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COMARÚ, F. BARBOSA, B. Movimentos Sociais e Habitação

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Movimentos Sociais e Habitação

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO
GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

Francisco Comarú
Benedito Barbosa

Movimentos Sociais e Habitação

Salvador, 2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Gerente Executiva Equipe Design
Maria Emília Batista Cordeiro
Reitor: João Carlos Salles Pires da Silva Supervisão: Alessandro Faria
Vice-Reitor: Paulo César Miguez de Oliveira Gerente Executiva Escola de Habitação Editoração / Ilustração:
Ana Carolina Rabelo de Castro Matos
Pró-Reitoria de Extensão Universitária
Ana Paula Ferreira; Marcos do Nascimento
Pró-Reitora: Fabiana Dultra Britto Gestão do Desenvolvimento Filho; Moema dos Anjos; Sofia Casais;
Territorial

Sumário
Escola de Administração Ariana Santana; Camila Leite; Marcone
Coordenadora: Pereira; Vitor Sousa; Flávia Moreira
Diretor: Horacio Nelson Hastenreiter Filho. Gerente de AVA: Jose Renato Oliveira
Profa. Tânia Maria Diederichs Fischer
Centro Interdisciplinar de Design de Interfaces: Raissa Bomtempo
Desenvolvimento e Gestão Social Design Educacional: Agnes Bezerra Freire
Tânia Maria Diederichs Fischer de Carvalho; Coordenação Executiva:
Rodrigo Maurício Freire Soares; Supervisão Equipe Audiovisual
Superintendência de Educação a Acadêmica: Renata Lara Fonseca ;
Supervisão de Tutoria: Gizele Amorim Direção:
Distância -SEAD Conceição Haenz Gutierrez Quintana
Superintendente
Produção:
Márcia Tereza Rebouças Rangel Produção de Material Didático
Coordenação de Tecnologias Educacionais Leticia Oliveira; Ana Paula Ramos Mini currículo dos autores .....................................................6
Coordenação de Tecnologias Educacionais
Haenz Gutierrez Quintana Câmera: Valdinei Matos
CTE-SEAD Carta de Apresentação ..........................................................7
Coordenação de Design Educacional Edição:
Núcleo de Estudos de Linguagens &
Lanara Souza Deniere Silva; Flávia Braga; Irlan
Tecnologias - NELT/UFBA Nascimento; Jeferson Ferreira; Jorge Unidade I ..............................................................................11
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL Coordenação Farias; Michaela Janson; Raquel Campos;
Victor dos Santos 1 - Introdução: desigualdade e injustiças históricas como
Presidente da Caixa Prof. Haenz Gutierrez Quintana ingredientes das organizações populares pela moradia ....................11
Nelson Antônio de Souza Animação e videografismos:
Projeto gráfico 2 - A explosão das periferias, exclusão e espoliação nas
Vice-Presidente Interino/ Diretor de Prof. Haenz Gutierrez Quintana Bianca Silva; Eduarda Gomes; Marcela de
Almeida; Dominique Andrade; Roberval cidades Brasileiras .................................................................................13
Habitação: Paulo Antunes de Siqueira Lacerda; Milena Ferreira
Foto de capa: 3 - Organização popular, a luta por moradia digna e pelo
Superintendente Nacional SUHEN Equipe de Revisão: Edição de Áudio: direito à cidades inclusivas ...................................................................16
Henrique Marra de Souza
Edivalda Araujo; Julio Neves Pereira Cícero Batista Filho; Greice Silva; Pedro 4 - As lutas urbanas e pela moradia digna travadas nos
Gerente Nacional GEHPA Henrique Barreto; Mateus Aragão anos 1980 com o processo de democratização da sociedade ...........21
André de Souza Fonseca Márcio Matos; Simone Bueno Borges
5 - Considerações e elementos para reflexão .....................................23
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de 6 - Referencias (Unidade I) ..................................................................25
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Anexos .....................................................................................................26
Código de Financiamento 001. Esta obra está sob licença Creative
Commons CC BY-NC-SA 4.0: esta licença permite que outros remixem,
adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam o devido Unidade II .............................................................................29
crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos. I - Introdução .........................................................................................29
2 - Os movimentos e os rumos das políticas habitacionais
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) no Brasil pós Estatuto da Cidade .........................................................30
Sistema de Bibliotecas da UFBA 3 - A organização dos grupos de sem teto e a ação recente
dos movimentos de moradia ................................................................36
C728 Comarú, Francisco.
Movimentos sociais e habitação / Francisco Comarú, Benedito Barbosa. - Salvador: UFBA,
4 - A luta dos movimentos e enfrentamento a onda despejos
Escola de Administração; Superintendência de Educação a Distância, 2019. e remoções em nossas cidades .............................................................44
49 p. : il.
5 - Considerações finais ........................................................................46
Esta obra é um Componente Curricular do Curso MBA em Gestão do Desenvolvimento Referencias (Unidade II) ......................................................................47
Territorial com Ênfase em Política Habitacional na modalidade EaD da UFBA/SEAD/UAB.

ISBN: 978-85-8292-208-8

1. Habitação. 2. Movimentos sociais - Brasil. 3. Política habitacional. I. Barbosa, Benedito. II.


Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. III. Universidade Federal da Bahia.
Superintendência de Educação a Distância. IV. Título.

CDU: 351.778.5
Carta de
Mini currículo Apresentação
dos autores
Prezado aluno / cursando,

Francisco Comarú
Seja muito bem vindo à disciplina “Movimentos Sociais e Habitação»
de nosso curso. Esta disciplina é composta por um conjuntos de materiais
Engenheiro civil, mestre em engenharia urbana e doutor em saúde e produtos pedagógicos que têm a finalidade de introduzir e permitir o
pública, professor da Universidade Federal do ABC. Fez estágio de pós aprofundamento na temática da origem dos movimentos sociais, principais
doutorado na University College London (Londres), na Organização escolas de interpretação académica, aspectos históricos, relações com as
Mundial da Saúde e na Organização Internacional do Trabalho (Ge- políticas publicas e desafios contemporâneos.
nebra). É coordenador do Laboratório Justiça Territorial (LabJuta) da Você vai encontrar nos textos referentes às unidades I e II desta apostila,
UFABC, membro da coordenação do Centro Gaspar Garcia de Direitos referencias bibliográficas que podem permitir aprofundamentos, fotos e
Humanos e da Rede BR Cidades. imagens, sugestões de videos e filmes, e referencias da literatura popular
contemporânea. Todos esses elementos tem o propósito de permitir uma
interação multissensorial com a temática em questão, para além da leitura
dos textos.
Benedito Barbosa
Importante notar que a temática dos movimentos sociais e habitação
insere-se num campo de estudos interdisciplinares perpassando disciplinas
Bacharel em Direito, atua como Advogado popular no Centro Gaspar de áreas como arquitetura e urbanismo, sociologia, engenharia, economia,
Garcia de Direitos Humanos e na União Nacional de Moradia Popular. meio ambiente e políticas públicas.
É Mestre em planejamento e gestão do território pela UFABC e douto- Neste sentido, além da complexidade de tema, trata-se claramente de
rando no Programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do um assunto em que não é possível um enquadramento a partir de uma
Território pela Universidade Federal do ABC. Foi Conselheiro do Con- única interpretação, um único ponto de vista, ou “a verdade”. Ao contrário,
selho Nacional das Cidades e fundador da Central dos Mo-vimentos Po- esse tema, como outros tantos, afetos às ciências sociais aplicadas, insere-
pulares (CMP) se num corpo de literatura em que a diversidade e visões e interpretações
e as controvérsias são praticamente inerentes, dada a natureza do objeto.
Procuramos assim trazer algumas referencias e aspectos que introduzam
o aluno neste campo abrangente que ainda merecerá muitos estudos e
pesquisas no futuro.
8 Movimentos Sociais e Habitação 9

Esperando que todo esse material possas suscitar estímulos intelectuais,


ampliar os conhecimentos e fomentar o interesse pelo tema, que julgamos
necessário para compreender mais e melhor as carências e necessidades de
nosso país.
Bom proveito!

Prof. Francisco Comaru


Prof. Benedito Barbosa

Apostila de Curso CIAGS / CAIXA / UFBA


Movimentos sociais e habitação
Ementa:
Movimentos sociais - a diversidade empírica do fenômeno e as principais
vertentes interpretativas. Teorias dos Novos Movimentos Sociais. Teoria do
Processo Político. Explicações contemporâneas para a lógica da ação coletiva:
as teorias de rede. Os movimentos de luta pelo direito à cidade e a moradia.
Habitação como direito e como mercadoria. A provisão estatal da habitação. O
direito à cidade e o acesso a serviços públicos. Desafios contemporâneos para as
agendas do direito à cidade moradia.
10 11

Unidade I

1 - Introdução: desigualdade e injustiças históricas como


ingredientes das organizações populares pela moradia

“Brasil, meu dengo


A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”
Mangueira: Samba-Enredo 2019.

