Francisco Wellington - O TEATRO QUINHENTISTA DE ANCHIETA
Francisco Wellington - O TEATRO QUINHENTISTA DE ANCHIETA
Francisco Wellington - O TEATRO QUINHENTISTA DE ANCHIETA
p125-157
Abstract: The first stage shows in Brazil are works by the Jesuits Manuel da
Nóbrega, João Azpilcueta Navarro, who used theater as an instrument of
moral and artistic education. But according to José Carlos de Macedo
Soares, the Portuguese colonizers brought the habit of secular representa-
tions from the metropolis, but did not fully adjust them to literary precepts.
They "loved the representations from the simplest to the appropriate, to
comedies of customs, to miracles or mysteries and to autos", including
1
Doutorando em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da
UFC (2014.1); Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da UFC (2010); Especialista em Estudos Clássicos (2005) e Graduado em Letras
(2003) pela mesma universidade. Atualmente é Bolsista FUNCAP. É também pesquisador
do Grupo de Estudos de Residualidade Literária e Cultural do Diretório de Pesquisas do
CNPq. Email: wellrodrigues2012@yahoo.com.br
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those created by Gil Vicente in Portugal at the time of the discovery of Bra-
zil (SOARES, 1954, p. 6). However, it was up to Pe. José de Anchieta to cre-
ate the first manifestations of religious scenic art in our country, mixing in
its context, elements originating from the old world and the Catholic
Church with the elements of a culture that existed there, of the Indians.
Thus, the objective of our article is to discuss the remains of the Medieval
Devil in the theater elaborated by Pe. José de Anchieta, in three chosen
autos - Auto da Pregação Universal, Na Aldeia de Guaraparim end Na Vila
de Vitória or Auto de São Maurício. As a result, we will defend the hypothe-
sis that the representation of the Devil in the medieval theater is residually
present in the sixteenth-century Brazilian theater of Pe. José de Anchieta,
as well as the questions related to mentality, medieval Christian imagery,
theater, representativity and literary residues From one season to another.
Keywords: Theater, Residuality, Medieval Devil, Anchieta.
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condenáveis, é estigmatizado à luz do bem e da mo-
ral cristã. (MAGALDI, 2004, p. 17).
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de festas religiosas e encenações teatrais. (...) O pa-
dre e dramaturgo Anchieta criou diálogos teatrais
com personagens da vida social indígena para falar
ao seu espectador, na língua deles, sobre “a manei-
ra boa de viver”, que era aquela dos aldeamentos
junto aos abarê, e sobre o que seria mau, como os
rituais e costumes indígenas: criou um teatro evi-
dentemente pedagógico no sentido porém, em que
também eram pedagógicos os autos religiosos e as
moralidades medievais. (HERNANDES, 2008, p. 23).
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Por isso, podemos afirmar que qualquer tipo de análise do tea-
tro do Padre José de Anchieta exige, sem dúvida, um complexo exer-
cício de descontrução de ideias e imagens sobre o teatro do seu tem-
po, bem como ter uma percepção histórica mais apurada dos fatos
que marcaram o Brasil colônia, como a formação da sociedade, a polí-
tica, a economia e a religião, pois a sua poesia e a sua dramaturgia
visam uma criação de novas perspectivas, voltando-se para uma ela-
boração e reelaboração do homem e da sociedade, tendo como base,
textos autênticos (cartas, poemas, autos, biografias) e ainda a criação
de um imaginário que ousou recriar seres ou figuras que o aproxima-
ram de sua missão: solidificar os dogmas da Igreja Católica numa so-
ciedade em processo de construção. (FERNANDES, 1980).
No tocante à produção teatral do padre José de Anchieta no
Brasil, tendo como base os estudos de Edwaldo Cafezeiro e Carmem
Gadelha (1996), é comum aos estudiosos de Anchieta, conforme ex-
plicam os autores, atribuir-lhe a autoria de nove obras. O erro de au-
toria dos textos dramatúrgicos do padre jesuíta foi mais difundido a
partir do momento em que a edição preparada pela pesquisadora
Maria de Lourdes Paula Martins (sendo este considerado o primeiro
trabalho sério sobre a obra de Anchieta, tendo como base para sua
realização os manuscritos do missionário), foi publicada por volta dos
anos de 19502. Entretanto, conforme os trabalhos realizados pelos
2
Para Lothar Hessel e Georges Raeders, na obra O Teatro Jesuítico no Brasil, apenas sete
peças têm sido atribuídas, sem maiores hesitações, ao Padre José de Anchieta. Segundo
os autores, por ordem cronológica de estréia, são obras de Anchieta: Auto da Crisma
(1578), Quando no Espírito Santo se Recebeu uma Relíquia das Onze Mil Virgens, ou Auto
de Santa Úrsula (1584), Auto de São Lourenço e Na festa de Natal ou Pregação Universal
(1586?), Auto da Vila de Vitória ou de São Maurício (1586), Auto ou Diálogo de Guarapa-
rim (1587), Auto da Visitação de Santa Isabel (1898). HESSEL, Lothar; RAEDERS, Georges.
O Teatro Jesuítico no Brasil. Porto Alegre: URGS, 1972.
