A Aventura em Budapeste by Ferenc Körmendi
A Aventura em Budapeste by Ferenc Körmendi
A Aventura em Budapeste by Ferenc Körmendi
68, R. da Misericórdia, 70
LISBOA
PREFÁCIO
PRIMEIRA PARTE
A IDEIA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
SEGUNDA PARTE
O ESTRANGEIRO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
QUARTA PARTE
A ARENA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
QUARTA PARTE
A AVENTURA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
PREFÁCIO
OS EDITORES
PRIMEIRA PARTE
A IDEIA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
Era a vinte e seis a última quinta-feira do mês: nessa noite devia efetuar-se
no café a reunião habitual dos companheiros. Do “Restaurante Burguês”
Kelemen dirigiu-se a casa; despiu o vestuário que levava ao escritório,
mudou de colarinho e envergou o seu belo fato azul. Em boa verdade, isto
contrariava a norma de não haver cerimónias, mas os fundilhos das calças
do fato cinzento estavam lustrosos e o casaco tinha os cotovelos no fio.
A viúva Hunka, sua hospedeira, trouxe-lhe uma escova de calçado; ele
serviu-se dela para tirar a lama dos sapatos, após o que procurou dar-lhes
lustro esfregando com um pano da velha cobertura do divã. Bateram.
- Entre - disse ele, e levantou-se. A criada da senhora Hunka transpôs a
porta.
- Senhor - proferiu ela - o sr. Weisz está lá em baixo e gritou que não estava
para subir três andares. Vendo luz aqui no quarto, perguntou se o Senhor se
encontrava em casa e se ia ao café.
- Está bem, menina. Diga-lhe que já vou.
A jovem provinciana saiu, deixando a porta aberta. Kelemen desprendeu do
cabide o jaquetão e vestiu-o, enquanto se dirigia para a antecâmara. O
quarto dava para um corredor sombrio e estreito; ao chegar à extremidade,
lembrou-se de qualquer coisa, voltou atrás às apalpadelas, acendeu a
eletricidade. Procurou a gravura pesquisando, primeiramente, nas
algibeiras, depois em cima da estante, entre os livros. Debalde, porém. Não
era capaz de recordar-se do sítio onde a tinha colocado. Forte arrelia! As
palavras constituíam só lenga-lenga, ao passo que a gravura representava
uma prova. Deixara-a, talvez, no escritório.
Voltou ao corredor; a porta da cozinha estava aberta e a serva, sentada no
banco, preparava-se para moer café.
- Ouça, Julieta - disse ele, ao mesmo tempo que metia a chave na fechadura
da porta da antecâmara - não viu por acaso uma fotografia no meu quarto?
A moçoila interrompeu o trabalho e deu uns passos naquela direção.
- Que espécie de fotografia, diga, se faz favor? - perguntou ela com certo
tremor na voz.
- Uma fotografia em que se viam diversas pessoas.
- Sim, senhor, mas supus que a não queria já …
- Santo Deus! ao menos, não a deitou fora, não? … Que é que lhe fez?
encolerizou-se ele.
- Preguei-a na parede do meu quarto, .. Eu não sabia que o senhor ainda
precisava dela …
- Está bem. Então não houve mal de maior. Vamos arrancá-la de lá,
depressa.
Seguramente, tenho muita necessidade dela - e um risinho lhe cocegou na
garganta. “O sr. A. T. Cadar, com as suas oitocentas vivendas, pregado na
parede do quarto duma criada …” Seguiu a rapariga; a imagem encontrava-
se pregada por cima da cama de ferro.
- Será precisa uma faca para tirar os preguinhos - disse a criada cheia de
zelo e pronta a correr à cozinha.
- Que a leve o diabo, à faca! - e, sustendo a respiração para não sentir o
odor acre do cubículo, arrancou à pressão do prego a imagem.
- Não fique zangado comigo - insistiu a rapariga; ele porém interrompeu-a:
- Não, não fico zangado, descanse … faz-me falta esta gravura, mas dar-lhe-
ei outra … um postal ilustrado …
E saiu.
Já se encontravam reunidos muitos companheiros à roda da grande mesa do
primeiro andar. - Boa-noite, boa-noite! …
O famoso Weisz ocupava-se nesse momento em narrar a história do seu
encontro com
Flanderum, dos velhos camaradas da escola, oficial de carreira, que, aos
trinta e dois anos, ainda era tenente; concluiu que, por aquele andar, o
homem seria promovido a general aí pelos cento e quarenta e seis anos.
Kelemen mexeu o seu café.
Avistando em cima da bandeja de Szende um quadrado de açúcar, estendeu
a mão e perguntou: “Dá licença? …” Depois, balouçando o corpo na
cadeira, atirou a frase:
- Ouçam, meninos, vocês lembram-se do Kádár?
- Kádár?
- Toni Kádár?
- O pinguim?
- Ainda o dizes?! … Se a gente se lembra dele!.
- Que lhe aconteceu? Ninguém mais lhe pôs a vista em cima …
- Pois bem, escutem - prosseguiu Kelemen destilando as palavras, com ar
importante, através dos lábios; - que pensariam vocês se eu lhes dissesse
que, de nós todos, foi ele quem conseguiu a mais bela carreira? …
Um curto silêncio seguiu esta declaração.
- Como foi o maior imbecil de todos nós, o caso não me admiraria por aí
além disse sentenciosamente o esguio Weisz.
- Vá lá - pediu Róna - conta-nos a história de Kádár. Kelemen achou que a
curiosidade geral não estava ainda suficientemente excitada.
- Que diriam vocês de oitocentas moradias à beira-mar?
- Uma praia desse tamanho nem sequer existe - declarou Szende. - Garçon!
Traze-me um Palatino e uma boquilha para charuto.
- Em primeiro lugar, como sabes tu isso? - perguntou Króh fixando-o
desconfiadamente através dos seus óculos de aros de metal branco.
- Sei-o … Olhem, aqui está …
Kelemen tirou da algibeira a página do magazine, pô-la sobre a mesa,
passou sobre ela os dedos para desenrugá-la e assentou-lhe depois em cima
o punho cerrado.
- Olhem bem isto!
Afastou o punho de sobre o papel, inclinou-se um pouco para a frente,
tomou aquele na mão e pôs-se a ler em voz solene: “Pôrto-Isabel, Cabo: A.
T. Cadar, o célebre arquiteto, de origem húngara …”
- Conheces tão bem o inglês que o possas traduzir, ex-abruplo? - interrogou
Zátony.
- Sim - respondeu ele hesitante - sei uns pedacitos. E tu?
- Yes - disse Zátony, num tom distante e frio. - Não, meu velho, não sei, não
tenhas medo, que não te farei Perguntas-de-algibeira … Mas deixa lá ver
isso!
E estendeu a mão para o papel. Este andou à volta da mesa. Todos lhe
pegaram, todos reconheceram Kádár pela maneira como ele colocava o
braço, cada qual tendo a sua observação a fazer; todavia, todos estiveram de
acordo em declarar que se tratava de uma coisa séria e que, por conseguinte,
Kádár havia sido enormemente favorecido pela Fortuna.
- Eh lá! - exclamou Simon inesperadamente - deixem-me ver outra vez esse
papel!
Segurou-o na mão, voltou-o e tornou a voltá-lo, aproximou-o dos olhos.
Afinal, isto é um artigo publicitário, pago a tanto a linha; mas não
importa …
Somente, não vejo data alguma na página. Quando foi publicada?
Subitamente, em pensamento, Kelemen, reconstituiu a primeira página da
revista, com o reclamo duma marca de pomada para calçado e o título.
- Se bem me recordo, em maio de 1928 … isto é, há quase ano e meio.
- Oh, então, o caso muda muito de figura - disse o pernalta Weisz,
desconfiado e desdenhoso: dessa data para cá, houve tempo de sobra para
ele abrir falência.
- Idiota - replicou-lhe Márton. - Julgas que em toda a parte as coisas se
passam como entre nós? As condições de fortuna, nesses países, não são
precárias ao ponto de caírem ao menor sopro.
- Quais condições? - interrompeu Róna, que havia herdado do pai um
estabelecimento de porcelanas, antigo e bem conceituado. - Tens apenas na
ideia as enormes fortunas que lá existem? Pois fica sabendo que um
industrial, um empreiteiro como aquele de que se trata, nada é comparado
com um … plantador de arroz, por exemplo! …
- Em Pôrto-Isabel - interrompeu severamente Króh - não há plantações de
arroz.
- Sim, há; - replicou Róna imperturbavelmente - e, se as não há, há
plantadores de café ou de algodão …
- Mas, por favor, não compreendo aonde queres tu chegar - disse Kelemen,
já nervoso e como que ofendido! por conta de Kádár - com o teu café e o
teu algodão! Não podes, apesar de tudo, duvidar de que ele tenha muito
dinheiro?!
- Muito dinheiro … muito dinheiro … trata-se de saber o que se entende por
muito dinheiro. É relativo …
- Relativo, que imbecilidade! - berrou um deles.- Admitindo que cada uma
dessas vivendas valha apenas dez mil pengoes, isso perfaz já oito
milhões! …
- Contanto que, bem entendido, tudo lhe pertença.
- O quê? Dez mil pengoes? - Compro-ta por quinze mil - exclamou outro, e
um alarido de vozes ergueu-se então por cima da mesa.
- Eu só queria as contribuições dele, nada mais do que as contribuições que
paga, meu amigo - ambicionou, entusiasta, Amman (ordinariamente duma
distinção tão fria e tão calma), pontuando as suas palavras com um soco na
mesa.
O tumulto apaziguou-se a pouco e pouco. Prevaleceu a opinião geral de
que, a admitir a autenticidade da informação, isto é, da gravura, era evidente
os negócios de Kádár caminharem muito bem, embora o caso não fosse de
modo algum extraordinário, em proporção com os normais nesses distantes
países. Todavia, era notável que um pobre rapaz de Budapeste, antigo
condiscípulo deles, tivesse atingido uma situação relativamente tão bela …
Evidentemente, bastava emigrar desta cidade miserável para triunfar, por
mais pobre que um homem fosse …
- No final de contas, eu não sei mesmo se era assim pobre como se dizia …
andava sempre tão bem vestido!
Lembro-me eu muito bem que ele era da Transilvânia e que habitava com
os pais, pessoas muito corretas …
- É possível, meu velho; mas o que é certo também é que recebia da
biblioteca da escola os livros de estudo e que tinha dispensa de propinas.
- Agora a propósito de livros escolares - interrompeu Szende, vocês
lembram-se duma ocasião em que …
Foi este o lamiré dum interminável rosário de anedotas extraídas da sua
comum passagem pelos liceus, histórias que, no decurso de treze anos,
tinham sido muitíssimas vezes evocadas; não obstante, isso era ainda o que
nunca enfadava.
Kelemen conservava o rosto alegre, mas uma espécie de insatisfação
trabalhava-lhe o íntimo. Sentia que a história de Kádár não provocara a
sensação que esperava.
Aqueles imbecis não tinham compreendido.
Que é que eles não tinham compreendido?
Sacou da algibeira das calças um encolhidinho cigarro, acendeu-o e,
aspirando profundamente uma fumaça, olhou fixo na sua frente e soube ver
com clareza e segurança o que aqueles imbecis não tinham compreendido.
No caso de Kádár havia um filão a explorar.
Fechou os olhos, reclinou a cadeira para trás e deixou sair lentamente o
fumo pelas narinas. Afinal, não importava nada que os outros não tivessem
compreendido.
O essencial era que ele, Kelemen, soubesse ver na história de Kádár um
filão de que poderia …
Abriu os olhos, observou um instante o grupo de companheiros, que riam de
gosto, e logo fez retinir uma bandeja com algumas pancadas do seu anel de
oiro, oferta paterna quando atingira o grau de bacharel.
- Rapazes - disse ele com certa preguiça na voz - dar-lhes-ia prazer, se
estivessem no sertão, receber, quando menos esperassem, notícias da mãe-
pátria?
- É conforme - respondeu Amman; mas já Króh o interrompia com
brusquidão:
- Em poucas palavras, queres escrever a Kádár?
- É isso mesmo - confirmou serenamente - porque não?
- Porque não? - replicou o outro - eras assim tão seu amigo?
- Eu? não … - prosseguiu Kelemen, olhando para Króh com a vista
carregada de severidade. - Nem tu tão-pouco … - acrescentou de súbito, e
um purpurino calor o invadiu interiormente porque esteve a ponto de
declarar: “Mas posso ainda vir a sê-lo.”
- Eu com certeza que não, isso é verdade - assentiu Króh; - e tu, Szende?
- Eu, tanto como vocês …
- E tu, Amman ?
- Não muito.
- E tu, Márton?
- Desagradou-me sempre …
- E vocês, Simon, Kempner, Róna, Zátony?
Todos os quatro interpelados disseram “não” com a cabeça, e Weisz
acrescentou espontaneamente:
- O Pinguim? … era um pedaço-de-asno.
- Ora, ainda bem! - concluiu Króh com satisfação e maldade. - Visto que
nenhum de nós se deu bem com ele, é lógico enviarmos-lhe uma saudação
para Pôrto-Isabel.
Alguém sibilou um “Idiota!” Mas todos os assistentes deram razão a Króh.
- Escuta, Króh - começou Kelemen, pensativo; - eu não te compreendo. Se
lhe enviarem umas palavras neste teor: “Salve, Kádár, como estás?
Lembramo-nos ainda de ti. Até à vista”, não achas que o caso agradaria até
a um animal selvagem?
Como sabes, o que menos me importa são sentimentalismos, mas quando
penso que a nossa carta poderia chegar-lhe às mãos precisamente pelo
Natal … Aliás, desde que fazes cenas por tudo, a primeira vez que te
encontrar na rua não te saudarei, porque poderá vir-te à ideia que um dia, no
nosso terceiro ano, te dei uma bofetada e que, de então para cá, nunca mais
nos sentimos bem juntos um do outro. Tenho ou não tenho razão?
- Intimamente, ele tinha razão. Este discurso calmo, simples e resoluto
colocara toda a tertúlia do seu lado.
Róna sacou da sua grossa caneta de tinta permanente e bateu com ela na
mesa.
- Garçon, papel de carta!
Um instante depois, o criado do café trouxe uma folha de papel com o
respectivo sobrescrito. Róna desenroscou a caneta.
- Antes de mais nada … escrevemos-lhe em estilo gracioso, ou a sério?
- Antes de mais nada … quem escreverá não serás tu, mas sim Kelemen -
disse Amman, tirando a pena da mão de Róna e passando-a a Kelemen, sem
deixar porém de esperar que este último, por cortesia, lhe cedesse por seu
turno o cargo.
Entretanto, Kelemen, depois de ter, um instante, olhado em sua frente,
pensativo, estendeu a mão para o lado de Amman.
- Bem … passa para cá a pena.
Quando Amman, um tanto desapontado, lhe fez entrega dela, Kelemen
relanceou a vista em redor.
- Então, que é que se escreve?
- Basta de etiquetas - decidiu Márton - escreve o que disseste há pouco, isso
mesmo ou com um pouco mais de estilo. Escreve assim: “Prezado Kádár,
soubemos que …
- deves ter muito peso - ironizou Króh … - mas logo outro arremessou em
voz baixa um “Imbecil!” e ninguém mais lhe deu atenção.
