Teoria Narrativista Direito
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Relatório Final
Período da bolsa: de (08/2017) a (07/2018)
Este projeto foi desenvolvido com bolsa de iniciação científica
PIBIC/COPES
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................ 3
2. OBJETIVOS: ................................................................................................ 6
3. METODOLOGIA: ....................................................................................... 7
5 CONCLUSÃO: ........................................................................................... 26
6 PERSPECTIVAS: ...................................................................................... 27
7 REFERÊNCIAS: ........................................................................................ 28
1. INTRODUÇÃO
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O texto segue a classificação que André Trindade e Gubert (2008, p. 48-49) abordam em seu texto.
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Ou Law and Literature Movement, movimento articulado a fim de pensar o direito, com a literatura, além do
positivismo ou formalismo jurídico.
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Cabe ressaltar, no entanto, que esta postura de Tobias diz respeito a uma crítica ao jusnaturalismo.
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direito uma dimensão cultural que, ao longo da história, foi esquecida – ou recalcada –, a
fim de que a ele possa ser restituído o importante papel de ator da transformação social”.
É propriamente essa dimensão cultural o elemento fundamental para o estudo do
Direito e Literatura. A literatura, como expõe Antonio Candido (2011, p. 177), “confirma o
homem em sua humanidade” e, sob o foco deste trabalho, apresenta-se de maneira
indispensável4 à reflexão jurídica, uma vez que fornece chaves para compreender a
realidade jurídica e pensar o outro de uma maneira humanizada, como afirma o próprio
autor citado: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que
nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”
(CANDIDO, 2011, p. 182). Além desse caráter de humanização, a literatura torna os
leitores pessoas mais críticas, despregadas do senso comum jurídico, que castra, amputa
possibilidades interpretativas do jurista, na medida em que opera com um conjunto de pré-
conceitos, crenças, estereótipos (ANDRÉ E GUBERT, 2008, p. 15-16).
2. OBJETIVOS:
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A literatura, em sentido amplo, é uma necessidade universal, na medida em que conduz o espírito humano a
se organizar e, em seguida, a organizar o mundo. Ela humaniza (Candido, 2011, p. 188).
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cujo ponto fulcral, no crônica Mineirinho, gira em torno da noção dos direitos humanos, a
partir do discurso garantista; ao passo que, no romance A maçã no escuro, identificou-se
como a busca de sentido está presente tanto no direito quanto na literatura.
Outro fim do presente trabalho foi explorar aportes epistemológicos na relação
entre o discurso jurídico e a estética literária na obra de Clarice Lispector ampliando o
espaço conceitual dos fundamentos do direito. Em outras palavras, visou-se ampliar a
noção de direito, indo além de um discurso que delimita o direito a um conjunto ordenado
de normas jurídicas e da dicotomia permitido/proibido, de modo a evidenciar como a
narrativa está presente no direito, isto é, objetivou-se caracterizar o direito como
linguagem.
Ao longo do presente projeto, ao contextualizar a utilização da literatura como
fonte de reflexão para o direito e a sua utilização a partir de uma discussão metodológica e
teórica, buscou-se estabelecer estratégias de utilização da literatura no ensino jurídico, as
quais restaram-se evidenciadas na contemporaneidade. Ou seja, buscou-se romper e
demonstrar a insuficiência de um ensino restrito à dogmática.
3. METODOLOGIA:
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4. RESULTADOS E DISCUSSÃO:
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José Miranda Rosa, conhecido por Mineirinho, alto, moreno e franzido, no dia 1º
de maio de 1962, foi morto pela polícia, alvo de diversos disparos, dentre os quais 13 foram
certeiros. Mineirinho era um fugitivo: ele havia escapado do Manicômio Judiciário e jurado
nunca mais voltar ao cárcere para cumprir a pena de 104 anos (ROSENBAUM, 2010, p.
170), e inevitavelmente entrou em conflito com a polícia. Não eram apenas 4, 5 policiais,
eram 100 policiais, todos armados de metralhadora e com a ordem de captura-lo de
“qualquer maneira” (WEGUELIN, 2018). À época, assim os jornais noticiaram esse
acontecimento, revelando a perplexidade, opiniões destoantes e a cena dantesca:
Com uma oração de santo antonio no bolso e um recorte sobre seu último
tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, “Mineirinho”, foi
encontrado morto no sítio da serra, na estrada Grajaú-Jacarepaguá, com
três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço
esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que
estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada.