Já Leodegário Amarante de Azevedo Filho, tendo como base os estudos da Doutora Maria
de Lourdes Paula Martins, na obra intitulada Anchieta, a Idade Média e o Barroco, afirma
que pode-se atribuir a Anchieta nove autos de catequese. São eles: Quando no Espírito
Santo se Recebeu uma Relíquia das Onze Mil Virgens ou Auto de Santa Úrsula, Na Visita-
ção de Santa Isabel, Dia da Assunção, quando levaram sua imagem a Reritiba, Dos misté-
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pesquisadores do teatro anchietano, dentre eles Edwaldo Cafazeiro,
Carmem Gadelha (1996) e o Padre Armando Cardoso (1977), conclu-
iu-se que o teatro completo do padre jesuíta, até que novos textos
apareçam, passou a conter doze autos3. Contudo, o que nos interessa
nesse momento é analisarmos três textos escolhidos em que a princi-
pal figura representante do Mal, o Diabo, aparece em cena no teatro
quinhentista brasileiro.
O Diabo, segundo Muchembled (2001), Cousté (1996) e Russel
(2003) teve sua imagem construída sobre os resíduos das antigas tra-
dições religiosas que precederam o Cristianismo na história. Depois
que a imagem e o papel do Adversário de Deus já estavam delineados
e bem difundidos na mentalidade do povo cristão medieval, a Igreja
Cristã, diante das intensas mudanças sociais, políticas, religiosas, ide-
ológicas e culturais ocorridas em toda Europa, continuou sua luta
contra os hereges, considerados inimigos de Deus e da tradição cristã,
os que representavam a demonização de todas as formas, bem como
os que afrontavam de forma herética os dogmas divinais.
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A ideia do Diabo propagou-se de forma intensa por toda a Eu-
ropa Medieval. Ele assumiu nomes e formas híbridas diversas; provo-
cou medo e riso; foi, através de relatos orais populares, enfrentado
por anjos e outros representantes da ordem divina, inclusive, Jesus
Cristo, o próprio Criador e a Virgem Maria.
Dessa forma, o teatro medieval trouxe à cena a representação
do Diabo e a do Inferno. O Mal, através das artes cênicas, difundia-se
com maior eficiência na mente do povo cristão e cada vez mais o
pensamento católico cristão se firmava na sociedade medieval. As
peças teatrais mostravam representações pavorosas e risíveis sobre a
figura do Mal. No teatro vicentino, por exemplo, o Diabo representa-
va, simbolicamente, papéis diversos: era juiz, acusador, relator dos
pecados humanos, tentador, ludibriador etc; recebeu caracterizações
e denominações, de acordo com o imaginário popular do período
medieval, que o marcaram para sempre: Satã, Belial, Satanás, Lúcifer
etc; tornou-se ridículo diante dos anjos e outros seres divinos; cômico
quando se enredado por causa de sua tolice ou quando se colocava
em situações de fracasso, derrota; é ainda causador do riso quando
insultado, humilhado e enganado. (LIMA, 2010).
E foi esse pluralismo diabólico que se projetou na sociedade
cristã medieval, através do teatro, que nos serviu de subsídios para o
desenvolvimento desse trabalho, uma vez que este transcorrerá, co-
mo veremos a seguir, em torno das obras teatrais do Padre José de
Anchieta, tendo como base fundamental, os textos que trazem o Dia-
bo no conjunto dramatúrgico do autor quinhentista no Brasil, bem
como a projeção residual do pensamento medieval, em especial, so-
bre a representação do Diabo no Nordeste do Brasil.
Para compreendermos como foi possível que traços da cultura
medieval subsistissem por tanto tempo e aparecessem vivos na obra
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de Anchieta, utilizamos os conceitos de resíduo, hibridismo, cristaliza-
ção e mentalidade trabalhados pela Teoria da Residualidade4 siste-
matizada por Roberto Pontes. Os conceitos teóricos são trazidos de
outras áreas do conhecimento, como a sociologia, a história e a an-
tropologia. A partir dessa sistematização, o autor demonstra que os
resíduos da cultura de um período temporal podem ser percebidos
noutro tempo e numa sociedade diferente, sendo, portanto, o mes-
mo fenômeno observável na literatura, desde que esta é um produto
da endoculturação.
Roberto Pontes empregou o termo residualidade inicialmente
em sua dissertação de mestrado, atualmente publicada em livro, Poe-
sia insubmissa afrobrasilusa (1999), tendo por objetivo demonstrar a
presença de resquícios do passado que, ao longo do tempo, acumula-
ram-se na mente humana e que são refletidos na cultura e na litera-
tura de forma involuntária através de estruturas atualizadas5.
Os termos resíduo, residual e residualidade, na concepção de
4
A teoria da residualidade foi sistematizada e desenvolvida pelo Professor Doutor Roberto
Pontes, da Universidade Federal do Ceará (UFC), certificado pela UFC e cadastrado junto
ao CNPQ. A Teoria da Residualidade Cultural e Literária baseia-se no pressuposto de que
nada é novo na literatura nem na cultura, “pois tudo remanesce de outros tempos e/ou
espaços”. (PONTES; MARTINS, 2015). Atualmente, os estudos desenvolvidos com base na
Teoria da Residualidade, conta com a colaboração e a liderança da Professora Doutora
Elizabeth Dias Martins que, juntamente com Roberto Pontes, coordena e orienta os pes-
quisadores participantes do Grupo de Estudos em Residualidade Literária e Cultural -
GERLIC, formado por graduandos e graduados do Curso de Letras da UFC; e por mestres,
mestrandos e doutorandos do Curso de Pós-Graduação em Letras da UFC.