- Eis o que se vai escrever - disse Kelemen: “Prezado Kádár, estamos
reunidos num café de Peste, não te esquecemos e tivemos notícia de que os
teus negócios caminham bem …”
- “Não te esquecemos!”; a frase não me agrada interrompeu Zátony; -
escreve, em vez disso …
Minutos decorridos, Kelemen copiava, numa folha de papel, já a terceira, o
texto definitivo, que era o seguinte!
“Prezado Kádár, um pequeno grupo de antigos condiscípulos teus envia-te
uma amigável saudação por ocasião do Natal. Por mero acaso, soubemos,
com o maior prazer que fizeste uma bela carreira, que casaste e que te
tornaste rico e célebre. Todos recordamos com simpatia os dias que, juntos
e alegremente, passámos nos bancos de escola e desejamos te, para o futuro,
todas as prosperidades.”
- Uf! - respirou Kelemen, ao findar. - Assinem e passou a pena ao vizinho.
- Tu, primeiro - disse Róna, mas estendendo já a mão para a caneta,
Kelemen apôs o seu nome e transferiu a carta assim como a pena para o que
estava a seu lado.
- De modo legível, façam favor - chasqueou Króh; mas ninguém lhe prestou
ouvidos.
- Ótimo! - exclamou Kelemen, quando o escrito lhe voltou à mão, - Dois,
quatro, catorze … Vamos, Króh, nada de brincadeiras, assina aqui, tu
também.
- Não - respondeu Króh, repelindo obstinadamente na pena … - Quero tanto
saber do Kádár e das suas moradias como da primeira camisa que vesti!
Deixem-me em paz …
- Como quiseres - redarguiu Kelemen, após o que olhou Króh fixamente. -
Sabes o que tu és? Um idiotazinho , e um desmancha-prazeres.
- É possível - respondeu, brusco, Króh. - Tu, Kelemen, és, de todos, aquele
que menos me poderia ofender … mas o que eu não quero é pôr-me de
gatas diante de ninguém..
- Basta, basta! - interveio Róna, nervoso.
Desde a entrada na escola, Róna detestara sempre Króh, tendo ao mesmo
tempo medo dele; e, apesar-de passados tantos anos, sentia-se incapaz de
vencer esse temor pueril. O que acrescia ainda mais a sua antipatia por Króh
era o facto de este ser redator de um jornal socialista e não ocultar que era
pobre, não sentindo sequer vergonha alguma disso, e ainda a circunstância
de, regularmente e a propósito de todos os assuntos, exteriorizar uma
opinião diferente da dos outros.
- Deixem lá! Põe a direção, Kelemen.
Kelemen escreveu no envelope:
“Sr. A. T. Cadar, arquiteto, Pôrto-Isabel, África.”
Discutiram ainda o pormenor de saber quem figuraria como remetente, no
verso do sobrescrito. Teria sido melhor escrever: “Os companheiros de
quinta-feira” e o nome do café, mas acabaram por concordar ir em nome de
Kelemen.
Este último meteu a carta na algibeira.
- Amanhã fá-la-ei seguir do escritório; nós lá expedimos a correspondência
pela estação central.
Não se falou mais na carta. As conversas, os gracejos seguiram o curso
normal.
De quando em quando, escapava-se uns gorgomilos, um som geme-bundo;
outras vezes, uma gargalhada de criança repercutia no ar. Próximo da meia-
noite, disseram-se adeus.
Ao chegar a casa Kelemen acendeu, bocejando, a eletricidade no seu quarto.
“Está frio … Esta maldita velha avarenta não deita lenha no fogão, à noite.”
Pôs a carta sobre a jardineira e encerrou a gravura na estante, escondendo-a
debaixo da caixa dos colarinhos numa das prateleiras superiores.
“Que estupidez!” Feita daquela forma, a coisa quase não tinha ponta de
senso.
Eram frases ocas, um cumprimento de Natal, zero. “Nem sequer
responderá, pensou!
Eu, no seu caso, também não responderia. Era como se me encontrasse na
Lua e me escrevessem do planeta Marte …”
Fitou o teto.
“Se se pudesse acrescentar ali uma nota pessoal ou alguma coisa que
especialmente o interessasse!”
Tirou o jaquetão, o colete e o colarinho e arremessou tudo para cima duma
cadeira.
“Se eu soubesse haver alguém, cá, ou se qualquer coisa lhe pudesse …”
Ocorreu-lhe então uma ideia. Extraiu a carta do envelope, releu-a. Em
seguida procurou na escrivaninha uma velha pena e um tinteiro; depois, tal
como estava, descalço, em mangas de camisa, sentou-se à mesa e desdobrou
a carta na sua frente.
“Meu prezado Kádár: escrevo-te duas linhas à-par porque fui eu quem
descobriu no “Wolds Sunday Picturés” a tua fotografia e a tua direção.
Digo-to com toda a franqueza, senti vivíssimo prazer em ter notícias tuas
após catorze anos sem te pôr a vista em cima. Além do que, Kelemen
refletiu uns instantes no que convinha dizer em seguida) podes estar certo
de que a sorte dum dos meus antigos condiscípulos, ido para tão longe de
Budapeste não me é indiferente, apesar de nós não termos sido, colegas,
amigos íntimos. Os companheiros que assinaram comigo esta carta ficaram
extremamente surpreendidos!
Alguns regozijaram-se como eu, outros mostraram um pouco de inveja, mas
todos nós, no fundo, experimentámos admiração pelo teu êxito na vida.
Como é natural, não conseguimos fazer ideia do que te sucedeu até
chegares a Pôrto-Isabel.
Considerar-me-ia muito feliz se pudesse saber diretamente - isto é, por ti
próprio - alguns pormenores a esse respeito e mais particularmente feliz me
sentiria se pudéssemos ainda voltar-nos a ver neste mundo. De resto, quem
sabe?
..” Refletiu se convinha acrescentar ali mais alguma coisa, mas contentou-se
em terminar assim:
“A ti e à Senhora tua esposa, envio as minhas mais cordiais saudações. Teu
sinceramente dedicado …”
E assinou: “André Kelemen”.
Lacrou a carta e meteu-a na carteira. Não poderia, contudo, expedi-la
juntamente com o correio do escritório, porque aquele Cailek …
Despiu o resto da roupa e enfiou a camisa de noite, amarrotada, de contacto
frio. Deitou-se e apagou a luz.
SEGUNDA PARTE
O ESTRANGEIRO
CAPÍTULO I
- Dez ou doze dias lhe durou a doença. O que tinha tido nunca se soube
exactamente; provável é que fosse fadiga geral agravada por um ataque de
gripe. No dia imediato ao da chegada, encontraram-no de boca aberta, aos
ronco e com estertor. A custo o despertaram. Ele bebeu outra vez café e
tornou a descair a cabeça sobre a almofada! não era capaz de levantar-se.
“Deixem-no” disse o Rodolfo, “está cansado”. Para a tarde, pusera-se-lhe
rosto arroxeado. A tia Ana, assustada, foi buscar o termómetro - tinha trinta
e nove graus e seis! “É do esgotamento” confirmou o tio, “que durma até
fartar-se no dia seguinte, o pescoço, os braços, o peito apareceram-li cheios
de borbulhinhas vermelhas. Os velhos ficaram aterrados: seguramente, o
que ele tinha era tifo exantemático. Atrapalhado, o Dr. Webler, um velho
amigo do tio, circulava senilmente à volta do leito. Tornaram a verificar-lhe
a temperatura: a coluna de mercúrio não subiu além dos trinta e sete graus.
“Não pode ser tifo” disse o médico “quási que não tem febre”. Nessa noite
dormiu tranquilamente e no dia imediato as borbulhas haviam desaparecido.
“Com certeza que era urticária”, opinou o Dr. Webler; provavelmente,
nestes últimos tempos, não teve uma alimentação regular e foi agora a
mudança de regime que provocou isto”.
Continuava a dormir dezasseis a dezoito horas por dia, mesmo desperto,
permanecia nas trevas duma sonolência. Alimentava-se quási
exclusivamente de café, depois entrou de tossir e novamente a sua
temperatura subiu muito; obteve-se então a certeza de que se tratava de
gripe espanhola.
“Salvo qualquer complicação, não será coisa de cuidado”, disse o médico
tranquilizando os velhotes.
Na segunda semana, aquele organismo de vinte anos triunfou, enfim, da
doença.
Nos meados de dezembro pôde já sair à rua, fresco e bem disposto,
completamente curado. Só via diante de si caras conhecidas. Encontrou um
capitão que lhe ordenou que fosse à administração regularizar a sua situação
militar. Foi desmobilizado, entregaram-lhe um documento justificativo
disso e mandaram-no embora. Apresentou-se também em vários quartéis
assim como ao Conselho dos Soldados, onde lhe deviam dar dinheiro,
conforme lhe haviam dito, mas onde nem sequer viu sinal dele.
“Que fazer agora? Que irá acontecer?” perguntou a si próprio.
O prazo que fixara para se orientar passou-lhe por cima, surdo e cego: a
acumulação dos acontecimentos era tal que se sentia incapaz de lhes atribuir
uma ordem e de elaborá-los previamente. O que sucedia naquela época, em
Peste, ele não fora preparado para compreendê-lo, nem nos bancos das
escolas, nem nas trincheiras.
A cidade encontrava-se muito movimentada: desfiles de operários,
manifestações de soldados desmobilizados e, na Avenida Estefânia,
militares franceses e tropas coloniais executando manobras.
Durante o dia as ruas estavam continuamente apinhadas de gente, havia
filas diante das lojas; os eléctricos abarrotavam até aos estribos. Não se
podia ter de forma alguma a impressão de ser isto a paz! Ou seria isto, na
verdade, a paz?
Todavia, o que maior importância tinha para ele era que estava sem
vintém … Se bem que pudesse viver tranquilamente em casa do tio, não
deixava de dirigir a si próprio todos os dias esta pergunta: “Que vou eu ser?
Que é preciso fazer?” Porque, fatalmente, era necessário fazer alguma
coisa. A tia Ana dava-lhe, é verdade, de vez em quando, umas coroas e o tio
presenteara-o com um velho fraque, que ele usava conjuntamente com as
suas botas altas, amarelas, de oficial.
“Que é preciso fazer?” interrogava-se por vezes, ao vagabundear nas ruas
batidas pelo inverno, retardando a entrada em casa com receio de que os
velhos, que quási nunca saíam, lhe perguntassem um dia: “Que tencionas tu
fazer?” Era-lhe penoso reflectir nisso - mas responder a essa interrogação,
ou antes, não poder responder a ela, tornar-se-ia horrível, cruel!
“Que é que devo fazer?” interrogou-se uma vez mais.! “É já demasiado
tarde para matricular-me na Universidade; aliás, tenho eu meios para
isso? … mas então que vou fazer? Sou bacharel, cumpri dois anos de
serviço na frente, possuo três medalhas … Que vida posso eu encetar?”
Metia-se nas filas da padaria, do merceeiro. Levava para casa as rações de
carne e de açúcar e o tabaco do tio Rudi. Esforçava-se, deste modo, por se
tornar útil aos velhotes.
Um dia, viu no passeio da avenida central dois homens! com uniformes de
oficiais, mas sem galões: sentados em banquinhos de encontro à parede,
entre duas alas de paipalvos, engraxavam o calçado dos transeuntes. Perante
este espectáculo, sentiu um baque no coração e afastou-se apressadamente.
Os semblantes conhecidos surgiam de cada vez con mais frequência, e
todos lhe davam algum conselho. Um mandava-o dirigir-se ao ministério da
Guerra; outro, a Comissão dos Soldados; outro ainda, à redacção dum jor
nal comunista. Ele ia a todos esses lados e voltava na mesma. Quando lhe
perguntavam o que queria não sabia o que responder. Servia-se de longas
perífrases para chegar às palavras “dinheiro, situação, ocupação …” Mas
que préstimo podiam ter expressões como as seguintes, “propaganda para
manter a República”, “missão na província”, “digressão de propaganda”,
“organização da província”, “educação dos espíritos”? A quem serviam? De
que maneira? E onde?
O tio Rudi franzia as sobrancelhas com ar sombrio, quando ele lhe contava
estas coisas: “Hoje falei com Fulano e Cicrano, mas não percebo muito
bem …” “Tu não és nada esperto”, respondia-lhe o velho, “os outros
rapazes conseguem situações de primeira ordem ou fazem fortuna nos
tempos que vão correndo!” Depois, a meia-voz, acrescentou, pensativo:
“Aliás, isto não me admira muito a teu respeito. Não são coisas da nossa
conta.” Kádár não insistia nestas conversas com o tio, pois nem sequer as
compreendia. “Não são coisas da conta de quem? Dos Húngaros? Dos
Pestenses? Mais particularmente, dos pensionistas dos caminhos de ferro do
Estado? Ou, mais particularmente ainda, não seriam da conta de Rodolfo
Iayer e de António Kádár? …” Decorriam os dias. O inverno mostrava-se
rigoroso. O universo comprimia-se e tornava-se cinzento, mas não se via
dar um único passo em frente.
“Precisava de ganhar dinheiro … como? Em negócios? Para isso, é preciso
dinheiro, algum capital por pouco que seja …” Foi o que lhe disse um rapaz
chamado Roberto, que encontrara na antecâmara do ministério e que levava
a um dos figurões de lá cigarros estrangeiros. “E preciso ganhar dinheiro,
ocupar-se a gente nalguma coisa …” Pediu um lugar de vendedor, foi a dois
ou três armazéns. Repeliram-no com uma só palavra. Fez, por escrito, as
suas ofertas de serviço a casas bancárias e a fábricas e entregou-as
pessoalmente a cavalheiros muito delicados que lhe prometeram uma
resposta também por escrito; mas um único banco respondeu, usando da
fórmula: “Lamentamos, etc.”. “Precisava de ganhar dinheiro!” E se fosse
trabalhar como simples operário? Ofereceu-se a uma fábrica de caixas de
papelão. Não era, de todo em todo, mister que não soubesse
desempenhar! … O proprietário, um gordo Judeu com cara de espantado,
perguntou-lhe, no meio dum constante pestanejo, o que sabia fazer e quais
as suas condições.
“Desculpe-me, senhor Herz”, observou um homem novo baixo, de lunetas,
“visto termos contratos de trabalho coletivo e tabela de salários fixada pelo
Sindicato, não é necessário perguntar-lhe quanto quer ganhar.” Dizendo
isto, tirou as lunetas e voltou-se para Kádár: “O senhor é operário
classificado?”
- Não, sou alferes desmobilizado. - É sócio dalgum Sindicato?
- Não!
- Membro do partido social-democrático?
- Não!
- Muito obrigado!-disse então o mesmo homem, acentuando muito estas
palavras.
- Lamento - concluiu o senhor Herz, pondo os olhos no chão.
Prosseguindo caminho, olhou as tabuletas e as placas das casas. Fulano,
advogado; Cicrano, médico; Beltrano engenheiro. Aqueles têm uma
ocupação; e as pessoas que lhe passam ao lado, essas também não vivem do
ar …
Era preciso ganhar dinheiro. Numa dada rua, viu ataxado um cartaz: uma
mulher desgrenhada, de rosto aterrorizado, erguia os braços e bradava:
“Trabalhai! começa a faltar o pão!” “Bem” disse de si para si, diante do
cartaz. “intimam-nos a trabalhar. Sim, mas trabalhar em quê? Trabalhaf
onde? … A tia Ana poderá dar-me ainda umas coroa Estou a necessitar
dalguns pares de peúgas e desejava também ir uma vez ao music hall …”
Uma rapariga, alta de quadris, de casaco azul marinho cruzou com ele.