(WEGUELIN, s. d. diário Carioca, 1º de maio de 1962).
Não foi a justiça quem decretou a morte do mais temível assaltante do Rio
de Janeiro, conhecido pela alcunha de “Mineirinho”, ele próprio a
procurou, desafiando a tranquilidade pública e um aparelhamento policial
cujas metralhadoras sabia não lhe dariam trégua. Carregando 104 anos de
prisão, o facínora ainda brincou pelas ruas e favelas da cidade durante
dias, assaltando e baleando – que estas eram sua razão de viver.
(WEGUELIN, s. d. Correio da manhã, 1º de maio de 1962).
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Retomando o tema do jus puniendi, cumpre destacar que muito embora algo
semelhante os ingleses houvessem pensado de há muito, uma grande questão jurídica e
política que se impôs na Europa do século XVIII, em especial na França do Ancien
Régime5, era a seguinte: até que ponto o Estado está autorizado ou legitimado a intervir na
vida do cidadão. Quer dizer, havia uma tensão entre dois polos: de um lado, o Estado
absolutista; do outro, a sociedade civil. Atrevendo-se com suas penas, Cesare Beccaria, em
1764, publica sua obra prima, Dos delitos e das penas, na qual propõe um modelo racional
de Estado pautado no humanismo. Nessa obra, ele pensa em como limitar o poder punitivo
do Estado, razão pela qual sugere uma série de princípios, designados por Bittencourt
(2012) de “princípios limitadores do poder punitivo estatal”. Por isso, Beccaria (1999, p.
28) arremata “[...] todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da
absoluta necessidade é tirânico”. Em uma palavra: o Estado deve agir somente e quando for
imprescindível para proteger o repositório público.
No texto intitulado Algumas Ideias sobre o Chamado Fundamento do Direito de
Punir, cuja publicação se deu em 1881, Tobias Barreto (2013, p. 230) assevera que “O
direito de punir é um conceito científico [...] da imposição de penas aos criminosos, aos que
perturbam e ofendem, por seus atos, a ordem social”. Esta noção é sustentada como uma
necessidade da própria sociedade devido ao seu desenvolvimento. Por isso, criticando o que
ele designa de metafísica retórica”,6 Tobias (2013, p. 232) afirma que o direito de punir tem
“[...] um princípio histórico, isto é, um primeiro momento na série evolucional do
sentimento que se transforma em ideia, e do fato que se transforma em direito”.
Por sua vez, de 1939 a 1943, Clarice estudou na Faculdade Nacional de Direito,
movida pelo desejo de mudar o sistema penitenciário – embora tenha afirmado,
5
Era um modelo de Estado (absolutista), bem como de sociedade, na França, cujo período de existência é
rompido com a Revolução Francesa de 1789 (Bobbio, 1998, p. 30).
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Ou “o velho racionalismo jurídico”, doutrina segundo a qual o direito precede à própria experiência.
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posteriormente, que o curso de Direito não lhe serviu em nada, nem para discutir sobre
direito autoral com os editores (cf. GOTLIB, 1995). Não obstante tenha se desiludido com a
ciência jurídica, a futura escritora tinha preocupações intelectuais atinente ao ser humano e,
em 1941, publica o seu primeiro artigo – Observações sobre o direito de punir –, no qual
põe em discussão a sociedade e as instituições estatais, que será importante para sua
narrativa:
7
Conforme Rosenbaum (2010, p. 174), “do alívio de segurança com o primeiro tiro à morte do outro (e de
si) no décimo terceiro, observa-se uma inversão absoluta e crucial: de sujeito protegido pela lei, a narradora se
torna o outro perseguido pela mesma lei, dobradiça de duas faces antagônicas”.
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Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com
um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto
desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o
oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo
minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de
Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me
assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro
(LISPECTOR, 2016, p. 387).
Em outras palavras, o décimo terceiro tiro desmoronara a casa onde ela dormitava:
sacudiu-lhe. Portanto, a justiça falhou, a coletividade falhou. Não houve punição, mas sim
uma execução cruel – a exteriorização de uma espécie de vingança, desforra institucional
contra não somente o indivíduo Mineirinho, como também contra a humanidade. Como diz
Beccaria (1999, p. 29, grifo do autor), “[...] é abuso e não justiça, é fato, mas não direito”.