5
Desde 2002, a Teoria da Residualidade é registrada junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e de
Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao Conselho Nacional de Pesquisa –
CNPq -, e sua propagação pelo universo da pesquisa ganha, a cada dia, mais espaço e no-
toriedade entre alunos e professores pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Ceará e outras IES que reconhecem a importância da
teoria no estudo da tradição cultural e literária de nosso País. A Teoria da Residualidade
já proporcionou três teses concluídas de doutorado (duas na PUC-Rio e uma na UFAM),
mais 4 estão em fase de elaboração na UFC; 33 dissertações de mestrado defendidas no
PPGL-UFC, mais 7 estão em andamento na UFC e na UFAM; uma tese de doutorado de-
fendida em Portugal, na Universidade de Trás-os Montes, uma tese de doutorado em
andamento na Universidade de Coimbra; 3 monografias de especialização foram aprova-
das na UFC e na UECE. Oito Jornadas de Residualidade já foram realizadas pelo Grupo
GERLIC na UFC, envolvendo, no seu formato, sessões de comunicações, conferências,
mesas semi-plenárias e apresentações culturais, tendo ainda, a participação de pesqui-
sadores/conferencistas do Brasil e de Portugal. (PONTES; MARTINS, 2015).
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Roberto Pontes, têm sido empregados relativamente ao que resta ou
remanesce na Física, na Química, na Medicina, na Hidrografia, na Ge-
ologia e em outras ciências, mas na Literatura (história, teoria, critica
e ensaística) quase não se tem feito uso dos mesmos (PONTES, 2006).
Segundo Roberto Pontes, resíduo é “aquilo que remanesce de
uma época para outra e tem força de criar de novo toda uma obra,
toda uma cultura. ” (PONTES, 2006). Bem sabemos que na cultura do
povo brasileiro é possível encontrarmos resquícios da época medieval
ainda vivos no modo de pensar dos cristãos viventes em nosso país,
inclusive, daquilo que remanesceu acerca do Diabo, corpus central de
nosso estudo, como bem representou Anchieta, pois para Pontes, o
resíduo “não é um cadáver da cultura grega ou da cultura medieval
que deve ser reanimado nem venerado num culto obtuso de exalta-
ção do antigo, do morto... não é isso... fica como material que tem
vida” (PONTES, 2006).
Como podemos perceber, a teoria literária elaborada por Ro-
berto Pontes parte do pressuposto de que “na cultura e na Literatura
nada é original, tudo é residual”. Assim sendo, entende-se por resíduo
o compósito de sedimentos mentais que remanescem de uma cultura
para outra. (PONTES, 2006). Sobre a transmissão de valores culturais
de um povo para outro, através da literatura e do contato social, o
autor diz o seguinte:
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dados e nobres aportados em nosso litoral, entre-
tanto, se não vieram exemplares impressos de ro-
mances populares da Península Ibérica nem os pro-
venientes da Inglaterra, Alemanha e França, pelo
menos aqueles homens trouxeram gravados na
memória os que divulgaram pela reprodução oral
das narrativas em verso.
Assim, desde cedo, e à míngua de uma Idade Média
que nos faltou, recebemos um repositório de com-
posições mais do que representativo da Literatura
oral de extração geográfica e histórica, cujas raízes
estão postas na Europa ibérica do final da Idade
Média, justamente quando ganhavam definição as
línguas românicas. (PONTES, 1999).
6
Resíduo, Residual e Residualidade: refere-se a certas formações mentais que persistem
através de longas durações. É dotado de extremo vigor e não se confunde com o arcaico.
É aquilo que remanesce de uma época para outra e tem a força de criar de novo toda
uma cultura ou obra literária; não é material morto e, sim, material que tem vida, porque
continua a ser valorizado e vai infundir vida numa obra nova. (PONTES, 2006).
7
A cristalização é a sedimentação de resíduos culturais de outras épocas em obras con-
temporâneas. Trata-se de um modo coletivo de compreender a memória coletiva, uma
vez que é sempre resultante de um processo de modificações contínuas das condições
materiais. (PONTES, 2006).
8
A mentalidade é um conjunto difuso de imagens a que se referem todos os membros de
um mesmo grupo e está associada intrinsecamente ao resíduo. Trata-se de um campo
investigativo delimitado pela ideia de longo tempo dos componentes da École dês Anna-
les. (PONTES, 2006).
9
O hibridismo cultural explica que as culturas não seguem caminhos isolados: elas se en-
contram, se fecundam, se multiplicam, proliferam; apresenta sempre a ideia de algo re-
sultante do cruzamento de culturas diferentes. Pode ser estudada pelo seu aspecto lite-
rário, artístico ou sociocultural. (PONTES, 2006).
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a esclarecer ao mesmo tempo o objeto investigado.
É o que em teoria chamamos conceitos operativos,
ou operacionais, isto é, indispensáveis à operação
do esclarecimento. (PONTES, 2006).
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Festa do Natal ou Pregação Universal (1561, na Vila de São Paulo de
Piratininga); Na Aldeia de Guaraparim (1585?, na Aldeia de Guarapa-
rim, no Espírito Santo); Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício
(1595, também na vila de Vitória, no Espírito Santo).