Fixou-a um instante e a rapariga correspondeu ao olhar. Voltou-se para a
seguir com a vista observou que a rapariga parara diante de uma vitrina
lançava olhadelas e lhe dirigia um sorriso promissor.
“Agrado-lhe”, pensou ele; “mas pode também ser que ela se ria de ver que
as abas do fraque me saem por baixo do sobretudo e que uso botas altas
amarelas.” A rapariga, provavelmente farta de contemplar o mostrador da
loja, baixou suavemente a cabeça e abalou. Ele refletiu um instante em se
devia segui-la, após o que, indeciso, atravessou a rua.
“Precisava de ganhar dinheiro!”
CAPÍTULO III
Estava-se em Janeiro e ele nem sempre tinha recebido notícias dos pais.
A última carta de Deva chegara-lhe às mãos em fins de Julho ou começos
de Agosto.
De ponta a ponta, não passava de uma longa lamentação prudentemente
expressa.
Ninguém comprava livros. O papel pouco maior venda tinha do que eles; o
estabelecimento já quase não fazia negócio nenhum.
Dos seus três compartimentos, haviam alugado um, com pensão completa, a
um advogado estagiário chamado Kormos. O pai não passava muito bem.
Desde o início do verão apoquentava-o mais, outra vez, o reumático.
A carta, como todas as anteriores, terminava assim: “Que Deus te abençoe e
te proteja.” Dessa data para cá, mais nenhuma notícia, salvo o que toda a
gente sabia: a ocupação romena, a suspensão das comunicações postais
(nenhuma resposta recebera às duas curtas que tinha escrito para casa; quem
sabe onde elas sofreram extravio?), a interrupção do serviço de caminhos de
ferro.
Às vezes, durante dias, deixava de pensar nos pais. Depois, subitamente,
sob o efeito de um boato qualquer ou de um artigo de jornal alarmante, a
inquietação esbraseava-o e daí por diante não tinha senão pesadelos.
Uma noite declarou aos velhos: “Vou-me embora para a minha casa, em
Deva”, Eles assustaram-se e lamentaram: “Por amor de Deus, meu filho,
mas nem sequer há meios de transporte para lá!”.
- Custe o que custar, lá chegarei, duma maneira ou doutra.
- Mas tu nem tens passaporte - Passarei a fronteira clandestinamente.
- Mas nós não podemos tão pouco dar-te dinheiro para a viagem.
Ele tirou da algibeira quatro notas de dez coroas.
- Onde arranjaste tu esse dinheiro?
- Vendi o relógio; de que me servia?
Foi impossível dissuadi-lo do projeto: a tia Ana chorou, o velho queria
mostrar-se enérgico mas conseguiu apenas manifestar o seu enfado. Não
houve argumento que o contivesse; forçoso foi encafuar-lhe alguma roupa
branca já usada numa maleta de fole: enfiou o capote militar por cima do
fraque e partiu.
O comboio ia só até Gyula. Em Gyula, durante dois dias passeou sem
destino, procurando pôr-se na intimidade de diversas pessoas a-fim de se
informar sobre os meios de comunicação ao longo da fronteira. Essas
pessoas mostravam-se desconfiadas e de nada queriam saber. Passou duas
noites na sala dum botequim, deitado junto da mesa, em cima de um banco.
O locandeiro estava firmemente convencido de que ele viera fazer qualquer
coisa suspeita. “Toma-me por um ladrão, ou por um desertor”, pensou;
declarou então ao camponês, o qual nunca o encarava e cujas orelhas, o
bigode e o nariz, este dum tom avinagrado, pareciam eternamente atraídos
para a terra que desejava passar a fronteira. O locandeiro tirou o cachimbo
da boca, olhou-o fito, cuspiu e não disse palavra.
Nessa mesma tarde, comprou um pão de centeio, grande, e um bocado de
toucinho assado; e quando a noite baixou pôs-se a caminho. Caía uma
chuva misturada com neve. As suas botifarras amarelas patinhavam na lama
até os tornozelos. “Meti-me em boa! …”, pensou. Avanço na escuridão,
através da nudez dos campos invernal nessa frouxa e prudente marcha que
permite a qualquer um lançar-se em terra de um instante para o outro, e os
seus olhos - aprendera a ver na escuridão - não cessavam de observar a
estrada nacional, de que não queria afastar-se mais de vinte passos. Pela
madrugada, viu-se de súbito em frente dum grupo de soldados com
uniforme estrangeiro. Entalou o pão entre os joelhos e levantou os braços
no ar. A patrulha romena prendeu-o, dois soldados escoltaram-no, de
baioneta armada, durante perto de duas horas, pela estrada cheia de neve e
lama. Chegaram por fim a uma espécie de curral, para aonde o empurraram.
No interior encontravam-se cerca de vinte pessoas, deitadas na palha, as
quais dormiam, murmuravam, choravam, cheiravam mal. Ele estendeu-se
sobre a palha, meio sufocado pelo detestável odor, os olhos perdidos na
penumbra. “Para que me hei-de ralar?” A patrulha tinha-lhe apreendido o
canivete, os papéis, o naco de pão, a maleta de fole e as vinte coroas. De
quando em quando entreabria-se a porta e, momentaneamente, uma luz
cinzenta perfurava a escuridão: chegava outro. O recém-vindo parava junto
da parede, tateando as trevas, diligenciando orientar-se …
O sol brilhava no céu dum azul retinto quando o fizeram sair do curral.
Seguiram ao longo da via-férrea. Conduziram-no, com mais uma dezena de
pessoas, para uma casa branquinha de cal, e achou-se então num quarto
vazio. Por quanto tempo? Uma hora, duas horas, três horas? … Depois viu-
se diante de uma comprida mesa carregada de papéis, tinteiros e penas. A
essa mesa estavam sentados oficiais romenos fumando charutos e cigarros.
Notava-se, entre eles, um homem novo, o qual envergava uniforme
diferente. Aquele não era romeno, devia ser um oficial estrangeiro. Depois,
um dos oficiais disse-lhe qualquer coisa em romeno, que ele não
compreendeu; porém, repentinamente, passou-lhe uma ideia pela cabeça.
Avançou e parou diante da mesa, em frente do oficial estrangeiro. Viu-se
face a face com um rosto jovem, de cabelos louros e sedosos, em risca ao
lado, e olhos dum azul claro muito puro. Um oficial inglês. “Não deve ter
mais idade do que eu” pensou ele; em seguida, apoiando-se no rebordo da
mesa, disse: Mister … Kamernd! Ich bin ein armer Student.” Fez esforços
para encontrar palavras estrangeiras úteis na emergência … “ich muss zu
den Eltern … Eltern, parents, Vater, Mutter …” Naqueles olhos azues surgiu
um sorriso, imediatamente oculto numa fina ruga da testa. “Ah! you want to
see your parents?” - “Ya, - Yes! Yes” - “And yqur parents are living in
Romania?”
prosseguiu o inglês. Ele respondeu, ao acaso: “Yes, Romania, Deva?” - Ah!
In Deva, and you wanted to get there?” Não compreendeu a última
pergunta, mas depositou confiança em quem lha dirigia. “Yes, yes”,
respondeu. Os oficiais interromperam este diálogo, fazendo observações em
romeno, em inglês e em francês; estabeleceu-se uma conversação rápida,
em voz alta, da qual não percebia nem uma única palavra. Todavia,
simpatizava já com o oficial inglês e sentia-se reconhecido, quanto mais não
fosse porque este se esforçava por falar lentamente e por se fazer
compreender por ele, quer por gestos quer pela entoação da voz.
Novamente o inglês se lhe dirigiu: “You were Officer in the Army of the
Monarchy, were nt you?” interrogou e, com o lápis, apontou a gola do seu
capote de oficial. “Yes. Oficial! Tenente!” mentiu Kádár. Travou-se outra
vez uma conversação em alta voz; foram proferidas frases veementes.
Não compreendia o debate, mas adivinhava que o inglês queria mandá-lo
para a Hungria e que os romenos se opunham a isso. A discussão durou
longos minutos; um corpulento oficial romeno bateu com o punho na mesa.
O; inglês deu, por seu turno, um murro em cima da mesma.; Já sabia,
doravante, que não conseguiria reunir-se ao país, e que por muito feliz se
poderia dar-se regressasse são e salvo à Hungria. Nova discussão, novos
murros na mesa nem sequer procurava já perceber as palavras que se
trocavam. A voz do oficialzinho inglês elevou-se, estridente “I want it! I
insist on it!” Depois, reconduziram-no à granja, onde permaneceu até o dia
seguinte de manhã. Era-lhe já indiferente o que viria a acontecer. “Pode ser
que me soltem: depois, aí a uns dez passos, pelas costas …” Na manha
imediata, três soldados, de baioneta armada, obrigaram-no a sair da granja,
simultaneamente com outros cinco ou seis. Fizeram-nos subir para uma
carroça, a qual começou a rodar pela estrada que ele, em sentido oposto, já
caminhara a pé, escoltado de soldados. A sua maleta e mais pertences,
tinham ficado lá. Mais tarde, tiveram de descer do carro. Um dos soldados
indicou-lhes a direção a seguir. “Em frente, marche!”, exclamou e, depois,
quando se puseram a caminho, disparou para o ar.
Ao chegar a Gyula, Kádár dirigiu-se logo à hospedaria. O aldeão
reconheceu-o e perguntou-lhe imediatamente se trazia dinheiro. “Não”,
respondeu. “Nesse caso pode sentar-se para aí, se quiser, mas sem dinheiro
não lhe darei de comer.”
Encaminhou-se então para o padeiro onde comprara o pão de centeio,
alguns dias antes. Pediu-lhe que o albergasse, sem deixar de declarar-lhe
logo que não tinha dinheiro. O padeiro mandou-o passear. Fez outras
tentativas semelhantes nas casas dos camponeses, nos extremos da cidade,
mas em toda a parte foi repelido.
Zumbiam-lhe os ouvidos, a fome produzia-lhe vertigens. A vez última que
havia comido fora depois do seu interrogatório pelos romenos, em gamela
poeirenta, uma sopa e uma massa pegajosa que sabia a papas de milho.
Na praça principal sentou-se num banco; ao menos, não queria cair
redondamente no meio da rua! Ficou ali sentado, durante quanto tempo? …
No vasto céu cinzento desenhavam-se e ondulavam inúmeros círculos
coloridos; mesmo em frente do nariz erguia-se uma casa de dois andares
onde uma janela, no segundo pavimento, se encontrava aberta de par em par
e cheia, até à altura da bandeira de vidro, de édredons e de travesseiros.
“Um edredon, vermelho como aquele além, eis o que me dava a conta,
agora”, pensou. “Se forrasse a cabeça com ele, deixaria de sentir o zumbido
nos ouvidos”. Sobre a porta da casa, uma enorme tabuleta oval em que se
podia muito bem decifrar:
“Bárbara Kovik, parteira diplomada. “Valia bem a pena nascer! ou, por
outra, não valia a pena nascer homem!” - Olha, és tu, Kádár! - ouviu de
repente alguém dizer.
Ergueu a vista, piscou os olhos e viu ao pé de si um homem vestido de
cinzento azulado, com calções de desporto, polainas altas de couro de
primeira qualidade e um emblema vermelho no boné. Reconheceu-o
imediatamente: era Lechner. Haviam estado juntos, algum tempo, na
“frente”, na Albânia.
- Que fazes tu aqui?
- E tu?
Revezaram-se as perguntas e respostas. Recordações comuns e coisas
correlativas aos seus estranhos destinos lograram ensejo de exprimir-se ali,
naquele banco, em face dos édredons e da tabuleta da parteira.
Lechner era oriundo de Gyula, regressara à sua terra e não tinha que
queixar-se disso. Presentemente, era Presidente do Conselho local dos
Soldados.
“Sabes tu?” explicava ele, “tanto os socialistas como os burgueses
depositam confiança em mim. O meu pai é salsicheiro, ganha, graças a
Deus, muito bem a sua vida, e quando voltei disse-lhe que me deixasse
fazer o que eu quisesse. Desatei a abrir a goela à valentona! Gorjeei
arengas, Maria vai com as outras. Em resumo, saí-me admiravelmente da
comédia.” Lechner levou-o, depois, a casa do pai; aí, deram-lhe morcela e
salsicha de fígado. Não se ocuparam, aliás, dele de qualquer outra maneira;
prepararam-lhe uma cama numa antiga cozinha onde pôde dormir até fartar-
se. Não importunava ninguém, raramente se deixava ver.
Passados dois dias, Lechner conseguiu que lhe dessem, na Câmara
Municipal, cinquenta coroas. A boa Senhora Lechner encheu de chouriços e
de carne fumada um saco, metendo também lá dentro um boião de banha de
porco. Partia naquele dia um comboio para Budapeste.
- Então, até à vista, disse Lechner; - quando eu for A AVUNTURA EM
BUDAPESTE faremos a pândega juntos numa boa adegazinha de lá!
Quando se apresentou diante dos velhotes, estes nem queriam dar crédito
aos próprios olhos.
- Então, a-pesar de tudo, pudeste voltar? Não morreste? Estiveste em Deva?
Santo Deus!
Onde é que deitaste a mão a estas salsichas todas? E ainda a este boião de
banha?
O tio Rudi cheirou a banha de porco e declarou: “E de primeira ordem!”
Depois disto, novamente em Peste, o tempo foi passando, e até de maneira
bastante rápida. Permanecia sentado dias inteiros, a olhar através da janela.
Mas tudo agora tinha, para ele, quase nula importância. Gozava sossego e
as poucas coroas com que ficara bastaram-lhe durante algum tempo. O que
importava acima de tudo, era a tranquilidade. Lechner era uma jóia de
homem e o moço oficial inglês, esse, também era uma jóia. Duma maneira
geral, os homens eram todos bons …
desde que se não lhes pedisse nada … Gozava-se sossego, fazia bom tempo,
e era agradável viver. “No fim de contas, eu podia lá ter ficado para sempre,
em 9 de outubro de 1917, por exemplo, quando os italianos atacaram onze
vezes a seguir …” filosofava ele, “ou ainda agora, na linha fronteiriça, se
me tivessem solto, por exemplo … uma dezena de passos mais longe … E
tudo questão de sorte. Dentro em pouco o inverno estará acabado … e, em
suma, é a paz. No outono, matricular-me-ei na Politécnica; pedirei dispensa
de propinas. Posso instalar-me aqui, em casa do tio Rudi … mas antes, no
verão, darei uma saltada a Deva.”
