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Cassação de Aposentadoria: O Caminho Do Meio

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Cassação de aposentadoria

O caminho do meio

MARCELO LEONARDO TAVARES


ESTÊVÃO GOMES CORRÊA DOS SANTOS

Resumo: O presente artigo tem por objetivo examinar a constitu-


cionalidade da pena de cassação da aposentadoria após as alterações
constitucionais que modificaram o regime previdenciário brasileiro.
Serão analisados os argumentos favoráveis e contrários à constitucio-
nalidade da sanção disciplinar, bem como proposto um caminho do
meio, que busca compatibilizar a validade da penalidade com o direito
individual do servidor público de ter uma contrapartida financeira do
Estado pelos anos de contribuição previdenciária vertida aos cofres
públicos.

Palavras-chave: Direito previdenciário. Pena de cassação de aposenta-


doria. Constitucionalidade.

1. Introdução

Recentemente, a imprensa noticiou, com entusiasmo, a decisão do


Tribunal Regional Federal da 3a Região de manter a cassação da apo-
sentadoria do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, condenado a 26 (vinte
e seis) anos e seis meses de pena de reclusão pelos crimes de desvio
de verbas, estelionato e corrupção na construção do Fórum Trabalhista
da Capital do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região no final da
década de 1990. Os crimes cometidos pelo ex-juiz ficaram marcados
na sociedade brasileira como símbolo de que a corrupção não estaria
restrita aos Poderes Executivo ou Legislativo, mas também poderia
atingir membros do Poder Judiciário. Em investigação promovida pelo
Ministério Público Federal, estimou-se que o desvio de verbas públicas
Recebido em 7/3/16 na realização da obra chegou, em valores atualizados, ao montante de
Aprovado em 1/6/16 quase um bilhão de reais.

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O Tribunal entendeu que o indulto presidencial, concedido pelo De-
creto no 7.813/2012 aos condenados com mais de 70 (setenta) anos de
idade e com um quarto de pena cumprida, somente atingia o cumpri-
mento da pena privativa de liberdade, e não as penas acessórias, como
a cassação de aposentadoria e a privação de bens. Assim, apesar de ser
concedida a liberdade ao ex-juiz, ficou mantida a perda da aposentado-
ria, que já havia sido decretada por decisão definitiva do Órgão Especial
do Tribunal Superior do Trabalho.
A decisão foi noticiada como uma vitória da justiça contra a corrup-
ção. A percepção é que, ainda que livre do cárcere, o criminoso não iria
gozar de um benefício mensal pago pelo Estado. Afinal, por qual razão,
em um Estado democrático de direito, um agente público comprovada-
mente corrupto poderia desfrutar das benesses da aposentadoria cus-
teada pelos cofres públicos? Qual seria o fundamento para manter um
benefício previdenciário a agentes estatais que foram condenados por
desvio de recursos do erário, em prejuízo de toda a coletividade?
A princípio, a cassação de aposentadoria de servidores públicos pa-
rece ser uma medida adequada para punir os agentes que cometem cri-
mes contra o erário ou faltas disciplinares graves no exercício do cargo
público. A pena apela para o nosso senso mais comezinho de justiça, se-
gundo o qual ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza, muito
menos quando se utiliza da investidura de uma função pública para esse
propósito. O fato de um funcionário público ser condenado, na esfera
administrativa ou judicial, por um ilícito penal ou administrativo, deve-
ria impedi-lo de obter os benefícios da aposentadoria paga pelo Estado.
Em que pese a aparente justiça da medida, é preciso investigar se
a penalidade aplicada na esfera administrativa está de acordo com a
Constituição da República. Isso porque, diferentemente do que está pre-
sente no imaginário popular, a aposentadoria não constitui um prêmio
concedido pelo aparato estatal àqueles que prestaram serviço de quali-
dade à coletividade por um determinado período de tempo. Pelo con-
trário, desde as alterações produzidas pelas Emendas Constitucionais
no 03/1993, no 20/1998 e no 41/2003, o regime próprio de previdência
social tem natureza contributiva. As mudanças constitucionais produ-
ziriam, portanto, uma alteração na percepção desse senso comum de
justiça? Seria inconstitucional a pena de cassação de aposentadoria de
servidores públicos?
O objetivo do presente trabalho é responder a essas perguntas. Pre-
tendemos analisar se as emendas constitucionais revogaram os dispo-
sitivos legais que previam a penalidade de perda de aposentadoria e se
ainda faz sentido, no sistema atual, defender a compatibilidade da san-
ção com o regime previdenciário.

