondían a sectores políticos organizados, un reclamo por el derecho a la vivienda se encuadró en términos de delito, desde la figura legal de la ocupación y desde la representación visual de los ocupantes como delincuentes” (ALEM, 2012, p.15) La dicotomía que se estructuró en términos de la relación política de alteridad entre los partidos a cargo del Ejecutivo nacional y local reforzó aún más los estereotipos circulantes. Uno y otro grupo político se culpabilizaron y responsabilizaron por las causas y las consecuencias del conflicto. En la disputa opacaron tanto las necesidades habitacionales de los protagonistas 396 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES como su derecho a acceder a una vivienda digna, derecho consagrado tanto en la Constitución Nacional como en la de la Ciudad de Buenos Aires. Asimismo, dichas disputas contribuyeron a la construcción discursiva de un Estado ausente en términos del resguardo de las garantías individuales y/o de impericia en tanto no logró controlar situaciones de alta conflictividad social (LAGARES; FUERTES, 2013) contribuyendo a la generación de un clima de descontento y angustia. (ROBERTAZZI et al., 2011) Finalmente, la represión llevada adelante por fuerzas de seguridad de dependencia nacional y local confirmó la falta de legitimidad del reclamo, de la lucha y de la acción. Doblemente acallado, discursiva y materialmente, el Indoamericano puso en evidencia que aún en la informalidad, existen formas más y menos legítimas, más y menos toleradas de reclamar el derecho a vivir en la ciudad. La toma del Parque y su desalojo, entonces, permiten observar diferentes aristas sobre el habitar en Buenos Aires. En primer lugar, da cuenta de la dificultad de los sectores populares por acceder a la ciudad capital. En segundo lugar, evidencia que esta negación se produce a partir de elementos materiales y simbólicos. En tercer lugar, permite apreciar que esta negación/ negociación no solo se produce por una estigmatización de los sectores medios, altos y por los que accedieron a la vivienda a través del mercado formal, sino que muestra las diferencias que se generan en los mismos sectores populares en tanto remite a un conflicto de pobres contra pobres. Conflictos por el circular: Los cirujas Lo que hoy se conoce como cartoneo o cirujeo (recolección informal de residuos) cuenta con una prolongada historia. Pese a las diferentes formas en que la actividad se ha desarrollado y los distintos nombres que han recibido las personas que se dedicaron a ella, existen algunas continuidades en torno a los discursos que la construyeron. Y en este sentido, es posible ver que existe una continuidad que liga la tarea a la pobreza, a la marginalidad y a la estigmatización. (PERELMAN, 2012) Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 397 Hacia mediados de la década de 1990 y en especial luego de la crisis de 2001, aumentó notablemente la cantidad de personas dedicadas a la recolección. Con el crecimiento del desempleo, millares de personas comenzaron a acceder a la ciudad desde barrios pobres, de asentamientos en busca de materiales plausibles a ser reutilizados. Sin embargo, la aparición masiva de cartoneros en las calles de la ciudad no puede entenderse sino a partir de la implementación de las políticas de recolección formal de residuos. El actual sistema de recolección tiene su origen en 1977 cuando la dictadura cívico-militar cambió el sistema de incineración domiciliaria y de depósito en basurales a cielo abierto (conocidos como “las Quemas”) por el de enterramientos en rellenos sanitarios. A partir de entonces, la recolección formal se ha realizado “puerta a puerta” de domingo a viernes en el horario nocturno. Esto implicó un radical cambio de los comportamientos del mercado informal de residuos. Hasta los tiempos de La Quema y la incineración, la basura debía buscarse en los márgenes de la ciudad. En la actualidad, en cambio, es en los barrios céntricos donde se encuentra. Más aún, es en los barrios con mayor densidad de población de clase media y alta en donde las basuras son “de mejor calidad” y más abundantes.12 La nueva localización de los residuos implicó el florecimiento de una serie de establecimientos de compra y venta apostados en lugares estratégicos como las adyacencias de las estaciones de ferrocarriles (medio de transporte utilizado por una gran cantidad de cirujas para trasladarse desde sus hogares en el conurbano bonaerense y los barrios céntricos de la ciudad). Asimismo, promovió la generación de relaciones con los vecinos. En este sentido, se produjo una nueva geografía de la basura. (WHITSON, 2011) Este transitar por las calles en busca de residuos ha generado tanto “tolerancia”, como conflictos entre vecinos y cartoneros que son construidos como extranjeros en el territorio. La espacialización de la tarea le otorgó un lugar aún más estigmatizado. En ese transitar por las calles, en las interacciones con otros actores, pueden apreciarse de manera paradigmática las modalidades legítimas toleradas 12 Ver em: http://www.atlasdebuenosaires.gov.ar/aaba/index.php?option=com_content&task=view&id=435& Itemid=73&lang=es> 398 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES según el orden urbano que organiza la vida en los barrios porteños. La sociedad está construida espacialmente y su organización espacial introduce diferencias en las formas en las que ésta opera. (MASSEY, 1994) Por ello es necesario reconocer las diferentes espacialidades y las pugnas por el uso de los espacios. Pero ellas, antes de ser estáticas y unívocas, están en constante disputa entre actores con diferentes capacidades para intervenir sobre el territorio y definir sus usos. El espacio es producto de relaciones sociales que están materializadas espacialmente y hechas cuerpo en los actores. El espacio también tiene un rol central en la producción de sujetos e identidades. Los cartoneros son cartoneros en un espacio determinado pudiendo ser vecinos en otros lugares. Lo mismo puede decirse de los vecinos. Es el reconocimiento mutuo en un espacio determinado el que produce las identificaciones y lo hace de manera desigual. Transitar, el orden urbano en disputa Los diferentes usos generan conflictos. El caso de los cartoneros, en este sentido, es paradigmático. Para las clases medias, el cirujeo significó la aparición, en las puertas de sus casas y en el camino a sus empleos, de la pobreza. La presencia de cartoneros, puso en cuestión el imaginario de la ciudad sin pobreza (o con pobreza territorialmente segregada en villas miserias). Tal como señaláramos anteriormente, los cirujas suelen reconocerse en zonas de la ciudad en las que no son vecinos sino cartoneros. Transitan por territorios de clases medias y los propios actores lo saben (en un sentido o con una consciencia práctica al decir de Bourdieu o Giddens). Ese habitus urbano (GIGLIA, 2012) les permite moverse por la ciudad y reconocer espacios propios y ajenos. En la presencia de personas recolectando en calles y plazas de ciertos barrios de la ciudad, realizando una apropiación momentánea de ciertos lugares de la ciudad, se ponen de manifiesto las luchas por el espacio urbano y se redefine el orden urbano instituido con base en la construcción de un nosotros a partir del intento de exclusión de otro.13 13 (PÍREZ, 1995) en relación a los diferentes actores sociales de la ciudad refiere a lo local como espacio diferenciado. Plantea que en la dimensión territorial de lo local (socioterritorialmente recortada, significada Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 399 La posibilidad de pasar desapercibido para los cartoneros se hace imposible. Más bien todo lo contrario, se encuentran en las calles con un uniforme de pobreza que los hace tan reconocibles como a policías o bomberos. Ese traje habilitó a los vecinos14 a categorizarlos como pobres, peligrosos, sucios, como personas que estaban fuera de lugar. En una ciudad donde la diferencia, especialmente, la diferencia no admitida, tiende a ser borrada, la visibilidad de los cartoneros, una de sus características principales, genera un fuerte conflicto. En Buenos Aires, donde merecer vivir y usar la ciudad aparece con fuerza, la diferencia es tolerada si se encuadra en ciertos marcos en los que la pobreza no cuaja. El cartoneo generó miedo en los sectores medios asentados en sus barrios. Los medios de comunicación también produjeron narrativas que construyeron a los cartoneros como personas “invasoras” de un territorio. (TRUFRÓ; SANJURJO, 2010) Parte de esta forma de comprender y de categorizarlos remitió a la relación entre la actividad y la basura. Ambos estaban fuera de lugar, pertenecían a otra territorialidad. Esta forma de construir al cartoneo15 socialmente) pueden construirse unidades socio-territoriales de acción por la presencia de actores sociales específicos. Dice que es posible encontrar una definición de actores urbanos basada en su asentamiento en un lugar particular de la ciudad, diferente en relación a “otros” pero común entre quienes están en él. La vinculación con el territorio –y con el resto de los sujetos que configuran ese actor social agregamos nosotros- está configurada por una serie de atributos que suponen la existencia de cierto tipo de lugar de asentamiento en él, de relaciones entre los asentados allí y de una suerte de “exposición social” resultante. (PÍREZ, 1995) Según Pirez (1995) las unidades territoriales tenderán a configurarse entre la homogeneidad propia y la heterogeneidad de la ciudad. En una línea similar, Giglia (2012, p. 54-60) distinguía diferentes escalas de sociabilidad en las metrópolis contemporáneas globales, –la ciudad en general, los espacios cerrados de uso público, y la del local- siendo esta última donde se generan reconocimientos a nivel personal, en donde existen rituales cotidianos implícitos y estereotipados. El nivel local (que corresponde grosso modo al vecindario) es un espacio de lo conocido- cotidiano. Esa sociabilidad barrial entre un nosotros reconocible se puede dar a nivel personal o a nivel de estereotipos sociales conocidos que juegan qua relaciones personales. En este segundo caso, el anónimo conocido, el derecho a la indiferencia, la inatención de urbanidad, la cortés desatención (GOFFMAN, 1979) es central. Es un anónimo porque es, de alguna manera, conocido. 14 Vecino es una categoría nativa que remite a las personas que habitan los barrios por donde los cartoneros transitan. Cartoneros y vecinos reconocen las diferencias entre ambos grupos. 15 Recuperamos el “habla de” del modo en que lo usa Caldeira (2007) para el caso del habla del crimen en San Pablo. La autora considera que “el habla del crimen se ocupa no de descripciones detalladas de los delincuentes, sino de un conjunto de categorías simplistas, algunas imágenes esencializadas que eliminan las ambigüedades y mezclas de categorías de la vida cotidiana, y que circulan espacialmente en momentos de cambio social (47). 400 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES basada en clasificaciones estereotipadas sobre las personas que realizan dicha actividad, busca ordenar y dar coherencia al mundo social circundante –a esa sociabilidad local– que, a la vez, crea. Y esas imágenes especializadas que se crean y reproducen en el habla construyen un nosotros en contraposición a un otro peligroso. Esta visión del mundo cercano, llevó a una serie conflictos en torno al (posible) uso del espacio urbano por parte de los cartoneros. Es posible distinguir dos tipos de negación y negociación (conflictiva) del uso del espacio urbano. Una remite a la construcción imaginaria de los recolectores y la otra expresada en gestos, modos y cuestionamientos puntuales a los recolectores y/o a la actividad. Ambas cuestiones, imposibles de escindir de un mismo marco interpretativo sobre el uso del espacio público generan conflictos de manera cotidiana. Durante el trabajo de campo recurrentemente surgía la relación entre cirujeo y crecimiento de la delincuencia en los barrios. También la estética de los cartoneros era cuestionada. El uso del espacio público es central en las disputas y los conflictos: espacios sucios, ocupación de veredas y de las calles han sido modos comunes de cuestionar la presencia cartonera. Sin embargo, muchos cartoneros lograron revertir ese anonimato en confianza. Fue una confianza basada en el estar ahí. Los cartoneros son aceptados en estos barrios en tanto son reconocidos como posibles “trabajadores” y se “comporten correctamente” en relación a lo que resulta “adecuado” en esos barrios porteños de clase media16. Necesitan de esos espacios, pues allí consiguen residuos, recursos que convierten en mercancía. Decir que un comportamiento es correcto, no implica una valoración personal (del investigador) sobre las formas de actuar de los cartoneros. Antes bien, es una construcción etnográfica que surge del trabajo de campo realizado. Esta aceptación se construye en función de un tipo particular de comportamiento relacionado con el espacio. En un territorio hostil, los cartoneros logran transformar el estigma en confianza, paradójicamente, el hacerse visibles. La necesidad de conseguir cierta seguridad material –especialmente en 16 Esta transformación del estigma pobre- cartonero en trabajador fue favorecida por el Gobierno de la ciudad de Buenos Aires, quién llevó adelante una serie de políticas para transformarlos -al menos discursivamente- como recuperadores urbanos. Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 401 actividades que son poco per sé previsibles- no puede llevarse a cabo sino a partir de revertir ese anonimato. Ahora bien, el establecimiento y mantenimiento de las relaciones personales, también se debe a los comportamientos desplegados por ambos actores que dan cuenta de la aceptación del otro. Esto se produce siempre y cuando el que es visto como un “extranjero” respete los códigos que esos barrios imponen. Para construir confianza, los cartoneros deben aceptar un código de conductas que reconocen al transitar por un espacio que no es el propio. Es en ese espacio donde estas personas que recorren las calles revolviendo la basura se convierten en cartoneros. A partir del devenir que asumen las relaciones que generan y que marcan diferencian en la recepción que existe por parte de los pobladores de la ciudad de los recolectores urbanos, los cartoneros diferencian a vecinos de clientes.17 De esta forma, la aceptación de ciertos cartoneros no anula el conflicto ni la desigualdad. Antes bien, construye diferencias, conflictos y desigualdades. Tolerancia no es aceptación. Si dimos tanta importancia a esta segunda cuestión es porque pensamos que en esa aceptación hay un refuerzo de la desigualdad al establecer límites sobre el uso del espacio. Entonces, tanto el rechazo como la aceptación de los cartoneros en la ciudad –que se produce solo a partir de hacer un uso limitado de la misma-18 nos hablan de la producción de la desigualdad territorializada que involucra sujetos con diferentes capacidades de apropiación de la ciudad. Conflictos por el circular y el habitar: personas que viven en la calle Durante el periodo de sustitución de importaciones, la Ciudad de Buenos Aires era claramente percibida por los migrantes del interior como un locus del progreso, de mejores oportunidades laborales y condiciones de vida. A su 17 Mientras que con la primera categoría refieren a todos los sujetos que se encuentran en la zona de recolección, la segunda es reservada para hacerlo a ciertas personas: los vecinos que les guardan “mercadería”. Sobre la construcción y manteamientos de clientes ver (Perelman, 2011) 18 En otro lugar dimos cuenta de que los cartoneros pueden transitar pero cuando se instalan en la ciudad esa tolerancia desaparece (COSACOV; PERELMAN, 2014) 402 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES vez, representaba el acceso a una mayor variedad de bienes y al aprovechamiento de los beneficios de las políticas sociales. En este contexto, estos grupos lograban ocupar un lugar públicamente