Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 0
Revisado, escaneado e digitalizado para o Portugus
Brasileiro por L.A !!!
Prefcio A LIBERDADE NO ANO 3000 A literatura inglesa do sculo XX produziu duas utopias famosas, que suposto conterem tudo quanto literatura do gnero tinha produzido at ento. Quem no leu o Admirvel Mundo Novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell? O livro de Huxley data de 1930 e o de Orwell de 1948. Sabemos hoje que tanto um como o outro sofreram a influncia do livro que o leitor tem na mo: Ns > Zamiatine, escrito em Petrogrado, em 1920. A primeira edio do livro uma traduo inglesa, publicada em Nova Iorque em 1924. Em 1928 apareceu a primeira traduo francesa. Em russo, Ns, s foi editado em 1952 e no foi na URSS, mas sim, em Nova Iorque. Na URSS, Ns, s viu a luz depois da Perestroika.
O protagonista de Ns visivelmente outro. Ns de Zamiatine: trata-se de um engenheiro que projeta e constri uma nave espacial, referida logo na primeira pgina do livro, uma nave que levar aos seres de outros planetas, ainda sujeitos selvagem condio de liberdade, a mensagem de felicidade, organizao e exatido em que vivemos Ns, os sditos do Benfeitor e do Estado nico. Alm de ser o primeiro romance do gnero e o mais original, Ns tambm aquele que mais se afirma como criao literria. O narrador-protagonista exprime- se na linguagem dum habitante da terra que vive no sculo XXX. Usam as metforas, os modos de dizer, o vocabulrio que na terra se falar durante o terceiro milnio e uma sintaxe muito elaborada, de inspirao matemtica. Tem conscincia de que est falando para leitores do Passado e, ironicamente, desculpa-se sempre que usa uma linguagem anacrnica: a palavra po, por exemplo, ser um anacronismo no sculo XXX, em que se come um nico alimento, um derivado da nafta... Lendo o livro, o leitor perceber tudo isso e apreciar o trabalho sobre a linguagem que o autor nele realiza. Ver tambm, logo desde a primeira pgina, que o grande tema do livro (poderamos at dizer a grande obsesso) o dilema Felicidade-Liberdade. Ou seja: Paraso versus Inferno. Ou seja, den versus rvore da- Sabedoria, O Conhecimento do-Bem-e-do-Mal. No se trata de um ataque ao estalinismo, porque o estalinismo ainda no existia quando Zamiatine escreveu o livro. Mas uma anteviso brilhante dum sistema que quis dar aos homens a Felicidade (a Organizao) em troca da Liberdade (que sempre Erro, Crime, Barbrie, Desorganizao). o retrato-rob dum Libertador que no resistiu tentao de encerrar os povos que libertou dentro dos Muros Inabalveis da Verdade para poup-los Dor e ao Contgio dos Vrus do Erro, da Diversidade. Do Eu. Com resultados paradoxais, como se sabe: a recluso faz desenvolver o vrus da liberdade, da mesma forma que a liberdade leva frequentemente os humanos a suspirarem pelas algemas. E a denunciarem (como faz o ingnuo protagonista) todos quantos queiram cortar as amarras que os prendem felicidade. Leiam o livro depressa. E corram depois para a televiso, a ver at que ponto, hoje, os oprimidos esto libertos e os libertos oprimidos... Comdia trgica. Tragdia irnica. Como este livro. M.J.G.
Primeira Entrada Um anncio A mais sbia de todas as linhas Um poema Limito-me a transcrever textualmente o que hoje mesmo veio publicado na Gazeta do Estado: Dentro de cento e vinte dias ficar completo o INTEGRAL. Aproxima- se a hora insigne, histrica, em que o primeiro INTEGRAL se levantar no espao csmico. H mil anos, os nossos heroicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao domnio do Estado nico. Hoje assistiremos a um feito ainda mais glorioso: a integrao, por meio do INTEGRAL, feito de vidro, eltrico, gneo, da eterna igualizao de tudo o que existe. Ficaro sujeitos ao benfico jugo da razo todos os seres desconhecidos, os habitantes doutros planetas que porventura vivam ainda no estado selvagem de liberdade. Se acaso no percebem que ns lhes levamos a felicidade matemtica e exata, nosso dever for-los a serem felizes. Mas, antes de puxarmos das armas, tentaremos recorrer palavra. Em nome do Benfeitor, todos os nmeros do Estado nico ficam notificados do seguinte: Todos os que se sentirem capacitados devero compor tratados, poemas, odes e outras composies sobre a beleza e a grandeza do Estado nico. Eles constituiro o primeiro carregamento do INTEGRAL. E viva o Estado nico. Vivam os nmeros. Viva o Benfeitor! Escrevo estas coisas e sinto o meu rosto a arder. Sim... H que levar a cabo a integrao, proceder grandiosa e infinita igualizao de tudo o que existe. Sim, h que distender a curva selvagem, reduzi- la uma tangente... A uma assntota... A uma linha reta! E isso porque a linha do Estado nico uma linha reta. A grande, a divinal, a exata, a sbia linha reta a mais sbia de todas as linhas! Eu, D-503, construtor do INTEGRAL, sou um entre os muitos matemticos do Estado nico. A minha caneta, acostumada aos nmeros, no consegue criar a msica das assonncias e dos ritmos. Farei o possvel por descrever o que vejo o que penso, ou mais precisamente o que ns pensamos (precisamente, ns, e ser este "Ns" o ttulo dos meus apontamentos). Estes sero o produto da nossa vida, da vida matematicamente perfeita do Estado nico e, sendo-o, no sero por si s um poema, independentemente do meu querer? No tenho dvidas, sei que assim . Escrevo isto com o rosto em fogo. O que eu sinto em boa verdade comparvel ao que uma mulher experimenta quando pela primeira vez sente em si o pulsar de um novo ser, ainda informe e cego. Sou eu e ao mesmo tempo, no sou eu. Durante meses e meses terei de continuar a alimentar esta minha obra com a minha seiva e o meu sangue, at que, por fim, dele me separe entre dores, depondo-o aos ps do Estado nico. Mas estou pronto, como todos os outros, ou quase todos. Estou pronto. Segunda Entrada Bailado A harmonia do quadrado X Primavera. De l de trs do Muro Verde, das plancies selvagens que escapam nossa vista, o vento traz-nos o plen amarelo e orvalho das flores. Este plen seca-nos os lbios; temos de passar constantemente a lngua pelos lbios e, muito provavelmente, todas as mulheres por quem passamos tm os lbios doces (e o mesmo sucede, naturalmente, com os homens). O que perturba, em certa medida, o pensamento lgico... Mas que cu! Azul, nem a menor nuvem (to primitivo era o gosto dos antigos, que os poetas tinham que procurar a inspirao naquelas massas de vapor informes, acasteladas umas sobre as outras!). Eu gosto e tenho a certeza de no me enganar se disser que todos ns gostamos deste cu assim, estril, irrepreensvel. Em dias como o de hoje, todo o universo aparece moldado no mesmo vidro impassvel e eterno de que so feitos o Muro Verde e todas as nossas construes. Em dias como este podem ver-se as profundezas azuis das coisas, percebem-se coisas at aqui tidas como estranhas e desconhecidas... Vemos em tudo algo que antes considervamos normal, prosaico. Seja, por exemplo, o seguinte: estava eu esta manh na doca onde se procede construo do INTEGRAL quando, de repente, pus os olhos nas mquinas. Cegamente, inconscientemente, rodavam as bolhas dos reguladores; reluzentes, os pistes oscilavam para a direita e para a esquerda; o balanceio movia orgulhosamente os ombros; a goiva do torno gemia ao compasso duma msica nunca ouvida. Compreendi naquele momento toda a beleza daquele bailado grandioso e mecnico, que o sol e o azul e etreo cu banhava-se de luz. E no pude deixar de perguntar a mim mesmo: Porque que tudo isto belo?"". Porque bela esta dana? Porque se trata de um movimento que no livre, porque o sentido profundo da dana reside exatamente na obedincia absoluta e exttica, na no liberdade ideal. O fato de os nossos antepassados se entregarem dana nos momentos mais inspirados das suas vidas (no decorrer dos mistrios religiosos, dos desfiles militares), s pode ter um significado: o instinto da no-liberdade organicamente inerente ao homem desde os tempos mais remotos, e ns, hoje, na vida de todos os dias, mal temos conscincia de que... Mais tarde explanarei esta ideia. O intercomunicador acaba de me fazer sinal neste momento. Quando olho: 0-90, tinha que ser. Vm-me buscar para irmos dar um passeio. Querida 0-...! Sempre achei que o nome condiz com o aspecto dela. Tem cerca de dez centmetros menos do que manda a Norma Maternal, o que lhe arredonda as formas, dando a impresso de ter sido feita num torno. O rseo da sua boca entreabre-se para acolher cada uma das minhas palavras. Tem nos pulsos rechonchudos um refugo como os das crianas. Quando ela entrou, o volante da lgica zunia ainda dentro de mim e, devido inrcia, no pude deixar de falar na frmula que acabava de estabelecer e na quais todos participaram, ns, a mquina e a dana. Maravilhoso, no ? perguntei. Sim, maravilhoso, primavera respondeu 0-90 com um sorriso rseo. primavera, imagine-se! A falar-me em primavera... Estas mulheres!... Fiquei calado. Samos. A avenida estava cheia de gente. Com um tempo destes, habitualmente, a Hora Pessoal que se segue ao almoo consagrada a um passeio suplementar. Como habitualmente, a Oficina Musical tocava em todos os seus alto-falantes a Marcha do Estado nico. Os nmeros s centenas, aos milhares todos de uniformes azulados, com placas de ouro ao peito, placas com o nmero estatal de cada um ou de cada uma, caminhavam em filas, quatro a quatro, acertando convictamente o passo com o ritmo da msica. E eu, em conjunto com os outros trs do nosso grupo, formvamos uma das inmeras vagas daquela torrente poderosa. minha esquerda tinha a 0-90 (se um dos meus hirsutos antepassados escrevesse isto h mil anos atrs, aplicar-lhe-ia com certeza o engraado pronome minha): minha direita, tinha dois nmeros desconhecidos, um masculino e outro feminino. O cu esplendorosamente azul, os minsculos sis de cada uma das nossas placas, sis pequenos como se fossem brinquedos, os rostos libertos de pensamentos dementes, tudo se conjugava num espetculo nico, radioso, risonho. Como se, ao ritmo dos metais tra-ta- tam, tra-ta-ta-tam , brnzeos degraus refulgissem ao sol e, a cada degrau, todos subssemos cada vez mais alto no azul vertiginoso... E foi ento, exatamente como j me tinha acontecido esta manha nas docas, que vi uma vez mais todas as coisas como se estivesse a v-las pela primeira vez na vida... Vejo ruas impecavelmente direitas, o vidro resplandecente das ruas, os divinais *paraleleppedos (edifcios) das construes transparentes, a harmonia quadrada das filas de nmeros azuis-cinza. E tive a impresso de que no tinham sido as geraes anteriores a mim, mas sim eu, eu precisamente, quem tinha apego ao antigo Deus e a antiga vida, que tinha sido eu o criador de tudo isto. E, com a sensao de ser uma torre, assaltou-me o receio de mexer o cotovelo, de provocar a derrocada das paredes, das cpulas, das mquinas. No momento seguinte dei um passo atrs no tempo, andei do + para o . Recordei (evidentemente numa associao por contraste), certo quadro visto no museu, que representava uma avenida do sculo XX e nela uma multido desordenada, confusa, de gente, rodas, animais, cartazes, rvores, cores, pssaros... E dizem que era realmente assim, que acontecia assim na realidade. Para mim, essas coisas so to inverossmeis que no pude deixar de rir gargalhada. O meu riso encontrou eco logo ali minha direita. Voltei-me: vi diante de mim uns dentes (extraordinariamente brancos e afiados) e um rosto feminino desconhecido. Desculpe disse-me ela , mas vejo-o olhar para tudo com um ar to inspirado... Como o Deus mitolgico do stimo dia da criao. Pelo que vejo, est convencido de que foi voc e no outro quem foi que criou a mim, fato este que muito me lisonjeia. Tudo isto ela disse sem sorrir, direi mesmo que o disse com certa deferncia (possivelmente, sabia que era eu o construtor do INTEGRAL). Mas, no sei se nos olhos se nas sobrancelhas, ela tinha um X estranho e irritante que no consegui ver, por mais que tentasse calcular, reduzir a uma frmula numrica. Por qualquer razo, senti-me embaraado e, um tanto perplexo, comecei a procurar as motivaes lgicas do meu riso. Era perfeitamente evidente que este contraste, este abismo intransponvel entre as coisas de hoje e as de antigamente... Intransponvel, como? (Que dentes afiados ela tinha!) Sobre um abismo sempre possvel estender uma ponte. Puxe pela imaginao: tambores, batalhes, fileiras... Todas essas coisas existiam anteriormente e, portanto... Sim, pois, claro exclamei eu. A transmisso de pensamentos era espantosa: ela exprimia com as minhas prprias palavras aquilo que eu tinha estado a escrever antes de sair. Est visto que at os prprios pensamentos se compreendem"... "". E assim porque ningum 'um', todos somos 'um entre'". Somos to semelhantes... Tem a certeza? atalhou ela. Reparei que as sobrancelhas dela formavam com as tmporas um ngulo agudo como o que formado pelas hastes dum X. Por no sei que motivo, senti-me outra vez perplexo; olhei para a direita, olhei para a esquerda e... Seguia, minha direita, a desconhecida E-330 (vi-lhe ento perfeitamente o nmero), elegante, firme, malevel como um chicote; esquerda ia 0-90 (ou simplesmente 0-), completamente diferente, toda ela esfrica, com um refego, igual ao das crianas, nos pulsos; no outro extremo do nosso grupo seguia um nmero macho que eu no conhecia um indivduo formado por duas curvas, dando a ideia da letra S. ramos todos diferentes uns dos outros... A outra, a da direita, a E-330, deu pelos meus olhares de perplexidade e suspirou: Ai, ai! Este ai vinha a propsito, no o nego, mas notei nas feies dela algo de estranho... A no ser que fosse voz. No vale a pena suspirar disse eu com uma brusquido que em mim no habitual A cincia progride e evidente que, se no for dentro de cinquenta anos, pelo menos dentro de cem anos... Mesmo os narizes de todos... Sim, os narizes respondi quase aos gritos. Enquanto houver motivos para algum invejar, seja em que grau for... Se eu tenho um nariz em forma de boto e outra pessoa tem um em forma de... De fato, o seu nariz, sempre lhe digo que um tudo nada clssico, como se dizia naquele tempo. J as suas mos... No, nada disso, posso ver as suas mos? No suporto que as pessoas observem as minhas mos; tenho-as peludas, hirsutas um atavismo ridculo. Levantei-as e, numa voz tanto quanto possvel indiferente, disse: So mos de smio. Ela observou-me as mos e fitou-me logo a seguir: Curiosamente, no podia ser maior a concordncia. Pesava-me com os olhos como se eles fossem uma balana. Tornei a reparar nos contornos que as pontas das sobrancelhas pareciam formar. Ele est registrado no meu nome disse a boca rsea da 0-90, toda contente. Melhor fora estar calada; a observao no podia ser mais deslocada. A 0- adorvel, mas... Como que eu hei de dizer? A velocidade da lngua dela no corretamente calculada; a velocidade por segundo da lngua dela atrasa- se sempre um bocadinho relativamente; e velocidade por segundo do pensamento, nunca se verificando o inverso. O grande sino da Torre Acumuladora fez soar s 17 horas. Sinal de que chegava ao fim a Hora Pessoal. E-330 afastou-se na companhia do nmero masculino em forma de S. A cara deste impunha respeito e, percebi logo a seguir, no me era desconhecida. Devo t-lo encontrado em qualquer lado, no me recordo em que circunstncias. Na despedida, ela sorriu-me de forma enigmtica, sempre com o tal X: Passe depois de amanh pelo Auditrio 112 disse. Se acaso eu for convidado para o auditrio que referiu... respondi, encolhendo os ombros. Vai s-lo ripostou ela com uma segurana que eu no consegui perceber. Aquela mulher exercia sobre mim um efeito to desagradvel como o duma componente irracional que se introduz numa equao e no pode ser analisada. Por isso me agradou ficar a ss com a minha querida 0-, embora por pouco tempo. De brao dado, atravessmos quatro avenidas. Numa esquina, ela teria que subir para a direita e eu para a esquerda. Gostaria muito de ir hoje contigo e baixar as cortinas. Hoje mesmo... Agora mesmo disse-me O-, olhando timidamente para mim com aqueles olhos redondos de cristal azul. To engraada que ela ! Que podia eu responder? Tinha estado comigo ontem e sabe to bem como eu que o nosso prximo Dia Sexual depois de amanh. Aqui est a tendncia que elas tm de pr a lngua frente do pensamento... Um fenmeno anlogo ao que se passa com a fasca que no motor se inflama cedo demais, estragando-o. Ao deix-la, beijei-a duas vezes... No, h que ser exato: dei-lhe trs beijos nos olhos maravilhosamente azuis, libertos de toda e qualquer nuvem negra. T Terceira Entrada Um casaco Uma muralha Uma Tbua de Mandamentos Dei uma vista de olhos a tudo o que ontem escrevi e vejo que escrevo com pouca clareza. Melhor dizendo: tudo claro para qualquer de ns; mas possvel que o no seja para vocs, a quem eu no conheo, a quem o INTEGRAL vai levar os meus apontamentos... possvel que s tenham lido o livro da civilizao at pgina a que chegaram os nossos antepassados h novecentos anos. possvel que ignorem elementos tais como as Tbuas dos Mandamentos Horrios, as Horas Pessoais, a Norma Maternal, o Muro Verde, o Benfeitor. Eu acho cmico e ao mesmo tempo difcil falar de tudo isto. assim como se um escritor do sculo passado, do sculo vinte se preferirem, tivesse de explicar nos seus romances o que quer dizer casaco, apartamento, mulher. Se o romance tivesse de ser traduzido para os selvagens, como evitar a incluso de notas a explicar o que quer dizer casaco? Tenho a impresso de que um selvagem no poderia deixar de se interrogar, ao ver a palavra casaco: Mas o que vem a ser isso?". Deve ser uma coisa incmoda! O mesmo sentiro vocs, creio, quando eu lhes disser que, depois da Guerra dos Duzentos Anos, nenhum de ns ps os ps para l do outro lado do Muro Verde. Vo ter que pensar um pouco, meus caros, ser bom pensarem nisso. Porque tudo muito claro: toda a histria humana, tanto quanto nos dado saber, a histria da transio das formas nmades para formas cada vez mais sedentrias. No derivar da que a forma extrema de vida sedentria (a nossa) simultaneamente a mais perfeita? Os homens desceram de um extremo do mundo para o outro, nos tempos pr-histricos, quando havia coisas como naes, guerras, traficncias, os descobrimentos das vrias Amricas. Mas quem que hoje em dia precisa de tais coisas, para qu fazer isso? Eu admito que o hbito desta vida sedentria no fosse conseguido sem dificuldade, no foi obtido de um momento para o outro. Quando, no decurso da Guerra dos Duzentos Anos, todas as estradas foram destrudas e se cobriram de erva, ter parecido incmodo viver-se em cidades separadas umas das outras por vastides verdes. E depois? Na altura em que perdeu a cauda, o homem demorou certamente a aprender a enxotar as moscas sem ela; deve ter ficado deprimido, nos primeiros tempos, ao ver-se sem apndice caudal. Mas, quem que hoje consegue imaginar-se com cauda? Quem que se imagina, despido, no meio da rua, sem casaco? (No deixa de ser possvel andar pela rua fora sem casaco.) Ora, eu encontro-me exatamente numa situao semelhante a essa: no sou capaz de imaginar uma cidade que no tenha o seu Muro Verde, no sou capaz de imaginar a vida que no se apresente envolta nas roupagens repletas de caracteres das Tbuas dos Mandamentos Horrios. As Tbuas dos Mandamentos Horrios... L esto elas alm, na parede do meu quarto, olhando-me nos olhos, h um tempo severa e ternamente, l esto os caracteres vermelhos sobre fundo dourado. Involuntariamente, o que eles fazem lembrar aquilo a que os antigos chamavam cones, e dentro de mim brota o desejo de compor versos, preces (trata-se de uma e a mesma coisa). Ah, quem me dera ser poeta para vos cantar como mereceis, Tbuas dos Mandamentos Horrios, vs que sois o corao e o pulso do Estado nico! Todos ns (e talvez todos vs) lemos, quando andvamos na escola, o maior monumento da antiga literatura que at ns chegou: os Horrios de todos os Caminhos de Ferro. Mas ponha-se este clssico ao lado das Tbuas dos Mandamentos Horrios e ser como ver, lado a lado, a grafite e o diamante. Contm, uma e outro, o mesmo elemento, C, o carbono, mas quo eterno e transcendente o diamante, que brilho o dele! Quem que no perde o flego ao mergulhar e ao percorrer as pginas das Tbuas do Tempo? As Tbuas dos Mandamentos Horrios, porm, fizeram de todos e de cada um de ns heris picos com seis rodas de ao. Todas as manhs, com a preciso duma engrenagem de seis rodas, no mesmo minuto e no mesmo segundo, ns, milhes que somos, levantamo-nos como se fssemos um s nmero. mesma hora, ns, milhes-num-s, comeamos a trabalhar e, no final, paramos todos em simultneo. Unidos num s corpo com muitos milhes de mos, todos ns levamos as colheres s bocas, no exato instante em que as Tbuas dos Mandamentos Horrios o preceituam; todos ns, no mesmo segundo, samos a passear e vamos para o auditrio, ou para o Salo dos Exerccios Taylor, ou recolhemo-nos para dormir. Vou ser franco: no achvamos ainda, de forma absolutamente exata, a soluo do problema da felicidade. (Duas vezes por dia, s horas ordenadas pelas Tbuas (das 16 s 17) e das 21 s 22) o nosso poderoso organismo unipessoal divide-se em clulas separadas: trata- se das Horas Pessoais, tal como as fixam as Tbuas dos Mandamentos Horrios. Nessas horas, podem ver-se nos quartos de alguns as persianas pudicamente fechadas; outros podem ser vistos a atravessar a avenida, gravemente, ao ritmo brnzeo da Marcha do Estado nico; outros ainda podem ficar sentados s suas secretrias, como eu, neste momento. Mas creio firmemente (por mais que me chamem idealista e fantasioso!) que, mais tarde ou mais cedo, vir o dia em que encontraremos na frmula geral lugar para estas horas, vir o dia cujos 86 400 segundos sejam totalmente controlados pelas Tbuas dos Mandamentos Horrios. Tive j ocasio de ler e de ouvir contar muitas histrias incrveis dos tempos em que as pessoas viviam num estado livre, isto , desorganizado, selvagem. Mas o aspecto para mim mais inacreditvel o seguinte: como foi possvel o poder governante (fosse ele embora o mais rudimentar) permitir ao povo viver sem uma regra idntica s nossas Tbuas dos Mandamentos Horrios, sem passeios obrigatrios, sem um controle rigoroso das horas das refeies... Como pde ele consentir que as pessoas se levantassem e fossem para a cama quando muito bem lhes apetecia? Alguns historiadores afirmam at que, nesses tempos, ao que parecem, as ruas ficavam iluminadas durante a noite e que andava gente a p e de carro pela rua! H uma coisa que a minha cabea no consegue de todo em todo perceber. Ser que, apesar de todas as limitaes da inteligncia, as pessoas no eram levadas a entender que tal modo de vida era um assassnio da populao... Um assassnio lento, adiado de dia para dia? O Estado (na sua desumanidade) proibia o assassnio da pessoa singular, sem, todavia proibir o sema assassnio de milhes. Era criminoso matar uma pessoa, ou seja, subtrair soma total das vidas humanas uns cinquenta anos; mas no era crime subtrair soma total das vidas humanas vinte milhes de anos. Digam l se no d vontade de rir?! Qualquer nmero com dez anos de idade hoje em dia capaz de resolver este problema matemtico-moral, mas naquele tempo no houve nenhum Kant capaz de resolv-lo. At porque nenhum Kant pensou algum dia em construir um sistema de tica cientfica, isto , um sistema tico fundado na subtrao, na adio, na diviso e na multiplicao. Vejam bem: no ser absurdo o Estado (tinha o atrevimento de se chamar Estado!) consentir numa vida sexual sem controle de espcie alguma? Com quem, quando e como cada um quisesse?... De forma completamente anticientfica, como os brutos. E, tal como os brutos, procriava s cegas, a seu bel-prazer. D muita vontade de rir o fato de, sabendo eles horticultura, criao de volteis, piscicultura sabemos hoje com toda a certeza que conheciam todas essas coisas , no fosse capaz de ascender ao ltimo degrau desta escada lgica: puericultura. Nunca eles conseguiram atingir a concluso lgica: as nossas Normas Maternas e Paternas. to ridculo, to incrvel, que, depois de ter escrito o que acima escrevi, me sinto apreensivo: e se os meus leitores desconhecidos me tomassem por um brincalho? E se de repente ficassem com a ideia de que me divirto cruelmente custa dos meus leitores, contando- -Ilhes com ar grave uma srie de balelas? Antes de tudo, eu no sei gracejar, porque todo o gracejo disfara certa falsidade e, por outro lado, a Cincia do Estado nico afirma que a vida dos antigos era precisamente como eu acabei de descrever... E a Cincia do Estado nico infalvel. E, alm disso, como se poderia falar de lgica governamental num tempo em que as pessoas viviam no estado de liberdade, isto , como brutos, como macacos, como gado? Que mais se poderia exigir deles se at hoje em dia frequente ouvir-se o guincho simiesco, vindo das profundezas, de um stio inatingvel? Felizmente, s de vez em quando. E, para nossa felicidade, a falha d-se em casos sem importncia; so fceis de remediar, sem necessidade de se interromper o progresso de toda a Mquina. E, para se substituir a corda avariada, temos a mo hbil e poderosa do Benfeitor, temos os olhos experientes dos Guardas. Lembro-me agora, a propsito, de uma coisa: aquele nmero masculino, com a forma de dupla curva, a fazer lembrar a letra S..., acho que o vi sair do Posto dos Guardas. Percebo agora porque senti por ele um respeito instintivo e porque senti algum embarao quando aquela estranha E-330, na presena dele... Confesso que aquele nmero feminino... Acaba de tocar a campainha; hora de ir para a cama: 22.30. Amanha continuarei.
Quarta Entrada O selvagem e o barmetro Epilepsia Se ao menos... At aqui, tudo me parecia claro (no ser por mero acaso que olho com alguma parcialidade para a palavra claro). Hoje, porm... No compreendo. Para comear, fui de fato convocado para o Auditrio 112, tal qual como ela tinha dito. Embora a probabilidade de tal acontecer fosse 1 500 = 3 10 000 000 20 000 Representando 1500 os auditrios e sendo ns, nmeros, 10 000 000. Em segundo lugar... Mas melhor proceder por ordem. O auditrio: um meio-globo imenso de vidro compacto atravessado pelo sol. Filas circulares de cabeas nobres, esfricas, muito prximas umas das outras. Com o corao a bater apressado, olhei em volta. Creio que j ento esperava vir a descobrir entre as vagas azuis dos uniformes um brilhante e rseo crescente: os lbios queridos de 0-90. Ai... O que vi foram uns dentes brancos e afiados, que mais pareciam... Mas no, no eram. Esta noite, s 21.00, 0- devia ter ido jantar. Era perfeitamente natural o meu desejo de v-la. Tocou ento a campainha. Levantmo-nos, cantmos o Hino do Estado nico; no estrado apareceu o nosso fonoleitor, irradiando inteligncia, junto de um alto- falante de ouro. Estimados nmeros, os arqueologistas descobriram um livro do sculo XX. Um autor irnico conta nele histria do selvagem e do barmetro. Um selvagem tinha notado que, sempre que o barmetro indicava chuva, chovia mesmo. E, tendo-se convencido de que isso trazia a chuva, agitava o barmetro para conseguir que o barmetro indicasse chuva. (A tela mostrou um selvagem emplumado, abanando o barmetro. Risos.) Esto todos rindo... mas o mais espantoso que o europeu dessa poca d muito mais vontade de rir. Acreditam? O europeu queria chuva, tal como o selvagem, o europeu queria chuva com um C maisculo, uma chuva algbrica, mas quedava-se na frente do barmetro, como uma galinha choca. O selvagem acabava por ser muito mais ousado, enrgico e lgico se bem que a sua lgica fosse brbara. Era capaz de perceber que havia uma relao entre a causa e o efeito; agitando o mercrio, dava o primeiro passo no caminho ao longo do qual.... Nesse momento (escrevo sem quaisquer rebuos, repito), nesse momento, fiquei por algum tempo impermevel s vivificantes correntes que manavam do alto-falante. Tive a sbita impresso de que tinha sido intil a minha vinda (intil por que, se eu nada mais podia fazer do que comparecer, uma vez que tinha sido intimado a faz-lo?!); tudo se me afigurava vazio como uma concha. Tornou s- me difcil concentrar-me na altura em que o fonoleitor atacou o tema central: o da nossa msica, da composio matemtica da nossa msica (a matemtica era a causa, a msica era o efeito), tendo passado descrio do musicmetro recentemente inventado. Bastar rodar este registo para qualquer um de ns produzirmos pelo menos trs sonatas numa hora. Comparem esta facilidade com as dificuldades que os nossos antepassados experimentavam para obterem o mesmo resultado. S conseguiam criar mergulhando no estado de inspirao uma forma desconhecida de epilepsia. E vo agora ouvir uma divertida demonstrao daquilo que eles conseguiam obter: um trecho musical de Scriabine, um compositor do sculo XX. Esta caixa preta (abriu-se ao fundo do estrado uma cortina, pondo mostra o mais antigo instrumento tocado pelos antepassados), esta caixa era designada pelo nome de Royal Grand, o que mostra a sua natureza rgia, mais uma prova do grau atingido pela msica deles.... Aqui, no me lembro do resto, provavelmente por que... Falarei sem circunlquios: E-330 aproximou-se do Royal Grand. E eu devo ter ficado emocionado com uma apario to inesperada. Vestia a fantstica indumentria duma qualquer poca passada: evolvia-lhe o corpo um fato negro que lhe fazia sobressair brancura dos ombros nus, do colo quente que a respirao fazia levantar e baixar... E dos dentes... Os dentes de uma brancura ofuscante... Um sorriso ofereceu-nos um sorriso, autntico... Sentou- se; comeou a tocar. Msica brbara, espasmdica, mesclada, como a vida desses tempos... Sem sombras de mecnica racional. Tinha razo todos os que minha volta se riam... Mas havia alguns que... E porque que eu me inclua no nmero destes? Sim, a epilepsia uma doena psquica, uma dor psquica. Uma dor lenta, deleitosa, uma mordida... Que penetra cada vez mais fundo, que di cada vez mais! E ento, lentamente, o sol. No o nosso sol, no o sol azul e cristalino, sempre igual, coado atravs dos telhados de vidro. No, um sol selvagem, destruidor, que tudo seca, que tudo desfaz que tudo reduz a pequenas partculas... O nmero sentado minha esquerda observou-me pelo canto do olho e soltou uma risada de escrnio. Na minha memria, por no sei que razo, ficou um pormenor: vi- lhe aparecer e rebentar nos beios uma bolha de saliva microscpica. Esta bolha fez com que eu voltasse a mim, tornasse a ser eu mesmo. Tal como os outros, o que agora ouvia era o rudo incongruente e frvolo das cordas percutidas. Pus- me a rir. Tudo tornava a ser fcil e simples. O talentoso fonoleitor fez uma descrio vivssima daquela poca e. Foi tudo. Que grande prazer o meu ao escutar depois a nossa msica contempornea! (Foi executada no final da palestra, para mostrar bem o contraste.) Ele eram as escalas cromticas cristalinas que convergiam e divergiam em sries interminveis... Os acordes breves das frmulas de Taylor, de McLaren; as passagens sonoras, quadradas, do teorema de Pitgoras; as pensativas melodias de um movimento moribundamente oscilatrio; os ritmos vivos que alternavam com as pausas das linhas de Frauenhofer... A anlise espectral dos planetas... Quanta grandeza! Que regularidade inflexvel! Que limitada era a msica dos antigos, sem mais restries do que as de uma fantasia brbara... Todos os nmeros saram do auditrio, em filas de quatro, como habitualmente. Passou por mim uma figura em forma de S; fiz-lhe uma vnia respeitosa. A adorvel 0- chegaria da uma hora. Sentia-me excitado. Ao chegar a casa, corri para o gabinete da vigilante, mostrei o bilhete cor-de-rosa e recebi um certificado que me conferia o Direito s Persianas. S temos esse direito nos Dias Sexuais. Normalmente, vivemos cada instante vista de todos, sempre banhados em luz e cercados de paredes de vidro que parecem feitas de ar refulgente. Nada temos a esconder uns dos outros. Esta forma de viver, assim s claras, facilita a difcil e nobre misso dos guardas. Se assim no fosse, sabe-se l o que podia acontecer. muito possvel que as habitaes opacas dos antigos estejam na origem da sua triste psicologia celular. A minha (sic) casa a minha fortaleza... De fato, eles puxavam muito pelo miolo! s 22 horas baixei as persianas e, nesse exato momento, chegou 0-, esbaforida. Estendeu-me a boca rsea e o bilhete da mesma cor. Rasguei o talo do bilhete, mas da sua boca rsea s me retirei no momento derradeiro s 22.15. Mostrei-lhe depois estas entradas e falei (pelos vistos, muito bem) sobre a beleza do quadrado, do cubo, da linha reta. Ela escutava com ar rseo, encantador, e foi a que uma lgrima, e outra, e uma terceira deslizaram dos seus olhos azuis, indo cair na pgina aberta (a pgina 7). A tinta esborratou e vou ter de passar tudo a limpo. Querido D-, se ao menos voc... Se ao menos... Ora... Se ao menos o qu? Se ao menos o qu? Ser que ela vai voltar lengalenga antiga, vai querer ter um beb? Ou ser alguma coisa nova... A respeito de outro homem? Muito embora, se assim fosse, tenho a impresso de que... No, seria demasiado absurdo. Quinta Entrada O quadrado Soberano do universo Uma funo agradvel e til Mais uma vez tenho a impresso de que no arranco como deve ser. Mais uma vez, leitor desconhecido, falo contigo como se... Digamos como se fosses R-13, um velho amigo meu. Trata-se de um poeta, de lbios grossos, negroides... Toda a gente o conhece. Mas, pensando melhor, vejamos, tu podes estar na Lua, em Vnus, em Marte, em Mercrio; sabe-se l quem s e onde ests. Como direi? Imagina um quadrado, uma figura quadrangular, um equiltero, vivo, belo. Ele informa-te a seu respeito, fala-te da sua existncia. Compreenders que a ltima coisa que passaria pela sua mente de quadriltero seria dizer-te que todos os seus ngulos so iguais: ele j nem sequer sabe disso, para ele um fato normal, uma coisa de todos os dias. Ora nessa posio quadrangular que eu me vejo constantemente. Tomemos agora, por exemplo, estes bilhetes cor-de-rosa e tudo acabam por bater certo; eles esto para mim como a igualdade dos ngulos est para o quadrado, ao passo que para ti podem ser uma coisa to dura de roer como o binmio de Newton. Muito bem. Alguns sbios antigos disseram uma coisa inteligente (por mero acaso, diga-se de passagem); Amor e a Fome o que comandam o universo. Logo, para dominar o universo, o homem ter que dominar esses dominadores do universo. Pagando um preo elevadssimo, os nossos antepassados triunfaram sobre a Fome: refiro-me Grande Guerra dos Duzentos Anos entre a cidade e a aldeia. Os cristos selvagens, devido certamente a preconceitos religiosos, defendiam com afinco o seu po. Mas no trigsimo quinto ano antes da fundao do Estado nico, foi descoberta a comida que hoje consumimos um derivado da nafta. S 0,2 da populao sobreviveram; mas, limpa da imundcie milenar, a face da terra ficou muito mais esplendorosa! Os sobreviventes puderam conhecer a bem-aventurana de viver nas inmeras manses do Estado nico. No ser claro que a bonana e a inveja so to-somente o numerador e o denominador dessa frao a que se chama felicidade? Que significado ter, pois os incontveis sacrifcios da Guerra dos Duzentos Anos se, apesar de tudo, continuasse a haver razes para a inveja? Mas continua a haver algumas, at porque continua a haver narizes em forma de boto e narizes clssicos (para voltarmos ao tema da nossa recente conversa durante o Passeio Suplementar), porque h alguns que proporcionam muitas conquistas amorosas e outras nenhumas. Naturalmente, depois de ter dominado a Fome (uma vitria que foi o sinal algbrico = da soma das venturas externas), o Estado nico levou a cabo uma ofensiva contra o outro dominador do Universo, ou seja, o Amor. Este elemento acabou por ser derrotado, isto , foi organizado, matematizado, e, cerca de trezentos anos depois, seria proclamada a nossa Lex Sexualis: Qualquer nmero tem o direito de utilizar qualquer outro nmero como produto sexual. O resto j um problema meramente tcnico. Cada caso objeto de investigao aturada nos laboratrios do Gabinete Sexual; determina-se com a maior exatido a soma de hormnios sexuais e estabelece-se para cada um uma Tbua dos Dias Sexuais. Posto isto, faz-se um requerimento onde se declaram os Dias Sexuais em que se quer utilizar este nmero ou aquele ou aquele outro ou aqueles outros, recebe-se o respectivo livro de cupons (que cor-de-rosa) e pronto, no preciso mais nada. Claro est que deixa de haver quaisquer fundamentos para o cime; o denominador da frao de felicidade fica reduzido zero, o que faz com que a frao se converta em magnfico infinito. O que para os antigos constitua uma fonte de incontveis e estpidas tragdias converteu-se para ns numa funo harmoniosa, aprazivelmente til, o mesmo acontecendo tambm com o sono, o trabalho fsico, a ingesto de comida, a defecao, etc. Por aqui se v como a grande fora da lgica limpa tudo aquilo em que toca. Ah se tu, leitor desconhecido, lograsses conhecer esta fora divina, se a seguisses at ao fim! ...Estranho! Hoje, enquanto escrevia sobre os altssimos cumes atingidos pelo gnero humano ao longo da histria e respirava o mais puro ar das montanhas do pensamento, tudo dentro de mim se nublou, se cobriu de teias de aranha, foi atravessado pelos braos cruzados de outro X. Pode muito bem ser uma imagem das minhas patas, das minhas mos peludas que pus diante dos olhos durante bastante tempo. No gosto de falar delas, no morro de amores por elas, um vestgio das pocas selvagens. Ser possvel que dentro de mim haja... Estive para riscar tudo isto, est fora do mbito desta entrada, mas, pensando melhor, decidi no riscar nada. Deixarei que estas entradas, qual sismgrafo rigoroso, desenhem a curva das mais insignificantes oscilaes cerebrais... Por vezes, de fato, estas oscilaes cerebrais so precursoras de... Esta frase que mesmo absurda, era melhor risc-la... Canalizamos todas as foras do universo para os respectivos tubos e est posta de lado toda e qualquer catstrofe. Para mim tudo neste momento perfeitamente claro: a estranha sensao que me domina deve-se situao quadrangular em que me encontro e de que falei no princpio. E o X no est dentro de mim (tambm isso est fora de questo); o que eu tenho receio de que nos meus leitores haja qualquer X. Espero que no me julguem muito severamente. Compreendam que escrever, para mim, mais difcil do que foi para qualquer outro autor de toda a histria do gnero humano. H autores que escrevem para os seus contemporneos, outros para os seus descendentes, no houve nenhum que escrevesse para os antepassados... Ou para seres semelhantes aos seus brbaros e remotos antepassados.
