Jean Paul Sartre - Pena Suspensa
Jean Paul Sartre - Pena Suspensa
Jean Paul Sartre - Pena Suspensa
A sua obra, que influenciou profundamente vrias geraes em todo o mundo, estende --se da fico crtica literria, da psicologia filosofia, e da anlise poltica interveno cvica. De entre as suas obras mais importantes, destacam-se, para alm da presente trilogia, o romance A Nusea, o volume de natureza autobiogrfica As Palavras, as peas de teatro As Moscas e O Diabo e o Bom Deus, a srie de volumes de anlise poltica Stli nhras filOSficas C Razo , PENA SUSPENSA JEAN-PAUL SARTRE PENA SUSPENSA Os CAMINHOS DA LIBERDADE Volume II Traduo de Amlia Petinga 5." Edio BERTRAND EDITORA VENDA NOVA 1996 CMPV Ttulo original: L Chemin de Ia Liberte L Sursis 1945, ditions Gallimard Ilustrao da capa: Maskstill Life 3, de Emil Nolde Todos os direitos para a publicao desta obra em lngua portuguesa excepto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda. Fotocomposio e montagem: GRAFITEXTO Impresso e acabamento: Grfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depsito Legal n. 101767/96 ISBN: 972-25-0999-3 Acabou-se de imprimir-se em Julho de 1996 SEXTA-FEIRA 23 DE SETEMBRO Dezasseis horas e trinta em Berlim, quinze e trinta em Londres. O hotel entediava-se na colina, deserto e solene, com um velho no seu interior. Em Angoulme, Marselha, Gand, Douvres, pensavam: Que estar ele a fazer? So mais de trs horas, porque no desce? Ele estava sentado no salo com as persianas semicerradas, os olhos parados sob as espessas sobrancelhas, a boca ligeiramente aberta, como se lhe viesse memria uma lembrana muito antiga. J no lia, a sua mo velha e malhada, que ainda segurava os papis, pendia ao longo dos joelhos. Voltou-se para Horace Wilson e perguntou: Que horas so?, e Horace Wilson respondeu: Quatro e meia, mais ou menos. O velho ergueu os seus grandes olhos, esboou um sorriso amvel e disse: Est calor. Um calor encarniado, crepitante, faiscante, tinha cado sobre a Europa; as pessoas tinham calor nas mos, nos olhos, nos brnquios; esperavam enjoadas de JEAN-PAUL SARTRE calor, de poeira e de angstia. No trio do hotel, os jornalistas esperavam. No ptio trs motoristas esperavam imveis ao volante dos seus carros; do outro lado do Reno, imveis no trio do Hotel Dreesen, prussianos altos e vestidos de negro esperavam. Milan Hlinka no esperava mais. Desde a antevspera que deixara de esperar. Houvera aquele dia pesado e sombrio, cortado por uma certeza fulgurante: Eles abandonaram-nos! Depois recomeara a marcha do tempo, livremente; os dias j no se viviam por si mesmos, j no eram seno dias seguintes e doravante s haveria dias seguintes. s quinze horas e trinta Mathieu ainda esperava, beira de um futuro horrvel; no mesmo instante, s dezasseis e trinta, Milan j no tinha futuro. O velho levantou-se, atravessou o salo, de joelhos firmes, num passo nobre e saltitante. Diz: Senhores! e sorri amavelmente; pousou o documento sobre a mesa e alisou as folhas com o punho cerrado; Milan colocara-se diante da mesa; o jornal aberto cobria toda a largura do oleado. Milan leu pela stima vez: O presidente da Repblica, e com ele o Governo, no puderam deixar de aceitar as propostas das duas grandes potncias a respeito das bases para uma futura atitude. Nada mais nos restava fazer, uma vez que ficmos ss. Neville Henderson e Horace Wilson aproximaram-se da mesa, o velho voltou-se para
eles, com um ar inofensivo e vazio, e disse: Meus senhores, eis o que nos resta fazer. Milan pensava: Nada mais podia ser feito. Um rumor confuso entrava pela janela e Milan pensava: Ficmos ss. Uma vozinha fina ouviu-se da rua: Viva Hitler! Milan correu janela: Espera um pouco gritou. Espera que eu desa! PENA SUSPENSA Ouviu-se uma fuga desastrada, o bater de galochas; ao fundo da rua o garoto voltou-se, remexeu o bolso da blusa e ps-se a fazer movimentos com o brao. Duas pancadas secas contra a parede. o pequeno Liebknecht disse Milan , est a dar o seu passeio. Debruou-se: a rua estava deserta como aos domingos. Os Schoenhof tinham pendurado na varanda bandeiras vermelhas e brancas com cruzes gamadas. Todos os postigos da casa verde estavam fechados. Milan pensa: Ns no temos postigos. preciso abrir todas as janelas disse ele. Porqu? perguntou Anna. Quando as janelas esto fechadas, eles visam as vidraas. Anna encolheu os ombros: De toda a maneira... retorquiu ela. Os cantos e gritos chegavam em grandes rajadas indefinidas. Continuam na praa tornou Milan. Pousara as mos no peitoril e pensava: Est tudo acabado. Um homem corpulento surgiu ao fundo da rua. Trazia uma mochila s costas e apoiava-se a um basto. Parecia cansado, seguiam-no duas mulheres, curvadas sob o peso de enormes fardos. Os Jgerschmitt esto de volta diz Milan sem se voltar. Tinham fugido na segunda-feira tarde e deviam ter atravessado a fronteira na noite de tera para quarta-feira. Voltavam agora de cabea erguida. Jgerschmitt aproximou-se da casa verde e subiu os degraus da entrada. Um J E A N-P AUL SARTRE estranho sorriso desenhava-se no seu rosto empoeirado. Ps-se a procurar nos bolsos do palet e tirou uma chave. As mulheres haviam largado os fardos no cho e olhavam para ele. Voltas quando j no h perigo! gritou-lhe Milan. Anna diz com vivacidade: Milan! Jgerschmitt erguera a cabea. Viu Milan e os seus olhos claros brilharam. Voltas quando j no h perigo. Sim, volto gritou Jgerschmitt. E tu, tu vais-te embora! Deu uma volta chave na fechadura e empurrou a porta; as duas
mulheres entraram atrs dele. Milan voltou-se: Covardes imundos! gritou. Tu provoca-los disse Anna. So uns covardes insistiu Milan da raa suja dos Alemes. Lambiam-nos as botas h dois anos. No importa. No deves provoc-los. O velho parou de falar; a sua boca permanecia entreaberta como se, em silncio, continuasse a emitir opinies sobre a situao. Os seus grandes olhos redondos encheram-se de lgrimas, tinha arqueado as sobrancelhas, e olhava para Horace e Neville com um ar de interrogao. Eles calaram-se, Horace fez um movimento brusco e desviou o olhar; Neville dirigiu-se para a mesa, pegou no documento, considerou-o por um instante e afastou-o com descontentamento. O velho ficou perplexo; abriu os braos em sinal de impotncia e confiana. Disse ento pela quinta vez: Encontro-me em face de uma situao PENA SUSPENSA inteiramente imprevista; pensava que discutiramos tranquilamente as propostas de que eu era portador... Horace pensa: Velha raposa! Onde vai ele buscar esta voz de avozinho? Diz: Bem Excelncia, dentro de dez minutos estaremos no Hotel Dreesen. Larchen chegou disse Anna. O marido est em Praga; ela est inquieta. Ela que venha para a nossa casa. Se tu pensas que estar mais tranquila retorquiu Anna a sorrir. Com um louco como tu, que se pe janela para insultar as pessoas na rua... Ele olhou para o seu rosto fino e calmo, com traos vincados, para os ombros estreitos, o ventre enorme. Senta-te disse ele. No gosto de te ver de p. Ela sentou-se, cruzou as mos sobre o ventre; o ardina apregoava jornais, gritando: Paris-Soir, ltima edio, restam-me dois, comprem-mos. Ele tinha gritado tanto que ficara rouco. Maurice comprou o jornal. Leu: O pri-meiro-ministro Chamberlain enviou ao chanceler Hitler uma carta qual, como se acredita nos meios britnicos, este dever responder. A entrevista que deveria realizar-se esta manh com o senhor Hitler foi, consequente-mente, adiada para mais tarde. Zzette olhava para o jornal por cima do ombro de Maurice. Perguntou: H novidades? No. Sempre a mesma coisa. Virou a pgina e viram uma fotografia escura que representava uma espcie de castelo, uma habilidade medieval, no cimo de
uma colina, com torres, sinos e centenas de janelas. J E A N-P AUL SARTRE Godesberg disse Maurice. a que est Chamberlain? perguntou Zzette. Parece que enviaram reforos da polcia. Sim disse Milan. Dois polcias. So seis ao todo. Entrincheiraram-se no posto. Uma enorme gritaria invadiu o quarto. Anna tremeu mas o seu rosto permaneceu calmo. Se telefonssemos!? lembrou ela. Telefonar? Sim, para Prisecnice. Milan mostrou-lhe o jornal sem responder: Segundo um telegrama da D.N.B. datado de quinta-feira, as populaes alems das regies dos Sudetas teriam assumido o controlo de manuteno da ordem at fronteira lingustica. Isso talvez no seja verdade contrariou Anna. Disseram-me que isso s aconteceu em Eger. Milan deu um soco na mesa: Meu Deus! Pedir socorro, mais uma vez. Estendeu as mos; eram enormes e nodosas, com manchas escuras e cicatrizes: tinha sido lenhador antes do acidente. Olhava para elas, abrindo os dedos. Disse: Que venham. Dois, trs. Vamos divertir-nos um pouco, juro-te. Viro seiscentos diz Anna. Milan baixou a cabea; sentia-se s. Ouve! exclamou Anna. Ele ps-se escuta: ouviram-nos mais distintamente; deviam ter-se posto a caminho. O dio f-lo tremer; j no via muito bem e doa-lhe o crnio. Aproximou-se da cmoda, resfolgando. Que vais fazer? perguntou Anna. PENA SUSPENSA Ele tinha-se inclinado sobre a gaveta da cmoda e resfolgava. Curvou-se um pouco mais e grunhiu sem responder. No deves fazer isso disse ela. O qu? No deves. D-me isso. Ele voltou-se: Anna tinha-se levantado e estava encostada cadeira, com um ar grave. Ele pensou no seu ventre; entregou-lhe o revlver. Bem disse Milan. Vou telefonar para Prisecnice. Desceu ao rs-do-cho, foi at sala de aula, abriu as janelas e pegou no auscultador. Ligue-me para o posto da polcia de Prisecnice. O ouvido direito percebia um crepitar seco, em ziguezague. O
ouvido esquerdo ouvia-os. Odette deu uma risada confusa: Nunca soube muito bem onde a Checoslovquia disse, enterrando os dedos na areia. Ao fim de um instante houve um rudo da ligao. Pronto. Milan pensou: Estou a pedir socorro. Apertou o auscultador com toda a fora. Aqui Pravnitz disse ele , sou o mestre-escola. Somos vinte checos, h trs democratas alemes escondidos numa adega, o resto est em Henlein; esto cercados por cinquenta tipos da milcia que atravessaram a fronteira ontem noite e que os reuniram na praa. O presidente da Cmara est com eles. Houve um silncio, depois a voz atalhou, insolente: Bitte! Deutsch sprechen. JEAN-PAUL SARTRE Schweinkopf! gritou Milan. Desligou e subiu a mancar. Doa-lhe a perna. Entrou no quarto e sentou-se. Esto l disse ele. Anna foi para junto dele, pousou as mos nos seus ombros: Meu querido amor. Safados! gritou Milan. Compreendiam tudo e riam-se. Puxou-a para os seus joelhos. O ventre enorme tocava o seu: Agora estamos ss disse ele. No posso acreditar. Levantou a cabea lentamente e olhou-a de alto a baixo; ela era sria e decidida no trabalho, mas tinha aquela caracterstica das mulheres: necessidade, sempre, de confiar em algum. Ei-los! disse Anna. As vozes pareciam mais prximas: deviam estar a desfilar na rua principal. Ao longe, os gritos de alegria da multido assemelhavam-se a gritos de horror. A porta est trancada? Est respondeu Milan. Mas eles podem entrar pelas janelas ou dar a volta pelo jardim. Se subirem... disse Anna. No tenhas medo. Podem partir tudo, que eu no moverei um dedo. Sentiu de repente no rosto os lbios quentes de Anna: Meu querido amor. Sei que por mim que fars isso. No por ti. Tu s eu. E pela criana. Sobressaltaram-se: tinham tocado. PENA SUSPENSA No vs janela gritou Arma. Ele levantou-se e foi janela. Os Jgerschmitt haviam aberto
todos os postigos; a bandeira hitleriana estava pendurada por cima da porta. Debruando-se, viu uma sombra minscula. Deso j gritou ele. Atravessou o quarto: E Marikka. Desceu a escada e foi abrir. Rojes, gritos, msica por todos os lados: era um dia de festa. Olhou para a rua vazia e o corao apertou-se-lhe. Que vens tu aqui fazer? perguntou. No h aula. Foi a mam que me mandou disse Marikka. Trazia um cestinho com mas e torradas com margarina. A tua me louca; vais voltar para casa. Ela disse-me que o senhor no me mandaria embora. Estendeu-lhe um papel dobrado em quatro. Ele desdobrou e leu: o pai e Georg perderam a cabea. Peo por favor que fique com Marikka at noite. Onde est o teu pai? perguntou Milan. Ps-se atrs da porta com Georg. Tm machados e espingardas. Acrescentou com certa importncia: A mam fez-me sair pelo ptio, ela disse que eu estaria melhor aqui porque o senhor mais sensato. Bem disse Milan. Bem, sou sensato. V, sobe. Dezassete horas e trinta em Berlim, dezasseis e trinta em Paris. Ligeira depresso ao norte da Esccia. O senhor Von Drnberg apareceu na escadaria do Grande Hotel, os jornalistas cercaram-no e Pierryl perguntou: Ele vai descer? O senhor Von Drnberg segurava um papel na J E A N-P AUL SARTRE mo direita, levantou a esquerda e disse: No foi ainda decidido se o senhor Chamberlain ver o Fhrer esta noite. aqui disse Zzette. Vendia aqui flores, num carrinho verde. Estavas bem colocada disse Maurice. Ele olhava docilmente para a calada, pois era isso que eles tinham querido ver, tanto ela falara naquilo. Mas no o impressionava. Zzette largara-lhe o brao, ria sozinha sem rudo, vendo os carros passar. Maurice perguntou: Trazias uma cadeira? Imagina! Um banquinho disse Zzette. No devia ser muito divertido. Na Primavera era bom. Ela falava-lhe em surdina sem se virar para ele, como num quarto de doente; pusera-se a fazer movimentos com as costas e os ombros, a sua atitude no era natural. Maurice estava a aborrecer-se; havia pelo menos vinte pessoas diante de uma montra, ele aproximou-se e ps-se a olhar por cima das cabeas. Zzette continuava extasiada beira do passeio;
pouco depois alcanou-o e agarrou--Ihe de novo o brao. Sobre uma placa de vidro lapidado viam-se dois pedaos de couro vermelho com uma penugem, tambm vermelha, em toda a volta, como um pompom de p-de-arroz. Maurice riu. So sapatos disse ele numa risada. Duas ou trs cabeas moveram-se. Zzette fez psiu e afastou-o. Que foi? perguntou Maurice. No estamos na missa. PENA SUSPENSA Mas mesmo assim baixara a voz: as pessoas avanaram a passos leves umas atrs das outras, pareciam conhecer-se todas mas ningum falava. H bem uns cinco anos que no venho aqui sussurrou Maurice. Zzette mostrou-lhe o Maxim's com orgulho. E o Maxim's disse-lhe ela ao ouvido. Maurice olhou e virou a cabea: tinham-lhe falado daquilo, uma bela porcaria onde os burgueses bebiam champanhe em 1914, enquanto os operrios enfrentavam a polcia. Disse entre dentes: Podrido! Mas sentia-se pouco vontade, sem saber porqu. Andava a passo mido, saltitando; as pessoas pareciam-lhe frgeis e ele tinha medo de as magoar. Talvez disse Zzette. Mas uma bela rua, mesmo assim, no achas? Nada de extraordinrio. Falta-lhe ar. Zzette encolheu os ombros e Maurice ps-se a pensar na Avenida de Saint-Ouen: quando saa do hotel pela manh, indivduos passavam por ele assobiando, de maleta s costas, curvados sobre o guiador das suas bicicletas. Ele sentia-se feliz: uns paravam em Saint-Denis e outros continuavam o seu caminho, toda a gente ia na mesma direco, a classe operria em marcha. Disse a Zzette: Aqui est-se com os burgueses. Deram alguns passos no meio de um odor a papel aromtico e de repente Maurice parou e pediu perdo. Que dizes? perguntou Zzette. Nada respondeu Maurice envergonhado. No digo nada. J E A N-P AUL SARTRE Tinha, mais uma vez, esbarrado com algum; os outros, ainda que andassem de olhos no cho, davam sempre um jeito para se desviarem no ltimo instante; devia ser uma questo de hbito. Vens? Mas ele j no tinha vontade de andar, tinha medo de partir alguma coisa, e aquela rua no ia dar a lado nenhum, no tinha direco, havia os que subiam para as avenidas, outros que
desciam para os lados do Sena, e os que ficavam a esfregar o nariz nas vitrinas, o que provocava redemoinhos locais, mas no movimentos de conjunto, sentia-se s. Estendeu a mo e pousou-a no ombro de Zzette; apertava fortemente a carne atravs do tecido. Zzette sorriu-lhe, ela divertia-se, olhava tudo com avidez, sem perder o seu ar sabido, remexia com graa as ndegas pequenas. Ele fez-lhe ccegas no pescoo e ela sorriu. Maurice disse ela , pra com isso. Ele gostava muito das cores fortes com que ela se pintava, o branco que parecia acar e o belo vermelho das mas. De perto, ela cheirava a panqueca de mel. Ele perguntou-lhe em voz baixa: Ests a divertir-te? Conheo tudo disse Zzette com os olhos brilhantes. Ele largou-lhe o ombro e comearam a andar em silncio: ela conhecera burgueses que vinham comprar-lhe flores, para quem ela sorria, e alguns tentavam mesmo namorisc-la. Olhava para a nuca branca de Zzette e sentia-se estranho, tinha vontade de rir e de zangar-se. Paris-Soir gritou uma voz. Compramos? perguntou Zzette. PENA SUSPENSA o mesmo de h pouco. A multido cercava o vendedor arrancando-me os jornais sem dizer palavra. Uma mulher saiu do grupo, usava sapatos de saltos altos e um ridculo chapu na cabea. Desdobrou o jornal e ps-se a ler enquanto andava. As suas feies tomaram um ar deprimido e soltou um grande suspiro. Olha para aquela senhora disse Maurice. Zzette olhou: O homem dela est talvez prestes a partir. Maurice encolheu os ombros: parecia to engraado ser-se infeliz com aquele chapu e aqueles sapatos de mulherzinha. E ento? disse ele. O homem dela um oficial. Mesmo que seja disse Zzette pode deixar por l a pele como os companheiros. Maurice olhou-a de soslaio: Ds-me vontade de rir com esses oficiais. Vai ver se em 14 eles perderam a pele. Justamente disse Zzette. Sempre pensei que muitos tivessem morrido. Os soldados das trincheiras que morreram, e ns. Zzette abraou-o com fora: Oh! Maurice, acreditas realmente que vai haver guerra? Que sei eu disso? De manh ainda estava convencido que sim e os amigos tambm. Chegavam margem do Sena e olhavam para a fila de guindastes
e para a draga, havia camaradas em mangas de camisa, os duros de Gennevilliers que cavavam J E A N-P A U L SARTRE uma valeta para um cabo elctrico, e era evidente que a guerra estouraria. Afinal de contas, as coisas no mudariam muito para aqueles camaradas: iriam para algum lugar no Norte, cavar trincheiras debaixo do sol quente, ameaados pelas balas, plos obuses e pelas granadas, tal qual como agora pelas barreiras, pelas quedas, plos acidentes de trabalho; aguardariam o fim da guerra como aguardavam o fim da misria. Sandre dissera: Ns faremos essa-' guerra, minha gente. Mas quando voltarmos conservaremos as espingardas. Agora j no tinha a certeza de nada: em Saint-Ouen era a guerra em permanncia, aqui no. Aqui era a paz: havia montras, objectos de luxo, tecidos coloridos, espelhos, todo o conforto. As pessoas pareciam tristes, mas era de nascena. Porque lutariam? No precisavam de nada, tinham tudo. Devia ser sinistro nada esperar seno que a vida continuasse indefinidamente como comeara! A burguesia no quer a guerra explicou Maurice subitamente. Tem medo da vitria, porque ser a vitria do proletariado. O velho levantou-se, conduziu Neville Henderson e Horace Wilson at porta. Olhou-os com um ar comovido; assemelhava-se a todos os velhos de feies pudas que cercavam o ardina na Rua Royale, as bancas de jornais de Pall Mall Street, e que no desejavam mais nada a no ser que a vida terminasse como comeara. Ele pensava nesses velhos e nos filhos desses velhos e disse: Perguntai, alm disso, ao senhor Von Ribbentrop se o chanceler Hitler julga til que tenhamos uma ltima entrevista antes da minha partida, lembrando-lhe que uma aceitao de princpio acarretaria para ele a necessidade de PENA SUSPENSA nos comunicar novas propostas. Insisti no facto de que estou resolvido a fazer o que for humanamente possvel para resolver o litgio atravs de negociaes, pois parece-me incrvel que os povos da Europa, que no querem a guerra, sejam lanados para um conflito sangrento por uma questo que est, em grande parte, resolvida. Boa sorte. Horace e Neville inclinaram-se, desceram a escadaria, a voz cerimoniosa, tmida, quebrada, civilizada, ressoava ainda nos seus ouvidos e Maurice olhava para as carnes suaves, gastas, civilizadas, dos velhos e das mulheres e pensava com nojo que seria necessrio sangr-los. Seria necessrio sangr-los, o que seria ainda mais nojento do
que esmagar lesmas, mas inevitvel. As metralhadoras varreriam a Rua Royale, que ficaria deserta durante alguns dias, com vidraas partidas, montras furadas em forma de estrela, mesas viradas nas caladas dos cafs no meio de estilhaos de vidro; avies girariam no cu por cima dos cadveres. Depois recolher-se-iam os mortos, erguer-se-iam as mesas, substituir-se-iam as vidraas e a vida recomearia, homens atarracados, de nucas possantes e vermelhas, blusas de couro e bons, repovoariam a rua. Assim foi na Rssia, Maurice vira fotografias da Avenida Newsky; os proletrios tinham tomado posse da avenida luxuosa, passeavam nela, os palcios e as pontes de pedra j no os espantavam. Desculpe! disse Maurice, confuso. Tinha dado uma bela cotovelada nas costas de uma velha, que lhe deitou um olhar indignado. Sentiu-se cansado e desanimado: sob os grandes painis publicitrios, as letras de ouro sujo penduradas no balco, entre as confeitarias e sapatarias, diante das colunas da Madeleine, no J E A N-P A U L SARTRE se podia imaginar uma multido diferente dessa, com muitas velhinhas saltitantes e crianas vestidas de marinheiro. A luz triste e dourada, o cheiro a incenso, os prdios esmagadores, as vozes doces, os rostos angustiados e adormecidos, o raspar sem esperana das solas no asfalto, tudo se combinava, tudo era real. A revoluo que no passava de um sonho. No devia ter vindo, pensou Maurice, olhando para Zzette, com rancor. O lugar de um proletrio no aqui. Uma mo tocou-lhe no ombro; ele corou de alegria ao reconhecer Brunet. Bom dia, meu velho disse Brunet, sorridente. Ol, camarada disse Maurice. A mo de Brunet era dura e calosa como a sua e apertava com fora. Maurice olhou para Brunet e ps-se a rir com prazer. Despertava: sentia os camaradas a seu lado, em Saint-Ouen, Ivry, Montreuil, mesmo em Paris, em Bel-leville, Montrouge, La Villette, ombro a ombro, preparando-se para a refrega. Que fazes aqui? perguntou Brunet. Ests desempregado? Estou de frias explicou Maurice um tanto desajeitado. Zzette quis vir porque trabalhou aqui antigamente. E aqui est Zzette disse Brunet. Ol, camarada Zzette. Brunet disse Maurice. Leste o artigo dele hoje no H uma. Zzette olhou para Brunet sem timidez e estendeu-lhe a mo. Ela no tinha medo dos homens, mesmo que fossem burgueses ou os membros mais importantes do Partido. PENA SUSPENSA
Quando o conheci era deste tamanho disse Brunet, designando Maurice. Estava nos Falces Vermelhos, no coro; nunca vi ningum mais desafinado. Por fim, combinmos que ele s fingiria cantar nos desfiles. Riram-se. E ento? disse Zzette. Ser que vai haver guerra? Deve saber, est bem colocado para isso. Era uma pergunta idiota, uma pergunta de mulher, mas Maurice ficou-lhe grato por ela a ter feito. Brunet tinha-se tornado srio. No sei se haver guerra disse ele. O principal, porm, no ter medo: a classe operria deve saber que no fazendo concesses que a evitar. Falava bem. Zzette lanara-lhe um olhar cheio de confiana e sorria docemente enquanto o ouvia. Maurice irritou-se: Brunet falava como o jornal e no dizia nada a mais. Acha que Hitler se amedrontaria se arreganhssemos os dentes? perguntou Zzette. Brunet assumira um ar oficial, no parecia compreender que lhe pediam a sua opinio pessoal. muito possvel disse ele. E depois, acontea o que acontecer, a URSS est connosco. Evidentemente, pensou Maurice, os membros importantes do Partido no se vo pr, assim a pedido, a dar a sua opinio pessoal a um pobre mecnico de Saint--Ouen. Mas no deixava de sentir uma certa decepo. Olhou para Brunet e a sua alegria esvaiu-se por completo: Brunet tinha mos grossas de campons, o queixo forte, olhos que sabiam o que queriam; mas usava colarinho e gravata, um fato completo de flanela, e parecia sentir-se vontade no meio dos burgueses. J E A N-P AUL SARTRE As suas imagens reflectiam-se numa montra: Maurice viu uma mulher desgrenhada e um latago de bon sobre a nuca e bluso de couro a conversarem com um senhor. Contudo, ele continuava ali, de mos nos bolsos, e no se decidia a despedir-se de Brunet. Continuas em Saint-Mand? perguntou Brunet. No disse Maurice , em Saint-Ouen. Trabalho no Flaive. Ah! Pensei que estivesses em Saint-Mand! Ajustador? Mecnico. Bem disse Brunet. Bem, bem, bem. Pois ento, at vista, camarada. Adeus, camarada. Sentia-se perturbado e vagamente desiludido. Adeus, camarada disse Zzette, com um sorriso aberto. Brunet acompanhou-os com o olhar at eles se afastarem. A
multido envolvera-os novamente, mas os ombros enormes de Maurice emergiam por cima dos chapus. Devia segurar Zzette pela cintura: o seu bon roava no cabelo dela e, de cabeas coladas uma outra, pareciam valsar entre os transeuntes. E um bom tipo, pensou Brunet, mas no gosto da sua maneira de rir. Continuou a andar, com um ar srio, e um vago remorso flor da pele. Que poderia eu responder-lhe?, pensou ele. Em Saint-Denis, em Saint-Ouen, em Sochaux, em Creusot, centenas de milhares esperavam com o mesmo olhar ansioso e confiante. Centenas de milhares de cabeas como aquela, boas cabeas redondas e duras, grosseiramente talhadas, autnticas cabeas de homens que se voltavam l PENA SUSPENSA para Leste, para Godesberg, Praga, Moscovo. E que responder-lhes? Defend-los; por enquanto era tudo o que se poderia fazer. Defender o seu pensamento lento e tenaz contra todos os que tentavam descarril-lo. Hoje a velha Boningue, amanh Dottin, o secretrio do Sindicato dos Professores, depois de amanh os pivertistas: era a sua tarefa; iria v-los todos, tentaria faz-los calar. A velha Boningue olh-lo-ia docemente, falar-lhe-ia do horror de derramar sangue agitando as suas mos idealistas. Era uma mulheraa, cinquentona, de tez vermelha, coberta por uma penugem clara, cabelos curtos, e um olhar macio de padre por detrs dos culos; usava um casaco de homem e, na lapela, a fita da Legio de Honra. Eu dir-Ihe-ei: as mulheres no devem comear a fazer idiotices; em 14, empurravam os seus homens para os vages quando ento seria preciso deitarem-se nos trilhos para impedir o comboio de partir, e hoje, que a luta pode ter um sentido, vo criar ligas em prol da paz e sabotar o moral dos homens. O rosto de Maurice reapareceu e Brunet encolheu os ombros, enfurecido: Uma palavra, uma s palavra, basta s vezes para esclarec-los, e eu no soube encontr-la. Pensou com rancor: E por culpa dela, elas so especialistas em fazer perguntas idiotas. As faces empoadas de Zzette, os seus olhinhos obscenos, o seu perfume ignbil; essas mulheres iriam angariar assinaturas sem fim, insistentes e gentis, as gordas todas radicais, as judias trotskistas, as oposicionistas S.F.I.O., entrariam em todo o lado, com o seu sagrado atrevimento, cairiam em cima da velha camponesa preparando-se para a ordenha, enfiar-lhe-iam uma caneta nos dedos molhados: Assine aqui, se contra a guerra. A guerra nunca. Negociaes sempre. Paz J E A N-P AUL SARTRE
antes de tudo. E que faria Zzette se lhe dessem uma caneta, assim de repente? Ter ela conservado reflexos de classe, suficientemente sos para zombar dessas gordas senhoras benevolentes? Ela arrastou-o para os bairros chiques. Olhava para as lojas de modas com satisfao, e uma camada de maquilhagem no rosto... Pobre rapaz, no seria nada agradvel se ela se lhe pendurasse ao pescoo para o impedir de partir: eles no precisavam disso... Intelectual. Burgus. No posso suport-la porque se pinta e tem as mos mal tratadas. Contudo, nem todos os camaradas podem ser celibatrios. Sentia-se cansado e lento; subitamente pensou: Condeno a sua maquilhagem porque no gosto de cosmticos baratos. Intelectual. Burgus. Am-los. Am-los a todos e a todas, cada um e cada uma, sem distino. Pensou: No deveria sequer querer am--los, isso deveria acontecer naturalmente, assim como se respira, por necessidade. Intelectual. Burgus. Separado para sempre. No adianta, nunca teremos as mesmas lembranas. Joseph Mercier, 33 anos, heredo-sifiltico, professor de Histria Natural no Liceu Buffon e no Colgio Sevign, subia a Rua Royale fungando e retorcendo periodicamente a boca com um pequeno estalo hmido; a com a sua pontada do lado esquerdo, sentia-se miservel e pensava: Ser que eles pagaro o tratamento dos funcionrios mobilizados? Andava de cabea baixa para no ver todos aqueles rostos impiedosos e esbarrou com um homem alto e ruivo que vestia um fato de flanela cinzento, lanando-o contra uma montra; Joseph Mercier ergueu os olhos e pensou: Que animal! Era uma coisa, uma parede, um desses brutos insensveis e cruis, como aquele Charmelier da aula de Matemtica elementar, que zombava dele, um desses PENA SUSPENSA tipos que no duvidam de nada, nem de si mesmos, que nunca adoeceram, que no tm manias, que agarram as mulheres e a vida com deciso e caminham direito meta, lanando os outros contra as montras. A Rua Royale descia devagar para o Sena e Brunet deslizava com ela, algum esbarrara com ele, e viu escapar-se uma minhoca magra, de nariz espalmado, chapu de coco e um colarinho postio; pensava em Zzette e em Maurice e reencontrara a sua velha angstia familiar, a sua vergonha diante dessas recordaes inexpiveis, a casa branca beira do Marne, a biblioteca do pai, as mos longas e perfumadas da me, que o separavam deles para sempre. Estava uma bela tarde dourada, fruto de Setembro. Stephen Hartley, debruado na varanda, murmurava: O lento e vasto redemoinho da turba vespertina. Todos aqueles chapus, aquele mar de feltro, algumas cabeas nuas flutuando no meio das
ondas, pensou: como gaivotas. Pensou que escreveria: como gaivotas, duas cabeas loiras e uma cinzenta, um belo crnio ruivo, por cima dos outros, j atingido pela calvcie; Stephen pensava a multido francesa e ficou comovido. Pequena multido de pequenos hericos e meio velhos. Escreveria: O povo francs aguarda os acontecimentos com calma e dignidade. Na primeira edio do New York Herald, em letras grandes: Eu auscultei o povo francs. Homens pequenos, que nunca tinham um ar muito asseado, grandes chapus de mulheres, multido silenciosa e suja, dourada pela hora calma de uma tarde de Paris, entre a Madeleine e a Concorde, ao pr do Sol. Escreveria: a imagem da Frana; escreveria: a eterna imagem da Frana. Deslizes, murmrios, que dir-se-iam respeitosos e maravilhados, seria exaJ E A N-P A U L SARTRE gero maravilhados; um francs alto e ruivo, ligeiramente calvo, calmo como o pr do Sol, reflexos de luz nos vidros dos automveis, alguns clamores; cintilar de vozes, pensou Stephen. E pensou: O meu artigo est feito. Stephen! chamou Sylvia, atrs dele. Estou a trabalhar disse Stephen sem se voltar. Mas preciso que me respondas, querido. S h bilhetes de primeira classe no Lafayette. Compra, compra beliches de luxo. O Lafayette ser talvez o ltimo navio a partir para a Amrica, no haver outro to cedo. Brunet andava devagar, respirando um odor a papel aromtico, levantou a cabea, viu as letras douradas penduradas de uma varanda; a guerra estoirou: ela ali estava no fundo daquela inconsistncia luminosa, inscrita como uma evidncia nas paredes da linda cidade quebrvel: era uma exploso fixa que rasgava ao meio a Rua Royale; as pessoas passavam por ela sem a ver; Brunet via-a. Sempre ali estivera, mas aquela gente no sabia ainda. Brunet pensara: O cu cair-nos- sobre a cabea. E tudo se ps a cair, vira as casas como eram de verdade: quedas sustidas. Aquela loja graciosa sustentava toneladas de pedras e cada pedra, colada s outras, caa no mesmo lugar, obstinadamente, h cinquenta anos; alguns quilos a mais e a queda recomearia; as colunas arredondar-se-iam vacilando e teriam feias fracturas com esqurolas; a montra far-se-ia em pedaos; carradas de pedras enterrar-se-iam na cave, esmagando os fardos de mercadorias. Tm bombas de quatro mil quilos. Brunet sentiu o corao apertar-se: ainda h pouco, nestas fachadas bem alinhadas, havia um sorriso humano misturado com a poeira dourada da tarde. Mas o sorriso desapaPENA SUSPENSA
recera; cem mil quilos de pedra; homens erravam no meio de avalanchas estabilizadas. Soldados entre runas, ele morrer, talvez. Viu sulcos negros nas faces maquilhadas de Zzette. Paredes empoeiradas, pedaos de paredes com grandes fendas escancaradas, e quadrados de papel azuis ou amarelos, por todo o lado, e manchas de lepra; ladrilhos vermelhos no meio dos escombros, lajes descoladas plos tufos de ervas. Depois, barraces de madeira, acampamentos. E mais tarde, seriam construdas grandes casernas montonas como nas avenidas perifricas. O corao de Brunet apertou-se: Gosto de Paris, pensou com angstia. A evidncia apagou-se de repente e a cidade reconstituiu-se sua volta. Brunet parou; sentiu-se suavizado por uma doura mole e pensou: Se no houvesse guerra! Se pudesse no haver guerra! E olhava avidamente para os grandes portes, para a montra cintilante de Driscoll, para as tapearias azul-rei da Cervejaria Weber. Por fim, teve vergonha; continuou a andar e pensou: Gosto de mais de Paris. Como Pilniak em Moscovo, que gostava de mais das velhas igrejas. O Partido tem razo em desconfiar dos intelectuais. A morte est inscrita nos homens, a runa est inscrita nas coisas; outros homens viro que reconstruiro Paris, que reconstruiro o mundo. Dir-lhe-ei: Ento quer a paz por qualquer preo? Falar-lhe-ei afavelmente fixando-a bem nos olhos e dir-lhe-ei: preciso que as mulheres nos deixem sossegados. No altura de nos aborrecerem com as suas idiotices. Quereria ser homem disse Odette. Mathieu soergueu-se sobre um cotovelo. Estava bem bronzeado, agora. Perguntou a sorrir: Para brincar aos soldados? J E A N-P AUL SARTRE Odette corou: Oh, no! respondeu com vivacidade. Mas acho idiota ser mulher neste momento. No deve ser muito cmodo admitiu ele. Fizera, mais uma vez, figura de tonta; as palavras que empregava voltavam-se sempre contra ela. Parecia-lhe, no entanto, que Mathieu no teria podido censur-la se ela tivesse sabido explicar-se: teria sido necessrio dizer-lhe que os homens a punham sempre constrangida quando falavam de guerra sua frente. No eram naturais, mostravam demasiada segurana, como se desejassem dar-lhe a entender que era negcio de homem, e apesar disso tinham sempre um ar de quem espera alguma coisa dela: uma espcie de arbtrio, porque mulher e no partiria, ficaria fora da confuso. E o que poderia ela dizer-lhes? Fiquem? Partam? No lhe cabia a ela decidir, porque no partiria. Ou ento deveria dizer-lhes:
Faam o que quiserem. Mas se eles no quisessem nada? Ela apagava-se, fingia no os ouvir, servia-lhes caf e licores, entre as palavras resolutas que pronunciavam. Suspirou, pegou num pouco de areia e f-la escorrer, quente e branca, sobre a sua perna morena. A praia estava deserta, o mar cintilava e sussurava. No ponto de pranchas do Provenal, trs senhoras, em calas de praia, tomavam ch. Odette fechou os olhos. Jazia sobre a areia, metida num calor sem data, sem idade: o calor da sua infncia, quando fechava os olhos deitada sobre essa mesma areia e brincava salamandra metida numa grande chama vermelha e azul. O mesmo calor, a mesma carcia hmida do fato de banho; senti-lo fumegar levemente ao sol, o mesmo ardor da areia na nuca, dantes ela fundia-se com o cu, o mar, e a areia, PENA SUSPENSA j no distinguia o passado do presente. Ergueu-se de olhos bem abertos: hoje, havia um verdadeiro presente; havia essa angstia no estmago, havia Mathieu, bronzeado e nu, sentado em cima do roupo branco. Mathieu mantinha-se silencioso. Ela no lhe teria pedido para fazer outra coisa. Mas quando no o obrigava a dirigir-lhe palavra, perdia-o: ele prestava-se a isso, condescendentemente, um, pequeno discurso com a sua voz clara e um pouco rouca, e logo se afastava, desaparecia, deixando-lhe como penhor um corpo bem desenhado. Se ao menos pudesse supor que ele se absorvia em pensamentos agradveis: mas ele olhava fixamente, para a frente, com um ar profundamente desgraado, enquanto as mos se ocupavam em fazer um bolo de areia. O bolo desmanchava-se, e as mos reconstruam-no sem cessar; Mathieu no olhava nunca para as mos, era enervante, afinal. No se fazem bolos com areia seca disse Odette. Uma criana de colo j sabe isso. Mathieu ps-se a rir. Em que pensas? perguntou Odette. Preciso de escrever a Ivich, e sinto-me embaraado. No acreditaria que isso pudesse incomodar-te respondeu com um risinho. Manda-lhe livros. Pois. Mas houve uns imbecis que a amedrontaram. Ela ps-se a ler os jornais, mas no entende nada: quer que eu lhe explique. Vai ser fcil... confunde os Checos com os Albaneses e pensa que Praga beira-mar. bem russo isso disse Odette secamente. Mathieu fez uma careta e Odette sentiu-se antiptica. Ele atalhou sorrindo: O pior que ela est furiosa comigo. J E A N-P AUL SARTRE Porqu? Porque sou francs. Ela vivia tranquilamente com os
franceses, e eis que os franceses, de repente, querem lutar. Ela acha isso escandaloso. encantador disse Odette indignada. Mathieu assumiu uma atitude ingnua: preciso que nos coloquemos no lugar dela disse ele docemente. Atormenta-a a ideia de sermos mortos ou feridos! Acha que os feridos carecem de tacto porque somos obrigados a pensar nos seus corpos. Questes fisiolgicas, diz ela. Tem horror ao fisiolgico, tanto nela como nos outros. Amorzinho murmurou Odette. verdade disse Mathieu. Fica dias inteiros sem comer, porque lhe repugna faz-lo. Quando tem sono, noite, toma caf para no dormir. Odette no respondeu; mas pensava: Uma boa tareia era o que ela precisava. Mathieu remexia a areia com um ar potico e idiota. No come nunca, mas estou certa de que esconde grandes boies de compota no quarto. Os homens so muito anjinhos. Mathieu tinha voltado aos seus bolos de areia; e partira outra vez, s Deus sabe para onde e por quanto tempo: Eu como carne em sangue e durmo quando tenho sono, pensou ela com amargura. No ponto do Provenal, os msicos tocavam a Serenata Portuguesa. Eram trs. Italianos. O violinista no era muito mau; fechava os olhos quando tocava. Odette sentiu-se comovida; era sempre divertido ouvir msica ao ar livre, to tnue, to ftil. Principalmente naquele momento: toneladas de calor e de guerra pesavam sobre o mar, sobre a areia, e havia aquele guincho de ratinho subindo at ao cu. Ela voltou-se para PENA SUSPENSA Mathieu, queria dizer-lhe: Gosto muito desta msica. Mas calou-se: talvez Ivich detestasse a Serenata Portuguesa. As mos de Mathieu imobilizaram-se e o bolo desmanchou-se. Gosto muito desta msica disse ele erguendo a cabea. Como se chama? a Serenata Portuguesa disse Odette. Dezoito horas e dez em Godesberg. O velho esperava. Em Angoulme, em Marselha, Gand e Douvres, pensavam: Que estar ele a fazer? Ter decidido? Estar a falar com Hitler? E muito possvel que neste instante estejam a combinar tudo entre os dois. E esperavam. O velho esperava, tambm, no salo de persianas semicerradas. Estava s; arrotou e aproximou-se da janela. A colina descia para o rio, verde e branca. O Reno estava negro, parecia uma estrada asfaltada, molhada da chuva. O velho arrotou novamente, sentiu um gosto azedo na boca. Ps-se a tamborilar na vidraa e as moscas espantadas esvoaaram volta dele. Fazia um calor branco e empoeirado,
pomposo, cptico, caduco, um calor de gola engomada, do tempo de Frederico II; no mago desse calor, um velho ingls sentia-se aborrecido, um velho ingls do tempo de Eduardo VII e o resto do mundo estava em 1938. Em Juan-les-Pins, no dia 23 de Setembro de 1938, s dezassete horas e dez minutos, uma mulher alta, vestida de branco, sentou-se num banquinho, tirou os culos azuis e ps-se a ler o jornal. Era o Petit Niois, Odette Delorme via o ttulo em letras grandes: Sangue-frio, e, esforando-se um pouco, pde decifrar o subttulo: Chamberlain envia uma mensagem a Hitler. Ela pergunta a si mesma: Ser que eu tenho realmente horror guerra? e pensou: No. No, de certeza. J E A N-P AUL SARTRE Se tivesse um horror total, ter-se-ia levantado de um salto, teria corrido at estao e gritado: No partam! Fiquem em casa! Viu-se, por um instante, assim firme, de braos abertos e a gritar, teve uma espcie de vertigem. Depois sentiu com alvio que era incapaz de to grosseira indiscrio. No at ao fim. Uma senhora, uma francesa sensata e discreta, com uma quantidade de preceitos, com o preceito de nada pensar at ao fim. Em Laon, num quarto sombrio, uma menina odiosa e escandalizada recusava a guerra com todas as suas foras, cegamente, obstinadamente. Odette dizia: A guerra uma coisa horrvel. S penso nos pobres diabos que partem. Mas ainda no pensava em nada, esperava, sem impacincia: sabia que lhe diriam logo tudo o que deveria pensar, dizer, fazer. Quando o pai morreu, em 1918, disseram-lhe: Muito bem, preciso ser-se corajosa, e ela aprendeu logo a usar o vu de luto com uma tristeza altiva, a mergulhar nos olhos dos outros um olhar de rf de guerra. Em 1924, o seu irmo fora ferido em Marrocos, voltara coxo e tinham-lhe dito: Muito bem, antes de tudo preciso no mostrar ter pena, e Jacques dissera-lhe alguns anos mais tarde: curioso, pensava que tienne fosse mais forte, ele nunca aceitou a sua enfermidade, tornou-se amargo. Jacques partiria, Mathieu partiria e estaria tudo bem, estava convencida disso. Por enquanto, os jornais ainda hesitavam; Jacques dizia: Seria uma guerra idiota e Candide dizia: No vamos lutar s porque os Alemes dos Sudetas querem usar meias brancas. Mas, em breve, o pas seria uma imensa aprovao; as cmaras aprovariam unanimemente a poltica do Governo, o Jour celebraria o herosmo dos nossos soldados. Jacques diria: Os operrios so admiraPENA SUSPENSA veis; os transeuntes trocariam sorrisos piedosos e cmplices: seria a guerra, Odette tambm aprovaria, tricotando agasalhos.
Ele ali estava, parecia escutar a msica, sabia o que se devia pensar de verdade mas no o dizia. Escrevia a Ivich cartas de vinte pginas para lhe explicar a situao. A Odette no explicava nada. Em que pensa? Odette sobressaltou-se: Eu... eu no estava a pensar em nada. No est a ser correcta disse Mathieu. Eu j lhe respondi. Ela inclinou a cabea sorrindo; mas no tinha vontade de falar. Parecia inteiramente acordado agora; olhava para ela. O que h? perguntou ela, embaraada. Ele no respondeu. Ria com ar espantado. Percebeu que eu existia? disse Odette. E isso perturbou-o, no? Quando Mathieu ria, os seus olhos enrugavam-se, assemelhava-se a uma criana chinesa. Pensa que pode passar despercebida? No sou muito barulhenta disse Odette. No. Nem fala muito. Alm disso faz o que pode para que a esqueam. Pois isso no certo: mesmo quando fica muito quietinha a olhar o mar, sem fazer mais rudo do que o de um ratinho, sentimos que est perto. E assim mesmo. No teatro, eles chamam a isso presena; h actores que a tm, e outros que no. Voc tem-na. Odette corou um pouco: Est estragado plos russos disse ela com vivacidade. A presena deve ser uma qualidade muito eslava. Mas no creio que esse seja o meu gnero. JEAN-PAUL SARTRE Mathieu observou-a com gravidade. E qual o seu gnero? perguntou ele. Odette sentiu que os seus olhos se desorientavam e tremiam um pouco nas rbitas. Dominou o olhar e dirigiu-o para os ps nus, com as unhas pintadas. No gostava que lhe falassem dela. Sou uma burguesa disse alegremente , uma burguesa francesa, nada de muito interessante. No devia ter-lhe parecido muito convicta, por isso acrescentou com fora, para encerrar a discusso: Uma mulher como qualquer outra. Mathieu no respondeu. Ela olhou-o de soslaio: as suas mos tinham recomeado a raspar a areia. Odette perguntava a si prpria que erro poderia, ter cometido. De qualquer modo, ele podia ter discutido um pouco, ainda que s por delicadeza. Ao fim de um momento, ouviu-lhe a voz doce e rouca: E duro sentir-se uma pessoa qualquer? A gente habitua-se disse Odette.
o que suponho. Eu ainda no me habituei. Mas voc no uma pessoa qualquer disse ela vivamente. Mathieu contemplava o bolo que edificara. Desta vez, era um bonito bolo que se mantinha de p sozinho. Destruiu-o com uma pancada. -se sempre uma pessoa qualquer disse ele. Riu-se: Isto idiota. Como est triste disse Odette. No mais que os outros. Estamos todos um tanto enervados com estas ameaas de guerra. PENA SUSPENSA Ela ergueu os olhos e quis falar, mas encontrou o seu olhar, um belo olhar calmo e terno. Calou-se. Um casal como qualquer outro: um homem e uma mulher que se olhavam numa praia; e a guerra estava ali, sua volta; tinha descido at eles e tornara-os semelhantes aos outros, a todos os outros. Ele sente-se uma pessoa qualquer, olha-me, sorri, mas no para mim que ele sorri, para outra pessoa qualquer. No lhe pedia nada, apenas que se calasse e fosse annima como de costume. Era preciso que se calasse: se ela lhe tivesse dito: No uma pessoa qualquer, belo, forte, romntico, no se parece com ningum, e se ele tivesse acreditado, ento escaparia outra vez, voltaria aos seus sonhos, teria ousado talvez amar outra, aquela russa, por exemplo, que tomava caf quando tinha sono. Teve um sobressalto de orgulho e ps-se a falar. Disse muito depressa: Ser terrvel, desta vez. Ser principalmente imbecil disse Mathieu. Vo destruir tudo o que puderem. Paris, Roma, Londres... Vai ser bonito depois! Paris, Roma, Londres. E a casa de Jacques, branca e burguesa, beira-mar. Odette sentiu um calafrio; olhou para o mar. O mar no era mais que um vapor cintilante; nu e moreno, inclinado para a frente, um esquiador, puxado por um barco a motor, deslizava sobre este vapor. Nenhum homem poderia destruir aquela cintilao luminosa. Pelo menos, isto ficar disse ela. O qu? O mar. Mathieu sacudiu a cabea. Nem mesmo isso disse ele , nem mesmo isso. J E A N-P AUL SARTRE Ela olhou-o surpreendida: nem sempre compreendia muito bem o que ele queria dizer. Pensou em perguntar --Ihe, mas, de repente, apeteceu-lhe ir-se embora. Ps-se de p, calou as sandlias e envolveu-se no roupo.
Que vai fazer? perguntou Mathieu. Preciso de me ir embora. E isso deu-lhe de repente? Acabo de me lembrar de que prometi a Jacques um molho de alho e azeite para esta noite. Madeleine no o saber fazer sozinha. E, alm disso, raro ficar muito tempo no mesmo stio disse Mathieu. Pois eu vou voltar gua. Ela subiu os degraus cobertos de areia e, ao chegar ao terrao, virou-se para trs. Viu Mathieu a correr para o mar. Ele tem razo ando com o bicho-carpinteiro. Sempre a partir, sempre a recomear, sempre a fugir. Quando permanecia um pouco mais nalgum lugar, sentia-se culpada. Olhava o mar, e pensou: Tenho sempre medo. Atrs dela, a cem metros, estava a casa de Jacques, a gorda Madeleine, o molho de alho e azeite a preparar, as justificaes, a refeio: continuou a andar. Perguntaria a Madeleine: Como vai a sua me? e Madeleine responderia, fungando um pouco: Sempre na mesma, e Odette dir-lhe-ia: Convm fazer-lhe um caldo e dar-lhe um pouco de peito de frango; tire uma asa antes de servir, ver como ela come, e Madeleine responderia: Ah!, minha pobre senhora, ela no toca em nada. Odette diria: D-me isso. Pegaria no frango, cortaria uma asa com as suas prprias mos, sentir-se-ia justificada. Nem mesmo isso. Lanou um ltimo olhar para o mar. Ele dissera: Nem mesmo isso. O mar era to leve que parecia PENA SUSPENSA o cu do avesso, que poderiam fazer contra ele? Era pastoso e glauco, cor de caf com leite, to raso, to montono, o mar de todos os dias, cheirava a iodo e a medicamentos, o mar deles, a brisa marinha deles, e por ele fazem-nos pagar cem francos dirios; ele soergueu-se sobre os cotovelos e olhou para as crianas que brincavam na areia cinzenta, a pequena Simone Chassieux corria e ria arrastando a perna esquerda encerrada num aparelho ortopdico. Perto da escadaria, havia um garoto que no conhecia, um recm--chegado sem dvida, magro de meter medo, com orelhas enormes; enfiara um dedo no nariz e olhava fixamente para trs meninas que faziam bolos de areia. Vergava os ombrinhos pontiagudos e dobrava os joelhos; mas o seu busto volumoso continuava como pedra. Colete. Escoliose tuberculosa. Ainda por cima, deve ser idiota. Deite-se disse Jeannine , estenda-se ao comprido. Como est agitado, hoje. Ele obedeceu e viu o cu. Quatro nuvenzinhas brancas. Ouviu rangerem as rodas de um carrinho na calada: Recolhem-no bem cedo, quem ser?
Adeus, cabea de vento disse uma voz grossa. Levantou os braos rapidamente e fez girar o espelho por cima da cabea. J havia passado, mas reconheceu o grande traseiro da enfermeira: era Darrieux. Quando que cortas a barba? gritou-lhe. Quando tu cortares os colhes! respondeu a voz longnqua de Darrieux. Riu-se, alegre: Jeannine detestava palavres. Quando que me recolhem? Viu a mo de Jeannine remexer o bolso da blusa branca e tirar um relgio. J E A N-P AUL SARTRE Mais um quartinho de hora. Est aborrecido? No. Ele nunca se aborrecia. Os vasos de flores nunca se aborrecem. Pem-nos l fora quando faz sol, recolhem-nos quando cai a noite. Nunca se lhes pergunta o que querem, nada lhes cabe decidir, nada tm a esperar. No se imagina como absorvente chupar luz e ar por todos os poros. O cu ressoou como um gongo e ele viu cinco pontinhos cinzentos formando um tringulo, que brilharam entre duas nuvens. Distendeu-se, os dedos dos ps tremelicaram--Ihe: o som chegava em grandes ondas de cobre, era agradvel, acariciante, assemelhava-se ao odor do clorofrmio quando nos adormecem na mesa de operao. Jeannine suspirou e ele olhou-a de soslaio; ela levantara a cabea e parecia ansiosa, havia de certeza qualquer coisa que a atormentava. Ah!, verdade: vai haver guerra. Ele sorriu. Ento disse ele, voltando um pouco o pescoo , esto mesmo decididos a faz-la, a guerra deles, os sempre-em-p? J sabe o que eu lhe disse respondeu ela secamente. Se continuar a falar assim, no responderei mais. Ele calou-se, tinha tempo, o avio roncava nos seus ouvidos, sentia-se bem; a mini, o silncio no me desgosta. Ela no podia lutar, os sempre-em-p esto sempre inquietos, necessrio que falem, que se mexam: ela acabou por dizer: o que receio; vai haver guerra. Assumia o seu ar dos dias de operao, um ar de criana pobre e de enfermeira-chefe. Quando entrou no primeiro dia e lhe disse: Levante-se um pouco, vou retirar a bacia, tinha aquele ar. Ele estava a suar e sentia PENA SUSPENSA o seu prprio cheiro, o horrvel cheiro a curtume, ela estava de p, hbil, desconhecida, estendia-lhe as suas mos de luxo e tinha aquele ar. Humedeceu os lbios docemente: Dominara-a bem, desde ento. Disse-lhe:
Parece que est muito emocionada. No caso para menos! Que lhe interessa a guerra? Que, temos ns a ver com isso. Ela virou a cabea, e ele tamborilou com um certo humor no rebordo do aparelho. Ela no tinha que se preocupar com a guerra. O seu trabalho consistia em tratar dos doentes. Estou-me nas tintas para a guerra disse ele. Porque finge de mau? disse ela docemente. No gostaria, com certeza, que a Frana fosse derrotada. Senhor Charles!, faz-me medo quando est assim. No por minha culpa se sou nazi sorriu, trocista. Nazi! exclamou ela desanimada. Que ir inventar mais! Nazi! Eles espancam os Judeus e a todos aqueles que no concordam com eles pem-nos na priso e perseguem os padres, incendiaram o Reichstag, e so uns gangsters. So coisas que no se devem dizer; um jovem como voc no tem o direito de dizer que nazi, nem por brincadeira. Ele conservava nos lbios um sorriso matreiro, para lhe aumentar a indignao. No tinha, alis, antipatia plos nazis. Eram violentos e taciturnos, pareciam querer engolir tudo: logo se veria at onde iriam, logo se veria. Teve uma ideia impagvel: J E A N-P AUL SARTRE Se houvesse guerra, ficaramos todos paralelos. Ah!, ficou contente disse Jeannine , o que que foi inventar agora? E ele prosseguiu: Os sempre-em-p esto cansados de estar em p, vo deitar-se ao comprido, de barriga para baixo nas trincheiras. Eu de costas, eles de barriga para baixo: ficaremos todos paralelos. J havia muito tempo que se curvavam sobre ele, que o limpavam, raspavam, tamponavam com as suas mos destras e ele permanecia imvel, com todas estas mos sobre o corpo, a ver as caras a partir do queixo, as narinas com crostas sobre o promontrio dos lbios, e a linha escura dos clios no horizonte: Seria a vez de eles se estenderem. Jeannine no reagiu: estava menos alegre que de costume. Pousou docemente a mo no ombro dele: Malvado! chamou-lhe ela. Malvado, malvado, malvado! Era altura da reconciliao. Disse-lhe: Uma canja, pur de batata e depois vai ficar contente: lampreia. E como sobremesa? Ameixas? No sei. Deve ser ameixas disse ele. Ontem tivemos compota de pssego. S mais cinco minutos; estendeu-se e aspirou fortemente para
melhor aproveitar o ar; olhava para o seu pedacinho de mundo pelo seu terceiro olho: o espelho. Um olho empoeirado e fixo, com manchas escuras: decompunha sempre um pouco os movimentos, era divertido, tornavam-se duros e mecnicos como nos filmes antigos. PENA SUSPENSA E, justamente, uma mulher de preto, deitada num aparelho como o seu, surgiu no espelho e desapareceu: um garoto empurrava o carrinho. Quem ? perguntou ele a Jeannine. No o conheo disse Jeannine. Creio que est no Mon Reps, a grande casa vermelha beira-mar. Onde Andr foi operado? Sim. Respirou fundo. Um sol fresco e aveludado corria-lhe pela boca, narinas e olhos. E aquele soldado, que vem ele aqui fazer? Ser que precisa de respirar o ar dos doentes? O soldado passou pelo espelho, teso como uma imagem de lanterna mgica, parecia estar preocupado. Charles soergueu-se sobre um cotovelo e acompanhou-o com um olhar curioso: Ele anda, sente as pernas e as coxas, todo o seu corpo lhe pesa sobre os ps. O soldado parou e comeou a falar com uma enfermeira: Ah! algum daqui, pensou Charles, aliviado. Falava com gravidade, meneando a cabea, sem perder o ar triste. Ele lava-se e veste-se sozinho, vai para onde quer, precisa sempre de se ocupar consigo mesmo, sente-se desajeitado porque est de p: tenho conhecimento disso. Vai acontecer-lhe alguma coisa. Amanh haver guerra e alguma coisa vai acontecer a todos. No a mim. Eu, eu sou um objecto. Est na hora disse Jeannine. Ela olhava-o tristemente, tinha os olhos cheios de lgrimas. Como est feia. Disse-lhe: Gosta muito desta sua boneca? Muito. No me despreze como se fosse embora. No. J E A N-P AUL SARTRE As lgrimas rebentaram e rolaram sobre as suas faces plidas. Ele olhou-a desconfiado. O que h? Ela no respondeu, curvou-se sobre ele, fungando, e arranjou-lhe as cobertas; ele via-lhe as narinas. Est-me a esconder qualquer coisa. Ela continuava a no responder. Que que me esconde? Discutiu com a senhora Gouvern? Vamos! no gosto que me tratem como uma criana.
Ela tinha-se endireitado, olhava-o com uma ternura desesperada. Vo evacu-los disse ela a chorar. Ele no compreendeu muito bem. Disse: A mim? A todos os doentes de Berck. perto de mais da fronteira. Ele ps-se a tremer. Puxou a mo de Jeannine e apertou. Mas eu quero ficar! No deixaro aqui ningum disse ela com uma voz suave. Ele apertou a mo com toda a fora: No quero disse ele. No quero. Ela desprendeu a mo sem responder, passou para trs do carrinho e ps-se a empurr-lo. Charles soergueu-se e comeou a torcer uma ponta da coberta, entre os dedos. Mas, para onde vo mandar-nos? Quando partimos? E as enfermeiras tambm vo? Diga alguma coisa! Ela continuava calada e ele ouvia-a suspirar por cima da sua cabea. Deitou-se novamente e disse com raiva: PENA SUSPENSA Levaram-me at ao fim. No quero olhar para a rua. Milan ps-se janela, olha, com o semblante sombrio. Ainda no chegaram, mas arrastam os ps, em volta do quarteiro. Ouo-os. Debruo-me sobre Marikka, digo-lhe: Vai para ali. Para onde? Junto parede, entre as janelas. Ela pergunta-me: Porque que me mandaram para sua casa? Eu no respondo. Ela diz: Quem est a gritar? No respondo. H ps que se arrastam, chuque, chuque, chuque. Sento-me no cho perto dela. Sinto-me pesada. Abrao-me a ela. Milan est janela, ri as unhas com um ar vazio. Digo-lhe: Milan! Vem para junto de ns; no fiques janela. Ele resmunga, debrua-se sobre o peitoril, propositadamente. Os ps arrastam-se. Dentro de cinco minutos estaro aqui. Marikka franze as sobrancelhas. Quem que est a marchar? Os alemes. Ah!, diz ela, e a sua fisionomia volta a ser pura. Escuta docilmente os ps a arrastarem-se, como escuta a minha voz na aula, ou a chuva, ou o vento nas rvores. Olho-a e ela retribui-me com um olhar puro. Um olhar que no compreende, que no prev. Desejaria ser surdo, fascinar-me com aqueles olhos, ler o barulho naqueles olhos. Um leve rudo, destitudo de significado, como o rudo da folhagem. Eu, eu sei que so
ps a arrastarem-se. lento. Chegaro lentamente e espanc-lo-o at que ele fique, J E A N-P AUL SARTRE totalmente mole nos seus braos. Ele ali est, forte e duro, olhando pela janela: eles arrast-lo-o, ele manter um ar idiota na cara espezinhada; espanc-lo-o at o deixarem no cho e amanh ele sentir vergonha diante de mim. Marikka treme nos meus braos, pergunto-lhe: Tens medo? Ela diz que no com a cabea. No tem medo. O seu ar grave, como quando escrevo no quadro e ela acompanha o meu brao com os olhos, entreabrindo a boca. Esfora-se: j compreendeu as rvores e a gua, e os bichos que andam sozinhos e as pessoas, as letras do alfabeto. Agora, mais isto: o silncio dos adultos e esses ps que se arrastam na rua; isto que preciso compreender. Porque somos um pas pequeno. Viro, os seus tanques passaro atravs dos nossos campos, atiraro sobre os nossos homens. Porque somos um pas pequeno. Meu Deus! Fazei com que os Franceses nos venham ajudar, meu Deus, impedi-os de nos abandonar. Ei-los disse Milan. No quero ver o seu rosto. Somente o de Marikka porque ela no compreende. Na nossa rua: eles avanam, arrastam os ps na nossa rua, gritam pelo nosso nome, ouo-os. Estou sentada no cho, pesada e imvel; o revlver de Milan est no bolso do meu avental. Ele olha para o rosto de Marikka: ela entreabre a boca; os seus olhos so puros e no compreende nada. Ele andava ao longo dos carris, olhava para as lojas e ria de satisfao. Olhava para os carris, olhava para as lojas, olhava para a rua branca diante dele, piscando os olhos, e pensava: Estou em Marselha. As lojas estavam fechadas, as persianas de ferro descidas, a rua deserta, mas PENA SUSPENSA ele estava em Marselha. Parou, pousou a sacola, tirou o bluso de couro e p-lo no brao, depois enxugou a testa e voltou a pr a sacola s costas. Apetecia-lhe conversar um pouco com algum. Disse: Tenho doze pontas de cigarros e uma de charuto no meu leno. Os carris brilhavam, a rua branca e comprida ofuscava-o: Tenho um litro de vinho tinto na sacola. Estava com sede e de bom grado o beberia, mas teria preferido tomar um copo numa tasca, se no estivessem todas fechadas. Quem diria, disse ele. Continuou a andar entre os carris, a rua cintilava como um rio, entre as casinhas escuras. esquerda, havia uma quantidade de lojas, mas no se podia saber o que vendiam, porque os taipais de ferro estavam descidos; direita havia casas abertas ao vento e vazias, parecendo
gares, e, de quando em quando, uma parede de tijolos. Mas era Marselha. Gros-Louis perguntou: Onde podero eles estar? Entrem depressa gritou uma voz. esquina de um beco havia um caf aberto. Um tipo de ombros largos e bigodes duros estava de p junto da porta e gritava: Entrem depressa e um magote de gente que Gros--Louis nunca vira saiu do cho e ps-se a correr em direco ao caf. Gros-Louis tambm correu: os outros entravam aos empurres e ele quis acompanh-los, mas o tipo de bigodes disse-lhe com uma pancadinha seca no peito: Fora. Um rapazola de bata tentava introduzir no caf uma mesa redonda maior que ele. Vou j, meu velho. Mas no me poderias dar um copo? J te disse para te ires embora. JEAN-PAUL SARTRE Vou j disse Gros-Louis. No tenhas medo; no costumo ficar onde no me querem. O tipo virou-lhe as costas, arrancou com uma sacudidela o trinco exterior da porta e entrou no caf, fechando-o atrs de si. Gros-Louis olhou para a porta: no lugar do trinco via-se um buraquinho redondo com os bordos em relevo. Coou a nuca e repetiu: Vou j, no preciso ter medo. Aproximou-se da vidraa, mesmo assim, e tentou dar uma olhadela para o caf, mas algum puxou as cortinas l dentro e no viu mais nada. Pensou: Quem diria. Via a rua direita e esquerda a perder de vista, os carris brilhavam e sobre eles havia um vagonete comple-tamente negro, abandonado. Gostaria muito de entrar em qualquer parte, disse Gros-Louis. Gostaria de tomar um copo numa tasca e conversar com o patro. Explicou coando o crnio: No que eu tenha o hbito de ficar ao ar livre. S que, quando ele estava c fora, os outros tambm estavam, havia os carneiros e os outros pastores, j era uma companhia, e, alm disso, quando no havia ningum, no havia ningum, e pronto. Ao passo que agora ele estava c fora e os outros l dentro, atrs das suas paredes e das portas sem trinco. Estava completamente s, c fora, com o vagonete. Bateu janela do caf e esperou. Ningum respondeu: se no os tivesse visto entrar, com os seus prprios olhos, juraria que o caf estava vazio. E disse: Vou-me embora, e foi. Comeava a sentir realmente sede; nunca poderia imaginar Marselha assim. Caminhava, pensando que naquela rua cheirava a ar viciado. Disse: Onde que me vou sentar?, e ouviu atrs de si um rumor, como se fosse um rebanho de carneiros que muda de pasto. Voltou-se, e viu ao longe um grupo de tipos com
l PENA SUSPENSA bandeiras. Ah!, vou v-los passar, disse ele. Sentiu-se muito contente. Do outro lado dos carris, havia uma espcie de praa, com dois casebres verdes encostados a um muro grande; pensou: Vou sentar-me ali para ver. Um dos casebres era uma loja, cheirava a salsicha e a batatas fritas. Gros-Louis viu um velho de avental branco mexendo numa frigideira. Disse-lhe: Tiozinho, d-me batatas fritas! O velho virou-se: Merda! disse ele. Tenho dinheiro disse Gros-Louis. Merda! Estou-me nas tintas para o teu dinheiro, vou fechar a loja. Saiu e ps-se a girar uma manivela. A porta de ferro desceu cuidosamente. Ainda no so sete horas disse Gros-Louis aos berros para dominar o barulho. O velho no respondeu. Pensava que fechavas por serem sete horas gritou Gros-Louis. A porta de ferro estava descida. O velho tirou a manivela, endireitou-se e cuspiu. Ora diz l, sua espcie de mmia, no os viste vir, no? No me importo de dar as minhas batatas fritas disse ele entrando no casebre. Gros-Louis observou a porta verde, por mais um pouco, depois sentou-se no cho no meio da praa, apoiou-se sacola e ficou a aquecer-se ao sol. Lembrou-se que possua um naco de po, um litro de vinho tinto, doze pontas de cigarros e uma de charuto, e disse: Pois bem, vou encher o bucho. Do outro lado dos carris, os tipos J E A N-P AUL SARTRE comeavam a desfilar, agitavam as bandeiras, cantavam e gritavam; Gros-Louis tinha tirado a faca do bolso e olhava-os, cortando o po. Uns erguiam-lhe os punhos, outros gritavam-lhe: Vem connosco!, e ele ria, saudava-os ao passarem, gostava muito do barulho e do movimento, era uma distraco. Ouviu passos e voltou-se. Um negro alto vinha direito a ele, tinha os braos nus e uma camisa de um rosa desbotado; as calas, de pano azul, alargavam-se e colavam-se s pernas a cada passo. No parecia estar com pressa. Parou e torceu um calo de banho entre as suas mos escuras e rseas. A gua caa em gotas na poeira e marcava-a com pequenos furos redondos. O negro enrolou o calo de banho numa toalha e depois ficou a olhar para o desfile, assobiando despreocupadamente.
Ol! gritou Gros-Louis. O negro fixou-o e sorriu. Que que eles esto a fazer? O negro dirigiu-se a ele balouando os ombros: no parecia apressado. So os estivadores disse ele. Fazem greve? A greve acabou disse o negro. Mas eles querem recome-la. Ah!, por isso! disse Gros-Louis. O negro olhou-o, por um instante sem falar, dir--se-ia que procurava coordenar as suas ideias. Por fim, sentou-se no cho, ps o calo sobre os joelhos e principiou a enrolar um cigarro. Assobiava. Donde vens? indagou. Venho de Prades disse Gros-Louis. PENA SUSPENSA No sei onde . Ah!, no sabes onde ! disse Gros-Louis a rir. Riram os dois e Gros-Louis explicou: J no gostava daquilo. Vens procurar trabalho? perguntou o negro. Eu era pastor, guardava carneiros no Canigou. Mas j no gostava daquilo. O negro meneou a cabea. J no h trabalho disse ele com severidade. Oh!, eu arranjarei um disse Gros-Louis. Mostrou as mos. Posso fazer tudo. J no h trabalho repetiu o negro. Calaram-se. Gros-Louis olhava para aquela gente que desfilava a gritar: Para a forca! Sabiani para a forca! Havia mulheres com eles, eram vermelhas e desgrenhadas, abriam a boca como se fossem engolir tudo, mas no se ouvia o que diziam, os homens gritavam mais alto. Gros-Louis estava contente, tinha companhia. Pensou: E engraado. Uma gorducha passou no meio das outras, balouando os seios. Gros-Louis pensou que no desgostaria de acarici-la entre duas refeies, dava para encher as mos. O negro riu-se. Riu-se tanto que se engasgou com o fumo do cigarro. Ria e tossia ao mesmo tempo. Gros-Louis bateu-lhe nas costas: Porque ris? perguntou-lhe ele tambm a rir. O negro voltou a ficar srio: Sei l. Bebe um gole disse Gros-Louis. O negro pegou na garrafa e bebeu pelo gargalo. Gros-Louis tambm bebeu. A rua estava de novo deserta. Onde dormiste? perguntou o negro. J E A N-P AUL SARTRE No sei. Foi numa praa com vages, sob um encerado.
Cheirava a carvo. Tens dinheiro? Pode ser que sim disse Gros-Louis. A porta do caf abriu-se e um grupo de homens saiu. Ficaram na rua por um momento; olharam para o lado onde iam os grevistas, escondendo os olhos com as mos. Depois, uns foram-se embora a passos lentos e acendendo cigarros, e os outros ficaram na rua, aos grupinhos. Um tipo avermelhado e barrigudo gesticulava. Disse irritado a um rapaz que no parecia muito saudvel: Estamos com a guerra em cima e vens falar-nos de sindicalismo! Transpirava, no trazia casaco, a camisa aberta tinha duas manchas de suor nas axilas. Gros-Louis voltou-se para o negro: A guerra? Qual guerra? Um banco! disse Daniel. E o que precisamos. Era um banco verde, encostado ao muro da quinta, sob a janela aberta. Daniel empurrou a cancela e entrou no ptio. Um co ladrou e atirou-se para a frente, puxando a corrente; uma velha apareceu porta, segurando uma caarola. Quieto! disse ela, agitando a caarola. O co rosnou um pouco e deitou-se. A minha mulher est cansada disse Daniel, tirando o chapu. Permite que ela se sente neste banco? A velha franziu os olhos desconfiada: talvez no soubesse francs. Daniel repetiu com uma voz forte: A minha mulher est um pouco cansada. A velha voltou-se para Marcelle, que estava encostada cancela, e a sua desconfiana desapareceu. PENA SUSPENSA Pois com certeza, a sua senhora pode sentar-se. Os bancos foram feitos para isso. E no ser ela quem o estragar, ao tempo que ele a est. Vm de Peyrehorade? Marcelle entrou e foi sentar-se a sorrir: Sim disse ela. Queramos ir at penedia; mas presentemente um pouco longe para mim. A velha piscou o olho. No h dvida; e no seu estado preciso ser-se prudente. Marcelle encostou-se ao muro, semicerrando os olhos com um sorriso feliz. A velha olhou para o ventre, como boa conhecedora, depois virou-se para Daniel, meneou a cabea e sorriu-lhe com um ar de estima. Daniel apertou o casto da bengala e sorriu tambm. Uma criana saiu de casa aos tropees, mas, dando com Marcelle, parou e fixou-lhe um olhar perplexo. No tinha calas; as suas ndegas eram avermelhadas e com algumas crostas.
Queria ver a penedia disse Marcelle, fingindo-se aborrecida. Mas h um txi em Peyrehorade disse a velha. do filho do Lamblin, a ltima casa na estrada de Bidasse. Eu sei disse Marcelle. A velha voltou-se para Daniel e ameaou-o com o dedo: O senhor tem de ser muito gentil para com a sua esposa; altura de lhe fazer todas as vontades. Marcelle sorriu: Ele gentil disse ela. Fui eu quem quis andar. Ela estendeu o brao e acariciou a cabea do garoto. Interessava-se pelas crianas havia uns quinze dias; isso J E A N-P AUL SARTRE viera-lhe de repente. Cheirava-as e apalpava-as se lhe, passassem ao alcance da mo. seu neto? filho da minha sobrinha. Anda plos quatro anos. bonito disse Marcelle. Quando bonzinho. A velha baixou a voz: Ser um rapaz? Bem queria que fosse! disse Marcelle. A velha riu-se: Deve repetir todos os dias a orao a Santa Margarida. Houve um silncio, povoado de anjos. Todos os olhares se tinham voltado para Daniel. Ele inclinou-se sobre a bengala e baixou as plpebras com um ar modesto e viril. Vou incomod-la ainda, minha senhora disse ele docemente. Poderia pedir-lhe uma tigela de leite para a minha mulher? Virou-se para Marcelle: Bebes um pouco de leite, sim? Vou traz-lo j disse a velha. E desapareceu na cozinha. Venha sentar-se a meu lado disse Marcelle. Ele sentou-se. Como atencioso! disse ela agarrando-lhe a mo. Ele sorriu. Ela olhava-o extasiada e ele continuou a sorrir, abafando um bocejo que lhe arreganhou os lbios at s orelhas. Pensava: Devia ser proibido parecer grvida a tal ponto. O ar estava hmido, um pouco febril, odores flutuavam no espao, aos tufos como algas; Daniel fixava o brilho verde e ruivo de um arbusto, do outro lado PENA SUSPENSA da cerca; sentia as narinas e a boca cheias de folhagem. Mais quinze dias, quinze dias verdes e brilhantes, quinze dias de campo. Ele detestava o campo. Um dedo tmido passeava na sua mo, com a hesitao de um ramo de rvore balouado pelo vento. Baixou os olhos e olhou para o dedo. Era branco, um pouco gorducho, tinha uma aliana. Ela adora-me, pensou Daniel. Adorado. Noite e dia esta adorao colava-se a ele, humilde e insinuantemente, como os odores vivos do campo. Fechou os olhos e a adorao de Marcelle fundiu-se com a folhagem murmurante, com o cheiro do estrume e do sanfeno.
Em que pensa? Na guerra respondeu Daniel. A velha voltava com o leite. Marcelle pegou na tigela e bebeu a grandes goles. O seu lbio superior ia buscar o lquido at bem fundo na tigela e sorvia-o com um leve rudo. O leite cantava ao passar-lhe pela garganta. Faz bem disse com um suspiro. Um bigode branco desenhava-se sobre o lbio. A velha olhava-a com bondade: Um leite forte, eis o que a criana vai precisar. Riram-se as duas, entre mulheres, e Marcelle levantou-se apoiando-se ao muro: Sinto-me refeita disse a Daniel. Podemos partir quando quiser. Adeus, minha senhora disse Daniel, passando-Ihe uma nota. Agradecemos-lhe muito a sua amvel hospitalidade. Obrigada, minha senhora disse Marcelle com um sorriso ntimo. Ora, adeus. Vo devagar. J E A N-P AUL SARTRE Daniel abriu a cancela e deixou passar a mulher: ela tropeou numa pedra e cambaleou. Ai! exclamou a velha de longe. Agarre-se ao meu brao disse Daniel. Sou to desajeitada observou ela, confusa. Ela agarrou-se-lhe ao brao; sentiu-a contra ele, quente e disforme; pensou: Mathieu pde desejar isto! O principal andar com cuidado. Cercas sombrias. O silncio. Os campos. A linha negra dos pinheiros no horizonte. Os homens voltavam para casa, a passos pesados e lentos; sentar-se-iam mesa comprida e engoliriam a sopa sem dizer palavra. Uma manada de vacas atravessou o caminho. Uma delas espantou-se e ps-se aos saltos. Marcelle chegou-se para Daniel. Imagine: tenho medo de vacas disse ela, baixando a voz. Daniel apertou-lhe o brao ternamente: Vai para o diabo, pensou. Ela respirou fundo e calou-se. Ele olhou-a de lado e viu os seus olhos vagos, o seu sorriso sonolento, o seu ar de beatitude: Pronto! Ei-la a sonhar. Isso acontecia-lhe s vezes quando a criana se mexia no ventre ou quando uma sensao estranha a invadia; devia sentir-se invulnervel e formigante, uma via lctea. Fosse como fosse, eram cinco minutos ganhos. Pensou: Estou a passear no campo, h vacas a pastar, esta mulher gorda minha mulher. Teve vontade de rir: nunca tinha visto tantas vacas. Tu o quiseste! Tu o quiseste! Desejavas uma catstrofe paulatina, a prestaes,
ests servido. Caminhavam docemente, como dois namorados, de brao dado, e as moscas zumbiam volta deles. Um velho apoiado sua enxada, imvel beira do caminho, viu-os passar e PENA SUSPENSA sorriu-lhes. Daniel sentiu corar violentamente. Neste momento, Marcelle saiu do seu torpor. Acreditas na guerra? perguntou bruscamente. Os seus gestos haviam perdido aquela secura agressiva, tinham-se tornado pesados e lnguidos. Mas conservava a voz abrupta e positiva. Daniel olhou para os campos. Campos de qu? No sabia distinguir um campo de milho de um campo de beterraba. Ouviu Marcelle repetir: Acreditas? Ele pensou: Se houvesse guerra! Ela ficaria viva. Viva com uma criana e seiscentos mil francos lquidos. Sem contar com algumas recordaes de um marido incomparvel: que poderia desejar mais? Parou bruscamente, transtornado de desejo; apertou a bengala com toda a fora, e, pensou: Meu Deus, tomara que haja guerra! Um raio selvagem que fizesse estourar aquela doura, que revolvesse horrivelmente aqueles campos, e transformasse aquelas terras planas e montonas num mar de ressaca; a guerra, a hecatombe dos homens de boa vontade, o massacre dos inocentes. Este cu puro, vo rasg-lo com as suas prprias mos. Como se vo odiar! Como vo tremer de medo! E eu, como gozarei nesse mar de dio. Marcelle olhava-o surpreendida. Ele teve vontade de rir. No. No acredito. Crianas plos caminhos, com as suas vozes acres e inofensivas, e os seus risos. A paz. O sol cintila nas cercas como ontem, como amanh; o campanrio de Peyrehorade ergue-se na curva do caminho. Cada coisa no mundo tem o seu odor, a sua sombra crepuscular, plida e longa, o seu futuro particular. E a soma de todos esses futuros J E A N-P AUL SARTRE a paz: pode-se toc-la na madeira carcomida desta cancela, na nuca fresca desta criana, pode-se l-la nos seus olhos vidos; sobe das urtigas aquecidas pela luz do dia, ouvimo-la no tocar dos sinos. Por toda a parte, os homens juntam-se volta das terrinas fumegantes, partem o po, enchem os copos de vinho, limpam as facas, e os seus gestos quotidianos fazem a paz. Ei-la, tecida com todos esses futuros, impregnada da obstinao hesitante da Natureza; ela o retorno do sol, a imobilidade fremente dos campos, o sentido do trabalho dos homens. No h um s gesto que no a chame e no a realize; mesmo o andar saltitante e pesado de Marcelle a meu lado,
mesmo a presso dos meus dedos no seu brao. Uma chuva de pedras pela janela: Fora daqui! Fora daqui! Milan s teve tempo de se atirar para trs, uma voz aguda gritou pelo seu nome: Hlinka! Milan Hlinka!, fora daqui. Algum cantou: Os Checos so como piolhos na pele alem! As pedras tinham rolado pelo soalho. Um pareleleppedo partiu o vidro da lareira, outro caiu na mesa e pulverizou urna cafeteira. O caf correu sobre o oleado e ps--se a pingar lentamente para o cho. Milan encostou-se parede, olhou para o vidro, para a mesa, para o cho, enquanto os outros vociferavam em alemo, sob a janela. Pensou: Entornaram o meu caf, e pegou numa cadeira pelo encosto. Transpirava. Levantou a cadeira at acima da sua cabea. Que ests a fazer? gritou Anna. Vou-lhes partir a cara. Milan! No tens esse direito. No ests s. Largou a cadeira e olhou para as paredes com espanto. No era j o seu quarto. Tinham-no estripado; uma nuvem PENA SUSPENSA vermelha subiu-lhe aos olhos; enfiou as mos nos bolsos repetindo: No estou s. No estou s. Daniel pensava: Eu estou s. S com os seus sonhos sanguinrios naquela paz imensa. Os tanques e os canhes, os avies, as crateras lamacentas nos campos, eram uma pequena confuso na sua cabea. Aquele cu nunca se fenderia; o futuro estava ali, pousado naqueles campos; Daniel estava dentro dele, como um verme numa ma. Um s futuro. O futuro de todos os homens: construram-no com as suas prprias mos, lentamente, durante anos, e no me deixaram o menor lugar, a mais humilde possibilidade. Lgrimas de raiva subiam aos olhos de Milan, e Daniel voltou-se para Marcelle: Minha mulher, meu futuro, o nico que me resta, pois que o mundo se decidiu pela paz. Como um rato na ratoeira! Ele soerguera-se sobre os cotovelos e olhava para as lojas a desfilarem. Deite-se! disse a voz chorosa de Jeannine. E no esteja sempre a virar-se para a direita e para a esquerda; fico com vertigens. Para onde nos vo levar? J lhe disse que no sei. Sabe que nos vo evacuar e no sabe para onde nos mandam? Ora, no acredito! Juro que no me disseram nada. No me torture! E quem lhe disse? No ser boato? Voc engole qualquer coisa. Foi o mdico-chefe da clnica disse Jeannine, contrariada. E ele no disse para onde iramos? O carrinho passava em
frente da Peixaria Cusier; ele entrou num odor enjoativo e cortante de maresia. J E A N-P AUL SARTRE Mais depressa! Isto cheira a urina de criana! Eu... eu no posso ir mais depressa. Por favor, no se agite, vai ter trinta e nove de novo. Suspirou e disse como se fosse para si mesma: No devia ter-lhe contado. Naturalmente! E no dia da partida ter-me-iam clo-roformizado ou inventado um piquenique? Estendeu-se novamente porque iam passar em frente da Livraria Nattier. Ele detestava a Livraria Nattier, com a sua montra de um amarelo sujo. E depois a velha estava sempre porta e ficava de mos postas quando o via passar. Est a sacudir-me. Tenha cuidado. Como um rato na ratoeira! Outros poderiam levantar-se, esconder-se na cave ou no sto. Eu, eu sou um embrulho; bastar que venham carregar-me. voc quem vai colar as etiquetas, Jeannine? Quais etiquetas? As etiquetas para a expedio; este lado para cima, aquele para baixo, frgil, manejar com precauo. Ter de me colar uma na barriga e outra atrs. Malvado! disse ela. Malvado, malvado! Basta! Vo-nos fazer viajar de comboio, naturalmente? Como queria que fizessem? Em comboio sanitrio? Mas eu no sei gritou Jeannine. No quero inventar, j lhe disse que no sei! No grite. No sou surdo. O carrinho parou subitamente e ele ouviu-a assoar-se. Que h? Pra-me em plena rua?... As rodas voltaram a rodar sobre os paraleleppedos desiguais. Ele insistiu: PENA SUSPENSA E repetiram-nos tantas vezes que devamos evitar as viagens de comboio... Ouviu um fungar inquietante por cima da sua cabea, e calou-se: tinha receio que ela soluasse. As ruas estavam cheias de doentes quela hora: seria bonito, um rapago empurrado por uma enfermeira em lgrimas. Mas uma ideia subiu-lhe mente, e no pde deixar de murmurar entre dentes: Tenho horror s novas cidades. Decidiram tudo, encarregaram-se de tudo, tinham sade, fora, lazeres; voltaram, escolheram os seus chefes, andavam sobre os ps, percorriam a terra toda com ares importantes e graves, combinavam entre si o destino do mundo, e em particular o dos pobres enfermos, essas crianas grandes. E o resultado? A
guerra. Bonito! Porque devo pagar plos erros deles? Estava doente, ningum me pediu a minha opinio! Agora lembram-se que eu existo e querem-me arrastar para a sua merda. Vo pegar-me pelas axilas e plos tornozelos, dizendo: Desculpe, mas estamos em guerra, e colocar-me-o num canto como uma bosta, para que eu no atrapalhe o seu brinquedo de morte. A pergunta que retinha havia meia hora subiu-lhe aos lbios de repente. Ela ficaria contente de mais, mas pacincia, no podia ficar calado por mais tempo... Vocs... as enfermeiras acompanham-nos? Algumas. E... voc? No disse ela. Eu no. Ele ps-se a tremer e indagou com voz rouca: Vai-nos deixar? Estou nomeada para o hospital de Dunquerque. J E A N-P AUL SARTRE Bom, bom! disse Charles. As enfermeiras so todas iguais, no assim? Jeannine no respondeu. Soergueu-se e olhou em volta. A sua cabea virava-se por si mesma, para a esquerda e para a direita, era fatigante e sentia umas ccegas no fundo dos olhos. Um carrinho vinha em sentido contrrio, empurrado por um velho elegante. No aparelho repousava uma senhora nova, de rosto cavado e cabelos doirados; trazia sobre as pernas um magnfico casaco de peles. Ela mal o olhou, inclinou a cabea para trs e murmurou algumas palavras, que subiram directamente ao rosto atento do velho. Quem ? perguntou Charles. J h muito tempo que a vejo. No sei. Creio que uma artista de music-hall. Primeiro foi uma perna, depois um brao. Ela sabe? O qu? Estou a perguntar se os doentes sabem. Ningum sabe, o mdico proibiu-nos de contar. pena disse ele sarcasticamente. Talvez estivesse menos orgulhosa. Ponha um pouco de Flit a disse Pierre antes de subir para o fiacre. Cheira a piolhos. O rabe vaporizou docilmente as capas brancas do encosto e as almofadas do banco. Pronto. Pierre franziu as sobrancelhas: Hum! Maud ps-lhe a mo na boca: Chega disse ela. Est bom assim.
PENA SUSPENSA Bem, mas se ficares com piolhos, no te venhas queixar a mim. Estendeu-lhe a mo para ajud-la a subir, depois sentou-se ao p dela. Os dedos magros de Maud deixaram-lhe um calor seco e vivo na palma da mo: ela tinha sempre um pouco de febre. Leve-nos a dar uma volta pelas fortificaes disse ele secamente. Digam o que disserem, a pobreza banaliza. Maud era vulgar detestava a camaradagem que a ligava aos cocheiros, aos carregadores, aos guias, aos empregados de cafs: ela dava-lhes sempre razo e se os apanhvamos em flagrante achava sempre maneira de os desculpar. O cocheiro chicoteou o cavalo e o carro partiu a ranger: Que ferro-velho! disse Pierre a rir. Tenho sempre medo que se quebre um eixo. Maud debruava-se e olhava para tudo com os seus grandes olhos graves e escrupulosos. E o nosso ltimo passeio. verdade! disse ele. verdade. Ela sente-se potica porque o ltimo dia e tomamos o navio amanh. Era irritante, mas ele suportava-lhe melhor o mutismo do que a alegria. No era muito bonita, e quando queria mostrar-se graciosa ou animada, era um desastre. Assim est bem, pensou ele. Haveria o dia seguinte, e trs dias de travessia; e depois em Marselha, boa noite, cada qual para seu lado. Felicitou-se por ter reservado uma cabina de primeira: as quatro mulheres viajavam em terceira; convid-la-ia quando tivesse desejo dela, mas, tmida como era, no ousaria subir primeira sem que fosse busc-la. J E A N-P AUL SARTRE Reservaram lugares no autocarro? Maud mostrou-se embaraada: Enfim, no tomaremos o autocarro. Levam-nos de automvel at Casablanca. Quem? Um conhecido de Ruby, um velhote encantador que nos levar a dar uma volta por Fez. pena disse ele cortesmente. O trem deixara Marraquexe e atravessava a cidade europeia. sua frente, o imenso terreno baldio apodrecia na poeira, com bides rebentados e caixas de conservas vazias. O carro rolava entre grandes cubos brancos de vidraas faiscantes. Maud ps os culos escuros, Pierre franzia os olhos por causa do sol. Os cubos, colocados com sabedoria, uns ao lado dos outros, no pesavam sobre o deserto; se soprasse um bom vento, voariam. Num deles tinham colocado uma placa indicadora: Rua Marechal
Lyautey. Mas no havia rua: apenas um pequeno brao de deserto asfaltado entre imveis. Trs indgenas viam o carro passar; o mais novo, tinha um olho branco. Pierre ergueu-se um pouco e lanou-lhe um olhar firme. Mostrar a sua fora para no ter de a usar, o lema no era vlido s para os militares, tambm valia para os colonos e at para os simples turistas. No era necessrio fazer grande exibio de poderio: bastava no se abandonar, manter-se erecto. A angstia que o oprimia desde manh desapareceu. Aos olhos estpidos daqueles rabes, sentia que representava a Frana. Que vamos encontrar ao voltarmos? disse Maud subitamente. Ele cerrou os punhos sem responder. Imbecil: devolvera-lhe, de chofre, a sua angstia. Ela insistia: PENA SUSPENSA Talvez a guerra. Para ti a mobilizao; para mim o desemprego. Tinha horror em ouvi-la falar de desemprego com aquele ar srio, como um operrio. No entanto, ela era o segundo-violino na Orquestra Feminina Baby's, que fazia tournes, pelo Mediterrneo e Prximo Oriente: isso podia passar por uma profisso artstica. Teve um gesto agastado: Por favor, Maud, no falemos dos acontecimentos. S por hoje, est bem? E o nosso ltimo dia em Marraquexe. Ela chegou-se para junto dele: E verdade, o nosso ltimo dia. Ele acariciou-lhe os cabelos, mas conservava aquele gosto amargo na boca. No era medo, no: sabia que nunca teria medo. Era antes... desencanto. O trem passava ao longo das fortificaes. Maud mostrou-lhe uma porta vermelha, acima da qual se viam folhas verdes de palmeira. Pierre, lembraste? De qu? H um ms, dia a dia. Foi ali que nos encontrmos. Ah!, verdade. Amas-me? Tinha um rostinho magro, um pouco ossudo, com olhos enormes e uma bela boca. Amo-te, sim. Diz isso de outra maneira! Debruou-se sobre ela e abraou-a. O velho parecia furioso, olhava-os fixamente, franzindo as grossas sobrancelhas: Um memorando! Eis todas as suas concesses! Horace Wilson meneou a cabea e pensava: Porque representa? No saberia Chamberlain que J E A N-P AUL SARTRE
haveria um memorando? No fora tudo resolvido na vspera? No tinham combinado toda a cena quando estiveram ss, um em frente do outro, com aquele falso doutor Schmitt? Abraa a tua Maudinha; ela est triste hoje... Ele abraou-a e ela ps-se a falar com uma vozinha de criana: Tu no tens medo da guerra? Ele sentiu um calafrio desagradvel na nuca. No, filhinha, no. Um homem no tem medo da guerra. Pois eu garanto-te que Lucien tinha medo. Foi mesmo o que me afastou dele: era medroso de mais. Ele inclinou-se e beijou-lhe os cabelos; perguntava-se porque tivera, de repente, vontade de lhe dar uma bofetada. E assim, como pode um homem proteger uma mulher, se anda sempre apavorado? No era um homem disse ele docemente. Eu sou um homem. Ela tomou-lhe o rosto nas mos e ps-se a falar: Sim senhor, era um homem, sim senhor. Com os seus cabelos negros e a sua barba negra, parecia ter vinte e oito anos. Ele desprendeu-se; sentia-se adocicado e inspido, uma nusea subia-lhe do estmago boca e no sabia o que o enjoava mais: se o deserto faiscante, os muros de tijolo vermelho, ou a mulher aconchegada nos seus braos. Como estou farto de Marrocos! Gostaria de estar em Tours, em casa dos pais, pela manh, e que a me lhe trouxesse o pequeno-almoo cama! Pois bem, o senhor descer ao salo dos jornalistas, disse ele a Neville Henderson, PENA SUSPENSA e far o favor de lhes comunicar que, atendendo solicitao do chanceler Hitler, estarei no Hotel Dreesen s vinte e duas horas e trinta, mais ou menos. Cocheiro! Cocheiro! Volte para a cidade por essa estrada. Que te aconteceu? perguntou Maud, espantada. Estou farto das fortificaes disse ele violentamente ; estou farto do deserto e estou farto de Marrocos. Mas dominou-se logo e, tomando-lhe o queixo entre dois dedos: Se fores boazinha, iremos comprar chinelas rabes. A guerra no estava na msica dos carroceis, no estava nos cafs formigantes da Rua Rochechouart. Nem uma aragem. Maurice transpirava, sentia, contra a sua, a coxa morna de Zzette, faz-se um pequeno truque de magia, e pronto, passvamos a no estar nos campos, no tremor imvel do ar quente por cima da cerca, no chilreio redondo e branco dos pssaros, no riso de Marcelle, ela tinha-se erguido no deserto, junto aos muros de Mar-raquexe. Levantara-se um vento pesado e vermelho, fazia redemoinho em volta do trem, corria sobre as ondas do Mediterrneo, fustigava o rosto de Mathieu; Mathieu secava-se
na praia deserta, pensava: Nem mesmo isso, e o vento da guerra soprava sobre ele. Nem mesmo isso! Fazia um pouco de frio mas ele no tinha vontade de entrar imediatamente. Uns aps os outros, os banhistas haviam abandonado a praia; era a hora do jantar. O prprio mar despovoava-se, uma grande luz desmoronada jazia, deserta e solar, e o trampolim preto do esqui nutico perfurava-a como a ponta de um recife. J E A N-P AUL SARTRE Nem mesmo isso, pensava Mathieu. Ela tricotava, diante da janela aberta, esperando as cartas de Jacques. De vez em quando, ergueria o rosto com uma vaga esperana; procuraria o seu mar com os olhos. O seu mar: uma bia, um trampolim, um pouco de gua lambendo a areia quente. Um calmo jardinzinho feito medida do homem, com algumas avenidas grandes e inmeros atalhos. E voltaria sempre ao seu tricot com a mesma decepo: tinham mudado o seu mar. O interior do pas, eriado de baionetas e sobrecarregado de canhes, teria puxado a si o litoral; a gua e a areia ter-se-iam retrado e continuariam a sua vida eterna, cada qual para seu lado. Cercas de arame farpado estriando as escadarias de sombras estreladas; canhes nos parques, entre os pinheiros; sentinelas diante das vivendas; oficiais atravessariam como cegos esta cidade de gua, desolada. O mar voltaria sua solido. Seria impossvel banhar-se: a gua, militarmente guardada, assumiria, bei-ra-mar, um aspecto administrativo; o trampolim, a bia j no ficariam a uma distncia aprecivel da terra; todos os caminhos que Odette traara sobre as ondas, desde a infncia, ter-se-iam apagado. Mas o mar alto, em compensao, o mar alto agitado, desumano, com as suas batalhas navais a cinquenta milhas de Malta, os seus navios afundados perto de Palermo, as suas profundezas rasgadas por peixes de ferro, o mar alto seria todo contra ela, descobriria em toda a parte, sobre as ondas, a sua presena glacial, e o mar alto erguer-se-ia no horizonte como um muro sem esperana. Mathieu levantou-se: estava seco; limpou o calo de banho com a mo. Como vai ser chata, essa guerra, pensou E depois da guerra? Seria um outro mar. Mar de vencidos? Mar de vencedores? Dentro de cinco anos, denPENA SUSPENSA tro de dez, ele estaria talvez aqui, numa tarde de Setembro, mesma hora, sentado sobre esta mesma areia, diante desta enorme massa de gelatina, e a mesma luz ruiva roaria a superfcie da gua. Mas que veria ele? Levantou-se e vestiu o roupo. Os pinheiros do parque j se projectavam negros contra o cu. Lanou um ltimo olhar para o
mar: a guerra ainda no rebentara; as pessoas jantavam tranquilamente nas suas vivendas; nem um canho, nem um soldado, nem uma cerca de arame farpado, a frota estava nos ancoradouros de Bizerte e Toulon; ainda era permitido ver o mar em flor, o mar das ltimas tardes de paz; mas ele continuou inerte e neutro: uma grande extenso de gua salgada, que se agitava um pouco, no significava nada. Mathieu encolheu os ombros e subiu os degraus de pedra; havia alguns dias que as coisas o abandonavam, uma aps outra. Perdera os odores, todos os odores do sul, depois os gostos. Agora o mar. Como os ratos que abandonam o navio perdido. Quando chegasse o dia da partida, ele estaria seco, nada mais teria a lamentar. Voltou para o bangal a passos lentos, e Pierre pulou do carro: Vem, ters o teu par de chinelas. Entraram no mercado. Era tarde; os rabes apressavam-se para alcanar a Praa Djemaa-el-Fn antes do pr do Sol. Pierre sentia-se mais em forma; o vaivm da multido produzia nele um efeito reconfortante. Olhava as mulheres veladas, e quando elas lhe devolviam o olhar apreciava-se nos olhos delas. Olha disse ele. A esto as chinelas. Havia de tudo no mostrurio, era um bricabraque de tecidos, colares, sapatos, bordados. Como bonito! disse Maud. J E A N-P AUL SARTRE Mergulhou as mos naquele amontoado heterclito e Pierre afastou-se um pouco: no queria dar aos rabes o espectculo de um europeu absorto na contemplao de adornos femininos. Escolhe disse ele distraidamente , escolhe o que quiseres. Ao lado, empilhavam-se livros franceses; entreteve-se a folhe-los. Havia uma mistura de romances policiais e fitas romanceadas. Ouviu sua direita o rudo metlico de anis e pulseiras nas mos de Maud. Ests satisfeita? Estou a escolher, estou a escolher. preciso pensar. Ele voltou sua leitura. Sobre uma pilha de Texas Jack e de Buffalo BUI descobriu um livro com fotografias. Era uma obra do coronel Picot acerca dos ferimentos na cara; as primeiras pginas no existiam j, e as outras estavam amassadas. Quis larg-lo depressa, mas era tarde: o livro tinha-se aberto sozinho. Pierre viu uma cara horrvel, um s buraco do nariz ao queixo, sem lbios nem dentes; o olho direito fora arrancado e unia larga cicatriz marcava a face direita. O rosto torturado conservava um sentido humano, um ar ignobilmente zombeteiro. Pierre sentia alfinetadas glaciais em
todo o couro cabeludo e perguntava a si mesmo: mas como que esta obra veio aqui parar? um bom livro disse o vendedor. O senhor vai-se divertir. Pierre ps-se a virar as pginas. Viu tipos sem nariz, sem olhos, ou sem plpebras, com os globos oculares salientes como nas pranchas anatmicas. Estava fascinado, contemplava as fotografias uma a uma e indagava: mas como veio esta obra aqui parar? A fotografia mais horPENA SUSPENSA rorosa mostrava uma cabea sem o maxilar inferior; o superior perdera o lbio, via-se um pedao de gengiva com quatro dentes. E ele vive, pensou. Este tipo vive. Ergueu os olhos: um espelho enfiado numa moldura reflectiu-lhe a imagem; fixou-a apavorado... Pierre disse Maud , vem ver. Achei. Ele hesitou. O livro queimava-lhe as mos, mas no se decidia a larg-lo entre os outros, a afastar-se dele, a virar-lhe as costas. Vou indo. Apontou o livro e perguntou ao vendedor: Quanto? O rapaz andava c e l como uma fera, no escritrio pequeno. Irene lia um artigo interessante sobre as desgraas do militarismo. Parou e levantou a cabea: D-me vertigens. No me irei embora disse Philippe. No irei enquanto ele no me receber... Qual histria! Quer v-lo? Pois bem, ele est a, atrs da porta; entre e v-lo-. Perfeitamente! disse Philippe. Deu um passo em frente e parou: Eu... isso seria um erro, eu indisp-lo-ia. Oh! Irene, no quer pedir-lhe mais uma vez? Pela ltima vez, juro que pela ltima vez. E infernal. Deixe isso. Pitteaux um mau tipo: no compreende que uma sorte para si que ele no o queira ver mais? S lhe poderia fazer mal. Mal! disse ele ironicamente. Ser que me podem fazer mal? Bem se v que no conhece os meus pais: tm todas as virtudes, s me deixaram o partido do mal. J E A N-P AUL SARTRE Irene olhou para os seus olhos: Imagina que eu no sei o que ele quer de si? O rapaz corou mas no respondeu. Oh!, isso consigo, afinal disse ela, encolhendo os
ombros. V pedir-lhe de novo, Irene implorou Philippe. V pedir. Diga-lhe que estou a pensar em tomar uma deciso capital. E ele importa-se muito com isso. V dizer-lhe isso mesmo. Ela empurrou a porta e entrou sem bater. Pitteaux ergueu a cabea e fez uma careta: Que h? perguntou com voz de trovo. Ele no a intimidava. Basta disse ela. No precisa de berrar. o garoto; estou farta de o aguentar. No quer tomar conta dele por um minuto? J disse que no. Ele afirma que vai tomar uma resoluo capital. Que que eu tenho com isso? Ora, arranje-se disse ela impaciente. Sou sua secretria, no sou a ama-seca do menino. Est bem disse ele com os olhos faiscantes. Que entre! Ah! Vai tomar uma resoluo capital! Pois eu, uma execuo capital que vou fazer. Ela riu-se e voltou-se para Philippe. Entre. O rapaz precipitou-se, mas parou porta do escritrio, religiosamente, e ela teve de empurr-lo para o fazer entrar. Fechou a porta atrs dele e foi sentar-se mesa. Quase imediatamente, comearam os berros do outro lado PENA SUSPENSA do tabique. Ela voltou ao seu trabalho com indiferena: sabia que a partida estava perdida para Philippe. Explorava Pitteaux sem escrpulos, e ficava de boca aberta diante dele; Pitteaux quisera aproveitar-se disso para o possuir, por vcio, simplesmente: no era sequer um pederasta. No ltimo momento, o rapaz tivera medo. Era como todos os rapazolas, queria tudo sem dar nada. Agora suplicava a Pitteaux que continuasse seu amigo, mas Pitteaux mandou-o fava. Ela ouviu-o gritar: Patife, s um covarde, um pequeno-burgus, um filho de pap rico que brinca aos bandidos. Ela riu e dactilografou algumas linhas do artigo. Haver monstros mais sinistros do que os oficiais superiores que condenaram Dreyfus? Ele no os poupa, pensou, satisfeita. A porta abriu-se e fechou-se com rudo. Philippe estava diante dela. Tinha chorado. Debruou-se sobre a secretria, apontando o indicador para Irene: Ele encostou-me parede disse ele com um ar feroz. Ningum tem o direito de fazer perder a pacincia aos outros. Inclinou a cabea para trs e riu: Ouviro falar de mim.