reconocido, aún cuando subalterno, en la estructura social. Sin embargo, la Dictadura Cívico-Militar y la puesta en marcha de políticas neoliberales y sus impactos redefinieron el escenario: vivir en Buenos Aires pasó de representar un espacio de prosperidad para todos, a constituirse en un espacio de contrastes y segmentación social. Lejos ya de una ciudad homogénea, en el imaginario social comienza a filtrarse la idea de Buenos Aires como una ciudad en la cual se debe merecer vivir. (OSZLAK, 1991) Según Castel (1997, p. 421) una de las características de la “nueva cuestión social” es precisamente el déficit de lugares ocupables en la estructura social. Este déficit puede entenderse a partir del concepto de desafiliación en tanto o “ausencia de inscripción del sujeto en estructuras formales dadoras de sentido, como por ejemplo, la institución trabajo”. (BOY; PERELMAN, 2008, p. 4) Los desafiliados están por fuera del aparato productivo, carecen de recursos y están excluidos de los circuitos de intercambios productivos. (BOY; PERELMAN, 2008, p. 4) En este contexto, aparece un nuevo perfil que habita y circula por la ciudad: las personas en situación de calle. Al igual que en el caso anterior, las personas que viven en situación de calle generan estrategias para pasar desapercibidos y romper con el estigma que cargan. Pero, a diferencia de los cartoneros, las personas en situación de calle usan los espacios públicos no solo para generar estrategias de obtención de recursos materiales sino también para vivir. La calle define su situación habitacional. Las calles de la Ciudad son, de este modo, un lugar en donde vivir y, también, un lugar donde obtener recursos para lograr su supervivencia. En los estudios llevados a cabo por el Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires a través de la Secretaría de Promoción Social se define a las personas sin techo como: toda persona que se halle pernoctando en lugares públicos o privados, sin contar con infraestructura tal que pueda ser caracterizada como vivienda, aunque la misma sea precaria. Vivienda precaria supone, al menos, paredes y techo que otorguen cierta privacidad, pemitan albergar pertenencias y generen una situación relativamente estable: quien la posea no es sin techo. En tal Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 403 sentido no es sin techo quien habita en una villa de emergencia u ocupa una casa tomada. Tampoco quien construye una habitación precaria (aislada) en un baldío. Sí lo será quien se resguarda con maderas o cartones bajo un puente o una autopista [...] También fueron caracterizados como ‘sin techo’, aunque al momento del relevamiento no se encontraban a la intemperie, a quienes “carecen de alojamiento fijo, regular y adecuado para pasar la noche, y encuentran residencia nocturna en alojamientos dirigidos por entidades públicas o privadas que brindan albergue temporario.” (CALCAGNO, 1998, p. 5) En el año 1997 se elaboran las primeras estadísticas sobre la problemática de las personas en situación de calle de la Ciudad. Según las mismas, la crisis económica del 2001-2002 repercutió fuertemente en la cantidad de personas viviendo en la calle. La recuperación económica a partir del 2004 y el aumento de las tasas de empleo no implicaron una disminución en la cantidad de personas viviendo en la calle. En este sentido, podría afirmarse que las crisis económicas empujan a las personas hacia la vida en la calle pero los ciclos de recuperación no tienen la misma fuerza. Tal como sugieren Boy y Perelman (2008), esta tendencia puede pensarse a partir de la desafiliación de las personas en situación de calle, de su falta de inscripción en redes formales, que generan una desconexión de las tendencias macroeconómicas, sobre todo, en los ciclos de recuperación. Según el conteo del año 2007, el 73% de las personas en situación de calle eran hombres, el 12% mujeres. En el 15% de los casos no pudo identificarse su género debido a que el conteo se realiza de noche y las personas están cubiertas con frazadas. El rango de edad con más casos es el de 21 a 55 años representando el 42% del total de las personas en situación de calle. El lugar de origen de la mayoría de las personas en situación de calle son otras provincias o países limítrofes siendo el 34% de provincias del Interior del país sin contar a la provincia de Buenos Aires, el 22% proviene de la provincia de Buenos Aires, el 11% de países limítrofes y el 2% de países no limítrofes con Argentina. Sólo el 31% de las personas es oriundo de Buenos Aires. En cuanto a la situación ocupacional, el 29.8% dijo encontrarse desempleado aunque el 39,5% de los encuestados desarrolla actividades que 404 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES proporcionan ingresos estando ocupados a tiempo completo o subocupados. Finalmente, el 30.4% se encuentra inactivo. Los adultos que viven en la calle (BOY, MARCÚS Y PERELMAN, 2015) lo hacen en la zona central de la ciudad denominada frecuentemente como “microcentro” y “macrocentro”. Figura 2 – Concentración de personas em situación de calle según barrio. Ciudad de Buenos Aires, 2007 Fuente: Boy (2012) com base en datos del conteo realizado por el Ministerio de Desarrollo Social. Procesamiento de la información a partir del software Urbeos Cities Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 405 Como puede verse en el mapa realizado por Boy (2012), la zona central de la Ciudad de Buenos Aires es la más elegida a la hora de pernoctar en la calle. A medida que uno se retira de la zona central de la Ciudad de Buenos Aires y se dirige hacia los Partidos del Gran Buenos Aires ubicados en el Norte, Oeste y Sur, la cantidad de personas viviendo en la calle desciende notoriamente. Boy (2012) observó dos motivaciones principales que empujan a las personas a pernoctar en ciertos barrios de la ciudad. La primera, que la zona es rica en actividad comercial y, la segunda, que se localizan allí redes gubernamentales u organizaciones de la sociedad civil como, por ejemplo, Paradores y Hogares de Tránsito, que les proporcionan alimento, hospedaje, entrega de vestimenta y servicios de duchas. O sea, las personas que viven en la calle lo hacen en el mismo espacio en el que se concentra la actividad comercial. (BOY, 2012) De este modo, la coexistencia entre el área comercial y la alta concentración de adultos viviendo en la calle refleja la importancia que para este grupo tiene la aglomeración de comercios y empresas y la gran cantidad de peatones y automovilistas. Estas características traen consigo la posibilidad de realizar actividades a cambio de dinero como, por ejemplo, limpieza de vidrios de automóviles, prácticas vinculadas a mendigar, venta ambulante, cirujeo, etcétera. Al igual que en el caso del cirujeo, estos usos diferenciados son problemáticos y suele haber conflictos mucho más circunstanciales y delimitados que con los cartoneros. Si bien las personas en situación de calle viven en la calle, la capacidad de cambiar de lugar para pernoctar les permite diferenciarse de otros estereotipos morales construidas sobre las personas que toman espacios públicos. La calle constituye, siguiendo a Carreteiro y Santos (2003), un espacio donde la multiplicidad de universos, complementarios y opuestos, se encuentran. Delgado Ruiz considera al espacio público urbano como aquel en el cual los sujetos se convierten en una nada ambulante e inestable y “los vínculos ocasionales se encuentran en la frontera de no ser relación en absoluto” dado que no se tiene ninguna certeza del otro. En el encuentro de personas ocurre una descortés desatención que “consiste en mostrarle al otro que se le ha visto y que se está atento a su presencia y, una instante más tarde, distraer la atención para hacerle comprender que no es objeto de una curiosidad o de una intención particular”. (DELGADO RUIZ, 2002 apud BOY; MARCÚS; 406 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES PERELMAN, 2015, p. 13) La imposibilidad de ser conocidos por el otro, otorga la posibilidad de ser anónimos y, de esta forma, protegerse de la mirada estigmatizadora del “otro”. Interesa, entonces, analizar qué características asume la mirada del “otro” presente en el imaginario social sobre cómo son las personas en situación de calle, cómo éstas mismas personas se hacen cargo o reinterpretan esa mirada, y finalmente, qué características asume el enfoque de las políticas gubernamentales destinadas al tratamiento de esta población. El estigma, según Goffman, remite a la posesión de una característica desacreditadora que se ubica entre el atributo y el estereotipo. Al mismo tiempo, al estigmatizar a un grupo por la posesión de cierta característica, se confirma la normalidad de aquel “otro” que no la posee. En esta misma dirección Pojomovsky, Gentile y Cillis (2006) sostienen que las personas que se encuentran en situación de calle son analizadas desde una perspectiva normalizadora que asume como normal el modelo típico de infancia y familia propio de los grupos hegemónicos. Tadeu da Silva (2000, p. 83) afirma normalizar significa elegir –arbitrariamente- una identidad específica como el parámetro en relación al cual las otras identidades son evaluadas y jerarquizadas. Normalizar significa atribuir a esa identidad todas las características positivas posibles, en relación a las cuales las otras identidades solo pueden ser evaluadas de forma negativa. A partir de la posibilidad que otorga la calle de ser anónimos, las personas que viven en ella pueden esconder aquellos atributos que la sociedad caracteriza como anormales, es decir, aquellos que se constituyen en la fuente del estigma. En este contexto, ese otro normal es la sociedad domiciliada, las personas que no pernoctan en la calle. Para muchos vecinos las personas en situación de calle no suelen ser conceptualizadas como personas con falta de vivienda o trabajo. Antes, esta situación parece ser una consecuencia de algún estado o de la posesión de algún problema (droga, alcohol, demencia, etc.). Según Calcagno (1998), las personas que habitan en la calle son vistos como “vagos”, “sucios”, “delincuentes”, “alcohólicos” o “locos”. En este sentido, en la percepción de la sociedad domiciliada está ausente el reconocimiento de la situación estructural, social, que lleva a las personas a vivir en Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 407 la calle sino que, por el contrario, la vida en la calle es atribuida a decisiones o atributos individuales como ser la locura, drogadicción, alcoholismo o vagancia. Además suelen ser vistos como personas no organizadas, por lo que su presencia puede molestar y generar miedo. Aun así, no suele buscarse su expulsión salvo cuando su presencia se hace cotidiana y prolongada. Es así que el estigma adquiere particular fuerza porque señala a las personas en situación de calle como los culpables de su propio destino. Asimismo, no es sólo la “anormalidad” percibida la que pone una distancia entre los domiciliados y las personas que viven en la calle sino que además, el potencial peligro que se les adjudica hace más honda esta brecha. La adjudicación de vagancia, vista como la falta de compromiso para participar activamente de la vida laboral, y de delincuencia, que los ubica en personas potencialmente peligrosas para uno, “produce una ruptura de los lazos solidarios que deberían estar presentes en los miembros de la sociedad”. (CALCAGNO, 1998, p. 4) En este marco, las fronteras que se construyen ubican a las personas en situación de calle por fuera del circuito de intercambio productivo (CASTEL, 19997) y, también, por fuera de las redes de solidaridad de la sociedad. La consecuencia es “la separación paulatina y cada vez más amplia del resto de la comunidad”. (CALCAGNO, 1998, p. 4) Ahora bien, de qué forma las personas en situación de calle asumen esta mirada. La conciencia de la mirada de este “otro” condiciona los comportamientos de las personas en situación de calle. Viven en la tensión entre invisibilizar aquellos atributos que la sociedad condena utilizando el anonimato y visibilizarlos para acceder a los recursos imprescindibles para la vida cotidiana. La invisibilización se lleva a cabo a través de la obediencia de las normas de comportamiento, los parámetros de conducta de un contexto determinado. Según Goffman (1979) en la vía pública las personas están dando muestras de confianza mutua a través de la obediencia a aquellas normas. Obedecer las normas permite pasar inadvertido, permite el anonimato. En esta dirección, el trabajo de campo realizado por Boy, Marcús y Perelman (2015) resulta relevante porque permite distinguir entre dos grupos de personas en situación de calle, los cuales asumen de forma diferente el estigma: por un lado, aquellos que pernoctaban en ranchada priorizando la ayuda recíproca entre pares como una forma de superviviencia. Por el otro, 408 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES aquellos que remarcan las diferencias con el resto de las personas que viven en el espacio público. Este último grupo intenta continuamente diferenciarse de otras personas en situación de calle apelando a los estigmas presentes en el imaginario social sobre estas personas. En otras palabras, las personas en situación de calle hacen propios los estereotipos estigmatizadores que les son atribuidos a ellos mismos. Es así que realizan un esfuerzo por invisibilizar su situación ante la mirada del “otro”, respetando las normas de conducta de los distintos contextos, escondiendo los atributos que permiten su etiquetamiento. En este sentido, la mirada del otro no es cuestionada sino que se busca esquivarla, habitar y circular de manera tal que los ojos del otro no se posen en los atributos estigmatizables. Las políticas gubernamentales dirigidas a asistir a las personas en situación de calle contribuyen en la construcción de estas miradas. La primera política sistemática para prestar servicios o prestaciones a las personas en situación de calle es el programa Sin Techo creado en 1997 en el marco del Ministerio de Desarrollo Social del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires. Tal programa surge como consecuencia de la consolidación de la pobreza, la inestabilidad laboral, la vulnerabilidad y el resquebrajamiento del tejido social cuyas manifestaciones más extremas fueron las personas durmiendo en la calle (BOY, 2012, p. 71). Según Boy este programa caracteriza a las personas en situación de calle como desempleados que quedaron por fuera de las transformaciones en el mercado de trabajo de la década del ’90. Esta primera caracterización parecería entrar en tensión con los datos provistos por las estadísticas según los cuales cerca del 40% realiza alguna ocupación. A partir de la caracterización de su destinatario, esta política está dirigida a la revinculación de estas personas con el mercado del empleo a través de capacitaciones laborales. Estas actividades tienen como trasfondo que nunca se pone bajo cuestionamiento al mercado de empleo como el principal asignador de recursos y que se transfiere la responsabilidad de la situación de desempleo a las personas (GRASSI, 2006) y no a la falta de políticas de generación de fuentes de trabajo que amortigüen las fuertes y recientes transformaciones del mercado de empleo (cada vez más selectivo, con una fuerte segmentación Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 409 laboral que determina quién es parte y quién queda en los márgenes)”. (BOY, 2012, p. 71) Asimismo, los talleres de capacitación laboral no toman en cuenta las actividades que las personas afirman realizar como fuente de ingresos ni las redes que estas personas han construido a lo largo de su habitar y circular la calle, no se busca su fortalecimiento ni la formalización de sus vínculos y actividades laborales. “De esta forma, se invisibiliza la informalidad laboral y se piensa sólo en atender al sujeto aislado y no al sujeto con su entorno” (ibídem). En términos generales, en el ámbito político el foco está puesto en la situación particular