Para análise das peças Anchietanas, adotaremos como fonte a
obra Teatro de Anchieta, organizada, traduzida e anotada pelo Padre
Armando Cardoso (1977), conforme os escritos originais encontrados
no Caderno de Anotações, de Anchieta, que hoje se encontra no Ar-
quivo Romano, na Itália, investigado pelo pesquisador.
Comecemos nossa análise pelo Auto da Pregação Universal,
primeira peça de Anchieta, representada, provavelmente, pela pri-
meira vez, em 1561, no natal, a pedido do Padre Manuel da Nóbrega.
O auto agradou inteiramente a todos e repetiu-se por toda a costa
brasileira, com adaptações maiores ou menores, mediante às circuns-
tâncias de tempo e espaço. Recebeu esse nome pelo fato de estar
escrito em três línguas - o português, o tupi e o espanhol – podendo
alcançar todo o público da época.
O enredo, reconstituído pelos pesquisadores do teatro anchie-
tano, com base no Caderno de Anotações do padre missionário, tem
cinco atos, segundo a edição proposta pelo Padre Armando Cardoso
(1977). O primeiro e o quinto são compostos por um poema longo
sobre um conhecido tema medieval, o Pelote Domingueiro10. Neles,
canta-se uma alegoria da história do pecado: um moleiro (Adão) per-
10
.O assunto das Trovas do Moleiro vem da Idade Média. Segundo o Padre Armando Car-
doso, guarda-se na Biblioteca do Porto composições transcritas por Teófilo Braga em sua
Antologia Portuguesa. A primeira parece de Marco Fernandes Sapateiro, que se nomeia
na terceira estrofe e descreve o moleiro com sua casaca de luxo, como custou a obtê-la,
como lhe tinha amor e a guardava com ciúmes. A segunda, de Antônio Leitão, explora a
perda do pelote e o desespero que o moleiro tomou por isso. A terceira, de Luís Brocha-
do, se detém nos esforços e demandas para que lhe restituam. A quarta, de João de Cou-
to, termina descrevendo a festa que fez o moleiro ao reaver sua roupa. ANCHIETA, José
de. Teatro de Anchieta. Vol. III. Originais acompanhados de tradução versificada, intro-
dução e notas pelo Padre Armando Cardoso S.J. São Paulo: Loyola, 1977, p. 63.
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de a sua veste de domingo (a graça de Deus), roubada por um ladrão
(o Diabo). Com a perda, o moleiro torna-se um desgraçado, até que
sua veste seja recuperada, fato que ocorre no quinto ato. O neto do
moleiro (Jesus Cristo), com sua mãe, a filha do moleiro (Maria), tece
nova veste (a graça de Deus) para o avô (Adão, homem caído), com
seus trabalhos de salvação (Encarnação, Circuncisão, Paixão), e lhe
restitui com a veste a alegria festiva. No segundo ato, deparamo-nos
com a luta dos anhangás (Guaixará e Aimberé) contra o Karaibebé
(Anjo). Consequência da primeira queda do homem, os dois diabos,
Guaixará e Aimberé, mostram o mal que fazem por todas as aldeias
indígenas, pervertendo os índios com os pecados mundanos. O Anjo
da guarda da aldeia, condescendente em ouvi-los a princípio, acaba
por expulsá-los, exortando os índios à vida cristã com a graça de Jesus
e a proteção da Virgem Maria. No terceiro ato, temos o desfile de
doze pescadores brancos, amarrados pelos diabos, a narrar suas mi-
sérias diante do presépio, com esperança de serem atendidos pela
graça divina. No final, todos são absolvidos e ficam libertos das cor-
rentes, simbolizando o perdão pelos pecados cometidos. No quarto
ato, temos a dança dos meninos, com versos em português, espanhol
e tupi.
De acordo com o enredo, há no texto de Anchieta uma alusão
a três grandes festividades do calendário cristão: a festa de Natal (25
de dezembro), à Circuncisão (1 de janeiro) e à festa dos Reis Magos (6
de janeiro). Trata-se de três momentos festivos oriundos da Península
Ibérica medieval que se enraizaram no Nordeste do Brasil de forma
profunda e diversificada. São tradições antigas, mas que ainda per-
manecem em nossas memórias na forma de resíduos.
Como nosso corpus de pesquisa gira em torno da representa-
ção do Diabo medieval e suas residualidades na obra de Anchieta,
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vejamos nesse momento apenas o primeiro e o quinto atos do auto
em análise11, que fala do Pelote Domingueiro. Leiamos a versão de
Anchieta do Pelote Domingueiro e a atuação/representação do Diabo
medieval na obra do padre jesuíta:
ATO I
Já furtaram ao moleiro / o pelote domingueiro.
Se lho furtaram ou não, / bem nos pesa a nós com
isso!
Perdeu-se com muito viço / o pobre moleiro adão.
Lúcifer, um mal ladrão / lhe roubou todo o dinheiro
/ co’o pelote domingueiro. / (...)
(...) Era uma peça, a mais fina / de todas quantas ti-
vera.
Se ele bem a defendera, / não jogaram de rapina. /
A cobra ladra e malina
com inveja do moleiro, / apanhou-lhe o dominguei-
ro (...).