Sexta Entrada Um acidente Esse maldito evidente Vinte e quatro horas Repito que considero ser meu dever escrever sem reservas ou segredos. Por isso, doa a quem doer, tem que referir neste momento o tato de o processo de endurecimento, de cristalizao da vida no ter ainda terminado. Continua a haver alguns degraus at se alcanar o ideal. O ideal, claro est, vai ser quando no acontecer mais nada, mas o fato que entre ns... Considere-se, por exemplo, o seguinte: leio na Gazeta do Estado nico do dia de hoje que dentro de dois dias ser celebrada a Festa da Justia na Praa do Cubo. Significa isto que, mais uma vez, houve nmeros que perturbaram o funcionamento da grande Mquina do Estado, que tornou a acontecer o imprevisto, o no calculado! Alm disso, aconteceu-me, a mim, outra coisa. Foi durante a Hora Pessoal ou seja, um perodo especificamente estabelecido a pensar em circunstncias imprevistas , mas, mesmo assim... Por volta das 16 (ou das 15.50, para ser mais exato), estava eu em casa quando o telefone, de repente, se ps a tocar. D-503? perguntou uma voz de mulher. Sim. Est livre? Estou. Sou eu, E-330. Vou busc-lo a e vamos os dois Casa da Antiguidade. Est bem? E-330... Este E- feminino irrita-me, repugna-me, para no dizer que me assusta. Mas exatamente por isso que lhe respondi: Sim. Passados cinco minutos estvamos j no aero: o cu de Maio era azul vivo e o sol calmo, no seu prprio aero de ouro, zumbia no nosso rasto, sem nunca se adiantar ou atrasar em relao a ns. Acima de ns erguia-se uma nuvem branca, ofuscante, uma nuvem incongruente, gorda como as bochechas desses Cupidos antigos, o que no deixava de ser perturbador. Tnhamos aberto os para-brisas, o vento aoitava-nos a cara e secava-nos os lbios, obrigando-me a passar constantemente a lngua sobre eles e a pensar neles o todo o instante. distncia, notamos uma srie de manchas esverdeadas, do lado de l do Muro; involuntariamente, sentimos o corao fraquejar; comevamos a descer, a descer, a descer, como quem desliza por um declive montanhoso, e da a pouco aterrvamos junto Casa da Antiguidade. Todo este edifcio magnificente, frgil, ofuscante, era revestido por uma concha de vidro; se no fosse isso, h muito que teria rudo, com certeza. Junto porta de vidro est sempre uma velha de cara enrugada, especialmente a boca, toda cheia de gretas, com os lbios metidos para dentro, atrofiados, no se crendo ao v-la que tal boca fosse capaz de falar... Mas foi isso o que ela fez: Ento, queridos? Vieram visitar a minha casinha? disse, com um brilho a iluminar lhe as rugas (melhor dizendo, as rugas uniram-se todas elas, dando a impresso de uma coisa brilhante). Nem mais, av, senti vontade de tornar a visit-la disse-lhe a E-330. As rugas voltaram a brilhar: J viram este sol, hein? E ento, o que que temos desta vez? Ai, a marota... A marota... Eu sei, eu sei... V l... Podem ir que eu fico melhor aqui ao sol... A minha acompanhante, pelos visto, fazia-lhe visitas frequentes... Havia qualquer coisa que me repelia dali, mas havia tambm alguma coisa que me impedia de fugir: era, provavelmente, a imagem persistente daquela nuvem que pairava no azul do cu. Gosto dela... Gosto da velhota disse a E-330, enquanto subamos a escada larga, s escuras. Por qu? Isso no sei. Por causa da boca, possivelmente. Talvez por nada em especial. Gosto, s isso. Encolhi os ombros. Sinto-me apanhada em flagrante continuou, com um sorriso quase imperceptvel, talvez mesmo sem sorrir. evidente que no se deveria gostar assim, deveria ter-se uma razo. Todas as foras elementares deveriam ser... evidente atalhei eu, mas acabei por tomar conscincia daquela palavra evidente e olhei furtivamente para E-330: teria ela se dado conta? Ela olhava para baixo. Cerrara as plpebras, como se fossem persianas. Recordei-me logo de uma coisa. Naquela noite, por volta das 22.30, durante o passeio pela avenida, podiam ver-se, entre os cubculos transparentes e iluminados, alguns outros s escuras, com as persianas corridas e l atrs das persianas... Que haveria por trs das persianas dela? Porque me ter ela telefonado hoje, o que haver por trs de tudo isto? Abri uma porta pesada, opaca, que rangia, e encontrmo- nos num compartimento escuro, desarrumado (a que chamam aposentos). Ou- via-se aquela msica do instrumento Royal e as cores e formas de tudo o que se via eram brbaras tanto quanto a msica brbara, desordenada, louca, daquelas eras remotas. O assoalho era branco, as paredes eram azuis, forradas de livros com encadernaes vermelhas, verdes e cor-de-laranja; de bronze amarelo eram os candelabros e uma estatueta de Buda; quanto aos mveis, tinham linhas distorcidas, epilpticas e tudo aquilo era impossvel de ser resolvido por qualquer equao. Custava-me a suportar este caos, mas a minha acompanhante, pelos visto, era de constituio mais robusta. Acho este muito agradvel disse ela. Mas acabou por se arrepender do que disse e mostrou- me um sorriso que era uma coisa, pondo mostra os dentes brancos e afiados. Mais exatamente, de todos os aposentos, o mais incongruente corrigiu. Mais exatamente ainda, o mais incongruente de todos os estados deles eu a corrigi. Nesse tempo os estados microscpicos eram aos milhares, sempre em guerra, cruis como... Sim, sim, evidente disse E-330, aparentando a maior sinceridade. Passamos por uma diviso onde havia camas de crianas (naquela poca as crianas eram tambm propriedade privada). Vinham depois outros quartos com espelhos refulgentes, guarda-fatos enormes, divs de cores berrantes e insuportveis, uma lareira enorme, uma cama grande de mogno. O nosso vidro moderno esplndido, transparente, eterno s aparecia ali sob a forma de tristes, frgeis e minsculas janelas. E pensar que eles aqui se amavam assim, que se consumiam e se torturavam uns aos outros disse ela, voltando a baixar as gelosias dos olhos. Quanta energia humana desperdiada de forma insensata e extravagante, no verdade? De certo modo, era eu que estava a falar pela boca dela, lia-me no pensamento. O sorriso, porm, era atravessado por aquele X irritante. L dentro, atrs das persianas, acontecia no sei dizer o qu; fosse o que fosse, estava farto; queria contrari-la, gritar com ela (precisamente berrar com ela), mas via-me forado a concordar com tudo o que ela dizia: era impossvel no concordar. A certa altura parmos diante de um espelho. Nesse momento chamaram-me a ateno os olhos dela. Assaltou-me a ideia de que os homens tm uma constituio to primitiva e desordenada como a dos aposentos em que vivem: tm cabeas opacas e a nica coisa transparente, as janelas abertas para o interior, isso os olhos. Ela adivinhou a minha ideia, ao que parece, e voltou-se, como que a dizer: Pronto, a tem os meus olhos. E agora? (Tudo isto, claro est, sem sequer abrir a boca.). Tinham na minha frente duas janelas cerradas, com uma vida desconhecida e estranha no interior. A nica coisa que eu vi era uma fogueira ela prpria era uma lareira acesa e algumas figuras parecidas com... Isto era natural, por certo: via-me eu prprio refletido naqueles olhos. S no era natural nem habitual em mim (devia ser por causa do cenrio opressivo que nos rodeava) o fato de sentir receio, de me sentir prisioneiro, metido numa jaula brbara, apanhado por aquele temvel furaco da vida de antigamente. V l disse E-330. Passe um momento para a sala ao lado. A voz vinha de dentro dela, detrs da janela obscura dos seus. Olhos, onde a fogueira estava a arder. Sa, sentei-me. Numa prateleira fixa na parede via-se o busto assimtrico dum poeta de antigamente (Pushkin, creio), de nariz torto, com um sorriso quase imperceptvel. Porque estava eu ali sentado a aturar humildemente aquele sorriso, que estava eu a fazer ali, o que me fazia estar ali, numa situao to absurda? Aquela mulher irritante, repelente, o jogo inacreditvel em que ela me tinha metido... Ouvi, no quarto do lado, o rudo da porta do guarda-fato e um roagar de sedas. S muito a custo me impedi de ir at l para... No me recordo bem, mas, provavelmente, o que eu queria era dizer-lhe uma srie de coisas que ela precisava ouvir. Mas no tardou que ela entrasse. Trazia um chapu preto na cabea, um vestido amarelo-vivo, curto, antiquado, e as meias eram igualmente pretas. O vestido era de seda fina. Vi claramente que as meias eram altas, muito por cima dos joelhos; quanto ao decote do vestido, era fundo, deixando ver aquela sombra que fica entre os... Vejo que quer mostrar-se original, mas no seria possvel... claro atalhou E-330 que ser original significa ser diferente dos outros. Por consequncia, ser original o mesmo que violar a uniformidade. E aquilo que na linguagem idiota dos antigos passava por ser banal significa hoje para ns o cumprimento dum dever. At por que... Isso mesmo, isso mesmo, nem mais observei eu sem perda de tempo. E voc no devia... No devia... Aproximou-se da estatueta do poeta do nariz torto e, cerrando as plpebras sobre o fogo ardente dos olhos profundos, com aparente sinceridade, talvez para me acalmar, disse estas palavras sensatas: No lhe parece espantoso que as pessoas, noutros tempos, tolerassem tipos como este? E que, alm de os tolerarem, tambm lhes prestassem culto? Que esprito servil o deles, no acha? evidente... Ou seja, o que eu queria dizer ... Maldita expresso, aquela evidente. Sim, sim, eu entendo. Mas, l no fundo, eram mais poderosos do que as cabeas coroadas daquele tempo. Porque no eram eles isolados, exterminados? Se fosse agora... Se fosse agora, sim continuei eu, mas logo ela desatou a rir e eu nada mais pude ver do que aquele riso, a curva cortante e dctil daquele riso, uma curva to obstinadamente elstica como a de um chicote. Senti um arrepio que no mais esqueci. Ah, se eu pudesse passar a mo nela e... No me lembro do que depois aconteceu. Era preciso fazer alguma coisa, fosse o que fosse. Abri, mecanicamente, a caixa dourada do relgio e vi as horas: eram 16.50. No acha que so horas de ns irmos embora? me desfiz com toda a delicadeza que me foi possvel. E se eu lhe pedisse que ficasse aqui comigo? Mas... Pensou bem no que acaba de dizer? Eu sou obrigado a comparecer no auditrio dentro de dez minutos... Todos os nmeros tm obrigao de ir s aulas de arte e cincia disse E-330 com uma voz que era exatamente a minha voz, ao mesmo tempo em que erguia as persianas das plpebras e me olhava nos olhos: fitei-a e vi atravs daquelas janelas obscuras a lareira acesa. No Departamento Clnico, conheo um mdico registrado no meu nome. Posso pedir-lhe que passe um atestado a dizer que est doente. Acha que basta isso? Compreendi. Compreendi finalmente aonde me levava todo este jogo. Ento isso? Sabe perfeitamente que, como todos os nmeros conscienciosos, sou obrigado a ir imediatamente ao Posto dos Guardas e... Vai mesmo...? retorquiu com o mesmo sorriso- lascivo. Estou curiosa por ver isso... Vai ou no vai ao Posto dos Guardas? Prefere ficar aqui? perguntei, agarrando no puxador da porta. Era um puxador de metal e, aos meus ouvidos, a minha voz era dura e metlica como o puxador. Um momento. D-me licena? Foi at ao telefone, ligou para um nmero qualquer (era tal a minha agitao que nem me ocorreu tomar nota, mas era masculino) e disse bem alto: Espero por ti na Casa da Antiguidade. Sim, sozinha! Senti toda a frieza do puxador quando o fiz rodar, dizendo: Permite que eu pegue o aero- carro? Ah, sim, naturalmente, por favor. L fora, como uma planta ao sol, a velha estava entretida com os seus devaneios. A boca, fechada aparentemente para todo o sempre, escancarou-se: Ento a sua... Dama? Ficou l dentro sozinha? Ficou. Tornou a fechar a boca. Abanou a cabea. Era evidente que at aquele crebro dbil compreendia quanto era absurdo e arriscado o comportamento daquela mulher. s 17 em ponto eu j estava na aula. E nesse momento preciso, no sei por que, ocorreu-me que no era bem verdade o que tinha dito velha: E-330, a estas horas, j no estava sozinha. E devia ser isso o fato de no ter dito a verdade velha que me afligia, me distraa a ateno. No, ela no estava sozinha, a verdade era essa. As 21.30 tinha outra hora livre; poderia ter ido ao Posto dos Guardas nesse mesmo dia e apresentar o meu relatrio. Mas, depois do estpido incidente, sentia-me exausto. Alm disso, o limite legal para tais relatrios era de dois dias. Dispunha ainda de vinte e quatro horas. Stima Entrada Uma pestana Taylor A margarida e o junquilho Noite. Verde, laranja, azul; o instrumento Royal vermelho; um vestido amarelo amarelo-laranja. Depois... Um Buda de cobre. Subitamente, abriu as plpebras metlicas e comeou a escorrer, do Buda, um lquido. Tambm do vestido escorria um lquido; lquido que escorria em gotas pelo espelho e toda a cama de mogno ficavam molhados e os beros dos pequenos tambm e eu prprio me sentia encharcado... E tudo isto produzia em mim um horror deleitoso e letal... Despertei; a luz azul difusa, o vidro das paredes reluzindo, as cadeiras e a mesa de vidro, tudo isso me acalmou; senti o corao mais leve. O lquido, o Buda... Quanto disparate! Bem no estou, uma verdade. Nunca antes tive sonhos. Sonhar, dizem, era normalssimo entre os antigos. No admira: toda a vida deles era um carrocei assustador verde, laranja, Buda, lquido. Hoje sabemos que o sonho um grave distrbio psquico. Uma coisa eu sei: at hoje, o meu crebro era um mecanismo cronometricamente regulado, fulgurante, sem um grozinho de p, mas hoje... Sim, hoje veio o desarranjo: sinto um corpo estranho no crebro, assim como quando se tem uma pestana finssima alojada num olho. Sentimo- nos exatamente como sempre fomos, mas a pestana alojada no olho no nos deixa descansar nem um segundo, no podemos esquec-la. cabeceira da cama ressoa o tilintar cristalino dum pequeno despertador: 7 horas, hora de levantar. Para a esquerda e para a direita, nas paredes de vidro, vejo-me a mim prprio, vejo o meu quarto, o meu fato, os meus gestos, tudo repetido mil vezes. uma coisa que nos reconforta isto de sabermos que somos um todo, enorme, poderoso. Quanto rigor, quanta beleza: nem um gesto suprfluo, nem um desvio. Taylor, realmente, foi o maior gnio que os antigos tiveram. Em boa verdade, no conseguiu ir at ao fim, aplicar o seu sistema vida em geral, passo a passo, dia e noite... No foi capaz de integrar no seu sistema cada uma das vinte e quatro horas do dia. Apesar de tudo isso, como possvel terem os antigos escrito bibliotecas inteiras sobre o Kant e outros quejandos, sem darem por Taylor, profeta que soube prever tudo com dez sculos de antecedncia? Acabo de tomar o pequeno-almoo. Cantmos em unssono o Hino do Estado nico. Todos a uma, em filas de quatro, os nmeros encaminham-se para os ascensores. Mal se ouve o sussurro dos motores; vamos descendo, descendo, descendo, e, quase imperceptivelmente, o corao falha... Subitamente, por qualquer razo, ocorre-me aquele sonho despropositado ou uma funo indeterminada do sonho. Ah, sim... Aconteceu-me isso mesmo ontem, no aero- carro, a mesma quebra de tenso. Mas tudo passou. Acabou-se. O melhor que eu podia fazer era cortar rude e decididamente com ela. O autocarro subterrneo levou-me at doca onde brilha ao sol o corpo delicado do INTEGRAL, imvel, elegante. De olhos fechados, sonho com as frmulas: mais uma vez calculei a velocidade inicial necessria para fazer levantar do cho o INTEGRAL. A mnima partcula de segundo poderia modificar a massa do INTEGRAL, se houvesse que recorrer ao combustvel explosivo. A equao resultante era extremamente complexa, com grandezas transcendentais. Aqui, no meu slido universo de algarismos, sinto, como num sonho, que algum vem sentar-se ao meu lado e me pede desculpa por ter roado por mim ao de leve. Abro os olhos e (por associao de ideias com o INTEGRAL) comeo por ver um objeto a voar impetuosamente no espao; era uma cabea e voa porque tem umas asas cor- -de-rosa no lugar das orelhas. Vejo depois a curva do pescoo, ondeando, as costas abauladas, uma dupla curva, a letra S... E, atravs das paredes vtreas do meu universo algbrico, chega at mim pestana intrusa, uma coisa desagradvel que hoje vou ter que... No nada, no nada digo com um sorriso ao meu colega, cumprimentando-o. o S-4711: vejo o nmero reluzir na placa e percebo agora porque foi que, desde o primeiro momento, o associei letra S; foi uma impresso visual que a minha conscincia no tinha registado. Nos olhos dele brilham duas verrumas pontiagudas, perfurantes, que penetram em mim profundamente e, neste momento, sinto que vai penetrar to fundo que descobrir tudo o que eu no me atrevo a confessar nem a mim prprio... A pestana, de repente, para mim uma evidncia: ele um deles, um dos guardas e o mais simples seria contar- lhe tudo agora mesmo, sem esquecer nada. Sabe? Ontem estive na Casa da Antiguidade comecei numa voz que me soou estranha, rouca, spera, pelo que tentei aclar-la, tossindo. Ah, tem graa. Deve ter sido uma experincia til e muito instrutiva. Sim, mas... Compreende, no fui s, E-330 me fez companhia e a... E-330? Felicito-o. Uma mulher interessantssima, talentosa, tem muitos admiradores. Quer dizer que tambm ele! Durante aquele passeio... Ser que tambm ele est registrado em nome dela? No lhe vou falar disso. N3o h nada a dizer... Est tudo muito claro. Sim, sim, no h dvida, no h... O meu sorriso era cada vez mais aberto, cada vez mais palerma; o sorriso despia-me, imbecilizava-me. As verrumas tinham-me perfurado at ao mais fundo de mim; de repente, fazendo o movimento inverso, de apareceram-lhe do olhar. S- sorria de forma ambgua, abanava a cabea, afastou-se e saa. Ocultei-me atrs do jornal (tenho a impresso de que toda a gente me observa) e de repente esqueo a pestana, esqueo as verrumas, esqueo tudo, to agitado fiquei com o que li no jornal: De acordo com informaes fidedignas, acabam de ser descobertos sinais de uma organizao ainda por desmantelar, a qual teria por objetivo a libertao do jugo do Estado. Libertao? intrigante como entre o gnero humano continua enraizado o instinto criminoso. Uso deliberadamente esta palavra criminoso. A liberdade e o crime esto to indissoluvelmente ligados como... Digamos o movimento dum aero e a sua velocidade; supondo que a velocidade do aero =0, o aero no se move; assim tambm se a liberdade do homem =0, o homem no comete crimes. evidente. A nica maneira de livrar o homem do crime livr-lo da liberdade. Ainda mal acabmos de libert-lo ( escala csmica, evidentemente, s daqui a sculos) e j alguns desgraados... No, no percebo porque no fui logo ao Posto dos Guardas, ontem mesmo. Tenho de ir l hoje sem falta at s 16. Ao sair, s 16.10, olhando para a esquina, dou de cara com 0-; este encontro deixou-a radiante da vida. Trata-se de um esprito simples. um encontro oportuno. H de compreender-me e dar-me uma ajuda. Mas, vendo bem, no preciso de ajuda; a minha deciso firme. Os alto-falantes da Torre Musical tocavam compassadamente a Marcha a mesma marcha de todos os dias. Inexplicvel encanto o desta repetio diria, sempre igual! Quer dar uma volta? disse 0-, pegando na minha mo. Tinha os olhos azuis muito abertos, autnticas janelas por onde se tinha acesso ao interior e eu entro por elas sem nada captar, sem encontrar o que quer que seja estranho ou desnecessrio. No, no vamos. Tenho que ir a... E disse-lhe aonde queria ir. Para meu grande espanto, vi o crculo rseo de a sua boca tomar a forma de meia-lua, com as pontas para baixo, como se tivesse provado algo bem amargo. No pude deixar de explodir: Os nmeros femininos esto todos irremediavelmente contagiados pelos preconceitos, d- me a impresso. So totalmente incapazes de qualquer pensamento abstrato. Peo desculpa, mas so todas muito obtusas. Tem que ir falar com os espies... Fale! Mas eu tinha ido ao Jardim Botnico e colhido uns ramos de junquilhos para ti. Que significa isso, mas eu? A que vem o, mas? mesma coisa de mulheres. Arranquei-lhe o ramo das... Furioso, confesso. 0 seu ramo de junquilhos... isso, ento? Cheire, v, cheire... Um perfume adorvel, no ? Veja se tem um pouco de lgica, ande l! Os junquilhos tm um perfume agradvel, admito-o. Mas, de um perfume, do conceito de perfume, no possvel afirmar se bom ou se mau. Acha que possvel, acha? Os junquilhos tm o seu cheiro, a margarida tambm tem o seu cheiro: cada flor tem o seu. Havia espies nos estados antigos, no nosso h tambm espies... Sim, espies. No tenho medo das palavras. Mas uma coisa clara: os espies deles eram margaridas... Estes agora so junquilhos. Sim, junquilhos, nem mais nem menos! Estremece o crescente rseo. Ao escrever isto, tenho conscincia de que tudo se passou apenas na minha imaginao, mas naquele momento no tive dvidas de que ela se ia rir a bandeiras despregadas. Por isso mesmo, comecei a gritar o mais alto que pude: Junquilhos, sim! E no tem graa nenhuma... No tem mesmo graa nenhuma! Os globos rotundos e lisos de todas as caras agitam-se. Olham para trs. 0- pegou-me ternamente na mo. Hoje voc est muito esquisito... Sente-se mesmo bem? O meu sonho... O vestido amarelo... O Buda... Tornou s- me evidente que era necessrio ir ao Posto Mdico. Ah, sim, sem dvida... No me sinto bem... respondi contente (e havia em tudo uma contradio inexplicvel: no havia motivos de contentamento). Nesse caso, tem de ir j ao mdico. Compreende, claro, que o seu dever sentir-se bem; ridculo ter que lhe dizer isto. Mas tem toda a razo, querida 0-, claro que tem toda a razo. Toda. No fui ao Posto dos Guardas, no havia nada a fazer. Devia ir ao Custo Mdico. Fiquei l retido at s 17 horas. E noite (no tem importncia, alis, o outro Posto, h essa hora, j tinha fechado), noite, veio ter comigo. No fechamos as persianas. Divertimo-nos a resolver problemas dum antigo compndio de matemtica, um exerccio que acalma e aclara o esprito. 0-90 estava debruada sobre o caderno, com a cabea inclinada sobre o ombro esquerdo e era tal a sua aplicao que tocava com a ponta da lngua na bochecha esquerda. Muito infantil muito comovente. E, dentro de mim, tudo era bom, preciso, simples... Ela foi embora e eu fiquei s. Respirei fundo duas ou trs vezes (fiz muito bem antes de deitar). E chegou-me ento ao nariz um cheiro inesperado... Um cheiro que me trouxe recordaes desagradveis... No demorei muito a perceber qual a origem daquele cheiro: o ramo de junquilhos estava escondido na cama. De repente, num torvelinho, tudo estragado. Da parte dela, era uma grande falta de tato ter-me deixado ficar o ramo de junquilhos, como se o tivesse esquecido... No, no fui ao Posto dos Guardas, certo. Mas poderia algum censurar-me por no me sentir bem? Oitava Entrada Uma raiz irracional O tringulo Aconteceu h muito tempo, quando andava na escola: encontrei pela primeira vez o -1. Est tudo muito claro, profundamente gravado na minha memria. Era numa sala circular, banhada de luz, (eram centenas de cabeas redondas de rapazes e Plyappa, o nosso monitor de matemtica). Foi este o nome que lhe demos. Era um monitor em segunda mo, com as cavilhas arrancadas e quando o professor lhe dava corda, nas costas, a primeira coisa que o alto-falante dizia ora plia-plia-plia-tchhh, e s depois comeava a lio. Um dia o Plyappa falou-nos de nmeros irracionais. Lembro-me de que me pus a chorar e a dar murros na carteira: No quero esta raiz quadrada de menos um!"Tirem-me daqui esta raiz quadrada de menos um! Aquela raiz quadrada irracional acabou por se enterrar em mim como um corpo estranho, extraterrestre, pavoroso; devorava-me; no podia ser racionalizada, no podia ser eliminada, estava fora de toda e qualquer razo. Agora, a \/~-1 regressava. Reli tudo o que j escrevi e percebi que tenho estado a enganar-me, a mentir a mim prprio, a fazer os possveis por esquecer aquela >/ "1". No tenho desculpa, nem a doena desculpa: devia ter ido ter com os Guardas; na semana passada, teria ido imediatamente, sem hesitar. Porque no hoje? Por qu? Ainda hoje, por exemplo. Hoje, s 16.10 em ponto, estava em frente duma parede de vidro. altura da cabea, o letreiro dourado, puro, dos Guardas, e atrs do vidro uma longa fila de uniformes azuis. As caras deles tinham o esplendor dos lampadrios duma igreja antiga. Estavam ali a praticar um ato sublime, a entregar, no altar do Estado nico, os entes queridos, os amigos, eles prprios. Eu devia fazer o mesmo, estar onde eles estavam. Mas no fui capaz de me mexer, os meus ps estavam profundamente colados ao vidro do pavimento; ali me deixei ficar, olhando, sem sair do mesmo lugar. Ento, matemtico, ests a sonhar acordado? Atrapalhei-me. Fitavam-me uns olhos pretos, risonhos. Os lbios eram grossos, de negro, tratava-se do meu velho amigo R-13, o poeta, e, junto dele, vi a rsea 0-, Olhei para eles, furioso (estou em crer que, se eles no tivessem aparecido, eu acabaria por me ver livre daquela V"-1 que tinha entranhado na minha carne; teria entrado no posto dos Guardas".). No sonhava' acordado, mas estava perdido respondi um tanto bruscamente , perdido de admirao, se preferir. Com certeza, com certeza. No devias ser matemtico, devias ser poeta. Sim, poeta... Anda vem da, passa para o lado dos poetas, v! Eu trato de tudo, se quiseres, est bem? R-13, ao falar, fazia espuma; ao sair-lhe dos lbios, cada palavra dele torna-se lquido, cada P que ele pronuncia uma fonte... Os poetas so fontes. Sempre servi o saber e continuarei a servi-lo afirmei de sobrancelha franzida, porque no gosto de piadas, no as compreendo e R-13 tem o mau costume de gracejar. Ora, ora, o saber! O teu saber no passa de covardia. Falas por falar, o que . O que tu queres entaip-lo, ao saber, aprision-lo no infinito... E quando deitas um olhar para o lado de l do muro, ficas assustado. No podes deixar de fechar os olhos, meu caro! Os muros constituem o fundamento de tudo o que humano respondi. R- desfez-se em saliva. O-, rsea e redonda, ria-se. Afastei-me, deixei-os rir. No interessa. No tenho tempo para graas; tinha que procurar alguma coisa que me tirasse da boca o gosto daquela maldita V"-1, que a aniquilasse". Se querem propus , venham at minha casa; sentamo-nos e resolvemos uns problemazinhos de matemtica. Estava lembrado da hora calma que tinha passado com O- , ontem. Talvez hoje fosse bom, tambm. O- olhou para R-; olhou depois para mim, fixamente, e as faces ruborizaram-se-lhe, mas muito de leve, ficando da cor suave, excitante, dos nossos cupons. Hoje... Hoje tenho um cupom dele disse ela apontando para R- , mas ele amanh est ocupado. Portanto... Basta-nos a meia hora, a ns disse o dos lbios hmidos e brilhantes. No te parece, 0-? No tenho nada a ver com os vossos problemas. Vamos l at minha casa, passamos l um bocado. Estranha sensao era ficar a ss comigo mesmo... Ou, mais corretamente, com o meu novo eu, o meu estranho eu, que, por uma estranha coincidncia, tinha o mesmo nmero que eu tinha D-503. E aceitei ir at casa de R-. Para ser franco, acho que ele no exato, no tem o ritmo certo; possui uma lgica anormal, intrigante, mas isso no nos impede de sermos amigos. Por alguma razo ter sido que ambos escolhemos, h trs anos, a nossa querida e rsea 0-. um lao que nos une mais fortemente do que os vrios anos que passmos na escola. Chegamos num instante casa de R-. Tudo ali , aparentemente, igual ao que tenho no meu quarto: as Tbuas dos Mandamentos Horrios, as cadeiras de vidro, a mesa, o guarda-roupas, a cama. Mas, pouco depois de entrar, j R- tinha deslocado uma cadeira, depois ou na cadeira, e a ordenao passou a ser outra tudo se desviou do modelo estabelecido e se tornou no euclidiano. R- continua a ser o mesmo, o mesmo de sempre. Nas aulas de Taylor e de matemtica, era sempre o ltimo da turma. Falamos do velho Plyappa e do modo como ns, ainda crianas, nos divertamos a colar-lhe cartes de agradecimento nos braos de vidro (gostvamos muito do Plyappa). Recordamos igualmente o Preceptor de Leis. O nosso Preceptor de Leis tinha uma voz tempestuosa; um verdadeiro vendaval com que os seus alto-falantes nos atroavam os ouvidos; pela nossa parte, repetamos aos gritos os textos que ele nos dizia. Recordamos tambm o fato de o rebelde R-13 ter um dia metido uma bola de papel no amplificador: cada texto que era proferido dava lugar a uma exploso de bolinhas. evidente que R- veio a ser castigado; a ao dele era pouco recomendvel, mas ainda hoje nos d uma grande vontade de rir, a todos trs, pois devo confessar que me ri tanto como R- e O-, E se por acaso se tratasse de um monitor de carne e osso, como os de antigamente? O que teria acontecido? disse, expelindo. Saliva entre os lbios espessos, a cada T que dizia. O sol brilhava sobre o telhado e atrs das paredes; era refletido de baixo para cima. 0- estava sentada nos joelhos de R-13 e brilhavam- lhe nos olhos azuis duas bolas de fogo; eu tinha uma sensao de calor, de calma. A \/ "-1 tinha-se eclipsado, no se importou com a frmula". E que tal vai o teu INTEGRAL? Est prestes a levantar voo, para ir levar a luz aos dos outros planetas? melhor apressares, seno ns, os poetas, vamos produzir tanta literatura que o teu INTEGRAL no aguentar o peso dela quando levantar voo. Das oito as onze, todos os dias, ns no paramos... R-13 abanou e coou a cabea. O que ele tem no alto do pescoo mais parece uma maleta quadrada, amarrada atrs (lembrou-me agora uma gravura antiga intitulada Na carruagem). Tambm ests a escrever para o INTEGRAL? atrevi-me a perguntar. Pode-se saber o que tens escrito? Hoje, por exemplo, escreveste o qu? Hoje no escrevi nada. Estive muito ocupado com outras coisas atirou ele na minha cara. Que coisas? Tantas perguntas! exclamou R-13, fazendo uma careta. Se queres saber, foi uma sentena de morte. Pus em verso uma sentena de morte. O sentenciado foi um idiota, um de ns, um poeta, exatamente. Foi durante dois anos meu colega; parecia correr tudo bem com ele. E num belo dia de sol, de repente, diz: Sou um gnio e os gnios esto acima da lei. As coisas que saem da boca de uma pessoa! O uso que a gente faz da linguagem... Suspirou, com pena. Descaram-lhe os lbios em tristeza. Apagou-se lhe todo o brilho dos olhos. R-13 levantou-se da cadeira, deu uma volta pelo quarto, comeou a olhar para determinado ponto da parede. Eu observava aquela cabea fechada a sete chaves que lhe encimava o pescoo e pensei a ss comigo mesmo: Que se passar dentro daquela cabea? Seguiu-se um minuto de silncio incmodo, assimtrico. Para mim, no era fcil perceber o que havia ali de errado, mas alguma coisa havia. Felizmente, vo longe os tempos antediluvianos dos Shakespeares e dos Dostoievskys ou l como eles se chamavam disse eu levantando propositadamente a voz. R- voltou-se e olhou-me de frente. Soltou ento uma torrente de palavras, mas o olhar continuava apagado, e triste: Sim, meu querido matemtico, felizmente, felizmente, felizmente! Ns somos a feliz mdia aritmtica. Como vocs costumam dizer: a integrao do zero ao infinito, do cretino a Shakespeare... No mais! No sei por que, pois no vinha nada a propsito, veio- me lembrana a outra, o modo como ela falava... Entre ela e R- estendia-se um lao extremamente tnue, no sei de que espcie... O -1 comeou a dar-me voltas cabea, abri o relgio: eram 16.25. O cupom cor-de-rosa dava- lhes direito a mais quarenta e cinco minutos. O tempo voa. Beijei 0-, apertei a mo do R- e dirigi-me para o elevador. Atravessei a rua e virei-me para trs. Aqui e ali, na mole imensa de vidro batida pelo sol, dispunham-se inmeras clulas azul-cinza, formadas pelas persianas fechadas, clulas de rtmica felicidade taylorizada. Detectei no stimo piso a clula de R-13 que estava a fechar persiana. Meus queridos 0- e R-! H tambm nele (no sei por que escrevi este tambm, mas o melhor deixar ficar o que est escrito, seja o que for), h nele tambm qualquer coisa que para mim no clara. Mas um fato que ele, 0- e eu somos um tringulo; talvez no seja um tringulo issceles, mas um tringulo. Parafraseando o que diziam os nossos antepassados (talvez esta linguagem, leitor planetrio, seja para ti mais compreensvel do que para mim), somos uma famlia. E bom, de vez em quando, repousarmos um pouco, isolarmo-nos num tringulo simples e slido, longe de tudo o que...
Nona Entrada A liturgia Jmbicos e troqueus A mo de ferro Dia triunfal esplendoroso. Num dia assim esquecemo-nos dos nossos falhanos, imprecises, fraquezas e tudo se nos torna imperturbavelmente cristalino, eterno, como o vidro que hoje usamos. Praa do Cubo. Sessenta e seis crculos concntricos: so as tribunas. E nelas sessenta e seis filas de caras serenas como a luz, de olhares que refletem o esplendor celeste ou, possivelmente, o fulgor do Estado nico. Flores rubras como sangue: os lbios das mulheres. Bonitas grinaldas de rostos infantis, na fila da frente, rodeando o palco da ao. Silncio profundo, austero, gtico. A julgar pelas descries que at ns chegaram, devia ser semelhante emoo que os antigos sentiam durante os Servios Divinos. Eles, porm, celebravam-nos em honra de um Deus absurdo, desconhecido, ao passo que os nossos se dirigem a um Deus coerente e perfeitamente conhecido em toda a sua perfeio; o Deus deles s lhes dava inquietaes eternas, torturantes, e a coisa mais brilhante que lhe passou pela ideia foi oferecer-se a si prprio em sacrifcio, sabe-se l por que motivos; o sacrifcio que ns ofertamos ao nosso Deus, que o Estado nico, um sacrifcio profundamente ponderado, racional. Sim, foi solene a cerimonia que celebramos em louvor do Estado nico, uma comemorao dos dias e dos anos cruciais da Guerra dos Duzentos Anos, uma majestosa festividade ao triunfo de todos sobre o um, da soma sobre a unidade. De p, nos degraus do Cubo iluminado pelo sol, est uma unidade. Um rosto branco (branco, a bem dizer, no, antes sem cor alguma), um rosto vtreo com lbios de vidro. E nesse rosto, os olhos: buracos negros, fundos, vorazes; prximos, a um passo apenas do abismo profundo. A placa dourada com o nmero tinha-lhe sido j tirada. As mos estavam amarradas com uma fita vermelha (um costume que vinha da antiguidade e que se explicava pelo fato de, quando estas coisas no eram feitas em nome do Estado nico, os condenados naturalmente sentirem que tinham o direito de resistir, pelo que era necessrio amarrar-lhes as mos com cadeados). E l no cume do Cubo, junto da Mquina, erguia-se Aquele a quem designamos por Benfeitor. Daqui de baixo, onde me sento, no se Lhe v bem o rosto; s se consegue perceber que o tem marcado por traos austeros, graves, retangulares. Quanto s mos... Por vezes, nas fotografias, as mos, demasiado prximas da objetiva, parecem descomunais; atraem as atenes, relegam tudo o mais para a sombra. Embora calmamente pousadas nos joelhos, torna-se evidente que so mos de pedra e que os joelhos mal conseguem aguentar tamanho peso... Sbita e lentamente, uma daquelas mos enormes ergueu-se, num gesto grave, pesado como ferro... Descendo da tribuna, em obedincia mo erguida, um dos nmeros aproximou-se do Cubo. Era um dos Poetas do Estado a quem coubera sorte de coroar a festa com o seu versejar. Divinos e brnzeos, os jmbicos ressoaram por sobre a tribuna, narrando vida do louco de olhos vtreos que estava de p nos degraus, espera das consequncias lgicas dos seus atos. ... Uma conflagrao. As cadncias jmbicas jorram em torrentes de ouro lquido, rvores verdes desfazem-se em seiva, gota a gota, at ficarem reduzidas a esqueletos negros e cruciformes. Mas, neste momento, surgiu Prometeu (representando-nos a todos ns, evidentemente): Uniu o fogo mquina de ao E com a Lei acorrentou o Caos. Tudo era novo, de ao: de ao era o Sol, de ao as rvores, os homens e as mulheres. Inesperadamente, um doido qualquer quebrou as correntes e o fogo deflagrou e, mais uma vez, tudo pereceu... Tenho, infelizmente, pouca memria para versos, mas h uma coisa de que me recordo: teria sido impossvel escolher imagens mais instrutivas e mais belas. O Benfeitor fez um segundo gesto lento e grave: surgiu nos degraus do Cubo um segundo poeta. Tive um sobressalto: Impossvel! Os lbios grossos negros eram dele; era ele! Por que no me teria ele dito que tinha sido escolhido para...? Tremiam-lhe os lbios, lvidos. Era compreensvel: aparecer assim na presena do Benfeitor, na presena de toda a congregao dos guardas; apesar de tudo isso, tremer assim... Troqueus abruptos, geis, cortantes como lminas de ao. Falavam de um crime nunca visto, eram versos sacrlegos em que o Benfeitor era designado por... No, no posso repetir sequer a mim prprio tais nomes. R-13, lvido, sem olhar para quem quer que fosse (no esperava tanta fraqueza da parte dele), desceu os degraus, tornou a sentar-se. De relance vi uma cara triangular, negra, ao lado dele... Desapareceu logo a seguir... Os meus olhos todos os olhos convergiram para a Mquina. Pela terceira vez, a mo ergueu-se num gesto frreo que no era mortal. E, impelido por um vento imperceptvel, o criminoso comeou a andar, lentamente: um passo, outro... E por fim aquele que era o ltimo da sua vida, e ergueu o rosto para o cu, atirando a cabea para trs. Estava a viver os derradeiros instantes. Grave, duro como o destino, o Benfeitor contornou a Mquina, empunhou com mo enorme uma alavanca. Nem um murmrio, nem um suspiro: todos os olhos fitavam a mo... Quanta exaltao, quanta emoo, que embriaguez saber que se uma arma, uma fora em que se renem centenas de milhares de votos! Que destino to grandioso! Momento incomensurvel. A mo desceu, ligando a corrente. O brilho de um raio insuportavelmente cortante; um estalido quase inaudvel, como que um estremecimento nos tubos da mquina. Um corpo que se desfaz numa nuvem etrea de vapor... Que ali, diante dos nossos olhos, se derrete se derrete, se dissolve a uma velocidade horrorosa. Depois... o nada: um pouco de gua quimicamente pura que, um segundo antes, pulsava tumultuosa e vermelha num corao... Era simples e perfeitamente conhecido por todos e cada um de ns. Sim, era a dissociao da matria, era a fisso dos tomos no corpo humano. Apesar disso, parecia-nos sempre um milagre; era sempre uma demonstrao do poder supra mortal do Benfeitor. L no alto, na Sua presena, viam-se os rostos ardentes de alguns nmeros femininos, com os lbios semiabertos de excitao, como flores impelidas pelo vento. De acordo com um costume antigo, as mulheres ornavam com flores o uniforme do Benfeitor, que estava ainda manchado dos respingos. Com o passo majestoso dum hierofante, Ele desceu lentamente, passou diante das tribunas e, Sua passagem, ergueram-se os braos femininos, quais ramos de rvores brancas, e ribombou em unssono uma tempestade de milhes de vivas. Demos vivas tambm ao batalho de guardas que estavam presentes, mas invisveis, misturados com a assistncia. Quem sabe? Estes guardas eram possivelmente os mesmos que a fantasia dum antepassado profetizou ao referir-se aos belos arcanjos encarregados de guardar cada homem desde o momento em que dado luz. Sim, em toda esta celebrao havia qualquer coisa originria das religies antigas, algo de purificador, como uma trovoada, como uma tempestade. Tu que por acaso me ls, diz: so-te familiares momentos como estes? Tenho pena de ti se assim no for.
Dcima Entrada Uma carta Uma membrana O meu Eu peludo O dia de ontem foi para mim uma espcie de papel atravs do qual os qumicos filtram as solues; ficaram nele todas as partculas suspensas, todos os elementos estranhos. E estas manhas puderam descer as escadas purificadas, destiladas, transparentes. No vestbulo, a controladora, sentada escrivaninha, consultava o relgio ao mesmo tempo em que tomava nota das sadas e entradas dos nmeros. D pelo nome de U... E melhor ser no dizer o nmero, para no escrever nenhuma inconvenincia. Em boa verdade, uma senhora respeitvel com muitos anos de idade. O que pior agrada nela so as bochechas pendentes... Uma espcie de orelhas de peixe (o que no grave, vendo bem). Ao escrever, a pena dela arranha o papel; nele vejo o meu nome D-503 e ao lado um borro, Ia chamar-lhe a ateno para isso quando ela, subitamente, levantou a cabea, mostrando-me uma espcie de sorriso azul como a tinta: Ah, h uma carta para ti. Sim. Vai receb-la, meu caro, com certeza, v.. Eu sabia que a carta, depois de ela a ter lido, tinha seguido para o Posto dos Guardas (acho suprfluo explicar este procedimento normal) e me chegaria s mos ao meio-dia, o mais tardar. Mas aquela amostra de sorriso deixou-me perplexo e o borro de tinta vinha turvar a soluo transparente em que me tinha banhado. A tal ponto que, mais tarde, j no estaleiro onde est o ser construdo o INTEGRAL, eu no fui capaz de me concentrar e errei os clculos, coisa que nunca me tinha acontecido. Ao meio dia, outra vez a bochechuda morena-rosada, a mesma amostra de sorriso, e finalmente a carta. No a li naquele momento (no sei por que) a coloquei no bolso e subi sem demora ao meu quarto. Abri-a, passei os olhos por ela e... Sentei-me. Era uma notificao oficial de que o nmero E-330 tinha me registrado em seu nome e que devia encontrar- me com ela s 21 horas daquele dia, na morada junto. Nunca! Nunca depois do que tinha acontecido, depois de lhe ter mostrado qual era a minha posio a seu respeito. Alm do mais, ela nem sequer sabia se eu tinha ou no ido ao Posto dos Guardas, no tinha qualquer possibilidade de saber se eu tinha estado doente... Vejamos normalmente eu teria sido incapaz de faz-lo. Apesar disso... Senti a cabea rodar. Tinha um motor a rosnar l dentro. Buda... Amarelo. Junquilhos... Um crescente cor-de-rosa. Sim, e havia mais ainda: 0- tinha combinado vir ter comigo hoje. Faria bem em lhe mostrar a notificao que falava de E-330? No sei, ela no acreditaria (e quem iria acreditar?) que eu era alheio a tudo aquilo, que estava perfeitamente... J sei: vai haver uma discusso difcil, absurda, absolutamente ilgica. No, tudo menos isso. Deixemos que tudo se resolva mecanicamente; vou, simplesmente, enviar-lhe uma cpia da notificao. Meti rapidamente o papel no bolso e, de sbito, reparei na minha mo, horrvel, simiesca. Recordei a maneira como ela E... Tinha pegado na minha mo e olhado para ela, durante o passeio... Seria de crer que ela, de fato... Soaram finalmente as 20.45. Noite branca. Tudo verde- vidro. Mas vidro frgil, diferente do habitual, diferente do nosso, do vidro real. Uma delgada crosta de vidro e, por baixo dela, tudo a rodopiar, a acelerar, a rosnar. No me teria surpreendido se agora mesmo as cpulas dos auditrios se erguessem no meio duma fumarada lenta, circular, ou se a lua envelhecida nos enviasse um sorriso azul-tinta (como o daquele nmero feminino, de manh, escrivaninha), ou se todas as persianas em todas as casas se fechassem ao mesmo tempo e, atrs delas... Uma sensao estranha. Como se as minhas costelas fossem varetas de ferro e me espartilhassem me espartilhassem literalmente o corao. Sentia-me asfixiar, sem espao. Via-me diante duma porta de vidro com as letras E-330 escritas a ouro. E- estava sentada a uma mesa pequena, de costas para mim, a escrever qualquer coisa. Entrei. Aqui estamos disse, dando-lhe o bilhete cor-de- rosa. Recebi hoje a notificao e vim. Que pontual! Um momento... D licena? Sente-se; s acabar isto. Deixou os olhos percorrerem de novo a carta... O que se passaria dentro dela, atrs das janelas fechadas dos olhos dela? Que iria ela dizer, que iria eu fazer no minuto seguinte? Como descobrir, como calcular tudo isso, se tudo nela provinha de l, da brbara, da antiga terra dos sonhos? Observava-a em silncio. As minhas costelas eram varetas de ferro; estava sem flego... Quando fala, a cara dela uma roda a rodar a toda a velocidade, impossvel distinguir os raios. Mas presentemente a roda no est em movimento. E reparo numa combinao estranha: as sobrancelhas negras que se prolongam em bico para as tmporas, um ngulo agudo sarcstico; duas rugas profundas, mas pequenas que descem do nariz para os cantos da boca; mais um tringulo com o vrtice para cima. E estes dois tringulos chocam de certo modo um com o outro, desdenhando-lhe na cara aquele X cruci- forme, desagradvel e irritante. Uma cara em forma de cruz. Comeou a roda a girar; fala e os raios ficam invisveis: Ento voc acabou no indo ao Posto dos Guardas, no verdade? Estive... No pude ir... Sentia-me mal. Sim, timo, tambm foi isso o que eu pensei. Alguma coisa o ter impedido, no me interessa o qu (... dentes afiados... sorriso). Mas, sendo assim, est em minhas mos. Recorde-se: Todo o nmero que no prazo de vinte e quatro horas no faa a declarao no Posto ser considerado.... O corao batia-me com tanta fora que as varetas de ferro se contorceram; como uma criana, estupidamente, como se fosse uma criana... Fui apanhado na ratoeira, estupidamente... No abri a boca, sentia-me como se tivesse ido rede, preso de ps e mos. Ela ps-se de p e espreguiou-se. Carregou num boto: com um rudo seco, as persianas fecharam-se todas. Fiquei isolado do mundo, sozinho, com ela. E- encontrava-se algures atrs de mim, junto ao armrio. O uniforme fez um rudo e caiu. Eu escutava, era todo ouvidos. E tive uma ideia... Passou-me pela cabea uma ideia cujo brilho durou um centsimo de segundo... Eu tinha recentemente calculado a curvatura dum novo tipo de membrana de rua (elegantemente camufladas, estas membranas encontram-se agora colocadas ao longo de todas as avenidas e gravam para o Posto dos Guardas todas as conversas captadas fora das casas). Lembro-me de um tmpano cncavo, cor-de-rosa, trmulo, um ser estranho que constitua um nico rgo: uma orelha. Naquele momento eu era exatamente uma membrana dessas. Ouvi o clique da mola do colar, que se repetiu depois mais abaixo, na blusa, e depois ainda mais abaixo. A seda de fibra sinttica crepitou ao cair-lhe dos ombros, dos joelhos, ao chegar ao cho. Ouvi com tanta clareza como se o visse um p e depois outro pisando um monto de sedas azuis e verdes. A membrana tensa estremeceu e gravou o silncio. No o silncio, vendo bem, mas as pancadas sacudidas, compassadas, do malho contra as varetas de ferro. E ouvi e vi que, atrs de mim, ela se quedava por momentos a refletir. Depois, o som das portas fechadas, depois o frufru da blusa e, mais uma vez e outra vez, seda, seda... Se fizer o obsquio... Voltei-me. Vestia um roupo amarelo-aafro com um feitio antiquado. Mas era como se no tivesse nada em cima do corpo, era mil vezes pior. Atravs do tecido, dois bicos acerados, rseos, ardentes: duas brasas incandescentes entre cinzas. Dois joelhos redondos, delicados... Estava sentada numa poltrona baixa; numa mesinha quadrada via- -se uma garrafa com um lquido venenosamente verde e dois clices minsculos. No canto da boca tinha um rolo fino de papel do qual subia o fumo duma substncia combustvel que os antigos usavam (esqueceu-me o nome que lhe davam). A membrana continuava a vibrar. O malho, dentro de mim, batia contra as varetas de ferro ao rubro. Eu ouvia distintamente todas as pancadas... e, se tambm ela estivesse a ouvi-las? Verdade que continuava a fumar, deitando-me um olhar calmo de vez em quando, ao mesmo tempo em que sacudia a cinza do rolo para cima do meu cupo cor-de-rosa. Vejamos ataquei eu com todo o sangue-frio. Se assim , posso saber por que me registrou no seu nome? E por que me obrigou a vir aqui? Fez como se no me tivesse ouvido. Deitou num clice algum lquido da garrafa e bebeu. Um licor delicioso. Quer provar? S ento percebi o que era aquela coisa verde: lcool. De sbito, vi tudo o que ontem tinha acontecido: a mo de pedra do Benfeitor; o brilho insuportvel do raio eltrico; mas, acima de tudo, l no alto do Cubo... O tipo de cabea atirada para trs, o corpo desmembrado. Estremeci. Deve com certeza saber respondi que o Estado nico no tem contemplaes com os que se envenenam com nicotina e, principalmente, com lcool... As sobrancelhas negras formaram com as tmporas o tal ngulo agudo de ironia: A rpida destruio de alguns mais racional do que dar a todos a oportunidade de trabalhar para a sua prpria runa... Pe-se ento o problema da degenerescncia e por a fora. verdade, to verdade que chega s raias da indecncia. Sim, da indecncia. O que no seria se fosse permitida a circulao pelas ruas de uma srie dessas ideias calvas, nuas e cruas... Imagine- se... Imagine aquele meu admirador incondicional... Sim, conhece-o... Imagine que ele atirou ao ar todas aquelas roupas e aparecia em pblico tal como ... .1,1 viu? Ria. Mas eu via perfeitamente a tristeza que ela tinha estampada no rosto: as duas rugas que iam dos cantos da boca ao nariz. , atravs daquelas rugas, tudo se me tornou claro: o tipo com corpo forma de S, de ombros curvados, orelhas que pareciam asas... Risse mesmo... Tinha-a abraado! Era claro! Estou agora a rememorar as anormais sensaes daquele momento e, ao escrever isto, tenho a perfeita conscincia da realidade e de que ele como todo e qualquer nmero honesto tem direito a gozar a vida e seria injusto... Sim, est tudo muito claro. E... Continuou a rir de forma estranha durante muito tempo. Olhou ento para mim... Para dentro de mim... Profundamente: O que importa eu sentir-me perfeitamente tranquila contigo. to simptico!... Tenho a certeza disso... nem sequer lhe passar pela cabea ir, ao posto e contar que eu, neste momento, estou a beber, que estou a fumar. Estar mal disposto, ou ter muito que fazer, vai passar-se contigo sei l o qu... Mais do que isso: tenho a certeza de que agora mesmo vai beber deste veneno encantador, e me fazer companhia... O tom cnico e zombeteiro dela! Senti indubitavelmente que ia detest-la outra vez. Mas outra vez por qu? Eu nunca tinha deixado de detest-la. Sorveu todo o contedo do copinho de veneno verde, ps-se de p e, luminosa e rsea, entre sedas cor-de- aafro, andou alguns passos, detendo-se atrs da minha cadeira. De sbito, deitou-me o brao ao pescoo, os lbios dela penetraram nos meus... Penetraram profundamente, horrorosamente fundo... Juro que para mim foi inesperado, talvez simplesmente por que... Porque eu no podia talvez... Neste momento, compreendo-o claramente... No podia talvez, pela minha parte, desejar o que viria a acontecer depois. Lbios insuportavelmente doces (era o sabor da bebida, suponho) e dentro de mim derramavam-se torrentes de veneno ardente... Torrentes de veneno... Ergui-me da superfcie terrestre e, num planeta independente, desci, desci, dentro duma rbita incerta... O que se seguiu, s pode descrev-lo de uma forma aproximativa, recorrendo a analogias mais ou menos exatas. Nunca antes me tinha passado pela cabea, mas o que aconteceu foi isto, precisamente: ns que vivemos na terra locomovemo-nos constantemente sobre um mar rubro de sangue, fervente, um mar de fogo que se esconde nas entranhas da terra. Ns que nunca pensamos nisso. Mas suponhamos agora que a crosta por ns pisada, de repente se torna de vidro e de repente comeamos a ver... Tornei-me de vidro. Vi dentro de mim, no mais fundo de mim mesmo. Havia dois eixos. Um deles era o meu eu anterior, D-503, o nmero D-503, ao passo que o outro... At ali, este mal tinha deitado as mos peludas fora da crosta, mas ela comeava agora a estalar e, de um momento para o outro, podia erguer-se de entre a ganga... E, depois? Agarrando-me com toda a energia ao que achei mo (aos braos da cadeira), perguntei, de modo a ouvir-me (de modo a que o meu eu anterior ouvisse): Onde foi que... Onde arranjaste esse... Esse veneno? Ora! Fcil: um mdico, um... Dos meus... Um dos meus... Um dos meus o qu? E aquele meu outro eu deu um salto e comeou a gritar: No o quero!. No quero outro a no ser eu... Vou matar quem... Porque eu p.... Vi ento que ele a agarrava brutalmente com as patas, desfazia em tiras a seda que a vestia, enterrava- lhe os dentes na carne. A minha memria neste ponto exata: ferrou-lhe de fato os dentes. No sei como, mas E- conseguiu escapar... E deixou-se ficar de p, com as plpebras cerradas; encostada a um armrio, atenta. Lembro-me de que estavam estendidas no cho, que lhe agarrava as pernas e lhe beijava os joelhos, implorando: J neste mesmo instante, sim!"". Dentes afiados; o tringulo o escarnio, pontiagudo das sobrancelhas em bico. Debruou-se, pegou na minha placa, sem pressas. Sim! Sim, querida, querida! Rapidamente, comecei a despir o unif. Mas E-, em silncio, ps- -me diante dos olhos a face da placa onde estava o relgio. Eram vinte e duas e vinte cinco. Tive um arrepio. Sabia o que significava ser visto na rua depois das 22.30. A minha loucura dissipou-se num instante. Eu era eu. Era para mim muito clara uma coisa: odiava-a, sim, odiava-a. Sem me despedir, sem olhar para trs, sa da sala. Espetando a placa o melhor que pude, sempre a correr, desci as escadas quatro a quatro (tinha receio de me encontrar com algum) e encontrei-me em plena avenida deserta. Tudo se encontrava no stio onde deveria estar tudo era simples, normal, regular: as casas de vidro fulgurantes de luz, o cu vtreo e plido, a noite verde e quieta. Mas sob aquele vidro parado e frio, as coisas, sublevadas, rubras de sangue, peludas, galopavam cleres e silenciosas. Sem flego, eu corria para casa. De repente vi que a placa, espetada pressa, ia cair e caiu de fato no cho, tilintando. Parei para apanh-la e, naquele momento de silncio, ouvi passos atrs do mim. Olhei e vi um vulto pequeno e curvado a virar a esquina. Pelo menos assim me pareceu. Continuei a correr o mais que podia e ainda mais ouvi do que o vento a soprar-me aos ouvidos. entrada do meu prdio parei: o relgio informava-me que ainda tinha a margem (In um minuto). Escutei: ningum me seguia. Tinha sido tudo obra da minha imaginao transtornada, efeito do veneno verde. A noite foi uma tortura. A cama erguia-se no ar, descia, tornava a erguer-se e flutuava numa espcie de curvas. Tentei a auto - sugesto: todos os nmeros so obrigados a dormir de noite. um dever fundamental, tanto quanto o trabalhar de dia. O sono indispensvel a quem tem de trabalhar durante o dia. No dormir de noite um crime... Mas, mesmo assim, no fui capaz de dormir. No pude, Simplesmente. Estava perdido, No me via em condies de cumprir os meus deveres para com o Estado nico. Eu...