A história do Brasil, desde os primeiros momentos da invasão portuguesa,


no início do século XV, é marcada por disputas, conflitos, resistências e lutas
populares. Os povos originários não aceitaram pacificamente a dominação
expansionista, predatória, cruel e violenta, branca ocidental, que dizimou
contingentes de populações originárias em troca de terra, ouro, pedras preciosas
(mineração), madeira entre outras riquezas materiais.
Houve muita resistência de norte a sul e de leste a oeste do país, inúmeras foram
também, as revoluções e guerras civis, de índios e pretos durante todo o período
colonial, sob o regime de produção baseado no desmatamento, no latifúndio e na
mão de obra escrava que perdurou por mais de 300 anos (PÁDUA, 2002).
Este regime escravagista de apropriação da terra, dos meios de produção e de
concentração de riquezas, marcou com a cruz, o chicote e a espada, as raízes da
organização da sociedade brasileira.
Há certo ideário difundido em parte da sociedade referente ao mito da
cordialidade do brasileiro. Idéia de que se trata de um povo pacífico, alegre bom e
feliz, sob o manto de uma harmonia em que não há disputas, conflitos de classes,
nem lutas sociais estruturantes no país.
Boa parte destes mitos foram difundidos desde a colônia e, em boa parte,
serviram aos interesses das elites para pacificar as classes subalternas, ocultar
Ilustração: Ariana Santana conflitos, amenizar injustiças ou mesmo justificar massacres.
12 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 13

Após o período oficialmente escravocrata, desde o final do século XIX e ao


Sader destacou, por meio de sua obra, a nova miríade de atores e movimentos
longo dos séculos XX e XXI, contam-se inúmeras, as lutas sociais, revoltas,
que entravam em cena no contexto da redemocratização após das 2 décadas de
insurreições, greves e outras mobilizações insurgente espontâneas ou organizadas.
ditadura militar que atravessou ao todo, ou em parte, os anos 1960, 1970 e 1980
As greves do início do século XX, mais precisamente entre 1917 e 1920, por (SADER, 2001).
exemplo, mobilizaram milhares de trabalhadores em diversas cidades do país
Do ponto de vista da sociologia urbana consideramos importante destacar os
e influenciaram resultados importantes nos anos que se seguiram, como por
trabalhos de Kowarick referente a produção da periferia das grandes cidades, o
exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Voto para a mulheres, sob
processo de exploração, e mais ainda, o processo de espoliação que se impôs à
o período do ambíguo governo de Getúlio Vargas, num cenário de avanço das
classe trabalhadora, quando essa teve que construir suas casas com suas próprias
idéias e práticas comunistas e socialistas na Rússia. Não deixavam de se constituir
mãos nas periferias, privando-se do acesso à infra estrutura, serviços e emprego
como resposta às demandas das classes operárias por melhores condições de vida
próximo de suas residências.
e trabalho.
Registra-se ainda, diversos autores contemporâneo que vêm realizando uma
Uma revisão bibliográfica sistemática pode localizar inúmeras manifestações
reflexão importante relativamente às lutas sociais e populares e ao processo de
e mobilizações sociais e populares ao longo do século XX que tiveram como
produção do espaço construído (Kowarick, 1980; Maricato, 1982; Kowarick,
propósito desde a demanda por melhoria das condições de reprodução da vida,
1994; Santos Júnior, 1995; Maricato, 2011; Maricato, 2015; De Carli et al. 2015;
até a contestação da ordem vigente.
Rolnik, 2015).
O fenômeno da organização e mobilização dos grupos sociais diversos em
Após esta introdução, esta apostila está organizada nos seguintes itens:
diferentes momentos não se restringiu aos territórios e causas urbanas ou
A explosão das periferias, exclusão e espoliação nas cidades Brasileiras;
territórios ou causas rurais, mas ao contrário, pôde ser identificado relacionado
Organização popular, a luta por moradia digna e pelo direito à cidades inclusivas;
à diferentes temas, causas, grupos e territórios.
As lutas urbanas e pela moradia digna travadas nos anos 1980 com o processo de
Gohn (1997) em seus estudos sobre os movimentos sociais elenca diversas democratização da sociedade; Considerações e elementos para reflexão.
teorias e paradigmas, a partir de uma revisão bibliográfica de autores, em boa
parte estrangeiros, da Europa e dos EUA e também alguns latino-americanos,
entre alguns brasileiros. No campo das teorias clássicas sobre as ações coletivas 2 - A explosão das periferias, exclusão e espoliação nas
a autora identifica por exemplo: a Escola de Chicago e os interacionistas:
cidades brasileiras
movimentos sociais como reações psicológicas às estruturas de privações
socioeconômicas; a teoria da sociedade de massas; a abordagem sociopolítica; o O processo de urbanização das cidades brasileiras a partir de meados do século
comportamento coletivo sob a ótica do funcionalismo; as teorias organizacionais- XX é um fenômeno importante e radical, considerando que houve uma verdadeira
comportamentalistas (GOHN, 1997). inversão do local de moradia das populações rurais e urbanas (SANTOS, 2005).
Gohn (1997) situa ainda os paradigmas contemporâneos Estadunidenses Este fenômeno não ocorreu de forma isolada do modelo terceiro mundista e
e Europeus da ação coletiva e dos movimentos sociais, assim como discussões capitalista de produção de cidades espraiadas e excludentes, com centro urbanos
específicas sobre os movimentos sociais na era da Globalização, a influência degradados e periferias isoladas e pobres (BARBOSA, 2014).
marxista nas análises dos movimentos sociais, os movimentos sociais na Conforme Maricato (2000) menciona, este processo de povoamento das
América Latina e o caso dos movimentos sociais no Brasil. Percorre-se assim cidades aliado à precariedade dos serviços, infraestrutura urbana, e ao acesso
uma gama de autores que abre um leque considerável de pesquisas e estudos, às políticas públicas universais gerou, o que podemos denominar, de “crise do
como Durkheim; Marx, Weber, Touraine, Habermas, Offe, Castells, Hobsbawm,
Thompson, Melucci, Scott, Sader, Holston, entre outros.
14 Movimentos Socias e Habitação Unidade I 15

urbano”, com cidades caóticas, insustentáveis, com territórios marcados pela


violência e pela informalidade. A condição de cidades espraiadas, com centros
urbanos degradados e periferias longínquas, naquilo que a professora Ermínia
Maricato em suas recorrentes exposições denomina como o exílio dos pobres e
trabalhadores nas periferias que vem durante décadas marcando nossas cidades
e predominando em nossos territórios.
O processo de migração intensa para grandes cidades, capitais e suas periferias,
aliado à altas taxas de natalidade da população e à ausência e inadequação das
políticas urbanas e habitacionais no Brasil, contribuiu para uma onda de explosão
das periferias por parte das famílias das classes trabalhadoras que sem contar com
ajuda ou apoio do Estado, viram-se obrigadas a construir suas próprias casas,
bairros e infra-estruturas sob sacrifícios intensos e duradouros (MARICATO,
1975).
Foto 1 - Ocupação recente na zona norte do município de São Paulo (2018)
Existem diversas razões explicativas, referentes ao complexo processo Foto: Acervo própio
de formação e estruturação das cidades brasileiras. Uma das interpretações
consistentes, relacionada às muitas causas destes processos, associa-se ao fato
“A insuficiência e inadequação das políticas habitacionais e urbanas contribuíram,
histórico que, no Brasil, o salário pago aos trabalhadores não permitiu o acesso
em muitos casos, para o agravamento das condições de vida da classe trabalhadora
à moradia digna, segura, e bem localizada, via mercado formal de habitação. urbana que, em boa parte, foi oficialmente constrangida a exilar-se nas periferias
Ou ainda, ‘o custo da moradia nunca foi incluído no salário’ da maior parte autoconstruídas, ou ainda, a viver confinadas em conjuntos habitacionais de
dos trabalhadores (MARICATO, 2015). Assim, a urbanização e a produção das baixa qualidade, distantes, produzidos pelo poder público, inseridos num quadro
moradias nas imensas periferias deu-se por meio dos processos de autoconstrução, de monotonia, repetição, padronização e isolamento econômico, geográfico e
como modo de baixar o custo de reprodução da força de trabalho’ em sua maioria cultural, relativamente às áreas reservadas para as elites. No caso de São Paulo,
nos locais inadequados à ocupação, tantas vezes com materiais inapropriados bairros do cone sudoeste, como Higienópolis, Ibirapuera e Jardins; no Rio de
do ponto de vista tecnológicos, em boa parte distante do interesse do mercado Janeiro, bairros da zona sul, como Barra da Tijuca, e assim por diante. A batalha
imobiliário privado (MARICATO, 2015; COMARU, 2016). pela construção da cidadania no país, tantas vezes, se perde na periferia, onde
ocorrem mais homicídios deflagrados pela própria polícia, além de conflitos
Este processo de formação de cidades segregadas e desiguais é também fruto entre facções criminosas, julgadas arbitrariamente, à margem do Estado. Na
da crise da modelo fordista e da crise do modelo de acumulação do capital periferia, também as taxas de mortalidade infantil, em geral, são mais elevadas,
(FERNANDES, A.C. 2001), especialmente a partir do final dos anos 1970. os transportes mais precários, a educação e a saúde públicas, menos qualificadas.
Neste contexto de crise urbana, e o modelo de acumulação do capital, vão se E é nas periferias que, na média, se concentram as maiores taxas de desemprego,
desencadear uma série de lutas sociais nas cidades brasileiras, impactando desde menor renda, menor expectativa de vida, além de mais precariedade no acesso
os modelos locais de organização até os modelos nacionais. O que mais interessa a equipamentos culturais de qualidade. Ao mesmo tempo, grosso modo, pode-se
neste momento é debater como se deram as lutas no campo urbano, pelo direito dizer que as periferias são mais abrangentes, vastas, populosas e densas que as
à moradia e pela reforma urbana. regiões centrais» (COMARU, 2016, pg 74).

Além dos efeitos dos baixos salários, viabilizados pela indústria e pelos
empregadores em geral, nota-se uma clara inadequação ou insuficiência em O Banco Nacional de Habitação - BNH, durante a ditadura militar, por sua
termos de políticas sociais de habitação. vez, havia produzido uma escala bastante significativa de conjuntos habitacionais
nas periferias das grandes cidades e regiões metropolitanas, financiando a
16 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 17