(ANCHIETA, 1977, p. 118-119)
11
Segundo pesquisadores, vê-se que o diálogo principal, aquele destinado aos diabos, foi
adaptado ao auto de Na Festa de São Lourenço. Comparando os dois autos (Na Festa de
São de Lourenço e Na Festa de Natal ou Pregação Universal), vemos que o segundo omi-
te referências à São Lourenço e São Sebastião, à batalha de Guaixará no Rio de Janeiro e
aos franceses. Anchieta, no Auto da Pregação Universal, escreveu um texto alusivo aos
pescadores desonestos; fala de uma confraria; faz referências ao Menino Jesus e aos Reis
Magos, sendo este, o mais antigo auto produzido pelo padre missionário no Brasil. AN-
CHIETA, José de. Teatro de Anchieta. Vol. III. Originais acompanhados de tradução versi-
ficada, introdução e notas pelo Padre Armando Cardoso S.J. São Paulo: Loyola, 1977, p.
71.
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ra furtar o Pelote Domingueiro :
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sabe que em qualquer dia que vós comais desse fru-
to, se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns
deuses, conhecendo o bem e o mal.
Viu pois a mulher, que a árvore era boa para comer,
e formosa aos olhos, e deleitável à vista: e tirou do
fruto dela, e comeu e deu a seu marido, que tam-
bém comeu.
No mesmo ponto se lhes abriram os olhos; e tendo
conhecido que estavam nus coseram umas folhas de
figueira, e fizeram para si umas cintas.
E Adão e sua mulher, como tivessem ouvido a voz
do Senhor Deus, que passeava pelo paraíso, depois
do meio-dia, quando se levantava a viração, escon-
deram-se da face do Senhor Deus no meio das árvo-
res do paraíso.
E o Senhor Deus chamou por Adão, e lhe disse: onde
estás?
Respondeu-lhe Adão: eu ouvi a tua voz no paraíso, e
tive medo, porque estava nu; e por isso me escondi.
Disse-lhe Deus: donde soubeste tu que estavas nu,
senão porque comeste da árvore de que eu te tinha
ordenado que não comesses?
Respondeu Adão: a mulher, que tu me deste por
companheira, deu-me da árvore, e eu comi.
E o Senhor Deus disse para a mulher: por que fizeste
tu isto?
Respondeu ela: a serpente me enganou, e eu comi.
(GÊNESIS, 3: 1-13)
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no teatro de Gil Vicente, mais precisamente no Auto da História de
Deus, texto que demonstra elementos de residualidade cultural e
literária dos dogmas da Igreja Católica do período Medieval que se
cristalizaram na mente do povo brasileiro, no século XVI. Leiamos o
trecho do Auto da História de Deus que ressalta a queda do primeiro
homem e a atuação do Diabo nesse contexto:
LÚCIFER
Vai tu, Satanás, por embaixador, / eu te dou meu
comprido poder; / e vai-te a Eva, porque é mulher, /
e dize que coma, não haja temor; / e, como avisado,
lhe fala cortês e mui repousado, / mostrando-te a-
legre com todo seu bem,
e seu muito amigo maior que ninguém: / minte-lhe
largo, e dá-lhe o cuidado / que agora não tem.
Vem tomar graça, pois hás-de pregar / à mais avisa-
da senhora do mundo: / eu te outorgo meu poder
facundo. / Não hajas dó dela, faze-a fiar, / destruí-la
asinha; / nem por fermosa, nem por ser rainha,
não olhes por nada, aperta com ela: / que como a
venceres, sem ti, mesmo ela
fará ao marido cobrir-se de tinha, / e meuito mais
que ela (...).
LÚCIFER
Faze-te cobra, por dissimular, / porque pareças do
mesmo pomar, / que sabes das frutas as graças que
tem; / porque hás-de dizer: / Senhora fermosa, de-
veis de saber
que aquela fruta que vos foi vedada / oh! Quanta
ciência em si tem cerrada.
SATANÁS
Senhor Lúcifer, prazer i não há / que dê pelos pés ao
vencimento, / alegrai-vos muito e o nosso convento,
/ que vosso desejo comprido está. / já são derruba-
dos
Adão e Eva os primeiros casados, / voltas as vodas
em pranto mui forte,
o gozo em lágrimas, a alegria em morte, / a vida em
suspiros, prazer em cuidado, / ventura sem sorte
(...). (VICENTE, 1968, p. 174-177)
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Comparando as passagens do primeiro ato do Auto da Prega-
ção Universal com os dois textos colocados aqui, a passagem do Gê-
nesis e a do Auto da História de Deus, fica clara a residualidade em
torno da figura do representante do mal na obra de Anchieta, pois,
nos fragmentos textuais do padre missionário, são resíduos do Diabo
medieval e vicentino a representação do Diabo soberbo, tentador e
ludibriador; aquele que age de forma maléfica, dispondo ações do
mal contra Deus e sua mais nobre criação, o homem.
No quinto ato, Anchieta faz um desfecho para a história do
rapto do Pelote Domingueiro. Nesse momento, fala-se mais uma vez
do furto realizado pelo Diabo e da conquista do pelote por parte de
Jesus. Leiamos:
Ato V
Já tornaram ao moleiro / o pelote domingueiro / o
Diabo lhe furtou
o pelote por enganos. / Mas, depois de muitos anos,
/ um seu neto lho tornou;
por isso carne tomou / duma filha do moleiro, / por
pelote domingueiro (...).
(...) Viva o segundo Adão, / que Jesus por nome
tem! / Viva Jesus, nosso bem!
Jesus, nosso capitão! / Hoje, na circuncisão, / se
tornou Jesus moleiro / por tornar o domingueiro!