Dcima Primeira Entrada No, no pode ser: fica assim. Sem qualquer sumrio... Tarde. Nevoeiro, no muito cerrado. O cu est coberto por um vu cor de leite e ouro. No se consegue ver o que h atrs dele, l por cima. Os antigos sabiam que era Deus, o grande ctico, que l vivia, no maior tdio. Ns sabemos que se trata simplesmente de um nada azul, cristalino, nu, indecente. Eu, presentemente, no sei o que l haver... Sei demasiadas coisas. O conhecimento absolutamente certo da nossa prpria infalibilidade a f. Eu costumo ter uma f absoluta em mim; acredito ter chegado ao conhecimento de tudo o que em mim havia. At que... Estou diante dum espelho. Pela primeira vez na vida (isso, exatamente, pela primeira vez na vida) estou me vendo de forma clara, distinta, conscientemente; olho para mim, admirado, como se estivesse vendo algum diferente de mim. L est ele, o meu eu: ele franze as sobrancelhas negras, linhas to direitas como se fossem desenhadas rgua, com uma ruga vertical no meio, que d a ideia duma cicatriz (no sei se j estava l antes). Olhos cor de ao, rodeados pela sombra das olheiras, e atrs do ao... De fato, nunca soube o que haveria l atrs. E dali (este ali ao mesmo tempo aqui e infinitamente longe daqui), dali, comtemplo- me a mim prprio (ou a ele) e sei que aquele estranho, de sobrancelhas to direitas que parecem desenhadas a rgua, nada tem de comum comigo, um estranho que encontro agora pela primeira vez na minha vida. Mas eu, o meu verdadeiro eu, no sou ele. No... Ponto final. Tudo isto um disparate, todas estas sensaes desordenadas so delrios, produto do veneno de ontem. Que veneno? Aquele gole de lquido verde ou ela? Acaba por ser a mesma coisa. Falo do assunto nesta entrada s para mostrar quo estranhamente a razo humana, que to exata e penetrante, pode ser enganada e desorientada. A razo que conseguiu digerir o prprio infinito, considerado pelos antigos uma coisa aterradora, recorrendo a... Acendeu-se uma luz no quadro: anuncia R-13. Que entre, pouco me importa; acabo por me sentir contente... Neste momento, estar s seria para mim... Vinte minutos depois Na superfcie deste papel, num mundo de duas dimenses, as linhas so paralelas entre si, mas num outro mundo... Estou perdendo a minha sensibilidade aos algarismos: vinte minutos podiam ser duzentos ou duzentos mil. E to louco estar apesar da calma e deliberadamente cada palavra para escrever o que se passou entre R- e eu. como estar sentado de pernas cruzadas numa cadeira ao lado da nossa prpria cama e vermo-nos nessa cama ns prprios contorcendo- nos. Quando R-13 entrou, eu estava perfeitamente calmo e normal. Com uma sensao de verdadeiro prazer, comecei a falar da forma magnfica como ele tinha conseguido, em versos troqueus, falar da condenao e como, mais do que outra coisa qualquer, foram eles que esfrangalharam o louco e o reduziram a p. Mais do que isso, ainda, se me fosse proposto fazer um esboo esquemtico da Mquina do Benfeitor, eu incluiria com toda a certeza toda a certeza aqueles versos, de qualquer maneira, no desenho, conclu. De sbito vi apagar-se todo o brilho dos olhos e toda a cor dos lbios de R-. O que que est se passando com voc? O que est se passando comigo?... Estou ficando farto, farto. Toda a gente me atormenta com essa sentena de morte, sentena de morte. No quero ouvir mais nada sobre ela, s isso. No quero! Afogueado, coava a cabea, a caixa que tinha enchido de estranhos interditos para mim incompreensveis. Houve uma pausa. s tantas acabou por tirar qualquer coisa da caixa; retirou-a para fora, desdobrou-a, voltou a dobr-la, desenhou- lhe nos olhos um sorriso. E ps-se de p: Estou fazendo uma coisa para o teu INTEGRAL... Sim, vai ser uma coisa como deve ser! Voltou a ser igual a si prprio; os lbios escancararam-se e despediram saliva em todos os sentidos, as palavras jorravam como de uma fonte: Trata-se de uma antiga lenda sobre o Paraso (que novamente o cuspe jorrou deste P). Uma lenda que se aplica ao nosso caso h este nosso tempo. Sim, vais j poder ajuizar. Aquele casal, no Paraso, teve que escolher entre felicidade sem liberdade ou liberdade sem felicidade. No havia terceira alternativa. Os pobres doidos escolheram a liberdade e aconteceu com eles sabes o qu? Evidentemente, durante as pocas que se seguiram suspiraram pelas algemas. Algemas percebe? o significado de Weitschmerz. Durante sculos! E s ns que por fim descobrimos a maneira de recuperar a felicidade. Mas escuta, (escuta agora o seguinte: o Deus dos antigos e ns sentamo-nos lado a lado, mesma mesa). Sim! Ajudmos Deus a vencer o Diabo de uma vez por todas. Porque era o Diabo que incitava os mortais a transgredirem o interdito, a provarem a liberdade perniciosa, era ele, a serpente sutil. Mas ns, com calcanhar forte, esmagamos a cabea do insignificante ofdio e scrach! E chamamos pra ns o Paraso, novamente. Tornamos a ser simples de corao, inocentes como Ado e Eva. Acabaram-se todas aquelas tolices a respeito do Bem, a respeito do Mal; tudo to simples quanto pode s-lo, infantil, paradisacamente simples. O Benfeitor, a Mquina, o Cubo, a Campnula Pneumtica, os Guardas: tudo isso bom, grande, esplendidamente belo, nobre, exaltado, cristalino. So tudo formas de proteger a nossa no liberdade, ou seja, a nossa felicidade. No nosso lugar, os antigos comeariam a refletir sobre tudo isso, a fazer comparaes, a quebrar a cabea com o que e o que no tico. Voltando ao princpio, enfim, que achas de um pequeno poema paradisaco assim? E o tom ser austero, percebes? Bonito, no achas? Como que eu no haveria de achar? Lembro-me de ter pensado: Com esta aparncia ridcula e desarrumada, tem de fato um esprito notavelmente refletido!"". por isso que ele se encontra to prximo de mim... do meu eu real (continuo a considerar o meu primeiro eu como autntico; o que acontece comigo presentemente , claro esta, mera indisposio). R-, aparentemente, leu tudo isto no meu semblante; deu uma gargalhada, ao agarrar-me pelos ombros, dizendo: Ento, Ado?... E, a propsito, e a Eva? Meteu a mo no bolso, tirou de l um caderno e folheou: Depois de amanh... No, daqui a dois dias, 0-90 tem um cupom cor-de-rosa para se encontrar contigo. E tu? Como dantes? Gostarias que ela... Ah, sim, est claro. Ento eu digo-lhe... Porque para ela seria embaraoso... Que situao incmoda, deixa que te diga. De mim, ela limita-se a gostar, trata-se apenas de um cupom cor-de-rosa, contigo diferente!... Mas no te dignaste dizer que tinha entrado um terceiro elemento no nosso tringulo, transformando-o em quadriltero. Quem ? Confesse pecador! Dentro de mim descerrou-se lentamente uma cortina e ouvi o roagar da seda, vi o frasco verde, os lbios dela... E sem razo alguma, completamente a despropsito, deixei escapar (se eu me tivesse contido!) uma pergunta: Diz a s uma coisa: alguma vez experimentaste nicotina ou lcool? R- esticou os beios e olhou-me de soslaio. Pude escudar- lhe os pensamentos, com toda a clareza: um fato que s meu amigo e bastaria isso para". Mas, apesar de tudo... E acabou por dizer: Como que eu vou explicar? Propriamente falando, no. Mas conheo uma mulher... E-? Como? Voc tambm esteve com ela? E torceu-se todo a rir, quase se desfez com tanto riso. O espelho estava posto de tal forma que, para algum se ver nele, tinha de se debruar sobre a mesa. Do lugar onde estava sentado, eu via s a testa e as sobrancelhas. E foi ento que eu o eu autntico vi as minhas sobrancelhas distorcidas, uma linha quebrada, tremida e o meu eu autntico ouviu um grito feroz, repugnante: Tambm? Que quer dizer esse tambm?... No... Exijo que... Beios negroides esticados. Olhos arregalados. Eu (o autntico eu) Agarrou-se com fora ao pescoo do meu outro eu selvagem, peludo, ofegante. Eu (o eu real) implorei-lhe, ao R-13: Perdo, em nome do Benfeitor. Estou muito mal, no consigo dormir. No consigo entender o que se passa comigo... Nos seus lbios espessos aflorou um sorriso: Sim, sim, sim! Eu entendo, eu entendo! Estou habituado a isso... Teoricamente, claro. Adeus! J ao p da porta, virou-se, como uma bola preta, voltou at junto da mesa e atirou um livro para cima desta: o ltimo. Vim at aqui de propsito para te dar e quase me esqueci. O V de vim borrifou-me tudo. Saiu. Estou s. Mais exatamente, Estou s mais aquele meu outro eu. Estou sentado numa cadeira de braos, de pernas cruzadas, observando-me, curiosamente, vendo-me (a mim e no a qualquer outro) em contores, deitado na cama. Por que... Por que, sim, por que vivemos 0- e eu trs anos numa harmonia to grande...? E agora, de repente, basta ouvirmos falar da outra, da E-... possvel que toda esta loucura... Ou amor ou cime... Possa ter existncia fora dos livros idiotas dos antigos? O pior de tudo que me deixei envolver. Equaes, frmulas, algarismos... E isto! No compreendo nada. Nada. Amanh mesmo vou ter com R- para lhe dizer que... No, mentira. No vou amanh nem depois de amanh... Nunca mais me encontrarei com ele. Acabou- se tudo. Est desfeito o nosso tringulo. Estou s. noite. H uma ligeira neblina. O cu est coberto por; um vu cor de leite e ouro... Quem me dera saber o que h por trs j dele, l por cima! Quem me dera saber quem e como eu sou!
Dcima Segunda Entrada A limitao do infinito o anjo Reflexes sobre a poesia Apesar de tudo, acho que vou melhorando, que posso melhorar. Dormi maravilhosamente. Nada daqueles sonhos ou fenmenos doentios. A minha querida 0- vem visitar-me amanh; tudo ser simples, regular e limitado como um crculo. No tenho medo da palavra limitado: a funo da mais alta faculdade do homem, a razo, consiste exatamente numa incessante limitao do infinito, da diviso do infinito em pores facilmente digerveis ou diferenciais. nisso precisamente que consiste a divina beleza do meu elemento, a matemtica. Se h uma coisa que os nmeros fmeos nunca podero compreender isto. E esta ltima afirmao surgiu por acaso. Mera associao de ideias. Todas as ideias acima expostas me ocorreram ao som sempre igual das rodas do comboio subterrneo. Ao mesmo tempo em que mentalmente batia o compasso e lia os versos de R- (o livro que ele ontem tinha me deixado) senti algum debruar-se cautelosamente por cima do meu ombro e olhar para a pgina aberta. Sem me voltar, s pelo canto do olho, vi-lhe as orelhas abertas como asas, Cor-de- rosa, e a dupla curva do corpo. O tal indivduo. No quis meter-me com ele e fingi que no o via. Como tinha chegado at ali, no sei; quando entrei no carro, tenho a impresso de que ele no se encontrava l. Este incidente, em si mesmo insignificante, acabou por exercer em mim um efeito benfico; posso dizer que me deu foras. muito agradvel sentir o olhar vigilante de algum sobre o nosso ombro, algum que est ali para evitar que demos um mau passo, que faamos disparates. Pode ter o seu qu de sentimental, mas penso sempre na mesma analogia: a dos anjos da guarda com quem os antigos costumavam sonhar. Quantas das coisas com que eles se limitavam a sonhar se materializaram na nossa vida! Nesse momento em que senti o anjo da guarda atrs de mim, estava comprazido a saborear um soneto intitulado Felicidade. Creio no errar se disser que se trata de um poema de rara beleza e de profundo conceito. A primeira quadra esta: Eterno amor o de duas vezes dois Pra todos os sempre quatro apaixonados... Onde que j se viram namorados Como as inseparveis duas vezes dois? E prossegue neste tom o hino sbia e eterna felicidade que se descobre na tabuada de multiplicar. Todo o autntico poeta , inevitavelmente, um Colombo. A Amrica existiu muitos sculos antes de Colombo, mas s Colombo conseguiu descobri-la. A tabuada de multiplicar existiu sculos antes de R-13, mas s R-13 logrou descobrir um novo Eldorado numa floresta virgem de algarismos. E haver realmente mais sbia e serena felicidade do que esta que se encontra no maravilhoso universo da tabuada de multiplicar? O ao sofre corrupo; o Deus dos antigos criou o homem antigo (ou seja, o homem falvel) e, portanto, at Ele prprio errou. A tabuada de multiplicar, essa mais sbia, mais absoluta do que o Deus dos antigos: nunca (nunca: ouviram?) falha. E no h felicidade maior do que a dos algarismos que vivem de acordo com as harmoniosas e eternas leis da tabuada de multiplicar. Nenhuma hesitao, nenhum engano. H s uma verdade, h s um caminho verdadeiro. E essa verdade : duas vezes dois; e o caminho verdadeiro : quatro. E no seria absurdo que estes dois, ideal e felizmente multiplicados, alimentassem ideias de qualquer liberdade, ou seja, de uma coisa que claramente um erro? Para mim axiomtico que R-13 conseguiu captar o mais fundamental, ir mais alm... Aqui, sinto novamente (primeiro no alto do crnio e depois na orelha esquerda) o bafo quente, suave, do meu anjo da guarda. Ele, evidentemente, notou que o livro fechado repousava nos meus joelhos e que os meus pensamentos pairam muito longe daqui. Mas isso no problema: eu estava pronto a abrir-me diante dele, a abrir-lhe de par em par as pginas do meu crebro. Que sensao reconfortante esta! Lembro-me de me ter voltado e de olhar para ele, de fit-lo com insistncia, implorando, mas ele no conseguiu, ou ento no quis compreender-me. No me fez perguntas. Acabei, verdadeiramente, por ficarem ss, meus caros leitores desconhecidos (-me to querido, to prximo e inacessvel quanto ele o era naquele momento). Tal foi o curso dos meus pensamentos: do particular para o geral. Particular era R-13, geral era o nosso Instituto dos Poetas e Prosadores Oficiais. Como que (pensava eu) os antigos no percebiam todo o absurdo da sua literatura e da sua poesia? A forma imensa e magnificente das suas palavras artsticas era esbanjada de forma completamente v. Uma coisa ridcula: cada um escrevia o que lhe passava pela cabea. To ridculo e absurdo como os antigos permitirem que o mar batesse inutilmente durante vinte e quatro horas contra a praia, deixarem que os milhes de quilogrmetros contidos nas vagas no tivessem mais utilidade do que a de embalarem as emoes dos namorados. Do enamorado sussurro das ondas, ns extramos eletricidade; dessa fera brava que se desfaz em espuma fizemos um animal domstico e, pelo mesmo mtodo, domesticamos e submetemos o elemento outrora brbaro da poesia. Doravante, a poesia no j o imperdovel trinado do rouxinol; a poesia um servio estatal, a poesia utilidade. Vejam-se as nossas Normas Matemticas: sem a ajuda delas, poderamos ns, na escola, ter terem chegado a amar to sincera e ternamente as quatro operaes aritmticas? E a clssica imagem dos Espinhos? Os espinhos da rosa: os guardies que protegem a gentil flor da E- do contato de mos grosseiras... Onde h corao to duro que fique indiferente ao espetculo dos lbios inocentes das crianas quando recitam, como numa prece: O menino mau a rosa cortou Mas logo o espinho na mo o picou E o menino mal comeou a chorar E fugiu pra casa sem pra trs olhar E as Odes Dirias ao Benfeitor? Quem, depois de l-las, poder deixar de se prostrar, piedosamente, face abnegao do Nmero dos nmeros? E a terrvel e rubra Antologia das Sentenas Judiciais? E a imortal tragdia O Que Chegou Tarde ao Trabalho? E as eternas e to prezadas Estrofes sobre a Higiene Sexual? a vida em toda a sua complexidade e beleza que para sempre ficar gravada no ouro das palavras. Os nossos poetas no vivem j no empreo. Desceram a terra, caminham ao nosso lado, avanam ao ritmo da Marcha mecnica e austera que se ergue da Oficina Musical; a lira deles a frico matutina da escova de dente eltrica, o belo trovejar das fascas na Mquina do Benfeitor, o eco majestoso do Hino do Estado nico, o ntimo tilintar dos cristalinos vasos de noite, o hilariante cair das persianas que se fecham as vozes contentes do ltimo livro de cozinha e o quase inaudvel sussurro das membranas de escuta sob o pavimento das ruas. Os nossos deuses esto aqui em baixo no meio de ns: nos Gabinetes, na cozinha, na oficina, no lavabo... Os deuses passaram a ser como ns; ergo, ns passmos a ser como os deuses. E vamos agora ter convosco, leitores planetrios desconhecidos, vamos at vs para tornarmos a vossa vida to divinamente racional e regular como a nossa. Dcima Terceira Entrada Neblina Uma aventura profundamente absurda Acordei cedssimo. Deparei com um firmamento lmpido e cor-de- rosa. Tudo perfeito e liso. O- viria ao cair da noite. Senti-me timo, . (Sem dvida alguma). Sorri, tornei a adormecer o toque matinal da campainha. Levantei-me... E vi tudo completamente diferente: nevoeiro sobre os telhados de vidro, para l das paredes, por todo o lado, pairando e penetrando em toda a parte. Nuvens loucas, cada vez mais pesadas e prximas, que de repente emagrecem para depois tornarem a inchar at que, a certa altura, deixa de haver limites entre a terra e o cu. No h nada a que nos possamos agarrar, deixou de haver edifcios. As paredes de vidro dissolviam-se no nevoeiro, como pequenos cristais na gua. Quem da rua olhasse para os vultos negros que se encontram no interior dos edifcios s iam ver uma espcie de partculas suspensas num lquido leitoso e fantasmagrico; alguns pairam ao nvel do solo, mas outros so visveis nos pisos superiores, at ao dcimo andar. E tudo estava submerso em fumaa, como numa espcie de incndio que a tudo devorava sem rudo. Exatamente s 11.45: olhei para o relgio com a inteno de me agarrar aos algarismos, para que pelo menos os algarismos me ajudassem. s 11.45, pois, antes de sair para fazer algum exerccio fsico, como ordenam as Tbuas dos Mandamentos Horrios, entrei por momentos no meu quarto. Toca subitamente o telefone; a voz era uma agulha comprida que se espetou profundamente no meu corao: Ah, est l? Que bom. Espere por mim na esquina. Iremos depois os dois at... Logo se v aonde que vamos. Sabe perfeitamente que vou agora mesmo para o trabalho. Sabe perfeitamente que vai fazer o que lhe digo. Adeus. Daqui a dois minutos. Passados dois minutos estava eu na esquina. Era preciso mostrar- lhe que quem me dava ordens era o Estado nico e no ela. Vai fazer o que lhe digo, e, se permitem que lhes diga, dizia isto com a maior das convices, sentia-se na voz dela que era assim. Est bem, vamos esclarecer isso num instante. Uniformes verdes, entretecidos de nevoeiro cru, materializavam-se momentaneamente junto a mim, para se dissolverem inesperadamente na neblina. No erguia os olhos do relgio: sentia-me como se fosse mais um fiel e atento ponteiro dos segundos. Dez minutos, oito... Faltam trs minutos, dois minutos para o meio-dia... Acabou-se. Tarde demais para ir trabalhar. Como eu a odiava! Mas era importante mostrar-lhe que... Na esquina, atravs do nevoeiro branco, rubros, como uma facada, os lbios dela. Devo t-lo feito esperar. Mas no h problema... Agora tarde demais para ir trabalhar. Como eu a odiava! Mas ela tinha razo: era tarde. Em silncio, olhava para os lbios dela. Todas as mulheres so lbios, lbios e nada mais. Os lbios. Os lbios de algumas so rseos, arredondados, uma terna defesa contra o mundo inteiro. Quanto a estes... H um segundo ainda no tinham aparecido e, de repente... A faca, espetada, o sangue correndo docemente. Aproximou-se, encostou o ombro dela ao meu e passmos a ser um s. Derramou-se em mim algo dela... E percebi que assim tinha que ser. Reconheci-o com todos os nervos, todos os cabelos, todas as pancadas do meu corao, to deliciosas que me doam. E era uma alegria poder submeter-me quele tinha que ser. Deve ser assim a alegria que sente um bocado de ferro quando se submete a uma lei inevitvel, infalvel, e se deixa atrair pelo m. Ou a da pedra que, uma vez no ar, hesita um segundo e logo a seguir se precipita impetuosamente para a terra. Ou a do homem que, no extremo da agonia, solta o ltimo suspiro e... Morre. Lembro-me de ter sorrido, meio ausente, e de ter dito sem qualquer razo especial: O nevoeiro... Que nevoeiro...? Gostas do nevoeiro, tu? Aquele tu de antigamente, h muito esquecido, o tu do dono para o escravo, enterrou-se em mim profunda e lentamente: sim, eu era um escravo e, mais uma vez, assim tinha que ser; e era bom que o fosse. Sim, bom disse em voz alta, de mim para mim, e s depois lhe respondi: Detesto o nevoeiro. Tenho medo do nevoeiro. Significa isso que gostas dele. Tens medo dele por ele ser mais forte do que tu; odeia-lo porque tens medo dele; tens medo dele porque no podes deixar de te submeter a ele. Porque s podemos amar o indomvel. Sim, era isso. E era precisamente por... Era precisamente por isso que eu... Caminhvamos ambos como se fssemos um s. Algures, muito longe, o sol cantava e a sua cano quase imperceptvel chegava at ns atravs do nevoeiro; todas as coisas emergiam na nvoa com as suas cores vivas: nacaradas, ureas, rosadas, vermelhas. Todo o mundo era uma espcie de mulher enorme e todos ns estvamos dentro do ventre dela; no tnhamos nascido, continuvamos alegremente a crescer. E era para mim evidente, incontestavelmente evidente, que todas as coisas eram feitas para mim, o sol, o nevoeiro, o cor-de- rosa e o ouro... Tudo era feito para mim. No perguntei para onde amos. No interessava. O que interessava era andar... Andar, crescer, deixar-me penetrar e envolver pelo que me cercava... Aqui estamos disse E-, parando diante duma porta. H aqui um mdico que por acaso est hoje de servio. Falei-te dele ou- iro dia na Casa da Antiguidade. Ausente, recorrendo s ao sentido da vista, para no perder o que em mim tomava corpo, li a placa: Posto Mdico. Percebi tudo. Uma sala toda de vidro, repleta de neblina dourada. Prateleiras de vidro cheias de frascos e garrafas de vidro colorido. Fios eltricos. Cintilaes azuis reluzindo em tubos de vidro. E um homenzinho que no podia ser mais seco. Fazia lembrar um recorte de papel e, desse ele as voltas que desse, ficava sempre de perfil, um perfil esguio com uma lmina afiada no lugar do nariz e um par de tesouras no lugar dos lbios. No percebi o que E- lhe disse; vi-a a falar e dei conta de que me ria incontida e beatificamente. As lminas dos lbios-tesouras brilharam e o mdico disse: Certo certssimo. Percebo. A mais perigosa das doenas. No conheo outra mais perigosa. Deu uma gargalhada, escreveu qualquer coisa com a mo num papel e deu a folha a E-, posto o que escreveu outra folha para mim. Eram atestados a confirmar que estvamos doentes, que no podamos comparecer ao trabalho. Eu roubava assim tempo de trabalho ao Estado nico; era um gatuno, sujeitava-me Mquina do Benfeitor. Mas tudo isso, afinal, era para mim remoto e imaterial como se existisse apenas num livro. Peguei no papel sem hesitar um segundo. Eu os meus olhos, lbios, mos sabia que tudo era o que tinha que ser. Estava num aero carro ao canto da garagem semideserta. E- sentou-se de novo no lugar do piloto, como da outra vez, carregou na alavanca e levantamos voo. Tudo ficou para trs: o nevoeiro rosa e ouro, o sol, o perfil de lmina do mdico que de repente se me tornava estimado e prximo. At ali tudo gravitava volta do sol; eu sabia agora que tudo gravitava minha volta, lenta, beatificamente, de olhos semicerrados... A velha porta da Casa da Antiguidade. A boca adorada, os lbios cerrados com rugas a toda volta. Provavelmente no abriu aquela boca desde o outro dia at hoje, s agora a abriu para sorrir: Ah, sua marota! Em vez de trabalhar como toda a gente... Anda, v l! Se por acaso aparecer algum... Bom, eu venho correndo te avisar... A porta pesada, ruidosa e opaca fechou-se imediatamente, com dificuldade, o meu corao abriu-se, escancarou-se ainda mais. Os lbios dela eram meus: bebi, bebi, largava-os de vez em quando, fitava em silncio aqueles olhos muito abertos e, mais uma vez... A penumbra da sala; azul; cor-de-aafro; verde-escuro; o sorriso dourado de Buda; mogno; o brilho dos espelhos. E... A explicao para o meu ltimo sonho: tudo saturado de um lquido rseo-dourado que a todo o momento ia derramar-se, encharcando... Era o momento. Sem poder evit-lo, como ferro atrado pelo m, com deleitosa submisso a uma lei infalvel e imutvel, derramou-me todo nela. No havia cupom cor- de-rosa, no havia contas a acertar, no havia Estado nico, no havia eu. Havia apenas os dentes ternamente afiados, cerrados, os olhos dourados que me fitavam muito abertos e nos quais eu ia penetrando lentamente, profundamente. E o silncio. Perturbado apenas por, no sei aonde a milhares de milhas de distncia , umas gotas de gua a pingar num lavatrio; e eu era o universo todo e, entre cada pingo, decorriam eras, pocas... Enfiei o uniforme e debrucei-me sobre E- e absorvi-a com os olhos uma vez mais. Eu sabia... Eu conhecia-te disse E- com ternura; levantou- -se de repente, vestiu o uniforme e ps mostra o sorriso-faca: Muito bem, meu anjo decado... Porque caste e ests perdido. No tens medo, no? Ento, adeus. Vais-te embora sem mim, est bem?
Abriu a porta espelhada e ficou espera, olhando para mim por cima do ombro. Obediente, sa. Mas mal tinha atravessado a soleira da porta, veio-me a necessidade de sentir o ombro dela encostado ao meu, o ombro apenas, durante um segundo, no mais. Tornei a entrar, p ante p, no quarto onde ela (provavelmente) estava a abotoar o vestido diante do espelho. Entrei e estaquei. Vi a argola da chave antiquada a oscilar na porta do armrio, mas E- j ali no estava. No podia ter sado (o quarto s tinha uma porta), mas o fato que ela no estava l. Espionei tudo; abri at o armrio e apalpei os vestidos antigos e berrantes que l estavam: nada encontrei. Sinto meus caros leitores planetrios, algum embarao em confessar este acontecimento completamente inverossmil. Mas que pode um homem fazer se os fatos assim aconteceram? No tinham acontecido naquele dia, desde manh cedo, tantas coisas inverossmeis?... No era tudo aquilo parecido com aqueles sonhos em que os antigos acreditavam? E, a ser assim, que importa uma incongruncia a mais ou a menos? Alm do mais, tenho a certeza de que, mais tarde ou mais cedo, hei de inserir estas e outras incoerncias num silogismo qualquer. Tranquiliza-me esta ideia; espero que tranquilize tambm os que me leem. Como eu estou farto disto tudo! Se soubessem como eu estou farto!
Dcima Quarta Entrada Meu No devia o cho frio Continuo a rememorar o que se passou ontem. A Hora Pessoal, antes de deitar, passei-a a fazer outra coisa e no pude escrever a entrada. Mas fixei tudo como se o tivesse gravado na mente e principalmente aquele cho insuportavelmente frio que no me sai da lembrana... E que provavelmente recordarei sempre... 0- devia vir noite, dia de nos encontrarmos. Fui falar com a funcionria de servio, para lhe pedir a autorizao de fechar as persianas. Est tudo bem consigo? perguntou. Parece que hoje voc est um bocado estranho... No me... No me sinto bem. Rigorosamente falando, era verdade; claro que no estava bem. E foi ento que me recordei, ah sim, tinha o atestado. Levei a mo ao bolso e ouvi o rudo do papel. Uma prova de que tinha acontecido... Tudo tinha acontecido de fato... Dei o papel controladora. Senti as faces afogueadas; sem olhar diretamente para ela, vi que me fitava espantada. Eram 21.30. Tinham-se fechado s persianas do quarto da esquerda; no quarto da direita, vi o meu vizinho debruado sobre um livro. O crnio calvo semeado de protuberncias formava com a testa uma enorme parbola amarela. Atormentado, pus-me a andar de um para o outro lado do quarto: afinal, que fazer com ela, com a 0-? Senti claramente que o vizinho da direita me observava, vi-lhe todas as rugas da testa, toda uma rede de traos amarelos, ilegveis, que, no sei dizer por que, tinham qualquer coisa a ver comigo. As 11.45 geraram-se no meu quarto um alegre e rseo burburinho; senti-me preso no lao apertado de uns braos rseos. Senti depois o lao afrouxar aos poucos, afrouxar mais e mais, at me largar de todo. Os braos caram. No o mesmo, no j o que era... J no meu! Meu: que terminologia brbara. Nunca... No consegui dizer mais. Subitamente ocorreu-me que, antes, de fato, eu nunca tinha sido de ningum, mas agora... Era isso, agora no estava a viver no nosso mundo racional, mas sim num mundo antigo, delirante, com base em \f-1. Fecha-se a persiana da janela. Do outro lado da parede, direita, o vizinho deixou cair o livro e atravs da fresta entre a persiana e o cho, um segundo depois de o livro tocar o solo, vi a mo amarela apanhar o livro... E senti uma grande vontade de me agarrar quela mo com todas as minhas foras. Pensava... Desejava ter-me encontrado aqui consigo na hora do passeio. H tanta coisa... Tenho tantas coisas para discutir consigo... Minha querida 0-! A boca rosada, o rosado crescente com as pontas viradas para baixo. No podia contar-lhe tudo o que tinha acontecido, no, at porque no podia torn-la cmplice dos meus crimes, pois sabia que ela no teria coragem para ir at ao Posto dos Guardas e, portanto... 0- estava deitada. Eu beijava-a, devagarinho. Beijava-lhe aquela prega inocente do pulso. Fechou os olhos e o crescente rseo, abrindo-se todo, desabrochou. Beijei-a por todo o corpo. De sbito, vi claramente o grau de degradao a que tudo tinha chegado at que ponto me tinha rendido aos outros. No podia ser no devia. Tinha que... E no devia. Os meus lbios ficaram gelados. O crescente rseo comeou a tremer, obscureceu, contorceu-se. E tapou-se com a coberta, embrulhou-se toda, reclinou a cabea na almofada. Eu estava sentado no cho ao p da cama (que cho to desesperadamente frio, aquele!). Cai ali sentado em silncio. O frio comeou subir por mim acima. , provavelmente, este frio taciturno o que reina l em cima nos espaos mudos e azuis interplanetrios. Compreenda-me, eu no quis que... murmurei. Eu fiz o que pude para... Era verdade: Eu, o eu real no queria que tudo aquilo acontecesse. Mas aonde iria eu buscar as palavras para lhe explicar? Como explicar-lhe que o ferro no quis ser atrado, mas que a lei inevitvel, infalvel... 0- levantou a cabea da almofada e, sem abrir os olhos, disse Saia daqui, mas, como ela estava a chorar, percebi ai aqui e, no sei por que, estas slabas sem sentido feriram-me a memria. Congelado at aos ossos, tiritando de frio, sa para o corredor. Do outro lado da parede de vidro, pairava uma neblina ligeira, quase imperceptvel. Mas, ao longo da noite, essa neblina iria descer engrossar e cobrir tudo. O que iria acontecer durante a noite? 0- saiu e passou por mim sem dizer palavra, na direita ao elevador. A porta bateu com fora. Um momento! pedi, cheio de medo. Mas ouvia-se o rosnar do elevador, descendo, descendo, descendo. J me tinha roubado R-. Roubava-me agora 0-. Mas, mesmo assim... Mesmo assim...
Dcima Quinta Entrada A Campnula de Vidro O mar de espelho Estou condenado ao fogo eterno Assim que pus o p no estaleiro onde se constri o INTEGRAL, veio o Adjunto falar comigo. Tinha a cara de costume: um prato de faiana redondo que, ao falar, parece apresentar-nos uma iguaria irresistivelmente deliciosa. Voc deu parte que estava doente e, na sua ausncia, quando nos encontrvamos sem chefia, deu-se um incidente, digamos, foi ontem... Um incidente? Isso mesmo. Tocou a campainha hora de fechar, comeou a sada dos operrios e foi ento... Imagine: o guarda que fazia o controle apanhou um homem sem nmero. No sou capaz de perceber sequer como pde ele entrar. Levaram-no logo para a Diviso Operacional. Ho de com certeza tirar a limpo o porqu e por onde entrou o desgraado. Contava-me tudo isto com um sorriso, um sorriso triste. So os melhores e os mais experientes de todos os nossos mdicos que trabalham na Diviso Operacional, sob a superviso direta do Prprio Benfeitor. L se encontra toda a espcie de apetrechos, nomeadamente a famosa Campnula Pneumtica de Vidro. No essencial, o princpio aplicado o das velhas experincias das aulas de fsica elementar. O ar do interior da campnula rarefeito aos poucos atravs de um aspirador e do mais que devem saber. Mas, como no podia deixar de ser, a Campnula Pneumtica de Vidro um aparelho consideravelmente aperfeioado que utiliza vrios gases; no se trata, claro est, de uma brincadeira em que se recorre a um bicharoco indefeso. Aqui o objetivo a atingir a segurana do Estado nico. Ou por outra: a felicidade de milhes. H cinco sculos, mais ou menos, quando o trabalho da Diviso Operacional estava ainda na fase de formao, houve pobres de esprito que compararam a Operacional antiga Inquisio. Vendo bem, trata-se de um absurdo to grande como colocar no mesmo plano um cirurgio que faz uma traqueotomia e um salteador que corta pescoos. Ambos recorrem a uma faca, porventura uma faca do mesmo gnero; fazem ambos a mesma coisa, que cortar a garganta duma pessoa viva. Mas um benfeitor e o outro ' criminoso; um est marcado pelo sinal mais e outro pelo sinal menos. ; Os fatos no podem ser mais claros, basta um segundo, basta rodar uma s vez o boto da mquina lgica... O pior que h tantas: as engrenagens emperram no menos e o que surge em evidncia no o que se esperava. A argola da chave na porta do armrio continua a mexer. A porta foi fechada, sem dvida alguma, mas a verdade que ela, E-, no se encontra ali, sumiu-se. Um fato que o mecanismo da lgica no resolveu. Sonho? O problema que, neste mesmo instante, sinto a dor incompreensvel e deleitosa no ombro direito, sinto a presso da cabea de E- no ombro direito, sinto-a ao meu lado no meio do nevoeiro. No gostas do nevoeiro?. Sim, at de nevoeiro gosto... gosto de tudo, e tudo flexvel, novo, maravilhoso... tudo est bem... Est tudo bem disse eu em voz alta. Tudo bem? replicou o prato de faiana, arregalando os olhos. O que que est bem no meio de tudo isto? Se o tipo sem nmero conseguiu se meter aqui, porque h muitos outros por a, nossa volta, a toda a hora, em todo o lado. Andam a, andam junto do INTEGRAL, andam... E quem so eles? Como que eu vou saber quem so? Sei que os pressinto, est percebendo? Estou sempre a senti-los... Mas no ouviu dizer que... Parece que foi levada a cabo uma operao cirrgica destinada a remover a imaginao. Tinha-me chegado aos ouvidos recentemente uma notcia desse gnero. Sim, eu sei. Mas a que propsito vem aqui operao? que, no seu lugar, eu ia j pedir que me operassem. No meio do prato emergiu uma coisa cida como o limo. Coitado... O mais remoto indcio de que podia ter imaginao era para ele uma ofensa. Mas, a propsito disso, de referir que, h coisa de uma semana, tambm eu me sentiria ofendido com tal ideia. Agora no, certo, no. Desde que percebi o que se passava comigo, desde que me sinto mal. E sei, alm disso, que no quero curar- me deste mal. No quero pronto, acabou-se. Subimos os degraus de vidro at ao piso superior. Tudo por baixo de ns era to evidente como se o tivssemos na palma da mo. Quem quer que sejam vocs, leitores, todos tiveram j o sol a brilhar sobre as cabeas. Se j estive doente como eu me sinto agora, sabem decerto o que o sol... Sabem o que pode ser o sol pela manh; conhecem o seu ouro rseo, transparente, morno. O prprio ar tom matizes rosados e tudo fica saturado com o vermelho suave do sol; tudo fica repleto de vida so vivas e maleveis as pedras, vivo e quente, so vivas as pessoas, no h ningum que no sorria. possvel que dentro de uma hora tudo desaparea; dentro de uma hora, o sangue rosado h- de esvair-se gota a gota, mas, entretanto, est tudo cheio de vida. Vi claramente: tudo mexe e pulsa e brilha entre os vtreos sumos do INTEGRAL: eu vi: o INTEGRAL sonha com o seu grandioso futuro, com o carregamento de inevitvel felicidade que vai levar aos meus desconhecidos leitores, que tanto a procuram sem poderem encontr-la. Ho -de encontr-la, ho- de serem felizes... Esto destinados a ser felizes e no tero que esperar muito. Est quase terminada a estrutura do INTEGRAL: uma elipse elegante, esguia, feita com o nosso vidro eterno como o ouro, flexvel como o ao. Vi: no interior, colocam-se agora as costelas transversais e os cabos longitudinais; abrem-se na popa os alicerces para o gigantesco fogueto. De trs em trs segundos, uma exploso; de trs em trs segundos, a cauda poderosa do INTEGRAL libertar no espao universal chamas e gases e ganhar mais e mais velocidade, qual gneo Tamerlo da felicidade... Vi: l em baixo os operrios, de acordo com o princpio de Taylor, regular e rapidamente, com ritmo, debruavam-se e levantavam-se, rodavam como as alavancas duma mquina. Transportavam tubos resplandecentes; cortavam-nos com chamas e com chamas edificavam paredes de vidro, acoplavam cabos, estruturas, barras dobradas. Eu vi: gruas monstruosas de vidro transparente rolavam lentamente sobre carris de vidro e, tal como os operrios, rodavam dceis, baixavam- -se, levantavam cargas que pousavam no bojo do INTEGRAL. E tudo formava uma s unidade: as mquinas humanizadas, os humanos perfeitos como mquinas. Uma beleza sublime, estonteante, autntica harmonia, autntica msica... Tenho que descer j o mais rapidamente possvel, tenho que ir ter com eles! Estava agora no meio deles, ombro com ombro, unido a eles, dentro do mesmo ritmo frreo. Os movimentos deles eram medidos; as faces deles eram redondas como uma bola de borracha, as frontes deles eram lisas como espelhos, libertas de pensamentos insanos. Flutuava naquele mar de espelho. Sentia-me repousado. E, de repente, um deles, descuidadamente, voltou-se para mim: Ento, j passou? Est melhor, hoje? Melhor? Que quer dizer? Ontem no veio pra c. Julgmos que fosse alguma coisa grave. A testa dele brilhava de suor, o sorriso era infantil, inocente. O sangue subiu-me ao rosto. No podia mentir perante um olhar assim... No podia. Fiquei calado, interdito... Reluzindo no mximo da sua brancura, do alto de um postigo superior, uma cara de faiana chamou: D-503, falo contigo. Venha at aqui, por favor. Ajustmos as consoles s estruturas, venha ver, h alguns pormenores que no batem certo... Sem perda de tempo, subi pela escada acima, direito a ele: escapava assim, vergonhosamente, punha-me em fuga... No me apetecia olhar de frente; evitava os reflexos da luz nos vidros dos degraus que ia subindo e, a cada degrau que subia, sentia-me mais descorooado; no havia ali lugar para mim, para um criminoso, um homem cheio de toxinas. Nunca mais me adaptaria quele ritmo mecnico sem falhas, nunca mais flutuaria naquele mar reluzente. O meu destino seria arder para sempre, debater-me, procurar um ponto qualquer onde esconder o olhar, para sempre, at sentir foras para ultrapassar e... Neste momento senti-me transpassado por um raio gelado: comigo, no me importo, no h problemas; mas no posso deixar de pensar nela, eles vo implic-la a ela tambm... Por uma escotilha, sa para a coberta e parei: no sabia para onde me virar, no sabia por que tinha vindo at ali. Olhei para cima. O sol, j cansado, subia lentamente. Por baixo, o INTEGRAL, verde-vtreo, sem vida. Tinha-se esvado o sangue rseo. Para mim era claro que tudo no passava de imaginao, que tudo continuava a ser como antes, mas ao mesmo tempo era claro que... Ento, 503, est surdo? J o chamei mais de uma vez... Que se passa? Era o Adjunto a gritar-me aos ouvidos; h muito tempo que ele devia estar gritando. 1 Que se passava comigo? Tinha perdido o rumo. O motor roncava o mais que podia, o aero carro agitava-se e tomava toda a velocidade que podia, mas faltava o rumo... Eu no sabia para onde ia com aquela pressa toda: descia... Ia espatifar-me no solo; ou ento subia... Precipitava-me para o sol, para a massa ardente... Dcima Sexta Entrada Amarelo Uma sombra com duas dimenses Uma alma incurvel No tenho escrito nada h j alguns dias. No sei h quantos dias: todos os dias so um s. Os dias so todos de uma s cor, amarelos como areia calcinada e abrasada pelo sol. E no h um bocado de sombra, no h uma gota de gua, e eu caminho sobre esta areia amarela, sem objetivo vista. No posso estar sem ela e, desde a altura em que desapareceu de forma to inexplicvel na Casa da Antiguidade, ela... Desde ento, vi-a s uma vez, durante um passeio. H dois, trs, quatro dias, no sei precisar. Todos os dias so um s. Ela passou como um relmpago, enchendo por instantes o mundo amarelo, vazio. De brao dado com ela ia o homem em forma de S que lhe dava pelo ombro; ia tambm o mdico de papel recortado e tambm um quarto nmero do qual recordo apenas os dedos, dedos que emergiam das mangas do uniforme como se fossem raios enfaixados, uns dedos singularmente finos, brancos, compridos. E- acenou-me e baixou a cabea por cima do baixote, falando com o nmero dos dedos esguios. S percebi a palavra INTEGRAL; todos se voltaram e olharam para mim, posto o que se perderam no cu verde- azulada ficando a rua novamente amarela, calcinada. noite ela tinha um cupom cor-de-rosa para se encontrar comigo. Postei-me frente ao mostrador e supliquei-lhe com ternura e com dio que fizesse aparecer o mais depressa possvel no seu espao branco as letras E-330. A porta do elevador abriu-se ruidosamente uma e outra vez; dele saam mulheres plidas, mulheres altas, mulheres rosadas, mulheres morenas; as persianas iam- se fechando uma por uma em todas as casas. Mas ela no aparecia. No apareceu. Possivelmente, neste mesmo instante, s 22 em ponto, hora a que escrevo, ela vai, cerrando os olhos e encostando o ombro ao ombro de algum (como daquela vez) e (como daquela vez) pergunta a esse algum: Gostas?. A quem o pergunta? Quem ele? Aquele dos dedos-raios, o dos beios grossos, o fido perdigotos? Ou o S-? S-! Porque ouvirei eu, todos os dias, atrs de mim, as passadas surdas dele, um som como o de quem chapinha em charcos de lama? Por que ser que nestes ltimos dias ele me segue como uma sombra? Uma sombra verde- azulada, com duas dimenses, aos meus ps, lado a lado comigo, atrs de mim; as pessoas passam por cima dela, atravs dela, mas ela continua comigo, sempre presente, unida a mim por um cordo umbilical invisvel. Ser que ela, E-, esse cordo umbilical? No sei. Ou, talvez, ela j seja conhecida dos guardas... Talvez eu... Se viessem dizer-nos que a nossa sombra nos v... Nos v a todo o instante? Percebem? E se de repente tivssemos uma sensao estranha: os nossos braos no so os nossos braos, mas os dum estranho? Seria incomodo. Eu dou muitas vezes comigo a balanar os braos, de maneira ridcula, num ritmo diverso do andar. Ou ento, de repente, preciso olhar para trs e sou completamente impedido de faz-lo: sinto o pescoo fixo como se fosse de ferro. E ponho-me a correr a toda brida e as minhas costas sentem a sombra a correr mais velozmente atrs de mim, e no h lugar no h lugar! para onde possa fugir dela... Cheguei finalmente ao meu quarto. S. Mas vejo-me confrontado com outra coisa: o telefone. Pego no auscultador: Sim, E-330, por favor!.... E ouo uma vez mais atravs do auscultador o rudo abafado, passos abafados de algum no corredor, junto porta do quarto dela, e depois o silncio... Pouso o auscultador. No suporto isto... No suporto mais. Tenho que ir l. Tenho que ir falar com ela. Foi isto ontem. Corri at l e, durante uma hora (desde as 16 at s 17) dei voltas e mais voltas em redor do prdio onde ela vive. Em magotes, passavam os nmeros. Milhares de ps passaram a um ritmo igual; qual Leviat de milhares de ps, a bambolear-se. E eu ali sozinho, cuspido pela borrasca numa ilha desabitada, e os meus olhos procura, procura das vagas verde- azuladas. Mas de crer que, a qualquer momento, apaream na minha frente o ngulo irnico das sobrancelhas repuxadas para as tmporas e as negras janelas dos olhos que tm dentro uma lareira acesa e algumas sombras inquietas. E eu abrirei caminho por estas janelas, entrarei e trat-la-ei por tu, sempre por tu: Sabes com certeza que no posso viver sem ti. Porque que me tratas assim? Mas ela no dir nem uma palavra. Fez-se um silncio sbito. Repentinamente, ouvi o que a Oficina Musical tocava, percebi que eram 17 horas, que todos os nmeros tinham ido embora. Estava s. Era tarde. Em redor, pululava um deserto de vidro mergulhado no amarelo do sol. Vi, como que refletidas na gua, as paredes invertidas, reluzentes, suspensas dum cu de vtreo e eu prprio suspenso no meio deles, ridculo, de cabea para baixo. Tinha que ir imediatamente, naquele mesmo instante, ao Posto Mdico, pedir um atestado de doena, seno eu seria detido... O que no seria pior: ficar ali e esperar calmamente que dessem por mim e me levassem para o Departamento Operacional. O melhor era acabar de vez com tudo e redimir tudo de uma vez por todas. Um rudo: l estava sombra em forma de S. Sem olhar, senti a violncia com que as duas verrumas de ao verde se espetavam em mim. Fiz um esforo terrvel para sorrir e disse (alguma coisa eu teria que dizer): Vou... Tenho que ir ao Posto Mdico... Ento por que que no vai? Que est a fazendo aqui? Corado de vergonha, com a sensao de estar absurdamente suspenso de cabea para baixo e pernas para o ar, no respondi. Siga-me disse-me S-, carrancudo. Fui andando, com os braos pendentes, como se pertencessem a outro. No conseguia levantar os olhos; e ao mesmo tempo ia atravessando aquele mundo cruel, de pernas para o ar: aqui estavam umas mquinas invertidas, as pessoas caminhavam antipaticamente pelos tetos e o cu baixo era pavimentado com vidro igual ao do solo. A coisa mais humilhante, agora me recordo, era ver pela ltima vez na minha vida tudo invertido e no como era na realidade. Mas no podia olhar para cima. Paramos. minha frente havia uma escadaria. Mais um degrau e veria algumas figuras de bata branca cirrgica, a enorme Campnula de Vidro... Com um violento esforo, como por ao de uma mola interna, arranquei os olhos do cho envidraado e bateram-me em cheio no rosto as letras do Posto Mdico. Porque me tinha ele guiado at ali, em vez de me levar para o Departamento Operacional, porque me teria poupado...? No me ocorreram naquele momento estas interrogaes. Saltei vrios degraus de uma s vez, fechei a porta com toda a fora atrs de mim e... Suspirei. Como se, desde manh, os meus pulmes no tivessem respirado e o meu corao no tivesse batido, como se tivesse respirado s naquele momento e naquele momento se tivesse aberto uma comporta dentro do meu peito. Tinham na minha frente dois nmeros mdicos: um extremamente baixo, com umas pernas baixas e grossas como os postes de ferro que ladeiam as estradas e com uns olhos que pareciam despedaar os doentes, assim como um touro que despedaa a vtima com os cornos; o outro era magrssimo, o mais magro que se possa imaginar, e tinha por lbios um par de tesouras reluzentes e um nariz que era a lmina duma faca: o mesmo tipo que tinha visto da outra vez. Avancei para ele como se fosse um parente chegado, avancei resolutamente para as trs lminas, murmurando qualquer coisa a respeito de insnias, sonhos, uma sombra, um universo todo amarelo. O dos lbios de tesouras brilharam num sorriso. Est mesmo mal. Tudo indica que se formou uma alma dentro de si. Uma alma? Palavra singular, antiga, h muito olvidada... Ocasionalmente ainda se diziam expresses como desalmado, alma danada, desalmadamente, mas quem, nos dias de hoje, diria a palavra alma, assim, nua e crua? Ser... Grave? balbuciei. Incurvel atalhou o dos lbios de tesouras. Mas, afinal... Do que se trata? De certo modo, eu... No consigo perceber o que seja... Repare... Como que eu lhe hei de lhe explicar? matemtico, no ? Sou. Ento suponha um plano, uma superfcie... Pode servir este espelho. Eu e voc estamos aqui nesta superfcie, est vendo? Fechamos os olhos por causa do reflexo do sol, temos aqui a fasca eltrica da lmpada e h tambm a sombra deste aero carro que vai a passar. Tudo isto se viu na superfcie do espelho e tudo num segundo. Suponha agora que, por ao do fogo esta superfcie impenetrvel comeava a amolecer e que as coisas, em vez de deslizarem, comeavam a penetrar, entravam no mundo do espelho que ns em pequenos contemplvamos com tanta curiosidade... E posso garantir-lhe que as crianas no so to parvas como as pessoas julgam. O plano transformou-se em massa, num corpo, num mundo, e aquilo que est dentro do espelho est dentro de si: o sol, o torvelinho formado pelo propulsor do aero carro e os seus lbios trmulos... e os lbios de algum mais... Percebe? Um espelho frio reflete, rejeita, ao passo que o meu suposto espelho absorve e conserva para sempre vestgios de todas as coisas que o afetaram. Vimos uma vez uma ruga quase imperceptvel na cara de algum... E essa ruga fica dentro de ns para sempre; captamos uma vez o som duma pinga de gua a cair no meio do silncio... E ouvimos esse mesmo som neste momento. Sim, sim, isso! Agarrei-lhe a mo. Estava de fato a ouvir: o som, no meio do silencio, dos pingos de gua caindo lentamente da torneira dum lavatrio. Ele sabia que tal som ia perdurar a vida inteira. Apesar disso, porm, por que uma alma, assim, sem mais nem menos? Vivi sem ela durante tanto tempo... E, assim, de repente... Como que ningum teve isso e logo eu haveria de ter?... Apertei ainda mais a mo descarnada, assustava-me o poder vir a perder o meu cinto de segurana. Como que havia de ser? Como que perdemos as penas, as asas, e ficmos com as omoplatas, as bases das asas? Porque presentemente no precisamos de asas; foi inventado o aero, as asas senis, um empecilho. As asas servem para voar e ns nem sequer temos para onde voar. O nosso voo terminou, descobrimos tudo quanto procurvamos. assim ou no ? Acenei que sim, meio-ausente. Ele olhou-me e desatou a rir em gargalhadas desabridas. O outro nmero mdico ouviu-o, firmou-se nas pernas-estacas de ferro, esfrangalhou o mdico magro com as pontas dos cornos do olhar, esfrangalhou-me depois a mim. O que que temos? O qu, uma alma? Falou em alma? Que diabo! No tarda que regresse a clera, j lhe tenho dito (e espetou mais o olhar-cornada no doutor magro). J lhe tenho dito que necessrio fazermos uma fantasiotomia, uma fantasiotomia geral. A imaginao ter que ser extirpada. S a cirurgia poder nos valer, s a cirurgia, nada mais... Ps uns descomunais culos Rntgen e comeou a andar minha volta, inspecionando cuidadosamente o meu crnio, examinando o crebro e tomando notas num caderno. Curiosssimo... Curiosssimo! Oua: consente em... Ser conservado num frasco de lcool! Seria muito curioso para o Estado nico... Ajudava-nos a evitar uma epidemia. A no ser que ponha alguma objeo... Noutros tempos, provavelmente, eu teria dito: Sim, estou de acordo, sem hesitar. Desta vez calei-me. Fitei o perfil esguio do outro mdico, implorante... que, sabe? objetou o magrinho , o nmero D- 503 o construtor do INTEGRAL e seria, certamente, um grande transtorno... Ah mugiu o outro, encaminhando as pernas- estacas para o gabinete donde tinha sado. Ficmos ss. A mo de papel segurou ligeira e amavelmente o meu; o rosto, todo ele perfil, debruou-se para mim: Vou confiar-lhe um segredo cochichou. O seu caso no nico. O meu colega tem boas razes para falar de epidemia. Puxe pela memria: no notou nada semelhante... Muito semelhante muito parecido com isto numa certa pessoa...? E fitou-me com mais insistncia... De que falava ele? De quem falava? Estaria a insinuar que... Era possvel? Alto a! disse eu, saltando da cadeira, mas ele tinha j mudado de conversa e prosseguia em voz alta: Para essas insnias, para esses sonhos, s tenho um conselho para lhe dar: ande a p o mais que puder. Comece j amanh, faa uma excurso... Por que no d uma fugida at Casa da Antiguidade, hein? O olhar dele tornou a trespassar-me, com um sorriso quase imperceptvel. E pareceu-me ver com toda a nitidez uma palavra, uma letra, um nome, no tecido impalpvel daquele sorriso... Ou ento era fantasia minha. Esperei impacientemente que escrevesse o atestado de doena para aquele dia e para o seguinte, apertei-lhe de novo a mo com fora, sem dizer palavra, e sa a correr. O meu corao tinha a leveza, a rapidez dum aero carro e transportava- -me para as alturas, cada vez mais alto. Sabia que o dia seguinte me reservava alegres boas novas. Que boas novas seriam? Dcima Stima Entrada O outro lado do vidro Morri Corredores Estou profundamente intrigado. Ontem, no momento em que julgava tudo solucionado, descobertos todos os X da questo, surgiram na minha equao novas incgnitas. Todas as coordenadas desta histria tm o ponto de partida na Casa da Antiguidade, evidentemente. De l irradiam os eixos dos X. dos Y e dos Z sobre os quais se alicera o meu mundo nos ltimos tempos. Eu ia caminhando pelo eixo dos X (a Avenida 59) direito ao ponto de partida das coordenadas. Os acontecimentos de ontem eram dentro de mim um turbilho de cores numerosas: as casas invertidas e as pessoas, as mos que dolorosamente deixavam de ser minhas , o dos lbios- tesouras reluzentes, o pinga-pinga torturante da gua no lavabo coisas que tinham acontecido em um dia! E tudo isto, laceravam me a carne, lavrava agora impetuosamente sob a superfcie amolecida onde se alojava a alma. Para fazer o que o mdico me receitou, escolhi deliberadamente um caminho que seguia os dois lados do tringulo, no a hipotenusa. Encontrava-me no segundo lado: a estrada em arco de crculo que ladeava o Muro Verde. Do vastssimo mar de verde que para alm do Muro se estendia, desciam sobre mim vagas furiosas de razes, flores, ramos, folhas; mugia por cima de mim, prestes a esmagar-me e, de homem que era, de mecanismo perfeito e exato que era, transformar-me-ia em... Mas, felizmente, entre mim e o furioso oceano verde erguia-se o vidro do Muro! Ah, a imensa, a divinal sabedoria dos muros, das barreiras que servem de limites! O muro , talvez, a maior de todas as invenes. O homem deixou de ser selvagem no dia em que construiu o Muro Verde, no dia em que isolmos o nosso mundo mecnico e perfeito do mundo irracional e horroroso das rvores, das aves, dos bichos... Do lado de l do rio observa-me, estpido, amedrontado, o focinho chato dum bicho qualquer; tem uns olhos amarelos que se fixam insistentemente numa ideia para mim incompreensvel. Durante muito tempo, olhmo-nos nos olhos, esses tneis que, do mundo superficial, conduzem ao mundo que se encontra abaixo da superfcie. E dentro de mim comeou a formar-se uma ideia: E se esta criatura de olhos amarelos, que vive a sua vida no programada, entre montes de folhas imundas e ridculas, fosse mais feliz do que ns? Ergui o brao: os olhos amarelos fecharam-se, afastaram-se para trs, desapareceram entre os ramos. Msera criatura! Que absurdo pensar que pode ser mais feliz do que ns! Mais feliz do que eu, possvel, mas porque eu sou uma exceo: estou doente. E, mesmo assim... Avistei ao longe as paredes e as janelas negras da Casa da Antiguidade... e a boca gentil da velha cujos lbios parecem cada vez mais mirrados. Corro para ela, ansioso: Ela est aqui? Entreabriu os lbios cada vez mais mirrados: E quem vem a ser ela? H , quem haveria de ser? E-, evidentemente. Ainda outro dia eu e ela aqui viemos num aero... Ah. sim, sim! isso, isso! Sou profundamente traspassado pelos raios-rugas daquela boca, pelos astutos raios daqueles olhos amarelos. E acrescentou: Est muito bem, ela apareceu h pouco tempo. Estava l. Vi, junto da velha, alguns ps de absintos prateados (o ptio da Casa da Antiguidade tinha tanto de museu como a casa em si e era ciosamente conservado no seu estado pr-histrico). A planta tinha um ramo que se erguia altura da mo da velha e ela acariciava- -Ihe as folhas sedosas. O sol desenhava lhe no avental alguns traos amarelos. Por momentos, eu, o sol, a velha, o p de absinto, os olhos amarelos ramos uma s coisa; estvamos estreitamente unidos uns aos outros por uma rede de veias e atravs destas corria o mesmo sangue, tempestuoso, magnificente. (Sinto vergonha de escrever isto, mas prometi ser franco at ao fim. Pois bem; debrucei-me e beijei aquela boca mirrada, mole, musguenta. A velha limpou os beios e deu uma gargalhada.) Corri pelas salas familiares, escuras, povoadas pelo eco, dirigindo-me, nem sei bem porqu, para o quarto de dormir. S quando cheguei mesmo ao p da porta e ia rodar o manipulo que me ocorreu: E se ela no estiver s? Parei e escutei. O que ouvi foi apenas as pancadas do meu prprio corao... No dentro de mim, mas algures nas redondezas. A cama enorme, intacta. Um espelho. Um outro espelho no guarda-roupa e, na fechadura deste, uma chave com uma argola antiquada. E ningum no quarto. E-? Est aqui? chamei baixinho e depois mais baixo ainda, Inchando os olhos, contendo a respirao, como se estivesse j de joelhos aos ps dela. E-! Querida! Silncio total. Exceto a gua a pingar rapidamente da torneira para a bacia branca. Na altura no consegui explicar os motivos, mas aquele pinga-pinga desagradou- me. Fechei violentamente a torneira e sai do quarto. Ela no estava, era evidente. Significava isso que estava noutra diviso. Desci uma escada larga, sombria, tentei abrir uma porta, outra, mais outra. Todas fechadas. Estavam todas fechadas, exceto um dos quartos, o nosso quarto, e a no estava ningum. Mesmo assim, fui para l outra vez, no sei explicar porqu . Caminhava devagar, com dificuldade, as solas dos sapatos pesavam como se fossem, de chumbo. Lembro-me distintamente de ter pensado: A ideia de que a fora da gravidade constante no est certa. Por consequncia , todas as minhas frmulas... Nesse momento, um estrondo: uma porta bateu, no rs- do cho. Passos rpidos nas lages do pavimento. Tornei- me leve, pairei no ar, agarrei-me ao corrimo, com a inteno de me debruar e de exprimir tudo o que sentia num nico grito, numa s palavra: Tu!
