Murilo Mendes Lido Pelos Italianos

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MURILO MENDES LIDO PELOS ITALIANOS

Maria Betânia Amoroso

Os três textos que abrem a fortuna crítica italiana de Murilo Mendes foram
publicados entre o final de 1957 e o início de 1959.

O primeiro a escrever é Dario Puccini estudioso, crítico, tradutor e professor de


literatura hispano-americana em Roma. Coube a Puccini apresentar pela primeira vez o
brasileiro recém-chegado. Mesclando informações biográficas, descrição de traços
físicos e comentários críticos, dá eco à voz do poeta, este sim o verdadeiro autor das
ideias que informam o texto, aquele que escolhe o que apresentar como característica
marcante de sua poesia.

Murilo Mendes, um dos cinco ou seis poetas brasileiros de maior relevo e de fama internacional,
vive há um ano na Itália, encarregado pelo governo de seu país de ministrar curso de Literatura Brasileira
na Universidade de Roma. Com paciente e juvenil entusiasmo, apesar de seus cinquenta e seis anos,
Mendes aprendeu com os textos de nossos escritores mais jovens e convivendo com as pessoas a decifrar
e a falar o italiano do dia-a-dia, sem esquecer contudo o italiano de Petrarca e de Leopardi que há muito
tempo conhecia e apreciava. “Não vi e nem me encontrei com escritores italianos que gostaria muito de
conhecer. E não o fiz porque antes queria saber falar italiano”, me disse Mendes (...).1

Pela pena de Puccini, Murilo procurará, nesse primeiro momento, livrar-se de


dois estigmas provavelmente excessivamente pesados e até então alimentados por parte
da crítica brasileira: o de poeta católico e o de sua poesia como irreverente e irônica,
definição devedora aos poemas publicados na década de 1930, nos livros Poemas e
História do Brasil principalmente.

1
Il Contemporaneo, 12-10-1957.
2

Seriam suficientes seus poemas sobre a guerra, sobre os horrores da guerra (...) de Poesia
libertade (sic), de 1947 para defini-lo na sua mais profunda substância. As outras definições, como a de
“poeta católico”, devida a sua adesão ao catolicismo e ao livro que escreveu com Jorge de Lima, Tempo e
eternidade (1935), que tinha como subtítulo “Restauremos a poesia em Cristo”, não passam de definições
parciais, incompletas, tanto em relação a sua obra poética precedente, livre, irônica e irreverente (Poemas,
1920 e História do Brasil, 1932), quanto ao lirismo e complexidade de suas visões e imagens surrealistas
do período 1941-45 (Poesia em Pânico, As metamorfoses e Mundo enigma).

Uma visão de mundo mais complexa do que a pressuposta nos poemas-piadas;


uma poesia moderna cujas imagens guardam intimidade com o surrealismo: esta é a
produção poética escolhida para apresentá-lo ao público italiano, mais presente nos
livros Poesia em pânico, As metamorfoses e Mundo enigma, publicada entre 1936 e
1945. Contra qualquer relação que se venha a estabelecer entre ser católico e ser
conservador, antigo, Murilo lança as frases citadas, na sequência no artigo, por Puccini:
“Eu sou primeiro homem e poeta, depois católico!”, acompanhada por outra, prova da
sua contemporaneidade e da sua preocupação com o futuro da humanidade: “a
maravilhosa notícia de hoje, a do satélite artificial”2.