No te rales disse Irene suspirando. A enfermeira fechou a tampa da mala: vinte e dois pares de sapatos; no devia dar muito trabalho aos sapateiros, quando um par estava gasto, lanava-o para a mala e comprava um novo; mais de cem pares de meias pudas no calcanhar e furadas no stio do dedo grande, seis fatos bastante usados no armrio e tudo sujo, um verdadeiro covil de celibatrio. Podia muito bem deix-lo cinco minutos; deslizou pelo corredor, entrou na casinha, levantou a saia, deixando a porta aberta por precauo. Aliviou-se JEANPAUL SARTRE rapidamente, ouvido atento ao menor rudo: mas Armand Viguier permanecia bem quietinho, estendido na cama, as mos amarelas repousando nos lenis, cabea magra, barba grisalha, olhos fundos, sorrindo com um ar distante. As suas pernas curtas alongavam-se sob a coberta, os ps formavam um ngulo de oitenta graus, as unhas crescidas aquelas unhas terrveis dos dedos grandes, que ele costumava cortar a canivete, de trs em trs meses, e lhe furavam as meias h vinte e cinco anos. Tinha escaras nas ndegas, embora lhe tivessem passado uma almofada de borracha sob os rins, mas j no sangravam: estava morto. Sobre a mesa-de-cabeceira tinham colocado o seu monculo e, dentro de um copo de gua, a sua dentadura. Morto. E a sua vida ali estava, em tudo, impalpvel, terminada, dura e inteiria como um ovo, to compacta que todas as foras do mundo no poderiam fazer-lhe entrar um tomo e to porosa que Paris e o universo passavam atravs dela, dispersa plos quatro cantos da Frana e condensada por inteiro em cada ponto do espao, uma grande feira imvel e ruidosa; os gritos estavam ali, os risos, o apito das locomotivas e o estoiro dos obuses, a 6 de Maio de 1917, a zoada sangrenta na sua cabea, enquanto caa entre duas trincheiras, os rudos estavam ali, congelados e a enfermeira, atenta, ouvia apenas um sussurro debaixo da saia. Levantou-se, no puxou a gua por respeito morte, e voltou a sentar-se cabeceira de Armand, atravessando o grande sol imvel que ilumina para sempre um rosto de mulher num bote, na Grande Jatte, em 20 de Julho de 1900. Armand Viguier estava morto, a sua vida flutuava, encerrando dores imveis, uma grande lista negra que trespassava todo o ms de Maro de 1922, a sua dor intercostal, PENA SUSPENSA pequenas jias indestrutveis, o arco-ris sobre o cais de Bercy num sbado tarde, choveu, os passeios esto escorregadios, dois ciclistas passam a rir, o rumor da chuva na varanda, numa tarde abafada de Maro, uma melodia cigana
que lhe traz lgrimas aos olhos, gotas de orvalho brilhando na grama, uma revoada de pombos na Praa de So Marcos. Ela abriu o jornal, ajustou os culos, leu: Ultima hora. O Sr. Chamberlain no conferenciou com o chanceler Hitler, esta tarde. Pensou no sobrinho, que seria, sem dvida, mobilizado, pousou o jornal, suspirou. A paz estava ali, como o arco-ris, como o sol da Grande Jatte, como o brao loiro encrespado pela luz. A paz de 1939, de 1940 e de 1980, a grande paz dos homens; a enfermeira cerrava os lbios e pensava: E a guerra, olhava ao longe, de olhos fixos, e o seu olhar passava atravs da paz. Chamberlain meneou a cabea e disse: Farei o que puder, naturalmente, mas no tenho grande esperana. Horace Wilson sentiu um desagradvel calafrio percorrer-lhe a espinha; disse para si mesmo: Se ele fosse sincero? e a enfermeira pensou: O meu marido em 14, em 38 o meu sobrinho: terei vivido entre duas guerras. Mas Armand Viguier sabe que a paz acaba de nascer, Chantal pergunta-lhe: Com ideias como as tuas, porque lutaste?, e ele respondeu: Para que seja a ltima guerra. Dia 27 de Maio de 1919. Para sempre. Ouve Briand a falar, pequenino na tribuna, sob um cu difano; est perdido no meio da multido de peregrinos, a paz desceu sobre eles, tocam-na, vem-na, e gritam: Viva a paz. Para sempre. Est sentado no Jardim do Luxemburgo, numa cadeira de ferro, olha para sempre os castanheiros floridos, a guerra afundou-se no passado, ele estende as pernas curtas, olha as crianas que correm, pensa que no JEAN-PAUL SARTRE conhecero nunca os horrores da guerra. Os anos vindouros so uma estrada real e tranquila, o tempo desdobra-se camo um leque. Olha as suas velhas mos aquecidas pelo sol, sorri e pensa: Graas a ns. No haver mais guerra, nem durante a minha vida, nem depois. Dia 22 de Maio de 1938. Para sempre. Charles Viguier estava morto e ningum mais podia dar-lhe razo, ou achar que errara. Ningum podia mudar o futuro indestrutvel da sua vida morta. Um dia mais, um s dia, e todas as suas esperanas desmoronar-se-iam talvez, descobriria que a sua vida fora esmagada entre duas guerras, como entre o martelo e a bigorna. Mas morrera no dia 23 de Setembro de 1938, s quatro horas da manh, aps sete horas de coma. Carregara consigo a paz. A paz, toda a paz, a paz do mundo, implacvel, fora de alcance. A campainha tocou, ela sobressaltou-se, devia ser a prima de Angers, a nica parente, tinham-na prevenido na vspera por telegrama. Abriu a porta a uma mulherzinha de preto com um focinho de rato e cabelos cados sobre o rosto. Sou Madame Verchoux.
Sim, senhora. Posso v-lo ainda? Pode. Est a. Madame Verchoux aproximou-se da cama, contemplou o rosto magro, os olhos fundos. Ele mudou muito. Vinte horas e trinta em Juan-les-Pins, vinte e uma horas e trinta em Praga. Permaneam atentos. Uma comunicao muito importante vai ser transmitida a seguir. Permaneam atentos. Uma comunicao... PENA SUSPENSA Acabou-se disse Milan. Mantinha-se no vo da janela. Anna no respondeu. Baixou-se e comeou a apanhar os cacos de vidro; juntou as pedras maiores no avental e deitou-as fora pela janela. A lmpada tinha-se partido, o quarto estava escuro e azulado. Agora disse ela vou dar urna boa varre-dela. Repetiu: Uma boa varredela, e comeou a tremer. Vo-nos tirar tudo disse ela a chorar , vo partir tudo, vo-nos expulsar. Cala-te disse Milan. Por amor de Deus, no chores! Aproximou-se do rdio e rodou os botes, as lmpadas acenderam-se. No est partido disse satisfeito. A voz meio azeda e mecnica encheu repentinamente o quarto: Permaneam atentos. Uma comunicao muito importante vai ser transmitida a seguir. Permaneam atentos. Uma comunicao muito importante... Ouve disse Milan com voz alterada , ouve! Pierre andava a passos largos. Maud corria ao seu lado apertando as chinelas debaixo do brao. Estava feliz. So lindas disse ela. Ruby ficar cheia de inveja; ela comprou umas em Fez que no valem estas nem de longe. E depois so to cmodas, enfia-se isto ao saltar da cama, no preciso nem toc-las com as mos, ao passo que os outros chinelos no. S preciso ter jeito para no as perder, preciso arquear os ps, pondo os dedos assim. Perguntarei criada do hotel, que rabe. JEAN-PAUL SARTRE Pierre continuava a no responder. Ela deitou-lhe um olhar inquieto e continuou: Devias ter comprado umas tambm tu, que andas sempre descalo no quarto; sabes que ficam to bem aos homens como s mulheres? Pierre parou no meio da rua: Basta! disse ele com voz de trovo. Ela tambm parou,
perturbada. Que te aconteceu? Servem tambm para os homens! disse Pierre imitando-a. Ora bolas! Sabias muito bem em que eu estava a pensar enquanto tagarelavas! E pensavas o mesmo que eu acrescentou ele com violncia. Passou a lngua plos lbios e sorriu ironicamente. Maud quis falar, mas olhou para ele e calou-se, gelada. S no se quer enfrentar a realidade. Principalmente as mulheres, quando pensam numa coisa, comeam logo a falar doutra. No ? Mas, Pierre disse Maud aterrorizada , tu ests louco? No percebo o que dizes. O que imaginas tu que eu estava a pensar? Em que pensas? Pierre tirou um livro do bolso, abriu-o e p-lo em frente do nariz dela: Nisto. Era uma fotografia de um rosto mutilado. O homem no tinha nariz, usava uma venda num olho. Tu... tu compraste isso? perguntou ela, estupefacta. E ento! Sou um homem; eu no tenho medo; quero ver a cara que terei no ano que vem. Agitava a fotografia diante dos olhos de Maud: Amar-me-s, quando eu estiver assim? PENA SUSPENSA Ela receava compreender, teria dado tudo para que ele se calasse. Responde! Amar-me-s? Cala-te disse ela , suplico-te que te cales. Esses homens vivem para sempre em Val-de-Grce. S saem noite, e, mesmo assim, de mscara. Ela quis tirar-lhe o livro das mos, mas ele agarrou-o e p-lo no bolso. Olhou-o, com os lbios a tremer, esforava-se por no desatar aos soluos. Oh, Pierre! disse docemente. Tens ento medo? Ele calou-se bruscamente e lanou-lhe um olhar estpido. Permaneceram imveis por um momento, depois ele disse com uma voz pastosa: Todos os homens tm medo. Todos. Aquele que no tem medo no normal; isso no tem nada a ver com a coragem. E tu, tu no tens o direito de me julgar porque no vais para a guerra. Recomeara a andar em silncio. Ela pensava: um covarde! Olhava para a fronte bronzeada, o seu nariz florentino, a sua bela boca, e pensava: um covarde. Como Lucien. No tenho sorte. O busto de Odette emergia na luz, enquanto o resto do seu corpo se dilua na sombra da sala de jantar, estava debruada
na varanda a ver o mar, Gros-Louis pensava: Que guerra! Caminhava e a luz vermelha do sol-poente danava nas suas mos, na sua barba, Odette sentia nas costas o bom quarto sombrio, o bom refgio, a toalha branca que luzia debilmente no escuro, mas ela erguia-se na luz, a luz, o saber e a guerra, entravam-lhe plos olhos, pensava que ele ia partir, a luz elctrica formava cogulos J E A N-P AUL SARTRE na fluidez do dia moribundo, cogulos como gemas de ovos, Jeannine rodara o boto do comutador, as mos de Marcelle agitavam-se sob a luz amarela da lmpada, pediu o sal e as suas mos projectaram sombras na toalha, Daniel disse: bluff, h que aguentar, ele ceder. A luz dura que raspa os olhos como lixa, assim, no Sul, at ao ltimo minuto. E meio-dia e, de repente, a noite cai, Pierre tagarelava, queria fazer crer que recuperara a calma, mas ela caminhava ao seu lado, em silncio, e fixava nele um olhar to duro como a luz. Quando chegaram praa, ela teve medo que ele lhe propusesse passarem a noite juntos, mas Pierre tirou o chapu e disse com frieza: Como nos temos de levantar cedo amanh, e ainda tens de arranjar as malas, acho melhor ires dormir com as tuas companheiras. Ela respondeu: Eu tambm acho melhor. Ele disse: At amanh. At amanh no navio, disse ela. Permaneam atentos. Uma comunicao muito importante vai ser transmitida, estava deitado, as mos sob a nuca, sentia-se todo cinzento disse: Esta bonequinha muito querida. Ela tremeu e disse: ... Como todas as noites, ela tinha medo. Gosto muito dela, sim! s vezes concordava, s vezes dizia no, mas desta vez no ousaria. Ento, e a pequena carcia, a pequena carcia da noite? Ela suspirou, envergonhada, era divertido. Hoje no, disse ela. Pobre boneca, pobre boneca, to agitada que ela est hoje, far-lhe-ia bem. Para adormec-la, no quer? No? Sabe que isso me acalma sempre..., disse ele. Ela assumiu o seu ar de enfermeira-chefe, como quando o ajeitava na bacia, a sua cabea ficou firme sobre os ombros, no fechava os olhos, mas era como se preparasse para no ver nada e as suas mos desabotoaram-no com agilidade, mos de especialista, PENA SUSPENSA o rosto to triste, era divertido de verdade, a mo entrou, to suave, um creme de amndoas, Odette sobressaltou-se e disse: Assustou-me; Jacques est consigo? Charles suspirou, Mathieu disse que no. No, disse Maurice, preciso fazer o que se deve fazer. Tinha colocado a chave por cima do quadro: Continua a feder a latrina, que porcaria. E o menino de Madame Salvador, disse Zzette, pe-no na rua
quando recebe os seus homens, e ele ento arreia as calas por todo o lado para se distrair. Subiram a escada: Permaneam atentos, uma comunicao... Milan e Anna debruaram-se sobre o aparelho, os rumores de vitria entravam pela janela: Baixa isso mais, disse Anna, no devemos provoc-los, a mo doce, doce como um creme de amndoas, Charles cresceu, floriu, o enorme fruto desabrochou, a casca ia estoirar, um fruto bem erecto para o cu, um fruto suculento, toda uma primavera de sufocante doura, o silncio, o tilintar dos garfos e o longo rudo no aparelho, a carcia do vento no grande fruto aveludado, macia, Anna sobressaltou-se e apertou o brao de Milan. Cidados. O Governo checoslovaco resolve proclamar a mobilizao geral; todos os homens com menos de quarenta anos e especialistas de todas as idades devem apresentar-se imediatamente. Todos os oficiais, sargentos e soldados da reserva, e da segunda reserva de todas categorias, todos os licenciados devem apresentar-se sem demora nos seus centros de equipamento. Devem apresentar-se vestidos com roupas usadas, munidos dos seus papis militares e de vveres para dois dias. O prazo para a apresentao terminar s quatro e trinta da madrugada. JEAN-PAUL SARTRE Todos os veculos, automveis ou avies esto mobilizados. A venda de gasolina permitida com autorizao escrita pelas autoridades militares. Cidados! Estamos no momento decisivo. O xito depende de todos. Que todos ponham as suas foras ao servio da ptria. Sede bravos e fiis. A nossa luta uma luta pela justia e pela liberdade. Viva a Checoslovquia! Milan levantou-se, estava afogueado, ps as mos nos ombros de Anna, disse-lhe: Enfim! Anna, enfim! Uma voz de mulher repetiu o decreto em eslovaco, j no compreendiam mais nada, salvo algumas palavras, de vez em quando, mas era como uma marcha militar. Anna repetiu: Enfim! Enfim!, e as lgrimas rolaram-lhe pela cara. Depois entenderam de novo: Die Regierung hat entschlossen, era alemo, Milan rodou o boto completa-mente, e o aparelho ps-se a berrar, a voz esmagava de encontro s paredes as odiosas canes deles, os seus rudos de festa, sairia pela janela, partiria as vidraas dos Jgerschmitt, iria encontr-los no seu salo muniquense em pequena reunio familiar, e gelar-lhes-ia os ossos. O cheiro a latrina e a leite azedo esperava-o, aspirou-o profundamente e sentiu-o penetrar, como uma vassourada, purificando-o dos perfumes
loiros e limpinhos da Rua Royale, era o cheiro da misria, era o seu cheiro. Maurice ps-se porta do seu quarto, enquanto Zzette metia a chave na fechadura, e Odette dizia alegremente: Para a mesa, ento! Para a mesa! Jacques, vais ter uma surpresa, sentia-se forte e duro, tinha reencontrado o mundo da clera e da revolta; no segundo andar, os midos gritavam porque o pai voltara bbado; no quarto vizinho, PENA SUSPENSA ouviam-se os passos de Maria Pranzini, cujo marido, pedreiro, tinha cado de um telhado, o ms passado, os rudos, as cores, os odores, tudo parecia verdadeiro, ele acordara, havia redescoberto o mundo da guerra. O velho voltou-se para Hitler, olhava para o rosto mau e infantil, aquela cara de mosca, e sentia-se chocado at ao fundo da alma. Ribbentrop entrara, disse algumas palavras em alemo e Hitler fez um sinal ao Dr. Schmitt: Acabamos de ser informados, disse o Dr. Schmitt em ingls, que o Governo do Sr. Bens acaba de decretar a mobilizao geral. Hitler abriu os braos em silncio, como um homem que deplora que o acontecimento lhe d razo. O velho sorriu amavelmente e um claro vermelho abrasou-lhe os olhos. Um claro de guerra. Restava--Ihe ficar ali irritado, como o Fhrer, restava-lhe abrir os braos como se dissesse: Pois bem, assim!, e a pilha de pratos, que ele mantinha em equilbrio h dezassete dias, ruiria sobre o soalho. O Dr. Schmitt contemplava-o com curiosidade, pensava que devia ser tentador abrir os braos quando se carregava uma pilha de pratos h dezassete dias: Eis o momento histrico, pensava que se havia chegado ao ltimo recurso, liberdade pura e simples de um velho comerciante de Londres. Agora o Fhrer e o velho olhavam-se em silncio e no era necessrio nenhum intrprete. O Dr. Schmitt recuou um passo. Sentou-se num banco da Praa Glu e pousou o banjo ao seu lado. Reinava uma escurido azulada sob os pltanos, havia msica e era tarde, os mastros dos barcos de pesca saam do cho, muito direitos, pretos, e do outro lado porto janelas cintilavam s centenas. Um menino fazia correr a gua da fonte; no banco ao lado, outros JEAN-PAUL SARTRE negros vieram sentar-se e saudaram-no. No tinha fome, no tinha sede, banhara-se atrs do molhe, encontrara um sujeito grando e hirsuto que parecia ter cado da Lua e lhe oferecera vinho, tudo isso era bom. Tirou o banjo do estojo, tinha vontade de cantar. Um instante, s um instante, tosse, limpa a garganta, vai cantar num instante, Chamberlain, Hitler e Schmitt esperavam a guerra em silncio, ela ia chegar num
instante, o p inchara mas a coisa ia, num instante tir-lo-ia do sapato, Maurice, sentado na cama, puxava com toda a fora, num instante Jacques teria acabado de comer a sopa, Odette no ouviria mais aquele sussurrozinho irritante, o fogo de artifcio, o formigueiro dos foguetes prestes a partir, num instante os sis filtrariam rodopiando at ao tecto, a sua boneca, num instante haveria um cheiro a absinto e uma cola quente e abundante inundaria as suas coxas paralisadas e a voz subiria, rica e eterna, atravs da folhagem dos pltanos; um instante, Mathieu comia, Marcelle comia, Daniel comia, Boris comia, Brunet comia, tinham almas instantneas que pequeninas volpias pastosas enchiam at borda, um instante e ela chegaria coberta de ao, temida por Pierre, aceite por Boris, desejada por Daniel, a guerra, a grande guerra dos sempre-em-p, a guerra maluca dos brancos. Um instante; estoirara no quarto de Milan, escapava por todas as janelas, derramava-se com fragor em casa dos Jgerschmitt, rondava pelas fortificaes de Mar-raquexe, soprava sobre o mar, esmagava os prdios da Rua Royale, enchia as narinas de Maurice com o seu cheiro a latrina e leite azedo, nos campos, nos estbulos, nos ptios das quintas, ela no existia, era jogada, a cara e a coroa, entre dois espelhos, nos sales ornamentados do Hotel PENA SUSPENSA Dreesen. O velho passou a mo pela testa e disse com voz clara: Pois bem, se o senhor quiser, vamos discutir, um por um, os artigos do seu memorando. E o Dr. Schmitt percebeu que a hora dos intrpretes voltara a soar. Hitler aproximou-se da mesa, e a bela voz grave subiu ao ar puro; no quinto andar do Hotel Massilia, uma mulher que tomava ar fresco na varanda ouviu-a e disse: Gomez!, vem ouvir o negro, canta bem! Milan pensou na sua perna, e a alegria desapareceu-lhe, apertou com fora o ombro de Anna e disse: No ho-de querer saber de mini, j no sirvo para nada. E o negro cantava. Charles Viguier estava morto, as suas duas mos plidas repousavam sobre os lenis, as duas mulheres velavam-no falando dos acontecimentos, tinham logo simpatizado uma com a outra, Jeannine pegou numa toalha e limpou as mos, em seguida ps-se a esfregar-lhe as coxas, Chamberlain dizia: No que se refere ao primeiro pargrafo, apresentarei duas objeces e o negro cantava: Bei mir, bist du schn; isto significa: Para mim, s a mais bonita. Duas mulheres pararam, ele conhecia-as, Anina e Dolors, duas prostitutas da Rua Eacydon, Anina disse--Ihe: Ests a cantar?, e ele no respondeu, cantava e as duas mulheres sorriam para ele, e Sarah chamou impaciente: Gomez, Pablo,
venham j, que que esto a fazer? Est aqui um negro a cantar, uma beleza. SBADO, 24 DE SETEMBRO E m Crevilly, ao soarem seis horas, o velho Croulard entrou na esquadra e bateu porta do escritrio. Pensava: Acordaram-me. Pensava que lhes diria: Porque me acordaram? Hitler dormia, Chamberlain dormia, o seu nariz produzia uma musicazi-nha de flauta, Daniel sentara-se na cama, inundado de suor, pensando: Foi s um pesadelo! Entre! disse o oficial. Ah!, voc, velho Croulard? Pois vai ser preciso fazer fora. Ivich gemeu um pouco e virou-se de lado. Foi o mido quem me acordou disse o velho Croulard. Olhou o oficial com rancor: Deve ser muito importante! Ah!, meu velho Croulard disse o oficial , precisa de engraxar as botas! Croulard no gostava do oficial. Disse: Isso de botas no comigo. No tenho botas, s uso tamancos. J E A N-P AUL SARTRE Ser preciso engraxar as botas repetiu o oficial , estamos no mato sem cachorro! Sem bigode, parecia uma rapariga. Usava monculo e tinha o rosto rosado como a professora. Inclinava-se para a frente, de braos abertos, apoiando-se mesa com a ponta dos dedos. Croulard olhava-o e pensava: Foi ele quem me mandou acordar. Ele disse-lhe que trouxesse a cola? Croulard segurava o frasco de cola atrs de si; mostrou-o em silncio. E os pincis? perguntou o oficial. E preciso andar depressa! No vai ter tempo de voltar a casa. Os pincis esto no meu bluso disse Croulard com dignidade. Despertaram-me de repente, mas, mesmo assim, no esqueceria os pincis. O oficial estendeu-lhe o rolo: Cole um na fachada da Cmara, dois na praa, e um na casa do notrio. Do notrio Belhome? proibido colar cartazes a. Que me importa? disse o oficial; parecia nervoso e alegre e disse: Tomo a responsabilidade, toda a responsabilidade. mesmo a mobilizao? Faa o que eu disse. Vai custar caro, vais custar caro. Oh! disse Croulard. Eu e o senhor, penso que vamos fica aqui. Bateram porta e o tenente foi abrir. Era o presidente da Cmara. Estava de tamancos, mas pusera a faixa oficial por
cima do bluso. Disse: Que me veio dizer o rapaz? PENA SUSPENSA Eis os cartazes disse o tenente. O prefeito ps os culos e comeou a ler os cartazes. Leu a meia voz: Mobilizao geral, e pousou-os novamente na mesa como se tivesse medo de se queimar. Disse: Estava a trabalhar no campo, vim buscar a minha faixa. O velho Croulard estendeu a mo, enrolou os cartazes e p-los debaixo do brao. Disse ao prefeito: Eu tambm dizia para mim mesmo que no era normal acordarem-me to cedo. Vim buscar a minha faixa disse o prefeito. Olhou inquieto para o tenente: Elas no falam de requisies. H outro cartaz disse o tenente. o diabo! o diabo! Essa histria vai ento recomear! Eu fiz a guerra, eu disse o velho Groulard. Cinquenta e dois meses sem um ferimento. Franziu os olhos, excitado pela lembrana. Eu sei, eu sei disse o prefeito. Fez a outra guerra, mas no far esta. E depois, que importncia tm as requisies para si? O tenente bateu na mesa com autoridade: preciso fazer alguma coisa. Alguma coisa. O prefeito parecia desnorteado. Enfiara as mos na faixa e fazia-se de importante: O homem que toca tambor est doente explicou ele. Eu sei tocar disse Croulard. Posso substitu-lo. Sorriu: h dez anos que sonhava com isso. J E A N-P AUL SARTRE Tambor? disse o tenente. O senhor vai mandar dobrar o sino. isso que o senhor vai fazer! Chamberlain dormia, Mathieu dormia, o cabila encostou a escada ao autocarro, ps a mala ao ombro e subiu sem a ajuda das mos. Ivich dormia, Daniel ps as pernas fora da cama, o sino batia desesperadamente na sua cabea, Pierre olhava para a planta dos ps, rsea e negra, do cabila, e pensava: a mala de Maud. Mas Maud no estava ali, partiria um pouco mais tarde com Doucette, France e Ruby no carro de um velho muito rico que era amante de Ruby; em Paris, Nantes, Mcon, os homens colavam cartazes brancos nas paredes, os sinos dobravam em Crevilly, Hitler dormia, Hitler era urna criana, tinha quatro anos, haviam-lhe vestido a sua roupa mais bonita, um co negro passou, ele quis agarr-lo com a rede de apanhar borboletas; os sinos dobravam, Madame Reboulier acordou assustada e disse:
Est alguma coisa a arder. Hitler dormia, cortava em tiras, com uma tesoura de unhas, as calas do pai, Leni von Riefenstahl entrou, apanhou as tiras de flanela e disse: Vais ter de com-las em salada. Os sinos dobravam, dobravam, dobravam, Maublanc disse para a mulher: Aposto que foi a serrao que ardeu. Foi para a rua. Madame Reboulier, de camisa cor-de--rosa, por trs da persiana, viu-o passar e chamar o carteiro que corria. Maublanc gritou: Eh! Anselme! a mobilizao gritou o carteiro. O qu? Que disse ele? perguntou Madame Reboulier ao marido, que viera juntar-se a ela. No incndio? PENA SUSPENSA Maublanc olhou para os dois cartazes e leu-os a meia voz, depois deu meia volta e regressou a casa. A sua mulher estava porta, ele disse-lhe: Diz a Paul que atrele a carroa. Ouviu um rudo e voltou-se: era Chapin, na sua carroa; falou-lhe: Ena! levantaste-te cedo, ests assim com tanta pressa? Chapin no respondeu. Maublanc olhou para a traseira da carroa: dois bois acompanhavam-na amarrados a uma corda. Disse a meia voz: Bichos danados e bonitos. Podes diz-lo, atalhou Chapin com clera, podes dizer que so uns belos animais. Os sinos dobravam, Hitler dormia, o velho Fraigneau dizia ao filho: Se me levam os dois cavalos e a ti, como que eu vou trabalhar? Nanette batia porta e Madame Reboulier disse-lhe: voc, Nanette? V praa ver porque tocam os sinos. E Nanette respondeu: Mas a senhora no sabe? a mobilizao geral. Como todas as manhs. Mathieu pensava: Como todas as manhs. Pierre encostara-se vidraa: olhava, pela janela, os rabes sentados no cho ou nos bas coloridos, esperando o carro para Ouarzazat; Mathieu abrira os olhos, olhos de recm-nascido, ainda cegos, pensava: Para qu?, como todas as manhs. Uma manh de terror, uma flecha de fogo atirada contra Casablanca, Marselha, o autocarro trepidava aos seus ps, o motor funcionava, l fora, o motorista, um tipo alto com um bon cinzento de viseira de couro, acabava de fumar o cigarro sossegadamente. Pierre pensava: Maud despreza-me. Uma manh como todas as manhs, estagnada e viva, uma pomposa cerimnia quotidiana com clarins e fanfarra e o despertar pblico do sol. Houvera outrora outras manhs: comeos; o despertador tocava, Mathieu levantava-se de um pulo, os olhos J E A N-P AUL SARTRE
duros, sem cansao, como ao toque de um clarim militar. J no havia comeos, nada mais a empreender. E, no entanto, ia ser preciso levantar-se, tomar parte na cerimnia, abrir caminhos e atalhos nesse calor, fazer todos os gestos do culto, como um padre que perdeu a f. Ps as pernas fora da cama, ergueu-se, tirou o pijama. Para qu? E deixou-se cair novamente de costas, todo nu, as mos sob a nuca, comeou a distinguir o tecto, atravs de uma bruma branca. Exausto. Completamente exausto. Dantes, eu carregava os dias s costas, fazia-os passar de uma margem para a outra; agora so eles que me carregam. O autocarro trepidava, batia, dava socos sob os seus ps, o soalho queimava, parecia-lhe que as solas dos ps se rachavam com o calor, o grande corao covarde de Pierre batia, dava socos, dava socos de encontro s almofadas mornas, o vidro queimava e no entanto ele sentia-se gelado, e pensava: Comea. Acabaria num buraco, perto de Sedan ou de Verdun, e ainda estava no comeo. Ela tinha-lhe dito: Tu s ento covarde, olhando-o com desprezo. Lembrou-se do rostinho srio, febril, de olhos sombrios, lbios finos, sentiu uma pontada no corao e o autocarro arrancou. Fazia ainda bastante frio; Louison Corneille, a irm da guarda-cancela, que tinha vindo de Lisieux para ajudar a mana doente a tomar conta da casa, saiu para abrir a passagem de nvel e disse: O frio at corta! Estava de bom humor porque estava noiva. H dois anos que estava noiva, mas cada vez que pensava nisso ficava bem-humorada. Ps-se a dar manivela e depois parou. Estava certa de que havia algum na estrada, atrs de si. No pensara em olhar ao sair de casa, mas tinha a certeza. Voltou-se e ficou sem flego: havia mais de cem carroas, carretas, carros PENA SUSPENSA de bois, velhos trens que esperavam, imveis, em fila. Os homens estavam sentados, muito direitos nos bancos, de chicote na mo, ar zangado, em silncio. Havia outros a cavalo e outros a p, puxando os seus bois. Era to engraado que teve medo. Girou a manivela depressa e saltou para o lado da estrada. Os homens chicotearam os cavalos e as carroas comearam a andar diante dela, o autocarro rodava entre as estepes vermelhas, os rabes formigavam atrs de si, Pierre disse: Malandros do diabo, nunca estou tranquilo quando os sinto atrs de mini, sabe Deus o que preparam! Pierre lanou uma olhadela para o fundo do carro: estavam ali amontoados, j cinzentos e esverdeados, de olhos fechados. Uma mulher de vu deixara-se escorregar entre os sacos e as bagagens, de costas, viam-se-lhe as plpebras cerradas por cima do vu. Que porcaria, daqui a cinco minutos vo comear a vomitar, essa
gente no tem estmago. Louison reconhecia-os ao passarem, eram os rapazes de Crevilly, podia chamar pelo nome de cada um deles, mas eles no tinham o seu aspecto habitual, o gran-dalho vermelho era o filho de Chapin, danara com ele na noite de So Martinho, gritou-lhe: Eh! Mareei, ests muito orgulhoso! Ele voltou-se e olhou-a de um modo intimidante. Ela disse: Ser que vai para a farra? Ele respondeu: Tens razo, sim, mesmo uma farra. A carreta atravessou os carris s sacudidelas, dois bois seguiam-na, dois belos animais. Outras carretas passaram, ela olhava-as protegendo os olhos com as mos. Reconheceu Maublanc, Tournus, Cauchois, eles no lhe ligaram, passavam, bem direitos nos bancos, pegando nos chicotes como em ceptros, tinham cara de reis maus. O seu corao parecia apertar-se e gritou-lhes: E a guerra? Mas ningum lhe respondeu. J E A N-P AUL SARTRE Passaram nos seus carros mancos, aos saltos, acompanhados plos bois com um ar cmico de nobreza, desapareceram, uns aps os outros, na curva da estrada; ela ficou um momento a olhar, com a mo a proteger os olhos, contra o sol-nascente, o autocarro corria como o vento, virava, rodava a roncar, ela pensava em Jean Matrat, o seu noivo, que fazia o servio militar em Angoulme, num regimento de sapadores, as carretas voltaram a aparecer, como moscas na estrada branca, coladas ao flanco da colina; o autocarro enfiou-se por entre os rochedos escuros, virou, virou, e a cada curva os rabes eram lanados uns contra os outros e gemiam com uma voz pattica. A mulher de vu levantou-se subitamente e da sua boca, invisvel sob a musselina branca, saram horrveis imprecaes; agitou os braos grossos como coxas, por cima da cabea, as mos pequenas e rolias danavam, com as suas unhas pintadas; por fim, arrancou o vu, debruou-se na janela e ps-se a vomitar gemendo. Pronto, disse Pierre, vo-se estripar em cima de ns. As carreiras no avanavam, pareciam coladas estrada. Louison contemplou-as durante longo tempo: moviam-se, moviam-se sem dvida, alcanavam, uma aps outra, o cimo da colina e desapareciam. Louison deixou cair a mo e os seus olhos ofuscados piscaram, em seguida, voltou para dentro para tratar das crianas. Pierre pensava em Maud, Mathieu pensava em Odette, sonhara com ela, agarravam-se pela cintura e cantavam a barcarola dos Contos de Hoffmann no ponto do Provenal. Agora estava nu, suando na cama, olhava para o tecto e Odette fazia--Ihe companhia. Se no morri de tdio, bem a ela que o devo. Um rumor cinzento tremia ainda nos seus olhos, um resto de ternura ainda bulia no seu corao. Uma ter-
PENA SUSPENSA nura plida, uma triste ternura de sonho de um instante, um pretexto para ficar estendido de costas por mais um pouco. Dentro de cinco minutos a gua fria escorrer-lhe-ia pela nuca e plos olhos, a espuma do sabo crepitaria nos seus ouvidos, o dentrfico empastar-lhe-ia as gengivas, no teria mais ternura por ningum. Cores, luzes, odores, sons. E palavras, palavras amveis, srias, sinceras, divertidas, palavras at noite. Mathieu... pfff! Mathieu era um futuro. No h mais futuro. Mathieu s existe em sonho, entre a meia-noite e as cinco da manh. Chapin pensava: Dois belos animais! Estava-se nas tintas para a guerra: depois se veria. Mas aqueles animais, cuidava deles h cinco anos, castrara-os ele prprio, isso cortava-lhe o corao. Chicoteou o cavalo e obrigou-o a puxar para a esquerda, a sua carroa passou lentamente pela de Simenon. Que histria essa?, disse Simenon. Estou farto, gostaria de j ter chegado! Vais cansar os animais, tornou Simenon. Pouco me importa agora, disse Chapin. Tinha vontade de ultrapassar todos. Pusera-se de p, dava estalos com a lngua e gritava: V! V!, ultrapassou a carroa de Popaul, desviou-se da carroa de Poulaille. Ests a fazer uma corrida?, perguntou Poulaille. Chapin no respondeu e Poulaille gritou atrs dele: Cuidado com os animais, vais estour-los! e Chaplin pensou: Que rebentem! Batiam; Chapin ia frente e os outros seguiam-no e batiam nos seus cavalos por imitao; batiam, Mathieu levantara-se, esfregava os olhos, batiam; o autocarro derrapou para no ir contra um rabe de bicicleta que transportava uma muulmana gorda de vu; batiam. Chamberlain sobressaltou-se e disse: Quem ? Quem est a bater?, e uma voz respondeu: So sete horas. Excelncia. entrada do quartel havia uma J E A N-P AUL SARTRE cancela de madeira. Uma sentinela guardava-a. Chapin puxou as rdeas e berrou: C'os diabos! Ena, disse a sentinela, de onde que voc vem com essa pressa? Vamos, levanta essa cancela, disse Chapin. No tenho ordens, disse a sentinela. J te disse para levantares isso. Um sargento saiu do posto de guarda. Todas as carroas tinham parado; ele observou-as por um instante e depois assobiou: Que que vocs vm aqui fazer?, perguntou. Estamos mobilizados, disse Chapin, ser que j no precisam de ns? Tens a caderneta?, perguntou o sargento. Chapin passou revista aos bolsos, o sargento olhava para aqueles homens silenciosos, sombrios, orgulhosos, imveis, que pareciam apresentar armas e sentiu-se orgulhoso sem saber porqu. Deu um passo em frente e gritou: E os outros? Todos tm as suas cadernetas? Peguem nelas. Chapin
encontrara a sua. O sargento pegou nela e folheou-a: Pois bem, voc o nmero trs, seu idiota, tem assim tanta pressa? para a prxima vez. Estou-lhe a dizer que estou mobilizado, disse Chapin. Sabe melhor do que eu?, tornou o sargento. Naturalmente que sei, li no cartaz, disse Chapin. Atrs deles, os homens impacientavam-se, Poulaille gritou: Ento, acaba ou no acaba? Leu no cartaz?, perguntou o sargento. Pois olha a o cartaz, l-o se que sabes ler. Chapin largou o chicote, saltou para o cho, aproximou-se da parede. Havia trs cartazes. Dois a cores: Assentai praa no exrcito colonial! e um branco: Chamada imediata de certas categorias de reservistas. Ele leu vagarosamente, a meia voz, meneando a cabea: No foi esse que colaram l na terra! Maublanc, Poulaille, Fraigneau tinham descido das carroas, olharam para o cartaz e disseram: Esse no o PENA SUSPENSA nosso. De onde que vocs vm?, indagou o sargento. De Crevilly, disse Poulaille. No sei, no, disse o sargento, mas tenho a ideia de que h l no posto de Crevilly um bom imbecil! Enfim! Entreguem as vossas cadernetas e vamos ter com o tenente. Na grande Praa de Crevilly, as mulheres cercavam Madame Reboulier, que tanta caridade fazia no lugar, ali estavam a Marie, a Stphanie, a mulher do vendedor de cigarros e a Jeanne Fraigneau. Marie chorava docemente, Madame Reboulier pusera o seu grande chapu preto, falava agitando a sombrinha: No chore, Marie, preciso cerrar os dentes. Sim, cerrar os dentes. O seu marido voltar cheio de citaes no boletim do exrcito e de medalhas. E talvez no seja ele o mais desgraado, ver. Porque, desta vez, todos esto mobilizados, homens e mulheres. Apontou a sombrinha para leste e sentiu-se vinte anos mais nova: Vai ver, vai ver, talvez sejam os civis que ganharo a guerra! Mas Marie assumira o seu ar de estupidez profunda, os soluos sacudiam-lhe os ombros e ela olhava o monumento aos mortos atravs das lgrimas, e conservava um silncio irritante. s ordens, disse o tenente. Apertava o auscultador contra o ouvido e repetia: s ordens. E a voz mole e furiosa no parava: E est a dizer-me que partiram? Meu pobre amigo, belo trabalho! Ah!, no posso deixar de lhe dizer que um golpe capaz de acabar com a sua carreira! O velho Croulard atravessava a praa com as brochas e um rolo branco debaixo do brao. Marie gritou-lhe: O que isso? Madame Reboulier viu com impacincia que nos olhos dela brilhava uma estpida esperana. O velho Croulard ria satisfeito, mostrou o rolo branco e disse: No nada. JEAN-PAUL SARTRE
Foi o tenente que se enganou no cartaz! O tenente desligou o telefone e sentou-se, tinha as pernas moles: Um golpe capaz de liquidar a sua carreira! Levantou-se, foi at janela aberta: no muro em frente, fresquinho, ainda hmido, branco como a neve, o cartaz brilhava: Mobilizao geral. A clera subiu-lhe garganta, pensava: Disse--Ihe para tirar aquele antes de todos os outros, mas o desgraado vai deix-lo para o fim. Subitamente, saltou pela janela, correu para o cartaz e ps-se a rasg-lo. Crou-lard mergulhou a brocha na cola, Madame Reboulier olhava-o aborrecida, o tenente raspava, raspava, tinha bolinhas de papel nas unhas; Blomart e Cormier tinham ficado no quartel; os demais haviam voltado aos seus cavalos e entreolhavam-se hesitantes; tinham vontade de rir e de se zangarem, sentiam-se vazios como depois da feira. Chapin aproximou-se dos seus bois e acariciou-os. Tinham o focinho e o peito cheios de baba, pensou tristemente: Se soubesse, no os teria castigado tanto. Que vamos fazer?, perguntou Poulaille atrs dele. No podemos voltar j, disse Chapin, preciso deixar que os animais descansem. Fraigneau olhava para o quartel e enchia-se de recordaes, deu uma cotovelada em Chapin, rindo manhosamente: Se a gente fosse at l? At l onde, homem?, indagou Chapin. Ora, ao bordel!, disse Fraigneau. Cercaram-no todos, dando-lhe pancadinhas nas costas, riam e diziam: Fraigneau danado! Tem sempre boas ideias! O prprio Chapin desanuviou-se: Eu sei onde , pessoal, subam para as carroas que eu vou frente! Oito horas e trinta. Um esquiador girava em volta do trampolim, puxado por um barco; de quando em quando, Mathieu ouvia o roncar do motor e em seguida o barco PENA SUSPENSA afastava-se, o esquiador transformava-se num ponto escuro e no se ouvia mais nada. O mar, raso, duro e branco, parecia uma pista de patinagem deserta. Dentro em pouco, tornar-se-ia azulado, pr-se-ia a marulhar, far-se-ia lquido e profundo e seria o mar de todo o mundo, cheio de gritos, manchado de cabecinhas pretas. Mathieu atravessou o terrao, seguiu durante algum tempo pelo passeio. Os cafs estavam ainda fechados, dois automveis passaram. Sara sem objectivo preciso: para comprar o jornal, para respirar o cheiro forte dos sargaos e eucaliptos que se arrastava pelo porto e para fazer horas. Odette dormia ainda, Jacques trabalhava at s dez horas. Voltou para uma rua comercial que ia at estao, cruzou-se com duas jovens inglesas que riam; quatro pessoas tinham-se reunido em volta de um cartaz. Mathieu aproximou-se: sempre o faria passar mais um momento. Um homenzinho barbudo meneava a cabea. Mathieu leu:
Por ordem do ministro da Defesa Nacional e da Guerra e do ministro da Fora Area, os oficiais, sargentos e soldados da reserva, portadores de uma ordem ou caderneta de mobilizao de cor branca, trazendo carimbado o nmero dois, devero pr-se a caminho imediatamente, sem demora, sem aguardar notificao individual. Dirigir-se-o ao local de convocao indicado na sua caderneta ou ordem de mobilizao, nas condies determinadas por este documento. Sbado, 24 de Setembro de 1938, nove horas. O ministro da Defesa Nacional, da Guerra e da Fora Area. Ta, ta, ta, ta, murmurou o homenzinho com um ar de censura. Mathieu sorriu-lhe e releu com ateno: era J E A N-P AUL SARTRE um daqueles documentos de que se devia tomar conhecimento, e que h algum tempo enchiam os jornais sob o ttulo Declarao do Foreign Office ou Comunicao do Quai d'Orsay. Era sempre necessrio l-los duas vezes para entender. Mathieu leu: Dirigir-se-o ao local de convocao indicado, e pensou: Mas eu tenho a ordem n. 2! Subitamente, o cartaz comeou a vis-lo, era como se tivessem escrito o seu nome na parede, entre insultos e ameaas. Mobilizado: estava ali, na parede talvez j se pudesse ler isso tambm no seu rosto. Corou e afastou-se rapidamente. Ordem n. 2. Pronto. Comeo a ficar tonto. Odette ia olh-lo com uma emoo contida. Jacques assumiria o seu ar de domingo e dir-lhe-ia: Meu velho, no tenho nada a dizer-te. Mas Mathieu sentia-se modesto e no tinha vontade de entontecer. Virou esquerda, na primeira rua, e apertou o passo: na calada da direita havia outro pequeno grupo zumbindo diante de um cartaz. Na Frana inteira. Aos pares. Aos magotes. Diante de milhares de cartazes. E em cada grupo h pelo menos um tipo que apalpa a sua caderneta militar atravs do tecido do casaco, e se sente tonto. Rua do Correio. Dois cartazes, dois agrupamentos. Falava-se ainda deles. Enveredou por uma viela comprida e sombria. Pelo menos aquela, tinha a certeza, teria sido poupada plos coladores de cartazes. Estava s, podia pensar em si. Pensou: Pronto, chegou a hora! Sim, aquele dia, redondo e cheio, em que devia morrer de velhice, serenamente, sem sair do seu lugar, alongava-se subitamente, como uma flecha, lanava-se para dentro da noite fragorosamente, deslizava na sombra, no fumo, nos campos desertos, atravs de um tmulo de eixos e rodas, Mathieu escorregava por ele PENA SUSPENSA como num tobog e s pararia ao fim da noite, em Paris, no cais da estao de Lio. J falsas luzes se infiltravam no dia
claro: as futuras luzes das gares nocturnas. J uma vaga dor flutuava no fundo dos seus olhos: a futura dor seca das insnias. Mas ele no se aborrecia: nem com isso, nem com outra coisa... no se divertia, to-pouco; fosse como fosse, era anedtico, pitoresco. Vou ter de perguntar a hora do comboio para Marselha, pensou. A viela reconduziu-o insensivelmente Corniche. Desembocou, de repente, em plena luz e sentou-se na esplanada de uma cervejaria que acabava de abrir. Um caf e o horrio dos comboios. Um senhor de bigodes grisalhos veio sentar-se perto dele. Uma mulher madura acompanhava-o. O senhor abriu o Eclaireur de Nice, a mulher voltou-se para o mar. Mathieu fixou-a por um instante e ficou triste. Pensou: Ser preciso pr os meus negcios em ordem. Instalar Ivich em Paris no meu apartamento, dar-lhe uma procurao para que ela possa receber o meu ordenado. A cabea do senhor reapareceu por cima do jornal: E a guerra, disse ele. A mulher suspirou sem responder; Mathieu olhou para as faces brilhantes e polidas do senhor, para o seu casaco de tweed, para a camisa de riscas violeta e pensou: E a guerra. A guerra. Alguma coisa que ainda se ligava a ele s por um fio desprendeu-se, contraiu-se e caiu para trs. Era a sua vida; ela estava ali morta. Morta. Ele voltou-se e olhou para ela. Viguier, morto, tinha as mos estendidas sobre o lenol branco, uma mosca andava-lhe na testa, e o seu futuro alongava-se a perder de vista, ilimitado, fixo como o seu olhar fixo sob as plpebras mortas. O seu futuro: a paz, o futuro do mundo, o futuro de Mathieu. O futuro de J E A N-P AUL SARTRE Mathieu estava ali, a descoberto, fixo e vtreo, fora de jogo. Mathieu sentara-se a uma mesa de caf, bebia, situava-se alm do seu futuro olhava-o e pensava: A paz. Madame Verchoux mostrou Viguier enfermeira, estava com torcicolo, os seus olhos ardiam, disse: Era uni bom homem. E procurou uma palavra, uma palavra mais cerimoniosa para o qualificar; era a sua parente mais prxima e cabia-lhe concluir. A palavra calmo veio-lhe boca, mas no era bastante concludente. Disse: Era um homem pacfico e calou-se. Mathieu pensou: Tive um futuro pacfico. Um futuro pacfico: amara, odiara, sofrera, e o futuro estava ali, sua volta, acima da sua cabea, por toda a parte, como um oceano, e cada um dos seus acessos de raiva, cada uma das suas desgraas, cada um dos seus sorrisos, alimentavam-se desse futuro invisvel e presente. Um sorriso um simples sorriso, era uma hipoteca sobre a paz do dia seguinte, do ano seguinte, do sculo; seno eu nunca teria ousado sorrir. Anos e anos de paz futura haviam-se depositado previamente nas coisas e tinham-nas
amadurecido, dourado; pegar no relgio, num trinco da porta, na mo de uma mulher, era tomar a paz nas mos. O ps-guerra era um comeo. O comeo da paz. Vivia-se nele sem pressa como se vive uma manh. O jazz era um comeo, e o cinema, de que tanto gostei, era um comeo. E o surrealismo. E o comunismo. Eu hesitava, escolhia demoradamente, tinha tempo. O tempo, a paz, eram a mesma coisa. Agora esse futuro est aqui, a meus ps, morto. Era um falso futuro, uma impostura. Recordava os vinte anos serenos que vivera, uma plancie marinha, e via-os agora como tinham sido: um nmero finito de dias, comprimidos entre dois muros altos, sem esperana, l PENA SUSPENSA um perodo catalogado, com um comeo e um fim, que figuraria nos manuais de Histria sob a denominao de entre duas guerras. Vinte anos: 1918-1938. Vinte anos apenas! Ontem, esse tempo parecia mais curto e mais longo, simultaneamente: de resto, ningum tinha pensado em contar, porquanto no estava acabado. Agora est acabado. Era um falso futuro. Tudo aquilo que ns vivemos h vinte anos, vivemo-lo em falso. ramos aplicados e srios, procurvamos compreender e eis o que nos aconteceu: aqueles belos dias tinham um futuro secreto e negro, enganavam-nos, a guerra de hoje, a nossa Grande Guerra, furtava-no-los s ocultas. ramos atraioados sem o sabermos. Agora a guerra est a, a minha vida morreu. Era isso, a minha vida: preciso reconsiderar tudo, desde o incio. Procurou uma lembrana, qualquer uma, a que primeiro aparecesse, aquela tarde em Prouse, sentado na esplanada, comendo um sorvete de damasco e olhando ao longe, na poeira, a colina serena de Assise. Pois bem, era a guerra que deveria ter lido no rubor do crepsculo. Se eu tivesse podido entrever uma promessa de tormenta e de sangue nos ruivos raios de luz que douravam a mesa e o parapeito, aquele momento pertencer-me-ia agora, ao menos isso estaria salvo. Mas eu estava confiante, o sorvete dissolvia-se na minha boca e eu pensava: "Velhos ouros, amor, glria mstica." E perdi tudo. O empregado passava, Mathieu chamou-o, pagou e levantou-se sem saber bem o que fazia. Deixava a vida atrs de si, eu mudei. Atravessou a rua e foi debruar-se na balaustrada em frente do mar. Sentia-se sinistro e leve; estava nu, tinham-lhe roubado tudo. No possuo mais nada, nem o meu passado. Mas era um falso passado e no o lamento. Pensou: DespoJ E A N-P AUL SARTRE j aram-me da minha vida. Era uma vida medocre e malograda, Marcelle, Ivich, Daniel, uma vida miservel, mas isso pouco me importa agora, posto que est morta. A partir desta manh,
desde que colaram aqueles cartazes brancos nas paredes, todas as vidas so malogradas, todas esto mortas. Se eu tivesse feito o que queria, se ao menos uma vez, uma nica vez, eu tivesse podido ser livre, nem por isso a minha vida teria deixado de ser um engano, pois eu teria sido livre para a paz, nesta paz enganadora, e agora estaria aqui na mesma, diante do mar, apoiado balaustrada, com todos esses cartazes brancos colados atrs de mim: todos esses cartazes que falam de mim, em todas as paredes de Frana, e que dizem que a minha vida morreu e que jamais houve paz: no valia a pena ter-me esforado tanto, ter tido tantos remorsos. O mar, a praia, as tendas, a balaustrada: frios e exangues. Perdera o seu antigo futuro e ainda no lhe haviam dado outro: flutuavam no presente. Mathieu flutuava. Um sobrevivente, nu numa praia, entre trapos encharcados, caixotes rebentados, objectos sem uso definido que o mar devolveu. Um moo moreno saiu de uma tenda, parecia calmo e vazio, olhou o mar, hesitante: um sobrevivente, somos todos sobreviventes, os oficiais alemes sorriam e cumprimentavam, o motor roncava, o hlice girava, Chamberlain cumprimentou, sorriu, deu meia volta e colocou o p na escada. O exlio da Babilnia, a maldio contra Israel e o Muro das Lamentaes, nada mudara para o povo judeu desde os tempos em que os seus filhos passavam acorrentados entre as torres vermelhas da Assria, sob o olhar cruel dos conquistadores de barba encaracolada. Schalom camil PENA SUSPENSA nhava no meio desses homens de cabelo preto, de anis bem torneados e cruis. Pensava que nada mudara. Schalom pensava em Georges Lvy. Pensava: J no temos o sentido da solidariedade entre os judeus, eis a verdadeira maldio divina!, e sentia-se pattico, mas no de muito mau humor, porque vira aqueles cartazes brancos nas paredes. Pedira um auxlio a Georges Lvy, mas Georges Lvy era um homem duro, um judeu alsaciano; recusara. No recusara exactamente, gemera e torcera os braos, falara da me, da crise. Mas toda a gente sabia que ele detestava a sua velha me e que no havia crise no comrcio de peles. Schalom pusera-se, ele tambm, a gemer e erguera os braos aflitos para o cu, falara do novo xodo e dos pobres judeus emigrados que tinham sofrido por todos os outros e na sua carne. Lvy era um homem duro, um mau rico, gemera mais forte, empurrando Schalom para a porta com o ventre proeminente, e soprando-lhe no nariz. Schalom gemia e recusava, com os braos erguidos, e tinha vontade de sorrir, imaginando como se estariam a divertir com o espectculo os
empregados do outro lado da porta. Na esquina da Rua Quatre-Septembre havia uma rica charcutaria coberta de espelhos. Schalom deteve-se maravilhado, olhava os chourios, os pastis, os rosrios de salsichas envernizadas, as mortadelas barrigudas, os salames enrugados, os salsiches com as suas pontinhas rosadas, e pensava em Viena. Evitava, na medida do possvel, comer carne de porco, mas os pobres emigrados so obrigados a alimentarem-se com o que encontram. Quando saiu da charcutaria, trazia, pendurado num dedo por um fio cor--de-rosa, um pacotinho to branco, to delicado, que se diria de doces. Estava escandalizado. Pensava: Todos os J E A N-P AUL SARTRE franceses so maus ricos. O povo mais rico de toda a Europa. Schalom seguiu pela Rua Quatre-Septembre, invocando a maldio divina contra os maus ricos e, como se o cu o houvesse entendido, viu, com o canto do olho, um grupo de franceses, imveis e mudos diante de um cartaz branco. Passou perto deles, baixando o olhar e apertando os lbios, porque no convinha naquele momento que uni pobre judeu fosse apanhado a sorrir nas ruas de Paris. Birnenschatz, lapidrio: era ali. Hesitou um instante, antes de atravessar o porto, e meteu o pacote de mortadela na pasta. Os motores trabalhavam, roncavam, o soalho tremia, o ar cheirava a ter e gasolina, o autocarro afundava-se nas chamas, oh!, Pierre, ento tu s um covarde, o avio nadava no sol, Daniel martelava o cartaz com a ponta da bengala; dizia: Estou tranquilo, no seremos to tolos a ponto de irmos lutar sem avies. O avio passou por cima das rvores, raspando-as quase, o Dr. Schmitt levantou a cabea, o motor roncava, ele viu o avio entre as folhas, um brilho de mica no cu, pensou: Boa viagem! e sorriu; os rabes, vencidos, resignados, lvidos, jaziam amontoados ao fundo do carro, um negrinho saiu da choupana, agitou as mos, ficou a contemplar o autocarro que se afastava: Viram o judeuzinho? Comprou-me meio quilo de mortadela, e eu que pensava que eles no comiam porco! O negrinho e o intrprete voltavam a passos lentos, a cabea ainda cheia do roncar dos motores. Era uma mesa redonda de ferro, pintada de verde, com um buraco no meio para o cabo do guarda-sol, estava manchada de castanho como uma pra, e sobre ela o jornal L Petit Niois, nem sequer aberto. Mathieu tossiu, ela estava sentada junto da mesa, tomara o caf no jardim, como que PENA SUSPENSA eu lhe vou dizer? Nada de histrias, principalmente nada de histrias, se ela pudesse no dizer nada, no, calar-se ainda era muito, se ela pudesse levantar-se e dizer: Pois bem, vou preparar umas sanduches para a viagem. Simplesmente. Ela
estava de roupo e lia a correspondncia. Jacques ainda no desceu, disse ela, trabalhou esta noite at tarde. As suas primeiras palavras eram para falar de Jacques, depois no se referia mais a ele. Mathieu sorriu e tossiu. Sente-se, disse ela, h duas cartas para si. Ele pegou nelas e perguntou: Leu o jornal? Ainda no, Mariette trouxe-o com a correspondncia e no me decidi ainda a abri-lo. Nunca apreciei muito os jornais, mas agora detesto-os. Mathieu sorria e aprovava com a cabea, mas os seus dentes continuavam cerrados. Entre eles tudo voltara a ser como dantes. Bastava um cartaz colado a uma parede e tudo voltara a ser como dantes: ela era novamente a mulher de Jacques, ele no achava mais nada para lhe dizer. Presunto, pensou ele, eis o que eu gostaria de comer na viagem. Leia, leia as suas cartas disse Odette com vivacidade. No se incomode comigo; tenho de subir para me ir vestir. Mathieu pegou na primeira carta, com o selo de Biarritz; sempre eram alguns minutos ganhos. Quando ela se levantasse, ele dir-lhe-ia: A propsito, vou partir... No, pareceria -vontade de mais. Estou de partida... Era melhor assim. Reconheceu a letra de Boris e pensou com remorso: H mais de um ms que no lhe escrevo. O sobrescrito continha um carto-postal. Boris, escrevera J E A N-P AUL SARTRE nele o seu prprio endereo e colara um selo esquerda. Do lado direito traara algumas linhas: Meu caro Boris, X7 bem l Vou l mal Eis a razo do meu silncio: irritao legtima, ilegtima, m vontade, converso sbita, loucura, doena, preguia, ignomnia pura e simples 2. Escrever-lhe-ei uma longa carta daqui a... dias. Queira aceitar as minhas desculpas e a expresso da minha amizade arrependida. Assinatura: Est-se a rir sozinho. disse Odette. Boris disse Mathieu. Est em Biarritz com Lola. Estendeu-lhe a carta e ela ps-se tambm a rir: Esse encantador. Que idade tem? Tem idade para... Dezanove anos disse Mathieu. Depender da durao da guerra. Odette olhou-o com ternura. Os seus alunos fazem o que querem de si! Tornava-se cada vez mais difcil falar-lhe. Mathieu abriu a
outra carta. Era de Gomez, o marido de Sarah. Mathieu no o tornara a ver desde a sua partida para Espanha. Era coronel no exrcito. 1 Risque a palavra, intil. 2 Idem. PENA SUSPENSA Meu caro Mathieu, Vim a Marselha em misso e aqui me encontrei com Sarah e o menino. Volto tera, mas no sem t-lo visto. Espere-me domingo no comboio das quatro e reserve-me um quarto em qualquer lugar. Vou ver se consigo dar um pulo a Juan-les-Pins. Temos muito que conversar. Do amigo Gomez. Mathieu ps a carta no bolso, aborrecido. Amanh sbado, j terei embarcado. Tinha vontade de tornar a ver Gomez; naquele momento, era o nico amigo que desejaria ver: ele sabia um pouco o que era a guerra. Poderia talvez encontr-lo em Marselha, entre dois comboios... Tirou a carta do bolso, toda amachucada: Gomez no dera o endereo. Mathieu encolheu os ombros, irritado, e lanou a carta para a mesa; Gomez continuava o mesmo, embora fosse coronel: imperioso e impotente. Odette decidiu-se a abrir o jornal, sustinha-o no ar com os braos estendidos e lia-o: Oh! disse ela. Voltou-se para Mathieu e perguntou-lhe como se no desse grande importncia ao caso: No tem o nmero dois? Mathieu sentiu que corava, piscou os olhos: Tenho respondeu, confuso. Odette olhava-o com dureza, como se fosse culpado. Ele acrescentou precipitadamente: Mas no vou partir hoje, fico ainda por quarenta e oito horas: tenho um amigo que vem ver-me. Sentiu-se aliviado com a resoluo: afastava as efuses por dois dias: E longe de Juan-les-Pins a Nancy, no me J E A N-P AUL SARTRE iro chatear por causa de algumas horas de atraso. Mas o olhar de Odette no se abrandava e ele debatia-se, repetindo: Ainda fico quarenta e oito horas, ainda fico quarenta e oito horas, enquanto Ella Birnenschatz pendurava os seus braos magros e morenos no pescoo do pai. s um amor, pap! Pois bem, vou deix-lo. Preciso de me ir vestir, mas penso que Jacques vai j descer para lhe fazer companhia. Saiu, apertando o roupo nas ancas redondas e finas, Mathieu pensou: Ela portou-se bem; quanto a isto, portou-se bem, e
sentiu que lhe era grato. Que linda menina, que menina danada, repeliu-a fingindo-se aborrecido, Weiss encostara-se porta, tinha um ar endomingado: Molhas-me todo disse Birnenschatz, enxugando a cara. E enches-me de bton. Ela riu-se: Ests com medo do que iro pensar as dactilgrafas? Toma! disse, beijando-lhe o nariz Toma, toma! E ele sentiu os lbios quentes na sua cabea. Segurou-a plos ombros e afastou-se quanto pde. Ela ria e debatia-se, ele pensava: Einda menina, linda menina. A me era gorda e mole, com grandes olhos medrosos e resignados que o punham pouco vontade, mas Ella parecia-se com ele e no fundo no devia nada a ningum, devia a ela prpria e a Paris: Digo-lhes sempre: a raa, o que a raa, ento vocs tomariam Ella por judia se a encontrassem na rua? Fina como uma parisiense, com a tez quente das mulheres do Sul e um rostinho atento e apaixonado, um rostinho equilibrado, repousante, sem tara, sem PENA SUSPENSA raa, sem destino, um autntico rostinho francs. Largou-a, pegou no estojo que estava na secretria e deu-lho: Toma. E acrescentou, enquanto ela olhava para as prolas: No ano que vem, sero duas maiores, mas sero as ltimas: o colar est terminado. Ela ainda o quis beijar, mas ele disse-lhe: Vai, vai, feliz aniversrio. Vai depressa, chegars atrasada aula. Ela partiu, sorrindo para Weiss; uma moa fechou a porta, atravessou o escritrio, saiu, e Schalom, sentado beira da cadeira, o chapu sobre os joelhos, pensou: Linda judiazinha; tinha uma cabecinha de macaco, lanada para a frente, que caberia na palma da mo, com grandes olhos mopes, belssimos, devia ser a filha de Birnenschatz. Schalom levantou-se, fez uma ligeira saudao, que ela no percebeu. Tornou a sentar-se, pensando: Parece inteligente de mais; ns somos assim, ns, as nossas expresses esto gravadas a fogo nos nossos rostos; dir-se-ia que suportamos um martrio. Birnenschatz pensava nas prolas, dizia com os seus botes: No um mau investimento. Valiam cem mil francos; pensou que Ella as aceitaria sem demonstraes exageradas de alegria, mas sem indiferena: conhecia o valor das coisas, mas achava natural ter dinheiro, receber belos presentes, ser feliz. Meu Deus, ainda que eu no tivesse feito outra coisa, com a mulher que tenho e com os velhos de Cracvia atrs de mim, se eu s tiver realizado isso, essa menina, filha de judeus polacos, que no se atormenta toa, que no se diverte com a prpria desgraa, que acha natural ser feliz, creio que no terei perdido o meu tempo. Voltou-se para Weiss:
Sabes para onde vai ela? Aposto que no adivinhas. Fazer um curso na Sorbona! um fenmeno. J E A N-P AUL SARTRE Weiss sorriu vagamente, sem perder o seu ar solene. Patro, vim despedir me. Birnenschatz olhou-o por cima dos culos. Vais-te embora? Weiss confirmou com a cabea e Birnenschatz olhou-o com fingida severidade: J esperava isso! s suficientemente trouxa para arranjares um nmero dois, no ? De facto disse Weiss a sorrir , sou mesmo uma trouxa. Pois bem! diz Birnenschatz cruzando os braos , metes-me em bons lenis! Que vou eu fazer sem ti? Repetiu distraidamente: Que vou eu fazer sem ti? Que vou eu fazer sem ti? Procurava lembrar-se de quantos filhos tinha Weiss. Weiss olhava-o de lado, inquieto: O senhor h-de encontrar um substituto. Um substituto! J terei de pagar-te para no fazeres nada, queres ainda que arranje outro! O teu lugar espera-te, meu caro. Weiss estava comovido, esfregava o nariz, meio vesgo, era horrivelmente feio. Patro... Birnenschatz interrompeu-o: achava obscenos os agradecimentos; e depois, no tinha l muita simpatia por Weiss, pois a estava um que trazia o destino na cara, com os seus olhos furtivos e o grande lbio inferior trmulo de bondade e amargura. Bom, est bem. No deixas a casa, represent--la-s junto dos oficiais. s tenente, no s? Sou capito disse Weiss. PENA SUSPENSA Belo capito..., pensou Birnenschatz. Weiss tinha um ar feliz, as suas orelhas estavam roxas. Belo capito... e isso a guerra, a hierarquia militar. Que disparate! Hum! No um disparate? Sem dvida disse Weiss. Mas eu queria dizer: para ns, no assim to idiota. Para ns? atalhou Birnenschatz espantado. Para ns quem? Weiss baixou os olhos: Para ns, judeus. Depois do que eles fizeram contra os judeus da Alemanha, temos motivos para lutar. Birnenschatz deu alguns passos, excitado:
Que histria essa de ns, judeus? No sei o que isso. Eu sou francs. Tu sentes-te judeu? O meu primo de Gratz est em minha casa desde tera-feira disse Weiss. Mostrou-me os braos. Queimaram-nos com charutos desde os cotovelos s axilas. Birnenschatz parou subitamente, agarrou no encosto da cadeira com as suas mos fortes e um dio subiu-lhe aos olhos: Os que fizeram isso disse ele , os que fizeram isso... Weiss sorria. Birnenschatz acalmou-se: No por o teu primo ser judeu, Weiss. porque um homem. No suporto que se maltrate um homem. Mas o que um judeu? um homem que os outros homens consideram judeu. Olha para Ella. Tom-la-ias por isso, se no a conhecesses? J E A N-P AUL SARTRE Weiss no parecia convencido. Birnenschatz adiantou-se, tocou-lhe no peito com o indicador: Escuta, meu caro Weiss, eis o que te quero dizer: sa da Polnia em 1910, vim para Frana. Receberam-me bem, dei-me bem aqui, disse para mim mesmo: bem, agora a Frana que o meu pas. Em 1914 houve a guerra. Bem (disse), fao a guerra porque este o meu pas. E eu sei o que a guerra, estive no Chemin ds Dames. Mas agora, agora eu posso dizer: sou francs. No judeu, no judeu francs: francs! Os judeus de Berlim e de Viena, os dos campos de concentrao, tenho pena deles e d-me dio pensar que martirizam esses homens. Mas, escuta bem, tudo o que puder fazer para impedir que um francs, um s, se mate por eles, f-lo-ei. Sinto-me mais prximo do primeiro tipo que encontrar a na rua do que dos meus tios de Lenz ou dos meus sobrinhos de Cracvia. As histrias dos judeus alemes no so da nossa conta. Weiss tinha um ar sonso e teimoso. Sorriu, lamentavelmente: Mesmo que fosse verdade, patro, o senhor no deveria diz-lo. preciso que os que partem encontrem motivos para o fazer. Birnenschatz sentiu o calor da confuso subir-lhe ao rosto. Pobre diabo, pensou com remorso. Tens razo disse bruscamente. No passo de um velho emplastro e nada tenho a dizer desta guerra, pois no vou participar nela. Quando partes? No comboio das dezasseis e trinta. No comboio de hoje? E ento? Que ests aqui a fazer? Vai depressa ver a tua mulher. Precisas de dinheiro? No, por enquanto. Obrigado. PENA SUSPENSA Vai-te embora. Manda-me a tua mulher, combinarei tudo com ela. Vai, vai, adeus!
Abriu a porta e empurrou-o para fora. Weiss curvava-se e murmurava agradecimentos ininteligveis. Birnens-chatz apercebeu-se, por cima dos ombros do empregado, de um homem sentado no hall. Reconheceu Schalom e franziu as sobrancelhas: no gostava que os solicitadores esperassem. Entre. H muito tempo que est espera? H uma meia horinha apenas disse Schalom com ar de resignao. Mas o que meia hora? O senhor anda to ocupado. Eu tenho tempo. Que fao eu de manh noite? Espero. A vida no exlio no passa de uma espera, o senhor sabe. Entre disse Birnenschatz, com vivacidade. Deviam ter-me avisado. Schalom entrou. Sorria e curvava-se. Birnenschatz entrou atrs e fechou a porta. Reconhecia perfeitamente Schalom: Ele foi qualquer coisa no movimento sindicalista bvaro. Schalom vinha de vez em quando, arrancava-lhe dois ou trs mil francos e desaparecia durante algumas semanas. Um charuto? No fumo disse Schalom, com uma pequena reverncia. Birnenschatz pegou num charuto, virou-o distraidamente entre os dedos e recolocou-o no estojo. Ento? As coisas arranjaram-se? Schalom procurava uma cadeira. Sente-se! Sente-se disse Birnenschatz com afabilidade. No. Schalom no desejava sentar-se. Aproximou-se da cadeira, colocou a pasta no assento para ficar mais J E A N-P AUL SARTRE vontade e, voltando-se para Birnenschatz, emitiu um longo gemido melodioso. Ah! nada se arranja. No bom que um homem viva na terra dos outros, no aceitam de bom grado; censuram-lhe o po que come. essa desconfiana francesa! Quando voltar para Viena, eis a imagem que guardarei da Frana: uma escadaria escura que subimos penosamente, um boto que se aperta, uma porta que se abre: Que deseja, e logo se fecha. A polcia das casas de aluguer de quartos, a prefeitura, a bicha porta da esquadra. No fundo, natural, estamos na terra deles. S que poderiam deixar-nos trabalhar; eu, por mini, no quero outra coisa, quero ser til. Mas, para encontrar emprego, preciso ter a carteira profissional, preciso trabalhar em algum lugar. Com a melhor boa vontade do mundo, no consigo ganhar a vida. E talvez o que eu suporto menos facilmente: ser um fardo para os outros. Sobretudo, quando no-lo fazem sentir to cruelmente. E quanto tempo perdido! Comeara a escrever as minhas memrias isso poderia dar-me algum dinheiro. Mas so tantas as solicitaes a fazer o dia inteiro que tive de abandonar tudo.
Era minsculo, vivo, agitado, pousara a pasta na cadeira, e as suas mos livres esvoaavam em torno das orelhas arroxeadas: Que cara de judeu! Birnenschatz aproximou-se displicentemente do espelho e lanou uma rpida olhadela: um metro e oitenta, nariz quebrado, cara de pugilista americano sob os culos pesados: no, no somos da mesma espcie. Mas no ousava olhar para Schalom, sentia-se comprometido. Como seria bom se este tipo sasse j! Mas no devia esperar por isso. Era unicamente pela durao da visita e pela animao da conversa que PENA SUSPENSA Schalom se distinguia a seus prprios olhos de um simples mendigo. Preciso de conversar, pensou Birnenschatz. Shalom tinha direito a isso. Tinha direito a trs mil francos e a um quarto de hora de conversa. Birnenschatz sentou-se beira da mesa. A sua mo direita, que enfiara no bolso do casaco, brincava com o estojo de charutos. Os franceses so homens duros disse Schalom. A sua voz ampliava-se e diminua profeticamente, mas uma chama divertida tremia nos seus olhos desbotados. Homens duros. Na opinio deles, um estrangeiro , por princpio, suspeito, quando no criminoso. Ele fala comigo como se eu no fosse francs. Naturalmente: eu sou judeu, judeu polaco, entrado em Frana a 19 de Julho de 1910, ningum se recorda disso, aqui, mas ele no esqueceu. Um judeu que teve sorte. Voltou-se para Schalom e fixou-o irritado. Schalom baixava ligeiramente a cabea, apresentando-lhe a fronte, por deferncia, mas olhava-o de frente, sob as sobrancelhas arqueadas Olhava-o, e os seus grandes olhos desbotados viam-no judeu. Dois judeus, tranquilos, ss, num escritrio da Rua Quatre-Septembre, dois judeus, dois cmplices; e volta deles, nas ruas, nas outras casas, franceses, somente franceses. Dois judeus, o grandalho, que enriqueceu, e o pequeno, o magrizela mal alimentado que no teve sorte. Laurel e Hardy. So homens duros! disse Schalom. Homens impiedosos! Birnenschatz encolheu os ombros: preciso colocar-se no lugar... deles, disse secamente, no ousara dizer no nosso lugar. Sabe quantos estrangeiros se instalaram em Frana desde 1934? J E A N-P AUL SARTRE Sei disse Schalom. Sei. E acho que uma grande honra para a Frana. Mas que faz ela para merec-la? Veja s: os jovens que percorrem o Quartier Latin, se algum se parece com um judeu, caem-lhe em cima aos socos. O ministro Blum prejudicou-nos muito observou
Birnenschatz. Dissera nos, aceitaria a cumplicidade daquele pequeno meteco. Ns. Ns, os Judeus. Mas fora por caridade. Os olhos de Schalom fixavam-no com uma insistncia respeitosa. Schalom era magro e mido, haviam-no maltratado e expulso da Baviera, agora estava ali, devia dormir num hotel srdido e passar os dias no caf. E o primo de Weiss, tinham-no queimado com charutos. Birnenschatz olhava Schalom e sentia-se viscoso. No era simpatia que nutria por ele, oh!, no: era... era... Ela olhava-o e pensava: E um homem de pressa. Eles so marcados e atravs deles que as guerras chegam. Mas ela sentia que o seu velho amor no morrera. Birnenschatz apalpava a carteira. Enfim disse com benevolncia , esperemos que tudo isso no dure muito. Schalom mordeu os lbios e ergueu a cabea com vivacidade. Fiz o gesto cedo de mais, pensou Birnenschatz. Um homem de pressa. Ele possui as mulheres, ele mata os homens. Pensa que um forte. Mas no verdade, ele marcado, nada mais. Depende dos Franceses disse Schalom. Se os Franceses recobrarem o sentido da sua misso histrica... PENA SUSPENSA Que misso? indagou friamente Birnenschatz. Os olhos de Schalom brilharam de dio: A Alemanha provoca-os e insulta-os de todas as maneiras disse com voz dura e aguda. Que esperam eles? Pensam, porventura, desarmar a clera de Hitler? Cada nova demisso na Frana prolonga por dez anos o regime nazi. E durante esse tempo, c estamos ns, as vtimas, a esperar com os punhos cerrados. Hoje vi cartazes brancos nas paredes e recobrei alguma esperana. Mas, ainda ontem, eu pensava: Os Franceses j no tm sangue nas veias e eu morrerei no exlio. Dois judeus num escritrio da Rua Quatre-Septembre. O ponto de vista dos Judeus acerca dos acontecimentos internacionais. Je Suis partout escrever amanh: So os Judeus que empurram a Frana para a guerra. Birnenschatz tirou os culos, limpou-os com o leno: estava louco de raiva. Perguntou suavemente: E se houver guerra, vai faz-la? Muitos emigrados se alistaro, tenho a certeza. Mas eu, olhe s acrescentou, mostrando o corpo raqutico , quem me aceitaria? Ento, trate de nos deixar em paz! berrou Birnenschatz E faa-nos o favor de se ir embora! Porque que nos vem aqui chatear? Eu sou francs, no sou judeu alemo e no me interessam os judeus alemes. V fazer a sua guerra para outro
lado! Schalom observou-o por um instante com estupor, depois recobrou o sorriso, estendeu a mo, pegou na pasta e aproximou-se da porta, recuando. Birnenschatz tirou a carteira do bolso: Espere. J E A N-P AUL SARTRE Schalam alcanara a porta. No preciso de nada. Peo, por vezes, auxlio aos judeus. Mas o senhor tem razo, o senhor no judeu, enganei-me. Saiu e Birnenschatz ficou a olhar para a porta durante muito tempo, sem um gesto. um homem duro, um homem de pressa, eles tm uma estrela, para eles tudo est bem: mas a guerra acontece por causa deles; e a morte, e a desgraa. So a chama e o incndio, fazem mal, ele fez-me mal, trago-o como uma esqurola de madeira numa unha, como um carvo em brasa sobre as plpebras, como um espinho no corao. E o que ele pensa de mini. No precisava de lhe perguntar, conhecia-a, se pudesse entrar naquela cabea negra e encrespada, encontraria a qualquer momento essa ideia fixa e inexorvel, uma dura, sua maneira, no esquece nunca. Debruava-se, em pijama, sobre a Praa Glu, estava ainda frio, o cu estava azul-plido, cinzento no horizonte, era a hora em que a gua escorre plos ladrilhos e sobre o balco de madeira dos peixeiros, o ar cheirava a manh e a partida. A manh, o mar alto, e, l longe, a vida sem remorsos, os fuminhos redondos das granadas, sobre o solo gretado da Catalunha. Mas atrs dele, atrs da janela entreaberta, no quarto cheio de sono e noite, havia aquele pensamento morto que o vigiava, que o julgava, havia o seu remorso. Partiria amanh, abra-los-ia na plataforma da estao, ela voltaria ao hotel com o menino, desceria aos saltos a escadaria monumental; pensaria: ele voltou para Espanha. Ela nunca lhe perdoaria ter partido para Espanha; era um pedao de coisa morta no seu corao. Debruava-se sobre a Praa Glu para adiar o instante de voltar ao quarto: tinha necessidade de gritos, de cantos PENA SUSPENSA amargos, de dores violentas e rpidas, no daquela horrvel doura. A gua escorria pela praa. A gua, os odores molhados da manh, os gritos campestres da manh. Sob os pltanos, a praa estava escorregadia, lquida, branca e ligeira como um peixe no mar. E esta noite um negro tinha cantado, e a noite parecera-lhe pesada e seca, uma noite espanhola. Gomez fechou os olhos, sentiu-se atravessado pelo spero desejo da Espanha e da guerra. Ela no compreende isso. Nem a noite, nem a manh, nem a guerra.
