0% acharam este documento útil (0 voto)
8 visualizações17 páginas

Índice

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1/ 17

Índice

1. Introduçao........................................................................................................................1
2. O pluralismo jurídico moçambicano: uma abordagem histórica.....................................2
2.1. O regime de dominação e exploração colonial: o indigenato......................................2
2.2. A revolução socialista e a construção de uma justiça popular.....................................4
2.3. A economia neoliberal e a democracia. O fim dos tribunais populares, a criação dos
tribunais comunitários e o novo papel das Autoridades Tradicionais.....................................8
3. Conclusões.....................................................................................................................13
4. Referências bibliográficas..............................................................................................14

1
1. Introduçao
O presente trabalho, foi realizado no âmbito avaliativo, na cadeira de Direito e o Pensamento
Jurídico, com o estudo do tema, “O Pluralismo Jurídico Moçambicano: Uma Abordagem
Histórica”. O pluralismo jurídico é um facto decorrente da existência de dois ou mais
sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espacio-
temporal.

Segundo Araújo (2008), para o caso da realidade moçambicana, este é um facto caracterizado
pela existência de diversas ordens normativas que actuam no terreno, pelas complexas
interligações que se estabelecem entre as mesmas, bem como pelas várias estratégias que, ao
longo da história, o Estado moçambicano usou para integrar ou excluir a pluralidade.

No que tange a metodologia empregue no decorrer da elaboração do trabalho, este, teve como
base as pesquisas bibliográficas realizadas em livros, revistas e artigos científicos, que tenham
por conteúdo O Pluralismo Jurídico Moçambicano: Uma Abordagem Histórica. Segundo Gil
(1991, p.63), a pesquisa bibliográfica tem como objectivo conhecer e analisar as principais
contribuições teóricas existentes a partir de um determinado tema ou problema, procurando
expor a realidade estudada, suas características e princípios vinculados. Nesta ordem de ideias
importa apontar que o presente trabalho de pesquisa teve como base o artigo de Sara Araújo
(2008), O Pluralismo Jurídico em Moçambique. Uma Realidade em Movimento.

O trabalho hora elaborado contém em sua estrutura a introdução, o desenvolvimento do tema,


as conclusões, e as referências bibliográficas.

1
2. O pluralismo jurídico moçambicano: uma abordagem histórica
2.1. O regime de dominação e exploração colonial: o indigenato.
Segundo Araújo (2008, pp. 4-6), as relações entre os governos coloniais e as instituições e os
direitos africanos foram concebidas sob duas variantes principais: o governo directo e o
governo indirecto. Em regra, o primeiro é associado às colónias francesas, o segundo às
britânicas, o que nem sempre coincidiu com a realidade.

O governo directo pressupõe a existência de uma única ordem jurídica, assente nas leis da
Europa, não reconhecendo qualquer instituição ou direitos africanos. O domínio concretizava-
se num sistema colonial centralizado e hierárquico e na sujeição da maioria da população ao
regime do indigenato (indigénat), que definia as regras para os não cidadãos. Este regime
prévia que os indígenas pudessem obter o estatuto de assimilados, adquirindo, desse modo,
direitos de cidadania, mas o número dos que adquiriam esse estatuto permaneceu sempre
muito reduzido. O governo indirecto parte de uma concepção oposta à universalista,
assentando na diferenciação. Na base desta forma de governo esteve sempre a distinção entre
não nativos e nativos, cuidadosamente separados pelas ordens normativas e pelas instituições
a que estavam sujeitos: os primeiros ao direito civil da metrópole e às instituições da mesma;
os segundos aos direitos costumeiros e às autoridades tradicionais, ambos selectivamente
reconstituídos ou criados à medida das necessidades do poder colonial (ROBERTS, 1991).

Ainda que Portugal tenha estado presente em Moçambique desde o século XVI, só nos
últimos anos do século XIX veio a ocupar e administrar efectivamente o território. Como
afirma GENTILI (1998), o exemplo britânico fez escola, principalmente perante os sucessos
produtivos da Nigéria e da Costa do Ouro atribuídos à capacidade de visão política de
governo indirecto. O regime do indigenato, introduzido formalmente nos anos 1920, apesar da
designação, aproximava-se mais do sistema de governo indirecto, ainda que apresentasse
alguns traços assimilacionistas. Caracterizava-se pela divisão entre cidadãos e indígenas e
assentava em dois modelos administrativos e duas formas de direito.