produção de cerca de 4 milhões de residências. A política habitacional do de Favelas do Rio de Janeiro - FAFERJ, que foi fundada em 1963, e existe até os
período caracterizou-se pela produção massiva de grandes conjuntos, em sua dias de hoje. O Movimento de Defesa do Favelado que atua na Zona Leste de São
maioria, localizados nas periferias das cidades, o que ocasionou problemas de Paulo desde a década de 1970, organiza mais 40 favelas na região onde vivem
custos de urbanização, custos de transportes, dificuldades de acesso aos serviços mais de 70 mil pessoas, entre elas as favelas mais antiga de São Paulo, como a
e equipamentos urbanos essenciais para a população residente, como creche, Favela da Vila Prudente que surgiu na década de 1940.
escolas, postos de saúde, hospitais, centros culturais e esportivos e emprego.
Um dos legados mais importantes dos Movimentos de Favelas no Brasil,
No entanto, esta concepção de produção habitacional se revelou danosa às neste enfrentamento cotidiano contra a especulação imobiliária e os violentos
cidades brasileiras, pouco acessível e caro para os trabalhadores de baixa renda. processos de remoções, sem dúvida, foi a conquista das Zonas Especiais de
Na transição final da final do regime militar, no ano de 1986 o banco foi extinto Interesse Social - conhecidas popularmente como ZEIS.
gerando um passivo para os municípios, para as companhias de habitação e para
As Zonas Especiais de Interesse Social são uma conquista do Movimento de
governo federal que administra nos dias de hoje os resultados desta política. A
Favelas, que tinha no período amplo apoio dos planejadores urbanos ativistas e
produção de grande conjuntos nas periferias, gerou mais segregação espacial e
orgânicos, de setores progressistas da Igreja Católica e das Pastorais, inseridas
mais ganhos para o capital imobiliário.
nas comunidades e periferias das cidades. As ZEIS constituíam-se à época,
uma espécie zoneamento popular, aprovado em lei municipal para evitar
principalmente que os territórios das favelas pudessem sofrer processos de
3 - Organização popular, a luta por moradia digna e pelo direito à remoção por pressão da especulação imobiliária, facilitando o acesso à moradia
cidades inclusivas e abrindo maiores perspectivas para os processos de regularização fundiária e
segurança na posse.
Do ponto de vista dos sem teto, quando tem início as primeiras formas de
organização e mobilização para melhoria das condições e investimentos em A primeira experiência de estabelecimento de ZEIS ocorreu no município
do Recife-PE, e teve início na década de 80. Em 1983, uma nova Lei de Uso
habitação?
e Ocupação do Solo da cidade reconheceu as ZEIS como parte integrante da
Com milhares de trabalhadores, que haviam sido expulsos ou deixado o cidade sem, no entanto, dispor de instrumentos de inibição da ação especulativa
campo, rumo às cidades, gerando um complexo processo de ocupação urbana, do mercado imobiliário: a lei reconhecia características particulares daqueles
com forte impacto sobre as áreas de proteção ambiental e as áreas mais frágeis das assentamentos e propunha a promoção de sua regularização jurídica, bem como
cidades. Milhares de favelas e loteamentos populares passaram a ocupar a cena a sua integração à estrutura da cidade, mas, uma vez integradas as ZEIS, as
urbana, ampliando os conflitos pelo direito à terra, num país em que a terra é um leis do mercado tratariam de estabelecer sua dinâmica normal de estruturação
dos principais ativos de concentração de riqueza, e poder político. urbana. Além disso, a lei reconhecia apenas 27 áreas como ZEIS – dentro de um
universo estimado de 200 favelas – deixando uma massa de assentamentos de
Neste contexto de dramática segregação territorial, é que surgem na cena origem espontânea sem instrumentos legais de acesso a solo e benefícios urbanos.
urbana os primeiros movimentos de contestação no final dos 1970. O primeiro (ROLNIK e CYMBALISTA, 1998, pg 01).
movimento de caráter nacional neste período, antes ainda da estruturação do
movimento da reforma urbana, (que vamos tratar mais adiante), é Movimento de
Defesa do Favelado - MDF. Em todo Brasil, especialmente nas médias e grandes A partir da experiência de Recife, outras lutas dos Movimentos de Favelas
cidades e regiões metropolitanas surgem articulações ligadas a este Movimento, com características distintas, porém com fio condutor comum de defesa do
cuja bandeira mais importante era a defesa do direito à terra. acesso à terra, se multiplicaram, em diversas cidades do Brasil como em Belo
A luta do movimentos de favelas, associada à defesa do acesso à terra, ganha Horizonte, Fortaleza, Santo André, Diadema, Santos, Porto Alegre, Belém,
presença na cena urbana no início dos ano 1980, mas existiam movimentos de entre outras. Na esteira da luta pela democratização e por cidades democráticas,
caráter regional ainda mais mais antigos, como é caso por exemplo, da Federação muitas Câmara Municipais foram cercadas e ocupadas pelos moradores das
favelas na luta por seus direitos.
18 Movimentos Sociais e Habitação Unidade 1 19

De forma transversal às estas ações dos movimentos locais, outras mobilizações


no campo e na cidade explodem pelo país. Se em São Bernardo Campo no ABC
paulista, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, as jornadas de greves
dos metalúrgicos por melhores condições de trabalho e renda foram um dos
ingredientes que concorreram para a derrocada da ditadura militar nos anos
1980.
Em 1984 nasce o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
que já foi considerado um dos movimentos com mais visibilidade e mais
importantes da América Latina na temática da reforma agrária. Os atingidos
por barragens, por sua vez iniciaram suas primeiras reuniões para articulações e
organização, ainda no final dos anos 1970 no período da construção de grandes
empreendimentos de engenharia no interior do país sob a ditadura militar, tendo
sido institucionalizado como um movimento nacional em 1991.
Foto 2 - Ocupação recente no extremo sul do município de São Paulo (2018)
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) cumpre papel central Foto: Acervo próprio
no acolhimento e organização das famílias atingidas por barragens e acumula
experiência importante no tocante ao debate sobre os impactos das barragens
e grandes obras de energia, mineração e engenharia no país como um todo.
O MAB tem desempenhado recentemente, um papel relevante no debate e
resistência frente às ações da Vale, após os desastres com as barragens de Mariana dos anos 1970 e 1980 foi marcado pela atuação dos grupos progressistas ligados à
e Brumadinho MG. Igreja Católica, particularmente por meio das Comunidades Eclesiais de Bases e
as Pastorais Sociais. Assistiu-se também, naquele contexto, a difusão e prática das
No Acre, nos anos 1980 Chico Mendes, através da organização dos Sindicato
ideias, princípios e métodos de educação popular desenvolvidos pelo Professor
dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, tornou-se uma referência nacional e
brasileiro Paulo Freire, que de alguma forma viria a se tornar uma autoridade
internacional na resistência dos seringueiros contra depredação da floresta
reconhecida internacionalmente pela sua contribuição marcante no âmbito da
amazônica por parte de fazendeiros e pecuaristas. Chico Mendes, que fora
educação de adultos.
assassinado em 1988, é considerado um dos dos precursores do atual movimento
ambientalista brasileiro, que na época ainda eram denominado movimento O início dos anos 1990 demarcaria uma fase importante com o surgimento
ecologista. de inúmeras organizações não governamentais relacionadas à mais diferentes
temáticas como meio ambiente, direitos humanos, habitação, crianças e
Em 1984, mobilizações dos trabalhadores rurais canavieiros da região de
adolescentes, mulheres e relações de gênero, entre muitas outras. Em 1992 o
Ribeirão Preto no Estado de São Paulo, denunciam e lutam contra as condições
Brasil cedeu lugar para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
análogas à escravidão no setor em que trabalhos. Essas mobilizações, na medida
Desenvolvimento, a Rio-92, a Agenda 21, a Carta da Terra.
em que ganham visibilidade e apoio de outros setores da sociedade, contribuem
para alterar de forma significativa as relações de trabalho no campo, demarcando No âmbito das cidades, registra-se a pulverização de um sem-número de
avanços no que tange o respeito à dignidade humana e implementação da agenda experiências municipais de políticas públicas e sociais lideradas por prefeitos,
do Trabalho Decente no Brasil. e vereadores eleitos pelo voto direto em todo o país, relacionadas às políticas
urbanas, a habitação e ao meio ambiente, tais como: Orçamento Participativo,
A década de 1980 assistiu ainda a abertura democrática, as primeiras eleições
Programas de Urbanização de Favelas, Programas de requalificação de cortiços e
livres após duas décadas de ditadura, o surgimento de novos partidos políticos,
intervenções em áreas centrais urbanas.
centrais sindicais e a Promulgação da Constituição Cidadã de 1988. O período
20 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 21

Com o intenso crescimento da população urbana, nas décadas de 1950, 1960 e 4 - As lutas urbanas e pela moradia digna travadas nos anos 1980 com
1970, nossas cidades sofrem transformações importantes sob diferentes pontos de o processo de democratização da sociedade
vista. Boa parte das estruturas de transporte por bondes cede lugar ao transporte
a pneus por meio dos ônibus urbanos (BONDUKI, 1998). Com a ausência de Neste contexto, de um processo de democratização da sociedade na década
políticas de regulação do uso e ocupação do solo, ausência de política fundiária e de 1980, sobretudo na sua segunda metade, surge o Movimento Nacional pela
planos diretores que em sua maioria não dialogavam com a realidade das cidades Reforma Urbana (MNRU) que se organiza a partir da busca da participação
(VILLAÇA, 1999) abre-se espaço para ocupação predatória e insustentável da direta da sociedade no processo constituinte (SANTOS JUNIOR, 1995).
terra por meio do avanço sobre áreas de preservação ambiental, áreas alagáveis e
“O surgimento deste movimento está estreitamente ligado à elaboração da
sujeitas a escorregamentos com claros riscos para os moradores de baixa renda
emenda popular ao projeto constitucional e, posteriormente, à realização de
que não tem condições de arcar com os custos de uma moradia nos bairros bem
fóruns nacionais debatendo as questões emergentes da política urbana no país”.
localizados. (ALVES JUNIOR, 1995, pg 44).
As práticas do parcelamento irregular e ilegal da terra urbana, a figura do
O projeto de emenda popular da Reforma Urbana no bojo da participação da
loteamento clandestino nas periferias, o clientelismo político, a ausência de
sociedade no processo constituinte, tinha como principais propostas:
políticas urbanas e os baixos salários dos trabalhadores vão abrir caminho para
a autoconstrução nos finais de semana como uma das formas predominantes de “Submeter a propriedade privada do solo urbano ao cumprimento de uma
produção da moradia por parte da classe trabalhadora nos anos 1970 e 1980. função social da cidade; assegurar no caso de desapropriações, justo pagamento
de indenização em moeda, com outra finalidade; punir, via imposto progressivo,
O mercado residencial privado, não se encontra acessível para os trabalhadores parcelamento compulsório e até desapropriação, os proprietários de solos ociosos;
pobres urbanos e a produção pública e estatal da moradia por meio do BNH e criação de usucapião especial urbano (3 anos) e usucapião coletivo; monopólio
das Cohabs apresenta inúmeros problemas e limitações, relativamente ao acesso do Estado nos transportes coletivos e a limitação do custo do transporte para os
por parte da população de baixa renda, à localização dos conjuntos, à qualidade trabalhadores, a um percentual fixo do salário mínimo; o poder de legislar por
arquitetônica e urbanística e à massificação e padronização de sua produção por parte do cidadão - iniciativa popular de projeto de lei; o controle por parte da
parte das empreiteiras envolvidas. sociedade civil e entidades populares, de projetos a serem implantados no município”
(GUIMARÃES e ABICALIL, 1990 apud ALVES JUNIOR, 1995, pg. 46)
Diante desse quadro, que se deteriora e agrava desde os anos 1970 e ao longo da
década de 1980, tanto os moradores de loteamentos periféricos auto-construídos Ao final das negociações e embates, o resultado não foi plenamente favorável,
(quer sejam clandestinos ou irregulares), quanto os moradores das favelas e mas uma vitória parcial, considerando que no capítulo “Da Política Urbana” da
cortiços começam a se organizar de forma mais sistemática e institucional em Constituição de 1988 foram aprovados em dois artigos, apenas algumas propostas
associações e sociedades de bairro, em grupos reivindicatórios e movimentos da emenda (artigos 182 e 183 da CF 1988). O texto determina que
locais de luta pelo abastecimento de água potável, pelo esgotamento sanitário, “a política de desenvolvimento urbano executada pelo poder público municipal,
pela pavimentação, pela energia elétrica, pela iluminação pública, pela drenagem, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
pela coleta do lixo e pelos serviços de transporte e mobilidade, educação, creches desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de
saúde, assistência social e cultura. seus habitantes”. No parágrafo primeiro declara que o Plano Diretor passa
Alguns grupos se organizam também pela luta pelo direito à moradia, que viria a ser obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes, sendo o
“instrumento básico da política de desenvolvimento e da expansão urbana”
a ser reconhecido posteriormente na constituição, na Lei Federal do Estatuto da
(SANTOS JUNIOR, 1995, pg 47).
Cidade e em diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
O artigo 183, por sua vez trata da instituição do usucapião especial, que
assegura a qualquer cidadão o requerimento da propriedade onde reside após
residir por 5 anos, sem oposição ou contestação.
22 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 23