Pan, pan! Pan, pan, pan, pan, pan! gritava Pablo furiosamente. Gomez voltou-se e entrou no quarto. Pablo pusera o capacete, segurava a carabina pelo cano e utilizava-a como se de uma maa de armas se tratasse. Corria pelo quarto do hotel dando golpes terrveis no vcuo, golpes que o faziam perder o equilbrio. Sarah acompanhava-o com o seu olhar morto. E uma chacina! disse Gomez. Mato-os a todos! respondeu Pablo sem se deter. Todos quem? Sarah estava sentada beira da cama, em roupo. Consertava meias. Todos os fascistas disse Pablo. Gomez lanou-se para trs e ps-se a rir: Mata-os! No deixes nem um. Olha que te ests a esquecer daquele l em baixo! Pablo correu na direco indicada por Gomez e chicoteou o ar com a carabina. Pan, pan! Pan, pan, pan. No escapar nem um! Parou e voltou-se para Gomez com um semblante srio e apaixonado, ofegante. J E A N-P AUL SARTRE Oh! Gomez disse Sarah. V s! Como pudeste... Gomez tinha comprado na vspera uma panplia para Pablo. preciso que aprenda a bater-se disse Gomez, acariciando a cabea do menino. Seno, vai ficar um covarde, como os Franceses. Sarah ergueu os olhos para ele e ele viu que a tinha ferido profundamente. No compreendo que se possa chamar isso a quem no quer fazer guerra. H momentos em que preciso querer disse Gomez. Nuncal Em caso algum. No h nada que justifique que eu me veja um dia numa estrada, com a minha casa destruda a meu lado e um filho morto nos braos. Gomez no respondeu. No havia que responder. Sarah tinha razo. Segundo o seu ponto de vista, ela tinha razo. Mas o ponto de vista de Sarah era daqueles que cumpria desprezar por princpio sem o que no se chegaria nunca a nada. Sarah esboou um sorriso amargo: Quando te conheci eras pacifista, Gomez. Porque naquela altura era preciso ser pacifista. O objectivo no mudou, mas os meios para atingi-lo so diferentes. Sarah calou-se, confundida. Tinha a boca entreaberta e o lbio inferior descobria os seus dentes cariados. Pablo fez um movimento com a carabina, gritando:
Espera um pouco, francs porco, francs covarde! Ests a ver? disse Sarah. Pablo! observou Gomez com energia. No batas nos Franceses! Os Franceses no so fascistas. PENA SUSPENSA Os Franceses so covardes gritou Pablo. E ps-se a dar coronhadas nas cortinas, que voaram pesadamente. Sarah no disse nada, mas Gomez teria preferido no ver o olhar que lanou a Pablo. No era um olhar duro: era, antes, um olhar de espanto, hesitante, como se visse o filho pela primeira vez. Largara a meia que consertava e olhava para aquele pequeno estrangeiro, aquele animalzinho sadio que decepava cabeas e amassava crnios, e devia pensar com estupor: Fui eu quem o fez! Gomez teve vergonha. Oito dias, pensou, bastaram oito dias. Gomez, acreditas realmente que vai haver guerra? perguntou Sarah bruscamente. Espero que sim. Espero que Hitler acabar por obrigar os Franceses a lutar. Gomez, sabes o que compreendi ultimamente? Que os homens so maus. Gomez encolheu os ombros: No so bons nem maus. Agem de acordo com os seus interesses. No, no. So maus. No perdia de vista o pequeno Pablo, parecia vaticinar-lhe o destino. Maus e encarniados em fazer o mal acrescentou. Eu no sou mau respondeu Gomez. s sim disse Sarah sem o olhar. Es mau, meu pobre Gomez, s muito mau. E no tens culpa: os outros so infelizes. Mas tu s mau e feliz. Houve um grande silncio. Gomez fixava aquela nuca curta e gorda, aquele corpo sem graa que tivera nos braos todas as noites, e pensava: Ela no tem amizade por mini. Nem ternura. Nem estima. Ela ama-me simplesmente: qual de ns dois o pior? J E A N-P AUL SARTRE Mas, subitamente, voltou a sentir remorsos. Chegara certa noite de Barcelona, feliz, verdade, profundamente feliz. Emprestara-se durante oito dias. Partiria no dia seguinte: No sou bom, pensou. H gua quente? Morna disse Sarah. A torneira da esquerda. Vou fazer a barba. Entrou na casa de banho, deixando a porta bem aberta, e escolheu uma lmina: Depois de me ir embora, a panplia no durar muito. Sarah, sem dvida,
quando voltasse para casa, escond-la-ia no armrio dos remdios, a menos que achasse mais simples esquec-la no hotel. Ela s lhe d brinquedos de menina. Dentro de quanto tempo tornaria a ver Pablo e que teria ela feito do filho? No entanto, o menino parecia capaz de resistir. Aproximou-se da pia e viu-os pelo espelho. Pablo estava no meio do quarto, ofegante, corado, pernas abertas, mos nos bolsos. Sarah ajoelhara-se diante dele e olhava-o sem dizer palavra: Est a ver se ele se parece comigo, pensou Gomez. Sentiu-se pouco vontade e fechou a porta sem rudo. ... com o menino. Espere-me domingo no comboio das quatro e reserve-me um... Uma mo pousou com fora no seu ombro esquerdo, outra mo pegou-o pelo ombro direito. Uma presso calorosa, amiga. Pronto, pensou, enfiou a carta no bolso e ergueu os olhos. Ol! Odette acaba de me dizer... disse Jacques, fixando o olhar nos olhos de Mathieu: Meu velho! Sentou-se, sem tirar os olhos do irmo, no sof em que Odette estivera; a mo puxou com habilidade a cala, as pernas cruzaram-se sozinhas. Ignorava esses pequeninos incidentes: todo ele era apenas um olhar. PENA SUSPENSA Sabes que no parto hoje? disse Mathieu. Sei. No tens medo que te aborream? Oh!... algumas horas apenas... Jacques respirou fundo: Que queres que te diga? Outrora, quando um tipo partia podamos dizer-lhe: defendes os teus filhos, defendes a tua liberdade, ou a tua propriedade, defendes a Frana; enfim, podamos descobrir razes para arriscar a pele. Mas hoje... Encolheu os ombros. Mathieu baixara a cabea e riscava o cho com o salto do sapato. No respondes disse Jacques com voz penetrante. Preferes no falar, com medo de falares de mais. Mas eu sei o que pensas... Mathieu continuava a riscar o cho com o salto. Disse sem levantar a cabea: No, no sabes. Houve um breve silncio. E ele ouviu a voz incerta do irmo: Que queres dizer com isso? Que no penso em nada. Como quiseres disse Jacques ligeiramente irritado. No pensas em nada, mas ests desesperado, o mesmo. Num esforo, Mathieu ergueu a cabea e sorriu: Nem sequer estou desesperado. Enfim disse Jacques , no me vais fazer acreditar que
partes resignado, como um carneiro que levam ao matadouro? Bem disse Mathieu , acho que no deixa de haver alguma semelhana. Afinal, eu parto porque no J E A N-P AUL SARTRE posso deixar de partir. Quanto a ser uma guerra justa ou injusta, para mim uma coisa secundria. Jacques cravou em Mathieu um olhar perscrutador: Mathieu, tu desnorteias-me. Completamente. J no te reconheo. Tinha um irmo revoltado, cnico, sarcstico, que no queria ser enganado, que no podia erguer o dedo mindinho sem se indagar porqu o mindinho e no o indicador, porqu o da mo direita e no o da mo esquerda. Agora, estoura a guerra e mandam-no para as trincheiras, e o revoltado, o subversivo, parte gentilmente, sem discusso, dizendo: Parto porque no posso deixar de partir. A culpa no minha disse Mathieu. Jamais consegui ter uma opinio a respeito dessas questes. Mas, vejamos disse Jacques , portanto claro: estamos em presena de um senhor (refiro-me a Bens) que se comprometeu em fazer da Checoslovquia uma federao pelo modelo suo. Comprometeu-se repetiu com energia , li-o nas actas J<i Conferncia da Paz, e bem vs que cito boas fontes. Essa promessa equivalia a dar aos alemes dos Sudetas uma verdadeira autonomia etnogrfica. Bem. Eis que esse senhor esquece totalmente as suas promessas e manda administrar, julgar, vigiar os alemes por checos. Os alemes no gostam: um direito estrito deles. Tanto quanto eu conheo esses funcionrios checos (estive na Checoslovquia) sabem fazer perder a pacincia humanidade! E querem que a Frana, pas da liberdade, como eles dizem, derrame o seu sangue para que esses funcionrios checos continuem a exercer pequenos vexames sobre as populaes alems, e eis a razo por que tu, professor de Filosofia do Liceu Pasteur, vais passar os teus ltimos anos de mocidade a dez ps debaixo da terra PENA SUSPENSA entre Bitche e Wissembourg. Por isso, quando me vens dizer que partes resignado e pouco te importas que esta guerra seja justa ou injusta, eu no engulo, compreendes? Mathieu olhava o irmo, cheio de perplexidade: Autonomia etnogrfica! Eu nunca me teria lembrado disso! Mesmo assim, falou por descargo de conscincia: No a autonomia etnogrfica que os Sudetas querem agora: a integrao na Alemanha. Jacques fez uma careta de sofrimento: Por favor, Mathieu, no fales como o meu porteiro, no digas Sudetas. Sudetas so montanhas: diz alemes dos Sudetas, se
quiseres, ou alemes simplesmente. Ento? E eles desejam a unio com a Alemanha? porque os exasperaram. Se lhes tivessem dado o que eles pediam no incio, no teramos chegado a este ponto. Mas Bens serviu-se de ardis, enganou, porque os nossos polticos cometeram o erro imenso de lhe fazer crer que teria a Frana a apoi-los: eis o resultado. Olhou Mathieu com tristeza: Tudo isso suportaria eu ainda; sei h muito, o que valem os polticos. Mas tu, um homem sensato, um universitrio, que tenhas perdido os reflexos mais elementares, a ponto de sustentar tranquilamente que vais para o matadouro porque no podes deixar de ir, isso no, isso eu no admito. Se muitos pensarem como tu, a Frana est desgraada, meu velho. Mas que queres que ns faamos? Como? Mas ainda estamos numa democracia, Mathieu! Ainda h uma opinio pblica em Frana, suponho! E ento? J E A N-P AUL SARTRE Ento? Se milhes de franceses, em lugar de se degladiarem em querelas vs, se tivessem erguido e dito aos nossos governantes: Os alemes dos Sudetas querem integrar-se na Alemanha? Que se arranjem, o problema deles!, no teria havido um s poltico capaz de correr o risco de uma guerra por essa bagatela. Pousou a mo no joelho de Mathieu e continuou num tom conciliador. Eu sei que no aprecias o regime hitleriano. Mas afinal de contas, pode no se compartilhar das tuas reservas. E um regime jovem, entusiasta, que deu provas da sua eficincia e que exerce indiscutvel atraco sobre as naes da Europa Central. E, depois, de qualquer modo, um assunto deles; no devemos meter-nos nisso. Mathieu reprimiu um bocejo e encolheu as pernas sob a cadeira. Lanou uni olhar malicioso ao rosto algo balofo do irmo e pensou que ele estava a envelhecer. Talvez disse docilmente , talvez tenhas razo. Odette desceu a escada e sentou-se junto deles, silenciosa. Tinha a graa e a serenidade de um animal domstico: sentava-se, levantava-se, tornava a sentar-se, certa de passar despercebida. Mathieu voltou-se para ela, excitado: no gostava de v-los juntos. Quando Jacques estava presente, a fisionomia de Odette no mudava, permanecia uniforme e fugidia, como a de uma esttua de olhos sem pupilas. Mas era-se forado a interpret-lo de outra forma. Jacques acha que no me entristeo suficientemente por ter de partir disse sorrindo. Procura atormentar-me,
explicando que vou morrer por nada. Odette devolveu-lhe um sorriso. No o sorriso mundano que ele esperava, mas um sorriso s para ele; num PENA SUSPENSA instante, o mar surgiu diante dele: o balouar ligeiro das ondas, e as sombras chinesas a deslizarem sobre as guas, e a lava de sol palpitante no oceano, as piteiras verdes e as pinhas atapetavam o cho e a sombra pontiaguda dos grandes pinheiros, o calor redondo e o odor a resina, toda a espessura de uma manh de Setembro em Juan-les-Pins. Querida Odette! Mal-casada, mal-amada; mas ter-se-ia o direito de dizer que ela perdera a vida quando podia, com um sorriso, fazer surgir um jardim beira-mar no calor do Vero? Contemplou Jacques, gordo e amarelo; as mos tremiam-lhe: De quem tem ele medo?, pensou Mathieu. No sbado, 24 de Setembro, s onze horas da manh, Pascal Montastruc, nascido em Nimes a 6 de Fevereiro de 1899 e apelidado o Zarolho, porque enfiara um canivete no olho esquerdo a 6 de Agosto de 1907, ao tentar cortar as cordas do balouo do seu amiguinho Julot Truffier para ver o que acontecia, vendia, como todos os sbados, lrios e botes-de-ouro no cais de Passy, pouco antes da estao do metro; tinha a sua tcnica pessoal de pegar nos ramos, belos ramos no seu cesto de palha, colocado sobre um banquinho, e descia rua, os automveis passavam a buzinar, ele gritava: Olhem os ramos, belos ramos para as senhoras, agitando o ramo amarelo, o automvel avanava at ele como um touro na arena, ele no se mexia, encolhia a barriga, punha a cabea para trs, deixava passar o carro muito perto e gritava pela janela aberta: Olhem os ramos, belos ramos!, e geralmente os automobilistas paravam, ele subia o estribo, e o automvel vinha encostar-se ao passeio, porque era weekend e eles gostavam de voltar para os seus belos apartamentos da Rua Vignes ou da Rua Ranelagh com ramos de flores para as suas damas. J E A N-P AUL SARTRE Belos ramos de flores, deu um salto para trs, a fim de evitar um carro, o centsimo que passava, sem parar: Bolas! No sei o que que eles tm hoje. Guiavam depressa e brutalmente pendurados ao volante, surdos como postes. No viravam na Rua Charles Dickens ou na Avenida Lamballe, seguiam pelo cais, com toda a velocidade, como se quisessem ir at Pontoise. Pascal, o Zarolho, no percebia nada: Mas para onde que vo? Para onde que vo? E afastava-se, olhando para o cesto cheio de flores amarelas e cor-de-rosa, to cheio que era uma pena. Loucura pura! disse ele. O mais belo suicdio da
Histria. Como? A Frana sofreu duas terrveis sangrias em cem anos: uma durante as Guerras do Imprio, outra em 1914; alm disso, o ndice de natalidade baixa todos os dias. E o momento que se escolhe para desencadear uma nova guerra que custar trs ou quatro milhes de homens? Trs ou quatro milhes de homens que no poderemos recuperar jamais disse ele, acentuando as palavras. Vencedor ou vencido, o pas cair na categoria das naes de segunda ordem, isto certo. E h mais: a Checoslovquia ser engolida antes que tenhamos tempo de piscar um olho. Basta ver o mapa: ela parece um pedao de carne na boca do lobo alemo. Se o lobo fechar um pouco a boca... Mas disse Odette , isso seria passageiro, reconstituiramos o Estado checoslovaco depois da guerra. Ah! Sim? Jacques riu insolentemente: Imagina s! Como se os Ingleses fossem deixar reconstituir o foco do incndio! Quinze milhes de habitantes de nacionalidades diferentes um desafio ao bom senso. Os Checos no podem deixar-se iludir acrescentou com severidade , o seu interesse vital evitar essa guerra a todo o custo. PENA SUSPENSA De que tem medo? Ele via passar os carros, apertando na mo o ramo intil; parecia a estrada de Chantilly numa tarde de corridas, havia quem levasse malas, outros carregavam colches, carrinhos de beb, mquinas de costura, e todos os automveis estavam cheios de malas, embrulhos, cestos: Ena!, disse Pascal, o Zarolho. Passavam to pesadamente carregados que a cada ressalto os guarda-lamas raspavam os pneus. Esto a ir-se embora, pensou ele. Deu um ligeiro salto para trs para se desviar de um Salmson, mas nem se lembrou de voltar ao passeio. Aqueles cavalheiros bem barbeados, com os filhos gorduchos e as suas belas mulheres, fugiam como se tivessem fogo no rabo, diante dos boches, dos bombardeamentos, do comunismo. Com isso ele perdia todos os seus fregueses. Mas achava a coisa to cmica, aquele desfile de carros, aquela fuga desesperada para a Normandia, sentia-se pago por tantas coisas, que continuou na rua, roando-se plos automveis a fugirem e ps-se a rir s gargalhadas. E de que modo, pergunto eu, poderamos socorr-los? Sim, porque teramos de atacar a Alemanha na mesma. E ento? Por que lado? A leste h a Linha Siegfried, partiramos o nariz. Ao norte h a Blgica. Violar a neutralidade belga? Diga, diga por onde! Dar a volta pela Turquia? Puro romance! Tudo o que poderamos fazer seria esperar, de armas na mo, que a Alemanha liquidasse a Checoslovquia. Depois do que
viria ocupar-se de ns... Pois bem disse Odette , seria ento que... Jacques lanou-lhe um olhar de marido: Que o qu? perguntou ele friamente. Voltou-se para Mathieu: J te falei de Laurent, que foi um grande tipo na Air-France e continua a ser conselheiro de Cot e J E A N-P AUL SARTRE Guy Ia Chambre? Pois aqui tens sem comentrios o que ele me disse em Julho: o Exrcito francs dispe ao todo de quarenta bombardeiros e setenta caas. Se o resto for assim, os Alemes estaro em Paris no 1. de Janeiro. Jacques! exclamou Odette, furiosa. De que tem ele medo? Pascal ria, ria, deixava cair o ramo para rir vontade, deu um pulo para trs e a roda de um carro passou por cima dos caules das flores. De que tem medo? Ela est furiosa porque ele permitiu que se encarasse a derrota da Frana. Ela no muito simptica: as palavras metem-lhe medo. Tm medo dos Zeppelins e dos Taubes, eu vi-os em 1916; no se mostraram muito valentes e a coisa recomea; os automveis passavam a toda a velocidade sobre os caules das flores, esmagados, e Pascal tinha lgrimas nos olhos de tanto rir. Maurice no achava nada engraado. Pagara uma rodada aos camaradas e ainda lhe ardiam os ombros das boas pancadas que recebera. Agora estava sozinho e da a pouco teria de contar a novidade a Zzette. Viu o cartaz branco na parede alta e cinzenta da fbrica Penhot e aproximou-se, precisava reler devagar, sem ningum a seu lado: Por ordem do ministro da Defesa Nacional e da Guerra e do ministro da Fora Area. A morte, afinal, no era terrvel, um acidente de trabalho; Zzette era saudvel e bastante nova para refazer a vida, sempre to simples quando no se tem filhos. Quanto ao resto, ia partir e, no fim, guardaria a espingarda. Mas quando chegaria o fim? Dois anos? Cinco? A ltima durara cinquenta e dois meses. Durante cinquenta e dois meses seria preciso obedecer aos sargentos, aos cabos, a todos aqueles idiotas que tanto detestava. Obedecer sem pestanejar, fazer-lhes PENA SUSPENSA continncia na rua, quando se esforava por conservar as mos nos bolsos, se os encontrava, para no lhes cair em cima. Na trincheira ainda tm de se manter bonzinhos com medo de uma bala nas costas, mas fora do barulho, espremem o camarada como no quartel. Que chegue o dia do primeiro ataque e derrubarei o cabo que estiver minha frente! Recomeou a andar, sentia-se triste e doce como no tempo em que se dedicava ao boxe e se despia no vestirio, um quarto de hora antes da
luta. A guerra era uma longa, longa estrada, no se devia pensar de mais nela, seno acabar-se-ia por achar que nada tinha sentido, nem mesmo o fim, nem mesmo o regresso a casa com a espingarda na mo. Uma longa, longa estrada. E talvez rebentasse no meio do caminho como se no tivesse outro objectivo seno receber uma bala para defender a fbrica Schneider ou o cofre do senhor Wendel. Caminhava na poeira negra entre o muro da fbrica Penhot e o das construes Germain; via at bastante longe, direita, os telhados inclinados das ferrovias do Norte e, alm, mais longe ainda, a grande chamin vermelha da fundio, e pensava: Uma longa, longa estrada. O Zarolho ria no meio dos automveis, Maurice caminhava na poeira e Mathieu estava sentado beira-mar, ouvia o que Jacques lhe dizia, meditando: Talvez tenhas razo. Ia largar as suas roupas, a sua profisso, a sua identidade, partir nu para a mais absurda das guerras, para uma guerra perdida de antemo, e sentia-se naufragar no fundo do anonimato; j no era nada, nem o velho professor de Boris, nem o velho amante da velha Marcelle, nem o demasiado velho apaixonado de Ivich; nada mais do que um annimo sem idade, a quem haviam roubado o futuro e que tinha dias J E A N-P AUL SARTRE imprevisveis sua frente. s onze horas e trinta, o autocarro parou em Safi e Pierre desceu para desenferrujar as pernas. Cabanas chatas e amarelas beira da estrada asfaltada; atrs dela, Safi, invisvel, deslizava para o mar. rabes cozinhavam, agachados numa larga faixa de terra ocre, o avio voava por cima de um tabuleiro de xadrez amarelo e cinza, era a Frana. Como esses tipos podem ser indiferentes, pensou Pierre com inveja; caminhava entre os rabes, podia toc-los e, no entanto, no estava presente entre eles; fumavam tranquilamente o seu kif ao sol e ele ia ser morto na Alscia. Tropeou num montinho de terra, o avio entrou num vculo e o velho pensou: No gosto de andar de avio. Hitler debruava-se sobre a mesa, o general mostrava o mapa e dizia: Cinco brigadas de tanques e mil avies partiro de Dresda, de Tempelhof, de Munique, e Chamberlain comprimia o leno nos lbios e pensava: a minha segunda viagem de avio. No gosto de viajar de avio. Eles no me podem ajudar; esto acocorados ao sol, semelhantes a pequenas caarolas fumegantes, esto contentes, esto ss sobre a terra; ah!, se eu pudesse ser rabe, meu Deus!, pensou desesperado. s onze e quarenta e cinco, Franois Hannequin, farmacutico de primeira classe em Saint-Flour, um metro e setenta, nariz direito, testa mediana, ligeiro estrabismo, barba passa-piolho, forte odor da boca e dos plos do sexo,
enterite crnica at aos sete anos, complexo de Edipo liquidado por volta dos treze, concluso do curso secundrio aos dezassete, masturbao at ao servio militar razo de duas ou trs ejaculaes por semana, leitor do Temps e do Matin (assinante), marido, sem filhos, de Dieulafoy, Esperance, catlico praticante razo de PENA SUSPENSA duas ou trs comunhes por trimestre, subiu ao primeiro andar, ao quarto nupcial, onde a mulher experimentava um chapu, e disse: exactamente o que eu te dizia: esto a chamar os n. 2. Ela largou o chapu, tirou os alfinetes da boca e disse: Ento partes hoje tarde? Sim, no comboio das cinco horas. Que maada, disse a mulher, no sei se terei tempo de arranjar tudo. Que que vais levar? Camisas, naturalmente, ceroulas, tens de l, de musselma e de algodo, creio que melhor levares as de l. Oh!, e tambm cintas de flanela, talvez possas levar algumas cinco ou seis enroladas. No, nada de cintas, disse Hannequim, so ninhos de piolhos. Que horror! No ters piolhos. Leva para me fazeres a vontade; depois logo vs. Felizmente que ainda tenho conservas, sabes, as que comprei em 36 quando houve as greves, tu troaste de mim, tenho uma lata de chucrute em vinho branco, mas no gostas disso... Faz-me azia. Mas, disse esfregando as mos, talvez tenhas uma latinha de feijoada... Uma lata de feijoada, ah!, meu bom amigo, mas como que vais aquecer? preciso pr em banho-maria. Bom, ento uma geleia de galinha, no tens? Isso mesmo, uma geleia de galinha e um pouco de mortadela daquela que os primos de Clermont nos mandaram. Ele pensou um instante e disse: Vou levar o meu canivete suo. Sim. E onde que eu vou enfiar o termo para o teu caf? Sim, sim, caf preciso qualquer coisa quente para atestar; ser a primeira vez, desde que casei, que passarei sem sopa, disse sorrindo melancolicamente. Arranja algumas ameixas, tambm, e um frasco de conhaque. Levas a mala amarela? Ele sobressaltou-se: A mala? Nunca na vida, incmodo e J E A N-P AUL SARTRE no quero perd-la; roubam tudo l, vou levar a minha mochila. Que mochila? Aquela que usava para ir pesca, antes do nosso casamento. O que que fizeste dela? Que fiz dela? Ah!, no sei, fazes-me tonta, penso que a guardei no sto! No sto! Meu Deus, com os ratos! Deve estar limpa! Seria muito melhor que levasses a mala, no grande, poders muito bem tomar conta dela. Ah!, j sei onde ela est, emprestei-a Mathilde para um piquenique. Emprestaste a minha mochila Mathilde? No, quem que
est a falar da mochila? O termo sim, atalhou ela. Eu quero a mochila, disse ele com firmeza. Ah, querido, que queres que eu te diga, v s o que eu tenho para fazer, ajuda, procura tu a mochila. Podias dar uma vista de olhos no sto. Ele subiu ao sto e empurrou a porta, cheirava a poeira, no se via nada, um rato passou-lhe entre as pernas: Deus meu, os ratos devem t-la comido, pensou. Havia ali malas, um manequim de vime, um mapa--mundo, um forno velho, uma cadeira de dentista, um harmnio, e era preciso mexer em tudo. Se ao menos ela tivesse tido a ideia de guard-la numa mala. Abriu as malas uma aps outra e fechou-as com clera. Era to cmoda, de couro e com fecho, cabia tanta coisa dentro e tinha , dois compartimentos. So esses objectos que ajudam nos maus momentos; ningum imagina como so preciosos: Em todo o caso, no partirei com a mala, pensou encolerizado, preferiria no levar nada. Sentou-se numa mala, tinha as mos negras de poeira, sentia a poeira como uma coisa seca e spera em todo o seu corpo, mantinha as mos no ar para no manchar o casaco preto, parecia-lhe que jamais teria a coragem de sair do PENA SUSPENSA sto; nada mais me interessa; e naquela noite ia passar sem uma sopa quente! Tudo era to intil, sentia-se s e perdido, l em cima, bem em cima, sobre a mala, com aquela estao barulhenta e sombria que o esperava a duzentos metros, abaixo dele, mas o grito vibrante de Esperance f-lo tremer; era um grito de triunfo; Achei-a! Achei-a! Abriu a porta e correu para a escada: Onde est? Achei a tua mochila; estava na cave. Desceu a escada, tirou a mochila das mos da mulher, olhou-a, limpou-a com a mo e depois, pousando-a na cama, disse: Escuta, querida, estava a pensar se no conviria comprar um bom par de sapatos!? Para a mesa! Para a mesa! Tinham penetrado no tnel ofuscante do meio-dia; l fora, o cu branco do calor, as ruas mortas e brancas, o no man's land, a guerra; atrs das janelas fechadas, eles cozinhavam a fogo lento, Daniel ps o guardanapo sobre os joelhos, Hannequin pendurou-o ao pescoo, Brunet pegou no guardanapo de papel, amarrotou-o e limpou os lbios, Jeannine empurrou Charles para o grande refeitrio quase deserto e estendeu-lhe o guardanapo no peito; era a trgua: a guerra, pois bem, a guerra, mas o calor! A manteiga de contornos flcidos e oleosos, dentro de gua, gua morna e cinzenta por cima e os pequenos pedaos de manteiga mortos que flutuavam de barriga para cima, Daniel via derreterem-se os pedacinhos de manteiga no pratinho. Brunet enxugou a fronte, o queijo suava no seu
prato como um homem a trabalhar, a cerveja de Maurice estava morna, ele empurrou o copo: Parece urina! Um pedao de gelo nada no vinho tinto de Mathieu, ele bebeu-o, sentiu a princpio um pouco de gua fria na boca, em seguida um gole de vinho fraco, ainda quente, que logo se derreteu na gua. Charles virou a J E A N-P AUL SARTRE cabea e disse: Mais sopa! preciso ser tarado para servir sopa em pleno Vero. Colocaram-lhe o prato sobre o peito, queimava um pouco a pele atravs do guardanapo e da camisa, ele s via o rebordo de loua, mergulhou a colher ao acaso, ergueu-a verticalmente, mas quando estamos de costas nunca se tem a certeza da vertical, uma parte do lquido tornou a cair no prato salpicando, Charles trouxe devagar a colher acima dos lbios, inclinou-se de lado e... merda! Sempre a mesma coisa, o lquido a ferver escorreu-lhe pela cara e inundou-lhe o colarinho. A guerra! Oh!, a guerra! No, no, disse Zzette, nada de rdio, no quero pensar mais nisso. Ora, um pouco de msica!, disse Maurice. Chrr, Goodb, Chersau, minha estrela, informaes, sombreros e mantilhas, J'attendrai, pedido por Huguette Arnal, Pierre Ducroc, sua senhora e suas filhas em Roche-Canillac, pela menina liane em Calvi e Jean--Franois Roquette para a sua filhinha Marie-Madeleine e por um grupo de dactilgrafas de Tulle para os seus soldados, J'attendrai, l jour et Ia nuit, um pouco mais de sopa de peixe? No, obrigado, disse Mathieu, no ser possvel um entendimento, o rdio crepitava por cima das praas brancas e mortas, quebrava as vidraas, entrava na cidade, nas estufas sombrias, Odette pensava: No pos--svel um entendimento, era evidente, fazia um tal calor. A menina liane, Zzette, Jean-Franois Roquette e a famlia Ducroc de Roche-Canillac pensavam: No possvel um entendimento, fazia um tal calor. Que querem vocs que eles faam?, perguntou Daniel. Era um boato, pensava Charles, vo deixar-nos aqui. Ella Birnenschatz pousou o garfo inclinou a cabea para trs e disse: No acredito na guerra. J'attendrai toujours ton retour; o avio PENA SUSPENSA voava por cima de um vidro chato, empoeirado; no fim do vidro, ao longe, via-se um pouco de betume, Henry inclinou-se para o ouvido de Chamberlain e gritou-lhe: a Inglaterra. A Inglaterra e a multido ansiosa no aeroporto, aguardando a sua volta, on retour, mon amour, toujours, teve um minuto de desnimo, fazia tanto calor, desejava esquecer o conquistador com cara de mosca e o Hotel Dreesen e o memorando, desejo de acreditar, meu Deus, de acreditar que ainda podia haver um
entendimento, fechou os olhos: Minha boneca querida, pedido pela senhora Duranty e sua sobrinha, de Decazeville, a guerra, meu Deus, a guerra e o calor e o triste e resignado sono da tarde; Casablanca, a est Casablanca, o autocarro parou numa praa branca e deserta, Pierre foi o primeiro a descer e lgrimas ardentes vieram-lhe aos olhos; restava ainda um pouco de manh no autocarro, mas, l fora, o sol a pino era a morte da manh. Acabada a manh, Minha boneca querida, acabada a mocidade, acabadas as esperanas, ante a grande catstrofe do meio-dia. Jean Servin afastara o prato, lia a pgina desportiva do Paris-Soir, no soubera do decreto de mobilizao parcial, fora trabalhar, voltara para o almoo, regressaria ao trabalho s duas horas; Lucien Rnier partia nozes com as mos, lera o decreto, pensava: E um bluff. Franois Destutt, auxiliar de laboratrio do Instituto Der-rien limpava o prato com um pedao de po, no pensava em nada, a sua mulher tambm no pensava em nada, Ren Malleville, Pierre Charnier no pensavam em nada. Pela manh, a guerra fora um pedao de gelo pontiagudo e cortante nas suas cabeas, depois dissolvera-se, tornara-se uma pocinha de gua morna. Minha boneca querida, o gosto espesso e sombrio do bife borgonhesa, o cheiro J E A N-P AUL SARTRE a peixe, o farrapo de carne entre os dois molares, as emanaes do vinho tinto e o calor, o calor! Caros ouvintes, a Frana, inabalvel mas pacfica, enfrenta resolutamente o seu destino. Ele estava cansado, tonto, passou trs vezes a mo diante dos olhos, a luz magoava-o e Dawburn, que mordia a ponta do lpis, disse ao seu confrade do Morning Post: Ele levou uma boa chicotada! Ergueu a mo e disse com voz fina: O meu primeiro dever, agora que estou de volta, apresentar um relatrio aos Governos francs e ingls acerca dos resultados da minha misso, e enquanto no o tiver feito ser-me- difcil dizer alguma coisa. O meio-dia envolvia-o no seu lenol branco, Dawburn olhava-o e pensava em estradas longas e desertas no meio de rochedos cinzentos e enferrujados sob o fogo do cu. O velho acrescentou com voz sumida: Eimitar-me-ei a isto: confio em que todos os interessados continuaro a fazer esforos para resolver pacificamente o problema da Checoslovquia, porque nele assenta a paz da Europa nos nossos dias. Ela apanha atentamente migalhas de po na toalha. Sente-se um pouco oprimida, como quando est resfriada. Disse-me: Tenho uma bola de ar no estmago, depois derramou algumas lgrimas,
desnorteada: Isso vai sair dos teus hbitos. Respondi-lhe: Nos primeiros tempos. S nos primeiros tempos. Ela pensa que infeliz, aquele friozinho sombrio na cabea, interpreta-o como desgraa iminente. Mantm-se firme, pensa que no tem o direito de se entregar, que todas as mulheres francesas so to infelizes como ela. Digna, calma, intimidante, os belos braos PENA SUSPENSA repousando sobre a toalha, parece dominar a caixa de um grande armazm. No pensa, no quer pensar que estar mais sossegada depois da partida dele. Em que pensa ela? Que h mais uma mancha de ferrugem no porta-talheres. Franze as sobrancelhas, raspa a mancha com a ponta da sua unha vermelha. Estar muito mais sossegada. A me, as amigas, a salinha, a cama grande s para ela: come muito pouco, far ovos estrelados num canto do fogo, a alimentao da menina no complicada, papas, sempre papas, eu dizia-lhe: Mas d-me qualquer coisa, qualquer coisa, no procures arranjar grandes refeies nunca ligo muito ao que como; ela obstinava-se, como era seu dever. Georges? Querida? Queres um ch? No, obrigado. Ela bebeu o seu ch suspirando, tem as olhos vermelhos. Mas no olha para mim, olha para o aparador, porque est ali mesmo frente dela. No tem nada a dizer-me ou ento dir-me-: No apanhes frio. Talvez chegue a imaginar-me esta noite no comboio um pequeno vulto magro encolhido ao fundo da carruagem, mas no vai alm, difcil de mais; pensa na sua vida aqui. Vai haver um vcuo. Um pequeno vcuo, Andre: no ocupo muito lugar. Eu estava sentado no sof com um livro, ela consertava meias, no tnhamos nada a dizer um ao outro. O sof continuar no seu lugar. O importante o sof. Ela escrever-me-. Trs vezes por semana. Escrupulosamente. Ficar muito sria, procurar a tinta durante muito tempo, a caneta, os culos amarelos, e depois instalar-se- com o seu ar intimidante diante da secretria incmoda que herdou da av Vasseur: Os dentes J E A N-P AUL SARTRE da menina comeam a aparecer, a minha me vir pelo Natal, a senhora Ancelin morreu, Emilienne casa-se em Setembro; o noivo muito bom, de certa idade trabalha em seguros. Se a menina tiver coqueluche, ela no me dir nada para no me aborrecer. Pobre Georges, no precisa de saber, preocupa-se por nada. Mandar-me- pacotes de mantimentos, chourios acar, caf, tabaco, meias de l, latas de sardinhas, comprimidos manteiga
salgada. Um pacote entre dez mil, igual a todos, se me entregarem por engano o de um companheiro, no o perceberei, os pacotes, as cartas, as papas de Jeannette, as manchas no porta-talheres, o p no armrio, isso bastar-lhe-; noite dir: Estou cansada, j no consigo fazer tudo. No ler jornais. Como agora, detesta-os por serem papel que anda plos cantos e no se pode aproveitar, antes da tinta bem seca, na cozinha ou nas retretes; a senhora Hbertot vir trazer-lhe notcias, tivemos uma grande vitria ou a coisa no vai bem, querida, no vai, no avana. Henri e Pascal j combinaram com as suas mulheres uma linguagem cifrada, para dizer onde esto: sublinharo certas letras. Mas com Andre intil. Mesmo assim ele tentou, s para ver: Posso mandar-te dizer onde estou. Mas isso no proibido? perguntou ela surpreendida. , mas combinamos, como na guerra de 14, juntas todas as maisculas, por exemplo. muito complicado disse ela suspirando. No , vers, simples como tudo. Sim, mas podes ser descoberto, lanaro as tuas cartas para o cesto e eu ficarei inquieta. Vale a pena arriscar. l PENA SUSPENSA Se quiseres, meu amigo, mas, sabes, a geografia e eu... Verei num mapa, um ponto com um nome em cima, que adiantar isso? Assim . Em certo sentido bem melhor; ela receber o meu ordenado... J te dei a procurao? J, querido, guardei-a na secretria. muito melhor. Deve ser chato deixar algum preocupado, devemo-nos sentir vulnerveis. Arredo a cadeira. No, querido, no precisas de dobrar o guardanapo... E verdade! No me pergunta onde vou. Nunca me pergunta. Digo-lhe: Vou ver a menina. No a acordes... No a acordarei; ainda que o quisesse, no saberia fazer o barulho suficiente, sou leve de mais. Empurrou a porta, uma porta da janela abrira-se, uma luz ofuscante e branca entrara; metade do quarto ainda estava na sombra, mas a outra brilhava sob os raios de sol empoeirados. A menina dormia no bero; Georges sentou-se perto dela. Os cabelos loiros, a boquinha pura e as bochechas gordinhas que lhe davam um ar de magistrado ingls! Ela comeava a gostar de mim. O sol ganhava
terreno; empurrou devagar o bero para mais longe. Assim. No ser bonita, parece-se comigo. Coitadinha, seria melhor que se parecesse com a me. Ainda molinha, dir-se-ia sem ossos. E j traz dentro dela essa lei que foi a minha, as clulas proliferaro de acordo com a minha lei, as cartilagens endurecero, o crnio ossi-ficar-se- de acordo com a minha lei. Uma menina magriJ E A N-P AUL SARTRE zela, de aspecto insignificante, de cabelos baos, escoliose do ombro direito, forte miopia, deslizar sem rudo, sem tocar no cho, fazendo enormes desvios para evitar pessoas e coisas porque ser demasiado leve e fraca para desloc-las. Deus meu! Todos esses anos que viro para ela, uns aps os outros, inevitavelmente, e tudo to intil, tudo est escrito na sua carne e ser preciso que ela viva o seu destino, minuto a minuto, e que acredite invent-lo e a est ele, inteirinho, repugnante de to previsvel; contaminei-a, e porque dever ela viver gota a gota o que j vivi? Porque dever tudo repetir-se, indefinidamente? Uma magrizela-zinha, uma almazinha tmida e clarividente, tudo o que necessrio para sofrer bastante. Eu vou-me embora, sou chamado a desempenhar outras funes, ela vai crescer, aqui, obstinadamente, imprudentemente, ela vai representar-me. E a coqueluche, as convalescenas demoradas, e essa paixo infeliz pelas camaradas belas e gordas, de carnes rosadas, e os espelhos em que se ver, pensando: Ser que sou feia de mais para que me amem? Tudo isso, dia aps dia, com esse gosto do j visto, valer a pena? A menina acordou um instante, era para ela um instante, era para ela um instante novo, e olhou-o com uma curiosidade grave. Tirou-a do bero, apertou-a com fora nos braos: Minha pequenina! Meu querido beb! Minha pobre queridinha! Mas ela assustou-se e ps-se a gritar. Georges, chamou por trs da porta uma voz cheia de censura. Deitou-a novamente no bero. Ela olhou-o mais um instante, com um ar severo e tristonho, depois os seus olhos fecharam-se, reabriram, piscando, e tornaram a fechar-se. Comeava a gostar de mim. Fora preciso passar o dia aqui, habitu-la to profundamente minha PENA SUSPENSA presena que ela no pudesse mais ver-me. Quando durar isso? Cinco, seis anos? Encontrarei uma menina de verdade que me contemplar com espanto, que pensar: " isto o meu pai?" e que ter vergonha de niim diante das amigas. Isso tambm eu vivi. Quando o pai veio da guerra eu tinha doze anos. A luz da tarde invadira quase inteiramente o quarto. A guerra devia parecer-se com uma tarde interminvel. Ele levantou-se, sem
rudo, abriu devagar a janela e fechou a persiana. Cabina 19, esta. Ela no ousava entrar, permanecia porta, com a mala na mo, esforcando-se por se persuadir de que conservara alguma esperana. E se por acaso fosse um beliche bonitinho, com tapete e flores num copo, sobre o lavabo? So coisas que acontecem, encontramos muitas vezes pessoas que nos dizem: A bordo de tal navio, no vale a pena viajar em segunda, as terceiras so to luxuosas como as primeiras. Naquele momento, talvez France estivesse desarmada, talvez dissesse: Pois a est uma cabina que no como as outras. Se as terceiras fossem assim... Maud imaginava-se France. Uma France conciliante e mole, dizendo: Bom, no faz mal... arranjar-nos-emos mesmo assim. Mas no gostava que a encontrassem a vaguear plos corredores, uma vez houve um roubo e tinham-na interrogado de maneira bastante desagradvel, quando se pobre preciso ter cuidado com as coisas pequeninas, porque as pessoas so impiedosas: achou-se de repente no meio da cabina e no teve tempo sequer de uma decepo, esperava aquilo. Seis lugares: trs beliches sobrepostos direita, trs outros esquerda: Aqui est... aqui est! Nada de flores no lavabo, nem tapetes, alis nunca acreditara nisso. Nem cadeiras to-pouco, nem mesa. Quatro J E A N-P AUL SARTRE pessoas sentir-se-iam mal acomodadas ali, porm o lavabo estava limpo. Tinha vontade de chorar, mas no valia a pena: previra tudo aquilo. France no podia viajar em terceira, a est o facto, a verificao indiscutvel. Como era tambm indiscutvel o facto de Ruby no poder viajar de comboio com as costas voltadas para a locomotiva. Podia-se ser tentado a perguntar por que razo France se obstinava em comprar passagens de terceira. Porm, nesse ponto como em outros, France no merecia censuras: comprava passagem de terceira porque era econmica e geria prudentemente as finanas da Orquestra Baby's; quem a poderia criticar? Maud pousou a maleta no cho, tentou, durante um segundo, enraizar-se na cabina, fingir que estava ali h dois dias. Ento os beliches, a vigia, os parafusos amarelos da parede, tudo lhe pareceria familiar, ntimo; murmurou com convico: Mas esta cabina excelente. Depois, como se sentia cansada, tornou a pegar na maleta e ficou de p entre os beliches, sem saber o que fazer, se ficarmos aqui terei de desfazer a minha mala, mas no vamos ficar certamente, e se France vir que comecei a instalar-me, com o seu esprito de contradio, isso h-de ser mais um motivo para que ela decida trocar de cabina. Sentia-se provisria na cabina, no navio, em terra. O capito era grande e gordo, com cabelos brancos. Ela sobressaltou-se: Afinal
estaramos bem as quatro na cabina, se ficssemos sozinhas. Mas bastou-lhe um olhar para perder a esperana: no beliche da direita havia bagagens; um cesto de vime com um fecho enferrujado e uma mala de fibra no, nem isso, de papelo prensado com os cantos amassados. E depois, para cmulo do azar, ouviu um leve rudo, ergueu os olhos e viu que uma mulher de uns trinta PENA SUSPENSA anos jazia no beliche superior da direita, muito plida, de olhos fechados. Bom, tudo vai mal. Ele tinha-lhe olhado para as pernas, quando ela passou pela coberta; fumava um charuto, ela conhecia bem essa espcie de homens que cheiram a charuto e a gua-de-colnia. Bem, elas subiram no dia seguinte, ruidosas e pintadas, coberta da segunda, as pessoas j estariam instaladas, teriam travado conhecimento e distribudo as suas simpatias, Ruby andaria muito tesa, de cabea erguida, sorridente e mope, balouando o traseiro, e Doucette diria com uma vozinha afectada: No, meu bem, vem, o capito que quer. Os senhores bem--vestidos, sentados com cobertas por cima dos joelhos, acompanh-la-iam com o olhar frio, as mulheres deixariam escapar reflexes desonestas, sua passagem, e noite, nos corredores, encontrariam alguns gentlemen amveis de mais, de mos agitadas. Ficar aqui, meu Deus, aqui entre estas quatro chapas de ferro pintadas de amarelo, estaramos to bem sozinhas! France empurrou a porta. Ruby entrou atrs. No trouxeram as bagagens?, perguntou France bem alto. Maud fez-lhe sinal para que se calasse, mostrando-lhe a enferma. France ergueu os seus grandes olhos claros sem clios para o beliche: o seu rosto continuava imperioso e inexpressivo como de costume, mas Maud compreendeu que a partida estava perdida. No assim to ruim disse Maud com bom humor , a cabina est quase a meio, sente-se menos o balano do navio. Ruby encolheu os ombros. France perguntou, como que indiferente: Como nos instalamos? J E A N-P AUL SARTRE Como quiser. Quer que eu fique no beliche de baixo? perguntou, obsequiosa. France no conseguia dormir com duas pessoas por cima dela. Veremos, veremos... O capito tinha os olhos claros e glidos num rosto avermelhado... A porta abriu-se e uma senhora de preto surgiu. Mastigou algumas palavras e foi sentar-se no seu beliche entre a mala e o cesto. Teria uns cinquenta anos e estava pobremente
vestida, a pele era rude, terrosa, enrugada e os olhos pareciam sair-lhe da cabea. Maud olhou-a e pensou: Vai tudo muito mal. Tirou um bton da bolsa e comeou a pintar os lbios. Mas France olhou-a de lado, com um ar de to majestosa satisfao que Maud, aborrecida, deixou cair o bton novamente para o fundo da bolsa. Houve um longo silncio, que pareceu familiar a Maud; reinara numa cabina igualzinha, quando o Saint-Georges as levara a Tnger e um ano antes, no Thophile Gautier, quando foram tocar ao Polythion de Corinto. Esse silncio foi entretanto perturbado por um ruidozinho fanhoso: a mulher de preto puxara de um leno e abrira-o sobre o rosto: chorava sem violncia, mas sem cerimnia, como algum que se prepara para uma longa crise. Ao fim de um momento, abriu o cesto e tirou dele uma fatia de po com manteiga, um pedao de carne de carneiro grelhada e uma garrafa trmica enrolada num guardanapo. Ps-se a comer chorando, desarrolhou a garrafa e encheu de caf a caneca; com a boca cheia, pesadas lgrimas rolaram-lhe, brilhantes, pelas bochechas. Maud viu a cabina com novos olhos: era uma sala de espera numa pequena estao de provncia. Tomara que ele no seja um viciado... Fungou e inclinou PENA SUSPENSA a cabea para trs por causa do rmel. France olhava-a de lado, friamente. Esta cabina pequena de mais disse France em voz alta , ficaremos muito mal acomodadas. Prometeram-me em Casablanca que estaramos ss numa cabina de seis lugares. Comeava a cerimnia, havia no ar algo de sinistro e um pouco solene; Maud disse em voz baixa: Poderamos completar as passagens. France no respondeu. Sentara-se no beliche da esquerda e parecia meditar. Ao fim de um instante, a sua fisionomia fez-se sorridente e ela disse alegremente: E se propusssemos ao capito dar um concerto gratuito no salo de primeira classe? Talvez ele consentisse em mandar transportar as nossas bagagens para uma cabina mais confortvel. Maud no respondeu; cabia a Ruby faz-lo. Excelente ideia disse esta vivamente. Maud sentiu um calafrio e teve horror de si mesma. Voltou-se para France, suplicante: Vai, France! Tu s o nosso chefe de equipa, tu que deves ir ter com o capito. No, querida disse France muito amvel. Que pode obter uma mulher velha como eu? Ele ser muito mais gentil para com uma belezazinha da tua idade.
Um vermelho gordo, de cabelos e olhos cinzentos. Devia ser meticulosamente asseado, como sempre. France estendeu o brao e premiu a campainha: E melhor resolver isto j disse. A mulher de preto continuava a chorar, ergueu bruscamente a cabea e pareceu aperceber-se da presena delas. J E A N-P AUL SARTRE Vo mudar de cabina? perguntou, inquieta. France observou-a com um ar glacial. Maud respondeu com vivacidade: Temos muita bagagem, ficaramos encurraladas aqui, iramos incomod-la. No, no me incomodam disse a mulher. Gosto de companhia. Tocaram, o steward entrou. A sorte est lanada, pensou Maud. Pegou no bton e no p-de-arroz, aproximou-se do espelho e comeou a pintar-se cuidadosamente. Quer perguntar ao capito disse France se tem um minuto para receber a menina Maud Dassignies, da Orquestra Feminina Baby's? No disse ele. Aposto que no. Os sofs de vime, a sombra dos pltanos. Daniel banhava-se em velhas recordaes, aborrecidas; em Vichy, em 1920, adormecera num sof de vime sob as grandes rvores do parque, tinha nos lbios o mesmo sorriso corts e a me tricotava a seu lado, Marcelle tricotava a seu lado sapatinhos para o beb, sonhava com a guerra, no tinha olhar. O eterno zumbido do moscardo j tanto tempo decorrido, desde Vichy, e o moscardo continuava a zumbir, havia um cheiro a menta; atrs deles, no salo do hotel, algum tocava piano h vinte anos, h cem anos. Um pouco de sol nos dedos frisando os plos das falanges, um pouco de sol aquecia, no fundo da xcara vazia, uma pequenina poa de caf com um recife de acar, escuro e granulado, com mil arestas brilhantes. Daniel esmagou o acar pelo prazer melanclico de sentir sob a colher o desmoronamento da areia rangente. O jardim deslizava lentamente para o rio, a gua morna e lenta, o odor de planta aquecida e a Revue PENA SUSPENSA ds Deux Mondes que o senhor Lestrange, coronel aposentado, deixara sobre uma mesa do outro lado da entrada. A morte, a eternidade, ningum se furtar a ela, a doce, a insinuante eternidade, as folhas verdes e viscosas acima das cabeas; o eterno montinho das primeiras folhas mortas. Emile cavava, nico ser vivo, sob os castanheiros. Era o filho dos patres, lanara para o cho, beira da valeta, um saco de pano cinzento. No saco estava Zizi, a cadela morta: Emile cavava-lhe uma cova; trazia na cabea um imenso chapu de
palha, o suor escorria-lhe pelo dorso nu. Um rapazola grosseiro e insignificante, de fisionomia dura, um rochedo com duas fendas horizontais e musgosas no lugar dos olhos, tinha dezassete anos, e j corria atrs das mulheres, era campeo local de bilhar e fumava charuto, mas era dono daquele corpo delicioso, imerecido. Ah! disse Marcelle , se eu ousasse acreditar... Naturalmente. Naturalmente no ousava acreditar. E no entanto, a ela, que mal podia fazer a guerra? Continuaria a engordar em alguma aldeia, algures no campo. Ser que ela no se vai embora, est a deixar passar a hora da sesta. Ele apoiava o p sobre a p e premia com toda a fora; pousar docemente as mos nas ancas e subir, uma leve presso, como um massagista, enquanto ele cava a terra, roar a ponta dos dedos na sombra hmida das axilas; o seu suor cheira a timo. Bebeu um golo de bagao. Seria bom de mais disse Marcelle. E depois, a mobilizao j comeou. Mas, minha cara Marcelle, como pode levar isso a srio? A Home Fleet vai dar uma volta pelo mar do Norte, a Frana mobiliza duzentos mil homens, Hitler rene quatro divises blindadas na fronteira checa. Depois, esses J E A N-P AUL SARTRE senhores ficaro com a conscincia tranquila e podero conversar calmamente volta de uma mesa. Um corpo de mulher agarra-se. Borracha, carne desossada, isso arranja-se at de mais. Aquele belo corpo exigia carinhos de escultor, seria preciso model-lo. Daniel endireitou-se bruscamente no sof e fixou Marcelle com um olhar faiscante. Isso no, isso nunca; esse vcio distrado... ainda no tenho idade para isso. Bebo um copo de bagao, falo com gravidade acerca da guerra que se anuncia e, durante esse tempo, o meu olhar roa, indolentemente, um jovem dorso nu, um traseiro bem feito, ofusca todas as possveis ddivas de uma tarde de Vero. Que venha! Que venha ento a guerra, que venha matar os meus olhos, afund-los nas rbitas, mostrar-lhes enfim corpos conspurcados, sangrentos, desarticulados, que ela me arranque destes eternos desejos, pequeninos e fracos, das folhagens, do zumbido das moscas, dos sorrisos, um giser de fogo sobe aos cus, uma chama que queima o rosto e os olhos, como se tivssemos as faces arrancadas, que venha afinal o instante inominvel que no lembra coisa alguma. Mas disse Marcelle com uma doce indulgncia (ela no apreciava as qualidades polticas dele) a Alemanha no pode recuar, no ? E ns chegmos ao mximo das concesses. Ento? No tenha medo disse Daniel com amargura. Faremos todas
as concesses necessrias, no haver limites. E depois a Alemanha pode dar-se ao luxo de recuar, quem ousaria falar de recuo? Diriam que foi generosidade. mile endireitou-se, enxugava a fronte com as costas da mo, as suas axilas fumegavam, olhava para o cu a sorrir, um jovem deus. Um jovem deus! Daniel arranhou o PENA SUSPENSA brao do sof. Quantas vezes, Senhor, quantas vezes no dissera: um jovem deus ao contemplar um adolescente ao sol. Palavras gastas de tia idosa; sou um pederasta, dizia, e eram ainda palavras que no o perturbavam, de repente pensou: O que poderia a guerra modificar? Estaria sentado em algum outeiro, durante uma acalmia, olharia distraidamente o dorso nu de um jovem soldado cavando a terra ou catando piolhos, os lbios j bem treinados murmurariam sozinhos: Um jovem deus; entusiasmamo-nos em qualquer parte. Afinal disse bruscamente , estamos a discutir toa. Quando houver guerra? Imagino que ser vivida mesquinhamente, como tudo. Oh! Daniel. Marcelle tinha um ar de quem estava verdadeiramente escandalizada. Como pode dizer isso? Seria... seria terrvel! Palavras. Sempre palavras. O que terrvel disse Daniel a sorrir que nada jamais muito terrvel. No h extremos. Marcelle olhou-o com certa surpresa, os seus olhos tinham perdido o brilho: O sono est a venc-la, pensou Daniel, satisfeito. Se me dissesse isso dos sofrimentos morais, eu compreenderia. Mas, Daniel!, h os sofrimentos fsicos... Ah! disse Daniel, ameaando-a com o dedo. J est a pensar nas futuras dores! Ver, ver! Penso que isso tambm um exagero. Marcelle sorriu-lhe, reprimindo um bocejo. Vamos disse Daniel levantando-se , no se atormente, Marcelle. Quase deixou passar a hora da sesta. No dorme o suficiente; no seu estado preciso dormir muito. J E A N-P AUL SARTRE No durmo o suficiente? Ria e bocejava ao mesmo tempo. At tenho vergonha, no leio nada, passo os dias na cama. Felizmente, pensou Daniel, beijando-lhe a ponta dos dedos. Aposto que ainda no escreveu senhora sua me. verdade. Sou uma filha ingrata. Bocejou, acrescentando: Vou faz-lo antes de dormir. No, no disse Daniel com vivacidade. V descansar
imediatamente. Eu que lhe mandarei uma palavrinha. Oh! Daniel disse Marcelle encantada e confusa , uma carta do genro, ela vai sentir-se to orgulhosa! Subiu a escada com dificuldade e ele voltou a sentar-se no sof. Bocejou, passou-se algum tempo e percebeu que estava a ouvir um piano. Olhou para o relgio: eram trs horas e vinte e cinco. Marcelle desceria s seis para o seu passeio aperitivo. Tenho duas horas e meia diante de mini, pensou com certa apreenso. Bem: outrora a sua solido era como o ar que se respira, vivia-a sem a ver. Agora, era-lhe concedida aos poucos e ele no sabia o que fazer dela. O mais extraordinrio que me aborreo menos quando Marcelle est comigo. Tu o quiseste, disse a si mesmo, tu o quiseste! Sobrava um gole de bagao no fundo do copo, bebeu-o. Naquela noite de Junho, quando resolvera desposar Marcelle, arquejava de angstia, julgava mergulhar no horror. Tudo isso para chegar quele ponto, ao sof de vime, ao gosto levemente podre do bagao na boca, ao dorso nu. A guerra seria a mesma coisa. O horror sempre para o dia seguinte. Eu casado, eu soldado: s encontro eu prprio. E nem mesmo eu: uma sequncia de PENA SUSPENSA pequenas deslocaes excntricas, de pequenos movimentos centrfugos e nenhum centro. No entanto, h um centro. Um centro: eu. Eu e o horror est no centro. Ergueu a cabea, a mosca zumbia altura dos seus olhos, espantou-a. Mais uma fuga. Um pequeno gesto com a mo, um quase nada, j ele escapava de si: que importa a mosca? Ser de pedra, imvel, insensvel, sem um gesto, sem um rudo, cego e surdo, as moscas, os insectos passando sobre o meu corpo, uma esttua severa de olhos vazios sem um projecto, sem uma preocupao: talvez conseguisse coincidir comigo mesmo. No, certamente, para me aceitar; para ser, enfim, o objecto do meu dio. Houve uma espcie de dilacerao, quatro notas de uma polaca, o brilho daquele dorso nu, um formigueiro no polegar e depois caiu em si novamente. Ser o que sou, ser um pederasta, um mau, um covarde, essa imundcie, em suma, que no chega sequer a existir. Encostou os joelhos, pousou as mos sobre as coxas, teve vontade de rir: devo ter um ar muito decente, e encolheu os ombros: Imbecil! No me incomodar com o meu aspecto, sobretudo no olhar mais para mini, se me olho sou dois. Ser. No escuro, s cegas. Ser pederasta, como a rvore a rvore. Apagar o olhar interior. Pensou: Apagar. A palavra soou como um trovo, repercutiu-se por imensas salas vazias. Espantar as palavras, eram um pulular de pequenos prazos, cada qual marcando-lhe um encontro ao fim de si mesmo... Houve uma nova dilacerao, Daniel encontrou-se sonolento e aborrecido,
um tipo que tem apenas duas horas diante de si e distrai-se como pode. Ser como eles me vem, como Mathieu me v e Ralph com a sua cabecinha suja; espantar as palavras como mosquitos; ps-se a contar mentalmente, um, dois as palavras surgiram: J E A N-P AUL SARTRE divertimento de veranistas. Mas contou mais depressa, apertou as malhas da rede e as palavras j no passaram. Cinco, seis, sete, oito, o fundo do mar, uma imagem estava ali, agachada, medonha, comum a essas profundezas, uma ara-nha-do-mar, desabrochando, vinte e dois, vinte e trs, Daniel percebeu que retinha a respirao, relaxou-a, vinte e sete, vinte e oito, o outro cavava l em cima, na superfcie: era uma chaga aberta, boca amarga, esses lbios abertos e o sangue que brota deles, trinta e trs, a imagem era-lhe familiar e no entanto, formava-a pela primeira vez. Espantar as imagens tambm; estava tomado por um medo estranho e leve. Deslizar deixar-se deslizar como quando se deseja dormir. Mas estou a adormecer! Sacudiu-se, emergiu tona. Que silncio, c fora; o silncio esmagador, semimorto, que buscava em vo dentro dele, estava ali, e fazia medo. O sol esparso juncava o cho de crculos plidos e irrequietos, a cadeia morta, o murmrio do rio na copa das rvores, o dorso nu, to prximo, to longnquo, sentia-se to terrivelmente estranho a tudo que se deixou mergulhar outra vez, afundou-se para trs, agora via o jardim por baixo como um mergulhador que ergue a cabea e olha para o cu atravs da gua. Sem rudo, sem voz, pequeno tagarela no centro do silncio. Um, dois, trs, espantar as palavras, que o silncio atravesse, se junte e se unifique atravs de mim; regularizar a minha respirao. Lentamente, profundamente, que cada coluna de ar esmague como um pisto as palavras que tentarem nascer. Ser, como uma rvore, como o dorso nu, como as lmulas borboletantes na terra rsea. Se fechasse os olhos: os olhos conduzem at longe de mais, para fora do instante, para fora de mim, para longe, nas folhas, no dorso; o olhar perseguido, furtivo, fugidio, semPENA SUSPENSA pr no extremo de si mesmo, apalpa a distncia. Mas no ousou cerrar as plpebras; mile devia olh-lo s escondidas, de vez em quando, e ele teria o ar de um senhor de idade apanhado por uma sonolncia digestiva; antes fascinar-se com alguma coisa, dar alimento aos olhos, amarrar o olhar, nutri-lo e descer ao fundo de si mesmo, liberto dos olhos, dentro da minha noite espessa; fixou o canteiro, esquerda, um grande ritmo verde, coagulado: uma onda imobilizada no momento em que se desfaz; o olhar perdido, lanado sem cessar de uma para outra folha, dissolvia-se naquela desordem vegetal. Um (inspirao), dois
(expirao), trs (inspirao), quatro (expirao). Descia rodopiando, no caminho encontrou uma formigante vontade de rir, fao o dervixe, tomara que eu no engula a lngua, j ela se projectava acima dele, ele afundava-se, cruzava palavras em trapos: medo, desafio, que voltavam tona. Um desafio ao cu claro, ele imaginava-o sem imagens, sem palavras est a vir, a abrir-se como uma boca de esgoto. Sob o azul, uma reivindicao amarga, uma splica v, Eli, Eli, lama sabacthni, foram as ltimas palavras que encontrou, subiam dele como bolhas leves, a parede verde do canteiro estava ali, despercebida, uma plenitude de presena diante dos seus olhos, est a vir, est a vir. Sentir-se cortado, rasgado como por uma foice, era extraordinrio, desesperante, delicioso. Aberto, aberto, a casca estoira, aberto, aberto, pleno, eu mesmo para sempre, pederasta, mau, covarde. Esto a ver-me, no. No isso; alguma coisa me v. Sentia-se objecto de um olhar. Um olhar que o perscrutava at ao fundo, que o penetrava a golpes de punhal e que no era o seu olhar: um olhar opaco, a prpria noite, que o esperava no fundo dele mesmo e o condenava a ser ele mesmo, covarde, hipcrita, pederasta J E A N-P AUL SARTRE para sempre. Ele mesmo, palpitando sob esse olhar e desafiando esse olhar. O olhar. A noite. Como se a noite fosse um olhar. Estou a ser visto. Transparente, transparente, trespassado. Por quem? No estou s disse Daniel em voz alta. mile ergueu-se. Que que h, senhor Sereno? Estava-lhe a perguntar se demoraria muito ainda. Estou a acabar disse mile , s mais uns minutos. No se apressava em recomear a cavar, olhava para Daniel com uma curiosidade insolente. Mas aquilo era um olhar humano, um olhar que se podia enfrentar. Daniel levantou-se, tremia de medo: No fica cansado de cavar assim com tanto sol? Estou habituado disse mile. Tinha um peito encantador, um pouco gordo, com dois minsculos pontos rseos; apoiava-se enxada com um ar provocante; a trs passos... Mas havia aquele estranho gozo, mais acre que todas as volpias, havia aquele olhar. Faz calor de mais para mim disse Daniel , acho que vou subir para descansar um instante. Inclinou a cabea ligeiramente e subiu a escada. Tinha a boca seca, mas estava decidido: no quarto, de cortinas corridas, persianas fechadas, recomearia a experincia. Dezassete horas e quinze minutos em Saint-Flour. A senhora
Hannequin acompanhava o marido estao; tinham seguido pelo atalho ngreme. O senhor Hannequin vestia o seu fato de sport, trazia a sacola a tiracolo; tinha calado os sapatos novos que lhe feriam o peito do p. A meio caminho encontraram a senhora Calv. Ela parara em frente da casa do tabelio para tomar flego. l PENA SUSPENSA Ah!, pobres pernas disse ela ao v-los , estou a envelhecer. Uma pobre velha. Est mais jovem que nunca disse a senhora Hannequin e no conheo muita gente capaz de voltar por este atalho sem tomar flego. Onde vo assim to depressa? perguntou a senhora Calv. Ah!, minha cara Jeanne disse a senhora Hannequin , acompanho o meu marido. Ele vai partir, foi chamado! No possvel! Mas eu no sabia! Ora, ora! Pareceu ao senhor Hannequin que ela o olhava com um interesse especial. Deve ser duro acrescentou ela partir num dia to lindo. Ora, ora! disse o senhor Hannequin. Ele muito corajoso atalhou a senhora Hannequin. Ainda bem disse a senhora Calv, sorrindo para a senhora Hannequin. o que eu dizia ontem ao meu marido: os franceses partiro todos com coragem. Hannequin sentiu-se jovem e corajoso. Desculpe-nos, temos de ir. Ento at breve. At breve... disse a senhora Hannequin meneando a cabea. Sem dvida, sem dvida disse o senhor Hannequin , at breve! Seguiram. O senhor Hannequin andava depressa, a senhora Hannequin observou: Devagar, Franois, no posso acompanhar esse passo por causa do meu corao... J E A N-P AUL SARTRE Cruzaram-se com Marie, cujo filho estava a cumprir o servio militar. O senhor Hannequin gritou-lhe: No quer nada para o seu filho, Marie? Talvez o encontre, sou soldado de novo. Marie pareceu impressionada: Jesus! implorou, de mos postas. Hannequin fez um gesto de adeus e entraram na estao. Era Charlot quem picotava os bilhetes. Ento, senhor Hannequin desta feita o grande bumbum? O zim-badabum, a rumba do amor respondeu o senhor Hannequin, estendendo-lhe o bilhete. O tabelio Pineau estava na cave. Gritou-lhes de longe:
Ento, uma farrinha em Paris? Sim disse ele , vou receber bombas em Nancy. E acrescentou sobriamente: Fui chamado. Como? disse o tabelio. Mas ento, tem o nmero dois? Pois tenho! V! Voltar em breve: tudo isso fita. No sei respondeu secamente o senhor Hannequin. Na diplomacia h conjunturas que comeam como farsas e acabam em tragdias, em sangue. E... acha justo ir lutar plos Checos? Checos ou no, sempre pelo rei da Prssia que nos batemos. Riram e cumprimentaram-se. O comboio de Paris entrava na estao, mas Pineau no deixou de beijar a mo da senhora Hannequin. O senhor Hannequin subiu para o compartimento sem se servir das mos. Lanou a sacola para um canto que PENA SUSPENSA reservara, voltou para o corredor, baixou o vidro da janela e sorriu para a mulher: Ol! Estou muito bem. H muitos lugares. Se continuar assim poderei estender as pernas para dormir. Oh!, deve subir muita gente em Clermont. o que receio. Escreve-me. Uma s palavra todos os dias, no preciso escrever muito. Est bem. No te esqueas de usar as cintas de flanela, f-lo por mini. Juro disse ele com um ar de solenidade, sorridente. Atravessou novamente o corredor, voltou escadinha da carruagem: Um beijo, minha velha. Beijou-a no rosto redondo, molhado por duas lgrimas. Meu Deus! disse ela. Todo... este aborrecimento. No faltava mais nada! Bom, bom... Calaram-se. Ele sorria-lhe, ela olhava-o sorrindo e chorando, nada mais tinha a dizer. O senhor Hannequin fazia votos para que o comboio partisse o mais depressa possvel. Dezassete horas e cinquenta e dois minutos em Niort. O ponteiro grande do relgio desloca-se com uma sacudidela a cada minuto, oscila um pouco e pra. O comboio escuro, a estao escura. Fuligem. Ela teimou em vir. Por dever. Eu disse-lhe: No vale a pena. Ela olhou para mim escandalizada: Como, Georges? Nem penses nisso. Eu disse-lhe: No te demores, no podes deixar a menina sozinha
por muito tempo. Ela respondeu: Vou pedir senhora Cornu para ficar com ela. Levo-te ao comboio e J E A N-P AUL SARTRE depois volto a ir busc-la. Agora est a, debruo-me janela do meu compartimento e olho-a. Tenho vontade de fumar, mas no ouso, penso que no seria decente. Ela olha para o fim da plataforma, abrigando os olhos com a mo por causa do sol. De vez em quando lembra-se de que estou a seu lado e que deve olhar para mim. Ergue a cabea, pousa os olhos em mim, sorri, no sabe o que dizer. No fundo, j parti. Travesseiros, cobertores, laranjas, limonadas, sanduches. Georges! Querida? Queres laranjas? A minha sacola est cheia. Mas ela tem vontade de me dar alguma coisa. Porque vou partir. Se eu recusar ela ter remorsos. No gosto de laranjas. No, obrigado. No, mesmo? No, de verdade. Es muito gentil. Sorriso plido. Beijei h pouco essas belas faces frias e cheias, e o canto desse sorriso. Ela beijou-me, senti-me um pouco enverganhado: porqu todas essas histrias, Deus meu? Porque vou partir? Muitos partem. verdade que os beijos tambm. Quantas mulheres bonitas assim de p, ao crepsculo, no fumo e na fuligem, erguendo um sorriso de lbios pintados para um homem debruado janela da sua carruagem! E depois? Ns devemos parecer um tanto ridculos: ela bela de mais, fria de mais, eu sou demasiado feio. Escreve-me disse ela , j to disse mas preciso passar o tempo, sempre que puderes. Uma s palavra basta... PENA SUSPENSA Ser uma s palavra, com efeito. No terei nada para dizer. No me acontecer nada, nunca me acontece nada. E, alm disso, eu j a vi ler cartas. O seu ar importante, aplicado, aborrecido; coloca os culos na ponta do nariz, l a meia voz e ainda acha uma maneira de pular linhas inteiras. Bem, querido, vou dizer-te adeus. V se dormes um pouco esta noite. Pois , preciso dizer alguma coisa. Mas ela sabe que eu nunca durmo no comboio. Repeti-lo- daqui a pouco senhora Cornu: O comboio estava repleto. Pobre Geor-ges, espero que mesmo assim possa dormir. Olha sua volta, com um ar infeliz; o grande chapu de palha baloua-lhe na cabea. Um rapaz com a sua jovem mulher pra ao lado dela.
Preciso de me ir embora. Preciso de ir ver a menina. Falou alto por causa deles. Eles so intimidantes porque so belos. Mas no lhe prestam ateno. Vai, querida, adeus. Volta depressa para casa. Escreverei logo que for possvel. Uma lagrimazinha, mesmo assim. Porqu, meu Deus, porqu? Ela hesita. E se de repente me estendesse os braos e me dissesse: Tudo isto no passa de um mal-enten-dido, eu amo-te, eu amo-te! No apanhes frio. No, no. Adeus. Ela parte. Um aceno de mo, um olhar claro e ei-la que se vai, devagar, balouando um pouco as ancas duras, dezassete horas e cinquenta e cinco. No tenho vontade de fumar mais. O rapaz e a mulher jovem ficaram na gare. Olho-os. Ele transporta uma sacola e falaram de Nancy; J E A N-P AUL SARTRE tambm foi chamado. No dizem mais nada; olham-se. E eu olho para as mos deles, as belas mos sem alianas. A mulher plida, esguia, tem cabelos pretos rebeldes; ele grande, loiro, uma pele doirada, os seus braos nus destacam-se da camisa de seda azul de manga curta. As portas fecham-se com estrondo; eles no ouvem; nem sequer se olham mais, no precisam de se olhar, por dentro que eles esto juntos. Passageiros para Paris! Ela treme, no fala. Ele no a beija, encerra nas suas mos os braos nus altura dos ombros, e deixa as mos deslizarem at aos punhos. Punhos magros, frgeis. Parece apert-los com toda a fora. Ela submete-se, os seus braos pendem inertes, o rosto parece adormecido. Passageiros para Paris! O comboio pe-se em movimento, o rapaz salta para o vago, fica pendurado no corrimo de cobre. Ela voltou-se para ele, o sol branqueia-lhe o rosto, pisca os olhos, sorri. Um sorriso largo e quente, to confiante, to sereno, to terno: no possvel que um homem, por mais belo e forte que seja, leve consigo, para si s, um tal sorriso. Ela no me v, s v a ele, pisca os olhos, luta contra o sol para o ver mais um instante. Sorrio tambm para ela, devolvo-lhe o seu sorriso. Dezoito horas. O comboio deixou a estao, o sol entra, todos os vidros brilham. Ela ficou na gare, pequenina, escura. No se mexe. No acena com o leno, os seus braos colam-se ao corpo, mas sorri, dir-se-ia que se extingue a sorrir. Agora ainda sorri, sem dvida, mas j no se v o seu sorriso. Vemo-la apenas. Ali est para ele, para todos os que partem, para mim. A minha mulher est na nossa casa calma, sentada
junto PENA SUSPENSA da menina, o silncio e a paz reconstituem-se volta dela. Eu parto, pobre Georges, partiu, espero que possa dormir mesmo assim, eu parto, evado-me no sol e sorrio com todas as minhas foras para uma forma pequena, escura, que ficou na gare. Dezoito horas e dez. Pitteaux andava de um lado para o outro na Rua Cassette, tinha encontro marcado s dezoito horas; olhou para o relgio de pulso, dezoito e dez, subirei daqui a cinco minutos. A quinhentos e vinte e oito quilmetros a sudoeste de Paris, Georges, apoiado janela, deslizava entre pastagens, olhava para os postes telegrficos, suava, sorria. Pitteaux dizia para com os seus botes: Que disparate poder ter feito ainda esse chato? Sentiu-se tomado por um desejo violento de subir, tocar gritar: Ento que foi que ele fez agora? No tenho nada com isso! Mas decidiu-se a dar meia volta, irei at ao lampio, caminhou, antes de tudo no parecer apressado, censurava-se por ter vindo, devia ter respondido em papel timbrado: Minha senhora, se desejar falar-me, estou no meu escritrio diariamente das dez ao meio-dia. Voltou as costas para o lampio, apressou o passo sem dar por ele. Paris: quinhentos e dezoito quilmetros. Georges enxugou a fronte, deslizava de lado para Paris, como um caranguejo, Pitteaux pensava: Negcio chato, quase corria, o comboio atrs dele, virou na Rua de Rennes, entrou no 71, subiu ao terceiro andar e tocou; a seiscentos e trinta e nove quilmetros de Paris, Hannequin olhava para as pernas da sua vizinha, eram grossas e bem desenhadas dentro de meias um pouco brilhantes e felpudas. Pitteaux tocara, esperava porta enxugando a fronte. Georges enxugava a fronte no meio do barulho das rodas nos J E A N-P AUL SARTRE carris, que disparate ter ainda feito, um negcio chato, Pitteaux tinha dificuldade em engolir e o estmago, principalmente o estmago, sentia-o vazio e cheio de espasmos, mas mantinha-se erecto, de cabea erguida, dilatando um pouco as narinas, e fazia a sua carranca, a sua terrvel carranca; a porta abriu-se, o comboio de Hannequin mergulhou num tnel, Pitteaux penetrou numa escurido fresca, cheirava a poeira sagrada, a criada disse-lhe: Queira entrar por favor, uma mulher gordinha e perfumada, braos nus e moles, suave moleza das carnes quadragenrias, com uma mecha branca no meio dos cabelos pretos, precipitou-se ao seu encontro; sentiu o seu odor maduro. Onde est ele? Inclinou-se, ela tinha chorado. A vizinha de Hannequin
descruzou as pernas e ele viu um pedao de coxa acima da liga. Pitteaux fez uma careta: A quem se refere, minha senhora? Ela disse: Onde est Philippe? Ele sentiu-se cheio de ternura, talvez ela chorasse diante dele, torcendo os belos braos; uma mulher do seu meio devia, sem dvida, rapar as axilas. Uma voz de homem f-lo sobressaltar, vinha do fundo do vestbulo: Cara amiga, no percamos tempo. Se o senhor Pitteaux quiser vir ao meu escritrio, dir-lhe-emos... Apanhado na ratoeira! Entrou a tremer de raiva, mergulhou num calor branco, o comboio saa do tnel, uma flecha de luz branca entrou no vago. Sentaram-se de costas para a luz, naturalmente, e eu estou de frente para a claridade. Eram dois. PENA SUSPENSA Sou o general Lacaze disse o homem de uniforme. Indicou o seu vizinho, um gigante melanclico, e acrescentou: Este o doutor Jardies, mdico psiquiatra, que nos fez o favor de examinar Philippe e de acompanhar o seu caso nestes ltimos tempos. Georges voltou ao compartimento e sentou-se, um moreninho falava, tinha cara de espanhol: O seu patro ajud-lo-, tudo isso est certo para os empregados e funcionrios. Eu no tenho ordenado fixo, recebo muitas gorjetas, sou criado de caf, tudo. Vocs dizem que isso no vai durar, que para aterroriz-los, quero crer, mas suponham que dura dois meses, como que a minha mulher vai comer? Philippe, meu enteado, abandonou o lar sem nos prevenir, nas primeiras horas da manh. L pelas dez, a sua me achou esta carta na mesa da sala de jantar. Estendeu-a por cirna da secretria com ar autoritrio: Queira tomar conhecimento. Pitteaux pegou na carta com repugnncia, aquela caligrafia mesquinha e suja, irregular, pontiaguda, com rasuras e manchas; ele chegava, esperava horas inteiras, e eu ouvia-o andar de c para l, depois saa deixando em qualquer lugar, no cho, na cadeira, por baixo da porta, papelinhos amassados, cobertos de garatujas, Pitteaux olhava para a caligrafia sem dizer nada, como uma sequncia de desenhos absurdos e demasiado conhecidos, que lhe provocavam nojo, gostaria de nunca o ter conhecido. Mezinha, estamos no tempo dos assassinos, eu prefiro o martrio. Sofrers, talvez, um pouco: assim o espero. Philippe. J E A N-P AUL SARTRE
Largou a carta na secretria e sorriu: Tempo dos assassinos! A influncia de Rimbaud tem sido nefasta. O general fixou-o: Trataremos daqui a pouco da questo das influncias. Sabe onde est o meu enteado? Como o saberia? Quando viu o rapaz pela ltima vez? Essa agora! Submetem-me a um interrogatrio, pensou Pitteaux. Voltou-se para a senhora Lacaze e disse afavelmente: No sei dizer, h oito dias, creio. Agora a voz do general feria-o de lado: Ele deu-lhe a conhecer as suas intenes? No disse Pitteaux, sorrindo para a me. A senhora conhece o Philippe, age por impulsos. Estou convencido de que no sabia ontem noite o que faria esta manh. E posteriormente perguntou o general no lhe escreveu nem telefonou? Pitteaux hesitou, mas a sua mo j se movimentara, uma mo dcil, servil, que mergulhou no bolso interior e estendeu um papelucho. A senhora Lacaze pegou avidamente no bilhete. No mando mais nas minhas mos. Mandava ainda no rosto, fez aquela sua carranca, arqueando o cenho. Recebi isto hoje de manh. Lcetus et errabundus leu a senhora Lacaze com ateno. Pela paz. O comboio rodava, o navio balouava, o estmago de Pitteaux cantava, ps-se de p, penosamente: Isso quer dizer: alegre e vagabundo explicou Pitteaux cortesmente. o ttulo de um poema de Verlaine. PENA SUSPENSA O psiquiatra deitou-lhe um olhar: Um poema um tanto especial. tudo? indagou a senhora Lacaze. Virava e revirava o papelucho. Infelizmente, minha senhora, tudo. Ouviu-se a voz cortante do general: Quer mais, quer minha amiga? Acho essa carta perfeitamente clara, e estranho que o senhor Pitteaux pretenda desconhecer as intenes de Philippe. Pitteaux voltou-se bruscamente, olhou para o uniforme, no o rosto, e o sangue subiu-lhe cabea. Senhor disse , Philippe escrevia-me bilhetes desse tipo trs a quatro vezes por semana, eu j no ligava a isso. O senhor h-de desculpar-me, mas tenho outras ocupaes. Senhor Pitteaux disse o general , o senhor dirige desde
1937 a revista O Pacifista, na qual tomou nitidamente posio no s contra a guerra, mas ainda contra o Exrcito francs. O senhor conheceu o meu enteado em Outubro de 37 em condies que ignoro e converteu-o s suas ideias. Sob a sua influncia, ele adoptou uma atitude inadmissvel em relao a mim, porque sou oficial, e em relao me, porque se casou comigo. Ele entregou-se publicamente a manifestaes de carcter francamente antimilitarista. Agora abandona o lar, no momento de maior tenso internacional, avisando-nos na carta, que o senhor leu, que pretende tornar-se um mrtir da paz. O senhor tem trinta anos e Philippe ainda no tem vinte, portanto no lhe causarei surpresa ao dizer-lhe que o considero pessoalmente responsvel por tudo quanto possa acontecer ao meu enteado em consequncia desta fuga. J E A N-P AUL SARTRE Pois disse Hannequin vizinha , vou dizer--Ihe: fui mobilizado. Meu Deus! disse ela. Georges olhava para o criado de mesa, achava-o simptico e tinha vontade de lhe dizer: eu tambm fui mobilizado, mas no ousava, por pudor, o comboio balouava terrivelmente. Estou em cima das rodas, pensou. Recuso qualquer responsabilidade disse Pitteaux categoricamente. Compreendo o seu sofrimento, mas nem por isso hei-de aceitar a funo de bode expiatrio. Philippe Grsigne veio sede da revista em Outubro de 37, um facto que no pretendo ignorar. Entregou-nos um poema que nos pareceu promissor, e ns publicmo-lo no nosso nmero de Dezembro. Depois disso, apareceu muitas vezes e ns tudo fizemos para desencoraj-lo: era exaltado de mais e, para dizer a verdade, no sabamos o que fazer dele. (Sentado beira da cadeira, fixava em Pitteaux o seu olhar azul e incmodo, via-o beber e fumar, via-o mexer os lbios, mas no fumava, no bebia, enfiava de vez em quando o dedo no nariz ou a unha entre os dentes, sem parar de olh-lo.) Mas onde poder estar? gritou subitamente a senhora Lacaze. Onde poder estar? Que estar a fazer? O senhor fala dele como se tivesse morrido! Calaram-se. Ela inclinara-se para a frente com uma fisionomia de angstia e desprezo; Pitteaux via-lhe a linha dos seios pelo decote da blusa; o general permanecia erecto no seu sof, esperava, concedia alguns minutos de silncio legtima dor de uma me. O psiquiatra olhou para a senhora Lacaze com atenta simpatia, como se fosse uma das suas doentes. Depois, meneou a cabeorra melanclica, voltou-se para Pitteaux e reiniciou as hostilidades: PENA SUSPENSA
Admito, senhor Pitteaux, que Philippe no tenha compreendido todas as suas ideias. O facto que se tratava de um rapaz muito influencivel e que lhe devotava uma enorme admirao. Cabe-me a mini a culpa? Talvez no lhe caiba a culpa. Mas o senhor abusava da sua fora. Ora, tenha pacincia! Enfim, se o senhor examinou Philippe, sabe que um doente! No bem um doente disse o mdico, sorrindo. Tinha certamente uma hereditariedade pesada. Do lado do pai acrescentou, deitando um olhar ao general. Mas no era um psicopata propriamente dito. Era um rapaz solitrio, desajustado, preguioso e vaidoso. Sestros, fobias, naturalmente, com predominncia de ideias sexuais. Veio ver-me amide nestes ltimos tempos, conversmos, confessou-me que... como dizer? Desculpe-me a rudeza de mdico... senhora Lacaze. Tinha ejaculaes frequentes e sistemticas. Sei que muitos colegas vem nisso um efeito apenas; penso, como Esquirol, que antes uma causa. Em suma, atravessava penosamente isso a que Mendousse chamou, com muita felicidade, a crise de originalidade dos adolescentes: necessitava de um guia. O senhor foi um mau pastor, senhor Pitteaux, um mau pastor. O olhar da senhora Lacaze parecia pousado em Pitteaux por acaso; mas era insustentvel. Pitteaux preferia voltar-se francamente para o psiquiatra. Que a senhora Lacaze me perdoe disse , mas, uma vez que me foram a diz-lo, declaro com toda a franqueza que sempre considerei Philippe como o tipo J E A N-P AUL SARTRE acabado do degenerado. Se precisava de um guia porque no se preocupou com ele? E a sua profisso. O psiquiatra sorriu tristemente e lambeu os lbios, suspirando. Ela sorria, encostada porta da cabina, toda arrepiada: Pois bem, menina disse o capito , volte s nove horas e dir-lhe-ei o que puder fazer por si e pelas suas amigas. Tinha os olhos vazios e claros, estava muito vermelho, acariciou-lhe os seios e o pescoo e acrescentou: No se esquea, esta noite s nove horas. O general Lacaze houve por bem comunicar-me algumas pginas do dirio de Philippe e achei que era meu dever tomar conhecimento delas. Senhor Pitteaux, deduz-se dessa leitura que o senhor praticava chantagem com esse infeliz. Sabendo a que ponto ele aspirava sua estima, o senhor aproveitava, parece, para solicitar certos favores que no se esclarecem no dirio. Nestes ltimos tempos ele resolveu revoltar-se e o
senhor manifestou-lhe tal desprezo que o levou ao desespero. Que sabero eles? Mas a clera foi mais forte, sorriu por sua vez. Maud sorria e cumprimentava, o traseiro j estava para fora, ao ar livre, o busto inclinava-se, mergulhava no ar quente e perfumado da cabina: Certamente, capito. Ento s nove horas; combinado. Quem o levou ao desespero? Quem o humilhava diariamente? Quem foi que o esbofeteou no sbado mesa? Eu? Quem o tratava como um doente e o mandava a um psiquiatra e o forava a responder a perguntas deprimentes? Voc tambm foi chamado? perguntou o criado de mesa. PENA SUSPENSA Georges sorriu-lhe com um ar infeliz, mas fora preciso falar, responder s perguntas das duas jovens: No disse , vou em negcios a Paris. A voz aguda da senhora Lacaze sobressaltou-o: O senhor no se cala? No pode calar-se? Como o senhor o despreza! Um rapaz de vinte anos, o senhor despiu-o, manchou-o, e a mim, ser que tambm no me respeita? Talvez ele se tenha atirado ao Sena e os senhores estejam para a a culparem-se mutuamente! Somos todos culpados; ele dizia: No tm o direito de me exasperar, e todos ns o exaspervamos. O general estava vermelho. Maud estava vermelha: Pronto disse , viro buscar as bagagens, dormiremos na segunda classe, esta noite. Ests a ver, querida? disse France. Fazias disso um cavalo de batalha, mas no era assim to difcil. Rose disse ele sem elevar a voz, fixando nela os seus olhos frios. Ela tremeu, olhou-o, de boca aberta. ... imundo, tenho vergonha! Ele estendeu a sua mo forte e fechou-a no brao despido da mulher, repetindo: Rose com uma voz sem entonao. O corpo da senhora Lacaze comprimiu-se, fechou a boca, sacudiu a cabea e pareceu despertar; olhou o general e este sorriu--Ihe: tudo voltara normalidade. No compartilho das inquietaes da minha mulher. O meu enteado desapareceu, roubando dez mil francos da secretria da me. -me difcil crer, portanto, que esteja disposto a atentar contra a vida. Houve um silncio. O navio j balouava um pouco; Pierre sentia-se enjoado, pusera-se diante do seu beliche, J E A N-P AUL SARTRE abrira a maleta, donde saiu um cheiro a lavanda, a dentr-fico e tabaco loiro que lhe transtornou o estmago, pensou: O steward disse que faramos uma m travessia! O general meditava, a mulher parecia uma criana bem-
-educada, Pitteaux no compreendia, o estmago cantava-Ihe, a cabea doa-lhe, no compreendia; a azia, hop, subia-lhe s narinas, o soalho vibrava-lhe sob os ps, o ar quente e viscoso, olhava o general e no tinha fora para odi-lo. Senhor Pitteaux disse o general, concluindo esta entrevista , acho que o senhor deve ajudar-nos a encontrar o meu enteado. At agora limitei-me a alertar os comissariados. Mas dentro de quarenta e oito horas, se no encontrarmos Philippe, tenho a inteno de entregar o caso ao meu amigo o procurador Dterne e perguntar-lhe, aproveitando a oportunidade, se a justia no andaria certa examinando a origem dos fundos de O Pacifista. Eu... eu naturalmente ajud-los-ei. Todos podem meter o nariz na contabilidade de O Pacifista, podemos mostr-la em pleno dia. O navio afundou-se, era uma montanha russa; respondeu, empurrando as palavras pela garganta apertada: Mas no me recuso a ajudar. Por simples sentimento de humanidade, general. O general inclinou a cabea: como o entendo. Aquilo subia devagar, devagar, mal se percebia, e descia do mesmo modo, no podamos deixar de olhar para os beliches ou para o lavabo, para surpreender, de passagem, algo que estivesse a subir ou a descer, mas no se via nada, a no ser, de quando em quando, uma faixa azul-escura, PENA SUSPENSA ligeiramente inclinada, que surgia no rebordo inferior da vigia e logo se sumia; era um pequeno movimento vivo e tmido, uma pulsao, o corao de Pierre batia em unssono; durante horas e horas aquilo continuaria, a lngua de Pierre era um fruto inchado e suculento na boca, a cada deglutio ouvia um estalido cartilaginoso nos ouvidos, havia tambm uma coroa de ferro a apertar-lhe as tmporas e ainda aquela vontade de bocejar. Mas estava sossegado: s enjoa de verdade quem quer. Bastar-lhe-ia levantar-se, dar uma volta pelo convs, recuperaria o equilbrio, o seu ligeiro mal-estar dissipar-se-ia: Vou visitar Maud, disse. Largou a maleta, ps-se muito teso borda do beliche, era como se despertasse. Agora o navio subia e descia sob os seus ps, mas a cabea e o estmago estavam livres: os olhos cheios de desprezo de Maud reapareceram e o medo, e a vergonha. Eu dir-lhe-ei que estava doente, uma ligeira insolao, que bebi de mais. preciso que me explique, ele falaria, feri-lo-ia com o seu olhar duro, como cansativo. Engoliu penosamente a saliva,
que lhe deslizou pela garganta num horrvel roar sedoso, e j uma gua salobra lhe vinha boca, cansativo, cansativo, as suas ideias dissiparam-se, restava apenas uma doura abandonada, um desejo de subir e descer compassadamente, de vomitar docemente, longamente, de se entregar ao travesseiro, sem pensar, subir, subir, levado pelo grande balano do mundo; recuperou-se a tempo: s enjoa de verdade quem quer. Reencontrou-se por inteiro, teso e seco, um covarde, um amante desprezado, um futuro morto de guerra, e enfrentou-se novamente com todo o seu medo lcido e gelado. Pegou na segunda mala do beliche superior, colocou-a no beliche inferior e ps-se a desfaz-la. Permanecia erecto, J E A N-P AUL SARTRE sem se inclinar, sem sequer olhar para a mala e os seus dedos adormecidos apalpavam a fechadura ao acaso; valeria a pena? Valeria a pena lutar? Ele no seria seno uma grande doura, no pensaria em mais nada, j no teria medo, bastava relaxar-se: preciso que eu v procurar Maud. Ergueu a mo e moveu-a no ar com uma lentido hesitante e algo solene. Gestos suaves, suaves batidas dos clios, doce sabor ao fundo da minha boca, doce cheiro a lavanda e dentfrico, o navio sobe devagar, torna a descer devagar. Bocejou e o tempo tornou-se mais lento, tudo se tornou vaporoso sua volta: bastava endireitar-se, dar trs passos fora da cabina, ao ar livre. Mas para qu? Para encontrar o medo? Afastou a mala com a mo e estendeu-se no beliche. Um xarope. Um xarope adocicado. J no tinha medo, j no tinha vergonha, era delicioso enjoar. Sentou-se beira do cais, as pernas pendiam acima da gua: estava cansado e disse: Marselha no seria m se no tivesse tantas casas. Em baixo, os barcos mexiam-se um pouco, no muito, eram pequenos, numerosos, com flores ou ento com belas cortinas vermelhas e estatuetas nuas. Olhava os barcos, alguns pulavam como cabras, outros no se mexiam, via a gua azul e uma ponte de ferro ao longe. Temos prazer em olhar para o que est longe, descansamos. Doa-lhe os olhos; dormia debaixo do vago quando apareceram uns homens com lanternas; haviam iluminado tudo e tinham-no expulso com palavras humilhantes; depois disso encontrara, certo, um monte de areia, mas no pudera dormir. Indagou: Como que me vou arranjar esta noite? Havia seguramente bons lugares com um pouco de grama, mas era preciso conhec-los. Deveria PENA SUSPENSA ter perguntado ao negro. Tinha fome e ps-se de p, os seus joelhos entorpecidos estalaram. No tenho mais nada que comer. Preciso de ir a uma penso. Reiniciou a caminhada,
tinha andado o dia inteiro: entrava, perguntava: H trabalho? e continuava. O negro dissera: No h trabalho. Nas cidades, andar torna-se cansativo por causa dos paraleleppedos. Atravessou o cais em diagonal, olhando para a direita e para a esquerda para evitar os carros elctricos, quando ouvia as suas campainhas assustava-se. Havia muita gente, uns rapazinhos que andavam muito depressa, olhando para os ps como se procurassem alguma coisa; esbarravam nele e pediam-lhe desculpa sem sequer olharem para ele; ter-lhes-ia falado, mas pareciam to frgeis que o intimidavam. Subiu para o passeio, e viu cafs com belas esplanadas, e tavernas, mas no entrou: tinham toalhas nas mesas e difcil no as manchar. Seguiu por uma viela escura, perguntando a si mesmo: Mas onde e que vou comer, afinal?, e foi quando descobriu o que queria: uma dzia de mesas de madeira dentro de uma sala, quatro ou cinco pratos em cada mesa e uma pequena lmpada que no devia iluminar muito, e nada de toalhas. Numa das mesas, um senhor comia com a mulher. Gros-Louis sentou-se mesa vizinha e sorriu-lhes. A senhora olhou-o com severidade e recuou um pouco a cadeira. Gros-Louis chamou a criada: era pequenina e magra, mas possua um par de ndegas duras e provocantes: O que que se come aqui, linda? Era bonita e cheirava bem, mas no parecia contente por v-lo ali. Fixou-o hesitante: Veja a ementa. Ah! Sim! J E A N-P AUL SARTRE Pegou no papel e fingiu olhar, mas tinha receio de segur-lo ao contrrio. A criada afastara-se, falava com um senhor perto da porta. O senhor ouvia-a, meneando a cabea e olhando para Gros-Louis. Por fim, deixou-a e aproximou-se, com um ar triste, de Gros-Louis. Que deseja, amigo? Quero comer disse Gros-Louis espantado. No ter a uma sopa com um pedao de toucinho? O senhor sacudiu a cabea tristemente: No, no temos sopa. Tenho dinheiro. No quero fiado. Sei, sei, mas o senhor deve ter-se enganado. No estaria aqui vontade e incomodar-nos-ia. Gros-Louis olhou-o: No uma casa de pasto, isto? disse o patro , mas temos um certo tipo de freguesia... o senhor deveria seguir pelo outro lado da Canebire, h por l uma poro de pequenos restaurantes que lhe conviro perfeitamente. Gros-Louis levantara-se. Coou a cabea desajeitadamente.
Tenho dinheiro, posso mostrar. No preciso. Eu acredito na sua palavra. Agarrou-o pelo brao, gentilmente, f-lo dar uns passos rua. V por ali, ir dar ao cais, siga pela direita, no pode errar. O senhor muito correcto disse Gros-Louis, tocando no chapu. Sentia-se culpado. Voltou a encontrar-se no cais, no meio dos homenzinhos escuros que lhe corriam entre as pernas, andava PENA SUSPENSA devagar, receoso de derrubar um deles, e estava triste; a esta hora costumava descer do Canigou a caminho de Villefranche, o rebanho tratava frente, era uma campanhia, encontrava muitas vezes o senhor Pardoux, que ia para a sua quinta do Vtil e que nunca passava por ele sem lhe oferecer um charuto e um par de palmadas nas costas, a montanha era ruiva e muda, ao fundo do vale viam-se as chamins de Villefranche. Estava perdido, toda aquela gente andava depressa de mais, s lhes via o alto da cabea ou a copa do chapu. Um moleque escorregou-lhe entre as pernas, olhou-o a rir e disse ao companheiro: Bolas! No achas que ele se aborrece l em cima, sozinho? Gros-Louis viu-o correr e sentiu-se culpado: tinha vergonha de ser to grande: Disse: Eles l tm os seus hbitos, e apoiou-se ao muro. Estava triste, to triste como no dia em que ficara doente. Pensou no negro, que era delicado e alegre, seu nico amigo, e disse: No o devia ter deixado ir embora. Subitamente teve uma ideia divertida: um negro, v-se de longe, no deve ser difcil de encontrar, recomeou a andar, sentia-se menos s, procurava com o olhar e pensava: Vou-lhe pagar um copo. Estavam todas na praa, tinham o rosto avermelhado pelo sol crepuscular. Havia Jeanne, Ursule, as irms Clapot, a Marie e todas as outras. Primeiro tinham esperado em casa, finalmente haviam voltado praa uma aps outra e esperavam. Viram, atravs do vidro fosco, acenderem-se as primeiras lmpadas no caf da viva Tremblin; formavam trs manchas nebulosas na parte de cima do vidro. Viram as manchas e sentiram-se melanclicas: a viva Tremblin acendera as lmpadas no seu caf vazio, J E A N-P AUL SARTRE sentara-se a uma mesa de mrmore, e consertava as meias de algodo sem demonstrar inquietao, porque era viva. Mas elas permaneceram c fora; esperavam os seus homens, atrs delas havia as casas vazias e as cozinhas que a noite invadia pouco a pouco e, diante delas, aquela longa estrada de aventura e ao fim da estrada havia Caen. Marie viu as horas no relgio da
igreja e disse a Ursule: J vo bater nove horas, devem t-los retido. O prefeito afirmara que isso era impossvel, mas que sabia ele? No conhecia melhor do que elas os hbitos nas cidades. Porque iriam recusar homens fortes que se apresentavam espontaneamente? Talvez mesmo lhes tivessem dito: Uma vez que aqui esto... e t-los-iam segurado. A menina Rose chegou a correr, estava ofegante e gritava: L vm eles! L vm eles! E todas as mulheres se puseram a correr tambm; correram at quinta de Darbois, de onde se via um bom bocado da estrada, e viram-nos na poeira branca, entre os prados; estavam nas suas carroas, em fila, voltavam devagar, cantando. Chapin vinha frente, estava sentado despreocupadamente, as mos mal seguravam as rdeas do cavalo, o qual andava por hbito; Marie viu que ele tinha um olho preto e pensou que devia ter brigado. Atrs dele, na sua carroa, o jovem Renard cantava a plenos pulmes, mas no parecia alegre, os outros acompanhavam, manchas escuras no horizonte claro. Marie virou-se para a Clapot e disse-lhe: Esto bbados, no faltava mais nada. A carroa de Chapin chegava devagar, rangendo, as mulheres apartaram-se para deix-la passar. Ela passou e a Louise Chapin disse num grito agudo: Deus meu! Traz s um boi, que ter feito ao outro, vendeu-o para beber. O jovem Renard, cantando a plenos pulmes, PENA SUSPENSA fazia a carroa ziguezaguear de um lado para o outro e atrs dele havia outros cantando tambm, em p, nas carroas empunhando os chicotes. Marie viu o seu homem, no parecia bbado, mas quando olhou de perto a cara enfadonha, percebeu que ele bebera e que ia bater-lhe: Pior do que um bicho!, pensou, com o corao apertado. Mas mesmo assim, estava contente por ele ter voltado, havia muito que fazer na quinta, era melhor que lhe batesse de vez em quando, ao sbado, mas que estivesse a postos para as tarefas pesadas. Ele deixara-se cair numa cadeira na esplanada de um caf, pedira vinho, tinham-lhe servido vinho branco num copo pequeno, sentia as pernas, estendeu-as sobre a mesa e mexeu com os dedos: E divertido, disse. Bebeu e pensou: divertido, procurarei bem, por toda a parte. T-lo-ia feito sentar-se ali sua frente, teria contemplado a sua boa cabea negra: tinha rido s de v-lo e o negro tambm rira, parecia confiante e manso como um animal: Eu dar-lhe-ia tabaco e vinho. O seu vizinho olhava-o: ele acha-me estranho porque falo sozinho; era um rapaz de vinte anos, mal desenvolvido, doentio, com uma pele de mulher, tinha o nariz achatado, plos nas orelhas e uma ncora tatuada no antebrao esquerdo. Gros-Eouis percebeu que
falavam dele, no seu pato. Sorriu-lhes e chamou o criado de mesa: Mais um copo, rap^z. E se tiveres copos maiores no faas cerimnia. O rapaz no se mexia, estava mais do que mudo. Gros-Louis tirou a carteira do bolso e colocou-a na mesa. Ento! Que cara essa? Pensas que eu no posso pagar? Olha! Tirou da carteira trs notas de mil e exibiu-as. J E A N-P AUL SARTRE Que dizes a isto? Vamos, traz l um copo dessa porcaria. Guardou a carteira e percebeu que o rapazinho de cabelo frisado lhe sorria gentilmente: A coisa vai, hem? Mais ou menos. Procuro o meu negro. Voc no daqui? No disse Gros-Louis a rir. No sou daqui. Queres beber um trago? Sou eu quem te convida. coisa que no se recusa disse o rapaz. Posso chamar o meu companheiro? Disse algumas palavras ao amigo, no seu pato. Este sorriu e levantou-se em silncio. Sentaram-se em frente de Gros-Louis. O rapazinho cheirava a perfume barato. Cheiras a perfume disse Gros-Louis. Venho do barbeiro. Ento isso. Como te chamas? Eu chamo-me Mrio; o meu amigo italiano. O seu nome Starace. Somos marinheiros. Starace sorriu, sem dizer coisa alguma. No sabe francs, mas impagvel. Tu sabes italiano? No. No faz mal, vers; divertido na mesma. Falaram italiano. Era bonito, pareciam cantar. Gros--Louis sentia-se satisfeito por estar com eles; assim, tinha companhia, mas no fundo estava s. O que que vocs tomam? Pastis disse Mrio. Trs pastis disse Grous-Luis. Que isso? vinho? No, muito melhor, vers. PENA SUSPENSA O rapaz encheu trs copos de um licor. Mrio ps gua nos copos e o licor transformou-se numa nvoa esbranquiada. Sade! disse Mrio. Bebeu ruidosamente e limpou a boca com a manga. Gros-Louis bebeu tambm; no era mau, cheirava a anis. Olha Starace, vais divertir-nos. Starace fazia-se de vesgo; ao mesmo tempo, franziu o nariz e
remexia as orelhas como um coelho. Gros-Louis riu, mas sentia-se chocado e aborrecido: pensou que no gostava de Starace. Mrio chorava a rir: Eu avisei-te disse Mrio a rir. Ele formidvel. Agora vai fazer o truque do pires. Starace pousou o copo na mesa, encaixou o pires na palma da mo e passou trs vezes seguidas a mo esquerda sobre a direita. terceira vez o pires desapareceu. Valendo-se da surpresa de Gros-Louis, Starace enfiou-lhe a mo entre os joelhos. Gros-Louis sentiu uma coisa a raspar-Ihe as pernas e a mo reapareceu com o pires. Gros-Louis riu moderadamente, embora Mrio lhe batesse nas coxas, rindo como um louco. Velho malandro! disse Mrio entre dois soluos. Eu avisei-te: nunca paras de rir, connosco. Acalmou-se progressivamente; quando enfim tornou seriedade, um silncio pesado caiu sobre os trs homens. Gros-Louis achava-os cansativos e tinha mesmo uma vaga vontade de que eles se fossem embora, mas pensou que a noite ia cair e que teria de recomear a caminhada ao acaso pelas ruas compridas e escuras e procurar interminavelmente um canto para comer e outro para dormir; sentiu-se angustiado e pediu uma nova rodada de pastis. J E A N-P AUL SARTRE Mrio inclinou-se para o seu lado e Gros-Louis respirou de novo aquele cheiro. Ento no s daqui? perguntou Mrio. No sou daqui e no conheo ningum. O nico tipo que conhecia no o consigo encontrar. A menos que vocs o conheam. E o negro. Mrio sacudiu a cabea com um ar vago. Subitamente, tornou a inclinar-se sobre Gros-Louis, piscando os olhos: Marselha uma cidade em que nos podemos divertir. Se no conheces Marselha, nunca te divertiste na vida. Gros-Louis no respondeu. Divertira-se muitas vezes em Villefranche. E tambm nos bordis de Perpignan quando servira no exrcito: coisa fina. Mas no conseguira imaginar que algum pudesse divertir-se em Marselha. No te apetece divertir? perguntou Mrio. No gostas de bonecas bonitas? No isso disse Gros-Louis. Mas agora eu preferia comer. Se vocs conhecerem alguma casa de pasto por a, eu ofereo o jantar. Com o crepsculo, os slidos haviam-se evaporado, ficaram vagas massas gasosas, brumas sombrias; ela andava depressa, de
cabea baixa, ombros encolhidos; tinha medo de dar, de repente, um encontro no cordame, passava rente s paredes. Deixar-se roer pela noite, no ser mais do que um pouco da vapor suspenso na imensa neblina e desfazer-se pouco a pouco plos beirais. Mas sabia que o seu vestido branco era um farol. Atravessava o convs da segunda classe, no ouvia um rudo, a no ser o eterno lamento do mar; mas havia por toda a parte homens imveis e silenciosos, que se destacavam sobre a sombra achatada das PENA SUSPENSA guas, e tinham olhos; de quando em quando uma brasa pontiaguda fazia um buraco na noite, avermelhava um rosto, olhos brilhavam, fixavam-na, esvaam-se, quisera morrer. Foi preciso descer uma escada, atravessar o convs da terceira classe, subir outra escada, abrupta e branca; se me virem, no pode haver engano, a cabina l em cima, isolada; ele precisa de trabalhar, no muito provvel que me prenda por toda a noite. Tinha receio de que ele se habituasse e mandasse todas as tardes um steward busc-la ao salo, como o capito grego, mas no, para um gorducho assim sou magra de mais, vai ter uma decepo, s ossos. No precisou de bater, a porta estava aberta, ele esperava-a no escuro, disse: Entre, bela senhora. Ela hesitou um instante, com um n na garganta; uma mo puxou-a para dentro da cabina e a porta fechou-se. Viu-se achatada subitamente de encontro a um ventre gordo, uma boca velha que cheirava a cortia esmagou-lhe a boca. Deixava-o fazer, pensando com altiva resignao: E do ofcio, faz parte do meu ofcio. O comandante acendeu a luz, a sua cabea emergiu da sombra, o branco dos seus olhos era lquido e azulado, com uma manchinha vermelha no olho esquerdo. Ela desenvencilhou-se, sorrindo; tudo se tornara muito mais difcil com as luzes acesas; at ento ela imaginava-o maciamente, mas agora ele existia nos mais nfimos detalhes, ela ia fazer amor com um ser nico no mundo, como todos os seres, e essa noite seria uma noite nica, como todas as noites, uma noite de amor, nica e irreparvel, irreparavelmente perdida. Maud sorria e dizia: Espere, capito, espere, est muito apressado: precisamos de travar conhecimento. J E A N-P AUL SARTRE Que foi? Soergueu-se inquieto: o navio parecia imvel. Deu trs ou quatro arrotos, um dos quais, muito mau, lhe passou pelo nariz; sentiu-se vazio, mas lcido. Que foi?, pensou. E viu-se de repente sentado no beliche, com um crculo de ferro a apertar-lhe a cabea e aquela angstia j demasiado familiar
a morder-lhe o corao. O tempo pusera-se novamente em marcha, era um mecanismo inexorvel e brusco, cada segundo o feria, rasgava-o como um dente de serrote, cada segundo aproximava-o de Marselha e da terra cinzenta onde ia morrer. O mundo estava ali de novo, em volta da cabina, um mundo atroz, de gares, fumos uniformes, campos devastados, um mundo em que no podia viver e no queria abandonar, com a cova lamacenta que o aguardava na Flandres. Um covarde, um filho de oficial com medo da guerra, tinha horror a si mesmo. E no entanto, agarrava-se desesperadamente vida. Mais imundo ainda; no pelo que valho que quero viver, ... por nada, por nada, s porque vivo. Sentia-se capaz de tudo para salvar a pele, de fugir, de pedir perdo, de trair, e no entanto no tinha assim tanto amor a essa pele. Levantou-se: Que que lhe vou dizer? Que tive uma insolao, um ataque de paludismo? Que no estava no meu estado normal? Aproximou-se do espelho, vacilante, e viu que estava amarelo como um limo. o fim; no posso ter confiana nem mesmo no estmago. E devo estar a cheirar a vomitado, ainda por cima. Passou gua-de-colnia pelo rosto e gargarejou com gua de Botot. Quanta histria, pensou ele irritado. sem dvida a primeira vez que me preocupo com o que uma mulher possa pensar de mini. Quase uma prostituta, uma violinista de barzinho; e tive mulheres casadas, mes de famlia. Esta prendeu-me, pensou ele, vestindo o casaco, e ela sabe-o. PENA SUSPENSA Abriu a porta e saiu. O capito estava nu, tinha uma pele lisa como cera, sem plos, salvo quatro ou cinco brancos, nos seios, os outros deviam ter cado de velhos, ele ria, parecia um beb gorducho e travesso. Maud encostou as pontas dos dedos s coxas grossas e polidas e ele retorceu-se: Ests a fazer-me ccegas! Ele sabia o nmero da cabina: 27. Tomou pelo corredor da direita, depois pelo da esquerda, batiam na parede com grandes pancadas regulares; 27, era ali. Uma jovem estava estendida de costas, plida como um cadver; uma senhora idosa, sentada no beliche, tinha os olhos vermelhos e inchados e comia uma fatia de po com queijo. Ah! disse ela , as trs moas? Eram muito gentis, partiram, foram para a segunda classe, lamento bastante. Ele olhava-a com surpresa, pousou-lhe a mo no osso ilaco: Seria bonita, com essa carinha de anjo, mas como magra... Ela riu, quando lhe tocavam no osso ilaco tinha vontade de rir: No gosta das magras, capito? No desgosto no, mesmo nada.