Tive um arrepio de frio. L em baixo, emoldurada pela janela escura, com as orelhas cor-de-rosa abertas, desenhava-se a cabea de S-. Uma clara concluso se me imps subitamente, uma concluso sem premissas (ainda hoje no sei quais eram as premissas): Ele no me pode ver, em circunstncia alguma. Em bicos de ps, contra a parede, corri para o quarto que estava aberto. Fiquei uns segundos porta. O indivduo subia a escada, vinha direito pra mim. Se ao menos aquela porta no me trasse. Fiz uma splica porta, mas ela era de pau, rangeu, chiou. Qualquer coisa vermelha, qualquer coisa verde, o Buda amarelo: tudo passou por mim num turbilho; vi-me no espelho do armrio, vi nele a minha cara plida, os meus olhos, os meus lbios ansiosos. Entre as pancadas do corao, ouvi de novo a porta ranger. Era ele... Ele... Levei a mo chave do guarda-roupa e... a argola da chave comeou a rodar. O que me fez recordar. E tirar mais uma concluso clara, sem premissas... ou , mais corretamente, o comeo duma concluso: Da outra vez,' quando E-... E abri rapidamente a porta; uma vez l dentro, no escuro, fechei a porta. Um passo... o cho faltou- me debaixo dos ps. Lenta, suavemente, deslizei, escorreguei , ca... tudo escureceu diante dos meus olhos; morri. Mais tarde, quando se tratou de registrar estes acontecimentos estranhos, espionei na memria e nos livros. Agora j percebo: foi um estado de morte temporria, um estado conhecido pelos antigos, mas, tanto quanto julgo saber, totalmente desconhecido entre ns. No fao ideia de quanto tempo estive morto (entre cinco e dez segundos, provavelmente), mas ao fim de algum tempo voltei vida e abri os olhos. Estava escuro e sentia-me descer, descer... Procurei agarrar-me e estendi a mo: o muro de superfcie rugosa esfacelou- -me; um dos dedos deitava sangue... No se tratava de uma fantasia da minha imaginao. Mas ento o que era... Sim, o que era? Senti que me faltava o ar, vacilei (com vergonha o confesso; era tudo muito inesperado e incompreensvel). Passou um minuto, depois outro e outro: continuava a descer. Acabei por chocar com qualquer coisa: o cho que me escapava sob os ps acabou por se imobilizar. No escuro, apalpei e a minha mo encontrou um manipulo. Empurrei, abriu-se uma porta, a luz era dbil. Vi ento atrs de mim uma pequena plataforma quadrada, subindo lentamente, la a correr para ela, mas era tarde: estava isolado ali... ali , onde?... no sabia. Um corredor. Num silncio esmagador, com mil toneladas de peso. No teto abobadado, pequenos globos eltricos, numa fileira interminvel, bruxuleante. Havia certa semelhana com um tnel dos nossos metropolitanos, mas este corredor era consideravelmente mais estreito e construdo no com o nosso vidro mas com materiais de antigamente. Fazia lembrar as catacumbas onde, ao que se diz, as pessoas procuravam refgio na altura da Guerra dos Duzentos Anos. Fosse ou no fosse isso, havia que seguir em frente. Devo ter andado durante uns vinte minutos. Virei direita: o corredor tornou-se mais largo; os pequenos globos eltricos iluminaram- -se. Ouvi um rumor vago. Podia ser uma mquina, podiam ser vozes, no tinha certeza. S sabia que me encontrava diante duma porta pesadssima e que era detrs dela que vinha o barulho. Bati de novo, com mais fora. Serenou o barulho atrs da porta, ouviu-se um estalido. Pesadamente, lentamente, a porta abriu-se. No sei quem ficou mais paralisado de espanto: minha frente perfilava-se o mdico esguio com nariz de lmina. Voc? Aqui? disseram os lbios-tesouras fechando- se. E eu... foi como se desconhecesse a linguagem humana; deixei- -me ficar, sem dizer palavra, sem ouvir absolutamente nada do que me era dito. Dizia-me provavelmente que ia ter de abandonar o local, pois, logo a seguir, empurrou-me de leve com o abdmen chato de papel at ao recanto mais iluminado, onde me deu uma pancada nas costas. -Permita-me... Desejava... Pensei que ela... que a E-330... mas estou a ser seguido por algum... Deixe-se ficar a atalhou o mdico, desaparecendo de imediato. Finalmente! Finalmente, ela estava por perto, estava ali; mas o onde era o que menos me importava. A seda amarelo-aafro to familiar, o sorriso-dentado, os olhos de plpebras cerradas... Os meus lbios, as minhas mos, os meus joelhos tremiam e pela minha cabea passou a ideia mas tola: As vibraes so sonoras. As tremuras em demasia produzem som, porque ser que no se ouve nada? Os olhos dela abriram-se de par em par e eu entrei neles. Eu no podia aguentar mais. Onde que voc estava? Porque foi... Sem tirar os olhos dela, falava como num delrio, depressa, sem nexo... Possivelmente era s em pensamento, sem falar de fato... Sou perseguido por uma sombra... morri... ao sair pela porta do armrio... Porque aquele mdico seu... disse com as tesouras dele que eu tenho alma... e que incurvel... Uma alma incurvel! Meu pobrezinho! E- comeou a rir e a aspergir-me com o seu riso; foi-se o delrio, os charcos do riso reluziam, brilhavam por todo o lado e tudo era perfeito, tudo... Perfeitssimo... O mdico voltou a sair do seu canto, o mdico magrinho, esplndido, espantoso. E ento? perguntou aproximando-se dela. No foi nada, nada! Conto-lhe tudo depois. Chegou aqui por acaso. Diga-lhes que eu volto logo... dentro de quinze minutos, mais ou menos. O mdico desapareceu na esquina. Ela esperou. A porta fechou- se. A, E-, lenta, lentamente, mergulhando mais e mais na agulha afiada e deleitosa do meu corao, encostou o ombro dela ao meu, o brao, e tornmo-nos ambos um s... No me lembro da altura em que nos embrenhmos no escuro e, As escuras, em silncio, comemos a subir uma escada interminvel. No via nada mas sabia que ela caminhava tal e qual como eu: de olhos fechados, como um cego, de cabea atirada para trs, mordendo os lbios e ouvindo msica... a msica do meu quase imperceptvel tremor. r L Ao voltar a mim, encontrava-me num dos muitos recantos do ptio da Casa da Antiguidade; havia uma espcie de cerca, um muro em runas, com o esqueleto e os dentes mostra, emergindo da terra. Ela abriu os olhos. Disse: Depois de amanh s 16, e abalou. Ser que tudo isto aconteceu? No sei. Saberei... depois de amanh. Ficou um nico vestgio real: a pele esfolada da ponta dos dedos da mo direita. Mas hoje, no INTEGRAL, o Adjunto afirmou ter-me visto tocar por acaso uma pedra de afiar com os mesmos dedos. Deve ter sido isso. Se calhar, no foi. o mais plausvel. No sei. No sei de nada. Dcima Oitava Entrada As selvas da lgica Ferimentos e um emplastro Nunca mais Ontem me deitei e... mergulhei logo no fundo do mar do sono, como um navio que por excesso de peso vai a pique. Esmagando uma mole imensa de gua verde que se afastava para eu passar. E lentamente subi e vim tona, abrindo os olhos. Estava no meu quarto; a manh era ainda verde, congelada. Bateu-me nos olhos um reflexo de sol no espelho da porta do guarda-roupa. Era um impedimento ao cumprimento exato das horas de sono ordenadas nas Tbuas dos Mandamentos Horrios. O melhor era abrir a porta do guarda-roupa, mas sentia- me a modos que envolto em teias de aranha, teias que me lapavam tambm os olhos; no tive foras para me levantar. Mas l consegui levantar-me, abrir o guarda-roupa e, de sbito, detrs da porta, libertando-se do vestido, surgiu a rsea E-. Naquele momento, eu estava to habituado s coisas mais improvveis que, tanto quanto me lembro, no me mostrei surpreendido, no fiz qualquer pergunta. Sem perda de tempo, entrei no guarda-roupa, fechei a porta e, ofegante, apressado, s cegas, sfrego, uni-me a E-. Vejo agora como tudo se passou: um fino raio de sol penetrou atravs duma fresta da porta e, no escuro, como um relmpago, ziguezagueando, bateu no cho, depois numa das paredes, da subiu mais e a sua lmina cruel e reluzente penetrou no pescoo nu de E-; fiquei to apavorado que no suportei mais; dei um grito e, mais uma vez, abri os olhos. Estava no meu quarto. A manh ainda era verde, congelada. No espelho da porta do guarda-roupa batia um raio de sol. Eu estava na cama... ento que... sonho. Mas o meu corao batia ainda descompassadamente, estremecia, oscilava, doam-me as pontas dos dedos, os joelhos. Disso no tinha eu dvidas. Naquele momento no distinguia entre o sonho e a realidade. A irrealidade atravessava tudo o que era slido, habitual, tridimensional e, em vez de superfcies firmes e lisas, tudo minha volta era inchado, peludo... Tinha ainda bastante tempo antes de a campainha tocar; deixei- me ficar a pensar... e diante de mim desenrolou-se uma cadeia lgica extremamente curiosa. No nosso mundo de superfcie, cada equao, cada frmula tem uma curva ou um slido que lhe corresponde. Para a frmula irracional, para a minha E- no se conhece slido correspondente; nunca se viu. Mas o horror todo que tais slidos, embora invisveis, existem, inevitvel, inelutavelmente, porque nas matemticas, como numa tela, passam diante de ns sombras fantsticas, caprichosas frmulas irracionais. Ora as matemticas e a morte no erram nunca. E se no vemos tais slidos no nosso universo, superfcie, o certo que existe tem necessariamente que existir algures o universo deles, sob a superfcie. Saltei da cama sem esperar pelo toque da campainha e comecei a correr de um para o outro lado do quarto. As minhas matemticas, at ali a nica ilha firme e inabalvel, no mar da minha vida agitada, desagregavam- se tambm, andavam deriva, rodopiavam num turbilho. Quereria isto dizer que a tal alma ridcula era to real como o meu uniforme, as minhas botas, botas que alis no via naquele momento (estariam atrs da porta fechada do armrio?). Mas se as botas no eram uma doena como que a alma o era? Procurava escapar desta selva lgica, mas no conseguia. Esta selva era em tudo parecida com as florestas desconhecidas, impenetrveis e horrendas que se estendiam para alm do Muro Verde... e, ao mesmo tempo, tais florestas eram seres extraordinrios, incompreensveis que falavam sem palavras. Parecia-me estar vendo, atravs de um vidro grosso uma \A-1, infinitamente grande e ao mesmo tempo infinitamente pequena, escorpiide, em que o aguilho era aquele sinal menos, oculto mas sempre sentido. Talvez ele fosse afinal a minha alma que, tal como o lendrio escorpio dos antigos, espetava o aguilho em si prprio at... A campainha. dia. Tudo isso, sem morrer, sem se desvanecer, ia ficar tapado pela luz do dia, da mesma forma que os objetos visveis, no morrendo, ficam, quando escurece, tapados pelo negrume da noite. A minha cabea estava cheia de uma neblina leve e incerta. Da nvoa emergiam compridas mesas de vidro; cabeas esfricas, mascando, lenta, silenciosa, ritmicamente. Atravs da neblina, de um ponto distante, chegava at mim, o matraquear dum metrnomo. Tal como os outros, maquinalmente, contei baixinho at quinze: as quinze mastigaes regulamentares antes de engolir. Depois, marcando maquinalmente o compasso, desci a escada e dei o meu nome no registro dos que saam (como todos os outros). Eu sentia, porm, estar a viver uma existncia parte, s, rodeado por um muro suave, auto- - absorvente, dentro do qual se encontra o meu universo. Mas h um problema: se este mundo s meu, porqu falar dele nestas notas? A que vm estes dramas absurdos, estes armrios, esses corredores sem fim? Com muita pena dou conta de que, em vez de um poema bem construdo e rigorosamente matemtico, em honra do Estado nico, estou a fazer um romance de aventuras fantsticas. E se ele fosse realmente um romance fantstico e no a minha vida presente, cheia de X, de \/"- 1 e quedas? Talvez, afinal, isto seja bom para mim. Muito provavelmente os meus desconhecidos leitores so crianas, quando comparados conosco. Ns fomos, vendo bem, engendrados pelo Estado nico e, portanto, alcanmos o ponto mais alto que um homem pode atingir. Como crianas que so , vo ter que ingurgitar muita coisa amarga que eu lhes vou ministrar, depois de bem embrulhada no xarope espesso da aventura... Noite Conhecem a sensao de estar num aerocarro que sobe a toda a velocidade numa espiral de azul?... A janela est aberta, o vento desabrido, assobia, bate-nos na cara, a terra sumiu-se, esquecemos a teria, a terra fica to distante como Saturno, Jpiter, Vnus... exatamente assim que eu estou a viver agora: bate-me na cara um vento forte e esqueci-me da terra, esqueci-me da rsea e querida 0-. Mas nem por isso a terra deixa de existir; mais tarde ou mais cedo teremos que aterrar e eu fecho os olhos para no ver a data apontada sob o nome dela (o nome 0-90) no meu Horrio Sexual. Esta noite, a terra remota veio-me lembrana. Para dar cumprimento receita do mdico (estou sinceramente interessado em me curar) passo duas horas a percorrer as avenidas desertas retilneas e vidradas. Todos os nmeros, conformando-se com as Tbuas dos Mandamentos Horrios, se aglomeravam nos auditrios, enquanto eu... Falando claro, no natural o espetculo que estou a dar. Imagine-se um dedo decepado da mo... um dedo humano, correndo, aos saltos, de bruos, pulando e arrastando-se ao longo do passeio de vidro, sozinho. Eu era aquele dedo. E o mais estranho, o menos natural, que aquele dedo no tinha vontade nenhuma de voltar para a mo, de se juntar aos outros dedos; o dedo queria ou continuar como estava, sozinho, ou ento... No, no tenho nada para esconder: ou ento estar com ela, com aquela mulher, fundir-me nela, penetrar nela atravs do ombro, dos dedos entrelaados... S voltei para casa quando o sol se punha. As rseas cinzas do entardecer pairam sobre o vidro dos muros, sobre o pinculo da Torre Acumuladora, sobre as vozes e os sorrisos dos nmeros com que me cruzo. No digam que no estranho: os raios do sol no ocaso formam um ngulo igual quele que os raios do sol formam ao amanhecer, mas tudo diferente, o tom rseo de natureza diferente; ao pr-do-sol mais suave, sem dureza alguma, ao passo que de manh agressivo, efervescente. No vestbulo, a controladora U- percorreu o mao de envelopes pela luz rosada do poente, tirou dele uma carta e me entregou. Trata-se (repito) de uma mulher respeitabilssima e tenho a certeza de que me trata com toda a considerao. Apesar disso, todas as vezes que olho para aquelas bochechas pendentes, que a tornam parecida com um peixe, sinto-me mal disposto. Ao estender-me a carta com a mo ossuda, U- suspirou. Mas aquele suspiro mal conseguiu fazer oscilar ao de leve a cortina que me separava do mundo. Fiquei perfeitamente absorto a*olhar para o envelope que tinha na mo e que (no duvidava) tinha dentro uma carta da E-. Seguiu-se outro suspiro, mas desta vez sublinhado, tanto que ergui o olhar do envelope, podendo ver; entre as bochechas de peixe, abrangendo as janelas pudicamente cerradas dos seus olhos, um sorriso terno, protetor, acariciante: Pobrezinho suspirou e desta vez o suspiro foi triplamente sublinhado, ao mesmo tempo que apontava para a carta, carta cujo contedo naturalmente conhecia, porque era dever dela ler todas as cartas. Mas, por que... o que a leva a afirmar isso? No, meu amigo... Conheo-o eu melhor a si do que voc se conhece. Tenho-o observado com ateno e sei que precisa de algum que tenha estudado a vida durante muitos anos, algum que lhe d a mo e o guie ao longo da vereda da vida... Senti-me acariciado pelo sorriso dela; era uma espcie de emplastro aplicado a todos os ferimentos que, em poucos momentos, me tinham sido infligidos pela carta que tinha na mo. E atravs das pudicas gelosias, mansamente, continuou: Vou pensar nisso, meu caro... Vou pensar nisso. E pode ter a certeza de que tenho fora bastante para... Mas no, no, vou ter que pensar um pouco primeiro... Oh Grande Benfeitor!... Estarei eu destinado ao... que ela quis dizer com isto que... Os meus olhos estavam ofuscados pela luz... milhares de luzes sinusides; a carta caiu das minhas mos. Aproximei-me mais da luz, aproximei-me da parede. O sol esmorecia e, pouco a pouco, as cinzas rosadas, tristes, caam no cho, em cima de mim, das minhas mos, da carta. Rasguei o envelope; procurei logo a assinatura e logo a se abriu a primeira ferida. A carta no era de E-, no era. Foi O- quem a escreveu. Ou ferida: no canto inferior direito do papel tinha cado um borro, uma mancha de qualquer coisa. Manchas, eu no suporto, sejam elas do que forem, de tinta ou de... no interessa o que era. Sei que, noutros tempos, me seria desagradvel; os meus olhos, ter-se-iam sentido ofendidos com uma mancha daquelas. Sim, aquele borro esverdeado, naquele canto, uma espcie de nuvem, porque ter ele comeado a ficar cada vez mais cor de chumbo? Seria a minha alma a manifestar-se? A carta dizia o seguinte: Deve saber ou talvez no saiba que no sei escrever bem. Mas no interessa nada... Agora j sabe que sem voc no tenho de meu um s dia, uma s manh, uma s primavera. Porque para mim R- apenas... mas para si nada disso importa. Seja como for, estou-lhe muito grata a ele, sem ele teria eu estado muito s nos ltimos dias, no sei o que seria de mim. Durante estes dias e estas noites, foi como se tivesse vivido uns dez, seno uns vinte anos. E como se o meu quarto no fosse quadrado mas redondo e ando volta dele, sem parar, sempre na mesma, de um para outro lado e no encontro uma nica porta. Sem voc impossvel, porque o amo. Porque vejo, compreendo: que no precisa de ningum neste mundo, ningum a no ser ela, a outra... e deve compreender que porque o amo que tenho que... Preciso de mais dois ou trs dias para reparar os estragos, para tornar a ser algo parecido com o que 0-90 foi... Depois irei notific-los de que retiro o seu nome do meu registro e vai ser melhor para voc , vai ser timo. Esquea-me; nunca mais o molestarei. Nunca mais. Ser melhor assim, ela tem razo. Mas ento porque que... porque...
Dcima Nona Entrada Um infinitesimal de terceira ordem Um olhar carregado Do parapeito L naquele corredor estranho com aquela fila de lmpadas pequenas, baas, bruxuleantes... ou... no , no era l; mais tarde, quando estvamos j num recanto do ptio da Casa da Antiguidade, disse-me ela- Depois de amanh. Depois de amanh hoje, e todas as coisas tm asas e levantam voo; o dia voa e o nosso INTEGRAL j tem asas; acabamos com a instalao do motor do foguete e hoje fizemos experincias com cargas simuladas. Magnficas e potentes salvas essas que aos meus ouvidos soavam como saudaes em honra dela, da mulher nica, e em honra deste dia. Durante a primeira experincia (= exploso), uma meia- dzia de nmeros que trabalhavam no local estavam demasiado perto da vlvula de escape: nada sobrou deles a no ser fragmentos no identificados e um pouco de fuligem. Orgulhosamente observo aqui que o ritmo do nosso trabalho no foi minimamente afetado por esse fato, nenhum homem pestanejou, ns continumos e os nossos tornos a executar os mesmos movimentos retos ou circulares com igual preciso, como se nada tivesse acontecido. Dez nmeros representam quando muito 1/100 000 000 do nosso Estado nico; em termos de clculo prtico, um infinitesimal de terceira ordem. A piedade baseada na ignorncia aritmtica uma coisa s conhecida dos antigos, digna das nossas gargalhadas. Digno igualmente de riso me parece o que ontem me passou pela cabea sobre um pobre borro de tinta esverdeada... e que fui ao ponto de referir nestas notas. Foi apenas mais um amolecimento da superfcie, duma superfcie que devia ser dura como diamante, dura como as nossas paredes (um rifo antigo fala em arremessar ervilhas contra uma parede). Dezesseis horas. No fui ao passeio suplementar. Quem sabe? Ela pode ter a ideia de aparecer exatamente a essa hora, quando o calor do sol de rachar... Praticamente, estou sozinho no prdio. Atravs das paredes batidas pelo sol, vejo tudo, direita, esquerda e em baixo... Vejo os quartos vazios, suspensos no ar, repetindo-se catatotricamente uns aos outros. Pela escada azulada, onde cai alguma sombra, sobe lentamente um vulto magro, cinzento. Ouo rudo de passos e vejo sinto atravs da porta que se me estampou no semblante um sorriso-emplastro; o vulto passa adiante e desce mais uma escada. Rudo no mostrador. No so s os meus olhos, sou eu que me volto todo para o quadro branco e negro e ele informa-me de que se trata de um nmero masculino (as consoantes significam masculino e uma consoante que aparece no mostrador). O elevador detm-se. Vejo-me diante de uma cara de testa franzida, a fazer lembrar a pala dum bon provocantemente enterrado, e com uns olhos... muito estranha a impresso que me causam aqueles olhos: parecia que o tipo falava pelos olhos, as palavras pareciam sair-lhe dos olhos. uma carta dela para si disse, tirando as palavras do embrulho, como se as tapasse com um toldo. Pediu que procedesse como diz a carta, sem falhar nada. Sempre de toldo nos olhos, de sobrolho carregado, olhou ao redor. No h aqui ningum, absolutamente ningum. Deixe ver isso! \ Tornou a olhar ao redor, deu-me a carta e foi-se embora. Fiquei mais uma vez s. No... S, no fiquei: o envelope continha um cupom cor-de-rosa e um perfume quase imperceptvel. Era ela que enviava a carta; ela viria, viria ter comigo. Vou sem mais demora ver a carta, l-la com os meus prprios olhos, para acreditar de vez... O qu? No devia ser assim. Leio a carta uma vez mais, saltando algumas linhas: O cupo... e no deixes de baixar as persianas como se eu realmente a estivesse... para mim absolutamente necessrio fazer com que eles pensem que... Sinto-me muito triste, muito... Rasgo a carta em pedacinhos. Vejo no espelho mais uma vez o meu sobrolho distorcido partido ao meio. Pego no cupom para lhe fazer o que fiz carta... Pediu que procedesse como diz a carta, sem falhar nada. No tenho fora nas mos. Deixo cair o cupom na mesa. Ela era mais forte do que eu e, pelo visto, ia ter que fazer o que ela desejava. Mas... de fato, no sei... Veremos; ainda faltam umas horas at ao entardecer... O cupom continuava em cima da mesa.
O espelho refletia o meu sobrolho distorcido, partido ao meio. Porque no arranjar outro atestado mdico para hoje, de modo a poder sair, passear, passear indefinidamente, a toda a volta do Muro Verde, e cair depois na cama, afundar-me no oceano dos sonhos... Mas no: a gente obrigada a ir ao Auditrio 13, sentar-se bem sentado, ficar l duas horas sem sair do lugar... quando o que realmente eu queria era berrar, bater o p com fora... A palestra. muito estranho: a voz vinda da instalao sonora, em vez de ser metlica como habitualmente, mole, peluda, musguenta. Uma voz de mulher... Imagino o que ter sido a vida dela, como ser agora: uma velha torta e curvada no gnero da que est de guarda Casa da Antiguidade. A Casa da Antiguidade... Em pensar nela faz com que tudo jorre como o repuxo duma fonte; tive de recorrer a todas as foras para me conter e no abafar com os meus gritos todos os sons do Auditrio. Penetram em mim as vozes doces e peludas e, de tudo o que foi dito na palestra, s recordo que se falou de crianas, de puericultura. Sou uma espcie de chapa fotogrfica: registro tudo em mim com uma exatido insensvel, automtica, indiferente; registro que a luz formava uma foice dourada no altofalante; sob este reflexo, para servir de exemplo, estava uma criana; ergue a mo para a foice refletida; mete na boca a bainha do uniforme microscpico; dobra o indicador e aperta com ele o polegar; v- se lhe no pulso uma sombra leve e gorda, o refego de carne que tm todas as crianas. Qual chapa fotogrfica, registro tambm: o pezinho descalo pende da aba da mesa; os dedos em forma de leque esto suspensos no ar... No tarda, no tarda nada a criana em se esborrachar no cho... E... o grito de mulher; agitando as asas difanas do uniforme, a mulher voa para o estrado, agarra no bebe, leva os lbios ao refego do pulso gorducho, chega o bebe para o centro da mesa e desce do estrado. Dentro de mim registro: uma boca que um crescente rosado de pontas viradas para baixo; olhos azuis como dois pires cheios at ao borda. Era 0-. E eu, como se estivesse a estudar uma frmula harmoniosa, sinto subitamente quanto esta ocorrncia banal era inevitvel e pr-determinada. Estava sentada atrs de mim, um pouco para a esquerda. Olho para trs; ela, submissa, desvia os olhos da mesa onde est o bebe, fixa-os em mim, no mais fundo de mim e, mais uma vez, ela, eu e a mesa que est em cima do estrado, constitumos trs pontos ligados por trs linhas, uma projeo de determinados acontecimentos, inevitveis, no percebidos ainda. Regresso a casa, por uma rua verde, sombria, com tantos olhos quantas as luzes acesas. Escuto-me e sou um relgio que no para de bater. E os ponteiros que tenho dentro de mim esto prestes a indicar um determinado algarismo; vou fazer uma coisa da qual no poderei recuar. Ela achou necessrio que algum, algum, pensasse que ela estava comigo. Conquanto ela me seja necessria, que terei eu a ver com as necessidades dela? Eu no queria servir de disfarce para outrem; no queria e era disso que se tratava. Atrs de mim, passos arrastados e familiares, como se o caminhante chapinhasse em charcos de gua. (Desta vez no me volto para ver; sei que o S-.) Vai seguir-me at porta, provavelmente, ficar depois no passeio, a olhar para cima, com as verrumas dos olhos espetadas no meu quarto... at que as persianas caiam e ocultem o crime de algum. O Anjo da Guarda leva-me a pr nisto um ponto final. Decidi que ele no atingir o objetivo. Est decidido. Chegado ao quarto, acendo a luz e no posso acreditar no que vejo: O- est junto da mesa. Reparando melhor, parece que ela est ali abandonada como um vestido que algum acabasse de despir; como se dentro do vestido no houvesse articulaes; os braos, as pernas, estavam desarticulados; a voz dela pendia, desarticulada. Vim ver o que se passa com a minha carta. Recebeu? Sim? Preciso de uma resposta... preciso ... hoje mesmo. Encolhi os ombros. Ao contemplar aqueles olhos azuis, esbugalhados, penso divertir-me a fazer-lhe perguntas como se ela tivesse feito algum ato censurvel. Deliciado, enterrando cada uma das palavras na carne dela, comecei: Voc quer a resposta? Ora... voc tem razo. Toda a razo. Tem razo em tudo. Quer dizer que... sorriu ela, ocultando assim as tremuras dos lbios, mas eu percebi tudo. Ento est bem. Vou-me embora e... j. Continuava abandonada ao lado da mesa. Olhos, braos, pernas, tudo desarticulado. O cupo cor-de-rosa amarrotado da outra continuava em cima da mesa. Abri este manuscrito deste Ns e escondi entre as folhas o cupom (escondi-o porventura mais de mim prprio do que da O-). Agora estou a escrever continuamente. J tenho cento e setenta pginas. Vai ser bastante inesperado... Mas no esquea disse numa voz que era a sombra duma voz ... aquela vez... a vez em que deixei cair uma lgrima., na pgina sete do manuscrito, quando voc... Os pratinhos azuis transbordaram; as lgrimas silenciosas escorreram lhe pelo rosto: No suporto mais... Vou-me j embora... Nunca mais... e no me importo. Mas quero uma coisa... a nica coisa que eu quero... ter um filho seu. Um filho seu e irei embora... irei embora! Vi-a estremecer toda dentro do uniforme e senti eu tambm que a desejava, a todo o momento... Pus as mos atrs das costas e sorri: O qu? Est com vontade de ir para a Mquina do Benfeitor? Tal como antes, as palavras jorraram sobre mim, como torrente que rompe as comportas: No me importa... Quero sentir... Vou sentir a criana dentro de mim. E, nem que seja por alguns dias... vou ver... verei , uma vez pelo menos o refego na carne, aqui assim... Exatamente como aquele bebe na mesa do auditrio. Nem que seja por um nico dia. Trs pontos: eu, ela, e ali, em cima da mesa, a mo fechada, rechonchuda com um refego no pulso. Lembro-me daquela vez em que, criana ainda, fui levado juntamente com outros Torre Acumuladora. L mesmo no alto, agarrei- me ao parapeito de vidro. L em baixo, as pessoas eram traos minsculos e senti um baque delicioso no corao: E se eu saltasse?... E, ao pensar isto, agarrei-me ainda com mais fora grade. Hoje, saltei mesmo. Quer ento levar isso adiante, sabendo perfeitamente que... De olhos cerrados, como quando se olha de frente para o sol, com um sorriso mido, refulgente, respondeu: Sim, quero, sim! Tirei do meio do manuscrito o cupom cor-de-rosa da outra e corri para a escada, direito controladora de servio. O- ainda me agarrou a mo para me dizer qualquer coisa que no percebi. Voltei e encontrei-a sentada na beira da cama, com as mos metidas entre os joelhos. Aquilo... aquilo era o cupom dela? Que diferena faz? verdade, era o dela. Ouve-se um estalido. No deve ter sido nada, foi 0- que se mexeu ligeiramente. Continuava sentada, com as mos entre os joelhos, sem dizer palavra. Bom, vamos l depressa... Agarrei-lhe brutalmente a mo e apareceram-lhe uns verges vermelhos (amanh sero ndoas roxas ou negras) nos pulsos, no stio dos refegos dos bebs. a ltima coisa de que me lembro. Depois: a luz se apagou, as ideias que se somem, o escuro, um brilho, e eu a cair do parapeito.
Vigsima Entrada A descarga Material para ideias A rocha zero Uma descarga: o termo apropriado. agora evidente para mim que parecia exatamente uma descarga eltrica. Nos ltimos dias, as minhas pulsaes so cada vez mais sacudidas, cada vez mais frequentes, cada vez mais tensas; os plos opostos aproximavam-se cada vez mais; soou um rangido; mais um milmetro e foi a exploso, seguida de silncio. Tudo em mim est agora quieto e vazio, como um prdio donde todos saram e onde s ns ficmos, ss, mal dispostos, a escutar distintamente o chocalhar metlico dos nossos pensamentos. muito possvel que esta descarga me tenha curado finalmente daquela maldita alma, tornando-me agora igual aos outros todos. Pelo menos mentalmente, consigo agora sem dificuldade imaginar 0- nos degraus do Cubo, imagin-la sob a Campnula Pneumtica de Vidro. E se ela me denunciar no Departamento Operacional, no me importo nada: beijarei grata e devotadamente a mo primitiva do Benfeitor. Na minha relao com o Estado nico tenho o direito de ser castigado e no renunciarei a esse direito. No h nenhum nmero que renuncie ou se atreva a renunciar a este seu direito individual e por isso precioso. Serenamente, com a nitidez do metal, os meus pensamentos chocavam-se entre si; um aero imaterial leva-me at aos cumes azuis das minhas abstraes bem- amadas. E a, no ar purssimo e rarefeito, vejo o meu argumento sobre o direito corrente estourar como uma cmara pneumtica. E vejo claramente que ele mais nosso do que um arroto do absurdo preconceito dos antigos: a ideia de que tinham direitos. H ideias de argila e h ideias moldadas para todo o sempre em ouro ou ento no nosso vidro precioso. E para se determinar a substncia duma ideia, basta aplicar-lhe uma gota de cido forte. Um desses cidos era j do conhecimento dos antigos: reductio ad finem. Era assim que eles lhe chamavam, creio; mas tinham medo desse veneno. E preferiam antes ver uma espcie de cu (ainda que um cu de argila, de brincar) do que um nada azul. Ns, porm, somos adultos glria ao Benfeitor! e no precisamos de brinquedos. Bom... vamos ento aplicar uma gota de cido ideia de direito. Mesmo entre os antigos, havia alguns mais maduros que sabiam ser a fora a fonte do direito, ser o direito uma funo de fora. Suponhamos dois pratos duma balana. Num est um grama, noutro est uma tonelada; naquele, Ns; neste, o Estado nico. No ntido que a ideia de eu ter alguns direitos em relao ao Estado e a ideia de um grama poder contrabalanar uma tonelada, no ntido que essas duas ideias se reduzam mesma nica ideia. H que distinguir: os direitos para a tonelada, os deveres para o grama e o percurso natural para se passar da nulidade grandeza esquecermo-nos de que somos um grama e sentirmos que somos a milionsima parte duma tonelada. Daqui, do meu silncio azul, ouo os vossos protestos, venusianos de corpo florido e faces rosadas, uranianos negros de fuligem. Mas h que entender uma coisa: tudo o que grande simples; h que entender que as nicas coisas inabalveis e eternas so as quatro operaes aritmticas. E s a moral alicerada nestas quatro operaes ser grande, inabalvel, eterna. esta a ltima sabedoria. este o pinculo da pirmide ao qual os homens, cobertos de suor, cambaleando, esbaforidos, tm subido desde as idades mais remotas. E deste pinculo pode ver-se que, basicamente, tudo o que dentro de ns sobreviveu da selvajaria ancestral se resume a uma chusma de vermes insignificantes; vistos de cima, O-, a me ilegal, o assassino, o louco que ousou atacar em verso o Estado nico, so todos iguais. Igual a sentena a que esto condenados: a morte prematura. esta a mesma divina justia com que o povo das casas de pedra sonhava iluminado pelos rseos e ingnuos raios do alvorecer da histria: o Deus deles punia da mesma forma a blasfmia contra a Santa Igreja e o assassnio. Severos e negros como os espanhis da antiguidade que faziam autos-de-f, os meus caros uranianos calam-se, esto aparentemente de acordo comigo. Mas dos rseos venusianos chegam at mim murmrios a respeito de torturas, execues, regresso aos tempos brbaros. Meus queridos, como eu os lamento! So incapazes de pensar filosfico-matematicamente. A histria humana desenvolve-se em crculos, como um aerocarro . Estes crculos mudam de cor, so dourados alguns, outros cor de sangue, mas no deixam de medir todos eles 360. Partindo do zero, contamos 10, 20, 200, 360 e vamos voltar de novo ao zero. Sim,vamos de novo ao zero. Mas, para o meu raciocnio matemtico claro que este zero novo e diferente. Viemos do zero para a direita, vamos do zero para a esquerda e, portanto, temos, em vez de zero, menos zero. Perceberam? Encaro este zero como uma rocha taciturna, enorme, fina e afiada como a lmina duma faca. No meio da escurido feroz e peluda, soltamos as amarras e, ofegantes, largamos da negra e noturna Rocha Zero. Quais Colombos, navegamos sem parar; circu-navegamos pelo mundo inteiro e finalmente, terra! Subimos aos mastros, todos ns. Temos diante de ns o outro lado, o lado at ali desconhecido da Rocha Zero, iluminada pela aurora boreal do Estado nico, uma massa composta pelas cores do arco-ris, do sol... De milhares de sis, de milhes de arco-ris... Que importa se a espessura duma lmina que nos separa do outro lado, do lado negro da Rocha Zero? Uma faca o mais substancial, o mais imortal dos objetos, a obra mais genial de todas as que o homem criou. A faca serviu de guilhotina, a faca o modo universal de cortar todos os problemas intrincados e a vereda dos paradoxos fica no gume afiado duma faca, e o nico caminho digno dum esprito sem medo.
