Murilo Mendes Lido Pelos Italianos
Murilo Mendes Lido Pelos Italianos
Murilo Mendes Lido Pelos Italianos
Os três textos que abrem a fortuna crítica italiana de Murilo Mendes foram
publicados entre o final de 1957 e o início de 1959.
Murilo Mendes, um dos cinco ou seis poetas brasileiros de maior relevo e de fama internacional,
vive há um ano na Itália, encarregado pelo governo de seu país de ministrar curso de Literatura Brasileira
na Universidade de Roma. Com paciente e juvenil entusiasmo, apesar de seus cinquenta e seis anos,
Mendes aprendeu com os textos de nossos escritores mais jovens e convivendo com as pessoas a decifrar
e a falar o italiano do dia-a-dia, sem esquecer contudo o italiano de Petrarca e de Leopardi que há muito
tempo conhecia e apreciava. “Não vi e nem me encontrei com escritores italianos que gostaria muito de
conhecer. E não o fiz porque antes queria saber falar italiano”, me disse Mendes (...).1
1
Il Contemporaneo, 12-10-1957.
2
Seriam suficientes seus poemas sobre a guerra, sobre os horrores da guerra (...) de Poesia
libertade (sic), de 1947 para defini-lo na sua mais profunda substância. As outras definições, como a de
“poeta católico”, devida a sua adesão ao catolicismo e ao livro que escreveu com Jorge de Lima, Tempo e
eternidade (1935), que tinha como subtítulo “Restauremos a poesia em Cristo”, não passam de definições
parciais, incompletas, tanto em relação a sua obra poética precedente, livre, irônica e irreverente (Poemas,
1920 e História do Brasil, 1932), quanto ao lirismo e complexidade de suas visões e imagens surrealistas
do período 1941-45 (Poesia em Pânico, As metamorfoses e Mundo enigma).
Nesse artigo de 1957 se anuncia não só um poeta, maduro e com obra extensa
como surge também o crítico de arte, ou o poeta-crítico, que é apresentado como recém-
egresso de um encontro de críticos de arte realizado na cidade de Nápoles. 3
2
A conquista do espaço pelo homem é tema dominante na Itália nesse momento, tema associado
inexoravelmente à ideia de progresso técnico infinito que irá dividir intelectuais e homens de partidos
políticos, durante muitos anos. Italo Calvino, por exemplo, defenderá veementemente que o sentido
progressista do evento só existirá se for acompanhado pela complementar expansão da consciência crítica
do homem, posição muito semelhante a de Murilo Mendes. Ver a respeito Bucciantini, 2007.
3
Trata-se do Congresso Internacional dos Críticos de Arte, realizado em outubro de 1957, em Nápoles,
pela Associação Internacional dos Críticos de Arte (AICA).
3
A abertura do artigo é muito sugestiva. Diz ele que a Itália desconhece o Brasil,
culpa logo em seguida atribuída aos italianos. Contudo, continua Chiocchio, é preciso
levar em conta que é um “país novo”, e enquanto tal não possui ainda uma crítica
literária, mas somente um conjunto de opiniões (muito diversas entre si, o que confunde
o comentador estrangeiro). Essas afirmações, evidentemente, dizem muito mais sobre a
compreensão do mundo literário do articulista, no que se refere a culturas em contato, do
que sobre a poesia muriliana. Passado o desânimo inicial – espécie de desabafo –,
Chiocchio indica suas fontes: Rossi - provavelmente Giuseppe Carlo Rossi - como fonte
primeira; em seguida, Mário de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Freitas Júnior e Sérgio
Milliet.
O conjunto das citações lhe serve para descrever o modo particular de Murilo
Mendes ser poeta universal (isto é, europeu) sendo intrinsicamente brasileiro. Utiliza-se
da classificação dos poetas brasileiros inventada por Rossi, que os subdivide em dois
grandes conjuntos: o primeiro, daqueles que sentem a necessidade de se opor à pressão
exercida pela Europa sobre a cultura brasileira, da qual fazem parte os poetas
românticos; o segundo, dos que não sentem tal necessidade. Murilo é colocado entre os
do segundo grupo.