CAPÍTULO IV
“Não, não me sinto feliz em Londres. Esperava vir encontrar mais do que
isto, ou, pelo contrário, menos talvez? Não saberia dizê-lo. Tenho a
impressão de que Paulo, que dispõe do nosso tempo e do nosso dinheiro,
estragou tudo. Que vamos nós fazer? Nada sei a tal respeito; não é porque
não tenhamos um programa, de antemão e minuciosamente traçado para
cada dia; mas nesta ocasião foi Paulo ao Banco receber dinheiro. Vamos,
isso não me oferece dúvida, visitar os trabalhos preparatórios da Exposição
de Wembley. Paulo gostaria também de assistir a uma rusga em
Whitechapel; com este fito, procura agora adquirir relações entre a
Polícia … E, a seguir, haverá decerto um ror de galerias de quadros, de
bibliotecas, de exposições de escultura e de coleções de antiguidades, que
vamos honrar com a nossa visita; e uma enormidade de conferências a que
vamos assistir. Não privamos muito com os outros locatários da pensão; são
todos londrinos ou, pelo menos, ingleses. Não há, por assim dizer, gente
nova entre eles; e depois, sabem todos que somos vienenses, desconfiam
um pouco de nós. Os ingleses não são comunicativos e não se ligam a
ninguém facilmente. Às vezes conversamos com um rapaz que Paulo
abordou numa biblioteca e, de tempos a tempos, passamos o serão na
companhia de duas raparigas com quem travámos conhecimento um sábado
à tarde, graças ao carro dela ter sofrido uma pane na estrada real e nós, com
o Ford que Paulo aqui alugou, o termos rebocado até à cidade. Uma chama-
se Isabel Croven, abreviadamente, Ila; os pais vivem em Glasgow e ela
trabalha aqui no escritório dum lojista de vidros, seu parente afastado. A
amiga chama-se Yomaya; é altíssima, uma verdadeira indu de Madrasta.
Está estudando na Universidade.
Agora, desejaria dizer-te o que, até à data, vi de Londres: uma grande
cidade, num turbilhão estonteador de pormenores acumulados, sem uma
casa única já do meu conhecimento, sem um canto de rua familiar, sem uma
voz conhecida; e, todavia, essas casas estranhas, essas ruas desconhecidas,
esses ruídos insólitos não chegaram a produzir em mim a impressão
profunda do absolutamente novo. Pretende isto dizer que me não sinto à
vontade, aqui? Devo dizer, hoje que já semanas passaram sobre a minha
chegada: não estou ainda desencantado, ou não espero já mais nada? Não,
Tilly, se eu não me sinto feliz em Londres, é talvez porque demasiado me
pesam as saudades por Ti …” “Um dia destes, tive um curioso encontro.
Paulo fora visitar, essa manhã, uma distinta família londrina, para a qual
trouxera uma carta de apresentação. Aproveitei esse intervalo para dar uma
volta. De-repente, numa das ruas elegantes, perto dum grande hotel, dei de
cara com um antigo condiscípulo de liceu, Estêvão Varga, - devem, sem
dúvida, os tios estar lembrados do seu nome. Ele deu-me a sua direção em
Londres e em Ostende, intimando-me a visitá-lo no caso de, no fim de
agosto ou princípios de setembro, nus encontrarmos ainda em Londres.
Poderíamos então passar juntos alguns serões agradáveis. Imaginam decerto
como me deu prazer falar húngaro, coisa que me não sucedia há tempo
infinito! Este encontro agradou-me tanto mais quanto é certo que, no liceu,
Varga não se contava no número dos meus amigos; demasiadamente nos
fazia sentir, a nós outros, alunos pobres, que tinha uma situação nitidamente
superior. Passámos uma boa meia-hora de conversa, após a qual ele foi à
sua vida e eu voltei para a pensão.
“Para pôr termo a esta carta, devo repetir: faltar-me-iam a tinta e o papel
para lhes descrever, mesmo superficialmente, meu querido tio Rudi e minha
querida tia Ana, tudo o que há aqui de belo e interessante. Talvez um dia,
quando a tranquilidade dos dias vienenses mo permitir, ou então se a
Providencia ma levar ainda à vossa estimada e familiar residência da
avenida de Presburgo …”
CAPÍTULO X
Regressaram de madrugada.
Manhã alta, Kádár despertou, a cabeça pesada, os olhos baços, no rom-rom
torturado dum automóvel com avaria no motor. Consultou o relógio: eram 9
h.
Por de-baixo dos estores meio descidos, penetravam raios de sol no quarto.
Paulo estava diante do toucador, nu até à cintura, uma toalhinha em volta
dos rins, a cabeça inclinada rente ao espelho, no qual Kádár descobriu dois
olhos esbugalhados, a dançarem movidos pelo espanto.
- Que é isso? Que fazes aí? … - perguntou-lhe … e um súbito mau-estar
varreu-lhe logo e de todo o sono. Paulo voltou-se para ele num movimento
insolente desajeitado, pálido como linho:
- Nada - respondeu, numa voz sem timbre. - Já acordaste? …
- Tens má cara - prosseguiu Kádár. - Estás, ó miserável, com uma cabeça
indecente; bebeste demais, hein? …
- Faz-se o que se pode - replicou Paulo, lançando um último olhar para o
espelho, e começou de vestir-se.
- Não tomas banho? - estranhou Kádár, ou já tinhas saído do quarto?
- Não - respondeu Paulo num tom indiferente. - Creio que apanhei um
resfriamento.
Fêz-se silêncio. Nalguns minutos apenas, Paulo acabou de arranjar-se; o
rosto retomou-lhe a cor natural, mas qualquer coisa extravagante brilhava
em seus olhos.
Kádár, da sua cama, observava o amigo. Tinha a impressão de que se
passava fosse o que fosse de anormal. Paulo despediu-se dele em duas
palavras:
- Tenho voltas a dar na cidade, preciso também de ir ao Banco; voltarei à
hora; - e abalou sem detença.
Kádár tornou a deitar-se, no meio de interminável serie de bocejos. Pelas 11
horas despertou novamente, tomou banho, almoçou, abriu um jornal da
manhã, que percorreu a custo e que depois lançou para longe, a-fim de
dirigir-se à sala de visitas. O céu apresentava-se ligeiramente coberto; não
sentia vontade de sair.
Trocou algumas palavras com o sr. Colham. O proprietário da pensão
perguntou-lhes se eles não quereriam ir de tarde, na sua companhia a
Wimbledon, onde começavam os campeonatos de tennis.
- Não sei ainda - respondeu Kádár … -iria de bom grado se o sr. Paulo
quisesse ir.
Afinal, sempre saiu. Um auto-bus transportou-o até Blackfriars Bridge;
após um curto passeio na estrada marginal voltou a pé para a pensão …
Uma manhã vazia …
“Há muito que eu não tinha uma manhã livre”, pensou. “Paulo foi ao
Banco; o nosso dinheiro está quase a acabar-se, vamos marchar outra vez.
Já é tempo!”; e esforçou-se por não pensar na sua estada em Londres.
Era uma hora quando chegou à pensão. Entrou no quarto. Paulo estava, sem
colarinho, diante do espelho.
- onde estiveste? …
- Na cidade …
- Ah! eu também; - disse Kádár encarando muito nele - Porque é que tiraste
o colarinho? … - Paulo olhou para o ar o proferiu uma evasiva:
- Por nada. Depois foi à janela, voltou para defronte do espelho e, por fim,
deteve-se à distância de um passo de Kádár. Com o rosto cheio duma
palidez mortal, disse-lhe, numa voz estranha e grave:
- Escuta, Tony, é uma coisa horrível!
Aquela cara, aquele tom, aquela frase! Um terror sem nome se apoderou de
Kádár:
- Por amor de Deus, que é, que coisa horrível é essa? … - bradou.
- Tony - disse o outro, e a sua voz de baixo transformou-se numa lamúria
medrosa de criança, fui contaminado por Yomaya …
O sangue de Kádár congelou-se-lhe nas veias, num só instante. “Meu
Deus! … a sífilis? …” Ouvindo esta palavra, o rosto de Paulo contorceu-se
numa careta.
- Sim, acabo de vir do médico que procedeu à análise do sangue: resultado
positivo.
Kádár não conseguiu encontrar uma única frase; o peito sacudido por uma
náusea, olhou fixamente o seu amigo prostrado sobre uma cadeira, sem
vida, como um fantoche a que se soltou o elástico.
Este silêncio teve a duração de muitos minutos ou de bastantes quartos de
hora?
Paulo postara-se no centro do aposento, meio voltado para o espelho, meio
voltado para ele.
- Porque estás olhando para mim? … - gemeu Paulo, por fim.
Esta frase restituiu a fala a Kádár.
- Que vamos nós fazer agora? … - perguntou-lhe, desanimado,
profundamente envergonhado de gritar por socorro no momento em que
devia ser ele a prestá-lo.
- Agora … o que vamos nós fazer? Eh, bem! vamos para casa … Aqui não
posso … - disse Paulo, e calou-se novamente. Mantinha-se de pé, e Kádár
continuava afundado na cadeira. Uma horrível emoção, que lhe gelava o
sangue, estrangulava-o.
Recordava-se do que Wirth dissera um dia, a respeito da temível infecção,
inoculada por uma raça diferente … Também Paulo se recordava disso? …
Não se atreveu a proferir palavra; não ousou sequer interrogar Paulo sobre a
maneira como aquilo tinha acontecido. Caricato! Como acontecera
aquilo? … Não reparara ele em que a rapariga estava doente? … Mas
poderia perguntar-lhe fosse o que fosse, no instante em que Paulo
continuava de pé, em frente do espelho, a camisa aberta sobre o peito, os
olhos embaciados fixos sobre a sua própria imagem e mostrando, ao canto
das pálpebras, duas tristes lágrimas que iam engrossando? De súbito, em
silêncio, ele voltou-se; cada um dos seus movimentos era, nesse momento,
desastrado e anguloso.
- Tony - disse Paulo, aqui nada posso fazer … Vamos arranjar as malas e,
amanhã de manhã, levantarei dinheiro do Banco e partiremos.
Esse rosto de criança, angustiado, enlouquecido! Não havia senão uma
coisa a fazer, nesse instante … Ir direito a ele, abraçá-lo, apertá-lo nos
braços, incutir-lhe coragem e confiança em si-próprio … Via-se, porém,
incapaz de bulir sequer, na sua cadeira: a gélida serpente do desgosto
enroscava-se nele, num aperto viscoso … Sabia que se Paulo o tocasse
naquela ocasião se subtrairia ao seu contacto.
A imobilidade de Paulo transformou-se repentinamente numa agitação
febril e, tal como uma mosca à qual queimassem as asas, o rapaz corria de
canto para canto, com movimentos extravagantes, acutângulos e aflitos.
O criado trouxe as malas. A hospedeira acorreu e perguntou, admirada: “O
quê, os senhores partem? … assim, de súbito? … Nem sequer almoçaram
ainda … Como é natural, o preço da pensão compreende a semana
inteira … infelizmente, não me é possível deduzir os três últimos dias …”
“Bem entendido, respondeu Paulo com vivacidade, impaciente de a ver
pelas costas. Os fatos, a roupa miúda voaram do guarda-vestidos e
acogularam-se nas malas, este desvairamento de Paulo apoderou-se também
de Kádár; decorreram duas horas e as malas continuavam por fazer. Talvez
por saberem que, uma vez findo esse trabalho, teriam diante de si uma
estirada tarde. A partir das 4 horas, todavia, nada mais tiveram em que
ocupar-se. Consultaram o horário dos comboios: o rápido partia da estação
“Vitória” às 11 horas da manhã; estariam em Paris antes da meia-noite e
esperariam o primeiro comboio que seguisse para Viena. Paulo matava o
tempo arrastando o mais que podia os preparativos. Pediu a conta à senhora
Colham e pagou, com lentidão afetada, o custo da hospedagem até o fim da
semana; depois desceu à rua para comprar cigarros. Dez vezes pelo menos,
tirou da algibeira o passaporte e bem assim a sua carta de crédito sobre o
Banco Hudderston CADe.
Súbito, quebrou-se-lhes a grande animação.
Ambos ficaram afundados nas suas cadeiras, incapazes de fazer fosse o que
fosse.
Os minutos escoavam-se com uma morosidade incrível … e nada diziam
um ao outro … Pelas seis horas, Kádár ergueu-se finalmente e foi lançar um
olhar para a rua, que então se animava. Abrigava no peito uma sensação
amarga, tenaz e e dolorosa. Não tinha dado bom resultado, esta coisa da
vinda a Londres. Que sucederia, agora? … Que iam fazer? … Que faria
Paulo? Aguentariam um e outro as recriminações … de quem? Dos pais de
Paulo? …
importar-se-iam eles, no fim de contas, com a infelicidade do filho? … Ou
então de Wirth? Perante este não estava por completo justificado? … Não!
Ele dir-lhe-ia: “Não prestaste a atenção devida a esta criança” …
E depois, serial necessário ir ao encontro de Rosinha! … Santo Deus, seria
preciso dizer-lhe: “Rosinha, o teu Paulo …” calafrio percorreu-lhe todo o
corpo. Rosinha havia-lhe declarado outrora: “A camaradagem amorosa é o
melhor penhor duma vida pura e duma saúde perfeita.”!
E surgira, afinal, Yomaya, essa jovem indiana, de tez morena, com o seu
sangue envenenado, seus beijos sem consciência, . .
“Tony, explicara-lhe Paulo uns dias antes, deixa-me eu posso resistir-lhe,
não quero v. . resistir à sua singularidade, à sua raça estranha”. Ele dissera
isto como se fosse um velho devasso a quem urge o tempo. Não era mais
bela que Rosinha, nem mais alta, mas era diferente! dela … com os seus
grandes olhos semi-cerrados, de expressão ingénua, com a sua fala calma
duma entoação bizarra e profunda, assemelhando-se a uma contínua canção
com o seu sangue funesto …
Talvez ela própria o ignorasse, tendo-o recebido talvez à nascença, à
maneira de maldição dum antigo e maléfico amplexo …
Paulo deitara-se ainda antes de a noite cair. Nem sequer jantara. A criada de
quarto trouxe a Kádár chá e um prato de carnes frias; custou-lhe a engolir
alguma coisa antes de, por seu turno, se deitar.
O itinerário estava fixado; vinte vezes o tinham discutido: levantar-se-iam
às 7 horas e às 10 horas receberiam o dinheiro no Banco, após o que iriam
diretamente para a estação.
Kádár apagou a luz; imediatamente o reflexo dos auto-bus que passavam na
rua começou a projetar-se no teto, em feixes de luz que o varriam de lado a
lado. O silêncio reinava no quarto. Tinha já dado meia-noite, despertou dum
sono profundo, animal, surdo, sem sonhos: alguém caminhava ali dentro.
Soergueu-se: Paulo encontrava-se de pé junto da mesa, segurando na mão
uma costeleta fria, que havia ficado na bandeja. “Não consigo dormir,
cochichou ele, e sinto uma fome horrível.” A situação era quase cómica:
Paulo, descalço, envolto no pijama azul claro, de costeleta na mão.
- Não podes dormir porque estás esfomeado disse-lhe Kádár. - Come, que
logo dormirás, - e depois recaiu ele na almofada e ferrou-se outra vez no
sono.
Despertou novamente sob a ação de um grande ruído seco, a que se seguiu
outro leve, uma espécie de arrepanhar de mão em roupa distendida. Um frio
mortal lhe gelou os membros e todo o terror mau, absurdo, desconhecido,
da existência humana estremeceu na sua voz, quando, na luz indecisa da
aurora, chamou:
- Paulo, tu dormes? … Paulo … Paulo! …
De um salto, atingiu o interruptor; uma luz amarelada inundou o quarto;
Paulo não estava na cama … ou antes … arrebatando a ligeira colcha
castanha que a cobria, viu Paulo estendido de costas sobre a cama, a perna
direita dobrada sobre o ventre, e … e … o braço direito e todo o tronco
ocultos pela grande almofada branca, que o braço esquerdo parecia enlaçar.