(ANCHIETA, 1977, p. 138-140).
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(4 PEDRO COLAÇO)
Pois que temo o mal eterno, / porque me prendo
com o laço / do pecado que é baraço
a me arrastar para o inferno, / que é dos diabos o
paço? / Ao pobre Pedro Colaço
salvai-o, Virgem clemente! / Pois quem tanto a pena
sente / desse tenebroso espaço,
como se prende a corrente?
(6 ANTÃO VILHENA)
Eu mesmo, por meu querer, / ao pecado me entre-
guei; / com ele minha alma atei,
sem nunca amar e temer / a Deus contra quem pe-
quei. / Virgem Mãe do eterno Rei,
acalmai Antão Vilhena! / Pois estou cheio de pena /
que eu, vilão, me procurei
com culpa que me condena.
(7 SÉRVIO FORJAZ)
A consciência me aguilhoa / pelos males em que jaz,
/ nem me deixa gozar paz,
porque ela nunca perdoa / ao servo de Satanás. / Ao
triste Sérvio Forjaz
vindo vós, Mãe, ajudar / a que se possa aquietar: /
pois se vivo qual me apraz,
paz não me posso forjar. (ANCHIETA, 1977, p. 134-
135)
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CONDE
O muy preciosos remos, / socorred mi aflicion.
LIÇÃO PRIMEIRA
O parce mihi, Dios mio, / porque ensalza tu poderio
/ al hombre, y das señorío,
y luego del te desvias? / Com favor visitas e un al al-
vor, / y súpito lo pruevas logo:
porqué consientes, Señor, / que tu obra, y tu he-
chor, / sea desecha nel fuego?
Ayudadme, remadores, / de lãs altas hirarquias, /
favoreced mis temores,
pues sabeis cuantos Dolores / por mi sufrió el Mes-
sias. / Sabed cierto
como fue preso em el huerto, / e escupida su her-
mosura, / e dendê allí fue, médio muerto,
llevado muy sin concierto / al juicio, sin ventura (...).
DUQUE
O ángeles, qué haremos, / que no nos deja Satan?
(...)
PAPA
Ó Pastor crucificado, / como dejas tu ovejas, / y tu
tan caro ganado!
Y pues tanto te há costado, / inclina á él tus orejas.
(VICENTE, 1968, p. 131-166).
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chieta escrito em tupi, provavelmente encenado no ano de 1585 (?),
na Aldeia de Guaraparim, no Espírito Santo, dividida em cinco atos, os
Diabos, igualmente de nomes indígenas, são correspondentes aos
vícios e virtudes do índio. Eles se preparam para desafiar o poder de
Nossa Senhora. Nesse auto anchietano, o Inferno acha-se represen-
tado por quatro diabos que formam o concílio maléfico. Aqui, os valo-
res medievais do Cristianismo invadem a cena e, mais uma vez, temos
a representação do Diabo numa visão primitivamente adequada aos
modos da sociedade brasileira em construção. Vejamos algumas pas-
sagens importantes da obra em que os diabos, bem como suas ações,
nomes e outros caracteres levam-nos à constatação da presença de
resíduos da mentalidade medieval cristã na literatura quinhentista do
Brasil Colonial:
DIABO 1
Ai! Tenho andado sem paz, / à procura dum abrigo.
/ Aí! Sempre sair me faz,
expulso bem para trás, / o sacerdote inimigo. / Infe-
lizmente ele ensina
a seguir a voz do céu. / Proclama que a mãe divina /
desgraçou a minha sina
e a cabeça me rompeu. / Humilha sem me matar, /
o nome dessa Senhora.
ouvindo-o, vou-me ocultar, / fugindo para o meu
lar, / grande noite sem aurora (...).
Ai! / Não há absolutamente servos meus, / os anti-
gos companheiros de minha grande força
Onde está Tatapitera? / Onde está Caumondá? /
Onde está Morupiaruera?
DIABO 2
Eis que aqui estou por me chamares. / Confia em
mim. / Com minha grande força,
por cumprir tuas palavras, esta aldeia eu transtorno
sempre (...).
(...) Transtorno o coração das velhas / irritando-as,
fazendo-as brigar (...).
(...) Insultando-se muito umas as outras, / invocan-
do (eu) coisas para elas: / “- És parecido com um
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chamusco, / ó coisa fedorenta!”, dizendo; / rarissi-
mamente se irritariam se não fosse eu. / (...) assim
como meu grande fogo, / inflamo os antigos ódios.
(ANCHIETA, 1977, p. 208-210)
DIABO 2
Que venha para nos ajudar / meu irmão mais moço,
teu servo. (...)
(...) Caumondá. / Ficando a flechar a Mãe de Deus, /
12
Segundo Laura de Melo Souza, sem aludir ao vôo noturno ou ao sabá, muitos dos cronis-
tas e eclesiásticos que descreveram as práticas mágico-religiosas americanas fizeram-no
utilizando a terminologia que conheciam e empregavam para designar os agentes satâ-
nicos por excelência. Xamãs, caraíbas e pajés tupis, enfim, todos os responsáveis pelo
espaço sagrado foram quase sempre chamados de bruxos e feiticeiros. SOUZA, Laura de
Melo e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização séculos VXI-XVII. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1993, p. 162.
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fazendo-a ir, (serão) presas dele.