de la persona en situación de calle visualizado como un desempleado que necesita de capacitación para reinsertarse en el mundo laboral. No se tiene en cuenta la persona en contexto ni a la persona en relación a sus redes sociales. Menos aún se apunta a transformar las condiciones estructurales que llevaron a las personas al extremo de tener que habitar la calle. Tal como afirma Boy (2011, 64): no son intervenciones concebidas a partir de la regeneración del tejido social ni apuntan a la integración social de las personas, sino que están dirigidas a la reinserción social. Es decir, no son programas sociales que intenten poner en contacto a las personas que viven en la calle con otros sectores sociales y enfatizar así en la construcción de nuevas redes que le permitan a la persona salir y mantenerse por fuera de la situación de calle. El trabajo de Litichever (2012) sobre las trayectorias institucionales de los jóvenes en situación de calle también brinda algunas pistas sobre cómo las instituciones interpretan las necesidades de los jóvenes a quienes asisten. Muchas instituciones que trabajan con jóvenes en situación de calle, mantienen en su discurso una interpretación psicologizante atribuyendo problemáticas sociales a problemas psicopatológicos de las familias. Es por ello que la necesidad expresada por los jóvenes de ver a su familia no es tenida en cuenta porque contradice las normas institucionales. (LLOBET, 2006) “Prácticamente no reconocen las condiciones materiales en que viven los jóvenes (...) se debe a la no consideración o la consideración-estigmatización 410 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES de estas condiciones, que traduce las carencias materiales en carencias de tipo psicológico-afectivo”. (LITICHEVER, 2012, p. 152) La interpretación de las necesidades de los jóvenes constituye un ámbito de disputa entre los distintos sectores, entre ellos mismos y las instituciones. Según Fraser (1991) en el ámbito de las políticas públicas son las interpretaciones de los especialistas aquellas que se imponen de manera hegemónica. Es así que “las necesidades de los propios actores, sujetos de las políticas, sean despolitizadas, consideradas privadas o individuales, y a que no se reconozca por lo mismo su carácter colectivo y político”. (LITICHEVER, 2012, p. 161) A partir de lo expuesto hasta aquí, podemos considerar que tanto las instituciones y políticas públicas que trabajan con las personas que viven en calle como la mirada de la sociedad hacia ellos omiten el componente estructural de la situación de las personas sin techo. Por el contrario, atribuyen su estado a condiciones o características individuales como ser la adicción, la vagancia, problemas psicopatológicos. De esta manera, las políticas públicas dirigidas a esta población, no tienen en cuenta las condiciones materiales, las ocupaciones y las redes de sociabilidad ya establecidas por las personas en situación de calle ni tampoco realizan un intento por modificar las condiciones estructurales que empujaron a las personas a vivir en la calle. Finalmente, las personas en situación, ante la mirada del otro, ajustan su comportamiento ya sea para invisibilizar aquellos atributos que la sociedad condena obedeciendo a las normas de conducta, ya sea buscando hacer visibles estos atributos para poder acceder a recursos necesarios para su vida cotidiana. A modo de cierre En el escrito abordamos tres casos que dan cuenta de la complejidad que adquieren los procesos de producción de la desigualdad urbana. Como mostramos, las desigualdades urbanas tanto físicas como simbólicas persisten por mucho a los cambios económicos (aunque se nutren de ellos). Ellas se anclan en el territorio, en concepciones morales, en prácticas que se naturalizan y que cosifican las diferencias que van formando experiencias de clase. Maria Mercedes Di Virgilio, Mariano Perelman 411 Los casos analizados nos hablan de conflictos entre grupos sociales ubicados en posiciones opuestas de la estructura social pero, también entre grupos de la misma posición social. Esto es importante porque la desigualdad es relacional y las relaciones de desigualdad no solo se construyen de arriba hacia abajo (aunque ellas sean las más fuertes) sino también entre grupos que en términos objetivos pueden ocupar posiciones similares en la estructura social. Hemos mostrado que, además de las cuestiones económicas como punto de partida, los procesos y pugnas por la imposición de discursos en torno a lo legítimo o moralmente correcto son centrales para revisitar los efectos económicos (no solamente los efectos económicos de la desigualdad sino también sus consecuencias sociales en términos de integración e inserción “ciudadana” y “citadina” de los sujetos sociales) de la desigualdad. Los procesos sobre los que se cimienta la desigualdad tienen distintas temporalidades. Los casos nos hablan de problemas estructurales de la Argentina y de las construcciones subjetivas y cotidianas de estos problemas. Por ejemplo, la toma del parque Indoamericano sin duda remite a problemas estructurales sobre el acceso a la tierra y la vivienda en la ciudad de Buenos Aires. El caso de los cartoneros puede ser visto como un problema de acceso al trabajo. El caso de los sin techos es particularmente interesante ya que remite a todos estos problemas pero, paradójicamente, queda desanclado al invidualizar a un actor social. Los casos, entonces, no solo muestran un acceso que puede considerase deficitario en relación a la vivienda y al trabajo sino también dan cuenta de un modo de integración participar a la sociedad. O sea, los procesos de distinta temporalidad (económicos, simbólicos, morales, espaciales, etc.) permiten comprender producciones y modos de integración social que producen vidas más o menos precarias. Los casos muestran que una misma acción o un mismo grupo puede ser tomador, vecino, cartonero, extranjero, trabajador, etc. Estas etiquetas si bien no tienen per se un efecto desigualador, en ciertos contextos funcionando territorialmente producen relaciones de desigualdad. El habitar, transitar, circular por la ciudad, los modos conflictivos de construcción y apropiación desigual del espacio urbano son centrales para comprender, entonces, la desigualdad y, por oposición, los modos en los que se produce la integración 412 DINÁMICAS TERRITORIALES EN LA PRODUCCIÓN DE LA DESIGUALDAD DE BUENOS AIRES social. De este modo, la forma en la que los conflictos se expresan permite pensar la dimensión territorial –material y simbólica– de la desigualdad de manera paradigmática. Referencias ALEM, B. La construcción mediática de la otredad desde el miedo.In: Encuentro de discusión: “Nuevos paisajes comunicacionales: la problematización de representaciones ciudadanas”. 2012. Buenos Aires. 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Este conceito amplo de justiça social, quando aplicado à governança, policiamento, 419 planejamento e design do espaço público, garante mais oportunidade às práticas democráticas. Além disso, ele melhora a diversidade social de usuários, reduzindo barreiras excludentes e encorajando experiências positivas quando diversos tipos de pessoas se encontram. (FINCHER; IVESON, 2008; LOW; SMITH, 2006; MERRIFIELD, 2012; MITCHELL, 2003; SOJA, 2010) Este capítulo propõe que as dimensões distributivas, procedimentais e interacionais da justiça social, assim como o reconhecimento de diferença e de uma ética do cuidado e da reparação, podem proporcionar uma base para avaliar o sucesso de espaços públicos e melhores análises de justiça social da infraestrutura pública. O exemplo das ruas de Nova Iorque e de São José, na Costa Rica, ilustra esta perspetiva. Mudanças neoliberais no espaço público Nos Estados Unidos e em muitas partes da América Latina já ocorreram grandes transformações no espaço público urbano, devido às políticas urbanas neoliberais e à reestruturação econômica. Há mais imigrantes e vendedores ambulantes utilizando os espaços públicos devido à expansão do setor da economia informal enquanto, ao mesmo tempo, mais conflito e discriminação controlam sua regulamentação. Há uma maior heterogeneidade da população devido às deslocalizações globais do trabalho e do capital, enquanto, ao mesmo tempo, há um aumento da segregação racial e de renda pelas vizinhanças. Mesmo com o aumento da heterogeneidade urbana, os indivíduos podem não ter a oportunidade de uma interação face a face por causa da economia da aquisição da casa própria e das restrições aos aluguéis, que produzem guetos para os habitantes mais pobres e comunidades seguras e fechadas para os mais ricos. Consequentemente, há tensões crescentes entre os processos de globalização e vernacularização, particularmente nas formas como as pessoas inscrevem cultura e significado à paisagem local enquanto, ao mesmo tempo, estão sendo descoladas e relocadas por fluxos que suprimem ou erradicam os lugares. Reestruturação econômica também criou crescentes disparidades sociais e econômicas, em términos das oportunidades econômicas, bens e serviços disponíveis para pessoas residentes nestes diferentes setores da região 420 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE metropolitana. Enquanto isso, a cidade e o estado têm menos dinheiro para a operação e manutenção dos espaços públicos e apenas aqueles que são subsidiados por organizações de proteção ao meio ambiente privadas, empresas e indivíduos continuam a prosperar, enquanto praças e parques em vizinhanças mais pobres e marginais sofrem por negligência. Nos Estados Unidos, Nova Iorque, em particular, respondeu a essas mudanças de inúmeras formas, que podem ser conceituadas através de uma noção expandida de securitização que incluem estratégias afetivas, físicas, espaciais, legais, regulatórias e financeiras como domínios de controle interconectados, que reforçam-se mutuamente. (LOW, 2013) Estas mudanças também podem ser vistas em São José, na Costa Rica, mas não na mesma proporção. Por exemplo, uma nova estrutura do sentimento e um medo dos outros emergiu e substituiu um clima afetivo de tolerância e apreço pela diversidade.1 Em Nova Iorque, por exemplo, após o 11 de setembro, foram decretadas leis para permitir que seguranças, militares e a polícia parassem e revistassem indivíduos e têm encorajado tolerância-zero nas prisões e formas mais agressivas de policiamento. (LIPPERT; WALBY, 2013) Em São José também houve um aumento no policiamento agressivo com o suplemento de novas unidades móveis da polícia municipal como resposta ao crescimento do crime organizado e relacionado com drogas. Distritos de Melhorias de Negócios proliferaram, particularmente, em Nova Iorque, assumindo um papel fundamental na reestruturação do espaço urbano, reconfigurando a governança urbana e garantindo exclusão espacial através da segurança e fechamento de antigas praças abertas. (NÉMETH, 2010; WARD, 2007) A cidade de Nova Iorque, entretanto, criou longas listas de regras e regulamentações que colocou em parques e praças públicos, e o crescimento dos espaços públicos de propriedade privada diminuem sua dimensão pública. (KAYDEN, 2005; NÉMETH, 2010) Câmeras de segurança estão instaladas em todos os espaços públicos disponíveis de Nova Iorque: por exemplo, há atualmente 265 câmeras de segurança instaladas na Union Square, um popular centro social e de transportes no centro da cidade. Jeremy Németh (2011) verificou que nos Estados Unidos este panorama da segurança protege até 35,7% do espaço acessível ao público 1 Houve até leis anti-perfil aprovadas antes do 11 de setembro. Setha Low 421 na cidade de Nova Iorque, em Los Angeles e São Francisco. Finalmente, a financiarização da vida cotidiana, tanto nos Estados Unidos quanto na Costa Rica, assumiu conotações morais que dificultam as pessoas com menos recursos de participar da vida pública, embora não sem protesto. (LOW; TAPLIN; SCHELD, 2005; SHEPARD; SMITHSIMON, 2011) Da mesma forma, tem sofrido o acesso e o uso dos espaços públicos, e é cada vez mais excludente para alguns usuários enquanto beneficia outros. Homens e mulheres jovens de cor negra evitam praças policiadas e vigiadas. (DAY, 2007; FISKE, 1998; LACY, 2007) Moradores de baixa renda leem as pistas simbólicas encontradas em espaços privatizados, tais como barreiras físicas ou objetos de decoração paisagística, e evitam estas áreas restritas. (; KAPFERER, 2012, MILLER, 2007) Pessoas de classe média e turistas estão mais contentes com esses espaços públicos intensamente controlados e protegidos, enquanto adolescentes evitam-nos por causa de suas longas listas de regras (SHEPARD; SMITHSIMON, 2011) Moradores de rua são impedidos de entrar em espaços. públicos fechados à noite e, na cidade de Nova Iorque, continua-se a fabricar e projetar bancos nos quais é impossível deitar-se, muito menos dormir, em nome das medidas de segurança. (KAYDEN, 2000; NÉMETH, 2010) Na cidade de Nova Iorque, sujeitos considerados como do “Oriente Médio” ou “árabes”, assim como imigrantes ilegais, preocupam-se com o aumento das câmeras de vigilância e de análise de perfil da polícia; e o controle policial feito pela Polícia de Imigração e Alfândega (ICE, do inglês Immigration and Customs Enforcement) faz com que muitos imigrantes hesitem em sair de casa ou passem tempo em espaços públicos. (NOBLE, 2012) Além disso, vendedores de rua, tanto em Nova Iorque como em São José, estão enfrentando mais dificuldades por causa dos novos regulamentos e do grau de policiamento e vigilância. (BRASH, 2011; CHESLUK, 2007; MILLER, 2007) A consequente falta de diversidade no espaço público e as restrições destas práticas de securitização chamam a atenção para uma agenda mais clara e uma estratégia discursiva para pressionar por mudança social. Com base na pesquisa etnográfica em parques, praias e praças, há uma evidência empírica sobre o que pode ser feito para incentivar a diversidade no espaço público e criar uma esfera pública mais inclusiva. Mas, para ter um impacto maior sobre as práticas de design e de governança e criação de políticas urbanas, é necessário 422 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE um quadro de avaliação e um argumento mais claro de base moral e filosófica. É necessária uma estratégia para elucidar as consequências danosas a longo prazo de securitização e destacar os perigos do urbanismo neoliberal na produção de um domínio público mais restritivo. O valor da diversidade e da justiça social no espaço público nunca foi tão importante. O espaço público sempre proporcionou um espaço aberto, um lugar onde se pode respirar dentro do tecido denso da cidade e um contraponto e contrapeso ao contexto urbano arquitetônico. Mas é o seu objetivo cívico e significados simbólicos que promovem mais ressonância agora. Uma ênfase nas práticas democráticas surgiu por causa da nova relação espacial que vem sendo desenvolvida entre o espaço público e a esfera pública. Movimentos sociais e levantes políticos desmentem os argumentos de que o espaço público e a esfera pública jamais foram separados. A Primavera Árabe, os movimentos de ocupação (nomeados “Occupy” em inglês) e as muitas rebeliões – M22 (Movimento Popular de 22 de março), Praça Sintagma, dentre outras – em espaços públicos e ruas de todo o mundo inspiraram-se na atmosfera jubilosa e energia contagiante emanadas das multidões, mas também do design urbano e da importância dos espaços públicos onde ocorreram. Se a esfera pública pode ser descrita como “a esfera das pessoas privadas reunidas em um público” (HABERMAS, 2001, p. 27), é evidente que a sua emergência tenha um contexto arquitetônico e espacial, assim como uma história de significados sociais. Se este contexto arquitetônico e espacial for regulado injustamente e, através da sua gestão e design, comunicar que alguns não são bem-vindos, então, não apenas o espaço público torna-se menos diversificado, mas também o mesmo acontece à esfera pública. O espaço público e a esfera pública representam arenas conjuntas de competição política e social e de luta fundamentada no planejamento