Com certeza infalível Kádár soube então que qualquer coisa sucedera e não
se atreveu a desviar a almofada de cima da cabeça de Paulo. Quedou-se um
instante à cabeceira do leito, numa vertigem misturada de desgosto; depois,
o seu dedo precipitou-se para o botão da campainha …
Minutos decorridos todo o andar estava a pé, e quando o Dr. Ryborg, o
velho médico sueco, locatário da pensão, apareceu dentro do roupão enfiado
à pressa, ouvia-se já no silêncio da madrugada o ronco dum automóvel
parando em frente do prédio, e a pesada porta abrir-se e fechar-se. O quarto
transbordava de basbaques cheios de terror, sumariamente vestidos, o
semblante pasmado e pálido sob cabelos em desalinho e de olhos
arregalados. Silenciosos, deixaram o doutor passar. Este, pegando
suavemente no braço azulado que enlaçava a almofada, pô-lo ao longo do
corpo e levantou depois aquela. O rosto amarelo de Paulo - da sua boca
aberta e contorcida escorria um fio espesso! de sangue que lhe chegava ao
queixo - mergulhava num charco vermelho, ao passo que sobre o
travesseiro, à altura do pescoço, jazia um revólver miniatural, de reflexos
azuis.
Em tudo o que se seguiu houve alguma coisa própria de sonho, alguma
coisa de confuso, de estranho e de incompreensível: indivíduos de bata e de
barrete azul, depois um agente da polícia e outro mais, e também um civil
de bigode imponente. Todos o assaltaram com perguntas que ele
dificilmente compreendia; e mesmo que as tivesse compreendido bem,
nenhum som teria podido soltar-se da sua garganta empedernida. A senhora
Colham tremia a um canto, com um penteador cor de rosa, de ramagens
pelos ombros, e soluçava incessantemente: “Ah! que escândalo! … que
escândalo! …” A figura do Dr. Ryborg adquiriu dimensões sobre-humanas
no momento em que se inclinou para ele e o interrogou em alemão,
perguntando-lhe se sabia ou se, pelo menos, suspeitava da razão por que …
“Não, não sei absolutamente nada, não, não” e, neste instante, brotou-lhe no
espírito a ideia de que era forçoso dizer àquele homem o que Paulo soubera
na véspera … mas já o homem de grande bigode estava na sua frente, a
agitar na mão duas folhas de papel que descobrira em cima da mesa, perto
da bandeja com os restos do jantar. Kádár reconheceu imediatamente as
páginas pautadas azul da agenda de Paulo, assim como a sua caligrafia
desordenada, traçada sem dúvida ao débil clarão que se entrava da rua.
Numa das folhas achavam-se escritas palavras inglesas:
“À Polícia: Contraí uma doença incurável, e é por isso que me mato.
Comprei a arma esta manhã … Se for possível, evitem a autópsia. Desejo
que o meu corpo seja incinerado. Falem do caso, tanto quanto for possível,
como dum acidente de trânsito, e (seguia-se uma linha riscada, mas mesmo
assim legível) pede-se instantemente que se diga somente aos meus pais que
foi suicídio …” Na outra folha liam-se três linhas em alemão: “Tony, se lhes
falares em Viena, dize-lhes simplesmente: foi por causa deles que isto
aconteceu. Tanto quanto possível, fala a Rosinha de um acidente de
automóvel.” Depois, o cadáver foi levado dali.
O agente à paisana fez uma relação das coisas de Paulo, remexeu em tudo,
tomou tudo na mão e, a cada objeto perguntava: “É do senhor, ou seria do
defunto? …”
Ele tomou conta do minúsculo revólver assim como das duas cartas. Kádár
tremia, o coração num bater desordenado; esteve a ponto de sufocar-se ao
beber o soluto de brometo quente que lhe dera o doutor.
Havia apenas um instante que estava sozinho, bateu à porta a senhora
Colham. “O senhor é um gentleman, disse-lhe ela com um tremor nervoso
no corpo todo, e por isso suplico-lhe que deixe a minha casa, que parta sem
demora … compreende, o bom renome da minha casa … o senhor é um
gentleman, não é verdade? …”
Naturalmente sabia bem que não podia ali ficar, naquele quarto escuro,
impregnado da lembrança dos acontecimentos!
Levou a mão à fronte. “Eu nem me sinto …”, e, precipitou-se para o lavabo,
onde bebeu dum só trago três copos de água. Que sabor estranho …
Provavelmente, servira-se do copo de lavar os dentes … Seria o copo de
Paulo? … Um medo de animal perseguido lhe sacudiu os membros e o
estômago logo expeliu tudo o que acabava de tomar.
Bateram de novo à porta: era outra vez a senhora Colham, ainda de
penteador cor de rosa, acompanhada de um agente.
Este trazia uma citação para o dia seguinte, às 11 horas da manha, no
comissariado de BowStreet.
Na rua escura, Kádár caminhava cambaleando. “Que me querem eles? …
Podia eu adivinhar que Paulo ia suicidar-se? … Achou-se perante um
comissário, sentado a uma mesa em cima da qual estavam colocados o
revólver, as duas derradeiras cartas e o passaporte de Paulo. O funcionário
policial perguntou-lhe o nome e pediu-lhe o passaporte. Isto ainda ele
compreendeu; mas, para o resto, tiveram de ir buscar um intérprete. Com
muita dificuldade, lá acabaram por descobrir alguém conhecedor do
alemão. “Porque vieram os senhores a Londres? Que fizeram aqui? Com
quem estabeleceram relações? … Qual podia ter sido a causa do
suicídio? … É verdade que o seu amigo tinha uma doença incurável, e de
que doença se tratava? Como se chama o médico que a verificou? … O
senhor soubera que o seu amigo havia comprado um revólver? … Quem são
os pais do seu amigo e qual é a posição social deles? …
Quem é Rosinha? Tratava-se de um verdadeiro dilúvio de perguntas, a que
diligenciava responder com concisão e exatidão. Era seguida, o senhor de
bigode - não despegara dali, o homem - agarrou-lhe num braço, obrigou-o a
sentar-se e perguntou-lhe se se achava mal e se não queria um copo de água.
“Não”, recusou Kádár, com um gesto aflito ao voltar-lhe à ideia o copo de
lavar os dentes, lá da pensão.
“Não admira nada que ele esteja abatidíssimo” observou o da bigodeira ao
outro agente, “o amigo queimou os miolos à distância de dois metros dele;
sabe você,
Graham, o que são estes revolverzitos belgas, de cinco ameixas! …”
Propuseram-lhe, por último, um problema terrível: perguntaram-lhe se
queria e podia tomar as providências necessárias para prevenir a família e
mandar proceder à cremação do cadáver, Protestou, aterrado. Nesse caso
não teria senão que aguardar, no seu domicílio, que a polícia se pusesse em
contacto com a legação da Áustria. Kádár declarou imediatamente que tinha
de sair daquela pensão, e quando lhe perguntaram para aonde ia morar,
disse, ao acaso, o nome dum hotel, o hotel Grosvenor, perto da estação de
“Victoria”, onde se lembrava de ter estado instalado com Paulo, durante
dias logo após a chegada.
Depois disto, permitiram que se retirasse.
Ao voltar para a pensão, encontrou já as suas malas no átrio. No sábado
imediato, um agente ciclista levou-lhe ao hotel Grosvenor uma citação para
às 11 horas. No comissariado, encontrou novamente o senhor de bigode e
bem assim o intérprete. Informaram-no de que a autópsia, a qual não pudera
ser evitada, tinha, de facto, provado que o defunto contraíra uma doença e
que se podia, consequentemente, aceitar esta como motivo do suicídio.
Aliás, a família tinha já sido prevenida pela Legação, para Gastein, onde se
encontrava em vilegiatura. Por telegrama, os pais davam o consentimento
para a incineração do corpo, e todas as providências haviam sido tomadas
para isso. Também a família consentia que fosse entregue a Káclár o
dinheiro que sobrara da liquidação da carta de crédito, deduzidas as
despesas com o funeral e outras correlativas. As despesas subiram a
tanto … a incineração custava a quantia de … ficava, portanto, um saldo de
duas libras e sete xelins … “Tenha a bondade de assinar este recibo.” Como
decorreram os dois dias seguintes, até sábado? … Tinha a sensação de viver
sob um sudário negro, no hotel barulhento e buliçoso, e de estar separado
do mundo restante por esse sudário. Permanecia sentado no quarto e, com
os dentes cerrados, esforçava-se por não pensar em coisa alguma. Mal
tocava nos pratos que lhe traziam, e o facto de se isolar desta maneira
transformava a primeira comoção produzida pela catástrofe numa surda
resignação.
“Não me devo deixar ir abaixo … No fim de contas, eu não sou
responsável.
Responsável? … mas não se trata de responsabilidade, trata-se de Paulo, o
amigo que perdi.” Depois pensava: “não devo dar voltas ao miolo. Voltarei
para Budapeste, é caso arrumado”. E agora caminhava na rua, vindo do
comissariado para o hotel. Caminhava ao sol ardente do prelúdio do verão,
a mão apertando, dentro do bolso, as duas notas de libra entregues pelas
autoridades.
Já em casa, sentou-se à mesa e tirou para fora o dinheiro todo.
Duas libras e sete xelins, e algum dinheiro miúdo: aquilo representava a
herança de Paulo. Tinha ainda, na carteira, mais dois títulos de uma libra
cada, e bem assim dois xelins e alguns pennies no fundo do seu porte-
monnaie. Somava tudo: quatro … quatro libras, nove xelins e … O dinheiro
deslizava sobre a mesa; ergueu-se, abriu o armário, tirou de lá as suas
vestimentas, pegou na mala, num gesto de autómato atafulhou-a dos seus
fatos, juntou os objetos miúdos espalhados pelo quarto, encafuou tudo isso
nas malas, e depois tocou a campainha. “A minha conta, faça favor”; mas,
mesmo antes de lha trazerem, desceu ao ruidoso átrio, onde se sentou numa
poltrona em frente do escritório, com a bagagem aos pés. Um chasseur
trouxe-lhe a conta; dirigiu-se ao güichet, colocou em cima a conta e tirou da
algibeira todo o dinheiro que possuía, resmungando qualquer coisa. O caixa
olhou para ele admirado, apartou a importância da conta e entregou-lhe o
excedente. “Resta-me … só quanto? … três … três libras e cinco xelins.” -
“Quer que lhe levem a bagagem à estação de caminho de ferro?..
“ - “Não, apenas à passagem do auto-bus …” Achou-se na paragem do
auto-bus, junto da bagagem, sob os raios dum sol esplêndido. Os auto-bus
passavam uns atrás dos outros; não sabia qual tomar e ignorava o que ia ser
de si próprio. Afagava de quando em quando, metendo a mão no bolso, o
dinheiro. Um sujeito, todo vestido de cinzento, limpou da cinza o seu
cachimbo batendo com ele de encontro ao poste do candeeiro. Resíduos de
tabaco, de cinzas e até uma faúlha caíram no chão e, voaram para cima dos
sapatos de Kádár. “Mil perdões!” desculpou-se o indivíduo, levando o índex
ao chapéu e voltando-lhe logo as costas.
Três libras e cinco xelins … Em vez de dinheiro, teria sido melhor que o
comissariado lhe tivesse entregado o revolverzinho; ele continha ainda
quatro cartuchos intactos.
CAPÍTULO XI
Durante dois dias Kádár permaneceu em casa. Não tinha motivo algum para
sair e não teria sido aliás, capaz de o fazer. O céu transformava-se de quarto
em quarto de hora: agora chovia, logo o sol punha-se outra vez a brilhar, e
depois voltava a chover.
Como reação contra este remanso, na manhã do terceiro despertou cheio de
energia e do desejo de fazer qualquer coisa. A pé desde a aurora, envergou
as suas roupas melhores. A assobiar, barbeou-se cuidadosamente, tocou a
campainha pelo almoço; mal engolido o chá, com o último bocado de
torrada ainda na boca, encontrou-se no meio da rua. Percorreu quatro ou
cinco artérias, depois subiu para um auto-bus que o conduziu à margem do
rio.
A água, sob a luz do sol, fremia num tom pardo doirado. Em baixo, perto
dum embarcadoiro, estava amarrado um “gasolina” pintado de branco: um
marinheiro fez tinir uma sineta de timbre claro. Num dístico indicador, à
entrada do posto de embarque, lia-se isto: “Cattle Market Station …
Deptford.” Desceu rapidamente ao cais; um homem, de sacola na mão,
entregou-lhe uma chapazinha de cobre, com a qual subiu para bordo do
“gasolina”.
Cattle Market … Desconhecia ainda essa parte de Londres. A passo lento,
avançavam animais por cima duma pequena ponte. Começava a feira de
gado.
Atravessou a praça, contornou as casas ainda em construção, dirigiu-se ao
acaso para uma rua mais larga. Foi ao longo de diversos prédios de um ou
dois andares, chegou a uma estrada muito ampla, ocupada de um dos lados
por uma fileira de edifícios com quatro pavimentos que se estendiam a
perder de vista, ao passo que do outro se não via casa alguma, mas
unicamente uma paliçada escura, da altura de dois homens e de
comprimento infinito. Devia tratar-se de um vasto terreno para erigir uma
fábrica, e o que lhe ficava em frente eram, provavelmente, casas para
operários … Com efeito, ao longo do tapume podia ler-se em enormes letras
negras: BERTHAM’S DEPTFORD UNIVERSAL STEEL WORKS.
Kádár continuou sempre a andar, rente às casas; compreendiam estas
mesmo ao nível da rua, inúmeras habitações. Lojas, poucas; as que existiam
eram, por assim dizer, armazéns, como o testemunhavam as palavras
pintadas nas vidraças foscas: Coffee, Tea, Sugar, Milk, Flour, Bean, Bread,
Meat. Devia tratar-se de um importante distribuidor de géneros
alimentícios. “Aqui não há certamente nada para um estrangeiro”, pensou.
Daí a pouco descobriu, num recanto da rua, uma tabuleta de metal em que
se encontrava escrito: Dining room. Perto da porta, havia outro letreiro em
tom esverdeado, no que leu em caracteres que outrora deviam ter sido
vermelhos: Magyar-Vendéglö-Bor-Sör, Pálinka. Ao dar com os olhos nisto,
cortou-se-lhe a respiração. A mão tremeu-lhe tonto ou tão pouco sobre o
fecho da porta, o qual figurava um bico de pato, que foi incapaz de abri-la;
minutos decorreram antes que, do interior, alguém lha viesse abrir. Achou-
se então dentro da locanda e, com o peito arquejante, mil zumbidos nas
fontes, a língua a balbuciar, pronunciou no idioma materno: “Bom-dia”. Um
rapazinho alto e franzino, posto atrás do balcão, olhou admirado para ele,
após o que, sem dizer palavra, desapareceu por uma porta envidraçada; e,
um instante depois, um ancião de barbas, com um avental verde preso à
cintura, seguido de uma mulher menos idosa do que ele, pálida, de faces
cavadas como as do rapazinho, encontrou-se na sua frente. “Senhor! essas
suas palavras, essa saudação em húngaro … seja bem-vindo a esta casa …
É então húngaro … quem o mandou cá? … Veio de Peste? …
Como sabia o senhor da nossa existência aqui? … Na verdade, o senhor é
húngaro? …
A locanda estava quase vazia. Unicamente a uma mesa se via sentado um
homem andrajoso, diante de uma caneca de cerveja, a cabeça deitada sobre
o tampo, entre os dois punhos cerrados, imóvel como se estivesse
dormindo. As outras três pessoas, vermelhas de comoção, excitadas pelas
suas próprias vozes, apertavam-no com perguntas, não lhe deixando sequer
tempo para responder.