Subiu as escadas a correr; precisava de ver Maud. Agora estava no corredor da segunda classe, um belo corredor com tapete, as portas e as paredes pintadas de azul-cinza. Teve sorte: Ruby surgiu bruscamente, acompanhada por um steward que carregava as suas malas. Bom dia disse Pierre. Esto na segunda? Sim, estamos respondeu Ruby. France receia adoecer. Chegmos a acordo: quando a sade est em jogo, no se olha a sacrifcios. J E A N-P AUL SARTRE Onde est Maud? Maud estava deitada de lado, o capito acariciava-lhe as ndegas com uma cortesia distrada: ela sentia-se profundamente humilhada: Se no sou o seu tipo, preciso que ele pense que no tem obrigao. Passou-lhe a mo pelas ancas para retribuir a gentileza: pele velha. Maud? disse Ruby. Quem sabe onde ela anda? Voc conhece-a; deve ter tido vontade de fazer a corte ao pessoal do poro, a menos que seja ao comandante, ela adora as travessias, est sempre a correr de um lado para o outro. Menina curiosa! disse o capito. Riu e agarrou-Ihe o pulso. Vou fazer a inspeco de proprietrio disse. E os seus olhos brilharam pela primeira vez. Maud deixou-se inspeccionar, estava confusa por causa da mudana de cabinas, era necessrio que ele ficasse satisfeito, lamentava vivamente ser magra de mais, tinha a impresso de o ter enganado. O capito sorria, baixava os olhos, tinha um ar casto e interior, apertava o pulso de Maud e orientava-lhe a mo com firmeza e doura. Maud estava contente, pensava: Seria absurdo recusar-lhe a nica coisa que deseja, depois de todo o trabalho que lhe demos, principalmente se ele no gosta das magras. Obrigado! Muito obrigado! Inclinou a cabea e reiniciou a corrida. Era preciso encontrar Maud; deve estar no convs. Subiu ao convs da segunda classe, estava escuro, era quase impossvel reconhecer as pessoas, salvo olhando-as de muito perto. Sou um idiota, basta esper-la aqui; de onde quer que venha tem de passar por esta escada. O capito fechara os olhos, tinha um ar sereno e religioso que agradava muito a Maud, ela tinha a mo cansada, mas estava contente por lhe dar prazer PENA SUSPENSA e depois sentia-se sozinha, como quando era pequena e a av Thveneur a fazia trepar para os joelhos e de repente adormecia, balouando a cabea. Pierre olhava o mar e pensava: Sou um covarde. Um vento fresco escorria-lhe pelo rosto e
fazia vibrar a mecha de cabelos, olhava o mar a subir e descer; olhava-se a si mesmo com espanto e pensava: Covarde. No o teria nunca imaginado. Covarde at ao ltimo grau. Bastara um dia para que descobrisse a sua verdadeira natureza, sem as ameaas de guerra nunca o saberia. Se tivesse nascido em 1860, por exemplo. Teria passeado pela vida com uma segurana tranquila; teria condenado severamente a covardia dos outros e nada, absolutamente nada, lhe teria revelado a sua covardia. Falta de sorte. Um dia, um dia apenas: agora sabia e estava s. Os automveis, os comboios, os navios, lavravam a noite clara e sonora, convergiam todos para Paris, levando jovens como ele que no dormiam, que se debruavam no convs ou colavam o nariz nas vidraas sombrias. No justo, pensou. H milhares de pessoas, milhes talvez que viveram pocas felizes e nunca conheceram as suas limitaes: tiveram o benefcio da dvida. Alfred de Vigny talvez tenha sido um covarde. E Musset? E Sainte-Beuve? E Bau-delaire? Tiveram sorte. Ao passo que eu!, murmurou, batendo o p. Ela no o teria sabido nunca, teria continuado a olhar-me com adorao, no teria durado mais do que as outras, eu abandon-la-ia ao fim de trs meses. Mas agora ela sabe. Ela sabe. dona de mim, agora. Estava escuro l fora, mas no bar havia tanta luz que Gros-Louis se ofuscava. Era at engraado porque no se viam lmpadas; havia um longo tubo vermelho volta do tecto e um outro branco, e a luz vinha dali. Tinham J E A N-P AUL SARTRE colocado espelhos por todo o lado; no que estava sua frente, Gros-Louis via toda a sua cabea e o cocuruto da de Starace; no via nem Mrio nem Daisy, pequenos de mais. Pagara as refeies, e quatro rodadas de pastis; mandou trazer conhaques. Estavam sentados ao fundo do bar, diante do balco, era agradvel, cercava-os um rudo macio que embalava. Gros-Louis estava exuberante, tinha vontade de subir para a mesa e cantar, mas no sabia cantar. Em certos momentos os seus olhos fechavam-se, caa num buraco, sentia-se acabrunhado como se algo horrvel lhe acontecesse, reabria os olhos, tentava lembrar-se mas nada lhe ocorrera. Em suma, sentia-se bem, um pouco irritado mas confortvel; custava-lhe manter os olhos abertos. Estendera as pernas compridas sobre a mesa, uma entre as de Mrio e outra entre as de Starace, via-se no espelho e isso fazia-o rir; tentou fazer a careta de Starace, mas no podia mexer as orelhas nem olhar como um vesgo. Abaixo do espelho havia uma mulherzinha muito decente, que fumava pensativa; devia ter pensado que a careta era para ela porque lhe mostrou a lngua e depois, pegando no pulso direito com a
mo esquerda, fechou o punho e f-lo girar, a rir. Gros-Louis desviou o olhar atnito, receava t-la magoado. Daisy estava sentada junto dele, mida, rija, quentinha. Mas ela no lhe ligava. Cheirava bem, estava bem pintada, tinha seios volumosos, mas ele gostava das mais frgeis, alegres, que brincam e provocam, que sopram na orelha, por exemplo, e dizem baixinho ao ouvido, de olhos baixos, coisas grosseiras que se no entendem logo. Daisy era viva e grave; falava a srio da guerra com Mrio. Dizia: Pois faremos a guerra; se for necessrio faremos a guerra. PENA SUSPENSA Starace mantinha-se teso na cadeira, em frente de Daisy; parecia prestar ateno, sem dvida por cortesia, pois no compreendia nada. Gros-Louis simpatizara com ele porque ficava sossegado sem nunca se zangar. Mrio olhava Daisy, maliciosamente, meneava a cabea e dizia: No digo que no, no digo. Mas no parecia convencido. Eu prefiro a guerra greve atalhou Daisy. No preferes? Basta ver a greve dos estivadores, o que custou a todos, tanto a ns como aos outros. No digo que no. Daisy falava com cuidado e com um ar infeliz; sacudia a cabea enquanto falava. Durante a guerra, nada de greves disse severamente. Todos trabalham. Ah!, se tivesses visto os navios em 17, eras uma criana; eu tambm era, mas lembro-me. Era uma farra, noite viam-se as luzes at Estaque. E aquelas caras que se encontravam na rua, terias pensado que estavas noutro mundo, sentamo-nos orgulhosos, e as bichas na Rua Boutherille, havia ingleses, americanos, italianos, alemes e at hindus, muitos, tanto que ela ganhava, a minha me! No havia alemes disse Mrio , estvamos em guerra contra eles. Pois eu digo-te que havia, e em uniforme ainda por cima, com uma coisa nos bons. Se os vi! Estvamos em guerra contra eles. Daisy encolheu os ombros. Pois sim, l em cima, ao norte. Aqueles no vinham das trincheiras, chegavam do mar, para comerciar. Uma mulher grande e gorda, loira como manteiga, passou por eles, mas parecia sria tambm. Gros-Eouis J E A N-P AUL SARTRE pensou: por morarem na cidade que ficam assim. Ele debruou-se sobre Daisy, tinha um ar de indignao: Pois eu detesto a guerra, ouviste? Porque estou farta dela, compreendes, e o meu irmo fez a de 14, queres que recomece? E a fazenda do meu tio, no a queimaram? Isso no te diz nada? Daisy ficou desnorteada por um momento, mas recobrou o
sangue-frio: Ento preferes as greves, diz l? Mrio olhou para a grande loira que se foi embora sem dizer mais nada, sacudindo a cabea. Sentou-se no longe deles e ps-se a falar com veemncia a um homenzinho triste que mastigava uma palha. Apontava para Daisy e falava com surpreendente rapidez. O homenzinho no respondia, mastigava a palha, sem erguer os olhos, no parecia sequer ouvi-la. Ela de Sedan explicou Mrio. Onde ? Ao norte. Daisy encolheu os ombros. Ento porque que se zanga, no norte eles esto habituados. Gros-Louis bocejou com toda a fora e lgrimas rolaram-lhe pelo rosto. Aborrecia-se, mas estava contente porque gostava de bocejar. Mrio deitou-lhe um olhar rpido. Starace ps-se a bocejar tambm. O nosso amigo est-se a aborrecer disse Mrio, apontando para Gros-Louis. S gentil com ele, Daisy. Daisy voltou-se para Gros-Louis, passou-lhe o brao pelo pescoo. J no tinha aquele ar srio. verdade, meu pequerrucho, porque te aborreces? Com um bom pedao de mulher ao teu lado? PENA SUSPENSA Gros-Louis ia responder quando viu o negro. Estava em p, diante do balco e bebia um lquido amarelo num copo grande. Vestia um fato verde e tinha um chapu de palha com uma fita multicolor. Ah! bem!, disse Gros--Louis. Olhava para o negro e sentia-se feliz. Que que tens? perguntou Daisy, espantada. Ele virou a cabea para ela, depois para Starace, encarando-os com estupor. Tinha vergonha deles. Sacudiu os ombros para que o brao de Daisy se desprendesse, levantou-se e aproximou-se do negro sem rudo. O negro bebia e Gros-Louis ria de alegria. Daisy dizia atrs dele em tom azedo: O que foi que deu a esse cretino? Ele chateou-me. Gros-Louis no ligava, libertara-se de Mrio e de Starace. Levantou a mo direita por cima do negro e mandou-lhe uma pancada formidvel entre as omoplatas. O negro quase se engasgou; tossiu, cuspiu e voltou-se furioso para Gros-Louis. Sou eu disse Gros-Louis. No est louco, no? berrou o negro. No vs que sou eu! No o conheo disse o negro. Gros-Louis olhou-o com tristeza: No te lembras? Encontrmo-nos ontem, acabavas de tomar
banho. O negro tossiu e cuspiu. Starace e Mrio tinham-se levantado e colocado um a cada lado de Gros-Louis: Ser que no me vo deixar em paz?, pensou encolerizado. Mrio puxou-o pela manga discretamente: Vamos disse , ests a ver que ele no te liga. o meu negro disse Gros-Louis em tom ameaador. J E A N-P A U L SARTRE Levem-no disse o negro. A que horas que o pem na cama? Gros-Louis olhava para o negro e sentia-se infeliz: era ele, sem dvida, estava to bem vestido com o seu belo chapu de palha. Porque que ele se mostrava to desmemoriado e ingrato? Eu dei-te um gole de vinho. Vamos repetiu Mrio. No o teu negro: so todos muito parecidos. Gros-Louis cerrou os punhos e voltou-se para Mrio: J te disse para ires embora. Isso c comigo. Mrio recuou um passo: Os negros so todos parecidos disse ele inquieto. Deixa-o, Mrio atalhou Daisy , um estpido. Gros-Louis j ia bater quando a porta se abriu e um segundo negro surgiu, igualzinho ao outro, de chapu de palha e fato cor-de-rosa. Olhou para Gros-Louis com indiferena e foi debruar-se ao balco. Gros-Louis esfregou os olhos e encarou os dois negros separadamente, comparando-os. Ps-se a rir, ento. Parecem dois do mesmo. Mrio aproximou-se: Ento, ests a ver? Gros-Louis estava confuso. No gostava muito de Starace nem de Mrio, mas sentia-se culpado. Pegou-os pelo brao: Pensei que fosse o meu negro explicou. O negro voltara-lhe as costas e recomeara a beber. Mrio olhou para Starace e viraram-se os dois para Daisy. Daisy estava de p; mos nas ancas, esperava-os. Tinha um ar de poucos amigos. PENA SUSPENSA Hum! fez Mrio. Hum! fez Starace. Deram meia volta, pegaram em Gros-Louis plos braos e levaram-no: Vamos procurar o teu negro disse Mrio. A rua, estreita e deserta, cheirava a repolho. Por cima dos telhados viam-se estrelas. So todas parecidas, pensou Gros-Louis tristemente. Perguntou:
H muitos em Marselha? Muitos qu, meu velho? Negros. Bastantes disse Mrio meneando a cabea. Estou entre negros, pensou Gros-Louis. Mas vou ajud-la, disse o capito, serei o seu criado de quarto. Mrio segurava Gros-Louis pela cintura, o capito pegara na combinao de Maud, esta no pde deixar de rir: Est do avesso! Mrio inclinava-se para a frente, apertava com fora a cintura de Gros-Louis e esfregava a cabea no estmago dele: s o meu querido, no verdade, Starace, s o meu queridinho, amamo-nos, ns dois. E Starace ria silenciosamente, a sua cabea rodava, rodava, os dentes brilhavam, era um pesadelo, a sua cabea estava cheia de gritos e luzes, ele partia para outros rudos e outras luzes, no o largariam aquela noite, o riso de Starace, o seu rosto bronzeado que subia e descia, a cara de fuinha de Mrio, tinha nsias de vmito, o mar descia e subia no estmago de Pierre, ele sabia muito bem que nunca mais encontraria o seu negro. Mrio empurrava-o, Starace puxava-o, o negro era um anjo, eu estou no inferno. Disse: O negro era um anjo. J E A N-P AUL SARTRE E duas lgrimas rolaram-lhe pelas faces. Mrio empurrava-o, Starace puxava-o, e assim viraram a esquina; Pierre fechou os olhos; no se via seno a luz piscante do lampio na calada e o chiar da espuma de encontro ao navio. Janelas fechadas, cheirava a percevejo e formol. Ele inclinava-se sobre o passaporte, a vela iluminava os seus cabelos grisalhos e ondulados, mas projectava a sombra do crnio sobre toda a mesa. Porque que ele no acende a luz elctrica, vai estragar a vista. Philippe aclarou a voz: sentiu-se afogado no silncio e no esquecimento; l eu existo, l sou slido, imponho-me, ela no pode engolir um bocado sequer, tem uma bola de lgrimas na garganta e est estupefacto, essa mo que se ergueu contra mim secar, no me acreditava capaz disto l, acabo de nascer e no entanto estou aqui, diante deste velhinho atarracado, de bigodes grisalhos, que parece ter-me esquecido inteiramente. Aqui; aqui! Aqui, aqui, a minha presena montona entre cegos e surdos, fundo-me na sombra e l entre a poltrona e o sof eu existo, eu conto. Bateu o p e o velho levantou os olhos, olhos de mope, duros, lacrimejantes e cansados. Esteve em Espanha? Sim disse Philippe , h trs anos. O passaporte no est vlido. Devia t-lo renovado. Sei disse Philippe com impacincia.
Eu no tenho nada com isso. Fala espanhol? Como o francs. Se eles o tomarem por espanhol, ter sorte, com esses cabelos cor de palha. H espanhis loiros. O velho encolheu os ombros: Bem, estou a dizer isto por dizer... PENA SUSPENSA Folheava distraidamente o passaporte. Eu, eu estou aqui; no escritrio de um falsificador. No parecia verdade. Desde manh que nada lhe parecia verdadeiro. O falsificador no lhe parecia falsificador, mas sim um guarda. O senhor tem cara de guarda. O velho no respondeu; Philippe sentia-se incomodado. A insignificncia. Voltara transparente insignificncia da vspera, quando passava atravs dos seus olhares, quando era um vidro aos solavancos s costas de um vidraceiro e passava atravs do sol. L, eu sou agora opaco como um morto; ela pergunta a si mesma: Onde estar ele? Que estar a fazer? Ser que pensa em mini? Mas o velho no parece saber que h um lugar no mundo onde eu sou uma pedra preciosa. Ento? perguntou Philippe. O velho pousou nele um olhar cansado: Pitteaux quem o envia aqui? E a terceira vez que o senhor me pergunta isso. Sim, foi Pitteaux disse Phililppe com altivez. Bem disse o velho. Normalmente fao isso por nada; mas para si custar trs mil francos. Philippe fez a careta de Pitteaux. Sem dvida. No tinha a inteno de lhe pedir um servio gratuito. O velho sorriu, com ar trocista. A minha voz soou falso, pensou Philippe com irritao. A minha insolncia no ainda natural. Principalmente para com os velhos. Entre mim e eles h uma conta de bofetadas muito antiga a pagar. Ser preciso devolv-las todas, antes que eu possa falar-lhes de igual para igual. Mas afinal, pensou, a ltima est paga. J E A N-P AUL SARTRE Ei-los. Tirou prontamente o porta-moedas do bolso e ps trs notas de mil sobre a mesa. Garoto imbecil! disse o velho. Se eu agora os embolsasse e me recusasse a prestar-lhe o servio? Philippe olhou-o inquieto e fez um movimento para recuperar as notas. O velho deu uma gargalhada. Pensei... disse Philippe.
O velho continuava a rir, Philippe retirou a mo, despeitado, e sorriu: Conheo os homens disse. Sei que o senhor no faria isso. O velho parou de rir. Assumiu uma atitude jovial, maldosa. Conheces os homens! Pobre lombriga, vens procurar-me, nunca me viste, tiras os teus papis de identificao e pe-los em cima da mesa, isso suicdio. Vai, vai deixa-me trabalhar. Fico com mil, desde j, para o caso de mudares de ideia. Trar-me-s o resto quando vieres buscar os papis. Uma bofetada mais, devolv-las-ei todas. As lgrimas vieram-lhe aos olhos. Tinha o direito de se zangar, mas o que sentia era estupor. Como podem eles ser assim duros, nunca desarmam, esto sempre de atalaia, ao menor erro saltam-nos em cima e ferem-nos. O que que eu lhes fiz? E a eles, l no salo azul, o que que eu lhes fiz? Aprenderei as regras do jogo, serei duro, hei-de fazer com que tremam. Quando estar pronto? Amanh cedo. Pensava... no pensava que demorasse tanto. PENA SUSPENSA Sim? E os carimbos, sou eu quem os inventa? Vai, rapaz, volta amanh, uma noite no de mais para fazer o trabalho. L fora, a noite, a noite morna e repugnante, com os seus monstros; os passos que ressoam longamente atrs de ns sem que ousemos virar a cabea, a noite em Saint-Ouen, o bairro perigoso. Philippe perguntou com voz angustiada: A que horas devo vir? hora que quiseres, a partir das seis. H hotis por aqui? Na Avenida Saint-Ouen, podes escolher vontade. Vai-te embora. Virei s seis disse Philippe, resoluto. Pegou na mala, fechou a porta, desceu a escada. As lgrimas rebentaram-lhe no terceiro andar, esquecera o leno, enxugou os olhos com a manga do casaco, fungou duas vezes, no sou um covarde. O velho saloio tomara-o por um covarde, o desprezo dele perseguiu-o com um olhar. Eles olham para mim. Philippe apressou-se a descer os ltimos degraus. Porta, por favor. A porta abriu-se para uma atmosfera cinzenta, morna e turva. Philippe mergulhou naquela onda suja. No sou um covarde, s esse velho que o imagina. Alis j no imagina, decidiu. No pensa em mim, est a trabalhar. O olhar apagou-se, Philippe apertou o passo. Ento, Philippe, tens medo? No tenho medo, no posso fazer isso. No podes, Philippe? No podes
mesmo? Encostara-se ao muro. Pitteaux acariciou-Ihe as ancas, o peito, tocou-lhe nas maminhas atravs da camisa, depois, com dois dedos da mo direita, deu-lhe uma pancadinha na boca: Adeus, Philippe, vai-te embora, no J E A N-P AUL SARTRE gosto de medrosos. A rua povoara-se de esttuas nocturnas, esses homens encostados aos muros e que no dizem nada, no fumam e vem-nos passar, sem um gesto, com os olhos sujos de noite. Corria quase, e o seu corao batia mais depressa. Com essa cara? Deixa isso, s um covarde. Vero, todos vero, tanto ele como os outros, h-de ler o meu nome e dizer: Sim senhor, nada mal, para um filho de pap rico, um fedelho, nada mal. Um buraco de luz direita, um hotel. O rapaz estava porta; era vesgo, ser que est a olhar para mini? Philippe andou mais devagar, mas deu um passo a mais, ultrapassou a porta, o rapaz devia estar a olhar de lado; decentemente, no podia voltar atrs. O criado vesgo ou o duelo dos ciclopes. Ou ainda isto: uma histria triste para o ciclope. V-se, um belo dia, ao espelho porque sente uma comicho nas mas do rosto: um segundo olho acaba de brotar ao lado do primeiro! Que desespero! Impossvel obrig-lo a manobrarem juntos, o primeiro ficara muito tempo sozinho, no ligava ao companheiro, trabalhava por conta prpria. Do outro lado da rua havia tambm um hotel, o Hotel de Concarneau, pequeno edifcio de um andar. Vou? E se me pedirem documentos? No ousou atravessar, reiniciou a caminhada pela mesma calada. E preciso coragem, mas esta noite no tenho muita, o velho liquidou-me, ou ento, pensou ao deparar-se-lhe um letreiro: Caf, vinho, licores, um soco no nariz. Empurrou a porta. Era um estabelecimento insignificante, com um balco e duas mesas, aparas de madeira espalhadas pelo cho colavam-se s solas dos sapatos. O patro olhou-o com desconfiana. Estou bem vestido de mais, pensou Philipp irritado. PENA SUSPENSA Conhaque pediu, aproximando-se do balco. O patro pegou numa garrafa com uma rolha de metal, serviu, Philippe pousara a mala e olhava divertido: um fiozinho de lcool escorria do bico; parece que est a regar legumes. Philippe tomou um gole e pensou: Deve ser de m qualidade. Nunca bebia aquilo, tinha um gosto a vinho chamuscado, incendiou-lhe a garganta; largou o copo precipitadamente. O patro examinava-o. Haveria ironia naqueles olhos plcidos? Philippe tornou a pegar no copo e levou-o aos lbios com um ar negligente; a garganta ardia--Ihe, os olhos lacrimejavam-lhe, bebeu tudo de um trago. Quando pousou o copo no balco
sentia-se mole e ligeiramente tocado. Pensou: Eis uma oportunidade para observar. Descobrira quinze dias antes que no sabia observar, sou poeta, no analiso. Desde ento, fazia inventrios, por toda a parte; contava, por exemplo, todos os objectos expostos numa montra. Deitou um olhar circular, vou comear pela ltima fila de garrafas, l em cima, atrs do balco. Quatro garrafas de Byrrh, uma de Coudron, duas de Noilly, uma botija de rum. Algum entrara. Um operrio de bon. Philippe pensou: um proletrio. No tivera a oportunidade de encontrar muitos proletrios, mas pensava frequentemente neles. Era um homem de cerca de trinta anos, musculoso, mas mal feito, com braos compridos de mais e pernas tortas, sem dvida fora o trabalho manual que o deformara: tinha plos amarelos e duros sob o nariz; trazia um distintivo tricolor no bon, parecia descontente e agitado. Pediu: Um copo de vinho, patro, e depressa. Vamos fechar disse o patro. J E A N-P AUL SARTRE Voc no vai recusar um copo de vinho a um mobilizado disse o operrio. Falava com dificuldade, com uma voz rouca, como se tivesse passado o dia a gritar. Explicou-se, piscando o olho direito: Parto amanh. O patro pegou numa garrafa e num copo: Para onde vai? perguntou, pousando o copo no balco. Soissons disse o tipo. Estou nos tanques. Ergueu o copo, a mo tremia, um pouco de vinho derramou-se no soalho. Vamos entrar-lhes na pana. Hum! fez o patro. assim! disse o tipo. Bateu duas vezes com a palma da mo direita no punho esquerdo. Eles so fortes, os porcos! disse o patro. Vai ser como eu lhe digo! Bebeu, fez estalar a lngua e cantou. Parecia excitado e exausto; de instante a instante os seus traos vincavam-se, os olhos cerravam-se, os lbios pendiam: mas logo uma fora impiedosa lhe levantava as plpebras, puxava para cima os cantos dos seus lbios: dir-se-ia a presa esgotada de uma alegria que no queria acabar. Voltou-se para Philippe: E tu? Ests mobilizado? Eu... ainda no disse Philippe, afastando-se. Porque esperas? E preciso entrar-lhes na pana. Era um proletrio: Philippe sorriu-lhe e esforou-se por dar um passo em frente. PENA SUSPENSA
Toma um copo disse o proletrio. Patro, dois copos, um para si e outro para ele: a minha rodada. No tenho sede disse o patro com severidade. E alm disso, est na hora de fechar; eu levanto-me s quatro horas. Contudo, pousou no balco um copo para Philippe. Vamos beber nossa sade disse o proletrio. Philippe ergueu o copo. H pouco, no quarto de um falsificador; agora bebia ao balco com um operrio. Se eles me vissem! sua sade! vitria! disse o proletrio. Philippe olhou-o com surpresa: devia estar a brincar, os operrios so a favor da paz. Diz como eu: vitria! Parecia falar com seriedade, tinha um ar de descontentamento. No quero dizer isso disse Philippe. Como? Cerrara os punhos. Um arroto cortou-lhe a palavra; olhou friamente, deixou cair o queixo, e a cabea oscilou molemente durante um segundo. Faa como ele disse o patro. O proletrio recobrara o sangue-frio, veio falar-lhe ao nariz, cheirava a vinho. No direi: vitria. No queres dizer: vitria? A mim que dizes isso? A um mobilizado? A um soldado de 38? O proletrio segurou-o pela gravata e empurrou-o de encontro ao balco: Fazes-me isso a mim? No vais beber sade? Que faria Pitteaux? Que faria Pitteaux no meu lugar? J E A N-P AUL SARTRE Vamos disse o patro com voz severa , faa o que ele diz: no quero confuso; e, alm disso, vo-se embora, levanto-me s quatro, sabem. Philippe ergueu o copo: vitria murmurou. Bebeu, mas tinha um n na garganta, pensou que no pudesse engolir. O tipo largara-o e ria zombeteiro, limpando o bigode com as costas da mo. No queria dizer: vitria explicou ao patro. Agarrei-o pela gravata: Fazes-me isso a mim, mau francs? A um mobilizado? A um soldado de 14? Philippe lanou uma moeda de dois francos para o balco, pegou na mala e apressou-se a sair. Era um bbado, devia ceder, Pitteaux teria cedido, no sou covarde. Eh! rapaz! O tipo sara atrs dele, Philippe ouviu o patro fechar a
porta chave. Sentiu-se gelado, pareceu-lhe que os enfiavam a ambos no mesmo cubculo. No te vs embora assim. Vamos entrar-lhes na pana. Aproximou-se de Philippe e abraou-o pelo pescoo, Mrio pegara no brao de Gros-Louis e apertava-o com ternura, era o inferno, caminhavam pelas vielas escuras, nunca paravam, Gros-Louis no podia mais, tinha nsias de vmito e os ouvidos zuniam-lhe. que eu estou com uma certa pressa disse Philippe. Onde que vamos? perguntou Gros-Louis. Procurar o teu negro. No vai brincar comigo, hem! Quando convido para beber para beber, entendes? PENA SUSPENSA Gros-Louis olhou para Mrio e teve medo, Mrio dizia-lhe: Ento, meu velho, ests cansado, meu velho? Mas no tinha a mesma fisionomia. Starace pegara-lhe no brao esquerdo, era o inferno. Tentou libertar o brao direito, mas sentiu uma dor aguda no cotovelo. Eh!, partes-me o brao! Philippe deu um pulo e ps-se a correr. um bbado, no h nada de mal em fugir de um bbado. Starace largou-o de repente e deu um passo para trs. Gros-Louis quis voltar-se para ver o que o outro maquinava, mas Mrio agarrava-se-lhe ao brao. Philippe ouvia atrs de si uma respirao sincopada: Puta, merda, no tenhas medo, ah!, vou castigar-te. Que foi, que foi, velhinho? Ento j no somos amigos? Gros-Louis pensou: Vo-me matar, o medo gelou-lhe os ossos, agarrou Mrio pelo pescoo com a mo livre e levantou-o no ar, mas ao mesmo tempo a sua prpria cabea fendia-se at ao queixo, largou Mrio e caiu sobre os joelhos, o sangue corria-lhe pelas sobrancelhas. Tentou agarrar-se ao casaco de Mrio, mas este deu um pulo para trs e Gros-Louis no o viu mais. Via agora o negro que deslizava junto ao cho, mas sem tocar na terra, no se parecia com os outros negros, vinha ao seu encontro, de braos abertos, rindo. Gros-Louis estendeu as mos, sentia aquela dor imensa na cabea, gritou: Socorro, recebeu novo golpe no crnio e caiu de nariz na sarjeta. Philippe continuava a correr. No Hotel do Canad parou, recobrou o flego e olhou para trs, tinha-o distanciado. Apertou o n da gravata e entrou no hotel a passos lentos. Balouo, balanceio. Balouo, balanceio. As oscilaes do navio subiam-lhe em espiral pelas pernas e pelas coxas J E A N-P AUL SARTRE
e iam morrer em espessas vibraes no baixo-ventre. Mas a cabea continuava livre, apenas um ou dois arrotos azedos; apertava com fora o corrimo da escada. Onze horas; o cu tremeluzia, um fogo vermelho danava ao longe, no mar; ser talvez essa imagem que me subir aos olhos por ltimo, e neles se fixar para sempre, quando eu estiver na trincheira, de costas no cho com o maxilar fracturado, sob um cu cintilante. Essa imagem negra e pura com o seu rudo de palmas e essas presenas de homens, to remotas atrs da luz vermelha na escurido. Viu-os de uniforme, apertados como arenques por trs do seu farol, deslizando silenciosamente para a morte. Olhavam-no sem dizer palavra, a luz vermelha escorregava sobre a gua, eles deslizavam, desfilavam diante de Pierre e contemplavam-no. Odiou-os a todos, sentiu-se s e obstinado sob o olhar cheio de desprezo da noite; gritou-lhes: eu que tenho razo, tenho razo em ter medo, fui feito para viver, no para morrer: nada vale a vida. Ela no chegava, onde poderia estar? Debruou-se sobre a entreponte deserta. Prostituta, hs-de pagar-me esta espera. Tinha tido modelos, manequins, danarinas maravilhosamente bem feitas, mas aquela magrizela, quase desengonada, era a primeira mulher que desejava violentamente. Acariciar-lhe a nuca, ela adora isso, onde nascem os seus cabelos negros, fazer subir devagar o xtase do ventre cabea, empastar as suas ideias pequeninas e claras, beijar-te-ei, beijar-te-ei, entrarei no teu desprezo e estour-lo-ei como uma bolha; quando estiveres transbordando de mini e gritares meu Pierre revirando o branco dos olhos, veremos se me chamars covarde. At vista, querida, querida amiga, at vista, volte, volte! x PENA SUSPENSA Era um sussurro, o vento dispersou-o, Pierre virou a cabea e o vento entrou-lhe pela orelha. L no convs da proa, uma lmpada pendurada porta da cabina do capito iluminava um vestido branco, balouando no ar. A mulher de branco desceu lentamente a escada segurando-se ao corrimo por causa do vento e do movimento do navio: o vestido, ora inchado, ora colando-se s coxas, parecia um sino dobrando. Desapareceu repentinamente, devia estar a atravessar a entreponte, o navio entrou num buraco, o mar estava acima dele, branco e preto, desceu lentamente e a cabea da mulher surgiu, ela subia a escada da segunda classe. Eis porque mudaram de cabina. Ela suava e estava um pouco despenteada; com o seu ar honesto e grave passou por Pierre sem o ver. Marafona, disse Pierre. Sentiu-se submergido por um enorme tdio, no tinha desejo de estar com ela, nem de viver. O navio caa, caa, no fundo do mar. Pierre caa, num algodo
mole, hesitou um instante e depois deixou a boca encher-se de blis, inclinou-se sobre a gua escura e vomitou. Agora a assinatura disse o rapaz. Philippe pousou a mala, pegou na caneta e mergulhou-a na tinta. O rapaz olhava-o, de braos cruzados nas costas. Bocejo ou sorriso abafado? Porque estou bem vestido, pensou Philippe encolerizado. Olham todos para a roupa, o resto nem sequer vem. Escreveu com mo firme: Isidore Ducasse. Caixeiro-viajante. Conduza-me disse ao rapaz, olhando-o nos olhos. O rapaz apanhou urna das pesadas chaves penduradas no quadro e subiram. A escada era escura, lmpadas azuis iluminavam-na de vez em quando; os chinelos do rapaz J E A N-P AUL SARTRE batiam nos degraus de pedra. Atrs de uma porta uma criana chorava; cheirava a urina. uma casa de passe, pensou Philippe. Lera muitas vezes isso em romances naturalistas, e sempre com repugnncia. Pronto disse o rapaz com a chave na fechadura. Um quarto bastante grande, ladrilhado; as paredes eram cor de terra at meia altura e depois amarelo-sujo at ao tecto. Uma mesa e uma cadeira, apenas: pareciam perdidas no meio do quarto; duas janelas, um lavabo que se diria de cozinha, uma cama grande encostada parede: Puseram o leito nupcial na cozinha, pensou Phiippe. O rapaz no se ia embora. Disse com um sorriso: So dez francos. Gostaria que pagasse j. Philippe estendeu-lhe vinte francos. Fique com o troco. E acorde-me s cinco e meia. O rapaz no se mostrou impressionado. Boa noite disse saindo. Philippe escutou por um instante. Quando deixou de ouvir o rudo gelatinoso dos chinelos, deu duas voltas chave, fechou o trinco e encostou a mesa porta. Depois largou a mala sobre a mesa e ficou a olh-la de braos cados. O candelabro do salo apagou-se, a vela do falsificador apagou-se; a escurido comeu tudo. Uma escurido annima. S o quarto nu brilhava na penumbra, to pessoal quanto a prpria noite. Philippe olhava a mesa, entorpecido, sem saber o que fazer. Bocejou. No tinha sono, porm; estava vazio. Uma mosca esquecida que desperta no incio do Inverno, quando todas as outras esto mortas, e no tem fora para voar. Olhou para a mala, dizendo: preciso abri-la para tirar o meu pijama. Mas os desejos adormeciam na sua cabea, no chegava sequer a erguer um brao. Olhava para a mala, PENA SUSPENSA
olhava para a parede, pensava: Para qu?, para qu evitar de morrer se essa parede existe diante de mini, com as suas cores imundas e triunfantes? Nem mesmo tinha medo. Sobe... e desce, sobe e desce. J no tinha medo. A bacia subia e descia cheia de espuma, ele subia e descia estendido de costas, j no tinha medo. O steward vai ficar furioso quando entrar e vir que vomitei no cho, mas que se arranje. Tudo era to suave, a gua na boca, o cheiro a vmito, aquela bola no peito, o seu corpo era todo doura, e essa roda que girava, girava, esmagando-lhe a fronte, ele via-a, divertia-se a v-la, era uma roda de txi com um pneu cinzento e gasto. A roda girava, os pensamentos familiares giravam, giravam, mas ele pouco se importava, finalmente podia no ligar, dentro de oito dias em Argonne eles atiraro contra mim mas eu no ligo, ela despreza-me, ela pensa que eu sou um covarde que me importa, hoje no ligo a nada, hoje no ligo. No ligo, no ligo, no penso em nada, no tenho medo de nada, no me censuro em nada. Sobe e desce, sobe e desce, to agradvel no ligar a nada. Onze horas, onze toques no silncio. Estendeu a mo, abriu a mala, a face direita queimava-o como uma tocha; onze horas, o candelabro acendeu-se dentro da noite, ela estava sentada na poltrona pequenina, rolia, com os seus belos braos nus, a face queimava, a tortura recomeara, a mo erguia-se, a face queimava, eu no sou um covarde, no sou um covarde, desdobrou o pijama; onze horas, boa noite, mam, beijava o rosto perfumado da hetera do general, olhava-me os braos, inclinava-se diante dele, boa noite, pai, boa noite, Philippe, boa noite, Philippe. Ontem, ainda ontem. Pensava com estupor: ontem. Mas que fiz J E A N-P AUL SARTRE eu? Que aconteceu desde ontem? Pus o meu pijama na mala, sa como todos os dias e tudo mudou: um rochedo caiu atrs de mini na estrada e destruiu-a, no posso voltar. Mas, quando, quando foi que isso aconteceu? Peguei na mala, abri devagar a porta, desci a escada... Foi ontem. Ela est sentada na poltrona, ele em p junto da lareira, ontem. O salo morno e claro, eu sou Philippe Grsigne, enteado do general Lacaze, licenciado em Letras, poeta de futuro, ontem, ontem, ontem para sempre. Despira-se, enfiou o pijama. No hotel eram gestos novos, hesitantes, precisava aprend-los. O Rimbaud estava na mala, deixou-o l, no lhe apetecia ler. Uma nica vez, se por uma nica vez ela tivesse acreditado em mim, se uma nica vez tivesse passado os seus belos braos em volta do meu pescoo, se me tivesse dito: tenho confiana em ti, s corajoso, sers forte, eu no teria partido. E uma hetera, trazia para o meu
quarto palavras de general, palavras fsseis, largava-as, eram pesadas de mais para ela, rolavam para debaixo da cama, deixei-as amontoarem-se durante cinco anos; puxem a cama, encontr-las-o todas, ptria, honra, virtude, famlia, na poeira; no me aproveitei de nenhuma. Ficara descalo no ladrilho, espirrou: Vou-me constipar, o boto da luz estava perto da porta, apagou a lmpada e foi tacteando at ao leito, tinha receio de pisar bichos, a enorme aranha que tem patas como dedos de homem e parece uma mo decepada, e se houvesse uma aqui, se houvesse? Enfiou-se entre os lenis e o leito gemeu. A face queimava, uma tocha dentro da noite, uma chama vermelha, apoiou-a ao travesseiro. Vo deitar-se, ela vestiu a camisa cor-de-rosa com rendas. Esta noite um pouco menos doloroso imaginar isso; esta noite PENA SUSPENSA ele no ousar tocar nela, ter vergonha e ela, a hetera, no o permitiria, enquanto o seu filho morre de frio e de fome pelas estradas, ela pensa em mim, finge dormir, v-me plido e duro, lbios crispados, olhos secos, v-me a caminhar. No um covarde, o meu filho no um covarde, o meu filho, o meu menino querido. Se estivesse l, se pudesse estar l, s para ela, e beber essas lgrimas que rolam pelo seu rosto e acariciar os seus belos braos ternos, mam, mamzinha. O general chanceler, diz uma estranha voz aos seus ouvidos. Um pequeno tringulo verde desprendeu-se e principiou a girar, o general chanceler. O tringulo girava, era Rimbaud, cresceu como um cogumelo, tornou-se seco e cascudo, um inchao na face, vitria, vitria, VITRIA. No sou um covarde, gritou Philippe acordando sobressaltado. Estava sentado na cama, molhado de suor, olhos esgazeados, o lenol cheirava a enxofre, com que direito se fazem eles meus juizes? Os malandros! Julgam-me pelas suas regras e eu s aceito as minhas. A mini, minhas altivas orgias! A mim, meu orgulho! Sou da raa dos senhores. Ah!, pensou com raiva, mais tarde! Mais tarde! preciso esperar. Mais tarde colocaro uma placa de mrmore na parede deste hotel, aqui Philippe Grsigne passou a noite de 24 para 25 de Setembro de 1938. Mas eu terei morrido. Um murmrio vago e suave passava por baixo da porta. Subitamente a noite morreu. Ele olhava-a do fundo do futuro, com os olhos dos homens de casaco preto que discorriam sob a placa de mrmore. Cada minuto deslizava na escurido, precioso e sagrado e j extinto. Um dia, esta noite ter passado, gloriosa e passada como as J E A N-P AUL SARTRE noites de Maldoror, como as noites de Rimbaud. Minha noite.
Zzette, disse uma voz de homem. O orgulho vacilou, o passado rasgou-se, era o presente. A chave girou na fechadura, o corao pulsou no peito. No, ao lado. Ouviu a porta gemer. So dois pelo menos, um homem e uma mulher, pensou. Conversavam. Philippe no ouvia tudo o que diziam, mas compreendeu que o homem se chamava Maurice e isso tranquilizou-o um pouco. Tornou a deitar-se; estendeu as pernas, afastou o lenol do queixo com medo de apanhar borbulhas. Uma espcie de canto de flauta fez-se ouvir. Um cantozinho engraado. No chores disse o homem com ternura , no chores, isso no adianta. Tinha uma voz quente e dura, atacava as palavras com rudeza, aos arranques, saam do fundo da sua garganta ora muito depressa, ora devagar, speras e raspantes; mas prolongavam-se todas numa suave vibrao sombria. O canto de flauta cessou aps um ou dois sussuros. Ele debruou-se sobre ela, tomou-a plos ombros. Philippe sentia duas fortes mos sobre os seus prprios ombros, um rosto inclinava-se sobre o seu. Um rosto moreno e magro, quase escuro, de faces azuladas, nariz de pugilista e uma bela boca amarga, uma boca de negro. No chores repetia a voz. No chores, meu bem, acalma-te. Philippe acalmou-se completamente. Ouvia-os irem e virem, dir-se-ia que esto no meu quarto. Arrastaram um objecto pesado pelo soalho. Talvez a cama, ou uma mala. E a seguir o homem tirou os sapatos. No prximo domingo disse Zzette. PENA SUSPENSA Tinha uma voz vulgar mas cantante. Via-a menos nitidamente: talvez fosse loira, muito plida, como a Snia do Crime e Castigo. Ento? Oh!, Maurice, esqueceste-te! Deviamos ir a Corbeil, a casa de Jeanne. Irs sozinha. No terei coragem. Baixaram a voz, Philippe no compreendia o que diziam, mas sentia-se feliz porque estavam tristes. Eram proletrios. O outro era um bbado, um vagabundo. J estiveste em Nancy? perguntou Zzette. Outrora, sim. Como ? No m. Vais mandar-me um pacote de bilhetes-postais. Quero poder imaginar onde estars.
Eles no o permitiro, sabes. Um verdadeiro proletrio. Aquele no tinha vontade de fazer a guerra, no pensava na vitria: partia, com a morte na alma, porque no podia deixar de partir. Meu homem... disse Zzette. Calaram-se. Philippe pensava: Esto tristes, e lgrimas suaves molharam-lhe os olhos. Suaves anjos tristes. Entraria, estender-lhes-ia as mos, e dir-lhes-ia: Eu tambm estou triste. Por causa de vocs, por vocs. Foi por vocs que abandonei o lar. Por vocs e por todos os que partem para a guerra. Ficaramos ambos ao lado dela e eu dir-lhes-ia: Sou o mrtir da paz. Fechou os olhos, calmo: no estava s, dois anjos tristes protegiam-lhe o sono. O mrtir, deitado de costas como um jacente de pedra e dois anjos J E A N-P AUL SARTRE tristes cabeceira, com palmas. Murmurava, meu homem, meu homem, no me deixes, eu amo-te, e outra expresso tambm, suave e preciosa, j no se recordava, mas era a mais terna das expresses ternas, girou, flamejou como uma coroa de fogo e Philippe levou-a consigo no seu sono. Merda, puta que os pariu! disse Gros-Louis. Sentara-se beira da calada; nunca pensara ser possvel um tal dor de cabea, cada pontada despertava nele um novo estupor. Oh!, merda, puta que os pariu! Levou a mo ao rosto, estava viscoso e fazia-lhe ccegas, devia ser sangue. Vou fazer uma ligadura. Onde que eles puseram o meu saco? Apalpou sua volta e a sua mo encontrou um objecto duro, era uma carteira: Ser que eles perderam a carteira? Pegou nela, abriu-a, estava vazia. Procurou no bolso, acendeu um fsforo: era a sua carteira. A coisa vai melhor agora, verificou. A caderneta militar ficara no bolso do bluso, mas a carteira fora esvaziada. Como que vou fazer agora? Continuava a passear as mos pelo cho, disse: No vou procurar a polcia, isso no se faz. Fechou os olhos por um instante e ps-se a respirar fundo: a cabea doa-lhe tanto que ele perguntava a si prprio se no havia um buraco l dentro. Tocou no crnio com precauo, no parecia aberto mas os cabelos tinham-se coagulado em tufos viscosos e depois, bastara--Ihe apoiar um pouco para que fosse como se lhe dessem marteladas. No gosto da polcia, disse. Mas como vou fazer? Os seus olhos habituavam-se penumbra, distinguiu uma massa escura na rua, a alguns metros: a minha sacola. Gatinhou, porque no se podia pr de p. Que ser? Tinha posto a mo numa poa: Partiram a minha garrafa, pensou com um n no peito. Pegou na sacola, PENA SUSPENSA
estava ensopada, a garrafa em cacos. de mais, disse, de mais, isso de mais. Largou a sacola, sentou-se no rego de vinho, no meio da rua, e comeou a chorar; os soluos passavam-lhe pelo nariz e sacudiam-no, ele tinha a impresso de que o crnio ia estoirar. Nunca chorara tanto desde a morte da velha. Charles estava nu, de pernas para o ar, diante de seis enfermeiras-chefes, a mais nova bateu as asas e mexeu as mandbulas, isso queria dizer: bom para o servio. Mathieu encolheu-se e ficou como uma bola, Marcelle esperava-o de pernas abertas, Marcelle era um buraco, quando Mathieu ficou bem redondo, Jacques deu-lhe um pontap e ele caiu no buraco de obuses, caiu na guerra; a guerra desencadeara-se com toda a fria, uma bomba partiu as vidraas e rolou ao p da cama, Ivich levantou-se, a bomba desabrochou, era um ramalhete de rosas, dele surgiu Offenbach: No parta, disse Ivich. No v para a guerra, seno que ser de mim? Vitria, Philippe participava no assalto baioneta, berrava vitria, vitria, os doze czares fugiram, a czarina estava liberta, desamarrou as cordas, estava nua, pequena e gordinha, olhava de lado; os sbrapnells e as grandes corridas atrs do comandante, com toda a velocidade, Pierre agarrava-os pelas costas e metia-os saco, eram ordens, mas o quarto quis levantar voo, apanhou-o plos litros, trmulo e esperneante, estoirou a rir e ps-se a depen-lo o comandante olhava-o, estava estendido de costas, os shrapnells tinham-lhe comido as bochechas e as gengivas, mas sobravam os olhos, os seus grandes olhos cheios de desprezo, Pierre fugiu a toda a velocidade, desertava, desertava, corria no deserto, Maud perguntou-lhe: Posso levantar a mesa? Viguier estava morto, cheirava mal; Daniel tirou J E A N-P AUL SARTRE as calas, pensava: H um olhar, erguia-se diante de um olhar covarde, pederasta, mau, como um desafio. V-me como sou. Hannequin no podia dormir, pensava: Estou mobilizado e isso parecia-lhe engraado, a cabea da sua vizinha pesava-lhe no ombro, ela cheirava a cabelo e brilhantina, ele deixava pender o brao e tocava-lhe na coxa, era agradvel mas cansativo. Cara de cara, j no tinha pernas. Meu amor!, gritou ela. Que ests tu a dizer?, perguntou a voz sonolenta. Estava a sonhar, disse Odette, dorme, meu querido, dorme. Philippe acordou sobressaltado, no era o canto do galo, era um doce gemido de mulher, ah, ah, ahhh, pensou a princpio que ela chorava, mas no, conhecia bem esses lamentos, escutara-os muitas vezes colando o ouvido porta, plido de frio e dio. Mas desta vez, a coisa no lhe repugnava. Era novo e cheio de ternura: msica de anjos.
Ah, como te amo disse Zzette com voz rouca. Oh, oh, oh... Houve um silncio. Ele pesava sobre ela com todo o peso do corpo duro, o belo anjo de cabelos negros e boca amarga. Ela estava esmagada, satisfeita. Philippe soergueu-se bruscamente e sentou-se, a boca m, o corao mordido de cimes. No entanto ele gostava de Zzette. Ahhh. Respirou: era um grito peremptrio e definitivo; tinham acabado. Ao fim de um momento ouviu rudos de panos molhados: ps descalos corriam sobre os ladrilhos, a torneira cantou, um pssaro no galho, e todos os canos da gua foram sacudidos por horrveis borborigmos. Zzette voltara para Maurice, fresca, as pernas frias; a cama gemeu, ela deitara-se perto dele, no leito quente PENA SUSPENSA e hmido, apertava-se contra ele, respirava o odor ruivo do seu suor. Se morresses, matava-me. No digas isso. Matava-me mesmo, Momo. Seria pena. Tu s bem feita, trabalhadora; gostas de comer bem, gostas de amar: v o que perderias. contigo que eu gosto de fazer amor. Contigo disse Zzette apaixonadamente. Mas tu, tu no te importas muito com isso, partes, ests contente. No, no estou contente disse Maurice. Chateio-me de partir. Vai partir. Vai-se embora, tomar o comboio para Nancy, no os verei jamais, no verei a sua fisionomia, ele nunca saber quem sou. Os seus ps arranharam o lenol; quero v-los. Se no partisses. Se pudesses no partir. Maurice observou-lhe docemente: No digas disparates. Quero v-los. Pulou da cama. A aranha espiava-o, encolhida debaixo da cama, mas ele correu mais depressa do que ela. Premiu o boto e o bicho desapareceu na luz. Quero v-los. Enfiadas as calas, ps os ps nus nos sapatos e saiu. Duas lmpadas azuis iluminavam o corredor. No quarto n. 19 lia-se num papelucho cinzento pregado porta com uma punaise: Maurice Gounod. Philippe apoiou-se parede, o corao batia-lhe com fora e estava ofegante como se tivesse corrido. O que que eu posso fazer? Estendeu a mo e tocou ao de leve na porta: estavam ali, do outro lado. No quero nada, s quero v-los. Baixou-se e colou o olho fechadura: recebeu um sopro J E A N-P AUL SARTRE
frio na crnea, piscou e no viu nada; tinham apagado a luz. Quero v-los, pensou, batendo porta. No responderam. Sentiu um n na garganta e bateu com mais fora. Que ? perguntou a voz. Era brusca e dura, mas mudaria. Abriria a porta e a voz mudaria. Philippe bateu: no podia falar. Plulas! disse a voz com impacincia. Quem ? Philippe parou de bater. J no tinha flego. Aspirou com fora e forou a voz a passar pela garganta: Queria falar com o senhor. Houve um longo silncio, Philippe pensava em ir-se embora quando ouviu um rudo de passos, um sopro junto porta e um ligeiro barulho: tinham acendido a luz. Os passos afastaram-se, est a vestir as calas. Philippe recuou e encostou-se parede, tinha medo. A chave girou na fechadura, a porta abriu-se, surgiu na abertura discreta uma cabea ruiva e hirsuta, de mas largas e pele vincada de rugas. O tipo tinha olhos claros sem clios; olhava Philippe com um espanto cmico. O senhor enganou-se no quarto. Era a voz, mas passando por aquela boca tornava-se irreconhecvel. No disse Philippe , no me enganei. Ento o que deseja? Philippe olhava para Maurice, pensava: J no vale a pena. Era tarde de mais. Disse: Gostaria de falar com o senhor. Maurice hesitava; Philippe viu nos seus olhos que iria fechar a porta, e apoiou-se vivamente contra o batente. Gostaria de falar com o senhor repetiu. PENA SUSPENSA No o conheo disse Maurice. Os seus olhos plidos eram duros e maliciosos. Parecia-se com o canalizador que consertara a banheira. Quem , Maurice? perguntou Zzette. Que que ele quer? A voz era verdadeira; verdadeiro tambm era o terno rosto invisvel. A cara de Maurice que era um sonho. Um pesadelo. A voz emudeceu, o terno rosto esvaiu-se; a cabea de Maurice saiu da sombra, dura e macia, verdadeira. um sujeito que eu no conheo. No sei o que quer. Posso ser-lhe til disse Philippe. Maurice media-o com desconfiana. Est a ver as minhas calas de flanela, pensou Philippe, est a ver os meus sapatos de couro de vitela, o meu casaco de pijama, preto com gola russa. Eu... Estava no quarto ao lado disse, retesando-se contra a porta. Juro que posso ser-lhe til.
Vem deitar-te, Maurice disse Zzette , entra, deixa a o homem. Maurice continuava a examinar Philippe. A sua carranca, aps algum tempo de reflexo, desanuviou-se: Foi mile que o mandou? Philippe desviou o olhar. Foi. Ento? Philippe tremeu: No posso falar aqui. De onde que conhece mile? continuou Maurice, hesitando. J E A N-P AUL SARTRE Deixe-me entrar implorou Philippe. Que que tem? No posso dizer nada neste corredor. Maurice abriu a porta: Entre. Mas somente por cinco minutos. Estou com sono. Philippe entrou. O quarto era igual ao seu. Mas havia roupas sobre as cadeiras, meias, calas e sapatos de mulher no ladrilho, perto da cama e sobre a mesa um fogareiro a gs com uma caarola. Cheirava a banha fria. Zzette estava sentada na cama, com um xaile violeta plos ombros. Era feia, com olhinhos fundos e inquietos. Olhava Philippe com hostilidade. A porta fechou-se, ele tremeu. Ento, o que que Emile quer de mim? Philippe olhou Maurice com angstia, no podia falar. Vamos, ande depressa disse Zzette furiosa. Ele parte amanh cedo. No o momento de nos vir incomodar. Philippe abriu a boca e fez um esforo violento, mas no saiu som algum. Via-se com os olhos deles, era insuportvel. Estou a falar francs creio bem. Estou-lhe a dizer que ele parte amanh. Philippe virou-se para Maurice e disse com voz estrangulada: No deve partir. Partir para onde? Para a guerra. Maurice parecia estar consternado. um provocador disse Zzette. Philippe olhava para os ladrilhos vermelhos, de braos cados, sentia-se todo entorpecido: era quase agradvel. Maurice pegou-o pelo ombro, sacudiu-o: Conheces Emile, tu? PENA SUSPENSA Philipe no respondeu. Maurice tornou a sacudi-lo com mais fora: Vais responder? Pergunto-te se conheces Emile. Philippe lanou-lhe um olhar desesperado: Conheo um velho que falsifica documentos disse rapidamente em voz baixa. Maurice largou-o bruscamente, Philippe baixou a cabea e
acrescentou: Far documentos para si. Houve um silncio, e depois Philippe ouviu a voz triunfante de Zzette: o que eu dizia: um provocador. Ousou erguer os olhos, Maurice fixava-o com um ar terrvel. Estendeu a pata peluda, Philippe deu um pulo para trs. No verdade disse, protegendo-se com o brao , no verdade, no sou um provocador. Ento que vens aqui fazer? Sou um pacifista disse Philippe quase a chorar. Pacifista! repetiu Maurice com estupor. S me faltava ver isto! Coou o crnio e deu uma gargalhada. Pacifista! Imagina s, Zzette! Philippe ps-se a tremer. No quero que riam disse em voz baixa. Mordeu os lbios para no chorar e acrescentou penosamente: Mesmo se no for um pacifista, deve respeitar-me. Respeitar-te? repetiu Maurice. Respeitar-te? Sou um desertor disse Philippe com dignidade. Se lhe proponho papis falsos porque os mandei fazer para mini. Depois de amanh estarei na Sua. J E A N-P AUL SARTRE Philippe encarou Maurice, este franzira as sobrancelhas, uma ruga em Y desenhou-se na sua fronte, parecia reflectir. Venha comigo disse Philippe. Tenho dinheiro para dois. Maurice olhou-o com repugnncia. Seu safado! J viste como ele est vestido, Zzette? natural que tenhas horror guerra, natural que no queiras lutar contra os fascistas. Antes os abraarias, os facistas, hem? Os que protegem as tuas massas, filho de pap rico. No sou fascista disse Philippe. No, sou eu o fascista! Vamos, vai-te embora, seu porco! Vai, seno cometo uma desgraa! Eram as pernas de Philippe que queriam fugir. As pernas e os ps. Mas ele no fugiria. Arrastou as pernas para a frente, chegou-se a Maurice, baixou com fora o brao infantil que se erguia sozinho. Olhou para o queixo de Maurice; no conseguia levantar o olhar at aos olhos plidos e sem clios. Disse: No vou embora. Ficaram um momento face a face e subitamente Philippe estoirou: Como so duros! Todos. Todos. Eu estava ali, ouvia-os falar, esperava... Mas vocs so como os outros, um muro. Sempre a condenar sem procurar entender; sabem por acaso quem sou eu? Por vocs que desertei; poderia ter ficado em casa, onde
como e durmo sem problemas, bem instalado, com criados, mas larguei tudo por vocs. E voc, oh!, vocs! mandam-nos para a matana e vocs acham bem, no mexem um dedo sequer; pem-lhes uma espingarda nas PENA SUSPENSA mos e vocs pensam que so heris, e se algum tenta agir de outro modo, tratam-no logo como um filho de pap rico, fascista, medroso, s porque no faz como toda a gente. No sou medroso, mentem, no sou fascista e no tenho a culpa de ser menino rico. E muito mais fcil, fiquem sabendo, muito mais fcil ser menino pobre. Aconselho-te que vs embora disse Maurice com raiva porque no gosto muito de provocaes e poderia zangar-me. No me irei embora disse Philippe batendo o p. Basta, afinal! Estou farto desta gente que finge no me ver, ou olha de cima. Com que direito? Eu existo e valho tanto quanto vocs. No irei embora, ficarei aqui a noite toda, se necessrio; quero explicar-me de uma vez para sempre. Ah! No vais! disse Maurice. Ah!, no vais, no ? Maurice agarrou-o plos ombros e empurrou-o para a porta. Philippe quis resistir, mas era intil: Maurice era forte como um touro. Largue-me gritou Philippe. Largue-me; se me puser l fora ficarei diante da porta e farei barulho, no sou um covarde, quero que me escute. Largue-me, seu brutamontes repetiu, dando-lhe pontaps. Viu a mo erguida de Maurice, o seu corao parou: No disse. No. Maurice deu-lhe dois socos. No batas com fora disse Zzette , uma criana. Maurice largou Philippe e contemplou-o com um espcie de surpresa. J E A N-P AUL SARTRE Vocs... eu odeio-os murmurou Philippe. Escuta, rapaz disse Maurice com um ar incerto. Vocs vero, vocs vero! Tero vergonha. Saiu correndo, entrou no quarto e fechou a porta. O comboio rolava, o navio subia e descia, Hitler dormia, Ivich dormia, Chamberlain dormia, Philippe lanou-se para a cama e comeou a chorar. Gros-Louis titubeava, casas e mais casas, a cabea ardia-lhe mas no podia parar dentro da noite, era-lhe preciso andar dentro da noite, espreita, dentro da noite terrvel, sussurrante, Philippe chorava, exilado dentro da noite fria e miservel, a noite cinzenta das encruzilhadas, Mathieu despertara, levantou-se, ps-se janela, ouvia o murmrio do mar, sorriu para a linda noite esbranquiada. DOMINGO, 25 DE SETEMBRO
u m dia de vergonha, um dia de repouso, um dia de medo, o dia de Deus, o sol nascia num domingo. O farol, o fanal, a cruz, a face, a FACE, Deus carrega a sua cruz nas igrejas, eu carrego a minha face nas ruas endomingadas, mas o senhor tem um inchao; no: foram pancadas na cara, ignbil indivduo que traz as ndegas no rosto, a cabeorra incmoda, a cabea rachada, enfaixada, a abbora, a cabaa, bateram por trs, um, dois, ele andava na sua cabea, as solas batiam na cabea, domingo, onde vou eu achar trabalho, as portas estavam fechadas, as grandes portas de ferro, pregadas, ferrujentas, cerradas sobre a escurido, sobre o vazio com cheiro a aparas de madeira, de fuligem e ferro--velho, sobre o cho de terra, juncado de cavacos, estavam fechadas as terrveis portas de madeira, fechadas sobre o cheio, sobre quartos cheios at rebentar de mveis, de recordaes, de crianas, de dios, com esse odor J E A N-P AUL SARTRE espesso de cebolas fritas, e o colarinho brilhante sobre a cama e as mulheres pensativas atrs das janelas, ele andava entre olhares, teso, petrificado plos olhares. Gros-Louis caminhava entre as paredes de tijolo e as portas de ferro, caminhava, nem um centavo, nada para mastigar e a cabea batendo como um corao, caminhava e as suas solas batiam na cabea, plac, plac, eles andavam, a suar, pelas ruas assassinadas pelo domingo, a sua face iluminava a avenida diante dele, pensava: Ruas de guerra, j. Pensava: Como que eu vou comer? Os dois pensavam: No haver ningum que me ajude? mas os homenzinhos morenos, os operrios grandes de caras petrificadas, faziam a barba pensando na guerra, pensando que teriam um dia inteiro para passear a sua angstia pelas ruas assassinadas. A guerra: as lojas fechadas, as ruas desertas, trezentos e sessenta e cinco domingos por ano. Philippe chamava-se Pedro Cazars, trazia o nome junto ao peito, Pedro Cazars, Pedro Cazars. Pedro Cazars partia naquela mesma noite para a Sua, levava para a Sua uma bochecha florida, marcada por cinco falanges. As mulheres olhavam-no das suas janelas. Deus olhava para Daniel. Direi Deus? Uma s palavra e tudo muda. Encostava-se porta cinzenta da loja do correeiro, as pessoas apressavam-se a caminho da igreja, pretos na rua rosada, eternos. Tudo era eterno. Uma senhora passou, loira, leve, os cabelos meticulosamente despenteados, morava no hotel, o marido vinha v-la duas vezes por quinzena, era um industrial de Pau; ela pusera o rosto em repouso porque era domingo, os seus pezinhos
trotavam para a igreja, a sua alma era um lago de prata. A igreja: um buraco; PENA SUSPENSA a fachada era romana, havia uma esttua jacente de pedra na segunda capela direita. Sorriu para a dona da mercearia com o seu menino. Direi Deus? No estava espantado, pensava, devia acontecer. Cedo ou tarde. Sentia que havia alguma coisa. Tudo, fiz sempre tudo, diante de uma testemunha. Sem testemunha evaporamo-nos. Bom dia, senhor Sereno cumprimentou Nadine Pichon. Vai missa? Vou a correr disse Daniel. Seguiu-a com os olhos, ela mancava mais que o costume, duas meninas alcanaram-na e puseram-se a girar alegremente sua volta. Olhou-as. Fixar nelas o meu olhar olhado! O meu olhar oco, o olhar de Deus atravessa-o de lado a lado. Estou a fazer literatura, pensou bruscamente. Deus j no estava ali. Esta noite no suor dos lenis havia a presena de Deus e Daniel sentiu-se Caim: Eis como me fizeste, covarde, pederasta, oco. E depois? E o olhar ali estava, por toda a parte, mudo, transparente, misterioso. Daniel acabaria por adormecer e ao despertar estava s. Uma recordao de olhar. A multido surgia de todas as portas bem abertas, luvas pretas, colarinhos engomados, peles de coelho e livros de missa familiares na ponta dos dedos. Ah!, disse Daniel, seria preciso um mtodo. Estou cansado de ser essa evaporao incessante para um cu vazio, quero um tecto. O carniceiro esbarrou com ele de passagem, era um homem gordo e vermelho que punha monculo ao domingo para ser notado; a sua mo peluda fechava-se sobre um missal. Daniel pensou: Vai exibir-se, os olhares cairo nele das redomas e dos vitrais vo todos exibir-se, a metade da humanidade vive debaixo de olhares. Sentir ele o olhar quando bate com a machadinha na carne J E A N-P AUL SARTRE que eclode sob os golpes, que se abre, revelando o osso redondo e azulado? Vem-no, vem-lhe a dureza como lhe vejo as mos, a avareza como lhe vejo os cabelos ralos e essa carncia de piedade como lhe vejo o crnio sob os cabelos; ele sabe-o, virara as pginas do missal e gemer: "Senhor, Senhor, sou avarento". E o olhar de Medusa descer do alto, petrificante. Virtudes de pedra, vcios de pedra: que repouso! Essa gente tem tcnicas eficazes, pensou Daniel despeitado, olhando os dorsos negros que se afundavam nas trevas da Igreja. Trs mulheres caminhavam juntas na claridade esbranquiada da manh. Trs mulheres tristes e recolhidas, possudas pelo
quotidiano. Acenderam o lume, varreram o cho, puseram leite no caf e ainda no eram nada seno um pedao de brao na ponta da vassoura, uma mo a segurar a asa do bule, aquela rede de bruma que cresce sobre as coisas, atravs dos muros, por campos e bosques. Agora andam ali pelas trevas, vo ser o que so. Seguiu-as de longe. Se eu fosse l? S para rir: eis como me fizeste, triste e covarde, irremedivel. Tu olhas para mini e toda a esperana se esvai; estou farto de fugir de mim. Mas sei que ante o teu olhar no posso fugir de mim. Entrarei, ficarei de p, no meio dessas mulheres de joelhos, como um momento de iniquidade. Direi: "Sou Caim." E ento? Foste tu quem me fez assim, carrega-me. O olhar de Marcelle, o olhar de Mathieu, o olhar de Bobby, o olhar dos meus gatos: sempre se desviaram da minha pele. Mathieu, sou pederasta. Sou, sou, sou pederasta, meu Deus. O velho de rosto enrugado trazia uma lgrima no olhar, mordia com um ar maldoso o bigode avermelhado pelo fumo. Entrou na igreja gasto, alquebrado, gaga e Daniel entrou atrs. Era a hora em que Ribadeau chegava assobiando ao cais de dsPENA SUSPENSA carga e os rapazes indagavam: Ento, Ribadeau, em forma hoje? Ribadeau pensava nisso, enrolando o cigarro, sentia as mos vazias; contemplava melancolicamente os vages e as filas de barris e faltava-lhe alguma coisa nas mos, o peso de uma bola bem colada palma; olhava os tonis e pensava: Um domingo, mas que pena! Marius, Cludio, Remy tinham partido, brincavam aos soldados; Jules e Charlot faziam o que podiam, rolavam os barris ao longo dos carris, juntavam-se para levant-los e lanavam-nos para dentro dos vages. Eram fortes mas velhos, Ribadeau ouvia-lhes a respirao ofegante e o suor escorria pelas costas nuas: nunca mais se acabava. Havia um tipo grande com a cabea ligada, que rondava pelo entreposto h um bom quarto de hora; acabou por se aproximar de Jules, e Ribadeau viu que os lbios dele se mexiam. Jules escutava-o com o seu ar idiota. Por fim, endireitou-se mais ou menos, ps as palmas das mos nos rins e designou Ribadeau com a cabea. O que h? indagou Ribadeau. O tipo aproximou-se hesitante; andava como um pato, com os ps para fora. Um verdadeiro bandido. Tocou na ligadura da cabea maneira de cumprimento. Tem trabalho? perguntou. Trabalho? repetiu Ribadeau. Olhava o tipo, um verdadeiro bandido, o penso estava sujo, quase preto; o homem parecia forte, mas o rosto era a tal ponto plido que metia medo. Trabalho?
Encararam-se, Ribadeau perguntava a si prprio se o tipo no ia desmaiar: Trabalho disse, coando o crnio , no o que falta aqui. J E A N-P AUL SARTRE O homem piscou os olhos. De perto, no parecia assim to mau. Posso trabalhar disse. No tem cara de muita sade. Como? Estou a dizer que tem cara de doente. No estou doente. O tipo olhou-o espantado. Est lvido. Para que essa ligadura? Nada, eles bateram-me explicou. Quem que lhe bateu? Os guardas? No, os companheiros. Posso trabalhar. E preciso ver. O tipo baixou-se, pegou num barril e levantou-o sem esforo. Posso trabalhar disse, tornando a colocar o barril no cho. Filho da puta! exclamou Ribadeau com admirao. E acrescentou: Gamo te chamas? Gros-Louis. Tens documentos? A caderneta militar. Mostra. Gros-Louis vasculhou o bolso interior do bluso e tirou com precauo a caderneta. Ribadeau olhou-a e ps-se a assobiar. Olha l! Olha l! Est em ordem disse Gros-Louis inquieto. Em ordem? Sabes ler? Gros-Louis olhou-o com malcia: No preciso saber para carregar barris. PENA SUSPENSA Ribadeau devolveu-lhe a caderneta. Tens o nmero dois, rapaz. Esto tua espera em Montpellier. Acho bem que te apresses, seno sers um desertor. Montpellier? disse Gros-Louis, estupefacto. No tenho nada que fazer em Montpellier. Ribadeau zangou-se: J te disse que ests mobilizado. Tens o nmero dois. Gros-Louis guardou a caderneta no bolso. Ento no me d trabalho? No posso dar emprego a um desertor. Gros-Louis baixou-se e levantou um barril. J sei, j sei disse Ribadeau com vivacidade. Tu s forte, no digo que no. Mas h-de adiantar muito se te vierem
prender dentro de quarenta e oito horas. Gros-Louis pusera o barril s costas. Olhava para Ribadeau com ateno, franzindo as sobrancelhas espessas. Ribadeau encolheu os ombros: pena. No tinha mais nada para dizer. Afastou-se, a pensar: No quero um refractrio. Gritou: Eh!, Charlot! Eh? disse Charlot. Sabes, aquele tipo um refractrio. pena disse Charlot , poder-nos-ia ajudar. No vou contratar um refractrio! Naturalmente que no. Voltaram-se ambos, o tipo tornara a colocar o barril no cho e virava a caderneta nas mos com um ar infeliz. A multido cercava-os, levava-os, girava volta deles, e fazia-se mais compacta. Ren no sabia se estava imvel J E A N-P AUL SARTRE ou se girava com a multido. Contemplava as bandeiras francesas que tremulavam em cima da entrada da Gare de Leste; a guerra estava ali, ao fundo dos carris, no o incomodava, ele sentia-se ameaado por uma catstrofe muito mais imediata: as multides so frgeis, h sempre uma desgraa maquinando acima delas. O enterro de Gallieni, ele arrasta-se, passeia a sua pequena veste branca entre as razes negras da multido, sob o horror do sol, os andaimes desmantelam-se e abatem-se, no olhes, transportaram a mulher, tesa, com um p de renda vermelha saindo da botina aberta. A multido cercava-o, sob o sol claro e oco, detesto as multides, sentia olhares por toda a parte, sis provocam o desabrochar de flores, nas costas, no ventre, que acendiam o seu nariz comprido e plido, a partida para os arrabaldes nos primeiros domingos de Maio, e no dia seguinte nos jornais: O domingo vermelho, sempre ficam alguns estirados na rua. Irene protegia-o com o seu corpinho rolio, no olhes, ela leva-me pela mo, puxa-me e a mulher passa por detrs de mim, desliza sobre a multido como um cadver sobre o Ganges. Ela olha com um ar de censura, para os punhos erguidos, ao longe, sob as bandeiras tricolores, acima dos bons. Diz: Idiotas! Ren fez como se no tivesse ouvido; mas a irm prosseguiu com uma lentido convicta: Idiotas. Mandam-nos para a matana e esto contentes. Era escandalosa. No autocarro, no cinema, no metro, era escandalosa, dizia sempre o que no devia, a sua voz decidida lanava palavras escandalosas. Deu uma olhadela para trs: um
tipo com cara de fuinha, olhar demasiado fixo, nariz achatado, escutava. Irene ps-lhe PENA SUSPENSA a mo sobre os ombros, acabava de se lembrar que era a irm mais velha, ele pensou que ela iria dar-lhe conselhos aborrecidos, mas, como quer que fosse, dera-se ao trabalho de o acompanhar estao. E agora estava ali sozinho, no meio daqueles homens sem mulheres, como nos dias em que a conduzia ao boxe em Puteaux, no devia humilh-la. Ela lia, deitada no sof, fumando muito, e exprimia os seus pensamentos pessoais, pensamentos que fazia como fazia os seus chapus. Disse-lhe: Escuta, Ren. No vais fazer como aqueles idiotas. No disse Ren em voz baixa. Escuta bem continuou ela , no queiras ser mais real que o rei. Quando estava convencida, a sua voz tinha um alcance maior. Disse: Que te adiantaria? Vais porque no podes evit-lo, mas no te destaques quando l estiveres. Nem no bem, nem no mal: o mesmo. E abriga-te sempre que puderes. Sim, sim. Ela segurava-o fortemente plos ombros, olhava-o com um olhar penetrante, mas sem afeio; seguia a sua ideia. Porque eu conheo-te, Ren. Tu gostas de te mostrar, farias tudo para que falassem de ti. Mas eu previ-no-te, se voltares condecorado, no falo mais contigo. E se voltares com uma perna mais curta do que a outra ou um buraco na cara no contes comigo para te lamentar, nem me venhas dizer que foi acidente; com um pouco de prudncia evitam-se certas coisas. Sim, sim. Ele pensava que ela tinha razo, mas que no se devia dizer isso. Nem mesmo pensar. Isso devia fazer-se sozinho, JE-AN-PAUL SARTRE tranquilamente, sem palavras, pela fora das circunstncias, de maneira a no ter remorsos. Bons, um mar de bons, os bons da segunda-feira pela manh, dos dias de trabalho, os bons das construes, dos comcios do sbado, Maurice estava vontade, em plena multido. A mar balouava os punhos erguidos, deslocava-os devagar, com paragens sbitas, hesitaes, novas partidas na direco das bandeiras tricolores, camaradas, camaradas, os punhos de Maio, os punhos floridos correm para Garches, para os stands vermelhos dos prados de Garches, eu chamo-me Zzette e os falces cantam, cantam o lindo ms de Maio, o mundo que nasce. Cheirava a veludo e vinho, Maurice estava em toda a parte, pululava, cheirava a veludo, cheirava a vinho, roava a manga
no tecido spero de um casaco, um homenzinho de cabelo frisado enfiava-lhe a mochila nos rins, o rudo surdo de milhares de ps subia-lhe pelas pernas at ao ventre, um roncar no cu por cima da cabea, ergueu os olhos, olhou para o avio, depois os seus olhos baixaram e ele viu uma poro de caras para o ar, reflexos da sua cara, sorriu-lhes. Dois lagos claros numa pele curtida, cabelos crespos, uma cicatriz, sorriu. Sorriu para o homem de binculo que parecia to atento, sorriu para o barbudo magro e plido que mordia os lbios e no sorria. Tudo gritava aos seus ouvidos, o cmulo, Jojo, preciso urna guerra para que nos encontremos! Era domingo. Quando as fbricas esto fechadas, quando os homens esto juntos e esperam, de mos vazias, nas estaes, sacola s costas sob um destino de ferro, domingo e no tem muita importncia que se v para a guerra ou se passeie em Fontainebleau. Daniel, em p, diante de um genoflexrio, respirava um odor calmo de adega e incenso, PENA SUSPENSA olhava os crnios nus sob a luz roxa, nico em p no meio dos homens de joelhos. Maurice, cercado de homens de p, homens sem mulheres, no odor febril de vinho, carvo, fumo, olhando para os bons luz da manh, pensava: domingo. Pierre dormia, Mathieu apertou o tubo e um cilindro de pasta rosada esguichou a chiar, partiu-se, caiu nos plos da escova. Um rapazola deu um empurro a Maurice, rindo: Eh, Simon! Simon! E Simon voltou-se tinha as faces vermelhas, ria, e disse: caso para dizer domingo sombrio 1. Maurice achou graas, ps-se a repetir: Domingo sombrio, e um jovem devolveu-lhe o sorriso, uma mulher nada feia e bem-vestida acompanhava-o, pendurada no brao dele, olhava-o com ar de splica, mas ele no olhava para ela, se o tivesse feito ter-se-iam fechado um no outro, teriam ficado um s. Um casal solitrio. Ela ria, olhava para Maurice, a mulher no contava, Zzette no contava, ofegante, ela tem um cheiro forte, est mole debaixo de mim, amor, amor, entra em mim, e havia ainda um pouco de noite como um suor entre o seu corpo e a camisa, um pouco de fuligem, um pouco de angstia viscosa e mole, mas ele ria ao ar livre e as mulheres estavam a mais; a guerra era a guerra, a revoluo, a vitria. Conservaremos as espingardas. Todos eles ali, o de cabelos frisados, o barbudo, o do binculo, o jovem, todos voltaro com as suas espingardas cantando a Internacional e ser domingo. Domingo para sempre. Ergueu o punho. Ergue o punho! Isso inteligente. Maurice virou-se para trs, de punho erguido: Que que h?
1 Aluso msica Sombra Dimanche, que teria dado origem a uma srie de suicdios. (N. da T.) J E A N-P AUL SARTRE Era o barbudo. Perguntou: Ento quer morrer plos Sudetas? Cala a boca disse Maurice. O barbudo olhou-o com raiva, hesitante, dir-se-ia que procurava recordar alguma coisa. Subitamente gritou: Abaixo a guerra! Vais fechar a boca? repetiu Maurice. Deu um passo para trs e a sua mochila bateu nas costas de algum. Vais-te calar? Abaixo a guerra! gritou o barbudo. Abaixo a guerra! As suas mos tinham comeado a tremer e os seus olhos reviravam, no podia parar de gritar. Maurice olhava-o com estupor, sem clera, pensou um instante em dar-Ihe um soco na cara, s para faz-lo calar, sacudimos as crianas quando esto com soluos, mas sentia ainda uma carne mole nas falanges e no estava muito orgulhoso com isso, batera num menino, muita gua h-de passar sob as pontes antes que eu recomece. Enfiou a mo no bolso: Continua ento disse ele simplesmente. O barbudo continuou a gritar com voz corts e cansada uma voz de rico; e Maurice teve de repente a impresso desagradvel de que a cena era falsa. Olhou sua volta e a sua alegria desapareceu: era culpa dos outros, no faziam o que deviam fazer. Nos comcios, quando um tipo se pe a berrar cretinices, a multido cai em cima dele e abafa-o, vem-se uns braos no ar durante um momento e pronto. Em vez disso, os camaradas tinham recuado, haviam estabelecido um vcuo em volta do barbudo; a rapariga contemplava-o com curiosidade, largara o brao do seu homem, PENA SUSPENSA os companheiros afastavam-se, no tinham um ar franco, fingiam no ouvir. Abaixo a guerra! gritou o barbudo. Um estranho mal-estar invadia Maurice: havia aquele sol, aquele tipo que gritava sozinho, e todos aqueles homens silenciosos que baixavam a cabea... O mal-estar transformou-se em angstia, abriu passagem na multido com os ombros e dirigiu-se para a entrada da estao, para os camaradas de verdade, que erguiam o punho sob as bandeiras. O Bulevar Montparnasse estava deserto. Domingo: Na esplanada do Coupole cinco ou seis pessoas bebiam; a vendedeira de gravatas esperava junto porta; no primeiro andar do 99, por cima do
Kosmos, um homem em mangas de camisa assomou janela e apoiou-se no parapeito. Maubert e Thrse deram um grito de alegria, havia ali um, na parede entre a Coupole e a farmcia, havia um grande cartaz amarelo tarjado a vermelho, Franceses, ainda hmido. Maubert atirou-se para a frente, enterrando o pescoo nos ombros. Thrse seguiu-o, divertia-se com uma louquinha: j haviam rasgado seis sob o olhar espantado dos bons burgueses, era formidvel ter um patro jovem e desportivo, vigoroso e que sabe o que quer. Porcaria! disse Maubert. Olhou em volta; uma menina parara perto, podia ter uns dez anos e contemplava-os, brincando com as tranas. Maubert repetiu, bem alto: Porcaria! E Thrse disse atrs dele em voz alta, igualmente: Como pode o Governo permitir que se afixem essas porcarias? J E A N-P AUL SARTRE A vendedeira de gravatas no respondeu: era uma mulher gorda, um vago sorriso profissional pairava-lhe nos lbios. Franceses: As exigncias alems so inadmissveis. Tudo fizemos para conservar a paz, mas ningum pode exigir que a Frana renegue os seus compromissos e consinta em tornar-se uma nao de segunda categoria. Se abandonarmos hoje os Checos, amanh Hitler pedir-nos- a Alscia. Maubert pegou no cartaz por uma ponta e puxou-o, arrancando uma fita comprida de papel amarelo. Thrze pegou nele pelo outro lado e ficou com um pedao grande na mo: que a Frana rene e consinta em torn uma nao de Se abando Restava uma estrela amarela e irregular na parede. Maubert recuou um passo para admirar a sua obra: uma estrela amarela, nada mais que uma estrela amarela, com palavras inofensivas e incompletas. Thrse sorriu e olhou para as mos enluvadas, um pedacinho colara-se luva direita: rene... esfregou o polegar no indicador e o fragmentozinho fez-se num bolinha, secou, ficou duro como uma cabea de alfinete. Thrse abriu os dedos, a bolinha caiu e ela sentiu uma impresso embriagadora de poder. PENA SUSPENSA Um bife pequeno, senhor Dsir, um bifinho de uns trezentos gramas, mas bonito, bem cortado: ontem foi o seu empregado quem me serviu, no fiquei satisfeita, era tudo nervos. Ah!, diga-me uma coisa: que que aconteceu ali em frente? No 24,
algum morreu? No sei, disse o carniceiro. No 24 no tenho fregueses, compram no Berthier. Olhe como o estou a servir bem, rosado, tenro, espuma como champanhe e no tem nervos, eu comeria isto at cru. No 24, disse a senhora Lieutier, eu sei, o senhor Viguier. Viguier? No conheo; um novo inquilino. No, aquele velhinho que dava bombons a Thrse. Ah!, aquele to amvel? Que pena! Imagine, o senhor Viguier! J estava bastante velho para morrer. Oh!, disse a senhora Lieutier, e como eu disse ao meu marido, morreu a tempo, o velhinho, teve faro, ns talvez lamentemos no nos acontecer o mesmo daqui a seis meses. Sabe que eles tm uma inveno? Eles quem? Os alemes. Um negcio que mata gente como moscas, com terrveis sofrimentos. Ser possvel, meu Deus! Que bandidos. Mas o que ? E uma espcie de gs, ou de raio, explicaram-me. Ah!, o raio da morte, disse o carniceiro, meneando a cabea. Pois uma coisa assim, no acha que melhor estar enterrado? Tem razo, o que digo sempre. No ter mais casa, mais preocupaes, eis como gostaria de morrer: adormecemos e no acordamos mais. Dizem que ele morreu assim. Quem? O velhinho. H gente com sorte, ns temos de passar por tudo, apesar de sermos mulheres, no viu o que se passou em Espanha? No, s uma costeleta. E no tem bofe para o meu gato? Quando penso: mais uma guerra! O meu marido fez a J E A N-P AUL SARTRE de 14, agora a vez do meu filho, os homens so loucos. Ser to difcil entenderem-se? Mas Hitler no quer, senhora Bonnetain. Como Hitler? Ele quer os Sudetas? Pois eu dar-lhe-ia os Sudetas. Nem sei se so homens ou montanhas, e o meu filho vai morrer por isso? Eu dar-Ihe-ia os Sudetas. Quer os Sudetas? Pois tome os Sudetas! Queria ver o que ele fazia. Mas diga, continuou com seriedade, hoje o enterro? No sabe a que horas? Sim, porque eu poderia ver da janela. Que quer de mim essa gente toda com a sua guerra? Segurava a caderneta militar, no se conformava em guard-la no bolso: era tudo o que possua no mundo. Abriu-a sem parar de andar, viu o seu retrato e sentiu-se mais confortado: aqueles pequeninos desenhos pretos que falavam dele eram menos inquietan-tes, enquanto os olhava no pareciam to perigosos. Murmurou: Coisa triste no saber ler. Um desertor, um rapazinho exausto que subia a Avenida de Clichy, arrastando a sua imagem de espelho em espelho, aquele rapazinho sem dio era um insubmisso, um desertor, um tipo terrvel, de cabea ferida, que vive em Barcelona, no Bairro Chins, escondido por uma mulher que o adora. Mas como se pode
ser um desertor? Com que olhos nos devemos olhar? Estava de p na nave, o padre cantava para ele; pensou. O repouso, a calma, a calma, o repouso. Tel qu'en lui-mme enfin 1'termt l change. Tu criaste-me como sou e os teus desgnios so impenetrveis; sou o mais vergonhoso dos teus pensamentos, tu vs-me e eu sirvo-te, ergo-me contra ti, insulto-te e sirvo-te insultando-te. Sou a tua criatura, tu amas-me a mini, tu carregas comigo, tu que criaste os monstros. A campainha tocou, os fiis inclinaram PENA SUSPENSA a cabea, mas Daniel permaneceu direito, o olhar parado. Tu vs-me. Tu amas-me. Sentia-se calmo e sagrado. O carro funerrio parou diante da porta 24. Ei-los, ei-los, disse a senhora Bonnetain. no terceiro, explicou a porteira. Reconheceu o funcionrio e disse-lhe: Bom-dia, senhor Ren, sempre bem? Bom dia, respondeu o senhor Ren, que ideia esta de se enterrar ao domingo! Ah!, sorriu a porteira, que ramos livres-pensadores. Jacques olhava Mathieu: deu um soco na mesa e falou: E ainda que a ganhssemos, essa guerra sabes quem tiraria proveito? Estaline. E se no nos mexermos o benefcio ser de Hitler, disse Mathieu suavemente. E depois? Hitler, Estaline, tudo igual. S que um entendimento com Hitler nos economiza dois milhes de homens e evita a revoluo. Pronto, Mathieu levantou-se e foi dar uma olhadela pela janela. No estava sequer irritado, pensava: para qu tudo isto? Ele desertara e o cu conservava o seu arzinho camarada aos domingos, as ruas cheiravam a comida fria, pastis, frangos, famlias. Passou um casal, o homem transportava um doce embrulhado em papel vegetal amarrado com uma fitinha cor--de-rosa. Como todos os domingos. Mentira, no tem importncia, v como tudo est calmo, sem agitao, simplesmente aquela agoniazinha dominical, a agoniazinha em famlia, basta voltar atrs, o cu existe, as mercadorias existem, a torta existe; os desertores no existem. Domingo, domingo, a primeira fila diante do mictrio de Clichy, o primeiro calor do dia. Entrar no elevador que acaba de descer, respirar na gaiola sombria o perfume da loira do terceiro, premir o botozinho branco, o pequeno choque, o suave deslizar, pr a chave na fechadura, como todos J E A N-P AUL SARTRE os domingos, pendurar o chapu no terceiro cabide, arranjar o n da gravata diante do espelho do hall, empurrar a porta do salo gritando: Sou eu. Que faria ela? No viria para junto dele como todos os domingos, murmurando: Meu querido! Era to evidente, de uma verosimilhana to abafante! No entanto,
perdera tudo aquilo para sempre! Se ao menos eu pudesse zangar-me! Esbofeteou-me, pensou, esbofeteou-me. Parou, sentia uma dor de lado, apoiou-se a uma rvore, no estava com raiva. Ah!, pensou, porque no sou uma criana? Mathieu tornou a sentar-se perto de Jacques. Jacques falava, Mathieu olhava-o e tudo era to aborrecido, a secretria na penumbra, a musicazinha do outro lado dos pinheiros, as bolinhas de manteiga no pratinho, as tigelas vazias na bandeja: uma eternidade sem importncia. Teve vontade de falar, por sua vez. Para no dizer nada, para quebrar o silncio eterno que a voz do irmo no conseguia romper. Disse-lhe: No te preocupes. Guerra, paz, indiferente. Indiferente? disse Jacques espantado. Vai dizer isso aos milhes de homens que se preparam para morrer. E depois? disse Mathieu de bom humor. Traziam a morte na vida desde o seu nascimento. E quando os tiverem massacrado todos at ao ltimo, a humanidade continuar cheia como antes, sem uma lacuna, sem um ausente. Menos doze ou quinze milhes de homens disse Jacques. No 4 uma questo de nmero. Estar cheia de si mesma, ningum lhe faz falta e ela no espera ningum. PENA SUSPENSA Continuar a no ir para parte alguma e os mesmos homens faro as mesmas perguntas e falharo nas suas vidas. Jacques olhava-o a sorrir para mostrar que no o levava a srio. E aonde que queres chegar? Exactamente a nenhum lugar, a nada. Esto a, esto a gritou a senhora Bonne-tain muito animada , vo colocar o caixo no carro. A guerra no nada, o comboio partia, eriado de punhos erguidos, Maurice encontrara os companheiros: Dubech e Laurent esmagavam-no contra a janela, ele cantava: U Internationale ser l genre humain. Cantas muito mal, disse-lhe Dubech. No importa, respondeu Maurice. Estava com calor, doam-lhe as tmporas, era o mais belo dia da sua vida. Estava com frio, com dores de barriga, tocou pela terceira vez; ouviu um rudo de passos apressados no corredor, as portas bateram mas no apareceu ningum: Que estaro elas a fazer? So capazes de me deixar cagar nas calas. Algum correu pesadamente, passou diante do quarto... , ... gritou Charles. Os passos afastaram-se, o rudo cessou, mas comearam a dar marteladas violentas no andar de cima. Que vo todos merda, se fosse a menina Dorliac, que lhes passa cinco notas por ms, s em gorjetas, elas brigavam para entrar no quarto. Teve um
tremor de frio, as janelas deviam estar todas abertas, um ventinho gelado entrava por baixo da porta, esto a arejar, ainda no partimos e j esto a arejar: os rudos, o vento frio, os gritos entravam como num moinho, estou positivamente numa praa pblica. Desde a sua primeira radiografia que no tivera tamanha angstia. J E A N-P AUL SARTRE , ... gritou. Onze horas menos dez, Jacqueline no viera, tinham--no deixado sozinho durante toda a manh. Vo acabar com isto, l em cima? As marteladas ressoavam-lhe no fundo dos olhos, dir-se-ia que esto a pregar o meu caixo. Sentia os olhos secos e doloridos, acordara sobressaltado, s trs horas da manh, depois de um pesadelo. Felizmente, fora apenas um sonho: ficara em Berck; a praia, os hospitais, as clnicas, tudo estava vazio; nem doentes, nem enfermeiras, janelas negras, salas desertas, areia cinzenta e nua a perder de vista. Mas aquele vazio no era simplesmente vazio; s se v isso em sonho. O sonho continuava; tinha os olhos bem abertos e o sonho prosseguia; estava no seu aparelho bem no meio do quarto e no entanto o quarto j estava vazio; no tinha alto nem baixo, nem direita nem esquerda. Sobravam quatro tabi-ques, somente quatro tabiques quase chocavam em ngulo recto, apenas um pouco de ar martimo entre quatro paredes. Elas arrastavam pelo corredor um objecto pesado e spero, sem dvida uma mala grande de rico: , ... gritou. A porta abriu-se, a senhora Louise entrou. Arre! disse ele. Um minuto. Temos cem doentes para vestir; cada um por sua vez. Onde est Jacqueline? Se pensa que ela tem tempo para se ocupar de si! Est a vestir as Pottier. D-me a bacia depressa disse Charles. Depressa! Que histria essa? No a sua hora. Estou angustiado. Deve ser por isso. PENA SUSPENSA Sim, mas eu preciso de vos preparar. Toda a gente deve estar pronta s onze horas. Enfim, despache-se. Ela desatou o cordo do pijama e puxou as calas, depois soergueu-o plos rins e ps a bacia por baixo. O esmalte era frio e duro. Estou com diarreia, pensou chateado. Como que eu vou fazer se tiver diarreia no comboio? No se incomode. Est tudo previsto. Ela olhava-o, brincando com o molho de chaves. Disse-lhe:
Vo ter bom tempo para partir. Os lbios de Charles puseram-se a tremer. No queria partir... Ora, ora. Vamos, acabou? Charles fez um ltimo esforo. Acabei. Ela tirou do bolso do avental uma toalha de papel e uma tesoura. Cortou o papel em oito pedaos. Levante-se disse. Ele ouviu-a amarrotar o papel e sentiu que o esfregavam. Arre! disse. Pronto. Ponha-se de barriga para baixo enquanto guardo a bacia. Vou acabar de o limpar. Ps-se como tal, ouviu-a andar no quarto e depois sentiu a carcia dos dedos hbeis. Era o seu momento preferido. Uma coisa. Uma pobre pequenina coisa abandonada. O seu sexo endureceu e ele acarinhou-o no lenol fresco. Louise virou-o como um pacote. Olhou-lhe o ventre e riu: Malandro! Ah!, vamos ter saudades suas, senhor Charles, era um grande animador. J E A N-P AUL SARTRE Puxou as cobertas e tirou-lhe o pijama: Um pouco de gua-de-colnia no rosto disse, esfregando-o. Hoje a toilette tem de ser sumria. Levante o brao. Bem. A camisa. Agora a ceroula, no se agite assim, no posso enfiar-lhe as meias. Recuou para julgar a sua obra e disse com satisfao: Est limpo como uma moeda. Ser longa a viagem? indagou Charles com a voz alterada. Provavelmente respondeu ela, vestindo-lhe o casaco. E para onde vamos? No sei. Creio que vamos parar primeiramente em Dijon. Olhou sua volta: preciso no esquecer nada. Ah!, naturalmente, a sua xcara azul. Gosta tanto dela. Tirou-a do aparador e debruou-se sobre a mala. Era uma xcara de faiana azul com borboletas vermelhas. Realmente muito bonita. Vou coloc-la entre as camisas para que no se parta. D-ma disse Charles. Ela olhou-o com surpresa e estendeu-lhe a xcara. Ele pegou nela, ergueu-se sobre o cotovelo e lanou-a com toda a fora contra a parede. Vndalo! gritou Louise indignada. Se no queria lev-la consigo devia ter-ma dado! No queria d-la nem lev-la disse Charles. Ela encolheu os ombros, foi at porta e abriu-a de par em par.