Logo, estritamente não há que se falar em jus puniendi dada as circunstâncias nas quais o
ato fora praticado: os treze tiros expressam a negação do reconhecimento, da humanidade, e
assim escapa a uma noção plausível de punição operada pelo Estado ou por seus aparelhos
de repressão.
travou algumas ideias com um jurista conservador, Carl Schmitt. A noção de Estado
Moderno, por exemplo, fora objeto de discussões entre esses pensadores, inclusive,
segundo Derrida (2007), o jurista alemão enviou uma carta felicitando Benjamin pelo texto
de 1921.
Carl Schmitt constrói a doutrina do decisionismo, para a qual o soberano é quem
estabelece o Estado de Exceção – ele age para restaurar a estabilidade social, não estando
limitado pelas leis. Outro ponto fulcral na obra desse autor orbita em sua teoria material da
constituição. O constitucionalista Bonavides (2017, p. 104) tece o seguinte comentário
sobre essa questão: “A Constituição possui assim sentido político absoluto, não podendo
sua essência ficar contida numa lei ou numa norma”, diferenciando-a de Lei Constitucional.
Aquela tem um caráter político preponderante, resultado de uma decisão política
fundamental.
O que importa refletir, pois, sobre o pensamento benjaminiano à luz do texto de
Clarice diz respeito às funções do poder, quais sejam: a função mantenedora, a qual
objetiva manter o status quo, e a função instituinte, cujo fim é a instituição de um novo
direito. Portanto, essa crítica empreendida pelo filósofo alemão concebe a violência
enquanto meio para ora manter ora instituir o direito8, condições das quais curiosamente o
aparato policial se emancipou.
Desse modo, a polícia, instituição típica do Estado moderno, apresenta-se numa
relação em que o poder instituinte e o poder mantenedor do direito se mantêm suspensos.
Em outras palavras, os fins da polícia não são sempre idênticos aos do direito, uma vez que
a polícia intervém em inúmeros casos sem qualquer referência aos fins jurídicos. Ora, “o
‘direito’ da polícia é o ponto em que o Estado - ou por impotência ou devido às inter-
relações imanentes a qualquer ordem judiciária - não pode mais garantir, através da ordem
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No fim do supracitado ensaio, ele estabelece uma semelhança entre poder instituinte e o poder mítico, de
modo a entender aquele como violência imediata, e não enquanto meio.
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jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço” (BENJAMIN, 1986, p.
166). O que significa, por conseguinte, que o monopólio da violência pelo Estado não é
para almejar a proteção da vida nem dos fins jurídicos (legítimos), mas para se manter, para
manter o direito por ele instituído.
Nessa esteira, Mineirinho, por ter desafiado a ordem, o direito instituído, e por
uma questão de segurança pública, foi alvo da violência operada pela polícia que, mesmo
(ou em razão disso) sem referência aos fins legítimos do direito, deliberadamente o executa
para fortalecer o direito. Eis a ambiguidade do próprio direito.
Essa discussão e crítica empreendida por Benjamin atinge veemente a ordem jurídica ou a
institucionalização do direito, uma vez que “a institucionalização do direito é institucionalização do
poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência” (BENJAMIN, 1986, p.
172). Quer dizer, a instauração de uma ordem jurídica se opera por meio da violência. À esteira
dessa concepção, a preocupação primordial da ordem jurídica não é quanto à forma de atingir os
fins jurídicos, mas sim em como manter e proteger o direito instituído. Enfim, a função do poder-
violência na institucionalização do direito é dupla:
2016, p. 388). Assim, entende a escritora que se alguém mata outrem é porque este tem
medo. Desse modo, em sua última entrevista concedida à imprensa (TV Cultura) em janeiro
de 1977, diz ela, em um dado momento da conversa, “Eu me transformei no Mineirinho,
massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto
era vontade de matar. Era prepotência” (LISPECTOR, 2017). O ato da polícia,
evidentemente, caracteriza-se como prepotente, termo este que, etimologicamente, “É o que
vem antes da potentia, antes do poder, antes da força, isto é, o ‘abuso’ da potência, o abuso
do poder, o abuso da força. Por isso, a prepotência não é só poder, influência, mas sim
despotismo, tirania, uma ação ‘pré-poder’, isto é, ‘antes do poder’” (RAMOS, 2015, grifo
da autora).