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Com esse propósito em mente, seguiremos proventos de um servidor público ocorre nos
o seguinte roteiro: (i) primeiro, trataremos da casos em que, ainda em atividade, o então fun-
previsão legislativa da cassação de aposenta- cionário da ativa tenha cometido falta punível
doria como pena disciplinar a ser aplicada a como a pena de demissão, aplicada pela auto-
servidores públicos; (ii) segundo, descrevere- ridade máxima a que o servidor estava vincu-
mos os argumentos daqueles que defendem lado, após a instauração do devido processo
a inconstitucionalidade da penalidade; (iii) administrativo disciplinar, obrigatório para
terceiro, serão apresentadas as principais teses essas hipóteses (art. 146 da Lei no 8.112/1990),
em favor da constitucionalidade da medida, com fundamento no relatório elaborado pela
conferindo especial destaque ao entendimento comissão processante que sugeriu a pena de
dos tribunais sobre o tema; (iv) por fim, apre- demissão ao indiciado.2
sentaremos o nosso caminho do meio, que visa A questão posta em debate é se a sanção
a compatibilizar as duas propostas apresenta- disciplinar poderia ser aplicada a servidor pú-
das anteriormente. É o que passamos a expor. blico acusado da prática de um ilícito adminis-
trativo no exercício de suas funções, mesmo
após ter preenchido todos os requisitos para
2. A cassação de aposentadoria de a concessão da aposentadoria e depois de sua
servidor público no direito positivo homologação pelo Tribunal de Contas. Não se
brasileiro estão discutindo, portanto, as hipóteses em que
há fraude ou algum vício de legalidade no mo-
No âmbito do serviço público federal, mento do deferimento do benefício previden-
a cassação de aposentadoria é prevista nos ciário. Trata-se, na verdade, de aposentadorias
arts. 127, IV, e 134 da Lei no 8.112/1990, diplo- legítimas, que foram concedidas devidamente
ma que estabelece o regime jurídico único dos pelo poder público, mas posteriormente cassa-
servidores públicos federais.1 A cassação dos das em razão de alguma falta grave cometida
pelo servidor. Não se questiona a higidez do
1
Nos termos do art. 132 da mesma lei, os seguintes
ilícitos administrativos são puníveis com a pena de demis-
são: (i) crime contra a administração pública; (ii) abando- estado estrangeiro; (xviii) praticar usura sob qualquer de
no de cargo; (iii) inassiduidade habitual; (iv) improbidade suas formas; e (xix) proceder de forma desidiosa; (xx) uti-
administrativa; (v) incontinência pública e conduta escan- lizar pessoal ou recursos materiais da repartição em servi-
dalosa, na repartição; (vi) insubordinação grave em servi- ços ou atividades particulares (BRASIL, 1990).
ço; (vii) ofensa física, em serviço, a servidor ou a particu- 2
“A cassação de aposentadoria ou disponibilidade
lar, salvo em legítima defesa própria ou de outrem; (viii) consiste na extinção do vínculo jurídico mantido com o
aplicação irregular de dinheiros públicos; (ix) revelação servidor aposentado ou em disponibilidade como punição
de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; (x) por infração por ele praticada quando em atividade, a que
lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio na- fosse cominada sanção de demissão. A hipótese (discipli-
cional; (xi) corrupção; (xii) acumulação ilegal de cargos, nada pelo art. 134 da Lei no 8.112/1990) destina-se a solu-
empregos ou funções públicas; (xiii) valer-se do cargo para cionar o impasse verificado no caso de o sujeito ter prati-
lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da cado infração grave em época anterior à sua inativação.
dignidade da função pública; (xiv) participar de gerência Nesse caso, produz-se a extinção do vínculo jurídico, com
ou administração de sociedade privada, personificada ou cunho punitivo” (JUSTEN FILHO, 2015, p. 1104-1105). É
não personificada, exercer o comércio, exceto na qualida- preciso destacar que, como aponta Lucas Rocha Furtado
de de acionista, cotista ou comanditário; (xv) atuar, como (2013, p. 808), a aplicação da penalidade é atividade vin-
procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, culada da Administração Pública e não discricionária. No
salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou as- mesmo sentido, Edilson Pereira Nobre Júnior (2000) des-
sistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou taca a tipicidade como um dos princípios do Direito Penal
companheiro; (xvi) receber propina, comissão, presente aplicável à atividade sancionatória disciplinar no serviço
ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atri- público, do que resulta também a conclusão pela natureza
buições; (xvii) aceitar comissão, emprego ou pensão de vinculada do ato.