Vigsima Primeira Entrada Um dever do autor Engrossa o gelo O amor mais difcil Ontem era o dia dela e mais uma vez ela faltou, e mais uma vez nu; enviou uma carta que nada explicava. Mas eu estou calmo, perfeitamente calmo. E se cumpro tudo o que a carta manda, se vou entrevir o cupom cor-de-rosa controladora de servio e, depois de fechar as persianas, me sento sozinho no quarto, no o fao, evidentemente, pela razo de no ter fora para contrariar os desejos dela. Uma tal ideia que d vontade de rir. No se passa nada disso. muito simples: primeiro, porque, isolado pelas persianas de todos os sorrisos teraputicos como emplastros, consigo escrever em paz estas notas. Segundo, porque se perder E-, receio perder a chave de todas as quantidades desconhecidas (o incidente do guarda-roupa, a minha morte temporria, etc). E creio ser meu dever descobri-la, pelo menos enquanto autor destas notas; isto para no dizer que o desconhecido , de um modo geral, inimigo do homem e o homo sapiens s homem no sentido pleno da palavra quando a sua gramtica acabar com os pontos de interrogao, ficando s com os pontos de exclamao, as vrgulas e os pontos finais. Assim, guiado por aquilo que julgo ser o meu dever de autor, tomei um aerocarro s 16 horas de hoje e mais uma vez mais voei para a Casa da Antiguidade, nos dentes dum vento forte. O aero avanava com dificuldade atravs da selva area cujos ramos translcidos zuniam, agitados. A cidade, por baixo de ns, parecia toda feita de blocos de gelo azul. De repente, uma nuvem negra cobriu tudo de sombra; o gelo tornou-se numa massa cor de chumbo que comeou a engrossar. Acontece na primavera, quando nos quedamos beira do rio, esperando que o gelo comece a quebrar, a inchar, a mexer-se, a deslizar rapidamente; mas os minutos passam e o gelo continua parado e sentimos que quem est a inchar somos ns, o corao bate ora mais devagar, ora mais depressa... mas por que estou eu a escrever isto, se afinal de contas no h quebra-gelo capaz de quebrar o mais translcido, o mais slido cristal da nossa vida... No tinha ningum porta da Casa da Antiguidade. Contornei-a e encontrei a velha que servia de guarda postada em frente do Mufi Verde, com a mo em pala sobre os olhos, olhando para cima. Do lado de l do Muro viam-se os tringulos agudos e negros de alguma ave a voar. Piando, lanavam-se contra o Muro, chocavam com a se fosse impenetrvel de ondas eltricas e, uma vez repelidas, fugiam para regressarem logo a seguir. 1 Por entre as sombras oblquas que atravessavam o rosto envelhecido da velha, notei o olhar que me espiava. ] ' No tem ningum aqui... Ningum, ningum! E no costume do senhor aparecer por estes lados. No . j Onde queria ela chegar com este no meu costume .E o despropsito de me tratar como se eu fosse a sombra de algum! Vocs que so todos sombras minhas. Ou no fui eu que povoei com vocs estas pginas que ainda h pouco eram folhas brancas, quadrangulares e desertas? Se no fosse eu, alguma vez seria visto por aqueles que eu vou guiar atravs das veredas estreitas das linhas que escrevi? Como natural, no lhe disse nada disto a ela; sabia por experincia prpria que no h nada mais doloroso do que insinuar num indivduo a dvida sobre a sua realidade, a sua realidade tridimensional. Limitei-me a dizer-lhe secamente que o dever dela era abrir a porta e deixar-me entrar para o ptio. Vazio. Calmo. O vento soprava ao longe (atrs dos muros) como naquele dia em que, ombro contra ombro, os dois num s, emergimos daqueles corredores (se que tudo isso aconteceu na realidade). Segui sob arcos de pedra e o som dos meus passos, depois de ecoar nas abbadas, caa e vinha atrs de mim, dando-me a impresso de ter algum me seguindo. As paredes amarelas, com erupes de tijolos vermelhos, espiavam-me atravs dos culos quadrados das janelas, espiavam-me quando eu abria as portas rangentes das arrecadaes, quando espreitava nas esquinas, nos becos e nas frestas. Um porto numa cerca e um espao vazio: um memorial da Guerra dos Duzentos Anos. Erguendo-se do cho, os ossos descarnados de pedra, as queixadas risonhas das paredes, um fogo antigo com a chamin vertical... Um navio petrificado para sempre no meio das vagas iradas de pedra amarela e tijolo vermelho. Pareceu-me ter visto dentuas amarelas como estas noutra altura, como que submersas na gua, e comecei a pensar quando ter sido. Caa em valas, tropeava em pedras; patas ferrugentas atiravam-se contra o meu uniforme, da testa para os olhos escorriam-me gotas cidas e salgadas de suor. No estava em parte nenhuma! No conseguia descobrir a sada pela qual, da outra vez, tnhamos deixado os corredores. No existe. Mas talvez fosse melhor assim. Havia grandes probabilidades de tudo sair apenas um dos meus sonhos absurdos. Fatigado, coberto de p e teias de aranha, abri a porta que dava para o ptio. De repente, passadas hesitantes atrs de mim, e logo depois, minha frente, os ouvidos- asas rseos e o sorriso em dupla curva de S-. Ento, passeando? perguntou piscando os olhos e espetando em mim as verrumas do olhar, e eu no respondi, sentia uma impresso nas mos. Que tal?... Sente-se melhor? Sinto, obrigado. Parece que voltei ao normal. Ao deixar-me, ergueu os olhos. Atirou a cabea para trs e... assim lhe vi pela primeira vez a ma de Ado. Por cima de ns, a pouca altura, cerca de cinquenta metros, roncavam os aerocarros . Reconheci-os pelo voo lento, a baixa altitude e pelos tubos de observao que faziam lembrar trombas negras de proboscdeos. Reconheci logo que eram dos Guardas. No eram dois ou trs, como de costume, mas onze ou doze (lamento a inexatido deste nmero). Por que que hoje so tantos? atrevi-me a perguntar. Porqu? Ah... Um verdadeiro mdico deve comear a tratar um paciente que ainda est saudvel mas que pode adoecer amanh, ou daqui a uns dias.... ou daqui a uma semana. o que se chama profilaxia. Abanou a cabea e continuou a andar pela piso do ptio, mas a certa altura voltou-se para trs e disse-me por cima do ombro: Tenha cuidado! Estava s. Calma. Vazio. Sobre o Muro Verde rodopiavam as aves e o vento. Que quereria ele dizer com aquela frase? O meu aero voava rapidamente no sentido do vento. Nas nuvens desenhavam-se figuras aqui leves ali pesadas; por baixo, as cpulas azuis e os cubos de gelo de vidro formavam uma massa plmbea cada vez mais avolumada. Noite Abri o manuscrito para introduzir nestas pginas algumas ideias que, julgo eu, sero teis (aos meus leitores) e respeitantes ao grande Dia da Unanimidade, dia que est prximo. Mas conclu que naquele momento no era capaz. Escutava o vento que batia com as asas brancas contra as paredes de vidro, olhava minha volta, esperava. Esperava o qu? No sei. Quando a cara de peixe rsea acastanhada me apareceu no quarto, fiquei muito contente, digo-o com toda a sinceridade. Sentou- se, comps pudicamente uma prega do uniforme entre os joelhos, lambuzou-me todo de sorrisos um bocadinho de sorriso para cada um dos meus refegos e eu senti-me agradavelmente agasalhado. Sabe que hoje, ao entrar na sala de aula (ela trabalhava no Instituto de Educao Infantil), dei com uma caricatura desenhada na parede. Sim, juro que verdade. Fizeram- me parecida com um peixe qualquer. Se calhar, sou mesmo parecida com um peixe. No diga uma coisa dessas! protestei de imediato (e verdade que, vista ao perto, ela no tem qualquer semelhana com um peixe e francamente despropositado o que atrs escrevi sobre a cara de peixe que ela teria). Afinal de contas, vendo bem, no tem importncia. O que grave o ato em si. Como evidente, chamei logo os Guardas. Gosto muito de crianas e tenho para mim que a crueldade constitui a mais difcil, a mais grandiosa forma de amor. Percebe? Percebo perfeitamente! Tudo o que ela dizia estava de acordo com o que eu pensava. No resisti a ler-lhe um trecho extrado da minha Vigsima Entrada que comea por: ficmos a escutar distintamente o chocalhar metlico dos nossos pensamentos. Sem para ela olhar diretamente, vi as suas faces morenas e rosadas crescerem e acercarem-se mais de mim e, logo a seguir, os dedos secos, duros, de certo modo espinhosos, tocarem nas minhas mos. Me d ele, por favor, me d! Fao uma gravao que darei s crianas para que o aprendam de cor. Precisamos ns mais dele do que os venusianos... Ns, sim, hoje, amanh, depois. Olhou em volta e continuou em voz baixa: Ouviu? Dizem que no Dia da Unanimidade... Sim? O que que dizem? perguntei, saltando da cadeira. Que se passa com o Dia da Unanimidade? As paredes acolhedoras deixavam de o ser. Vi-me de repente exposto, no meio da rua, onde o vento desabrido flagelava os telhados e as nuvens negras e oblquas eram cada vez mais baixas e ameaadoras. U- agarrou-me firmemente pelos ombros (e, ao mesmo tempo que racionalizava a minha agitao, percebi que os seus dedos finos tremiam). Sente-se, querido. No se enerve. Que interessa o que se diz? Alm do mais, se precisar de mim, estarei ao seu lado nesse dia. Largarei a escola, entregarei as crianas a outra pessoa e estarei ao seu lado, porque, para mim, voc uma criana que necessita de... No, no! protestei. De maneira nenhuma! Acabaria por me convencer de que sou uma criana, coisa que no sou... No, de maneira nenhuma! (Confesso aqui que eram outros os meus planos para aquele dia.) Sorriu. Bem decifrado, o texto daquele sorriso significava, aproximadamente: Mas que rapaz to cabeudo! Sentou-se. Cabisbaixa. As mos ajustavam com modstia a prega do unif que tinha decado o ficado entre os joelhos. E continuava a falar: Creio que necessrio tomar uma deciso... Para seu bem... Peo-lhe que no me obrigue a tomar uma deciso precipitada... Tenho que pensar melhor... No lhe dei pressa. Apesar de compreender que devia sentir-me feliz e que era uma grande honra ser a coroa de glria de algum que chegava ao entardecer da vida. ... Toda a noite foi povoada por asas de toda a espcie, passei a noite a proteger-me daquelas asas, cobrindo a cabea com os braos o com as mos. Vi tambm uma cadeira. No das modernas, mas de madeira, moda antiga. A passo de cavalo (pata da frente direita e pata traseira esquerda, pata da frente esquerda e pata traseira direita) a cadeira vinha direita minha cama e subia para cima dela; uma coisa incomoda, dolorosa... E amei aquela cadeira de madeira. muito estranho no ser possvel encontrar maneira de curar esta doena dos sonhos ou de os tornar racionais... Ou mesmo teis, porque no?
Vigsima Segunda Entrada Ondas paralisadas Tudo ainda a atingir a perfeio Sou um micrbio Imaginem-se beira-mar. As ondas levantam-se ritmicamente e, de sbito, quando atingem a altura mxima, congelam, ficam paralisadas. Foi um fenmeno to arrepiante e sobrenatural como esse o que presenciamos quando o nosso passeio, estatudo pelas Tbuas dos Mandamentos Horrios, descambou inesperadamente numa tal confuso que foi logo interrompido. Relatam as nossas crnicas que aconteceu o mesmo h 119 anos, quando caiu um meteorito no meio dos passeantes, com grande estrondo e muita fumaa. Andvamos ns a passear segundo o modo costumado ou seja, como os guerreiros que marcham, pintados nos monumentos assrios: mil cabeas, duas pernas perfeitamente sincronizadas, dois braos balanando em sincronia. Do fundo da longa avenida onde zumbe suavemente a Torre Acumuladora veio direita a ns uma formao em quadrado: guardas cabea, dos lados e na retaguarda, e no centro um grupo de trs nmeros cujos uniformes no ostentavam j as placas douradas com os algarismos. Tudo era horripilantemente claro. O relgio enorme que encimava a Torre era uma cara que esperava, na maior das indiferenas, coroada de nuvens e escarrando segundos. s 13.06 em ponto, no interior da formao, gerou-se algum tumulto. Tudo aconteceu muito perto de mim; era fcil ver tudo em pormenor e recordo nitidamente um homem de pescoo esguio, que tinha numa das tmporas uma rede intrincada de pequenas veias azuladas, quais rios num mapa dum pequeno mundo desconhecido... E este pequeno mundo era, aparentemente, jovem. Tinha, pelo visto, reparado em algum que caminhava nas nossas fileiras: ps-se ento nos bicos de ps, esticou o pescoo e parou. Um dos guardas atingiu- o com a centelha azul do seu chicote eltrico; o transgressor soltou um grito lancinante, como dum cachorrinho a ladrar; sucederam-se novas chicotadas de trs em trs segundos, seguidas de novos gritos; uma chicotada seca, um grito. Ns continuvamos a andar ritmicamente, assria, como antes e, perante o espetculo das centelhas em ziguezague, pensei: Tudo na sociedade humana est a atingir uma perfeio infinita... E seu dever atingi-la. Que horroroso instrumento era o antigo chicote e: quanta beleza a deste!... Mas neste momento, como uma porca de parafuso solto duma ro-; da lanada a grande velocidade, saiu das nossas fileiras uma figura' elegante e flexvel de mulher, gritando: Basta! No se atrevam! e avanando para a formatura quadrangular. O que se passou s em paralelo com a queda do meteoro h 119 anos: ficmos todos paralisados e as nossas fileiras transformaram-se em soturnas cristas dei ondas que um frio sbito congelasse. Olhei durante uns momentos para ela, tal como fizeram todos os outros. Ela j no era um nmero; era somente uma criatura humana, existia apenas enquanto substncia metafsica do insulto que acabava de ser cometido contra o Estado nico. Mas um simples movimento (que ela fez rodando as pernas para a esquerda) fez-me ver que conhecia aquele corpo dctil como um chicote; os meus olhos, os meus lbios, as minhas mos conheciam-na, tinha disso a firme certeza. Adiantaram-se dois guardas, procurando cortar lhe o passo. As trajetrias deles e dela iam cruzar-se na calada vtrea, clara, espelhada. O meu corao engoliu em seco, estacou e, sem pensar se tal ato era permitido ou proibido, absurdo ou ajuizado, avancei para o local. Senti em cima de mim dezenas de olhos, esbugalhados de medo, mas isso deu uma fora ainda mais desesperada ao ser brbaro de mos peludas que de mim se libertou e deu em correr cada vez mais rpido. Tinha eu dado um ou dois passos em frente quando ela se voltou... minha frente estava um rosto tremulo, semeado de sardas, com umas sobrancelhas ruivas... No era... no, no era a E-! A alegria desesperada abandonou-me. A vontade que me deu foi gritar: Detenham-na! ou Apanhem-na! mas o que chegou aos meus ouvidos foi o murmrio dos meus lbios. Entretanto, senti no ombro uma mo pesada. Fui levado, detido, ao mesmo tempo que procurava explicar- lhes: Ouam, compreendam, eu julgava que era... Mas como podia eu explicar-me, como explicar-lhes a minha doena, tal como o fiz nestas pginas? Alm do mais, estava extenuado, segui-os obedientemente. Uma folha da rvore, devido a um vendaval inesperado, vai caindo docilmente e, ao cair, rodopia, prende-se s ramarias familiares, aos galhos, aos ns dos troncos; de igual modo, eu agarrava-me a cada uma daquelas cabeas esfricas sem fala, ao gelo transparente das paredes, agulha azul da Torre Acumuladora que penetrava nas nuvens. Neste momento, quando uma pesada cortina estava prestes a cair entre mim e todo aquele mundo resplandecente, vi no muito longe uma cara conhecida e enorme com asas-orelhas cor-de-rosa, flutuando sobre o espelho do pavimento e ouvi-lhe a voz conhecida e grave: Julgo ser meu dever testemunhar que este nmero D- 503 no est em condies de controlar a emoo. Tenho a certeza de que foi arrastado por uma indignao natural... Sim, sim! confirmei, agarrando-me a esta tbua de salvao. At lhes gritei que a detivessem! No gritou coisa nenhuma disse algum atrs de mim. No, mas tive a inteno, juro pelo Benfeitor que tive! Por momentos, as verrumas cinzentas, frias e pequenas dos olhos de S- penetraram em mim. No sei se via dentro de mim a verdade (ou quase) do que eu afirmava ou se tinha alguma razo secreta para me poupar por mais algum tempo. Certo que escreveu um bilhete breve que entregou a um dos guardas que me seguravam e logo trataram de me restituir liberdade, isto , s cerradas e infindas fileiras assrias. A formao quadrangular, com a cara sardenta e as tmporas semelhantes a um mapa geogrfico de pequenas veias, desapareceu na esquina, para sempre. Ns seguimos em frente, como um s corpo com milhes de cabeas e dentro de cada um de ns reinava a suave alegria que constitui, provavelmente, a vida das molculas, dos tomos, dos fagcitos. No mundo antigo, os cristos (nossos nicos predecessores) compreendiam bem o que isso era: a modstia uma virtude, o orgulho um vcio; compreendiam tambm que Ns viemos de Deus, ao passo que o Eu vem do Diabo. L ia eu, pois, caminhando a passo como todos, mas, apesar de tudo, isolado deles. Tremia ainda no seguimento das perturbaes recentes, tal como treme a ponte sobre a qual passou um comboio daqueles de antigamente. Tinha conscincia de mim mesmo. Ora o conhecimento de si, o reconhecimento da prpria individualidade s o tm o olho onde acaba de cair um gro de p, o dedo esfolado, o dente com dores. Quando sos, o olho, o dedo, o dente no tm existncia alguma. No prova isto claramente que a conscincia de si de fato uma doena? possvel que eu no seja um fagcito que, calma e cuidadosamente, devora micrbios (de caras sardentas e tmporas atravessadas por veias azuis); possvel que eu seja um micrbio e, repito, possvel que no meio de ns haja agora milhares de micrbios que se imaginam fagcitos, como eu pretendo s-lo. E se tudo o que se passou (e, propriamente falando, pouca importncia tem), se tudo isto for apenas o princpio, apenas o primeiro meteorito de toda uma srie de pedras em fogo, uivantes, que o Infinito vai lanar sobre o nosso paraso de vidro? Vigsima Terceira Entrada Superiores Dissoluo dum cristal Se ao menos... H (diz-se) flores que florescem uma nica vez em cem anos. Por que no haveria tambm flores que florescessem apenas uma nica vez em mil anos... ou uma nica vez em dez mil anos? possvel desconhecermos o fato por essa nica-vez-em-mil anos nos calhar hoje, precisamente. Ora, ia eu, feliz e contente, a descer a escada, ao encontro do controlador de servio e tudo minha volta, diante dos meus olhos, oram botes a desabrochar rpida e silenciosamente; as cadeiras de braos, os sapatos, as placas douradas, as pequenas lmpadas eltricas, os olhos pretos e penugentos de algum, os facetados balastres da escadaria, um leno cado nos degraus, a pequena mesa da funcionria e, atrs dela, as faces cor de pastel s pintas de U-, tudo isso tinha um ar benfazejo. Tudo era extraordinrio, novo, terno, rseo, mido. U- pegou no meu cupom cor-de-rosa e, atravs do vidro da parede, via-se, pairando sobre a sua cabea, suspenso de um ramo invisvel, uma lua azulada e olorosa. Apontei solenemente para ela e disse: A lua... compreende? U- olhou para mim, depois para o cupom e pude ver o movimento familiar, encantadoramente casto, com que ajeitou o uniforme entre os joelhos esguios. Est com um ar estranho, doente, querido... At porque estranho e doente so uma e a mesma coisa. Anda a arruinar-se a si prprio e no h ningum, ningum, que lhe diga! Aquele ningum era, evidentemente, uma aluso ao nmero do cupom: E-330. Que maravilhosa, que querida, aquela U-! Ests cheia de razo: eu no sou nada prudente, ando mal disposto, ando aflito por causa da alma, sou um micrbio. Mas o florescimento no uma indisposio, vendo bem? O desabrochar do boto no traz mal-estar? E no achas que o espermatozoide o mais horrendo dos micrbios' Subi para o meu quarto. E- estava sentada no clix aberto da cadeira, ao p da cama. Eu abraava-lhe as pernas, reclinava a cabea nos seus joelhos. Estvamos calados. Calma; o galope das pulsaes. E eis que me tornei num cristal e me dissolvi nela, em E-. Senti com perfeita clareza as arestas polidas que me definiam no espao fundirem-se, dissolverem-se completamente. Desvanecia- me, dissolvia-me nos joelhos dela, nela; ia-me tornando pequeno, cada vez mais pequeno... E ao mesmo tempo crescia, expandia-me mais e mais, tornava-me incomensurvel. Ela tinha deixado de ser ela para ser todo o universo. Por momentos, eu e aquela cadeira extaticamente trespassada ramos uma s coisa. E a velha que se desfazia em sorrisos na Casa da Antiguidade, e as florestas selvagens e impenetrveis do lado de l do Muro Verde, e certas runas de prata sobre fundo negro, sonolentas como a velha, e a porta que se fechava l muito ao longe tudo isso estava dentro de mim, tudo estava unido a mim, escutando as pulsaes e levantando voo naquele segundo de felicidade... Com palavras absurdas, confusas, submersas, tentei dizer-lhe que era cristal e que por isso havia uma porta dentro de mim e que por isso sentia quo feliz era a cadeira. Mas resultava tudo num discurso to sem sentido que, envergonhado, me calei, para, de repente, lhe dizer depois: Querida E-, me perdoa-. No consigo entender... digo tantos disparates... Mas porque hs de tu pensar que o disparate no uma coisa boa? Se, ao longo dos sculos, tivssemos cuidado e alimentado a tolice, tal como cultivmos a inteligncia, possvel que o resultado fosse algo de muito precioso. Sim... Achei que era verdade; mas tambm naquele momento, poderia ela dizer alguma coisa que o no fosse? Pelas tuas tolices... por aquilo que fizeste ontem durante o passeio... por isso eu te amo cada vez mais... Mas ento porque me torturas; porque no vieste; porque me devolveste os cupons cor-de-rosa; porque me obrigaste a...? E se eu tivesse necessidade de te pr prova? E se eu tivesse necessidade de saber que tu fazes tudo quanto eu te mando... que s completamente meu? Sim, sou teu... Todo teu. Segurou-me a cabea com as duas mos e ergueu-a: E as tuas obrigaes de nmero honesto? Diz l. Dentes doces, afiados, brancos; um sorriso. No clix aberto da cadeira tinha o ar duma abelha... No lhe faltava o ferro... Nem o mel. As obrigaes, sim. Mentalmente, rememorei as pginas das ltimas entradas; vendo bem, no havia nelas ideia alguma sobre a obrigao de... Calei-me. Arrebatado (provavelmente, atoleimado), sorria, fitava as pupilas dela, ora uma, ora a outra, vendo- me nelas refletido. Eu, minsculo, milimtrico, aprisionado naqueles torrees minsculos, iridicentes. E, ao mesmo tempo, aqueles lbios de abelha, a deleitosa dor da florescncia. Em cada um de ns, nmeros, h um metrnomo que mal se v e mal se ouve; sem termos que olhar para qualquer relgio, sabemos as horas, mais minuto, menos minuto. Mas o meu metrnomo nessa altura estava avariado e eu no sabia h quanto tempo ela se encontrava ali comigo e, assustado, tirei de debaixo do travesseiro a minha placa com relgio. Louvado seja o Benfeitor: tinham decorrido apenas vinte minutos! Mas aqueles minutos tinham sido to escassos que davam vontade de rir; eram curtos, fugiam, e eu tinha ainda tanta coisa para contar. Tinha que lhe contar tudo, tinha de me entregar todo no que ia contar-lhe; dar-lhe conhecimento da carta de 0- e daquela horrvel noite em que lhe fiz um filho; e, no sei bem porqu, ia ter de lhe contar a minha vida desde a mais tenra idade: falar do matemtico Plyappa, da Unanimidade, de quando desatei a chorar amargamente nesse dia de festa, e outra vez por causa do 1 e por me ter cado no uniforme uma ndoa de tinta. E- levantou a cabea, reclinando-a no cotovelo. Os dois traos finos que tinha aos cantos dos lbios e os ngulos negros das sobrancelhas formavam uma cruz. Talvez naquele dia... comeou, mas deteve-se logo, carregando ainda mais o sobrolho, apertando-me a mo, posto o que prosseguiu: Responde-me: no vais esquecer-te de mim? Vais recordar-te sempre de mim? Porque me dizes isso? Aonde queres chegar, querida E-? No respondeu, mas os olhos dela, fitando-me, trespassaram-me, remotos. De sbito, ouvi o vento bater as asas enormes contra o vidro ( claro que ele rugia h j muito tempo, mas eu s ento o ouvi) e, no sei bem porqu, recordei os pios agudos das aves sobre o Muro Verde. E- abanou a cabea, como a libertar-se de ideias sombrias. Mais uma vez, por instantes, o corpo dela entrou em contato com o meu... assim como quando um aerocarro toma contato momentneo com o solo antes de aterrar. Bom, me passa a as meias, depressa. As meias dela estavam em cima da minha mesa, sobre este manuscrito, aberto na p. 193. Precipitando-me, bati no manuscrito, as pginas espalharam-se por todo o lado e no me sinto capaz de as pr de novo por ordem e, ainda que conseguisse, no seria a verdadeira ordem... Deveria haver certas lacunas, alguns hiatos, alguns X. No suporto que as coisas continuem assim avisei Ests aqui ao meu lado, mas tenho a impresso de que ests atrs de uma daquelas paredes opacas da antiguidade; ouo rudos e vozes do outro lado desse muro e no percebo nada do que se diz, no sei o que est a acontecer. No suporto isso. Dizes tudo por meias palavras; nunca me disseste onde que eu estive, na Casa da Antiguidade, nem qual era a funo daqueles corredores, nem como aquele mdico foi parar l... Ou ser que nada disso aconteceu? E- pousou as mos nos meus ombros; lentamente, fitou- me nos olhos: Queres saber tudo? Quero, sim. Preciso, saber. E voc no ter receio de me seguir para onde quer que eu v, at ao fim, para onde quer que eu te leve? Irei para qualquer lado! Perfeito. Est prometido: assim que terminar a festa da Unanimidade, se... ah, sim, e o INTEGRAL? Nunca me lembro de te perguntar... ele est quase pronto? No. Continua falando: o qu tem isso? Queres ver- te livre de mim outra vez? Ou o qu? J perto da porta, disse: Vers por ti prprio. Fiquei s. Ela no deixou atrs de si coisa alguma a no ser uma fragrncia quase imperceptvel, assim como o plen seco e doce de certas flores que crescem do outro lado do Muro Verde. Isso e determinadas interrogaes prendiam-se a mim obstinadamente, como aqueles ganchos de que os antigos se serviam para pescarem peixes (h alguns expostos no Museu Pr-histrico). ...Porque me ter ela feito aquela pergunta sobre o INTEGRAL? 126 Vigsima Quarta Entrada Limites duma funo Pscoa Destru tudo Sou uma espcie de mquina forada a rodar excessivamente: os eixos esto ao rubro; mais um minuto e o metal quente comear a derreter, ficar tudo desconjuntado. Depressa: que da gua da lgica? Despejo alguns baldes da gua da lgica sobre a mquina, mas ela, assobiando ao contato com o metal, sobe no ar em forma de vapor fugidio e branco. Pois : para se atingir o verdadeiro significado da funo, preciso ter em considerao quais os seus limites. E evidente que a absurda dissoluo no universo ontem referida, ser a morte, se for levada at ao limite. At porque a morte precisamente a nossa dissoluo total no universo. Ergui, se Amor for A e a Morte for M, teremos: A = f(M), ou seja, amor e morte... Sim, isso mesmo! E por isso que eu tenho medo de E-, por isso que luto contra ela, porque no quero morrer. Mas porque que, simultaneamente, quero e no quero? A que est o horror, em sentir que quero aquela bendita morte por que passei ontem; o horror est precisamente, agora mesmo, no fato de, apesar de ter recuperado a funo lgica e ser evidente que a morte uma componente oculta de tudo isto, eu no deixar de desejar E-; os meus lbios, os meus braos desejam-na, deseja-a o meu peito, cada milmetro de mim... Amanh o Dia da Unanimidade; ela vai aparecer por l, evidentemente; vou v-la, mas s de longe. De longe: vai doer, porque eu tenho que estar ao lado dela, porque sou irresistivelmente atrado por ela, para que as mos, o ombro, o cabelo dela... Mas desejo tambm esta dor da distncia. Que ela venha! Que absurdo este, Grande Benfeitor! Desejar sofrer! Quem no v que as sensaes dolorosas so quantidades negativas que, somadas, diminuem aquilo a que chamamos felicidade? E, consequentemente... Mas deixemo-nos de consequentementes. Tudo simples. Tudo puro. Noite Um pr-do-sol febril, ventoso, inquieto, visto atravs das paredes de vidro do prdio. Fiz girar a cadeira para no encarar de frente com o poente rseo e comecei a folhear este manuscrito, tendo ento reparado num esquecimento: esqueo-me de que no estou a escrever para mim mas para os meus leitores desconhecidos, a quem muito quero e de quem tenho pena, que labutam, l longe, nas idades remotas e submersas. Falemos, pois, do grande Dia, do Dia da Unanimidade. Sempre gostei dele, desde criana. Tenho a impresso de que ele para ns uma festa parecida com a Pscoa que os antigos celebravam. Lembra- -me que, na vspera desse Dia, se estabelecia todo um calendrio, hora a hora, e que, com exaltao, riscvamos depois cada hora que se cumpria: menos uma hora para tudo se consumar. Juro: se tivesse a certeza de no ser visto por ningum, fazia hoje mesmo um calendrio desses, para ir riscando as horas que faltam para amanh, porque amanh vou v-la, embora distncia... (Uma interrupo: Vieram trazer-me um novo uniforme, vindo da fbrica, novo em folha. costume distribuir por todos ns uniformes novos com vista ao dia de amanh. Passos no vestbulo, exclamaes de prazer, um ypy-ypy- urra.) Prossigo. Vou amanh ver o espetculo repetido ano aps ano, mas que nos parece sempre novo: a imensa taa da harmonia, os braos erguidos reverentemente. Amanh o dia da eleio anual do Benfeitor. Amanh confiaremos uma vez mais ao Benfeitor as chaves da inexpugnvel cidadela da nossa felicidade. Claro est que no h nisto a mnima semelhana com as eleies desordenadas que os antigos organizavam e (como divertido dize-lo!) cujo resultado no era previamente conhecido. Edificar um Estado sobre acasos incalculveis, s cegas: haver coisa mais insensata? E todavia passaram sculos antes de se compreender um fato to simples. Ser necessrio dizer que numa ocasio destas, como em todas as outras, nada deixado ao acaso, nada acontece que no seja previsto ou programado. As eleies tm um significado que acima de tudo simblico: recordam-nos que somos um organismo poderoso, com milhes de clulas, que somos (falando a linguagem do Evangelho dos antigos) a nica Igreja. Alm do mais, a histria do Estado nico no registra um nico exemplo de vozes que tenham ousado violar a majestade do coro unssono deste Dia solene. Diz-se que os antigos faziam as eleies deles de maneira secreta, escondendo-se como salteadores, e alguns dos nossos historiadores dizem at que os antigos iam votar cuidadosamente mascarados (imagino um espetculo fantasticamente soturno; noite; uma praa; figuras negras encapotadas cosidas com as paredes; tochas acesas, com chamas negras e rubras bailando ao vento). No foi at hoje claramente definida a necessidade que eles tinham de tanto mistrio; o mais provvel ser estarem estas eleies relacionadas com certos rituais msticos, supersticiosos, possivelmente criminosos. Pela nossa parte nada temos a esconder, no temos de que nos envergonhar; celebramos as nossas eleies abertamente, honestamente, luz do dia; eu vejo como todos votam no Benfeitor e todos veem como eu voto no Benfeitor... Como poderia no ser assim, quando todos e eu somos um s Ns. Quanto mais nobre, sincero e sublime isto do que aquele mistrio covarde e suspeito dos antigos? E quanto mais expedita no a nossa maneira de proceder! Ainda que acontecesse o impossvel (como sejam certas dissonncias na nossa monotonia habitual), l esto os guardas, invisveis, no meio de ns, e eles sabem determinar imediatamente quais os nmeros que caem no erro, saberiam evitar-lhes maus passos, salvando assim o Estado nico. E, finalmente, h uma outra coisa... Atravs da parede, esquerda, vejo um nmero fmea a desabotoar precipitadamente o uniforme. De relance, vejo-lhe os olhos, os lbios, dois botes de rosa eretos. Fecha-se depois a persiana; todos os acontecimentos de ontem vm bruscamente ao meu encontro e no sei qual aquela outra coisa a que me queria referir e no quero escrever sobre ela... No quero! S quero uma coisa, uma nica: E-. Quero que ela, sempre, a todo o instante, esteja comigo e s comigo. E aquilo que atrs escrevi sobre a Unanimidade, tudo desnecessrio, no est nada certo; sinto que quero desfazer tudo, fazer tudo em pedaos, esmagar tudo. At porque sei ( blasfmia mas verdade) que essa festa s ser festa se for com ela, se ela estiver ao meu lado, ombro a ombro comigo. Sem ela, o sol de amanh ser um disco de lata e o cu ser uma folha de lata pintalgada de azul, e eu prprio... Pego no auscultador do telefone: s tu, E-? Sou eu, sim. Porque que me telefonou a estas horas? Talvez no seja tarde. Queria s pedir-te... Quero que passes comigo o dia de amanh. Querida... Disse querida baixinho. E, no sei porqu, veio-me ento memria uma coisa que esta manh se passou no estaleiro de construo do INTEGRAL. Algum, para se divertir, tinha colocado um relgio sob um martelo de cem toneladas.... Um movimento do martelo, um vento no rosto e, suavemente, o contato de cem toneladas com o relgio frgil. Pausa. Tive a impresso de ouvir algum murmurar l no quarto de E-. E ouvi ento a voz dela: No, no posso fazer isso. Compreendes certamente que eu prpria... No, no posso? Voc ver amanh. noite.
Vigsima Quinta Entrada Descida do cu A maior catstrofe da histria Chegou ao fim o conhecido Quando, na abertura das celebraes, todos se puseram de p, quando centenas de tubos da Oficina Musical e milhes de vozes humanas estenderam o Hino sobre as nossas cabeas, como um dossel ondulante e imponente, esqueci durante alguns segundos tudo o mais; esqueci o que E- tinha me dito sobre o dia de hoje; esqueci at, creio, a prpria E-. Naquele momento, fui de novo o mido que noutros tempos chorava por ter uma mancha no uniforme, uma mancha to insignificante que s ele a via. Muito embora ali minha volta ningum visse as manchas negras e indelveis que agora me cobriam, ou sabia perfeitamente que para mim, criminoso que era, no havia j lugar entre aqueles semblantes francos e abertos. Ah, se eu pudesse erguer-me e, com a voz embargada, libertar o peito, confessando, aos gritos, tudo o que tenho aqui dentro! Que tudo acabe depressa... Mas, por momentos, gostaria de me sentir puro, com o esprito sem nuvens, como este cu limpo e azul. Todos os olhos se levantaram para o ponto em que, no azul puro e imaculado da manh, mido ainda das lgrimas da noite, aparecia a sombra quase imperceptvel, ora negra, ora iluminada pelos raios do sol. Era Ele, o novo Jeov, no Seu aerocarro, quase to sbio e to cruelmente bondoso como o Jeov dos antigos, era Ele que do cu descia at ns. Aproximava-se cada vez mais e milhes de coraes erguiam-se ao encontro dele. Todos estvamos diante dos Seus olhos e, mentalmente, eu contemplava tudo quanto os olhos dele viam l do alto: os crculos concntricos (marcados por uma linha azul descontnua) das tribunas, semelhantes aos crculos duma teia de aranha semeada de sis microscpicos (isto , o sol refletido nas nossas placas de identificao). E no centro da teia uma Aranha branca e sbia prestes a aterrar: o Benfeitor vestido todo de branco, Aquele que sabiamente nos envolveu a todos, nos atou de ps e mos, no casulo, nas malhas benficas da felicidade. Mas terminou a magnificente descida dos cus; o clangor do Hino calou- se, e todos se sentaram. E de repente percebi tudo: a teia de aranha era de uma fragilidade extrema, toda ela estremecia e esticava, no tardaria a acontecer o imprevisvel... S erguendo-me um pouco, olhei em volta e o meu olhar encontrou olhares amavelmente inquietos, passando de rosto em rosto. A, um nmero levantou a mo e, movendo imperceptivelmente os dedos, assinalou qualquer coisa a outro que, em resposta, fez com os dedos outro sinal. E juntou- se- lhes um terceiro... Compreendi o que se passava: eram todos guardas. Compreendi tambm que estavam alarmados com qualquer coisa: a teia de aranha estava tensa, vibrava. E, dentro de mim, como num rdio regulado para o mesmo comprimento de onda, houve uma vibrao. Num estrado, um poeta recitava uma ode pr-eleitoral, mas eu no ouvia uma nica palavra, ouvia apenas o balanar do pndulo hexamtrico e pensava que, a cada uma das suas oscilaes, se aproximava mais e mais a hora aprazada. Percorri febrilmente todos os semblantes das nossas fileiras, como se cada rosto fosse uma folha escrita, mas no conseguia encontrar a nica, aquela que procurava, e era absolutamente necessrio encontr-la o mais depressa possvel, porque o pndulo ia soar muito em breve e ento... Era ele... tinha que ser ele. L em baixo, atrs do estrado, deslizando pelo vidro reluzente, passaram as rseas orelhas; o corpo fugaz tinha a forma duma dupla curva negra como a letra S. Procurava lugar numa das passagens labirnticas entre as tribunas. Entre S- e E- havia um vnculo qualquer; tenho a certeza de que h um vnculo, s no sei de que natureza , mas h- de chegar o momento de o descobrir. No tirei os olhos dele: ele era uma bola em movimento e levava atrs de si o fio... Parou ali... Senti-me trespassado, embrulhado em mim prprio, atingido por uma descarga de alta voltagem. Na nossa fila, a uns quarenta graus de mim, S- parou e fez uma vnia. Vi E- e, logo ao lado dela, R-13, com os beios repelentemente negroides, sorrindo. A minha primeira ideia foi correr para ela e gritar-lhe: Porque que ests hoje com ele? Porque no me quiseste a mim? Mas eu estava amarrado de ps e mos dentro duma benfica teia de aranha e no me pude mexer; cerrando os dentes, fiquei sentado, como se fosse de ferro, sem tirar os olhos do grupo. Recordo, como se fosse agora, a dor fsica, pungente, que ento senti no corao. Lembro-me de ter pensado de mim para mim: Se uma dor fsica pode ter causas no-fsicas, evidente que... Infelizmente, no tive tempo para tirar a concluso. S me recordo de que me passou pela cabea a ideia de alma e um dito dos antigos, a alma a cair aos ps de algum. Contive a respirao. Tinham-se calado os hexmetros. la comear outra coisa... O qu? Havia um intervalo de cinco minutos antes da eleio, era um costume estabelecido. O perodo pr-eleitoral de silncio era um costume estabelecido. Mas o silncio no era respeitoso, piedoso, como das outras vezes; era como no tempo dos antigos, nos dias em que se desconheciam as Torres Acumuladoras, em que o cu, ainda indomado, era frequentemente abalado pela borrasca. Naquele momento, reinou a calma que antecede a tempestade, to conhecida dos antigos. A atmosfera era de ferro transparente em fuso. Dava vontade de respirar com a boca toda aberta. O ouvido, to tenso que doa, registrava um sussurro inquietante, como o de um rato a roer. Sem levantar os olhos, continuei a observar os dois, E- e R-, um junto do outro, ombro contra ombro, enquanto um par de mos peludas, mos que me eram alheias, que eu abominava, tremiam em cima dos meus joelhos... Todos os nmeros seguravam na mo as placas-relgios. Um. Dois. Trs... Cinco minutos se passaram. No estrado fez-se ouvir uma voz arrastada e metlica: Quem for a favor... queira levantar a mo. Desejei olh-Lo nos olhos como noutros tempos e dizer- Lhe firme e devotadamente: Aqui estou. Sou todo teu. Aceita -me! Mas no me atrevi. Foi com esforo, como se tivesse todas as articulaes atrofiadas, que levantei a mo. Milhes de mos se levantaram. Ouviu-se um Ah abafado e senti que tinha comeado qualquer coisa, que alguma coisa se tinha virado do avesso, mas no entendi o que fosse, e faltava-me energia, faltava-me coragem para olhar... Quem contra? Este era sempre o momento mais importante da celebrao: todos permaneciam sentados, imveis, felizes, cabisbaixos sob o beneficente jugo do Nmero dos Nmeros. Mas naquele instante, horrorizado, ouvi um rumor, um rumor dbil, como um suspiro, mas mais ruidoso do que as trombetas de cobre do Hino. assim, quase inaudvel, o suspiro derradeiro do homem, quando os rostos dos que o rodeiam empalidecem e as frontes se lhes cobrem de suor frio. Ergui os olhos... e... Foi tudo num centsimo de segundo, com a espessura dum fio de cabelo. E vi: milhares de mos no ar, como asas, levantadas, contra. Que se baixaram. Vi: o rosto plido de E-, marcado por uma cruz, e a mo dela levantada. Tudo minha frente ficou s escuras. Outra espessura de cabelo; uma pausa; tudo calmo; o pulso a latejar. E ento... em todas as tribunas, como se um estranho maestro tivesse dado o sinal, barulho, gritos, num turbilho de uniformes em fuga, guardas a correr de um para outro lado, taces de sapatos no sei de quem voando mesmo diante dos meus olhos... e juntamente com os taces a boca escancarada de algum soltando um grito inaudvel.' E, no sei porqu, gravadas profundamente na minha memria, milhares de bocas abertas em gritos inaudveis, uma espcie de filme mudo projetado numa tela enorme. E, tal como num tela, mais perto de mim, por momentos, um plano dos lbios sem cor de 0-. Estava cosida contra a parede, numa das passagens, protegendo o ventre com as mos cruzadas. E dessa o -1 pereceu logo a seguir... sumiu-se... ou ento fui eu que me esqueci dele, porque... No era j numa tela, era dentro de mim prprio, no meu corao apertado, dentro das minhas tmporas, que comeava a latejar. De repente, R-13 saltou para uma bancada, acima da minha cabea, esquerda, afogueado, congestionado, com os lbios midos. Levava nos braos E-, plida, com o uniforme rasgado entre o ombro e o seio e com a roupa interior manchada de sangue. Agarrava-se toda a ele que, dando grandes saltos de banco para banco, repugnante e gil como um gorila, a levava para o ponto mais alto das bancadas. Tal como acontecia nos incndios dos tempos antigos, tudo minha frente se tornou vermelho, vermelho- escuro, e assaltou-me uma nica ideia: correr atrs deles, segui-los. No consigo nem mesmo agora explicar a mim prprio onde foi buscar energia, mas um fato que rompi pelo meio da multido como um arete, pulei de bancada em bancada, pus o p nos ombros de no sei de quem... consegui assim chegar junto deles e agarrar R- pelo colarinho: No te atrevas! No te atrevas! J te disse! Saia... Felizmente, no se ouvia a minha voz, estavam todos ocupados com os seus gritos, corria cada um por onde podia. Quem ? Que se passa? O que que... disse R-, voltando- -se para trs, com os lbios midos, trmulos, provavelmente convencido de que tinha sido agarrado pelos guardas. O qu? J disse o que ... No permito... No quero nada disto! Trata de largar ela j! Ele limitou-se a fazer um barulho com os beios, meneou a cabea e seguiu em frente. Nessa altura (sinto vergonha em escrev-lo, mas creio que tenho obrigao, obrigao absoluta, de o escrever, para que os meus desconhecidos leitores estudem a minha enfermidade at ao fim), nessa altura recuei e dei-lhe um murro na testa. Perceberam? Dei-lhe um murro. Lembro-me perfeitamente. E recordo- me igualmente de uma sensao de libertao, de bem- estar, em todo o meu corpo, em consequncia desse murro. E- libertou-se ento lepidamente nos braos dele. Vai-te embora! disse ela a R-. J viste que ele... Vai embora, R-, saia! R-, mostrando uma dentadura branca como a de um negro, cuspiu algumas palavras na minha cara, virou costas e desapareceu. Eu tomei E- nos braos, estreitei-a contra o peito e levei-a dali. O meu corao batia com fora. A cada pancada, eu sentia subir em mim qualquer coisa como... uma vaga desenfreada, quente, radiosa. Que se me dava a mim que tudo l em baixo se desfizesse em mil pedaos?... No me importava nada! O que me importava era lev-la dali, lev-la comigo, nunca a largar... Na mesma noite (22 h) Mal consigo segurar a caneta... To fatigado me sinto dos acontecimentos vertiginosos desta manh. Ser possvel que tenham rudo os salutares e centenrios muros do Estado nico? Ser possvel que estejamos outra vez sem proteo, na selvagem condio da liberdade, como o estiveram os nossos remotos antepassados? Ser possvel que j no exista o Benfeitor? Contra, contra, no Dia da Unanimidade. Estou envergonhado, dolorido, apavorado. Mas ento quem so eles? E quem sou eu, eu prprio? Estou com os eles ou com os ns? Como posso eu saber? Ela estava sentada no banco, ao sol ardente, no alto da tribuna superior para onde eu a tinha levado. O ombro direito e o alto da curva maravilhosa, incalculvel, que se seguia, estavam desnudos e, sobre a carne, ondeava a mais fina das serpentes, uma serpente rubra de sangue. Pelos vistos, ela no se deu conta do sangue, pelo ferimento no peito... Ou, mais grave ainda: via perfeitamente, mas era disso que ela precisava e, se o uniforme estivesse abotoado, t-lo-ia rasgado pressa, por certo... Mas amanh dizia ela, ofegante, por entre os dentes finos, cerrados, luminosos ... O qu? Ningum sabe o que vai acontecer amanh. Entendeu?... No sei, ningum sabe... ignoramos tudo ! J percebeste que chegou ao fim o conhecido? Daqui para a frente, ser o novo, o impossvel, o prodigioso! L em baixo a multido agitava-se, corria, gritava. Mas tudo isso era para mim distante, cada vez mais distante, porque ela estava a olhar para mim e, lentamente, puxava-me para dentro de si, atravs das douradas janelas das suas pupilas. Assim nos quedmos muito tempo, em silncio. No sei porqu, lembrei-me de uma vez ter visto, atrs do Muro Verde, umas pupilas amarelas e incompreensveis, enquanto as aves pairavam por sobre o Muro (a no ser que tenha visto as aves numa outra altura). Ouve: se amanh no acontecer nada fora do normal, vou te levar l... entendeu? No, no entendi. Mas, sem abrir a boca, respondi que sim. Estava desfeito, no passava de um ponto geomtrico, infinitesimal... Vendo bem, esta condio de ponto tem a sua lgica, a lgica deste dia: um ponto possui em si mais desconhecido do que outra coisa qualquer. Basta-lhe mover-se, deslocar-se, para se transformar em centenas de corpos slidos, em milhares e milhares de curvas. A ideia de me deslocar assusta-me: vou transformar-me em qu? Quer-me parecer que todos receiam tanto o movimento quanto eu o receio. Agora mesmo, enquanto escrevo, os nmeros esto todos presos nas suas jaulas de vidro, acocorados, espera. No se ouve o zumbido do elevador, habitual a esta hora; no se consegue ouvir um riso, um passo. De vez em quando ouo nmeros, dois a dois, a andar no corredor, espreitando por cima do ombro, sussurrando... Que ir acontecer amanh? Que vai ser de mim amanh?
Vigsima Sexta Entrada O universo existe Erupo Quarenta e um graus centgrados Manh. Atravs do telhado v-se o cu to firme, redondo, rubicundo como sempre. Creio que teria ficado menos espantado se tivesse visto um sol diferente, quadrado, ou as pessoas vestidas com peles berrantes de animais, ou as paredes feitas de pedra opaca. Querer isto dizer que o universo, o nosso universo, ainda existe? Ou ser um fenmeno de inrcia: o gerador parou, mas a roda continua a girar... Uma volta, duas voltas... quarta, ser o fim... Sabem o que acordar de noite, abrir os olhos no escuro e sentir de repente que estamos perdidos? Comeamos ento, o mais rapidamente possvel, a tatear nossa volta, cata de qualquer coisa familiar e slida... uma parede, um candeeiro, uma cadeira... Foi essa exatamente a sensao que tive ao procurar na Gazeta do Estado nico, to depressa quanto possvel, e ao descobrir isto: O Dia da Unanimidade, to impaciente e universalmente esperado, celebrou-se ontem. O mesmo Benfeitor que tantas e tantas vezes provou a sua inegvel sabedoria, foi unanimemente eleito pela 48? vez. A cerimnia foi marcada por alguns distrbios provocados pelos inimigos da felicidade, que com tal faanha se privaram do direito de ser pedras dos alicerces do edifcio, ontem renovado, do Estado nico. para todos os nmeros evidente que ter em considerao os votos destes delinquentes seria to absurdo como incluir numa sinfonia magnfica e heroica a tosse de alguns enfermos que casualmente se encontravam na sala do concerto. Oh Sapientssimo! Ser possvel que, no meio de tanta coisa, estejamos salvos? Ser ento possvel pr objees ao mais cristalino dos silogismos? Mais adiante, estas poucas linhas: Hoje, s 12h, realiza-se uma sesso conjunta dos Postos Mdicos e Administrativos e do Posto dos Guardas. Est prevista a sada dum decreto importante referente ao Estado nico. Mas ento os Muros continuam de p; c esto eles, posso at tocar-lhes com os dedos. E no h j aquela sensao de me ter perdido, de estar ningum sabe onde, de ter perdido o rumo, no acho nada estranho que o cu seja azul, o sol redondo, ou que toda a gente saia como de costume para ir trabalhar. Caminhando ao longo da avenida, os meus passos eram particularmente firmes, sonoros... E parecia-me que todos caminhavam com firmeza igual minha. Mas ao chegar ao cruzamento onde tinha de virar, vi que todos passavam para outra rua, vi as pessoas a afastarem-se do edifcio, como se tivesse arrebentado um cano e dele casse gua fria, tornando o passeio intransitvel. Andei mais cinco, dez passos, e a gua fria molhou-me, afastando-me para fora do passeio. Na parede, a uma altura de uns dois metros, mais ou menos, estava um quadrado de papel e, nele, estas letras incompreensveis, de um verde venenoso: M E P H I e aqui em baixo vi umas costas curvas em forma de S e umas orelhas- -asas que se agitavam com transparente irritao. Com o brao direito no ar e o esquerdo descado para trs, como se fosse uma asa ferida, S- fazia esforos para arrancar o papel, no o conseguindo por pouco. provvel que mente de todos quantos passavam ocorresse a mesma ideia: Se, entre todos os nmeros, for eu o nico a aproximar-me, ele pode pensar que sou culpado e que por isso que quero auxili-lo... Confesso que tambm eu pensei isso. Mas lembrei-me das muitas vezes em que ele tinha sido o meu Anjo-da- guarda, das muitas vezes em que me tinha socorrido e, cheio de coragem, aproximei-me, estendi a mo e arranquei o papelinho. S- voltou-se imediatamente e espetou logo as verrumas dos olhos em mim, espetou-as at ao fundo e extraiu de mim no sei o qu. Abriu depois a sobrancelha esquerda e piscou o olho, como que a apontar para a parede onde tinham estado presas as letras MEPHI. E vi a cauda do seu sorriso abanar, parecendo-me (o que me espantou) que era desta feita um sorriso de contentamento. Mas que havia nisso de espantoso? O mdico prefere sempre uma erupo e uma febre de 40 centgrados a uma temperatura que sobe lentamente, em perodo de incubao. A temperatura alta, pelo menos, deixa bem clara a natureza da doena. Aquele MEPHI que esta manh surgiu nas paredes uma erupo. Compreendia- se que ele sorrisse. A escadaria que levava ao metro. Sob os meus ps, no vidro imaculado dos degraus, uma pequena folha branca: MEPHI. E no muro do cais de embarque, num banco, num espelho da carruagem (escritos, evidentemente, pressa, descuidada e tortuosamente): por todo D lado a mesma borbulhagem branca e assustadora. No silncio, o guincho distinto das rodas era uma espcie de san- ijue a latejar em febre. Um nmero a quem tocaram no ombro teve um sobressalto e deixou cair um mao de papis. Um outro nmero, minha esquerda, lia a mesma linha do jornal, no tirava os olhos da mesma linha, e o jornal tremia imperceptivelmente. Senti o pulsar de tudo: das rodas, das mos, dos jornais, das plpebras, tudo latejava a olhos vistos e possvel que hoje, quando me encontrar com E- naquele lugar, a temperatura tenha subido at 39, 40, 41 que o termmetro assinala com traos negros. No estaleiro do INTEGRAL reinava o mesmo silncio, zumbindo como um propulsor distante e invisvel. As mquinas permaneciam em silncio, pareciam amuadas. S os guindastes, quase inaudveis, se moviam como em bicos de ps, baixando-se, apanhando com as garras blocos azuis de ar congelado e colocando-os nos depsitos do INTEGRAL. Preparvamos um voo experimental. Ento, conseguimos carreg-lo numa semana? Fiz a pergunta ao Adjunto. Este tem uma cara de faiana, decoraria com florinhas azuis e cor-de-rosa clarinho (os olhos, os lbios), mas hoje apresentavam-se murchas, de certo modo apagadas. Fazamos clculos em voz alta sobre os cubos de ar gelado quando, subitamente, a meio duma palavra, parei, ficando de boca aberta: vi um papel branco quase imperceptvel sob um bloco azul de ar congelado que um guindaste tinha recolhido, exatamente sob a cpula. Senti um estremecimento no corpo todo, provavelmente de riso. Sim, era riso: ouvi as minhas prprias gargalhadas. (J experimentaram a sensao de ouvir as prprias gargalhadas?) Oua uma coisa ousei dizer. Imagine que est num avio daqueles antigos; o altmetro marca 5000 metros; partiu-se uma das asas, est a cair como um pombo de asas partidas e a gente, ao mesmo tempo que ele vai caindo, voc faz contas vida: Amanh, entre o meio-dia e as duas vou ter que fazer isto e isto... das 2 s 6, isto e aquilo... s 6 o jantar... Diga l se lhe parece ridculo ou no.