e design da cidade. Uma forma de conceber essa coerência é pensar o espaço público como um local para manifestar discordância (MITCHELL, 2003), enquanto a esfera pública tem sido caracterizada por exclusão política. As pessoas vão às ruas ou praças para expressar os seus direitos à participação e representação em reação à sua exclusão. A política democrática é uma questão de como fazer a dissidência visível e ampliar a esfera pública para incluir diversos públicos e contra-públicos. Setha Low 423 Das rebeliões na Praça Tahrir, no Egito, na Porta do Sol, em Madrid, e o Occupy Wall Street, em Nova Iorque, surgiram novas ideias sobre a relação do espaço público para a esfera pública e a justiça social. Seus sucessos e a reestruturação da política urbana oferecem evidências do tipo de justiça social que os jovens anseiam, uma reestruturação que não trata apenas de direitos, mas também de cuidado, luta, reconhecimento e comunidade. Suas lutas por novas formas de relações sociais e identidades, preocupações revolucionárias com meio ambiente e de uns com os outros, aumentam a percepção de que o espaço público e a esfera pública, de fato, se cruzam nestes momentos e fazem parte da reimaginação do futuro. Assim, o espaço público tornou-se ainda mais importante para os grupos marginalizados e para assegurar a continuidade de práticas democráticas e de justiça social urbana. A cidade justa: justiça distributiva, procedimental e interacional e uma ética do cuidado e da reparação Conforme essas mudanças no espaço público, são necessários argumentos mais claros para justificar os critérios pelos quais transformações espaciais urbanas podem ser consideradas injustas e para prover uma base jurídica e política mais forte para ativismo e contestação. Muitos teóricos de renome têm defendido o espaço público equitativo, assim como uma maior expressão na esfera pública em geral, utilizando duas formulações diferentes. A primeira centra-se na “justiça”, definida como equidade relativa e avaliada comparativamente. Iris Young (2001) concentra-se nas avaliações de justiça social e questiona propostas individualistas para promover mais equidade. Ela insiste em avaliar a desigualdade em termos de grupos sociais, uma vez que as comparações baseadas em grupos podem revelar padrões importantes de desigualdades estruturais que privilegiam a alguns mais do que a outros. (YOUNG, 2001, p. 2) Na teoria da justiça, as comparações relativas de análise de direitos podem ser feitas tanto em nível individual, como do grupo. Por outro lado, as teorias dos direitos que são universais são invariavelmente de nível individual. O “Direito à Cidade”, de Henri Lefebvre (1991, 1974), propõe um imaginário utópico de uma sociedade melhor e do direito a 424 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE uma vida melhor, em que os direitos individuais ao espaço público podem ser defendidos por ações judiciais. Axel Honneth (2004, 1992) argumenta não sobre a eliminação da desigualdade, mas sim sobre a prevenção da humilhação ou desrespeito. Sua teoria da justiça fundamenta-se no grau de reconhecimento que produz dignidade humana e no direito ao reconhecimento da autoimagem. Nancy Fraser (1997) junta estas duas linhas de argumentação em seu objetivo único de “paridade participativa”, que inclui tanto o reconhecimento como a redistribuição. Luis R. Cardoso (2010) também complementa essas abordagens, acrescentando uma importante evidência entre a noção de direitos (que são iguais e universais) e a noção de privilégios (que são particularizados e relativos), ilustrando sua argumentação com um exemplo do Brasil e a proibição do uso de “elevadores sociais” por empregados domésticos que têm direitos legais, mas não têm privilégios de classe. Estas teorias da justiça e dos direitos têm sido utilizadas para abordar as preocupações de planejadores, agentes de governo, autoridades eleitas e outros legisladores. Tratar de suas preocupações práticas é essencial porque, sem uma articulação clara daquilo pelo que nos esforçamos e de alguma medida de accountability (responsabilização), é difícil lutar de forma eficaz. Foi justamente uma concessão jurídica que permitiu que o espaço público de propriedade privada do Zuccotti Park fosse utilizado pelo Occupy Wall Street, uma exceção que jamais voltará a acontecer no panorama da segurança. O primeiro desses modelos de planejamento é o renomado conceito de “cidade justa” de Susan Fainstein (2005a), baseado no “direito à cidade” de Lefebrve (1991) e no conjunto de capacidades – democracia, igualdade, diversidade, crescimento e sustentabilidade – de Nussbaum (2000), que são necessários para o pleno desenvolvimento do indivíduo. Fainstein discute a necessidade de buscar um meio-termo entre essas capacidades igualmente desejáveis mais não completamente compatíveis e questiona se um foco na diversidade obscurece a estrutura econômica. Por fim, ela defende uma teoria da justiça distributiva que é substancial e material. A força de seu argumento é que ele transporta o planejamento urbano de um quadro normativo para um quadro visionário, e pergunta sob “quais condições a atividade humana consciente pode produzir uma cidade melhor para todos os cidadãos” dentro dos limites de uma economia política do capitalismo global. (FAINSTEIN, 2005b, p. 121) Setha Low 425 Baseado no reconhecimento e na diferença, um segundo modelo é proposto por Ruth Fincher e Kurt Iveson (2008), que afirmam “a necessidade de planejar estruturas para dar atenção suficiente à diversidade das cidades, identificando e trabalhando com os diversos públicos que as habitam”. (FINCHER; IVESON, 2008) Sua abordagem ao problema é a de definir três tipos de diversidades que se cruzam, incluindo diferenças de riqueza, status e hibridismo (a gama de possíveis identidades disponíveis para qualquer grupo). Baseando-se na “paridade de participação” de Fraser (2004), a análise de diferença e do reconhecimento deles concebe três metas de planejamento: 1) a redistribuição do espaço, serviços e instalações; 2) o reconhecimento de reivindicações políticas e as limitações de redistribuição na valorização das diferenças culturais e de contribuição; e 3) o encontro entre pessoas e grupos de identidades. A teoria deles volta-se para as preocupações de Young (2001) sobre a avaliação de desigualdades quanto aos grupos sociais, o uso do reconhecimento para promover a dignidade humana de Honneth (1992), e alia-se ao o trabalho de Fraser. Eles propõem uma abordagem mais relacional para a diversidade. (FINCHER; IVESON, 2008) Meu próprio trabalho sobre justiça social no espaço público provém da pesquisa etnográfica em parques, praças e comunidades urbanas fechadas (LOW; SMITH, 2006; LOW; TAPLIN; SCHELD; 2005; LOW; 2000), da cidade justa normativa, como proposta por Fainstein (2005b), e da minha crítica, baseada na etnografia, da asserção de Fainstein (2013) de que a diversidade não deveria estar no centro de uma análise da justiça social do espaço público. Uma outra crítica à proposta de cidade justa de Fainstein (2005) é que ela utiliza uma definição demasiado limitada de justiça, de tal modo que apenas parte de seus objetivos utópicos são cumpridos. Semelhante a Peter Marcuse (2006), que quer ir além de uma teoria da justiça distributiva e, pelo contrário, quer concentrar-se nas dimensões da solidariedade e da diferença, eu verifiquei que, sozinhas, as soluções de redistribuição não resultam em equidade na vida cotidiana. Muito mais próximo do conceito de Fincher e Iveson (2008), mas desenvolvido a partir da literatura de psicologia social e organizacional, eu defendo que três dimensões de justiça – distributiva, procedimental e interacional – são essenciais para discutir os múltiplos tipos de iniquidade, injustiça e indignidades que as pessoas sofrem no espaço público. 426 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE Porque estes processos têm grande influência, as conceituações de outros teóricos – incluindo o “reconhecimento e dignidade” de Honneth (2004), a “paridade de participação” de Fraser (2004) e a noção de encontro de Andy Merrifield (2012) – podem ser incluídas nestas dimensões, acrescentando nuances e camadas das práticas políticas para a derivação psicológica deles. Esta concepção admite que as noções de diversidade e de diferença de Iveson, Young e Fraser, como as de Fincher, são fundamentais no que diz respeito ao espaço público. Explorando e desenvolvendo este trabalho sobre justiça social e cidades, eu apresento cinco propostas para definir o tipo de justiça social que deveríamos exigir para o espaço público. Concluo aplicando cada uma delas às ruas de Nova Iorque e de São José, na Costa Rica. Espaço público e justiça distributiva A justiça distributiva refere-se a questões de como a riqueza, recompensas, benefícios e encargos da sociedade devem ser distribuídos para que se conquiste uma cidade justa. A discussão gira em torno de se os benefícios econômicos e encargos deveriam ser revestidos para os indivíduos de forma igualitária, de acordo com a necessidade, de acordo com o mérito ou, de forma desproporcional, para aqueles menos abastados. (RAWLS, 1971) “A teoria da equidade defende que imparcialidade significa que as recompensas das pessoas devem ser proporcionais às suas contribuições”. (TYLER, 2000, p. 118) Para ser mais preciso, percebe-se que a proporção de recompensa/distribuição para uns deve ser equivalente àquela proporção de “comparação com o outro”. (WHITEMAN et al, 2012) Um foco na justiça distributiva gera dois tipos de perguntas importantes: qual é a distribuição geográfica dos espaços públicos no extenso ambiente urbano? A distribuição dos espaços públicos em toda a paisagem garante que habitantes de toda a cidade tenham acesso independentemente da sua riqueza e/ou capacidade de pagar ou eles vivenciam “desvantagem por consequência de localização”? Resultados desiguais sugerem que a distribuição é injusta, uma vez que são o produto de processos que, de forma sistemática, produzem Setha Low 427 e mantêm as desigualdades através de distribuições que favorecem os ricos em detrimento dos pobres. Um exemplo disso é a forma com a qual os parques infantis são distribuídos no Prospect Park, no Brooklyn, onde existem três parques infantis no lado rico e branco, e nenhum no lado mais pobre e preto do parque. (LOW; TAPLIN; SCHELD, 2005) Espaço público e reconhecimento Junto à redistribuição, o reconhecimento visa abordar a desvalorização e estigmatização sistemática de algumas identidades urbanas e estilos de vida nas cidades. Disputas sobre todos os tipos de questões urbanas são instigadas por grupos que defendem que os seus valores e necessidades específicas deveriam ser considerados. Quando tais grupos sentem que suas identidades e jeitos de viver a cidade são injustamente denegridos ou estigmatizados, a justiça social torna-se uma questão de status e possui uma dimensão intersubjetiva: a busca pela igualdade implica trabalhar contra “padrões culturais que, sistematicamente, desaprovam algumas categorias de pessoas e as características associadas a elas”. (FRASER, 1998, p. 31) No que diz respeito ao espaço público e à justiça social, um foco no reconhecimento chama a atenção para as normas de uso e comportamento que estão entrincheirados na prestação e regulação dos espaços públicos. É provável que a formação e expressão de identidades coletivas seja demasiado dependente do acesso aos espaços públicos, onde os membros de um determinado grupo podem interagir uns com os outros. Diante disso, se certas formas de ocupação do espaço público são vistas como estando “deslocadas” em um determinado espaço público, e se elas estão relacionadas às práticas regulatórias das autoridades e de outros habitantes urbanos, isso poderia resultar em injustiça para alguns grupos da cidade. (CRESSWELL, 1996; IVESON, 2007) Um exemplo claro é a maneira como as visões, os sons, os cheiros e as práticas associadas a alguns grupos de migrantes são discriminados pelas regulamentações que, explícita ou implicitamente, universalizam as normas de grupos que reivindicam o status de “anfitrião” em alguns parques urbanos e a falta de reconhecimento de outras práticas culturais. (LOW; TAPLIN; SCHELD, 2005) 428 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE Espaço público e justiça interacional O conceito de justiça interacional refere-se à qualidade da interação interpessoal em uma situação ou local específico. Os psicólogos constatam que, em larga escala, os indivíduos fazem as avaliações de justiça com base na qualidade do trato interativo que recebem (CROPANZANO; RANDELL, 1993) Atributos da equidade interacional incluem veracidade, respeito, propriedade e justificativa. (BIES, 1986) No que se refere ao espaço público, a justiça interacional espelha-se em saber se as pessoas são alvos de assédio, insultos ou outro comportamento mal-educado. Às vezes, é difícil diferenciar entre questões de reconhecimento, justiça interacional, e justiça procedimental, já que todos os três incorporam elementos de equidade na forma como uma pessoa ou grupo é tratado. Mas a importância da justiça interacional não deve ser rebaixada a uma mera forma de reconhecimento ou de justiça procedimental. O não reconhecimento pode converter-se em regras que excluem comportamentos de um grupo específico em um espaço público, mas também pode haver um componente de interação no qual membros de um grupo estejam sujeitos a abusos verbais ou físicos quando ocupam o espaço público. Assim, a justiça interacional também não deve ser rebaixada a uma forma de justiça procedimental. Por exemplo, Whiteman e colaboradores (2012) concluíram, com base em uma meta-análise de estudos organizacionais empíricos, que um clima de justiça interacional positivo e comportamentos interpessoais respeitosos aumentaram significativamente a cooperação por toda a organização. Durante o Occupy Wall Street e as rebeliões na Praça Tahrir, por exemplo, houve repetidos relatos de um clima palpável de confiança e cooperação que se desenvolveu entre os manifestantes comprometidos com o tratamento respeitoso a todos os participantes ocupando aqueles espaços públicos. Cuidado e reparação Já que a justiça interacional baseada em um tratamento respeitoso e na ausência de abuso físico e verbal contribue para o reforço da cooperação, resulta que o comportamento pró-social, tal como o cuidado com os outros e Setha Low 429 participação na reparação do ambiente, constitui também uma forma de justiça social no espaço público. Os últimos anos presenciaram uma evolução convergente na literatura, a partir de diversas perspectivas disciplinares, em torno da questão do cuidado. Estas correntes intelectuais incluem esforços por algumas economistas feministas para construir quadros analíticos para compreender a “outra economia”, em que a produção direta e manutenção dos seres humanos ocorrem, assim como para desenvolver metodologias para medir e valorá-la. Da investigação política social tem havido combinados esforços para produzir análises de regimes do bem-estar, trazendo à tona questões do cuidado. Esses diversos compromissos conceituais e empíricos tem sido enriquecidos por uma conversa filosófica sobre a “ética do cuidado” que questiona a limitação de uma ética do trabalho remunerado que impulsiona as agendas e reformas políticas entre os estados de bem-estar social. (UNRISD, 2014) Embora não seja bem desenvolvido como um conceito no planejamento e na política do espaço público, o ativismo ambiental das mulheres é muitas vezes descrito de uma maneira maternalistica, como se a maternidade e o cuidado com o meio ambiente andassem de mãos dadas (MACGREGOR, 2006), e a proposta central da integridade ecológica e justiça social baseia-se nas políticas do cuidado. (MORGAN, 2010) Solidariedade política e social é muitas vezes construída a partir de ambos os cuidados, cuidado com o outro e cuidado com o ambiente. Por exemplo, o Occupy Wall Street (OWS), em Nova Iorque, foi baseado em uma política do cuidado que enfatizou a garantia de