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benefício. A suspensão somente ocorre por nefício previdenciário como contrapartida aos
fato superveniente que alteraria o fundamento longos anos de desempenho das suas ativida-
jurídico para a sua concessão3. des. A aposentadoria era entendida como uma
A ressalva é importante para realizar o de- benesse concedida pelo poder público àqueles
vido enquadramento da discussão a ser trava- que investiram o melhor dos seus anos em prol
da nas próximas páginas. Não se irá tratar de da prestação de serviços à coletividade. Era en-
outras hipóteses de cassação de aposentadoria, tendida, portanto, como uma retribuição dada
como a proferida por decisão judicial, mas pela Administração Pública ao bom funcioná-
apenas da penalidade aplicada em âmbito ad- rio, custeada por toda a coletividade4.
ministrativo. Feitas essas considerações sobre Dentro desse contexto, a penalidade de
a sanção disciplinar e o seu regime jurídico, cassação de aposentadoria fazia todo sentido.
passamos a analisar os argumentos em prol da De fato, como o regime não era contributivo,
inconstitucionalidade dos arts. 127, IV, e 134 o benefício concedido tinha natureza premial,
da Lei no 8.112/1990. sendo apenas auferido pelos funcionários que
demonstrassem, ao longo de sua carreira, o
devido merecimento dos proventos de inativi-
3. As teses em prol da dade. A lógica era a seguinte: um servidor pú-
inconstitucionalidade da penalidade blico padrão, que desempenhou as suas fun-
de cassação de aposentadoria de ções de modo satisfatório, deveria ter o direito,
servidor público arcado por toda a sociedade, de receber uma
remuneração após cumprido o seu tempo de
A tese da inconstitucionalidade da san- serviço.
ção disciplinar de cassação de aposentadoria Ocorre que a Emenda Constitucional
de servidor público parte da premissa de que n 3/1993 alterou a lógica de funcionamento
o

houve mudança no regime previdenciário a do regime previdenciário do serviço público


partir da edição da Emenda Constitucional federal. Se antes a aposentadoria tinha nature-
no 03/1993. Antes da referida emenda, a apo- za de prêmio, custeada integralmente pelo Es-
sentadoria do servidor público era considera- tado, após a referida emenda passou a ter natu-
da um prêmio pelo exercício da função: bastava reza de seguro, uma vez que o servidor público
que o ocupante de cargo público preenchesse também suporta financeiramente o custeio.5
os requisitos de idade e tempo de serviço para
que o Estado tivesse o dever de prestar o be- 4
Corroborando esse entendimento, confira-se passa-
gem de Hely Lopes Meirelles (1986, p. 381), que entendia a
aposentadoria como “garantia de inatividade remunerada,
3
“O ato da aposentadoria do servidor pode estar reconhecida aos funcionários que prestaram longos anos
contaminado de vício de legalidade, como ocorre com de serviço, ou se tornaram incapacitados para as suas fun-
qualquer ato administrativo. Quando tal ocorre, o caso é ções”.
de invalidação do ato, devendo o servidor retornar à ati- 5
Por meio da alteração constitucional, foi incluído
vidade. A cassação da aposentadoria, porém, tem natureza o § 6o no art. 40 da Constituição, determinando que “As
diversa. Cuida-se de penalidade por falta gravíssima pra- aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais
ticada pelo servidor quando ainda em atividade. Se essa serão custeadas com recursos provenientes da União e das
falta fosse suscetível, por exemplo, de pena de demissão, o contribuições dos servidores, na forma da lei” (BRASIL,
servidor não faria jus à aposentadoria, de modo que, ten- 1993). Ao menos no âmbito federal, portanto, foi permi-
do cometido a falta e obtido a aposentadoria, deve esta ser tida a instituição da contribuição previdenciária, tributo
cassada. Trata-se, por conseguinte, de penalidade funcio- que incidia sobre a remuneração do agente público com a
nal, ainda que aplicada a servidor inativo” (CARVALHO finalidade de formar o fundo necessário para arcar com as
FILHO, 2008, p. 640). aposentadorias futuras.