Nesse artigo de 1957 se anuncia não só um poeta, maduro e com obra extensa
como surge também o crítico de arte, ou o poeta-crítico, que é apresentado como recém-
egresso de um encontro de críticos de arte realizado na cidade de Nápoles. 3

O segundo texto a ser aqui comentado é de autoria de Anton Angelo Chiocchio,


publicado três meses depois do texto de Puccini.Quando Murilo chega a Roma,
Chiocchio já é um nome que circula nos meios ligados à divulgação da literatura e
cultura brasileiras, atuando junto à Embaixada do Brasil – a qual, em 1959, reconhece-o
como divulgador cultural, concedendo-lhe a Ordem do Cruzeiro do Sul. Através da sua
figura dá-se a ver o universo, a coxia talvez, da divulgação da literatura na Itália, com
personagens em contato constante com a embaixada, à procura de verbas para traduções,

2
A conquista do espaço pelo homem é tema dominante na Itália nesse momento, tema associado
inexoravelmente à ideia de progresso técnico infinito que irá dividir intelectuais e homens de partidos
políticos, durante muitos anos. Italo Calvino, por exemplo, defenderá veementemente que o sentido
progressista do evento só existirá se for acompanhado pela complementar expansão da consciência crítica
do homem, posição muito semelhante a de Murilo Mendes. Ver a respeito Bucciantini, 2007.
3
Trata-se do Congresso Internacional dos Críticos de Arte, realizado em outubro de 1957, em Nápoles,
pela Associação Internacional dos Críticos de Arte (AICA).
3

sempre próximos de revistas literárias e comitês de prêmios, definindo um território


menos visível, mas mesmo assim muito importante para a melhor compreensão da
circulação das críticas.

O artigo publicado em janeiro de 19584, anunciando a chegada do poeta mineiro,


propõe dois argumentos que enunciam sua compreensão da poesia de Murilo: é contrário
à vinculação do poeta aos simbolistas e ao surrealismo, sem que haja maiores
esclarecimentos. O segundo argumento, porém, reitera o que já estava presente em
Puccini: a forte recusa em ser classificado como poeta católico.

Apresentando-se como um destruidor de idola, é Chiocchio desta vez quem


encarna a voz do poeta, preocupadíssismo em se desvincular das amarras anteriores
impostas ao poeta pela crítica de seu país, enxergando na nova vida a possibilidade de
novas leituras.

A abertura do artigo é muito sugestiva. Diz ele que a Itália desconhece o Brasil,
culpa logo em seguida atribuída aos italianos. Contudo, continua Chiocchio, é preciso
levar em conta que é um “país novo”, e enquanto tal não possui ainda uma crítica
literária, mas somente um conjunto de opiniões (muito diversas entre si, o que confunde
o comentador estrangeiro). Essas afirmações, evidentemente, dizem muito mais sobre a
compreensão do mundo literário do articulista, no que se refere a culturas em contato, do
que sobre a poesia muriliana. Passado o desânimo inicial – espécie de desabafo –,
Chiocchio indica suas fontes: Rossi - provavelmente Giuseppe Carlo Rossi - como fonte
primeira; em seguida, Mário de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Freitas Júnior e Sérgio
Milliet.

O conjunto das citações lhe serve para descrever o modo particular de Murilo
Mendes ser poeta universal (isto é, europeu) sendo intrinsicamente brasileiro. Utiliza-se
da classificação dos poetas brasileiros inventada por Rossi, que os subdivide em dois
grandes conjuntos: o primeiro, daqueles que sentem a necessidade de se opor à pressão
exercida pela Europa sobre a cultura brasileira, da qual fazem parte os poetas
românticos; o segundo, dos que não sentem tal necessidade. Murilo é colocado entre os
do segundo grupo.

4
“La poesia di Murilo Mendes”, Nuova Antologia fasc.1885 genn.1958 Roma, p.109-12.
4

O conhecido ensaio de Mário de Andrade “Poesia em 30”, texto que inaugura um


dos olhares críticos mais persistentes sobre a obra poética de Murilo Mendes, surge para
realçar a particularidade do que é local nessa poesia, distanciando-a assim da expressão
mais acanhada desse localismo, o regionalismo. Entretanto, o próprio “carioquismo” de
Murilo, que havia sido anteriormente apresentado como merecedor de um futuro estudo
por parte de Chiocchio, aparece ambiguamente censurado por revelar os mesmos traços
do regionalismo provinciano. A bravata anunciada pelo crítico se desfaz sem algum
resultado.