A Lei Federal do Estatuto da Cidade, com o papel de complementar e


regulamentar os capítulos 182 e 183 da Constituição, por sua vez, ficou tramitando
5 - Considerações e elementos para reflexão
mais de uma década no congresso nacional, tendo sido aprovada durante o
Como foi visto, o processo de urbanização intenso, rápido, desigual e
governo FHC em 2001.
insustentável que ocorreu principalmente na segunda metade do século XX
O Estatuto da Cidade, como é mais conhecido, fixou uma série de instrumentos deixou marcas profundas e importantes nos territórios que receberam esses
urbanísticos com o propósito de viabilizar o pleno desenvolvimento das funções enormes contingentes populacionais.
sociais, assim como instrumentos de participação, controle e gestão democrática
A ação do poder público e das elites não logrou enfrentar adequadamente,
da cidade, bem como o cumprimento da função social da cidade e da propriedade
nem do ponto de vista de escala, nem do ponto de vista conceitual e qualitativo
urbana.
os problemas que emergiram com mais força e visibilidade nos anos 1970 e 1980.
Com a promulgação da constituição de 1988 e a eleição direta de inúmeros
Diante do abandono que se viu, parte muito considerável da classe trabalhadora
prefeitos pelo Brasil afora, tem início, como já mencionado, um conjunto
periférica urbana teve que lançar mão dos expedientes da compra de um terreno
bastante abrangente, disperso e atomizado, de experiências de gestão municipal
em localidade periférica e desvalorizada, e promover com os parcos recursos, a
que, em alguma medida, incorporaram as demandas das classes populares e dos
autoconstrução da moradia que se dava principalmente nos finais de semana, e
movimentos de luta por moradia.
contava, muitas vezes com ajuda de familiares e amigos para a sua consecução.
Os anos 1990 podem ser considerados um período de intensa experimentação Esse processo de autoconstrução não se realizou sem intensos sacrifícios e por
de políticas, programas e projetos locais, alguns muito bem sucedidos e premiados um longo tempo de obra que se estendia por mais de 5 ou até mais de 10 anos.
dentro e fora do Brasil. Tem destaque o Orçamento Participativo realizado no
Sem contar com projetos e assessoria de engenheiros e arquitetos, a população
município de Porto Alegre, o controle de riscos na Serra do Mar em Cubatão,
“auto-empreendeu” a sua moradia, num processo de super-exploração do
a Revitalização da Bacia da Lagoa Olho D’ Água em Jaboatão dos Guararapes,
trabalhador, que teoricamente, deveria ter incorporado no seu salário, ganhos
Parcerias e participação em programas de gestão urbana e habitação em Fortaleza,
suficientes para adquirir sua moradia, sem a necessidade de um sacrifício nos
o Programa de Mutirão e autogestão da administração Luiza Erundina em São
finais de semana.
Paulo, entre outros, alguns deles apresentados e premiados na Conferência das
Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos, Habitat II em Istambul, O processo de intensa exploração e mesmo de espoliação urbana a que os
Turquia em 1996 (BONDUKI, 1996). trabalhadores urbanos pobres estiveram sujeitados naquele período demandou
processos de organização comunitária e coletiva para enfrentamento dos
Algumas destas políticas públicas urbanas e habitacionais alavancadas sob
problemas e reivindicação de melhorias, investimentos do poder público em infra
pressão o mobilização dos movimentos populares, lograram incorporar no
estrutura e serviços urbanos incluindo-se aí água, luz, energia, pavimentação,
processo de planejamento e gestão das políticas, programas e projetos instâncias
transporte coletivo, equipamentos sociais de saúde, educação, assistência social
e mecanismos importantes de participação e controle social e viabilizaram
e cultura, entre outros.
a reprodução e fortalecimento, ao menos naquele período, dos grupos e
comunidades de base, dos movimentos populares de moradia, dos movimentos Os anos 1980 conviveram com o surgimento de inúmeras organizações
de moradores de favelas, dos movimentos de moradores de cortiços e quintais. e movimento sociais e populares (como o MDF, MST, MAB entre outros),
iniciativas comunitárias e ao mesmo tempo, o final da ditadura com a luta pela
redemocratização do país. Durante o processo de envio de emendas populares
para a Constituição de 1988 o Movimento Nacional pela Reforma Urbana
organizou uma Agenda em torno da qual procurou-se viabilizar princípios,
diretrizes e instrumentos para a democratização e a gestão democrática das
24 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 25

cidades e o cumprimento da função social da cidade e da propriedade.


6 - Referencias
As eleições municipais de 1988 e os mandatos iniciados em 1989 e posteriormente
em 1993 permitiram a eclosão de um conjunto significativo de iniciativa de BARBOSA, B.R. Protagonismo dos movimentos de moradia no centro de São
políticas, programas e projetos com importante grau de experimentação no Paulo: trajetória, lutas e influências nas políticas habitacionais. Dissertação de
tocante à experiências em produção participativa de projetos de habitação, Mestrado. Universidade Federal do ABC. Santo André, 2014. Disponível em:
formas de gestão democrática da cidade, que em boa medida, incorporaram os https://sites.google.com/site/pospgt2/benedito-roberto-barbosa
novos movimentos e atores sociais e populares que estavam entrando em cena
BONDUKI, N.G. Habitat. As práticas bem sucedidas em habitação, meio
em processos de mutirão e autogestão, em conselhos municipais de políticas
ambiente e gestão urbana nas cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 1996.
setoriais, em conferências e congressos das cidades, entre outros mecanismos e
instâncias. BONDUKI, N. G. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo, Estação
Liberdade, Fapesp, 1998.
No início dos anos 2000, o país conseguiu aprovar a Lei Federal 10.257 / 2001,
após mais de 12 anos de tramitação no Congresso Nacional. A Lei do Estatuto COMARU, FA. Áreas centrais urbanas e movimentos moradia: transgressão,
da Cidade, reconhecendo o direito à propriedade, demarcou pela primeira vez confrontos e aprendizados. Revista Cidades, v. 13, p. 71-93, 2016. Disponível em:
na história do país, que toda a propriedade deve cumprir uma função social e http://revista.fct.unesp.br/index.php/revistacidades/article/view/5374/3957
que caberá aos planos diretores de cada município definir o escopo, definição e DE CARLI, B.; APSAN, A.; BARBOSA, B.; COMARÚ, F.; MORETTI, R. S.
abrangência da idéia de função social da propriedade. Regeneration through the Pedagogy of Confrontation: Exploring the Critical
O Estatuto da Cidade definiu ainda uma série de instrumentos que Spatial Practices of Social Movements in Inner City São Paulo as Avenues for
contribuem para a gestão democrática da cidade (como conselhos municipais, Urban Renewal. De-Arq - Revista de Arquitetura de La Universidad de Los
audiências públicas e conferências da cidade), assim, como alguns instrumentos Andes / Journal of Architecture, Universidad de Los Andes, v. 01, p. 146-161,
que amplo interesse do mercado imobiliário, como por exemplo, as Operações 2015. Available at: https://issuu.com/dearq/docs/dearq16-_issuu_/148
Urbanas Consorciadas. FERNANDES, A.C. (2001). Da reestruturação corporativa à competição
Os movimentos populares urbanos então, mais organizados e articulados, entre cidades: lições urbanas sobre os ajustes de interesses globais e locais no
inclusive nacionalmente no Fórum Nacional da Reforma Urbana, se confrontam capitalismo contemporâneo. Espaço e Debates, 41 (XVII), 26-45.[1]
com o paradoxo de ter que enfrentar um conjunto muito poderoso de interesses que FREIRE, P. (1996). Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática
atuam forma organizada, sistemática e estrutural nas cidades: mercado imobiliário educativa. São Paulo
(proprietários de imóveis, investidores, construtoras, incorporadoras), a industria
GOHN, M. G. Teoria dos Movimentos sociais. Paradigmas clássicos e
e a cultura do automóvel e incentivos à indústria automobilística, concentração
contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997
e atuação em lobby dos proprietários de empresas de ônibus coletivos urbanos,
legislativos conservadores, entre outros potentes desafios. HARVEY, D. et. at. Ocuppy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas.
São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.
KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
MARICATO, E.T.M. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes,
2011.
MARICATO, E.T.M. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão
Popular, 2015.