As áreas dos colonos seguiam o modelo administrativo metropolitano, com concelhos e


freguesias; as áreas indígenas estavam divididas em regedorias ou chefaturas, supostamente a
reencarnação das tribos pré-coloniais, e eram administradas pelos chefes tradicionais aliados
do poder colonial – os régulos. A justiça espelhava a sociedade racial, oferecendo regimes
diferenciados a indígenas, sujeitos às leis costumeiras, administradas pelas autoridades
tradicionais, e a cidadãos e assimilados, sujeitos ao direito moderno e às instituições do
2
Estado de direito, (MENESES, 2005). Ainda que o direito indígena não tenha chegado a ser
codificado, estava subordinado à legislação específica estatal que visava compatibilizá-lo com
os interesses do Estado colonial capitalista, (ISAACMAN e ISAACMAN, 1982, p.3).

Segundo O’laughlin, (2000, pp. 11-12) as divisões estabelecidas pelos colonizadores


portugueses não assentaram apenas no que existia, implicando uma reconfiguração que
servisse os seus interesses. As chefaturas maiores, por exemplo, foram divididas, de modo a
serem menos ameaçadoras; os chefes menos dispostos a colaborar foram afastados ou mortos
e substituídos por outros mais maleáveis. Tal como nas outras colónias africanas, as
autoridades tradicionais procuravam equilibrar as exigências do governo colonial com a
necessidade de manter a legitimidade na comunidade (MOORE, 1992, pp. 11-46), assim,
em muitos casos encontravam formas de resistência passiva ou activa. No norte de
Moçambique, por exemplo, os régulos sabotaram uma plantação de algodão fervendo as
sementes antes se as plantarem. Outras formas de resistência passavam pela migração
colectiva ou por dar informação errada sobre a idade dos jovens para que escapassem do
exército colonial ou do trabalho forçado, (GONÇALVES, 2005, p. 66).

Segundo Isaacman e Isaacman (1982) os assimilados, uma pequena minoria de


moçambicanos (negros, asiáticos e mistos) – que sabiam ler e escrever em português,
abdicavam dos costumes tribais e tinham um emprego na economia capitalista – eram
cidadãos, ainda que com um estatuto inferior.

O código do Indigenato foi formalmente imposto em 1928, que sistematizava um conjunto de


normas anteriores que definiam a cidadania em relação ao trabalho forçado. A Lei do
Trabalho de 1899 articulou, pela primeira vez, a distinção entre cidadão e súbdito, não nativo
e nativo. Segundo O’laughlin (2000, p.13) a lei estabelecia que todos os nativos das
províncias ultramarinas portuguesas estão sujeitos à obrigação, moral e legal, de tentar obter
através de trabalho os meios de que necessitam para subsistir e melhorar as suas condições
sociais. Previa, ainda, que se tal não acontecesse, o governo tinha o direito de forçar os
nativos a prestar serviços quer ao governo, quer a privados. Havia poucos empregos
disponíveis com salários que atraíssem os africanos por sua livre vontade e só os que
possuíam terrenos grandes e férteis seriam considerados agricultores. Assim, a lei afectava a
maioria da população. Às autoridades tradicionais cabia o controlo da população e o
recrutamento para trabalho forçado daqueles que não tivessem a iniciativa de trabalhar ou que

3
não cumprissem a lei. Dessa forma, pôs-se fim ao debate sobre como as colónias
continuariam a ser desenvolvidas uma vez abolida a escravatura. A base de exploração
permanecia a coerção e as autoridades tradicionais desempenhariam um papel fundamental.
Estava estabelecida a divisão entre indígenas, sujeitos ao trabalho forçado, e não indígenas,
isentos daquele. O Estado Novo de Salazar intensificou e aperfeiçoou esta política,
nomeadamente com a Constituição de 1933, que incorporava o Acto Colonial. Este é, muitas
vezes, considerado o ponto de viragem, que marca o início de um Estado colonial.

Segundo Meneses, (2005) na década de 1960, com as pressões internacionais contra o


trabalho forçado e o movimento de independência das colónias africanas, Portugal, ao mesmo
tempo que transformou a designação colónias por províncias ultramarinas, aboliu
formalmente o regime do indigenato. Apesar de todos passarem a ser cidadãos portugueses e a
terem, em teoria, o direito de optar pela justiça civil, o dualismo manteve-se na prática, com a
continuação dos regulados e da obediência ao régulo e ao direito costumeiro. Isaacman, e

Isaacman (1982, p. 290) salientam que os moçambicanos continuaram a possuir cartões


de identidade diferentes, a ser banidos dos centros urbanos, sujeitos a abusos policiais e a
discriminação económica e social e até a trabalho forçado (ainda que o trabalho forçado tenha
sido abolido em 1961, a legislação permitia a coerção em situações de emergência).