4
“La poesia di Murilo Mendes”, Nuova Antologia fasc.1885 genn.1958 Roma, p.109-12.
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5
“La poesia in Brasil: Murilo Mendes”, Firenze Rivista di letterature moderne e comparate v. 12 n.1
marzo 1959, p.36-52(trad. bras. Alexandre Eulálio, Revista do Livro Rio de Janeiro:INL n.16 dez.1959).
5
A expressão aponta para uma depuração dos excessos: o que era trasbordante, da
biografia e dos resultados do Modernismo da fase heróica, teria sido desbastado,
tosqueado. Os gestos largos e inconsequentes registrados pela biografia do poeta que lhe
6
6
Escritor, crítico literário, dramaturgo, diretor e teórico de teatro Ruggero Jacobbi (1920-1981) manteve
duradouras relações com a cultura brasileira. Chegou ao Brasil com 26 anos, integrando o grupo de
profissionais italianos de teatro, convidados a patrocinar a modernização da cena brasileira, tendo vivido
no país por quatorze anos. (Raulino, 2002)
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mas de um catolicismo propenso ao abismo, ao apocalipse, aos extremos. O que, por um lado (no
ângulo mais privado da obra), se manifesta como obsessão do pecado, insurgência contínua de satanismo
fúnebre; por outro, ao contrário, como límpida invocação de um mundo melhor, do triunfo da dignidade
humana, da transformação das estruturas sociais. No evangelismo messiânico da lírica mendesiana
podemos encontrar eco daquela catequese jesuítica da América Latina que produziu frutos também
práticos, como a famosa república comunitária do Paraguai.
As duas palavras que aqui se opõem - pecado e evangelização - são colocadas em uma
espécie de escala hierárquica de maior ou menor evidência na obra muriliana: a “obsessão do
pecado” é a parte pessoal, sendo mais luminosa a esperança no “triunfo da dignidade humana”,
mantendo-se, portanto, dentro da esfera doutrinária tradicional do catolicismo. Em seguida surge
a associação – e não será esta a única vez – com a experiência das missões jesuíticas
setecentistas entre os índios guaranis no Paraguai como empreendimento revolucionário
fracassado da Igreja Católica.
Surpreendente em si, tal associação nos revela alguns dos princípios norteadores de certa
crítica, às voltas, consciente ou inconscientemente, com as discussões seculares sobre ser
possível ou não uma civilização nos trópicos – o valor da literatura e seus autores como extensão
da mesma questão –, opondo o Velho e o Novo Mundo, defendido por europeus ilustrados.
7
Il Messagero, 5- 07-1960.
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Volto a pensar sobre essas coisas enquanto Murilo fala de sua vontade de paz e conciliação entre
os homens, enquanto sua mulher, Maria da Saudade (ela também poeta e tradutora de Eliot) se informa
sobre as últimas notícias do Brasil. Ismael Nery, Jorge [de Lima], Bernanos estão mortos, mas a voz de
Murilo é bem viva. O sinal de sua desesperada paixão ética se faz sentir e se espalha pelo mundo atual.
Na aclimatação ao universo literário italiano o que Murilo diz, o que pensa não passará
em branco, muito pelo contrário: entre auto-imagens e imagens vai-se preparando o poeta
libertário que receberá o importante prêmio Etna-Taormina em 1972. Mas esse caminho inclui a
tessitura de outra imagem paralela, a do poeta europeu, já anunciada anteriormente por Stegagno
Picchio e que aqui ressurge nas perguntas formuladas por Jacobbi: “O que este poeta poderá
dizer à Europa? E o que a Europa poderá inspirar a seu canto?“
Murilo, portanto, antes no Rio, numa natural evolução, e depois na Europa, por evidentes reflexos
de um mundo histórico e cultural mais rico de memórias e menos instintivo, foi aos poucos descobrindo -
sem se trair ou se renegar - um classicismo incomum.
terá sugerido um modo de ser visto e de ser lido – é crítico de si mesmo –, em contraste
com as interpretações consagradas e na contramão delas. Tanto Stegagno-Picchio como
Jacobbi procuram frisar a distância que o Murilo atual mantém em relação ao primeiro
Murilo – o dos poemas-piada, irreverente, modernista de primeira-hora –, substituindo-o
por um poeta mais severo, mais clássico – o qual, se por um lado só é fiel à própria
procura da poesia (que é sempre revelação) e à construção de uma poética própria
(Stegagno-Picchio), por outro é um humanista identificado com certa esquerda católica
(Jacobbi).