Nessa nova oportunidade de apresentação do poeta brasileiro por uma revista


italiana, volta-se à questão que parece incomodar tanto Murilo, a da classificação no
final da década de 50, de sua poesia como a de um poeta católico. A veemente recusa do
epíteto “poeta católico” desencadeia a busca de explicações para essa equivocada e
perseverante interpretação, segundo Chiocchio. E então surgem os dados biográficos.
Foram provavelmente fornecidos pelo próprio poeta, e serão explorados
incansavelmente pelos interlocutores italianos (e por Murilo) ao longo dos anos. As
“experiências marxistas” como parte da juventude “tempestuosa e irreverente”, seguidas
pela conversão ao catolicismo (e surge o nome de Ismael Nery) em 1934 e a publicação,
no ano seguinte, de Tempo e Eternidade, junto com Jorge de Lima. Seriam esses os
elementos que, transformados em dogmas, definiram a recepção de Murilo no Brasil,
segundo Chiocchio, e que o poeta procura evitar que se repita na Itália. Para isso,
interessa frisar é que essa fora uma fase, superada, e o poeta e o católico não se
confundiram jamais.

Neste momento inaugural da recepção italiana de Murilo Mendes, o ensaio de


Luciana Stegagno Picchio de 1959 é dos mais importantes: partindo de pressupostos
semelhantes, presentes nos textos críticos de Puccini e Chiocchio, possui acentuado
caráter de estudo, ao mesmo tempo se apresentando como contraponto às leituras da
crítica brasileira e ambicionando marcar a fortuna crítica do poeta. Reavalia o que já fora
dito e pretende orientar o que virá a ser comentado sobre a produção poética muriliana
escrita em território italiano a partir de então.5

5
“La poesia in Brasil: Murilo Mendes”, Firenze Rivista di letterature moderne e comparate v. 12 n.1
marzo 1959, p.36-52(trad. bras. Alexandre Eulálio, Revista do Livro Rio de Janeiro:INL n.16 dez.1959).
5

O terreno comum dessa primeira crítica parece já estar constituído. Parte do


pressuposto da cristalização alcançada ao longo dos anos - que vão de 1930, data
publicação dos poemas de Poesias, a 1946-1948 quando Discípulos de Emaús e Poesia
Liberdade são criados e publicados. O alvo privilegiado é o já citado artigo de Mário de
Andrade, tido como em grande parte responsável pela estigmatização do poeta como
modernista e católico. Como nos outros dois críticos, mas de modo muito mais efetivo e
propositivo, os esforços empreendidos por Stegagno-Picchio parecem ter o claro intuito
de desfazer equívocos que tais denominações teriam causado, impedindo uma desejada
compreensão, mais livre, mais ampla, da poética e da poesia murilianas. Mais uma vez,
porém, é possível perceber a voz do poeta por detrás das palavras dos críticos, fonte
mais consultada para obtenção de subsídios sobre a crítica brasileira em relação à poesia,
estando ele próprio interessado em se desvencilhar de possíveis estigmas críticos.

Tratava-se, portanto, de dissociar – como numa cruzada, aliás, nesse primeiro


momento – a imagem de Murilo Mendes e de sua poesia da qualificação “católica” mas
também negar que fosse tributária dos pressupostos teóricos do modernismo paulista de
1922, por sua vez apresentado como já superado, academizado e que seria substituído
pelos poetas da geração de 45 e pelos “novos” poetas, mais capazes de aquilatar a
importância de Murilo para a contemporaneidade do que Mário de Andrade, que
escreveu sobre o poeta em outro momento, historicamente datado. Os poemas-piada, o
neorromantismo implícito nas posições nacionalistas do grupo, o intelectualismo que
acompanha a ironia dos versos modernistas, o surrealismo como vertente formadora da
estética são os tópicos afrontados por Stegagno-Picchio para limpar o terreno
interpretativo e lançar sua hipótese: a obra de Murilo não suportaria classificações
porque está sempre à procura de uma melhor realização poética que seja a mais completa
síntese de suas buscas enquanto poeta; nasce assim, segundo a autora, a expressão capaz
de definir a “unidade” em Murilo, devedora da associação entre vida e obra, sempre de
tão forte presença, síntese tanto da poesia e da poética como também da personalidade:
elegância-equilíbrio.