Vigsima Stima Entrada No h sumrio impossvel! Eu estava sozinho nos corredores infindos, os mesmos corredores, de cimento armado. Algures pingas de gua na pedra. A porta conhecida, opaca e, atrs dela, um rudo abafado. Tinha-me dito que se encontrava comigo s 16h em ponto. Mas passam j cinco minutos, dez, quinze minutos, e no veio ningum. Por instantes, fui o meu outro eu, o que ficava assustado quando a porta ia abrir- se. Mais cinco minutos, e acabou-se, se ela no vier... Algures pingas de gua na pedra. Ningum apareceu. Bastante contente, sinto que estou salvo. Procuro sair do corredor, devagar. A linha trmula das lmpadas eltricas dispostas no teto torna-se cada vez mais plida. De repente, atrs de mim, uma porta bateu ruidosamente e soa- iam passos rpidos, que ecoam na abbada, nas paredes: era ela, voando para mim, sem flego. Eu sabia disse ela , sabia que estavas aqui, que tinhas vindo! Eu sabia que tu... tu... Abria-me as persianas dos seus olhos, deixando-me entrar e... Como poderei eu descrever os efeitos deste rito antigo, absurdo, maravilhoso, quando os lbios dela tocam nos meus? Que frmula me permitir exprimir este turbilho que da minha alma varre tudo quanto no seja ela? Da minha alma, sim... riam -se de mim, se quiserem. Lentamente, com esforo, abriu os olhos e disse com dificuldade, lentamente: No, j chega... Depois... Agora, eu tenho que ir. Abriu-se uma porta. Uma escada a descer, antiga. Uma barulheira insuportvel. Silvos. Uma luz ofuscante... Passaram quase vinte e quatro horas; tive tempo para refletir, mas continua a ser dificlimo dar uma descrio sequer aproximada do que aconteceu. Foi como se tivesse havido uma exploso na minha cabea; e junto a mim acumulam-se bocas abertas, asas, gritos, folhas, palavras, pedras, tudo em monte, em cadeia. Lembro-me da primeira coisa que me ocorreu: Para trs, depressa, desfilada! Porque era para mim evidente que, enquanto esperava no corredor, ' eles tinham aberto ou demolido o Muro Verde, e que tudo quanto havia do outro lado tinha avanado, como uma vaga, e inundado a nossa cidade, at ali imunizada contra o mundo inferior. Devo ter contado a E- qualquer coisa assim. Nada disso! respondeu ela, rindo gargalhada. Muito simplesmente, passmos para o outro lado do Muro Verde. Abri ento os olhos e vi-me face a face, na realidade, com tudo quanto at ali os seres viventes tinham visto milhares de vezes, mas reduzido, esbatido pelo vidro turvo do Muro. O sol... no era nada o nosso sol, racionalmente distribudo sobre a superfcie espelhada das ruas; este sol consistia numa espcie de fragmentos vivos, de manchas movedias que nos cegavam e nos punham a cabea roda. E as rvores pareciam candeeiros erguidos para o cu, aranhas de patas retorcidas, acocoradas na terra, fontes mudas com repuxos verdes... E tudo isto mexia e rumorejava; aos meus ps surgiu uma bola eriada de plos. Estaquei, colado ao cho; sentia-me incapaz de dar um passo, porque o cho onde punha os ps no era plano, no, no era plano, era uma coisa repugnante, mole, movedia, viva, verde, elstica. Fiquei atordoado, sufocado (deve ser este o termo). Agarrei-me com ambas as mos a um ramo de rvore. Isso no nada... no nada! Sente-se isso s no inicio... depois passa. H que ter coragem! Ao lado de E-, tendo como pano de fundo uma rede verde e bamboleante, erguia-se o perfil de algum, o mais exguo dos perfis, feito de papel recortado tesoura. Este algum era afinal algum que eu conhecia. Lembrava-me: era o mdico. Sim, sim, j estava a perceber tudo. E tambm compreendi quando ambos me agarraram no brao e, rindo, comearam a puxar por mim. Tropeo, dou pulos. Afogo-me num mar de rudos, musgo, ramos, rebentos, troncos, asas, folhas, silvos... As rvores tornam-se mais raras. Uma clareira. Na clareira... gente... ou... no sei como exprimir isto... talvez seja mais correto, de fato, chamar-lhes criaturas. Aqui vem a parte mais difcil. Ultrapassa todos os limites do verosmil. Tornou-se agora clara para mim a razo que levou _E- a guardar silncio sobre tudo isto. Eu no teria acreditado nela. muito possvel que amanh no acredite sequer em mim prprio... nem, nestas linhas que estou a escrever. Na clareira um ajuntamento de trezentas ou quatrocentas... pessoas (deixem ficar a palavra pessoas, tenho dificuldade em usar outra palavra) faziam grande algazarra em redor dum rochedo nu, semelhante a uma caveira. Da mesma forma que entre as numerosas caras que surgem nas bancadas, s notamos, primeira vista, as que nos so familiares, assim, no primeiro momento, eu vi apenas os que vestiam uniformes verde-azulados. Mas, passados instantes, entre os unifs, distingui perfeita e claramente pessoas (pessoas, sim, pelo visto) negras, ruivas, douradas, pardas, arruadas, brancas. Todos estavam nus, todos se apresentavam cobertos de um plo curto e luzidio, como o do cavalo empalhado que pode ser visto no Museu Pr-histrico. As caras das mulheres eram exatamente iguais sim, exatamente iguais s das nossas mulheres, delicadamente rosadas e sem plos; os seios grandes, firmes, com formas esplendidamente geomtricas eram tambm desprovidos de plos. Quanto aos machos, s uma parte da cara que no era hirsuta, eram parecidos com os nossos antepassados. Tratava-se de uma coisa to inverossmil, to inesperada, que eu me deixei ficar a olhar, calmamente (calmamente, digo e repito), tome-se uma balana, carregue-se um dos pratos com um peso excessivo; a partir de um certo peso, no faz diferena colocar mais ou menos, o fiel da balana no se move. De repente vi-me sozinho. E- tinha-me deixado... No vi como nem para onde se tinha afastado. minha volta, s havia aquelas... criaturas de plo luzidio que reluzia ao sol. Deitei a mo a um ombro quente, vigoroso, negro: Oua, por amor do Benfeitor: saber por acaso dizer- me para onde ela foi? Agora mesmo, h um minuto... Virou para mim um sobrolho peludo: Chiu! Mais baixo! e, com o olhar, peludamente, acenou para o ponto central, onde estava a caveira de pedra amarela. L estava ela, rodeada de cabeas, no alto, acima de todos os outros. O sol, atrs dela, batia-me nos olhos e, por isso, ela desenhava- se no azul do cu, era uma silhueta negra, negra sobre azul. Um pouco acima dela deslizavam as nuvens e dava-me a impresso de que no eram elas que se moviam, mas sim o rochedo, e ela, e a turbamulta; e a clareira andava tambm, tudo deslizava em silncio, como um barco, e a terra sem peso fugia-nos sob os ps... Irmos (era ela a discursar)... irmos! Na cidade que fica dentro dos Muros, est a ser construdo o INTEGRAL. E, como sabeis, chegado o dia de derrubarmos o Muro todos os muros para que o vento verde sopre sobre a terra inteira, de um ao outro extremo. Mas o INTEGRAL destina-se a transportar estes muros l para cima, para os milhares de mundos cuja luz esta noite vir conversar convosco, por entre as ramarias, no escuro... Vagas, espuma, vento bateram contra a rocha: 1 Abaixo o INTEGRAL! Abaixo! No, irmos, nada de abaixos. O INTEGRAL pode passar para as nossas mos. No dia em que ele levantar ferro e se erguer nos ares, ns iremos a bordo. Porque o Construtor do INTEGRAL est conosco. Ele atravessou o Muro. Veio at aqui comigo e est no meio de vs. Um viva para o Construtor! Num segundo... fiquei acima de todos; aos meus ps s via cabeas, cabeas, bocas abertas num clamor, mos que se erguiam e se baixavam. Tudo extraordinariamente estranho, embriagante; sentia-me ! Superior a todos, eu era eu, todo um mundo, tinha deixado de ser um item, como sempre tinha sido, passava a ser um INTEGRAL. E ento, todo amarrotado, mergulhado em felicidade, esfrangalhado como se fica depois dum amplexo de amor, pousaram-me no cho, junto da rocha. Sol, vozes, o sorriso de E-. Uma mulher de cabelo dourado (e toda ela brilhava como o ouro e a seda e tinha o aroma das ervas) segurava uma taa que me pareceu ser de madeira; os seus lbios vermelhos beberam da taa que logo a seguir me foi entregue... e eu, fechando os olhos, bebi sofregamente, apagando o fogo que me incendiava por dentro. Bebi as centelhas doces, picantes, frias. E nesse momento o meu sangue e todo o universo correram mil ; vezes mais velozes; a terra girava com a leveza duma pena. E todas as coisas se tornaram para mim leves, simples, claras. I Vi ento na prpria rocha as conhecidas e enormes letras MEPHI e... no sei porqu, percebi que assim tinha que ser; tratava-se de um vnculo que unia todas as coisas. Vi (talvez gravada na mesma rocha) uma pintura grosseira: um jovem alado com um corpo transparente, e, no lugar habitualmente ocupado pelo corao, uma brasa ardente rodeada por um resplendor vermelho-escuro. E eu compreendi , aquela brasa... Ou no, no bem isso; senti tal como sentia, sem de fato as ouvir, todas as palavras proferidas por E- (ela falava do alto do rochedo), tal como sentia que todos ali estavam a respirar em unssono e todos iam voar para qualquer lado, todos, como se fossem um s, como tinham feito aquelas aves, daquela vez, sobre o Muro... L de trs, do meio daquela massa de corpos que respiravam em unssono, ergueu-se ento uma voz estentrica: Mas uma loucura! E pelo visto fui eu... sim, acho que era eu e no outro... que de um salto subi ao rochedo, e l do alto pude ver o sol, cabeas, uma cordilheira verde recortada no azul, e gritei: Sim, exatamente! E todos temos que enlouquecer, imperioso enlouquecermos... O mais depressa possvel! imperioso... Tenho a certeza! E- estava ao meu lado; o sorriso dela eram dois traos escuros que nasciam nos cantos da boca, e dentro de mim tinha uma brasa acesa, que me tinha penetrado instantaneamente, facilmente, quase sem dor, deliciosamente. E do que veio a seguir s me ficaram na memria fragmentos dispersos, cacos: uma ave em voo baixo, lento. Percebi que estava viva, tanto quanto eu; virava a cabea ora para a direita, ora para a esquerda, como faz um homem, e os seus olhos pretos enterraram-se em mim profundamente. Mais: umas costas cobertas de plo luzidio, cor de marfim velho. Um inseto de cor preta com asas frgeis e transparentes, a passear nas ditas costas; costas que para se verem livres do inseto fizeram um movimento sacudido e depois outro. Mais: a sombra das folhas entretecidas, reticuladas. Pessoas deitadas sombra mastigando o que parecia comida igual dos antigos; uma das mulheres ps-me na mo um fruto amarelo comprido e um pedao duma coisa negra, e eu achei a coisa divertida, antes de saber se a comeria ou no. E mais ainda: a turba, cabeas, pernas, braos, bocas. E caras que se mexiam para desaparecerem dentro de momentos, para se desfazerem como bolhas de ar. E por instantes (a no ser que tenha sido tudo sonhado) umas orelhas-asas translcidas, voando. Agarrei com quanta fora tinha a mo de E-. Ela olhou-me por cima do ombro: O que foi? Ele est aqui. Ele, quem? S-, ali, agora mesmo, na multido. Olhos negros arregalados at s tmporas: o tringulo agudo do sorriso dela. Para mim no era claro o motivo daquele sorriso: como ora possvel que ela sorrisse? No percebes, E-. No percebes o que significa ele estar aqui, ele ou outro como ele. Voc cmico! Ento passa pela cabea de algum, do outro lado do Muro, que ns estamos aqui? Pense bem; tu, por exemplo... Alguma vez poderias imaginar que era possvel? Perseguirem- nos at aqui... deixa- os l! Ests a delirar. Sorriu, leviana, jovial, e eu sorri tambm; inebriada, alegre, leve, a terra deslizava, deslizava...
Vigsima Oitava Entrada Elas ambas Entropia e Energia Parte do corpo opaca Vejamos: se o nosso mundo semelhante ao mundo dos nossos antepassados remotos, vamos imaginar que, um dia, por acaso, se descobre num sexto (ou num stimo) continente, uma Atlntida ou outra coisa do gnero e que a aparecem cidades labirnticas, pessoas que se erguem no ar sem recorrerem a asas (ou mesmo a aeroscarros), pedras que levitam por ao dum olhar, em suma, coisas que nunca vos ocorreram, nem sequer no decurso de sonhos doentios. Ora foi isso o que ontem me aconteceu a mim. Porque (compreendam-me) nenhum de ns tinha passado para o lado de l do Muro Verde desde os tempos da Guerra dos Duzentos Anos, sobre a qual j falei atrs. Sei, meus amigos desconhecidos, que meu dever descrever com iodas as mincias este mundo estranho e surpreendente que ontem me foi revelado. Mas no me sinto em condies de voltar a pegar no assunto. Esto a acontecer mais e mais coisas novas, parece uma chuva de acontecimentos e no me sinto capaz de os agarrar a todos... estendo as mos e as abas do meu unif e vejo-os cair fora do meu alcance, enquanto nestas pginas s consigo recolher alguns pingos. A primeira coisa que ouvi, vinda de alm das paredes do meu quarto, foram umas vozes, entre as quais a dela, a voz de E-, sonora, metlica, e uma outra, inflexvel, como uma rgua de madeira, a voz de U-. Abriu-se ento a porta com fragor e entraram ambas disparadas no meu quarto. Exatamente: entraram disparadas no quarto. E- ps a mo nas costas da minha cadeira e sorriu para a outra, s com os dentes e por cima do ombro. Eu no suportaria que me mostrassem um sorriso assim. V l disse-me E- esta mulher, pelo visto, tem na vida o objetivo de te guardar de mim, como se fosses uma criana. Deste-lhe autorizao? A outra, de mandbula trmula, ripostou: Deu, sim, e uma criana. Sim, sim. por isso que no v o que andas a fazer com ele, s para... no v que isto tudo uma comdia. Sim, o meu dever... De relance, vi no espelho a linha quebrada e tortuosa do meu sobrolho. Pus-me de p e, contendo com muita dificuldade o outro tipo, o dos punhos peludos e frenticos, medindo bem as palavras que, sibilando, abriam passagem entre os meus dentes cerrados, gritei para a das mandbulas de peixe: Fora daqui... J! Fora! As mandbulas ficaram inchadas, vermelhas, mas voltaram logo ao normal, cinzentas. Abriu-se lhe a boca como se fosse falar, mas, acabou por sair sem dizer nada, batendo com a porta. Avancei para E-: Nunca perdoarei a mim prprio... Nunca perdoarei a mim prprio o que aconteceu. Ela atreveu-se a fazer-te uma coisa destas? E tu deves estar a pensar que eu penso que... que ela... Tudo aquilo do porqu dela se inscrever para recorrer aos meus servios, e eu... Felizmente, no vai ter tempo para se inscrever. Podia, de resto, haver mil como ela, que eu no me importava. Sei que no confiars nesses mil, s confias em mim. Porque, depois do que aconteceu ontem, eu sou o teu futuro, at ao fim, como tu querias. Estou nas tuas mos; sempre que queiras, podes... Posso o qu, sempre que queira? perguntei, mas percebi logo o que era e o sangue subiu-me aos ouvidos, s faces, e gritei: No preciso dizeres... Nunca mais precisas de o dizer! Deves ter percebido que era o meu outro eu que falava, mas agora... Quem sabe como tu s? O homem como os romances: s na ltima pgina que se sabe o final! Se assim no fosse, tambm no valia a pena l-los... E- acariciava-me a cabea. Eu no lhe via a cara, mas, pela voz, podia perceber que o olhar dela fitava um ponto longnquo; os olhos dela estavam fixos numa nuvem que deslizava, silenciosa e lentamente, no se sabe em que direo. De sbito, afastou-me de si, firme, ternamente: Ouve. Estou aqui para te dizer que podemos estar vivendo os ltimos dias da nossa vida. Sabias que, a partir desta noite, no podem ser proferidas palestras nos auditrios? No? No. Passei por l e vi que se prepara qualquer coisa nos edifcios dos auditrios. H umas mesas especiais, mdicos de branco. Que significa isso? No sei. Ningum sabe nada. E o pior isso. S sei que foi acionado o interruptor, que a fasca viaja ao longo dos fios e que, se no for agora, vai ser amanh... Mas possvel que no vo ter tempo. Tinha deixado h muito tempo de saber quem eles eram e quem ns ramos; tambm no percebia bem se queria ou no queria que eles tivessem tempo. Para mim s uma coisa era clara; E- tinha atingido o extremo limite e, a todo o momento... Mas isso uma loucura tornava eu. Tu... contra o Estado nico. o mesmo que pores a mo na boca duma arma, julgando que assim impedes o disparo. a mais completa loucura! Sorriu: Todos temos que enlouquecer... O mais depressa possvel. Algum disse isso ontem. Lembras-te? Foi l... Sim, at tomei apontamento. Portanto, tinha acontecido tudo na realidade. Fiquei a olhar para ela em silncio: a cruz negra era agora particularmente visvel no rosto dela. Minha querida E-, antes que seja tarde... Se assim o desejares, deixarei tudo, esquecerei tudo, e iremos, tu e eu, para o outro lado do Muro, ter com aqueles... no sei quem eles so... Abanou a cabea. Pelas janelas negras daqueles olhos, olhei para dentro dela, profundamente, e vi uma fogueira acesa, chispas e lnguas de fogo lambendo montes de lenha seca e resinosa. E tornou-se para mim evidente que era tarde demais e que as minhas palavras no iriam adiantar nada. Estava de p... preparava-se para sair. Talvez estivssemos a viver os ltimos dias... Talvez os derradeiros minutos. Agarrei-lhe na mo: No! Fica, s mais um pouco... fica, por amor de... de... Lentamente, levantou a minha mo at luz, esta mo peluda que eu tanto detestava. Eu queria retir-la, mas ela segurou-a com mais fora. A tua mo... No deves saber... mas houve muitos homens que... acontece que algumas das mulheres da cidade amaram homens de l do exterior. E muito provvel que no teu sangue haja umas gotas que amem o sol e a floresta. talvez por isso que eu... Silncio. Estranha coisa: durante este silncio, este vazio, este nada, o meu corao batia apressado. Pus-me a gritar: Ah, no vs j embora! No te vs antes de me falar daquela gente, porque tu ama-los... e eu nem sequer sei quem so, donde vieram... Quem so? So a metade que ns perdemos. Ns temos H2 e O, mas, para termo H20 rios, mares, quedas de gua, ondas, tempestades necessrio que as duas metades estejam unidas. Recordo distintamente todos e cada um dos movimentos dela. Recordo como pegou no tringulo de vidro que estava em cima da mesa, e, enquanto eu falava, o encostava face onde ento lhe apareceu um risco branco; afastando depois a aresta do tringulo, o risco branco tornou-se rosado, antes de desaparecer. estranho, no consigo! lembrar-me das palavras dela, principalmente das primeiras, mas somente de algumas imagens, de cores. Sei que, para comear, falou da Guerra dos Duzentos Anos. E era assim: o vermelho sobre o verde das folhas, na argila escura, no branco azulado da neve, poas de sangue que no secavam nunca. Depois as folhas amarelas queimadas pelo sol; homens amarelos, j nus, com os cabelos eriados acompanhados de ces de plo tambm eriado, mistura com cadveres inchados, cadveres de ces, cadveres de homens... Isto, evidentemente, fora dos Muros, porque a cidade cantava j vitria: a cidade possua j o alimento que hoje comemos, derivado da nafta. E, entre o cu e a terra, riscando o espao, colunas negras de fumo pairando sobre florestas, sobre aldeias, colunas de fumo deslizando lentamente. Gemidos abafados: filas negras, interminveis de pessoas, arrastadas para a cidade, onde seriam salvas fora e aprenderiam a ser felizes. Sabias de tudo isso? Sim, quase tudo. Mas no sabias, e poucos ento sabiam, que havia um pequeno grupo deles que, apesar de tudo, sobreviveram l atrs do Muro. Partiram, nus, para a floresta. L aprenderam a conhecer as rvores, os animais, os pssaros, as cores, o sol. Tornaram-se peludos, mas com isso puderam preservar o calor, o sangue vermelho. Foi pior o que aconteceu convosco. Os algarismos cobriram-vos e pululam nos vossos corpos, como piolhos. Deveis libertar-vos de tudo isso e regressar floresta, nus. Aprender a tremer de medo, de alegria, de fria frentica, de frio; rezar ao fogo. E ns, Mephis, queremos... Mephis? Um momento. O que vem a ser isso dos Mephis? Mephi? um nome antigo. Mephi aquele que... lembras-te do jovem desenhado naquele rochedo?... No, vou ter que falar na vossa linguagem; ser mais fcil de entender. Repara: h neste mundo duas foras, a entropia e a energia. A primeira leva ao quietismo beatfico, a um equilbrio venturoso; a outra, destruio do equilbrio, ao movimento dolorosamente perptuo. Era a entropia que os nossos melhor dizendo, os vossos antepassados cristos adoravam como um deus. Mas ns somos anticristos, ns... Naquele momento soou na porta uma pancada, um toque quase inaudvel. E logo o homem achatado, com a testa descada sobre os olhos, que mais de uma vez me tinha entregue mensagens de E-, surgiu no quarto. Correu para ns, estacou, arfando como uma bomba de ar... e no disse uma nica palavra; a corrida tinha-lhe consumido todas as foras. Anda, fala! Que aconteceu? perguntou E-, agarrando-lhe nas mos. Eles... vm l! fez finalmente a bomba. A patrulha... e com eles... aquele ... aquele nmero...baixo, corcovado... S-? Sim, esse! Est na casa ao lado. Logo a seguir vm para c... Depressa, depressa! Deixa, temos tempo disse E-, rindo e lanando dos olhos chispas, pequenas lnguas de fogo. Era absurdo, irracional... ou ento havia em tudo isto qualquer coisa que eu ainda no percebia. E-, em nome do Benfeitor... V se compreendes que isto ... Em nome do Benfeitor? disse ela com o sorriso triangular. Ou ento peo te... por mim! Ah, tenho ainda mais uma coisa para te dizer... No, no vale a pena. Digo-te amanh. Acenou, contente (sim, contente); piscando-me o olho, sob a testa descada, o outro despediu-se tambm. Fiquei s. Sentei-me mesa e no perdi tempo. Espalhei pela mesa as folhas deste manuscrito e peguei na caneta, para que eles me encontrassem a trabalhar em proveito do Estado nico. E, subitamente, todos os cabelos da minha cabea ficaram vivos, isolados, horripilantes: E se lhes passasse pela cabea a ideia de lerem uma destas pginas... uma das mais recentes? Sentei-me mesa, imvel, e vi as paredes tremerem, e a caneta a tremer-me na mo e as letras a contorcerem-se, enredando-se umas nas outras... Escond-las? Mas aonde? minha volta s havia vidro. Queim- las? Seria visto por quem estivesse no corredor e na sala contgua. E, alm disso, era incapaz, no tinha coragem para martirizar a parte mais preciosa de mim prprio. Mas no corredor ouviam-se j vozes distantes, passos. S tive tempo para meter um mao de folhas debaixo de mim, ali ficando colado cadeira, que tremia convulsivamente em todos e cada um dos seus tomos, ao mesmo tempo que o cho era o convs dum navio, balanando, desgovernado... Todo encolhido, escondido atrs da minha prpria testa, vi (um tanto furtivamente, pelo canto do olho) como eles passavam revista aos quartos, a comear no extremo direito do corredor e aproximando- -se cada vez mais. Alguns dos ocupantes esperavam, sentados to catalepticamente como eu; outros (os mais felizes!) iam, pressurosos, ao encontro dos inspetores, abrindo-lhes as portas de par em par.' Quem me dera poder fazer o mesmo! O Benfeitor um desinfetante que atingiu o ponto mais excelso da perfeio, que indispensvel humanidade e, consequentemente, no h no organismo do Estado nico outra contrao peristltica... Foi com uma caneta saltitante que dei luz esta barbaridade, cada vez mais debruado sobre o papel, ao mesmo tempo que na minha cabea soavam marteladas demenciais e ouvia (nas minhas costas) rodar o manipulo da porta. Fui envolvido por uma lufada de ar, por baixo de mim a cadeira bailava... S ento, com dificuldade, comecei a despregar-me da folha e a voltar-me para os que tinham entrado (como difcil representar uma comdia... mas quem foi que hoje mesmo me falou em comdia?). S- estava minha frente, com os olhos silenciosa, soturna, perfurantemente espetados em mim, na minha cadeira, nas folhas que me faziam ccegas nas mos. A, de repente, vi umas caras familiares, que via todos os dias na portaria, e uma delas isolou-se prontamente das restantes: a que tinha as feies palpitantes e rseas dum peixe. Rememorei tudo o que naquele quarto aconteceu uma hora antes e tornou- se- me evidente que ela ia a todo o instante, ela ia... Todo o meu ser convergia e pulsava na parte (felizmente) opaca do meu corpo que protegia o meu manuscrito.
U- acercou-se dele, do S-, por trs, tocou-lhe cuidadosamente na manga e disse-lhe baixinho: Este o D-503, o construtor do INTEGRAL. Ouviu falar, no verdade? Est sempre sentado mesa, assim como est agora... nunca transige consigo prprio. As coisas que eu tinha pensado dela! Que mulher maravilhosa, espantosa... S- deslizou na minha direo, debruou-se por cima do meu ombro, observando a mesa. Coloquei o cotovelo de forma que ficasse visvel o que tinha escrito, mas ele, em voz alta e sonora, ordenou: Devo pedir-lhe que me mostre imediatamente o que tem a! Corado de vergonha, dei-lhe o papel. Leu-o e vi saltar-lhe dos olhos um sorriso que lhe escorregou pelas faces e, de rabinho a abanar, se lhe aninhou no canto direito da boca: Um tanto ou quanto ambguo, mas, mesmo assim... bom, vamos embora, no tornaremos a incomod-lo. Como se patinhasse em charcos de lama, dirigiu-se para a porta e, a cada passo que ele dava, eu sentia os meus ps, mos e dedos voltarem gradualmente a mim; a alma ia-se distribuindo proporcionadamente por todo o meu corpo; recuperei de novo o flego...
Enfim, D- arranjou maneira de continuar no quarto, avanou para mim, baixou-se e suspirou-me ao ouvido: A sua sorte foi eu... No percebo. Que quis ela dizer com aquilo? Mais tarde, j noite, soube que tinham detido trs nmeros. Mas ningum refere o fato em voz alta, tal como ningum fala em voz alta dos ltimos acontecimentos (por onde se prova a influncia educativa dos guardas que, invisveis, esto sempre presentes no meio de ns). As conversas, geralmente, so sobre a rpida descida do barmetro e a mudana do tempo. Vigsima Nona Entrada Filamentos na cara Rebentos Uma compresso pouco natural Estranho: o barmetro desce, mas no h vento; predomina a calma. L por cima comeou j a tempestade que continua a no se ouvir. As nuvens negras deslizam a toda a velocidade. Por enquanto, no so muitas... Apenas uns farrapos isolados. como se toda uma cidade estivesse a ser arrasada e as muralhas e torres estivessem a cair aos bocados com uma rapidez vertiginosa, tornando-se cada vez maiores aos nossos olhos, mas faltam ainda alguns dias para, percorrido o azul infinito, desabarem em cima de ns. Por enquanto, tudo est calmo. No ar flutuam uns fios... fios inexplicveis, to finos que so quase invisveis. Todos os anos pelo Outono eles nos chegam do outro lado do Muro. Pairam no ar, vagarosos, mas, de repente, sentimos uma substncia invisvel e estranha na cara; queremos ver-nos livres dela e no conseguimos. Os fios abundam principalmente nas proximidades do Muro de Vidro onde me desloquei esta manh. E- tinha-me dito para ir ter com ela Casa da Antiguidade, aos nossos aposentos. Estava j bastante perto do enorme, slido e rubro edifcio da Casa da Antiguidade quando ouvi algum atrs de mim, respirando ruidosamente e aproximando-se a passos largos. Voltei-me e vi que era 0-, a tentar alcanar- me. Pareceu-me especialmente redonda, com os contornos nitidamente definidos. Os braos, as taas invertidas dos seios, todo o corpo dela que eu to bem conhecia, eram redondos e enchiam completamente o unif que no tardaria a rebentar, expondo tudo ali, ao sol, luz. Via todo o quadro na minha frente: l nas florestas virgens, na Primavera, os rebentos procuram esforadamente romper a terra dura, ansiosos por desabrochar em ramos e, to depressa quanto possvel, em folhas e, to depressa quanto possvel, em flores. Por momentos, os olhos dela derramaram a sua luz azul sobre o meu rosto; mas no tardou a dizer: Vi-o l... no Dia da Unanimidade. Tambm eu a vi. E logo me recordei de a ter visto apertada contra a parede, numa passagem estreita protegendo o ventre com as mos. Involuntariamente, procurei com o olhar o ventre redondo que crescia sob o unif. Ela deu pelo meu olhar e tornou-se esfericamente vermelha; at o sorriso dela se ruborizou ao dizer: Estou to feliz! Estou grvida, grvida at mais no, percebe? E vou andando por todo o lado, mas no ouo nada do que se passa minha volta. Passo o tempo todo a escutar o que se passa dentro de mim, no interior de mim prpria... Fiquei calado. Tinha a tal substncia pegada cara, incmoda, no conseguia ver-me livre dela. E, de sbito, inesperadamente, com o olhar mais intensamente azul do que das outras vezes, ela pegou- minha mo e senti nesta o contato dos lbios. Em toda a minha vida, no tinha nunca passado por uma experincia destas. Era uma espcie de carcia antiga que at ali ignorava, e foi tal a vergonha e a aflio que retirei bruscamente a mo, com uma rudeza nada habitual em mim. Est completamente fora de si. E no h motivo para isto... no geral, voc... Que razes tem para estar to contente? Esqueceu-se do que a espera, no esqueceu?... No perde pela demora. Se no for agora, daqui a um ms, dois meses... Apagou-se por completo; todas as curvas desincharam, murchas; quanto a mim, senti uma contrao desagradvel (para no dizer dolorosa), mistura com um sentimento de piedade, no mais fundo do corao (o corao no passa de uma bomba ideal e falar de compresso, de contrao, referidas suco dum lquido por uma bomba, tecnicamente um absurdo; por aqui se v at que ponto esses amores, piedades, etc., etc., que provocam a dita compresso, so essencialmente absurdos, pouco naturais, doentios). Regressou a calma. esquerda, o vidro nebulosamente verde do Muro. Em frente, o edifcio vermelho-escuro da Casa da Antiguidade. E as duas cores, assim postas lado a lado, deram-me uma ideia que me pareceu brilhante. Espere! J sei como a posso salvar. Vou poup-la situao de ver por momentos o seu filho e morrer logo a seguir. Vai poder cri-lo, compreende, vai v-lo desenvolver-se, crescer, tomar forma, como um fruto, ao mesmo tempo que o embala nos braos. Estremeceu, agarrou-se a mim, estreitou-me a si. Recorda-se daquela mulher? continuei. J h uns tempos, uma vez em que dvamos o nosso passeio coletivo? Ela est ali, neste momento, est na Casa da Antiguidade. Vamos ter com ela, garanto-lhe que tudo se h- de arranjar, sem demora. Com os olhos do esprito, vi-me, na companhia de E-, a conduzir O- atravs dos corredores. Ela estava ali mesmo, do outro lado do Muro, no meio das flores, folhas, ervas. O- largou-me; os cominhos do seu crescente rseo estremeceram e descaram para o queixo. a tal mulher? perguntou. Ora... gaguejei, embaraado, no sei porqu. , de fato... ela mesma. E quer que eu v ter com ela, que lhe pea, quer que... No se atreva a pedir-me uma coisa dessas. Nunca! Afastou-se a correr. Mas, como quem se tivesse esquecido de qualquer coisa, voltou-se e gritou: Antes a morte, sim, eu prefiro morrer! E o problema no seu... Para voc, no tudo igual (no a mesma coisa)? Mantm-se a calma. Por cima de mim chocam entre si os bocados de torres e muralhas que, a uma velocidade terrvel, se vo tornando maiores; mas estavam destinadas a chocar entre si durante horas infindas, talvez dias. E os fios invisveis continuavam a voar no ar, vagarosos, pegando-se s caras... E era impossvel vermo- nos livres deles, desembaraarmo-nos deles. Fui andando sem pressa para a Casa da Antiguidade. No meu corao senti uma contrao absurda, dolorosa.
Trigsima Entrada O ltimo nmero O erro de Galileu No seria melhor se... Eis a conversa que tive ontem com E-, na Casa da Antiguidade, no meio do ruidoso clamor das cores vermelha, verde, amarelo-bronze, branco, laranja, to berrantes que abafavam o fluir lgico dos pensamentos. E, durante toda a conversa, tivemos sempre conosco o marmreo sorriso daquele antigo poeta do nariz arrebitado. Reproduzirei textualmente esta conversa porque, tanto quanto me parece, ser de enorme, de decisiva importncia para o destino do Estado nico e, o que mais, de todo o Universo. E os meus desconhecidos leitores podero encontrar aqui a minha justificao. E- comeou a falar abruptamente, sem prembulos: Sei que depois de amanh vais fazer a primeira experincia de voo do INTEGRAL. Ns vamos apoderar- nos dele nesse dia. Qu? Depois de amanh? Sim. Senta-te, no te excites. No h um minuto a perder. H doze Mephis entre as centenas que os guardas prenderam. E se deixarmos passar dois ou trs dias, esto todos perdidos. No respondi uma s palavra. Est combinado que vo enviar-te eletrotcnicos, mecnicos, fsicos, meteorologistas, para observarem a experincia. Ao meio-dia em ponto, nota bem, quando tocar a campainha para o almoo e todos estiverem no refeitrio, ns ficamos no corredor, fechamos as portas... e o INTEGRAL nosso. Vai ter que ser assim, d por onde der. Nas nossas mos, o INTEGRAL ser uma arma que ajudar a acabar com tudo de uma vez, rapidamente, sem dor. Quanto aos aeroscarros deles, deixa l, no passaro de uma chusma de mosquitos atacando um falco. E, se tiver que ser, viramos os exaustores do motor para baixo e basta isso para... Isso impensvel respondi, sobressaltado. absurdo. No vs que ests a preparar uma revoluo. Uma revoluo, sim. Mas porqu absurdo? absurdo porque no pode haver revoluo nenhuma. Porque a nossa revoluo sou eu que o digo e no tu foi a ltima. No pode haver mais nenhuma revoluo. Toda a gente sabe que... Meu menino, tu s matemtico tornou-me ela, fazendo com o sobrolho ngulos agudos de escrnio. s at mais, s filsofo- -matemtico. Vamos: diz-me o ltimo nmero. Que isso? No... no percebo. Que ltimo nmero? Ora essa! O ltimo, o supremo, o maior de todos os nmeros. Isso absurdo, E-. Se o nmero dos nmeros infinito, que nmero que tu queres que seja o ltimo? E que revoluo essa que tu dizes ser a ltima? No h ltima revoluo. As revolues so infinitas em nmero. A ltima revoluo coisa de crianas. O infinito assusta as crianas e necessrio que elas de noite tenham um sono descansado... Mas, pelo Benfeitor, que sentido... que sentido que h em tudo isto? Que sentido faz, se toda a gente feliz? Suponhamos... muito bem, suponhamos que verdade. E depois? O que que vem depois? Que engraado! A pergunta extremamente infantil. Conta-se uma histria a uma criana, conta-se tudo, e mesmo depois de se acabar, elas perguntam sempre: E depois? E porqu ? As crianas so os nicos filsofos ousados. E os filsofos ousados so todos necessariamente crianas. E no podemos deixar de fazer a pergunta que fazem as crianas: E depois? Depois, no h mais nada. Acabou-se. Por todo o universo, em todo o lado, h um fluxo uniforme de... Ah... Uniforme, em todo o lado! A est ela, a entropia... A entropia psicolgica. Para ti, matemtico, no claro que a vida est s nas diferenas diferenas! , na temperatura, apenas nos contrastes trmicos? E se por todo o lado, em todo o universo houver apenas corpos uniformemente quentes (ou uniformemente frios), h que afast-los do caminho... Para que possam ser fogo, exploso, Gehenna! E o que ns vamos fazer afast-los do caminho. Mas, tens de compreender, E-, que os nossos antepassados fizeram isso, exatamente, durante a Guerra dos Duzentos Anos. E com razo o fizeram... Estavam cheios de razo. Mas cometeram um erro e foi o de crerem que era o ltimo nmero que afinal... no existe... pura e simplesmente no existe na natureza. O erro deles foi o erro de Galileu: tinha razo quando afirmava que a Terra gira volta do Sol, mas no sabia que o sistema solar gira todo ele roda dum determinado centro; no sabia que a rbita real da Terra no a relativa mas a real no de modo nenhum um crculo ingnuo... E quanto a vocs? Quanto a ns, sabemos que o nmero ltimo no existe. Talvez um dia o esqueamos. No, no talvez, vamos de certeza esquecer quando formos velhos, como acontece com tudo o mais. E a vamos deixar-nos cair, tal como caem das rvores as folhas outonias e, depois de amanha, tu... No, no, querido, no tu! Porque tu s dos nossos... s dos nossos. E, ardente, ciclnica, ofuscante (nunca a tinha visto assim), abraou-me, envolveu-me todo, desapareci nela... Por fim, olhando- me firme e fixamente nos olhos, disse: No te esqueas, ao meio- dia, e eu respondi: No, no me esqueo. Partiu. Fiquei sozinho no meio do agitado e discordante clamor dos azuis, vermelhos, verdes, amarelos-bronze, vermelhos- alaranjados... Sim, ao meio-dia... E de repente a absurda sensao da tal substncia estranha que se me agarrava cara e que no conseguia retirar. E de repente os acontecimentos de ontem de manh, de U- e de tudo o que ela lanou em rosto a E-, da outra vez... Porque me recordei eu disso? Que absurdo... Apressei-me a sair e corri, corri para casa o mais depressa que pude! L para trs ficaram os pios agudos das aves pairando sobre o Muro, enquanto minha frente, como se fossem feitas de fogo cristalizado cor de framboesa, se erguiam os globos das cpulas, os enormes edifcios cbicos, a espiral da Torre Acumuladora, autntico relmpago congelado no cu. E eram todas essas coisas, toda esta Impecvel beleza geomtrica, era tudo isso que eu queria destruir com as minhas mos! No haveria outra alternativa, outro caminho? Passei por um auditrio (no me lembro do nmero dele). L dentro, os bancos amontoavam-se contra as paredes. No meio, as mesas estavam cobertas com panos de nvea fibra de vidro; sobre a alvura duma delas o sol derramava manchas cor de sangue. E em tudo isto se escondia um desconhecido (e estranho) amanh. pouco natural que um ser pensante e dotado de olhar viva entre irregularidades, e quantidades desconhecidas. Seria, julgo, como se, de olhos vendados, nos obrigassem a andar, a cambalear, sabendo ns que estvamos mesmo beira, mesmo por cima dum precipcio: mais um passo, um s passo, e no passaramos de um bocado de carne esmigalhada, desfeita... No seria esta a situao em que eu me encontrava?... E se, agora j, se atirasse cada um para o abismo profundo, por sua prpria iniciativa? No seria o grande meio de se resolver tudo rapidamente e de forma asseada?
Trigsima Primeira Entrada A Grande Operao Perdoei tudo Coliso de comboios Estou salvo! No momento derradeiro, quando parecia no haver tbua de salvao a que me agarrar, quando tudo parecia perdido para sempre... como se algum que tivesse j subido terrvel Mquina do Benfeitor e estivesse j funreamente coberto pela Campnula de Vidro pudesse, uma ltima vez na vida, ver rapidamente o cu azul... D de repente percebesse que afinal tudo tinha sido um sonho. O sol ora rubro, ridente; e a parede do meu quarto que alegria poder passar a mo sobre a frieza daquela parede... e o travesseiro... ah que bom poder beber para sempre a beleza da depresso que a nossa cabea faz no travesseiro branco! O que a fica a tentativa de expressar o que senti quando esta manh li a Gazeta do Estado nico. O pesadelo tinha sido pavoroso... mas tinha acabado. E eu, homem medroso, eu, homem de pouca f, eu pensava j em pr deliberadamente fim vida. Corado de vergonha ao ler as ltimas linhas que escrevi. Mas, no faz mal, deix-las ficar, sim, deix-las ficar como recordao do incrvel acontecimento que se podia ter dado e que agora jamais se dar... Jamais! Na primeira pgina da Gazeta do Estado nico flamejava um REJUBILEMOS! Doravante sois perfeitos! At ao dia de hoje, a vossa descendncia, os vossos vrios mecanismos, eram mais perfeitos do que vs, COMO ASSIM? Cada chispa dum dnamo uma chispa da mais pura razo; cada movimento dum pisto um silogismo imaculado. Mas ento no se encontra tambm dentro de vs a mesma razo infalvel? A filosofia dos guindastes, das prensas e das bombas to perfeita e clara como um circulo desenhado por um compasso, Mas ento ser menos circular a vossa filosofia? A beleza dum mecanismo vem-lhe de ser imutvel e exato, como o ritmo pendular. Ento e vs que fostes alimentados desde a mais tenra infncia com o Sistema Taylor, no vos tornastes to exatos como pndulos? H, todavia, uma pequena diferena: O MECANISMO NO TEM FANTASIA Alguma vez vistes algum sorriso piegas, insensato, sonha dor estampado na fisionomia do cilindro duma bomba enquanto trabalha? Alguma vez vistes um guindaste deitado na cama, a suspirar, durante as horas destinadas ao repouso? NO, NUNCA! Mas, todos os dias e cada vez mais (corei de vergonha!), 09 guardas tm entre vs visto desses sorrisos e ouvido desses suspiros. E (cobri o rosto!) os historiadores do Estado nico esto a pedir a demisso para no terem que registrar nos anais acontecimentos to ignominiosos. Mas a verdade que no mereceis qualquer censura, por que se trata de uma doena. E o nome dessa doena FANTASIA! A fantasia um verme que abre nas vossas frontes sulcos negros. A fantasia uma febre que vos leva a correr cada vez mais em frente, ainda que esse mais em frente comece onde acaba a felicidade. A fantasia a ltima barreira no caminho da felicidade. Apesar de tudo isso, REJUBILEMOS Foi demolida essa barreira. O caminho est livre. A localizao do Centro da Fantasia a ltima descoberta da cincia no Estado nico. O dito centro um msero ndulo cerebral na regio da Ponte de Varoli. Com uma tripla cauterizao deste ndulo pelos raios X, fica curada a fantasia... PARA SEMPRE! Sois perfeitos; tais e quais mquinas; o caminho para a felicidade a cem por cento est agora aberto. Correi, pois, todos vs, novos e velhos, correi a fazer a Grande Operao! Correi para os auditrios onde a Grande Operao est a ser feita. Viva a Grande Operao! Viva o Benfeitor! Se leram tudo isto no aqui nas minhas notas, que tm todo o ar dum frentico romance da antiguidade, mas nas pginas do jornal, ainda a cheirar tinta da impresso, tremulando nas vossas mos tal como tremula nas minhas, se viram como eu vi que tudo isto a mais atual das realidades (se no de hoje pelo menos de amanh), sentiram com certeza o mesmo que eu sinto. No sentem a cabea girar, tal como eu sinto a minha neste mesmo instante? No sentem nas costas e nos braos o mesmo calafrio estranho, deleitoso, gelado? No se sentem verdadeiros Tits, Atlantes, que, soerguendo- -se, tocam inevitavelmente com a cabea no vidro do teto? Peguei no telefone: E-330. Sim, 330! pedi, comeando logo a seguir, em voz alta: Ests a falar de casa, no? J leste... hum... aquilo no jornal, leste? uma coisa extraordinria... Sim respondeu e ficou depois longa e obscuramente silenciosa, a ponderar, ouvindo-se apenas o zumbido do auscultador. Tenho que me encontrar hoje, sem falta, contigo. Sim, na minha casa, s 16. Sem falta. Como ela querida, o meu amor. Sem falta, disse ela, e eu percebi que sorria, que no podia deixar de sorrir e de arvorar este sorriso pelas ruas, como um lampio, bem erguido acima da cabea! Aqui fora, o vento precipitou-se contra mim. Rodopiava, assobiava, tirava-me o flego, mas no conseguiu arrancar-me a alegria. Sopra, assobia... no me importo... no vais conseguir derrubar o Muro. E as nuvens, que pareciam de chumbo negro, rolavam e despedaavam-se por cima de mim: que rolem, que se esfarrapem, no conseguiro jamais ocultar o sol... ns j o amarramos bem amarrado ao znite, para sempre... somos Josus, filhos de Nun! Na esquina duma rua estava um ajuntamento de Josus, filhos de Nun, de cara colada ao vidro duma parede. L dentro, estava j um nmero deitado em cima duma mesa alvssima. Viam- se-lhe os p que formavam um ngulo amarelo sobre toda aquela alvura; de branco, os mdicos debruavam-se todos sobre o outro extremo da mesa uma mo branca entregava a outra mo branca uma seringa cheia de lquido. Ento? E os outros, porque que no entram? perguntei, dirigindo-me a ningum em especial... ou, mais exatamente, a todos eles. Ora, e porque no tu? disse uma cabea redonda que se, voltou para mim. Eu entro mais tarde. Tenho de tratar primeiro de alguns assuntos... Afastei-me, um tanto confuso. Era verdade que tinha de me encontrar primeiro com a minha E-. Mas, primeiro, porqu ? No encontrei explicao. No estaleiro. O INTEGRAL cintilava e luzia, todo azul e gelo. Na sala dos motores o dnamo zumbia, repetindo carinhosa e interminavelmente a mesma palavra, uma nica, uma palavra familiar, uma palavra que era minha. Debrucei-me sobre o tubo longo e frio dum dos motores. Que tubo aquele, oh tubo querido! Amanh vais voltar vida; amanh, pela primeira vez na tua vida, vais ser percorrido por um arrepio, vais ser atravessado por um jato de fogo ardente... Com que olhos teria eu, contemplado este monstro poderoso de vidro se tudo hoje continuasse a ser como era ontem? Se eu soubesse que amanh, ao meio-dia, ia tra-lo... sim, iria trair... Algum, por trs de mim, me tocou no ombro e, voltando-me, vi a cara de loua do Adjunto: J sabe? perguntou. O qu... a Operao? Como que tudo isto... estas coisas aconteceram de uma maneira to... sbita ? No verdade? No me refiro a isso. A experincia foi adiada para depois de amanh. Tudo por causa da Operao. Tanta pressa, tantos esforos, para nada, afinal... Tudo por causa da Operao,.. Que tipo to limitado, este. No capaz de ver para l desta cara de loua. Se ele soubesse que, a no haver este adiamento por causa da Operao, ele estaria amanh ao meio-dia na gaiola de vidro do INTEGRAL, na sala de jantar, a rastejar, a trepar pelas paredes... s 15.30 estava no meu quarto. Entrei e... vi U-. Estava sentada minha mesa, ossuda, ereta, com a bochecha direita apoiada na mo direita. H muito que devia estar espera, porque, ao levantar- se para me saudar, as impresses dos quatro dedos e do polegar demoraram algum tempo a apagar- se- lhe da face; por momentos, recordei a ss comigo aquela manh infortunada: ali, ao p da mesa, ela, a olhar, furiosa, para E-. Mas durou s um segundo, porque tudo foi varrido pelo sol de hoje, como quando, num dia claro, por distrao, acionamos o interruptor, ao entrar no quarto: a lmpada acende-se, mas parece no existir, to ridcula e desnecessria ela , coitadinha. Sem hesitar, estendi-lhe a mo, perdoando-lhe tudo; ela agarrou- me nas mos, com fora, apertou- mas com os dedos nodosos, ao mesmo tempo que as bochechas, pendentes como berloques antigos, estremeciam: Tenho estado sua espera disse. S um minutinho... Apenas para lhe dizer como estou feliz e contente consigo. Amanh ou depois, compreenda, estar timo, nascer de novo... Vi que estavam em cima da mesa as duas ltimas folhas que escrevi, a entrada de ontem; l estavam, tal como eu as tinha deixado na noite anterior. E se ela tivesse deitado o olho ao que l estava escrito? No tinha importncia, de fato; tudo passara histria; estava tudo to ridiculamente longe como quando se olha atravs de uns binculos invertidos. Sim respondi. Andei agora mesmo a passear pela Avenida, e caminhava minha frente um homem e a sombra dele projetava-se no pavimento. Era uma sombra luminosa, percebe? E pareceu- -me no, tenho mesmo a certeza que amanh deixar de haver sombras, toda e qualquer sombra, seja ela de seres humanos ou de simples coisas; a luz do sol passar atravs de tudo! Que fantasista! exclamou ela, terna e energicamente. Nunca permitiria aos meus alunos falarem nesses termos... E comeou a contar-me histrias passadas com as crianas e disse-me como tinha se pegado a elas, em todas elas, e as tinha levado operao, e de como tinha sido preciso amarr-las, e de quanto necessrio amar- se sem piedade... sim, sem piedade, e que, portanto, decidira finalmente... Comps a prega que o faixa azul-cinza fazia entre os joelhos, envolveu-me num sorriso, em silncio, e saiu. Por felicidade, o sol no tinha deixado de brilhar neste dia; continuava a andar e eram j 16 horas. Batia porta e o meu corao batia contra as costelas... Entra! Prostrei-me no cho, ao p da cadeira, abracei-me s pernas de E-, atirei a cabea para trs de modo a poder olh-la nos olhos, ora num, ora noutro, e vi-me em cada um deles, fechado em maravilhoso cativeiro... Mas l atrs da parede uivava a tempestade, as nuvens cor de chumbo eram cada vez mais grossas e mais pesadas... Mas, deixemo-las andar... Na minha cabea atropelavam- se as ideias; as minhas palavras amotinavam-se, tumultuavam e, obediente a uma ordem dada em voz alta, voava a par do sol, numa direo desconhecida ... ou no, naquele momento j sabamos perfeitamente para onde amos; seguiam-nos os planetas, uns envoltos em fogo e povoados de flores de lume, que cantavam, e outros planetas mudos, azuis, onde as pedras racionais se aglomeravam em sociedades organizadas, planetas que tinham, tal como a nossa terra, atingido o cume do absoluto, os cem por cento da felicidade... E, por cima de mim, bruscamente, ela: Mas no achas que o cume consiste precisamente nessas pedras unidas numa sociedade organizada? perguntou, continuando depois, com o tringulo a tornar- se mais agudo, mais obscura: Quanto felicidade, digamos que, hoje, os desejos torturam, afinal... no achas? evidente que a felicidade s comea a existir quando j no h desejos, nem um nico desejo. Que grande erro, que preconceito absurdo termos colocado frente da felicidade um sinal mais. Deveramos antes colocar o menos o divino menos! , evidentemente. O menos absoluto 273 graus lembro-me de ter murmurado, distrado. Precisamente, menos 273 graus. Bastante frio, mas no ser isso a prova de que atingimos o cume? Noutros tempos, h muito, ela falava de certo modo em mim, atravs de mim, moldando as minhas ideias. Mas agora havia nisso qualquer coisa de to horroroso que no consegui suportar e, com grande esforo, deixei escapar um no. No respondi. Ests a... ests a gozar... Riu gargalhada, desatou a rir gargalhada, atingiu o ponto mais alto do riso... e a parou. Silncio. Pousou-me as mos nos ombros. Olhou deliberada, longamente, para mim, puxou-me para cima e nada mais ficou do que os lbios dela, ardentes, em brasa. Adeus! Este adeus chegava de longe, l do alto, e demorou a abater-se sobre mim... talvez um minuto, uns dois minutos. Adeus? Que queres dizer com isso? Tu ests doente; por minha causa cometeste crimes... no sofreste com isso? Agora vem a Operao que te curar de mim. Por tudo isso, adeus! No gemi. O ngulo tornou-se impiedosamente agudo, negro sobre branco: Como? No queres a felicidade? Estalou-me a cabea, foi cada fragmento para seu lado: houve uma coliso de dois comboios lgicos, embrulharam-se um no outro, tudo desfeito, tudo em monte, no meio dum rudo ensurdecedor. Vamos l, estou espera. Escolhe: a Operao e os cem por cento de felicidade, ou ento... No posso viver sem ti, impossvel viver sem ti respondi, ou talvez o tenha s pensado, no sei, s sei que E- o captou. Sim, eu sei replicou ela e, sem tirar as mos dos meus ombros, continuou: Ento, at amanh. Amanh ao meio-dia. Lembras-te? No, amanh no. O voo experimental foi adiado. s depois de amanh. Melhor para ns. Ento, ao meio-dia... depois de amanh. Caminhava sozinho pela rua, sob o sol-poente. O vento, em rodopio, empurrava-me, levantava-me no ar, fazia-me voar como um papel; os pedaos do cu de chumbo entrechocavam-se; estavam destinados a pairar no infinito por mais um dia ou dois dias... Os unifs dos que passavam por mim roavam pelo meu, mas eu caminhava sozinho. Era evidente que todos eles estavam salvos, s para mim no havia salvao: eu no queria ser salvo.