Oreste Macrì, Carlo Bo e Ruggero Jacobbi – ao lado de outros – são nomes que
definem um universo crítico preciso: o da crítica e da teoria da poesia hermética, da
poesia lírica moderna.
Murilo Mendes pode ser incorporado pelos poetas e críticos que giram ao redor
do grupo de Florença por ter sido identificado com os pressupostos – espírito religioso
como fé, ideologia e poética – presentes tanto em Jacobbi, em Macrì e no grupo.
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Mendes (...) é um caso muito particular de poeta católico (de educação semítica) artisticamente
empenhado contra as monstruosas antinomias do mundo contemporâneo das quais se faz continente
representativo, intérprete e espectador imparcial e impertubável. Parece uma contradição entre o empenho
paulino de convertido e a imparcialidade do intelectual de fundo europeu; de fato, esta é a condição que
Mendes impôs a si mesmo no seu trabalho de quatro décadas: qualificar no mundo da graça paulina o
mundo do número, da quantidade, da mecânica industrial, do capitalismo, do nazismo, da bomba atômica.
Trata-se de uma experiência cristã agônica e de conflagração, distante tanto de Papini (ao qual já foi
aproximado), quanto de Unamuno (a quem se aproxima na antinomia com o liberalismo). Em suma, não
teme o Inimigo e o faz operar radicalmente em todos seus traços temporais e espaciais da matéria e do
pecado original.
Seria possível pensar a um novo ímpeto místico romântico, no qual o poeta reserva para a poesia
a função de ‘conhecimento’ e de ‘transfiguração da condição humana’. De fato, a maior ambição dessa
poesia é uma espécie de modernização técnico-expressiva do exemplo dos grandes poetas visionários:
Dante, Hölderlin, Rimbaud, Fernando Pessoa. Modernização que implica em um tratamento especial –
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“Murilo Mendes poeta brasiliano”, La Nazione, 1-03-1962; Ruggero Jacobbi – Oreste Macrí. Lettere
1941-1981, Roma, Bulzoni Editore, 1993, p.169-172.
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Neste artigo não foram ainda citados dois elementos fundamentais da recepção italiana de Murilo
Mendes: a publicação do livro Siciliana em 1959 e o prefácio ao livro, escrito por Ungaretti. Embora a
importância do poeta italiano como divulgador da poesia brasileira na Itália seja inconteste - e Macrì frisa
essa presença - o texto que abre Siciliana nos fala mais a respeito da poética ungarettiana e da sua visão
do Brasil do que proprimente enfrenta a poesia de Murilo como faz Macrì.
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Mendes está no centro daquela inteligência católica européia e portanto planetária, que já nos
anos da belle époque entre as duas guerras pressentiu, corajosamente e contra duas frentes, os signos
premonitórios do apocalipse bélico e pós-bélico, os signos positivos e negativos da futura
‘universalidade’, da ‘planetização’ dos fatos e das ideias, sobre o que o poeta discorre na sua
autobiografia. Com uma carga emotiva, ameaçadora, subterrânea das fés populares...
Bibliografia citada
BUCCIANTINI, M., 2007. Italo Calvino e la scienza. Gli alfabeti del mondo. Roma:
Donzelli.
RAULINO, B., 2002. Presença italiana no teatro brasileiro. São Paulo: Editora
Perspectiva.
JACOBBI, R., 1960. Lirici brasiliani dal modernismo ad oggi. Milano:Silva Editore/
Centro Europa-Americalatina del Collumbianum.