A expressão aponta para uma depuração dos excessos: o que era trasbordante, da
biografia e dos resultados do Modernismo da fase heróica, teria sido desbastado,
tosqueado. Os gestos largos e inconsequentes registrados pela biografia do poeta que lhe
6

renderam a adjetivação de “surrealista” são associados às circunstâncias, afastando-se


qualquer caráter mais estruturante.

São deixados de lado aqueles episódios anedóticos da “história da vida” que


compuseram sempre a biografia de Murilo, o qual sai deles como o poeta que vive por
ações e gestos poéticos, em geral sendo isso identificado com ações que afrontam o
senso comum e o bom comportamento das sociedades burguesas: abrir guarda-chuva no
Municipal do Rio, em protesto a uma péssima execução musical; pelas janelas de uma
sala, recomendar a audição de Mozart para o bairro que o circundava no Rio de Janeiro;
o telegrama enviado a Hitler em protesto contra o nazismo, por exemplo; do catolicismo
muriliano é recortado o jansenismo, tributário dessa mesma visão de primeira hora do
modernismo dos anos 20, e que, na verdade, não caracterizaria as relações do poeta com
a fé. E não é pouca a importância dada por Stegagno-Picchio a esse ponto, já que escolhe
Discípulo de Emaús como livro central do qual fazer partir a análise para um Murilo que
se configura como “futuro” em relação ao Murilo “passado”, determinado pela crítica
feita no Brasil. Será lido não só como um livro de princípios religiosos, mas
fundamentalmente como revelador de uma poética.

Outro nome de grande importância na construção da fortuna crítica italiana de Murilo


Mendes é o de Ruggero Jacobbi e com ele há uma espécie de retorno à dimensão religiosa, mas
em chave diversa.6

Ao definir divisões na poética muriliana, Jacobbi explicitará clareza os caminhos de sua


reflexão sobre o poeta brasileiro: a conversão ao catolicismo era central, sendo os livros
publicados entre 1929 e 1945 divididos entre “poesia anterior à conversão” e “poesia da
conversão religiosa e da guerra”. Embora o último bloco de poemas, escritos a partir de 1946,
sejam reunidos como “poemas de restauração da forma, do retorno a Minas e da residência na
Europa”, parece que a leitura jacobbiana que predominará, e que irá se repetir em outros
momentos da permanência de Murilo Mendes na Itália é a que associa Murilo Mendes a certo
catolicismo de esquerda. (Jacobbi, 1960)

6
Escritor, crítico literário, dramaturgo, diretor e teórico de teatro Ruggero Jacobbi (1920-1981) manteve
duradouras relações com a cultura brasileira. Chegou ao Brasil com 26 anos, integrando o grupo de
profissionais italianos de teatro, convidados a patrocinar a modernização da cena brasileira, tendo vivido
no país por quatorze anos. (Raulino, 2002)
7

Em seu primeiro texto, intitulado “Arte e humanidade do brasileiro de Roma”7, as


‘particularidades formais’ da poesia aparecem associadas a “uma posição psicológica e filosófica
das mais complexas, isto é, voluntariamente nutrida por contradições”, maneira que Jacobbi
encontra para introduzir o catolicismo especial, contraditório, de Murilo Mendes, posto lado a
lado com o de outros católicos ilustres – Ismael Nery, Bernanos e Jorge de Lima. Murilo
apresentando como um poeta católico,

mas de um catolicismo propenso ao abismo, ao apocalipse, aos extremos. O que, por um lado (no
ângulo mais privado da obra), se manifesta como obsessão do pecado, insurgência contínua de satanismo
fúnebre; por outro, ao contrário, como límpida invocação de um mundo melhor, do triunfo da dignidade
humana, da transformação das estruturas sociais. No evangelismo messiânico da lírica mendesiana
podemos encontrar eco daquela catequese jesuítica da América Latina que produziu frutos também
práticos, como a famosa república comunitária do Paraguai.