Essa transformação do eu (Clarice) no outro (Mineirinho) ocorre pela ideia de
compaixão, isto é, um afeto de compromisso, algo que do outro afeta ao eu, indo a uma
direção coletiva – de construção de uma justiça social (CALVO GONZÁLEZ, 2016). É
dizer: Clarice faz um exercício de empatia, uma vez que, como ela mesma expressa, eu me
transformei em Mineirinho. Empatia no sentido de experiência estética, isto é, “A
reprodução das manifestações corpóreas alheias (devida ao instinto de imitação)
reproduziria em nós mesmos as emoções que costumam acompanhá-las, colocando-nos
assim no estado emotivo da pessoa a quem essas manifestações pertencem”
(ABBAGNANO, 2007). Daí a força e carga emotiva das palavras empregadas por Clarice:
o décimo terceiro me assassina. Sente-se assassinada porque ela reproduz em si a situação
vivenciada por Mineirinho.
Em sua análise, Calvo discute a ideia de sair para o outro, ideia esta que implica
um deslocamento, colocar-se em frente ao outro e, consequentemente, implica a
confirmação da existência deste. E aqui se encontra uma importante contribuição em
Mineirinho para pensar o outro:
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Nesse sentido, na crônica Clarice exprime essa ideia de estranheza por meio do
emprego da palavra doido, o que significa, consequentemente, afastar-se da normalidade,
da vida social monótona. Assim, diz ela:
Mas só feito doidos, e não como sonsos, nós o conhecemos. É como doido
que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido
compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o
amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se
irradiará de qualquer modo, se não pela confiança, pela esperança e pelo
amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição
(LISPECTOR, 2016, p. 389, grifo da autora).
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O que o terreno simboliza? Calvo (2016, p. 132) apresenta uma interpretação, qual seja:
“chegar ao terreno é ‘sair para o outro’”. Dito de outra forma, Clarice quer sair para o
outro, isto é, deslocar-se de seu lugar para o outro, colocar-se em frente ao outro. E isto
pressupõe um estranhamento, ou seja, deixar-se de ser sonso e perceber que uma casa é
construída sobre o terreno, o que implica não só por-se no lugar do outro, como também
sentir, ter compaixão, quer dizer, compreender a importância da afetividade como mola
propulsora da vida social. Nas palavras do autor citado:
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concerne ao eu [...] “lembrando, por detrás da postura que ele exibe em seu retrato, seu
abandono, seu desamparo e sua mortalidade, e seu apelo à minha antiga responsabilidade,
como se ele fosse único no mundo – amado” (LÉVINAS, 2004, p. 291). Para Lévinas, a
autenticidade do eu é a escuta do outro, uma atenção a este sem sub-rogação – é “o amor
sem concupiscência”.
Nesse sentido, entender quero o terreno implica conhecer que o terreno expressa a
relação pessoal, do eu com o outro, a responsabilidade do eu com outro que se defronta
com aquele. É em virtude da inversão do para-si em para-outro que brota a ética. Em outras
palavras, afirma Lévinas (2004, p. 269): “É na relação pessoal, do eu ao outro, que o
‘acontecimento’ ético, caridade e misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou
eleva acima do ser”.
Destarte, essas preocupações intelectuais de Lévinas estão relacionadas a um
projeto de sociedade, e aqui se aproximam do desejo quero o terreno de Clarice. Caberia
perguntar o papel da justiça na construção de tal sociedade, ao que responde Lévinas (2004,
p. 294):
9
Aliás, diz a própria Clarice em Mineirinho; “Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo
de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados.
Se eu não for sonsa, minha casa estremece” (LISPECTOR, 2016, p. 387).
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respeito aos direitos de primeira geração, civis e políticos, cujo papel do Estado se inverte
quando se trata das segunda e terceira gerações (SANTOS, 1997, p. 12-13).
É nesse horizonte que a crônica Mineirinho contribui para (re)pensar os direitos
humanos, como a vida e a liberdade, numa perspectiva que transcende uma mera visão de
direitos públicos subjetivos, qual seja: uma perspectiva em que tais direitos são concebidos
enquanto dimensão garantista. Isto significa que os Mineirinhos não são corpos
descartáveis, mas sim pessoas que devem ser alçadas à condição de sujeito de direito, não
apenas do ponto de vista jurídico, mas também da concretude. Clarice Lispector, portanto,
posiciona-se sobre os temas aqui delineados, denunciando e desvelando a sociedade
narcotizada.