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Posteriormente, a Emenda Constitucional no 20/1998 expandiu o ca-
ráter contributivo do regime previdenciário para todos os entes fede-
rativos.6 A Emenda Constitucional no 41/2003 completou a reforma
previdenciária. Não só os servidores ativos deveriam reverter valores
ao regime próprio de aposentadoria, mas também os inativos foram
chamados a contribuir, sendo destacado o caráter solidário do sistema
previdenciário.7
Portanto, as Emendas Constitucionais no 3/1993, no 20/1998 e
no 41/2003 alteraram profundamente o quadro anterior em que se base-
ava a previsão de cassação de aposentadoria. O benefício deixou de ser
considerado um prêmio pelos bons serviços prestados pelo servidor pú-
blico para tornar-se contraprestação baseada no tempo de contribuição,
e não somente no tempo de serviço. A aposentadoria passou a ser um
seguro compulsório para o qual o servidor contribuiu financeiramente
durante o seu período de atividade.
Baseado nessa premissa, os defensores da inconstitucionalidade da
sanção de cassação de aposentadoria argumentam que a penalidade não
mais se sustenta pelo atual regime previdenciário, pois constituiria um
enriquecimento ilícito do Estado. Isso porque o servidor que passou toda
a sua vida ativa contribuindo com parcela de sua remuneração para a
concessão de um benefício futuro se vê privado desses valores em razão
de um ilícito praticado durante o exercício de suas atividades, mas sem
qualquer relação com o vínculo previdenciário formado com a Admi-
nistração Pública.8
O segundo argumento suscitado pelos defensores da inconstitucio-
nalidade da sanção disciplinar reside na violação do ato jurídico perfei-
to e do direito adquirido, em afronta ao art. 5o, XXVI, da Constituição.
Sustenta-se que, após a concessão da aposentadoria e a homologação
realizada pelo Tribunal de Contas, os proventos de inatividade consti-
tuem ato jurídico perfeito, gerando para seu titular um direito adquiri-
do. Como houve ato idôneo para a produção de efeitos, sem qualquer

6
Com a edição da referida Emenda, o art. 40, caput, da Constituição passou a ter a
seguinte redação: “Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado
regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equi-
líbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo” (BRASIL, 1988). Todos os ocupantes
de cargo efetivo, de todas as esferas de governo, portanto, passaram a contribuir para o
sistema previdenciário.
7
O art. 40, caput, da Constituição então passou a ter o seguinte teor: “Aos servidores
titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter con-
tributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores
ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio finan-
ceiro e atuarial e o disposto neste artigo” (BRASIL, 1988).
8
Em obra anterior, um dos autores, Marcelo Leonardo Tavares (2007, p. 955-956),
defendeu essa posição, como também Di Pietro (2015) e ainda Bastos e Bezerra (2013).