Segundo José (2007, p. 13) apud Araújo (2008) a tardia e cosmética transformação dos
indígenas em cidadãos e a apropriação ideológica das teses do lusotropicalismo não foram
suficientes para disfarçar o regime de forte segregação que vigorava. E a metamorfose,
simplesmente, tornou os indígenas em cidadãos sem cidadania.

2.2. A revolução socialista e a construção de uma justiça popular


Segundo Araújo (2008, pp. 6-8), depois de uma luta armada de cerca de dez anos, conduzida
pela Frente de Libertação Nacional (FRELIMO), uma união de vários grupos de resistência ao
colonialismo, Moçambique tornou-se independente em 25 de Junho de 1975. A FRELIMO,
transformada em partido político, governou em regime de partido único até 1994, data das
primeiras eleições democráticas. Como a afirmam Sachs e Welch (1990, P. 1), ao contrário
de outros estados africanos independentes que optaram pela continuidade e pela menor
ruptura possível, a teoria era clara: desmantelar completamente o aparato do Estado colonial e
substitui-lo por um novo, desenhado para servir os interesses das massas populares. Ainda
durante a guerra de libertação nacional, largas zonas no norte de Moçambique dominadas pela

4
FRELIMO, as designadas zonas libertadas, tinham experimentado modelos de governo, que
deveriam ser expandidos para o restante país.

A expressão “escangalhamento do Estado”, usada, por exemplo, no Relatório do Comité


Central ao 3.º Congresso da FRELIMO, dá conta da ideia de destruição das estruturas do
passado. Dava (2003, p. 10) aponta que era necessário desenvolver uma cultura nacional,
construindo um país unido. No que diz respeito ao crescimento económico, acreditava-se que,
apoiando-se nas próprias forças e utilizando formas colectivas de produção, veriam a curto
prazo melhoradas as respectivas condições de vida. Por seu turno Trindade (2003, p. 104)

afirma que no âmbito da justiça, o sistema jurídico colonial era fascista, colonial e elitista e
tinha que ser transformado num sistema popular, moçambicano e democrático. Segundo o
art. 38.º. da Lei n.º 12/78, de 12 de Dezembro, A concretização dessa tarefa passava
pelo fim das autoridades e da justiça tradicionais e pela implementação de uma organização
judiciária que se estendesse a todas as circunscrições territoriais e promovesse a participação
popular.

Nas zonas libertadas, tinha sido já experimentado um modelo de justiça popular, que devia
substituir o papel das autoridades tradicionais e do direito costumeiro. Com base nessa
experiência, em 1978, foi aprovada a Lei Orgânica dos Tribunais Populares, que previa a
criação de tribunais populares em diferentes escalões territoriais. O Tribunal Popular Supremo
ocupava o topo da hierarquia e era seguido pelos tribunais populares provinciais, pelos
tribunais populares distritais e, finalmente, pelos tribunais populares de bairro ou localidade.
Em todos os escalões participavam, no exercício da actividade judicial, juízes eleitos, isto é,
juízes desprofissionalizados, eleitos pelas assembleias populares para exercerem funções
judiciais. Estes exerciam funções verdadeiramente jurisdicionais, intervindo, nos casos penais,
sobre matéria de facto e de direito. Na base da pirâmide, os tribunais populares de localidade
e de bairro funcionavam exclusivamente com juízes eleitos, que conheciam das infracções de
pequena gravidade e decidiam “de acordo com o bom senso e a justiça e tendo em conta os
princípios que presidem à construção da sociedade socialista”, ibid, sempre que não fosse
possível a reconciliação das partes. Os autores Trindade e Pedroso (2003, pp. 260-264)

dizem que a ideia era construir um sistema que, em vez de pressupor um dualismo entre um
direito estatal para a elite e outros direitos para a população, assentasse no princípio de um
sistema de direito único para toda a sociedade, do norte ao sul, do Rovuma ao Maputo. Os

5
autores definem o sistema como sendo simultaneamente indígena e anti-tradicional, baseado
em aspectos democráticos da tradição africana, mas transformando-os e rejeitando os
divisionismos. Citam, como esclarecedora, a frase de Samora Machel: “para a nação nascer, a
tribo deve morrer”, (SACHS e WELCH, 1990, P. 5).