Alguns momentos depois sentaram-se todos num vasto aposento do rés-do-
chão, com janelas resguardadas por redes de arame. Essas janelas davam
para grandes terrenos vagos. Pouco a pouco a torrente das perguntas
atenuou-se. Conseguiu Kádár explicar-lhes que fora por acaso que se
perdera naquelas paragens e que só depois de ver o letreiro em húngaro se
decidira a entrar. “Vês tu”, disse o velhote voltando-se para a mulher,
“razão tinha eu em dizer-te, já o ano passado, que puséssemos o letreiro:
não podia causar-nos prejuízo e devia, sem sombra de dúvida, atrair os
húngaros que fizessem passagem por aqui”.
Quando perguntaram a Kádár o motivo por que viera àquele bairro e o que
fazia em Londres, toda a sua reserva se fundiu imediatamente na presença
desses desconhecidos. Narrou-lhes tudo: a viagem em companhia de Paulo,
a sua vida em Viena, a agressão de moca de cauchu com que fora
gratificado em Peste, e a seguir a recordação dos dias mais recentes, o
revólver, os passeios sem fim nem motivo, até chegar a catt Market. As
frases saíam-lhe da boca em rajadas incoerentes, como lava em erupção.
cada uma dessas palavras chorava a sua miséria, e quando ele findou, os
outros olharam-no com estupor e comiseração;
durante longos minutos reinou completo silêncio no aposento. Foi ele
mesmo quem o rompeu fazendo-lhes, por seu turno, algumas perguntas: “E
vossemecê, como é que vieram para aqui? …” O ancião, por sua vez, pôs-se
a falar com volubilidade, na volúpia de se entreter, de poder falar de si
próprio outro húngaro. Fora em 1910 que começara a aventura: Paulo
Csordàs, seu filho, socialista convicto, subtraíra-se ao serviço militar e
refugiara-se em Londres. Após um ano inteiro de trabalho, ele havia
economizado o bastante para mandar vir a família. Esta, com o produto da
venda da locanda que o pai tinha em Peste, abrira este restaurante húngaro
mesmo em frente da fábrica onde trabalhavam muitos compatriotas. Os
negócios tinham marchado à medida dos seus desejos. Os operários, tanto
os húngaros: como os nacionais do país, tinham-se habituado a tomar ali as
refeições; as moedas miúdas e os xelins foram-se amontoando em cima da
caderneta da caixa econômica com o seu nome, e todos se sentiam felizes.
Até que veio a Grande Tormenta … Durante a guerra, tiveram de passar por
muitas provações. Se bem que a filha houvesse casado com um inglês, as
complicações não lhes foram poupadas. Estas não cessaram senão no dia
em que seu filho Paulo se alistara voluntariamente no exército britânico. Ele
caíra morto em Arras. Agora, os dias lá iam correndo, o restaurante
prosperava e, desde 1914, era aquela a vez primeira que falavam com um
húngaro recém chegado da pátria.
Durante a conversa, começou de germinar uma ideia na cabeça de Kádár.
Observou o velho: o seu rosto, emoldurado de suíças, tinha uma expressão
simplista e ingénua. Os cabelos estavam já grisalhos e era alto e corpulento.
Se desse de cara com ele no meio da rua não pensaria ter diante de si um
húngaro. O olhar de Kádár transferiu-se logo a seguir para a mulher: tinha
um semblante pálido e fatigado, sob cabelos negros com madeixas
esbranquiçadas.
Os olhos dela tinham um tom azul deslavado. As mãos eram mal cuidadas,
o modo de andar lento e sem aprumo. O rapazinho, que podia ter aí os seus
quinze anos era tal qual os outros rapazes ingleses da sua idade. Proferia a
custo algumas frases em húngaro … Era pois a família … “Devo falar-lhes
agora … ou será melhor adiar isso para amanhã? … Não é conveniente
mostrar-me em grande aperto … Por outro lado, não devo perder ocasião
tão favorável”. Nesta altura das suas reflexões a voz do velho interrompeu-
as, convidando-o a ficar com eles para almoçar. De súbito decidido, pôs-
lhes então a questão à queima-roupa: “Escutem, vossemecê já sabem tudo a
meu respeito … Não poderiam confiar-me um trabalho qualquer? … Não
poderia eu ficar convosco até encontrar outra coisa, ou até possuir meios
para voltar para a minha terra? …” A sua voz era serena e firme. No fim de
contas, o velho Csordàs não passava de um taberneiro e a locanda de
Deptford não era o hotel Lang-ham.
No dia seguinte de manhã, arranjou as suas malas no hotel e, uma hora
depois, estava em casa dos Csordàs. Na véspera o velho não perdera muito
tempo a refletir, talvez por causa das recordações evocadas por aquele
compatriota surgido imprevistamente, ou fosse porque o filho falecido devia
andar pela idade de Kádár na época da sua vinda para Londres, ou ainda
mui simplesmente na esperança de contratar um criado a baixo salário. Ante
a proposta de Kádár ele olhara um instante no vago, consultara em seguida
a mulher, que estava ao balcão, e, ao fim de poucos minutos de deliberação,
declarara-lhe:
“Bem, pode ficar. Vai ajudar-nos no restaurante e em casa; como é natural,
isto é provisório, - não sabemos por quanto tempo poderemos conservá-lo
cá; - dormirá num dos quartos, terá cama, mesa e roupa lavada; nado, é que
não, mas se nos ajudar a servir os fregueses terá a sua parte nas gorjetas.
Não será coisa por aí além! mas sempre dará, mesmo assim, um pouco de
dinheiro” Em vista disto, apresentou-se no dia imediato em casa dos
Csordàs.
Contígua à locanda era a grande sala de jantar, que continha umas trinta
mesas; por trás ficavam cozinha e quatro quartos, cujas janelas deitavam
para um terreno ainda sem aplicação, dando as portas deles para corredor
comum, escuro.
Foi no último desses quartos que o instalaram; o seu leito ficava a um canto,
perto da janela. Nesse mesmo quarto existia outra cama, a de Maria a criada
que ajudava a senhora Cresse, nora de Csordàsi “Ela está na nossa casa há
já quatro anos; mas se não gostarem de ficar os dois no mesmo aposento,
não ter mais do que dividir o quarto em dois por meio deste resposteiro”.
A tarde principiou a tomar conhecimento com a nova roda de gente com
quem ia conviver.
Vagueou por todos os recantos da locanda, saiu à rua, familiarizou-se com o
“patrão”, com o rapazinho, com casas da circunvizinhança; caída a noite,
deitou-se na sua cama asseada, com tanto bem-estar como se tratasse de um
dos mais luxuosos aposentos do Savoy Hotel como se dispusesse de sólido
depósito bancário para fazer face a um tipo de existência elegante. Todavia,
logo de manhã, começou vida nova: erguer-se às cinco horas, pôr um
avental verde, varrer o chão … Já dada a meia-noite, caiu no leito como
uma pedra cai num poço, tão fatigado que nem reparou na presença de
Maria, a qual, na outra cama, respirava tranquilamente, boca aberta, o corpo
descoberto até à cintura, pois, imersa no sono e por causa da temperatura
tépida dessa noite do princípio do outono, tinha afastado de si a roupa. Não
reparou tampouco que ela não correra o reposteiro, suspenso a meio do
quarto.
Quando, pela madrugada, despertou, Maria já estava na cozinha. Levantou
os estores e olhou para fora, terrenos desocupados além. Chovia, o céu
apresentava-se todo cinzento e apenas ao longe, cimeiros às altas chaminés
das fabricas, dois claros feixes de luz o trespassavam. “Tenho trabalho”
pensou. “Graças a Deus tenho trabalho, mediante o qual posso comer e
abrigar-me debaixo de telha e ter um armário onde arrumar as minhas
coisas”. Invadiu-o uma grande confiança, abriu a torneira e colocou a
cabeça por baixo dela. - Varrer, esfregar o sobrado, limpar de pó as janelas,
transportar pacotes numa carrocinha de mão, dar lustro aos móveis … sair-
se bem disso tudo. O pior, porém, era ter de lavar, em água gordurenta,
fétida e morna, a baixela ainda com restos de comida. Sentia repugnância e
o estômago de tal modo se lhe transtornou ao fazê-lo que, todo o dia, não
conseguiu engolir fosse o que fosse. “Hei-de habituar-me”, disse consigo
próprio, cerrando os dentes. “Vale mais isto que rebentar de fome no meio
da rua”. E veio a habituar-se, de facto. Familiarizou-se cada vez mais com o
velho Csordàs, com as suas alternativas de bom e de mau humor, com a
doce e serena Margarida Cresse, que escondia a sua existência mortificada
sob um trabalho obstinado de dona de casa; assim como se familiarizou
com Júlio, esse rapazote um nadinha pateta, com os dois aborrecidos
criados do restaurante, com a freguesia proletária e, por fim, com a baixela,
a água suja e o avental verde.
As moedazitas que recebia, a título de gorjeta, perfaziam xelins. Passava as
tardes de descanso sentado na locanda, a conversar com um dos seus
remelosos frequentadores. Até que uma noite, no momento em que,
terminada a faina, entrava no quarto, notou Maria na tépida semi-nudez da
sua camisa. Era uma inglesa corpulenta, nem já muito nova nem
precisamente muito velha. Anteriormente, mal lhe tinha posto a vista em
cima durante o dia e apenas algumas palavras trocara com ela. Segundo o
seu hábito, acendeu tranquilamente a eletricidade. Maria não buliu sequer,
continuando a dormir. A fina colcha da cama que ela, com os cotovelos,
mantinha repuxada, denunciava-lhe nitidamente as formas. A camisa,
tendo-lhe deslizado pelo ombro abaixo, patenteava um seio branco e roliço.
Recordou-se neste instante de que, desde a sua chegada ali até à data, nunca
Maria fizera correr o reposteiro; e recordou-se também de que depois de
Elisa, isto é, havia perto de dois meses, não conhecera intimamente mais
mulher alguma. O desejo invadiu-lhe todo o seu corpo; mas, imediatamente,
tudo se lhe tornou confuso diante dos olhos até formar uma nuvem
atrigueirada, cor da pele de Yomaia … e um horrível sopro glacial varreu
essa súbita e ardente cobiça. Apagou a luz, atingiu, nos bicos dos pés, a sua
cama, enterrou a cabeça na almofada - e já o ruído das primeiras carroças
do leite alterava a calma da madrugada quando conseguiu adormecer, com
uma respiração opressa como a do estertor. O pérfido outono invadiu
subitamente a cidade. Como por obra de traição, uma noite, achando-se ele
à porta, depois de despedidos os últimos fregueses, pôde ainda ver; no
firmamento as estrelas cintilando com brilho esplêndido; mas, logo na
manhã imediata, caiu uma chuva torrencial. Nos dias seguintes choveu
ininterruptamente. Sem transição, sobreveio o frio. Passados uns dias mais,
os fogões de coque tiveram de passar a estar continuamente acesos nas
salas. Kádár não queria contar os dias mas dava vagamente conta de que
semanas tinham ido passando, e os Csordàs mantinham-se sempre tão
amáveis com ele como no primeiro dia. Executava conscienciosa-mente a
sua tarefa, e eles, em troca, cumpriam a promessa feita. As primeiras noites,
após esse trabalho manual até então desconhecido para ele, remataram num
sono profundo e negro. Depois, a par e passo que o corpo se lhe acostumava
aos mil gestos dessa labuta caseira, maquinal, porca e humilhante, começou
o drama noturno dos sonos entrecortados e das insónias. Enquanto Maria, a
criada, roncava no leito próximo, num sono sadio e profundo, assaltavam-
no várias perguntas torturantes: “A que estado chegaste tu? … em que é que
se converteram a tuas grandes resoluções? … Para que te serviram a
musica, os livros e o descobrimento de tantas coisas novas? … De que te
serviu sobreviveres à guerra, não teres sido fuzilado pelos romenos, não
teres morrido de fome quando estavas sem trabalho, não te ter levado a
escarlatina? … De que te serviu finalmente, não te veres arrastado para a
morte, contaminado por um amplexo funesto? … Que vantagem houve em
teres sido sempre protegido por qualquer coisa que nunca deixava de
indicar-te a via a percorrer e que te segurava de cada vez que estavas em
risco de te despenhares? …” E, para todas estas interrogações, vinha a
resposta única, na brutal violência duma machadada: “Para atingires a
situação de criado numa baiúca de Deptford! …” Certa noite de inverno, ao
despertar dum sonho confuso e pesado, notou que Maria estava sentada na
cama. Perguntou-lhe, a meia voz: “Maria, então não dormes? … - “Não,
respondeu ela, e tu?” O silêncio reinou durante muitos minutos. O peito
dele arquejava furiosamente, os seus olhos viam andar tudo à roda, numa
nuvem incandescente e movediça. Com avidez, aspirou num hausto
profundo o odor noturno desse quarto escuro, desceu da sua cama e, com os
joelhos trémulos, dirigiu-se para a outra cama …
Que mais queres tu, António Kádár, depois do avental verde, da vassoura,
da comida abundante com cerveja gratuita e banhos quentes aos domingos
de manhã, devidos à paternal bondade da família Csordàs,.. e depois do
humilde abraço de Maria?! …
CAPÍTULO XIII
Cópia oficial, enviada pela Central Londrina o Mrs. Mfers, de outra carta de
Mr. Hooley dirigida por este ao Escritório de Londres:
“… Nove anos de serviço nas colónias justificam o meu pedido de
transferência para o escritório de Londres. Todavia, se isto pudesse criar
dificuldades, eu teria então de lamentar o ver-me obrigado a renunciar à
honra de continuar a ser um dos vossos colaboradores …
Cortaria do Governo:
O Ministro do Interior ordena: Mr. António Teodoro Kádár será admitido
entre os cidadãos da União Sul-Africana e, especialmente, é concedido ao
requerente mudar o seu nome patronímico para “Cadar” e utilizar doravante
este nome na sua vida civil.
Documento oficial:
… A saber: os terrenos vagos pertencentes à cidade, que se estendem a
oeste até o termo da mesma, e a leste até o limite administrativo da cidade
de Olchester, ao sul até o litoral de Algoa-Bay, e ao norte até à linha que se
estende paralelamente ao litoral e que se situa a uma distância de duas
milhas inglesas. A cidade cede, em regime de propriedade plena, ao sr. e à
sr.a A. T. Cadar os ditos terrenos, marcados em comum pelas duas partes e
que figuram na carta topográfica, por elas reconhecida exata, como sendo
os terrenos numerados no cadastro de a 1.000. A Cidade compromete-se, ao
mesmo tempo, a fazer executar, à sua custa, todos os trabalhos e a regular as
instalações denominadas abreviadamente “Melhoramentos Públicos”, cujo
inventário consta do processo anexo ao presente documento. Em troca das
concessões acima descritas, os compradores comprometem-se a construir,
instalar e pôr à disposição da Cidade as instituições de beneficência
definidas no processo anexo ao presente documento.