Trigsima Segunda Entrada No acredito Tratores Um pobre destroo humano Acreditam que ho- de morrer? Claro: o homem mortal. Eu sou homem, ergo... No, no isso... Eu sei que j sabem isso tudo. O que eu pergunto o seguinte: alguma vez tiveram ocasio de o acreditar, de o acreditar de forma definida, de o acreditar no com a mente mas com o corpo, de sentir que os dedos que seguram esta pgina ficaro um dia amarelos, gelados... Isso j no acreditam, evidentemente... E foi por isso que ainda no saltaram da janela dum dcimo andar, por isso que at agora tm continuado a comer, a virar as pginas, a fazer a barba, a sorrir, a escrever... esse o meu estado atual... sim, esse mesmo. Sei que este minsculo ponteiro preto do meu relgio vai atingir um certo ponto meia-noite, e recomear depois a descer, depois voltar a subir, lentamente, atingir um certo trao final e... ser amanh. Sei isso; mas tambm no acredito, ou por outra, parece-me que essas vinte e quatro horas so vinte e quatro anos. E por isso que ainda consigo fazer alguma coisa, correr de c para l, responder a algumas perguntas, pular at escotilha que me leva a bordo do INTEGRAL. Consigo senti-lo a balanar na gua e compreendo que tenho de me agarrar balaustrada... e sinto sob as mos o frio do vidro. Compreendo como os guindastes translcidos e vivos, curvando os pescoos, semelhantes aos das aves, e estendendo os bicos, vo fornecendo terna e cuidadosamente ao INTEGRAL a comida terrivelmente explosiva que os motores exigem. E l em baixo, no rio, vejo claramente vistas as veias azuis e as erupes que o vento produz nas guas. Mas tudo isso est muito longe de mim, -me estranho e chato como um projeto desenhado numa folha de papel. E estranho que a cara chata e esquemtica do Adjunto me diga de repente: Ento, que quantidade de combustvel levamos? Para trs horas de voo... Ou para trs horas e meia, digamos...? minha frente, em projeo, est a minha mo segurando uma tbua de logaritmos e nela o nmero 15. Quinze toneladas. No... melhor meter antes cem...? Eu sabia, afinal, que amanh... E, pelo canto do olho, vi a mo que segurava a tbua de logaritmos comear a tremer, imperceptivelmente. Cem toneladas? Mas para qu esse combustvel todo? Vai dar para uma semana inteira. Uma semana? At para mais do que uma semana. Nunca se sabe se alguma coisa vai correr mal... Quem sabe?... Eu sabia. Assobiava o vento. O ar parecia saturado de qualquer coisa que no se via. Tinha dificuldade em respirar, dificuldade em andar... e, com dificuldade, lentamente, sem parar, o ponteiro l ia rodando no relgio da Torre Acumuladora, l ao fundo da Avenida... O pinculo da torre, entre as nuvens, preguioso e azul, absorvia, roncando, a eletricidade. Roncavam tambm os tubos da Oficina Musical. Como sempre, os nmeros passeavam em filas de quatro. Mas as filas eram, de certo modo, instveis e, talvez por causa do vento, ondulantes, oscilantes. Cada vez mais. A certa altura as filas colidiram com qualquer coisa, esquina, comearam a recuar, para depois estacarem, petrificadas, como um feixe slido, apertado, ofegante. Todos eles, subitamente, ficaram com longos pescoos de ganso. Olhem! Olhem para ali... depressa! L esto eles! Eles e no outros! Ah, no fao uma coisa dessas, por nada deste mundo. Por nada. Prefiro meter a cabea na Mquina do Benfeitor... No fales to alto. Ests maluco... Na esquina, a porta do auditrio estava escancarada e dela sala lentamente, uma grossa coluna de quinze homens. Mas a palavra homens no a mais adequada: no tinham pernas, tinham uma espcie de rodas pesadas, forjadas e movidas por um mecanismo invisvel. No homens, mas uma espcie de tratores humanoides. Nas cabeas, agitadas pelo vento, traziam uma bandeira branca com um sol bordado a ouro e, entre os raios deste sol, a inscrio: SOIS OS PRIMEIROS! FOSTES J OPERADOS! FAZEI COMO NS! TODOS E CADA UM! Lenta e irresistivelmente, embrenharam-se na multido... E tornou-se evidente que, se em vez de ns, ali estivesse um muro, uma rvore, um edifcio, eles no teriam deixado de avanar decididamente contra o muro, a rvore, o edifcio. Tinham j chegado ao meio da avenida. Presos uns aos outros pelos braos, formaram uma cadeia que se virou para ns. Enquanto ns, feixe apertado de cabeas arrepiadas, espervamos. Pescoos esticados de ganso. Nuvens. Vento a assobiar. Bruscamente, os que estavam nos extremos da cadeia, direita e esquerda, dirigiram-se para o centro, formando uma curva e, a um ritmo estonteante, como uma mquina pesada a escorregar por uma encosta, a cadeia veio ao nosso encontro, cercou-nos completamente... e levou-nos at porta escancarada, fez-nos entrar, meteu- -nos dentro do auditrio... Vamos na rede! Fujam! bradou algum. Todos de enxurrada. Junto parede do edifcio havia ainda uma passagem estreita: todos correram para l, com as cabeas momentaneamente transformadas em cunhas, os cotovelos, as costelas, os ombros, os quadris afiados, abrindo caminho. Ps desencontrados, mos agitadas, unifs, tudo era despejado e jorrava minha volta, em repuxo, como a gua que sai sob presso de uma mangueira. Por momentos, um corpo duplamente curvo, em forma de S, com um par de orelhas-asas translcidas, entrou-me pelos olhos dentro... mas desapareceu instantaneamente, cado por terra, e eu fiquei de novo s no meio de mil braos e pernas que apareciam para logo desaparecerem; comecei a fugir... Descanso breve, para tomar flego, numa soleira, com as costas coladas porta... e logo um despojo humano veio chocar comigo, como que impelido pelo vento... Tenho-o seguido... tenho vindo a correr todo o tempo atrs de ti, no tenho nenhuma daquelas coisas... percebe? No tenho! Estou preparada para... Mos rechonchudas, pequenas, agarradas minha manga, olhos redondos e azuis... era ela, era O-. E a, escorregando ao longo da parede, caiu redonda no cho. Enroscou-se toda, como se fosse uma bola minscula e ficou assim nos degraus frios, e eu debruado sobre ela, afagando- lhe o rosto, aquele rosto... e as minhas mos ficaram molhadas. Era como se eu fosse enorme e ela extraordinariamente pequena, uma pequena parte de mim prprio. Foi uma emoo completamente diferente da que sentia por E- e tive nesse momento a noo de que podia ser assim, entre os antigos, a afeio pelos filhos. Vindo de baixo, quase inaudvel por causa dos dedos que lhe cobriam o rosto, escutei: Todas as noites, eu... seria incapaz de suportar... se me operassem... Todas as noites, sozinha no escuro, penso no beb, constantemente, em como ele vai ser, como que vou cri-lo... Com a operao, no me ficaria nada a que eu pudesse me apoiar, percebe?... E voc tem a obrigao, tem a obrigao de... Uma sensao absurda, mas convenci-me de que sim, de que tinha obrigao. Absurda, porque esta minha obrigao era mais um crime. Absurda, porque o branco no pode ser ao mesmo tempo preto, porque obrigao e crime no podem coincidir. A no ser que na vida no haja nem branco nem preto e que a cor dependa apenas de uma premissa lgica bsica. E se a premissa, neste caso, era eu ter- -Ihe feito ilegalmente um filho... Est muito bem; mas no se vai opor... no se deve opor disse eu. Compreender que tenho de te levar at E-, como j lhe disse da outra vez, para que ela possa... Sim concordou ela, numa voz dcil, sem tirar as mos do rosto. Ajudei-a a pr-se de p. Caminhamos em silncio atravs da rua estreita, pelo meio dos edifcios mudos, plmbeos, aqui empurrados e ali puxados pela ventania, ela absorta nos pensamentos dela, eu absorto nos meus, se que no pensvamos ambos na mesma coisa. Num momento de maior tenso, apesar dos uivos do vento, ouvi atrs de mim passadas que me soaram como se o caminhante patinasse num charco lamacento. E, ao virar duma esquina, voltei-me para trs. No meio das nuvens que se refletiam no vidro fosco do pavimento, avistei S-. E logo os meus braos ficaram esquisitos, deixaram de balanar ao ritmo certo e comecei a contar a 0-, em voz alta, que amanh... sim, amanh... seria o primeiro voo do INTEGRAL, que seria um acontecimento sem precedentes, belo, maravilhoso... 0-, embasbacada, arregalou os olhos azuis e redondos, reparou nos meus braos ruidosamente descompassados; eu no lhe dei oportunidade para abrir a boca, continuei a falar, a falar, a falar sem parar. Mas l no fundo, febrilmente, sussurrava e martelava em mim uma ideia nica: No podes... no podes lev-la at E-! Tens que arranjar maneira de a afastar do teu caminho... Em vez de virar esquerda, virei direita. Uma ponte oferecia- -nos a todos trs (a 0-, a mim e ao S-) o seu dorso dcil e servilmente curvado. As luzes dos edifcios da outra margem pulavam para a gua e fragmentavam- se em milhares de centelhas irrequietas que a espuma branca raivosamente reduzia a p. O vento, por cima de ns, zunia como uma corda esticada. A corda dum contrabaixo descomunal. E, entre estas notas baixas, patinando constantemente atrs de ns... A minha casa, finalmente. entrada, O- parou, comeou a balbuciar qualquer coisa como: No, prometeu-me que..., mas eu no a deixei prosseguir, empurrei-a decididamente para a entrada e penetrmos no vestbulo. Por cima da mesa da controladora pendiam as bochechas familiares, em constante oscilao; rodeava-a um compacto ajuntamento de nmeros, entregues a uma acalorada discusso; do patamar do segundo andar espreitavam algumas cabeas; pela escada desciam vrios nmeros, cada um por sua vez. Mas tudo isso fica para depois. Sem perda de tempo, deixei 0- num recanto bastante afastado da mesa da controladora, sentei-me de costas para a parede (via no escuro a sombra duma cabea grande a perambular para um e outro lado, no passeio, do outro lado da parede) e saquei do bloco. 0- deixou-se cair lentamente na cadeira. O corpo dela parecia evaporar-se, desaparecer dentro do unif, ficando ela reduzida a pouco mais do que o fato vazio e o olhar vazio que me afogava no azul do seu vazio. Porque me trouxe para aqui? Quer enganar-me? disse, exausta. No... fale baixo! Olhe ali... v aquilo ali atrs da parede? Uma sombra. Anda sempre atrs de mim. No posso lev-la comigo. Tem de compreender, no possvel. Escrevo umas palavras, dou-lhe o bilhete e vai sozinha. Ele no vai sair daqui, tenho a certeza. Dentro do unif, o corpo cresceu, animou-se de novo, o ventre recuperou as formas redondas e o rosto iluminou- se -lhe com as cores dum amanhecer. Meti-lhe o papel entre os dedos gelados, apertei-lhe a mo com fora, os meus olhos beberam pela ltima vez a luz dos olhos dela. Adeus! Pode ser que algum dia... Retirou a mo da minha. Toda curvada, vagarosamente, deu dois passos, voltou-se rapidamente para trs e, num instante, vi-a ao meu lado, outra vez. Mexeu os lbios... e os olhos, os lbios, tudo nela me dizia uma certa palavra, uma s e a mesma, uma e outra vez, e o sorriso dela era insuportvel, e a dor pungente... E, ao p da porta, o destroo humano, curvado, minsculo, passou a ser uma sombra do outro lado da parede, uma sombra pequena que, sem olhar para trs se afastava rapidamente. Acerquei-me da mesa de U-. Abanando, muito excitada, as mandbulas, dirigiu-me a palavra: Veja l: parece que todos perderam a cabea! Aquele nmero de l de cima, por exemplo, afirma ter visto, com os seus prprios olhos, uma espcie de homem, junto Casa da Antiguidade, todo nu, coberto de plo como um animal... Sim, vi. E repito mais uma vez: vi-o, sim. Vi mesmo! disse uma voz vinda do vcuo, escutada atentamente por todos. Que nome tem isto, sabe? Ser delrio? E esta palavra delrio era por ela dita com tanta convico, num tom to inflexvel, que perguntei a mim prprio: realmente, no ser isso que acontece comigo e o que se passa minha volta? Mas olhei para as minhas mos peludas e recordei o que E- tinha dito: Muito provavelmente, h umas gotas de sangue da selva em ti... Talvez seja essa a razo por que eu... No, felizmente, no era delrio. No, infelizmente, no era delrio. Trigsima Terceira Entrada No h sumrio, so apontamentos muito apressados; esta a ltima... chegado o dia. Sem perda de tempo, fui ler a Gazeta. Que leram os meus olhos? (a expresso exata: naquele momento os meus olhos eram assim como uma caneta, como uma rgua, objetos que se agarram, que se sentem na mo; os meus olhos eram me estranhos, eram instrumentos). A proclamao era escrita em letras to grandes que ocupavam toda a primeira pgina: OS INIMIGOS DA FELICIDADE NO DORMEM. AGARRAI A FELICIDADE COM AMBAS AS MOS. AMANH SER SUSPENSA TODA A ATIVIDADE. TODOS VO SER SUJEITOS OPERAO. OS FALTOSOS SO CANDIDATOS MQUINA DO BENFEITOR. Amanh! Ser possvel, ir haver amanh? Com gesto rotineiro levanto a mo (um instrumento) at prateleira da estante para colocar a Gazeta junto das outras, dentro duma pasta com ornatos dourados. E, ao fazer este gesto, ocorreu-me: Para que serve isto? Que diferena faz? Se nunca mais vou entrar neste quarto... E deixei cair o jornal no cho. Mas pus-me de p e olhei em redor do quarto, de todo o quarto, centmetro a centmetro; pressa, febrilmente reuni numa capa invisvel todas as coisas que lamentava deixar ali. Mesa. Livros. Cadeiras. E- tinha estado sentada na cadeira, uma vez, enquanto eu me sentava no cho, aos ps dela... A cama. E durante um ou dois minutos esperei no sei que milagre: talvez tocasse o telefone, talvez ela me dissesse que... No. Nenhum milagre. Vou-me embora, direito ao desconhecido. So estas as ltimas linhas que escrevo. Adeus, leitores meus desconhecidos, a quem amei, com quem vivi durante tantas pginas, a quem eu, que entretanto contra a doena da alma, revelei tudo o que h dentro de mim, tudo, at o parafuso mais torto, at a mola mais escangalhada. Vou-me embora.
Trigsima Quarta Entrada Os libertos Uma noite de sol Uma valquria na rdio Ah, se eu ao menos me tivesse esmagado e esmagado os outros, se ao menos me tivesse encontrado com ela algures do lado de l do Muro, entre os animais ferozes de dentua amarela arreganhada, se eu no tivesse voltado para aqui! Tudo teria sido milhares, milhes de vezes mais fcil. Mas agora, o que vir a seguir? Correr a arrancar a vida quela... Mas serviria para alguma coisa? No, no, no! Tem mo em ti, D-503! Firma-te bem num eixo lgico; carrega por instantes com toda a fora na alavanca e, tal como um escravo da antiguidade, faz girar as ms do silogismo, at teres compreendido tudo o que se passou. Quando cheguei a bordo do INTEGRAL, estavam todos nos postos respectivos, todas as clulas daquele favo de vidro estavam ocupadas. Sob a coberta de vidro, viam-se as pessoas, pequenas como formigas, diante das aparelhagens telefnicas, dos dnamos, transformadores, altmetros, ventiladores, mostradores, bombas e tubos. Na cmara grande viam-se alguns nmeros (provavelmente designados pelo Gabinete Cientfico) debruados sobre as tbuas e os apetrechos de medio, acompanhados pelo meu adjunto e pelos dois assistentes. Tinham todos trs as cabeas enfiadas nos ombros e pareciam tartarugas; mostravam semblantes cinzentos, outonios, tudo menos radiantes. Ento como que se sentem? perguntei. Assim, assim. Meio assustados disse um dos trs, com um sorriso amarelo, pouco satisfeito. possvel virmos a aterrar sabe-se l aonde. De um modo geral, tudo desconhecido... No suportava ficar a olhar para aquele trio, que, uma hora antes, tive vontade de excluir das Tbuas dos Mandamentos Horrios, que desejei arrancar ao regao materno do Estado nico. Faziam-me lembrar Os Trs Libertos, cuja histria conhecida por todos os nossos estudantes. A histria fala de trs nmeros que foram dispensados do trabalho, a ttulo experimental; foi dito a cada um deles que podia fazer o que lhe apetecesse, ir para onde quisesse. Os mseros ficaram-se pelo local de trabalho habitual, que observavam de olhos vidos. Durante horas e horas fizeram em pblico uma srie de gestos que se tinham transformado para eles numa necessidade fsica: serraram e aplainaram, pregaram com invisveis martelos pregos igualmente invisveis. Por fim, no dcimo dia de liberdade, deram as mos e, ao som do Hino, entraram na gua e avanaram por ali adiante, at que a gua os submergiu, pondo fim aos seus sofrimentos. Era opressivo, repito, olhar para aquele trio. A minha vontade era ir- -me embora. Vou verificar a sala das mquinas anunciei e depois descolamos. Faziam-me perguntas: qual a voltagem necessria para a exploso; qual a quantidade de gua que era preciso deitar no tanque da popa, a servir de lastro. Dentro de mim, havia uma espcie de mquina falante que respondia rapidamente e com preciso a todas as perguntas; mas, subliminarmente, de forma contnua, eu estava ocupado s com os meus prprios pensamentos. E, de sbito, num corredor exguo, o meu eu subliminar foi invadido por qualquer coisa... E foi desse momento em diante que, rigorosamente falando, tudo comeou. Caras cinzentas, cinzentos unifs aglomeravam-se no corredor e, por segundos, houve uma cara que se sobreps a todas as outras. O cabelo cobria-lhe a testa, como uma pala a cobrir-lhe os olhos: era o mensageiro de E-. Conclu que estavam ali os companheiros dele e que no havia possibilidade de eu escapar, quando faltavam apenas alguns minutos poucas dezenas de minutos. Todo o meu corpo foi atravessado por um tremor infinitesimal, molecular (tremor que no me abandonou at ao fim), como se me tivessem metido dentro do corpo um motor enorme e, como a constituio do meu corpo era demasiado delicada, as paredes, as divisrias, as traves, as luzes tremiam. Ignorava se ela se encontrava a bordo. Mas j no era altura de ir verificar. Vieram dizer-me para subir cabina de comando: era hora de decolar... Para onde? Caras cinzentas, nada contentes. A gua riscada de rugas tensas. Um cu de placas de chumbo sobrepostas. E foi para mim to difcil pegar no microfone como se o microfone e as mos fossem feitos de chumbo negro: Subida, 45. Exploso surda. Um abano. Uma montanha de gua verde- esbranquiada na popa. A coberta (malevel, como borracha) ressaltou do solo e tudo l em baixo, tudo o que era vida, tudo se afastou. Para sempre. Num instante tudo ficou longe, muito longe, tudo se esvaiu como no gargalo dum funil, o solo vtreo da cidade, as cpulas redondas, o dedo solitrio e plmbeo da Torre Acumuladora. Momentaneamente, uma cortina de nuvens, todas ia e algodo. Ultrapassmo-la, rumo ao sol, rumo ao cu azul. Segundos, minutos, milhas; o azul escuro passou a negro, as estrelas emergiram como gotas de suor frio, prateado. Depois foi a noite, ferica, insuportavelmente clara, negra, estrelada com um sol que cegava. De repente, ficmos a modos que surdos: os tubos continuavam a roncar, mas s os vamos, tinham emudecido. E ao sol aconteceu a mesma coisa: emudeceu. Era natural, era exatamente disto que estvamos espera. Tnhamos deixado a atmosfera terrestre. Mas acontecia tudo to rapidamente e, a bem dizer, to opressivamente, que todos minha volta estavam pasmados, incapazes de falar. No meu caso, sob aquele cu mudo, tudo me parecia mais fcil, como se, vencido o derradeiro espasmo, tivesse ultrapassado o limiar inevitvel e, livre do corpo, viajasse atravs dum mundo novo onde tudo tinha que ser diferente, de pernas para o ar... Mantenham a rota! ordenei eu ao microfone... ou talvez no fosse bem eu mas sim a mquina que tinha dentro de mim; e foi esta mesma mquina que, com mo mecnica e articulada, entregou o microfone ao Adjunto, enquanto eu, estremecendo todo, das unhas dos ps raiz dos cabelos, com umas tremuras moleculares de que s eu tinha conscincia, me levantava e corria procura de... A porta da sala continuava aberta, s dali a uma hora seria fechada e trancada... Junto da porta estava um nmero que eu no conhecia, um baixinho com uma cara igual a centenas e milhares dessas caras que se perdem na multido, mas com uns braos invulgarmente compridos, com as mos a tocar nos joelhos, dando a impresso de terem sido tirados por engano aos pertences doutro ser humano qualquer... Um dos braos ergueu-se e obstruiu-me a passagem: Onde que deseja ir? Era para mim evidente que ele no sabia que eu sabia de tudo. E talvez fosse prefervel assim, de fato. Olhando-o com superioridade, disse-lhe num tom intencionalmente rude: Sou o construtor do INTEGRAL. Sou o responsvel pelo voo experimental. Compreende? Sala dos comandos. Cabeas debruadas sobre os instrumentos, os mapas, cabeas cobertas de cabelos brancos e outras amareladas, calvas, carregadas de anos. Um olhar rpido bastou para as reconhecer todas; depois sa, percorri todo o corredor estreito e voltei para a sala das mquinas, descendo a escotilha. A, os tubos incandescentes devido s exploses libertavam um calor e um rudo insuportveis. As manivelas em brasa executavam uma dana bbeda, desesperada, frentica; os ponteiros oscilavam com um tremor quase imperceptvel mas incessante. E foi ento que, ao p do tacmetro, de p, vi o tal da testa baixa, agarrado a um bloco: Diga-me uma coisa gritei-lhe ao ouvido, no meio do rudo circundante. Ela est aqui? Onde que ela est? Ela? perguntou ele, deixando nascer um sorriso sob a testa sempre baixa. Est ali. Na sala da rdio. Dirigi-me para l. Estavam l trs, todos com uns auscultadores que mais pareciam asas, e ela pareceu-me mais alta do que de costume, assim alada, aureolada, esvoaante, como uma dessas valqurias antigas, e tive a impresso de que as enormes chispas azuis libertas pelo rdio area emanavam dela e que dela emanava tambm o forte cheiro a ozono provocado pelas descargas. Algum que... podes ser tu... disse, apontando para ela, meio tonto, possivelmente por ter corrido demasiado. Preciso de transmitir uma mensagem para a terra, para o estaleiro. Vamos, vou ditar-te... Havia uma cabine do tamanho duma caixa de fsforos junto sala da rdio. Sentmo-nos mesa, lado a lado. Peguei-lhe na mo e apertei- lha com fora: Ento como ? Que que vai acontecer? No sei. No achas que maravilhoso isto de... voar sem destino conhecido... e sem cuidar de saber qual . Daqui a nada meio-dia e ningum sabe o que est para vir. E quando cair a noite... aonde que estaremos tu e eu, noite? Na relva, talvez, numa cama de folhas secas... Ela libertava chispas azuis e um cheiro a ozono, como quando se d uma descarga, e dentro de mim as tremuras aumentavam de frequncia. Toma nota mandei eu em voz alta e ainda meio atordoado (tinha corrido demasiado). 11.30horas, velocidade 6 800... Por sob os auscultadores alados, suavemente, sem levantar os olhos do papel, informou-me: Ela foi falar comigo a noite passada, com um bilhete escrito por ti. Sei de tudo, tudo, no digas mais nada. A criana tua, no ? Mandei- -a ir; a estas horas j l est, do outro lado do Muro. Vai sobreviver. Voltei para a cabine de comando. Novamente, a noite delirante, o cu negro estrelado, o sol ofuscante, de novo o ponteiro do relgio, saltando lentamente de um minuto para o seguinte; tudo coberto de neblina e tudo tremulando quase imperceptivelmente (s para mim). No sei por que razo passou-me pela ideia que seria melhor se tudo se passasse no aqui mas l mais em baixo, mais perto da terra. Alto! Gritei ao microfone. O INTEGRAL continuou em frente, devido inrcia, mas afrouxando cada vez mais. A certa altura, como se um cabelo invisvel o puxasse, estacou; mas logo a seguir o cabelo partiu-se e o INTEGRAL comeou a cair como uma pedra, cada vez mais depressa. Durante minutos, algumas dcadas de minutos. Conseguia ouvir o meu pulso a latejar; o ponteiro dos minutos ia-se aproximando velozmente das 12.00. Para mim era evidente: eu era a pedra e E- era a terra. Eu era a pedra atirada ao ar por algum, uma pedra com uma necessidade imperiosa de cair, de se quebrar na terra, de se desfazer em bocados. Mas e se... (o azul vivo das nuvens continuava a ficar l muito em baixo) e se... A mquina falante que tinha dentro de mim pegou no microfone, com um gesto articulado, infalvel, e ligou um comando de reduo da velocidade: a pedra afrouxou a rapidez da queda. Ficaram s quatro tubos a arfar, cansados, dois na popa e dois na proa, fornecendo apenas a energia necessria para o INTEGRAL ficar neutralizado, como se estivesse ancorado, a cerca de um quilometro da terra, quase paralisado, apenas com um ligeiro estremecimento. Todos convergiram para a coberta (estava quase a dar o sinal para o almoo) e, debruados no gradeamento de vidro, devoraram com os olhos, sofregamente, o mundo desconhecido do lado-de-l-do-Muro que se estendia por baixo de ns. mbar, verde, azul: a floresta outonal, as planuras, o lago. No rebordo duma pequena taa azul erguiam-se umas runas, ossadas amarelecidas, e um dedo mumificado, ameaadoramente espetado... restos, provavelmente, da torre duma antiga igreja que por milagre se mantinha de p. Olhem, olhem! Alm, um pouco mais para a direita! L longe, no ermo verde, voava uma mancha ou sombra parda. Tinha comigo os binculos e levei-os maquinalmente aos olhos: era uma manada de cavalos castanhos de caudas oscilantes, galopando na pradaria, levando nas garupas negras uns seres de cor morena, branca, negra... Se eu lhe digo que distingo uma cara dizia algum atrs de mim. Cale-se l! Dizer uma coisa dessas em pblico! Mas ento peguem nos binculos, v. Esto aqui. Sumiram-se cavalos e cavaleiros. Ficou apenas o ermo sem fim. E, no meio dele, invadindo tudo, envolvendo-nos a mim e aos outros... soou o toque estridente da campainha, a convocar para o almoo. Faltava um minuto para o meio-dia. Todo um microcosmos desfeito em bocados, momentaneamente. Tilintou no cho a placa metlica com o nmero de algum, no me importei nada de o ouvir estalar debaixo dos ps. Estou a dizer que distingui um rosto. Um retngulo negro: a porta da sala aberta de par em par. Dentes brancos cerrados, com um sorriso aberto. E quando o relgio, infinitamente lento, comeou a dar as horas, respirando entre cada toque, e as primeiras filas comearam a andar, o retngulo da porta foi subitamente atravessado por dois braos meus conhecidos, anormalmente compridos: Alto! Senti uns dedos enterrados na palma da mo: era E-, encostada a mim: Quem ? Conhece-o? Mas... no dos seus...? Ele tinha j pulado em cima dos ombros de algum. A cara igual a centenas, a milhares de caras, nica todavia entre todas as caras, erguia-se agora acima de cem caras: Em nome dos Guardas! Vs a quem falo... metei na cabea que os guardas me escutam... esto todos a ouvir- me. E s vos digo isto: ns sabemos. No sabemos os vossos nmeros, nem por sombras, mas, apesar disso, sabemos tudo. O INTEGRAL nunca ser vosso. O voo experimental ir at ao fim e vocs , que ningum se atreva a mexer um dedo. Continuareis a trabalhar at final, at ao regresso. E s ento se acabar tudo. Silncio. Os quadrados de vidro sob os meus ps eram moles, como l ou algodo, e as minhas pernas eram tambm de l ou algodo, moles. Ela, ao meu lado, sorria com um sorriso alvssimo; desprendiam-se dela centelhas azuis, frenticas. Murmurava-me ao ouvido, entre os dentes cerrados: Ah, foi voc ? Cumpriste o teu dever? Est bem... Desprendeu a mo da minha; estava j longe de mim, muito frente a valquria de asas nos auscultadores. S, calado, gelado, segui para o salo, juntamente com os outros. No, no fui eu... no fui eu. No discuti nada com quem quer que fosse, s falei disto com as minhas pginas brancas, mudas ia eu dizendo interiormente, em silncio, desesperado, mudo. Ela estava sentada mesa, diante de mim, mas no olhou para mim uma nica vez. Ao lado dela estava uma cabea velha, calva, amarela. Ouvi-a a dizer-lhe: A nobreza de carcter? Meu caro mestre, basta uma simples anlise filolgica dessa expresso para se concluir que um mero preconceito, um resqucio de antigas eras feudais. Ao passo que ns... Senti-me empalidecer e convenci-me de que todos deram por isso. Mas a mquina que tinha dentro de mim executava as quinze mastigaes prescritas para cada garfada. Fechei-me dentro de mim, como numa casa opaca daquelas de antigamente; bloqueei com pedras a porta exterior, fechei as persianas das janelas. A seguir: o microfone na mo, o voo, um aperto de melancolia, glida, derradeira, atravs das nuvens, rumo noite estrelada, fria, ao sol ofuscante. Minutos, horas. E, evidentemente, um motor lgico, que eu no conseguia ouvir, continuava a trabalhar constantemente dentro de mim, a uma velocidade febril. Porque, de repente, em certo ponto do espao azul, perfilou-se a minha mesa e sobre ela debruaram-se as bochechas de peixe de U-, e por baixo delas esto duas folhas deste manuscrito... As folhas que me esqueci de esconder. E era evidente que s ela podia ter denunciado. Para mim era evidente. Ah, se eu ao menos pudesse ir sala da rdio... se eu pudesse! Auscultadores alados, o cheiro do ozono dos relmpagos azuis... Lembro-me de lhe ter dito alguma coisa em voz alta; recordo-me tambm de ela dizer, olhando atravs de mim como se eu fosse de vidro, com uma voz que vinha de remotas paragens: Estou ocupada... estou a receber uma mensagem l de baixo. Pode ditar-lhe a ordem a ela... disse, apontando outro nmero feminino. Na caixa de fsforos adjacente, ditei com firmeza, depois de ter refletido durante um minuto: Horas: 14.30. Descida. Desligar motores. Tudo terminado. Sala das rotas. O corao do INTEGRAL tinha parado; estvamos em queda e o meu corao no acompanhava o ritmo desta queda. Ficava para trs, continuava a subir, saa-me pela boca. Nuvens, e depois uma mancha verde ao longe, um verde cada vez mais vivo, mais distinto, vindo ao nosso encontro, como um turbilho. No tardaria o fim... A cara torta, de loua branca, do Adjunto. Provavelmente foi ele que me empurrou com tanta fora, que me fez bater com a cabea contra qualquer coisa e ouvir muito em surdina: Tubo da proa. Velocidade mxima! Um salto violento para cima. No me lembro de mais nada.
Trigsima Quinta Entrada Uma argola Uma cenoura Um assassnio No dormi toda a noite. Pensei apenas numa coisa. Por causa do que aconteceu ontem, tenho a cabea toda atada. E tenho a sensao de que no so simples ligaduras, de que um arco, um arco implacvel de ao vtreo, forjado volta da minha cabea, e no meio deste arco um nico e invarivel pensamento: matar U-, matar U- e voltar depois para ela, para E-, e perguntar-lhe: Agora, j acreditas em mim? O pior que matar uma coisa depravada, atvica. A ideia de partir a cabea quela criatura traz-me boca a sensao de uma coisa repugnantemente doce e no sou capaz de engolir a saliva; cuspo a todo o momento para o leno; tenho a boca seca. Tenho no armrio um bocado de cilindros que se partiram depois do lanamento e cuja natureza tenho de analisar ao microscpio. Fiz um rolo com todas as folhas do manuscrito (para que ela as leia at ltima letra), as coloquei no cilindro no rolo e desci. A escada era interminvel, os degraus eram escorregadios, viscosos; evitei limpar a boca com o leno. Cheguei ao rs-do-cho. O corao batia cada vez mais forte. Parei, tirei o cilindro do papel que o envolvia e dirigi-me para a mesa. Mas U- no estava l. Apenas a mesa de tampo nu, gelado; lembrei- -me de que todo o trabalho tinha sido suspenso e todos os nmeros tinham sido levados para a Operao, pelo que no havia razo nenhuma para ela estar ali; no havia ningum para ela registrar. Na rua. Vento. O cu parecia forrado de chumbo. E, tal como ontem, a certa altura, aconteceu: o universo fragmentou-se em pedaos isolados, individuais e cada um deles, na sua interminvel queda, parava um instante, ficava imvel por cima de mim e evaporava-se sem deixar vestgios. Suponhamos que as letras negras e exatas desta pgina comeavam bruscamente a contorcer-se e a fugir para um e outro lado, amedrontadas, no ficando no papel uma nica palavra reconhecvel, ficando apenas uma srie de charadas, que amedrontam em vez de serem amedrontadas, como uma nica palavra. Ora, a multido espalhada pela rua era muito parecida com isso: tudo desalinhado, cada um a correr para seu lado, uns para a frente, outros para trs, uns de encontro aos outros, tudo s avessas. E, de repente, ningum. Momentaneamente paralisados, num segundo andar, numa gaiola de vidro suspensa, um nmero masculino e um nmero feminino, beijando-se; separaram-se logo a seguir, como um todo que se parte em dois. Pela ltima vez, para sempre. Numa esquina, um matagal movedio de cabeas. Sobre as cabeas, no ar, uma bandeira com as palavras: ABAIXO A MQUINA DO BENFEITOR! ABAIXO A OPERAO! E, separado de mim, o meu eu, pensando continuamente: Ser possvel que cada um de ns sofra de uma dor interior que s ser extirpada se ao mesmo tempo nos extirparem o corao, ser possvel que todos ns tenhamos de fazer alguma coisa para... E por momentos, em todo o universo, no existiu coisa alguma a no ser uma mo animalesca (a minha) transportando um bocado de ferro forjado... A seguir, uma criana; tinha uma mancha na cara, sob o lbio inferior. Esta era arregaado, parecia uma manga; todo o rosto era por isso deformado. Gritava e tentava fugir, correndo tanto quanto as pernas lhe consentiam.. . Ouvi um tropel de passos correndo atrs dele. verdade conclu, ao v-lo. U- deve estar na escola; vou j para l. Corri para a primeira estao de metro. Ao descer o primeiro degrau, algum me informou, enquanto se afastava rapidamente: No h metro! Hoje no h metro! Est a acontecer no sei o qu l em baixo... Desci. Era o delrio geral. Sis de cristal facetado acesos. Uma plataforma repleta de cabeas. Um comboio paralisado nos carris. E, no meio do silncio, uma voz. No a vi a ela, mas conheci logo de quem era aquela voz timbrada, malevel como um chicote, cortante; e l avistei ao longe o ngulo agudo das sobrancelhas arrebitadas nas tmporas. Deixem-me passar gritei. Deixem-me passar! Tenho que... Mas algum me agarrou os braos, os ombros. E no silncio uma voz: No. Corram j para cima. Vo ser curados, e ficaro saciados da mais suculenta felicidade, saciados at mais no poder ser e, assim, com as barrigas cheias, dormiro em paz, organizadamente, ressonando com o ritmo certo... Nunca ouviram a grande Sinfonia Ressonante? Que engraados que so... Vo l receber um vermfugo contra esses pontos de interrogao que se contorcem como lombrigas, que os roem e torturam como lombrigas, enquanto esto aqui a escutar-me. Vo l depressa, vo fazer a Grande Operao! Que lhes importa se eu ficar aqui sozinha? Que se lhes d se eu no quiser que desejem em meu nome, se eu quiser ter os meus prprios desejos... se quiser desejar o impossvel...? Respondeu-lhe uma voz lenta, ponderada: Ora, o impossvel? Significa afastar as fantasias loucas que se saracoteiam em frente dos nossos narizes? No; ns agarramo-las pelo rabo, esmagamo-las com os ps e... E depois comem- nas, comeam a ressonar... e vo precisar de novos rabos a saracotear-se frente do nariz. Diz-se que os antigos tinham um animal chamado burro. Para o fazerem andar, andar sem parar, penduravam uma cenoura num fio, mas de maneira que o burro no pudesse alcan-la. S quando conseguia alcan-la que a podia comer. De repente largaram-me; fui-me aproximando do ponto central, onde ela estava a falar... E nessa altura armou-se uma grande balbrdia; l de trs veio um grito: Eles esto vindo, esto vindo para c! As luzes , apagaram-se todas... cortaram a energia... e houve uma avalanche de gritos, uivos, cabeas, dedos... No sei quanto tempo durou o atropelo no tnel do metr, at chegarmos s escadas mergulhadas nas trevas, mas logo a seguir iluminadas. Chegamos por fim rua e dispersmo-nos em todos os sentidos. Vi-me s. Vento. Crepsculo pardacento, baixo, mesmo por cima da minha cabea. No vidro mido do passeio, l muito no fundo, candeeiros invertidos, paredes, figuras caminhando de pernas para o ar. E a abobada de ferro insuportavelmente pesada que levava na mo puxava-me para as profundas do abismo. U- no se encontrava ainda sentada mesa e o quarto dela continuava deserto, s escuras. Subi para o meu quarto, acendi a luz. Latejavam -me as tmporas, metidas no arco; pus-me a passear pelo quarto, espartilhado pelo arco circular: a mesa, o fragmento de ferro em cima da mesa; a cama, a porta, a mesa, o fragmento branco. No quarto da esquerda, as persianas estavam abertas. No da direita, uma cabea calva, com bossas, uma testa parablica, enorme, debruada sobre um livro. As rugas que lhe riscavam a testa eram uma srie de linhas impressas, ilegveis, amarelas. De quando em quando os nossos olhares encontravam-se e eu sentia que aquelas linhas amarelas me diziam respeito. Foi s 21 em ponto. Apareceu U-. Na minha memria h um nico facto preciso: a minha respirao era to ofegante que at eu a ouvia distintamente e a minha preocupao era respirar mais baixo, mas... no conseguia. Ela sentou-se, comps a prega do unif entre os joelhos. As mandbulas de peixe abanavam. Ento, meu querido amigo, verdade que foi ferido? Assim que me contaram, vim logo a correr. O pedao do cilindro estava minha frente, em cima da mesa. Levantei-me, a minha respirao era cada vez mais ruidosa. Ela ouviu-me, deixou uma palavra a meio e, por qualquer razo, ps-se tambm de p. Eu via-lhe j na cabea o melhor lugar para a atacar; na boca, senti um gosto adocicado, repugnante. Procurei o leno, no o encontrei, cuspi no cho. O que morava do outro lado da parede, direita, o tal que tinha umas letras amarelas que me diziam respeito, esse no podia dar conta de nada; a coisa seria ainda mais repulsiva se ele visse. Carreguei no boto ( certo que eu no tinha o direito de o fazer, mas no me interessava nada, nestas circunstncias, pensar nos direitos que tinha, carreguei e as persianas desceram). Ela, instintivamente, percebeu e foi deslizando para a porta. Mas eu passei-lhe frente e, arfando, sem tirar nunca os olhos da parte da cabea em que... Perdeu... perdeu a cabea! No se atreva a... Voltou atrs, sentou-se (ou deixou-se cair) na cama, meteu, tremendo, as mos unidas entre os joelhos. Sem nunca a perder de vista, saltei e estendi a mo para a mesa (s a mo se moveu) e agarrei o pedao de cilindro. Suplico-lhe! Um dia... s mais um dia! Amanh... vou amanh j... Vou fazer tudo o que... Que estava ela a balbuciar? Impeli o brao para trs... Foi como se a tivesse matado. Sim, desconhecidos leitores, tm todo o direito de me chamar de assassino. Sei que lhe teria dado com o pedao do cilindro de ferro na cabea, se ela no tivesse gritado: Por... por amor de... Estou de acordo... um momento! Com mo trmula desabotoou o unif e estendeu na cama as carnes flcidas e amarelas. S ento me apercebi do que se passava: ela julgou que eu tinha fechado as persianas para... que o que eu queria era... Foi to inesperado, to estpido, que desatei a rir gargalhada. E logo a mola comprimida dentro de mim saltou; a mo perdeu a fora, o pedao de cilindro caiu no cho. E, nesse momento, aprendi por experincia prpria que o riso a mais temvel de todas as armas, que possvel aniquilar tudo com o riso, at o assassnio. Sentado mesa, eu ria, com um riso desesperado, derradeiro, e no via forma de escapar quela situao absurda. No sei como tudo iria acabar se as coisas seguissem o seu curso natural. Mas, a, surgiu um fator externo, repentino: tocou o telefone. Correndo, peguei no auscultador. E se fosse ela? E no receptor soou uma voz desconhecida: Um momento... Zumbido interminvel, extenuante. Primeiro, passadas distncia, que entretanto se foram aproximando, cada vez mais ntidas, sonoras como bronze e... D-503? Ol! Daqui fala o Benfeitor. Venha minha presena sem demora. Clique. Desligou. Nada mais. Clique. U- continuava na cama, de olhos fechados, com um sorriso rasgado de orelha a orelha. Apanhei do cho as roupas, atirei-lhe com elas e disse entre dentes: Pega e comece a se mexer. Rpido! Soergueu-se apoiada no cotovelo; as mamas caam-lhe todas para um lado, os olhos eram redondos; toda ela era de cera. -Qu? Isso mesmo. Vamos se vista! Toda embrulhada nas vestimentas, deixou escapar: Vire-se para l... Virei-me, encostei a testa ao espelho. O espelho estava negro, mido; dentro dele tremulavam luzes, vultos, reflexos. No: era eu, era tudo dentro de mim. Porque que Ele me convocava? Seria possvel que ele soubesse dela, de mim, de tudo? J vestida, U- estava porta. Aproximando-me dela, peguei-lhe nas mos, apertei-lhas com fora, como se daquelas mos quisesse espremer, gota a gota, tudo o que me interessava saber: Vejamos. O nmero dela... sabe perfeitamente de quem falo... deu o nmero dela? No? Fale verdade, preciso saber... A mim no me faz diferena, mas tenho que saber a verdade... No, no dei. No? Como que no, se j foi l apresentar o relatrio? De repente, ficou com o lbio inferior arregaado, como o do garoto, e as lgrimas escorriam-lhe pelo rosto abaixo: Porque tive medo... que voc... se eu tivesse falado nela... deixasse de gostar de... ah, como que eu pude fazer uma coisa que... no devia ter feito o que fiz. Compreendi. Era verdade. A verdade absurda, cmica, humana. Abri a porta.