Segundo Gundersen (1992 p. 259) o papel dos juízes eleitos era fundamental na
organização judiciária. Esperava-se que conhecessem os problemas da comunidade e as
pessoas. Os tribunais distritais e superiores aplicavam em larga medida o direito português,
cabendo aos juízes leigos garantir que o sentido de justiça popular era reflectido na prática dos
tribunais. Em casos de família, tornou-se prática comum, as partes colocarem o problema aos
juízes eleitos, antes de o apresentarem formalmente no tribunal. Com frequência, os casos
eram assim resolvidos por reconciliação, evitando o formalismo e a morosidade do tribunal.
Aos tribunais populares de base cabia um papel determinante na promoção do acesso à
justiça, na medida em que constituíam a instância judiciária mais próxima dos cidadãos. Os
procedimentos formalistas eram reduzidos ao mínimo. A participação da população, ainda que
relevante em todos os níveis da hierarquia do judiciário, era aqui ainda mais importante.

O governo moçambicano pretendia, assim, pôr fim à utilização do direito costumeiro,


opressivo e associado ao colonialismo e, em simultâneo, garantir instâncias sensíveis aos
cidadãos e às suas noções de justiça. A ideia de uma justiça de reconciliação e a forma de
resolução na base «do bom senso e da justiça» garantia o último objectivo. Ao mesmo tempo,
abria espaço à subsistência do direito costumeiro, que se interligava agora com os princípios
do novo Estado. Ainda que a Constituição devesse enquadrar a resolução de litígios, nem
sempre o direito do Estado prevalecia. Subsistiam, por exemplo, situações de discriminação
contra as mulheres, ainda que a Constituição previsse a igualdade de género e a emancipação
feminina. Isto não equivale a afirmar que a justiça popular tenha sido sempre mal sucedida na
transformação do direito costumeiro, mas sim a existência de espaços de interlegalidade, ibid.

Por vezes, o termo justiça informal foi usado para designar a justiça popular. A designação de
justiça informal é, contudo, inconsistente com a realidade da justiça popular moçambicana.
Como nota Aase Gundersen, o que muitas vezes foi designado por «informal» foram sistemas
de justiça com procedimentos diferentes dos tribunais formais de estilo ocidental. Ainda que
os tribunais populares usassem procedimentos informais, faziam parte do sistema formal de
justiça, divergindo das instâncias informais da comunidade, como a família e as igrejas.

6
Assim, os tribunais populares estão na fronteira entre o formal e o informal (Ibidem, pp.

260, 261).

Os tribunais populares de base deveriam substituir as autoridades tradicionais ao nível das


funções judiciais. Contudo, a estas cabiam, ainda, funções administrativas, que, na estrutura
estabelecida pelo Estado moçambicano, passariam a ser desempenhadas pelos Grupos
Dinamizadores (GDs). Logo no período de transição para a independência, que duraria entre
20 de Setembro de 1974 e 24 de Junho de 1975, a FRELIMO enfrentava os problemas da falta
de experiência organizativa em centros urbanos, bem como da não compreensão dos
objectivos do movimento por parte de operários e camponeses fora das zonas libertadas.
Foram assim formalizados os GDs, comités compostos por oito a doze pessoas, que passaram
a desempenhar um conjunto de tarefas. Para além de funções como a mobilização das
populações para a participação político-partidária, a segurança nacional, a organização de
processos de produção colectiva e a execução de programas de educação, foram-lhes
atribuídas inicialmente funções na área da justiça. Cabia-lhes difundir e explicar os novos
valores e as novas normas comportamentais e dirimir pequenos conflitos. Ainda que, logo
após o III Congresso da FRELIMO em 1977, e a criação dos tribunais populares em 1978, as
suas tarefas tenham sido reestruturadas e lhes tenha sido retirado o papel de resolução de
conflitos, fazia parte das suas funções “promover as relações de boa vizinhança entre os
moradores, e procurar a solução de pequenos conflitos, desde que estes não sejam da
competência do tribunal popular local”. Assim, no que diz respeito à justiça, o papel dos GDs
e dos tribunais populares de base tende, por vezes, a confundir-se, o que permanecerá uma
constante, mesmo quando, nos anos 1990, estes são substituídos pelos tribunais comunitários.