PENA SUSPENSA Partimos? Partimos. Quer perder o comboio? To depressa! To depressa! Ela voltara a colocar-se atrs dele; empurrou o aparelho, ele estendeu a mo para tocar na mesa de passagem, viu durante um momento a janela e um pedao de parede no espelho, fixado em cima da sua cabea, depois no viu mais nada. Estava no corredor, atrs de uma srie de aparelhos em fila ao longo da parede; era como se lhe torcessem o corao. O cortejo ps-se em marcha: Esto a sair, disse a senhora Bonnetain. No tem muita gente para o acompanhar at sua ltima morada. Avanam pouco a pouco, uma paragem aps cada volta; na cova sombria elas empurravam os aparelhos aos pares, mas havia um s elevador e levava tempo. Como demorado disse Charles. No partiro sem voc, sossegue disse Louise. O carro funerrio passava sob a janela; a mulherzinha de luto devia ser da famlia, a porteira fechara chave o seu aposento, seguia ao lado de uma mulher forte, de cinzento, com um chapu de feltro azul, a enfermeira. O senhor Bonnetain apoiou-se ao parapeito junto da mulher: Viguier era um irmo de categoria, disse. Como que sabes? Ah!, disse ele com ar de importncia. E acrescentou: Desenhava tringulos na minha mo com o polegar, cada vez que me cumprimentava. A senhora Bonnetain experimentou uma sensao de raiva, ouvindo o marido falar com tanta displicncia de um morto. Acompanhava o enterro com o olhar e pensou: Pobre homem. Estava ali estirado de costas, levam-no para a cova. Pobre J E A N-P AUL SARTRE homem, triste no ter famlia. Fez o sinal-da-cruz. Empurraram-no para a cova escura, sentira o elevador descer. Quem parte connosco? indagou. Ningum daqui disse Louise. Designaram trs enfermeiras do chal normando e mais a Georgette Fouquet, uma morena alta que o senhor certamente conhece, est na clnica do doutor Robertal. Sim, sim disse Charles, enquanto ela o empurrava devagar para a cova. Uma morena de pernas bonitas. No parece muito camarada. Ele tinha-a observado muitas vezes na praia, vigiando um grupo de meninos raquticos e distribuindo sopapos com equidade; andava de pernas nuas e usava alpercatas. Belas pernas nervosas e aveludadas, ele dissera para si que gostava de ser tratado por ela. Desc-lo-o com cordas para a cova e ningum se inclinar para v-lo, salvo essa mulherzinha que nem sequer
tem um ar muito decente, triste morrer assim; Louise empurrou o aparelho para dentro do elevador, j havia outro ali, no escuro. Quem est a? perguntou Charles, piscando os olhos. Petrus disse uma voz. Ah!, bandido! Ento, de mudana? Petrus no respondeu, houve uma sacudidela, Charles teve a sensao de planar a alguns centmetros acima do aparelho, desciam pela cova, o soalho do terceiro andar j se encontrava acima da sua cabea, deixava a sua vida por baixo, pelo escoadouro da pia. Mas onde est ela? perguntou num curto soluo , onde est Jacqueline? PENA SUSPENSA Louise no pareceu ouvir e Charles reprimiu o choro por causa de Petrus. Philippe caminhava, no podia parar, se parasse desmaiaria; Gros-Louis caminhava, tinha magoado o p direito; um homem passou na rua deserta, era pequeno, gorducho, com bigode e chapu de abas estreitas, Gros-Louis estendeu-lhe a mo: Escuta, sabes ler? O homem deu um pulinho para o lado e apertou o passo. No fujas disse Gros-Louis , no te vou comer. O homem apertou ainda mais o passo. Gros-Louis ps-se a correr atrs dele, estendendo-lhe a caderneta militar: o homem resolveu correr, dando um pequeno grito como um bicho. Gros-Louis parou, ficou a coar o crnio abaixo da ligadura suja, vendo-o afastar-se; o homem tornou-se pequenino e redondo como uma bola, rolou at a uma esquina, pulou, virou, desapareceu. , l, l! disse Gros-Louis. , l, l! No chore disse Louise, enxugando-lhe os olhos com o leno. Nem tinha percebido que chorava. Sentiu-se enternecido; era agradvel chorar sobre si mesmo. Era to feliz aqui! Ningum o diria observou Louise. Estava sempre a reclamar. Abriu a porta do elevador e empurrou-o para o vestbulo. Charles soergueu-se sobre os cotovelos, reconheceu Totor e a menina Gavalda. Esta estava plida como um lenol. Totor afundara-se nas cobertas e fechava os olhos. Homens de bon pegavam nos carrinhos, sada do elevador, e desapareciam no parque. Um deles chegou-se para o lado de Charles. J E A N-P AUL SARTRE Adeus, boa viagem disse Louise. Mande--nos um postal quando chegar. E no se esquea: a mala com as coisas de
toilette est junto aos ps, sob a coberta. O tipo j se inclinava sobre Charles. Eh! gritou Charles. Muito cuidado. difcil no dar solavancos quando no se est habituado. Bom, bom disse o tipo , no nada difcil. Carretas na estao de Dunquerque, vagonetes em Lens, carroas em Anzin, no fiz outra coisa na vida! Charles calou-se, tinha medo: o tipo que empurrava o carrinho de Gavalda f-lo dar uma curva sobre duas rodas e roou o aparelho na parede. Espere disse Jacqueline , espere! Sou eu que vou conduzi-lo estao. Descia a escada a correr, ofegante. Senhor Charles! Olhava-o num xtase triste, o seu peito arfava fortemente, fingiu que arranjava as cobertas para poder toc-lo; ele tinha ainda alguma coisa na terra; onde quer que estivesse ainda teria isso: um corao bom que continuaria a bater por ele em Berck, numa clnica deserta. Ento disse ele , abandonou-me. Oh!, senhor Charles, no pude. A senhora Louise deve ter-lhe dito. Deu a volta ao aparelho, triste, diligente, bem firme sobre as duas pernas e ele tremeu de dio: era uma sem-pre-em-p, tinha recordaes verticais, ele no ficaria muito tempo ao abrigo daquele corao. Vamos disse secamente. Depressa: con-duza-me. PENA SUSPENSA Entre disse uma voz fraca. Maud empurrou a porta e um odor a vmito apertou--Ihe a garganta. Pierre estava estendido no beliche. Estava amarelo, os olhos devoravam-lhe o rosto, mas parecia calmo. Ela fez um movimento de recuo, mas dominou-se e entrou na cabina. Sobre a cadeira, cabeceira de Pierre, havia uma bacia cheia de gua turva e espumante. S vomito blis disse Pierre com uma voz sem timbre. H muito tempo que deitei fora tudo o que tinha no estmago. Tira a bacia e senta-te. Maud tirou a bacia retendo a respirao e largou-a perto da pia. Sentou-se; deixara a porta aberta para arejar a cabina. Houve um silncio: Pierre contemplava com uma curiosidade incmoda. No sabia que estavas doente disse ela ; teria vindo antes. Pierre ergueu-se sobre o cotovelo: Estou um pouco melhor, mas ainda muito fraco. No paro de
vomitar desde ontem. Talvez devesse comer alguma coisa ao meio-dia, que que achas? Ia pedir uma asa de frango. No sei disse Maud aborrecida. Deves saber se tens fome! Pierre fixava a coberta com um ar preocupado: Evidentemente, poder pesar-me no estmago, mas pode tambm servir para acalm-lo, e, se as nuseas voltarem, terei alguma coisa para vomitar. Maud olhava-o com espanto. Pensava: E preciso mesmo muito tempo para conhecer um homem. Pois bem, direi ao steward que traga uma sopa de legumes e um pedao de peito de frango. J E A N-P AUL SARTRE Riu constrangida e acrescentou: Se pensas em comer porque no ests muito doente. Houve um silncio: Pierre levantara os olhos e observava-a com uma mistura desconcertante de ateno e indiferena. Diz-me: esto na segunda classe agora? Quem te disse? perguntou Maud descontente. Ruby. Encontrei-a ontem nos corredores. Pois verdade. Estamos na segunda classe. Como arranjaram isso? Oferecemos um concerto. Ah! disse Pierre. No cessava de olh-la. Estendeu as mos sobre o lenol e disse docemente: E tu, dormiste com o capito? Que histria essa? Vi-te sair da cabina, no podia haver engano. Maud sentiu-se pouco vontade. At certo ponto no lhe devia mais explicaes, mas, por outro lado, teria sido mais correcto preveni-lo. Baixou os olhos e tossiu; sabia-se culpada e isso reavivava a sua ternura por Pierre. Escuta disse , se eu tivesse recusado, France no teria compreendido. Mas o que que France tem a ver com isso? Ela ergueu bruscamente a cabea; ele sorria, conservava o seu ar de curiosidade cnica. Sentiu-se ultrajada; teria preferido que ele gritasse. Pois assim disse secamente ; quando estou num navio, durmo com o capito para que a Orquestra Baby's possa fazer a travessia na segunda classe. Eis tudo. PENA SUSPENSA Esperou um momento que Pierre protestasse, mas ele no disse palavra. Ela debruou-se sobre ele e acrescentou com energia: No sou uma prostituta. Quem disse que eras? Fazes o que queres ou podes. No vejo
mal nisso. Ela teve a sensao de uma chicotada no rosto. Levantou-se: Ah!, no vs mal nisso? No vs mal nisso? No, no vejo! Pois um erro, um grande erro. H mal, ento? indagou Pierre, divertindo-se. Ah!, no tentes atrapalhar-me. No h mal: porque haveria? Quem me pede para no o fazer? Por certo no sero os tipos que andam atrs de mim nem as companheiras, que se aproveitam disso, nem a minha me, que j no ganha nada e a quem mando dinheiro. Mas tu deverias ver mal nisso, porque s o meu amante. Pierre juntou as mos sobre a coberta; tinha um ar falso e fugidio de doente: No grites disse com doura. Estou com dores de cabea. Ela dominou-se e olhou-o friamente: No tenhas medo, no gritarei mais. S te quero dizer que est tudo acabado entre ns. Hs-de compreender, j me repugna suficientemente deixar-me cortejar por aquele velho, e se me tivesses insultado ou tivesses tido pena, eu teria acreditado que gostavas um pouco de mim, isso ter-me-ia dado coragem. Mas se posso dormir com quem quiser, sem que isso incomode algum, nem mesmo tu, ento sou uma cadela, uma puta. Pois bem, meu caro, J E A N-P AUL SARTRE as putas correm atrs dos bonites e no devem perder tempo com malandros da tua espcie. Pierre no respondeu: cerrara os olhos. Ela derrubou a cadeira com um pontap e saiu batendo a porta. Deslizava, apoiado ao cotovelo, entre vivendas, clnicas, penses familiares; tudo vazio, as cento e vinte janelas do Hotel Brun estavam abertas, no vestbulo da vivenda Mon Dsir, no jardim da vivenda Osis, doentes aguardavam, de cabea erguida, deitados nos seus esquifes. Olhavam em silncio o desfile dos aparelhos: toda uma multido de aparelhos que rodava para a estao. Ningum falava, s se ouviam os gemidos dos eixos e o choque surdo das rodas, passando da calada para a estrada. Jacqueline caminhava depressa; passaram por uma velha gorda, rubicunda, que um velhinho empurrava chorando, passaram por Zozo, era a sua me que o conduzia estao. Eh! ! gritou Charles. Zozo tremeu, soergueu-se e olhou para Charles com os seus olhos claros e vazios. No temos sorte disse suspirando. Charles deixou-se cair de costas novamente; sentia, direita e esquerda, aquelas presenas horizontais, dez mil pequenos
enterros. Reabriu os olhos e viu um pedao de cu e depois centenas de pessoas s janelas da Grande--Rue, que agitavam lenos. Safados! No 14 de Julho. Um voo de gaivotas turbilhou, berrando acima da sua cabea, Jacqueline assoou-se atrs dele. Chorava sob o vu de crepe. A enfermeira fixava a nica coroa que balouava atrs do carro funerrio, ouvia-a chorar, no devia deplor-lo muito, h mais de dez anos que no o via, mas guardamos sempre dentro de ns uma tristeza envergonhada PENA SUSPENSA e insatisfeita que espera modestamente um enterro, uma primeira comunho, um casamento, para conseguir enfim as lgrimas que jamais ousara reclamar; a enfermeira pensou na sua me paraltica, na guerra, no sobrinho que ia partir, na dura condio de enfermeira e ps-se a chorar tambm, estava contente, a velhinha chorava, atrs delas a porteira comeava a fungar, pobre velho, to pouca gente para acompanh-lo, que se tenha um ar triste ao menos; Jacqueline chorava empurrando o carrinho, Philippe andava, vou desmaiar, Gros-Louis andava, a guerra, a doena, a morte, a partida, a misria; era domingo, Maurice cantava janela da carruagem, Marcelle entrou na pastelaria para comprar um saint-honor. Voc no est muito conversador disse Jacqueline. Pensei que se entristecesse um pouco ao deixar-me. Seguiam pela rua da estao. Acha que no estou suficientemente chateado? Fazem de mini um embrulho, carregam-me para no sei onde, sem pedir a minha opinio e ainda por cima quer que me entristea. Voc no tem corao. Basta disse ele duramente. Queria que estivesse no meu lugar. S queria ver. Ela no respondeu e ele viu um tecto escuro acima da cabea. Chegmos disse Jacqueline. Para quem apelar? A quem deveria suplicar que no me levem, farei o que quiserem, mas que me deixem aqui, ela tratar de mini, levar-me- a passear e, noite, far-me- a minha pequena carcia... Ah!, sinto que vou rebentar durante a viagem. J E A N-P AUL SARTRE Mas est louco disse Jacqueline apavorada. Est completamente louco, como pode dizer essas coisas? Deu a volta ao aparelho e inclinou-se sobre ele; ele sentia-lhe a respirao quente. Vamos! disse ele a rir. Nada de manifestaes. No voc que ter aborrecimentos se eu morrer. a bela morena, sabe, a enfermeira do doutor Robertal.
Jacqueline disse bruscamente: Ela uma fera; no imagina todas as partidas que fez a Lucienne. Ver como ela ! E no adianta fazer-lhe olhinhos, ela menos parva do que eu. Charles endireitou-se e olhou em volta com receio. Havia mais de duzentos aparelhos alinhados na sada. Os carregadores empurravam-nos para a plataforma. No quero partir murmurou entre dentes. Jacqueline fixou-o subitamente, com um ar esgazeado: Adeus disse. Adeus, minha boneca querida. Ele quis responder, mas o carrinho pusera-se em movimento. Um tremor percorreu-o dos ps nuca; torceu a cabea e viu uma cara vermelha inclinada sobre o rosto. Escreva-me gritou Jaqueline , escreva-me. J est na plataforma, no meio de um barulho de assobios e gritos de adeus. No esse comboio? perguntou angustiado. No? Que mais quer? O Oriente-Expresso? disse o empregado com ironia. Mas so vages de carga! O empregado cuspiu. Vocs no caberiam num comboio de passageiros explicou. Seria preciso tirar os bancos, imagine s. PENA SUSPENSA Os carregadores pegavam nos aparelhos pelas extremidades, tiravam-nos dos carrinhos e transportavam-nos at aos vages. Nos vages havia empregados de bon, curvavam-se, seguravam nos aparelhos como podiam e levavam--nos para a escurido. O belo Samuel, o Dom Juan de Berck, que possua dezoito fatos, passou perto de Charles nos braos dos carregadores e desapareceu no furgo, com as pernas no ar. Mas h comboios sanitrios disse Charles indignado. Como se fossem mandar comboios sanitrios, em vsperas da guerra, para transportar paralticos. Charles quis responder, mas o seu aparelho balouou bruscamente e ele viu-se iado de cabea para baixo. Carreguem-me direito gritou. Os carregadores puseram-se a rir, o buraco aproximou-se, cresceu, largaram a corda e o caixo caiu com um rudo mole na terra hmida. Inclinadas sobre a cova, a enfermeira e a porteira soluavam. Ests a ver disse Boris , todos eles se vo embora. Estavam sentados no hall do hotel, perto de um senhor condecorado que lia o jornal. O porteiro desceu duas malas de pele de porco e pousou-as na entrada, ao lado de outras. Cinco partidas de manh disse com voz neutra. Olha para as malas disse Boris , so de pele de porco.
Essa gente no as merece acrescentou com severidade. Porqu? Deveriam estar cobertas de etiquetas. J E A N-P AUL SARTRE Mas ento j no se veria a pele de porco disse Lola. Justamente. O verdadeiro luxo deve esconder-se. Eu, se possusse uma assim, no estaria aqui. E onde estarias? Algures! No Mxico, na China. Contigo acrescentou. Uma mulher alta, de chapu preto, atravessou o hall, muito agitada. Gritava: Mariette! Mariette! a senhora Delarive disse Lola. Parte hoje tarde. Vamos ficar ss no hotel; ser divertido: mudaremos de quarto todas as noites. Ontem, no Casino disse Lola , havia s dez pessoas para me ouvirem. Tambm no me esforo mais. Pedi que os juntassem todos nas mesas do centro e sussurrei-lhes as minhas canes aos ouvidos. Boris levantou-se para ir ver as malas, apalpou-as discretamente e voltou. Porque se vo eles embora? disse ele sentando-se. No estariam pior aqui, pode muito bem acontecer que as suas casas sejam bombardeadas ao chegarem. Sim, mas so as suas casas. No compreendes? No. Pois assim. A partir de certa idade esperam-se os aborrecimentos em casa. Boris riu e Lola endireitou-se inquieta; conservava aquele receio de outrora: quando ele ria, pensava que estivesse a troar dela. Porque ris? PENA SUSPENSA Porque te acho extraordinria. Ests a a explicar-me o que sentem as pessoas de certa idade. Mas no percebes nada disso, minha querida, nunca tiveste um lar! No disse Lola tristemente. Boris pegou-lhe na mo e beijou-lhe a palma. Lola corou. Como s gentil comigo. J no s o mesmo. E queixas-te! Lola apertou-lhe a mo com fora. No me queixo, mas gostaria de saber porque s to gentil. Porque estou a envelhecer disse ele. Ela abandonara-lhe a mo; sorria, encostada poltrona. Ele sentia-se contente por v-la feliz; queria deixar-lhe uma boa lembrana. Acariciou-lhe a mo, pensando: Um ano, s tenho
mais um ano para viver com ela; sentia-se cheio de ternura, a aventura j tinha um sabor a passado. Outrora tratava-a com dureza, mas era porque tinham um contrato ilimitado; isso aborrecia-o, gostava dos compromissos de durao definida. Um ano: dar-lhe-ia toda a felicidade que ela merecia, repararia; depois deix-la-ia, mas no indecentemente, no por outra mulher ou porque se houvesse cansado dela, a coisa arranjar-se-ia naturalmente, pela prpria fora das circunstncias, porque atingiria a maioridade e mand-lo-iam para a frente. Olhou-a pelo canto do olho: tinha um ar jovem, o seu peito inchava de prazer, pensou com melancolia: Terei sido o homem de uma s mulher. Mobilizado em 40, morto em 41, no, em 42, pois tinha de contar o tempo de preparao, isso queria dizer: uma mulher em 22 anos. Trs meses antes sonhava ainda dormir com mulheres da J E A N-P AUL SARTRE alta sociedade; porque era um fedelho, pensou com indulgncia. Morreria sem ter conhecido duquesas, mas no lamentava nada. Poderia, nos meses vindouros, coleccionar aventuras, mas no era o caso. Dispensar-me-ia. Quando s se tm dois anos para viver, convm concentrarmo-nos seriamente. Jules Renard dissera ao filho: Estuda uma s mulher, mas estuda-a bem, e conhecers a mulher. Era necessrio estudar Lola com cuidado, no restaurante, na rua, na cama. Passou o dedo pelo punho de Lola, e pensou: Ainda no a conheo muito bem. Havia recantos do seu corpo que ele ignorava e nem sempre sabia o que ela escondia na mente. Mas tinha um ano sua frente. Ia comear desde j. Virou a cabea para ela e considerou-a atentamente. Porque me ests a olhar assim? Estou a estudar-te. No gosto que me olhes de mais, tenho sempre receio de que me aches velha. Boris sorriu-lhe. Desconfiava, no se habituava sua felicidade. No te preocupes disse ele. Uma viva cumprimentou-os secamente e deixou-se cair na poltrona, ao lado do senhor condecorado. Pois , cara senhora disse o senhor , vamos ter um discurso de Hitler. Quando? Amanh noite, no Sportpalast. Brr... Ento vou deitar-me cedo e enfiar a cabea debaixo da coberta para no o ouvir. Imagino que nada tenha de agradvel a dizer-nos.
Receio que no. PENA SUSPENSA Houve um silncio e ele continuou: O nosso grande erro, cometemo-lo em 36, quando da remilitarizao da regio renana. Era preciso enviar para l dez divises. Se tivssemos arreganhado os dentes, os oficiais alemes tinham a ordem de retirada no bolso. Mas Sarraut aguardava a deciso da Frente Popular e esta preferia dar armas aos comunistas espanhis. A Inglaterra no nos teria acompanhado observou a viva. No nos teria acompanhado? No nos teria acompanhado? repetiu ele, impaciente. Pois vou perguntar-lhe uma coisa, minha senhora: sabe o que teria feito Hitler, se Sarraut tivesse mobilizado? No sei. Ter-se-ia sui-ci-da-do. Sei-o de boa fonte; h vinte anos que conheo um oficial do servio de informaes. A viva meneou a cabea tristemente: Quantas oportunidades perdidas! E de quem a culpa? Ah! fez ela. Pois disse o senhor , pois . A est no que d votar na esquerda. O francs incorrigvel: a guerra bate-lhe porta e ele reclama frias pagas. A viva ergueu os olhos: parecia realmente angustiada. Ento acredita mesmo na guerra? A guerra disse o senhor com espanto. Oh!, vamos mais devagar: Daladier no uma criana; far certamente as concesses necessrias. Mas vamos ter os piores aborrecimentos. Safados! murmurou Lola. J E A N-P AUL SARTRE Boris sorriu-lhe com simpatia. Para ela a questo da Checoslovquia era muito simples: um pequeno pas era atacado, a Frana devia defend-lo. Era um pouco ingnua em poltica, mas era generosa. Vem almoar disse ela , essa gente enerva-me. Levantou-se. Ele contemplou as ancas belas e fortes, pensou: A mulher. Era a mulher, toda a mulher que ia possuir noite. Sentiu que um desejo violento lhe aquecia as orelhas. Atrs dela, a estao e Gomez no comboio, os ps sobre o banco. Ele encurtara as despedidas: No gosto de beijos na gare. Ela descia a escadaria monumental, o comboio ainda estava na estao, Gomez lia fumando, os ps sobre o banco, tinha sapatos novos de pele de vaca. Ela viu os sapatos sobre o veludo cinzento do banco: fora de primeira classe; a guerra
d dinheiro. Odeio-o, pensou. Sentia-se seca, oca. Viu, ainda por um instante, o mar brilhante e depois mais nada: hotis sombrios, tectos, elctricos. Pablo, no desas to depressa! Vais cair. O pequeno parou num degrau, com um p no ar. Vai visitar Mathieu. Poderia ter ficado mais um dia comigo, mas preferiu Mathieu. As suas mos queimavam. Enquanto ele ali estivera, fora um suplcio, agora que partiu no sei o que fazer. Pablo olhou-a muito srio: O pap partiu? Um relgio diante deles marcava uma hora e trinta e cinco. O comboio partira h sete minutos. Sim disse Sarah , partiu. Vai fazer a guerra? perguntou Pablo com os olhos brilhantas. PENA SUSPENSA No, vai visitar um amigo. Mas depois, vai fazer a guerra? Depois disse Sarah vai mandar os outros para a guerra. Pablo detivera-se no ltimo degrau; dobrou os joelhos e pulou a ps juntos para a calada, depois virou-se e olhou a me, sorrindo com orgulho. Cabotino, pensou ela. Voltou-se sem sorrir e percorreu com o olhar a escadaria monumental. Os comboios andavam, paravam, partiam outra vez, acima da sua cabea. O comboio de Gomez rolava na direco leste, entre escarpas calcrias, talvez entre casas. A estao estava deserta, acima da sua cabea, uma grande bola cinzenta, cheia de sol e fumo, um cheiro a vinho e fuligem, os carris reluziam. Ela baixou a cabea, no lhe era agradvel pensar naquela estao abandonada no calor branco da tarde. Em Abril de 33, ele partira naquele mesmo comboio, vestido de tweed cinzento, Mistress Simpson esperava-o em Cannes, tinham passado quinze dias juntos em San Remo. Ainda preferia isso, pensou. Um punhozi-nho tacteante roou-lhe a mo. Abriu-a e fechou-a sobre o punho de Pablo. Baixou os olhos e contemplou-o. Vestia uma blusa com colarinho marinheiro e um chapu de pano. Porque me ests a olhar assim? indagou Pablo. Sarah desviou a cabea e olhou para a rua. Apavorava-se por se sentir to dura. uma criana, pensou. Uma criana. Olhou-o de novo, tentando sorrir, mas no conseguiu, os seus maxilares cerraram-se, a sua boca fez-se de madeira. Os lbios do menino comearam a tremer e ela percebeu que ele ia chorar. Puxou-o bruscamente e ps-se a andar a passos largos. O pequeno, surpreendido, esqueceu as lgrimas, trotava a seu lado. J E A N-P AUL SARTRE
Onde vamos, mam? No sei. Tomou pela primeira rua direita. Era uma rua deserta; todas as lojas estavam fechadas. Apertou ainda mais o passo e virou noutra rua, esquerda, com casas escuras e sujas. E sempre ningum. Obrigas-me a correr disse Pablo. Sarah apertou-lhe a mo sem responder e arrastou-o. Seguiram por uma grande rua direita, uma rua de elctricos. No se viam automveis nem elctricos, somente cortinas de ferro baixadas e os carris que levavam at ao porto. Pensou que era domingo e doeu-lhe o corao. Puxou violentamente Pablo pelo punho. Mam! gemeu o pequeno. Mam! Pusera-se a correr para acompanh-la. No chorava, mas estava branco e com olheiras; erguia para ela uma fisionomia espantada e desconfiada. Sarah parou: as lgrimas molharam-lhe as faces. Pobre menino disse , pobre pequeno inocente! Agachou-se diante dele; que importava no que se tornaria mais tarde! Por enquanto, estava ali inofensivo e feio, como uma sombra minscula a seus ps, tinha um ar de solitrio no mundo e havia todo esse escndalo nos olhos dele; afinal de contas no pedira para nascer. Porque choras, mam? Porque que o pap partiu? As lgrimas de Sarah secaram de imediato e ela teve vontade de rir. Mas Pablo olhava-a com ar preocupado. y E isso mesmo, porque o pap partiu. Vamos voltar para casa logo? Ests cansado? ainda longe. Vem. Vem. Iremos devagar. PENA SUSPENSA Deram alguns passos e Pablo parou apontando: Olha! disse num xtase quase doloroso. Era um cartaz porta de um cinema todo azul. Aproximaram-se. Vinha do hall sombrio e fresco um cheiro a formol. No cartaz cowboys perseguiam um cavaleiro mascarado, dando tiros de revlver. Mais tiros, mais revlveres! Ele olhava, ofegante; poria o seu capacete dentro em pouco, pegaria na sua espingarda e correria pelo quarto, como se fosse o bandido mascarado. Ela no teve a coragem de o arrastar, virou simplesmente a cabea. A moa da caixa abanava-se na cabina de vidro. Era uma mulher gorda e morena, plida, com olhos ardentes. No guich, atrs dos vidros, havia flores dentro de uma jarra; fixara parede, com punaises, um retraio de Robert Taylor. Um homem de idade indefinida saiu da sala e aproximou-se da caixa. Quanto?
Cinquenta e trs entradas disse ela. E o que tinha contado. E ontem sessenta e sete. Um lindo filme como este, com correrias e tiros! As pessoas ficam em casa disse a moa, encolhendo os ombros. Um homem parara perto de Pablo, olhava para o cartaz, respirando, mas no parecia v-lo. Era um tipo alto e lvido, de roupas rasgadas, com uma ligadura ensanguentada na cabea e lama seca nas mos e na cara. Devia vir de longe. Sarah pegou na mo de Pablo. Vamos disse. Esforou-se por andar bem devagar por causa do pequeno, mas tinha vontade de correr, parecia-lhe que algum a olhava por trs. Diante dela os carris reluziam, o asfalto amolecia ao sol, o ar tremia um pouco em volta J E A N-P AUL SARTRE do lampio, j no era o mesmo domingo. As pessoas ficam em casa. Ainda h pouco adivinhava, alm dos blocos de casas, avenidas alegres e superlotadas, que cheiravam a p-de-arroz e a tabaco loiro; ela caminhava numa calma rua de arrabalde, toda uma multido invisvel e prxima a acompanhava. Agora corriam para o porto, brancos e desertos; o ar tremia entre muros cegos. Mam disse Pablo , o homem est a seguir-nos. No disse Sarah , faz como ns: passeia. Virou esquerda, e era a mesma rua interminvel e fixa; no havia seno uma rua errando atravs de Marselha. E Sarah estava nessa rua, c fora, com uma criana; e todos os marselheses estavam dentro de casa. Cinquenta e trs entradas. Ela pensava em Gomez no riso de Gomez: naturalmente, todos os franceses so covardes. E que mais? Ficam em casa, natural, tm medo da guerra e tm razo. Mas ela no se sentia vontade. Percebeu que tinha apertado o passo e quis diminuir a marcha por causa de Pablo. Mas o pequeno puxou-a para a frente. Depressa disse com voz abafada. Mam! O que ? disse ela secamente. O homem continua atrs da ns. Sarah virou a cabea, e viu o vagabundo; seguia-os, era evidente. O seu corao deu pulos no peito. Vamos correr disse Pablo. Ela pensou na ligadura ensanguentada e deu meia volta bruscamente. O tipo parou, olhou-os com os seus olhos brumosos. Sarah tinha medo. O pequeno agarrara-se a ela com ambas as mos e puxava-a para trs com toda a fora: As pessoas ficam em casa. Podia chamar, pedir socorro, ningum
apareceria. PENA SUSPENSA Precisa de alguma coisa? indagou, fixando o vagabundo nos olhos. Ele sorriu lamentavelmente e o medo de Sarah esvaiu-se. Sabe ler? perguntou ele. Entregava-lhe uma caderneta militar. Pablo agarrava-se s suas pernas, ela sentia o seu corpinho quente. E ento? Queria saber o que est escrito a disse o tipo, mostrando uma folha com o dedo. Tinha um ar de bondade apesar do olho roxo e semi-cerrado Sarah contemplou-o por um momento e depois fechou a caderneta. Que desgraa disse o tipo, confuso. Que desgraa no saber ler. Pois o senhor tem de ir para Montpellier disse Sarah. Ela devolveu-lhe a caderneta mas ele no pegou nela imediatamente. Perguntou-lhe: E verdade que vamos ter guerra? No sei. Ela pensou: ele vai partir. Depois pensou em Gomez. Indagou: Quem lhe fez o curativo? Fui eu mesmo. Sarah remexeu a bolsa. Possua alfinetes e dois lenos. Sente-se no passeio disse com autoridade. O tipo sentou-se com dificuldade. Tenho as pernas pesadas disse como que em desculpa. Sarah rasgou os lenos. Gomez lia L'Humanit em primeira classe, ps estendidos sobre o banco. Veria Mathieu e J E A N-P AUL SARTRE depois iria a Toulouse tomar o avio para Barcelona. Ela desfez a ligadura ensanguentada e tirou-a com alguns puxes. O tipo resmungou um pouco. Uma crosta negra e viscosa estendia-se por metade do crnio. Sarah deu um leno a Pablo. Vai buscar gua fonte. O pequeno correu, feliz por se afastar. O tipo ergueu os olhos para Sarah e disse: No me apetece lutar. Sarah pousou-lhe docemente a mo sobre o ombro. Desejara pedir-lhe perdo. Sou pastor disse ele. Que est a fazer em Marselha? Ele sacudiu a cabea: No me apetece lutar repetiu. Pablo voltara, Sarah lavou como pde o ferimento e refez rapidamente o curativo. Levante-se disse. Ele levantou-se. Contemplava-a com olhos vagos.
Ento tenho de ir para Montpellier? Ela enfiou a mo na bolsa e tirou duas notas de cem francos. Para a viagem disse. O tipo no pegou logo nelas; olhava-a com ateno, procurando entender. Pegue disse Sarah, baixinho e depressa. Pegue e no lute, se puder evitar. Ele pegou nas notas. Sarah apertou-lhe a mo. No lute. Faa o que quiser, volte para casa, esconda-se, mas no lute. Ele olhava-a sem entender. Ela pegou na mo de Pablo, deu meia volta e continuaram a andar. Ao fim PENA SUSPENSA de um momento, voltou-se: ele contemplava o curativo que Sarah lanara para a sarjeta. Acabou por se baixar: recolheu-o s apalpadelas e p-lo no bolso. Gotas de suor rolavam-lhe pelas faces, desciam pela fronte e iam at as narinas. Acreditara, a princpio, que fossem bichos, dera uma pancada e a mo esmagara lgrimas mornas. Deus meu! disse o vizinho da esquerda. Que calor! Reconheceu a voz, era de Blanchard, um animal! Fazem de propsito disse Charles. Deixam os vages ao sol durante horas. Houve um silncio e Blanchard perguntou: Es tu, Charles? Sou eu. Lamentava ter falado. Blanchard adorava as brincadeiras estpidas, aspergia as pessoas com um revlver de gua ou grudava uma aranha de papelo nas cobertas dos outros. Como nos encontramos! disse Blanchard. Sim. O mundo pequeno. Charles recebeu uma golfada de gua mesmo na cara. Enxugou-se e cuspiu. Blanchard ria. Cretino! Tirou o leno e enxugou o pescoo esforando-se por rir. o teu revlver de gua? Claro que ! No errei, hem? Mesmo na cara. No te incomodes, tenho os bolsos cheios desses truques: vamos rir durante a viagem. Que cretino disse Charles, rindo feliz. Que cretino, que criana! J E A N-P AUL SARTRE Blanchard amedrontava-o; os aparelhos tocam-se, se me quiser beliscar ou lanar-me p de fazer comicho nas costas, bastar-lhe- estender a mo. No tenho sorte, pensou. Terei de ficar de sobreaviso durante toda a viagem. Suspirou e
percebeu que olhava para o tecto, era uma grande chapa sombria, eriada de pregos. Virava o seu espelho para trs, estava preto como uma placa de vidro suja de fumo. Charles ergueu-se um pouco e deitou um olhar sua volta. Havia deixado a porta do vago aberta; uma luz amarelada brilhava sobre os corpos estendidos, as cobertas, os rostos. Mas a zona iluminada era estritamente limitada pela ombreira da porta: esquerda tudo estava escuro. Camaradas de sorte, devem ter dado uma gorjeta aos carregadores, tero toda a luz, todo o ar; de vez em quando, apoiando-se ao cotovelo, vero uma rvore verde. Tornou a encostar-se, exausto; a camisa estava molhada. Se ao menos pudessem partir! Mas o comboio estava ali, abandonado, envolvido no sol. Um cheiro estranho palha podre e perfume de Houbigant flutuava junto ao cho. Torcei o pescoo para fugir ao odor, que lhe dava nsias de vmito, mas o suor inundou-o, relaxou-se e a camada de cheiro formou-se de novo por cima do seu nariz. L fora havia carris e sol e vages vazios nos desvios e arbustos cobertos de poeira: o deserto. E mais adiante era domingo. Um domingo em Berck: as crianas brincavam na praia, famlias tomavam caf com leite nos cafs. engraado, pensou, engraado. Uma voz fez-se ouvir do outro lado do vago: Denis! Denis! Ningum respondeu. Maurice, ests a? Houve um silncio e a voz concluiu: Os safados! PENA SUSPENSA Algum gemeu perto de Charles: Que calor. E uma voz respondeu, plida e alquebrada, uma voz de doente grave: Vai melhorar quando o comboio partir. Falavam-se s cegas sem se reconhecerem: algum disse com um risinho: Assim que viajam os soldados. Novamente o silncio. O calor, o silncio, a angstia. Charles viu subitamente duas belas pernas dentro de meias de fio branco, o seu olhar subiu ao longo do avental: era a bela enfermeira. Acabava de subir para o vago. Segurava uma mala com uma das mos e com a outra um banquinho; passeava um olhar irritado sua volta: uma loucura disse , pura loucura. O qu, o qu? indagou uma voz rude do lado de fora. Se tivessem reflectido por um instante, teriam compreendido que no se deviam juntar as mulheres com os homens. Pusemos como nos mandaram. E como querem que trate deles, uns diante dos outros? Devia estar aqui, nessa altura.
No posso estar em toda a parte. Tratava de registar as bagagens. Que confuso disse o homem. E caso para dizer isso. Houve um silncio e ela continuou: O senhor vai chamar o seu companheiro: transportaro os homens para o ltimo vago. J E A N-P AUL SARTRE Espere a! A senhora paga o trabalho suplementar? Farei queixa disse ela secamente. Pois faa, minha beleza, importo-me muito com a sua queixa, percebe? A enfermeira encolheu os ombros e afastou-se, andou com cuidado por entre os doentes e foi sentar-se no seu ban-quinho, no longe de Charles, beira do rectngulo de luz. Eh! Charles! disse Blanchard. Que ? H mulheres aqui. Charles no respondeu. E como que eu vou fazer disse Blanchard em voz alta se tiver vontade de cagar? Charles corou de dio e vergonha, mas pensou no p de comiches e emitiu um risinho cmplice. Verificou-se um movimento ao nvel do cho, sem dvida tipos que torciam o pescoo para ver se tinham vizinhas. Mas, no conjunto, uma espcie de mal-estar pesava sobre o vago. Os cochichos arrastaram-se e extinguiram-se. Como que eu vou fazer, se tiver vontade de cagar? Charles sentia-se sujo por dentro, um pacote de tripas colantes e molhadas: se tivesse de pedir a bacia diante das mulheres, que vergonha! Trancou-se por dentro, pensou: Aguentarei at ao fim. Blanchard respirava com rudo, o seu nariz tocava uma musicazinha inocente; Deus meu, se pudesse dormir! Charles teve um momento de esperana, tirou um cigarro do bolso, acendeu um fsforo. Que isso? indagou a enfermeira. Largara o tricot sobre os joelhos. Charles via-lhe a fisionomia carrancuda muito acima e muito longe dele, numa sombra azulada. PENA SUSPENSA Estou a acender um cigarro respondeu. A sua voz pareceu-lhe engraada e indiscreta. Ah!, no. No se fuma aqui. Charles apagou o fsforo e tacteou sua volta com a ponta dos dedos. Encontrou entre duas cobertas uma tbua hmida e rugosa que arranhou com a unha, antes de deitar fora o pequeno pedao de madeira semicarboni-zado; subitamente, esse contacto
afigurou-se-lhe horrvel, juntou novamente as mos sobre o peito e pensou: Estou no cho. Mesmo no cho. Sob as mesas e cadeiras, sob os ps das enfermeiras e dos carregadores, esmagado, confundido com a lama e a palha, todos os bichos que frequentam as frinchas do soalho podiam subir-lhe para o ventre. Agitou as pernas, raspou os saltos no aparelho. Devagar para no despertar Blanchard. O suor escorria--Ihe pelo peito; encolheu os ombros sob a coberta. Esses formigueiros inquietos nas coxas e nas pernas, essas revoltas violentas e vagas de todo o seu corpo, tinham-no atormentado sem cessar, nos primeiros tempos de Berck. Depois acalmara-se: esquecera as pernas, achara natural ser empurrado, rodado, carregado, tornara-se uma coisa. Ser que isso vai voltar?, pensou com angstia. Ser que vai voltar? Estendeu as pernas, cerrou as plpebras. Era preciso pensar: Sou apenas uma pedra, sou uma pedra, uma pedra. As suas mos crispadas abriram-se, sentiu o corpo petrificar-se lentamente sob a coberta. Uma pedra entre pedras. Soergueu-se sobressaltado, de olhos abertos, pescoo duro: houvera uma sacudidela, em seguida um ranger de ferros e rudos de rodas, montonos, calmantes como a chuva: pusera-se em marcha. Passava ao lado de alguma J E A N-P AUL SARTRE coisa; l fora havia objectos slidos e encharcados de sol, que deslizavam plos vages; sombras indistintas, a princpio lentas, a seguir mais rpidas, sempre mais rpidas, corriam pela parede luminosa, em frente da porta aberta; dir--se-ia uma tela de cinema. A luz empalideceu um pouco, acinzentou-se e subitamente intensificou-se com violncia: Estamos a sair da estao. Charles sentia dores no pescoo, mas estava mais calmo. Deitou-se novamente, levantou os braos e deu ao seu aparelho uma volta de noventa graus. Via agora, no canto esquerdo do espelho, um pedao de rectngulo iluminado. Isso bastava-lhe; aquela superfcie brilhante vivia, era toda uma paisagem. Ora a luz tremia e empalidecia, como se fosse apagar-se, ora endurecia, fixava-se e assumia o aspecto de uma camada de ocre; e depois, de vez em quando, tremia por inteiro, atravessada por ondulaes oblquas e como que enrugada pelo vento. Charles olhou-a longamente; ao fim de um instante sentiu-se liberto, como se estivesse sentado no estribo do vago, pernas balouando e olhando para o desfile das rvores, dos campos, do mar. Blanchard! murmurou. No houve resposta. Esperou um pouco e soprou: Ests a dormir? Blanchard no respondeu. Charles deu um suspiro de prazer e
distendeu-se, completamente deitado, porm sem perder o espelho de vista. Dorme, dorme. Quando entrou, mal se sustinha; deixara-se cair no banco, mas os seus olhos eram duros, diziam: no me abatero. Encomendou o seu caf com um ar colrico, h tanta gente que encara os criados de caf como inimigos: gente nova, que pensa que a vida uma luta; leram isso nos livros, lutam ento PENA SUSPENSA nos cafs, encomendam uma groselha com um olhar de meter medo. Um caf pediu Flix e dois americanos. Ela comprimiu os botes e fez girar a manivela. Flix piscou os olhos e apontou para o rapazinho que dormia. No uma luta, um pntano, um simples movimento e afundamo-nos, mas eles no sabem isso, mexem-se muito, a princpio, isso faz com que se afundem mais depressa; eu fui assim, mexi-me muito, agora estou velha, permaneo muito quieta, de braos estendidos ao longo do corpo, na minha idade j no nos afundamos muito. Dormia de boca aberta, o queixo pendia-lhe sobre o peito, no tinha nada de bonito, as plpebras vermelhas e inchadas, o nariz roxo, davam-lhe um aspecto de carneiro. Adivinhei logo quando o vi entrar na sala vazia, como um cego com esse sol l fora e todos esses fregueses na esplanada; eu disse logo: vai escrever uma carta ou ento espera uma mulher, ou ento qualquer coisa que vai mal. Ele ergueu a mo comprida e plida, afugentou as moscas sem abrir os olhos; no havia moscas. Sente-se triste mesmo no sono; os aborrecimentos nunca nos largam, eu estava sentada no banco, contemplava os carris e o tnel, havia um pssaro a cantar e estava grvida, triste, j no tinha olhos para chorar, nem dinheiro, s o meu bilhete, adormeci, sonhei que me matavam, que me puxavam plos cabelos, chamando-me vagabunda, e depois o comboio chegou e eu subi: s vezes, penso que ele ter o seu abono, um velho operrio, um invlido, que no se lhe poder recusar, s vezes acho que tentaro no lhes dar nada, eles so duros; e eu aqui, velha, j no me mexo mais, mas tenho ideias. Est vestido como um rapaz rico, tem certamente uma mam J E A N-P AUL SARTRE para lhe tomar conta das coisas, mas os seus sapatos esto cobertos de p: que ter feito? Por onde ter andado? Os moos tm sangue quente, se ele me tivesse dito: Bate, eu teria matado pai e me, como se pode ser cabeuda, quem sabe se no assassinou uma velha como eu, ser preso pela certa, ele no tem fora; viro busc-lo aqui e o Matin publicar a sua fotografia, uma carinha de malandro, nada parecida com ele, e haver sempre quem diga: tem mesmo cara de assassino. E eu
digo-lhe: para , os condenar preciso no os ter visto de perto, porque, quando os vimos afundarem-se um pouco mais em cada dia, pensamos que ningum pode nada e que afinal o mesmo, tomar um caf com leite na esplanada de um caf ou fazer economias para comprar uma casa, ou assassinar a me. O telefone tocou, ela sobressaltou-se. Quero falar com a senhora Cuzin. Sou eu. Recusaram-me o abono disse Julot. No possvel! Recusaram. Mas um invlido, um velho operrio! Que foi que te disseram? Que no tinha direito. Oh! At logo noite. Recusaram-lhe o abono. Um invlido, um velho operrio, disseram-lhe que no tinha direito. Agora vou-me aborrecer de verdade, pensou. O rapaz roncava, tinha um ar tolo e sentencioso. Flix saiu levando na bandeja os dois americanos e o caf; empurrou a porta e o sol entrou, o espelho cintilou em cima do dorminhoco, depois a porta PENA SUSPENSA fechou-se de novo, o espelho apagou-se, ficaram os dois sozinhos. Que ter feito? Por onde ter andado? Que ser que leva na mala? Vai pagar agora; vinte anos, trinta anos, a menos que morra na guerra, pobre rapaz, est na idade de ser chamado. Dorme, ronca, sofre, na esplanada toda a gente fala de guerra, o meu marido no receber o abono. Piedade, disse ela, tende piedade de ns, pobres homens! Pitteaux! gritou o rapaz. Acordara sobressaltado, olhou-a durante um instante, de boca aberta, depois fechou os maxilares com rudo, mordeu os lbios, tinha um ar inteligente e maldoso. Rapaz! Flix no ouvia; ela via-o na esplanada, ele ia e vinha, tomava nota dos pedidos. O jovem perdeu a sua segurana, bateu na mesa, virando a cabea de um lado para o outro como se estivesse encurralado. Ele teve pena. um franco disse ela, da caixa. Ele deitou-lhe um olhar de dio, lanou uma moeda de cinco francos para a mesa, pegou na mala e saiu a coxear. O espelho cintilou, um bafo de gritos e calor entrou na sala; a solido tambm. Ela olhou para as mesas, espelhos e porta, todos aqueles objectos conhecidos que no mais poderiam reter o seu pensamento. Pronto, vou--me aborrecer de verdade. Ele viu-se inundado de luz. Algum fixava no seu rosto a luz
de uma lmpada de bolso. Virou a cara e grunhiu. A lmpada virara para o cho; ps-se a piscar os olhos. Atrs desse sol, um olho calmo e implacvel fixava-o, era inaceitvel. Que h? J E A N-P AUL SARTRE ele mesmo observou uma voz cantante. Uma mulher. O fardo oblongo minha direita uma mulher. Teve um minuto de satisfao, depois pensou encolerizado que ela o fulminara como um objecto, passeou aquela luz por mim como se eu fosse um muro. Disse secamente: No a conheo. J nos encontrmos muitas vezes. A lmpada apagou-se. Continuava ofuscado, rodelas roxas giravam-lhe nos olhos. No posso v-la. Pois eu vejo-a, mesmo sem a lmpada. A voz era jovem e bonita, mas ele desconfiava. Repetiu: No posso v-la; ofuscou-me. Eu vejo no escuro disse ela com orgulho. albina? Ela riu: Albina? No tenho olhos vermelhos nem cabelos brancos, se o que quer dizer. Tinha um sotaque acentuado e fazia de todas as suas frases interrogaes. Quem voc? Adivinhe. No muito difcil; ainda anteontem me encontrou e me olhou com dio. dio? No odeio ningum. Como no. Acho que at odeia todo o mundo. Espere! No tinha uma pele? Ela continuava a rir: Estenda a mo. Toque. Ele estendeu o brao e tocou numa massa informe. Era a pele, sob a pele havia certamente cobertas, depois montes i PENA SUSPENSA de roupas e por fim o corpo branco e mole, um caracol, a lesma dentro da carapaa. Como deve sentir calor! Acariciou um pouco a pele e dela exalou um perfume morno e pesado. Acariciava a pele a contrapelo e estava contente. Voc loira disse triunfalmente , usa brincos de ouro. Ela riu e acendeu a lmpada de novo. Mas, desta feita, virara-a para o prprio rosto. O movimento do comboio sacudia a lmpada na sua mo e a luz subia e descia do peito fronte, passava plos lbios, pintados, dourava um ligeiro buo na comissura dos lbios, rosava um pouco as narinas. Os clios dobrados e pintados de preto erguiam-se como patinhas em cima das plpebras inchadas, dir-se-iam dois insectos de costas.
Era loira: os cabelos eram uma nuvem fria em volta da cabea. Sentiu um aperto no corao, pensou: bela, e retirou bruscamente a mo. Estou a reconhec-la. Havia sempre um velho que a empurrava. Voc passava sem olhar para ningum. Via-o muito bem por trs das pestanas. Ela ergueu um pouco a cabea e ele reconheceu-a inteiramente. Nunca imaginei que pudesse olhar para mim disse. Voc parecia to rica, to acima de ns; pensava que estivesse na Penso Beaucaire. No. Estava no Mon Chalet. No podia esperar encontr-la num vago de carga. A luz apagou-se. Sou muito pobre disse ela. Ele estendeu a mo e apoiou-se docemente na pele: E isto? J E A N-P AUL SARTRE tudo o que resta. Entrara novamente na escurido. Um pacote, informe e sombrio. Mas tinha ainda nos olhos a imagem dela. Juntou de novo as mos sobre o ventre e ps-se a olhar para o tecto. Blanchard roncava ao de leve; os doentes conversavam em grupos de dois ou trs; o comboio rolava gemendo. Era pobre e doente, estava deitada no vago de carga, vestiam-na e despiam-na como a uma boneca. Era bela. Bela como uma estrela de cinema. A seu lado, toda essa beleza humilhada, esse corpo esguio, puro e conspurcado. Era bela. Cantava em music-halls e vira-o por entre os clios, e desejara conhec-lo; era como se o tivessem recolocado em p, sobre os dois ps. Era cantora? indagou bruscamente. Cantora? No, sei tocar piano. Pensei que fosse cantora. Sou austraca. Todo o meu dinheiro ficou l, nas mos dos alemes. Abandonei a ustria depois do Anschluss. J estava doente? J. Os meus pais trouxeram-me de comboio. Como hoje, s que era um dia claro e eu estava estendida num banco de primeira classe. Avies alemes passavam por cima de ns, pensvamos que iam lanar bombas. A minha me chorava, eu estava de costas, sentia o cu pesar sobre mim atravs do tecto. Foi o ltimo comboio que deixaram sair. Depois? Depois vim para c. A minha me est em Inglaterra, precisa de ganhar a vida. E o velho que a empurrava? Um idiota disse com voz dura.
Ento est sozinha? PENA SUSPENSA Sozinha. Ele repetiu: S no mundo e sentiu-se forte e duro como um carvalho. Quando soube que era eu? Quando acendeu o fsforo. No se queria abandonar alegria. A alegria era pesada e indiferenciada, estava quase esquecida; ela que comunicava aquele tremorzinho cido sua voz. Mas guardava-a para a noite, queria goz-la solitrio. Viu a luz na parede? Vi disse ela. Contemplei-a durante uma hora. Olhe, olhe: uma rvore. Ou um poste telegrfico? O comboio no est a andar. No. Est com pressa? No. No se sabe para onde se vai. No, por certo disse ela jovialmente. A sua voz tambm tremia. Afinal disse ele , no se est mal assim, aqui. Temos ar. E essas sombras que passam distraem-nos. Lembra-se do mito da caverna? No. Que mito esse? So escravos acorrentados no fundo de uma caverna. Vem sombras na parede. Porque esto acorrentados? No sei. Est em Plato. Sim, Plato... disse ela com um ar vago. Ensinar-lhe-ei quem Plato, pensou com entusiasmo. Doa-lhe um pouco a barriga, mas fazia votos para que a viagem no terminasse nunca. J E A N-P AUL SARTRE Georges sacudiu o trinco da porta. Via atravs do vidro um sujeito de bigode e uma mulher com uma toalha enrolada na cabea, lavavam chvenas e copos atrs do balco. Um soldado passava pelo sono a uma das mesas. Georges puxou violentamente o trinco e o vidro tremeu, mas a porta no se abriu. A mulher e o tipo no pareciam ouvir. No abriro... Voltou-se: um homem gordo, maduro, olhava-o sorrindo. Usava fato preto, polainas, um chapu mole e colarinho engomado. Georges mostrou-lhe o aviso: A cantina abre s cinco. So cinco e dez. O homem encolheu os ombros. Trazia a tiracolo uma sacola volumosa e uma mscara antigsica, abria os braos, com os cotovelos erguidos.
Eles abrem quando querem. O ptio da caserna estava cheio de homens de meia--idade que pareciam aborrecidos. Muitos passeavam sozinhos, olhando para o cho. Uns usavam capote militar, outros calas de caqui, outros trajes civis, com tamancos novos em folha, que batiam com rudo no asfalto. Um sujeito alto, ruivo, que tivera a sorte de conseguir trajos completos, caminhava pensativo, de mos nos bolsos; o chapu de banda, dava-lhe um ar de desordeiro. Um tenente passou plos grupos e dirigiu-se cantina. Ainda no foi buscar a sua farda? perguntou o baixinho e gordo. Puxava as correias da sacola a fim de a passar para as costas. J no tm mais nada. O tipo cuspiu: PENA SUSPENSA A mim deram-me isto. Morro abafado c dentro, com este sol de morte. Que desordem. Georges fez sinal para o oficial: Fazemos-lhe continncia? Como? Afinal no posso tirar o chapu! O oficial passou ao lado deles sem para eles olhar. Georges acompanhou com os olhos o dorso magro e sentiu-se abatido. Fazia calor, as vidraas dos edifcios militares estavam pintadas de azul; atrs dos muros brancos, havia estradas brancas, campos de aviao verdes, a perder de vista, ao sol; os muros da caserna recortavam nos prados uma pequena praa rasa e poeirenta, onde os homens giravam como nas ruas de uma cidade. Era a hora em que a sua mulher abria as persianas: o sol entrava pela sala de jantar. O sol estava em toda a parte: nas casas, nas casernas, nos campos. Murmurou: Sempre a mesma coisa. Mas no sabia muito bem em que consistia essa mesma coisa. Pensou na guerra e percebeu que no tinha medo de morrer. Um comboio apitou ao longe e foi como se algum lhe sorrisse. Escute disse. O qu? O comboio. O gorduchinho olhou-o sem entender, tirou um leno do bolso e ps-se a enxugar a fronte. O comboio tornou a apitar. Partia, cheio de civis, de mulheres belas, de crianas; os campos deslizavam, inofensivos, plos vidros das janelas. O comboio apitou e diminuiu a marcha. Vai parar disse Charles. Os eixos guincharam e o comboio parou. O movimento escorreu de Charles, que ficou seco e vazio como se houvesse perdido todo o sangue, esvaiu-se. J E A N-P AUL SARTRE
No gosto que os comboios parem disse. Georges pensava nos comboios de passageiros que descem para o sul, para o mar, para as casas brancas beira-mar; Charles sentia o capim verde que crescia entre os carris, sentia-o atravs das chapas de ferro, via no rectngulo luminoso, recortado no vago, prados verdes a perder de vista, o comboio estava preso nos campos como um navio nos gelos, o capim ia subir pelas rodas, passar pelas frinchas, por entre as tbuas, atravessar de lado a lado o comboio imvel. O comboio preso na armadilha apitava, apitava lamentavelmente; o apito longnquo arrastava-se poeticamente; o comboio rodava devagarinho, a cabea do vizinho de Maurice tremia dentro do colarinho amarelado, era um tipo gordo que cheirava a alho, cantara a Internacional desde o momento da partida e bebera dois litros de vinho. Acabou por se inclinar sobre o ombro de Maurice, roncando. Maurice estava com muito calor, mas no ousava mexer-se; estava angustiado por causa desse calor, do vinho branco e do sol que o cegava atravs dos vidros empoeirados, e pensava: Gostaria de j ter chegado. Os olhos arderam-lhe, tornaram-se vidrados e duros, cerrou as plpebras; ouvia o sangue bater-lhe nos ouvidos e o sol atravessava-lhe as plpebras; sentia aproximar-se dele um sono branco, suado, ofuscante, os cabelos do companheiro faziam-lhe ccegas no pescoo e no queixo, era uma tarde sem esperana. O tipo gordo tirou uma fotografia da carteira: Minha mulher disse. Era uma mulher sem idade, nada se podia dizer dela. Tem sade observou Georges. Come por quatro. PENA SUSPENSA Permaneciam um diante do outro, indecisos. Georges no alimentava simpatias por ele, que fungava ao falar, mas tinha vontade de lhe mostrar o retrato da filha. Casado? Sim. Com filhos? Georges olhou-o sem responder, algo zombeteiramente. Depois meteu bruscamente a mo no bolso, e pegou numa fotografia da carteira. Voc tem umas botas magnficas disse o tipo, segurando a fotografia Ho-de ser-lhe teis. Tenho calos respondeu Georges com humildade. Acha que me deixaro us-las? Naturalmente, eles no tm l botas para todos. Contemplou as botas por um momento, depois desviou o olhar com pena e fixou-o na fotografia. Georges sentiu que o outro
corava: Que bela criana disse. Quanto pesa? No sei. Considerava com estupor o tipo gordo que segurava a fotografia e deixava cair nela o seu olhar descolorido. Disse: Quando eu voltar, no me reconhecer... E possvel. A menos que... A menos que? Ento? disse Sarraut. Comeo? Virava a folha na mo. Daladier afiara um fsforo com o canivete e enfiara-o entre dois dentes. No respondia, encolhido na cadeira. Comeo? a guerra disse Bonnet docemente. a guerra perdida. J E A N-P AUL SARTRE Daladier tremeu e fixou em Bonnet um olhar pesado. Bonnet sustentou-o inocentemente, com os seus olhos claros e rasos. Parecia um tamandu. Champentier de Ribes e Reynaud assistiam de mais longe, silenciosos, desaprovando. Daladier encolheu-se completamente. Comece grunhiu com um gesto mole. Sarraut levantou-se e saiu da sala. Desceu a escada, pensando que a cabea lhe doa. Estavam todos ali, calaram-se ao v-lo e assumiram uma atitude profissional. Corja de imbecis, pensou Sarraut. Vou ler o comunicado. Houve um rumor que ele aproveitou para limpar os culos. Depois leu: O Conselho de Gabinete tomou conhecimento da exposio do senhor presidente e do senhor Georges Bonnet acerca do memorando entregue ao senhor Chamberlain pelo chanceler do Reich. Aprovou por unanimidade as declaraes que os senhores douard Daladier e Georges Bonnet se propem entregar em Londres, ao Governo ingls. Pronto, pensou Charles. Estou com vontade de cagar. Acontecera de repente: o ventre enchera-se, ia rebentar. Sim disse ele , penso como voc. As vozes subiam paralelamente, serenas. Gostaria de se refugiar por completo na sua prpria voz, ser apenas uma voz grave junto da bela voz cantante e loira. Mas havia primeiramente aquele calor, aquela insegurana palpitante, aquele pacote de matrias molhadas que borbulhavam nos intestinos. Houve um silncio; ela sonhava a seu lado, fresca, inconsciente, ele ergueu a mo com PENA SUSPENSA
precauo e passou-a pela testa hmida. Ah!, gemeu subitamente. Que foi? Nada. o meu vizinho que est a roncar. Aquilo tomar-lhe o ventre como um acesso de riso, uma vontade violenta e sombria de se abrir, de chover por baixo; uma borboleta desnorteada batia as asas entre as suas ndegas. Apertou-as e o suor escorreu-lhe pelo rosto, entrou-lhe pelas orelhas, fez-lhe ccegas na cara. Vou largar tudo, pensou aterrorizado. Voc parou de falar disse a voz loira. Eu... eu perguntava a mim mesmo... porque que me desejou conhecer. Voc tem uns belos olhos arrogantes disse ela. E alm disso, queria saber porque me odiava. Ele deslocou ligeiramente os rins, para enganar a necessidade, e disse: Odiava toda a gente porque sou pobre. Tenho um gnio desgraado. Aquilo escapara-lhe sob o impulso da necessidade; abrira-se por cima. Por cima ou por baixo, precisava de se abrir. Tenho um gnio desgraado. Sou um invejoso. Nunca dissera tudo. A ningum. Ela tocou-lhe na mo com a ponta dos dedos. No me odeie: tambm sou pobre. Um frmito percorreu-lhe o sexo: no era por causa daqueles dedos magros e quentes na sua mo, vinha de mais longe, do grande quarto nu, beira-mar. Ele chamava. Jacqueline chegava, tirava as cobertas, deslizava-lhe a bacia sob os rins, via-o liquefazer-se e, por vezes, pegava-lhe no Master Jack entre o polegar e o indicador, ele adorava isso. J E A N-P AUL SARTRE Agora, a sua carne estava condicionada, habituara-se quilo; todas as suas vontades eram envenenadas por um langor cido de se abrir sob um olhar profissional. Eis o que sou, pensou. E perdeu a coragem. Tinha horror de si mesmo, sacudia a cabea e o suor queimou-lhe os olhos. No partiria nunca, aquele comboio? Parecia-lhe que, se tivesse recomeado a andar, teria deixado ali os seus turvos e dolorosos desejos e aguentado mais um pouco. Abafou um gemido: sofria, ia rasgar-se como um pedao de pano; apertou em silncio a doce mo to magra. Mos de pasta de amndoas pegam em Master Jack com competncia, Master Jack exulta, indolente, a cabea ligeiramente inclinada, uma empregada de salsicharia pega, entre os dedos, na linguia do seu leito de geleia. Nuzinho. Fendido. Visto. Uma casca de fruto que estoira. A Primavera. Que horror! Detestava Jeannine.
Como tem as mos quentes! disse a voz. Estou com febre. Algum gemeu docemente ao sol, um dos doentes estendidos perto da porta. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se a ele, passando por cima dos corpos. Charles ergueu o brao esquerdo, manobrou rapidamente o espelho, enquadrou a enfermeira inclinada sobre um adolescente corado e de orelhas em leque. Ela endireitou-se e voltou ao seu lugar. Parecia desesperadamente apressada. Charles viu-a mexer na mala. Trazia agora uma bacia para urinar. Indagou em voz alta: Ningum tem vontade? Se algum tem vontade seria melhor faz-lo durante a paragem. mais cmodo. E no tenham vergonha uns dos outros. No h aqui homens e mulheres: s h doentes. PENA SUSPENSA Passeou por eles um olhar severo, mas ningum respondeu. O adolescente apossou-se da bacia com avidez e f-la desaparecer sob a coberta. Charles apertou com fora a mo da amiga. A enfermeira baixou-se, pegou na bacia e ergueu-a. A bacia brilhou ao sol, cheia de uma bela gua amarela e espumante. A enfermeira aproximou-se da porta e inclinou-se para fora, Charles viu-lhe a sombra na parede, de brao erguido, recortada no rectngulo de luz. Inclinava a bacia, uma sombra de lquido escorria. Minha senhora! disse uma voz fraca. Ah! respondeu ela. J se decidem! Vou j. Cederam todos, uns aps os outros. As mulheres aguentaram mais tempo do que os homens. Eles vo empestar as vizinhas, ousaro depois dirigir-lhes a palavra? Sujos, pensou ele. Houve um ligeiro tumulto ao nvel do cho; apelos murmurados surgiam de todo o lado. Charles percebeu vozes de mulheres. Esperem disse a enfermeira. Um de cada vez. S h doentes. Pensam que tudo lhes permitido porque so doentes. Nem homens, nem mulheres: doentes. Ele sofria mas tinha orgulho em sofrer: no cederei; sou um homem, eu. A enfermeira ia de um para outro; ouvia-se o rudo dos seus passos e, de vez em quando, um amarrotar de papel. Um odor enjoativo e quente enchia o vago. No cederei, pensou torcendo-se com dor. Minha senhora! disse a voz loira. Acreditou ter ouvido mal, mas a voz repetiu, envergonhada e cantante: Aqui, minha senhora. Pronto. J E A N-P AUL SARTRE A mo quente e magra torceu-se na mo de Charles e escapou-se. Ele ouviu o rudo dos sapatos; a enfermeira estava ali, acima
deles, imensa e severa, um arcanjo. Vire-se disse a voz suplicante. E murmurou mais uma vez: Vire-se. Ele virou a cabea, quisera entupir os ouvidos e o nariz. A enfermeira mergulhou, enorme voo de pssaros negros escurecendo o espelho. No viu mais nada. uma doente, pensou. Devia ter tirado a pele: por um instante o perfume cobriu tudo, depois, pouco a pouco, um odor ranoso e forte furou o ar, encheu-lhe as narinas. unia doente. E uma doente, a linda pele macia estendia-se sobre vrtebras lquidas, sobre intestinos purulentos. Hesitou, dividido entre o nojo e um imundo desejo. Depois, de um s golpe, trancou-se, as suas entranhas fecharam-se como um punho, no sentiu mais o corpo. uma doente. Todas as vontades, todos os desejos se tinham apagado, ele sentia-se limpo e seco, era como se tivesse recobrado a sade. Uma doente: Resistiu quanto pde, pensou com amor. Ouviu o amarrotar do papel, a enfermeira reerguer-se, j outras vozes a chamavam do outro lado do vago. Ele no chamaria: planava a algumas polegadas do cho, acima deles. No era uma coisa, no era um beb. Ela no pde resistir, pensou com uma ternura to forte que lgrimas lhe vieram aos olhos. Ela no falava mais, j no ousava dirigir-lhe a palavra; estava com vergonha. Eu proteg--la-ei, pensou, com amor. De p. De p, inclinado sobre ela e contemplando a sua doce e linda fisionomia. Estava um pouco ofegante, na obscuridade. Ele estendeu a mo e passou-a sobre a pele. O jovem corpo encrespou-se mas Charles encontrou uma mo e pegou nela. A mo resistiu, PENA SUSPENSA puxou-a para si com toda a fora. Uma doente. E ele ali, seco, duro, liberto; ele proteg-la-ia. Como se chama? indagou. Leia disse Chamberlain com impacincia. Lorde Halifax pegou na mensagem de Masaryk e comeou a ler: No era preciso tanta nfase, pensou Chamberlain. O meu Governo, leu Halifax, estudou o documento e o mapa. Trata-se de um ultimato de facto, como os que se apresentam em geral a uma nao vencida, e no de uma proposta a um estado soberano, que mostrou as mais decididas disposies para fazer sacrifcios em prol da paz na Europa. O Governo do senhor Hitler no manifestou ainda o menor indcio de disposio anloga para os sacrifcios. O meu Governo estranha o contedo do memorando. As propostas vo muito alm do que havamos aceite no chamado Plano Anglo-Francs. Privam-nos de todas as garantias da nossa existncia nacional. Devemos ceder posies importantes das nossas fortificaes, to cuidadosamente
preparadas, e deixar que os exrcitos alemes penetrem profundamente no nosso territrio, antes de ter podido organiz-lo sobre novas bases, ou de haver iniciado quaisquer preparativos de defesa. A nossa independncia nacional e econmica desapareceria automaticamente, com a adopo do plano do senhor Hitler. Todo o processo de transferncia da populao se reduzir a um forte pnico para os que no aceitarem o regime nazi alemo. Devero abandonar os seus lares sem terem sequer o direito de levar os seus bens de uso pessoal, nem mesmo, no caso dos camponeses, a sua vaca leiteira. O meu Governo espera que eu declare, com toda a solenidade possvel, que as exigncias do senhor Hitler, J E A N-P AUL SARTRE na sua forma actual, so absoluta e incondicionalmente inaceitveis. Contra essas novas e cruis exigncias, o meu Governo sente-se decidido a uma resistncia suprema, e assim agiremos, com a ajuda de Deus. A nao de So Venceslau, de Joo Huss e de Thomas Masaryk no ser uma nao de escravos. Contamos com as duas grandes democracias ocidentais, cujos conselhos seguimos contra a nossa prpria opinio para que estivessem ao nosso lado nesta hora crucial. tudo? indagou Chamberlain. tudo. Eis-nos a braos com novas dificuldades. Lorde Halifax no respondia; mantinha-se teso como um remorso, respeitoso e reservado. Os ministros franceses chegaro daqui a uma hora disse Chamberlain secamente. Acho esse documento, pelo menos, inoportuno. Pensa que seja de natureza a pesar sobre as decises deles? indagou Halifax com ligeira ironia. O velho no respondeu. Pegou no papel e ps-se a l-lo resmungando. As vacas! exclamou ele de repente e com irritao. Que tm as vacas a ver com isto? de uma infelicidade! No acho disse Halifax. Fiquei comovido. Comovido? O velho sorriu. Meu caro, trata-se de um negcio. Os que se comoverem perdero a partida. Tecidos vermelhos, cor-de-rosa, vestidos malva e brancos, pescoos nus, belos seios sob os lenos, poas de sol nas mesas, mos, lquidos viscosos e dourados, e outras mos, e coxas jorrando dos shorts, vozes alegres, vestidos PENA SUSPENSA vermelhos, cor-de-rosa e brancos, vozes alegres girando no ar, coxas, a valsa Viva Alegre, o odor dos pinheiros, da areia
quente, o perfume de baunilha do alto mar, todas as ilhas do mundo invisveis e presentes dentro do sol, ilha de Pscoa, ilhas Sanduche, lojas de luxo junto ao mar, o impermevel feminino de trs mil francos, os clips, as flores vermelhas, rosadas e brancas, as mos, as coxas, a msica, as vozes alegres, girando no ar; Suzanne, e a tua dieta? Ora, s por uma vez! As velas sobre as ondas, os esquiadores saltando, de braos tesos, de onda em onda, o odor dos pinheiros chegando em ondas, a paz. A paz em Juan-les-Pins. Ali estava, largada, esquecida, irritando-se. As pessoas iludiam-se: saras de cores, cercas vivas de msica dissimulavam-lhes a angustiazinha inexperiente; Mathieu caminhava devagar, ao longo dos cafs, das lojas, tinha o mar esquerda; o comboio de Gomez s chegaria s 18 horas e 17. Olhava para as mulheres por hbito, olhava-lhes para as coxas pacficas, os seios pacficos. Mas estava em falta. Desde as trs e vinte e cinco que estava em falta: s trs e vinte e cinco um comboio partira para Marselha. J no estou aqui. Estou em Marselha, num caf da Avenida da Gare, aguardo o comboio para Berlim, estou no comboio. Estou em Paris, numa manh ensolarada, estou numa caserna, dou voltas no ptio em Essey-ls--Nancy. Em Essey-ls-Nancy, Georges parou de falar porque era preciso gritar; ergueram os olhos, o avio passava rente aos telhados com um rudo de trovo, Georges acompanhou-o por cima dos muros, por cima dos telhados, por cima de Nancy at Niort, estava em Niort, no seu quarto com a pequena, e aquele gosto a poeira na boca. Que me vai dizer? Saltar do comboio vivo e moreno como J E A N-P AUL SARTRE um turista de Juan-le-Pins. Estou to moreno quanto ele, agora, mas no tenho nada a dizer-lhe. Estive em Toledo, em Guadalajara, tu onde andaste? Eu vivia... Estive em Mlaga, fui dos ltimos a deixar a cidade, e tu? Eu vivi. Ah, pensou agastado, espero um amigo, no um juiz. Charles ria, ela no dizia nada, ainda estava com vergonha, ele segurava-lhe na mo e ria: Bonito nome, Catherine. Ele tem sorte, afinal, fez a guerra em Espanha, sem armas, dinamitadores contra os tanques, emboscadas na montanha, amores nos hotis desertos de Madrid, pequenos combates individuais na plancie, a Espanha no perdeu o seu sabor, e eu? uma guerra triste a que me espera, uma guerra cerimoniosa e aborrecida; armas antitanques contra tanques, uma guerra colectiva e tcnica, uma epidemia. Era ali a Espanha, um risco sobre a gua azul. Maud, debruada no parapeito, olha para a Espanha. Lutam, por l. O navio deslizava perto da costa; l ouve-se o canho; aqui ouvia-se o rudo das ondas, um peixe-voador pulou. Mathieu caminhava em
direco a Espanha, o mar esquerda, a Frana direita: Maud deslizava perto da costa, a Arglia esquerda, a Frana direita; a Espanha era aquele hlito trrido e aquela bruma. Maud e Mathieu pensavam na guerra de Espanha e isso repousava-os da outra guerra, da guerra cor de azinhavre que se preparava direita. Era preciso escorregar at ao muro em runas, dar a volta e regressar, ento a misso estaria cumprida. O marroquino subia de gatas pelas pedras escuras, a terra estava quente, tinha terra nas unhas dos ps e das mos, tinha medo, pensava em Tnger; bem no cimo de Tnger havia uma casa amarela de um andar onde se via o rutilar eterno do oceano, a morava um negro de barbas brancas que punha cobras na PENA SUSPENSA boca para divertir os ingleses. Era preciso pensar nessa casa amarela. Mathieu pensava na Espanha, Maud pensava na Espanha, o marroquino arrastava-se pelo solo gretado de Espanha, pensava em Tnger e sentia-se s, Mathieu dobrou a esquina de uma rua ofuscante, a Espanha virou, ardeu, transformou-se numa bruma de fogo imprecisa sua esquerda. Nice direita e, depois de Nice, um buraco, a Itlia. A estao diante dele; diante dele a Frana e a guerra, a guerra verdadeira, Nancy. Ele estava em Nancy; alm da estao, caminhava para Nancy. No tinha sede, no tinha calor, no estava cansado. O seu corpo estava abaixo dele, annimo, pastoso; as cores e os sons, os raios de sol, os odores, enterravam-se no seu corpo; tudo aquilo nada mais tinha a ver com ele. Assim que comea uma doena, pensou. Philippe passou a mala para a mo esquerda, estava exausto mas era preciso aguentar at noite. At noite: dormiria no comboio. O terrao da Tour d'Argent zumbia como uma colmeia, vestidos vermelhos, rosados, malva, meias de seda artificial rostos pintados, lquidos caramelizados, uma multido xaporosa e colante, sentiu o corao trespassado de piedade, arranc-los-o dos cafs, dos seus quartos, e ser com eles que faro a guerra. Tinha pena deles, tinha pena de si mesmo: cozinhavam ao sol, viscosos, fartos e desesperados. Philippe teve de repente uma vertigem de fadiga e orgulho: sou a conscincia deles. Mais um caf. Mathieu olhava para aqueles homens morenos, to gordos, to seguros de si, e sentia-se isolado. Tm direita o casino, esquerda os correios, atrs o mar, tudo: Frana, Espanha, Itlia so lmpadas que no se acendem nunca para eles. A esto, todos juntos e inteiros, J E A N-P AUL SARTRE a guerra e um fantasma. Eu sou um fantasma, pensou. Eles seriam tenentes, capites, dormiriam em camas, fariam a barba
diariamente e muitos deles saberiam dar um jeito. No os censurava. Quem poderia impedi-los de o fazerem? A solidariedade para com os que vo arriscar a pele? Mas eu vou arriscar a minha, e no exijo nenhuma solidariedade. Porque que vou, afinal?, pensou. Ateno!, gritou Philippe ao levar um empurro. Baixou-se para pegar na mala; o tipo alto, de alpercatas, nem sequer se voltou. Estpido!, murmurou Philippe. Virou-se para o caf e olhou para aquela gente toda com um olhar feroz, mas ningum percebeu o incidente. Uma criana chorava, a me enxugava-lhe os olhos com um leno. Na mesa vizinha, trs homens acabrunhados, diante de laranjadas. No so assim to inocentes, pensou, fixando na multido o seu insustentvel olhar. Porque partem? Bastar-lhes-ia dizer no. O carro corria. Daladier, afundado nas almofadas, chupava um cigarro apagado, olhando os transeuntes. Ir a Londres aborrece-o, nada de aperitivos, comeria como um porco, uma mulher desgrenhada ria, como uma louca. Pensou: Eles no fazem ideia. Meneou a cabea. Philipe pensou: Levam-nos para o matadouro e eles nem fazem ideia! Encaram a guerra como uma doena. A guerra no uma doena, pensou com fora. E um mal insuportvel porque o homem quem o inflige ao homem. Mathieu empurrou a porta: Venho esperar um amigo, disse ele ao empregado. A estao era fresca, deserta e silenciosa como um cemitrio. Porque que vou? Sentou-se no banco verde. Alguns vo recusar-se a partir. No tinha nada com isso. Recusar, cruzar os braos, fugir para a Sua, porqu? No sinto isso. No tenho nada com isso. A guerra em Espanha PENA SUSPENSA tambm no tinha nada a ver com ele. Nem com o Partido Comunista. Mas com que que eu tenho alguma coisa a ver?, indagou, angustiado. Os carris brilhavam, o comboio chegaria pela esquerda. Deste lado, bem l no fundo, aquele lago reluzente, no ponto em que os carris se juntavam, era Toulon, Marselha, Port-Bou, Espanha. Uma guerra absurda, injustificvel, Jacques diz que est perdida de antemo. A guerra uma doena, pensou; cabe-me suport-la como uma doena. Por nada. Serei um doente corajoso, eis tudo. Porqu faz-la? No a aprovo. Porqu no a fazer? A minha pele no vale a tentativa de a salvar. Eis tudo, pensou, eis tudo: sou conduzido! Um funcionrio. E o que lhe deixavam era o estoicismo triste dos funcionrios, que tudo suportam, a pobreza, as doenas e a guerra, por respeito a si mesmos. Sorriu e disse para si: Eu nem mesmo me respeito. Um mrtir, precisam de um mrtir, pensou Philippe. Flutuava, banhava-se na fadiga, no era desagradvel, mas fora necessrio entregar-se, abandonar-se; simplesmente, ele j no via muito
claro, direita e esquerda dois batentes vedavam-lhe a rua. A multido cercava-o, as pessoas saam de todo o lado, crianas corriam-lhe entre as pernas, rostos piscando os olhos por causa do sol deslizavam-lhe acima e abaixo da cabea, sempre a mesma face, inclinando-se de trs para diante, sim-sim-sim. Sim, aceitaremos esses salrios de misria, sim, iremos guerra, sim, faremos bicha diante das padarias, com os nossos filhos nos braos. A multido, era a multido, esse imenso consentimento silencioso. E se lhes explicamos partem-nos a cara, pensou Philippe, com a cara em fogo, espezinham-nos com furor, gritando: Sim. Olhava para as fisionomias mortas, media a sua impotncia: J E A N-P AUL SARTRE no se lhes pode dizer nada, de um mrtir que precisam. Algum que se erga de repente nos ps e diga NO. Cairiam sobre ele e f-lo-iam em pedaos. Mas esse sangue vertido por eles comunicar-lhes-ia uma nova fora: o esprito do mrtir desceria sobre eles, levantariam a cabea sem piscar os olhos, e um troar de recusas far-se-ia ouvir de um lado ao outro da multido, como um trovo. Sou esse mrtir, pensou. Uma alegria de supliciado invadiu-o, uma alegria demasiado forte; inclinou a cabea, largou a mala, caiu de joelhos, tragado pelo consentimento universal. Ol! gritou Mathieu. Gomez corria ao seu encontro, sem chapu, belo como sempre. Uma nuvem nos olhos, piscou, piscou, onde estou? Vozes diziam acima dele: Que foi que houve? Foi uma vertigem, onde que mora? Uma cabea inclinou-se sobre ele, era uma velha, ser que me vai morder? Onde mora? Mathieu e Gomez olhavam-se rindo de prazer, onde mora, onde mora, ONDE MORA, ele fez um esforo violento e levantou-se. Sorria. Disse: No nada, minha senhora, o calor. Moro aqui perto. Vou para casa. E preciso acompanh-lo dizia algum atrs dele. No pode ir sozinho. E a voz perdeu-se num roar ruidoso de folhas: Sim, sim, preciso acompanh-lo, preciso acompanh-lo. Larguem-me gritou , larguem-me, no me toquem. No, no, no, NO. No guerra, no ao general, no s mes culpadas, no a Zzette e a Maurice, no, no me atormentem. Afastaram-se dele e ele ps-se a correr, com solas de chumbo. Corria, corria, algum lhe pousou a mo no ombro, e pensou que iria rebentar PENA SUSPENSA em soluos. Era um rapaz de bigodinho que lhe estendia a mala.
Esqueceu-se da mala disse a rir. O marroquino parou bruscamente: era uma cobra o que ele pensara ser um galho seco. Uma cobrinha; uma pedra e esmagar-lhe-ia a cabea. Mas a cobra retorceu-se de repente, riscou o cho como um raio escuro e desapareceu no fosso. Feliz pressgio. Nada se movia atrs do muro. Voltarei vivo, pensou. Mathieu pegou em Gomez plos ombros. Ol, coronel! Gomez sorriu cheio de nobreza e mistrio: General. Mathieu retirou as mos. General? Avana-se depressa em Espanha. Falta de quadros explicou Gomez sempre a sorrir. Como est moreno, Mathieu! Queimado do sol, um luxo disse Mathieu embaraado. Isto arranja-se nas praias no fazendo nada. Procurava nas mos, no rosto de Gomez, as marcas do sofrimento; estava disposto a todos os remorsos. Mas Gomez, vivo e esguio no seu fato de flanela, endireitando o porte, no se abria to depressa. Por agora, parecia um turista. Onde vamos? indagou. Vamos procurar um restaurantezinho sossegado disse Mathieu. Moro com o meu irmo e cunhada, mas no o convido para ir l, eles no so muito divertidos. Quero um lugar com msica e mulheres disse Gomez. Olhou Mathieu com impudncia: Acabo de passar oito dias no seio da famlia. J E A N-P AUL SARTRE Bem! Ento iremos ao Provenal. A ordenana via-os aproximarem-se. Tinha um ar de profissional, sem dureza. Mantinha-se imvel, ligeiramente arqueado, entre os dois distribuidores automticos de bilhetes; o sol avermelhava-lhe a espingarda e o capacete. Chamou-os ao passarem. Indagou-lhes: Para onde? Essey-ls-Nancy disse Maurice. sada tomem o elctrico vossa esquerda e desam na ltima paragem. Eles saram. Era uma praa triste como todas as que ficam diante das estaes, com cafs e hotis. No cu viam-se colunas de fumo. E agradvel desentorpecer as pernas observou Dornier com um suspiro. Maurice ergueu os olhos e sorriu, piscando. Aqui no h elctricos disse Bbert. Uma mulher olhou-os
com simpatia: Ainda no chegou! Para onde vo? Essey-ls-Nancy disse Maurice. Um bom quarto de hora. De vinte em vinte minutos passa um elctrico. D tempo para ir beber qualquer coisa disse Dornier a Maurice. Estava fresco, o comboio rodava, o ar vermelho; um frmito de felicidades percorreu-o, puxou as cobertas. Disse: Catherine! Ela no respondeu. Mas uma coisa roou-lhe no peito e subiu devagar at ao pescoo, um pssaro, depois o pssaro levantou voo e tornou a pousar sua frente. Era a mo dela, a doce mo perfumada deslizou pelo nariz de Charles, os dedos leves tocaram-lhe nos lbios, PENA SUSPENSA fazia ccegas. Pegou na mo e aproximou-a da boca. Estava morna, passou os dedos pelo punho e sentiu o pulso dela. Fechou os olhos, beijava a mo magra e o pulso batia-lhe nos dedos como o corao de um passarinho. Ela riu: Como se fssemos cegos: precisamos de travar conhecimento com os dedos. Ele estendeu o brao por sua vez, receava mago-la; tocou no cabo de ferro do espelho e depois nos cabelos sobre a coberta, loiros, com a ponta dos dedos, e depois na fronte e depois numa face, tenra e carnuda como um corpo de mulher e depois uma boca morna aspirou-lhe os dedos, dentes mordiscaram-nos enquanto mil agulhas o picavam dos rins at nuca; disse: Catherine! E pensou: Estamos a amar. Ela largou a mo e suspirou, Maurice soprou para o seu copo de cerveja e fez saltar a espuma para o soalho, bebeu, ela disse: Como se chamam esses barcos onde nos deitamos um ao lado do outro? Maurice lambeu o lbio superior: Est fresca! No sei, respondeu Charles, gndolas, creio. No, no so gndolas, mas no faz mal, como se estivssemos num desses barcos. Ele tomou-lhe a mo, deslizavam juntinhos ao sabor da corrente, era sua amante, a estrela de cabelos de ouro-plido, ele era outro homem, protegia-a. Disse-lhe: Gostaria que o comboio no chegasse nunca. Daniel mordia a caneta, bateram porta, reteve a respirao, olhava sem ver a folha branca. Daniel, disse a voz de Marcelle. Ele no respondeu. Os passos afastaram-se, desciam a escada, os degraus rangiam; sorriu, mergulhou a pena na tinta e escreveu: Meu caro Mathieu. Uma mo apertada no escuro, um roar de pena, o rosto de Philippe sai da sombra e vem ao seu encontro, plido nas trevas do espelho, um balouar de navio, a cerveja gelada J E A N-P AUL SARTRE faz gluglu na garganta e corta a respirao, o comboio de ao
percorre trinta e trs metros entre Paris e Ruo, um segundo homem, trimilsimo segundo da vigsima hora do dia 24 de Setembro de 1938. Um segundo perdido atrs de Charles e Catherine no campo quente, entre os carris, abandonado por Maurice na poeira do caf sombrio e fresco, nadando na esteira do navio da Companhia Paquet, preso aos borres de tinta fresca, brilhando e secando nas pernas do M de Mathieu, enquanto a pena raspa o papel e rasga-o, enquanto Daladier, afundado nas almofadas, chupa um cigarro apagado, olhando para os transeuntes. Chateava-se com Londres; voltava obstinadamente os olhos para a porta a fim de no ver o focinho de Bonnet e a fisionomia impenetrvel daquele ingls. Pensava: No fazem ideia. Viu uma mulher desgrenhada que ria como uma louca. Contemplava todo o automvel com um ar inexpressivo, dois ou trs gritavam: Hurra!, mas no tinham noo decididamente, no compreendiam que levava a guerra ou a paz a Downing Street, a guerra ou a paz, cara ou coroa, esse automvel preto que andava buzinando pela estrada de Londres. Daniel escrevia. O comandante detivera-se porta do salo de primeira classe, lia: Esta noite, s 21 horas, a Orquestra Feminina Baby's dar um concerto sinfnico no salo. Todos os passageiros, sem distino de classe, so graciosamente convidados. Deu uma cachimbada e pensou: magra de mais! E exactamente nesse momento sentiu um perfume quente, ouviu um rudo de asas, era Maud, ele voltou-se; em Madrid o sol crepuscular dourava a fachada em runas da cidade universitria; Maud olhava-o, ele deu um passo, o marroquino deslizava entre as runas, o belga visou-o, Maud e o comandante olhavam-se. O marPENA SUSPENSA roquino ergueu os olhos e viu o belga; olharam-se e subitamente Maud sorriu e desviou o olhar, o belga puxou o gatilho, o marroquino morreu, o comandante deu um passo em direco a Maud e depois pensou: magra de mais! e parou. Desgraado, safado, disse o belga. Contemplava o marroquino morto e dizia: Desgraado, safado. Ento? disse Gomez. E Marcelle? Sarah disse-me que tinha acabado. Acabou. Casou com Daniel. Daniel Sereno? Mas que ideia! Enfim, voc libertou-se. Libertei-me? De qu? Marcelle no lhe convinha disse Gomez. Ora! As mesas cobertas de toalhas brancas cercavam em semicrculo a pista arenosa e juncada de caruma. O Pro-venal estava deserto; somente um sujeito comia uma asa de frango bebendo
gua de Vichy. Os msicos subiram preguiosamente ao estrado, sentaram-se no meio de um barulho de cadeiras arrastadas e puseram-se a cochichar enquanto afinavam os instrumentos; ainda se distinguia o mar escuro entre os pinheiros. Mathieu estendeu as pernas sob a mesa e bebeu um gole de Porto. Pela primeira vez, desde h oito dias, sentia-se em casa; tinha-se refeito de um golpe, cabia por inteiro naquele estranho lugar, misto de salo e bosque sagrado. Os pinheiros pareciam de papelo recortado, as lmpadas pequenas, cor-de-rosa, na doura da noite natural, deitavam uma luz de alcova nas toalhas, um projector acendeu-se entre as rvores, e iluminou repentinamente a pista, que se fez branca como se fosse de cimento. Mas havia uma ausncia por cima das cabeas, J E A N-P AUL SARTRE e no cu as estrelas eram vagos bichinhos atarefados; havia aquele cheiro a resina e aquele vento do mar, agitado, inquieto, alma penada, que desfolhava as toalhas e enfiava de repente o focinho frio no pescoo das pessoas. Falemos de si disse Mathieu. Gomez pareceu surpreso: E no lhe aconteceu mais nada? Nada disse Mathieu. H dois anos para c? Nada. Encontra-me como me deixou. Malditos franceses! disse Gomez a rir. So todos eternos. O saxofonista ria: o violinista falava-lhe ao ouvido. Ruby inclinou-se para Maud, que afinava o seu violino. Espreita o velho na segunda fila. Maud riu: o velho era calvo como um ovo. O seu olhar percorreu o auditrio, eram uns quinhentos. Viu Pierre em p perto da porta e parou de rir. Gomez olhou para o violinista com um ar sombrio, depois deitou um olhar para as cadeiras vazias. Como canto sossegado, no se pode exigir melhor disse resignado. Tem msica observou Mathieu. Estou a ver. Olhou para os msicos com um ar de censura. Maud lia a censura em todos aqueles olhos, sentia o rosto afogueado e como sempre pensava: Deus meu, para qu, para qu! Mas France, de p, esfuziante e tricolor, manifestava a sua felicidade, sorria, marcava o compasso de antemo, segurava o arco, como se fosse um garfo, erguendo o dedo mindinho. PENA SUSPENSA Voc prometeu-me mulheres disse Gomez. Pois disse Mathieu desolado , no sei o que h: a semana passada a estas horas todas as mesas estavam ocupadas,
e por mercadoria de excelente qualidade. So os acontecimentos disse Gomez com voz macia. Sem dvida. Os acontecimentos; bem verdade. Para eles tambm, l do outro lado, os acontecimentos existem. Batem-se, junto aos Pirenus, olhos voltados para Valncia, Madrid, Tarragona; mas lem os jornais e pensam em todo esse formigar de homens e armas, atrs deles, e tm as suas opinies sobre a Frana, a Checoslovquia, a Alemanha. Agitou-se um pouco na cadeira: um peixe aproximava-se do vidro do aqurio e olhava-o com olhos redondos. Ele ofereceu a Gomez um escarniozinho cmplice e disse sem muita segurana: E que as pessoas comeam a compreender. No compreendem coisa alguma disse Gomez. Um espanhol pode compreender, um checo tambm, talvez mesmo um alemo, porque esto no negcio. Os franceses no esto; no compreendem nada; tm medo. Mathieu sentiu-se magoado; disse com vivacidade: No devemos censur-los. Eu no tenho nada a perder e partir no me aborrece assim tanto; varia. Mas quando se quer realmente alguma coisa, acho que difcil passar dignamente da paz guerra. Eu fi-lo numa hora disse Gomez. Acha que eu no estava preso minha pintura? Voc diferente. Gomez encolheu os ombros. J E A N-P AUL SARTRE Fala como Sarah. Calaram-se. Mathieu no tinha muita estima por Gomez. Menos do que por Brunet, menos do que por Daniel. Mas sentia-se culpado aos olhos dele, porque se tratava de um espanhol. Um peixe diante do vidro do aqurio. Era francs, desse ponto de vista, francs at medula. Culpado. Culpado e francs. Tinha vontade de lhe dizer: Bolas, eu era intervencionista! Mas no era esse o problema. O que esperara e desejara pessoalmente no contava. Era francs, nada teria adiantado pretender desligar-se dos demais franceses. Escolhi a no interveno na Espanha, no mandei armas, fechei a fronteira aos voluntrios. Era preciso defender-se com todos, ou deixar-se condenar com todos, com o mordomo e o senhor dispptico que bebia gua de Vichy. Que tolice! disse. Imaginava que voc viria fardado. Gomez sorriu: Fardado? Quer ver-me em uniforme? Tirou do bolso um punhado de fotografias e entregou-as a Mathieu. A est o homem. Era um oficial de aparncia dura, nos degraus de uma igreja.
No est muito vontade. Era preciso disse Gomez. Mathieu olhou e riu. Sim disse Gomez , uma farsa. No o que pensava. Eu perguntava a mim mesmo se teria uma cara to m como a sua, fardado. Voc oficial? PENA SUSPENSA Simples soldado. Gomez teve um gesto de irritao. Todos os franceses so simples soldados. Todos os espanhis so generais disse Mathieu com vivacidade. Gomez riu. Veja s isto. Era uma mocinha morena e sombria, muito bonita, Gomez segurava-a pela cintura e sorria com o ar superior que assumia sempre nas fotografias. Marte e Vnus disse. Estou a reconhec-lo disse Mathieu , mas escolhe-as muito jovens. Quinze anos; mas a guerra amadureceu-as. E eis-me a combater. Mathieu viu um homenzinho agachado junto de um muro em runas. Onde? Madrid. Na Cidade Universitria. Combate-se amide por l. Ele lutou. Deitou-se realmente atrs desse muro e atiraram sobre ele. Era capito, naquele tempo. Talvez faltassem as munies e pensasse: Franceses da merda. Gomez reclinara-se na cadeira, acabava o seu Porto; pegou na caixa de fsforos com calma, acendeu um cigarro, os seus traos nobres e cmicos jorraram da escurido e apagaram-se. Bateu-se; no se notava nada nos seus olhos. A noite caa, envolvia-o de doura, por cima da lmpada rosada o cu fazia-se azul, a orquestra tocava No te qmero mas, o vento agitava a toalha, uma mulher entrou, rica e s, e sentou-se perto, o seu perfume flutuou at onde J E A N-P ALJL SARTRE estavam. Gomez aspirou-o, dilatando o nariz, o seu rosto fez-se duro, virou a cabea, pesquisando. direita disse Mathieu. Gomez fixara nela um olhar de lobo, ficara grave; disse: Bela mulher. uma actriz respondeu Mathieu. Tem doze trajos de praia. um industrial de Lio que a sustenta. Hum! fez Gomez. Ela devolveu o olhar e desviou os olhos esboando um sorriso. No vai perder a noite disse Mathieu. Ele no respondeu. Pousara o antebrao na toalha, Mathieu
olhava para a mo peluda, de anel, que parecia rosada luz da lmpada. Ei-lo todo azul, com as suas mos rosadas, respira esse perfume de loira e chama-a com os olhos. Bateu-se. Atrs dele, na cidade incendiada, turbilhes de poeira vermelha, exploses de foguetes que no brilham sequer no seu olhar. Bateu-se, vai voltar para se bater de novo e a est, v essas toalhas brancas que eu vejo. Tentou contemplar os pinheiros, a pista, a mulher com os olhos de Gomez, olhos queimados pelas chamas da guerra, conseguiu-o durante um minuto e, depois, a aspereza inquieta e sumptuosa que o tomara esvaiu-se. Bateu-se... como romanesco! Eu no sou romanesco, pensou Mathieu. No, disse Odette, dois pratos s, o senhor Mathieu no vem jantar. Aproximou-se da janela, ouvia a msica do Provenal, era um tango. Eles escutavam a msica; Mathieu pensava: Est de passagem. O criado serviu-lhes a sopa. No, disse Gomez, nada de sopa. Elas tocavam o Tango do Gato; o violino de France pulava PENA SUSPENSA na luz e mergulhava de repente na sombra como um peixe--voador. France sorria, olhos semicerrados, mergulhava com o violino, o arco raspava, o violino miava, Maud ouvia o violino miar ao seu ouvido, ouvia o senhor calvo tossir e Pierre olhava-a, Gomez ps-se a rir, sem bondade. Um tango! disse. Um tango! Se os franceses tivessem a ideia de tocar um tango assim num caf de Madrid... Lanar-lhes-iam tomates? Pedras! No gostam de ns? H motivos para isso. Empurrou a porta: o bar basco estava deserto, Boris entrara uma noite por causa do nome: Bar Basque. Fazia pensar em barbaque ! e barbaque era uma palavra que no podia pronunciar sem rir. Acontecera que o bar era excelente e Boris voltara todas as noites, enquanto Lola trabalhava. Pelas janelas abertas ouvia-se a msica longnqua do Casino; de uma feita, pensara mesmo reconhecer a voz de Lola, mas o facto no se reproduzira. Bom dia, senhor Boris disse o patro. Bom dia, patro. Um rum branco, por favor. Sentia-se eufrico. Ia beber dois runs brancos, fumando o seu cachimbo: depois, l pelas onze horas, pediria uma sanduche de mortadela. meia-noite iria buscar Lola. O patro inclinou-se e encheu-lhe o copo. No est, o marselhs? No. Tem um banquete profissional. Ah!
1 Carne de m qualidade, em gria. (N. da T.) J E A N-P AUL SARTRE O marselhs era representante de espartilhos e havia ainda outro tipo, um tipgrafo chamado Charlier. Boris jogava por vezes s cartas com eles ou ficavam os trs a falar de poltica e desportos, ou mesmo calados, uns no balco, outros nas mesas do fundo. Charlier rompia o silncio para dizer: Pois assim mesmo, no ?, meneava a cabea e o tempo passava agradavelmente. No h muita gente hoje disse Boris. O patro encolheu os ombros. Vo-se todas embora. Geralmente abro at ao dia de Todos-os-Santos disse, voltando ao balco. Mas se continuar assim, fecho a boite no primeiro de Outubro e vou para a minha terra. Boris parou de beber, impressionado. De qualquer modo o contrato de Lola terminava em Outubro e partiriam. Mas no gostava de pensar que o Bar Basque fechasse to cedo. O Casino tambm ia fechar, bem como os hotis. Biarritz ficaria deserta. Era como quando se pensa na morte; se se tivesse a certeza de que os outros homens, depois de ns, beberiam ainda rum branco, tomariam banhos de mar, ouviriam a msica de jazz, sentir-nos-amos um pouco reconfortados; mas se fosse necessrio pensar que toda a gente morreria ao mesmo tempo, e que depois de ns a humanidade fecharia as portas, no seria nada divertido. Quando reabrir? indagou para se tranquilizar. Se houver guerra, no reabrirei. Boris contou plos dedos, 26, 27, 28, 29, 30, voltarei cinco vezes ainda e depois nunca mais, nunca mais verei o Bar Basque. Engraado. Cinco vezes. Beberia ainda cinco vezes runs brancos naquela mesa e depois seria a guerra, o Bar Basque fecharia e, em Outubro de 1939, Boris seria PENA SUSPENSA convocado. Lmpadas em forma de velas, suspensas de candelabros de carvalho, deitavam uma luz bela nas mesas. Boris pensou: No verei mais esta luz: exactamente esta, cobre sobre preto. Naturalmente veria muitas outras, os foguetes nocturnos acima do campo de batalha, dizem que no nada feio. Mas esta luz apagar-se-ia no dia l de Outubro e Boris nunca mais a veria. Considerou com respeito uma mancha de luz estendida na mesa e pensou que fora culpado. Sempre tratara os objectos, garfos, colheres, como se fossem indefinidamente renovveis: era um erro grave; havia um nmero finito de bares, cinemas, casas, cidades e aldeias e, a cada um, o mesmo indivduo s podia ir um certo nmero de vezes.