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O PARAÍSO DAS IDADES BÍBLICAS ENCONTRAVA-SE NA ÁSIA
MENOR … O PARAÍSO DOS TEMPOS MODERNOS ENCONTRAR-
SE-Á NA ÁFRICA DO SUL … PEÇAM SEM PERDA DE TEMPO OS
PROSPECTOS RELATIVOS AO NOVO PARAÍSO …
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A Côte d’Azur era considerada, até agora, como o mais belo litoral do
mundo. No ano próximo, será a Baía de Algoa. Desejais possuir uma
casinha para o vosso week-end? … Desejais uma vivenda luxuosa? …
Gostais do sol maravilhoso da praia, ou preferis a fresca sombra da floresta
majestosa? … O estilo das cabanas dos negros está de acordo com o vosso
gosto, ou achais, pelo contrário, delícia na moderna construção que aplica o
vidro como primacial matéria? … Sejam quais forem as vossas
preferências, não deixeis de visitar os nossos escritórios, onde tereis ensejo
de consultar inúmeros projetos e onde em contacto com os nossos arquitetos
podereis colher informações explícitas …
Cada dia que passava punha mais um tijolo no muro de separação entre
António Kádár e A. T. Cadar. Esse muro erguia-se por si próprio … não era
Kádár quem o construía … Assim como António Kádár nada, ou muito
pouco, fizera para chegar àquele ponto. António Kádár postara-se
simplesmente debaixo do céu, pensando muitas vezes, com os dentes
cerrados, que havia de vir o bom tempo, que tinha de ser … custasse o que
custasse. Postara-se simplesmente debaixo do céu, consentindo que O sopro
de uma bofetada, de uma doença ou de um beijo o arrastasse para A. T.
Cadar. O muro que se erguia entre a sua vida presente e o seu passado
atingia já grande altura. Ocultava-lhe já a imagem das coisas e das pessoas
de outrora, o som das músicas de antonio, o jato das antigas recordações.
Para cá do muro a vida era diferente … ou, dizendo melhor, para cá do
muro a vida era verdadeiramente a vida, E para lá do muro? … Que
importava o que havia para lá? … A grande empresa prosseguia
infatigavelmente a sua expansão, o trabalho aumentava e os depósitos nos
Bancos, tanto em Londres como em Pôrto-Isabel, iam em contínuo
acréscimo. A mulher era a sua companheira, no mais amplo sentido, desde
o ébrio minuto dos abraços até ao matinal passeio a cavalo; desde os
cálculos eriçados de algarismos, sobre a mesa de trabalho, até às muitas
revistas profissionais, que ela se não dispensava de ler também; desde os
numerosos filmes sonoros até ao teatro de Johannesburgo, aonde os levava
sempre, à viva força, o seu representante naquela cidade, Joe Lewis, todas
as vezes que ali se demoravam alguns dias. A mulher era a sua
companheira, quer quando permanecia a seu lado, quer também quando o
deixava sozinho, quando isto se lhe tornava necessário, quando se sentia
fatigado, quando estava nervoso, quando se via saturado de tudo e quando
carecia de algumas horas de solidão viajando em caminhos de ferro, ou na
sua casinha de week-end, no Bairro Helena.
Ao seu redor viviam ingleses, alemães e holandeses, relações estabelecidas
pelos negócios, amigos ou estranhos. Não faziam mal a ninguém, nem
tampouco ninguém lho fazia. O sol brilhava eternamente e os dias
escoavam-se, desta forma, numa despreocupação laboriosa, na saúde do
espírito e do corpo. Um dia, logo que instalou na moradia o novo aparelho
de T. S. F., passou o serão em demanda de sons no seio do éter. De súbito,
ouviu nitidamente uma voz de baixo … “Ides ouvir Dajos Bela e a sua
orquestra de boémios”. Seguiu-se, de facto, uma música boémia. A melodia
pareceu-lhe familiar, mas as palavras, dessas não se lembrava já. Escutou
durante algum tempo, reprimindo a respiração, e por fim deu volta ao botão.
Pendurado a parede, havia no seu escritório um mapa-mundi. Às vezes
parava junto dele, a olhá-lo … Londres … Depois do seu casamento,
tinham passado um mês em Londres; Viena … onde diabo ficava essa
cidade? … Ah! sim … lá estava ela … Nunca mais tivera notícias de
Viena! … Budapeste … Havia exatamente bem seis anos que tivera, pela
última vez notícias de Budapeste; já se encontravam há quase dois anos em
Pôrto-Isabel quando se resolvera a escrever uma carta, endereçada para
Budapeste, a duas pessoas idosas: “Querido tio Rudi e querida tia Ana, sei
bem que é grande ingratidão da minha parte ter estado tanto tempo sem dar
sinal de vida.
Presentemente os meus negócios caminham bem e, desta feita, venho
simplesmente pedir notícias vossas. Queria ainda perguntar-vos se não têm
necessidade de alguma coisa. Aguardo a vossa resposta urgente. Mil beijos
do Tony”.
Decorridos quatro meses, viera devolvida a carta, apresentando as mais
variadas espécies de etiquetas coladas no sobrescrito, o que significava que
se tentara o possível e o impossível para a entregar aos destinatários. O
correio tinha feito um inquérito digno de todos os elogios. Por baixo da
direção da Avenida Pozsony, via-se a nota “Mudou-se para Marosucca, nº
17.” Sob esta segunda morada, nova nota: “Mudou-se para Szvetenayucca
ló, n.” 6”. Daqui a carta fora enviada para outro endereço, tido como o
último domicílio do destinatário; por último, por baixo deste, encontrava-se,
a lápis vermelho, à laia de suprema sentença, a palavra: Falecido, Olhara o
envelope assim pintalgado com um olhar frio e indiferente. Ter-se-ia
julgado, talvez, um homem de coração se uma lágrima lhe tivesse deslizado
então pelas faces, a não ser que se julgasse, antes, um hipócrita; e como as
lágrimas se haviam tornado para ele mais caras do que o dinheiro, solicitara,
para intermédio da Legação.
Inglaterra em Budapeste, uma investigação a respeito do caso. A resposta
não demorou muito: Rodolfo Bayer, inspetor reformado dos Caminhos de
Ferro, morrera, após dois meses de tratamento no hospital, de um cancro no
estômago, ao passo que a viúva abandonara Budapeste uns dias depois do
funeral do marido.
Segundo palavras ouvidas à porteira do seu último domicílio, ela partira
para a Itália, na companhia de uma parenta ainda jovem … Esta devia ser
Maria, a esposa do oficial italiano. “É louvável da sua parte, pensara Cadar,
ao mesmo tempo que atirava a carta para o fundo duma gaveta. Rompera-se
o derradeiro liame que o prendia a Budapeste. Antes assim.
“Não estou ainda velho. Sou novo ainda. Vivo. Para que serve ter saudades,
pensar a gente no passado? … Mas é que se põe a pensar nos vultos
esquecidos, quem se recorda dos nomes extintos, dos sons desvanecidos …
quem pensa em tudo que outrora, há muitíssimo tempo, foi a sua vida? …
Faz a gente por não pensar nessas coisas e chega até a duvidar que elas
tenham sequer existido.
QUARTA PARTE
A ARENA
CAPÍTULO I
Ficar-te-ia infinitamente grato, meu caro capitão {16}, disse Simon se quiser
fazer tudo o que está ao teu alcance.
- Mas, da melhor vontade, meu caro, repito-to; o seu registro criminal está
virgem; ele não deu sinal de si durante o regime comunista. No Outono de
1919, tirou um passaporte para toda a Europa e, segundo as indicações da
estação ferro-viária fronteiriça, saiu do país por Hegyes-haiom. Quanto a
esse sr. Bayer, em casa de quem declarou ter estabelecido domicílio e com
quem, de facto, viveu nos últimos tempos da sua estada lá, na Avenida
Pozsony, o homem morreu há já bastantes anos. Mandei tirar informações a
esse respeito. No concernente à sua estada em Budapeste, nada mais há a
fazer … Mas, se o desejas, vou falar a Vitoresco, da legação da Roménia,
para que lhe ordene um inquérito em Deva, sua terra natal; isto também
nada te custará. Vitoresco prestar-te-á de bom grado esse pequeno serviço.
- Tu és um anjo, meu caro capitão, fico-te muito reconhecido.
- Espera … Deixa-me tirar apontamento de que desejas exatamente saber.
- Tudo o que se puder apurar a respeito dele, da família, se ainda tem
parentes lá na terra, o seu nome e a sua situação … em suma, todos os
informes que lhe digam respeito.
- Compreendo. Inquérito geral. Torna a passar por aqui ou, antes, telefona,
vamos lá … daqui a duas ou três semanas, três é mais certo, porque estas
coisas exigem sempre delongas.
- Combinado, meu caro capitão, então até daqui a três semanas.
Antecipadamente to agradeço. Mas, afinal, quando é que tenho de enviar-te
as notas devidas por esta investigação? …
- Ah, é verdade, as notas … Quando quiseres, meu velho; se se arranja a
coisa, pode ser no sábado à noite.
- Combinado, capitão. Passa bem … Apresenta os meus cumprimentos lá
em casa.
CAPÍTULO VII
Róna inclinou para trás a cadeira em que estava sentado, fê-la balançar,
estendeu as pernas para os pés da mesa e pôs-se a esgravatar os dentes:
- Olha, papá, ainda te lembras do Kádár, que andou comigo no liceu? …
- Kádár? … - interrogou o ancião - Não, como era ele?
- O gorduchinho que vinha aqui jogar tantas vezes ao ping-pong -
esclareceu a boa e idosa mamã - lembro-me eu dele muito bem.
- Não, mamã, não - retificou Róna - Primeiramente, o Kádár não era baixo e
gordo, mas alto e magro; em segundo lugar, ele, na sua qualidade de cristão,
não frequentava a nossa casa. Quando muito, podias lembrar-te de o veres
nos exames.
- Não, nesse caso - disse a velha dama - não me lembro dele. Que sucedeu
ao tal Kádár? …
- Foi para a África do Sul e fez lá enorme fortuna.
- Enorme fortuna? … - interrompeu o velhote, já mais atento a certeza
disso? … Começa por que não sei se tu saberás, meu filho, o que se entende
por enorme fortuna …
- Tranquiliza-te a esse respeito, papá. Eu que te digo que adquiriu uma
enorme fortuna, é porque assim é; e o Kádár virá muito brevemente a Peste.
- Que vem cá fazer? Por causa de negócios?
- Não, uma simples viagem de recreio. O seu maior prazer consistirá em
verificar que, presentemente, está toda a gente aqui na penúria, ao passo que
ele, lá naquelas terras, fez fortuna.
O ancião, que, aliás, se havia retirado do mundo dos negócios já uns anos
antes, acariciou com o índex da mão direita a sua barbicha branca, gesto
que, na sua pessoa, era sinal de meditação comercial. “Ouve, Ladislau, disse
ele, após breve reflexão. Tenho uma ideia. Se o teu amigo é, na verdade, um
homem tão rico como dizes …
talvez nós lhe pudéssemos impingir o serviço de porcelana de Herend, de
vinte e quatro peças, que te carrega nas costas desde a falência do conde
Stambach … Se ele, verdadeiramente, tem tanto dinheiro como isso …”
Ladislau Rória tirou o palito da boca, quebrou-o entre os dedos e atirou-o
para cima da toalha.
- Nem sequer pensas que, querendo ele porcelanas finas, não precisará de
vir comprá-las a Peste? … Em todo o caso … pode-se fazer uma
tentativa …
CAPÍTULO X
Desta maneira, desde que, na sala de espera dum dentista, certa gravura fora
arrancada a um magazine, António Kádár tornara-se uma autêntica figura
lendária. Dimanada duma mesa de café e impelida pelas vibrações etéreas,
da imaginação, uma onda tinha ido atingir milhares de receptores da cobiça.
A princípio, apenas uma dúzia de pessoas se pusera ao corrente do caso;
depois, sob promessa de sigilo, essas doze haviam iniciado outras doze … e
assim sucessivamente. Os cérebros sentiam-se excitados,; apuravam-se os
ouvidos, surpreendiam-se olhos dilatados, abriam-se muitas mãos. Quando
entrou a Primavera, a cidade, à laia de arena e graças a mãos cuidadosas,
via-se limpados detritos da existência cotidiana; pás invisíveis e
destramente manejadas recamavam-na da areia loira, cor de oiro, das idéias.
Cada qual esforçava-se por parecer mais importante e maior do que era de
facto, a fim de arrancar um mais avantajado pedaço da presa comum. A
beca de cada um punha-se antecipadamente a andar à roda por causa da
vertigem em que esse mesmo estava resolvido a fazer voltar a cabeça de
certo semelhante seu. Imersas na miséria, as imaginações sementes
farejavam a mina de oiro; os apetites desenfreados saboreavam de antemão
o fino assado que lhes iria cair debaixo do dente; no arco preparado para
desfechar, caçadores afincavam se na espera do Pássaro Azul. Amadores e
profissionais, ricos e pobres, falhados e arrivistas aplicavam igualmente o
ouvido, perscrutando o céu primaveril … “Escuta … talvez agora … não o
ouves? …”
Por este mesmo tempo, já em Londres, António Kádár instalara-se numa
das salas da poderosa empresa, diante de sua máquina de escrever portátil, a
redigir uma carta para Budapeste.
“Meu caro Kelemen: De harmonia com o que já de Pôrto-Isabel te mandei
dizer, poderemos efetivamente fazer a viagem a Budapeste. Chegarei aí,
com minha mulher nos fins de Maio ou princípios de Junho, depois de
passarmos por Paris. Se isto te não fosse sobremaneiramente incómodo, far-
me-ias o obséquio de mandar reservar, em seguida à recepção de um
telegrama meu avisando da nossa partida, dois quartos com casas de banho
privativas, no “Rítz”. No caso de te não ser possível isto, peço-te que me
desculpes o incómodo e que me previnas do facto, numa só palavra que
seja, para a minha direção em Londres. Adeus, até breve …
Sempre muito cordialmente, Kádár.”
CAPÍTULO XII
Foi uma verdadeira sorte a carta ter chegado só alguns dias depois do mês
de Abril. Kelemen não disse nem uma nem duas. Decidiu imediatamente
não prevenir os “companheiros” da vinda desta segunda carta. Teria tempo
disso quando chegasse o telegrama de Kádár. Não se tornava necessário
falar demasiadamente no caso … Já a meia dúzia de palavras que, em
tempos, trocara uma noite com Sitinha bastado para o encher de
inquietação. “Existem, pois, outros mais, dizia de si para si, que, como eu
pensam, que se poderia tirar partida da vinda dele. É irritante,”!
Tratemos de pôr surdina no instrumento.” Por consequência, ficou
verdadeiramente aterrado quando um domingo de manhã, encontrou, na
avenida Andrassy,-Vavrinec, o qual se saiu com esta:
- Ouvi dizer que Kádár vem a Peste.
- Sim - respondeu ele aborrecido - é provável mas-não é ainda certo, Mas a
quem é que tu ouviste falar nisso?
- É assaz singular - replicou o outro - que eu não, tenha sabido diretamente,
da boca de vocês. Foi meu pai-quem colheu a notícia do cunhado de
Amniari. É desta forma que as notícias interessantes têm de chegar ao meu
conhecimento? …
“Fala-se então no caso - pensou Kelemen; não é necessário, por
conseguinte, que eu mesmo contribua para avolumar a publicidade em volta
dele.” Não soprou, pois, uma palavra sequer aos “companheiros”, mas
tratou de responder, sem demora, a Kádár:
“Sinto-me satisfeitíssimo com a vossa próxima chegada. Como é natural, o
assunto dos quartos ficará resolvido da melhor maneira possível.” Enquanto
esperava, ia suportando aquela atroz Primavera. Vivia uma dupla existência:
a que levava no escritório e no café, lenta e miserável; e a outra que
desabrochava na sua própria casa, pela noite dentro. Mal extinguia o luz,
olhava em frente, no escuro, sempre a meditar em Kádár e em Pôrto-Isabel.