que todos tivessem um lugar seguro para dormir, acesso à tecnologia da comunicação e refeições coletivas. Casacos, roupas e suprimentos para as necessidades básicas foram coletados nas empresas e casas dos arredores para atender às necessidades físicas dos participantes do OWS e destacar que cuidar uns dos outros foi fundamental para uma política dos “99%”. O estudo de Tom Hall (2013) sobre voluntários que trabalham com pessoas sem-teto em Cardiff, no Reino Unido, demonstra o papel que a “bondade” desempenha na “boa cidade” e retrata uma cidade solidária como uma cidade mais resiliente e que contribui para a sociabilidade. Cuidado no espaço público, neste sentido, concentra-se em atender às necessidades do outro, não apenas passivamente através do reconhecimento ou interação, mas de formas pró-sociais que melhoram a vida. Um exemplo disso é o vendedor 430 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE de rua, na Columbus Circle, em Nova Iorque, que auxilia na segurança de jovens mães e crianças, advertindo-os sobre visitantes perigosos, ratos ou uma calçada escorregadia e chamando uma ambulância ou a polícia, quando necessário. Outros “personagens públicos” que habitam o espaço público (TONNELAT, 2013), tais como os engraxates do Parque Central (LOW, 2000) de São José, na Costa Rica, ou o autoproclamado “prefeito do parque” do praça central do Denver, Colorado, prestam cuidados ao prestar atenção às crianças, idosos e qualquer um que esteja perdido ou confuso. Uma ética do cuidado no espaço público também incluiria “reparação” – as frequentemente esquecidas, mas onipresentes, ações de manutenção e conservação, física e social –, o que mantém o andamento da cidade e seus moradores. atos de bondade de menor escala e as atividades de reparação, tais como recolhimento de lixo ou colocar flores em um espaço público não são simplesmente alentadores, mas contribuem para uma sensação de bem-estar e para criar um contexto para que as outras formas de justiça e reconhecimento floresçam. Cuidado e reparação podem ser compreendidos e avaliados como parte da justiça social no espaço público porque falam para e representam uma tolerância para com os outros, que promovem as bases para estabelecer um lugar socialmente justo. Espaço público e justiça procedimental Cada uma das quatro propostas anteriores gera questões sobre os processos através dos quais espaços públicos socialmente justos são produzidos – através de quais processos os recursos estão destinados à sua manutenção e suprimento, e através de quais processos suas regras de utilização e normas de interação são estabelecidas? Justiça procedimental refere-se à maneira como estes processos de negociação e de tomada de decisão influenciam na forma como as situações são compreendidas como justas pelos indivíduos. Psicólogos observaram que os resultados distributivos não são a única questão relevante para determinar a percepção de equidade das pessoas. (TYLER; BLADER, 2003) A maneira em que uma pessoa é tratada é igualmente importante. Enquanto as primeiras pesquisas sobre justiça social apoiavam as Setha Low 431 descobertas de que as pessoas se sentiam mais satisfeitas quando os resultados eram distribuídos de forma justa, pesquisas posteriores constataram que os resultados da justiça distributiva eram muitas vezes tendenciosos, e que a favorabilidade de um resultado era menos importante quando o processo de distribuição subjacente era percebido como justo. (CROPANZANO; RANDALL, 1993; TYLER; BLADER, 2003 ) Uma pesquisa recente sobre os contatos com a polícia na Austrália concluiu que um modelo relacional de autoridade que enfatiza o papel da justiça procedimental estava associado com uma “percepção maior da legitimidade, resultado da equidade e satisfação com o contato”. (ELLIOT et al 2011, p. 592) Além disso, um clima de justiça procedimental também pode ser manifesto em contágio emocional e, mais comumente, em um senso de confiança. (WHITMAN et al, 2012) Um exemplo de justiça procedimental é disposto pelo sistema jurídico dos EUA e os procedimentos formais relacionados aos processos de tomada de decisão nos tribunais. (THIBAUT; WALKER, 1975) Se uma pessoa percebe o sistema jurídico e os seus procedimentos como justo, então o autor está mais disposto a aceitar o resultado, independentemente de saber se este está a seu favor. Ruas de Nova Iorque e São José, Costa Rica Para investigar como essas propostas funcionam, cada uma é explicada com uma breve avaliação das condições de rua em Nova Iorque e São José, na Costa Rica, a partir das perspectivas de justiça distributiva, interacional e procedimental, assim como o reconhecimento e uma ética do cuidado e da reparação. Na cidade de Nova Iorque, examino duas paisagens urbanas – uma beirando a Herald Square, na Broadway, entre as ruas 34 e 35 (Figura 1); e a segunda, a Times Square (Figura 2). A justiça distributiva deve levar em consideração toda a cidade ou, pelo menos, uma parte da cidade, para julgar onde e quando a distribuição das ruas e calçadas são iguais ou desiguais às necessidades e número de usuários. A maioria dos moradores e visitantes da cidade de Nova Iorque alegaria que, enquanto parece haver uma distribuição 432 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE igual de ruas devido ao traçado geral do seu plano ortogonal, em algumas partes da cidade, ruas e calçadas são inadequadas para o fluxo de pessoas, em mau estado de conservação ou estão tomadas por restaurantes e cafés e por comerciantes exibindo mercadorias. Figura 1 – Herald Square na Broadway entre as ruas 34 e 35 Fonte: Acervo da autora. Setha Low 433 Figura 2 – Times Square Fonte: Acervo da autora. A Broadway entre as ruas 34 e 35 e a Broadway estendendo-se até a Times Square possui elementos desta forma de privatização (Figura 3). 434 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE Figura 3 – Broadway entre as ruas 34 e 35 Fonte: Acervo da autora. Mas, ao mesmo tempo, algumas das ruas da Times Square foram transformadas em novos e flexíveis espaços públicos, que dão aos pedestres e às suas atividades mais espaço para desfrutar da vida herética da região (Figura 4). Por outro lado, taxistas e outros motoristas de empresas de serviço automotivo queixam-se de que priorizar as ruas para os pedestres (e ciclovias para os ciclistas) é injusto com relação à necessidade que eles têm de mover-se rapidamente pelas ruas da cidade para ganhar a vida. No tocante ao reconhecimento, estudos sobre a Times Square e a Herald Square (BRASH, 2012; CHESLUK, 2000; LOW 2013; MILLER, 2006,) constatam que vendedores senegaleses, indivíduos e famílias que estão desabrigados, imigrantes à espera de trabalho, mendigos, alguns tipos de vendedores ambulantes e pessoas transeuntes, e alguns grupos de adolescentes negros, não são reconhecidos como usuários legítimos do espaço público. Regras e regulamentos sobre circular e dormir no espaço público são utilizados para expulsar e restringir a presença desses grupos não reconhecidos. Setha Low 435 Figura 4 – Times Square Fonte: Acervo da autora. A justiça interacional nessas ruas varia consideravelmente, a depender da identidade da pessoa, da hora do dia e do dia da semana. Policiais podem ser abusivos, especialmente à noite ou nos fins de semana, quando há um grande número de pessoas e a atmosfera é tensa. As interações ficam ainda mais complicadas com o atrito entre pedestres e carros, pedestres e bicicletas e bicicletas e carros, e os conflitos podem ser bem difíceis, estressantes e até mesmo violentos. Entre aqueles que trabalham (vendedores, mendigos) e se apresentam (palhaços, cantores, breakdancers) nas ruas e calçadas pode haver brigas sobre o uso de locais privilegiados. Estes conflitos podem ser atribuídos à falta de 436 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE justiça procedimental na distribuição destes pontos principais. Por outro lado, exemplos positivos de justiça interacional podem ser encontrados nas negociações dos diferentes moradores, pedestres e trabalhadores que ocupam estas ruas e na tolerância que têm entre si e de suas atividades contraditórias. Uma ética de cuidado e reparação amortece algumas dessas interações negativas que ocorrem diariamente na rua. Instituições religiosas e outras organizações de caridade e voluntariado fornecem refeições diárias para as pessoas necessitadas nas calçadas, e mendigos muitas vezes ganham uns “trocados”. Policiais e seguranças, lojistas, vendedores e moradores locais dão informações turísticas e ajudam as pessoas a se encontrar, e vão parar para conduzir uma pessoa até sua casa, caso esteja perdida. Cuidar cria uma atmosfera socialmente justa, mas não elimina o impacto negativo da discriminação por parte das autoridades contra os cidadãos não reconhecidos e moradores de rua ou a falta de justiças procedimentais na distribuição do espaço de atuação. Em São José, na Costa Rica, algumas das mesmas avaliações de justiça se aplicam, mas existem algumas diferenças. A distribuição de ruas, por exemplo, não é equitativa em toda a cidade e varia em relação à qualidade da rua ou a existência de uma rota caminhável ou dirigível. Áreas mais ricas da cidade têm mais ruas e, em alguns lugares, até mesmo mais calçadas, enquanto muitos bairros sobrevivem sem pavimentação ou calçadas que tornam a mobilidade insegura na estação chuvosa. As pessoas que não são reconhecidas como pertencentes às ruas do centro da cidade são constantemente vigiadas e, às vezes, removidas pela polícia, se percebido que estão envolvidas em um crime. Autoridades da cidade mudaram as regulamentações locais do espaço público, redesenharam as calçadas e praças e identificaram grupos específicos de pessoas que não são mais permitidos no espaço público. Muitas vezes, os engraxates, aposentados e vendedores só são permitidos usar ruas e áreas onde tenham assentos periféricas, numa tentativa de “limpar o centro da cidade” para a classe média e os turistas. No comércio, vendedores “estrangeiros”, ou seja, aqueles que não são da Costa Rica, foram banidos das calçadas por causa da concorrência que faziam às empresas locais, até que protestaram e processaram a cidade para serem reconhecidos como trabalhadores com direito de ganhar a vida. Setha Low 437 Estas práticas que restringem o uso das ruas, calçadas e praças são impostas por processos procedimentais como o indeferimento de licenças para vendedores que queiram trabalhar legalmente na calçada, praça ou rua e através do desígnio de espaços para usos particulares com regras e regulamentos publicados. Instituições poderosas, como o Banco Nacional, que administra e financia a Plaza de la Cultura, o Teatro Nacional, coordenado pelo Ministério da Cultura, e o Hotel da Costa Rica, um hotel turístico privado, pressionam as autoridades municipais a controlar quem pode usar as ruas, calçadas e praça, de forma a incentivar que mais turistas e a classe média usem-nas. Muitas formas de controle são empregadas, incluindo programação especial, fechamento de espaços, seguranças profissionais, mais “policiais turísticos” para proteger os visitantes e outras estratégias. A justiça interacional das ruas de São José sofre dos mesmos abusos e interações carregadas de conflito encontrados na cidade de Nova Iorque. No entanto, costarriquenhos são mais envolvidos em “viver calmamente” (vivir tranquilo), de modo que o nível das disputas pareça moderado, pelo menos do ponto de vista de um nova-iorquino. Muitos dos conflitos observados com as autoridades policiais foram respeitosos e calmos. Os seguranças do Hotel da Costa Rica e do Teatro Nacional, porém, são mais verbal e fisicamente agressivos do que a polícia, e as pessoas que pedem dinheiro aos turistas nesses locais são tratadas bastante grosseiramente. A ética do cuidado em San José ganha uma roupagem mais individual do que em Nova Iorque. É raro observar voluntários distribuindo comida às pessoas necessitadas das ruas, mas outros atos de bondade, como olhar o bebê de alguém enquanto a mãe faz algo ou ajudá-la a atravessar a rua com seu carrinho, são evidentes. As pessoas que se conhecem guardam o assento preferido do seu amigo e avisam a vendedores ilegais se a polícia passar por ali. Estes dois exemplos das ruas da cidade são tentativas de ilustrar como a justiça social poderia ser avaliada no espaço público. Embora seja complexa na sua aplicação, as cinco propostas abrem para uma discussão mais ampla sobre a importância do espaço público para uma cidade justa e sugerem alguns passos iniciais para analisar seu potencial. 438 ESPAÇO PÚBLICO E DIVERSIDADE Conclusão Este capítulo propõe uma ampla definição de justiça social, que inclui dimensões distribucionais, procedimentais e interacionais, assim como o reconhecimento e uma ética do cuidado e da reparação como forma de melhorar os espaços públicos urbanos que estão sendo limitados e homogeneizados por meio de estratégias de governança neoliberais. Propositadamente, evitei adotar uma definição estreito de espaço público com a esperança de usar o termo em um sentido geral, que inclui infraestrutura pública (tais como sistemas de trânsito e de ruas), instituições públicas (como bibliotecas), assim como espaços públicos apropriados (como os espaços de transição, emprestados e entre-espaços) e espaço público temporário de performances (como apresentações de arte pop-up e praças). Além disso, tenho intencionalmente enfatizado os aspectos físicos e do meio edificado do espaço público. Defendo que cada vez mais o espaço público tem se tornado o local mais importante para a produção de uma esfera pública social e politicamente diversificada. Portanto, por todas estas razões, parece fundamental que o planejamento, gestão, design e uso do espaço público reflitam múltiplas dimensões da justiça social. Se os espaços públicos não são socialmente justos de diversas formas, uma política de exclusão, em vez de uma de inclusão, continuará através do atual regime de neoliberalismo e de governamentalidade cívica. (ROY 2009) Referências BIES, R. J.; MOAG, J. S. Interactional justice: Communication criteria of fairness. In: LEWICKI, R.; SHEPPARD, B. H.; BAZERMAN, M. Research on Negotiation in Organizations. Greenwich, CT: JAI Press, 1986. p. 43–55. BRASH, J. Bloomberg’s New York: class and governance in the luxury city. Athens, GA, & London: University of Georgia Press, 2011. CAMPBELL, H. Just planning: the art of situated ethical judgement. Journal of Planning Education and Research, Thousand Oaks, CA, v. 26, n. 1, p. 92-106. 2006. CARDOSO, L. R. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, n. 2, p. 451-73, 2010. Setha Low 439 CHESLUK, B. J. Money Jungle: Imaging the New Times Square. New Brunswick, N. 