26 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 27

PÁDUA, J. A. Um Sopro de destruição. Pensamento político e crítica ambiental Mangueira, tira a poeira dos porões
no Brasil escravista, 1786-1888, Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
ROLNIK, R. CYMBALISTA, R. (1998). Zonas Especiais de Interesse Social. Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
Caderno Dicas do Instituto Polis. Desenvolvimento Urbano. São Paulo, 1998. São verde e rosa, as multidões
Disponível em: http://www.polis.org.br/uploads/497/497.pdf
Brasil, meu nego
ROLNIK, R. Guerra de lugares. A colonização da terra e da moradia na era das Deixa eu te contar
finanças. Sao Paulo: Boitempo, 2015. A história que a história não conta
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, O avesso do mesmo lugar
falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz Na luta é que a gente se encontra
e Terra, 2001.
SANTOS, B.S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Brasil, meu dengo
Paulo: Boitempo, 2007. A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
SANTOS JUNIOR, O.A. Reforma urbana: por um novo modelo de
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
planejamento e gestão das cidades. Rio de Janeiro: FASE/UFRJ-IPPUR, 1995.
Tem sangue retinto pisado
VILLAÇA, FlÁvio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano Atrás do herói emoldurado
no Brasil, In: DEÁK, Csaba e SCHIFFER, Sueli. (organizadores). O Processo de Mulheres, tamoios, mulatos
Urbanização no Brasil - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara


Vídeo sugerido (Unidade I)
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
MARICATO, E.T.M (1975). Nem das mãos de Isabel
O fim de semana. Disponível em: A liberdade é um dragão no mar de Aracati
https://www.youtube.com/watch?time_continue=4&v=gDm-vajAtrM
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
ANEXOS (Unidade I) De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

Samba-Enredo:
Letra da Mangueira
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões
29

Unidade II

1 - Introdução
Como pudemos ver na leitura da Unidade I o Brasil passou por um dos mais
intensos processos de produção de cidades observados no mundo, durante o
século XX. Um enorme contingente populacional deixou o campo rumo às cidades
e a população nas cidades cresceu com taxas bastante elevadas. O abandono de
boa parte da classe trabalhadora à própria sorte em suas «iniciativas» de buscar
«resolver» o problema da moradia, na maior parte dos casos, sem suporte
adequado do Estado por meio de políticas públicas habitacionais e urbanas, e sem
as possibilidades de participar do mercado privado de residências voltado para
as classes médias e altas, contribuiu para a construção de gigantescos territórios
periféricos e populares onde quase tudo é precário.
Nestes territórios populares periféricos, como pode ser visto no filme «Fim de
Semana» produzido pela professora Ermínia Maricato, as casas foram literalmente
produzidas pelos próprios trabalhadores nos finais de semana com ajuda de
familiares e amigos, em terrenos parcelados inadequadamente, localizados
distantes das regiões providas de infra estrutura, serviços públicos urbanos e
da oferta de postos de trabalho. As moradias construídas com materiais mais
baratos e com arquitetura simples levam muitos anos para serem finalizadas.
Algumas vezes não chegam a ser plenamente finalizadas, mesmo após décadas
de trabalhos de autoconstrução.
A população de baixa renda, então precisa reivindicar os serviços de
abastecimento de água, energia elétrica, esgotamento sanitário, coleta de
lixo, iluminação pública, além da pavimentação, dispositivos de drenagem,
equipamentos de educação, saúde, assistência social e cultura. Neste contexto
a organização das Associações de bairros tornaram-se uma alternativa de
institucionalização destas lutas. Em muitos bairros periféricos foram construídas
sedes as associações de moradores e associação de bairro e também igrejas e
paróquias por meio do processo de mutirão.

Ilustração: Ariana Santana


30 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
31

A organização dos trabalhadores nas periferias das cidades grandes e médias, cidades e muitas conferências municipais, regionais e estaduais das cidades.
com apoio de setores da igreja católica, e em alguns casos de alguns sindicatos, Em muitas localidades, pela primeira vez na história, as pessoas se reuniram
acadêmicos e profissionais ligados à ONGs foi um dos ingredientes importantes em escolas, centros comunitários ou igrejas para discutir os problemas das suas
para a formação dos movimentos sociais de moradia que existem e atuam nos cidades e suas regiões. Isso não é pouca coisa.
dias de hoje. Uma contradição importante, no entanto, acontece. Ao mesmo tempo que
De suas lutas por bairros melhores, servidos com um mínimo de infra estrutura o movimento da Reforma Urbana nasce nas comunidades e alguns grupos de
e serviços, até as formas de organização mais amplas e abrangentes, passaram- profissionais e ativistas penetrando de forma capilar no seio de administrações
se muitos anos. De qualquer forma, no processo de redemocratização dos anos municipais até chegar a influenciar fortemente as formulações de políticas no
1980 o movimento nacional pela Reforma Urbana logrou incidir no processo Ministério das Cidades em nível nacional nos anos 2000, tem início um processo
constituinte e viabilizou dois capítulos da Reforma Urbana na Constituição de de ampliação da dependência das prefeituras, comunidades, associações e
1988. movimentos sociais de moradia, em demanda por políticas públicas, iniciativas e
As gestões municipais dos anos 1990 marcaram história, no tocante a um investimentos oriundos de Brasília.
número significativo de experiências de políticas urbanas e habitacionais A difusão de inúmeras práticas inovadoras em tantas localidades do país, que
participativas, inventivas, com alto grau de experimentação reconhecidas e caracterizou os anos 1990, foi diminuída em muito, principalmente, a partir
algumas premiadas internacionalmente. de meados da década seguinte, associada a um protagonismo muito forte e
decisivo por parte do governo federal. A aparente capacidade criadora e criativa
de formulação para as cidades por parte dos próprios municípios arrefeceu-se
2 - Os movimentos e os rumos das políticas habitacionais no Brasil pós diante da potência dos investimentos desde o governo central.
Estatuto da Cidade Uma iniciativa interessante do governo federal no âmbito do Ministério das
Cidades constituiu-se na formulação e implementação da Campanha Nacional
A promulgação da Lei Federal do Estatuto da Cidade em 2001 permitiu que pela Elaboração dos Planos Diretores participativos. De acordo com a Lei do
se vislumbrasse finalmente, mecanismos legais e instrumentos urbanísticos Estatuto da Cidade todos os municípios com mais de 20 mil habitantes ou aqueles
para colocar em prática os processos que viabilizassem a transformação das localizados em regiões metropolitanas ou em regiões de fronteiras ou em áreas
cidades em territórios mais democráticos, includentes e justos. A promessa das de especial interesse turístico, paisagístico e natural deveriam elaborar os seus
cidades mais justas e sustentáveis se daria por meio dos Planos Diretores de planos diretores participativos. E inúmeros municípios o fizeram.
cada município do país, que deveriam prever os instrumentos apropriados para
Nota-se que em alguns poucos casos, a elaboração ou revisão do plano
garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade e a gestão
diretor chegou a causar disputas e conflitos de interesses entre representantes de
democrática da cidade.
diferentes grupos - tratavam-se justamente de casos em que os planos diretores
Em 2003 com a criação do Ministério das Cidades ocorre um fortalecimento propunham tocar nos interesses de grupos ligados ao capital imobiliário, por
das políticas federais e nacionais com um impacto muito grande em termos de exemplo. Na proposta do plano diretor de São Paulo de 2014, por exemplo, foram
capacidade de formulação de uma política nacional de desenvolvimento urbano e incorporados diversos instrumentos e mecanismos que tinham o potencial para
possibilidades reais do seu financiamento desde Brasília. O ministério estrutura- alterar o status de domínio sobre os investimentos e ganhos do capital imobiliário
se a partir de quatro secretarias nacionais nas áreas de habitação, saneamento na cidade. Por conta disso observou-se, de um lado, o interesse dos movimentos
ambiental, mobilidade urbana e programas urbanos.
Foram então, instituídos diversos mecanismos e instâncias de participação
da sociedade civil como o Conselho Nacional das Cidades, as Conferências das
Cidades, Audiências Públicas de assuntos de interesse urbano e das cidades e
consequentemente um sem-número de conselhos municipais e estaduais das
32 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
33

de moradia na demarcação das Zonas Especiais de Interesse Social e de outros


instrumentos, como a Cota Solidariedade, e de outro, a população assistiu uma
verdadeira batalha e ocupação da Câmara dos Vereadores durante cerca de 2 a 3
dias enquanto os temas eram negociados e encaminhados para votação.
Segundo Maricato (2011)
«Da mesma forma, não há que se criar ilusões sobre o Plano Diretor instituído
por lei municipal. Sua elaboração permite aos participantes conhecer a
cidade, entender as forças que a controlam. Seu processo participativo permite
incorporar sujeitos ao processo político e ao controle - sempre relativo - sobre a
administração e as Câmaras Municipais. Mas é preciso não perder de vista a
natureza do poder municipal, que tem a especulação imobiliária (nem sempre
capital, mas patrimônio) entre suas maiores forças. Há uma distância imensa
entre discurso e prática entre nós. Invariavelmente os textos dos planos diretores
Foto 1 - Habitações em regiões periféricas
são sempre muito bem intencionados, afirmam uma cidade para todos, Fonte: Acervo próprio
harmônica, sustentável e democrática. A implementação do Plano, entretanto,
tende a seguir a tradição: o que favorece a alguns é realizado, o que os contrária
é ignorado». (MARICATO, 2011). A produção em larga escala e nos moldes de conjuntos de grandes dimensões
No caso do Programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, criado em 2009 quase sempre está associada à lógica de aquisição ou disponibilização de terrenos
como uma das respostas do governo federal no enfrentamento da crise econômica públicos ou privados de grandes proporções localizados nas periferias, nas
internacional que se expandia a partir da crise das hipotecas nos Estados Unidos franjas ou mesmo fora das cidades. A lógica de aquisição de uma gleba de baixo
em 2008, chegou a ser considerado um dos programas habitacionais maiores custo, dialoga com a prática de aquisição de terras com péssima localização. A
e mais importantes do mundo quando estava no auge de sua capacidade de localização tem preço (MARICATO, 2015).
contratação e produção. Outro ponto que chegou a ser mencionado por diferentes autores, como fator
Foram contratados mais de 5 milhões de unidades por parte do programa, crítico refere-se à preferência que boa parte das construtoras deram à produção
operado pela CAIXA e com participação de prefeituras e estados em diferentes de unidades e conjuntos no âmbito das Faixas 2 e 3 do Programa Minha Casa,
níveis de parcerias, contrapartidas e subsídios. Em que pese a relevância, Minha Vida em detrimento da produção de unidades para grupos populacionais
abrangência e alcance do programa, diversas críticas foram e têm sido formuladas, e famílias de menor renda (que representam a grande maioria das famílias que
tanto por técnicos de organismos não governamentais, quanto por observadores estão dentro do déficit habitacional).
independentes, acadêmicos, e lideranças de movimentos sociais de moradia. Sem negar de forma alguma a importância do Programa Minha Casa, Minha
Uma crítica importante se refere à repetição de vícios e problemas que já tinham Vida para a produção de moradia no campo e na cidade, em larga escala e com
sido diagnosticados e analisados no âmbito da produção do Banco Nacional da subsídio, permitindo que grande parcela de trabalhadores de baixa e média
Habitação (BNH) do período da ditadura militar entre 1964 e 1984, referente renda, acessasse esta política pública, é preciso compreender o contexto e o papel
ao tamanho dos conjuntos habitacionais. Na década de 2000 e 2010 novamente que o Programa deveria cumprir no enfrentamento da crise econômica de 2008,
assistimos uma reprodução significativa de conjuntos habitacionais populares de desencadeada a partir da crise financeira do mercado de moradias no Estados
grandes dimensões que seguem uma lógica de produção massiva da habitação Unidos, que geraria um efeito cascata por todo mundo globalizado chegando às
social com projetos de edifícios e unidades idênticos, contribuindo para gerar nossas fronteiras.
uma paisagem extremamente monótona e repetitiva. Há um certo consenso no meio acadêmico que o programa Minha Casa, Minha
Vida, foi um programa que repetiu modelos parecidos com as experiências
34 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
35