Apesar do esforço para lhes pôr fim, autoridades tradicionais não desapareceram, podendo
falar-se de situações de continuidade nas estruturas do poder rural entre o período colonial
tardio e a pós-independência. Alice Dinerman mostra que a criação de instituições
sancionadas pela FRELIMO, nem sempre significou a passagem de poder para fora das
autoridades tradicionais. Em alguns casos, os funcionários do governo local mantiveram a
aliança com as autoridades que haviam servido a administração colonial “em nome da ordem
social, do bem-estar, do desenvolvimento rural ou de uma combinação destes três factores”,
noutros as autoridades tradicionais desenvolveram estratégias de manutenção do controlo. A
autora analisa mais pormenorizadamente o caso de Namapa, distrito de Erati, província de
Nampula, argumentando que “os antigos régulos tiveram oportunidade de continuar a reinar

7
por outros meios”. Em Namapa, a FRELIMO manteve a divisão administrativa herdada,
mudando apenas o nome de regedoria para círculos. Além disso, a nova administração estatal
trabalhou com as antigas estruturas para configurar as novas. Durante vários anos, em todo o
distrito, os chefes arranjavam estratégias para colocar no poder familiares seus, de modo a
conseguirem manter o controlo. Mesmo quando eram colocadas no poder outras pessoas, nem
sempre se viravam contra o régulo. O próprio Estado veio a sentir necessidade de se apoiar
fortemente nos régulos, assumindo e reforçando a sua importância nas hierarquias locais. Na
segunda metade da década de 1980’, face à crise económica que o país enfrentava, na
província de Nampula, os régulos foram chamados a desempenhar o papel de “chefes de
produção”, voltando a actuar como controladores da economia camponesa, à imagem do que
era o seu papel no período colonial.

2.3. A economia neoliberal e a democracia. O fim dos tribunais populares,


a criação dos tribunais comunitários e o novo papel das Autoridades
Tradicionais
Perifraseando Araújo (2008, pp. 8-11) citando Francisco (2003, pp. 161, 162) aponta que
ainda na década de 1980, a FRELIMO vê-se obrigada a reconhecer o fracasso do seu
desempenho em termos económicos. Se os efeitos da guerra não podiam ser subestimados, era
impossível continuar a acreditar na estratégia económica socialista nos moldes que até então
vinha sendo conduzida. A tendência foi, então, aderir à ideologia que viria a tornar-se
dominante em termos globais: o neoliberalismo. Em 1984, o governo aderiu às Instituições de
Breton Woods, nomeadamente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional. Ao
novo modelo económico impunha-se um modelo político assente na democracia
representativa multipartidária. Em 1990 foi aprovada uma nova Constituição, que visava
adequar o quadro legal ao novo contexto económico e político, reconhecendo o fim da
República Popular e a substituição do sistema de economia centralmente planificada pela
economia de mercado. Em 1994, decorreram as primeiras eleições multipartidárias. É, pois,
neste contexto que os papéis atribuídos aos tribunais populares, nomeadamente aos de base, e
às autoridades tradicionais têm vindo a ser reconfigurados.

A Constituição de 1990 consagra os princípios da separação de poderes, da independência, da


imparcialidade, da irresponsabilidade e da legalidade, lançando bases para a produção de
alterações substanciais na organização judiciária. Assim, com a Lei Orgânica dos Tribunais
Judiciais, os juízes eleitos passam a intervir apenas nos julgamentos em primeira instância e
sobre matéria de facto (art. 10.º da Lei n.º 10/92 de 6 de Maio). Seguindo uma interpretação
8
restritiva da norma constitucional, segundo a qual (os tribunais decidem pleitos de acordo
com a lei), os tribunais de base foram excluídos da organização judiciária, passando os
tribunais distritais a funcionar como primeira instância. Ainda no mesmo ano foram criados,
por lei própria os tribunais comunitários, (TRINDADE e PEDROSO, op. cit, p. 264-266).

No preâmbulo da lei dos tribunais comunitários pode ler-se que as experiências recolhidas por
uma justiça de tipo comunitário no país apontam para a necessidade da sua valorização e
aprofundamento, tendo em conta a diversidade étnica e cultural da sociedade moçambicana.
Assim, considerou-se necessária a criação de órgãos que permitam aos cidadãos resolver
pequenos diferendos no seio da comunidade, contribuam para a harmonização das diversas
práticas e para o enriquecimento das regras, usos e costumes e conduzam à síntese criadora do
direito moçambicano. A lei prevê que os TCs deliberem sobre pequenos conflitos de natureza
civil, conflitos que resultem de uniões constituídas segundo os usos e costumes e delitos de
pequena gravidade, que não sejam passíveis de penas de prisão e se ajustem a medidas
definidas na lei (art. 3.º). Prevê, ainda, que os tribunais procurem, em primeiro lugar, a
reconciliação das partes e, em caso de insucesso, julguem de acordo com «a equidade, o bom
senso e a justiça» (art. 2.º). A regulamentação destes tribunais está por fazer até hoje.