Assim, através da análise feita em torno dessa crônica, buscou-se reforçar a defesa
dos direitos humanos e, como sintetiza Candido (2011, p. 172), “Quem acredita nos direitos
humanos procura transformar a possibilidade teórica em realidade, empenhando-se em
fazer coincidir uma com a outra”.
Finalmente, aqui, ousa-se afirmar que o desejo pelo terreno conota tanto um
deslocamento, no sentido de pensar o outro, quanto o desejo por um Estado alicerçado em
princípios, um autêntico Estado Democrático de Direito que salvaguarda o direito à vida
enquanto um bem inegociável e inacessível a qualquer tentativa de negá-lo.
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Crime: o ato libertador com o qual Martim destrói a ordem e parte para a
reconstrução de uma nova ordem. O crime é a voz coletiva; o ato consciencial diz respeito à
esfera individual (LIMA, 2009, p. 133). É na sua andança enquanto fugitivo que ele atinge
o estado de liberdade e o seu imaginário floresce. Importa mencionar que as metáforas
“coisa sem nome”, “grande pulo” e “ato” representam o processo de autoconsciência: o
primeiro alude à ausência de linguagem; o segundo, a consciência que vai adquirindo da
condição humana; e o terceiro, o nascimento da linguagem que restabelece as
características de uma linguagem originária. O ato representa sua recusa à ordem social em
que vivia:
Fora isso: ele sentira vitória. Com deslumbramento, vira que a coisa
inesperadamente funcionava: que um ato ainda tinha o valor de um ato. E
também mais: com um único ato ele fizera os inimigos que sempre
quisera ter – os outros. E mais ainda: que ele próprio se tornara
incapacitado de ser o homem antigo, pois, se voltasse a sê-lo, seria
obrigado a se tornar o seu próprio inimigo (LISPECTOR, 1999, p. 36).
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desconexos, mas sim uma estrutura coerente e integrada. Não obstante o desencanto do
mundo, Dworkin atribui sentido ao Direito: coerência e integridade.
Outro autor importante, inserido em solo alemão e preocupado com a estrutura do
direito, é Friedrich Müller. A sua teoria estruturante do direito evidencia um nexo entre
epistemologia, compreensão da norma e questões práticas do direito (VASCONCELLOS,
2012, p. 123), ao contrário da tese kelseniana. Desse modo, “a teoria estruturante do direito
entende a norma não apenas como um dever-ser irrealisticamente apartado do ‘ser’, mas
como um fenômeno composto de linguagem e fatos, em que o ‘ser’ e ‘dever-ser’ são
elementos complementares entre si” (VASCONCELLOS, 2012, 123). Ao contrário de
Kelsen, ele propõe uma teoria impura, na medida em que a norma jurídica é construída no
caso concreto, isto é, a norma jurídica não preexiste na codificação, o que diferencia norma
jurídica de texto normativo. No que concerne a práxis constitucional, espaço de
concretização da constituição, a fundamentação serve, por um lado, a convencer os
atingidos e, por outro, tornar a decisão passível de controle pelos tribunais superiores
(VASCONCELLOS, 2012, p.26). Ele propõe a concretização da norma em vez da
interpretação do texto da norma. “A” norma, no pensamento estruturante, não está pronta e
acabada, uma vez que ela é “um núcleo materialmente circunscrível da ordem normativa”
(VASCONCELLOS, 2012, p. 129), sendo concretizado, pois, no caso concreto, dentro dos
limites admissíveis do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, a concretização de direitos não significa subsumir, aplicar e
concluir. A concretização significa produzir uma norma jurídica defensável para o caso de
conflito social que lhe provocou dentro dos limites da democracia e do Estado de Direito
(VASCONCELLOS, 2012, p. 129-130). O sentido da norma, portanto, é construído a partir
do caso concreto.
Martim também se encontra nesse contexto – o vazio lhe persegue. Nesse sentido,
“O processo entre vivenciar a angústia é dizer é algo tão intenso que a narrativa produz não
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5 CONCLUSÃO:
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do direito. Dito de outra forma, a teoria narrativista apresenta-se como uma construção
teórica que busca irromper com o positivismo tecnicista e, portanto, com o princípio da
subsunção. Ao longo da tradição jurídica, o positivismo tecnicista reduziu a dimensão do
direito a uma técnica, negligenciando-se de sua dimensão cultural. Este projeto objetivou
evidenciar uma noção fundamental: direito é linguagem.