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Setha Low 443 Michel Agier Tradução: Christine Nicole Zonzon Revisão técnica: Dário Ribeiro de Sales Jr ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? Deslocamentos, margens e dinâmicas das fronteiras urbanas Enquanto buscamos prever hoje de que serão feitas as cidades de amanhã, e até perguntamos se a ideia de cidade continuará sendo plausível no futuro, alguns descentramentos se fazem necessários para antecipar as possibilidades da cidade futura. Estes descentramentos do conhecimento tornam-se imprescindíveis em função do atual processo de mundialização e da necessária consciência de uma solidariedade “orgânica” em escala mundial. Com efeito, meu argumento é que o conceito durkheimiano de “solidariedade orgânica” (DURKHEIM, 1991) deve ser aplicado hoje não à cidade (concebida na sociologia durkheimiana como espaço real das dependências indiretas entre as categorias e classes envolvidas na modernidade social), nem mesmo à sociedade específica de tal ou tal outro Estado-Nação (território político da divisão social do trabalho) mas sim à complexidade do mundo. Esta solidariedade 445 orgânica é menos normativa do que problemática: ela designa o vínculo que nos liga uns aos outros em escala planetária em praticamente todas as esferas da existência, sem que seja necessário para pensá-lo referir a uma “sociedade mundial” que nunca existiu no passado e apenas existe no presente sob a forma de um argumento político ou de uma utopia. A antropologia possui disposições epistemológicas e metodológicas capazes de contribuir para um descentramento desse olhar sobre o mundo e sobre o lugar nele ocupado pelas cidades, atuais e futuras, e de favorecer assim a concepção de um mundo não apenas comum como também partilhado. No presente texto, evocarei primeiro o contexto que relaciona a cidade e as mobilidades em escala global, e em seguida algumas fronteiras urbanas onde estabelecimentos precários transformam-se em rascunhos de cidade (AGIER, 2011), por fim, apresentarei os três eixos de um necessário descentramento antropológico da reflexão sobre a cidade e aqueles que a habitam. Cidades e mobilidades. A questão das margens urbanas O momento atual não é apenas de superação da cidade histórica, clássica, mercantil ou industrial, nem de formação de megálopoles desterritorializadas. É também marcado (e isso é um dos componentes da “desterritorialização”) por múltiplas formas de mobilidades em escalas nacional, regional e mundial. São deslocamentos condicionados (quando não sempre direta e individualmente “impostos”) pela pobreza e os desequilíbrios econômicos, pelas violências internas ou as guerras, ou ainda pela desigualdade social e econômica diante das catástrofes naturais. Para aproximar-se da sua dimensão, pode-se mencionar alguns números oriundos dos dados oficiais. São contabilizados, de modo recorrente, cinquenta milhões de “vítimas de deslocamentos forçados” (refugiados e deslocados internos) segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR), aos quais se somam conforme dados do Banco Mundial cem milhões de pessoas retiradas da suas casas no decorrer da última década em função de espoliação de terras para realização de grandes obras de infraestrutura, projetos de empreendimentos florestais, mineiros ou agroindustriais; por fim, segundo o Observatório das situações 446 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? de deslocamento internos (IDMC, órgão de referência internacional para essa questão), mais de 22 milhões de pessoas teriam sido obrigadas a abandonar seu domicílio em 2013 em razão de catástrofes naturais (inundações, tempestades, terremotos...). Além disso, 85 % desses deslocamentos tiveram lugar em países do Sul global. As previsões de deslocamento decorrentes das mudanças climáticas, dos caos políticos e das crises econômicas atuais e futuras aludem a um bilhão de “pessoas em deslocamento” nos próximos quarenta anos... Um vasto repovoamento do planeta iniciou-se, embora seja preciso lembrar que esse fenômeno diz respeito em primeiro lugar a mobilidades Sul-Sul ou Norte-Norte, e em dimensão muito menor a deslocamentos Sul-Norte. (DEPARDON; VIRILIO, 2008; WENDEN 2009 Doravante, todas as escalas devem ser permanentemente cotejadas para repensar a configuração dos espaços locais, as formas e os símbolos do apego aos lugares, o sentido dos deslocamentos, a felicidade ou o inferno das mobilidades. Pois nesses movimentos constitutivos da mundialização humana, as possibilidades ou os desejos de retorno “para casa” estão cada vez menos garantidos, os “lugares antropológicos”1 têm perdido seu caráter ancestral e herdado, ou seja sua self-evidence. Os procedimentos da identificação local estão sendo questionados de modo concreto em cada experiência vivenciada individualmente: de que maneira são reativadas hoje, nas grandes migrações internacionais ou nos deslocamentos violentos, as diferentes “técnicas de produção da localidade”? (APPADURAI, 1996, p. 178-199) A localidade (enquanto conceito) tornase ainda menos evidente como dispositivo cultural à medida que pode ser tão facilmente destruída nos fatos (enquanto prática): a perda de lugares impõe àqueles que se deslocam a problemática da identificação local – uma ou múltipla – ainda mais quando se estabilizam no exílio, caso este em que essa problemática passa a ser permanente e, de certa forma, existencial. Muitas aglomerações urbanas atuais, e futuras, formam-se em um contexto social onde o lugar antropológico e mais radicalmente ainda a “raíz” são ficções ou histórias do passado, coladas às retóricas identitárias do ser nativo ou às narrativas nostálgicas de si. (AGIER, 2015; AUGÉ, 1992; DÉTIENNE, 2003) 1 Isto é, espaços sobre os quais se fixaram memória, identidade e relações e cuja perda ou ausência funda ao contrário os “não lugares”. (AUGÉ,1992) Michel Agier 447 Tais retóricas e narrativas fazem parte das questões que as ciências sociais, e mais precisamente a antropologia pública, devem investigar. Isso porque essas narrativas e retóricas do lugar e da autoctonia não são transparentes às práticas. Ambas situam-se em um contexto mais amplo e deslocalizado que já tem inserido a mobilidade em seu fundamento. Assim, em vez de evocar sempre a perda das raízes e a necessidade do enraizamento como contexto social “normal” e referencial da ação localizada dos indivíduos, trata-se de pensar a dinâmica das mobilidades e de ancoragens cuja duração não cabe prejulgar, de elaborar topografias do exílio em vez de monografia de lugares perdidos, e apreender redes de lugares sem prejulgar da sua temporalidade e reprodutibilidade. Observa-se assim que existe, em escala mundial, uma desigualdade no acesso à mobilidade e aos lugares de ancoragem que a viabilizam: este é um dos elementos da desigualdade social em escala mundial. (BAUMAN, 1999; BAYART, 2004) Certos espaços liminares – provisórios, transitórios, intermediários – desenvolvem-se nesse contexto: vinculados às circulações as mais precárias, eles representam os novos espaços da mobilidade. Mesmo quando são concebidos como lugares de trânsito, tendem a estabilizar-se e cabe pensar que parte deles irá transformar amanhã alguns dos quadros, tanto políticos quanto teóricos, da identificação local. Quais são esses espaços emergentes que tendem a inscrever-se na duração? Os acampamentos e conjuntos habitacionais para trabalhadores temporários; as zonas de trânsito de longa duração para agrupamento dos estrangeiros “em situação irregular” e dos que pedem asilo; as antigas áreas industriais, prédios em ruínas ou abandonados, habitações vazias, invadidas ou ocupadas de forma duradoura como squats; campings habitados por viajantes estabilizados mas sem endereço fixo; os campos de deslocados criados na periferia das grandes cidades africanas; os campos e aldeias de refugiados vivendo sob o regime do governo humanitário e do controle policial; os acampamentos auto-estabelecidos e autodenominados jungles [selva] ou ghettos, geralmente considerados como os mais “clandestinos” e constantemente ameaçados de desaparecimento. (AGIER; PRESTIANNI, 2011; BERNARDOT; LEMARCHAND; SANTANA BUCIO, 2014) Desse inventário aberto, pode-se destacar que os espaços de vida de amanhã que surgem nesses lugares irão formar-se na “não cidade” de hoje. Falo em “não 448 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? cidade” no duplo sentido do termo e tomando essa definição negativa de um ponto de vista crítico: por um lado, situam-se fisicamente fora das estruturas da cidade oficial, exibida e planejada, seja nos espaços abandonados dos centros históricos ou longe dos limites urbanos, e por vezes muito longe de qualquer estabelecimento humano; por outro lado, formam-se a partir das políticas de exclusão, de abandono ou afastamento que nascem nos circuitos labirínticos da “governança urbana” e recorrem, segundo suas necessidades, à justificativa socioeconômica, étnica, racial, religiosa ou qualquer outra linguagem identitária. Em todos os casos, no plano das topografias sociais, emergem no vácuo, como espaços vazios ou terrenos baldios. Constroem-se assim sobre uma base invertida em relação àquela da cidade concebida como espaço de trocas e interações sociais ou econômicas. Juntam-se à tropa mais antiga e estabilizada das margens urbanas: as periferias de favelas, as invasiones da América Latina, os bairros “espontâneos” ou “déguerpis” 2 [despejados] da África. Espaços liminares ou margens urbanas, eles são cada vez mais entregues a um tratamento que não é social ou político, o qual remete à cidadania definida pelo vinculo do indivíduo com o Estado-Nação, mas sim a outro regime de pensamento e ação: profilático e biopolítico, securitário e humanitário. O afastamento também favorece o gerenciamento “comunitário” das questões sociais e políticas e a criação de uma alteridade radical, ao mesmo tempo biopolítica e urbana. Um regime/sistema de pensamento outro para fundar espaços outros, “heterotópicos”. (FOUCAULT 1994) O afastamento demarca e dá vida a novas fronteiras urbanas cuja exploração é fecunda. Apresentarei, de forma muito resumida, três exemplos extraídos de minhas etnografias urbanas. 2 “Déguerpissement” (despejo) e “déguerpi” (despejado) é um termo comum na África francófona para designar a expulsão dos bairros populares e a sua reinstalação em áreas periféricas distantes do centro das cidades. Fala-se “quartier déguerpi” (bairro despejado) ou “population déguerpie” (população despejada). Michel Agier 449 Fronteiras urbanas – O zongo de Lomé (Togo), cinco vezes à margem Para iniciar, volto a meu primeiro campo de pesquisa sobre os bairros chamados zongo situados em uma parte da África Ocidental – entre Níger, Burquina Faso, Benim, Togo e Gana, isto é, ao longo das antigas estradas dos mercadores itinerantes hauçá. São “bairros de estrangeiros” desde sua fundação na segunda metade do século XIX até hoje. O termo zongo (ou zango) é uma palavra da língua hauçá (amplo grupo étnico que reúne em torno de 20 milhões de pessoas originárias do Norte-Nigéria e do Níger, conhecido na África Ocidental pela importância do seu papel, passado e presente, nas redes mercantis). O termo designa as construções provisórias, as palhoças, situadas na margem da cidade, em oposição ao termo birni, a cidade intramuros. Encontramos zongos em toda parte oriental da África Ocidental, desde o Norte-Nigéria até Accra, no Gana. O zongo de Lomé (capital do Togo) teria sido o primeiro acampamento hauçá da capital togolesa fundado por um chefe de caravana (mai dugu) vindo de Salaga (antiga praça mercantil no atual Gana) na década de 1870: eram algumas palhoças próximas das raras casas de comércio na praia. Ao longo dos anos, outros comerciantes e migrantes, seguidos por outros estrangeiros muçulmanos vindo de regiões da África setentrional e por fim por migrantes chegando do Centro e do Norte do Togo encontraram ali uma espécie de refúgio: “alóctones” (segundo uma terminologia oficial antiga na África ocidental, que designa as pessoas nascidas fora da localidade de residência) vindo das regiões de savana, chegavam em uma cidade litoral marcada de longa data pela presença europeia. A pesar da forte integração, coletiva e individual, das pessoas do zongo à vida social e econômica da capital togolesa, para os habitantes de Lomé, o bairro conservou sua identidade dos primeiros tempos, identidade essa que o bispo de Lomé definia, em 1928, como lugar dos “estrangeiros sem domicílio fixo ou sem parentes nem conhecidos na localidade”. (CESSOU, 1928, p. 55) Situado em um local inicialmente marginal – mas que se tornou parte do centro da capital ao longo dos anos –, o bairro era julgado insalubre, demasiado denso, povoado por estrangeiros sem título de propriedade e pouco fiáveis politicamente para o poder instituído. O zongo foi destruído no 450 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? final da década de 1970 e déguerpi [despejado] para os confins da aglomeração urbana. Posteriormente, o “novo zongo” foi se recompondo aos poucos, ultrapassando, às vezes na ilegalidade, os limites materiais que lhe tinham sido impostos inicialmente. Trinta anos mais tarde, tornou-se uma das áreas periféricas mais dinâmicas de Lomé, ligando a cidade e os circulantes, os migrantes e os comerciantes – para os quais continua sendo referência e bairro de acolhimento – e a parte setentrional do Togo ou dos países do Sahel em cuja direção está orientado. Assim, desde a fundação do primeiro “acampamento hauçá” no final do século XIX, o zongo sempre foi relegado à margem do perímetro urbano (foi submetido a cinco “déguerpissements”) mas se recriou socialmente a cada reinstalação. Seus residentes designam-se às vezes como hauçás, contudo o etnônimo é extensível já que os nativos das diferentes regiões sudano-saheliana (com mais de cinquenta identidades étnicas diferentes) podem também, a depender do contexto, se dizer ou serem designados como “hauçás”. Mais comum ainda (particularmente entre os jovens), os habitantes designam-se pelo nome “zongolês”, que seria antes um “urbánimo” do que um etnônimo, fazendo assim do nome do lugar o nome de reconhecimento e identificação no contexto urbano. (AGIER, 1999; SPIRE 2011) Assim, o estrangeiro das cidades, que os “hauçás” ou “zongoleses” encarnam desde sua mais remota razão de ser e de se deslocar, e em sua disposição territorial, aparece aqui em toda sua ambigüidade. Encarna uma tensão permanente entre a itinerância e o sedentarismo: são “estrangeiros” que não abriram mão da liberdade de ir e vir, retomando a formulação de Georg Simmel (1984), mas que não seguiram seu caminho. E é enquanto estrangeiros “em casa” no bairro dos estrangeiros, estrangeiros alojando estrangeiros, réplica dos nativos, que “se estabelecem” na capital togolesa, Fronteiras urbanas 2 − O acampamento dos migrantes de Patras na Grécia Em 2009 e 2010, desenvolvi uma pesquisa junto com Sara Prestianni (fotógrafa, então coordenadora da rede associativa Migreurop) sobre os lugares de fixação relativa dos migrantes que circulam pela Europa. Enquanto esperam Michel Agier 451 obter uma hipotética estabilidade, circulam e se fixam provisoriamente na proximidade imediata das fronteiras. Este é o caso do acampamento de Patras na Grécia. Esse acampamento, que recebeu entre 500 e 2000 ocupantes a depender dos períodos, era situado a algumas dezenas de metros do Porto da cidade donde saem caminhões de mercadoria para Itália. Os migrantes tentam subir nos caminhões para atravessar, escondidos na carroceria dos veículos que são colocados nos porões dos navios. (AGIER; PRESTIANNI, 2011) Mahmoud é apresentado como o “líder” do acampamento. Ele tem formação em serviço social, porém, na migração, tem circulado entre Patras e Atenas e é dono de um dos dois pequenos armazéns do acampamento. Ele diz: “Patras é uma cidade fora-da-lei”. Paradoxo inerente a esses hors-lieux [lugares de fora], passados 12 anos de existência, o acampamento de Patras tornou-se um lugar de referência, um ponto fixo nos caminhos múltiplos embora semelhantes, da migração. Patras é conhecida de todos aqueles que se engajam nesses caminhos. É tão conhecida quanto Zahedan (na fronteira entre o Irã, o Paquistão e o Afeganistão) ou Calais, no Norte da França. Esses lugares tornaram-se, em parte, encruzilhadas cosmopolitas: são etapas de percursos que têm o mundo como escala, percursos sempre ariscados, imprevisíveis, que levam do Afeganistão (ou do Paquistão, ou do Irã) à Europa... mas o exílio pode mudar de perímetro – como o exílio africano que vai para Europa mas também, mais recentemente, para o Oriente Próximo, América Latina ou Ásia. Esses marcos referenciais cosmopolitas não deixam de ser bastante locais. Estão inscritos à margem em seus contextos urbanos de duas maneiras. Por um lado, por ter vários anos de existência, localmente receberam uma pátina, os recém-chegados encontraram habitações já construídas e “habitadas”. Inseriram-se aí como nós nos inserimos em um lugar que já tem alguma história (doze anos de existência em Patras), certas relações internas (vínculos de amizade desenvolvidos nos momentos de espera, mas também tensões mais antigas com os iraquianos ou os sudaneses), e também um tanto de identidade externa (é na Grécia que se começa a falar do “acampamento de Patras”). Por outro lado, esses lugares fazem parte da história das cidades