Quer que ligue o rdio? perguntou o patro. No, obrigado. Estou bem assim. No momento da sua morte, em 42, teria almoado 365 x 22, isto , 8030, contando as refeies da primeira infncia. E se se admitisse que tinha comido omeletas razo de l por 10, teria engolido 803 omeletas. Somente 803?, pensou com espanto. No, h tambm os jantares; logo, 16 060 refeies e 1606 omeletas. Como quer que fosse, para um amador no era considervel. E os cafs, continuou. Pode-se contar o nmero de vezes que irei ainda ao caf: admitamos que v duas vezes por dia e seja chamado daqui a um ano, isso d 730 vezes. 730!, como pouco! Ficou impressionado mas no particularmente surpreso, pois sempre soubera que morreria cedo. Dissera a si prprio mais de uma vez que morreria tuberculoso ou assassinado por Lola. Mas no fundo nunca duvidara de que devia perecer na guerra. Trabalhava, preparava a sua licenciatura, mais por passatempo, porm, como as raparigas que J E A N-P AUL SARTRE frequentam cursos da Sorbona enquanto esperam o casamento. Engraado, pensou: Houve pocas em que as pessoas estudavam Direito ou Filosofia com o fim de ter um escritrio de notrio aos 40 anos ou de se aposentar como professor aos 60. de perguntar o que podiam ter na cabea. Gente que tinha frente de dez a quinze mil noitadas no caf, quatro mil omeletas, duas mil noites de amor! E, se deixavam um lugar do seu agrado, podiam dizer, sem receio de errar: voltaremos no prximo ano ou daqui a dez anos. Deviam ter feito tolices, sentenciou com severidade. No possvel orientar a vida com quarenta anos de antecedncia. Ele era mais modesto: arquitectava projectos para dois anos; depois, tudo estaria acabado. preciso ser modesto. Um junco deslizou lentamente pelo rio Azul e Boris ficou triste de repente. No iria nunca ndia, nem China, nem ao Mxico, nem mesmo a Berlim, a sua vida era mais modesta do que desejara. Alguns meses na Inglaterra, Laon, Biarritz, Paris e h quem d a volta ao mundo! Uma s mulher. Era uma vidinha de nada; j parecia terminada, pois sabia de antemo o que no conteria. preciso ser modesto. Endireitou-se, bebeu um gole de rum e pensou: Melhor; assim, no se corre o risco de se esbanjar. Outro rum, patro. Ergueu a cabea e observou as lmpadas elctricas com ateno. O relgio deu horas sua frente, em cima do espelho; via neste o seu rosto. Pensou: So nove e quarenta e cinco; pensou: s dez horas e chamou a criada. A mesma coisa.
A criada saiu e voltou com uma garrafa de conhaque e um pires. Encheu o copo de Philippe e colocou o pires PENA SUSPENSA em cima dos outros trs. Sorria com ironia, mas Philippe olhou-a nos olhos com lucidez; pegou no copo com mo firme, bebeu um gole e largou-o sem tirar os olhos dos dela. Quanto? Quer pagar? Imediatamente. Pois so doze francos. Deu-lhe quinze. Pensou: No devo mais nada a ningum. E riu um pouco por trs da sua mo. Pensou: A ningum! Viu-se rir no espelho, e isso deu-lhe vontade de rir. Ao soarem as dez horas, levantar-se-ia, arrancaria a sua imagem do espelho e o martrio. Por ora, sentia-se alegre, considerava a situao como um diletante. O caf era acolhedor, estava em Cpua, o banco era mole como um colcho de penas, ele afundava-se nele, uma musicazinha vinha detrs do balco e tambm um rudo de talheres que lhe lembravam os sinos das vacas em Seelisberg. Via-se no espelho, poderia ficar assim uma eternidade a olhar-se e a ouvir a msica. s dez horas. Levantar-se-ia, pegaria na sua imagem com as mos e arranc-la-ia do espelho como uma pele morta, como uma belida dos olhos. Os espelhos operados da catarata... Cataratas do dia. Nos espelhos operados da catarata. Ou ento: O dia transforma-se em catarata no espelho operado da catarata. Ou ainda: Nigara do dia em catarata no espelho operado da catarata. J E A N-P AUL SARTRE As palavras caram em p e ele agarrou-se ao mrmore frio, o vento leva-me, havia aquele gosto a lcool viscoso na garganta. O MRTIR. Olhou-se no espelho e pensou que olhava para o mrtir; sorriu para si mesmo e saudou-se. Dez menos dez, ah!, pensou com satisfao: Acho que o tempo custa a passar. Cinco minutos, uma eternidade. Mais duas eternidades sem se mexer, sem pensar, sem sofrer, contemplando o belo rosto abatido do mrtir, depois o tempo precipitar-se- mugindo num txi, no comboio at Genebra. Ataraxia. Nigara do tempo. Nigara do dia. Nos espelhos operados da catarata. Vou-me embora de txi.
Para Gauburge, para Bibracta. Da qual basta, da qual ata! da qual catarata. Riu, parou de rir. olhou sua volta, o caf cheirava a estao, comboio, hospital; tinha ganas de pedir socorro. Sete minutos. Que seria mais revolucionrio? Pensou: Partir ou no partir? Se partir, fao a revoluo contra os outros; se no partir, fao-a contra mim, mais forte. Preparar tudo, roubar, mandar fazer documentos falsos, romper com tudo e com todos e no ltimo momento, pof... j no parto, boa noite! A liberdade ao segundo grau; a liberdade contestando a liberdade. s dez menos trs resolveu jogar cara ou coroa. Via nitidamente a entrada da Estao de Orsay, deserta e inundada de luzes, e a escadaria que se afundava no solo, no fumo das locomotivas, tinha um gosto PENA SUSPENSA a fumo na boca, pegou na moeda de dois francos, coroa vou, lanou-a para o ar, coroa, eu vou! Coroa, eu vou! Pois ento vou, disse para a sua imagem. No porque deteste a guerra, a famlia, nem mesmo porque tenha resolvido partir: por simples acaso, porque uma moeda caiu de um lado e no do outro. Admirvel, pensou: Estou na ponta extrema da liberdade. O mrtir gratuito; se ela me tivesse visto lanar a moeda para o ar! Um minuto ainda, joguemos aos dados! Ding, jamais, ding, ding, um golpe, ding, de dados, ding, ding, ler, ding, o acaso. Ding! Levantou-se, caminhou direito, colocava os ps um aps outro na frincha do soalho, sentia o olhar da criada nas suas costas, mas no lhe daria motivos para rir. Ela chamou-o: Senhor! Ele voltou-se, trmulo. A sua mala. Merda. Atravessou a sala a correr, apoderou-se da mala e ps-se a titubear. Alcanou penosamente a porta no meio de gargalhadas, saiu, chamou um txi. Levava na mo esquerda a mala e, com a direita, apertava a moeda de dois francos. O automvel parou sua frente. Endereo? O motorista de bigode ostentava uma verruga na face. Rua Pigalle disse Philippe. Cabana Cubana. Perdemos a guerra disse Gomez. Mathieu sabia-o mas pensava que Gomez no o sabia ainda: a orquestra tocava I'm looking for Sallie, os pratos brilhavam sob a lmpada, e a luz dos projectores caa na pista como um luar monstruoso, um luar-reclamo para Honolulu. Gomez estava sentado, o luar jazia sua direita, sua esquerda uma mulher sorria discretamente; ele ia
J E A N-P AUL SARTRE voltar a Espanha e sabia que os republicanos tinham perdido a guerra. Vocs no podem ter a certeza disso. Ningum pode ter a certeza. Sim disse Gomez , estamos convencidos disso. No parecia triste: verificava-o, eis tudo. Olhava Mathieu com um ar calmo, de libertao: Todos os meus soldados tm a certeza de que a guerra est perdida. Mesmo assim lutam? Que quer que eles faam? Mathieu encolheu os ombros. Evidentemente. Pego no meu copo, bebo dois goles de Cbtean-Margaux, dizem-me eles: Eles lutam at ao ltimo homem, no podem fazer outra coisa. Eu bebo um gole de Cbteau-Margaux, encolho os ombros, digo: Evidentemente. Patife! Que isso? indagou Gomez. Os filetes Rossini respondeu o mordomo. Ah!, sim, nada mau. Os filetes esto na mesa: um para ele, outro para mim. Tem o direito de saborear o dele, tem o direito de o mastigar com os seus belos dentes brancos, tem o direito de olhar para a mulher sua esquerda e de pensar: bela mulher! Eu no. Se como, uns quantos espanhis mortos saltam-me garganta. No paguei. Beba! disse Gomez. Beba! Pegou na garrafa e encheu o copo de Mathieu. Voc que manda disse Mathieu com um risinho. Pegou no copo e esvaziou-o. O filete encontrou-se repentinamente no seu prato. Pegou no garfo e na faca: PENA SUSPENSA Se a Espanha quem manda murmurou. Gomez no pareceu ouvi-lo. Enchera bem o copo. Bebeu e sorriu: Hoje, filetes; amanh, gro-de-bico. a ltima noite que passo em Frana. E ter sido o nico bom jantar. Como? disse Mathieu. E em Marselha? Sarah vegetariana. Olhava para a frente, era simptico. Disse: Quando obtive esta licena, h trs semanas que Barcelona estava sem fumo. Isto no lhe diz nada? Toda uma cidade que no deita fumo? Voltou os olhos para Mathieu e subitamente pareceu v-lo; o seu olhar assumiu um aspecto prprio bem desagradvel: Vocs vero tudo isso disse. No verdade! disse Mathieu. A guerra ainda pode ser
evitada. Naturalmente! A guerra sempre pode ser evitada. Esboou uma gargalhada e acrescentou: Bastaria abandonar os Checos. No, meu caro, pensou Mathieu, no. Os Espanhis podem dar-me lies sobre a Espanha, o seu sector. Mas para lies checoslovacas exijo a presena de um checo. Francamente, Gomez disse Mathieu , devem auxili-los? No h muito, os comunistas reclamavam autonomia para os Sudetas. Deve-se auxili-los? atalhou Gomez imitando Mathieu. Devia auxiliar-nos? Devia-se auxiliar os Austracos? E vocs? Quem os auxiliar quando chegar a vossa vez? No se trata de ns disse Mathieu. J E A N-P AUL SARTRE Trata-se de vocs. De quem se trataria seno de vocs? Gomez disse Mathieu , coma o seu filete. Compreendo que voc nos deteste. Mas afinal a sua ltima noite, a carne arrefece no seu prato, uma mulher sorri para si, e, afinal de contas, eu era intervencionista. Gomez acalmara-se: Eu sei, eu sei disse sorrindo. E depois continuou Mathieu na Espanha a situao era clara. Mas quando me fala na Checoslovquia, j no o acompanho, porque vejo a coisa com menos nitidez. H uma questo de direito que no consigo deslindar; sim, porque, afinal, e se os alemes dos Sudetas no querem ser checos? Deixe essas questes de direito disse Gomez, encolhendo os ombros. Esto a procurar uma razo para brigar? H uma s; se no o fizerem ficaro fritos. O que Hitler quer no Praga, nem Viena, nem Dantzig: a Europa. Daladier olhou para Chamberlain, olhou para Halifax e depois desviou os olhos para um relgio dourado em cima de uma msula; os ponteiros marcavam dez e trinta e cinco, o txi deteve-se em frente da Cabana Cubana. Georges virou-se de costas e gemeu um pouco, os roncos do vizinho impediam-no de dormir. No posso seno repetir o que j disse observou Daladier. O Governo francs assumiu compromissos com a Checoslovquia. Se o Governo de Praga continuar a recusar as propostas alemes e se, em consequncia dessa recusa, for vtima de uma agresso, o Governo francs ver-se- na obrigao de agir. PENA SUSPENSA Tossiu, olhou para Chamberlain e esperou. Sim disse Chamberlain. Sim, evidentemente. Pareceu disposto a acrescentar algumas palavras, mas as
palavras no lhe ocorreram. Daladier esperava, fazendo crculos no tapete com a ponta do p. Acabou erguendo a cabea e perguntando com voz cansada: Qual seria, nessa eventualidade, a posio do Governo britnico? France, Maud, Doucette e Ruby levantaram-se e agradeceram. Ouviram-se aplausos fracos nas primeiras filas e o pblico dispersou no meio de um arrastar de cadeiras. Maud procurou Pierre com os olhos, mas ele desaparecera. France voltou-se para ela, tinha o rosto abrasado e sorria. Uma boa festa disse , realmente uma linda noitada. A guerra estava ali na pista branca, era o brilho morto do luar artificial, a falsa acidez do clarinete e aquele frio sobre a toalha, era o cheiro do vinho tinto, e aquela velhice secreta, dos traos de Gomez. A guerra; a morte; a derrota. Daladier fixava Chamberlain, lia a guerra nos olhos dele. Halifax fixava Bonnet, Bonnet fixava Daladier; calavam-se e Mathieu via a guerra no seu rosto, no molho escuro e mosqueado do filete. E se ns tambm perdssemos a guerra? Ento a Europa seria fascistizada disse Gomez com displicncia. No uma m preparao para o comunismo. Que ser de si, Gomez? Penso que os tipos me mataro nalgum quarto de hotel ou ento irei passar fome nos Estados Unidos. Que importa? Terei vivido. J E A N-P AUL SARTRE Mathieu contemplou Gomez com curiosidade: E no lamentar nada? Nada. Nem a pintura? Nem a pintura. Mathieu meneou a cabea. Gostava dos quadros de Gomez. No poderei pintar. Nunca mais. Porqu? No sei. E uma coisa fsica. Perdi a pacincia: seria chato. Mas na guerra tambm preciso ser paciente. No a mesma pacincia. Calaram-se. O chefe de mesa trouxe crepes num prato de estanho, regou-os com rum e Calvados e acendeu o fsforo para inflamar o molho. Um espectro de chamas flutuou por um instante no ar. Gomez disse repentinamente Mathieu , voc forte; sabe por que se bate. Quer dizer que voc no sabe? Sim. Acho que sei. Mas no pensava em mim. H tipos que
possuem a vida, Gomez. E ningum faz nada por eles. Ningum. Nenhum governo, nenhum regime. Se o fascismo substitusse a Repblica, neste pas, eles nem sequer perceberiam. Por exemplo, um pastor das Cvennes. Imagina que ele sabe por que se bate? No meu pas, so os pastores os mais resolutos. Por que se batem? Depende. Conheci alguns que se batiam para aprender a ler. PENA SUSPENSA Em Frana todos sabem ler disse Mathieu. Se eu encontrasse no meu regimento um pastor das Cvennes e o visse morrer a meu lado para defender a minha Repblica e as minhas liberdades, juro que no me sentiria nada orgulhoso. Gomez, no se envergonha, por vezes, desses indivduos todos que morreram por si? Isso no me perturba. Arrisco a pele como eles. Os generais morrem na cama. No fui sempre general. De modo nenhum a mesma coisa. No tenho piedade deles disse Gomez. Estendeu a mo por cima da toalha e apertou o antebrao de Mathieu: Mathieu disse em voz baixa e compassada , a guerra bela. O seu rosto resplandecia. Mathieu tentou libertar-se, mas Gomez apertou-lhe mais o brao e acrescentou: Gosto da guerra. No havia mais nada a dizer. Mathieu sorriu embaraado. Gomez largou-o. Voc impressionou fortemente a vizinha disse Mathieu. Gomez deu uma olhadela para a esquerda por entre os seus belos clios. Sim? Convm malhar o ferro enquanto est quente. Esta pista para danar? Certamente. Gomez levantou-se, abotoando o casaco. Dirigiu-se para o lado da actriz e Mathieu viu-o curvar-se diante dela. Ela reclinou-se para trs e olhou-o com um sorriso cordial, depois afastaram-se danando. Danavam; ela no cheirava a negra, devia ser da Martinica. Philippe pensava: MartiJ E A N-P AUL SARTRE niquense, e foi a palavra malabarina que lhe veio aos lbios. Murmurou: Minha bela malabarina. Ela respondeu: Dana bem. Havia na sua voz uma musiquinha de pfaro, no era desagradvel. Fala muito bem o francs disse ele. Ela olhou-o indignada:
Nasci em Frana. No faz mal. Fala muito bem francs, mesmo assim. Pensou: Estou embriagado e riu. Ela disse-lhe, sem raiva: Est completamente bbado. Sim... No sentia mais o cansao, teria danado at ao amanhecer mas resolveu dormir com a negra, era mais srio. O que havia de mais gostoso na embriaguez era aquele poder que ela lhe outorgava sobre os objectos. No era necessrio tocar neles, um simples olhar bastava para que os possusse; possua aquela fronte, aqueles cabelos negros, acariciava os olhos naquele rosto liso. Alm, tudo era vago, brumoso; havia um homem gordo bebendo champanhe e pessoas, que, espojando-se umas nas outras, no distinguia muito bem. A dana terminara; foram sentar-se. Como dana bem disse ela. Bonito como , deve ter tido mulheres. Sou virgem! disse Philippe. Mentiroso! Ele ergueu a mo: PENA SUSPENSA Juro que sou virgem. Juro-o sobre a cabea de minha me. Ah! disse ela , ento as mulheres no lhe interessam. No sei. H que ver. Olhou-a, possua-a com os olhos, fez uma careta e disse: Conto contigo. Ela soprou-lhe o fumo do cigarro para o rosto: Vers o que sei fazer. Ele agarrou-a plos cabelos e puxou-a para si; de perto ela cheirava um pouco a gordura. Beijou-a ao de leve nos lbios. Ela disse: Virgem! Vou ganhar o grande prmio. Ganhar? Perde-se sempre. No a desejava absolutamente nada. Mas estava contente porque ela era bonita e no o intimidava. Sentia-se completamente vontade e pensou: Sei falar com as mulheres. Largou-a, ela endireitou-se; a mala de Philippe cara no cho. Cuidado! disse ele , ests bbada. Ela levantou a mala: Que h a dentro? No lhe toques: uma mala diplomtica. Quero saber o que tem dentro disse ela, fazendo-se de criana. Queridinho, diz-me o que tem dentro. Ele quis arrancar-lhe a mala, mas ela j a tinha aberto e visto um pijama e uma escova de dentes. Um livro! disse, descobrindo o Rimbaud. Que livro ? E um livro de um tipo que se foi embora. J E A N-P AUL SARTRE
Para onde? Que te interessa? Foi-se embora. Pegou no livro e tornou a p-lo na mala. de um poeta disse com ironia. Compreendes melhor assim? Claro. Porque no disseste logo? Ele tornou a fechar a mala, pensou: No parti, e a sua embriaguez dissipou-se. Porqu? Porque no parti? Agora distinguia bem o senhor gordo; no era assim to gordo e tinha olhos intimidantes. Os cachos humanos desfizeram-se sozinhos, havia mulheres pretas e brancas, homens tambm. Teve a impresso de que o examinavam com insistncia. Porque que estou aqui? Como que entrei? Porque no parti? Havia um buraco na sua memria: jogara uma moeda ao ar, chamara um txi e pronto: agora estava sentado quela mesa, diante de uma taa de champanhe com aquela negra que cheirava a cola de peixe. Ele olhava para o Philippe que lanara a moeda, tentava decifr-lo, pensava: Sou um outro. No me conheo. Voltou-se para a negra: Porque ests a olhar para mim? disse ela. Por nada. Achas-me bela? Assim-assim. Ela pigarreou e os seus olhos faiscaram. Levantou o traseiro a algumas polegadas do assento, apoiando as mos na mesa. Se me achas feia, posso ir-me embora: no somos casados. Ele tirou do bolso trs notas de mil francos amarrotadas. Toma disse. E fica. PENA SUSPENSA Ela pegou nas notas, desamarrotou-as, alisou-as e tornou a sentar-se, rindo: Um menino mau, eis o que tu s. Um abismo de vergonha abrira-se a seus ps; era s deixar-se cair. Esbofeteado, batido, expulso, nem sequer se tinha ido embora. Debruava-se sobre o buraco e sentia vertigens. A vergonha esperava-o no fundo; bastava-lhe escolher a vergonha. Fechou os olhos e todo o cansao do dia se reflectia nele. A fadiga, a vergonha, a morte. Escolher a vergonha. Porque no parti? Porque escolhi no partir? Parecia-lhe que carregava o mundo aos ombros. Tu no falas muito disse ela. Ele ps-lhe o dedo sob o queixo. Como te chamas? Flossie. No um nome malabarino. J te disse que nasci em Frana disse ela irritada.
Pois bem, Flossie, j te passei trs mil. No h-de querer que converse ainda por cima. Ela encolheu os ombros e virou a cabea. O abismo sombrio continuava a seus ps com a vergonha no fundo. Ele olhava-a, debruava-se em cima dele e de repente entendeu, a angstia torceu-lhe o corao: uma armadilha, se cair nela no poderei suportar-me mais. Nunca mais. Endireitou-se, pensou com fora: Foi porque estava embriagado que no parti. E o abismo fechou-se: escolhera. Foi porque estava embriagado que no parti. Roara na vergonha; tivera muito medo; agora escolhera no passar mais pela vergonha. Nunca mais. Devia tomar o comboio, mas estava bbedo de mais. Partirs amanh disse ela gentilmente. J E A N-P AUL SARTRE Ele fremiu: Porque dizes isso? Pois quando se perde um comboio toma-se o seguinte disse ela, espantada. J no parto atalhou ele, franzindo as sobrancelhas. Mudei de ideias. Sabes o que significa um sinal? Uni sinal? O mundo est cheio de sinais. Tudo sinal. preciso saber decifr-los. Devias partir, mas embriagas-te, j no partes; porque no partiste? que no devias partir. Eis um sinal. Tinhas uma coisa mais importante para fazer aqui. Ela sacudiu a cabea. verdade. verdade o que ests a dizer. Coisa mais importante a fazer. A multido na Bastilha, l que preciso falar. In loco. Dilacerar-se se necessrio. Orfeu. Abaixo a guerra! Quem poder dizer que sou um covarde? Verterei o meu sangue por todos eles, por Maurice e Zzette, por Pitteaux, pelo general, por todos esses homens cujas unhas vo dilacerar. Voltou-se para a negra e olhou-a com ternura: uma noite, uma ltima noite. A minha primeira noite de amor. A minha ltima noite. Tu s linda, Flossie. Ela sorriu: Poderias ser gentil, se quisesses. Vem danar. Serei gentil at o galo cantar. Danavam. Mathieu contemplava Gomez; pensava: A sua ltima noite e sorria. A negra gostava de danar, fechava os olhos, Philippe danava, pensava: A minha ltima noite, minha primeira noite de amor. No sentia j vergonha; estava cansado, fazia calor; amanh verterei PENA SUSPENSA o meu sangue pela paz. Mas a alvorada ainda estava longe. Danava, sentia-se confortvel, e justificado; achou-se
romanesco. As luzes deslizaram ao longo do vago; o comboio reduziu a velocidade, guinchos e sacudidelas, parou, a luz invadiu tudo. Charles piscou os olhos e largou a mo de Catherine. Laroche-Migennes gritou a enfermeira. Chegmos. Laroche-Migennes? disse Charles. Mas no passmos por Paris. Desviaram-nos observou Catherine. Juntai as vossas coisas gritou a enfermeira , vo desc-los. Blanchard acordara sobressaltado: O qu? O qu? Onde que estamos? Ningum respondeu. A enfermeira explicava: Retomaremos o comboio amanh. Passamos a noite aqui. Doem-me os olhos disse Catherine a rir , essa luz. Ele virou-se para o lado dela, ela ria protegendo a vista com a mo. Juntai as vossas coisas gritava a enfermeira. Juntai as vossas coisas. Inclinou-se sobre um homem calvo, cujo crnio brilhava: Acabou? Um minuto, que diabo! respondeu ele. Depressa, os carregadores esto a chegar. Pronto, pode tirar, cortou-me a vontade. Ela levantou-se, levava a bacia com os braos estendidos; passou por cima dos corpos e dirigiu-se para a porta. J E A N-P AUL SARTRE Podemos dormir sossegados disse Charles. So talvez uma dzia e tm vinte vages. At chegarem aqui... A menos que comecem pela cauda. Charles ps o antebrao diante dos olhos: Onde nos iro enfiar? Nas salas de espera? Acho que sim. Chateia-me um pouco deixar o vago, j arranjara o meu canto. E voc. Eu, desde que esteja consigo... Ei-los gritou Blanchard. Alguns homens entraram no vago. Eram pretos porque voltavam as costas para a luz. As suas sombras recortaram-se na parede; dir-se-ia que entravam aos pares. Fizera-se silncio. Catherine disse em voz baixa: Tinha-lhe dito que comeariam por ns. Charles no respondeu. Viu dois homens curvarem-se sobre um doente e sentiu um n no peito. Jacques dormia, o seu nariz cantava; ela no podia dormir; enquanto ele no voltasse ela no poderia dormir. Exactamente diante dos ps, Charles viu uma
sombra enorme que se dobrava em duas, levavam o companheiro, seria a sua vez depois, a noite, o fumo, o balano, a gare deserta, tinha medo. Havia uma rstia de luz sob a porta, ela ouviu barulho no andar trreo, ele chegara. Reconheceu o passo na escada e a calma invadiu-a; est aqui, em nossa casa, comigo. Mais uma noite. A ltima. Mathieu abriu a porta, fechou-a novamente; abriu as janelas e fechou as persianas ela ouviu o rudo da gua a correr. Vai dormir. Do outro lado desta parede, em casa. a minha vez disse Charles. Peca-lhes que a levem a seguir. PENA SUSPENSA Apertou-lhe fortemente a mo enquanto dois homens se debruavam e ele recebia em cheio, no rosto, um hlito de vinho. Ha! fez o tipo atrs dele. De repente teve medo e manobrou o espelho enquanto o erguiam; queria ver se ela o seguia, mas s pde perceber os ombros do carregador e a sua cara de ave nocturna. Catherine gritou. No obteve resposta. Balouava-se acima da soleira, o tipo dava ordens atrs dele, as suas pernas baixaram, pensou que ia cair. Devagar! disse. Devagar! Mas j via as estrelas no cu escuro, fazia frio. Ela vem a? indagou. Ela quem? , perguntou o tipo de cara de ave nocturna. A minha vizinha. E uma amiga. Passaremos as mulheres depois disse o tipo. No vo para o mesmo local. Charles comeou a tremer. Pensei... Voc tambm no queria que elas urinassem sua frente! Pensei..., pensei disse Charles. Passou a mo pela fronte e subitamente ps-se a gritar: Catherine! Catherine! Catherine! Balouava nos braos deles, via as estrelas, uma lmpada jorrava-lhe nos olhos, e de novo as estrelas, e de novo a lmpada, e ele gritava: Catherine! Catherine! J E A N-P AUL SARTRE Est louco, esse camarada disse o carregador. No vai calar a boca, desgraado? Nem mesmo o apelido dela eu sei disse Charles, com a voz estrangulada. Vou perd-la para sempre. Depuseram-no no cho, abriram uma porta, ergueram-no de novo, ele viu um tecto amarelo e sinistro, ouviu a porta fechar-se,
estava preso na armadilha. Safados! gritou, enquanto o largavam no cho. Safados! Eh! Devagar! disse o tipo com cara de ave nocturna. Deixa observou o outro , ests a ver que o miolo no funciona. Ouviu os passos afastarem-se, a porta reabriu-se e tornou a fechar-se. Como o mundo pequeno disse a voz de Blanchard. No mesmo instante Charles recebeu um jacto de gua na cara. Mas no disse nada, ficou imvel como um morto e fixava o tecto com os olhos bem abertos, enquanto a gua lhe escorria pelas orelhas e pelo pescoo. Ela no queria dormir, permanecia imvel, de costas, no quarto sombrio; ele vai deitar-se logo, logo estar a dormir e eu acordada. forte, puro, soube esta manh que partia para a guerra e nem sequer piscou os olhos. Mas agora est desarmado; vai dormir, a sua ltima noite. Ah!, pensou, como romanesco! Era um quarto perfumado e morno, com luzes acetinadas e flores por toda a parte. Entre disse ela. Gomez entrou. Olhou sua volta, viu uma boneca sobre o sof e pensou em Teruel. Dormira num quarto PENA SUSPENSA igualzinho, com candeeiros, bonecas e flores, mas sem perfume e sem tecto: havia um buraco no centro do soalho. Porque sorri? Est-se bem aqui. Ela aproximou-se: Se o quarto lhe agrada pode voltar sempre que lhe apetecer. Parto amanh disse Gomez. Amanh? Para onde? Ela olhava-o com os seus belos olhos inexpressivos. Para Espanha. Para Espanha? Mas ento... Sim. Sou soldado em licena. De que lado est? De que lado quer que esteja? De Franco? Ora! Ela ps-lhe os braos em volta do pescoo: Meu belo soldado! Tinha um hlito delicioso; ele beijou-a. Uma nica noite disse ela. No muito. Por uma vez encontro o homem que me agrada! Voltarei disse ele. Quando Franco tiver ganho a guerra... Ela beijou-o ainda, e desenvencilhou-se docemente:
Espere-me. H gin e usque no aparador. Abriu a porta da casa de banho e desapareceu. Gomez foi at ao aparador e encheu uni copo de gin. Os camies rodavam, as vidraas tremiam, Sarah, sobressaltada, sentou-se na cama. Mas quantos!, pensou. Nunca mais J E A N-P AUL SARTRE acabam! Pesados camies passavam, j camuflados, com toldos cinzentos, riscados de verde e castanho; deviam estar repletos de homens e de armas. Ela pensou: a guerra, e ps-se a chorar. Catherine! Catherine! Durante dois anos conservara os olhos secos; e quando Gomez subira para o comboio, no tivera uma lgrima. Agora as lgrimas corriam. Catherine! Os soluos soergueram-na, caiu sobre o travesseiro, chorava mordendo-o, para no despertar o menino. Gomez bebeu um gole de gim e achou-o bom. Deu alguns passos no quarto e sentou-se no sof. Com uma das mos segurava o copo, com a outra agarrou a boneca pelo pescoo e instalou-a sobre o joelho. Ouvia correr a gua na banheira, uma doura conhecida subia-lhe ao longo das costelas, como duas mos sedosas. Estava feliz. Bebeu, pensou: Sou forte. Os camies rodavam, as janelas tremiam, a gua da torneira corria, Gomez pensava: Sou forte, gosto da vida, e arrisco a vida, espero a morte amanh, daqui a pouco, e no a receio, gosto do luxo, e vou encontrar de novo a misria e a fome, sei o que quero, sei por que me bato, mando e obedecem--me, renunciei a tudo, pintura, glria, e sou feliz. Pensou em Mathieu: No gostaria de estar na pele dele! Ela abriu a porta, estava nua sob o roupo cor-de-rosa. Disse-lhe: Aqui estou. Oh!, merda disse ela , oh!, merda! Passara uma meia hora na banheira a lavar-se, a perfumar-se, porque os brancos nem sempre gostavam do seu cheiro, viera para junto dele, sorridente, de braos abertos e ele dormia, nu, na cama, a cabea enfiada no travesseiro. Agarrou-o plos ombros e sacudiu-o furiosamente: PENA SUSPENSA Vais acordar, palerminha, vais acordar! Ele abriu os olhos e olhou-a com os seus olhos vagos. Pousou o copo no aparador, a boneca no sof, levantou-se sem pressa e tomou-a nos braos. Estava feliz. Podes ler isto? indagou Gros-Louis. O empregado empurrou-o. E a terceira vez que perguntas. J te disse que vais para Montpellier. E onde o comboio para Montpellier? Parte s quatro horas da manh; ainda no est formado.
Gros-Louis encarou-o inquieto: Ento? O que e que eu devo fazer? Enfia-te na sala de espera e dorme uma soneca at s quarto horas. J tens bilhete? No disse Gros-Louis. Vai busc-lo, ento. No, por a no. Ah!, que pedao de asno, naquele postigo, palerma. Gros-Louis dirigiu-se ao guichet. Um empregado de culos dormitava atrs do vidro. Eh! disse Gros-Louis. O empregado sobressaltou-se. Vou para Montpellier disse Gros-Louis. Montpellier? O empregado parecia espantado; sem dvida no estava bem acordado. Uma suspeita, entretanto, passou pela cabea de Gros-Louis. Mostrou a caderneta militar. Montpellier disse o empregado. Um quarto de passagem, so quinze francos. Gros Louis estendeu-lhe os cem francos da mulher. J E A N-P AUL SARTRE E agora disse. Que que eu fao? Vai para a sala de espera. A que horas sai o comboio? Quatro. No sabe ler? No disse Gros-Louis. Hesitava. Perguntou: verdade que vai haver guerra? O empregado encolheu os ombros. Que quer que eu saiba? No est escrito no horrio, pois no? Levantou-se, foi at ao fundo do hall. Fingiu consultar papis, mas ao fim de um momento sentou-se de novo, apoiou a cabea nas mos e voltou a dormitar. Gros-Louis olhou sua volta. Desejaria encontrar um camarada que o informasse acerca dessas histrias da guerra, mas o hall estava deserto. Bom, vou para a sala de espera. Atravessou o hall arrastando os ps: tinha sono e as coxas doam-lhe. Deixa-me dormir gemeu Philippe. Uma ova! disse Flossie. Virgem! Tens de aguentar vais dar-me sorte. Ele empurrou a porta e entrou na sala. Havia uma quantidade de gente a dormir nos bancos e muitas malas e embrulhos no cho. A luz era triste; uma porta envidraada abriu-se l ao fundo, para a escurido. Aproximou-se de um banco e sentou-se entre duas mulheres. Uma delas suava e dormia de boca aberta. O suor corria-lhe pelo rosto desenhando riscos cor-de-rosa. A outra abriu os olhos e olhou para ele.
Fui chamado explicou Gros-Louis. Preciso de ir a Montpellier. PENA SUSPENSA A mulher afastou-se e deitou-lhe um olhar de censura. Gros-Louis pensou que ela no gostava de soldados, mas mesmo assim perguntou-lhe: verdade que vai haver guerra? Ela no respondeu. Reclinara a cabea e tornara a dormir. Gros-Louis tinha receio de dormir. Disse: Se dormir, no acordarei. Estendeu as pernas; comeria alguma coisa, po com salame, por exemplo, ainda tinha dinheiro, mas era noite, estava tudo fechado. Disse: Com quem que estamos em guerra? Devia ser com os Alemes. Talvez por causa da Alscia-Lorena. Havia um jornal a seus ps, no cho, pegou nele, depois pensou na mulher que lhe tinha ligado a cabea, e disse: No deveria ter partido. Sim, mas para onde iria? J no tenho dinheiro. Na caserna vo-me dar de comer. No gostava, porm, de casernas, nem de salas de espera. Subitamente, sentiu-se triste e vazio. Tinham-no embebedado e batido, e agora mandavam-no para Montpellier. Disse: Bolas!, j no percebo nada. porque no sei ler. Toda aquela gente que dormia sabia mais do que ele; tinham lido o jornal, sabiam porque ia haver guerra. E ele estava sozinho dentro da noite, sozinho, miservel, no sabia nada, no percebia nada, era como se fosse morrer. Estava ali escrito. Tinham escrito tudo: a guerra, a previso do tempo, o preo das coisas, o horrio dos comboios. Abriu o jornal e olhou. Viu milhares de manchinhas pretas, assemelhavam-se aos rolos de realejos, com aqueles furos no papel, que fazem barulho quando se d manivela. Quando se olha durante muito tempo faz tonturas. Tambm possua uma fotografia: um tipo bem vestido e bem penteado a rir. Deixou cair o jornal e ps-se a chorar. SEGUNDA-FEIRA, 26 DE SETEMBRO D ezasseis horas e trinta. Toda a gente olha para o cu, eu olho para o cu. Dumur diz: No esto atrasados. J preparou a kodak, contempla o cu, faz uma careta por causa do sol. O avio ora escuro, ora brilhante, cresce, mas o rudo continua idntico, um belo rudo que d prazer. Eu digo: No empurrem. Esto a todos, atrs de mim, a empurrarem-se. Volto-me: inclinam a cabea para trs, fazem caretas, so verdes ao sol e os seus corpos tm movimentos vagos como os das rs decapitadas. Dumur diz: Um dia estaremos assim de nariz para o ar, num campo; s que estaremos vestidos de caqui e o avio ser um Messerschmidt. Eu digo: No vai ser amanh, com todos esses maricas. O avio traa crculos no
cu, desce, desce, toca o solo, salta, corre na erva, pra. Corremos para o avio, somos cinquenta, Sarraut corre nossa frente, curvado, h uma dzia, de tipos de chapu de coco que correm no relvado torcendo os ps, toda a gente J E A N-P AUL SARTRE se imobiliza, o avio est parado, olhamo-lo em silncio, a porta continua fechada, dir-se-ia que esto todos mortos l dentro. Um homem vestido de azul chega com uma escada e encosta-a carlinga do avio, a porta abre-se, um tipo desce, depois outro, e, por fim, Daladier. Na minha cabea sinto o corao a bater. Daladier ergue os ombros e baixa a cabea. Sarraut aproxima-se e diz: Ento? Daladier tira a mo do bolso e faz um gesto vago. Anda depressa, cabea baixa, a malta corre atrs dele e cerca-o. No me mexo, sei que no dir nada. O general Gamelin salta do avio. vivo, cala lindas botas e tem uma cara de buldo-gue. Olha para a frente com um ar de juventude e energia. Ento? indaga Sarraut. Ento, general, a guerra? . Ser o que Deus quiser. i Sinto a boca seca, rebento! Grito para Dumur: Vou'l -me embora, tira as fotografias sozinho. Corro at sada, corro pela estrada, tomo um txi, berro: Para o Humnit. O motorista sorri, eu sorrio, ele diz: Ento, camarada? Respondo: J est! Desta vez no escapam; no puderam recuar. O txi anda a toda a velocidade, olho para as casas e pessoas. Estas no sabem nada, no prestam ateno ao txi e o txi anda no meio delas, levando algum que sabe. Ponho a cabea para fora, tenho ganas de lhes gritar que a coisa aconteceu. Salto do txi, pago, subo a escada a correr. Esto todos presentes: Dupr, Charvel, Renard, Chabot. Em mangas de camisa. Renard fuma, Charvel escreve, Dupr est janela. Olham-me com espanto. Digo-lhes: i l PENA SUSPENSA Venham, desam comigo, a rodada minha. Continuam a olhar para mini; Charvel levanta a cabea e fixa o olhar em mim. Digo: Pronto! Desta vez a guerra! Desam, a minha rodada! O seu chapu lindo disse a patroa. No ? disse Flossie. Ela v-se ao espelho no h ali e diz com satisfao: Tem plumas. Tem mesmo! disse a patroa. H algum no seu quarto,
Madeleine no pde fazer a cama. Eu sei. No faz mal. Eu mesma a farei. Subiu a escada e empurrou a porta do quarto. As persianas estavam fechadas, o quarto cheirava a noite. Flossie fechou a porta devagar e foi bater na 15. Quem ? perguntou a voz rouca de Zou. Flossie. Zou veio abrir, estava em trajes menores. Entra depressa. Flossie entrou. Zou ps os cabelos para trs, colocou-se no meio do quarto e esforou-se por enfiar os seios pesados dentro do soutien. Flossie pensou que ela deveria rapar as axilas. S agora que te levantas? Deitei-me s seis. Que que h? Vem ver o meu rapazinho. Que histria essa? Vem ver o meu rapazinho. Zou enfiou um roupo e acompanhou-a. Flossie f-la entrar no quarto, pondo um dedo nos lbios. No se v nada disse Zou. J E A N-P AUL SARTRE Flossie empurrou-a para a cama e cochichou: Olha. Inclinara-se e Zou ps-se a rir silenciosamente. Merda! disse. Merda! E uma criana! Chama-se Philippe. Como bonito! Philippe dormia de costas; parecia um anjo. Flossie contemplou-o num misto de encantamento e rancor. mais loiro que eu disse Zou. virgem disse Flossie. Zou fixou-a, sorrindo maliciosamente: Era. O qu? Tu dizes: virgem. Eu digo: era virgem. Pois olha: sabes, acho que continua a s-lo. No me digas! Est a dormir assim desde as duas da manh. Philippe abriu os olhos, olhou para as mulheres que se debruavam sobre ele, disse hum!, e virou-se de barriga para baixo. Olha! disse Flossie. Puxou as cobertas; o corpo surgiu, branco e nu. Zou arregalou os olhos: Miam, miam! fez ela. Cobre j isso, seno fao
disparates. Flossie passou ao de leve a mo sobre as ancas estreitas do rapaz, sobre as ndegas esguias, depois endireitou as cobertas. Um Noilly-cassis pediu Birnenschatz. Deixou-se cair para o banco e enxugou a testa. Plos espelhos da porta podia vigiar a entrada do escritrio. PENA SUSPENSA Que que quer? perguntou a Neu. A mesma coisa. O criado afastou-se, Neu chamou-o: Traga-me o Information. Olharam-se em silncio. Neu levantou subitamente os braos. Ai, ai, meu pobre Birnenschatz! verdade disse Birnenschatz. O criado encheu os copos e entregou o jornal a Neu. Neu olhou para as cotaes do dia e largou o jornal sobre a mesa. Mau, mau. Evidentemente. Que quer que eles faam? Aguardam o discurso de Hitler. Birnenschatz passeou o olhar melanclico pelas paredes e plos espelhos. Normalmente, gostava daquele caf fresco e macio; hoje, irritava-se por no se sentir vontade. S nos resta esperar continuou. Daladier fez o que pde. Agora esperar. Vamos jantar sem apetite e a partir das oito e trinta ligaremos o rdio e esperamos pelo discurso. Esperar o qu? continuou repentinamente, batendo na mesa. A deciso de um homem. Os negcios esto parados, a Bolsa desmorona-se, os meus empregados perderam a cabea, o pobre See foi chamado: por causa de um s homem; a guerra e a paz esto nas suas mos. Tenho vergonha pela humanidade. Brunet levantou-se. A senhora Samboulier olhou-o; agradava-lhe, devia saber amar bem, surdamente, tranquilamente, com uma lentido de campons. No fica? indagou. Jantaria comigo. J E A N-P AUL SARTRE Apontou para o rdio e acrescentou: Como digestivo ofereo-lhe o discurso de Hitler. Tenho um encontro s sete disse Brunet. E depois, para dizer a verdade, o discurso no me interessa. A senhora Samboulier olhou-o sem entender. Se a Alemanha capitalista quer viver disse Brunet precisa de todos os mercados europeus; necessrio, pois, que elimine pela fora todos os concorrentes industriais. A Alemanha ter de fazer a guerra acrescentou com fora e deve perd-la. Se Hitler tivesse sido morto em 1914,
estaramos exactamente no mesmo ponto. Ento perguntou ele esse negcio da Checoslovquia no um bluff? Talvez seja um bluff na cabea de Hitler, mas o que est na cabea de Hitler no tem a mnima importncia. Ele ainda pode evit-la disse ela. Se quiser poder evit-la. Todos os trunfos esto com ele: a Inglaterra no quer a guerra, os Estados Unidos esto longe de mais, a Polnia est com ele; se ele quisesse seria o dono do mundo sem dar um tiro. Os Checos aceitaram o plano franco-ingls, basta-lhe aceit-lo tambm. Se desse essa prova de moderao... J no pode recuar disse Brunet. Toda a Alemanha est por trs dele, a empurr-lo. Ns podemos recuar. Brunet olhou-a e ps-se a rir. verdade! Tinha-me esquecido de que voc pacifista. Neu virou a caixinha e os domins caram em cima da mesa. PENA SUSPENSA Ai, ai disse. Tenho medo da moderao de Hitler. Imagine s o prestgio que lhe daria! Curvara-se sobre Birnenschatz e cochichava-lhe ao ouvido. Birnenschatz recuou aborrecido. Neu no podia dizer trs palavras sem cochichar com ares de conspirador, enquanto as suas mos se agitavam no ar. Se ele aceitasse o plano franco-ingls, dentro de trs meses Doriot assumiria o poder. Doriot... disse Birnenschatz, encolhendo os ombros. Doriot ou outro. E depois? E ns? indagou Neu, baixando a voz. Birnenschatz fixou o olhar na sua boca dolorosa e sentiu que a clera lhe subia cabea: Tudo ser prefervel guerra. D-me a sua carta, a pequena p-la- no correio. Ele ps o sobrescrito em cima da mesa, entre uma caarola e um prato de estanho: Senhora Ivich Serguine, Rua da Mgisserie, 12, Laon. Odette deu uma olhadela para o endereo mas no fez comentrios. Acabava de amarrar um embrulho. Pronto disse. No se impaciente. A cozinha era branca e limpa, uma enermaria. Cheirava a resina e a mar. Pus duas asas de frango e um pouco da geleia de que voc gosta, umas fatias de po escuro, e umas sanduches de presunto. Na garrafa trmica h vinho. E melhor guard-lo para quando l chegar. Ele procurou-lhe o olhar, mas ela baixou os olhos para o embrulho e parecia muito atarefada. Correu ao apara-
J E A N-P AUL SARTRE dor, cortou um bom pedao de fio e voltou a correr para o embrulho. Est bem amarrado disse Mathieu. A criadinha riu, mas Odette no respondeu. Ps o fio na boca, prendeu-o, apertando os lbios, e virou com presteza o embrulho. O odor a resina encheu repentinamente as narinas de Mathieu e, pela primeira vez, desde a antevspera, pareceu-lhe que ia ter saudades de qualquer coisa. Era a paz daquela tarde na cozinha, aquelas calmas tarefas domsticas, aquele sol laminado pela persiana e que caa em migalhas nos ladrilhos. E, mais alm de tudo isso, a sua infncia, talvez, e certo tipo de vida tranquila e activa que ele recusara de uma vez para sempre. Ponha aqui o dedo disse Odette. Aproximou-se, inclinou-se e apoiou o dedo no fio. Gostaria de dizer algumas palavras ternas, mas a voz de Odette no dava ensejo ternura. Ela ergueu os olhos para ele: Quer ovos cozidos? Pode p-los nos bolsos. Parecia uma menina. No lamentava deix-la. Talvez por ser a mulher de Jacques. Pensou que esqueceria depressa aquela fisionomia to modesta. Mas desejaria que a sua partida custasse um pouco a Odette. No disse , obrigado. Nada de ovos cozidos. Ela entregou-lhe o embrulho: Aqui est! Um bom embrulho. Ele indagou: Acompanha-me estao? Ela sacudiu a cabea: No. Jacques acompanha-o. Creio que ele prefere ficar a ss consigo nos ltimos momentos. Ento, adeus: escrever-me-? PENA SUSPENSA Teria vergonha: escrevo cartas de menina de colgio, com erros de ortografia. No, mas mandar-lhe-ei coisas. Gostaria que me escrevesse. Pois bem, ento, de vez em quando, encontrar um bilhetinho entre as latas de sardinha e o sabonete. Ele estendeu-lhe a mo e ela apertou-a rapidamente. Tinha a mo seca e quente. Ele pensou vagamente: pena. Os dedos compridos escorreram entre os seus como areia clida. Ele sorriu e saiu da cozinha. Jacques, no salo, estava ajoelhado em frente do rdio. Mathieu passou diante da porta e subiu devagar a escada. No se sentia descontente por partir. Ao aproximar-se do seu quarto, ouviu um ligeiro rudo e voltou-se: era Odette. Estava no ltimo degrau, muito plida e olhava para ele. Odette disse ele.
Ela no respondeu, continuava a olh-lo com um ar duro. Ele sentiu-se embaraado e passou o embrulho para o brao esquerdo a fim de recobrar o sangue frio. Odette repetiu. Ela chegou-se a ele, tinha o rosto indiscreto e proftico que ele conhecia. Estava bem perto dele. Fechou os olhos e, de repente, pousou os lbios nos lbios dele. Ele fez um movimento para a tomar nos braos, mas ela escapou-se. Retomara o seu ar modesto; desceu a escada sem virar a cabea. Ele entrou no quarto e colocou o embrulho na mala. Estava to cheia que precisou de lhe pr um joelho em cima para a fechar. Que h? disse Philippe. Soerguera-se sobressaltado e olhava Flossie com terror. Sou eu, meu bebezinho. J E A N-P AUL SARTRE Ele estirou-se outra vez e levou a mo fronte. Gemeu: Que dor de cabea! Ela abriu a gaveta da mesa de cabeceira e tirou um tubo de aspirinas; ele abriu a gaveta do bar, pegou num copo e numa garrafa de Pernod, colocou-os na secretria presidencial e afundou-se na poltrona. O motor do avio girava-Ihe ainda no crnio; tinha s um quarto de hora para se recompor. Ps um pouco de Pernod no copo, pegou no jarro e deixou cair a gua de bem alto. O lquido agitava-se e prateava em vagas sucessivas. Descolou a ponta do cigarro do lbio inferior e lanou-o para o cesto dos papis. Fiz o que pude. Sentia-se vazio. Pensou: A Frana... a Frana... e tomou um gole. Fiz o que pude; Hitler tem a palavra agora. Tomou outro gole, estalou a lngua, pensou: A posio da Frana est nitidamente definida: agora esperar, estava exausto, estendeu as pernas e pensou com uma espcie de satisfao: Agora esperar. Como toda a gente. A sorte est lanada. Ele dissera: Se as fronteiras checas forem violadas, a Frana cumprira a sua palavra. E Chamberlain respondera: Se, em consequncia dessas obrigaes, as foras francesas se comprometessem activamente nas hostilidades contra a Alemanha, ns sentir-nos-amos no dever de as apoiar. Sir Neville Henderson adiantou-se, Sir Horace Wilson acompanhou-o muito teso; Sir Neville Henderson entregou a mensagem ao chanceler do Reich; o chanceler tomou-a e ps-se a l-la. Quando terminou, o chanceler do Reich perguntou a Sir Neville Henderson: Esta a mensagem do senhor Chamberlain? Daladier tomou mais um gole, suspirou e Sir Neville Henderson respondeu com
firmeza: PENA SUSPENSA Sim, a mensagem do senhor Chamberlain. Daladier levantou-se e foi guardar a garrafa de Pernod; o chanceler disse com a sua voz rouca: Podereis considerar o meu discurso desta noite como uma resposta mensagem do senhor Chamberlain. Daladier pensava: Que imbecil! Que imbecil! Que ir dizer esse imbecil? Uma ligeira embriaguez subia-lhe s tmporas. Pensava: Os acontecimentos escapam ao meu controlo. Era como um grande repouso. Pensou: Fiz tudo para evitar a guerra; agora a guerra e a paz no esto j nas minhas mos. No h mais nada a decidir; esperar. Como toda a gente. Sorriu, era o carvoeiro da esquina, tinham-no despojado das suas responsabilidades; a posio da Frana est nitidamente definida... Era um grande repouso. Fixava as flores escuras do tapete, sentia a vertigem subir-lhe cabea. Mas perguntava agora a si mesmo se no fundo no desejava que a enorme torrente o levasse como a uma palha, perguntava-se se no desejava de repente aquelas imensas frias: a guerra. Ele olhou em volta com estupor, e gritou: Eu no parti! Ela fora abrir as persianas, voltou para junto da cama e debruou-se sobre ele. Ela transpirava, ele respirou o seu cheiro a peixe. Que que ests a dizer, pequeno vagabundo? Que que ests a dizer? Pousara sobre o peito dele uma das suas mos pesadas e pretas. O sol fazia brilhar uma das suas faces. Philippe olhou-a profundamente humilhado: ela tinha rugas nos cantos dos olhos e da boca. Era to linda luz do candeeiro, pensou. Ela soprava-lhe no rosto e movia a sua J E A N-P AUL SARTRE lngua rosada entre os lbios. No parti, pensou ele. E disse-lhe: Tu j no s muito nova. Ela teve um ar de despeito e respondeu: No tanto quanto tu, canalha. Ele quis pular da cama, mas ela retinha-o com fora; ele estava nu e desarmado; sentia-se miservel. Meu querido canalha disse ela , querido canalha. As mos escuras desceram ao longo das suas ancas. Afinal, pensou ele, nem a todos acontece perder a virgindade com uma negra. Deixou-se cair de costas e saias pretas e cinzentas rodopiavam-lhe junto ao rosto. O tipo berrava mais baixo atrs dele; era um estertor, uma espcie de gorgolejar. Um sapato
ergueu-se acima da sua cabea, viu uma sola pontiaguda, um pedao de barro colara-se ao salto. A sola pousou-se rangendo, ao lado do seu aparelho: era um sapato pesado, preto, com botes. Ergueu os olhos, viu uma batina e, l em cima, no ar, duas narinas peludas por cima de uma gola. Blanchard soprou-lhe ao ouvido: Deve estar muito mal, o camarada, para que tenham chamado esse fenmeno. Que que h? indagou Charles. No sei, mas Pierre est a dizer que vai esticar o pernil. Charles pensou: Porque no eu? Via a sua vida e pensava: Porque no eu? Dois carregadores passaram perto, reconheceu-os pelas calas; ouvia por trs de si a voz untuosa do padre; o enfermo j no gemia: Talvez tenha morrido, pensou. A enfermeira passou, com uma bacia nas mos. Ele disse timidamente: PENA SUSPENSA A senhora no poderia dar um pulinho at ali, agora? Ela baixou os olhos sobre ele, corando de raiva: Ainda voc: o que quer? No pode mandar algum l, ao canto das mulheres? Ela chama-se Catherine. Ah!, no me aborrea. a quarta vez que me pede isso. Seria simplesmente para lhe perguntar o apelido e dar-lhe o meu: isso no a vai atrapalhar muito. H aqui um agonizante disse ela com violncia. Imagine s se tenho tempo para pensar nas suas tolices. Foi-se e o tipo comeou a gemer; era difcil suport-lo. Charles manobrou o espelho, viu um amontoado de corpos estendidos lado a lado, e o enorme traseiro do padre ajoelhado junto do enfermo. Acima deles havia uma chamin com um espelho emoldurado. O padre ergueu-se e os carregadores inclinaram-se sobre o corpo, levaram-no. Morreu? perguntou Blanchard. O aparelho de Blanchard no possua espelho rotativo. No sei disse Charles. O cortejo passou perto deles, numa nuvem de poeira. Charles tossiu, depois viu o dorso curvado dos carregadores que se dirigiam para a porta. Um vestido turbilhonou a seu lado e imobilizou-se de repente. Ouviu a voz da enfermeira. Dentro disto, no se tem notcias, estamos isolados do mundo. Como vo as coisas, senhor padre? Nada bem. Nada bem. Hitler vai falar esta noite, no sei o que ir dizer, mas creio que a guerra. J E A N-P AUL SARTRE A sua voz caa em camada sobre o rosto de Charles; Charles
ps-se a rir. Porque te ests a rir? perguntou Blanchard. Estou a rir porque o fenmeno disse que vai haver guerra. No acho nada engraado. Eu acho disse Charles. Tero a sua guerra, no escaparo dela. Continuava a rir; a um metro e setenta acima da sua cabea estava a guerra, a tormenta, a honra ultrajada, o dever patritico; mas junto ao solo no havia guerra nem paz; s a misria e a vergonha dos sub-homens, dos podres, dos deitados. Bonnet no a queria, Champetier de Ribes desejava-a; Daladier olhava para o tapete, era um pesadelo, no conseguia livrar-se daquela vertigem que o tomara por detrs das orelhas: que estoure! Que estoure! Que ele a declare esta noite, o lobo mau de Berlim. Esfregou com fora o sapato no soalho; no soalho, Charles sentia a vertigem subir-lhe do ventre cabea: a vergonha, a doce e confortvel vergonha, era s o que lhe faltava! A enfermeira alcanara a porta, pulou por cima de uni corpo e o padre afastou-se para a deixar passar. Minha senhora! gritou Charles. Minha senhora! Ela voltou-se, grande e forte, com um belo rosto, de buo e olhos furiosos. Charles gritou com uma voz clara que ecoou pela sala toda: Minha senhora! Senhora! Depressa, depressa, a bacia. Ei-lo! Ei-lol Empurravam-nos por trs, empurraram o guarda, que recusou um passo abrindo os braos. GritaPENA SUSPENSA ram: Hurra! Ele caminhava a passos duros e calmos, dava o brao mulher, Fred estava comovido, o meu pai, a minha me, o domingo em Greenwich; gritou: Hurra! Era to bom v-los ali, to serenos, quem ousaria ter medo vendo-os no seu passeio da tarde, como velhos esposos muito unidos? Segurou com fora a mala, ergueu-a acima da cabea e gritou: Viva a paz! Hurra! Voltaram-se ambos para o seu lado e Chamberlain sorriu-lhes; Fred sentiu que a calma e a paz desciam at ao fundo do seu corao, estava protegido, governado, reconfortado, e o velho Chamberlain ainda achava um meio para passear tranquilamente nas ruas, como qualquer um, e de sorrir para ele. Toda a gente dava hurras a seu lado, Fred contemplava o dorso magro de Chamberlain, afastando-se no seu passeio de prelado, pensou: E a Inglaterra! e lgrimas molharam-lhe os olhos. Sadie baixou-se e pegou numa fotografia sob os braos do guarda. Para a bicha, minha senhora, para a bicha, como toda a gente. E preciso fazer bicha para comprar o Paris-Soir?
E ento? E mesmo assim, duvido que obtenha! Ela no acreditava no que ouvia. Merda! No vou fazer bicha por causa do Paris--Soir; nunca me aconteceu fazer bicha para comprar o jornal. Virou as costas. O ciclista chegava com o embrulho. Colocou-o na mesa ao lado do quiosque e puseram-se a contar. Os jornais! Os jornais! Formou-se um redemoinho da multido. Ento! disse a vendedora. Deixam-me contar? J E A N-P AUL SARTRE No empurrem, no empurrem disse a senhora bem-vestida , estou a dizer para no empurrarem. No estou a empurrar atalhou o tipinho gordo , empurram-me a mim. E eu disse o magrizela peco-lhe que no seja grosseiro com a minha mulher. A senhora de luto voltou-se para Emilie: a terceira discusso esta manh. Ah! disse Emilie , neste momento os homens andam nervosos. O avio aproximava-se das montanhas; Gomez olhou para elas e depois olhou para baixo, para os rios e prados, havia uma cidadezinha esquerda, tudo era ridculo, to pequeno, era a Frana, verde e amarela, com os seus tapetes de pastagens e os seus riachos tranquilos: Adeus! Adeus! Ia afundar-se nas montanhas, adeus filetes Ros-sini, charutos, mulheres, desceria, planando sobre a terra vermelha, o sangue. Adeus: todos os franceses estavam ali, abaixo dele, na cidade redonda, nos campos, beira da gua. Dezoito e trinta e cinco: eles agitam-se como formigas, aguardam o discurso de Hitler. A mil metros abaixo de mim eles aguardam o discurso de Hitler. Eu no espero nada. Dentro de um quarto de hora no veria mais aqueles doces prados, enormes blocos de pedra separ-los--iam daquela terra de medo e avareza. Dentro de um quarto de hora desceria junto dos homens magros de gestos vivos, olhos duros, dos seus homens. Sentia-se feliz, com um rolo de angstia na garganta. As montanhas aproximavam-se, eram terrosas agora. Pensou: Como vou encontrar Barcelona? Entre disse Zzette. PENA SUSPENSA Era uma mulher um tanto forte e muito bonita, de chapu de palha e tailleur prncipe-de-gales. Olhou em volta, dilatando as narinas, e sorriu gentilmente. Senhora Suzanne Tailleur? Sou eu disse Zzette, intrigada. Levantara-se. Pensou que tinha os olhos vermelhos e
encostou-se janela. A senhora olhava para ela piscando. De perto parecia mais velha. E exausta. No a incomodo? No. Sente-se. A senhora inclinou-se, examinou a cadeira e sentou-se. Mantinha-se bem direita, sem se encostar ao espaldar. Subi bem uns quarenta andares esta manh. E as pessoas nem sempre se lembram de oferecer cadeiras. Zzette percebera que conservava o dedal no dedo. Tirou-o e lanou-o para a cesta da costura. Nesse momento o bife ps-se a crepitar na frigideira. Ela corou e correu a fechar o gs. Mas o cheiro persistia. No quero impedi-la de comer. Ora!, tenho tempo disse Zzette. Olha-a para a senhora e sentia-se ao mesmo tempo embaraada e com vontade de rir. O seu marido foi mobilizado? Partiu ontem, pela manh. Partem todos disse a senhora. terrvel. Deve encontrar-se numa situao material... difcil. Acho que vou voltar ao meu trabalho disse Zzette. Era florista. A senhora meneou a cabea: Terrvel! Terrvel! J E A N-P AUL SARTRE Parecia to sucumbida que Zzette teve um gesto de simpatia: O seu marido partiu tambm? No sou casada. Fixou o olhar em Zzette e acrescentou, com vivacidade: Mas tenho dois irmos que poderiam ser chamados. Que que deseja? perguntou Zzette secamente. A senhora sorriu: No conheo as suas ideias, mas o que lhe vou perguntar no tem nada com poltica. Fuma? Quer um cigarro? Zzette hesitou: Sim, pode ser. Estava em p junto do fogo a gs e as suas mos estavam pousadas na mesa, atrs das costas. O cheiro do bife e o perfume da visitante tinham-se misturado. A mulher estendeu-lhe a cigarreira e Zzette deu um passo frente. A mulher tinha dedos finos e brancos, com unhas bem cuidadas. Zzette pegou num cigarro com os seus dedos avermelhados. Olhava para os seus dedos e para os da mulher e fazia votos para que ela se fosse embora o mais depressa possvel. Acenderam os cigarros e a mulher perguntou: No acha que preciso impedir esta guerra? Por qualquer preo? 'Zzette recuou at ao fogo e olhou-a com desconfiana.
Estava inquieta. Percebeu que havia sobre a mesa umas calas e um par de ligas. No cr que se todas ns unssemos as nossas foras... Zzette atravessou a sala com um ar de indiferena, quando chegou mesa perguntou: PENA SUSPENSA Ns quem? Ns, as mulheres disse a visitante com energia. Ns, mulheres repetiu Zzette. Abriu rapidamente a gaveta e lanou l para dentro as ligas e as calas, depois voltou-se para a interlocutora, aliviada: Ns, mulheres; mas que podemos ns fazer? A mulher fumava como um homem, deitando o fumo pelo nariz; Zzette admirava-lhe o tailler e o colar de jade e parecia-lhe estranho dizer ns. Sozinha, nada poder fazer disse a mulher com bondade. Mas no est s; neste momento h cinco milhes de mulheres que temem pela vida de um ente querido. No andar de baixo h a senhora Panier, o irmo e o marido acabam de partir e ela tem seis filhos. Do outro lado da rua, h a padeira. Em Passy a duquesa de Cholet. Oh!, a duquesa de Cholet... murmurou Zzette. E ento? No a mesma coisa. Porque que no a mesma coisa? O que que no igual? Porque anda de automvel, enquanto as outras tratam elas mesmas da casa? Ah!, minha senhora, sou a primeira a exigir uma melhor organizao social. Mas pensa que a guerra no-la dar? As questes de classe pesam bem pouco em face do perigo que nos ameaa. Somos, antes de mais nada, mulheres, mulheres que so atingidas no que tm de mais sagrado. Suponha que todas damos as mos e gritamos juntas: no. Afinal, a senhora no gostaria de o ver voltar? Zzette sacudiu a cabea. Era uma farsa aquela mulher a trat-la por senhora. J E A N-P AUL SARTRE No se pode impedir a guerra disse. A mulher corou ligeiramente: E porque no? Zzette encolheu os ombros. Aquela senhora queria impedir a guerra, Maurice queria acabar com a misria. No fim, ningum impedia coisa alguma. assim. Ningum pode impedir. No deve pensar assim disse a visitante, censurando-a. So os que pensam assim que fazem com que haja guerra. E, depois, preciso pensar um pouco nos outros. Por mais que a
senhora faa, a senhora no poder deixar de estar solidria com as demais. Zzette no respondeu. Guardava na mo a ponta de cigarro apagada, tinha a impresso de estar no grupo escolar. No pode recusar-me uma assinatura disse a mulher. Vejamos, minha senhora, uma simples assinatura. Tirou da bolsa uma folha de papel e colocou-a sob os olhos de Zzette. Que isso? perguntou Zzette. Uma petio contra a guerra. Colhemos adeses aos milhares. Zzette leu a meia voz: As mulheres de Frana que assinam a presente petio declaram que confiam no Governo da Repblica para salvaguardar a paz por todos os meios. Afirmam a sua convico absoluta de que a guerra, quaisquer que sejam as circunstncias em que ocorra, sempre um crime. H sempre possibilidades de negociao e troca de opinies; que no se apele nunca para a violncia. Pela paz PENA SUSPENSA universal, contra a guerra sob todas as formas. Paris, 22 de Setembro de 1938. Liga das Mes e Esposas Francesas. Virou a pgina: o verso estava coberto de assinaturas, apertadas umas abaixo das outras, horizontais, oblquas, ascendentes, em tinta roxa, em tinta azul. Algumas espraiavam-se em grandes caracteres angulosos, outras eram mesquinhas e pontiagudas, encolhendo-se envergonhadas num cantinho. Ao lado de cada assinatura um endereo: Jeanne Plmeux, Rua d'Aubignac, 6; Solange Pres, Avenida de Saint-Ouen, 142. Zzette percorreu com o olhar todos aqueles nomes de mulheres. Todas se tinham inclinado sobre aquele papel. Umas haviam assinado enquanto a crianada berrava no quarto ao lado, outras num boudoir com uma caneta de ouro. Agora os nomes misturavam-se. Suzanne Tailleur: bastar-lhe-ia pedir uma caneta e ela tambm se tornaria uma senhora, o seu nome exibir-se-ia, importante e melanclico, abaixo dos outros. Que vai fazer com tudo isso? Quando tivermos bastantes assinaturas, mandaremos uma delegao de mulheres levar a petio Presidncia do Conselho. Senhora Suzanne Tailleu. Era a senhora Suzanne Tailleur. Maurice repetia-lhe a cada instante que se devia ser solidrio com a prpria classe. E eis que agora tinha deveres em comum com a duquesa de Cholet. Pensou: Uma assinatura; no lhes posso recusar uma assinatura. Flossie apoiou os cotovelos na almofada e olhou para Philippe: Ento? Que tal?
Serve disse Philippe. Deve ser melhor quando no se est com dores de cabea. JEAN-PAUL SARTRE Preciso de me levantar disse Flossie. Vou comer, depois irei boite. Vens? Estou cansado de mais. Vai sem mim. Esperas-me aqui? Juras que me esperas? Espero disse Philippe, franzindo as sobrancelhas. Vai depressa, eu espero. Ento disse a visitante , a senhora assina? No tenho caneta. A mulher estendeu-lhe uma esferogrfica. Zzette pegou nela e assinou no fim da pgina. Repetiu o nome bem legvel e ps o endereo ao lado da assinatura, depois ergueu os olhos e olhou para a visitante: parecia-lhe que alguma coisa ia acontecer. No aconteceu nada. A mulher levantou-se. Pegou na folha, examinou-a atentamente. Perfeito. O dia est acabado. Zzette abriu a boca, tinha uma quantidade de perguntas para fazer. Mas no lhe ocorreram. Disse apenas: Vai levar isso a Daladier? Naturalmente. Agitou a folha por um instante, depois dobrou-a e f-la desaparecer na bolsa Zzette sentiu um n no peito quando a bolsa se fechou. A mulher levantou a cabea, olhou-a bem nos olhos: Obrigada. Obrigada por ele. Obrigada por todas ns. A senhora uma mulher de corao, senhora Tailleur. Estendeu-lhe a mo: Tenho de me ir embora. Zzette apertou a mo depois de a ter enxugado no seu avental. Sentia-se amargamente decepcionada. PENA SUSPENSA ... tudo? A mulher riu. Os dentes eram como prolas. Zzette repetiu para si mesma: Somos solidrias. Mas as palavras no tinham j sentido. Sim, por enquanto tudo. Abriu a porta, voltou uma ltima vez o rosto sorridente para Zzette e desapareceu. O seu perfume flutuava ainda na sala. Zzette ouviu extinguir-se o rudo dos passos, fungou duas ou trs vezes. Parecia-lhe que lhe haviam roubado alguma coisa Foi at janela, abriu-a e debruou-se no parapeito. Um automvel estava parado junto da calada. A mulher saiu do hotel, abriu a porta e entrou para o carro, que partiu. Fiz um disparate, pensou Zzette. O automvel virou na Avenida de
Saint-Ouen e desapareceu levando a assinatura e a bela senhora perfumada. Zzette suspirou, fechou a janela e abriu o gs. A banha ps-se a crepitar, o cheiro a carne frita sobreps-se ao perfume e Zzette pensou: Se Maurice vier a saber, vai dar bronca. Mam, estou com fome. Que horas so? perguntou a me a Mathieu. Era uma bela e forte marselhesa com um vago buo. Mathieu deu uma olhadela para o relgio: Oito e vinte. A mulher puxou de debaixo das pernas uma cesta com cadeado. Sossega, menina impossvel, vais comer. Virou a cabea para Mathieu: Faz perder a cabea a um santo! Mathieu endereou-lhe um sorriso vago e benevolente. Oito e vinte, pensou, dentro de dez minutos Hitler ir J E A N-P AUL SARTRE falar. Esto no salo, h um quarto de hora que Jacques est a mexer no rdio. A mulher pousou o cesto no banco; abriu-o. Jacques gritou: Pronto! Apanhei Estugarda. Odette estava de p ao lado dele, pusera-lhe a mo no ombro. Ouviu um rudo surdo e pareceu-lhe que o sopro de uma sala comprida e abobadada lhe batia no rosto. Mathieu ajeitou-se para dar lugar ao cesto: no deixara Juan-les-Pins. Estava perto de Odette, junto de Odette, mas cego e surdo, o comboio levava os seus ouvidos e os seus olhos para Marselha. No tinha amor por ela, era outra coisa, ela tratara-o como se ele no tivesse morrido inteiramente. Quis dar uma fisionomia a essa ternura que pesava nele: procurou a fisionomia de Odette, mas o rosto fugia-lhe, o de Jacques surgiu em lugar dela, duas vezes. Mathieu acabou por entrever uma forma imvel numa poltrona, com um pedao de nuca inclinada e um ar de ateno numa face desprovida de boca e olhos. Apanhmos a tempo disse Jacques a Odette , ele no comeou ainda a falar. Os meus olhos esto aqui. Via o cesto: um belo guardanapo branco riscado de preto e vermelho cobria o contedo. Mathieu contemplou por um instante a nuca morena, e depois largou-a: era to pouco para to pesada ternura. Ela desapareceu na sombra e o guardanapo comeou a exigir demasiado, instalou-se nos seus olhos, expulsando toa pensamentos e imagens. Os meus olhos esto aqui. Um som de campainha abafada f-lo sobressaltar. Queridinha, depressa, depressa! disse a marse-Ihesa. Voltou-se para Mathieu com um sorriso de desculpa:
l PENA SUSPENSA E o despertador. Ponho-o sempre para as oito e meia. A menina abriu precipitadamente a mala, mergulhou as mos dentro e a campainha parou. Oito e trinta, ele vai entrar no Sportpalast. Estou em Juan-les-Pins, estou em Berlim; mas os meus olhos esto aqui. Algures, um automvel comprido e preto detinha-se diante de uma porta, deles desciam homens com camisas de caqui. Algures, a noroeste, mas aqui havia o guardanapo que lhe tapava a viso. Dedos rolios e com anis puxaram-na pelas pontas, ela desapareceu, Mathieu viu uma garrafa trmica deitada de lado e uma pilha de fatias de po: teve fome. Estou em Juan-les-Pins, estou em Berlim, estou em Paris, j no tenho vida, j no tenho destino. Mas aqui tenho fome. Aqui, perto desta morena forte e desta menina. Levantou-se, alcanou a sua mala, abriu-a e pegou, s apalpadelas, no embrulho de Odette. Tornou a sentar-se e, com o canivete, cortou o fio; tinha pressa, como se precisasse de acabar a tempo de ouvir o discurso de Hitler. Hitler entra; um clamor formidvel faz as vidraas tremerem, o clamor acalma-se, ele estende a mo. Algures, havia dez mil homens empertigados, de cabea tesa, brao erguido. Algures, atrs dele, Odette inclinava-se sobre o aparelho de rdio. Ele fala, diz: Meus compatriotas, e a sua voz j no lhe pertence, tornou-se internacional. Ouvem-na em Brest-Litowsk, Praga, Oslo, Tnger, Cannes. Morlaix, no grande navio branco da Companhia Paquet que singra o oceano entre Casablanca e Marselha. Tens a certeza de que apanhaste Estugarda? perguntou Odette. No se ouve nada. Psiu... tenho a certeza. J E A N-P AUL SARTRE Lola parou diante da entrada do Casino. Ento at j. Canta bem disse Boris. E tu onde vais, querido? Ao Bar Basque disse Boris. Tenho l uns amigos que no sabem alemo, pediram-me para traduzir o discurso de Hitler. Hum... no te vais divertir. Gosto de traduzir. Est a falar! Mathieu fez um violento esforo para ouvir, mas sentiu-se vazio e relaxou-se. Comia, sua frente a menina mordia uma fatia de po com geleia; ouvia-se o resfolegar ritmado das molas, era uma tarde de mel, unida. Mathieu desviou o olhar para o mar, atravs do vidro da janela. A tarde cor-de-rosa e redonda fechou-se sobre ele. E no entanto
uma voz trespassava aquele ovo de acar. Est em toda a parte, o comboio mergulha nela e ela est dentro do comboio, aos ps da menina, nos cabelos da mulher, no meu bolso, se tivesse um rdio eu f-la-ia desabrochar debaixo do banco. Est aqui, enorme, domina o barulho do somboio, sacode os vidros e eu no a ouo. Sentia-se cansado, percebeu ao longe uma vela sobre as guas e ficou s a pensar nela. Escuta! disse Jacques triunfante. Escuta! Um imenso rumor saiu de repente do rdio. Odette deu um passo atrs, era quase insuportvel. Como so numerosos, como o admiram!, disse. L longe, a milhares de quilmetros, dezenas de milhares de possessos. E as suas vozes ecoavam no calmo salo militar e era o destino que se jogava l longe. Ei-lo disse Jacques. Ei-lo! PENA SUSPENSA A tormenta aplacava-se aos poucos; distinguiam-se vozes nasaladas e duras, depois houve um silncio e Odette compreendeu que ele ia falar. Boris empurrou a porta do bar e o patro fez-lhe sinal que se apressasse. Rpido disse , vai comear. Eram trs, apoiados ao balco: o marselhs, Charlier, o tipgrafo de Ruo e um tipo grande e forte que vendia mquinas de costura e se chamava Chomis. Boa noite disse Boris, em voz baixa. Cumprimentaram-se rapidamente e ele acercou-se do aparelho. Estimava-os porque no haviam hesitado em jantar pressa para ouvir coisas desagradveis. Eram camaradas duros, que olhavam a realidade de frente. Ele apoiara as mos na mesa, olhava o mar imenso, ouvia o barulho do mar. Ergueu a mo direita e o mar acalmou-se. Disse: Meus caros compatriotas: H um limite para alm do qual j no possvel ceder, porque ceder tornar-se-ia uma fraqueza nociva. Dez milhes de alemes acham-se fora do Reich em dois grandes territrios constitudos. Eram alemes que desejavam reintegrar-se no Reich. Eu no teria o direito de comparecer diante da histria da Alemanha se me limitasse a abandon-los com indiferena. No teria, to-pouco, moralmente, o direito de ser o Fhrer deste povo. J fiz sacrifcios suficientes, j renunciei demasiado. A est o limite que eu no podia transpor. O plebiscito na ustria mostrou at que ponto esse sentimento tinha razo de ser. Um ardente testemunho foi dado ento, um testemunho que o mundo certamente no esperava. Mas j vimos que, para as democracias, um plebiscito intil, e mesmo funesto, quando
J E A N-P AUL SARTRE no produz o resultado que elas esperam. Entretanto o problema foi resolvido para felicidade do grande povo alemo no seu conjunto. E agora temos nossa frente o ltimo problema que deve ser e que ser resolvido. O mar rebentou aos seus ps e ele ficou um momento sem falar, contemplando as enormes ondas. Odette apertou a mo contra o peito, aqueles clamores sobressaltavam-lhe o corao. Inclinou-se ao ouvido de Jacques, que conservava as sobrancelhas franzidas, com um ar de extrema ateno, embora Hitler estivesse calado h vrios segundos. Perguntou-lhe sem muita esperana de resposta precisa: Que foi que ele disse? Jacques tinha a pretenso de compreender o alemo porque passara trs meses em Hanver e h dez anos que ouvia, escrupulosamente, pelo rdio, todos os oradores de Berlim. Assinara mesmo o Frankfurter Zeitung por causa dos artigos financeiros. Mas as informaes que dava sobre o que lera ou ouvira eram sempre muito vagas. Encolheu os ombros. Sempre a mesma coisa. Fala dos sacrifcios e da felicidade do povo alemo. Admite em fazer sacrifcios? perguntou Odette animada. Isso quer dizer que faria concesses? Parece... no sei... ficou tudo muito no ar. Estendeu a mo e Karl parou de gritar; era uma ordem. Karl olhou para a direita e para a esquerda, murmurando: Escutem! Escutem!, parecia-lhe que a ordem muda do Fhrer lhe atravessava o corpo, tomava a forma de corpo na sua boca. Escutem! Escutem! Ele era apenas um instrumento dcil; o prazer f-lo tremer da cabea at aos ps. PENA SUSPENSA Toda a gente se calou, a sala inteira abismou-se no silncio e na noite; Hess, Goering e Goebbels tinham desaparecido, no havia mais ningum no mundo seno Karl e o seu Fhrer. O Fhrer falava diante da grande bandeira vermelha com a cruz gamada, falava para Karl, para Karl somente. Uma voz, uma nica voz no mundo. Ele fala por mini, ele pensa por mim, ele decide por mini, o meu Fhrer. a ltima reivindicao territorial que tenho a formular na Europa, mas uma reivindicao a que no renunciarei, que realizarei, com a graa de Deus. Fez urna pausa. Karl compreendeu ento que tinha licena para gritar e gritou com toda a fora. Puseram-se todos a gritar, a voz de Karl avolumou-se, subiu at ao tecto e sacudiu os vidros. Ele ardia de alegria, possua dez mil bocas e
sentia-se histrico. Cala essa boca!, gritou Mimile para o aparelho. Virou-se para Robert e disse: Ests a ver! Que bando de cretinos! Aqueles tipos s ficam contentes quando podem berrar todos juntos. Parece que acontece o mesmo com as distraces. Tm l em Berlim grandes salas, para vinte mil pessoas, renem-se aos domingos e cantam em coro bebendo cerveja. O rdio continuava a mugir. Basta disse Robert , damos-lhe uma rasteira! Viraram o boto, as vozes cessaram e pareceu-lhes de repente que o quarto saa da escurido, estava ali, em volta deles, pequeno e calmo, o conhaque ao alcance da mo, bastara virar um boto e todos aqueles clamores de possessos tinham voltado sua caixa. Uma bela tarde comedida chegara pela janela, uma tarde francesa; estavam entre franceses. J E A N-P AUL SARTRE Esse Estado checo comeou por uma grande mentira. O autor dessa mentira chama-se Bens. Rajadas no aparelho. Esse Bens apresentou-se em Versalhes e afirmou em primeiro lugar que existia uma nao checoslovaca. Gargalhadas no aparelho. A voz continuou, escarnecendo: Era obrigado a inventar essa mentira, a fim de dar ao reduzido efectivo dos seus concidados uma importncia um pouco maior, e, portanto, mais justificada. E os estadistas anglo-saxes, que nunca se familiarizaram suficientemente cor as questes tnicas e geogrficas, no julgaram necessrio, ento, verificar as afirmaes do senhor Bens. Como esse Estado no parecia vivel, juntaram-lhe simplesmente trs milhes e meio de alemes, contrariando o seu direito de dispor livremente de si mesmos e da sua vontade de livre escolha. O aparelho gritou: Chii, chii, chii. Birnenschatz berrou: Mentira! No os tiraram da Alemanha, esses alemes! Ella contemplava o pai, apopltico de indignao, fumando um enorme charuto na poltrona; contemplava a sua me e a irm Ivy e quase que as odiava. Como podem escutar isso! Como se no bastasse, foi ainda preciso juntar um milho de magiares e russos subcarpticos e por fim alguns milhares de polacos. Eis o que esse Estado que posteriormente se chamou Checoslovquia, contrariando o direito de livre escolha dos povos e o desejo e a vontade claramente expressos pelas naes violentadas. Falando-vos aqui, condoo-me l PENA SUSPENSA
naturalmente com o destino de todos esses oprimidos: o destino dos Eslavos, dos Polacos, dos Hngaros, dos Ucra-nianos; mas falo, evidente, apenas da sorte dos Alemes. Um imenso clamor encheu a sala. Como podem escutar isso? E esses Heil! Heil! machucavam-lhe o corao. Afinal somos judeus, pensou irritada, no devemos estar a ouvir o que diz o nosso carrasco. Ele, ainda v, sempre o ouvi dizer que os judeus no existiam. Mas ela, pensou, olhando para a me, ela sabe que judia, sente-o e fica ali. A senhora Birnenschatz, um pouco dada a profecias, exclamara na vspera: a guerra, meus filhos, e, perdida a guerra, s resta ao povo judeu voltar a pr a mochila s costas. Agora, dormitava no meio do clamor, fechava de vez em quando os seus olhos maquilhados e a sua cabea grande e sombria, de cabelos negros, oscilava. A voz continuou dominando a tormenta: E agora comea o cinismo. Esse Estado, que s governado por uma minoria, obriga os seus nacionais a fazer uma poltica que os foraria um dia a atirar contra os prprios irmos. Ella levantou-se. Aquelas palavras roucas, arrancadas penosamente de uma garganta sempre pronta a tossir, eram outras tantas punhaladas. Ele torturou os judeus: enquanto fala, milhares deles agonizam nos campos de concentrao, e ns deixamos que a sua voz se pavoneie neste salo onde ainda ontem recebemos o primo Dachauer com as plpebras queimadas. Bens exige isto dos Alemes: "Se eu fizer a guerra contra a Alemanha, ters de atirar aos Alemes. E se recusares, sers um traidor e mandar-te-ei fuzilar." E exige a mesma coisa dos Hngaros e Polacos. J E A N-P AUL SARTRE A voz ali estava, enorme, odienta; o homem era o seu inimigo. A grande plancie alem, as montanhas da Frana, tinha-se desmoronado, ele estava junto dela, sem distncia, agitava-se dentro da caixa, olha para mim, est-me a ver. Voltou-se para a me e para Ivy: mas elas tinham saltado para trs. Podia ainda v-las, mas no toc-las. Paris tambm recuara, a luz que entrava pela janela caa morta no tapete. Ocorrera uma imperceptvel deslocao das pessoas e coisas, ela estava s no mundo com aquela voz. A vinte de Fevereiro deste ano, declarei no Reichstag que era necessrio que se verificasse uma mudana na existncia dos dez milhes de alemes que vivem fora das nossas fronteiras. Ora, o senhor Bens agiu de outro modo. Instituiu uma opresso ainda mais completa contra o nosso povo. Falava-lhe a ss, olhos nos olhos, com uma irritao crescente e o desejo de a amedrontar, de a magoar. Ela estava fascinada, o seu olhar no se desviava do rdio. No compreendia o que
ele dizia, mas a voz dele rasgava-lhe a pele, esfolava-a. Um terror ainda maior... uma espcie de dissoluo... Afastou-se bruscamente e deixou a sala. A voz perseguia-a no hall, indistinta, esmagada, ainda venenosa. Entrou pressa no quarto e fechou a porta chave. No salo, ele continuava a ameaar. Mas ela s ouvia agora um murmrio confuso. Deixou-se cair numa cadeira, no haver ento ningum, nenhuma me de judeu supliciado, nenhuma mulher de comunista assassinado, que agarre num revlver e o mate? Cerrava os punhos, pensava que, se fosse alem, teria a coragem de o matar. PENA SUSPENSA Mathieu levantou-se, pegou num dos charutos de Jacques do impermevel e abriu a porta do compartimento. Se por minha causa no faa cerimnia disse a marselhesa , o meu marido fuma, estou habituada. Obrigado disse Mathieu , mas estou com vontade de desenferrujar as pernas. Tinha principalmente vontade de no a ver mais. Nem a menina nem o cesto. Deu alguns passos no corredor, parou, acendeu o charuto. O mar estava azul e calmo, ele deslizava ao longo do mar, pensava: Que que me est a acontecer? Assim, a resposta desse homem foi mais do que nunca: fuzilemos, prendamos, encarceremos. E isto para todos os que, de uma maneira ou de outra, no lhe convinham; ele queria esforar-se por compreender. Jamais lhe acontecera alguma coisa que no tivesse compreendido; era a sua nica fora, a sua nica defesa, o seu ltimo orgulho. Olhava para o mar e pensava: No compreendo, ento verificou-se a minha reivindicao de Nuremberga. Essa reivindicao foi perfeitamente clara: e pela primeira vez; acontece que vou para a guerra, disse para com os seus botes. No parecia muito complicado, no entanto no era nada claro. No que lhe dizia pessoalmente respeito era simples, lmpido; jogara e perdera, a sua vida ficara para trs fracassada. No deixo nada, no lamento nada, nem mesmo Odette, nem mesmo Ivich, no sou ningum. Restava o prprio acontecimento. Declarei que o direito de livre escolha devia, enfim, vinte anos depois das declaraes do presidente Wilson, entrar em vigor para esses trs milhes e meio de homens tudo que o atingira at ento estava ao seu alcance, dentro da sua medida de homem, os pequenos aborrecimentos e J E A N-P AUL SARTRE catstrofes, ele vira-os chegar, olhara-os de frente. Quando fora buscar o dinheiro ao quarto de Lola, vira as notas, tocara-as, respirara o perfume da cmoda; e quando abandonara Marcelle, olhava-a nos olhos enquanto lhe falava, podia pensar: tive razo, errei; podia julgar-se. Agora, tornara-se
impossvel e novamente o senhor Bens deu a sua resposta: novos mortos, novas encarnaes, novos. Pensou: Parto para a guerra e isso nada significa. Alguma coisa que o ultrapassava acontecera. A guerra ultrapassava-o. No bem isso, que no existe. Onde est ela? Por toda a parte: nasce de todos os lados, o comboio corre dentro da guerra, Gomez aterra na guerra, esses turistas de branco passeiam na guerra, no h conscincia que no esteja tomada por ela. E no entanto ela como a voz de Hitler, que enche este comboio e eu no posso ouvir: Direi claramente ao senhor Chamberlain o que consideramos agora a nica possibilidade de soluo; de vez em quando pensamos que vamos toc-la em qualquer coisa, no molho de um filete, estendemos a mo, j no est mais ali: resta apenas um pedao de carne no molho. Ah!, pensou, seria preciso estar ao mesmo tempo em toda a parte. Meu Fhrer, meu Fhrer, falas e eu transformo-me em pedra, no penso mais, no quero mais nada, sou apenas a tua voz, eu esper-lo-ia sada, visaria o corao, mas sou, antes de mais, o porta-voz dos Alemes e foi para os Alemes que falei, assegurando-lhes que j no estou disposto a permanecer como espectador passivo e calmo, enquanto esse demente de Praga imagina poder, eu serei esse mrtir, no parti para a Sua, agora s me resta aguentar esse martrio, juro ser esse mrtir, juro, juro, silncio, disse Gomez, estamos a ouvir o discurso do ttere. PENA SUSPENSA Aqui, Rdio Paris, no desliguem: dentro de alguns instantes transmitiremos a traduo francesa da primeira parte do discurso do chanceler Hitler. Ests a ver disse Germain Chabot , ests a ver? No valia a pena descer e correr duas horas atrs do Intran. Eu disse-te: fazem sempre isso. A senhora Chabot pousou o ino no cesto e aproximou a cadeira: Vamos saber o que ele disse. No gosto disso. Abre-me sempre um vazio no estmago. No te acontece a mesma coisa? Sim disse Germain Chabot. O aparelho roncava, emitiu dois ou trs borborigmos e Chabot apertou o brao da mulher: Ouve disse. Inclinaram-se um pouco, de ouvido atento, e algum se ps a cantar a Cucaracha. Tens a certeza de que a Rdio Paris? Absoluta. Ento para que a gente no se impaciente. A voz cantou trs estrofes e o disco parou. Pronto disse Chabot. Ouviu-se um ligeiro chiado e uma orquestra havaiana ps-se a
tocar Honey Moon. Seria preciso estar em toda a parte. Olhou tristemente para a ponta do cigarro: em toda a parte, seno somos enganados. Eu estou enganado. Sou um soldado que parte para a guerra. Eis o que fora preciso ver; a guerra e o soldado. Urna ponta de charuto, casas brancas beira-mar, o deslizar montono dos vages sobre os carris e esse viajante demasiado conhecido, Fez, Marraquexe, Madrid, Pergia, Viena, J E A N-P AUL SARTRE 1 -] 1 Roma, Praga, Londres, que fuma pela milsima vez no j! corredor de um vago de terceira classe. Nem guerra nem soldado: seria preciso estar em toda a parte, seria preciso ver-me de toda a parte, de Berlim, como a trimilionsima l parte do Exrcito francs, com os olhos de Gomez, como ' um desses ces franceses que eles empurram a pontaps para a batalha, com os olhos de Odette. Seria preciso ver-me com os olhos da guerra. Mas onde esto os olhos da guerra? Estou aqui, diante dos meus olhos passam grandes superfcies claras, sou clarividente, vejo e, no entanto, oriento-me s apalpadelas, s cegas e cada movimento acende-me uma lmpada ou faz soar uma campainha num mundo que eu no vejo. Zzette fechava a janela, mas a luz do crepsculo entrava ainda pelas frinchas, sentia-se cansada, morta, lanou a combinao para uma cadeira e escorregou nua entre os lenis; durmo to bem quando estou triste; mas na cama nessa cama onde Maurice a acariciara na antevspera assim que se relaxava ele surgia sobre ela, esmagava-a; e se ela abria os olhos, ele j no estava ali, dormia l longe na caserna, e depois havia aquele rdio desgraado que berrava em lngua estrangeira, era o rdio dos Heinemann, os refugiados alemes do primeiro andar, uma voz rouca e viperina que arranhava os nervos, isso nunca mais acabar, nunca! Mathieu sentiu inveja de Gomez, depois pensou: Gomez no v melhor do que eu, debate-se contra invisveis e deixou de o invejar. Que v ele? Paredes, um telefone sobre uma secretria, a cara da ordenana. Faz a guerra mas no a v. Assim, ns todos a fazemos. Levanto a mo, chupo o meu charuto, fao a guerra. Sarah amaldioa a loucura dos homens, aperta Pablo nos braos, faz a guerra. Odette faz a guerra quando embrulha sanPENA SUSPENSA duches e presunto num papel. A guerra agarra tudo, junta tudo, no deixa que se perca nada, nem um pensamento, nem um gesto, e ningum a pode ver, nem mesmo Hitler. Ningum. Repetiu: Ningum, e, de repente, vislumbrou-a. Era um corpo
estranhssimo, realmente impensvel. Aqui, Rdio Paris, no desliguem: dentro de alguns instantes transmitiremos a traduo francesa da primeira parte do discurso do chanceler Hitler. No se mexeram. Olharam-se de lado e quando Rina Ketty se ps a cantar J'attendrai, sorriam. Mas ao fim da primeira estrofe, a senhora Chabot desatou a rir: J'attendrai disse. Bem apanhado! Esto a brincar connosco. Um corpo enorme, um planeta, num espao de cem milhes de dimenses; os seres no podiam sequer imagin-lo. E no entanto cada dimenso era uma conscincia autnoma. Se se tentasse olhar de frente esse planeta, ele desintegrar-se-ia e s restariam conscincias. Cem milhes de conscincias livres, cada uma delas vendo paredes, pontas de cigarros, rostos familiares e construindo o seu destino por conta da prpria responsabilidade. Entretanto, se fssemos uma dessas conscincias, perceberamos, atravs de imperceptveis, de insensveis mudanas, que estvamos presos a um gigantesco e invisvel polipeiro. A guerra: todos so livres e no entanto a sorte est lanada. Est por toda a parte, a totalidade de todos os meus pensamentos, de todas as palavras de Hitler, de todos os actos de Gomez, mas no h ningum que estabelea o total. S existe para Deus. Mas Deus no existe. Contudo a guerra existe. E no deixei nenhuma dvida acerca do facto de que doravante a pacincia alem tem um limite. No deixei J E A N-P AUL SARTRE nenhuma dvida acerca do facto de que caracterstico da mentalidade alem testemunhar uma grande pacincia, mas, chegado o momento, preciso resolver. Que est ele a dizer? perguntou Chomis. Boris explicou: Diz que a pacincia alem tem limites. A nossa tambm disse Charlier. Puseram-se todos a berrar no aparelho e Herrera entrou na sala: Ol disse, ao ver Gomez. Ento? Divertiu-se? Assim-assim. Sempre... prudentes, os Franceses? Nem me fale! Mas creio que desta vez no escapam. Mostrou o receptor , o ttere de Berlim est furioso. ptimo. Os olhos de Herrera faiscaram. Mas, diga, isso muda as coisas inteiramente! o que penso disse Gomez. Olharam-se por um instante sorrindo. Tilquin, que estava janela, voltou-se: Baixem o rdio, estou a ouvir qualquer coisa. Gomez virou o boto e os rudos atenuaram-se.