ou instituição. O PMCMV Entidades viabilizou, por exemplo, a produção de


de produção em massa de moradia de países, como o Chile e México, e de unidades de habitação social a partir da reforma de edifícios localizados em áreas
certa maneira repetiu modelos de conjuntos distantes com pouca inserção em centrais ou bem localizadas.
territórios dotados de boa infra estrutura que, com poucas exceções, praticamente
não incorporou diretrizes importantes do ponto de vista do desenvolvimento
urbano articulado à política habitacional.
O PMCMV, em função de sua concepção, por exemplo, pouco dialogou
com o PlanHab, o Plano Nacional de Habitação elaborado com participação
de um número significativo de lideranças, entidades e movimentos sociais no
âmbito do Conselho Nacional da Cidades. Outro elemento que tem merecido
análise e debate entre os pesquisadores da área urbana é procurar compreender,
os impactos que o programa gerou nas cidades em relação à alta no preço da
terra, com consequente valorização (e até especulação) imobiliária. Outro
aspecto que tem merecido debate refere-se a como que, num contexto de alta
produção habitacional para baixa e média renda, o déficit habitacional aumenta
ou permanece estagnado em patamares anteriores a 2008, de antes do início do
programa.
Apesar dos problemas levantados e discutidos relativamente ao tamanho
dos conjuntos e localização dos mesmos, o MCMV teve o mérito de permitir
a inclusão habitacional de uma quantidade muito significativa de famílias, por
meio de taxas de subsídios elevadas, que permitiu que famílias de baixa renda
pudessem acessar.
Neste período, apesar de ter ocorrido um conjunto muito significativo de
investimentos em políticas sociais, como o Programa Bolsa Família, Luz para
Todos e MCMV, que promoverem uma forte inclusão social e econômica de
grupos historicamente excluídos, as cidades pioraram sob vários pontos de vista
(MARICATO, 2015). As taxas de homicídios aumentaram e vem aumentando
drásicamentamente nos últimos anos, os acidentes de transportes também
aumentaram, agravando a situação de nossas cidades. Alguns indicadores
ambientais denunciam o agravamento da poluição atmosférica, da contaminação
das águas e do solo (COMARU, 2016).
A partir da segunda metade da década de 2010 assiste-se a um declínio
Foto 2 - Habitações reformadas em São Paulo
importante dos investimentos do PMCMV em decorrência da crise política e
Fonte: Acervo próprio
econômica que atingiu o país a partir deste período. Tem destaque o Programa
MCMV Entidades que foi fruto de uma conquista dos movimentos de moradia Outro programa importante deste período foi o Programa de Aceleração do
e teve como foco a produção de unidades habitacionais a partir da demanda Crescimento (PAC - Urbanização e PAC Infraestrutura) que foi responsável
de grupos organizados em diferentes formas, como associações de moradores, por uma injeção de uma quantidade significativa de recursos por meio de
cooperativas, movimentos sociais e grupos institucionalizados em uma entidade investimentos em melhorias de assentamentos precários.
36 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
37

3 - A organização dos grupos de sem teto e a ação recente dos Nos grupos de origem, os movimentos procuram organizar atividades
relativamente simples como seminários, debates, grupos de estudos, teatro,
movimentos de moradia
entre outros. Os grupos de origem podem em eventuais momentos indicar
Com o processo de avanço da agenda da Reforma Urbana, a partir da representantes para participar de reuniões com representantes dos órgãos
Constituição de 1988, os movimentos de moradia estruturam-se também muito públicos e privados.
mais. Alguns conseguem articular-se como movimentos de abrangência nacional. As manifestações e atos públicos normalmente, costumam ocorrer na forma
O Fórum Nacional da Reforma Urbana, por exemplo, abriga além de diversas de passeata ou de uma manifestação concentrada e tem por objetivo criar maior
organizações sindicais, da universidade, e organizações não governamentais, visibilidade para o problema da habitação, chamar a atenção do poder público,
5 (cinco) movimentos nacionais de moradia congregando muitos estados da denunciar para a população como um todo, o problema da falta de moradia. A
federação. São eles: União Nacional de Luta por Moradia Popular (UNMP); manifestação pode ocorrer também no contexto de tentar impedir que ocorra
Central dos Movimentos Populares (CMP); Movimento Nacional de Luta por uma reintegração de posse, ou pelo menos negociar de modo que as famílias a
Moradia (MNLM); Confederação Nacional das Associações de Moradores serem reintegradas possam ser tratadas com dignidade e possam receber alguma
(CONAM) e Movimento de Lutas em Bairros, Vilas e Favelas (MLB). contrapartida ou melhores alternativas no processo de remoção.
O Fórum Nacional da Reforma Urbana foi criado em 1987 e é uma articulação As ocupações de terra ou de edifícios abandonados ou subutilizados acabam
nacional que reúne movimentos populares de luta por moradia e por cidades cumprindo finalizadas diferentes: chamar a atenção das autoridades e governantes
mais justas e inclusivas, associações de classe e instituições de pesquisas com a para o problema habitacional; ampliar a visibilidade do problema habitacional e
finalidade de lutar pelo direito à cidade na perspectiva de modificar o processo urbano para a imprensa e a sociedade como um todo, e chamar a atenção das
de segregação espacial e social e construção de cidades justas, inclusivas e comunidades também. A observação empírica sobre as ocupações mostra que
democráticas (FNRU, 20190). em diversos casos, o poder público promove a regularização fundiária e adquire
Com o quadro de intensa desigualdade, pobreza, exclusão e precariedades o prédio. Em muitos outros casos, quando não ocorre a aquisição do prédio, nem
dos assentamentos humanos nas cidades brasileiras os movimentos de moradia a reintegração posse, os moradores permanecem residindo no prédio por muitos
tornam-se canais importantes de reivindicação e luta pela formulação e anos. Somente para ilustrar, em São Paulo, há ocupações, cuja entrada de prédio
implantação de políticas públicas de habitação (IPEA, 2015). ocorreu há mais de 12 anos. A pressão pela reintegração de posse, no geral, se
verifica nos casos de imóveis situados em regiões de alto grau de interesse e
As reivindicações e lutas populares dos movimentos de moradia, se dão de potencial valorização imobiliária. Em localidades onde o mercado formal não
diferentes maneiras e formatos. Parte significativa dos movimentos de moradia possui interesse, a pressão pela remoção tende a ser bem menor.
organizam-se a partir de grupos de base em atividades de formação, capacitação,
mobilização e participação de negociações com órgãos do poder público, além
de atos e manifestações públicas, até ocupação de terrenos e prédios que foram
abandonados durante anos nas preferirias ou áreas centrais das cidades.
A década de 1980, por exemplo, ficou conhecida pelas significativas ocupações
de terra por parte dos sem-teto em regiões periféricas, e a partir dos anos
1990 e 2000 algumas cidades brasileiras conheceram também os processo de
ocupação de edifícios abandonados nas regiões centrais das cidades. Entre outras
circunstâncias, os movimentos de moradia também já adotaram práticas de
“ocupação relâmpago” de órgãos e instituições governamentais como forma de
pressionar o poder público, em situações de impasses ou bloqueios ou ausência
de dialogo visando retomar ou avanças em negociações com representantes.
38 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
39

“Ocorre uma atração muito forte pelo espaço institucional ou pela


institucionalização das práticas participativas, como se isso constituísse um
fim em sim” (MARICATO, 2011).

Ainda segunda Maricato (2011) não se trataria de desejar que os movimentos


abandonem os espaços institucionais, mas que deem a eles a importância e o
peso relativo que têm no conjunto de correlações de forças em jogo e disputa.
“Embora os principais movimentos sociais não tenham deixado de ocupar
imóveis ociosos que descumprem a determinação da Constituição Brasileira
de atendimento da função social e fazer amplas manifestações de rua,
sistematicamente ignoradas pela grande mídia, é forçoso reconhecer um caráter
demasiadamente juridicista e institucional dessa lista de conquistas. Além dos
aspectos já detalhados da tradição clientelista que caracteriza a relação do Estado
Brasileiro com os de baixo, eternamente dependentes de favor, é preciso lembrar a
tradição arbitrária de aplicação da lei no Brasil” (MARICATO, 2011).