Vê-lo-ás hoje. / É muito certeiro esse maldito.
DIABO 3
Aqui estou, o Cauguaçu. / Aqui estou, o Caumondá.
/ Quem, hoje, é como eu? / Irra! Ninguém.
(...) Embora eles tenham igrejas, / para ficar rezan-
do a Deus / arruinei a todos, a noite toda fazendo-os
beber cauim / e fazendo-os roubar também (...).
(...) Eis que aqui estou, ó meu senhorzinho! / Eis que
aqui estou, procurando-te (...).
Eis que eu na bebedeira / faço as pessoas estarem
sempre; / bebem muito todos
os homens e as mulheres / segundo minhas disposi-
ções a eles (...). / Vou falar aos ouvidos dos índios,
ajudando-os no que respeita às mulheres, / fazen-
do-os desejá-las / fazendo-os roubá-las por causa
disso. (ANCHIETA, 1977, p. 210-212)
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do pensamento medieval, inclusive dos evangelhos: a figura do Diabo
ligada à serpente do Jardim do Éden. Mboiçu, segundo a tradução de
Eduardo Navarro (1999), significa na língua indígena, “cobra grande”.
Analisando esse trecho que representa o diabo 4, logo lembramos da
história da tentação de Adão e Eva e sua expulsão do Paraíso por te-
rem comido o fruto da árvore proibida. Segundo Cousté (1996, p. 21),
o Diabo tinha provocado a desobediência do casal humano para “ali-
enar-lhes o amor do Senhor”. Não previu que o seu “exaltado amor
implicaria sua condenação e que esta chegaria ao extremo de apagar
as verdadeiras causas de sua queda”. (COUSTÉ, 1996, p. 21).
Ressaltamos também a questão do “fedor” causado pelo sexo
e pela sedução que certamente levaria os índios ao pecado da carne,
elemento de combate dos jesuítas. Conforme Muchembled (2001, p.
138), “os demônios demonstram sua natureza repulsiva tanto pelas
ações como pelas suas formas: eles emitem fedores terríveis, comem
excrementos”. O sexo, na mentalidade cristã medieval, tem cheiro de
pecado; é advento do Diabo.
O fogo infernal também é um elemento de importância pre-
sente no auto. Décio de Almeida Prado (1993) afirma que, na peça Na
Aldeia de Guaraparim, as chamas do Inferno iluminam toda a ence-
nação e nos coloca “diante da triste condição humana, escravo do
Senhor, pobre fantasma sem vida, vítima de uma estranha cegueira
perante o espiritual” (PRADO, 1993, p. 37). Vejamos a seguinte fala
do Diabo 4 que, de modo impiedoso, intenciona levar os homens ao
fogo do Inferno: “(...) Logo então, hoje, os homens / em meu laço fa-
rei cair, / obrigando-os a cometer pecados, / após a morte deles lan-
çando-os todos / em meu fogo, fazendo-os cair comigo”. (ANCHIETA,
1977, p. 214).
Dessa forma, Anchieta faz-nos lembrar também dos autos vi-
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centinos, em especial o Auto da Alma, no qual o Diabo tenta ludibriar
a alma humana para torná-la pecadora e desse modo aumentar a cli-
entela do Inferno:
DIABO
Tão depressa, ó delicada, / alva pomba, pêra onde
is? / Quem vos engana, / e vos leva tão cansada /
por estrada, / que somente não sentis / se sois hu-
mana? / Não cureis de vos matar,
que ainda estais em idade / de crecer. / Tempo há i
pera folgar / e caminhar (...).
Gozai, gozai dos bens da terra, / procurais por se-
nhorios/ e averes (...).
Esta vida é descanso / doce e manso, / não cureis de
outro Paraíso (...).
ALMA
Não me detenhas aqui, / deixai-me ir, que em tal
me fundo. (VICENTE, 1968, p. 8-10)
ALMA
Mas, que houve? Onde aportei? / Alma de Piratara-
ka, / meu corpo agora deixei,
nem sequer as mãos cruzei; / saí dele ainda tão fra-
ca! / Onde está meu caminho? (...).
(...) Onde em verdade há de estar / meu anjo da
guarda amigo? / Jesus! Não posso passar!
Talvez me vá destroçar / algum diabo inimigo. / Oh!
Os diabos de morte! / Em suas mãos vou cair!...
DIABO 2
Ergue-te, vamos, sê forte! / Apóia-te em meu supor-
te: / nenhum risco te há de vir.
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DIABO 3
Tu morreste! / De fato, o caminho é este, / que pro-
curavas à parte.
Eu não quero desviar-te: / já que comigo viestes, /
para Deus eu vou levar-te.
ALMA
Não irei: devorar-me-á / por aí o Boiuçú! (...)
DIABO 2
Tinha ele uns costumes verdes... / Os que detestam
a Deus, / É um dever de o reterdes.
pois nunca foi batizado / e prezava o antigo nome, /
como pagão abusado.
Pois seja precipitado / nesse fogo que consome.
ALMA
Eles mentem, os malditos: / o padre me batizou. /
Depus os vícios proscritos,
seguindo os sagrados ritos: / batizado, cristão sou!
(...)
(...)Tupansy, / lembra-te agora de mim! / Vem, que
me estão atacando!
Venha o anjo venerado / guardar-me deles aqui, / e
afugentar esse bando.