No que diz respeito às autoridades tradicionais, foi anunciado no ponto anterior que opção
política de as abolir veio a constituir um problema para o governo, que para além de não
dispor de recursos para criar, de raiz, novas estruturas político-administrativas, quando as
constituía, estas não eram automaticamente aceites pela população. A verdade, como foi
referido, é que as ATs mantiveram, em grande medida, a sua legitimidade, trabalhando muitas
vezes em conjunto com os tribunais populares e até com os grupos dinamizadores e
encontrando na oposição da RENAMO uma alternativa à recuperação do seu prestígio. O
novo quadro democrático e multipartidário abria agora espaço à descentralização do Estado,
sendo no âmbito desse processo pouco pacífico, de avanços e recuos, que se rediscute o papel
a atribuir às ATs.

Segundo Fernandes (2006) a nível nacional, a urgência desta discussão passou não só pela
necessidade de reconhecimento de práticas locais que nunca deixaram de existir, mas
também, pela preocupação do partido FRELIMO, num contexto de aproximação de eleições
multipartidárias, com a importância das autoridades tradicionais no controlo social e político
das populações. Assim, nos primeiros anos da década de 1990, o Núcleo de Desenvolvimento
Administrativo (NDA) do Ministério da Administração Estatal deu inicio à elaboração de um
9
conjunto de estudos sobre o papel que efectivamente as autoridades tradicionais
desempenhavam no país e reconheceu que «dentro das diferenças que existem de região para
região, a autoridade tradicional está presente e é importante em todo o território nacional»,
(ALFANE, 1996).

A institucionalização e o reconhecimento formal das autoridades tradicionais ocorreram com


a Lei 3/94, de 13 de Setembro, o primeiro diploma legal em matéria de descentralização, que
atribuía um papel às autoridades tradicionais no processo de consulta e tomada de decisões
locais e no arbítrio de conflitos e questões relacionadas com o uso da terra. No entanto, nas
primeiras eleições multipartidárias ocorridas no mês de Outubro de 1994, ainda que se tenham
reunido as condições de pacificação e democratização necessárias para proceder ao processo
de descentralização do país, os bons resultados obtidos pela RENAMO fizeram a FRELIMO
sentir-se ameaçada no que toca à sua hegemonia ao nível local. Esta situação, associada a
divergências entre a FRELIMO e a RENAMO sobre o teor da legislação, acabou por conduzir
à substituição da Lei 3/94, pela Lei n.º 2/97, de 18 de Fevereiro, que limita a participação das
autoridades tradicionais e a sujeita a regulamentação ministerial. O debate das ATs foi
reintroduzido com a discussão em torno da Lei de Terras, onde surgiu a expressão «líderes
locais» e se lhes atribuiu um papel de intervenção na gestão dos recursos naturais, na
resolução de conflitos, no processo de titulação e na identificação das terras ocupadas e a
ocupar.

KAPUR, (1998), afirma que os condicionantes internacionais mostravam-se favoráveis ao


fortalecimento das autoridades tradicionais, bem como dos tribunais comunitários. As receitas
dos Planos de Reestruturação Económica, aplicadas em vários países «em desenvolvimento»
vieram a ser reconsideradas na década de 1990’. Ainda que os programas de ajustamento
estrutural tenham levado a uma certa estabilização económica, não promoveram crescimento,
tiveram um impacto social negativo e, consequentemente, um impacto político ao afectar a
legitimidade dos governos africanos. Assim, o Banco Mundial foi obrigado a reformular a
filosofia dos seus programas, incorporando uma dimensão social na sua intervenção,
articulando os Programas de Ajustamento Estrutural com o objectivo do combate à pobreza e
colocando o ênfase na democracia e na boa governação. É neste contexto que surge o
interesse pela descentralização, que aos olhos do Banco Mundial possibilita uma maior
eficiência da distribuição de recursos ao nível local. O relatório de 1997 do Banco Mundial
(1997 World Development Report. The state in a changing world) constituiu um marco

10
fundamental na mudança de política, ao aceitar que o Estado é central para o desenvolvimento
económico, social e sustentável. A revigoração da capacidade institucional é tida como
fundamental e um dos meios da sua realização é a aproximação do Estado aos cidadãos por
via de uma maior participação e da descentralização.