Segundo a autora, importante reconhecer que algum controle social sobre o


Estado é saudável e muito bem vindo, inclusive do ponto de vista de aprendizado
dos movimentos, para além da luta pela ampliação de demandas. De qualquer
forma é preciso atentar para a complexidade do Estado em sua capacidade de
cooptar e de corromper (MARICATO, 2011).
De um ponto de vista conceitual e levando em conta princípios e valores,
Foto 3 - Edifício Ocupado na Rua do Ouvidor, centro de São Paulo um dos fatores que caracteriza fortemente os movimentos sociais, refere-se ao
princípio da solidariedade que existe entre os movimentos e os grupos de sem-
Fonte: autores
teto, entre os diferentes grupos de sem-teto e entre os diferentes movimentos
Com a criação e instituição do Ministério das Cidades no inicio dos anos 2000, parte sociais. Isso não considerar que não existam divergências, diferenças e até
importante dos movimentos de moradia concentrou suas atividades em pressionar competição e situações de alienação entre os diferentes grupos.
e dialogar com suas assessorias técnicas e trabalhar junto aos órgãos do governos No entanto, pode-se observar situações-limites, por exemplo, que os
federal e prefeituras dos municípios de origem a fim de viabilizar unidades e conjuntos movimentos estão prestes a serem desalojados ou removidos por força de uma
habitacionais populares para o atendimento de suas demandas. reintegração de posse, nota-se, no mais das vezes, uma mobilização importante
Neste período os movimentos tendem a comportar-se de maneira mais no sentido da ação solidária de diversos grupos junto aos atingidos no sentido
institucionalizada diante dos governos, participando ativamente dos chamados espaços de apoiar, ajudar e mitigar o sofrimento das famílias, muitas vezes em situação
convidados (MIRAFTAB, 2016) tais como conselhos, conferências grupos e subgrupos de desespero.
de trabalhos. Casos empíricos ajudam a corroborar essa visão. Situações de incêndios,
Há autores que mencionam que o Fórum Nacional da Reforma Urbana travou uma desalojamentos ou reintegrações de posse despertam junto às famílias que
batalha pela institucionalização de políticas, como por exemplo pela reivindicação de integram os movimentos um sentimento importante de identificação do ponto
um Sistema Nacional das Cidades, diminuindo o vigor, em parte das lutas das ruas e de vista dos que já passaram por situações semelhantes, e em algumas situações,
dos espaços não convidados; e abandonando, em parte, alguns fronts de luta de classes uma identificação de classe,
nas cidades (MARICATO, 2015).
40 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
41

Outro fator importante trazido pela observação empírica refere-se à


potencialidade que os movimentos de moradia possuem de contribuir com
a solução dos problemas sociais por meio da organização de famílias que
previamente estavam desorganizadas. A formação e capacitação do ponto
de vista do esclarecimento e conscientização com relação aos direitos e
deveres de cidadania, assim, como do ponto de vista do desenvolvimento de
capacidades e habilidades para convivência em grupos de forma organizada
- como observado no caso das ocupações de edifícios abandonados das áreas
centrais (BARBOSA, 2014).
Importante destacar ainda, neste espectro dos últimos 30 anos da luta
pela moradia, que os movimentos populares tem se constituído em motor Foto 4 - Movimentos de Moradia durante Marcha Nacional em Brasília
Fonte: Acervo próprio
importante para a agenda da reforma urbana. Os movimentos incorporam
na sua pauta a bandeira do Direito à Cidade e lutaram incansavelmente por
programas abrangentes de habitação social, pressionaram os governos locais,
A União Nacional Por Moradia Popular, a Central de Movimentos
estaduais e municipais por estruturas de governos que fossem minimamente
Populares, a Confederação Nacional das Associações de Moradores e o
capazes de atender a demanda por políticas habitacionais. Desde 2001
Movimento Nacional de luta pela Moradia foram as entidade protagonistas
consagrou-se no capítulo dos Direitos Sociais na Constituição Federal a
na luta pelo Fundo Nacional de Moradia Popular - FNHIS. Alavancados
obrigação por parte do Estado brasileiro, da provisão da habitação para os
pelas lutas locais por moradia social, e por iniciativas em habitação social
grupos populacionais que necessitam.
exitosas em prefeituras locais como Ipatinga - MG, Fortaleza - CE, Porto
Para que o Estado brasileiro reconhecesse este direito, percorreu-se um Alegre - RS, Diadema - SP, Belém - PA, Santos -SP e Belo Horizonte-MG,
longo caminho, de lutas populares durante os anos de 1990, desde a luta pela Santo André - SP, entre outras, estes movimentos se articulam à outros
criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, a Centralização segmentos da igreja e universidade, para elaborar o primeiro projeto de lei
dos recursos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço o FGTS na Caixa de iniciativa popular após a Constituição de 1988.
Econômica Federal e a Criação do Estatuto da Cidade.
A Constituição de 1988, consagrou a partir de sua promulgação,
O luta pela criação do Fundo do Nacional de Habitação de Interesse Social para além do sufrágio universal, pelo voto direto e secreto, outros três
ocorre num momento de muita efervescência nas políticas locais, especialmente instrumentos ou ferramentas institucionais de participação popular
na experimentação de muitos instrumentos de políticas urbanas e programas associadas a temas sociais, políticos com impacto sobre as políticas
locais de habitação, de urbanização de favelas e regularização fundiária, que se públicas, relevantes para o fortalecimento da democracia e para exercício
multiplicaram em todas as regiões do país. da cidadania. Estes referidos instrumentos de participação popular são: o
Os Movimentos populares passam a incidir cada vez mais no cenário e nas plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. (Art. 14 da CF/88)
pautas nacionais. A União Nacional Por Moradia Popular é fundada em 1991 na A UNMP, a CMP, a CONAM e o MNLM, mobilizados em torno de
Cidade de Betim (Minas Gerais) com uma forte Bandeira associada a autogestão uma pauta nacional de defesa da moradia popular, frente ao vazio de
da moradia popular e a Central de de Movimentos Populares, fundada em 1993, política nacional de moradia e à crescente crise das cidades brasileiras e
na cidade Belo Horizonte, com a bandeira da defesa das “políticas públicas com alavancados pelas conquistas locais de moradia popular, iniciam no país
participação popular”. uma campanha nacional por um fundo de habitação de Interesse social.
Esta campanha perdura cerca de um ano entre 1991 e 1992, ocasião em
42 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
43

que foram coletadas mais de 1 milhão de assinaturas, cujo projeto foi protocolado A atuação dos movimentos provoca a SPU - Secretaria do Patrimônio
na Câmara dos Deputados na ocasião de uma Caravana Nacional da Moradia da União - a criar nos estados, no âmbito de suas Superintendências, GTs
Popular, realizada por 5 mil pessoas em Brasília. Este projeto de Iniciativa estaduais para destinação de imóveis vazios para moradia popular. Após a
Popular de nº 2710/1992, tramitou na Câmara dos Deputados por mais de 13 pressão dos Movimentos de Moradia, diversos imóveis foram destinados em
anos, antes de ser aprovado em 2005, instituindo o Fundo e o Conselho Nacional diferentes cidades do país, como Vitória no Espírito Santo, Rio de Janeiro - RJ,
de habitação de Interesse Social pela Lei 11.1124/2005. Mossoró - RN, João Pessoa - PB, Floriano - PI, São Paulo - SP, Porto Alegre - RS,
Registra-se que nestes 13 anos de luta em defesa do FNHIS, foram realizadas Caruaru - PE. Muitos destes imóveis se transformaram em moradia popular,
dezenas de mobilizações e acampamentos dos movimentos de moradia em como caso do Edifício Dandara na avenida Ipiranga em São Paulo, do Edifício
Brasília para pressionar os governos e os deputados pela aprovação do projeto. Manoel Congo e da Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro, ou Edifício
No entanto, após sua aprovação em 2005, nota-se que FNHIS foi praticamente da Borges de Medeiros no centro Porto Alegre. Em diversas outras cidades
abandonado como alternativa de financiamento e destinação direta de recursos há experiências vitoriosas na destinação de terrenos públicos da União ou do
para a moradia popular. Na prática, a dificuldade está associada à excessiva INSS para Moradia Popular.
burocracia para acessar os recursos do FNHIS e também pelo fato de ter sido Outro enfoque dos movimentos de moradia neste período, além da pressão
«atropelado» pelos programas de Crédito Solidário e Minha Casa, Minha Vida, pela aprovação e regulamentação do FNHIS, é luta pela criação de um programa
operados pelo Fundo de Desenvolvimento Social - FDS e Fundo de Arrendamento federal que pudesse destinar recursos diretos para as Associações de Moradia
Residencial - FAR. para produção de Moradia Popular em regime de autogestão popular. Depois
No ano de 2001, como já mencionado, a sociedade brasileira e os movimentos de diversas mobilizações dos movimentos, o governo propõe através do FDS
assistem a aprovação do Estatuto da Cidade, lei federal que regulamentou o a criação do Programa de Crédito Solidário, que permitiria que as próprias
Capítulo da Reforma Urbana nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Associações Comunitárias poderiam ser gestoras de projetos de moradia social,
atendendo a sua base organizada em projetos de habitação social.
Na prática a agenda, dos movimentos originalmente voltadas para bandeiras
de escala nacional, seriam remetidas às pautas locais, considerando que boa parte Esta iniciativa permitiria ainda que, de forma embrionária, a gestão
dos instrumentos consagrados no Estatuto da Cidade e na medida Provisória comunitária do projeto através da participação direta de seus beneficiários.
2220/2001, apontam para atuação e inserção nos territórios dos municípios. Os valores por unidade habitacional do programa no ano de 2005, quase
inviabilizava a compra do terreno e a construção das unidades que dependia,
A agenda proposta pelo Estatuto da Cidade nos empurraria naturalmente para
em grande medida, de contrapartida adicional das famílias e das prefeituras
pautas mais municipalistas. Em 2003, com a vitória de Luiz Ignácio Lula da Silva
locais ou governos estaduais. No ano de 2006 diversos movimentos organizam
para Presidência da República é criado é o Ministério das Cidades e na sequência,
mobilizações e acampamentos em frente à escritórios da Caixa Econômica
instituído por força e articulação dos movimentos da reforma urbana, o primeiro
Federal em diversos locais do país, para exigir aumento de repasse sobre o
processo nacional de Conferências da Cidades, com a consequente criação do
valor das unidades habitacionais, no âmbito do programa.
Conselho Nacional das Cidades.
No marco do Conselho Nacional das Cidades e dos processos de Conferências,
os movimentos abrigados no Fórum Nacional Reforma Urbana, passam a
pressionar o governo por pautas setoriais no âmbito da mobilidade, do saneamento
e da moradia. No campo da moradia aparecem, entre outras, reivindicações
associadas aos imóveis do INSS e da União e é constituído um Grupo de trabalho
(GT) nacional de terras públicas para analisar e tentar viabilizar a destinação de
terrenos e imóveis públicos para moradia social.
44 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
45
45