Trigsima Sexta Entrada Pginas em branco O Deus dos Cristos Sobre a minha me estranho, parece que tenho na cabea uma pgina em branco. No me lembro do que andei at l, do que tive de esperar (sei que esperei); no me lembro de nada, nem de um simples rudo, de uma simples cara, de um simples gesto. Era como se tivessem sido cortados todos os fios que me ligavam ao universo. Cheguei e fui logo presena d'Ele. Receava levantar os olhos. S me recordo das Suas enormes mos de ferro pousadas nos joelhos. As Suas mos comprimiam-No, faziam vergar os Seus joelhos, que tremiam um pouco. O Seu rosto erguia-se mais acima, entre a nvoa, e era por a Sua voz descer l do alto que no soava como o trovo, no me atroava os ouvidos, antes se me afigurava semelhante a uma voz humana normal: Ento... s tu, o construtor do INTEGRAL? Tu, a quem foi dada a oportunidade de ser o maior dos conquistadores? Tu cujo nome deveria inaugurar um novo e mais glorioso captulo na histria do Estado nico... Tambm tu? O sangue subiu-me cabea, s faces, e depois... outra pgina em branco. Ficou-me apenas a recordao das tmporas a latejar e da voz que ecoava l no alto, mas nada de palavras. E s quando Ele se calou que dei por mim. Vi a mo d'Ele estremecendo, como se pesasse centenas de quilos; comeou a erguer-se e um dedo apontou rigidamente para mim: Ento? Porque te calas? Ele um carrasco. Li no teu pensamento, no foi? Sim respondi humildemente. Da por diante ouvi nitidamente tudo quanto Ele dizia: E ests ento convencido de que eu tenho medo dessa palavra? J experimentaste descasc-la a ver o que tem l dentro? Eu vou mostrar-te. Recorda-te: uma colina sobre um fundo crepuscular, uma cruz, uma multido; alguns homens cheios de sangue, no alto da cruz, crucificando um corpo; outros, lavados em lgrimas, ao p da cruz, olhando para o alto. No te parece que o papel dos que esto l em cima o mais difcil, o mais importante? Sem eles no elenco, teria sido possvel encenar esta magnfica tragdia? A multido obscura apupava-os, mas Deus, o autor da tragdia, no pde deixar de os remunerar generosamente. Mas afinal de contas o Deus Misericordiosssimo dos cristos, que queima os contumazes no fogo lento do Inferno... o que ele seno um carrasco? Olha os autos-de-f e as tochas vivas... o nmero dos que foram queimados pelos cristos inferior ao nmero dos cristos que foram queimados? E mesmo assim (repara bem nisto!), mesmo assim esse teu Deus foi durante sculos glorificado como Deus do Amor. Ser absurdo? No. Pelo contrrio, a prova clara, assinada com sangue, do bom senso indestrutvel do homem. Mesmo quando no passava de um selvagem cheio de plos, ele tinha j entendido que o amor algbrico para com a humanidade infalivelmente inumano e que um dos sinais infalveis da verdade a sua crueldade. O principal sinal para se reconhecer o fogo o fato de ele queimar. Mostra-me l um lume que no queime. Anda, apresenta argumentos, v! Discute comigo! Como podia eu discutir com Ele? Como podia eu discutir com Ele, se tinham sido aquelas, at ali, as minhas ideias... muito embora nunca tivesse conseguido revesti- las de uma armadura to bem forjada e brilhante? Fiquei calado. Se o teu silncio significa que estamos de acordo, falemos como falam os adultos depois de as crianas terem ido para a cama. Vamos conversar tudo at final. Pergunto: qual a coisa que os homens, desde o bero, pedem? A coisa com que sonham, com que se torturam a si prprios? Todos querem encontrar algum que lhes diga de uma vez por todas o que a felicidade... e que depois os amarre bem felicidade, com cadeados. No isso mesmo o que ns fazemos hoje? O velho sonho do Paraso... Repara que no Paraso ningum sabe o que seja desejo, piedade, amor... Quem est no cu so os bem- aventurados que se sujeitaram fantasioctomia (e por isso mesmo que so bem-aventurados), so os anjos, so os servos de Deus. E agora, no exato momento em que tinhas realizado esse sonho, quando o tinhas j na mo, assim (aqui fechou as mos com tanta fora que, se tivesse nas mos uma pedra, ela no deixaria de esguichar sumo...), quando s te faltava pegares na presa para a fazeres em postas e a distribures tua volta... nesse momento, tu... tu... Inesperadamente, o zumbido metlico foi interrompido. Eu estava vermelho como o ferro que na bigorna espera o martelo. O martelo pairava imvel sobre mim e esperar que ele casse era o mais... o mais terrvel de tudo... Bruscamente: Que idade tens? Trinta e dois anos. Tens o dobro de dezesseis anos e a tua ingenuidade a de um adolescente. Presta ateno: ser possvel nunca te ter passado pela ideia que eles (no sabemos ainda os nmeros deles, mas tenho a certeza que vamos sab-los atravs de ti...), eles, afinal s te queriam por seres o construtor do INTEGRAL, s porque podiam, servindo-se de ti... Basta! Basta! gritei, como quem faz das mos escudo e suplica a uma bala: Pra!, grito ridculo que nem a prpria vtima ouve, porque a bala j penetrou nele e j o prostrou no cho. Sim, de facto, eu era o construtor do INTEGRAL. Sim... e, de repente, no tempo dum relmpago, surgiu-me a cara furiosa da U-, de mandbulas rubras e pendentes, como naquela manh em que ela e E- entraram juntas no meu quarto. Lembro-me perfeitamente: desatei a rir, ergui os olhos. minha frente estava sentado um homem calvo, socraticamente calvo. Com a calva toda coberta de gotas de suor. Como tudo era simples. Como tudo era magnificamente banal, to banal e simples que dava vontade de rir. As gargalhadas sufocavam- -me, nasciam em mim como vagas incessantes. Levei a mo boca e pus-me em fuga, toa. Passos na escada. Vento. Humidade, fragmentos de luz, de rostos. E, ao correr, no deixava de pensar: No, tenho que ir ter com ela! Tenho que a ver, nem que seja s mais uma vez! Aqui aparece outra pgina em branco. S me lembro de ps. No de pessoas, s de ps. Centenas de ps que confusamente batiam no pavimento, que caam no sei donde: uma chuva de ps. E uma espcie de cantiga brincalhona, provocante, e tambm um grito (dirigido a mim, possivelmente): Eh, eh, anda para aqui, junta -te a ns! E depois uma praa deserta, varrida por uma ventania contnua. No centro da praa, uma coisa viscosa, pesada: a Mquina do Benfeitor. E, por causa desta mquina, veio-me ideia uma imagem conhecida, refletida, aparentemente inesperada: uma almofada ofuscantemente branca e, reclinada sobre ela, uma cabea de mulher, de olhos semi -cerrados, com uns dentes afiados e iguais, como os duma serra... Tudo incongruentemente, horrivelmente relacionado com a Mquina. Sabia qual a natureza desta relao, mas no queria ainda v- -la, dizer-lhe o nome em voz alta... no queria, no podia. Fechei os olhos e sentei-me nos degraus que davam acesso Mquina. Devia estar a chover: tinha a cara molhada. Ouviam-se algures, ao longe, gritos abafados. Mas ningum, ningum me ouviu gritar: Salvem-me! Livrem-me de tudo isto! Se ao menos tivesse me... como tinham os antigos... Uma me minha, sim, uma me s para mim... Se eu fosse para ela no o construtor do INTEGRAL, no um nmero, D-503, nem uma molcula do Estado nico, mas uma parte da comum humanidade, um bocado dela, um bocado espezinhado, esmagado, triturado... E se, ao crucificar ou ao ser crucificado (talvez as duas coisas sejam a mesma coisa), ela ouvisse o que ningum mais ouve, se os lbios dela, os seus lbios velhos, encarquilhados e enrugados... Trigsima Stima Entrada Infusrios O dia do juzo O quarto dela Esta manh, no refeitrio, o meu vizinho da esquerda bichanou- -me ao ouvido, com voz amedrontada: Anda, come! Esto todos a olhar para ti! Sorri, fiz todos os esforos possveis. E senti que aquele sorriso abria uma brecha no meu rosto: era eu a sorrir e os rebordos da brecha a dilatarem-se, provocando uma dor cada vez mais profunda. E aconteceu depois o seguinte: mal eu tinha conseguido espetar um cubo de nafta comestvel, o garfo caiu-me da mo e bateu no prato... o que fez estremecer e ressoar as mesas, as paredes, os pratos, o ar, ao mesmo tempo que do lado de fora das portas de ferro se produzia um estampido ensurdecedor que se ergueu at ao cu, acima das cabeas e dos prdios, indo morrer ao longe, em crculos quase inaudveis, como faz uma pedra atirada gua, mas neste caso os crculos eram cada vez mais pequenos, em vez de serem cada vez maiores. Por momentos vi os semblantes paralisados, sem cor, vi as bocas paradas, o ato de mastigar e os movimentos dos garfos interrompidos. Sobreveio logo a seguir a confuso, desconjuntaram-se as calhas ajustadas h sculos, tudo saltou dos respectivos lugares (sem sequer se ter cantado o Hino), todos deixaram de mastigar e, de boca cheia, perguntavam uns aos outros: O que foi? O que aconteceu? O que vem a ser isto? E todos aqueles fragmentos caticos do Estado nico, cujo mecanismo foi noutros tempos to bem proporcionado, to magnificente, foram cada um para o seu lado, correndo, de elevador, pelas escadas, misturando-se o rudo dos passos com fragmentos de palavras que faziam pensar nos pedaos rasgados duma carta transportados por um redemoinho. Da mesma maneira se dispersavam os habitantes dos prdios prximos e, num segundo, toda a avenida fazia lembrar uma gota de gua vista ao microscpio: confinados dentro da gota transparente, os infusrios empurravam-se para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo. Ah! exclamava algum com voz triunfante. Vi diante dos meus olhos a nuca de algum que apontava com o dedo para o cu; recordo-me perfeitamente da unha amarela, rosada, com uma parte branca como um crescente que desponta no horizonte. E aquele dedo era como um compasso. Voltados para o cu, seguiam-no centenas de olhos. Fugindo de invisveis perseguidores, as nuvens corriam, chocavam, umas com as outras, davam saltos de r; da mesma cor das nuvens, os aerocarros dos guardas estendiam as trombas dos tubos espies e l mais para a frente, a oeste, via-se uma coisa que parecia... A princpio ningum percebeu o que fosse... nem mesmo eu que (infelizmente) sabia mais do que os outros. Parecia um enxame incontvel de aeroscarros negros, uns pontos quase invisveis, velozes, a uma altura incrvel. Aproximaram-se mais. Sons roucos caindo do alto como pingos de chuva e, finalmente, sobre as nossas cabeas... Aves. Enchiam o cu de tringulos agudos, negros, perfurantes, ameaadores; o vendaval obrigava-as a pousar nas cpulas, nos terrenos, nas colunas, nas varandas. Ah, ah! O pescoo triunfante rodou e reconheci o tipo da testa descada. Mas, das caractersticas anteriores, o que nele permanecia era s, a bem dizer, o nome. Emergia por baixo da prpria testa e, volta dos olhos e da boca, apareciam uns raios que mais pareciam madeixas de cabelos. Sorria. Est a perceber? gritava ele por entre o uivo do vento, o bater das asas, os roncos. o Muro... percebe? Eles derrubaram o Muro! Voc per-ce-beu? De relance vi, ao longe, uma srie de vultos cabisbaixos, correndo para as portas, para os edifcios. No meio da rua deslizava uma avalanche enorme... to grande que parecia avanar lentamente... uma avalanche formada por todos os que tinham sido submetidos fantasioctomia; dirigiam-se para oeste. Raios como madeixas de cabelos em volta dos olhos... Peguei-lhe na mo: Diga-me onde que ela est... Onde est E-? Est l, do outro lado do Muro ou... Tenho que a ver, est a ouvir? Imediatamente. No posso aguentar esta... Est aqui, ela gritou-me com uma voz jovial, mostrando-me os dentes fortes, amarelos... Est aqui, na cidade, a atuar. Ah, e ns tambm atuamos. Onde estvamos? Quem era eu? Rodeava-o uma meia centena de homens como ele, emergindo por trs das prprias testas altas, ruidosos, alegres, com dentes fortes. Engolindo o vento com as bocas vidas, acionando de vez em quando os eletrocutadores (onde que eles os teriam arranjado?) que eram inofensivos vista, tambm eles seguiam na direo do oeste, atrs dos que tinham feito a Operao, mas formando um crculo que tapava j a 48.a Avenida, paralela. Tropeando nos cabos enredados pelo vento, corri procura dela. Para qu? No sabia. Tropeava. As Ruas desertas; a cidade estranha, brbara; os pios incessantes, triunfais, das aves; O Dia do Juzo. Atrs dos vidros das casas vi, em vrios edifcios (ficou-me isso profundamente gravado na memria), nmeros fmeas e machos copulando sem vergonha, com as persianas escancaradas, sem terem requisitado os cupons cor-de- rosa, assim, luz do dia. Um prdio, o prdio dela, com as portas abertas de par em par. Ningum na secretria do controlador, no rs-do- cho. O elevador tinha ficado parado a meio do percurso. J recomposto, comecei a subir a escada interminvel. Um corredor. Os Nmeros nas portas, faiscantes, cleres como raios duma roda que gira: 320, 326, 330... sim, E- 330! E atravs da porta de vidro pude ver claramente que tudo no quarto estava quebrado, confuso, amarrotado. A cadeira estava cada, de pernas para o ar, semelhante a um animal domstico morto. A cama no estava encostada parede, estava toda de esguelha. No cho, cupons cor-de-rosa, como ptalas de rosa atiradas ao cho e espezinhadas. Baixei-me, apanhei um, outro, mais outro: todos tinham o nmero D-503; em todos estava eu; havia em todos um pouco de mim prprio, emporcalhado. E era o que restava. No sei porqu, pareceu-me inadmissvel deix- los ficar ali no cho, para serem pisados por toda a gente. Apanhei mais uma mo cheia deles, coloquei-os em cima da mesa, alisei-os compungidamente, olhei para eles... e desatei a rir. Antes, eu no sabia; agora j sei e todos j sabemos: o riso adquire as mais variadas cores. O riso no passa de um eco de uma exploso interior; pode consistir numa salva de foguetes, vermelhos, azuis, dourados; pode ser constituda por bocados de carne humana que rebenta ao subir no cu. Reparei ento num nmero desconhecido que apareceu num dos cupons; os algarismos no me ficaram na memria, mas ficou a consoante, que era a dum macho, um F-. Atirei todos os cupons para o cho, pisei-os, pisei- me com o meu prprio calcanhar pega! pega l mais! e sa do quarto. Fiquei uns momentos sentado no corredor, junto janela que havia em frente da porta, parei ali, teimosa e estupidamente, espera de qualquer coisa. Passos arrastados, vindos da esquerda. Um velho com cara de bexiga esvaziada, engelhada, donde escorria ainda, lentamente, um fluido transparente. Lenta, muito lentamente, percebi: eram lgrimas. E quando ele ia j muito longe que eu fui a correr atrs dele: Escute: no sabe por acaso onde que estar o nmero E-330? O velho deu meia volta, fez um gesto de fria e desespero e continuou a manquejar. Regressei a casa, era noite. No poente, o cu contorcia-se a todo o instante em convulses azul-plido e soltava um mugido surdo. Os telhados estavam cobertos de corpos negros, mortos: aves, claro. Estendi-me na cama e o sono no demorou a cair brutalmente sobre mim, sufocando-me. Trigsima Oitava Entrada (No sei como resumir este assunto. Talvez se possa reduzir tudo a um nico item: Um cigarro apagado) Acordei. A luz era ofuscante, fazia doer os olhos. Fechei- os; sentia na cabea um vapor azul e acre; tudo minha volta era nvoa. E no meio da nvoa eu ia pensando: Vejamos... Eu no acendi a luz. Como que possvel que... Levantei-me de um salto. Sentada mesa, com o queixo apoiado na mo, estava E-, que me fitava com um sorriso de troa. Estou agora sentado mesma mesa, escrevendo. Aqueles dez ou quinze minutos (mola cruelmente comprimida at ao limite do suportvel) ficaram j para trs de mim, mas tenho a impresso de que a porta se fechou agora mesmo e que ainda possvel ir atrs dela, alcan-la, pegar-lhe nas mos, e possvel que ela comece a rir e diga... E- estava ali sentada. Eu corri para ela: Tu... tu... Fui l... Vi o teu quarto... Julguei que tu... Deixei no meio o que ia dizer, impedido pelas lanas afiadas, ameaadoras, das pestanas daqueles olhos, que me fitavam exatamente como da ltima vez, a bordo do INTEGRAL. E ia ter que, ali mesmo e naquele instante, dizer o que tinha a dizer num segundo, tinha que fazer tudo para ser convincente... porque, seno, nunca mais teria outra oportunidade... Uma coisa, E-... Vou ter que... Tenho que lhe contar tudo... No, no, um momento... vou ter que beber um copo de gua... A minha boca estava seca, to seca como se estivesse forrada de papel mata-borro. Procurei beber gua, mas no fui capaz; coloquei o copo em cima da mesa e agarrei-me garrafa com as duas mos. Percebi ento que a nvoa azul e irritante era fumo de cigarro. Ela levou-o aos lbios, fumou, engoliu avidamente o fumo, com avidez igual minha ao beber a gua, e disse: No preciso dizer nada. Fique calmo. No tem importncia. Como vs, acabei por vir. Eles ficaram l em baixo minha espera e tu queres que estes poucos minutos, os ltimos que passamos juntos, sejam... Deitou o cigarro para o cho, debruou-se toda sobre um dos braos da cadeira (o boto que devia acionar ficava na parede, era difcil chegar l) e lembro-me de a cadeira balanar e de os ps se erguerem do cho. E as persianas fecharam-se. Aproximou-se e abraou-me com fora. Mesmo sob o unif, os joelhos dela eram um veneno terno, quente, absorvente, de ao retardada. E, de repente... Acontece-nos por vezes, quando mergulhados num sono doce e quente... sermos subitamente picados, acordarmos e ficarmos completamente despertos. Foi o que ento aconteceu: vi os cupons cor- -de-rosa espezinhados, no cho do quarto dela e, num deles, a letra F- e no sei que algarismos. Embaralharam-se num turbilho dentro de mim e, com uma emoo que nem agora consigo explicar, apertei-a com tanta fora que ela soltou um grito de dor. Mais um minuto (um daqueles dez ou quinze minutos): a cabea reclinada no travesseiro ofuscantemente branco, os olhos semicerrados, os dentes afiados e iguais... E tudo isto, absurda, inoportuna e dolorosamente, me fazia lembrar uma coisa qualquer em que no se deve pensar, que no deve ser recordada em tais momentos. E, cada vez com mais ternura, cada vez mais cruelmente, estreitei-a contra mim; as marcas negras- roxas dos meus dedos tornaram-se cada vez mais distintas. Sem abrir os olhos (notei isso) ela disse: Dizem que foste ontem presena do Benfeitor. verdade? verdade, sim. E logo os olhos se lhe abriram de par em par... e deu-me gozo v-la empalidecer de repente, ficar sem cor, desfalecer; s os olhos permaneciam acesos. Contei-lhe tudo. Houve s uma coisa que silenciei (no sei porqu... no, no verdade: eu sei porqu...): o que ele me tinha dito no final, que eles s teriam recorrido a mim porque... Aos poucos, como numa fotografia mergulhada em soluo, o rosto dela foi voltando a si, as faces, a fileira branca dos dentes, os lbios. Levantou-se, caminhou para o espelho do armrio. Tornei a sentir a boca seca. Deitei gua no copo, mas repugnou-me beb-la; pousei o copo na mesa e perguntei: Foi para isto que vieste? Porque precisavas descobrir o que fui fazer l? Do espelho, olhou para mim e as sobrancelhas formavam com as tmporas o tringulo agudo de troa que eu j conhecia. Voltou-se para dizer qualquer coisa, mas acabou por no falar. No era preciso. Eu sabia tudo. Seria o momento de nos despedirmos? Levantei os ps do cho (ps que no eram meus, na verdade, eram de um estranho) e fui de encontro cadeira que caiu, sem vida, como a outra que vi no quarto dela. Os lbios dela eram frios... Uma vez, h muito tempo, o cho, no meu quarto, junto cama, estava assim frio. Mas, quando ela saiu, sentei-me no cho, baixei-me e apanhei o cigarro que ela tinha deitado fora... No consigo escrever mais... no quero escrever mais!
Trigsima Nona Entrada Finis Aconteceu o que acontece quando se deita um gro de sal numa soluo j saturada: todos eriados, os cristais comearam a crescer, a solidificar, a congelar. Para mim era claro: tudo estava decidido e amanh de manh levaria aquilo por diante. Era o mesmo que me matar- , talvez, mas s assim que poderia verdadeiramente ressuscitar de novo. Porque, afinal de contas, s depois de se morrer se pode novamente voltar vida. No poente, momento a momento, o cu tinha arrepios convulsivos de azul. Sentia a cabea pesada, a arder. Passei assim toda a noite e s adormeci por volta das 7 horas da manh, quando a noite se recolhia em si mesma, comeando a ficar verde, e os telhados cobertos de aves comeavam a ficar visveis. Acordei s 10 horas (era evidente que no tinham tocado as campainhas). Estava um copo de gua em cima da mesa, tinha l ficado da noite anterior. Emborquei sofregamente a gua o mais rpido que pude. O cu era um deserto, um deserto azul limpo e varrido pelo vendaval. As sombras no tinham arestas; tudo eram sombras recortadas na atmosfera azul do Outono, sombras to finas que se receava, tocando-lhes, v-las cair desfeitas em p vtreo. O que se aplicava tambm minha mente: no deves pensar, no podes pensar, no podes pensar, seno... E parei de pensar; provavelmente nem sequer vi, embora tenha registrado tudo: no cho, aqueles ramos cados aqui e ali; as folhas eram verdes, cor-de-mbar, matizadas de prpura. No ar: aves e aeroscarros errantes, cruzando- se uns com os outros. Alm: bocas abertas, braos a agitar ramos. E de todo o lado se erguiam gritos, pios, zumbidos. A certa altura, ruas desertas como se tivessem sido flageladas pela peste. Lembro-me: tropecei em qualquer coisa insuportavelmente mole, impassvel, imvel. Baixei- me: era um cadver. Um nmero macho. Deitado de costas, com as pernas abertas, como as duma mulher. A cara dele... Reconheci os espessos lbios de negro que pareciam ainda continuar a rir; reconheci-lhe os dentes. De olhos muito abertos, ria-se na minha cara. Um segundo depois, passei por cima dele e pus-me a correr, porque j no conseguia suportar nada; tinha que passar por cima de tudo, seno (sentia-o...) quebraria, como uma trave sobrecarregada. Felizmente, andei s mais uns vinte passos; avistavam-se j as letras douradas que indicavam o POSTO DOS GUARDAS. Parei entrada, respirei o mais fundo que pude e entrei. L dentro, no corredor, sobraando folhas de papel e cadernos volumosos, os nmeros formavam filas, todos com o nariz quase em cima da nuca do que estava frente. De vez em quando avanavam um ou dois passos, passos de caracol, depois paravam. Comecei a andar de um lado para o outro da fila; tinha a cabea desfeita em bocados e cada bocado saltava para o seu lado; pus-me a puxar pelas mangas de todos os nmeros, suplicando (como o doente que suplica lhe deem o mais depressa possvel algo que, mesmo custa, duma dor momentnea, faa passar todas as dores, cure todos os males de uma vez). Um nmero fmea, toda apertada num cinto, com os dois hemisfrios do traseiro sobressados, rebolava-os de um para o outro lado, como se fossem dotados de olhos. Riu-se de mim: Est com dor de barriga! Digam-lhe onde fica a retrete... ali, a segunda porta direita! Todos comearam a rir-se de mim e as gargalhadas fizeram com que uma coisa me subisse garganta e ou eu comeava j a gritar, ou ento... ou ento... Algum de repente me agarrou pelo cotovelo. Voltei-me: orelhas- -translcidas. No cor-de-rosa, como habitualmente, mas vermelhas; a ma de Ado mexia-se to freneticamente que parecia querer rebentar a pele. O que o traz por aqui? perguntou, espetando os olhos em mim. Vamos para o seu gabinete, depressa respondi, agarrando- - me a ele. Preciso de lhe dizer uma coisa agora mesmo. esplendido eu poder dizer-lhe tudo a si. Pode ser horrvel contar-lhe tudo, precisamente a si... mas esplndido, esplndido... Ele tinha-a conhecido, o que me atormentava ainda mais, mas era possvel que tambm ele sentisse arrepios, e ento seramos os dois a cometer o crime... No me quero ver s a fazer isto, no ltimo segundo que passo na terra... Fechou-se a porta com um grande estrondo e arrastou consigo um papel que estava no cho; depois disso abateu-se sobre ns tal calma, um tal vazio que dava a impresso de nos ter cado em cima a Campnula de Vidro. Se ele tivesse dito uma palavra que fosse qualquer palavra, mesmo a mais banal eu teria despejado tudo de uma s vez. Mas ele no abriu a boca. E assim, contendo-me de tal modo que os meus ouvidos comearam a zunir, falei (sem olhar para ele): Acho que sempre a detestei, desde o princpio. Procurei... Mas no. No acredite no que lhe digo. Podia ter fugido, mas no quis fugir; quis perecer, era esse o meu desejo mais precioso... ou no, perecer, exatamente, no, mas quis que ela... E at mesmo agora, at agora, quando j sei tudo... Sabe... Sabe que fui chamado presena do Benfeitor? Sei, sim. As coisas que Ele me disse... Compreende... Imagine que algum lhe retira o cho de debaixo dos ps, neste minuto, e voc cai e consigo tudo o que est em cima da mesa, os papis, a tinta, e a tinta se entorna, sujando-o e sujando tudo, transformando tudo num borro... Continue. E depressa... H outros espera. E eu ento, gaguejando, embrulhando-me todo, contei- lhe tudo o que tinha acontecido, tudo o que se relata nestas pginas. Falei do meu eu real e do meu eu peludo e de tudo o que ela daquela vez diz-se a respeito das minhas mos... Sim, tinha sido o comeo de tudo; e de como, em determinada altura, eu tinha deixado de cumprir o meu dever e me enganei a mim prprio, de como ela me tinha arranjado atestados de doena falsos, de como os meus sentimentos degeneraram dia aps dia, e aqueles corredores subterrneos e o que neles aconteceu, e a passagem para o lado de l do Muro... Tudo isto com muitos arrancos e muitos tropees; gaguejava, faltavam-me as palavras. Os lbios dele, distorcidos numa dupla curva, sorrindo com uma careta de escrnio, murmuravam as palavras que me faltavam; eu curvava a cabea e dizia sim, sim, at que (mas como foi que tal coisa aconteceu?) passou a ser ele a falar por mim, e eu limitava-me a ouvir, nunca indo alm de simples sim, e depois ou foi exatamente assim.... sim, sim!. Senti um frio na garganta, como se fosse o efeito do ter, e perguntei com dificuldade: Mas como foi isso possvel? Voc no podia saber que... A careta dele (estava calado) contorceu-se ainda mais: No est a tentar esconder-me uma coisa? J enumerou todos os que viu naquele dia, l do outro lado do Muro, mas h uma cara de que se esqueceu. No quer dizer? No se lembra de ter visto, de relance, por momentos, de ter me visto? Eu mesmo, sim... Silncio. E, de repente, como se de repente um relmpago me percorresse todo o corpo, da cabea aos ps, tornou s-me vergonhosamente evidente que... ele, sim, ele tambm era um deles. E todo eu, todas as minhas dores, tudo quando fiz custa de sofrimento, das minhas ltimas foras, como se estivesse a realizar uma grande faanha, tudo era ridculo, fazia lembrar a anedota que os antigos contavam sobre Abrao e Isaac. Abrao, coberto de suores frios, tinha erguido a faca contra o filho... contra o prprio filho... quando subitamente ouviu uma voz vinda do alto: No te incomodes!. Estava a brincar contigo... Sem deixar de fitar aquele riso escrnio, cada vez mais disforme, pus as mos no rebordo da mesa, comecei a deslizar, sentado na cadeira, lentamente, lentamente, e, como se pegasse em mim, ao colo, sa a correr, atabalhoadamente, deixando atrs de mim gritos, degraus, bocas. No sei como, fui dar comigo l em baixo, nas retretes pblicas duma estao de metro. L por cima tudo ia perecendo, a civilizao mais forte e mais racional de a toda a histria era esmagada, ao passo que ali, ironicamente, se conservava tudo como antes, em todo o esplendor da sua beleza: as paredes alvssimas, a gua a murmurar deliciosamente, e, imitando a gua, clara e cristalina, proveniente de uma nascente desconhecida, a msica conferia beleza digesto. E pensar que toda esta beleza estava condenada, que tudo iria ficar coberto de erva, que de tudo isto s ficariam os mitos... Comecei a chorar e, logo a seguir, vi que algum me afagava os joelhos. Era o meu vizinho, o que morava minha esquerda, o da cabea calva semelhante a uma parbola, toda percorrida por umas linhas amarelas indecifrveis. Linhas que me diziam respeito.
Eu compreendo-o, compreendo-o perfeitamente dizia ele. Mas tenha calma; no vale a pena desesperar; tudo voltar a ser como , voltar, sim, inevitvel. O que agora interessa que toda a gente saiba da minha descoberta. a primeira pessoa a quem falo disto. Cheguei a esta concluso: no h infinito. Deitei-lhe um olhar furioso. Sim, o que lhe digo: no h infinito. Se o universo fosse infinito, a densidade mdia da matria seria igual zero. Como isso no pode ser (sabemo-lo perfeitamente) segue-se que o universo finito; tem a forma esfrica e o quadrado do seu raio, a raiz quadrada de Y, igual densidade mdia da sua matria multiplicada por... s falta calcular o coeficiente numrico e depois... Est a perceber? Tudo finito, tudo calculvel... e, nesse caso, de certo modo, vencemos, filosoficamente... percebe? Mas o meu estimado senhor, com o barulho que faz no me permite terminar os meus clculos... No sei o que mais me chocou, se a descoberta dele ou a imperturbabilidade que revelava numa hora to apocalptica: tinha na mo (s neste momento reparei) um caderno e uma tbua de logaritmos. E ocorreu-me ento que, embora tudo viesse a perecer, o meu dever, caros leitores, seria deixar tudo devidamente registrado. Pedi-lhe papel e escrevi mesmo ali estas ltimas linhas... Estava prestes a colocar a palavra fim imitando os antigos, que espetavam uma cruz sobre as covas onde enterravam os mortos quando, subitamente, o lpis, vacilando, me escorregou dos dedos... Oua-me supliquei, agarrando-me ao meu vizinho. Vai ter que me ouvir. Vai ter que me responder: em que ponto que termina o seu universo finito? Onde que ele fica? O que h para l, alm dele? No teve tempo para me dar a resposta. Ouviram-se passos acima de ns, passos de algum que descia a escada...
Quadragsima Entrada Fatos A Campnula de Vidro Tenho a certeza dia. Dia claro. Barmetro nos 760. Fui eu mesmo, D-503, que escrevi estas centenas de pginas? Alguma vez passei por isto ou terei somente imaginado que passei por isto? Bem ... caligrafia minha. O que vem a seguir foi escrito na mesma caligrafia... mas, felizmente, s a caligrafia que a mesma. J no h esses delrios, nem essas metforas absurdas, nem emoes. S os fatos. Porque me sinto bem; estou perfeitamente, e absolutamente bem. Sorrio. No posso deixar de sorrir. Arrancaram-me uma espcie de farpa de dentro da cabea; sinto agora a cabea mais leve, vazia. Mais exatamente, no est vazia, mas j no tem nada de estranho l dentro, nada tem que possa interferir com o sorriso (sorrir o estado normal dum ser humano normal). Eis os fatos. Naquela tarde, o meu vizinho, o que descobriu a finitude do universo, e eu, e todos os que conosco se encontravam, fomos todos detidos, por no termos certificados de fantasioctomia, e fomos levados para o auditrio mais prximo (o nmero 12 deste auditrio era-me de certo modo familiar). A fomos amarrados s mesas operatrias e submetidos Grande Operao. No dia seguinte, eu, D-503, compareci na presena do Benfeitor e denunciei tudo quanto sabia sobre os inimigos da nossa felicidade. Como que pude convencer-me de que era difcil? No se percebe. A nica explicao est na minha ltima doena, na doena da alma. Na tarde do mesmo dia, sentado com Ele, com o Benfeitor, mesma mesa, encontrei-me pela primeira vez na famosa Cmara da Campnula de Vidro Pneumtica. Trouxeram a mulher. Teve que prestar testemunho na minha presena. A mulher permaneceu teimosamente silenciosa, sorrindo. Notei que tinha os dentes afiados e branqussimos, de belssimo efeito. Meteram-na Campnula. Comeou a ficar branca e, como tinha uns olhos pretos, enormes, o efeito era de uma beleza extrema. Quando o ar comeou a ser extrado (tirado) da Campnula de Vidro, atirou a cabea para trs, semicerrou os olhos e comprimiu os lbios o que me fez lembrar qualquer coisa. Fitou os olhos em mim, sem desprender as mos dos braos da cadeira... e fitou-me at os olhos se lhe fecharem completamente. Retiraram- na logo a seguir, fizeram-na recuperar a conscincia com a ajuda de eltrodos, para logo de seguida a introduzirem de novo na Campnula de Vidro. Fizeram isto trs vezes, mas ela no disse uma nica palavra. Outros que foram trazidos ao mesmo tempo deram provas de maior honestidade. Muitos falaram logo primeira tentativa. Todos eles vo amanh subir os degraus que levam Mquina do Benfeitor. No pode haver adiamento, porque as zonas ocidentais da cidade esto ainda mergulhadas no caos, na balbrdia, cheias de cadveres e, lamentavelmente, de nmeros que atraioaram a racionalidade. Mas conseguimos construir um Muro temporrio de ondas de alta voltagem na transversal da 40 Avenida. Tenho a esperana de que venceremos. Mais do isso tenho a certeza de que a vitria nossa. Porque a racionalidade tem que triunfar. Fim Autobiografia 1929 Quais rasges numa tapearia escura, esticada alguns instantes isolados da minha primeira infncia. A casa de jantar, a mesa coberta com um oleado e, na mesa, um prato com uma coisa estranha, branca, cintilante e maravilha! subitamente, aquela coisa desaparece, esvai-se no se sabe para onde. Naquele prato estava um pedao dum universo desconhecido, exterior, estranho ao quarto; tinham-me trazido, no prato, uma mo cheia de neve, e essa neve extraordinria permanece at hoje na minha memria. A mesa casa de jantar-. Algum, janela, pega em mim ao colo e l fora, por entre as rvores, o globo vermelho do sol escurece, sinto que o fim e, mais terrvel que tudo, a minha me no volta para casa. Vim, a saber, depois que esse algum era a minha av, a morte passou ao meu lado tinha eu um ano e meio. Mais tarde: tenho dois, trs anos. Pela primeira vez via pessoas, um ajuntamento, uma multido. Era em Zadonsk: o meu pai e a minha me tinham l ido de carroa e tinham-me levado. A igreja, o fumo azul, cnticos, luzes, um epilptico a ladrar como um co, com a voz presa na garganta. Depois, acaba-se tudo, passo, empurres, fica subitamente s no meio da multido: j ali no esto os meus pais, nunca mais estaro, estou s, para sempre. Sentado numa campa qualquer, ao sol, choro amargamente. Vivi uma hora, s, s eu no mundo. Voronej. O rio, banheira singular para mim e l dentro (recordar-me ia mais tarde quando num lago vi ursos brancos) banha-se um corpo feminino enorme, rseo, volumoso, a tia da minha me. Sinto curiosidade e um certo medo. Pela primeira vez compreendo o que uma mulher. Espero janela, contemplo a rua deserta onde as galinhas se espolinham na poeira. Aparece o nosso tarantas: o meu pai volta do liceu; em cima do assento, grotescamente empoleirado, bengala entre os joelhos. Espero o almoo, com o corao apertado. mesa, desdobro solenemente o jornal e leio em voz alta umas letras grandes: Filho da ptria. J conheo essa coisa misteriosa, as letras. Tenho quatro anos. Vero. Cheiro de medicamentos. Subitamente, a minha me e as minhas tias fecham pressa as janelas, correm o ferrolho da varanda e, com o nariz colado ao vidro, observo: vai lev-los. Um cocheiro de bluso branco, corpos enovelados debaixo do lenol, pernas e braos pendentes: doentes de clera. O lazareto era na nossa rua, ao lado da nossa casa. O meu corao palpita, sei o que a morte. Por fim: uma manh de Agosto, suave, difana, o som longnquo, transparente, dos sinos do mosteiro. Caminho pelo jardinzinho diante da nossa casa e, sem olhar, sei: a janela est aberta, esto todas a olhar para mim a minha me, a minha av, a minha irm. que vesti pela primeira vez calas compridas como na cidade e uma tnica de uniforme do liceu, e levo uma mochila s costas: vou ao liceu pela primeira vez. minha frente, o aguadeiro Ignacha bamboleia-se em cima do tonel e observa-me pelo canto do olho. Vou todo orgulhoso. Cresci, tenho j mais de oito anos. Tudo isto nos campos de Tambov, numa cidade clebre pelas suas traficncias, os seus ciganos, as feiras de cavalos e a sua lngua solidamente russa, em Lbdyan, da qual falaram Tolstoi e Turgueniev. Nos anos 1884- 1893. Mais para a frente: o liceu cinzento como o pano do uniforme. De vez em quando, sobre este cinzento, uma maravilhosa bandeira vermelha. A bandeira vermelha flutuava sobre o torreo dos bombeiros e no simbolizava ento a revoluo social, mas somente um frio de menos de 20. Tal era a nica revoluo, e durava s um dia, na vida fastidiosa e programada do liceu. O fanal de Digenes, o cepticismo, aos doze anos. Foi aceso por um matulo do segundo ano e ficou a arder azul, lils, vermelho por baixo do meu olho esquerdo, durante duas longas semanas. Com lgrimas rezei a pedir que ele se apagasse. O milagre nunca se deu. Comecei a refletir. Muita solido, muitos livros, Dostoievski desde muito cedo. Nunca mais esqueci o frmito, o rosto afogueado por causa de Nietotchka Niezvanova. Dostoievski ficaria sempre a ser o mais respeitvel e o mais temvel; Gogol era um amigo (muito mais tarde Anatole France passou a s-lo tambm). A partir de 1896, o liceu em Veronej. A minha especialidade por todos conhecida: a redao em russo. A minha especialidade por ningum conhecida: todas as experincias possveis sobre mim prprio para me temperar. Recordo: no stimo ano, na primavera, fui mordido por um co raivoso. Descobri um manual de medicina qualquer, li nele que o perodo normal, antes do aparecimento dos primeiros sintomas da raiva, era de duas semanas. Decidi, pois, esperar o fim desse perodo, at ver se tinha ou no tinha apanhado a raiva para me experimentar, a mim e minha sorte. Durante aquelas duas semanas escrevi um dirio (o nico em toda a minha vida). Ao cabo de duas semanas, nada de raiva. Fui comunicar o facto direo e recambiaram-me logo para Moscou, para fazer as inoculaes de Pasteur. A experincia terminou bem. Mais tarde, dez anos mais tarde, no decorrer das noites brancas de Petersburgo, quando conheci a raiva do amor, fiz a experincia com mais seriedade, no com mais inteligncia. O cinzento do uniforme liceal larguei-o em 1902. A medalha de ouro foi posta no prego em Petersburgo, por 25 rublos, e l ficou. Recordo-me: no ltimo dia, no gabinete do inspetor (segundo a hierarquia do liceu, no curral da gua), com os culos na ponta do nariz, puxando as calas para cima (estavam-lhe sempre a cair s calas), estendia-me um livro qualquer. Li a dedicatria: minha alma mater. da qual s tenho ms recordaes. P. E. Chtchegolev. E o inspector, muito sentencioso, fanhoso, moldando bem as vogais: bonito, isso? Terminou os estudos aqui com medalha de ouro, e escreve uma coisa dessas! Agora est preso. Dou-te um conselho, no escrevas, no sigas pelo mesmo caminho! A lio no me aproveitou muito. Petersburgo, comeo dos anos 1900 Petersburgo de Komissar- jevskaia, de Leonid Andreiev, de Witte, de Plev, dos andarilhos cobertos de rede azul, das carruagens trangalhadanas com tejadilho, dos estudantes de uniforme e espadalho, dos estudantes de casaco com botes ao lado. Eu era estudante da Escola Politcnica, daqueles de casaco com botes ao lado. Num domingo branco de inverno, na avenida Nevski, a multido negra parecia esperar qualquer coisa. Est um lingrinhas da Douma a orquestrar a multido que no tira os olhos dele. Dado o sinal uma exploso, uma da tarde , por toda a avenida, manchas humanas, farrapos da Marselhesa, bandeiras vermelhas, cossacos, guardas do palcio, polcias... A primeira manifestao (para mim) 1903. E quanto mais 1905 se aproxima mais febril o movimento, mais ruidosas as surtidas. No vero, prtica nas fbricas, a Rssia, as carruagens fanfarro- nas e joviais de terceira classe, Sebastopol, Nijni, as fbricas da Ka- m, Odessa, o porto, os maltrapilhos. No vero de 1905, singularmente azul, pintalgado, a transbordar de gente e de acontecimentos. Eu fazia um estgio a bordo do Rossiya, navegando entre Odessa e Alexandria. Constantinopla, as mesquitas, os dervixes, os bazares, o cais de mrmore branco de Esmirna, os bedunos de Beirute, a ressaca branca de Jaffa, o Athos verde e negro, o Port-Said pestfero, a frica amarela e branca, Alexandria com os seus polcias ingleses, os vendedores de crocodilos empalhados, o famoso Tartouch. Singular, diferente de tudo o mais, a espantosa Jerusalm, onde vivi uma semana com a famlia dum amigo rabe. De novo em Odessa a epopeia do motim do Potemkine. Com o maquinista do Rossiya, empurrado, pisado, embriagado pela multido, vagueei todo o dia e toda a noite no meio do tiroteio, dos incndios, dos pogroms. Naqueles anos, ser bolchevique significava seguir a via da maior resistncia; tambm eu era ento bolchevique. Era o vero de 1905, as greves, a avenida Nevski coalhada de gente varrida pelo projetor do Almirantado, no dia 17 de Outubro, os comcios nos estabelecimentos de ensino superior... Numa tarde de Dezembro vem um amigo ter comigo ao meu quarto, na rua Loman, um operrio de orelhas sadas, Nikolas V., com um saco de papel daqueles dos pezinhos da Casa Filipov e, dentro do saco, piroxilina. Deixo-te aqui em casa, os polcias esto atrs de mim. Pronto, deixe ficar. Ainda hoje estou a ver o saco no peitoril da janela, ao lado do aucareiro e do chourio. No dia seguinte, no quartel-general do bairro de Vyborg, com a mesa a abarrotar de planos, de parabellums, de mausers a polcia. ramos trinta apanhados na ratoeira. E, l no quarto, esquerda, no peitoril da janela, o saco do po da Casa Filipov e, debaixo da cama, panfletos. Quando nos dividiram em grupos, para sermos revistados, fiquei eu e mais quatro ao p da janela. Vi na rua, junto ao candeeiro, caras conhecidas; aproveitei e atirei um papel a pedir que retirassem dos nossos quatro quartos o que l no devia estar. Assim fizeram. Mas eu s pude sab-lo mais tarde e, entretanto, durante meses, na cela da Chpalernaya, sonhei s com o saco da Casa Filipov, no peitoril da janela, esquerda. Na cela apaixonei-me, aprendi estenografia e ingls e escrevi versos (era inevitvel). Na primavera de 1905, libertaram-me e mandaram-me para casa. O silncio de Lbdyan, os sinos, os jardins, fartei-me dessas coisas todas em to pouco tempo. No vero, sem autorizao, segui para Petersburgo e para Hensingfors. Um quarto que dava para o Erd- holmsgatan e, sob a minha janela, o mar, os rochedos. noite, quando mal se distinguiam as feies dos rostos, comcios no granito cinza. Durante a noite as caras eram invisveis, a pedra dura e quente parecia suave, porque ela estava pertinho e os raios dos projetores de Svaborg eram uma carcia leve. Uma noite, nos banhos, um camarada nu apresentou- me um homem nu, um pouco barrigudo: o homem nu era afinal um conhecido capito dos guardas vermelhos Kok. Passaram mais uns dias o guarda vermelho estava debaixo de armas, mal se viam ainda no horizonte os vultos da esquadra de Kronstadt, as exploses das bombas de doze polegadas, o ribombar cada vez mais surdo dos canhes de Svaborg. E eu, disfarado, cuidadosamente barbeado, com umas lunetas de mola dou entrada em Petersburgo. O parlamento no Estado; pequenos estados dentro do Estado; os institutos de ensino superior tinham tambm cada um o seu parlamento: o conselho dos starostes. A luta dos partidos, a agitao pr-eleitoral, os cartazes, os panfletos, os discursos, as urnas. Eu era membro temporariamente presidente do conselho dos starostes. Uma intimao: para me apresentar no comissariado. No comissariado, um papel verde: procura-se o estudante da universidade Eugene Ivanov Zamiatine, para ser banido de Petersburgo. Declaro honestamente que nunca pus os ps na universidade e que h, com certeza, um equvoco. Lembro-me do nariz do comissrio um gancho, um ponto de interrogao: Hum ... h que investigar. Mudo-me entretanto para outro bairro, onde, seis meses passados, nova intimao, um papel verde, o estudante da universidade, ponto de interrogao, e informaes. E isto durante cinco anos, at que por fim o erro do papel foi emendado e eu expulso de Petersburgo. Em 1908 terminei a faculdade de construes navais do Instituto Politcnico, fui nomeado para a cadeira de arquitetura naval (a partir de 1911 fui professor desta disciplina). E, juntamente com o projeto dum navio com torre blindada, arrastavam-se pela mesa os rascunhos da minha primeira narrativa. Enviei-a revista Obrazovanie (Instruo), redigida por Ostrogorski; era Artsybachev que coordenava a parte das letras. No outono de 1908, a narrativa aparecia na Obra- zovanie. Quando hoje encontro algum que a leu, sinto-me to pouco vontade como quando encontro uma tia minha cujo vestido molhei publicamente, quando tinha dois anos. Nos trs anos seguintes, barcos, arquitetura naval, a regra do clculo, esboos, construes, artigos da especialidade nas revistas O Diesel, O Navegante Russo, Boletim do Instituto Politcnico. Inmeras viagens de servio por toda a Rssia: o Volga at Tsaritsy- ne, Astrakhan, Kama, a regio do Donetz, o mar Cspio, Arkangelsk, Mourmansk, o Cucaso, a Crimeia. Ao longo dos anos, entre esboos e nmeros, algumas narrativas. No as fiz imprimir; sentia que havia ali qualquer coisa que no funcionava. Esta alguma coisa veio tona em 1911. Nesse ano, as noites brancas eram maravilhosas, o muito branco emparceirava com o muito escuro. Nesse ano foi o exlio, uma doena grave, os nervos fatigados que cedem. No princpio habitei uma datcha vazia, em Sestroretsk e depois, no inverno, fui para Lakhta. Aqui, a neve, a solido, o silncio Ouiezdnoie (Provinciana). Depois da Ouiezd- noie, contato com o grupo Zavet (Testamento): Remizov, Prichvi- ne, Ivanov-Razumnik. Em 1913, tricentenrio dos Romanov, recebo autorizao para viver em Petersburgo. Mas os mdicos puseram-me a correr de l. Parti para Nikolaiev, constru l algumas escavadoras, algumas narrativas e um romance (Em Cascos de Rolha), Assim que este apareceu na revista Zavet, o nmero foi confiscado pela censura a redao e o autor, levados a tribunal. Julgaram-nos pouco antes da Revoluo de Fevereiro: quando veio a absolvio. O inverno de 1915-1916 mais uma vez tempestuoso, febril acabou com um desafio para um duelo em Janeiro; e, em Maro, partida para a Inglaterra. At ali, no Ocidente, s tinha estado na Alemanha e Berlim pareceu-me um condensado 80% de Petersburgo. Na Inglaterra foi diferente: to novo e to estranho tudo como noutros tempos Alexandria e Jerusalm. Aqui, de incio, o ferro, as mquinas, os esboos; constru quebra-gelos em Glasgow, New Castle, Nenderland, Nowsheeds (alis, um dos maiores quebra- gelos o Lenine). No cu, os alemes faziam chover bombas dos zepelins e dos aeroplanos. Eu ia escrevendo Os insulares. Quando os jornais apareceram semeados de letras gordas Revolution in Rssia, Abdication of Russian tsar no aguentei ficar mais tempo na Inglaterra e, em Setembro de 1917, a bordo dum paquete ingls sem flego (se os alemes o afundarem no se perde grande traste), regresso Rssia. Navegamos largo tempo at Bergen, cerca de cinquenta horas, com as luzes todas apagadas, os coletes de salvao vestidos e as chalupas prontas. Alegre, terrvel, o inverno de 1917-1918, quando tudo soobrou, se perdeu no desconhecido. Navios-casas, fuzilamentos, buscas, recolher obrigatrio, comits de bairro. Mais tarde, ruas sem eletricidade, grandes filas de gente com a trouxa s costas, dezenas de vestes por dia, a burguesia, sardinhas, aveia moda num moinho de caf. E a acompanhar a aveia toda a espcie de projetos para o tempo de paz: editar todos os clssicos de todos os tempos e de todos os povos, reunir todos os artistas de todas as artes, representar no teatro toda a histria mundial. Tinham passado os tempos dos esboos: a tcnica prtica secou e libertou-se de mim como se fosse uma folha morta (da tcnica s me restava o ensino no Instituto Politcnico). Ao mesmo tempo, um curso de literatura russa contempornea no Instituto Pedaggico Herzen (1920-1921), um curso de tcnica de prosa artstica no Estdio da Casa das Artes, trabalhava no conselho de redao da Literatura Universal, na direo da Unio Pan-russa dos escritores, no comit da casa dos homens de letras, no conselho da casa das artes, na seco dos filmes histricos do PTO, na redao de Grjbine, Alkonost, Ptropolis, O Pensamento, redigia as revistas Casa das Artes, O Ocidente Moderno, O Contemporneo Russo. Durante estes anos escrevi relativamente pouco. Entre as coisas mais importantes, o romance Ns que apareceu em ingls em 1925 e foi depois traduzido noutras lnguas; este romance no foi ainda publicado em russo. Em 1925, traio literatura: o teatro, as peas A Pulga e A Sociedade dos Respeitveis Tocadores de Carrilho. A Pulga foi representada no palco do MHAT no dia 2 de Fevereiro de 1925; A Sociedade dos Respeitveis Tocadores de Carrilho, em Novembro de 1925, no palco do grande teatro Mikhailovsk, em Leninegrado. Uma nova pea, a tragdia Attila foi terminada em 1928. Em Attila abalanou-me ao verso. Impossvel ir mais alm regressou ao romance, s narrativas. Acho que, se em 1917, no tivesse deixado a Inglaterra, se no tivesse vivido todos estes anos na Rssia, seria incapaz de escrever. Vi muita coisa: em Petersburgo, em Moscou, nos lugarejos da provncia em Tambov, nas aldeias perto de Vologda, de Pskov, nos tplouchki. Assim se fechou o crculo. No sei nada, no estou a ver quais sero daqui em diante as curvas da minha vida.