O Poverty Reduction Strategic Paper (PRSP), cuja subscrição, nos anos 1990, constituiu, para
um alargado conjunto de países, condição fundamental para manter o financiamento do Banco
Mundial e do FMI, enfatiza a necessidade dos países da África Austral procederem a um
processo de descentralização por meio da gestão comunitária dos recursos humanos, do
reforço institucional dos governos locais e do reconhecimento das autoridades tradicionais.
Segundo José (2006, p. 2) a versão Moçambicana desse documento é o Plano de Acção para
a Redução da Pobreza Absoluta, 2001- 2005 (PARPA). As políticas que define para
promover a «boa governação» incluem, entre outras, a descentralização e a devolução da
administração pública a níveis próximos da população, bem como o reforço da capacidade e
eficiência do sistema legal e judicial. No que diz respeito à justiça, o documento defende,
ainda, entre outras ideias, a consolidação e expansão dos Tribunais Comunitários.

É neste quadro nacional e internacional que se assiste a alguns desenvolvimentos no âmbito


do reconhecimento das autoridades tradicionais e se começa a trabalhar na regulamentação
dos tribunais comunitários. Assim, em 2000 foi aprovado o Decreto 15/2000 que estabelece as
formas de articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades comunitárias. Não é,
contudo, atribuído qualquer papel de primazia às autoridades tradicionais, uma vez que a lei
define que «para os efeitos do presente decreto são autoridades comunitárias os chefes
tradicionais, os secretários de bairro ou de aldeia e outros líderes legitimados como tais pelas
respectivas comunidades locais» (art. 1.º). Esta tendência para diluir as autoridades
tradicionais entre as outras vem-se manifestando desde a promulgação da Lei de Terras. Se a
Lei 3/94 definia autoridade tradicional como «autoridades reconhecidas como tais pelas
comunidades» (Lei 3/94), a Lei de Terras já menciona «líderes locais», definindo-os como
«aqueles que são respeitados por todos» (Lei de Terras). Estas formulações indiciam a
existência de algo mais do que a incapacidade do governo em determinar com rigor o
conteúdo desse conceito. Existem intenções não assumidas, que passarão por «manter uma
abertura ao preenchimento do conceito com recurso a figuras que, à partida, não caberiam
numa definição restrita de autoridade tradicional, como é o caso dos secretários de bairro e
chefes de quarteirão», bem como pela tentativa de «capitalizar as virtualidades

11
administrativas das autoridades tradicionais e, ao mesmo tempo controlar a ‘força centrífuga’
que se reconhece nelas». Como nota Santos (2006, ), o n.º 2 do artigo 3.º do decreto 15/2000
sublinha bem o carácter instrumental do reconhecimento das autoridades tradicionais, ao
afirmar que a articulação entre estas e os órgãos locais decorre das «necessidades de serviço».
[ibid] O mesmo autor, não deixa de mencionar que «simetricamente, as autoridades
tradicionais pretendem instrumentalizar o apoio do Estado para consolidar o seu próprio
controlo político sobre as comunidades».

O Plano Estratégico Integrado do Sector da Justiça para os anos 2002 – 2006, estabelece
como prioritária a revisão da organização judiciária, a revisão e regulamentação da lei dos
tribunais comunitários e a institucionalização de um novo sistema de acesso à justiça e ao
direito. Foi nesse sentido que a Unidade Técnica de Reforma Legal (UTREL) solicitou, em
2003, ao Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ) a revisão da seguinte legislação: Lei
Orgânica dos Tribunais Judiciais; Lei dos Tribunais Comunitários; Lei que criou o Instituto
do Patrocínio e Assistência Jurídica e Decreto que aprovou o respectivo Estatuto Orgânico a
Lei n.º 6/94, de 13 de Janeiro e Decreto n.º 54/95, de 13 de Dezembro.

Ainda antes desse trabalho estar concluído, a revisão Constitucional de 2004 constituiu um
incentivo a propostas mais ousadas no âmbito do reconhecimento das várias ordens
normativas, estabelecendo que «o Estado reconhece os vários sistemas normativos que
coexistem na sociedade, na medida em que não contrariem os valores e os princípios
fundamentais da Constituição».

