O Caráter Ontológico Da Determinacao Social Na Saude PDF
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ARTIGO
http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.207
O caráter ontológico da
determinação social da saúde
The ontological character of the social
determination of health
Resumo: O objetivo deste artigo é refletir Abstract: The aims of this article is
sobre a ideia-chave trazida pelo debate to reflect on a key idea brought by the
acerca da determinação social da saúde, discussion on the social determination
demonstrando seu caráter ontológico. Es‑ of health, demonstrating its ontological
clarecemos em que consiste uma abordagem character. We clarify what an ontological
ontológica. Em seguida, recuperamos pro‑ approach consists of. We then recovered
posições originais que apresentam a ideia original propositions that present the idea
de determinação social da saúde vinculada of social determination of health linked
à dinâmica genérica do modo de produção. to the generic dynamics of the mode of
Por fim, fazemos uma crítica à teoria dos production. Finally, we criticize the theory
DSS, apontando seu caráter fragmentante, of the SDH, pointing out its fragmented
representando um retorno à abordagem character, representing a return to the
gnosiológica. gnosiological approach.
Palavras-chave: Determinação. Ontologia. Keywords: Determination. Ontology. Health.
Saúde. Sociedade. Society.
a
Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Arapiraca/AL, Brasil.
Recebido: 30/7/2019 Aprovado: 14/10/2019
174 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 137, p. 174-191, jan./abr. 2020
O caráter ontológico da determinação social da saúde
Introdução
O
que é saúde? Esse questionamento disparou (e dispara até hoje)
debates teóricos no âmbito científico e institucional e, de praxe,
comparece nos momentos iniciais da formação curricular de
quase todos os cursos de graduação em saúde, como uma espécie de
“enigma da esfinge” que, ao ser decifrado, permite ao graduando seguir
seu caminho no curso.
Não de forma rara, a resposta dada ao questionamento e que é en‑
sinada, majoritariamente, é aquela formulada pela Organização Mundial
da Saúde, quando define que “saúde é um estado de completo bem-estar
físico, mental e social, e não apenas a ausência de afecção ou doença”
(OMS, 1948, apud Rezende, 1989, p. 86).
Esse conceito de saúde, em que pese sua importância histórica, tem
sido absorvido e reproduzido automaticamente, com pouca ou nenhuma
reflexão. Imersos nele, seguimos uma prática de saúde que (acha que)
discursa para além da doença, mas como em uma “visão em paralaxe”,1
continua intervindo apenas nela. Desde a graduação, incorpora-se esse
conceito como um atenuante para uma sequência de conteúdos e práticas
fundamentados na perspectiva biomédica.
Aqui, é preciso dizer que essa formulação não consegue escapar à
matriz biomédica. Ao contrário disso, atua a favor de sua reprodução,
presa ao sisifismo de um caminho meramente gnosiológico. Por outro
lado, a perspectiva da determinação social da saúde, formulada pela
medicina social latino-americana, com contribuições do Movimento Ope‑
rário Italiano e, posteriormente, aprofundada pela Saúde Coletiva de viés
crítico, avança contra essa matriz, incorporando o pensamento de Marx
(apesar de essa apropriação acontecer por caminhos diversos) e, portanto,
dá uma guinada ontológica, rumo à construção de um pensamento que
alcance o que a saúde é em si.
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mas pelo fato de ser o sujeito quem organiza a realidade estudada a partir
da consulta à sua razão, com um método e uma sequência de passos e
parâmetros preestabelecidos. Isto é, mesmo que o caráter do que se estu‑
da seja objetivo (muitas vezes reduzido a dados estatísticos da realidade
empírica, que ignora os processos mais essenciais da realidade), tem-se
aí uma abordagem gnosiológica.
Diante disso, a perspectiva de Karl Marx, que para Lukács consiste
em uma nova ontologia, soergue-se da crítica ao modo de produção
capitalista e, consequentemente, à ciência que lhe é peculiar. Conforme
aponta Tonet (2013), essa nova ontologia surge da crítica dos outros
padrões científicos, tarefa que foi originalmente realizada por Marx no
século XIX. Assim, ele inaugurou uma nova maneira de fazer ciência,
reconhecendo que “não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.
(Marx, 2008, p. 47).
Aceitar a prioridade ontológica da objetividade não significa colocar
o sujeito do processo de conhecimento (ou do processo histórico-social
como um todo) como um ente contemplativo e passivo. Ao contrário,
Marx supera e rompe com a dicotomia entre subjetividade e objetividade,
constituindo um novo método de abordagem do real, pois ao contrário
das ontologias anteriores, reconhece que o sujeito transforma a realidade
(portanto, os objetos) (Lara, 2011a; Tonet, 2013). Se a realidade é fruto da
ação humana, sua transformação estará sempre consignada aos seres
humanos. O homem é autor e ator de sua história, mas esse processo
é orientado pelo seu confronto com a realidade, e esta possui caráter
objetivo, porquanto é externa à sua consciência.
Vale ressaltar que Lukács foi quem primeiro apontou, com pre‑
cisão e exaustão, a impostação ontológica presente no pensamento
marxiano. Para Fortes (2016, p. 47), “as determinações tecidas por
Lukács são de cunho ontológico, o que o coloca em uma posição ra‑
dicalmente distinta das tendências filosóficas atuais, que no geral
condenam toda reflexão ontológica como anacronismo metafísico”.
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Mas desde Marx outros marxistas também trazem abordagens que, por
se p
reocuparem com a essência dos objetos investigados, situam-se,
pois, na seara ontológica, ainda que assim não a denominem. Demons‑
tramos, a seguir, que tal abordagem também se fez (faz) presente no
caso do estudo da saúde.
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áreas do Serviço Social e da Saúde do Trabalhador, como, por exemplo em: Lourenço (2009),
Lara (2011b), Souza (2012, 2016a, 2016b) Souza e Mendonça (2017), Passos (2015) e Souza,
Melo e Vasconcellos (2015).
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Aqui, fazemos uma alusão à Quiroga (1991), quando debate a invasão que o próprio marxismo
3
sofre por parte do positivismo, com reflexos, no caso estudado pela autora, para o ensino de
Metodologia em Serviço Social. No caso por nós abordado, a invasão se desdobra em uma apro‑
priação da discussão, com posterior abandono da matriz teórica original, a saber: o marxismo.
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[…] sabemos que todos esses problemas sociais rebatem sobre a saúde, como
demonstrado nos estudos sobre os DSS. Mas é preciso dizer que não são
problemas desconexos entre si nem fragmentos da realidade que ganham
autonomia. Pelo contrário, constituem uma questão una, com sua base
objetiva imbricada no processo de trabalho tal qual ele é desenvolvido no
capitalismo.
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Considerações finais
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ontológica para uma equação que está voltada para a essência do objeto
estudado, no caso, a saúde.
Acreditamos que se trata de um caminho de investigação a ser
aprofundado e, para tanto, as obras de Marx e Lukács certamente darão
consistência à argumentação.
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Sobre o autor
Diego de Oliveira Souza – Doutor em Serviço Social. Professor do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social.
E-mail: diego.souza@arapiraca.ufal.br
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