onde nasceram: histórias de conflitos mas também de solidariedades, quer os 452 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? apoios trazidos pelos habitantes e associações da cidade tenham sido humanitários, jurídicos ou políticos. Se o acampamento de Patras teve doze anos de existência (do final de 1996 até a sua destruição pelo fogo e pelas escavadeiras), é graças à repetição de uma “tolerância” municipal fruto de um compromisso entre a pressão exercida por alguns moradores hostis, a das associações de defesa dos direitos dos estrangeiros e a dos migrantes buscando abrir caminho em direção ao porto. Embora haja uma rotatividade considerável dos ocupantes, alguns conseguiram estabelecer-se e permanecer até dois anos no acampamento, abrindo um comércio de restauração, de produtos de primeira necessidade ou assumindo posições de liderança. Lugar estável em meio a percursos incertos, erráticos, o acampamento de Patras acaba sendo ele mesmo uma extensão da larga fronteira onde se encontram os migrantes em errância às portas da Europa, sem conseguir atravessá-la. (CLOCHARD, 2012) Fronteiras urbanas 3 – O squat de Gaza Hospital (Beirute, Líbano) O terceiro exemplo que gostaria de apresentar versa sobre a ocupação de um prédio de onze andares, chamado de “Gaza Hospital” no bairro de Sabra em Beirute. Construído na década de 1970 pela Organização de Liberação da Palestina (OLP) cuja sede era então situada naquele bairro de Beirute, o hospital foi progressivamente abandonado depois da evacuação da OLP em 1982 e sua instalação em Tunis. Parcialmente destruído em 1982 na invasão do bairro pelo exército israelense (em que ocorreram os massacres de Sabra e Chatila), e depois incendiado durante a “guerra dos campos” e a “guerra interna” em 1986 e 1987, foi abandonado por toda equipe médica no final desse último acontecimento. (ABOU-ZAKI, 2014) Segundo narrativas colhidas em 2012, o squat do Hospital de Gaza teria sido fundado em 1987 por três mulheres palestinas fugindo das violências do campo vizinho de Chatila que perambulavam pelas ruas de Sabra com seus filhos à procura de um abrigo. Elas entraram no prédio que tinha sido desertado depois de um incêndio ter danificado vários de seus Michel Agier 453 andares. O exército sírio que ocupava a área de Sabra as deixou se instalarem no prédio parcialmente em ruínas. “Logo, em três dias, as pessoas chegaram e ficou cheio”, relata uma das três fundadoras do lugar. Outros refugiados palestinos vindos de Chatila, seguidos por outros mais chegando dos campos de Beirute e de outros lugares da cidade juntaram-se a elas. Hoje controlado por duas famílias palestinas que realizaram grandes investimentos na transformação do prédio, o Hospital de Gaza tornou-se uma residência mais ou menos estabilizada para famílias palestinas e líbano-palestinas, famílias sírias instaladas de longa data e, mais recentemente, trabalhadores migrantes e um grande número de refugiados sírios. Também residem alguns migrantes egípcios e sudaneses e migrantes bengalesas mais recémchegadas no Hospital de Gaza. Estas últimas alugam quartos no subsolo que foram construídos por um dos filhos de uma das duas principais famílias do squat. No final de 2012, havia um total de 127 habitações de tamanhos variáveis (a maior parte com um ou dois cômodos além de alguns raros apartamentos de três ou quatro cômodos) e um pouco menos de 500 habitantes. O squat passou de oito andares no momento da sua abertura para dez hoje e um décimo primeiro está em construção. Ninguém possui título de propriedade, entretanto é possível distinguir quem é considerado ou proprietário, ou hóspede, ou inquilino. Para uns poucos, o squat tornou-se um recurso, objeto de investimento (obras) e de lucro (locação), embora a impressão geral seja a de uma “favela verticalizada”, extremamente precária em termos de higiene, fornecimento de água e luz, saneamento. Uma ONG norueguesa, Norwegian Refugee Council (NRC), apoiada pela Agência Europeia para Ação Humanitária (Agence européenne pour l’action humanitaire) ECHO, desenvolveu ações de melhoria do saneamento do prédio em 2008. Os habitantes menos legítimos e mais frágeis de Chatila permaneceram no squat Gaza Hospital já que não puderam justificar o direito a uma reinstalação no campo, no momento da sua reconstrução sob a égide da UNRWA, Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos, depois do fim da “guerra dos campos”. São ilegítimos, seja porque moravam nas zonas não oficiais de Chatila, à beira dos limites do campo, seja porque eram hospedados ou sublocatários sem título dentro do próprio campo. Portanto, sob muitos aspetos, o Hospital de Gaza constitui uma extensão do campo de Chatila. 454 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? Aliás, é por esta razão que a ONG NRC desenvolveu sua intervenção, a partir do seu escritório situado no campo de Chatila. Os vínculos familiares e de amizade com os habitantes de Chatila permanecem fortes. No dia a dia, as poucas centenas de metros que separam os dois lugares são rápida e regularmente percorridas. Contudo, o squat não depende da excepcionalidade jurídica e política do campo, encontra-se em um espaço inteiramente libanês e beirutiano. Assim, à ilegitimidade de Chatila, os habitantes do Hospital de Gaza veem somar-se a ilegalidade jurídica de sua instalação no bairro de Sabra – a não ser que seja simplesmente um vazio jurídico quanto ao estatuto e o devir dos bens da autoridade palestina após sua saída de Beirute. Acrescenta-se além disso a má reputação ligada à insalubridade do lugar ou rumores evocando tráficos de armas – como se um “contágio” palestino tivesse se espalhado dos campos para a cidade passando pelo Hospital de Gaza... Atualmente, o squat é o espaço de uma presença urbana duradoura para várias gerações de refugiados e migrantes em situação precária, uma presença mesmo que marginal na cidade. Para eles, o squat é uma das possibilidades de acesso à cidade: refugiados e filhos de refugiados palestinos vindo de diversos lugares no Líbano, trabalhadores sírios, egípcios, sudaneses do Norte e do Sul, [mulheres] migrantes Cingalesas, bengalesas, etíopes. O squat Gaza Hospital partilha a fama de Sabra, que os comentários libaneses qualificam como “zona de miséria cosmopolita”. Reunindo várias gerações e diversas ondas de migrantes e refugiados, o squat é, de uma só vez, o lugar de uma alteridade renovada na cidade e um lugar de mobilidade. Mesmo quando são estabilizados (para uns, os mais velhos, há entre 20 e 27 anos), aquelas e aqueles que vivem ali se imaginam em trânsito. Os refugiados palestinos e sírios esperam (ou fingem esperar) um retorno às terras donde tiveram que fugir e os migrantes veem sua passagem pelo Hospital de Gaza como uma etapa dentro de um ciclo maior de mobilidade. A fronteira urbana e o sujeito As situações de fronteira que foram descritas brevemente encarnam um “fora” distante ou próximo: o fora distante é aquele donde vieram os ocupantes, o fora próximo localiza-se numa extraterritorialidade, sofrida ou desejada, Michel Agier 455 no limiar da ordem urbana. Pois não se trata apenas de um fora das fronteiras administrativas do Estado-Nação (embora a figura do migrante seja geralmente associada à da invasão seguida da ocupação), mas também de um fora da ordem urbana. Um elemento novo, imprevisto na ordenação urbanística, chega por um lugar que cumpre a função de fronteira. É isso que faz da fronteira o lugar do sujeito, político ou urbano: ele encarna, ou antes, “subjetiva” uma discordância em relação à partilha do lugar estabelecido, e mais particularmente da cidade. Logicamente, o lugar desse sujeito encontra-se no limite externo do perímetro administrativo ou urbanístico da cidade, como no caso dos acampamentos hauçás da África Ocidental evocados acima: o zongo (acampamento) define-se por se distinguir do birni (a cidade). De modo semelhante, “eu me refugiei ali” é a frase política do migrante afegão estabelecido em um acampamento em Patras (Grécia) ou Calais (Norte da França), no limite da cidadefronteira e na entrada do seu porto. Uma projeção apreensiva com o futuro desses espaços vislumbrará a progressiva fixação de uma extraterritorialidade ao mesmo tempo urbana e política, uma marginalidade urbana que repousa essencialmente sobre um rechaço à margem do Estado e aquém do exercício comum da cidadania. (DAS; POOLE 2004) Nestas condições, seja seu futuro posto, de bom grado ou não, sob o signo de um governo humanitário, de um governo securitário ou de um governo comunitário, o horizonte que se desenha em todos esses casos tem a espacialidade do afastamento e a forma social e política de um governo sem cidadãos. Diante de tal perspectiva, perguntar se os espaços da mobilidade precária e da margem podem fundamentar ancoragens urbanas duradouras e, até, fundar cidades, vai muito além de uma questão teórica. Envolve um conflito sobre a forma e os atores da mundialização, por um lado, e sobre o futuro das cidades, por outro. É esta questão que gostaria de tratar para finalizar, a da forma-cidade em geral, a da nossa capacidade em compreender certa universalidade da cidade. Uma antropologia da gênese das cidades Para abordar essa questão, é preciso lembrar primeiro a precariedade, no tempo, na matéria e no espaço, desse lugares-fronteiras donde parte meu 456 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? raciocino: surgem, transformam-se ou desaparecem rapidamente, o risco de serem destruídos e de ter que se reconstruir alhures sendo onipresente. É mais particularmente o caso dos atuais acampamentos de estrangeiros na Europa, sejam eles afegãos, roms, sudaneses, sírios, iraquianos ou eritreus. Diante das políticas “imunitárias” das sociedades democráticas europeias (BROSSAT, 2003) que visam sobretudo a torná-los invisíveis, esses acampamentos têm se confrontado constantemente com a questão do seu próprio desaparecimento. (AGIER; PRESTIANNI, 2011) As políticas de rechaço e a formação de uma cultura das “margens” urbanas são, portanto indissociáveis como o mostram as pesquisas recentes sobre os squats na França (BOUILLON, 2009) e sobre os subúrbios populares. (BEAUD; PIALOUX 2003; LAPEYRONNIE, 2008) Em síntese, e lançando mão de dois conceitos que uso tanto a respeito das margens urbanas quanto dos campos de refugiados e de deslocados, toda etnografia dos hors-lieux [lugares de fora] (margens, interstícios, espaços de trânsito, lugares precários, acampamentos e campos) implica necessariamente uma antropologia do ban-lieu 3[lugar do banido], isto é, do lugar de confinamento do banido cujo afastamento político e territorial possibilita todas as dominações e exclusões, quer sejam econômicas, culturais ou raciais. É o Estado distante que decreta o conteúdo, os atores e a forma do ban-lieu. Ele localiza a sua própria margem como sendo seu « fora », e neste fora circunscreve e encerra qualquer ideia de uma alteridade somente definida através de dissecação e separação, mediante a distância e a oposição à Cidade e ao Estado. Assim, o gueto (WACQUANT, 2006), e de modo mais geral a “margem” urbana apenas é margem ou limite quando está à margem do Estado e dos direitos sociais comuns. E a etnografia urbana é indissociável de uma antropologia política, ou até mesmo, de uma antropologia da cidade em geral: o desnudamento dos estabelecimentos humanos da “margem” e a possibilidade de observar desde dentro [deles] seus processos relacionais, culturais e políticos de transformação, fundamentam análises da gênese das cidades em geral. (AGIER, 2011) 3 O termo ban-lieu remete (sendo seu homônimo) ao substantivo banlieue que pode ser traduzido por subúrbio. Michel Agier 457 Tais descrições desvendam surgimentos ou gêneses cujo desfecho desconhecemos. Para apreendê-los por inteiro, faz-se necessário um tríplice descentramento do olhar. Em primeiro lugar, um descentramento cultural. Os saberes e imaginários atuais da cidade constituíram-se historicamente no mundo ocidental e só parcialmente correspondem à realidade múltipla dos fatos urbanos no mundo atual. O próprio conceito de cidade que foi construído em transparência com o modelo da cidade europeia, está fornecendo os marcos referenciais e as ordens de grandeza segundo os quais os estabelecimentos humanos do resto do planeta foram, e continuam sendo, medidos. (RAULIN, 2007; LOUISET, 2011) A dominação do modelo participou de uma dominação econômica, política e ideológica mais ampla. Mas no momento em que o fantasma da “não-cidade” se expande para o primeiro mundo, e quando a escala do planeta leva a reequilibrar os modelos, o urbano planetário também deve ser reconsiderado. Os slums de Bangkok, o bairro de la Défense em Paris, as ramblas de Barcelona, os campos de deslocados da periferia de Khartoum ou de Monrovia representam diferentes “regimes de urbanidade” (conforme o termo do filósofo THIERRY PAQUOT, 2006), porém nenhum deles pode ser avaliado como sendo mais ou menos cidade do que outros. Reconhecer tal igualdade no plano epistemológico permite uma comparação que revela desigualdades socioeconômicas na escala da mundialização bem como relações culturais na arquitetura, no urbanismo ou nos modos do habitar. Um segundo descentramento necessário para pensar uma antropologia da cidade consiste em um deslocamento do objeto de pesquisa, um deslocamento do olhar desde o mundo pleno, visível, finito e ordenado dos centros para a desordem, o desnudamento e o aparente caos das margens, das beiras ou dos limites – as palavras da fronteira urbana que existe na relação dinâmica e conflituosa com o centro. Refazer ali, nesses lugares do limite e da fronteira logo que se instalam na duração, as descrições e análises que vão do desnudamento à densidade, do vazio ao pleno, permite pensar a gênese e a dinâmica da cidade em geral, um processo sem fim. Um terceiro descentramento urbano poderá ser descrito como internalista. Ele privilegia a empatia e a compreensão interna dos sujeitos que fazem a sua cidade, tornando-a mais familiar porque construída em sua volta, 458 ONDE SE INVENTA A CIDADE DO AMANHÃ? progressivamente, sem no entanto negar que esses lugares também existem enquanto “espaços outros” ou heterotopias (FOUCAULT, 1994), e que essa qualificação externa lhes confere uma “identidade” estigmatizante e rígida – étnica, racial ou social – em relação às instâncias (lugares, instituições e sujeitos) que detêm o poder de nomear e definir, e que é em oposição a esta caracterização que eles começam a existir como sujeitos urbanos. É deste modo que o acampamento urbano, a favela, o bairro – déguerpi – movem constantemente os limites da ordem urbana, espacial e social, a partir do próprio limite onde se estabelecem e em direção a uma expansão contínua, sem início nem fim, da cidade, concebida como movimento. Nesses lugares que parecem ser de “fora” mas estão exatamente na fronteira, os gestos de ajustamento, de enredamento, de bricolage ou de montagem, seguram o conjunto heterogêneo e inventam as cidades nos âmbitos material, social e cultural, ancorando-as na desordem do presente e no equilíbrio instável entre imposições e recursos, rechaços e desejos, margens e centralidades. Referências ABOU-ZAKI, H. Histoire et devenir d’un camp de réfugiés palestiniens. In: AGIER M.; LECADET, C. Un monde de camps. Paris: La Découverte, 2014. p. 35-46. AGIER, M. L’Invention de la ville: banlieues, townships, invasions et favelas. Paris: Éditions des Archives contemporaines, 1999. AGIER, M. 