12
3. Conclusões

Terminado o presente trabalho, percebe-se que de facto existe pluralismo jurídico em


Moçambique, este que teve o seu início nos últimos anos do século XIX sob a forma de
governo indirecto estabelecido pelo regime colonial. O governo indirecto parte da concepção
oposta à universalista, assentando na diferenciação. Na base desta forma de governo esteve
sempre a distinção entre não nativos e nativos, cuidadosamente separados pelas ordens
normativas e pelas instituições a que estavam sujeitos: os primeiros ao direito civil da
metrópole e às instituições da mesma; os segundos aos direitos costumeiros e às autoridades
tradicionais, ambos selectivamente reconstituídos ou criados à medida das necessidades do
poder colonial.

Percebe-se que na história de Moçambique, consta: o regime moçambicano do indigenato e a


justiça dualista; a revolução socialista e a construção da justiça popular; a construção da
economia neoliberal e da democracia multipartidária.

13
4. Referências bibliográficas

ALFANE, Rufino. (1996). Autoridade Tradicional em Moçambique. Educação Cívica na


sociedade tradicional. Maputo: MAE.

ARAÚJO, Sara e JOSÉ, André. (2007). Pluralismo jurídico, legitimidade e acesso à justiça.
Instâncias comunitárias de resolução de conflitos no Bairro de Inhagoia «B» ― Maputo.
Coimbra: Oficina do CES, n.º 284.

ARAÚJO, Sara. (2008). Pluralismo Jurídico em Moçambique. Uma Realidade em


Movimento. Revista Sociologia Jurídica – Issn: 1809-2721, Número 06 – Janeiro/Junho 2008,
Coímbra.

DAVA, Fernando et, al. (2003). Reconhecimento das autoridades tradicionais à luz do
decreto 15/2000 (o caso do grupo etnolinguístico ndau). Maputo: ARPAC.

FERNANDES, Tiago Matos. (2006) .Processo de Descentralização em Moçambique:


unidade do Estado e desenvolvimento local no contexto do pluralismo administrativo. Estudo
de caso no município da ilha de Moçambique. Dissertação de Mestrado, ISCTE, 2006.

FRANCISCO, António Alberto da Silva. (2003). Reestruturação económica e


desenvolvimento. In: Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em
Moçambique. Porto: Afrontamento.

GENTILI, Anna Maria. (1998). O leão e o caçador. Uma história da África sub-sahariana
dos séculos XIX e XX.Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique.

GIL, António Carlos. (1991). Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 3ª Edição, São Paulo -
Editora Atlas.

GONÇALVES, Euclides. (2005). Finding the Chiefs: political decentralisation and


traditional authority in Mocumbi, Southern Mozambique. Africa Insight, Vol. 35, n.º 3.

14
GUNDERSEN, Aase. (1992). Popular Justice in Mozambique: Betwen State Law and Folk
Law». Social & Legal Studies, Vol. 1.

ISAACMAN, A e ISAACMAN, B. (1982). A socialist system in the Making: Mozambique


before and after independence. In: Comparative Studies, vol. 2. San Francisco: Academic
Press.

JOSÉ, André. (2005). Autoridades ardilosas e democracia em Moçambique. O Cabo dos


Trabalhos. Revista electrónica dos Programas de Mestrado e Doutoramento do
CES/FEUC/FLUC. n.º 1.

KAPUR, Devesh. (1998).The State in a Changing World: A Critique of the 1997 World
Development Report. Weatherhead Center for International Affairs.

Lei n.º 10/92 de 6 de Maio

Lei n.º 12/78, de 12 de Dezembro.

MENESES, Maria Paula. (2005). Traditional Authorities in Mozambique: Between


Legitimisation and Legitimacy. Coimbra: Oficina do CES.

MOORE, Sally Falk, (1992).

O’LAUGHLIN, Briget. (2000). Class and the customary: the ambiguous legacy of the
indigenato in Mozambique. African Affairs, n.º 99.

ROBERTS, Richard e MANN, Kristin. (1991). Law in Colonial Africa; Law in Colonial
Africa. Portsmouth, NH: Heinemann Educational Books.

SACHS, Albie; WELCH, Gita Honwana. (1990). Liberatins The Law. Creating Popular
Justice in Mozambique. London e New Jersey: Zed Books.

SANTOS, Boaventura de Sousa. (2006).The Heterogeneous State and Legal Pluralism in


Mozambique. Law & Society Review, vol. 40.

TRINDADE, João Carlos e PEDROSO, João. (2003). A caracterização do sistema judicial e


do ensino e formação jurídica. In: Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das
Justiças em Moçambique. Porto: Afrontamento.

15
TRINDADE, João Carlos. (2003). Rupturas e continuidades nos processos políticos e
jurídicos. In: Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique;
Porto: Afrontamento.

16

Você também pode gostar