As duas palavras que aqui se opõem - pecado e evangelização - são colocadas em uma
espécie de escala hierárquica de maior ou menor evidência na obra muriliana: a “obsessão do
pecado” é a parte pessoal, sendo mais luminosa a esperança no “triunfo da dignidade humana”,
mantendo-se, portanto, dentro da esfera doutrinária tradicional do catolicismo. Em seguida surge
a associação – e não será esta a única vez – com a experiência das missões jesuíticas
setecentistas entre os índios guaranis no Paraguai como empreendimento revolucionário
fracassado da Igreja Católica.

Surpreendente em si, tal associação nos revela alguns dos princípios norteadores de certa
crítica, às voltas, consciente ou inconscientemente, com as discussões seculares sobre ser
possível ou não uma civilização nos trópicos – o valor da literatura e seus autores como extensão
da mesma questão –, opondo o Velho e o Novo Mundo, defendido por europeus ilustrados.

As palavras escolhidas por Jacobbi para apresentar Murilo, associando-o às atividades


evangelizadoras dos jesuítas na América Latina, deixam transparecer o que em seus textos
futuros será confirmado: o que move o olhar do crítico é o lugar possível de ser ocupado pelo
poeta brasileiro – importante, sem dúvida, mas vindo de uma tradição quase ou nada conhecida,
de um país por definição periférico, econômica e culturalmente, no quadro literário europeu e
italiano. Pesa-lhe, por um lado, saber que nem a língua nem a literatura brasileiras servem-lhe de
apoio para fazer notar o poeta estrangeiro; entretanto, o messianismo que encontra na poesia de

7
Il Messagero, 5- 07-1960.
8

Murilo Mendes confirma-lhe convicções pessoais, literárias, religiosas, políticas, já postas à


prova na sua estadia no Brasil, mostrando-lhe um caminho a seguir nessa espécie de missão ética
que unifica a voz do poeta à do crítico.

Na sequência do mesmo artigo, Jacobbi escreve:

Volto a pensar sobre essas coisas enquanto Murilo fala de sua vontade de paz e conciliação entre
os homens, enquanto sua mulher, Maria da Saudade (ela também poeta e tradutora de Eliot) se informa
sobre as últimas notícias do Brasil. Ismael Nery, Jorge [de Lima], Bernanos estão mortos, mas a voz de
Murilo é bem viva. O sinal de sua desesperada paixão ética se faz sentir e se espalha pelo mundo atual.

Na aclimatação ao universo literário italiano o que Murilo diz, o que pensa não passará
em branco, muito pelo contrário: entre auto-imagens e imagens vai-se preparando o poeta
libertário que receberá o importante prêmio Etna-Taormina em 1972. Mas esse caminho inclui a
tessitura de outra imagem paralela, a do poeta europeu, já anunciada anteriormente por Stegagno
Picchio e que aqui ressurge nas perguntas formuladas por Jacobbi: “O que este poeta poderá
dizer à Europa? E o que a Europa poderá inspirar a seu canto?“

O contato direto de Murilo Mendes com os países europeus, em viagens realizadas a


partir de 1952, passa a valer como elemento desencadeador de alterações da poética, sugerindo
portanto estarmos diante de uma poesia de circunstância ou de viagem, apontando para o
abandono da primeira poesia mais modernista ou instintiva por outra mais clássica, alimentada
pela vivência europeia:

Murilo, portanto, antes no Rio, numa natural evolução, e depois na Europa, por evidentes reflexos
de um mundo histórico e cultural mais rico de memórias e menos instintivo, foi aos poucos descobrindo -
sem se trair ou se renegar - um classicismo incomum.

