Ancient Godesses

No ano de 2007, em Sete Lagoas-MG, foi proferida uma sentença peculiar. Escrita pelo juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, a decisão atacava a Lei Maria da Penha, relativa à violência doméstica contra a mulher, sob o argumento de que a norma seria uma " heresia manifesta contra a lógica de Deus ". Utilizando-se da religião judaico-cristã, fundamentada pela mitologia atribuída aos hebreus para embasar suas convicções, o juiz Rumbelsperger evoca argumentos como a masculinidade do deus Yahweh e a necessária submissão da mulher para desqualificar a já mencionada Lei. Esse discurso, dotado de forte cunho religioso nos aparece, assim, como eco de uma narrativa mais antiga: a deslegitimação das deusas cultuadas na região do Crescente Fértil (CORDEIRO, A. L. A., 2007). Com o advento do Javismo e seu cunho necessariamente monoteísta, as divindades femininas que ali outrora habitavam foram destituídas de seus poderes e relegadas a categoria de demônios, responsáveis por toda a sorte de mazelas contra a humanidade. Assim, o espaço do feminino no âmbito sagrado é destituído para ceder espaço à masculinização do deus Yahweh, sendo ele (e apenas ele) a figura legítima de salvação e adoração na visão dos hebreus, a qual tentou se impor, inclusive, às mulheres estrangeiras com quem se casavam (CORDEIRO, A. L. A., 2007). Dessa forma, se faz necessário perceber como se deu esse processo de sobreposição do imaginário masculinista das religiões javistas sobre as figuras míticas e arquetípicas da grande deusa das sociedades do Antigo Oriente Próximo, bem como esse imaginário ainda está presente nas sociedades tributárias dos ensinamentos de Yahweh, como o Brasil. Nesse sentido, pode-se perceber que dessa ruptura surgiram consequências nefastas para as mulheres. Julgadas, culpadas e condenadas, sem qualquer chance de defesa. São elas que serão vistas com desconfiança: ditas responsáveis pela expulsão do Éden, luxuriosas e fracas, elas devem se submeter ao homem ainda que isso implique em diversas formas de violência. Isso expressa que o movimento de condenar mulheres pelos males e castigos que recaem sobre o povo (como no livro de Oseias do Antigo Testamento), bem como de indicá-las como responsáveis por desviar os homens dos mandamentos de Yahweh (conforme o Primeiro e o Segundo Livro de Reis) ainda repercute na atualidade, inclusive em âmbito jurídico, no qual a mulher continua a ser condenada como fonte do mal. Poderia se pensar que tais práticas estariam ultrapassadas, tanto social quanto juridicamente, já que houve conquistas significativas no que se refere ao direito das mulheres. A sentença do juiz Rumbelsperger, porém, nos alerta para o alcance desse imaginário, já que qualquer tipo de emancipação feminina, por menor e necessária que seja, é por ele compreendida como heresia contra um Deus masculino. Abstract II International Colloquium of the ancient Egypt and Near East Universidade de São Paulo 2017 Desta forma, utilizando como categoria de análise o conceito de imaginário social (JÚNIOR, H. F., 2010), objetiva-se identificar a permanência desse discurso javista nos dias atuais, utilizando-se como fonte a sentença proferida pelo juiz Rumbelsperger no processo n. 222.942-8/06, em diálogo com as narrativas do Antigo Testamento que dão fundamento aos argumentos proferidos pelo juiz em questão.