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SOBRE OS AUTORES Alba Zaluar Foi professora do Departamento de Antropologia da Unicamp durante 20 anos e ali obteve, em 1991, a Livre Docência com tese publicada em 1994 – Cidadãos não vão ao Paraíso. Posteriormente passou a lecionar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde se tornou professora Titular de Antropologia em 1995. Publicou ainda Condomínio do Diabo, Da Revolta ao Crime S. A. e A integração perversa: pobreza e tráfico de drogas nos quais discute, com resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas, os efeitos de políticas públicas para combater ou conter a violência urbana, em especial a política relativa às drogas e seus efeitos não esperados com o aumento extraordinário dos homicídios e da corrupção institucional. Orientou diversas teses de mestrado e doutorado e publicou inúmeros artigos em revistas acadêmicas, bem como na imprensa, sobre esses temas e assuntos correlatos. E-mail: azaluar@iesp.uerj.br Angelo Serpa Professor titular de Geografia Humana da Universidade Federal da Bahia (UFBA); pesquisador 1B do CNPq; docente da pós-graduação em Geografia e em Arquitetura e Urbanismo da UFBA. É autor, entre outros, dos livros O espaço público na cidade contemporânea e Lugar e mídia, editados pela Contexto. E-mail: angserpa@ufba.br 461 Brais Estévez Doutor em Geografia pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB). É membro do Grupo de Pesquisa em Geografia e Gênero da UAB. Seu trabalho trata de questões que vão desde a política dos espaços públicos, passando pelas polêmicas urbanas, pelas novas formas de protesto cidadão até a crise da democracia na cidade. Entre 2017 e 2019, foi pesquisador de pós-doutorado da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com bolsa de estudos pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), onde desenvolveu o projeto Para uma cosmopolítica do governo urbano. Urbanismo/s de código aberto, espaços de igualdade, laboratórios cidadãos e outros agenciamentos do urbano. Foi professor colaborador da disciplina extensionista Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador. Prêmio Extraordinário de Doutorado 2013/2014 pela UAB. Email: brais.vilarinho@gmail.com Ceci Vilar Noronha Professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), produziu trabalhos abordando violência de gênero, brutalidade policial, violência sexual contra crianças/adolescentes. Publicou artigos em Physis, Ciência e Saúde Coletiva, Sociologias, Espacio Abierto, Revista Panamericana de Salud Pública e outros, e organizou a coletânea “Violências intencionais contra grupos vulneráveis” (pela EDUFBA). E-mail: ceci@ufba.br Glória Cecília dos Santos Figueiredo Professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) na área de Planejamento Urbano e Regional. Uma das coordenadoras da disciplina extensionista Perícia Popular no Centro Histórico de Salvador em colaboração com a Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico de Salvador. Membro do grupo de pesquisa Lugar Comum. Seus principais interesses de pesquisa são sobre (des)articulações entre diferentes modos e fazeres da cidade comum, práticas urbanas, instrumentos para ação coletiva e justiça espacial. Integra a equipe da Plataforma Pipoco – sobre conflitos urbanos em territórios afetados por grandes intervenções urbanas. Membro da pesquisa em rede Regimes de controle privado-militarizado nos territórios populares e novas estratégias de engajamento cívico, coordenada 462 DISPUTAS EM TORNO DO ESPAÇO URBANO pelo LabCidade da Universidade de São Paulo (USP). Professora visitante do The Bartlett Development Planning Unit of the University College London durante o colapso pandêmico de 2020. Email: gloria.cecilia@ufba.br Iracema Brandão Guimarães Professora Titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vinculada ao Departamento de Sociologia, e Professora Permanente do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais. Pesquisadora do CNPq no Centro de Estudos em Humanidades/CRH/UFBA. Principais trabalhos: Consequências de uma expansão periférica e seus efeitos sobre a população juvenil. 861X CEAS. Revista crítica de humanidades, v. 235, p. 23-44, 2015; Periferias e Territórios sob efeitos conjugados da precarização. Caderno CRH (UFBA. Impresso), v. 14, 2011; o capítulo, “Reprodução e Trabalho“ no livro Dicionário temático desenvolvimento e questão social, Anete B. L. Ivo (Org.) (São Paulo: Ana Blume, 2014); o capítulo A periferia, a casa e a rua: limites difusos na cidade, no livro Gênero, mulheres e feminismo. Alinne Bonetti; Ângela Freire. (Org.) (Salvador: EDUFBA, 2011). E-mail: iracema.brandao60@gmail.com Heitor Frúgoli Jr. Professor associado do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1984), mestrado em Antropologia Social pela USP (1990) e doutorado em Sociologia pela USP (1998), com doutorado ‘sanduíche’ na University of California, San Diego (UCSD, 1995-1996, com bolsa Capes-Fulbright) e pós-doutorado no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL, 2011, com bolsa Fapesp). Coordenou GTs nas Reuniões Brasileiras de Antropologia de 2002 e 2004, ST e GTs na ANPOCS (2007-2009). É conselheiro do Condephaat (Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo) desde 2013. Foi professor titular da Cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade de Leiden (fev.-abr./2010) e ‘Directeur d’études’ da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, jan.-fev./2013). É pesquisador do CNPq desde 2005 e sócio-efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) desde 1990. E-mail: hfrugoli@uol.com.br Sobre os autores 463 John F. Collins Professor associado de Queens College e do Centro de Pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova Iorque (CUNY) e diretor do programa de Estudos Latino-americanos e Latinos de Queens College. Doutorado pela Universidade de Michigan em 2003, começou seus estudos da Bahia nos anos noventa. Tem publicado 12 artigos sobre questões de patrimônio cultural, reabilitação urbana e a vida dos moradores do Pelourinho, em Salvador, antes e durante as remoções forçadas desde a ótica da historia nacional e questões raciais. Ao seu livro monográfico sobre o Pelourinho, Revolt of the Saints: Memory and Redemption in the Twilight of Brazilian “Racial Democracy”, publicado por Duke University Press em 2015, foi outorgado o prêmio Leeds da Sociedade por antropologia urbana, nacional e transnacional/global da Associação Americana de Antropologia. E-mail: john.collins@qc.cuny.edu John Gledhill Professor Emérito da Universidade de Manchester, editor da revista internacional Critique of Anthropology, membro da Academia Britânica e da Academia de Ciências Sociais do Reino Unido. Tem realizado pesquisas etnográficas e históricas no México e no Brasil sobre uma variedade de temas, tanto em zonas rurais quanto urbanas, e no contexto mexicano, inclusive sobre migração internacional e relações transnacionais. Seus livros mais recentes são: The New War Against the Poor: Social Justice and Securitization in Latin America (também publicado em espanhol) e World Anthropologies in Practice: Situated Perspectives, Global Knowledge. (Org.). E-mail: johngled@me.com José Guilherme Cantor Magnani Professor Titular do Departamento de Antropologia da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP), Pesquisador nivel 1-B (CNPQ). É mestre em Sociologia pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO/ CHILE), concluiu o doutorado em Ciências Humanas (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo em 1982, defendeu tese de Livre-Docência em 2010 e de Titular em 2012 nessa Universidade. Recebeu o prêmio Erico Vanucci Mendes CNPq - SBPC 1989. Atua na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana. É coordenador do Laboratório do Núcleo 464 DISPUTAS EM TORNO DO ESPAÇO URBANO de Antropologia Urbana da USP (Lab/NAU/USP - http://www.nau.fflch. usp.br), de sua revista eletrônica PONTO.URBE (http://www.pontourbe. revues.org) e da coleção & quot; Antropologia Hoje & quot; Nau/Editora Terceiro Nome. E-mail: jmagnani@usp.br Lenin Pires Doutor em Antropologia e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (UFF). É professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e de Sociologia e Direito, ambos na mesma universidade. Tem experiência na área de Antropologia, desenvolvendo pesquisas nos seguintes temas: administração de conflitos, cidadania, segurança pública e desigualdade. É autor do livro Esculhamba, mas não esculacha!, como também de várias coletâneas e artigos versando sobre os temas referidos. E-mail: leninpires@id.uff.br Maria Gabriela Hita Doutora em Ciências Sociais (Antropologia) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora titular do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) e do Programa de Pós-Graduação Mulher, Gênero e Feminismos (PPGNEIM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora PQ2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no Núcleo de Estudos sobre Corpos, Sensibilidades e Ambientes (ECSAS/UFBA), grupo de pesquisa do qual é atualmente vice-líder. Foi coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Desigualdades Sociais (Lides/UFBA) entre 2010 e 2012 e do PPGCS/UFBA entre 2019 e 2021. Entre suas publicações, se destacam os livros: A casa das mulheres n’outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador (monográfico) e Raça, racismo e genética em debates científicos e controvérsias sociais (organizadora). E-mail: mghita63@gmail.com Maria Izilda Santos de Matos Professora Titular da PUC/SP, doutora (1997) e livre docente em História (2016), pesquisadora 1 A do CNPq. Livros publicados em destaque: Cotidiano e Cultura (EDUSC, 2014, 2. ed.); Âncora de Emoções (EDUSC, 2005); A cidade, Sobre os autores 465 a noite e o cronista: São Paulo de Adoniran Barbosa (EDUSC, 2008); Samba! societá, musica e sentimenti. (Turim: EUNOEDIZIONI, 2011); Portugueses: deslocamentos, experiências e cotidiano SP séculos XIX e XX (EDUSC, 2013); Portugueses: ações e lutas políticas (Rio de Janeiro. Verona, 2015); Cidades: representações, experiências memórias. (Org.), Olho d´água (2016). E-mail: mismatos@pucsp.br Maria Mercedes Di Virgilio Professora titular de Metodologia da Pesquisa Social na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), onde desempenha, desde março de 2014, como Secretaria de Estudos Avançados. É investigadora Independente do CONICET no Instituto de Investigaciones Gino Germani, UBA. Entre suas principais publicações se encontram: Housing Policy in Latin American Cities. A New Generation of Strategies and Approaches for 2016 UNHABITAT III. 2014. New York: Routledge (em colaboração com Peter Ward e Edith Jiménez Huerta); Ciudades latinoamericanas. Desigualdad, segregación y tolerancia. 2014. Buenos Aires: CLACSO (Em colaboração com Mariano Perelman); Caleidoscopio de las políticas territoriales. Un rompecabezas para armar. 2011. Buenos Aires: PROMETEO. (Em colaboração com María Carla Rodríguez). E-mail: mercedes.divirgilio@gmail.com Mariano Perelman Doutor em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Professor do Departamento de Antropologia e do programa de doutorado em Ciências Sociais da UBA. Pesquisador independente do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (Conicet). Em 2019, foi selecionado pela Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA) como professor visitante a ser contratado por dois anos para atuar no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS). Tem publicado dezenas de artigos acadêmicos em revistas internacionais e capítulos de livros. É editor dos livros: Ciudades Latinoamericanas. Desigualdad, segregación y tolerancia (com Mercedes Di Virgilio), Desigualdades persistentes y territoriales emergentes (com Mercedes Di Virgilio) e Fronteras en la ciudad: (re)producción de desigualdades y conflictos urbanos (com Martín Boy). E-mail: mdperelman@gmail.com 466 DISPUTAS EM TORNO DO ESPAÇO URBANO Michel Agier Antropólogo na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) e ni IRD (Institut de Recherche pour le Développement). Foi pesquisador visitante na UFBA entre os anos 80 e 90. Mais recentemente, foi titular da Cátedra francesa no Rio de Janeiro na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/Depto. de Antropologia) (2014). Publicou vários livros em francês e inglês sobre migrações, campos de refugiados, antropologia urbana. No Brasil, publicou Antropologia da Cidade (SP, ed. Terceiro Nome, 2011), Encontros etnográficos (SP, UNESP/Edufal, 2015), Migrações, descentramento e cosmopolitismo: uma antropologia das fronteiras” (Maceió, Edufal/ UNESP, 2016). E-mail: michel.agier@ehess.fr Paola Berenstein Jacques Professora do PPG-AU/FAUFBA, coordenadora do Laboratório Urbano/ PPG-AU/FAUFBA, pesquisadora CNPq, autora dos livros: Les favelas de Rio (Paris, l’Harmattan, 2001); Estética da Ginga (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001); Esthétique des favelas (Paris, l’Harmattan, 2003) e Elogio aos errantes (Salvador, Edufba, 2012); coautora de Maré, vida na favela (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002); organizadora de Apologia da deriva (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003), Corps et décors urbains (Paris, l’Harmattan, 2006), Corpos e cenários urbanos (Salvador, Edufba, 2006), Corpocidade: debates, ações e articulações (Salvador, Edufba, 2010) e da coleção Experiências Metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea (4 tomos, Salvador, Edufba, 2015); editora da revista Redobra www.redobra.ufba.br Paulo César Alves Professor Titular do Departamento de Sociologia Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista de produtividade (nível 1) do CNPq. Principais publicações (livros): Trajetórias, sensibilidades, materialidades. Experimentos com a fenomenologia (organizador em coautoria) (Salvador: EDUFBA, 2012); Cultura. Múltiplas leituras. (São Paulo; Salvador: EDUSC; EDUFBA, 2010); Experiência de doença e narrativa (em co-autoria com Miriam C. Rabelo e Iara Maria Souza). (Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999). E-mail: paulo.c.alves@uol.com.br Sobre os autores 467 Rodrigo Monteiro Doutor em Saúde Coletiva, Professor Adjunto de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, autor de Torcer, lutar, ao Inimigo Massacrar: Raça Rubro Negra! pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Socio-Sporting Projects, Violence Prevention and Suburban Youth in the City of Rio de Janeiro pela Vibrant. E-mail: rodearmo@yahoo.com.br Urpi Montoya Uriarte Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (1997), com pós-doutorado na Universidade Federal de Pernambuco (2009) e em andamento no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2017). É professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Coordena o Grupo de Pesquisa Panoramas Urbanos desde sua fundação, em 1999. Atua na área da Antropologia Urbana, buscando aproximá-la de outras tradições acadêmicas, tais como o urbanismo, a geografia e a sociologia. E-mail: urpi@ terra.com.br Setha Low Professora de Antropologia, Psicologia Ambiental, Estudos de Gênero e Geografia, e Diretora do Grupo de Pesquisa Espaço Público no centro de graduação da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). A Dra. Low recebeu diversos prêmios pelas suas pesquisas e ativismo entre outros o de Guggenheim, Getty and NEH fellowships. Ela foi a Presidenta da Associação Americana de Antropologia (AAA) e tem oferecido conferências internacionais diversas sobre espaço publico, justiça social e diversidade. Entre seus livros mais recentes estão: Spatializing Culture: The Ethnography of Space and Place, Rethinking Urban Parks: Public Space and Cultural Diversity, On the Plaza: The Politics of Public Space and Culture and Behind the Gates: Life, Security and the Pursuit of Happiness in Fortress America. E-mail: SLow@gc.cuny.edu 468 DISPUTAS EM TORNO DO ESPAÇO URBANO Suzana de Magalhães Dourado Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (UFBA), Odontóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Publicou trabalhos na temática da violência contra a mulher nos periódicos Ciência & Saúde Coletiva e Physis. Participou na elaboração do capítulo sobre violência entre parceiros íntimos no livro “Violências intencionais contra grupos vulneráveis”, publicado pela EDUFBA. E-mail: suzana.m.dourado@gmail.com Sobre os autores 469 COLOFÃO Formato Tipologia Papel 17 x 24 cm Raleway Crimson Text Alcalino 75 g/m2 (miolo) Cartão Supremo 300 g/m2 (capa) Impressão EDUFBA Capa e Acabamento Gráfica 3 Tiragem 400