A aproximação de Jacobbi a Stegagno-Picchio torna perceptível em ambos, nesse


momento, o esforço em definir algumas fronteiras na obra e na vida de Murilo que sejam
capazes de inaugurar uma fase europeia para o poeta. Nos dois casos – mas também no
de Chiocchio e de Puccini –, a contribuição do próprio Murilo Mendes não é
desprezível. Nas conversas que o poeta manteve com os críticos e amigos com certeza
9

terá sugerido um modo de ser visto e de ser lido – é crítico de si mesmo –, em contraste
com as interpretações consagradas e na contramão delas. Tanto Stegagno-Picchio como
Jacobbi procuram frisar a distância que o Murilo atual mantém em relação ao primeiro
Murilo – o dos poemas-piada, irreverente, modernista de primeira-hora –, substituindo-o
por um poeta mais severo, mais clássico – o qual, se por um lado só é fiel à própria
procura da poesia (que é sempre revelação) e à construção de uma poética própria
(Stegagno-Picchio), por outro é um humanista identificado com certa esquerda católica
(Jacobbi).

Há ainda um último grupo de leitores especializados, e de peso, a ser


considerado.

A coletânea de poemas organizada por Jacobbi Liricos brasileiros despertará a


atenção de um leitor especial, o crítico Oreste Macrì, professor de Literatura e Língua
Espanhola da Faculdade do Magistério, em Florença, a partir de 1954. Ao seu redor
reuniram-se poetas e críticos. Foram extremamente ativos, organizando revistas,
reunindo-se em grupos, escrevendo para jornais e revistas, na divulgação daquilo que
hoje chamaríamos de uma perspectiva comparatista da literatura.

Oreste Macrì, Carlo Bo e Ruggero Jacobbi – ao lado de outros – são nomes que
definem um universo crítico preciso: o da crítica e da teoria da poesia hermética, da
poesia lírica moderna.

O elo que vincula críticos e poetas é a poesia moderna e o catolicismo, ou o


espiritualismo encontrado a partir do catolicismo entendido como parte integrante do
grande projeto civilizatório do Ocidente. Na verdade, é tamanha a crença no poder
regenerador, renovador da poesia – a poesia pura por excelência, da alta tradição
moderna europeia – que é possível ver nessa crítica também um princípio de fé, que
unifica poesia e ética em defesa de grandes valores, entrevistos e propagados pela
intensa discussão das formas da tradição da poesia, pelo menos até o momento das
guerras.

Murilo Mendes pode ser incorporado pelos poetas e críticos que giram ao redor
do grupo de Florença por ter sido identificado com os pressupostos – espírito religioso
como fé, ideologia e poética – presentes tanto em Jacobbi, em Macrì e no grupo.
10

Uma das sínteses mais representativas dessa incorporação do poeta brasileiro ao


grupo dos poetas católicos europeus foi escrita por Macrì em 19628. Ao mesmo tempo
que constrói uma pequena genealogia da fortuna da poesia brasileira na Itália9, escreve
sobre a poesia de Murilo Mendes. Diz Macrì:

Mendes (...) é um caso muito particular de poeta católico (de educação semítica) artisticamente
empenhado contra as monstruosas antinomias do mundo contemporâneo das quais se faz continente
representativo, intérprete e espectador imparcial e impertubável. Parece uma contradição entre o empenho
paulino de convertido e a imparcialidade do intelectual de fundo europeu; de fato, esta é a condição que
Mendes impôs a si mesmo no seu trabalho de quatro décadas: qualificar no mundo da graça paulina o
mundo do número, da quantidade, da mecânica industrial, do capitalismo, do nazismo, da bomba atômica.
Trata-se de uma experiência cristã agônica e de conflagração, distante tanto de Papini (ao qual já foi
aproximado), quanto de Unamuno (a quem se aproxima na antinomia com o liberalismo). Em suma, não
teme o Inimigo e o faz operar radicalmente em todos seus traços temporais e espaciais da matéria e do
pecado original.