Nesse sentido, a leitura das narrativas clariceanas trazem experiência estética
inovadora ao jurista, enfatizando direitos fundamentais numa complexa percepção da
alteridade, como se evidenciou através dos aportes teóricos de Lévinas e Calvo na crônica
Mineirinho. Em outras palavras, a literatura clariceana humaniza o leitor, o jurista, na
medida em que o torna mais compreensivo e aberto ao semelhante, ao outro.
6 PERSPECTIVAS:
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7 REFERÊNCIAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ALVES, Miriam Coutinho de Faria. A busca pelo sentido e a fusão de horizontes nas
relações entre hermenêutica jurídica e estética literária na obra de Clarice Lispector: uma
tarefa hermenêutica. In: SOARES, Ricardo Maurício Freire; MOCCIA, Luigi; NETO, José
Andrade Soares et al (org.). Estudos Aplicados de Filosofia do Direito. Salvador:
Juspodivm, 2012b.
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https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/4d9nht62/6Dzn123TG9prhpn8.pdf.
Acesso em: 01 jul. 2018.
BARRETO, Tobias. Introdução ao estudo do Direito. 2ª ed. São Paulo: Landy, 2001.
BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016, 120p.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Ed.,
2017.
CALVO GONZÁLEZ, José. Derecho y Narración: materiales para uma teoría crítica
narrativista del Derecho. 1ª ed. Editorial Ariel: Barcelona,
1996.
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CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários Escritos. 2. ed. São Paulo:
Duas cidades, 1977.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2011.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995.
LIMA, Bernadete Grob. O percurso das personagens de Clarice Lispector. Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: ___. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
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SANTOS, Boaventura Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua
Nova, São Paulo, n. 39, p. 105-123, 1997.
8 OUTRAS ATIVIDADES:
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Direito e Literatura em Clarice Lispector, ministrada pela Prof.ª Miriam Coutinho de Faria
Alves; AGENDA PELO DESENCARCERAMENTO E CELEBRAÇÃO DE 30 ANOS
DA PASTORAL CARCERÁRIA EM SERGIPE, promovido em parceria do Centro
Acadêmico Silvio Romero com a Pastoral Carcerária de Sergipe; POLEMOI III, XX
SEMINÁRIO INTERNACIONAL–JUSTIÇA FEDERAL, XXI SEMINÁRIO
INTERNACIONAL–JUSTIÇA FEDERAL e XXXV SIMPÓSIO TRANSNACIONAL DE
ESTUDOS CIENTÍFICOS – promovidos pelo NEPRIN (Núcleo de Pesquisa e Extensão
em Relações Internacionais, vinculado ao Departamento de Direito) a fim de cultivar a
cultura jurídica, problematizando temas relevantes do campo jurídico; V CONGRESSO
INTERNACIONAL DE ESTUDOS JURÍDICOS O trabalho decente e a efetividade dos
direitos humanos e II CONGRESSO INTERNACIONAL DE MEDIAÇÃO DE
CONFLITOS: DA TEORIA À PRÁTICA; IV SEMAC - CINECLUBE ENTREATO:
MOSTRA 'O CINEMA E O CORPO’, uma discussão sobre cinema; XVIII Semana de
Filosofia, cujo tema foi subjetividade e alteridade; e II JORNADA DE PSICOLOGIA
JURÍDICA: JUDICIALIZAÇÃO DO COTIDIANO, articulado pelo Departamento de
Psicologia, cujo objetivo fora discutir os problemas da judicialização da vida; Garantismo e
Literatura, ministrado pelo presidente da Rede Brasileira Direito e Literatura, André Karam
Trindade, e mediado pela Profª. Miriam Coutinho, do qual o presente pesquisador
participou da comissão organizadora.
b) minicursos: INTRODUÇÃO À LEITURA DA OBRA FREUDIANA, com
duração de 16 horas, promovido pelo Departamento de Psicologia a fim de introduzir o
pensamento freudiano aos discentes interessados; IV SEMAC - MINICURSOS PIBIC
2017, com frequência no minicurso “Gerenciamento de referências bibliográficas para
trabalhos de pesquisa; e PSICOLOGIA E POLÍTICA: PENSANDO O PRESENTE,
promovido pelo Departamento de Psicologia, com o objetivo de pensar a política brasileira
à luz de alguns autores da filosofia contemporânea, como Michel Foucault e Deleuze.
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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
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