Esto a ouvir? Eto a ouvir? Bom disse Herrera , um alarme, o quarto desde manh. O quarto! disse Gomez. Sim. Ah!, vai achar tudo mudado! Hitler falava novamente; debruaram-se sobre o aparelho; Gomez escutava o discurso com um s ouvido, com o outro acompanhava o ronco dos avies. Houve uma exploso surda ao longe. PENA SUSPENSA Que faz ele? No cedeu o territrio, agora expulsa os Alemes! Mal o senhor Bens acabava de falar e j as medidas militares de opresso haviam recomeado, mais drsticas ainda. Verificmos estas cifras apavorantes: num dia dez mil pessoas em fuga, no dia seguinte vinte mil... O ronco diminuiu e subitamente ampliou-se de novo; ouviram-se duas longas detonaes. o porto que est a receber o dele cochichou Tilquin. ... trinta e sete mil a seguir e, dois dias mais tarde, quarenta mil; depois, sessenta e duas mil, e setenta e oito mil, e agora oitenta mil, cento e sete mil, cento e trinta e sete mil. Exactamente hoje, duzentos e catorze mil. Regies inteiras so despovoadas, aldeias incendiadas, com obuses e gases que tentam livrar-se dos Alemes. O senhor Bens est instalado em Praga e diz para consigo mesmo: "No pode acontecer nada, tenho finalmente o apoio da Frana e da Inglaterra." Herrera beliscou o brao de Gomez: Ateno disse , agora que vem a histria! Tinha o rosto corado e olhava para o receptor com simpatia. A voz elevou-se, tonitruante e spera: E agora, companheiros, acho que chegou a hora de falar sem subterfgios. Uma srie de exploses fez-se ouvir, cobrindo os aplausos, mas Gomez no se incomodou; fixava o receptor, escutava a voz ameaadora e sentia renascer dentro dele um sentimento h muito sepultado, algo que se assemelhava esperana. J E A N-P AUL SARTRE Vous qui passez sans me voir Sans mme dire bonsoir Donnez-moi un peu d'espoir Ce soir J'ai tant de peine. Compreendi disse Germain Chabot. Desta vez compreendi. O qu? disse a sua mulher. uma combinao com os jornais da noite. No querem transmitir a traduo antes que os jornais a publiquem. Levantou-se, pegou no chapu: Vou descer. Hei-de achar um Intran na Avenida Barbes. Era a hora. Tirou as pernas da cama, pensou: a hora. Ela
no mais encontraria o pssaro mas acharia uma nota de mil francos espetada no lenol, se tiver tempo juntar-lhe-ei um poema de adeus. Sentia a cabea pesada mas j no lhe doa. Passou as mos pelo rosto com repugnncia, cheirava a negra. Na prateleira de vidro do toilette havia um sabonete cor-de-rosa ao lado de um vaporizador e uma esponja de borracha. Pegou na esponja mas sentiu uma nusea, e foi buscar mala a sua luva de toilette e o seu sabonete. Lavou-se da cabea aos ps, a gua corria sobre o soalho mas no tinha importncia. Penteou-se, tirou uma camisa limpa da mala e vestiu-se. A camisa do mrtir. Estava triste e decidido. Havia uma escova em cima da mesinha, escovou o casaco com cuidado. Mas onde que eu enfiei as minhas calas? Espiou debaixo da cama, entre os lenis; nada. Murmurou: Como devia estar bbado! PENA SUSPENSA Abriu o armrio, comeava a sentir-se inquieto; as calas no estavam l. Ficou um momento no meio do quarto, em camisa, a coar a cabea, olhando sua volta, e de repente teve um ataque de raiva, porque a situao era ridcula para um futuro mrtir, ali colocado, de meias, no quarto de dormir de uma prostituta, com as fraldas plos joelhos. Foi quando deparou com um armrio embutido sua direita. Correu para ele, mas a chave no estava na fechadura. Tentou abrir com as unhas e depois com uma tesoura que encontrou, mas no o conseguiu. Lanou a tesoura para o cho, e ps-se a bater os ps dizendo, furioso: Puta de uma figa! Escondeu as minhas calas para que eu no sasse! E agora s posso afirmar uma coisa: dois homens acham-se em frente um do outro: o senhor Bens e eu. A multido inteira ps-se a hurrar. Anna olhou inquieta para Milan. Ele aproximara-se do rdio e considerava-o com as mos nos bolsos. O seu rosto escurecera e algo mexia na sua face. Milan disse Anna. Somos homens de gnero diferente. Quando o senhor Bens, durante a grande luta dos povos, ia e vinha pelo mundo longe do perigo, eu, como leal soldado alemo, cumpria o meu dever. Hoje, eis-me erguido diante desse homem, como soldado do meu povo. Aplaudiram novamente. Anna levantou-se e pousou a mo no brao de Milan: o msculo contraa-se, o corpo era de pedra. Vai cair, pensou ela. Ele disse, gaguejando: Sem-vergonha! Ela apertou-lhe o brao com toda a fora, mas ele empurrou-a. Tinha os olhos enraivecidos. J E A N-P AUL SARTRE
Bens e eu gaguejou. Bens e eu! Porque tens setenta e cinco milhes de homens atrs de ti. Deu um passo em frente; ela pensou: Que vai fazer?, e correu para junto dele, mas ele j havia cuspido duas vezes para o receptor. A voz continuava. Tenho pouco a declarar: agradeo a Chamberlain todos os esforos que despendeu. Assegurei-lhe que o povo alemo s deseja a paz; mas declarei-lhe tambm que no posso recuar mais os limites da nossa pacincia. Assegurei-lhe, e aqui repito, que uma vez resolvido este problema, no h outro problema territorial para a Alemanha, na Europa. Assegurei-lhe ainda que, a partir do momento em que a Checoslovquia tiver resolvido este problema, isto , a partir do momento em que os Checos se tiverem explicado com as suas outras minorias, no pela opresso, mas pacificamente, eu no me interessarei mais pelo Estado checoslovaco. E isto eu lhe garanti! Ns no queremos checos! Mas desejo agora declarar da mesma forma, diante do povo alemo, que, no que diz respeito aos Sudetas, a minha pacincia chegou ao fim. Fiz ao senhor Bens uma proposta que no outra coisa seno a realizao do que ele mesmo prometera. Ele tem agora a deciso nas mos: paz ou guerra. Ou aceita essa proposta e d liberdade aos alemes ou ns mesmos a iremos buscar. Herrera ergueu a cabea, exultava: Bolas! Bolas! Ouviram? Mas a guerra! E disse Gomez. Bens duro: no ceder. E a guerra. Se pudesse ser! disse Tilquin. Se pudesse ser! Ah! Deus meu! PENA SUSPENSA Que isso? indagou Chamberlain. A continuao disse Woodhouse. Chamberlain pegou nas folhas e comeou a ler. Woodhouse perscrutava-lhe o rosto com ansiedade. Ao fim de um momento o primeiro-ministro levantou a cabea e sorriu-lhe amavelmente. Pois disse , nada de novo. Woodhouse olhou-o surpreso: O chanceler Hitler exprimiu-se com muita violncia observou. Ora disse Chamberlain , ele no podia agir de outro modo. Hoje, marcho frente do meu povo como o seu primeiro soldado; e atrs de mim, que o mundo no se iluda, marcha um povo, um povo diferente do de 1918. Nesta hora, todo o povo alemo unir-se- a mini. Sentir a minha vontade como sua, assim como eu considero o seu futuro e o seu destino o motor da minha aco! Queremos fortalecer esta vontade comum, como quando parti como simples soldado conquista de um Reich, no
duvidando nunca da vitria definitiva. minha volta juntou-se um grupo de homens bravos e de mulheres decididas e todos marcharam comigo. E agora, meu povo alemo, eu peo-te isto: marcha comigo, homem aps homem, mulher aps mulher. Nesta hora, todos queremos ter uma vontade comum. Essa vontade deve ser mais forte do que qualquer desespero, do que qualquer perigo; pois se for mais forte do que o perigo e o desespero, vencer, vencer o perigo e o desespero. Estamos decididos. Cabe ao senhor Bens escolher. Boris virou-se para os outros: Terminou. J E A N-P AUL SARTRE No reagiram de imediato; fumavam atentos. Por fim o patro indagou: Ento? Torcemos-lhe o pescoo? Toca! O patro debruou-se sobre as garrafas e fechou o rdio. Durante um minuto Boris sentiu-se desnorteado; era como um grande vcuo. Um pouco de vento e de noite entrava pela porta aberta. Que foi que ele disse? perguntou o mar-selhs. Ao terminar ele disse: Todo o meu povo est comigo, estou disposto a ir guerra. Cabe ao senhor Bens decidir. Que tristeza! Ento a guerra? Boris encolheu os ombros. Eu que h seis meses que no vejo a minha mulher e as minhas filhas! disse o marselhs. Vou chegar a Marselha e, boa noite: um aceno e caserna. Eu talvez no tenha tempo sequer de ver a minha me disse Chomis , sou do Norte. Pois disse o marselhs, meneando a cabea. Calaram-se. Charlier esvaziou o cachimbo, batendo no salto do sapato. O patro disse: Tomem mais alguma coisa. Como estamos em guerra, ofereo a rodada. O ar l fora era fresco e negro, ouvia-se a msica do Casino ao longe: era talvez Lola a cantar. Eu estive na Checoslovquia disse o tipo do Norte. E estou contente de l ter estado; assim sabemos por que nos batemos. Esteve l muito tempo? perguntou Boris. PENA SUSPENSA Seis meses, a derrubar rvores. Dava-me bem com os Checos. So trabalhadores. Os Alemes tambm disse o patro ; isso no basta. Sim, mas os Alemes oprimem a humanidade, ao passo que os Checos so tranquilos.
vossa sade disse Charlier. vossa sade. Bateram os copos e o marselhs comentou: Comea a fazer frio. Mathieu acordou sobressaltado. Que isto? indagou esfregando os olhos. Marselha, Estao Saint-Charles, ponto final. Bom disse Mathieu , bom, bom. Pendurou o impermevel e pegou na mala. Sentia-se tonto. Hitler deve ter terminado o seu discurso, pensou com alvio. Vi-os partir em 14 disse o tipo do Norte. Eu tinha dez anos. Era outra coisa! Entusiasmo? E que entusiasmo! Berravam! Cantavam! Gesticulavam! verdade que no tinham a noo da coisa disse o marselhs. Ah! No! Ns, ns sabemos disse Boris. Houve um silncio. O tipo do Norte olhava fixamente para a frente. Disse: Eu vi-os de perto, os Fritz. Quatro anos de ocupao. No lhes digo nada. A aldeia foi arrasada, ns escondamo-nos durante semanas nas pedreiras. Ento, J E A N-P AUL SARTRE compreendem, quando penso que vai ser preciso recomear... Acrescentou: O que no quer dizer que eu no v fazer como os outros. O que h comigo disse o patro que tenho medo da morte. Desde criana. S me conformei ultimamente. Disse para mim mesmo: o chato morrer, mas quer seja de gripe espanhola ou de estilhao de obus, a mesma coisa. Boris estava no stimo cu; achava-os simpticos. Pensou: Prefiro os homens s mulheres. A guerra tinha isso de bom: fazia-se entre homens. Durante trs anos, cinco anos, s veria homens. E cederei a minha vez de licena aos chefes de famlia. O que importa disse Chomis podermos dizer que vivemos. Eu tenho trinta e seis anos, e nem sempre tive um mar de rosas pela frente. Houve altos e baixos. Mas eu vivi. Podem cortar-me em pedaos que no me levaro isso. Voltou-se para Boris: Para um jovem como voc deve ser duro. Oh! disse Boris com vivacidade. H tanto tempo que me dizem que haver guerra! Corou ligeiramente e acrescentou: Quando se casado que no se deve gostar nada. disse o marselhs, suspirando. A minha mulher corajosa e tem um ofcio; cabeleireira. O que me chateia so as meninas; afinal sempre melhor ter um pai, no acham? Mas afinal nem todos morrem.
Evidentemente disse Boris. A msica cessara. Um casal entrou no bar. A mulher era ruiva e trazia um vestido verde muito comprido e decotado. Sentaram-se a uma mesa do fundo. PENA SUSPENSA Mesmo assim disse Charlier , idiota a guerra. No sei de nada mais cretino. Nem eu disse o patro. Nem eu disse Chomis. Ento? indagou o marselhs. Quanto devo? Uma rodada minha. E outra minha disse Boris. Pagaram. Chomis e o marselhs saram de braos dados. Charlier hesitou um momento, virou-se nos calcanhares e foi sentar-se com o seu clice de conhaque. Boris ficara diante do balco, pensando: Como so simpticos, e sentiu-se feliz. Haveria idnticos nas trincheiras, milhares e milhares igualmente simpticos. E Boris viveria com eles e no os deixaria dia e noite, teria que fazer. Pensou: Tenho sorte; quando se comparava aos pobres da sua idade, que haviam sido atropelados ou morrido de clera, era forado a aceitar que tivera sorte. No o tinham apanhado desprevenido, no se tratava de uma dessas guerras que derrubam sem aviso a vida de um homem, como um simples acidente: estava prevista h seis ou sete anos, tinha-se tido tempo de a ver chegar. Pessoalmente, Boris nunca duvidara do que ia acontecer; esperara-a como um prncipe herdeiro que sabe, desde criana, que nasceu para reinar. Tinham-no criado para esta guerra, haviam-no educado para ela, mandaram-no para o liceu, para a Sorbona, haviam-lhe dado uma cultura. Diziam que era para que se tornasse professor, mas isso sempre lhe parecera duvidoso; agora sabia que queriam fazer dele um oficial de reserva; nada haviam poupado para que desse um belo morto, novi-nho e sadio. O mais engraado, pensava, que no nasci em Frana, sou somente naturalizado. Mas, afinal, isso no J E A N-P AUL SARTRE tinha muita importncia; se tivesse ficado na Rssia ou se os seus pais se tivessem refugiado em Berlim ou Budapeste, teria sido a mesma coisa; no questo de nacionalidade, mas de idade, os jovens alemes, hngaros, ingleses e gregos tinham pela frente a mesma guerra, o mesmo destino. Na Rssia houvera primeiramente a gerao da Revoluo, depois a do plano quinquenal, e a seguir a do conflito mundial; cada qual com sua sorte. Afinal nascemos para a guerra, ou para a paz, como se nasce operrio ou burgus, eis tudo, no dado a todos ser suo. Um indivduo que teria direito de protestar seria
Mathieu, pensou: certamente nasceu para a paz; acreditou na verdade que morreria de velhice e j tem as suas manias, na sua idade j no mudamos. Ao passo que, para mim, esta a minha guerra. A que me fez, a que farei, somos inseparveis; no posso sequer imaginar o que seria se ela no acontecesse. Pensou na sua vida e j no a achou demasiado curta: as vidas no so nem curtas nem longas. Era uma vida, apenas. Com a guerra no fim. Sentiu-se de repente revestido de uma nova dignidade, porque tinha uma funo na sociedade, e tambm porque ia morrer de morte violenta; sentiu-se incomodado na sua modstia. Era hora de ir buscar Lola. Sorriu para o patro e saiu rapidamente. O cu estava nublado; de quando em quando viam-se estrelas, o vento soprava do mar. Durante um instante sentiu uma bruma na cabea, depois pensou: A minha guerra!, e dispersou-se porque no tinha por hbito pensar muito na mesma coisa. Como vou ter medo, pensou. Como vou ter medo! Ps-se a rir de escndalo e alegria, ante a ideia desse pavor gigantesco. Mas parou de rir ao fim de alguns passos, sob presso de uma sbita inquietao: que seria PENA SUSPENSA preciso no ter medo de mais. No iria muito longe, sem dvida, mas isso no era uma razo para desperdiar a sua vida e ser complacente consigo mesmo. O caminho estava traado, mas tinham-lhe deixado amplas possibilidades, a sua guerra era mais uma vocao do que um destino. Evidentemente, teria podido desejar outra coisa: o destino de um grande filsofo, por exemplo, de um Dom Juan ou de um financeiro. Mas no se escolhe a vocao; acerta-se ou malogra-se, tudo, e o pior, na sua, era que no podia voltar atrs. Havia existncias que se assemelhavam aos exames finais: submetiam-nas a vrias provas e, se fracassavam em Fsica, podiam alcanar mdia com as Cincias Naturais ou Filosofia. A dele sugeria antes um certificado de Filosofia Geral, no qual se julgado por uma nica prova; era terrivelmente intimidante. Como quer que fosse, cabia-lhe ter xito nessa prova e no noutra. Era preciso ter uma boa conduta, mas isso no bastava. Era preciso principalmente instalar-se na guerra, arranjar o seu canto nela e tratar de bem aproveitar tudo. Era preciso dizer para consigo mesmo que, de certo modo, tudo equivalente: um ataque em Argonne vale um passeio de gndola, o caf fraco das trincheiras, pela manh, vale o que se bebe nas estaes espanholas de madrugada. E depois h os companheiros, a vida ao ar livre, os pacotes de presentes, e sobretudo o espectculo; um bombardeamento no deve ser feio. Apenas era preciso no ter medo. Se tiver medo, deixarei que me roubem a
vida, serei uma vtima. No terei medo, decidiu. As luzes do Casino arrancaram-no do sonho, ondas de msica passavam pelas janelas abertas, um automvel Preto arrumou-se silenciosamente diante da escadaria. Mais ano ainda, pensou agastado. J E A N-P A U L SARTRE Passava da meia-noite, o Sportpalast estava escuro e deserto, cadeiras viradas, pontas de charuto esmagadas. Chamberlain falava no rdio, Mathieu vagueava pelo cais de Vieux-Port, pensando: E uma doena, exactamente uma doena; atacou-me por acaso, no me diz respeito, preciso de enfrent-la com estoicismo, como a gota ou a dor de dentes. Chamberlain disse: Espero que o chanceler no rejeite esta proposta, feita dentro do mesmo esprito de amizade com que fui recebido na Alemanha; proposta que, se for aceite, dar satisfao ao desejo alemo d unio dos Sudetas com o Reich, sem efuso de sangue na Europa. Fez um gesto com a mo para indicar que terminara, e afastou-se do microfone. Zzette, que no podia adormecer, pusera-se janela e contemplava as estrelas por cima dos telhados. Boris esperava Lola na entrada do Casino; por toda a parte, no ar, sem ser ouvida quase, uma flor sombria tentava desabrochar: Ifthe moon turns green, interpretada pelo jazz do Hotel Astria e transmitida por Daventry. TERA-FEIRA, 27 DE SETEMBRO V: inte e duas horas e trinta. Senhor Delarue!, disse a porteira. Que surpresa! S o esperava daqui a oito dias. Mathieu sorriu-lhe. Teria preferido passar despercebido, mas era necessrio pedir as chaves. No est mobilizado? Eu? disse Mathieu. No. Ah! disse ela , tanto melhor! Tanto melhor. Nunca ser tarde de mais. Que diz aos acontecimentos? Quanta coisa desde que o senhor se foi. E o senhor acredita na guerra? No sei, senhora Garinet. E acrescentou com vivacidade: Chegou alguma carta? Mandei-lhe tudo ontem disse a porteira. Ainda ontem mandei um impresso para Juan-les-Pins; se o senhor me tivesse avisado! E hoje de manh chegou isto. J E A N-P AUL SARTRE Entregou-lhe um sobrescrito comprido e cinzento. Mathieu reconheceu a letra de Daniel. Pegou na carta e enfiou-a no bolso. Quer as chaves? Que pena no ter avisado; teria feito uma
limpeza. Ao passo que assim... As janelas no foram sequer abertas. No faz mal disse Mathieu pegando nas chaves. No tem importncia. Boa noite. A casa estava ainda deserta. De fora, Mathieu vira as persianas fechadas. Haviam retirado o tapete da escada, durante o Vero. Passou devagar diante do apartamento do primeiro andar. Crianas ali berravam outrora, e Mathieu acordara muitas vezes agitado, com os ouvidos feridos pelo coro do recm-nascido. Agora os quartos estavam escuros e vazios por trs das janelas fechadas. Frias. Mas ele pensava, no fundo de si mesmo: a guerra. Eram a guerra essas frias trancadas, encurtadas para uns, prorrogadas para outros. No segundo andar morava uma mulher sustentada por algum amante; s vezes o seu perfume deslizava por baixo da porta e expandia-se pelo patamar. Devia estar em Biarritz, num grande hotel abafado pelo calor e pelo marasmo dos negcios. Alcanou o terceiro andar e girou a chave na fechadura. Debaixo dele, por cima dele, pedras, noite, silncio. Entrou no escuro e no escuro largou a mala e o impermevel: o hall cheirava a poeira. Ficou imvel, de braos colados ao corpo, envolto nas trevas, depois, bruscamente, acendeu a luz e atravessou todas as divises uma a uma deixando as portas escancaradas. Acendeu a luz do escritrio, da cozinha, das casas de banho, do quarto. Todas as lmpadas brilhavam, uma corrente contnua de luz percorria o apartamento. Deteve-se beira da cama. PENA SUSPENSA Algum dormira ali. As cobertas estavam amarrotadas, a fronha suja, migalhas de po juncavam o lenol. Algum: Eu, pensava, fui eu quem dormiu aqui. Eu, a 15 de Julho, pela ltima vez. Mas olhava para a cama com nojo: o seu antigo sono arrefecera nos lenis, agora era o sono de um outro. No dormirei aqui. Voltou-se e entrou no escritrio; o nojo persistiu. Um copo sujo sobre a lareira. Sobre a mesa, perto do caranguejo de bronze, um cigarro partido pelo meio: dele saam fiapos secos. Quando parti este cigarro ao meio? Apertou-o e sentiu nos dedos um roar de folhas mortas. Os livros. Um volume de Arbelet, outro de Martineau, Lamiel, Leuwen, as recordaes do Egotismo. Algum projectara escrever um artigo sobre Stendhal. Os livros continuavam ali e o projecto, petrificado, tornara-se uma coisa. Maio, 38: ainda no era absurdo escrever sobre Stendhal. Uma coisa. Uma coisa como as suas encadernaes cinzentas, como o p que se depositara nas lombadas. Uma coisa opaca, passiva, uma presena impenetrvel. Meu projecto.
O seu projecto de beber, que se depositara em manchas mortas na transparncia do copo, o seu projecto de fumar, o seu projecto de escrever, o homem pendura os seus projectos por toda a parte. Havia aquela poltrona de couro verde em que o homem se sentava tarde. Era de tarde; Mathieu contemplou a poltrona e sentou-se na ponta de uma cadeira. As tuas poltronas so corruptoras. Uma voz dissera aqui mesmo: As tuas poltronas so corruptoras. No sof, uma jovem loira sacudira os cabelos com raiva. Naquela poca o homem mal lhe percebia os caracis, mal lhe ouvia a voz: via e ouvia o seu futuro de Parte a parte. Agora o homem tinha partido, levando o seu J E A N-P A U L SARTRE velho futuro mentiroso; as presenas tinham arrefecido, continuavam ali, uma pelcula de banha coagulada sobre os mveis, as vozes flutuavam ao nvel dos olhos; tinham subido at ao tecto e depois tornaram a cair, flutuavam. Mathieu sentiu-se indiscreto, foi janela e empurrou as persianas. Havia ainda um pouco de luz no cu, uma luz annima; respirou. A carta de Daniel. Estendeu a mo para pegar nela e deixou cair a mo sobre o parapeito. Daniel partira por aquela rua, numa tarde de Junho, passara sob aquele candeeiro; o homem tinha-se posto janela e havia-o seguido com os olhos. Era quele homem que Daniel escrevera. Mathieu no tinha vontade de ler a carta. Voltou-se bruscamente e lanou um olhar Ipara o escritrio, com uma sensao de alegria seca. Estavam todos ali, encerrados, mortos, Marcelle, Ivich, Brunet, Boris, Daniel. Tinham vindo e ficado presos, continuariam ali. As cleras de Ivich, as censuras de Brunet, Mathieu recordava-as com a mesma imparcialidade com que evocam a morte de Lus XVI. Pertenciam ao passado do mundo, no ao seu; ele j no tinha passado. Fechou novamente as janelas, atravessou o escritrio, hesitou e aps reflectir, deixou a lmpada acesa. Amanh cedo virei buscar as malas. Fechou a porta de entrada e desceu as escadas. Leve. Vazio e leve. L em cima, atrs dele, os crios elctricos iluminariam durante toda a noite a sua vida morta. Em que pensas? perguntou Lola. Em nada disse Boris. Estavam sentados na praia. Lola no cantava naquela noite porque havia recepo de gala no Casino. Um casal PENA SUSPENSA acabava de passar diante deles, depois passou um soldado. Boris pensava no soldado. S bonzinho insistiu Lola , diz-me em que ests a pensar. Boris encolheu os ombros:
No soldado que passou. Ah! disse Lola surpreendida. E o que pensavas dele? Que queres tu que se pense de um soldado? Boris gemeu Lola , que tens tu? Estavas to terno, to amvel. E eis que tudo recomeou como antes. Quase que no me falaste durante todo o dia. Boris no respondeu, pensava no soldado. Pensava: Tem sorte; eu, mais um ano ainda de espera. Um ano: voltaria a Paris, passearia pelo Bulevar Montparnasse, pelo Bulevar Saint-Michel, que conhecia de cor, iria ao Dome, Coupole, dormiria na casa de Lola todos os dias. Se pudesse ver Mathieu, ainda no seria muito mau, mas Mathieu estar mobilizado. E o meu diploma!, pensou de repente, porque havia isso, essa piada desagradvel: o diploma de estudos superiores. O seu pai exigiria certamente que se apresentasse aos exames e Boris seria obrigado a entregar um ensaio sobre a Imaginao em Renouvier ou o Hbito em Maine de Biran. Porqu essa comdia? Tinham-no criado para a guerra, estavam no seu direito, mas agora queriam for-lo a tirar um diploma, com se tivesse toda uma vida de paz para viver. Que brincadeira! Durante um ano frequentaria bibliotecas, fingiria ler as obras completas de Maine de Biran na edio Tisserand, fingiria tirar apontamentos, fingiria estar a preparar-se para os exames, mas no deixaria de pensar na verdadeira J E A N-P AUL SARTRE prova que o aguardava, no deixaria de indagar a si prprio se teria medo ou no. Se no houvesse esta mulher, pensou, deitando um olhar irritado para Lola, eu alistava-me j, j; pregava-lhes uma boa partida. Boris! gritou Lola atormentada. Como me olhas! J no gostas de mim? Pelo contrrio disse Boris, cerrando os dentes. No podes imaginar como te amo. No fazes a menor ideia. Ivich acendera o candeeiro da cabeceira, estendera-se na cama, totalmente nua. Deixara a porta aberta e espiava o corredor. Havia um crculo de luz no tecto e todo o resto do quarto estava azul. Uma bruma azul flutuava em cima da mesa, cheirava a limo, a ch e a cigarro. Ouviu um rudo no corredor e uma massa enorme passou silenciosamente diante da porta. Ol gritou ela. O pai virou a cabea e olhou-a com um ar de censura. Ivich, j te disse: fecha a porta ou veste-te. Ele corara um pouco e a sua voz parecia mais cantante que de costume. Por causa da criada. A criada foi dormir disse Ivich sem se abalar. E
acrescentou: Eu estava espreita. Fazes to pouco barulho quando passas, tinha medo de te perder. Vira as costas. O senhor Serguine virou-se, ela ps-se de p e enfiou o roupo. O pai mantinha-se direito, de costas, entrada da porta. Ela olhou-lhe para a nuca, para os ombros atlticos, e ps-se a rir sem rudo. Podes olhar! PENA SUSPENSA Ele estava agora de frente. Fungou duas ou trs vezes e disse: Fumas de mais. So os nervos disse ela. Ele calou-se. O candeeiro iluminava-lhe o rosto pesado, duro. Ivich achou-o belo. Belo como uma montanha, como as cataratas do Nigara. Ele disse por fim: Vou-me deitar. No suplicou Ivich. No, pap; eu queria ouvir o rdio. Para qu? A esta hora? Ivich no se deixou enganar: sabia que ele tornava a sair do quarto todas as noites a pelas onze, e ia ouvir notcias, em surdina, no seu escritrio. Era esperto e leve como um elfo apesar dos seus noventa quilos. Vai sozinha. Eu levanto-me cedo amanh. Mas, pap disse Ivich, fazendo beio , sabes bem que eu no sei mexer no aparelho. O senhor Serguine ps-se a rir. Queres ouvir msica? indagou, novamente srio. A tua me est a dormir, coitada. No, pap disse Ivich furiosa. No quero ouvir msica. Quero ver em que p estamos nesta histria da guerra. Vem, ento. Ela acompanhou-o descala, ele debruou-se sobre o rdio. As suas mos longas e fortes manejavam to suavemente os botes que Ivich sentiu um n na garganta e teve saudade da intimidade de outrora. Quando tinha quinze anos, estavam sempre juntos, a senhora Serguine sentia cimes; quando o senhor Serguine levava Ivich ao restauJ E A N-P AUL SARTRE rante, fazia-a sentar-se em frente dele, ela prpria escolhia os seus pratos, os criados chamavam-lhe senhora, ela ria contente e ele mostrava-se orgulhoso, parecia uma aventura. Ouviram-se os ltimos compassos de uma marcha militar e depois um alemo comeou a falar com voz irritada. Pap disse ela como que a censur-lo , no compreendo alemo. Ele olhou-a com ar ingnuo. Fez de propsito, pensou ela. Nesta hora so as melhores informaes. Ivich escutou atentamente para ver se pescava de passagem a
palavra Krieg, cujo sentido conhecia. O alemo calou-se, depois tocou outra marcha; Ivich j no a suportava, porm Serguine quis ouvir at ao fim, no desgostava de msica militar. Ento? perguntou Ivich angustiada. Vai mal respondeu Serguine, mas no parecia muito preocupado. Ah! disse ela com voz rouca. Sempre por causa dos Checos? . Como os odeio! disse apaixonadamente. E acrescentou ao fim de alguns instantes: Mas se um pas se recusasse a fazer a guerra, poderiam obrig-lo a lutar? Ivich disse Serguine severamente , s uma criana. Ah! fez Ivich. Ah! Sim, evidentemente. Duvidava que o seu pai tivesse uma compreenso mais precisa das coisas. O senhor Serguine hesitou. Pap! PENA SUSPENSA Est furioso porque vim. Estrago-lhe a festa. O senhor Serguine gostava de segredos, possua seis malas fechadas a cadeado, duas malas a ferrolho, e abria-as por vezes quando ficava s. Ivich contemplou-o com ternura, era to simptico que ela quase lhe falou da angstia que a devorava. Dentro de um momento disse ele aps uma hesitao ouviremos os franceses. Olhou-a com os seus olhos plidos e ela sentiu que ele nada podia fazer por ela. Perguntou somente: Como seria se houvesse guerra? Os Franceses seriam vencidos. Ora! Os Alemes entrariam na Frana? Naturalmente. Viriam a Laon? Suponho que sim. Suponho que tentariam alcanar Paris. No sabe nada, pensou Ivich. um polichinelo. Mas o seu corao pulava no peito. Tomariam Paris, mas no a destruiriam, pois no? Arrependeu-se da pergunta. Depois que os bolchevistas tinham incendiado os seus castelos, Serguine tornara-se pessimista. Ele meneou a cabea semicerrando os olhos: Quem sabe! Vinte e trs e trinta. Era uma rua morta, afogada na escurido; de longe em longe uma luz. Uma rua de nenhum lugar, no meio de uns tantos mausolus annimos. Todas as persianas fechadas e nenhum raio de luz. Foi outrora a Rua Delambre. Mathieu atravessara a Rua Cels, a Rua Froidevaux, seguira pela
Avenida du Maine e pela Rua de Ia Gaite; eram todas parecidas, ainda mornas, e j J E A N-P AUL SARTRE irreconhecveis, ruas de guerra, j. Alguma coisa se perdera. Paris j no era seno um grande cemitrio de ruas. Mathieu entrou no Dome porque o Dome estava ali. Um criado surgiu com um sorriso amvel, era um rapaz de culos, doentio, e cheio de boa vontade. Um novo. Os antigos deixavam que os franceses esperassem durante uma hora e depois chegavam displicentes e anotavam o pedido sem sorrir. Onde est Henri? Henri? O moreno, gordo, com olhos enormes. Ah! Sim. Foi mobilizado. E Jean? O loiro? Tambm. Sou eu quem o substitui. D-me um conhaque. O criado saiu apressado. Mathieu piscou, depois observou a sala com espanto. Em Julho, o Dome no tinha limites precisos, escorria dentro da noite pelas vidraas e a porta giratria expandia-se pela calada, os transeuntes banhavam-se naquelas luzes amarelas que tremiam sobre as mos e a face dos motoristas estacionados no meio do Bulevar Montparnasse. Um passo a mais e mergulhava-se no vermelho, a face direita dos motoristas era vermelha: a Rotonde. Agora as trevas de fora esmagavam-se de encontro s vidraas, o Dome estava reduzido expresso mais simples: uma coleco de mesas, de bancos, de vidros secos, privados daquela luminosidade difusa que era a sua sombra nocturna. Tinham desaparecido os emigrados alemes, o pianista hngaro, a velha americana alcolica, e todos os casais gentis que davam as mos e falavam de amor at de madrugada, com olhos vermelhos de sono. sua PENA SUSPENSA esquerda, um major ceava com a mulher. Em frente dele, uma prostituta anamita sonhava diante do caf com leite e, na mesa vizinha, um capito comia um chucrute. direita, um rapaz fardado abraava uma mulher. Mathieu conhecia-o de vista, era um aluno da Escola de Belas-Artes, alto, plido e perplexo; a farda dava-lhe um ar feroz. O capito ergueu a cabea e o seu olhar atravessou as paredes. Mathieu acompanhou o olhar: no fim havia uma estao, luzes, reflexos nos carris, homens de rostos terrosos, olhos cheios de insnia, sentados nos vages, com as mos sobre os joelhos. Em Julho, estvamos sentados volta do candeeiro, no nos perdamos de vista, nenhum dos nossos olhares se transviava. Agora, perdem-se: dirigem-se para Wissemburgo, para Montmdy; h muito vazio e muita sombra
entre as pessoas. Mobilizaram o Dome, fizeram do caf um utenslio de primeira necessidade; uma cantina. Ah!, pensou alegremente, no reconheo nada, no lamento nada, nada deixo atrs de mini. A pequena indochinesa sorriu-lhe. Era graciosa, com mos minsculas; h dois anos que Mathieu vinha sonhando em passar uma noite com ela. Era altura. Passearei a boca na sua pele fria, respirarei o seu odor de insecto e razes; ficarei nu e vulgar ante os seus dedos profissionais; h em mini algumas velharias que morreriam com isso. Bastava sorrir-lhe. Quanto devo? So dez francos. Mathieu pagou e saiu. Ainda a conheo bastante bem. Estava escuro. A primeira noite de guerra. No comple-tamente escuro. Ainda restavam muitas luzes pregadas s empenas das casas. Dentro de um ms, dentro de quinze JEAN-PAUL SARTRE dias, o primeiro alerta apag-las-ia; por enquanto, tratava-se apenas de um ensaio geral. Mas Paris perdera o seu tecto de algodo rosado. Pela primeira vez, Mathieu viu uma grande bruma escura sobre a cidade: o cu. O de Juan-les--Pins, de Toulouse, Dijon, Amienes, um mesmo cu para os campos e para as cidades, para toda a Frana. Mathieu parou, levantou a cabea e olhou: um cu de qualquer lugar, sem privilgios. E eu nessa grande equivalncia: um homem qualquer. Um homem qualquer num lugar qualquer: a guerra. Fixou os olhos numa poa de luz, repetiu, para ver: Paris, Bulevar Raspail. Mas tinham-nos mobilizado tambm, aqueles nomes de luxo pareciam sair de um mapa de estado-maior ou de um comunicado. Nada mais restava do Bulevar Raspail. Estradas, somente estradas, que corriam de sul para norte, de oeste para leste; estradas numeradas. De vez em quando, calavam-nas num quilmetro ou dois, passeios e lojas jorravam do cho e quilo chamavam rua, avenida, bulevar. Mas nunca passava de um pedao de estrada. Mathieu caminhava, com o rosto voltado para a fronteira belga, num trecho de estrada departamental ligado Nacional 14. Virou para a longa via recta transitvel que prolongava as linhas frreas da Companhia do Oeste, antiga Rua de Rennes. Uma chama envolveu-o, fez saltar uma luz da sombra, apagou-se: um txi passava, rodava em direco s estaes da margem direita. Surgiu atrs um automvel preto cheio de oficiais, depois reinou novamente o silncio. A beira do caminho, sob um cu indiferenciado, as casas tinham-se reduzido sua funo mais grosseira: eram prdios de renda, agora eram dormitrios e refeitrios para os mobilizveis e suas famlias. J se pressentia o seu destino final: tornar-se-iam pontos
estratgicos e, enfim, PENA SUSPENSA alvos. Depois disso, podiam destruir Paris se quisessem: j estava morta. Um novo mundo germinava: o mundo austero e prtico dos utenslios. Um raio de luz passou entre as cortinas do caf dos Deux-Magots. Mathieu sentou-se a uma mesa da esplanada. Atrs dele cochichavam no escuro: os ltimos fregueses. Comeava a refrescar. Um duplo pediu Mathieu. Quase meia-noite observou o criado. No servimos na esplanada. S um duplo. Bem, ento, no se demore. Atrs de Mathieu uma mulher ria. Era o primeiro riso que ouvia desde a sua volta; quase se sentiu chocado. No entanto, no estava triste, mas no tinha vontade de rir. Uma nuvem rasgou-se no cu e surgiram duas estrelas. Mathieu pensou: a guerra. Se no se importasse de me pagar j... Depois deix-lo-ei sossegado. Mathieu pagou, o criado voltou para a sala. Um casal de sombras ergueu-se, deslizou entre as mesas, desapareceu. Mathieu estava sozinho na esplanada. Levantou a cabea e viu, do outro lado da praa, uma bela igreja, novinha, branca, dentro da noite. Uma igreja de aldeia. Ontem, naquele lugar, erguia-se um edifcio bem parisiense: a Igreja de Saint Germain-des-Prs, monumento histrico, muitas vezes Mathieu marcava encontro com Ivich ali, sob o prtico. Amanh talvez no houvesse em frente do Deux--Magots seno un utenslio quebrado, contra o qual cem canhes atirariam obstinadamente. Mas hoje, hoje Ivich estava em Laon. Paris estava morta, acabava de enterrar a J E A N-P A U L SARTRE | j paz, a guerra ainda no tinha sido declarada. Uma grande forma branca assentava numa praa, escamas brancas da noite. Uma igreja de aldeia. Era nova e bela; no tinha nenhuma utilidade. Um vento ligeiro principiou a soprar; um automvel de faris apagados passou, um ciclista, a seguir, e depois dois camies fizeram o cho tremer. A imagem de pedra turvou-se por um instante, o vento caiu, fez-se silncio e ela tornou a formar-se, branca, intil, inumana, erguendo-se no meio de todos aqueles utenslios verticais, margem da estrada de leste, o futuro impassvel e nu do rochedo. Eterna.
Bastaria um pontinho escuro no cu para fazer que se estilhaasse e no entanto era eterna. Um homem s, esquecido, devorado pela sombra dessa eternidade perecvel. Estremeceu e pensou: Eu tambm sou eterno. Aquilo aconteceu sem tragdias. Havia um homem terno e timorato que gostava de Paris e passeava pela cidade. O homem morrera. Estava to morto quanto Waldeck--Rousseau ou Thureau-Dangin; afundara-se no passado do mundo, com a Paz, a sua vida fora registada nos arquivos da Terceira Repblica; as suas despesas quotidianas alimentariam as estatsticas acerca do nvel de vida das classes mdias aps 1918, as suas cartas serviriam de documentos para a histria da burguesia entre as duas guerras, as suas inquietaes, as suas hesitaes, as suas vergonhas, os seus remorsos seriam preciosos para o estudo dos costumes franceses depois da queda do Segundo Imprio. Esse homem construra um futuro sua medida, curtido, moqueado, resignado, sobrecarregado de sinais, de escombros, de projectos. Um pequeno futuro histrico e mortal: a guerra cara-lhe em cima com todo o seu peso e esmagara-o. EntrePENA SUSPENSA tanto at quele momento ainda restava alguma coisa a que se poderia chamar Mathieu, alguma coisa a que se agarrava com todas as suas foras. No saberia defini-la. Talvez algum hbito muito antigo, talvez certa maneira de escolher os seus pensamentos sua imagem, de se escolher a si mesmo ao acaso dos dias, imagem dos seus pensamentos, de escolher os seus alimentos, os seus hbitos, as rvores e as casas que via. Abriu as mos e largou tudo; aquilo passava-se muito longe, no fundo de si mesmo, numa regio em que as palavras no tm sentido. Largou tudo: sobrou apenas um olhar. Um olhar novo, sem paixo, uma simples transparncia. Perdi a minha alma, pensou com alegria. Uma mulher atravessou essa transparncia. Apressava-se, os seus saltos ressoavam na calada. Escorregou dentro do olhar imvel, preocupada, mortal, temporal, devorada por mil projectos midos, passou a mo pela fronte sem deixar de andar, a fim de lanar uma mecha de cabelos para trs. Eu era como ela: uma colmeia de projectos. A sua vida a minha vida; sob aquele olhar, sob aquele cu indiferente, todas as vidas se equivaliam. A escurido agarrou-a, os saltos ressoaram na Rua Bonaparte; todas as vidas humanas se fundiram na sombra, o rudo cessou. O meu olhar. Contemplava a brancura abafada do campanrio. Tudo est morto. O meu olhar e essas pedras. Eterno e mineral como ela. No meu velho futuro homens e mulheres esperavam-me a 20 de Junho de 1940, a 16 de Setembro de 1942, a 8 de
Fevereiro de 1944, faziam-me sinais. Agora s o meu olhar que se espera a si mesmo no ruturo, a perder de vista, como essas pedras esperam, esperam continuar pedras amanh, depois de amanh, sempre. olhar e uma alegria enorme como o mar; era uma festa. J E A N-P AUL SARTRE Pousou as mos nos joelhos, queria ficar calmo: quem me prova que no voltarei a ser amanh o que era ontem? Mas no tinha medo. A igreja pode desmoronar, posso cair num buraco de obus, recair na minha vida: nada me pode arrancar este momento de eternidade. Nada: haveria, para sempre, este relmpago seco inflamando pedras sob o cu escuro; o absoluto, para sempre; o absoluto, para sempre; o absoluto, sem causa, sem razo, sem objectivo, sem outro passado, sem outro futuro, seno a permanncia, gratuito, fortuito, magnfico. Sou livre, pensou subitamente. E a sua alegria transformou-se de imediato em esmagadora angstia. Irene aborrecia-se. No acontecia nada, s a orquestra tocando Music Maestro Please e Marc olhando-a com olhos de foca. Nunca acontecia nada, alis, ou ento, se acontecia alguma coisa, por acaso, no se percebia no momento. Acompanhava com o olhar uma escandinava, uma grande loira que danava h mais de uma hora sem sequer se sentar entre as danas. Pensou com imparcialidade: essa mulher est bem vestida. Marc tambm estava bem vestido; toda a gente estava bem vestida, salvo Irene que se sentia suja no seu vestido gren, mas no se importava, eu bem sei que no tenho gosto para escolher as minhas toilettes; e depois, onde arranjaria o dinheiro para as renovar, apenas; j que temos de nos dar com os ricos, precisamos de achar uma maneira de no dar nas vistas. Havia j uma meia dzia de indivduos que a olhavam; um vestido vagabundo, um pouco brilhante, suscitava-lhes o apetite, sentiam-se menos intimidados. Marc estava vontade porque era rico; gostava de lev-la aos lugares de gente rica porque a colocava, assim, em estado de inferioridade e, supunha, de menor resistncia. Porque no quer? perguntou ele. PENA SUSPENSA Irene estremeceu. O que que eu no quero? Ah!, sim... Sorriu sem responder. Em que pensava? No seu copo vazio. Pea outro Cherry Gobler. Marc pediu outro Cherry Gobler. Era divertido faz-lo porque anotava as despesas diariamente num bloco. Esta noite, anotaria: passeio com Irene, um gin-fizz, dois Cherry Gobler: cento e sessenta francos. Ela percebeu que ele lhe acariciava
o antebrao com a ponta do indicador, h um bom momento que devia estar a divertir-se assim. Diga, Irene, porqu? Sei l respondeu ela bocejando. Nem sei. Mas exactamente: se no sabe realmente... No, pelo contrrio. Quando durmo com algum quero saber porque o fao. Ou por causa de uma frase dita pelo indivduo ou porque ele bonito. Eu sou bonito disse Marc em voz baixa. Irene riu e ele corou. Enfim murmurou ele , voc sabe o que eu quero dizer. Muito bem. Ele pegou-lhe no pulso: Irene! Que preciso fazer? Inclinava-se sobre ela com uma humildade irritada, a emoo perturbava-lhe a respirao. Como estou aborrecida, pensou ela. Nada. Absolutamente nada. Bem... Largou-a, endireitou-se, mostrando um pouco os dentes. Ela via-se ao espelho, uma mulherzinha mal vestida com J E A N-P AUL SARTRE belos olhos, pensou: Deus meu, quanta histria por to pouco! Tinha vergonha plos dois e tudo era to inspido, to aborrecido; nem compreendia porque se recusava: seria bem melhor dizer-lhe: Quer mesmo? Pois vamos. Meia hora num quarto de hotel, uma pequena sem-vergonha entre dois lenis, depois volta-se aqui para terminar a noite e deixa-me sossegada. Mas era de crer que ainda dava demasiada importncia ao seu pobre corpo: sentia muito bem que no cederia. Acho-a engraada! disse ele. Virava os olhos belos e maus, vai tentar magoar-me, natural, depois pedir desculpa. Como se defende disse ele com ironia. Se no a conhecesse h quatro anos poderia pensar que por virtude! Ela olhou-o com um interesse repentino e ps-se a pensar. Quando pensava aborrecia-se muito menos. Tem razo respondeu , engraado: sou uma mulher fcil, verdade, e no entanto preferia deixar que me cortassem em pedaos a dormir consigo. Explique-me isso! Examinou-o imparcialmente e concluiu: No posso sequer dizer que me repugna realmente. Fale baixo! Fale mais baixo. E ele acrescentou maldosamente: Tem uma vozinha cristalina que se ouve ao longe. Calaram-se. As pessoas danavam, a orquestra tocava Caravane,
Marc fazia girar o copo sobre a toalha e os pedaos de gelo entrechocavam-se l dentro. Irene voltou ao seu estado de aborrecimento. No fundo disse ele bruscamente , demonstrei demasiado que a desejava. PENA SUSPENSA Estendera as mos sobre a toalha e alisava-a com calma; tentava recobrar a sua dignidade humana. Nenhuma importncia, vai tornar a perd-la dentro de cinco minutos. Sorriu-lhe, contudo, porque ele lhe oferecia a oportunidade de se interrogar sobre si mesma. Sim disse ela , h um pouco disso. Via Marc atravs de uma bruma, uma bruma tranquila feita de espanto e que lhe subira do corao aos olhos. Adorava sentir-se assim espantada, com todas as indagaes que se fazem indefinidamente e ficam sempre sem resposta. Explicou-lhe: Fico escandalizada quando me desejam muito. Marc, sinto-me ridcula: amanh Hitler ter-nos- talvez atacado e voc a excitado porque eu no quero dormir consigo! E preciso realmente que seja um pobre coitado para se pr dessa maneira por uma pobre coitada como eu. Isso comigo disse ele irado. Comigo tambm: detesto que me superestimem. Houve um silncio. Somos animais, fazemos frases em torno de um instinto. Olhou-o de soslaio: pronto, vai perder a linha. Os traos dele acentuavam-se, o pior momento estava ainda por vir; uma vez ele chorara no Melody's. Abriu a boca, ia falar, mas atalhou com vivacidade: Cale-se, Marc, peco-lhe: vai dizer uma estupidez ou uma grosseirice. Ele no a ouviu, meneava a cabea, tinha um ar fatal. Irene, vou partir. Partir? Para onde? No se faa de parva. Sabe muito bem. E ento? Pensei que isso a comoveria um pouco. J E A N-P AUL SARTRE i -i. Ela no respondeu: olhava-o fixamente. Ao fim de um momento ele continuou, desviando o olhar. Em 14, muitas mulheres se entregaram a tipos que as amavam, simplesmente porque eles iam partir. Ela no disse nada; as mos de Marc puseram-se a tremer. Irene, uma coisa que vale to pouco para si, e para mim tem tanta importncia, principalmente neste momento...
Isso no pega. Ele voltou-se com violncia: Afinal por si que eu me vou bater! Srdido! Ele acalmou-se imediatamente: mas tinha os olhos irados. No posso suportar a ideia de morrer sem a ter tido. Irene levantou-se. Venha danar. Ele levantou-se tambm, docilmente. Danaram. Colara-se a ela, fazia-a dar grandes passos na sala, mas de repente ela deteve-se ofegante. Que foi? perguntou ele. Nada. Ela acabava de reconhecer Philippe, sentado, bem comportadinho, perto de uma crioula bastante bonita mas j um pouco passada. Estava aqui! Enquanto o procuravam por toda a parte! Achou-o plido, de olhos pisados. Empurrou Marc para o meio dos danarinos; era preciso que Philippe no a visse. A orquestra parou, voltaram para a mesa. Marc deixou-se cair no banco. Irene ia sentar-se, quando viu um sujeito inclinar-se diante da crioula. PENA SUSPENSA Sente-se disse Marc. No gosto de a ver de p. Um minuto! atalhou ela com impacincia. A negra levantou-se preguiosamente e o sujeito enlaou-a, Philippe olhou-os por um instante, como que acuado, e Irene sentiu o corao pular-lhe do peito. De repente, ele ergueu-se e saiu. Desculpe-me por um momento disse Irene. Onde vai? Ao toilette. Est satisfeito? Vai fingir que vai ao toilette e vai-se embora. Ela mostrou-lhe a bolsa. A minha bolsa est a. Marc resmungou qualquer coisa, ela atravessou a pista aos tombos. Est louca, essa camarada! disse uma mulher. Marc erguera-se atrs dela e ela ouvia-o gritar: Irene! Irene! Mas j estava l fora. Como quer que fosse, ele precisaria de cinco minutos para pagar a conta. A rua estava escura: pena, pensou, perdi-o de vista. Mas quando os seus olhos se habituaram penumbra, ela percebeu-o; caminhava em direco Trinit, colando-se s paredes. Ela ps-se a correr: Que fique com a bolsa! Perco o estojo, cem francos, duas cartas de Maxime, no faz mal. No se aborrecia mais. Percorreram assim
uma centena de metros, correndo ambos, e de repente Philippe parou to bruscamente que Irene teve medo de esbarrar com ele. Desviou-se, ultrapassou-o e, aproximando-se de uma porta, tocou duas vezes campainha. A porta abriu-se, Philippe passou por trs dela. Ela esperou um segundo; depois, bateu porta violentamente, como se tivesse entrado no imvel. Philippe J E A N-P AUL SARTRE andava agora devagar, era fcil segui-lo. De vez em quando, a escurido envolvia-o e mais adiante ele emergia da noite sob a chuvinha luminosa de um lampio. Como me divirto, pensou ela. Adorava seguir as pessoas; perdia horas inteiras atrs de gente que nem sequer conhecia. Nos bulevares ainda havia muita gente e estava claro por causa dos cafs e das montras. Philippe parou pela segunda vez, mas Irene no se deixou surpreender; postou-se atrs dele num canto escuro e esperou. Talvez tenha um encontro. Ele voltou-se para o lado dela, estava lvido; subitamente, ps-se a falar e ela pensou que a tivesse reconhecido; estava porm certa de que ele no a podia ver. Philippe deu um passo atrs, murmurou alguma coisa, parecia aterrorizado. Ficou louco, pensou ela. Duas mulheres passaram, uma jovem e uma velha, com chapus provincianos. Ele chegou-se a elas, tinha uma cara de exibicionista. Abaixo a guerra! gritou. As mulheres apressaram o passo, no pareciam compreender. Dois oficiais vinham atrs; Philippe calou-se e deixou que passassem. Uma prostituta, cujo perfume se infiltrou nas narinas de Irene, seguia-os. Philippe colocou-se diante dela com um ar maldoso: ela j lhe sorria, mas ele disse com voz estrangulada: Abaixo a guerra! Abaixo Daladier! Viva a paz! Idiota! disse a mulher. Passou. Philippe sacudiu a cabea, olhou furioso para a direita e para a esquerda e mergulhou subitamente nas trevas da Rua Richelieu. Irene riu to alto que quase se deixou descobrir. Mais dois minutos. PENA SUSPENSA Mexia no boto, uma msica de jaz2 jorrou do aparelho, quatro notas de saxofone, uma estrela cadente. Ah!, deixe disse Ivich. E bonito. Serguine virou o boto e o lamento do saxofone foi substitudo por um rudo arrastado e spero. Considerou Ivich com severidade:
Como podes gostar desta msica de selvagens? Desprezava os negros. Da sua vida de estudante em Munique conservava recordaes fulgurantes, um culto por Wagner. Est na hora observou. Uma voz fez tremer o receptor. Uma voz francesa, bem grave, afvel, que se esforava por exprimir, atravs de inflexes, todos os matizes do discurso, uma voz penetrante e persuasiva de irmo mais velho. Detesto as vozes francesas. Ela sorriu para o pai e disse, covardemente, a fim de reviver um pouco a antiga intimidade: Detesto as vozes francesas. Serguine emitiu um ligeiro grunhido, mas no respondeu e, com a mo, imps-lhe silncio. Hoje, dizia a voz, o representante do primeiro--ministro britnico foi recebido novamente pelo chanceler do Reich, o qual lhe fez saber que se at amanh s catorze horas no tivesse recebido uma resposta satisfatria de Praga, a respeito da promessa de evacuao das regies dos Sudetas, tomaria as medidas que julgasse necessrias. Considera-se que o chanceler Hitler quis mencionar a mobilizao geral, cuja ordem estava sendo esperada para segunda-feira, por ocasio do discurso do chanceler, e que s ter sido adiada em consequncia da carta do pnmeiro-ministro britnico. J E A N-P AUL SARTRE A voz calou-se. Ivich, com a garganta seca, ergueu os olhos para o pai. Ele bebera aquelas palavras com um ar estpido de beatitude. Que significa exactamente uma mobilizao? perguntou ela com displicncia. Significa a guerra. No necessariamente. Ora! No nos bateremos disse ela com violncia. No podemos bater-nos por causa da Checoslovquia. Serguine sorriu com doura: Sabes, quando se mobiliza... Mas se no queremos a guerra! Se no quisssemos a guerra no teramos mobilizado. Ela olhou-o com estupor: Mobilizmos? Ns tambm? No disse ele corando. Quero referir-me aos Alemes. Ah!, e eu falava dos Franceses disse Ivich secamente. A voz recomeou, calma e benigna. Pensa-se em geral nos crculos estrangeiros de Berlim... Psiu! fez Serguine.
Tornou a sentar-se, voltado para o receptor. Sou uma rf, pensou Ivich. Deixou a sala na ponta dos ps, atravessou o corredor, fechou-se no quarto. Batia os dentes: passaro por Laon, incendiaro Paris, a Rua de Seine, a Rua Gaite, a Rua Rosiers, o baile de Montagne Sainte-Genevive; se Paris for incendiada, mato-me. Oh!, pensou bruscamente, e o Museu Grvin? Nunca fora ao museu, Mathieu l PENA SUSPENSA prometera lev-la em Outubro e iam reduzi-lo a p com as suas bombas. E se fosse esta noite? O seu corao dava pulos; sentia frio nos antebraos e nas mos; que que os impede de faz-lo? Talvez a esta hora Paris j tenha sido reduzida a um monto de cinzas e escondem-no para que a populao no seja tomada de pnico. A menos que seja proibido por acordos internacionais. Como sab-lo? Oh!, pensou furiosa, tenho a certeza de que h pessoas que sabem, eu no percebo nada, mantiveram-me ignorante, obrigavam-me a estudar latim, e ningum me disse nada, e a est agora. Mas tenho direito a viver, pensou desnorteada, puseram-me no mundo para viver, tenho esse direito. Sentia-se to profundamente lesada, que se abateu sobre o travesseiro e foi sacudida por cinco ou seis soluos. E injusto, murmurava, na melhor das hipteses, sero seis anos, dez anos, e todas as mulheres se vestiro como enfermeiras, e quando tudo terminar serei uma velha. Mas as lgrimas no correram, tinha um pedao de gelo no corao. Endireitou-se bruscamente: Quem, quem quer a guerra? Individualmente, separadamente ningum era belicoso. Os homens, em verdade, s pensavam em comer, ganhar dinheiro e fazer filhos. Mesmo os Alemes. E no entanto a guerra estava ali, Hitler mobilizara. Afinal, ele no pode decidir isso sozinho, pensou. Uma frase veio--Ihe ao esprito, onde a lera? Certamente em algum jornal, a menos que a tivesse ouvido ao almoo, de um fregus do pai; quem est por trs dele?, repetiu a meia voz, franzindo as sobrancelhas e fitando a ponta dos chinelos: Quem est por trs dele? Esperava que tudo se esclarecesse e passava em revista todas essas grandes potncias obscuras que gover-nam o mundo: a maonaria, os jesutas, as duzentas famJ E A N-P AUL SARTRE lias, os fabricantes de armas, os donos do ouro, a muralha do dinheiro, os trusts americanos, a Internacional Comunista, o Ku-Klux-Klan; devia haver um pouco de tudo e mais outra coisa talvez, uma sociedade secreta e formidavelmente poderosa, da qual se ignorava at o nome. Mas que podem eles querer?, indagava, enquanto duas lgrimas de dio lhe escorriam pelo
rosto. Tentou em vo adivinhar--Ihes as razes, mas sentia-se vazia, com uma argola de metal em volta do crebro. Se eu soubesse onde a Checoslovquia! Pregara parede com punaises uma grande aguarela em ouro e azul: era a Europa, divertira-se a pint-la no Inverno anterior, copiando-a de um atlas, com algumas correces de linhas; pusera rios por toda parte, chanfrara as costas demasiado chatas e evitara cuidadosamente escrever qualquer nome; dava uma impresso de coisa erudita e pretensiosa, nenhuma fronteira to-pouco, detestava as linhas pontilhadas. Aproximou-se, a Checoslovquia estava ali, algures, no mago das terras, a menos que fosse a Rssia. E a Alemanha? Onde est? Olhava para a grande forma amarela e lisa, cercada de azul e pensava: Toda esta terra! Sentia-se perdida. Virou-se, deixou cair o roupo e contemplou-se nua ao espelho; em geral isso consolava-a um pouco, quando tinha aborrecimentos. Mas viu-se de repente pequenina, um feto, com uma pele gra-nulosa, porque estava toda arrepiada e as pontas dos seios retesavam-se, ela detestava isso, um corpo de hospital, feito para ferimentos, dizem que eles violentam as mulheres, podem cortar-me uma perna. Se entrassem no seu quarto e a encontrassem nua na cama: a senhora tem cinco minutos para se vestir, e virariam as costas como fizeram com Maria Antonieta, mas ouviriam tudo, o barulho mole dos ps no PENA SUSPENSA tapete, o roar do vestido na pele. Pegou nas calas e nas meias e enfiou-as rapidamente, deve-se esperar a desgraa de p e vestida. Depois de vestir a saia e a blusa, sentiu-se um pouco protegida. Mas no momento em que calava os sapatos ouviu uma voz cantarolando em alemo no corredor. Ich hatte einen Kamera.de... Ivich precipitou-se, abriu a porta e deu de cara com o pai, solene e esperto. Que que est a cantar? perguntou furiosa. Ele olhou-a com um sorriso sabido: Esperana, bichinha, esperana! Tornaremos a ver a nossa Santa Rssia. Ela voltou para o quarto batendo a porta com toda a fora: Que tenho eu a ver com a Santa Rssia! No quero que destruam Paris, e se eles fizerem qualquer coisa ver se os avies franceses no iro lanar bombas na sua Munique. O rudo de passos perdeu-se no corredor e tudo voltou a cair no silncio. Ivich mantinha-se tesa no meio do quarto, evitando olhar-se ao-espelho. Subitamente ouviram-se trs silvos imperiosos, vinham da rua, ela estremeceu da cabea aos ps. L fora. Na rua. Tudo se passava l fora: o seu quarto
era uma priso. Decidiam da sua vida por toda a parte, ao norte, a leste, a sul, por toda a parte naquela noite envenenada, cortada por relmpagos, cheia de cochichos e concilibulos, por toda a parte menos ali onde se achava, entle paredes, e onde no acontecia nada. As suas mos e pernas puseram-se a tremer, pegou na J E A N-P AUL SARTRE bolsa, passou o pente plos cabelos, abriu a porta sem rudo e saiu. L fora. Tudo est l fora: as rvores no cais, as duas casas da ponte, rosadas dentro da noite, o galope imvel de Henrique IV acima da minha cabea: tudo o que pesa. L dentro nada, nem um fumo, no existe l dentro, no existe nada. Eu: nada. Sou livre, pensou, com a boca seca. A meio da Pont-Neuf ele parou e ps-se a rir; essa liberdade, procurei-a bem longe, estava to prxima que no a podia ver, no a podia tocar, era apenas eu. Eu sou a minha liberdade. Esperava ter um dia uma imensa alegria, ser trespassado por um raio. Mas no havia nem raio nem alegria: apenas aquela nudez, aquele vcuo tomado de vertigem diante de si mesmo, aquela angstia cuja prpria transparncia impedia que se visse. Estendeu as mos e passeou-as devagar sobre a pedra do parapeito, era rugosa, vincada, uma esponja petrificada, ainda quente do sol da tarde. Estava ali enorme e macia, encerrando em si o silncio esmagado, as trevas comprimidas que constituem o mago das coisas. Estava ali, uma plenitude. Teria desejado agarrar-se a essa pedra, fundir-se nela, encher-se da sua opacidade, do seu repouso. Mas ela no o podia servir, estava l fora, para sempre. No entanto havia as suas mos no parapeito branco: quando as olhava, pareciam de bronze. Mas, justamente porque as podia olhar, no lhe pertenciam mais, eram mos de outro, de l de fora, como as rvores, como os reflexos do Sena, mos cortadas. Fechou os olhos e elas tornaram a ser dele: no houve mais nada sobre a pedra quente, seno um gostinho cido e familiar, um saborzinho de formiga muito desdenhvel. As minhas mos: a inaprecivel distncia que me revela as coisas e PENA SUSPENSA delas me separa para sempre. No sou nada, no tenho nada. To inseparvel do mundo quanto a luz, e no entanto exilado, como a luz, deslizando superfcie das pedras, e da gua, sem que nada, jamais, me prenda ou me faa encalhar. Fora. Fora. Fora do mundo, fora do passado, fora de mim mesmo: a liberdade o exlio e estou condenado a ser livre. Deu alguns passos, sentou-se no parapeito e ficou a olhar para a gua a correr. E o que que vou fazer desta liberdade
toda?.Que que vou fazer de mim? Haviam balizado o seu futuro com tarefas precisas: a estao, o comboio para Nancy, a caserna, o manuseio de armas. Mas nem esse futuro nem essas tarefas lhe pertenciam mais. Nada mais lhe pertencia: a guerra arava a terra, mas no era a sua guerra. Estava s naquela ponte, s no mundo e ningum lhe podia dar ordens. Sou livre para nada!, pensou desanimado. Nem um sinal no cu ou na terra, os objectos deste mundo estavam demasiado absorvidos na sua guerra, voltavam para leste as suas mltiplas cabeas. Mathieu corria superfcie das coisas e elas no o sentiam. Esquecido. Esquecido pela ponte, que o suportava com indiferena, plos caminhos que levavam fronteira, por essa cidade que se soerguia lentamente a fim de contemplar no horizonte um incndio que no lhe dizia respeito. Esquecido, ignorado, s: um retardatrio. Todos os mobilizados haviam partido na antevspera, no tinham mais nada a fazer ali. Tomaria o comboio? No tem importncia. Partir, ficar, fugir; actos que no poriam em jogo a sua liberdade. E no entanto era preciso arrisc-la. Agarrou-se com as duas mos pedra e debruou-se sobre a gua. Seria suficiente um mergulho, a gua devor-lo-ia, a sua liberJ E A N-P A U L SARTRE dade tornar-se-ia gua. O repouso. Porque no? Esse suicdio obscuro seria tambm um absoluto. Toda uma lei, toda uma escolha, toda uma moral. Um acto nico, incomparvel, que iluminaria durante um segundo a ponte e o Sena. Bastaria debruar-se um pouco mais e ter-se-ia escolhido para a eternidade. Debruou-se, mas as suas mos no largaram a pedra, sustinham todo o peso do seu corpo. Porque no? No tinha razo particular para se afogar, mas no tinha to-pouco nenhuma para no o fazer. E o acto ali estava, sua frente, sobre a gua escura, desenhava-lhe o futuro. Todas as amarras haviam sido cortadas, nada no mundo o podia reter: era isso a horrvel liberdade. Bem no fundo de si, sentia bater o corao desorientado: um s gesto, mos que se abrem, e terei sido Mathieu. A vertigem ergueu-se devagar sobre o rio; o cu e a ponte desmoronaram-se: nada mais restava seno ele e a gua; ela subia at ele, lambia-lhe as botas. A gua, o seu futuro. Agora verdade, vou matar-me. De repente resolveu no se suicidar. Resolveu: seria apenas uma prova. Reencontrou-se de p, caminhando, escorregando sobre a crosta de um astro morto. Ser da prxima vez. Ela corria na rua principal, ouviu ainda dois ou trs silvos e depois mais nada, e eis que a rua era tambm uma priso; no acontecia nada, as fachadas das casas eram cegas e achatadas, todas as janelas estavam fechadas, a guerra estava algures.
Apoiou-se por um instante ao marco de uma fonte, estava cheia de ansiedade e desiludida, mas no sabia o que esperara: luzes talvez, lojas abertas, gente comentando os acontecimentos. No havia nada: as luzes iluminavam as embaixadas e os palcios nas grandes cidades polticas e ela estava fechada numa noite quotidiana. Tudo PENA SUSPENSA acontece sempre algures, disse, batendo o p. Ouviu um ligeiro rudo como se algum se tivesse aproximado dela, por trs; reteve a respirao, e escutou muito tempo; mas o rudo no se repetiu. Estava com frio, o medo apertava-lhe a garganta; pensou: No seria melhor voltar? Mas no podia voltar, tinha horror ao seu quarto. Ali, pelo menos caminhava sob o cu de todo o mundo, permanecia em comunicao pelo cu com Paris e Berlim. Ouvia um arranhar prolongado atrs de si e dessa vez teve a coragem de olhar. Era apenas um gato: os olhos brilharam e o bicho atravessou a rua, da direita para a esquerda, mau sinal. Recomeou a correr, virou na Rua Thiers e parou, ofegante. Os avies! Roncavam surdamente, deviam estar ainda muito longe. Escutou: o ronco no vinha do cu. Dir-se--ia... Naturalmente, pensou, despeitada: algum que ronca. Era Lescat, o notrio, reconheceu a placa. Roncava, de janelas abertas, ela no pde deixar de rir e de repente o seu riso cessou: esto todos a dormir! Estou sozinha na rua, cercada de pessoas que dormem, ningum d por mim. Por toda a parte, na terra, dormem ou preparam a sua guerra nas reparties, no h uma s pessoa que esteja a pensar no meu nome. E eu existo aqui, pensou escandalizada. Estou aqui, sinto, vejo, existo tanto quanto Hitler. Ao fim de um instante, reiniciou a caminhada e foi ter esplanada. Abaixo de Laon estendia-se a plancie melanclica. De longe em longe haviam colocado candeeiros, mas essas luzes no inspiravam confiana; Ivich sabia muito bem o que iluminavam: carris dormentes, pedras, vages abandonados nas vias. No fim da plancie havia Paris. Respirou; se estivesse em chamas, ver-se-ia um claro no horizonte. O vento colava-lhe a saia aos joelhos, mas ela no se J E A N-P AUL SARTRE mexia: Paris est ali, ainda banhada em luzes, e talvez seja a sua ltima noite. Havia, exactamente nesse momento, gente que descia e subia o Bulevar Saint-Michel. No Dome tambm havia pessoas a conversar, que talvez a conhecessem. A ltima noite e estou aqui, nesta gua escura, e quanto for livre s encontrarei um monte de runas com tendas entre as pedras. Deus meu, disse ela, fazei com que eu possa voltar a v-la uma ltima vez! A estao era exactamente l em baixo, era
aquele claro perto da escada, o nocturno saa s trs e vinte: Tenho cem francos, murmurou triunfalmente, tenho cem francos na minha bolsa. Descia apressada a ladeira da estao; Philippe descia a correr a Rua Montmartre, medroso, pobre medroso, ah!, eu sou um medroso. Pois vo ver. Desembarcou numa praa; um buraco sombrio e bulioso abria-se do outro lado da rua, cheirava a repolho e carne crua. Parou diante da grade de uma estao do metro, havia caixotes vazios nas caladas, viu a seus ps pedaos de palha e folhas de alface sujas de lama; direita, sombras passavam e repassavam na luz branca de um caf. Ivich chegou-se ao guicbet: Um bilhete de terceira para Paris. Ida e volta? Ida respondeu com segurana. Philippe limpou a voz e berrou com toda a fora: Abaixo a guerra! No aconteceu nada, o vaivm das sombras continuou. Ps as mos em trombeta e tornou a berrar: Abaixo a guerra! A sua voz pareceu-lhe um trovo. Algumas sombras pararam e ele viu homens que vinham para o seu lado. PENA SUSPENSA Eram numerosos, avanavam devagar e olhavam-no com interesse. Abaixo a guerra! Estavam perto dele; havia tambm duas mulheres e um jovem moreno de fsico bastante agradvel. Philippe olhou-o com simpatia, e ps-se a gritar sem o perder de vista: Abaixo Daladier! Abaixo Chamberlain! Viva a paz! Cercavam-no agora e ele sentia-se vontade pela primeira vez em quarenta e oito horas. Fitavam-no, arqueando as sobrancelhas, e no diziam nada. Quis explicar que eram vtimas do imperialismo capitalista, mas a sua voz no se podia calar e gritava: Abaixo a guerra! Era um hino triunfal. Subitamente recebeu um murro ao p do ouvido e continuou a gritar, depois um soco na boca e outro no olho direito; caiu de joelhos e no gritou mais. Uma mulher colocara-se diante dele, via-lhe as pernas e os sapatos de salto baixo, ela debatia-se dizendo: Brutos! Brutos! E uma criana, no batam. Mathieu ouviu uma voz aguda: Brutos! Brutos! E uma criana, no batam!, algum se debatia no meio de uma dezena de sujeitos de bon; era uma mulher pequenina, erguia os braos e os cabelos caam-lhe pelo rosto. Um jovem moreno, com uma cicatriz sob a orelha, sacudia-a violentamente e ela gritava:
Ele tem razo, so todos uns covardes, deveriam estar na Concorde manifestando-se contra a guerra; mas preferem bater numa criana, menos perigoso. Uma rufia gorda, diante de Mathieu, contemplava a cena com olhos brilhantes: Tirem a roupa dela! disse. J E A N-P AUL SARTRE Mathieu voltou-se aborrecido: incidentes como aquele deviam repetir-se por toda a parte. Vspera de guerra, viglia de armas: era pitoresco, no lhe dizia respeito. De repente decidiu que aquilo lhe dizia respeito. Afastou a rufia com um empurro, entrou no grupo e ps a mo no ombro do rapaz moreno. Polcia disse. Que que h? O tipo fitou-o com desconfiana: Foi o mido que gritou: Abaixo a guerra. E tu bateste-lhe observou Mathieu severamente. No podias chamar um guarda? No h guarda disse a rufia. Tu, a atalhou Mathieu , falars quando eu me dirigir a ti. O tipo moreno parecia preocupado. No lhe fizemos mal disse, lambendo as falanges esfoladas. Demos-lhe uns safanes, mais nada. Quem deu os safanes? indagou Mathieu. O tipo da cicatriz olhou para as mos, suspirando: Eu respondeu. Os outros haviam recuado uns passos. Mathieu virou-se para eles: Querem ser citados como testemunhas? Eles recuaram mais um pouco sem responder. A rufia tinha desaparecido. Andem ordenou Mathieu. Ou tomo os vossos nomes. Tu, a, fica. Ento disse o tipo , nessa altura engaiolam-se os Franceses quando eles corrigem um boche provocador? No te incomodes, vamos explicar-nos. Os curiosos haviam-se dispersado. PENA SUSPENSA Dois ou trs olhavam da porta de um caf. Mathieu inclinou-se sobre o mido; tinham-no magoado bastante. A boca sangrava e tinha um olho fechado. Com o outro, olhava fixamente para Mathieu. Eu gritei disse activamente. No fizeste muito bem. Podes levantar-te? O mido ps-se de p, com dificuldade. Cara em cima da alface, uma folha colara-se-lhe ao traseiro e um pouco de
palha enlameada prendia-se ao casaco. A mulher limpou-o com a mo. Conhece-o? perguntou Mathieu. Ela hesitou: N... no. O rapazinho riu: Naturalmente conhece-me. E Irene, a secretria de Pitteaux. Irene fixou em Mathieu um olhar sombrio. O senhor no vai prend-lo por causa disso? Vou dar-lhe bombons?! O tipo da cicatriz puxou-o pela manga, no parecia muito satisfeito: Ganho a minha vida, senhor inspector, trabalho. Se o acompanhar at esquadra, perco a minha noite. Os seus papis. O tipo mostrou um passaporte Nansen, chamava-se Canaro. Nascido em Constantinopla! Ora vejam s; preciso que ames de verdade a Frana para rebentar assim o primeiro que a ataque. a minha segunda ptria disse o tipo com dignidade. J E A N-P AUL SARTRE Vais-te alistar, espero! O tipo no respondeu. Mathieu anotou-lhe o nome e o endereo num caderninho. Vai-te embora disse. Sers chamado. Os outros venham comigo. Entraram os trs na Rua Montmartre e deram alguns passos. Mathieu sustinha o rapaz, que vacilava. Irene perguntou: No vai solt-lo? Mathieu no respondeu: no estava ainda bastante longe das Halles. Andaram mais um pouco; como passassem por baixo de um candeeiro, Irene colocou-se frente de Mathieu e olhou-o com dio. Seu comissrio nojento! Mathieu riu. Os cabelos tinham-lhe cado no rosto e ela era forada a olhar de lado para o ver entre as mechas. Eu no sou comissrio disse ele. Tem a certeza de que no ? Ela sacudia a cabea para se livrar dos cabelos. Acabou por os juntar com raiva e os lanar para trs. O rosto apareceu, pele seca e grandes olhos. Era bonita e no parecia demasiado espantada. Se no comissrio, enganou-os muito bem. Mathieu no respondeu. A histria j no o divertia. Experimentara uma vontade sbita de ir passear na Rua Montorgueil. Bem disse , vou enfi-los num txi.
Havia dois ou trs estacionados no meio da rua. Mathieu aproximou-se de um, puxando o rapaz pela mo. Irene acompanhava-os. Ela segurava os cabelos no alto da cabea com a mo direita. PENA SUSPENSA Entrem para a. Ela corou: preciso que lhe diga: perdi a minha bolsa. Mathieu empurrava o rapaz para o automvel, com unia das mos entre as omoplatas; com a outra, segurava a porta. Procure no bolso do meu casaco. O bolso da direita. Irene tirou a carteira: Achei cem francos e uns nqueis. Pegue nos cem francos. Um empurro mais e o rapaz estatelou-se no banco. Irene subiu logo atrs. A sua morada? perguntou ela a Mathieu. J no tenho morada. Adeus. Eh! gritou Irene. Mas ele j tinha ido embora: queria ver a Rua Montor-gueil por mais uma vez. Queria tornar a v-la imediatamente. Andou um minuto, depois um txi veio encostar-se ao passeio, junto dele. A porta abriu-se e uma moa debruou-se: era Irene. Suba depressa disse ela. Depressa. Mathieu subiu. Sente-se nesse banquinho. Sentou-se: Que que h? O mido perdeu a cabea. Diz que se vai entregar; est sempre a mexer na porta e quer atirar-se para fora. No sou suficientemente forte para o segurar. O rapaz encolhera-se no banco, tinha os joelhos mais altos do que a cabea. Tem queda para mrtir disse Irene. Que idade tem ele? J E A N-P AUL SARTRE No sei; uns dezanove anos. Mathieu olhava para as pernas magras e compridas do rapaz; tinha a idade dos seus alunos mais velhos. Se ele tem vontade de ser preso disse , a senhora no o deve impedir. O senhor engraado disse Irene indignada. No sabe o que ele arrisca. Matou algum? No! Que foi que fez? uma longa histria comentou ela com melancolia. Ele observou que ela havia arranjado o penteado, pondo o cabelo no alto do crnio. Isso dava-lhe um ar cmico e
voluntarioso, apesar da sua bela boca cada. Em todo o caso isso l com ele. Ele livre. Livre? Se lhe estou a dizer que perdeu a cabea. Ao ouvir a palavra livre, o pequeno abriu um olho e resmungou alguma coisa que Mathieu no compreendeu; depois, bruscamente, lanou-se ao trinco da porta e tentou abrir. Um automvel passou rente ao txi; naquele preciso momento. Mathieu ps a mo no peito do rapaz e empurrou-o para o banco. Se eu quisesse ser prisioneiro continuou Mathieu no gostaria que mo impedissem. Abaixo a guerra! gritou o rapaz. Est certo disse Mathieu , tens razo. Segurava-o no banco. Voltando-se para Irene acrescentou: Realmente, creio que perdeu a cabea. O motorista indagou: Vamos? PENA SUSPENSA Avenida do Parque Montsouris, 15 disse Irene triunfante. O rapaz arranhou a mo de Mathieu; depois, quando o txi principiou a andar, resolveu sossegar-se. Ficaram silenciosos por um momento; o txi andava por ruas escuras, que Mathieu no conhecia. De vez em quando o rosto de Irene saa da escurido para mergulhar nela logo a seguir. bret? perguntou Mathieu. Eu sou de Metz. Porque me pergunta? Por causa do penteado. feio, no ? uma amiga que quer que eu me penteie assim. Calou-se um momento, depois indagou: Como que no tem morada? Estou a mudar de casa. Sei, sei... mobilizado, no ? Sim. Como toda a gente. Est contente com a guerra? No sei; nunca me meti nisso. Eu sou contra disse Irene. J percebi. Ela inclinou-se, solcita: Perdeu algum? No. Tenho cara de quem perdeu algum? Tem um ar engraado. Cuidado! Olhe! O rapaz estendera a mo e disfaradamente tentava abrir a porta. Quer fazer o favor de estar quieto? gritou Mathieu, empurrando-o novamente para o fundo do banco. Que estucha! disse ele para Irene. J E A N-P AUL SARTRE filho de um general! Ah! No deve ter muito orgulho no pai.
O txi parara. Irene desceu primeiro e depois foi preciso descer o rapaz. Ele agarrava-se a tudo e dava pontaps. Irene ps-se a rir: Que esprito de contradio: agora no quer sair! Mathieu acabou por pegar nele ao colo at ao passeio. Arre! Um segundo disse Irene. A chave est na minha bolsa, tenho de entrar pela janela. Aproximou-se de um andar que tinha uma janela aberta. Mathieu segurava o rapaz com uma das mos; com a outra tirou o dinheiro do bolso e entregou-o ao motorista. Fique com o troco. Que que tem o garoto? perguntou o motorista, zombeteiro. Passou da conta... O txi partiu. Atrs de Mathieu uma porta abriu-se e Irene surgiu, num rectngulo de luz. Entre disse. Mathieu entrou empurrando o rapaz, que no dizia mais nada. Irene fechou a porta. esquerda advertiu. Mathieu procurou s apalpadelas o boto da luz e acendeu. Viu um quarto empoeirado, com uma cama, um jarro com gua e uma bacia sobre o toucador. Uma bicicleta sem rodas estava suspensa por cordinhas ao tecto. o seu quarto? No, o quarto de visitas. Ele olhou-a e riu: As suas meias. PENA SUSPENSA Estavam brancas de poeira, e rasgadas at aos joelhos. Foi ao subir pela janela disse ela sem ligar. O rapaz colocara-se no meio do quarto, vacilava de maneira inquietante e examinava tudo com um s olho. Mathieu perguntou a Irene: Que fazemos dele? Tire-lhe os sapatos e deite-o; vou lavar-lhe a cara. O rapaz no ops resistncia: parecia liquidado. Irene voltou com a bacia e um pouco de algodo. Vamos disse. Seja bonzinho, Philippe. Inclinara-se sobre ele e passava-lhe desastradamente o algodo pelas sobrancelhas. O rapaz ps-se a resmungar. Di; mas faz bem disse ela maternalmente. Foi coiocar a bacia sobre o toucador. Mathieu levantou-se: Vou-me retirar. Ah!, no disse ela vivamente. E acrescentou em voz baixa: Se ele quiser fugir no terei fora para o segurar. Mas no pense que eu o vou vigiar a noite inteira!
Como pouco gentil! disse ela irritada. E acrescentou em tom mais conciliante: Espere ao menos at que ele adormea, no vai demorar muito. O garoto agitava-se na cama, murmurando palavras confusas. Onde poder ter andado para ficar em semelhante estado? observou Irene. Era meio gorducha, com uma carne baa, um pouco macia de mais, um pouco hmida, e que no parecia muito, muito limpa; dir-se-ia que acabava de se levantar, a cabea era admirvel: uma boca minscula com J E A N-P AUL SARTRE comissuras indolentes, olhos imensos e pequeninas orelhas rosadas. Ento disse Mathieu , ele est a dormir! Acha? Estremeceram; o rapaz erguera-se a berrar: Flossie, as minhas calas! Merda! disse Mathieu. Irene sorriu: Vai ficar at amanh. Mas fora um pouco de delrio antes do sono: Philippe deixou-se cair de costas, grunhiu durante alguns instantes e logo se ps a roncar. Venha disse Irene, em voz baixa. Acompanhou-a ao grande quarto forrado de cretone cor-de-rosa. Ela tinha pendurado na parede uma guitarra e um uculele. o meu quarto. Deixo a porta entreaberta por causa do rapaz. Mathieu viu uma cama espaosa e por fazer, um pufe, um gramofone e discos sobre uma mesa Henrique II. Numa cadeira de balouo, estavam meias usadas, calcinhas, combinaes, tudo a monte. Irene seguiu o olhar: Comprei os mveis numa feira da ladra. Nada feio disse Mathieu , nada feio. Sente-se. Onde? Espere. Sobre o pufe havia um navio dentro de uma garrafa. Ela pegou nele, colocou-o no cho, depois tirou as roupas da cadeira de balouo e lanou-as para o pufe. Pronto. Eu sento-me na cama. PENA SUSPENSA Mathieu sentou-se e ps-se a balouar. A ltima vez que me sentei numa cadeira de balouo foi em Nmes, na entrada do Hotel ds Arnes. Tinha quinze anos. Irene no respondeu. Mathieu reviu a entrada sombria com a sua porta envidraada, faiscante ao sol: essa recordao ainda lhe
pertencia; e havia outras, ntimas e indistintas, que tremiam em torno daquela: no perdi a minha infncia. A idade madura, a idade da razo, rura, mas restava a infncia, ainda quente: nunca estivera to prximo dela. Tornava a pensar no pequeno deitado nas dunas de Arcachon e que exigia liberdade: diante daquele pequeno obstinado Mathieu deixara de se sentir envergonhado. Levantou-se. J vai? Vou passear! respondeu. No quer ficar mais um pouco? Ele hesitou: Francamente, preferiria estar s. Ela pousou a mo no brao dele: Ver, comigo ser como se estivesse s. Olhou-a: tinha um jeito engraado de falar, suave e um tanto ingnuo na sua gravidade; mal abria a boquinha e sacudia um pouco a cabea para fazer cair as palavras. Fico disse ele. Ela no demonstrou nenhuma satisfao. A sua fisionomia, alis, parecia pouco expressiva. Mathieu deu alguns passos no quarto, aproximou-se da mesa e pegou nalguns discos. Estavam gastos, alguns rachados, quase nenhum possua saco. Havia msica de jazz, um pot-pourri de Maurice Chevalier, o Concerto para Mo Esquerda, o QuarJ E A N-P AUL SARTRE teto de Debussy, a Serenata de Toselli e a Internacional cantada por uni coro russo. comunista? perguntou ele. No. No tenho opinio. Acho que seria comunista se os homens no fossem imundos. Depois de reflectir acrescentou: Sou pacifista. Voc engraada disse Mathieu , se os homens so imundos devia-lhe ser indiferente que eles morressem na guerra ou no. Ela meneou a cabea com uma gravidade obstinada. Justamente. Se so imundos ainda mais nojento fazer guerra com eles. Houve um silncio. Mathieu contemplou uma teia de aranha no tecto e ps-se a assobiar baixinho. No posso oferecer-lhe nada. A menos que goste de xarope de orchata, ainda h uma pinguinha no fundo da garrafa. Hum! fez Mathieu. J sabia. Ah!, h um charuto na lareira, fume se quiser. Com prazer. Levantou-se e pegou nele: Posso aproveit-lo no cachimbo? Como quiser. Tornou a sentar-se, partindo a ponta do charuto com os dedos; sentia o olhar de Irene fixado nele.
Ponha-se vontade disse ela. Se no quiser falar, no fale. Est bem. Ela perguntou ao fim de um momento: No quer dormir? PENA SUSPENSA No. Parecia-lhe que nunca mais teria vontade de dormir. Onde estaria agora se no me tivesse encontrado? Na Rua Montorgueil. Que faria a? Passearia. Deve parecer-lhe estranho estar aqui. No. verdade disse ela com uma vaga censura ; est h to pouco tempo... Ele no respondeu: pensava que ela tinha razo. Aquelas quatro paredes e aquela mulher na cama, era um acidente sem importncia. Uma das imagens inconsistentes da noite. Mathieu estava por toda a parte onde fizesse noite, das fronteiras do Norte Cote d'Azur; eram um s, olhava Irene com todos os olhos da noite: ela no passava de uma luz minscula na escurido. Um grito agudo f-la sobressaltar. Que inferno, esse rapaz. Vou ver. Saiu na ponta dos ps e Mathieu acendeu o cachimbo. J no tinha vontade de ir Rua Montorgueil: a Rua Montorgueil estava ali; atravessava o quarto, todas as estradas de Frana passavam por ali, todas as ervas ali cresciam. Tinham colocado quatro tabiques num ponto qualquer. Mathieu estava num ponto qualquer. Irene voltou: era uma pessoa qualquer. No era a uma bret que se assemelhava. Era antes anamita do Dome. Tinha a mesma pele cor de aafro, o rosto inexpressivo e a graa impotente. No nada disse ela. Pesadelos. Mathieu deu uma cachimbada. Deve ter passado por duras experincias, esse rapaz! J E A N-P AUL SARTRE Irene encolheu os ombros e a sua fisionomia mudou bruscamente: Ora! Voc tornou-se dura de repente disse Mathieu. que me sinto irritada quando se tem d de um rapazinho dessa espcie, tudo isso so histrias de filhinho de pap. O que no o impedir de ser infeliz. D-me vontade de rir. Eu, o meu pai ps-me na rua com dezasseis anos: como v, no me dava bem com ele. Mas no diria nunca que era infeliz.
Por um instante, Mathieu entreviu, sob o seu rosto de luxo, uma face rude e experiente de mulher de trabalho. A voz dela era lenta e volumosa, deslizava com uma espcie de monotonia na indignao: Somos infelizes disse quando temos frio ou estamos doentes ou no temos que comer. O resto so ninharias. Ele ps-se a rir. Ela franzia o nariz com ateno e abria a boca para vomitar as palavras. Mal a ouvia: via-a. Um olhar. Um olhar imenso, um cu vazio: ela debatia-se nesse olhar, como um insecto na luz de um farol. No disse ela , estou disposta a receb-lo e tratar dele, a impedi-lo de fazer disparates; mas no quero que tenham d. Porque eu conheo a misria! E quando os burgueses afirmam que so desgraados... Olhou-o atentamente, recobrando o flego: E verdade que burgus? Sim, sou burgus. Ela v-me. Pareceu-lhe que endurecia e diminua a toda a velocidade. Atrs desses olhos h um cu sem PENA SUSPENSA estrelas, h tambm um olhar. Ela v-me: como a mesa e o uculele. E para ela eu sou: uma partcula suspensa num olhar, um burgus. E no entanto no chegava a senti-lo. Ela continuava a fit-lo: Que que faz na vida? Deixe-me adivinhar. Mdico? No. Advogado? No. Bem... Poderia ser um intrujo... Sou professor. curioso disse um tanto decepcionada. Mas acrescentou vivamente: No tem importncia. Ela olha para mim. Levantou-se e pegou-lhe no brao um pouco abaixo do cotovelo. A carne doce e morna cedia um pouco sob a presso dos dedos. Que que quer? Tinha desejo de lhe tocar. Sem maldade; porque olha para mim. Ela deixou-se abraar e o seu olhar cobriu-se de bruma. Gosto de si disse. Tambm gosto de si. Tem mulher? Ningum. Sentou-se perto dela, na cama: E voc? Tem algum na vida? Alguns... disse com um ar triste sou uma mulher fcil.
O olhar apagara-se. Restava uma bonequinha chinesa com cheiro de acaju. Fcil? E o que tem isso? J E A N-P AUL SARTRE Ela no respondeu. Pusera a cabea entre as mos e olhava o vcuo com ar grave: uma pensativa, verificou Mathieu. Quando uma mulher anda mal vestida, precisa de ser fcil disse ela por fim. Voltou-se para Mathieu, inquieta: No sou intimidante, sou? No disse Mathieu , no se pode dizer que seja. Mas ela parecia to desolada que ele a tomou nos braos. O caf estava deserto. So duas horas da manh, no so? perguntou Ivich ao criado. Ele esfregou os olhos com as costas das mos e deitou um olhar para o relgio. Marcava oito e meia. Pode ser resmungou. Ivich encolheu-se muito quietinha a um canto e puxou a saia sobre os joelhos. Seria uma rf que se vai juntar tia num arrabalde de Paris. Pensou que tinha os olhos demasiado brilhantes e desfez os cabelos por cima do rosto. Mas o seu corao transbordava de uma quase alegre excitao: uma hora de espera, uma rua para atravessar a pularia para o comboio. L pelas seis estarei na Estao do Norte, irei primeiro ao Dome, comerei duas laranjas e da irei a casa de Renata para arranjar quinhentos francos emprestados. Tinha vontade de pedir um conhaque, mas uma rf no bebe lcool. Quer servir-me um ch de tlia? pediu com voz fina. O criado virou-se, era horroroso mas era necessrio seduzi-lo. Quando trouxe o ch, ela deitou-lhe um olhar todo doura e susto. PENA SUSPENSA Obrigada suspirou. Ele colocou-se diante dela, perplexo. Onde que vai assim? A Paris, para casa de minha tia. A senhora no a filha do senhor Serguine, o da serralharia? O idiota! No respondeu. O meu pai morreu em 1918. Sou rf de guerra. Ele sacudiu a cabea vrias vezes e afastou-se: era um rstico, um rapazola. Em Paris, os criados tm olhos de veludo e acreditam no que lhes dizemos. Vou tornar a ver Paris. Na estao j seria reconhecida: tudo a estaria esperando. As ruas esperavam-na, as montras, as rvores do cemitrio,
Montparnasse e... as pessoas tambm. Certas pessoas que no teriam partido como Renata ou que teriam voltado. Voltarei a ser a mesma; s l ela seria Ivich, entre a Avenida Du Maine e o cais. E mostrar-me-o a Checoslovquia num mapa. Ah!, pensou com paixo, que bombardeiem se quiserem, morreremos juntos, ficar somente Boris para ter saudade. Apague. Ele obedeceu, o quarto fundiu-se na grande noite de guerra, os dois olhares diluram-se na escurido; restava apenas uma rstia de luz na porta entreaberta, um olho comprido que parecia v-los. Mathieu, perturbado, dirigiu-se para a porta. No disse a voz atrs dele , deixe aberta; por causa do rapaz; quero ouvir. Ele voltou em silncio, tirou os sapatos e as calas. ^ sapato direito fez barulho ao cair no soalho. J E A N-P AUL SARTRE Ponha a roupa na poltrona. Colocou as calas, o casaco e a camisa na cadeira de balouo, que rangeu. Ficou nu, braos soltos, dedos crispados, no meio do quarto. Tinha vontade de rir. Venha. Estendeu-se na cama, junto de um corpo quente e nu, estava deitada de costas, no fez um gesto, os seus braos continuaram estendidos, colados ao corpo. Mas quando ele lhe beijou o peito, um pouco abaixo da garganta, sentiu o bater do corao, grandes marteladas que a faziam estremecer da cabea aos ps. Ficou um instante sem se mexer, dominado por aquela imobilidade palpitante: esquecera o rosto de Irene; estendeu a mo e passeou os dedos por aquela carne cega. Uma pessoa qualquer. Ouviu passos na calada, riam alto. Eh! Mareei! disse uma mulher , se fosses Hitler poderias dormir esta noite? Riram, os passos e os risos afastaram-se e Mathieu ficou s. Se tenho de tomar precauo disse uma voz sonolenta , melhor dizer logo. No precisa atalhou Mathieu. No sou intrujo. Ela no respondeu. Ele ouvia-lhe a respirao forte e regular. Um prado dentro da noite, respirava como o capim, como as rvores; talvez tivesse adormecido. Mas uma mo inexperta, semifechada, tocou-lhe rapidamente nas ancas e nas coxas; a rigor podia passar por carcia. Ergueu-se devagar e deslizou por cima dela. Boris retirou-se bruscamente, puxou as cobertas e deixou-se cair de lado. Lola no se mexera; continuava PENA SUSPENSA estendida de costas, de olhos fechados. Boris encolheu-se a
fim de evitar o mais possvel o contacto do lenol com o seu corpo suado. Lola disse sem abrir os olhos: Comeo a acreditar que me amas. Ele no respondeu. Esta noite amara em Lola todas as mulheres, as duquesas e as outras, as mos que at ento um pudor insupervel mantinha sobre os ombros e os seios de Lola, tinham passeado por toda a parte; por toda a parte passeava os lbios, o semidesmaio que o invadia como de costume no meio do prazer e lhe repugnava, buscara-o com frenesi; havia pensamentos de que queria fugir. Agora sentia-se pastoso e conspurcado, o corao batia loucamente, no era desagradvel: nesse momento era preciso pensar o menos possvel. Ivich dizia-lhe sempre: pensas de mais. Tinha razo. Viu de repente surgir um pouco de gua ao canto das plpebras de Lola, eram dois pequenos lagos cujo nvel subia lentamente de ambos os lados do nariz. Que histria essa? Vivia h vinte e quatro horas com uma angstia seca no estmago, no estava disposto a enternecer-se. D-me o leno disse Lola. Est debaixo do travesseiro. Enxugou os olhos e abriu-os. Fitava-o com ar desconfiado e duro. Que terei feito? Mas no era o que ele pensava: ela disse com voz angustiada: Vamos partir. Para onde? Ah!, sim, mas no j, dentro de um ano. E o que um ano? Ela olhava-o com insistncia; ele tirou a mo debaixo do lenol e tapou os olhos com uma mecha de cabelos. Dentro de um ano a guerra talvez tenha acabado disse prudentemente. J E A N-P AUL SARTRE Acabado! Sabe-se quando uma guerra comea, no quando acaba. O brao branco saiu das cobertas e Lola ps-se a apalpar o rosto de Boris, como se fosse cega. Acariciou-lhe as tmporas e as faces, contornou as orelhas, o nariz: ele sentia-se ridculo. Um ano muito disse com amargura. Teremos tempo para pensar nisso. Bem se v que s uma criana. Se soubesses como passa depressa um ano, na minha idade. Eu acho muito! insistiu Boris com obstinao. Ento tens vontade de lutar? No isso. Sentia menos calor, virou-se de costas, distendeu as pernas, que encontraram um pedao de pano no fundo da cama: as calas do pijama. Explicou, fixando os olhos no tecto: Se devo ser chamado, que seja logo e que no se fale mais
nisso. E eu? gritou Lola. E acrescentou ofegante: No te perturba deixar-me, bicho mau? Mas, se tenho de te deixar de qualquer maneira! O mais tarde possvel disse ela apaixonadamente. Morrerei. Principalmente como tu s, passars trs dias sem escrever, por preguia, e eu pensarei que ests morto. Ah!, no sabes o que isso . Nem tu disse Boris. Espera que acontea para te atormentares. Houve um silncio e ela falou com voz spera e rouca que ele conhecia to bem: Em todo o caso, no deve ser muito difcil dar um jeito. Ela conhece mais gente do que imaginas, a tua velha. PENA SUSPENSA Ele afastou-se e fitou-a furioso: Lola, se fizeres isso... Ento? Nunca mais te verei. Ela acalmara-se. Disse-lhe com um estranho sorriso: Pensei que a guerra te inspirasse horror. Quantas vezes me disseste que eras antimilitarista! Continuo sendo. Ento? No a mesma coisa. Ela fechara novamente os olhos e mantinha-se serena, mas j no tinha a mesma fisionomia: as duas velhas rugas de fadiga acabavam de reaparecer na comissura dos lbios. Boris fez um esforo: Sou antimilitarista porque no posso suportar os oficiais disse, conciliante. Dos simples soldados no desgosto. Mas sers oficial! Eles forar-te-o a ser oficial. Boris no respondeu; era complicado de mais; perdia-se naquela confuso. Detestava os oficiais, sem dvida. Mas por outro lado, como era a guerra e como o haviam destinado a uma pequena carreira, era preciso que fosse tenente. Ah!, pensou, se pudesse estar l e acompanhar a companhia pela fora das circunstncias, e no me aborrecer mais com tudo isso! Disse bruscamente: Gostaria de saber se terei medo. Medo? Isso que me atormenta. Pensava que Lola no compreenderia: fora melhor explicar-se com Mathieu ou mesmo Ivich, mas uma vez que ela estava ali... J E A N-P AUL SARTRE Durante todo o ano vamos ler nos jornais: os franceses
avanam sob um dilvio de ferro e fogo, ou outros truques assim, sabes o que eu quero dizer. E de cada vez eu pensarei: aguentarei? Ou ento interrogarei os soldados em licena, perguntarei: duro? E eles respondero: muito duro, e eu no me sentirei vontade. Vai ser divertido. Ela riu e imitou-o com alegria. Espera que acontea para te atormentares. E se tivesses medo, tolinho? Que grande tragdia! Boris pensou: No adianta explicar-lhe, no compreende nada. Bocejou e perguntou: Vamos apagar? Estou com sono. Se quiseres disse Lola. D-me um beijo. Beijou-a e apagou a luz. Detestava-a, pensou: No gosta de mim, de mim mesmo, seno teria compreendido. Eram todos iguais, fingiam-se de cegos; fizeram de mim um galo de briga, um touro de raa e agora fecham os olhos, o meu pai quer que eu tire o diploma, e essa quer dar um jeito para me dispensar, s porque dormiu uma vez com um coronel. Subitamente sentiu um corpo nu e quente colar-se ao seu. Sempre este corpo a meu lado, e mais um ano ainda. Ela abusa de mim. Fez-se rspido. Afastou-se. Onde vais? perguntou Lola. Vais cair no cho! Fazes-me suar. Ela deixou-o resmungando. Um ano. Um ano a perguntar-me se sou um covarde, um ano a ter medo de ter medo. Ouvia a respirao regular de Lola, que dormia; e depois novamente o corpo colou-se ao dele, no era culpa dela, havia uma depresso a meio da cama, mas Boris PENA SUSPENSA estremeceu de raiva e desespero. Vai esmagar-me at amanh cedo. Oh!, viver com homens, cada um na sua cama. De repente foi tomado por uma espcie de vertigem, tinha as costas suadas: acabava de compreender que se alistaria como voluntrio no dia seguinte. A porta abriu-se e a senhora Birnenschatz surgiu de camisola, com um leno na cabea. Gustave! disse berrando para dominar o barulho do rdio. Por favor, vem dormir! Dorme tu, no te incomodes comigo. Mas eu no posso dormir se no te deitares. Ora disse ele aborrecido , pois no vs que estou espera de uma coisa! Mas o qu? Porque ests sempre a mexer nesse maldito rdio? Os vizinhos acabaro por se queixar. O que que esperas? Birnenschatz voltou-se para ela, segurou-lhe o brao com
fora: Aposto que um bluff. Aposto que haver um desmentido agora noite. Mas o qu? indagou ela assustada. De que ests a falar? Fez-lhe sinal para que se calasse. Uma voz calma e pausada comeara a falar: Desmentem-se em Berlim, nas fontes bem informadas, todas as notcias divulgadas no estrangeiro acerca de um ultimato que teria sido enviado Checoslovquia pela Alemanha, dando-lhe um derradeiro prazo at hoje s catorze horas, bem como a respeito de uma pretensa mobilizao que seria decretada em caso de recusa. Escuta! gritou Birnenschatz , escuta! J E A N-P AUL SARTRE Considera-se que tais notcias s podem espalhar o pnico e criar uma psicose de guerra. Desmente-se igualmente uma declarao que teria sido divulgada pelo ministro Goebbels a um jornal estrangeiro, acerca desse mesmo prazo. O senhor Goebbels no recebe nenhum jornalista estrangeiro h vrias semanas. Birnenschatz escutou mais um pouco, mas a voz emudecera. Ento fez a mulher rodopiar uns passos de valsa, gritando: Eu disse-te! Eu disse-te! o recuo, o plido recuo. No teremos guerra, Catherine, no teremos guerra, os nazis esto fritos! A luz. As quatro paredes levantaram-se bruscamente, entre Mathieu e a noite. Ergueu-se sobre as mos e contemplou a fisionomia calma de Irene: a nudez do corpo subira at ao rosto, o corpo recuperara-o como a natureza recupera os jardins abandonados; Mathieu no o podia isolar mais dos ombros redondos, dos seios pequenos e pontiagudos, era tudo uma flor de carne tranquila e vaga. No foi muito aborrecido? perguntou ela. Aborrecido? H quem me ache chata porque no sou muito activa. Uma vez um tipo aborreceu-se tanto comigo que foi embora pela manh e nunca mais voltou. Eu no me aborreci. Passou-lhe ao de leve o dedo no pescoo. Mas, sabe?, no deve pensar que sou fria. Sei, fique quieta. Tomou-lhe a cabea nas mos e inclinou-se sobre os olhos dela. Eram lagos de geleia, transparentes e sem fundo. Ela olha para mini. Atrs desse olhar, o corpo e o rosto PENA SUSPENSA tinham desaparecido. No fundo desses olhos a noite. A noite virgem. Ela fez-me entrar nesses olhos: existo nessa noite: um
homem nu. Vou deix-la dentro de algumas horas e no entanto ficarei nela para sempre. Nela, nessa noite annima. Pensou: No sabe sequer o meu nome. E de repente comeou a quer-la to fortemente que teve mpeto de lho dizer. Mas calou-se: as palavras teriam mentido; era quele quarto que se prendia tanto quanto a ela mesma, guitarra na parede, ao rapazola a dormir, a este instante, a toda esta noite. Ela sorriu-lhe: Olha para mini mas no me v. Vejo-a. Ela bocejou: Queria dormir uni pouco. Durma disse Mathieu. Mas ponha o despertador para as seis; preciso de passar por casa antes de ir para a estao. Parte esta manh? s oito horas. Posso acompanh-lo estao? Se quiser. Espere disse ela. Preciso de sair da cama para acertar o despertador e apagar a luz. Mas no olhe, fico com vergonha por causa do meu traseiro, volumoso e baixo. Virou a cabea, ouviu-a andar no quarto, viu apagar-se as luzes. Ela disse-lhe, ao voltar para a cama: s vezes levanto-me a dormir e passeio pelo quarto. Basta dar-me umas bofetadas. QUARTA-FEJRA, 28 DE SETEMBRO s eis horas da manh. Estava orgulhosa de si: no pregara olho durante toda a noite e no entanto no tinha sono. Apenas um ardor seco no fundo dos olhos, uma ligeira comicho no olho esquerdo, esse tremorzinho das plpebras e, de vez em quando, frmitos de cansao a percorrerem-lhe as costas dos rins nuca. Viajara num comboio horrivelmente deserto, a ltima criatura que vira fora o chefe da estao, em Soissons, agitando a bandeira vermelha. E, de repente, na estao de leste, a multido. Era uma multido feia, de velhas e soldados; mas tinha tantos olhos, tantos olhares, e alm disso Ivich adorava aquele movimento perptuo de cotovelos, de rins, de ombros, o balouar obstinado das cabeas umas atrs das outras; era to agradvel no mais suportar sozinha o peso da guerra. Parou em frente de um dos grandes portes de sada e contemplou religiosamente o Bulevar Strasbourg; era preciso encher os olhos, juntar na memria J E A N-P AUL SARTRE as rvores, as lojas fechadas, os autocarros, os carris dos elctricos, os cafs que comeavam a abrir e a atmosfera embaciada da madrugada. Mesmo que jorrasse bombas dentro de
cinco minutos, de trinta segundos, no me poderiam tirar isso. Verificou se no deixava escapar nada, nem mesmo o imenso cartaz Dubon-dubon-dubonnet esquerda, e de repente sentiu-se tomada de frenesi: tinha de entrar na cidade antes que eles chegassem. Deu um empurro a duas brets que transportavam gaiolas de passarinhos, passou o porto, deu entrada na verdadeira calada de Paris. Pareceu-lhe que entrava num braseiro, era exaltante e sinistro. Tudo se queimar: mulheres, crianas, velhos, eu perecerei nas chamas. No tinha medo; de qualquer modo teria horror velhice; mas a pressa secava-lhe a garganta; no podia perder um minuto: tanta coisa a ver! A Foire aux Puces, as catacumbas, Mnilmontant e outras que ainda no conhecia, como o Museu Grvin; se me derem oito dias, se no vierem antes de tera-feira prxima, terei tempo para tudo. Ah!, pensou com paixo, oito dias de vida, quero divertir-me mais do que em um ano inteiro, quero morrer a divertir-me. Aproximou-se de um txi: Rua Huyghens, 12. Suba. Passe pelo Bulevar Saint-Michel, Rua Auguste Comte, Rua Vavin, Rua Delambre, Rua da Gaite e Avenida Du Maine. um percurso mais longo. No faz mal. Entrou no automvel e fechou a porta. Deixara Laon atrs para sempre. Nunca mais! Morreremos aqui! Que PENA SUSPENSA lindo dia!, murmurou. Que lindo dia! tarde iremos Rua Rosiers e ilha Saint-Louis. Depressa, depressa gritou Irene. Venha! Mathieu estava em mangas de camisa, penteava-se diante do espelho. Pousou o pente na mesa, ps o casaco debaixo do brao e entrou no quarto de visitas. Que foi? Irene mostrou-lhe a cama com um gesto potico. Foi-se embora! No possvel! Mathieu olhou para a cama desfeita, coando a cabea, depois desatou a rir. Irene fitou-o com ar srio e espantado, mas o riso foi contagioso. Passou-nos uma rasteira disse Mathieu. Vestiu o casaco. Irene continuava a rir. Encontramo-nos no Dome, s sete horas. s sete disse ela. Inclinou-se e beijou-a ao de leve. Ivich subiu a escada a correr e deteve-se ofegante no patamar
do terceiro andar. A porta estava entreaberta. Comeou a tremer. Talvez seja a porteira, pensou. Entrou: todas as portas estavam abertas, assim como todas as luzes. No hall uma mala grande: ele est aqui! Mathieu! Ningum respondeu. A cozinha estava vazia, mas no quarto a cama achava-se desarrumada. Dormiu aqui. Entrou no escritrio, abriu as janelas e as persianas. No assim to feio, pensou, eu era injusta. Viveria ali, escrever-lhe-ia quatro vezes por semana; no, cinco. E um dia, ele leria nos jornais: Bombardeamento de Paris, e nunca mais receberia cartas. Deu a volta ao escritrio, J E A N-P AUL SARTRE mexeu nos livros, no peso para papis em forma de caranguejo. Havia um cigarro partido junto de uma obra de Martineau sobre Stendhal; pegou nele e guardou-o no bolso com as suas relquias. Depois sentou-se muito direi-tinha no sof. Ao fim de um momento, ouviu passos na escada e o seu corao deu pulos. Era ele. Deteve-se um instante no hall, depois entrou com a mala. Ivich abriu as mos e deixou cair a bolsa no cho. Ivich! No parecia espantado. Largou a mala, levantou a bolsa, entregou-lha. Est aqui h muito tempo? Ela no respondeu: estava um pouco amuada porque deixara cair a bolsa. Ele foi sentar-se perto dela. Ela no o via. Fitava o tapete e a ponta dos sapatos. Tenho sorte disse alegremente. Uma hora mais tarde e no me encontraria. Tomo o comboio para Nancy s oito. Mas como? Parte j? Calou-se, descontente consigo mesma e odiando a prpria voz. Tinham to pouco tempo, quisera ser simples, mas era mais forte do que ela: quando passava muito tempo sem ver as pessoas, no sabia ser simples ao v-las de novo. Deixara-se dominar por um mole torpor que se assemelhava a um amuo. Escondia-lhe cuidadosamente o rosto mas mostrava-lhe o seu desnorteamento; sentia-se mais impudica do que se o olhasse de frente. Duas mos estenderam-se para a mala, pegaram num despertador e deram-lhe corda. Mathieu levantou-se para colocar o despertador sobre a mesa. Ivich ergueu um pouco os olhos e viu-o, mancha escura contra a l l PENA SUSPENSA luz. Tornou a sentar-se, continuava calado, mas Ivich recobrou
um pouco de coragem. Olhava-a, sabia que ele a olhava. Ningum, h trs meses, a havia olhado como ele a olhava naquele momento. Sentia-se preciosa e frgil; um pequeno dolo mudo; era doce, irritante e um pouco doloroso. Bruscamente, percebeu o tiquetaque do despertador e pensou que ele devia partir. No quero ser frgil, no quero ser um dolo. Fez um esforo violento e conseguiu virar-se para o lado dele. No tinha o olhar que ela esperava. Voc aqui, Ivich. Voc aqui. No parecia pensar no que dizia. Sorriu-lhe, mesmo assim, mas estava gelada da cabea at aos ps. Ele no devolveu o sorriso; disse lentamente: Voc... Considerava-a com espanto. Como veio? continuou num tom mais animado. De comboio. Juntava as mos e apertava-as com fora para fazer estalar as falanges. Os seus pais sabem? No. Fugiu? Mais ou menos. Bem. Bem. Est certo; poder morar aqui. Acrescentou com interesse: Aborrecia-se em Laon? Ela no respondeu. A voz caa-lhe na nuca como um cutelo frio e tranquilo. Pobre Ivich! Ela principiou a puxar os cabelos aos punhados. Ele continuou: Boris est em Biarritz? J E A N-P AUL SARTRE Est. Boris levantara-se s apalpadelas, vestiu as calas e o casaco a tremer, deitou um olhar para Lola, que dormia de boca aberta, abriu a porta sem rudo e saiu para o corredor, com os sapatos na mo. Ivich olhou para o despertador e viu que j eram seis horas e vinte. Perguntou com voz queixosa: Que horas so? Seis e vinte. Espere. Vou pr uns objectos na mala e depois estarei inteiramente livre. Ajoelhou-se junto da mala. Ela contemplava-o inerte. No sentia mais o corpo, porm o tiquetaque do despertador feria-lhe os ouvidos. Ao fim de um momento ele levantou-se: Pronto. Mantinha-se em p diante dela. Ela via-lhe as calas um pouco pudas nos joelhos.