Macrì será um dos primeiros críticos a frisar a importância de se reconhecer um


lugar especial para a leitura de certos textos religiosos ao se falar da poesia muriliana:
São Paulo e São João, Mastro Eckhart, os teólogos beneditinos, Jorge de Lima, o
ideólogo-artista Ismael Nery e os colaboradores da revista Esprit. Ao lado disso,
ressalta a qualidade e valor da poesia muriliana aproximando de outros poetas
reconhecidamente ímpares.

Seria possível pensar a um novo ímpeto místico romântico, no qual o poeta reserva para a poesia
a função de ‘conhecimento’ e de ‘transfiguração da condição humana’. De fato, a maior ambição dessa
poesia é uma espécie de modernização técnico-expressiva do exemplo dos grandes poetas visionários:
Dante, Hölderlin, Rimbaud, Fernando Pessoa. Modernização que implica em um tratamento especial –

8
“Murilo Mendes poeta brasiliano”, La Nazione, 1-03-1962; Ruggero Jacobbi – Oreste Macrí. Lettere
1941-1981, Roma, Bulzoni Editore, 1993, p.169-172.

9
Neste artigo não foram ainda citados dois elementos fundamentais da recepção italiana de Murilo
Mendes: a publicação do livro Siciliana em 1959 e o prefácio ao livro, escrito por Ungaretti. Embora a
importância do poeta italiano como divulgador da poesia brasileira na Itália seja inconteste - e Macrì frisa
essa presença - o texto que abre Siciliana nos fala mais a respeito da poética ungarettiana e da sua visão
do Brasil do que proprimente enfrenta a poesia de Murilo como faz Macrì.
11

digamos cubista-surrealista-expressionista em sentido lato – dos universais míticos e simbólicos das


Sagradas Escrituras e dos clássicos da teologia e da literatura espiritualista ocidental, no plano de um
‘primitivismo da era atômica’.

Esse reconhecimento por parte de Macrì o induz a incluir Murilo Mendes no


quadro maior da cultura européia e, ao mesmo tempo, consolida a filiação do poeta ao
catolicismo de alta estirpe que se confunde com a própria noção de “ocidente”.

Mendes está no centro daquela inteligência católica européia e portanto planetária, que já nos
anos da belle époque entre as duas guerras pressentiu, corajosamente e contra duas frentes, os signos
premonitórios do apocalipse bélico e pós-bélico, os signos positivos e negativos da futura
‘universalidade’, da ‘planetização’ dos fatos e das ideias, sobre o que o poeta discorre na sua
autobiografia. Com uma carga emotiva, ameaçadora, subterrânea das fés populares...

Com esse artigo de Macrì encerra-se o que vem se denominando o momento


inaugural da fortuna muriliana na Itália. Sua importância está, sem dúvida, em ter
nomeado os passos dados pela crítica italiana em relação à poesia feita no Brasil, mas no
caso da poesia de Murilo Mendes, o que torna o artigo de particular interesse é a enfática
reivindicação dessa poesia como pertencente à tradição do pensamento católico
ocidental. Portanto com Macrì a questão que surgira entre jornalistas, comentaristas e
críticos, em particular no momento da primeiríssima recepção do poeta, é invertida: se
Chiocchio, Puccini e Stegagno-Picchio não pouparam esforços para desvincular o poeta
de seu estigmatizante catolicismo, se Jacobbi associa-o á uma esquerda militante, o que
justamente mais chama a atenção de Macrì é encontrar Murilo “no centro daquela
inteligência católica européia e portanto planetária”.

Palavras conclusivas que transpiram ainda a confiança em um projeto, que está,


por exemplo, também em Auerbach, vive seus últimos estertores, o da ocidentalização
do mundo através da literatura.
12

Bibliografia citada

BUCCIANTINI, M., 2007. Italo Calvino e la scienza. Gli alfabeti del mondo. Roma:
Donzelli.

RAULINO, B., 2002. Presença italiana no teatro brasileiro. São Paulo: Editora
Perspectiva.

JACOBBI, R., 1960. Lirici brasiliani dal modernismo ad oggi. Milano:Silva Editore/
Centro Europa-Americalatina del Collumbianum.

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