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vício de legalidade, e a incorporação definitiva na esfera de direitos do
titular, o Estado, mediante ato posterior, não poderia cassar o benefício9.
O terceiro motivo para a inconstitucionalidade da medida estaria
associado à natureza do benefício previdenciário. A aposentadoria, um
dos elementos que compõem a previdência social, seria um direito fun-
damental, disposto no art. 6o da Constituição. A jusfundamentalidade
do direito teria como consequência a sua restrição limitada apenas em
hipóteses excepcionais e desde que respeitado o princípio da propor-
cionalidade. No caso da aplicação da pena de cassação, a limitação ao
direito à aposentadoria seria irrazoável, por ser excessiva, inadequada
e desnecessária. A falta grave cometida pelo servidor durante o exercí-
cio de suas funções não poderia levar à perda de um benefício para o
qual ele contribuiu durante o seu período de atividade. Tratar-se-ia de
uma pena mais severa do que a própria demissão, pois essa não impede
o apenado nem de ingressar em outro cargo público, muito menos de
levar consigo o tempo de contribuição em outro regime previdenciário,
com a finalidade de obter uma futura aposentadoria. Ao retirar os pro-
ventos de inatividade, o que se realizaria seria um verdadeiro confisco,
vedado pelo ordenamento constitucional (art. 150, IV, da Constituição).
Em última análise, os críticos do dispositivo afirmam que a cassação
constituiria uma violação do princípio da dignidade da pessoa humana,
na medida em que retira o sustento do servidor justamente em período
mais delicado da vida, em que o indivíduo não mais tem força laborativa
suficiente para buscar outra forma de remuneração. Eliminar a sanção
do ordenamento jurídico, portanto, constituiria uma medida de justi-
ça, fundamentada em razões morais, ao não prejudicar excessivamente
uma parcela da população vulnerável, composta por pessoas de idade
avançada (FIGUEIREDO, 2014, p. 219).
Por fim, o último argumento em prol da inconstitucionalidade da
cassação de aposentadoria consiste no caráter perpétuo da penalidade,
em afronta ao art. 5o, XLVII, b e XLV, da Constituição, que, respecti-
vamente, proíbem a aplicação de penas perpétuas e que ultrapassem a
pessoa do condenado no direito brasileiro. Segundo alegado, a cassação
da aposentadoria teria efeitos não somente sobre o titular, mas também
sobre seus familiares, uma vez que seriam privados de futura pensão em
caso de morte do servidor público.

9
Ver Campos (2013, p. 13). Tal entendimento seria reforçado pelo art. 172 da Lei
no 8.112/1990, o qual determina que o servidor que responde a processo administrativo
disciplinar somente poderá ser aposentado voluntariamente após a conclusão do proce-
dimento e cumprimento da eventual pena aplicada. Esse dispositivo, portanto, ratificaria
a ideia de que, deferida a aposentadoria, ela se tornaria um ato jurídico perfeito, uma vez
que foi concedida sem qualquer vício de legalidade, devendo ser, dessa forma, mantida
(RIGOLIN, 2007, p. 1051).