Meditava em tal com a exclusividade duma ideia fixa, com a obstinação de
um cérebro prestes a sofrer desarranjo. “Há-de dar bom resultado! …
pensava ele; e não pensava se não nisso. Contudo, havia momentos em que
o seu eu cínico, a sua personalidade tipicamente pestense, observando-se de
fora, a si própria se advertia através dum esgar irónico: “Forte idiotice, a
minha! … Entusiasmo-me com este negócio como se o êxito dele
dependesse apenas de mim”. Mas estes raros instantes a lúcidos eram
varridos pelo devaneio em que se refugiara quase sem transição, após a
realidade por demais terra-terra dos anos anteriores, excessivamente cheia
dessa luta pelo dinheiro, transbordava de cuidados materiais e que lhe não
dera senão dissabores. Repetia a si mesmo, com o sorriso abstrato, lunático,
venturoso e extasiado dos dementes: “llá-de dar bom resultado … hei-de ter
sorte … a minha ora de sorte começa agora … Já começou quando reparei
na foto,.. E continuou quando, em Janeiro, não me despediram do
escritório … quando esta última carta chegou só depois da reunião do café,
não me vendo eu obrigado a falar nela. Sorte foi também poder arranjar as
coisas de modo a gozar as minhas férias na época mais oportuna …”
Transcorriam os dias. Um Maio radioso inundava a cidade de luz e de
alegria, Kelemen vivia, de olhos fechados, na ebriedade antecipada dos mil
projetos e das mil esperanças da sua futura existência. “Há-de dar bom
resultado.” Nada mais tinha para ele importância. Um sábado à noite,
jantando em casa da sua irmã Carlota, a mãe pôs reparo no seu ar distraído e
longínquo:
- Andrézinho que tens? … Porque te apresentas, desde há tempos, tão
preocupado e tão concentrado? As coisas no teu escritório vão mal?
- Não, mamã tranquilizou-a ele.
- Anda mulher no caso? … - perguntou Carlota, indiscretamente.
- Não, não se trata de mulheres - respondeu olhando fixamente a sua irmã
mais nova - Não minha coelhinha; trata-se mas é dum negócio de grande
calibre …
- Valha-te Deus! - exclamou a velha mãe, perdeste o juízo, André! …
A isto não retorquiu, vindo-lhe à ideia que se estava a 17 e que, daí a oito
dias, haveria reunião dos “companheiros” no café. Mas, depois, chegaria o
final de Maio e a seguir viria o começo de Junho …
Que bom seria esperar … num vasto prado luminoso e aromático … estar
debaixo do céu infinito e assim esperar por esse dia em que …
CAPÍTULO XIII
Pelas onze horas, já se deixa ver que se encontravam todos no café, à mesa
habitual. Kóna apresentava-se vestido com calça de fantasia e jaquetão
preto.
Reparando no olhar irónico dum dos companheiros, explicou que vinha do
teatro.
Conversaram pouco, como se, nessa noite, o elo que os ligava se tivesse
quebrado.
Esse elo, constituíam-no ironia, a mofa, a incredulidade peculiarmente
pestenses, quais em conjunto formavam uma espécie de teia de aranha
dentro da qual se sentiam todos presos. O seu cinismo abrandava perante a
carta vinda de Pôrto-Isabel, o papel coberto de caracteres elegantes, grave e
distinto, perante o telegrama de Paris, aquilo não era bluff, poeira nus
olhos … Era coisa séria e que devia ser levada em conta, mesmo que nada
dali adviesse. E, afinal, que podia advir dali? … Nada, naturalmente.
Kádár, o milionário, chegaria, distrair-se-ia um pouco e voltaria a partir.
Quando muito, conseguiriam, entrementes colar-se a esse homem de destino
fantástico para colher também um pouco da poalha de oiro que ele aparecia
revestido. Mas, para isso, necessário era terem fé no mesmo destino, li
tinham-na, acreditavam nesse destino. Não se expandiam em palavras, para
se não denunciarem quanto ao abalo sofrido, naquele momento, no seu
ceticismo de pobres dias. Todavia, no meio dessa silenciosa tensão de
espírito, sabiam todos bem que, dentro em breve, iam encontrar-se face a
face com o Sucesso, essa coisa extraordinária e desconhecida que nunca
tinham deixado de invejar e de cobiçar.
Espiavam-se uns aos outros, consternados e um tanto envergonhados: era
aquilo possível? “Então eu, um rapaz de Peste, esperto, todo comovido
que …” E todos tiveram de confessar a si próprios, em segredo muito
íntimo, estupefactos e envergonhados, que criam nesse milagre, nesse
fenómeno … se bem que se não tratasse senão de um Tony Kádár … do
Pinguim.
Vinte minutos antes da chegada do comboio, estavam já no cais. A estação
via-se quase vazia: aquele comboio internacional devia parar apenas meia-
hora sob o seu alpendre envidraçado e, provavelmente, poucas pessoas
desceriam de comboio tão caro. Mediram a passos largos e vezes sem conta,
o cais, cada qual esforçando-se por mostrar um ar calmo e indiferente. Mas
o seu verdadeiro estado de alma produzia-se nos cigarros: havia-os que se
consumiam ao fim de poucos segundos, aspirados com nervosismo; outros
distraidamente esquecidos no meio da meditação, apagavam-se entre dois
dedos trémulos.
De súbito, uma comoção nervosa os trespassou a todos: ao longe, para lá da
abertura da gare, enxergaram-se os dois olhos de fogo da locomotiva e logo
se viu também uma grinalda de faíscas crepitando por cima da chaminé,
grossa como o cachaço dum touro, da máquina. O Orle I Expresso entrou
com pontualidade cronométrica na de Oeste.
Os olhos arregalados fitaram a série de janelas inteiramente escuras das
carruagens que desfilavam, com lentidão, diante deles. Foi Kelemen o
primeiro a descobrir Kádar, que assumava à portinhola, já aberta para trás,
da carruagem direta para Bucareste. Ei-lo! - bradou ele, o braço estendido.
No mesmo instante, Szende desatou a berrar:
“He, Kádár, salve! Aqui estamos!” Shnon, esse, chamou um carregador, e
depois todo o grupo se pôs a acompanhar a carruagem. Parado o comboio,
Kádár desceu e encontrou-se face a face com toda a companhia. Mudos,
encararam-se um instante, após o Kádár rompeu o silêncio:
- Boa-noite! Vejo que foi uma delegação completa que veio ao meu
encontro; é verdadeiramente gentil terem-se incomodado tanto por minha
causa. A falar verdade, eu não esperava isto. - Ao dizer tal notava-se sua
voz como que uma leve pesquisa de palavras e um leve sotaque estrangeiro,
dificilmente perceptível.
Despiu a luva da mão direita.
Neste momento Kelemen, em ponto de ebulição, avançou para ele. - Sê
bem-vindo, Kádár. Reconheces-me? … Sou o Kelemen. Viemos todos ao
teu encontro e sentimo-nos felizes por te vermos de novo nesta nossa terra.
- É certo! … - confirmou Szende ruidosamente - bem-vindo e bravo! Isto
causa-me verdadeiro prazer! … e, ao dizer tal, também ele avançou para
Kádár estendendo-lhe a mão.
Todos imitaram então o seu exemplo, todos estenderam a mão ao mesmo
tempo e apertaram, um a um, a dele, que a mantinha o mais possível
afastada do corpo, assim como quem pretende defender-se. No fim todos
aqueles apertos de mão, Kádár disse, voltando-se para a portinhola da
carruagem:
- Desculpem-me, vou ajudar minha mulher a descer.
Esta pequena pausa fora oportuna, porque basta um olho pestense um
minuto apenas para esquadrinhar até à moela uma pessoa estranha.
A primeira impressão colhida foi a de que Kádár era alto, bem mais alto do
que qualquer de entre eles todos. Tinha os ombros largos, o peito saliente;
apresentava a epiderme do rosto como se acabasse de receber a ação dos
raios duma lâmpada de quartzo: era uma tez rude, bronzeada pelo sol e pelo
vento, uma verdadeira tez inglesa.
Mas já novo espetáculo se oferecia aos seus olhares. Do último estribo, a
senhora de Kádár saltou em terra. Um vestido de viagem cinzento,
completado por uma boina e meias cinzentas, sapatos Richelieu cinzentos,
de saltos baixos, um lenço de seda, também cinzento, ao pescoço, luvas da
mesma cor. Da mão pendia-lhe um estojo de viajante, em forma de maleta,
que era igualmente cinzento. No meio desse cinzento todo, seus olhos
negros brilhavam com singular esplendor, fazendo contraste com o rosto
moreno.
- São os meus antigos camaradas de liceu - disse Kádár indicando o grupo,
e ninguém deu por que ele falava em húngaro. Nisto Kempner avançou dois
passos, a fim de pespegar o cumprimento em língua inglesa que decorara
mercê duma aplicação verdadeiramente professoral, sob a direção dum
colega seu, mestre de francês e de inglês. Saudou os recém-chegados nestes
termos:
- Madam! More than fourteen years have passed …
Mas não pôde continuar porque Mrs. Kádár, numa voz um pouco fatigada
mas em que o acento estrangeiro se fazia notar ainda menos do que na fala
do marido, pediu:
- Fale em húngaro, por favor, eu também sou húngara.
Foi uma surpresa que estava bem longe de ser esperada. Kempner, assim
projetado para fora do seu texto, ficou-se a olhá-la, de boca aberta; e todo o
grupo mostrou uma atitude tão consternada, tão ridiculamente surpreendida,
que, apesar de toda a sua natural fadiga, dos empuxões, do incómodo, da
poeira e da fuligem duma viagem de trinta horas, ela desatou a rir às
gargalhadas frescas e sonoras:
- Nem sequer punham isto na vossa imaginação, não é verdade? … Pois
também eu sou húngara.
Foi Simon quem, primeiro, recobrou a serenidade:
- Tanto melhor! Bravo! - exclamou. E esta circunstância provocou uma
pequena ovação tanto mais oportuna quanto é certo que o intermédio de
Kempner fora perturbar um tudo nada o primitivo programa da recepção.
Entrementes, Kelemen julgou chegado o momento de se destacar do grupo
e, dirigindo-se a Kádár, declarou em voz alta:
- Magnífico, tudo isto; creio porém que, após tão longa viagem, basta por
hoje.
Mandei-lhes reservar quartos no Ritz; o mais acertado seria a gente deixar-
vos agora, e que apenas um de nós vos acompanhasse até lá.
- Sim, é isso que convém, apressou-se a acrescentar a senhora de Kádár;
estou, efetivamente, um pouco fatigada.
Fosse porque o olhar brilhante de Kelemen lho tivesse sugerido, fosse por
efeito da correspondência trocada anteriormente entre ambos, Kádár definiu
sem demora esse desejo:
- Por que havemos de dar-lhes mais esse incómodo, se nós temos o
automóvel? … mas se tu, Kelemen, queres ter a amabilidade de
acompanhar-nos … Em todo e qualquer caso, vamos! …
Dirigiram-se para a saída. Ao abandonarem o átrio, chegavam aí os
carregadores com as bagagens: duas grandes malas-armários e seis maletas
de diversas dimensões. - Observa bem isto - disse Simon a
Marton, tocando-lhe com o cotovelo. - É alguma coisa, hein … - A senhora
de Kádár subiu para um taxi, enquanto Kelemen mandava pôr as bagagens
em dois carros mais. Kádár apertou a mão de cada um dos seus amigos,
dizendo-lhes:
- Grande gentileza a vossa, vindo esperar-me … Terei muito prazer, como é
natural, em tornar a ver-vos o mais cedo possível.
Talvez o melhor seja eu combinar isso com Kelemen, que depois vos
informará.
- Muito bem, Kádár.
- Combinado, boa noite.
- Boa noite! … Adeus.
- Mais uma vez, sentimo-nos muito felizes, sede bem-vindos.
Acompanharam Kádár até o carro e, enquanto ele se acomodava lá dentro,
despediram-se também da senhora de Kádár. Já Kelemen mandara seguir os
outros dois carros.
Subiu então, por sua vez, para o taxi, sentando-se no banco de dobradiça,
em frente do casal.
- Partamos - insistiu a senhora de Kádár, dirigindo gestos afáveis a todos. E
o carro pôs-se em andamento, Para o “Ritz”, passando pela avenida
Andrássy indicou Kelemen. Depois, dirigindo-se a Kádár:
- Permite-me que te ponha ao corrente do que fiz; mandei reservar dois
belos quartos com casa de banho comum, uma saletazinha de entrada e
varanda sobre o Danúbio. Ê da quarenta e oito pengocs a diária.
- Quarenta e oito pengoes - observou Kádár - menos de duas libras;
perfeitamente, agradeço-te …
Os “companheiros” dirigiram-se lentamente para a avenida central. Na noite
serena de princípio de verão, debaixo do céu negro e tépido, as miríades de
luzes da cidade cintilavam em concorrência com as estrelas que, no alto,
brilhavam em pleno esplendor. Batidas pelas luzes, as sombras indecisas
deles, com semelhança de títeres, imobilizaram-se uns instantes, para as
despedidas mútuas. E em seguida dispersaram.
CAPÍTULO XV
A AVENTURA
CAPÍTULO I
FIM
{1}
Existe em Vacs uma prisão célebre, onde depois da queda do bolchevismo na Hungria eram
encerrados os presos políticos.
{2}
O “fim-de-semana”, período de descanso, hoje generalizado a quase todo o mundo, que vai do
meio-dia de sábado à manhã de segunda-feira.
{3}
Abreviatura familiar de António.
{4}
Moeda húngara, cujo valor atual deve equivaler aproximadamente a um escudo.
{5}
Libra ou arrátel, medida de peso equivalente a 459 gramas.
{6}
Lago da Hungria, rodeado de vastos pântanos.
{7}
O nome da cidade de Presburgo em idioma húngaro.
{8}
As “notas brancas” (assim denominadas porque eram completamente brancas no verso), foram
emitidas na Hungria, pelo governo comunista de Béla-Kun.
{9}
Localidade a uma hora, pouco mais ou menos, de Budapeste em caminho de ferro.
{10}
Oriundo da Suábia, regia antigo ducado do império germânico, entre a Turíngia, a Baviera e a
Suíça.
{11}
Estas estrelas designavam as patentes do exército húngaro.
{12}
Da célebre “lei de Lynch”, espécie de processo sumário, usado nos E. U. da América do Norte,
em que a multidão se arrogava o direito de prender, condenar e executar os criminosos.
{13}
Notas emitidas pelos Correios húngaros e que, entre o povo, gozavam de preferência em relação
às notas do Estado, falsificadas em número ilimitado pelos comunistas.
{14}
É assim que, na Hungria, os homens cumprimentam as damas.
{15}
Expressão, psicologicamente, muito inglesa, de que aproximam as nossas: “jogo franco”, “jogo
leal”, etc.
{16}
Título dos inspetores da Polícia, na Hungria.
{17}
Passeio marginal do Danúbio muito frequentado.
{18}
Ila, diminutivo familiar do Helena, a esposa de Kádár.
{19}
Cadeiras de repouso, próprias de praias.
{20}
Dança e música tradicionais da Hungria.
Digitalização texto Doc: DESCONHECIDA
Formatação/conversão ePub: RELÍQUIA