Escute, Ivich disse ele suavemente. Vamos falar de coisas srias: o apartamento seu, a chave est pendurada num prego atrs da porta, vai morar aqui at ao fim da guerra. Quanto aos meus vencimentos, j tomei providncias; dei uma procurao a Jacques ele receb-los- e envia-los- para si mensalmente. Ter de pagar pequenas contas periodicamente: o aluguer, por exemplo, e os impostos, a menos que isentem os soldados e depois mandar--me- de vez em quando um pequeno embrulho com coisas, conservas, o que sobrar para si. Acho que poder viver. Ela escutava a voz igual e montona, que se assemelhava do locutor da rdio. Como ousava ser to chato? No compreendia muito bem o que ele dizia, mas imaginava nitidamente a cara que devia fazer, meio sorridente, as pll PENA SUSPENSA pebras pesadas e um ar de falsa beatitude. Olhou-o para o odiar ainda mais e o dio evadiu-se. No tinha a cara da voz. Estar a sofrer? No, no parecia infeliz. Era um ar que ela no lhe reconhecia, eis tudo. Est-me a ouvir, Ivich? perguntou ele a sorrir. Certamente disse ela. Levantou-se: Mathieu, quero que me mostre a Checoslovquia num mapa. No tenho mapas disse ele. Ah!, sim, devo ter um atlas velho. Foi buscar um lbum encadernado, biblioteca, e colocou-o em cima da mesa, abriu-o: Europa Central. As cores eram neutras: somente cinzento e roxo. No tinha azul; nem mares nem oceanos. Ivich olhou atentamente para o mapa e no conseguiu descobrir a Checoslovquia. de antes de 1914 disse Mathieu. E antes de 1914 no havia Checoslovquia? No. Pegou na caneta e riscou o meio do mapa uma curva irregular e fechada. mais ou menos isto disse. Ivich olhou para aquela extenso de terras sem gua, de cores tristes, o trao de tinta preta, to feio junto dos caracteres tipogrficos, leu a palavra Bomia dentro da curva e disse: Ah! isso a Checoslovquia? Tudo se lhe afigurou intil e ela ps-se a soluar. Ivich! Achou-se bruscamente meio estendida no sof. Mathieu enlaava-a. A princpio ela endireitou-se: no quero piedade, J E A N-P A U L SARTRE sou ridcula, mas ao fim de um momento relaxou-se, no houve
mais guerra, nem Checoslovquia, nem Mathieu; somente aquela suave presso em volta dos ombros. Dormiu ao menos esta noite? perguntou ele. No disse ela entre dois soluos. Minha pobre Ivichzinha! Levantou-se e saiu; ela ouvia-o andar no quarto ao lado. Quando voltou, recobrou um pouco aquele ar ingnuo e beato de que ela tanto gostava. Arranjei lenis limpos disse, sentando-se ao lado dela. A cama est feita, poder dormir logo que eu me for embora. Ela encarou-o: Eu... eu no vou consigo estao? Pensei que detestasse as despedidas... Ora disse conciliante , numa circunstncia to importante... Mas Mathieu sacudiu a cabea: Prefiro ir s. E alm disso, precisa de dormir. Ah! disse ela , est bem. Pensou: Como sou tola. E sentiu-se de repente fria e fechada. Sacudiu a cabea energicamente, enxugou as lgrimas e sorriu. Tem razo. Estou nervosa de mais. o cansao: vou repousar. Ele tomou-lhe a mo e f-la erguer-se: Quero mostrar-lhe o apartamento. Parou no quarto, diante de um armrio: Aqui encontrar seis pares de lenis, fronhas e cobertores. H tambm um edredo por a, no sei onde o enfiei, a porteira sabe. PENA SUSPENSA Abriu o armrio e olhava para as pilhas de roupa branca. Riu, no tinha um ar muito bom. Que h? indagou cortesmente Ivich. Tudo isto era meu, ridculo. Voltou-se para ela: Vou mostrar-lhe tambm a despensa. Venha. Entraram na cozinha e ele indicou-lhe umas prateleiras. E a. Ainda h azeite, sal, pimenta e latas de conserva. Erguia as latas cilndricas, uma aps outra, altura dos olhos e fazia-as girar luz da lmpada: Salmo, cassoulet, trs latas de chucrute. Ponha esta em banho-maria... Calou-se e aquele riso mau aflorou-lhe novamente aos lbios. Mas no acrescentou nada, olhou para uma lata de ervilhas, com olhos mortos, e depois tornou a coloc-la na prateleira. Cuidado com o gs, Ivich. E preciso fechar o contador todas as noites, antes de se deitar. Tinha voltado ao escritrio. A propsito disse ele , avisarei a porteira, quando descer, que deixo o apartamento a seu cargo. Ela mandar-lhe-
a senhora Balaine. E quem faz a limpeza aqui, no desagradvel. Balaine! Que nome esquisito. Riu e Mathieu sorriu. Jacques no volta antes do princpio de Outubro continuou ele. Preciso de lhe dar algum dinheiro para que possa ir esper-lo. Tinha na carteira uma nota de mil francos e duas de cem. Entregou-lhe a de mil. Obrigada. Muito obrigada disse ela amarrotando-a na mo crispada. J E A N-P AUL SARTRE Qualquer coisa que acontea, chame Jacques. Eu escrever-lhe-ei dizendo-lhe que a confio a ele. Obrigada. Obrigada. Sabe o endereo dele? Sei. Sei. Obrigada. At breve. Aproximou-se dela: At breve, querida Ivich. Escreverei logo que tiver uma morada. Pegou-a plos ombros e puxou-a para si. Querida Ivich. Ivich estendeu-lhe docilmente a testa e ele beijou-a. Depois apertou-lhe a mo e saiu. Ela ouviu-o bater a porta do bali. S ento desamarrotou a nota de mil francos, olhou para a vinheta e rasgou-a em oito pedaos, que lanou para o cho. Um velho colonial de barba ruiva pousava uma das mos no ombro do recruta e com a outra mostrava a costa africana: Aliste-se no exrcito colonial. O jovem recruta tinha um ar estpido: durante seis meses Boris teria esse ar idiota. Ponhamos trs meses: os anos de guerra contam a dobrar. Cortaro a minha mecha de cabelos, pensou. Animais! Nunca se sentira to ferozmente antimilitarista. Passou perto de uma sentinela imvel na guarita. Deitou-lhe um olhar dissimulado e de repente sentiu-se amedrontado. Merda, pensou. Mas estava decidido a tudo, sentiu-se mal da cabea at aos ps. Entrou na caserna de pernas moles. O cu estava rutilante, um vento muito brando trazia at queles arrabaldes longnquos o cheiro do mar: Que pena, pensou Boris. Que pena que o dia esteja to lindo. Um guarda vigiava a porta do comissariado. Philippe contemplava-o, estava com frio: doam-lhe a face e o lbio superior. Ser um martrio sem glria. Sem glria PENA SUSPENSA e sem alegria: a priso e, de manh, o fuzilamento nos fossos de Vincennes; ningum o saberia, tinham-no renegado. O comissrio? perguntou. O guarda encara-o: Primeiro andar. Serei a minha prpria testemunha, no tenho de prestar contas
a ningum. S a mim mesmo. Seco de alistamento? Os dois soldados trocaram um olhar e Boris sentiu o rosto a afoguear-se, que cara devo ter, pensou. No fundo do ptio, primeira porta esquerda. Boris saudou negligentemente com dois dedos e atravessou o ptio com passo firme; mas pensava: Estou com uma cara de idiota, e isso aborrecia-o bastante. Devem torcer-se a rir, pensou. Um tipo que vem sozinho, sem ser forado, ho-de achar a coisa engraada. Philippe estava de p, em plena luz, encarava o homenzinho condecorado, de queixo quadrado, e pensava em Raskolnikoff. E o senhor o comissrio? Sou o secretrio dele. Philippe falava com dificuldade por causa do lbio tumeficado, mas a voz era clara. Deu um passo em frente: Sou desertor disse com firmeza. E trago comigo um passaporte falso. O secretrio examinou-o com ateno. Sente-se disse cortesmente. O txi rodava para a estao de leste. Vai chegar atrasado disse Irene. No respondeu Mathieu. Exactamente hora. Acrescentou como explicao: Tinha uma moa em casa. J E A N-P AUL SARTRE Uma moa? Veio de Laon para me ver. Ama-o? No, no. E voc ama-a? To-pouco: cedo-lhe o meu apartamento. uma boa menina? No, no uma boa menina. Mas tambm no m. Calaram-se. O txi atravessava o mercado. Foi ali disse Irene. Foi ali. Sim. Ontem. Deus meu!, como est longe... Ajeitou-se no fundo do banco para olhar pelo vidro de trs. Acabou-se disse voltando posio normal. Mathieu no respondeu. Pensava em Nancy, onde nunca estivera. Voc no conversa muito disse Irene. Mas no me aborreo consigo. Conversei muito outrora respondeu Mathieu com um risinho curto. E voc que vai fazer hoje? Nada, nunca fao nada. O meu velho d-me uma penso.
O txi parou, desceram e Mathieu pagou. No gosto de estaes disse Irene. sinistro. Agarrou-o pelo brao de repente. Ia ao lado dele silenciosa e familiar; Mathieu tinha a impresso de que a conhecia h dez anos. Preciso de comprar o bilhete. Abriram caminho na multido. Era uma multido civil, lenta, muda, com alguns soldados. PENA SUSPENSA Conhece Nancy? No disse Mathieu. Eu conheo. Diga-me, onde vai ficar? Na caserna de Essey-ls-Nancy. Conheo disse ela. Conheo. Homens com mala faziam bicha diante do guichet. Quer que v comprar um jornal enquanto est na bicha? No disse ele apertando-lhe o brao. Fique comigo. Ela sorriu contente. Avanaram, passo a passo. Essey-ls-Nancy. Estendeu a caderneta militar e o empregado deu-lhe um bilhete. Ele virou-se para ela: Acompanhe-me at cancela, mas prefiro que no entre na gare. Deram alguns passos e pararam. Ento, adeus disse ela. Adeus. Ter durado apenas uma noite. Uma noite. Mas voc ser a minha nica recordao de Paris. Beijou-a. Ela indagou: Vai escrever-me? No sei. Encarou-a um momento sem falar e depois afastou-se. Eh! Voltou-se. Ela sorria, mas os seus lbios tremiam um pouco. No sei sequer o seu nome. Mathieu Delarue. J E A N-P AUL SARTRE Entre! Estava sentado na calma, de pijama, sempre bem penteado, sempre bonito, ela perguntava a si mesma se ele no punha uma rede para dormir. O quarto cheirava a gua-de-colnia. Olhou-a espantadssimo, pegou rapidamente nos culos e colocou-os no nariz. Ivich! Eu disse ela, com candura. Sentou-se na beira da cama e sorriu-lhe. O comboio de Nancy saa da estao de leste; em Berlim os bombardeiros acabavam talvez de levantar voo. Quero
divertir-me! Quero divertir-me! Olhou em volta; era um quarto de hotel, rico e feio. A bomba atravessar o tecto e o soalho do sexto andar. Morrerei aqui. No pensava em voltar a v-la disse ele muito digno. Porqu? Porque se portou como um intrujo! Tnhamos bebido. Eu tinha bebido porque acabava de saber que fracassara nos exames. Mas voc no havia bebido; queria levar-me para o seu quarto: estava espreita. Ele mostrava-se inteiramente desorientado. Pois bem, eis-me aqui no seu quarto. Ento? Ele ficou roxo: Ivich! Ela desatou a rir: No parece muito perigoso! Houve um longo silncio e depois uma mo tmida tocou-lhe na cintura. Os bombardeiros tinham atravessado a fronteira. Ela morria a rir: como quer que seja, no morrerei virgem. PENA SUSPENSA Este lugar est vago? Hum! fez o velho gorducho. Mathieu colocou a mala no porta-malas e sentou-se. O compartimento estava repleto. Mathieu tentou ver os companheiros de viagem, mas a escurido ainda era grande. Ficou um instante imvel at que houve uma sacudidela brusca e o comboio ps-se a andar. Mathieu estremeceu de alegria: acabou-se! Amanh, Nancy, a guerra, o medo, a morte, talvez, a liberdade. Vamos ver, pensou. Vamos ver. Ps a mo no bolso para pegar no cachimbo e os seus dedos tocaram num sobrescrito: era a carta de Daniel. Teve vontade de a enfiar de novo no bolso, mas unia espcie de pudor impediu-o de faz-lo. Era preciso l-la, afinal. Encheu o cachimbo, acendeu-o, rasgou o sobrescrito e tirou de dentro sete folhas de papel cobertas de uma letra igual e carregada, sem rasuras: Fez um borro. Como comprida!, pensou aborrecido. O comboio felizmente sara da estao, via-se melhor. Leu: Meu caro Mathieu: Imagino demasiado bem o teu estupor, para no sentir profundamente at que ponto esta carta inoportuna. Afinal, nem mesmo eu sei porque me dirijo a ti: de se supor que, assim como o do crime, o caminho das confidncias uma ladeira escorregadia. Ao revelar-te, em Junho ltimo, um aspecto pitoresco da minha natureza, talvez tenha feito de ti sem o perceber a minha testemunha prioritria. Muito o lamentaria pois, se devesse estampilhar por ti todos os acontecimentos da minha vida, seria levado a votar-te um dio activo, que no deixaria de ser cansativo para mini e
J E A N-P AUL SARTRE nocivo para ti. Bem sabes que digo isto a brincar. H alguns dias, ando a sentir uma leveza de chumbo se que a aliana das duas palavras no te assusta e o Rire outorgou-me certa graa suplementar. Mas deixemos isso de lado, mesmo porque no o extraordinrio da minha vida que te vou relatar e sim uma aventura extraordinria. Sem dvida no se me afigurar ela inteiramente real, enquanto no existir tambm para outros. No porque confie muito na tua boa f. Duvido que consintas em abandonar por um instante sequer esse racionalismo que h dez anos ou mais o teu ganha-po. Mas talvez tenha justamente decidido comunicar essa experincia inacreditvel quele, dentre os meus amigos, que fosse o menos indicado para a compreender: talvez tenha visto nisso algo como uma contraprova. No que te pea uma resposta: desagradar-me-ia que te acreditasse obrigado a escrever-me essas exortaes ao bom senso que d-me a honra de cr-lo no deixei de fazer-me de viva voz. mesmo preciso que te confesse: quando penso no bom senso, na razo sadia, nas cincias positivas que, a maior parte das vezes, o man do riso cai sobre mim. Imagino por outro lado que Marcelle se sentiria magoada se encontrasse uma carta tua na minha correspondncia. Pensaria surpreender uma correspondncia clandestina e talvez, conhecendo-te como te conhece, imaginasse que te pes generosamente minha disposio para guiar os meus primeiros passos na vida conjugal. Eis porque o teu silncio me pode servir de contraprova: se me for possvel imaginar o teu "horroroso sorriso" sem me perturbar e conceber a ironia inconfessada com que encarars o meu "caso" sem abandonar o caminho excepcional que escolhi, terei adquirido a certeza de que estou no caminho certo. Acrescento, PENA SUSPENSA para evitar qualquer mal-entendido, e agradecendo boa vontade do psiclogo subtil, que desta vez ao filsofo que me dirijo, pois convm situar a narrativa que te envio no plano metafsico. Julgars sem dvida que isso muito pretensioso, porque no li Hegel nem Schopenhauer; no te formalizes, no seria certamente capaz de fixar em noes os movimentos actuais do meu esprito, deixo isso ao teu cuidado, mesmo porque cabe dentro da tua profisso; contentar-me-ei em viver s cegas o que vs, os clarividentes, concebeis. Contudo, no preciso que cedas to facilmente: este riso, estas angstias, estas intuies fulgurantes, infelizmente muito verosmil que te sintas na obrigao de classific-los pelo meu carcter e plos meus costumes, abusando das confidncias que tive a fraqueza de te fazer. Isso no da
minha conta: o que foi dito est dito; tens portanto a liberdade de aproveit-lo como quiseres, ainda que seja para cometer erros monumentais a meu respeito. Quero mesmo confessar-te que com um secreto prazer que me disponho a fornecer-te todas as informaes necessrias reconsti-tuio da verdade, embora sabendo que as utilizars para chafurdar deliberadamente no erro. Passemos aos factos. O riso faz cair-me a caneta das mos. Lgrimas de riso. O que s ventilo tremendo, isso de que nunca falei a ningum, por pudor tanto quanto por respeito, vou troc-lo por midos, em palavras pblicas, e essas palavras a ti que endereo, ficaro nestas folhas azuis e dentro de dez anos ainda as poders reler para te divertires. Parece-me que cometo um sacrilgio contra mim mesmo e isso a coisa mais indesculpvel; mas percebi tambm isto que te revelo com o resto: o sacrilgio provoca o riso. O que mais amo no me seria nunca inteiramente J E A N-P AUL SARTRE caro, se ao menos uma vez no me tivesse feito rir. Pois bem, ter-te-ia dado a oportunidade de rir da minha nova f, transportarei comigo uma certeza humilhada que te ultrapassar em toda a sua imensidade e que estar nas tuas mos; o que aqui me esmaga ser diminudo a, medida da tua indignidade. Sabe, portanto, se te divertires com a leitura desta carta, que te antecedo: rio-me; Deus feito homem, sobreexcedendo todos os homens e por todos zombando, pendurado na cruz, de boca aberta, esverdeado, mais mudo do que uma carpa sob os sarcasmos, haver coisa mais risvel? Por mais que faas, meu caro, as mais doces lgrimas de riso no correro pelas tuas faces. Vejamos, pois, o que podem as palavras. Antes de tudo, poders compreender-me se te disser que nunca soube o que sou? Os meus vcios e as minhas virtudes, estou com o nariz em cima deles, no os posso ver nem recuar suficientemente para me considerar um conjunto. Alm disso, sinto a estranha sensao de ser uma matria mole e movedia em que as palavras se atolam, mal tento nomear-me e j quem nomeado se confunde com quem nomeia, e preciso recomear tudo. Muitas vezes desejei odiar-me e bem sabes que tinha boas razes para tanto. Mas esse dio, logo que o experimentava, j no passava de uma recordao. No podia amar-me to-pouco estou convencido disso, embora jamais o tenha tentado. Mas era necessrio que eu "fosse" assim eternamente; era o meu prprio fardo. No assaz pesado, Mathieu, nunca bastante pesado. Um momento, nesta tarde de Junho, aprouve-me confessar-me a ti, acreditei tocar-me nos teus olhos amedrontados. Tu vias-me, aos teus
olhos eu era slido e previsvel; os meus actos e os meus humores j no eram as conPENA SUSPENSA sequncias de uma essncia fixa. Esta essncia, atravs de mini que a conheces, eu tinha-ta descrito com palavras, eu tinha-te revelado factos que ignoravas e que haviam permitido entrev-la. No entanto, tu que a vias e eu s podia ver-te a v-la. Durante um instante, foste o mediador entre mini mesmo, o mais precioso do mundo a meus olhos, pois esse slido e denso que eu era, que queria ser, tu percebia-lo to simplesmente, to vulgarmente como eu te percebia. Porque eu existo, afinal, eu sou, mesmo no me sentindo ser; e no suplcio comum encontrar em si uma tal certeza sem o menor fundamento, um tal orgulho sem alicerces. Compreendi, ento, que s nos podamos alcanar atravs do juzo de outrem, do dio de outro. Pelo amor de outro tambm, talvez; mas no se tratar disso aqui. Por essa revelao dediquei-te uma gratido mitigada. No sei que nome ds hoje s nossas relaes. No amizade, nem exactamente dio. Digamos que h um cadver entre ns. O meu cadver. Estava ainda com essa disposio de esprito quando parti para Sauveterre com Marcelle. Ora queria procurar-te, ora sonhava matar-te. Mas, um dia, concordei com a reciprocidade das nossas relaes. Que serias tu sem mim, seno essa mesma espcie de inconsistncia que sou para mini mesmo? E graas minha intercepo que podes adivinhar por vezes no sem alguma exasperao como s de verdade: um racionalista um pouco curto, muito seguro de si aparentemente, incerto no fundo, cheio de boa vontade para com tudo o que depende da tua razo, cego e mentiroso em relao ao resto; raciocinador por prudncia, sentimental por gosto, muito pouco sensual; em suma, um intelectual comedido, moderado, fruto delicioso das nossas classes J E A N-P AUL SARTRE mdias. Se certo que no me posso alcanar sem a tua intercepo, no menos certo que a minha te necessria se te queres conhecer. Vimo-nos ento exibindo, um por intermdio do outro, os nossos nadas, e pela primeira vez ri, ri com esse riso profundo e confortador que abrasa tudo. Depois reca numa espcie de indiferena melanclica, tanto mais quanto o sacrifcio que fizera nesse mesmo ms de Junho e se apresentava ento como uma expiao dolorosa, revelara-se, com o correr dos dias, horrivelmente suportvel. Mas devo calar isto: no posso falar de Marcelle sem rir, e, por uma questo de decncia que sabers apreciar, no quero rir dela contigo. Foi ento que surgiu a sorte mais improvvel e mais louca.
Deus v-se, Mathieu; eu sinto-o, eu sei-o. Eis tudo dito de chofre. Gostaria por isso de estar perto de ti e colher uma certeza mais forte, se que possvel, no espectculo do riso pesado que vai sacudir-te durante um momento. Agora basta. J nos rimos bastante um do outro: volto narrativa. Certamente, j tiveste no metro, na entrada de um teatro numa carruagem, a impresso repentina e insuportvel de ser espiado por trs. Tu voltas-te, mas o curioso j mergulhou o nariz no livro; tu no consegues saber quem te observa. Voltas posio anterior mas sabes que o desconhecido reergueu os olhos, e sentes um formigueiro nas costas, comparvel a uma crispao violenta e rpida de todos os teus tecidos. Pois bem, eis o que senti pela primeira vez, a 26 de Setembro, s trs da tarde, no parque do hotel. No havia ningum, entendes, ningum. Mas havia o olhar. Compreende bem: no o agarrei como se apanha de passagem um perfil, uma fronte, uns olhos, porquanto pela sua prpria natureza ele inapreensvel. S me PENA SUSPENSA endireitei, me concentrei, estava ao mesmo tempo trespassado e opaco, existia na presena de um olhar. Desde ento nunca deixei de estar diante de uma testemunha: diante de uma testemunha, mesmo no meu quarto fechado; por vezes, a conscincia de ser trespassado por esse gldio, de dormir diante de uma testemunha, despertava-me sobressaltado. Em suma, perdi o sono quase por completo. Ah!, Mathieu, que descoberta: viam-me, agitavam-me para me conhecer, acreditava esgotar-me por todas as extremidades, pedia a tua intercepo benevolente e durante esse tempo viam-me, o olhar estava ali, inaltervel, ao invisvel. E eu tambm, zombador incorrigvel, o olhar v-te, mas no o sabes. Dizer o que esse olhar ser-me-ia fcil: porque no nada; uma ausncia. Imagina a noite mais escura. a noite que te olha. Mas uma noite ofuscante; a noite em plena luz, a noite secreta do dia. Estou banhado por luz negra; cobre-me as mos, os olhos, o corao e eu no a vejo. Podes crer que essa violentao perptua foi-me a princpio odiosa: sabes que o meu sonho mais antigo era ser invisvel; cem vezes desejei no deixar nenhum vestgio na terra e nos coraes. Que angstia descobrir subitamente esses olhos como um ambiente universal de que no posso evadir-me. Mas que repouso, tambm. Sei finalmente que sou. Transformo para uso prprio, e com toda a sua indignao, a palavra imbecil e criminosa do vosso profeta, esse "penso, logo existo" que tanto me fez sofrer pois, quanto mais pensava, menos me parecia existir e digo: vem-me, logo existo. No me cabe mais suportar a responsabilidade do meu
pastoso escoamento: quem me v e me faz ser. Sou como ele me v. Volto para a noite, minha face nocturna e eterna, ergo-me como um desafio, e digo a Deus: eis-me. J E A N-P AUL SARTRE Eis-me como sou, como me vedes. Que posso fazer? Vs me conheceis e eu no me conheo. Que posso fazer seno suportar-me? E vs, cujo olhar me foge eternamente, suportai-me. Mathieu, que alegria, que suplcio! Estou enfim transformado em mim mesmo. Odeiam-me, desprezam-me, suportam-me, uma presena me sustm e auxilia-me a ser para sempre. Sou infinito e infinitamente culpado. Mas sou, Mathieu, eu sou. Perante Deus e perante os homens, eu sou. Ecce homo. Fui visitar o cura de Sauveterre. um campons instrudo e matreiro, com uma cara gasta e viva de velho actor. No me agrada muito, mas no me desagradava que o meu primeiro contacto com a Igreja se estabelecesse por seu intermdio. Recebeu-me num aposento guarnecido de livros que certamente no leu inteiramente. Primeiramente, dei-lhe mil francos para os seus pobres e vi que ele me julgou um criminoso arrependido. Senti que ia rir e tive de encarar a tragicidade da minha situao para ficar srio: Senhor cura disse-lhe , quero apenas uma informao: a vossa religio ensina que Deus nos v? Ele v-nos respondeu com espanto. L os nassos coraes. E que v Ele? Ver essa espuma de que so feitos os meus pensamentos quotidianos ou o seu olhar atinge a nossa essncia eterna? O velho, esperto, deu-me esta resposta, onde reconheci uma sabedoria secular: Deus tudo v, senhor. Compreendi que... PENA SUSPENSA Mathieu amarrotou a carta com impacincia. Quanta velharia, pensou. O vidro estava aberto, fez uma bola da carta e lanou-a pela janela, desistindo de ler o resto. No, no disse o comissrio , pegue no telefone, no gosto de falar com esses oficiais mais graduados, tratam-nos como lacaios. Creio que esse ser mais amvel disse o secretrio ; afinal devolvemos-lhe o filho; e alm disso, ele tinha razo, em suma: deve-ria t-lo vigiado melhor. Ver, ver, arranjara um pretexto para ser desagradvel. Principalmente nas circunstncias actuais: nas vsperas de uma guerra, intil tentar fazer com que um general reconhea o seu erro. O secretrio marcou o nmero: o comissrio acendeu um cigarro.
Seja hbil, Mirant disse ele. Tom de voz profissional e no fale de mais. Est, est! General Lacaze? Sim disse uma voz desagradvel. Que deseja? Sou o secretrio do comissariado da Rua Delambre. A voz pareceu demonstrar maior interesse. Bem, e ento? Apresentou-se um rapaz neste comissariado s oito horas, mais ou menos disse o secretrio com voz neutra e branda. Afirma ser desertor e possuir um passaporte falso. Encontramos efectivamente, nos seus bolsos, uma passaporte espanhol grosseiramente imitado. Ele recusou-se a declarar a sua verdadeira identidade. Mas a chefia tinha-nos descrito e enviado fotografias do seu enteado e ns reconhecemo-lo imediatamente. J E A N-P AUL SARTRE Houve um silncio e o secretrio continuou, meio embaraado: Evidentemente, meu general, no exercemos nenhuma atitude contra o rapaz. No desertor, porquanto no foi chamado; possui um passaporte falso, mas isso no constitui delito porque no teve a oportunidade de us-lo. Conservamo-lo sua disposio e o senhor pode vir busc-lo quando quiser. Deram-lhe pancada? O secretrio estremeceu. Que foi que ele disse? perguntou o comissrio. O secretrio tapou o auscultador com a mo. Pergunta se lhe demos uma sova. O comissrio ergueu os braos, enquanto o secretrio respondia: No, meu general, naturalmente que no. pena disse o general. O secretrio tomou a liberdade de rir respeitosamente. Que foi que ele disse? indagou novamente o comissrio. Mas o secretrio, impaciente, voltou-lhe as costas e inclinou-se sobre o telefone. Irei hoje ou amanh. Daqui at l mantenham-no preso. Ser uma lio. Sim, meu general. Que disse ele? insistiu o comissrio. Queria que dssemos uma sova no rapaz. O comissrio esmagou o cigarro no cinzeiro. Imagine s! disse com ironia. Dezoito e trinta. O Sol sobre o mar no acabava de desaparecer, nem as vespas de zumbir, nem a guerra de se aproximar; ela espantou uma vespa com um gesto que PENA SUSPENSA tambm no acabava; Jacques, atrs dela, acabava de beber o seu usque aos golinhos. Ela pensou: A vida interminvel.
Pai, me, irmos, tios e tias, durante quinze anos haviam-se reunido naquele salo nas belas tardes de Setembro, direitos e mudos como retratos de famlia; ela esperava o jantar, a princpio debaixo das mesas, mais tarde numa cadeirinha, costurando, perguntando a si mesma: para qu viver? Todas as tardes ficavam ali, perdidas no ouro ruivo daquela hora v. O pai, atrs dela, lia o Temps. Para qu viver? Para qu? Uma mosca subia desnorteada pelo vidro, caa, tornava a subir; Odette acompanhava-a com o olhar, tinha vontade de chorar. Vem sentar-te disse Jacques. Daladier vai falar. Ela voltou-se: ele dormia mal; estava sentado no sof com o ar infantil que assumia quando tinha medo. Odette sentou-se no brao do sof. Todos os dias sero iguais. Todos os dias. Olhou l para fora e pensou: Ele tinha razo, o mar mudou. Que vai ele dizer? Jacques encolheu os ombros. Vai anunciar que a guerra foi declarada. Odette estremeceu ligeiramente. Quinze noites. Durante quinze noites de angstia suplicara em vo; teria dado tudo, casa, sade, dez anos de vida para salvar a paz. Mas que estoure. Meus Deus! Que estoure de uma vez essa guerra! Que acontea afinal alguma coisa: que a campainha para o jantar toque, que um raio caia no mar, uma voz sombria anuncie subitamente: Os alemes invadiram a Checoslovquia. Uma mosca. Uma mosca afogada no fundo de uma chvena; ela deixava-se afogar nessa tarde J E A N-P AUL SARTRE serena de catstrofe: olhava para os cabelos ralos do marido e no compreendia muito bem porque valia a pena preservar os homens da morte e as casas da runa. Jacques pousou o copo sobre o aparador. Disse tristemente: o fim. O fim de qu? De tudo. Nem sei j o que se deva desejar: vitria ou derrota. Oh! fez ela docemente. Vencidos, seremos germanizados; mas eu juro-te que os Alemes sabero restabelecer a ordem. Comunistas, judeus e maos, s lhes restar fazerem as malas. Vencedores, seremos bolchevizados, o triunfo da frente crapulosa, a anarquia, pior, talvez... Ah! continuou com voz queixosa , no se devia ter declarado esta guerra, no se devia. Ela no ouvia muito atenta. Pensava: Est com medo, mau sente-se s. Inclinou-se sobre ele e acariciou-lhe os cabelos. Meu pobre Jacques. Meu querido Boris. Sorria-lhe, parecia serena. Boris sentiu um remorso morder-lhe
o corao, ser preciso que lhe diga tudo afinal. estpido continuou Lola , estou nervosa, tenho vontade de saber o que ele nos vai dizer, mas, enfim, no como se fosses partir imediatamente. Boris olhou para os ps e ps-se a assobiar baixinho. Era melhor fingir que no ouvira, seno ela acus-lo-ia de hipcrita ainda por cima. Cada minuto, a coisa tornava-se mais difcil. Ela faria aquela cara de mgoa e espanto e diria: Fizeste isso? Fizeste isso? E no me disseste nada? A coisa est a ficar negra, pensou. PENA SUSPENSA Um Martini pediu Lola. E tu? Um Martini, tambm. Recomeou a assobiar baixinho. Depois do discurso de Daladier haveria talvez uma oportunidade: Lola ficaria a saber que a guerra fora declarada, isso estonte-la-ia e ento Boris entraria do chofre: Alistei-me! antes que ela recobrasse a respirao. H casos em que o excesso de desgraa provoca reaces inesperadas: o riso, por exemplo; seria engraado se ela desatasse a rir. Sentir-me-ia um tanto humilhado, pensou com objectividade. Todos os hspedes estavam reunidos entrada, at os dois padres. Afundavam-se nas poltronas e assumiram ares confortveis, porque se sentiam observados, mas no estavam nada sossegados e Boris surpreendeu alguns olhando de esguelha para o relgio. Bem, bem, ainda uma meia hora de espera. Boris no estava contente, no gostava de Daladier e repugnava-lhe pensar que na Frana inteira centenas de milhares de casais, famlias numerosas, padres, se dispunham a acolher como uma man celestial as palavras desse tipo que torpedeara a Frente Popular. importncia de mais para ele, pensou. E voltando-se para o receptor, bocejou ostensivamente. Fazia calor, estavam todos com sede, trs dormiam: dois perto do corredor e o mais velhinho, de mos juntas, que parecia rezar; os outros quatro tinham estendido um leno sobre os joelhos e jogavam s cartas. Eram novos e no muito feios, haviam dependurado os casacos que balouavam atrs das suas nucas e lhes desmanchavam os cabelos ao passar. De quando em quando Mathieu olhava de soslaio os antebraos nus e crespos do vizinho, um loi-rinho cujas mos e unhas largas e pretas manejavam as J E A N-P A U L SARTRE cartas com destreza. Era tipgrafo, o tipo ao lado dele era serralheiro. Um dos dois outros que estavam sentados no banco em frente de Mathieu era caixeiro-viajante; o segundo tocava violino num caf de Bois-Colombes. O compartimento cheirava a homens, fumo e vinho, o suor escorria plos rostos duros,
moldava-os, fazia-os luzir: no queixo mole do velhinho, no meio do restolho duro e branco do rosto, o suor parecia mais oleoso e azedo: um excremento da face. Do outro lado da janela, sob um sol spero, estendia-se uni campo cinzento e plano. O tipgrafo no tinha sorte perdia; debruava-se sobre o jogo arqueando as sobrancelhas com um ar de espanto e obstinao. de mais! O viajante juntou rapidamente as cartas e baralhou-as. O tipgrafo acompanhava-as com o olhar ao passarem de uma mo para a outra. No tenho sorte disse com rancor. Jogavam silenciosamente. Ao fim de um momento, o tipgrafo fez uma vaza: Trunfo! disse satisfeito. A coisa vai mudar, minha gente! Vou-me animar um pouco. Mas j o viajante ostentara o jogo: Trunfo, trunfo, e retrunfo. Nada de histrias: a rainha-me no as aprecia. O tipgrafo empurrou as cartas. No jogo mais, perco demasiado. Tens razo. E depois isso abala muito observou o serralheiro. O viajante dobrou o leno e p-lo no bolso. Era um homem grande e plido, com uma cabea mole de sapo, maxilares avantajados e crnio estreito. Os trs outros PENA SUSPENSA tratavam-no por senhor, porque ele possua alguma instruo e era sargento. Mas ele tratava-os por voc. Deitou um olhar hostil para Mathieu e levantou-se cambaleando: Vou tomar qualquer coisa. E uma ideia. O serralheiro e o tipgrafo tiraram as suas garrafas das malas; o serralheiro bebeu pelo gargalo e estendeu a garrafa ao violinista. Um gole de vinho? Agora no. No sabe o que bom. Calaram-se, acabrunhados de calor. O serralheiro encheu as bochechas e suspirou, o viajante acendeu um cigarro. Mathieu pensava: No gostam de mim. Acham-me orgulhoso. No entanto, simpatizava com eles, at com o viajante: bocejavam, dormiam, jogavam s cartas, mas tinha um destino, como os reis, como os mortos. Um destino esmagador, que se fundia com o calor, a fadiga, as moscas: o vago, fechado como uma estufa, cercado de sol, comprimido pela velocidade, leva-os aos solavancos para a mesma aventura. Uma mancha de luz ornava a orelha
vermelha do tipgrafo: o lbulo parecia um morango de sangue: com isso que se faz a guerra, pensou Mathieu. At ento ela aparecera-lhe sob a forma de uma mistura confusa de ao retorcido, vigas partidas, ferro e pedra. Agora o sangue tremia aos raios de sol, uma claridade ruiva invadira o vago: a guerra era um destino de sangue; seria feita com o sangue daqueles seis homens, com o sangue que se estagnava no lbulo das suas orelhas, com o sangue que corria sob a sua pele, com o sangue dos seus lbios. Rachar-se-iam como J E A N-P AUL SARTRE odres, todas as imundcies saltariam para fora; os intestinos farsistas do serralheiro que faziam gluglu e de vez em quando soltavam um traque surdo, arrastar-se-iam na poeira, trgicos, como os de um cavalo estripado na arena. Pois eu vou desentorpecer as pernas disse o tipgrafo como se falasse consigo mesmo. Mathieu viu-o levantar-se e chegar ao corredor: essa frase j era histria. Um morto tinha-a pronunciado a meia voz, num dia de vero da sua vida. Um morto, ou, o que dava no mesmo, um sobrevivente. Mortos desde j. Eis porque no tenho nada a dizer-lhes. Olhava-os numa espcie de vertigem, gostaria de estar comprometido na sua grande aventura histrica, mas achava-se excludo dela. Acocorava-se no seu calor, sangraria nos mesmos caminhos deles, e no entanto no estava com eles, era apenas um halo plido e eterno: no tinha destino. O tipgrafo que fumava no corredor voltou-se subitamente para eles: Avies! So? O viajante baixou-se. O peito tocava-lhe as coxas gordas e ele erguia a cabea e as sobrancelhas. Onde? Ali, ali. Uma porrada deles! Ah!... ... ... fez o serralheiro. So franceses? perguntou o violinista, erguendo para o tipgrafo os olhos esgazeados. Esto alto de mais, no se vem. Naturalmente so franceses disse o serralheiro. O que que querem que sejam? A guerra no foi declarada. PENA SUSPENSA O tipgrafo inclinou-se sobre os outros apoiando as mos nos batentes da porta. Quem sabe! H onze horas que estamos a andar. Pensam talvez que vo esperar pela nossa chegada para a declarar? O serralheiro pareceu impressionado: Merda disse. Tens razo, animal. Eh!, companheiros,
talvez j se esteja em guerra desde manh. Voltaram-se todos para o viajante. Que que acha? Acha que estamos em guerra? O viajante tinha um ar sereno. Encolheu os ombros enfaticamente: Em que pensam? Que nos iramos bater pela Checoslovquia? J viram num mapa a Checoslovquia? No? Pois eu vi. E mais de uma vez. uma merda. Grande como um leno. Tem talvez dois milhes de homens, que nem sequer falam a mesma lngua. V l se Hitler est a ligar. E Daladier? E depois, Daladier no Daladier: as duzentas famlias. E elas no se vo aborrecer com a Checoslovquia, as duzentas famlias! Passeou o olhar pelo auditrio e concluiu: A verdade que havia descontentamento deste lado e do outro desde 36. Ento, que que fizeram os Cham-berlain, os Hitler e os Daladier? Eles disseram: vamos acabar com isso. E assinaram um contrato secreto. Hitler, o seu truque quando os operrios reclamam mobiliz-los. Assim, caluda, boca fechada. No esto contentes? Duas horas de planto! Continuam a grunhir! Seis! Depois disso os camaradas esto de joelhos, no pensam seno em dormir. Ento os outros ministros pensaram tambm: vamos fazer a mesma coisa. Pronto. Nada de guerra, nem pela J E A N-P AUL SARTRE Checoslovquia, nem pela Turquia. S que ns, ns somos mobilizados, vamos aguentar trs anos, ou quatro, e durante esse tempo, na retaguarda, eles quebraro a espinha do proletariado. Olhavam-no hesitante: no estavam convencidos, talvez no tivessem compreendido. O serralheiro disse com ar vago: O que certo que os grandes quebram os vidros e os pequenos que pagam. O violinista meneou a cabea apavorado, e tornaram todos a ficar silenciosos. O tipgrafo virou-se e colou a testa a um dos grandes espelhos do corredor. Evidentemente, pensou Mathieu, no esto muito entusiasmados com a perspectiva da guerra. Pensava nos homens de 14 a berrarem, com os seus fuzis floridos. E depois? Estes que tm razo. Falam por provrbios, mas as palavras atraioam-nos, h alguma coisa na sua cabea que no pode ser expressa por palavras. Os seus pais fizeram uma chacina absurda e h vinte anos que lhes explicam que a guerra no compensa... Depois disso, querem que gritem: A Berlim! Alis, tudo o que dizem, tudo o que pensam no tem a menor importncia; cintilaes furtivas margem do seu destino. Diro dentro em breve: os soldados de 38, como disseram: os soldados do ano II, os soldados de 14. Escavariam os seus abrigos como os outros, nem pior nem melhor, depois
estender-se-iam l dentro, porque era o que lhes cabia fazer. E tu?, pensou bruscamente, que fazes de testemunha deles sem que ningum o pea, quem s tu? Que fars tu? E se tu escapares, quem sers tu? O tipgrafo bateu no vidro. Continuam ali. PENA SUSPENSA Quem? indagou o violinista estremecendo. Os avies. Eles sobrevoam o comboio. Sobrevoam? No ests maluco? No os vejo, no? Mas que coisa! disse o serralheiro. Que coisa! O velhinho despertara. Que foi? indagou com a mo encostada orelha. Avies. Ah!, avies! Sorriu e tornou a dormir. Venham ver gritou o tipgrafo , so uns trinta; nunca vi tantos, desde Villacoublay. O serralheiro e o viajante tinham-se levantado, Mathieu acompanhou-os ao corredor. Havia duas dezenas de bichos transparentes, camares nas guas do cu. Pareciam existir por intermitncia, quando no estavam no sol desapareciam. Se fossem alemes? No fales nisso! Estvamos fritos. Como alvo o nosso comboio uma beleza! Havia muita gente no corredor, todos de nariz para o ar. O caso parece-me srio disse o viajante. Tinham todos um ar nervoso. Um tipo tamborilava no vidro, outro marcava compasso com o p. A esquadrilha virou em ngulo agudo e desapareceu por cima do comboio. Arre! disse algum. Esperem observou o tipgrafo , j fizeram o mesmo h pouco; garanto que tornam a virar no sentido do nosso comboio. Esto ali! Esto ali! J E A N-P AUL SARTRE Um tipo grande de bigodes baixara o vidro da porta e reclinara-se de costas. Os avies tinham surgido novamente, um deles largava uma esteira de fumo. So alemes disse o de bigode endireitando-se. Atrs de Mathieu o violinista ergueu-se bruscamente e ps-se a sacudir os dois dorminhocos. Que foi que houve? indagou um deles, com voz pastosa, entreabrindo um olho rosado. A guerra foi declarada disse o violinista. A coisa vai
ficar escura, j h avies boches em cima do comboio. Lola apertou nervosamente o pulso de Boris. Escuta!, escuta! Jacques empalidecera: Escuta!, ele vai falar. Era uma voz lenta, baixa e surda, ligeiramente analisada: Anunciei que faria hoje uma comunicao ao pas acerca da situao internacional, mas recebi no princpio da tarde um convite do Governo alemo para me encontrar amanh em Munique com o chanceler Hitler e os senhores Mussolini e Chamberlain. Aceitei esse convite. Compreendereis que em vsperas de negociaes to importantes tenha o dever de adiar as explicaes que vos quisera dar. Mas antes de partir, desejo enderear ao povo da Frana os meus agradecimentos pela sua atitude corajosa e digna. Desejo agradecer em particular aos franceses que foram chamados, pelo sangue-frio e deciso que demonstraram nessa oportunidade. A minha tarefa rude. Desde o incio das dificuldades que vimos enfrentando, no deixarei de trabalhar PENA SUSPENSA com todas as minhas foras para salvaguardar a paz e os interesse vitais da Frana. Continuarei fortalecido pela certeza de que estou em pleno acordo com a nao inteira. Boris! chamou Lola. Boris! Ele no respondeu. Ela insistiu: Acorda, querido, que ests a sentir? a paz: vai haver uma conferncia internacional. Encarava-o muito excitada e corada. Ele resmungou entre dentes: Merda, merda de bordel! Merda! A alegria de Lola svaiu-se: Mas que tens, querido? Ests verde! Alistei-me por trs anos disse Boris. O comboio andava, os avies giravam. O maquinista est louco gritou um tipo. Que que espera para parar? Se comeam a lanar bombas, vamos morrer como animais. O tipgrafo estava lvido, mas sereno; continuava de cabea erguida a espiar os avies. Devamos saltar disse. Merda, saltar com esta velocidade! exclamou o viajante. Eu no. Tirou o leno do bolso, enxugou a fronte: Seria melhor puxar o sinal de alarme. O serralheiro e o tipgrafo fitaram-se. Puxa tu disse o tipgrafo. Eu! E se forem franceses? Mathieu recebeu um empurro nas costas: um tipo grandalho
corria para a frente gritando: Est a diminuir a marcha: todos para as portas! J E A N-P AUL SARTRE O tipgrafo virou-se para o viajante: fazia gestos estranhos e desconjuntados, com um sorrisinho que lhe descobria os dentes: Est a ver? O comboio diminui a marcha, so alemes. engano!, engano! continuou, imitando o viajante , olhe para ver se engano. No disse isso observou o outro calmamente , eu disse... O tipgrafo voltou-lhe as costas e dirigiu-se para a frente do comboio. De todos os compartimentos saam homens, apressando-se plos corredores, para serem os primeiros a saltar para o campo. Algum tocou no brao de Mathieu; era o velhinho, encarava-o com perplexidade. Que que h? Que que h? Nada disse Mathieu aborrecido. Durma. Debruou-se janela. Dois tipos haviam-se pendurado nos estribos do vago. Um saltou a gritar, tocou o solo, deu dois passos de lado, bateu com o ombro num poste telegrfico, rolou de cabea para baixo no talude. Mathieu virou a cabea; viu-o levantar-se, pequenino, erguer os braos e correr plos campos. O outro hesitava, inclinado para a frente, e segurando o corrimo de cobre. No empurrem berrou algum. Morre-se abafado. O comboio continuou a diminuir a marcha. Viam-se cabeas em todas as janelas e nos estribos juntavam-se os que se preparavam para saltar. Na curva surgiu uma estao, estava a trezentos metros. Mathieu viu uma cidade-zinha ao longe. Dois homens ainda se lanaram e saltaram uma passagem de nvel. O comboio j entrava na estao. com isto que vo fazer heris!, pensou Mathieu. PENA SUSPENSA Uma enorme algazarra vinha da estao, vestidos claros brilhavam ao sol, mos de luvas brancas erguiam-se, moas de chapu de palha acenavam com os seus lenos, crianas corriam rindo e gritando pela plataforma. O violinista empurrou Mathieu com violncia e debruou-se at barriga pela janela. Ps as mos em concha na boca e berrou: Fujam! Avies! As pessoas na estao olhavam-no sem compreender, sorrindo e gritando. Ele levantou o brao acima da cabea e apontou para o cu. Um grande clamor respondeu. A princpio Mathieu no ouviu bem, mas entendeu de repente: Paz! Paz! a paz! O comboio inteiro berrou: Os avies! Os avies!
Hurra! gritaram as moas. Hurra! Elas acabaram por olhar para o cu e erguendo os braos tornaram a agitar os lenos. O viajante roa nervosamente as unhas. No compreendo murmurou , no compreendo. Aps dois ou trs solavancos o comboio parou com-pletamente. Um empregado da estao subiu para um banco com a bandeira debaixo do brao e clamou: A paz! Conferncia em Munique. Daladier parte esta noite. O comboio permanecia silencioso, imvel, incompreen-sivo. E subitamente ps-se a berrar tambm. Hurra! Viva Daladier! Viva a paz! Os vestidos de tafet azul e rosa desapareceram numa mar de casacos escuros e pretos; a multido agitou-se num rudo semelhante ao das folhagens, o sol cintilava por J E A N-P AUL SARTRE toda a parte, os bons e os chapus de palha giravam, era uma valsa. Jacques fez Odette valsar no meio do salo, a senhora Birnenschatz abraava Ella e gemia: Como sou feliz, Ella, minha filha, minha querida, como sou feliz! Sob a janela um rapaz corado e rindo como um louco saltou para uma camponesa e beijou-a nas duas faces. Ela ria tambm, despenteada, o chapu de palha posto para trs, e gritava: Hurra! Jacques beijou Odette na orelha, exultava: A paz! E de se imaginar que no se limitaro a resolver a questo dos Sudetas. Um pacto a quatro. por a que se deveria ter comeado. A criada entreabriu a porta: Posso servir, minha senhora? Sirva! disse Jacques , sirva e depois v buscar adega uma garrafa de champanhe e uma de Chambertin. Um velho imponente, de culos, trepara para o banco, erguia numa das mos uma garrafa de vinho e na outra uma caneca: Um gole de vinho, rapazes, um trago sade da paz. Aqui gritou o serralheiro , aqui. Viva a paz! Ah!, senhor abade, deixe-me beij-lo. O padre recuou, mas a velha foi mais rpida e executou a ameaa. Gressier enfiou a concha na terrina: O fim de um pesadelo, meus filhos! Zzette abriu a porta: Ento, verdade, dona Isidore? , minha filha, verdade, ouvi-o no rdio, ele voltar, o seu Momo, eu bem lhe dizia que Deus no queria isso! Danava de alegria, Hitler retraiu-se, Hitler voltou atrs; creio que ns que recuamos, mas que me importa, desde que no tenhamos mais de lutar, no, no, estava avisado, comprei tudo de novo, um
PENA SUSPENSA golpe de cem mil francos, escute, meu amigo, trata-se de uma circunstncia excepcional, pela primeira vez uma guerra que parecia fatal evitada pela vontade de quatro chefes de Estado, a importncia da sua posio ultrapassa muito a hora presente; agora a guerra no possvel. Munique a primeira declarao de paz. Deus meu, Deus meu, rezei e disse: meu Deus, levai o meu corao, a minha vida, e vs me atendestes, meu Deus, sois o maior, o mais sbio, o mais amante, o padre desenvencilhou-se. Mas eu disse-lhe sempre: Deus formidvel, e merda para os Checos, que se arranjem sozinhos. Zzette andava pela rua, Zzette cantava, todos os passarinhos dentro do meu corao, as pessoas tinham caras sorridentes, diziam bom dia com o olhar, mesmo sem se conhecerem. Eles sabiam, ela sabia, todos tinham o mesmo pensamento, todos eram felizes, bastava fazer como toda a gente: a linda tarde, essa mulher que passa, leio no fundo do seu corao, somos um, ps-se a chorar, todos se amavam, toda a gente era feliz, toda a gente era como toda a gente e Momo devia estar contente, apesar de tudo, ela chorava, todos a olhavam e isso fazia--Ihe calor nas costas e no peito, todos esses olhares, quanto mais a olhavam mais ela chorava, sentia-se orgulhosa e pblica como uma me que amamenta o filho. Jacques! Bebes de mais. Odette ria sozinha. Disse: Sem dvida vo logo desmobilizar os reservistas? Dentro de uns quinze dias, um ms. Ela riu e bebeu mais um gole de vinho. E de repente o sangue subiu-lhe ao rosto. Que que tens? perguntou Jacques. Ficaste vermelha como um tomate. J E A N-P AUL SARTRE No nada. Bebi um pouco de mais, tudo. Nunca o teria beijado se soubesse que voltaria to depressa. Subam! Subam! O comboio movimenta-se devagar. Os homens comearam a correr, gritando e rindo; agarravam-se aos punhados s portas. A cara suada do serralheiro surgiu janela, pendurara-se a ela e gritava: Ajudem-me!, vou-me largar! Mathieu iou-o, ele passou a perna pela janela e saltou para o corredor. Arre! disse enxugando a testa. Pensei que tivesse as pernas esmagadas. O violinista apareceu por sua vez: Todos presentes, c estamos todos. Mais um joguinho? De acordo.
Voltaram para o compartimento. Mathieu olhava-os pelo vidro. Comearam por tomar um bom gole de tinto, depois o viajante puxou o leno e estendeu-o sobre os joelhos. Ds tu. O serralheiro peidou: Olha, aquela beleza azul disse, mostrando no tecto um foguete imaginrio. Porco! disse o tipgrafo alegremente. Que fazem eles aqui?, pensou Mathieu. E eu prprio? O destino deles esvara-se, o tempo voltava a correr toa, sem objectivo; o comboio rodava toa, por hbito; ao lado do comboio flutuava uma estrada, inerte; agora, no levava a parte alguma, era apenas um pouco de terra PENA SUSPENSA com asfalto. Os avies tinham desaparecido; a guerra havia desaparecido. Um cu plido onde a paz despertava docemente no crepsculo, uma campanha entorpecida, jogadores de cartas, dorminhocos, uma garrafa partida no corredor, pontas de cigarros numa poa de vinho, um forte cheiro a urina, todos esses resduos injustificveis... Dir-se-ia ser este o dia seguinte a uma festa, pensou Mathieu com dor no corao. Douce, Maud e Ruby subiram a Canebire. Douce estava muito animada; o seu fraco sempre fora a poltica. Parece que houve um mal-entendido explicava. Hitler pensava que Chamberlain e Daladier queriam pregar-lhe uma partida e, enquanto isso, Chamberlain e Daladier pensavam que ele tinha a inteno de os atacar. Ento Mussolini foi procurar os dois e fez-lhes compreender que se enganavam. Agora esto todos bem: amanh almoam todos juntos. Que banquete suspirou Ruby. A Canebire tinha um ar festivo, as pessoas andavam a passos midos, algumas riam sozinhas. Maud estava aborrecida. Por certo que estava contente que tudo se tivesse arranjado, mas era principalmente plos outros. De qualquer maneira teria de passar ainda uma noite no quarto malcheiroso do Hotel Genivre e depois, estaes, comboios, Paris, desempregos, dores de estmago: a entrevista de Munique, qualquer que fosse o resultado, no mudaria nada. Sentia-se s. Ao passar diante do Caf Riche, sobressaltou-se: Que foi? perguntou Ruby. Pierre respondeu Maud. No olhes. Terceira mesa esquerda. Pronto, ele viu-nos. J E A N-P AUL SARTRE Pierre levantou-se, brilhava no fato de linho, ostentava o seu semblante mais viril e rico. Naturalmente, pensou ela, j no h perigo agora. Enquanto ele se dirigia para o lado
delas, tentou relembrar-se da fisionomia dele, esverdeada, na cabina que cheirava a vmito. Mas o cheiro e a fisionomia tinham sido varridos pelo vento do mar. Ele cumprimentou, parecia seguro de si. Queria virar-lhe as costas, mas as pernas indolentes levaram-na para ele, embora contra a vontade. Ele disse-lhe a sorrir: Ento, separamo-nos assim sem sequer tomarmos alguma coisa? Encarou-o e pensou: um covarde. Mas no se dava por isso. Via uns lbios irnicos e corajosos, um rosto msculo e aquela ma de ado to saliente. Vem murmurou ele. Tudo isso uma histria antiga. Pensou no quarto do hotel, com o seu fedor a amonaco. Disse: E preciso que convides Douce e Ruby. Ele adiantou-se e sorriu-lhes. Ruby achava-o simptico porque era distinto. Trs flores sentaram-se volta de uma mesa do Caf Riche. Era um canteiro de flores; flores, rostos cheios de sol e frementes, bandeiras, repuxos, sis. Baixou as plpebras e respirou profundamente: entre os seus olhos girava um sol, no se tem o direito de julgar um homem doente. Para ela era tambm a paz. Porque no gostam de mim? Estava s na sala cinzenta, inclinava-se sobre os cotovelos fincados nas coxas, sustentando a sua cabea pesada. Pousara sobre o banco a seu lado as sanduches e a caneca de caf que o guarda lhe trouxera ao meio-dia. Para qu comer? Estava acabado. PENA SUSPENSA Alist-lo-iam fora, revoltar-se-ia e seria o fuzilamento ou vinte anos de priso celular: a sua vida acabava ali. Fitava com espanto o tecto: fora uma empresa fracassada do princpio ao fim. As suas ideias escorriam direita e esquerda, incolores, fluidas, uma nica permanecia, uma nica que no comportava resposta; porque no gostam de mim? Na sala vizinha houve grandes exploses de riso, os guardas estavam alegres. Uma voz grave gritou: Isso festeja-se! Talvez houvesse guardas que gostassem uns dos outros, as pessoas, l fora, nas ruas, nas casas, sorriam umas para as outras, agradavam-se mutuamente, falavam-se com deferncia e cortesia e, entre elas, algumas amavam-se realmente, como Zzette e Maurice. Talvez fosse por serem mais idosos: tinham tido tempo para se habituarem uns aos outros. Um jovem como um viajante que entra noite num compartimento quase cheio; detestam-no e procuram faz-lo acreditar que j no h lugar. No entanto, o meu lugar estava reservado, posto que nasci. Ou ento porque estou podre. Os guardas comearam a rir e um deles pronunciou a palavra Munique. As ruas, as casas, os
vages, o comissariado; um mundo cheio at borda, o mundo dos homens. Philippe no podia entrar. Ficaria a vida inteira numa cela como aquela, no canto que os homens destinam aos que no desejam a seu lado. Viu uma mulherzinha gorda e sorridente, de braos rolios, a hetera. Pensou: Ao menos ela h-de vestir luto por mim. A porta abriu-se e o general entrou. Philippe, no seu banco, recuou at ao canto mais escuro, gritando: Deixe-me. Quero cumprir a minha pena, no preciso da sua proteco. J E A N-P AUL SARTRE O general deu uma gargalhada. Atravessou a cela com o seu passo seco e duro e colocou-se em frente de Philippe. Cumprir a tua pena? Quem pensas que s?, seu imbecil! O cotovelo. Ergueu-se contra a vontade de Philippe e colocou-se diante do rosto de Philippe para o proteger dos golpes. Mas Philippe baixou-o e disse com voz firme: Sou desertor! Desertor! Hitler e Daladier assinam um acordo amanh, meu pobre amigo: no haver guerra e tu nunca foste desertor. Encarava Philippe com uma ironia insultante. Mesmo para fazer o mal preciso ser um homem, Philippe. preciso vontade e perseverana. Tu no passas de um garoto nervoso e mal-educado; faltaste-me ao respeito e mergulhaste a tua me numa atroz inquietao. Eis tudo o que pudeste fazer. Guardas zombeteiros espiavam pela porta entreaberta. Philippe levantou-se de um pulo. Mas o general agarrou-o plos ombros e obrigou-o a sentar-se novamente. Que histria essa? Vais ouvir-me at ao fim. Esta tua ltima criancice prova que preciso reeducar-te inteiramente. A tua me concordou h pouco que fora demasiado fraca. Agora sou eu quem se encarregar de ti. Aproximara-se ainda mais de Philippe. Philippe ergueu o cotovelo e gritou: Se me bater eu luto. o que veremos. Baixou-lhe o cotovelo com a mo esquerda e com a direita esbofeteou-o duas vezes. Philippe caiu em cima do banco e ps-se a chorar. PENA SUSPENSA Havia uma agitao alegre no corredor, uma mulher cantava Vapetit mousse. Odiava-as todas, todas me enjoam! A enfermeira entrou trazendo o jantar numa bandeja. No tenho fome disse ele. preciso comer, senhor Charles, seno ainda enfraquece mais. E depois, tenho boas notcias para lhe aumentar o
apetite: a guerra foi evitada. Daladier e Chamberlain tero uma entrevista com Hitler. Ele olhou-a com espanto: verdade, a histria dos Sudetas continua... A enfermeira estava um pouco corada e os seus olhos brilhavam: Ento, no est contente? Arrastaram-me para fora da casa, carregaram-me como a um pacote, exausto, e nem sequer se batem. Mas no estava com raiva: to longe, tudo! Que que eu tenho com isso? disse. NOITE DE 29 PARA 3O DE SETEMBRO u ma hora e trinta. Os senhores Hubert Masaryk e Mastny, membros da delegao checoslovaca, aguardavam no quarto de Sir Horace Wilson, em companhia do senhor Ashton-Gwatkin. Mastny, muito plido, transpirava e tinha olheiras profundas. Hubert Masaryk andava de um lado para o outro; Ashton-Gwatkin estava sentado na cama; Ivich encolhera-se ao fundo do leito, no o sentia mas sentia o seu calor e ouvia-lhe a respirao; no podia dormir e sabia que ele tambm no dormia. Descargas elctricas percorriam-lhe as pernas e as coxas, morria de vontade de se pr de costas, mas se se mexesse tocaria nele; enquanto ele pensasse que dormia, deix-la-ia sossegada. Mastny voltou-se para Ashton-Gwatkin e disse: Est a demorar-se. Ashton-Gwatkin fez um gesto de indiferena. O sangue subiu ao rosto de Masaryk. J E A N-P AUL SARTRE Os rus aguardam a sentena disse com voz surda. Ashton-Gwatkin no pareceu ouvir. Ivich pensou: No acabar nunca esta noite? Sentiu subitamente uma carne suave de mais junto da sua anca, ele aproveitava o seu sono para tocar nela, preciso que eu no me mexa seno ele perceber que eu estou acordada. A carne escorregou devagar plos seus rins, era quente e mole, era uma perna. Ivich mordeu violentamente os lbios e Masaryk prosseguiu: Para que a semelhana seja completa, mandam a polcia receber-nos. Como? perguntou Ashton-Gwatkin, fazendo uma cara de espanto. Fomos conduzidos ao Hotel Regina num automvel da polcia explicou Mastny. Ora, ora fez Ashton-Gwatkin com um ar de censura. Agora era uma mo; descia ao longo da anca, muito ao de leve, como que distrada; os dedos tocaram-lhe o ventre: No
nada, pensou, um bicho, estou a dormir, estou a dormir, estou a sonhar; no farei um gesto. Masaryk pegou no mapa que Horace lhe havia entregue. Os territrios que deveriam ser imediatamente ocupados pelo Exrcito alemo estavam assinalados a azul. Olhou-o por um instante e lanou-o para a mesa com raiva. Eu... eu continuo a no compreender disse, encarando Ashton-Gwatkin. Somos ainda uma nao soberana? Ashton-Gwatkin encolheu os ombros; parecia querer dizer que no tinha culpa, mas Masaryk pensou que ele estivesse mais comovido do que desejava mostrar. PENA SUSPENSA Essas negociaes com Hitler so muito difceis observou. Leve isso em considerao. Tudo dependia da firmeza das grandes potncias respondeu Masaryk com violncia. O ingls corou ligeiramente. Levantou-se e disse com tom solene: Se os senhores no aceitarem este acordo, tero de se arranjar sozinhos com a Alemanha. Tossiu e acrescentou mais serenamente: Talvez os franceses o digam com mais cuidado. Mas, acreditem, esto de acordo connosco: em caso de recusa, desinteressar-se-o. Masaryk riu desagradavelmente e todos se calaram. Uma voz cochichou: Est a dormir? Ela no respondeu, mas sentiu logo uma boca perto da orelha e um corpo encostado ao seu. Ivich! murmurou ele. Era preciso no gritar, nem debater-se; no sou uma mulher que se violenta. Virou-se de costas e disse com voz clara: No, no estou a dormir. E da? Eu amo-te. Uma bomba! Uma bomba que casse de cinco mil metros e os matasse de chofre. Uma porta abriu-se e Sir Ho-race Wilson entrou: baixava os olhos, falava-lhes, olhando para o cho. De vez em quando devia perceb-lo: erguia a cabea e mergulhava-lhes nos olhos um ar vazio. Senhores, esperam-nos. Os trs homens acompanharam-nos. Atravessaram compridos corredores desertos. Um criado dormia numa cadeira; o hotel parecia morto; o corpo dele estava a ferver; ele J E A N-P AUL SARTRE juntou o peito aos seios de Ivich e ela ouviu um rudo mole de ventosa, o suor inundava-os. Se me ama, afaste-se de mini, estou com calor de mais.
E aqui disse Sir Horace Wilson, encolhendo-se. Ele no se afastava, com uma mo arrancou as cobertas, com a outra segurou-lhe o ombro com fora. Estava deitado sobre ela agora, e amassava-lhe os ombros e os braos com as suas mos violentas, mos de rapina, enquanto a voz infantil e suplicante murmurava: Eu amo-te, Ivich, meu amor, eu amo-te. Era uma sala pequena e baixa, fortemente iluminada. Chamberlain, Daladier e Lger conservavam-se de p, atrs de uma mesa cheia de papis. Os cinzeiros estavam cheios de pontas de cigarro, mas ningum mais fumava. Chamberlain pousou as mos sobre a mesa. Tinha um ar fatigado. Meus senhores disse, com um sorriso afvel. Masaryk e Mastny inclinaram-se sem falar. Asthon--Gwatkin afastou-se com vivacidade, com se no pudesse suportar aquela companhia, e foi colocar-se atrs de Chamberlain, ao lado de Sir Horace Wilson. Agora tinham os checos cinco homens diante deles, do outro lado da mesa. Atrs havia uma porta e os corredores desertos do hotel. Durante um instante reinou pesado silncio. Masaryk olhou-os um a um e depois procurou o olhar de Lger. Mas Lger guardava os seus papis na pasta. Queiram sentar-se disse Chamberlain. Os franceses e os checos sentaram-se, mas Chamberlain permaneceu de p. Bem... disse Chamberlain. Tinha os olhos vermelhos de sono. Considerou as mos com um ar de incerteza, depois endireitou-se bruscamente e disse: PENA SUSPENSA A Frana e a Gr-Bretanha acabam de assinar um acordo acerca das reivindicaes alems a respeito dos Sudetas. Esse acordo, graas boa vontade de todos, pode considerar-se um processo positivo em relao ao memorando de Godesberg. Tossiu e calou-se. Masaryk mantinha-se muito direito na sua poltrona, esperava. Chamberlain pareceu querer continuar, mas mudou de ideia e estendeu uma folha de papel a Mastny. Quer tomar conhecimento do acordo? Seria talvez melhor l-lo em voz alta. Mastny pegou na folha; algum passava de mansinho no corredor. Os passos cessaram. Um relgio, algures na cidade, bateu duas horas. Mastny comeou a ler. Tinha uma voz anasalada e montona; lia devagar, como se reflectisse entre cada frase, e a folha tremia-lhe nas mos: As quatro potncias Alemanha, Reino Unido, Frana, Itlia, tendo em vista o arranjo j realizado em princpio para a cedncia Alemanha dos territrios dos Sudetas, chegaram a um acordo quanto s disposies e condies seguintes, que regulamentam a dita cedncia, bem como as medidas que
acarretam. As quatro potncias, por este acordo, comprometem-se a assegurar-lhe a execuo. 1. A evacuao comear a l de Outubro; 2. O Reino Unido, a Frana e a Itlia concordam em que a evacuao do territrio em questo dever estar terminada a 10 de Outubro, sem que nenhuma das instalaes l existentes seja destruda. O Governo checoslovaco assumir a responsabilidade de efectuar essa evacuao sem que dela resulte nenhum prejuzo para as referidas instalaes; J E A N-P AUL SARTRE 3. As condies desta evacuao sero determinadas pormenorizadamente por uma comisso internacional composta de representantes da Alemanha, do Reino Unido, da Frana, da Itlia e da Checoslovquia; 4. A ocupao progressiva dos territrios de predominncia alem pelo exrcito do Reich iniciar-se- a l de Outubro. As quatro zonas indicadas no mapa anexo sero ocupadas pelo Exrcito alemo pela seguinte ordem: Zona l Dias l e 2 de Outubro. Zona 2 Dias 2 e 3 de Outubro. Zona 3 Dias 3, 4 e 5 de Outubro. Zona 4 Dias 6 e 7 de Outubro. Os demais territrios de preponderncia alem sero determinados pela comisso internacional e ocupados pelo Exrcito alemo at ao dia 10 de Outubro. A voz montona erguia-se no silncio, no meio da cidade adormecida. Tropeava, parava, prosseguia impie-dosamente, um pouco trmula, e milhes dormiam a perder de vista, sua volta, enquanto ela expunha minuciosamente as mobilidades de um assassnio histrico. A voz suplicante e cochichante, meu amor, meu bem, gosto dos teus seios, gosto do teu cheiro, gostas de mim, subia na noite e as mos sob o seu corpo, fervente, assassinavam. Gostaria de fazer uma pergunta disse Masaryk. Que se deve entender por territrio de preponderncia alem? Dirigia-se a Chamberlain. Mas Chamberlain olhou-o sem responder, com um ar ligeiramente apalermado. Visivelmente no escutara a leitura. Lger tomou a palavra, PENA SUSPENSA atrs de Masaryk. Masaryk imprimiu um movimento de rotao poltrona e viu Lger de perfil: Trata-se disse Lger de maiorias calculadas segundo as propostas aceites plos senhores. Mastny tirou o leno do bolso e enxugou a testa, depois continuou a leitura: 5. A comiso internacional mencionada no pargrafo 3. determinar quais os territrios em que haver plebiscito.
Tais territrios sero ocupados por contingentes internacionais at ao trmino do plebiscito... Interrompeu a leitura e perguntou: Esses contingentes sero efectivamente internacionais ou sero formados somente por tropas inglesas? Chamberlain bocejou por trs da mo e uma lgrima rolou-lhe pelo rosto. Retirou a mo: A questo no foi ainda inteiramente resolvida. Encara-se tambm a participao de soldados belgas e italianos. Esta comisso, continuou Mastny, fixar igualmente as condies em que o plebiscito deve ser institudo, tomando por base as condies do plebiscito do Sarre. Fixar, alm disso, para o incio do plebiscito, uma data que no poder ser posterior ao fim de Novembro. Interrompeu-se de novo e perguntou a Chamberlain com certa doura irnica: O membro checoslovaco dessa comisso ter o mesmo direito de voto dos outros? Naturalmente disse Chamberlain benevolente. Algo viscoso como um cogulo conspurcou Ivich, introduziu-se no seu sangue, no sou uma mulher que se violenta, abriu-se e deixou-se apunhalar, mas enquanto frmitos de J E A N-P AUL SARTRE gelo e fogo subiam ao seu peito, a cabea continuava fria; salvara a cabea e gritava-lhe, dentro da cabea, odeio-te! 6. A fixao final das fronteiras ser restabelecida pela comisso internacional. Essa comisso ter tambm competncia para recomendar s quatro potncias, Alemanha, Reino Unido, Frana e Itlia, em certos casos excepcionais, modificaes de alcance restrito determinao estritamente etnolgica das zonas transferveis sem plebiscito. Devemos considerar este artigo como uma clusula, destinada a assegurar a proteco dos nossos interesses vitais? indagou Masaryk. Voltara-se para Daladier e olhava-o com insistncia. Mas Daladier no respondeu; parecia velho e acabado. Masaryk observou que ele conservara no canto da boca uma ponta de cigarro apagado. Essa clusula fora-nos prometida disse Masaryk com energia. Em certo sentido disse Lger , este artigo pode ser considerado em funo da clusula a que alude. Mas preciso ser modesto para comear. A questo da garantia das fronteiras ser de competncia da comisso internacional. Masaryk deu uma gargalhada curta e cruzou os braos: Nem sequer uma garantia! disse meneando a cabea.
7., leu Mastny. Haver um direito de opo permitindo ser includo nos territrios transferidos ou deles excludo. Essa opo ser exercida no prazo de seis meses a partir da data do presente acordo. PENA SUSPENSA 8. O Governo checoslovaco, num prazo de quatro semanas a partir da concluso do presente acordo, libertar todos os alemes dos Sudetas que o desejarem das formaes militares ou policiais a que pertenam. No mesmo prazo, o Governo checoslovaco libertar os prisioneiros alemes dos Sudetas que cumprem penas de priso por delitos polticos. Munique, 29 de Setembro de 1938. Pronto disse ele , a est. Olhava para a folha como se no tivesse acabado de a ler. Chamberlain bocejou fortemente, depois principiou a tamborilar na mesa. Pronto disse Mastny. Estava acabado. A Checoslovquia de 1918 deixara de existir. Masaryk acompanhou com o olhar a folha branca que Mastny ia largar na mesa. Voltou-se depois para Dala-dier e Lger e encarou-os fixamente. Daladier afundara-se na poltrona, de queixo cado sobre o peito. Tirou um cigarro do bolso, olhou-o por um instante e tornou a coloc-lo no mao. Lger estava um pouco vermelho, parecia impaciente. Esperam uma declarao ou resposta do meu Governo? indagou Masaryk. Daladier no respondeu. Eger baixou a cabea e disse muito depressa: Mussolini deve voltar Itlia hoje pela manh; no dispomos de muito tempo. Masaryk continuava a fixar Daladier. Disse: Nem mesmo uma resposta? Devo compreender com isso que somos obrigados a aceitar? Daladier fez um gesto de desnimo e Lger respondeu atrs dele: J E A N-P AUL SARTRE Que mais podem fazer? Ela chorava, o rosto voltado para a parede. Chorava em silncio e os soluos sacudiam-lhe os ombros. Porque ests a rir? perguntou uma voz hesitante. Porque o odeio respondeu ela. Masaryk levantou-se, Mastny fez o mesmo. Chamber-lain bocejava a ponto de desarticular o maxilar. SEXTA-FEIRA, 3O DE SETEMBRO o soldadinho aproximou-se de Gros-Louis agitando um jornal.
A paz! gritou. Gros-Louis largou o balde: Que ests tu a dizer, rapaz? Paz!, estou eu a dizer. Gros-Louis encarou-o com desconfiana: No pode haver paz se no houver guerra. J assinaram, saloio. Olha o jornal. No sei ler. Ah!, que estupidez disse o soldadinho com pena. Ento olha para a fotografia. Gros-Louis pegou no jornal com repugnncia, chegou-se janela da estrebaria e olhou para a fotografia. Reconheceu Daladier, Hitler, Mussolini, que sorriam: pareciam bons amigos. Bem, bem! J E A N-P AUL SARTRE Olhou para o soldadinho, franzindo as sobrancelhas e de repente ficou alegre: Reconciliados agora! disse a rir. E nem sei porque brigavam! O soldado ps-se a rir e Gros-Louis acompanhou-o. Adeus, meu velho! disse o soldado. Afastou-se. Gros-Louis aproximou-se da gua preta e comeou a acariciar-lhe a garupa. Bem, bem, minha bela, bem, bem. Sentia-se vago. Disse: Bem, que vou eu fazer agora? Que vou eu fazer? Birnenschatz dissimulava-se atrs do jornal, via-se subir um fuminho recto por trs das folhas abertas. A senhora Birnenschatz agitava-se na poltrona. Preciso de ver Rose, por causa dessa histria do aspirador. Era a terceira vez que falava do aspirador, mas no saa. Ella encarava-a sem simpatia, gostaria de ficar a ss com o pai. Achas que o vo aceitar? perguntou a senhora Birnenschatz voltando-se para a filha. Ests sempre a perguntar-me isso. No sei, mam! Na vspera, a senhora Birnenschatz chorara de alegria abraando a filha e as sobrinhas. Agora j no sabia o que fazer da sua alegria; era uma alegria pesada e mole como ela prpria, que se transformaria logo em profecia, a menos que conseguisse compartilh-la. Virou-se para o marido: Gustave! Birnenschatz no respondeu. Ests muito quieto hoje. PENA SUSPENSA Estou! Mesmo assim, baixou o jornal e olhou-a por cima dos culos. Parecia desanimado e envelhecido. Ella sentiu um n na garganta: apetecia-lhe beij-lo mas era melhor no se lanar
em efuses diante da senhora Birnenschatz, j por de mais propensa a tais manifestaes. Ests contente, ao menos? perguntou a mulher. Contente com qu? indagou ele secamente. Ora disse ela j a gemer , disseste cem vezes que no desejavas esta guerra, que seria uma catstrofe, que era preciso tratar com os Alemes; pensei que estivesses contente. Birnenschatz encolheu os ombros e voltou ao jornal. A senhora Birnenschatz fixou por um instante o seu olhar cheio de surpresa e censura no muro de papel. O lbio inferior tremia-lhe: suspirou, levantou-se com dificuldade e dirigiu-se para a porta. No compreendo o meu marido nem a minha filha disse, ao sair. Ella acercou-se do pai e beijou-o docemente no crnio. Que h, pap? Birnenschatz tirou os culos e ergueu a cabea para ela: No tenho nada a dizer. Esta guerra, eu no estava na idade de a fazer, no ? Por isso, fico calado. Dobrou meticulosamente o jornal, resmungando como para si mesmo: Eu era pela paz... Ento? Ento... Inclinou a cabea para a direita e ergueu o ombro esquerdo num movimento engraado e infantil: Tenho vergonha disse sombrio. J E A N-P AUL SARTRE Gros-Louis esvaziou o balde na latrina, espremeu cuidadosamente a gua da esponja, ps a esponja no balde e levou tudo para a estrebaria. Fechou a porta, atravessou o ptio e entrou no edifcio B. Estava deserto. No tm pressa de partir, pensou, devem estar contentes aqui. Tirou de debaixo da cama as calas e o seu casaco de civil. Eu no gosto, disse, comeando a despir-se. No ousava alegrar-se. H oito dias que me chateiam. Enfiou as calas e deps com cuidado a sua farda em cima da cama. No sabia se o patro o aceitaria ainda. Quem ir guardar agora as suas ovelhas? Pegou na mala e saiu. Diante do tanque, quatro tipos olhavam-no a rir. Gros-Louis disse-Ihes adeus com a mo e atravessou o ptio. No tinha nem um nquel, mas iria a p. Eu ajud-los-ei nas fazendas e eles dar-me-o de comer. De repente, reviu o cu azul-claro por cima das charnecas do Canigou, reviu os traseiros saltitantes das ovelhas e compreendeu que estava livre. Eh! Onde que voc vai?
Gros-Louis voltou-se: era o sargento Peltier, um homem gordo. Vinha a correr, ofegante. Eh! gritou. Que historia essa? Parou a dois passos de Gros-Louis, fungando, vermelho de furor. Onde vai? repetiu. Vou-me embora! Vai-se embora! disse o sargento cruzando os braos. Vai-se embora! Mas para onde? perguntou, numa atitude de indignao exasperada. Para casa! disse Gros-Louis. Para casa! Ele vai para casa! Sem dvida que ou a comida que no lhe agrada ou ento o colcho que PENA SUSPENSA duro. Tornando-se novamente ameaador, acrescentou: Vai-me fazer o favor de dar meia volta, a trote! Vou-te ensinar, meu rapaz. No sabe que eles se reconciliaram, pensou Gros-Louis. Disse: Assinaram a paz, meu sargento! O sargento parecia no acreditar no que ouvia. Est a fazer-se de idiota ou a zombar de mim? Gros-Louis no desejava zangar-se. Desviou-se e continuou a andar. Mas o tipo gordo correu atrs dele, puxou-o pela manga, colocou-se sua frente. Empurrava-o com a pana e gritava: Se no me obedecer imediatamente, vai responder a conselho de guerra. Gros-Louis parou, coou o crnio. Pensou em Marselha e sentiu dores na cabea. H oito dias que me chateiam aqui disse lentamente. O sargento sacudiu-o pelo casaco, berrando: Que est a dizer? H oito dias que me chateiam aqui gritou Gros-Louis com voz de trovo. Agarrou o sargento pelo ombro e bateu-lhe na cara. Ao fim de um momento viu-se forado a passar-lhe o brao pelo sovaco para continuar a bater; sentiu-se seguro por trs, torceram-lhe os braos. Largou o sargento Peltier, que caiu no cho sem dizer palavra, e ps-se a sacudir aqueles tipos pendurados nele, mas algum lhe passou unia rasteira, e Gros-Louis caiu de costas. Comearam a soc-lo. Ele virava a cabea de um lado para o outro para evitar os socos e dizia ofegante: J E A N-P AUL SARTRE Deixem-me partir, deixem-me partir, estou a dizer que assinaram a paz! Gomez raspou com as unhas o fundo do bolso e conseguiu uns
restos de tabaco misturado com poeira e pedaos de palha. Enfiou tudo no cachimbo e acendeu. O fumo tinha um gosto spero e sufocante. J acabou a proviso de tabaco? indagou Garcin. Desde ontem noite. Se soubesse teria trazido mais. Lopez entrou com os jornais. Gomez olhou-o e baixou os olhos sobre o cachimbo. Compreendera. Viu Munique em caracteres enormes na primeira pgina. Ento? indagou Garcin. Ento, estamos perdidos disse Lopez. Gomez mordeu o cachimbo com fora. Ouviu o canho e pensava na calma noite em Juan-les-Pins, no jazz na praia: Mathieu teria ainda muitas noites iguais. Os safados! murmurou. Mathieu permaneceu um instante entrada da cantina, depois saiu para o ptio e fechou a porta. Conservava a sua roupa de civil: j no havia uma s farda no armazm militar. Os soldados passeavam aos grupos, pareciam espantados e inquietos. Dois jovens que caminhavam para o seu lado puseram-se a bocejar ao mesmo tempo. Divertem-se, vocs dois! disse Mathieu. O mais novo fechou a boca e disse como que desculpando-se: No se sabe o que fazer! Ol! disse algum atrs de Mathieu. Mathieu voltou-se, era um tal Georges, vizinho de cama, que tinha uma boa cara lunar e melanclica. Sorria-lhe: PENA SUSPENSA Ento? disse Mathieu. Tudo bem? Mais ou menos. Queixa-te! disse Mathieu. No deverias estar aqui neste momento. Deverias estar no fogo. Sim disse o outro, encolhendo os ombros aqui ou noutro lugar... verdade. Estou contente porque vou tornar a ver a garota. Seno... Vou voltar ao escritrio, no me dou muito bem com a minha mulher... Vamos ler os jornais, vamos aborrecer-nos com Dantzig: tudo recomear como no ano passado. Bocejou e acrescentou: A vida sempre a mesma coisa, no acha? Sempre. Sorriam indolentemente. No tinham mais nada a dizer. At logo disse Georges. At logo. Do outro lado da grade algum tocava acordeo. Do outro lado da grade era Nancy, era Paris, catorze horas de aulas por semana, Ivich, Boris, Irene talvez. A vida igual em toda a
parte, sempre a mesma coisa. Dirigiu-se a passos lentos para a grade. Cuidado! Soldados faziam-lhe sinais para que se afastasse: tinham traado uma linha no cho e lanavam nqueis sem grande convico. Mathieu deteve-se um instante: viu nqueis a rolarem, e mais nqueis, e mais ainda. De vez em quando uma moeda rodopiava como um pio, tropeava e caa sobre outra, cobrindo-a em parte. Ento eles erguiam-se e davam gritos. Mathieu continuou a andar. Tantos comboios e camies pela Frana, tanta dor, tanto dinheiro, J E A N-P AUL SARTRE tantas lgrimas, tantos gritos em todas as estaes de rdio do mundo, tantas ameaas e desafios em todas as lnguas, tantos concilibulos para chegar a isso: andar volta de um ptio ou jogar com nqueis na poeira. Todos esses homens tinham-se esforado por partir sem lgrimas, todos haviam visto de repente a morte de perto, e todos, com muita dificuldade ou simplesmente, tinham aceitado morrer. Agora estavam imbecilizados, de braos soltos, atolados nessa vida que reflura neles, que lhes deixavam ainda durante mais algum tempo e que no sabiam aproveitar. Foi um primeiro de Abril, pensou. Agarrou-se com ambas as mos grade e olhou para fora: o sol sobre uma rua vazia. Nas ruas comerciais da cidade, h vinte e quatro horas havia paz. Mas em volta das casernas e dos fortes uma vaga bruma de guerra ainda acabava de se dissipar aos poucos. O acordeo tocava Madelon; um ventinho morno levantou um turbilho de p na estrada. E da minha vida, que que eu vou fazer? Era muito simples: havia Paris, Rua Huyghens, um apartamento que o esperava, dois quartos, aquecimento central, gua, gs, electricidade, com poltronas verdes e um caranguejo de bronze em cima da mesa. Voltaria para casa, poria a chave na fechadura, voltaria sua ctedra no Liceu Buffon. E nada teria ocorrido. Nada. A sua vida esperava-o, familiar, deixara-a em cima da secretria, no quarto de dormir; entraria nela sem mais histrias ningum se meteria em invenes, ningum faria aluso entrevista de Munique, dentro de um ms tudo estaria esquecido, restaria apenas uma pequenina cicatriz na continuidade da sua vida, uma fenda, a lembrana de uma noite em que pensara partir para a guerra. No quero!, pensou, apertando as grades com toda a PENA SUSPENSA fora. No quero! Isso no acontecer. Voltou-se bruscamente, olhou sorrindo para as janelas faiscantes do sol. Sentia-se forte; havia no seu ntimo uma pequena angstia que comeava a conhecer, uma pequena angstia que lhe dava
confiana. Uma pessoa qualquer, num lugar qualquer. No possua mais nada, no era mais nada. A noite sombria da antevspera no seria perdida; aquela enorme agitao no seria inteiramente intil. Que tornem a colocar o sabre na bainha, que faam a sua guerra, ou no faam, pouco me importa; no sou trouxa. O acordeo emudecera. Mathieu recomeou a andar pelo ptio Permanecerei livre, pensou. O avio descrevia grandes crculos em cima do Bourget, um pez negro e ondulante cobria metade do aeroporto. Lger inclina-se para Daladier e diz, apontando: Que multido! Daladier olhou tambm, e pela primeira vez desde Munique falou: Vieram para me partir a cara. Lger no protestou. Daladier encolheu os ombros: Compreendo-os. Tudo depende do servio de ordem disse Lger suspirando. Entrou no quarto com os jornais. Ivich estava sentada na cama, baixava os olhos: Pronto! Assinaram esta noite. Ivich ergueu os olhos, ele parecia feliz mas calou-se bruscamente, embaraado com o olhar dela. Quer dizer que no haver guerra? perguntou ela. Naturalmente. J E A N-P AUL SARTRE Nada de guerra, nada de avies sobre Paris; os tectos no desmoronariam sob as bombas, ia ser preciso viver. No haver guerra! disse ela soluando. No haver guerra e voc parece satisfeito! Milan acercou-se de Anna. Titubeava e os seus olhos estavam rosados. Tocou-lhe no ventre e disse: Aqui est um que no vai ter sorte. Quem? O garoto. Digo que no ter sorte. Aproximou-se da mesa mancando e encheu um copo de lcool. Era o quinto naquela manh. Lembras-te disse quando caste da escada? Pensei que tivesses um aborto. Ento? disse ela secamente. Virara-se para ela, com o copo na mo: parecia fazer uma sade. Teria sido melhor disse escarnecendo. Ela olhou: ele erguia o copo, a sua mo tremia um pouco. Talvez disse ela. Talvez tivesse sido melhor. O avio aterrara. Daladier saiu com dificuldade da carlinga e ps o p na escada. Estava lvido. Ouviu-se um clamor imenso da multido e toda aquela gente se ps a correr, rebentando os
cordes da polcia, derrubando as barreiras; Milan bebeu e disse, rindo: Pela Frana! Pela Inglaterra! Plos nossos gloriosos aliados! Depois lanou com toda a fora o copo contra a parede. A multido gritava: Viva a Frana! Viva a Inglaterra! Viva a paz! Transportavam bandeiras e ramos de flores. Daladier parara no primeiro degrau. Olhava-os com estupor. Voltou-se para Lger e disse entre dentes: Cretinos!