As mobilizações dos Comitês Populares foram fundamentais para ajudar a dar


visibilidade nacional e internacional para as Comunidades ameaçadas e ajudá-
las nas resistências aos processos de remoções e mesmo nas luta por reparações,
considerando a violência do poder público, e das empresas envolvidas nos projetos
e nos processos de remoção que, em muitos casos, contavam com apoio do sistema
de justiça. Há exemplos nestes processos de resistência de casos emblemáticos em
Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, entre outras. Em muitas
cidades há ainda centenas de famílias removidas em função de obras ou projetos
Foto 5 - Habitações em regiões periféricas
inacabados, que deixaram milhares de vítimas pelo caminho (VAINER et al., 2013).
Fonte: Acervo próprio
A partir de 2013, com as mobilizações no marco do processos de resistência
das comunidades ameaçadas de remoções ganha visibilidade na cena urbana uma
série de novos atores como o Movimento do Passe Livre - MPL e o Movimento dos
4 - A luta dos movimentos e enfrentamento a onda despejos e remoções Trabalhadores Sem Teto - MTST. Uma das marcas fundamentais destes movimentos
refere-se à sua enorme capacidade de mobilização de massa associada ao tema do
em nossas cidades
direito à cidade, a partir de bandeiras específicas pela tarifa zero no transporte
A partir de 2012, a luta por moradia popular no Brasil ganha novos contornos e os público e pelo direito à moradia. Outros movimentos com características de forte
movimentos de moradia que ocupavam a cena urbana até este período, envolvem- contestação e insurgência urbana organizam-se a partir de forte questionamento
se em nova de mobilizações e lutas em defesa do direito à cidade e ao território. aos processos de especulação imobiliária e concentração da terra urbana, como
A experiência do Rio de Janeiro, na organização do Comitê do Pan em 2007 Ocupe Estelita em Recife e a Ocupação de Isidora na periferia de Belo Horizonte,
(Jogos Pan Americanos de 2007), demonstrou que aparecia na cena urbana novas organizada pelo Movimento de Bairros, Vilas e Favelas - MLB e pelas Brigadas
conformações e novas resistências, especialmente associadas ao enfrentamento Populares.
dos novos modelos de apropriação dos territórios associados à megaprojetos de Além dos processos de resistência urbana associados aos processos à mobilização
desenvolvimento de urbano e mega eventos, ponta de lança da transformação das direta, como as ocupações e acampamentos dos Sem Teto, outro elemento que tem
cidades em ativos lucrativos para o mercado dos eventos esportivos. unificado ações de todos estes movimentos em nível nacional, têm sido o Programa
Este “novo olhar” do mercado sobre as cidades e os territórios, passa a Minha Casa, Minha Vida - Entidades e o Programa Nacional de Habitação Rural.
demandar dos movimentos e comunidades vulneráveis, novas formas de atuação NO caso do MCMV Entidades, em que pese ao longo da existência do programa,
e enfrentamento, considerando que as obras associadas à Copa de 2014 e a a destinação de recursos para as Associações Comunitárias ter se dado próximo
Olimpíada de 2016, poderiam aumentar ainda mais os processos de remoções de de dois a três por cento do total do programa MCMV, podemos afirmar que as
comunidades pobres de forma associada à ampliação dos mercados via empresas entidades têm alcançado um relativo sucesso na produção habitacional por meio
transnacionais e ampliação do lucro sobre os territórios. dos processos de autogestão, principalmente considerando a qualidade e o custo
No ano de 2012, com apoio da professora Raquel Rolnik, com mandato de das unidades habitacionais.
Relatora da ONU para Direito à Moradia Adequada, setores do movimento social Estas experiências positivas tem se multiplicado por diversas cidades do Brasil,
e da universidade passaram a articular, nas 12 cidades-sedes da Copa do Mundo, como projetos em áreas centrais, ou ainda conjuntos com ótima localização em
os Comitês Populares da Copa, com objetivo de exigir transparência nos gastos das áreas com infraestrutura urbana, em Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Belo
obras e especialmente mobilizar as Comunidades para evitar despejos e remoções Horizonte, Rio de Janeiro, entre outros municípios.
em função dos projetos associados ao evento.
46 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
47

5 - Considerações finais 6 - Referencias (Unidade II)


Como vimos, os movimentos de moradia surgem e se desenvolvem, a partir BARBOSA, B. R. Protagonismo dos movimentos de moradia no centro de
das carências, insuficiências e relativo abandono por parte dos governos e São Paulo: trajetória, lutas e influências nas políticas habitacionais. Dissertação
relativamente às classes operárias, grupos de baixa renda e populações vulneráveis. de Mestrado. Universidade Federal do ABC. Santo André, 2014. Disponível em:
Boa parte dos movimentos de moradia, com o passar do tempo, desenvolveu https://sites.google.com/site/pospgt2/benedito-roberto-barbosa.
capacidade de dialogar com técnicos, gestores e acadêmicos no sentido de BRASIL, 1988 Constituição da República Federativa do Brasil.
negociar sob os mais diferentes ponto de vista, tanto em situações relativamente
favoráveis, quanto sob tensão e forte adversidade. BRASIL, 2001 Lei n 10.257, de 10 de julho de 2001 - Estatuto das Cidades.

Os movimentos de moradia, apoiados por grupos de assessorias técnicas, COMARU, FA. Áreas centrais urbanas e movimentos moradia: transgressão,
aprenderam a negociar projetos e administrar obras de mutirão e atualmente confrontos e aprendizados. Revista Cidades, v. 13, p. 71-93, 2016. Disponível em:
participam de redes mais amplas tanto em nível nacional quando internacional. http://revista.fct.unesp.br/index.php/revistacidades/article/view/5374/3957

Como todos os atores sociais, os movimentos não estão livres de contradições EARLE, L. 2012. From Insurgent to Transgressive Citizenship: Housing, Social
e inúmeras dificuldades e limitações. Para manter viva a sua permanente Movements and the Politics of Rights in São Paulo. In Journal of Latin American
capacidade de mobilização de massa e legitimar-se em relação às suas bases, os Studies 44(1): 97-126.
movimentos precisam, de tempos em tempos, viabilizar a aprovação de projetos FNRU, Forum Nacional da Reforma Urbana. (2019). Apresentação do FNRU.
para suas demandas. Sob determinados contextos os movimentos confrontam- Disponível em: http://forumreformaurbana.org.br/quem-somos/. Acessado em
se com governos e atores ligados ao mercado imobiliário. Em outros contextos 18 de abril de 2019.
eles competem entre si. Todavia observa-se inúmeros momentos e projetos que
GOHN, M. G. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos
demonstram clara atuação conjunta e cooperação construtiva seja com governos,
indignados no mundo. São Paulo, Editora Vozes, 2014.
seja com agentes do setor imobiliário privado.
HOLSTON, James Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da
Apesar das contradições e dos inúmeros obstáculos e dificuldades, os
modernidade no Brasil; tradução Claudio Carina revisão técnica Luísa Valentini.
movimentos de moradia têm amadurecido e formulado propostas importantes
— 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
e criativas mesmo sob condições muito adversas do ponto de vista das políticas
públicas, dos espaços de participação e do respeito aos direitos sociais e HOLSTON, J. Rebeliões metropolitanas e planejamento insurgente no século
econômicos, como o direito a moradia e os direitos humanos. XXI1 Rev. Bras. Estud. Urb anos Reg., RECIFE, V.18, N.2, p.191-204, MAIO-
AGO . 2016
Em que pese as limitações aparentes do tempo presente, o futuro há de abrir
possibilidades outras de construção de novas relações entre os movimentos e as IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Relatório Brasileiro para o
instituições públicas e privadas, na perspectiva de democratização mais intensa da Habitat III. Brasilia: IPEA, 2015.
sociedade, com mais inclusão social, solidariedade, liberdade e responsabilidade. JESUS, P. M.. The inclusion and access of social housing movements to Minha
Resta também aos técnicos, gestores e cidadãos no geral, compreender o papel Casa Minha Vida: the emergence of the Entidades modality. Revista Brasileira de
e o potencial que os movimentos sociais possuem para contribuir objetivamente Estudos Urbanos e Regionais (ANPUR), v. 18, p. 92-110, 2016.
para o equacionamento de graves e inúmeros problemas estruturais que afetam KOHARA, Luiz. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado “As contribuições
a sociedade. dos movimentos de moradia do Centro para as políticas habitacionais e para as
Para isso, recomenda-se, de partida, dois caminhos, quais sejam: o estudo da políticas de desenvolvimento urbano do centro da cidade de São Paulo.
história, natureza e características dos grupos organizados coletivamente e dos KOWARICK, Lucio A espoliação urbana - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
movimentos; e o conhecimento a partir da observação, interação e vivência em
contato com os movimentos sociais urbanos e de moraria.
48 Movimentos Sociais e Habitação Unidade II
49

MARICATO, Ermínia A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Vídeos recomendados / sugeridos (Unidade II)
industrial. – São Paulo: Alfa-Omega, 1982.
- O curta “Real Conquista” (2017)
MARICATO. E.T.M. O impasse da política urbana no Brasil. São Paulo: Editora
Disponível no Vimeo
Vozes, 2011.
https://vimeo.com/250138346
MARICATO, E. O “Minha Casa” é um avanço, mas segregação urbana fica
intocada. Carta Maior, São Paulo, 27 maio 2009. Disponível em: <http://cartamaior. http://www.semana.art.br/2017/filmes/real-conquista/
com.br/?/Editoria/ Politica/O-Minha-Casa-e-um-avanco-mas-segregacao-
urbana-fica-intocada/4/15160> .
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Pedagogias Transgressoras

PROEXT Instituto de
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
Humanidades, Artes e Ciências

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