ANJO
Arredai / do protegido que vai! (...) / (...) Sou o seu
Anjo da Guarda! (...) / (...) Que vossa turma maldita
/ no fogo para sempre arda! / Temos todos esta di-
ta:
pela bondade infinita, / estarei sempre de guarda!
DIABO 1
Ai! Não quero contemplar / o seu arrogante rosto; /
vou voando do meu posto!
(ANCHIETA, 1977, p. 221-229)
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se diz batizada, “sou um cristão”. No entanto, o Diabo continua a ten-
ta-lo, uma vez que a alma indígena, assim como a Alma da obra vicen-
tina, é fraca e fácil de ser seduzida, tornando-se mais propícia de ser
arrastada para o Inferno. Entretanto, tanto na obra de Gil Vicente
quanto na de Anchieta, a alma consegue a salvação eterna, e o Diabo,
como sempre, é derrotado diante das forças divinas. No texto de An-
chieta, a alma é salva pela intervenção da Virgem que, além de man-
dar o Anjo em sua defesa, ainda humilha o Diabo esmagado-lhe a ca-
beça, metaforicamente, como se pode ler nos versos a seguir, con-
forme a fala do Diabo 3: “Aí, está a Mulher / que a cabeça nos esma-
ga:/ quer-nos a fronte romper, / te ao chão nos abater, / oprimir-nos
como praga. Sendo assim, é residual a representação metafórica da
Virgem esmagando a cabeça do Diabo ou da serpente do mal como
podemos encontrar na Bíblia:
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te passagem do texto:
SATANÁS
Maurício, crês tu em Deus? / Teus dizeres são sos
meus: / és um homem generoso!
Mas me parece também / que vieste da grã cidade /
Tebas, onde todos crêem
no bom Júpiter... pois bem, / adora sua divindade!
SÃO MAURÍCIO
Bom velhaco hás nomeado, / tirano, salteador, / so-
domita, matador,
dos homens o mais malvado, / de seu pai persegui-
dor, / adultero, fementido, / peste dos gentios ce-
gos!
SATANÁS
Eu o tenho lá nos pegos... / Mas, como ele é tão sa-
bido / nessas histórias dos Gregos! (...)
SÃO MAURÍCIO
Vade retro, Satanás, / que quem quer obedecer / a
Jesus, sumo saber,
nenhum só pecado faz / com que se possa ofender.
SATANÁS
Tomai-vos com os Tebeus! / Como tinha ele aguça-
da / essa terrível espada
que no livro de Mateus / seu Cristo deixou guarda-
da! (ANCHIETA, 1977, p. 298-300).
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E, senão quando, um dos que estavam com Jesus,
metendo mão à espada que trazia, a desembainou,
e, ferindo a um servo do sumo pontífice, lhe cortou
uma orelha. Então lhe disse Jesus: mete a tua espa-
da no seu lugar; porque todos os que tomarem es-
pada, morrerão à espada. (MATEUS 26, 51-52).
INGRATIDÃO
Arrenego de calvino, / de lutero e lúcifer! / Mofina
de ti, mulher,
que não fazes, de contino, / senão mil caldos a me-
xer (...) / Porque sou mãe de pecados
e não quero agradecer / quanto bem pode fazer /
Deus, com todos seus criados, / e tudo deixo esque-
cer. (...) / Venha cá algum escolar / lançar-me da
minha terra, / com seus santonhos louvar;
eu lhe darei tanta guerra / que o faça logo apildar
(...).
(...) Do meu leite que lhes dou, / vem serem desco-
nhecidos, / ingratos, descomedidos.
Eu sou a que sempre sou / mexedora de arruídos.
EMBAIXADOR
Dize-me, donde te criaste? / És tu satan, e contraste
/ para toda a santa fé?
INGRATIDÃO
Bem à mão! / Sou a velha ingratidão / que todo o
mundo cerquei,
toda a terra conquistei. / Sou mais antiga que adão,
/ que em Lúcifer comecei. / O meu trato
é fazer o mundo ingrato / às mercês que Deus lhe
faz, / e por ter comigo paz
se me vendem tão barato, / deixando seu deus atrás
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(...).
(...)Ouve! Saberás meu trato / e natural condição. /
A primeira emprenhidão
foi de Lúcifer ingrato, / a outra do velho adão (...).
(...) porque sempre hão de pecar / os homens, por
algum modo, / enquanto o mundo durar.
EMBAIXADOR
Valha-me Deus soberano! / Que serpe tão veneno-
sa! / Fora daqui, feia cousa! (...)
Vai-te, maldita raposa! / Pois contigo / nunca o povo
terá abrigo / destes santos entre nós! (ANCHIETA,
1977, p. 314-323)
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das forças do Bem; um Diabo híbrido, adaptado à fauna e às entida-
des más da terra Brasil; um Diabo feio, fedorento, astucioso, pecami-
noso, sedutor, ludibriador; um Diabo cômico, ridicularizado pelo riso;
um Diabo soberbo, imperioso e, ao mesmo tempo, fraco, insultado,
humilhado, excomungado, injuriado, galhofeiro. E ainda encontramos
a figura do Diabo ligada ao medo, ao Inferno e ao pecado da carne e
do mundo; um Diabo o qual permaneceu na mentalidade do povo
cristão medieval e que embarcou na mente daqueles que vieram fa-
zer história nas terras do Atlântico Sul, fixando-se assim, em nosso
país.
Referências
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