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Com isso, a sanção não ficaria restrita à Associação Nacional dos Auditores Fiscais
pessoa do acusado, mas também incidiria da Receita do Brasil – ANFIP. Na ADI 4882,
sobre terceiros beneficiários, que seriam ma- a postulante requer a declaração de inconsti-
terialmente afetados pela decisão tomada no tucionalidade dos arts. 127, IV, e 134 da Lei
processo administrativo disciplinar. É dizer: no 8.112/1990, com fundamento nas teses ex-
em caso de suspensão da concessão de aposen- postas.12 Não obstante a inexistência de mani-
tadoria do servidor público, os pensionistas festação definitiva do Supremo sobre o tema, a
também ficariam sem o benefício previdenci- tese da inconstitucionalidade tem sido refleti-
ário. Como o ordenamento jurídico brasileiro da em julgamentos de tribunais inferiores, com
não tolera nenhum tipo de pena que ultrapasse base nos argumentos expostos neste item13.
a pessoa do condenado ou tenha pretensão de Esclarecidas as razões jurídicas que funda-
perpetuidade, também por esse motivo, a cas- mentam a invalidade da pena de cassação de
sação de aposentadoria deveria ser extirpada aposentadoria, passemos agora a analisar os
do rol de sanções disciplinares aplicáveis aos motivos que sustentam a constitucionalidade
servidores públicos, sendo incompatível com da sanção, ainda que consideradas as altera-
o regime constitucional.10 ções constitucionais promovidas no regime
Em síntese, portanto, a alegação de invali- previdenciário dos servidores públicos.
dade da pena administrativa tem quatro funda-
mentos: (i) a natureza contributiva do regime
previdenciário dos servidores públicos após as 4. As teses em prol da
alterações promovidas pelas Emendas Consti- constitucionalidade da penalidade
tucionais no 3/1993, no 20/1998 e no 41/2003; de cassação de aposentadoria de
(ii) a lesão ao ato jurídico perfeito e ao direito servidor público
adquirido de recebimento da aposentadoria;
(iii) a natureza de direito fundamental do be- A constitucionalidade da cassação da apo-
nefício previdenciário, diretamente relaciona- sentadoria tem sido defendida ao longo do
do ao princípio da dignidade da pessoa huma- tempo pela jurisprudência dominante dos Tri-
na, além da desproporcionalidade da sanção
disciplinar; e (iv) o caráter perpétuo da pena 12
O Ministro Gilmar Mendes, relator do feito, aplicou
e o fato de ultrapassar a pessoa do acusado. 11 o rito do art. 12 da Lei no 9.868/1999, em razão da rele-
vância da matéria. Após as manifestações proferidas pela
Os quatro argumentos acima elencados AGU e pela PGR, bem como as informações prestadas
pela Presidência da República e pelo Congresso Nacional,
foram apresentados ao Supremo Tribunal Fe- a ação encontra-se aparelhada e pronta para julgamento,
deral por meio de ação direta de inconstitu- aguardando o pedido de pauta do Ministro-relator. Os
autos estão conclusos desde 23/6/2015 para análise de
cionalidade, com pedido liminar, ajuizada pela pedidos de ingresso de amici curiae na ação, mas não há
qualquer previsão para o julgamento da causa.
13
A título exemplificativo,cite-se o acórdão do Tribu-
10
Geraldo Ataliba (1994) opõe-se vigorosamente à nal de Justiça de São Paulo que entendeu pela incompati-
aplicação de sanções que possam ter caráter permanen- bilidade da cassação de aposentadoria de delegado de po-
te, como, por exemplo, a inabilitação para o exercício de lícia, em razão das modificações produzidas pelas Emen-
profissão, do que resultaria o exercício abusivo do ius das Constitucionais no 3/1993 e 20/1998. No julgamento
puniendi por parte do Estado. foi dado destaque para a natureza de seguro do benefício
11
Zélia Luiza Piedorna (2005) relaciona as quatro previdenciário, e não de prêmio a ser concedido ao servi-
alegações apontadas e adiciona o argumento de violação dor que prestou seus serviços dentro dos padrões exigidos
do princípio da proporcionalidade pelo aniquilamento da em lei. Em acréscimo, também ficou demonstrada a exis-
proteção previdenciária da velhice pela punição discipli- tência de violação dos princípios da segurança jurídica e
nar. da dignidade da pessoa humana (SÃO PAULO, 2014).

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bunais Superiores. Tanto o Supremo Tribunal A decisão foi tomada em momento an-
Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça terior à edição da EC no 20/1998, bem como
têm defendido a validade da sanção disciplinar envolvia servidores públicos que preencheram
em casos anteriores e posteriores às emendas os requisitos para aposentadoria antes da ins-
constitucionais que alteraram o regime pre- tauração do regime contributivo, de modo que
videnciário dos servidores públicos. A seguir, não foram devidamente enfrentados os argu-
faremos um breve retrospecto das decisões mentos ligados à mudança do regime previ-
proferidas por essas Cortes. denciário.
O primeiro precedente a tratar do tema no O mesmo entendimento foi mantido em
STF foi o MS no 21.948, de relatoria do Minis- precedentes do STF posteriores às alterações
tro Néri da Silveira. No caso em análise, fora promovidas pelas emendas constitucionais. É
aplicada em processo administrativo punitivo o caso, por exemplo, do MS no 23.299, de rela-
a pena de cassação de aposentadoria a pro- toria do Ministro Sepúlveda Pertence, ampla-
curador autárquico do INSS com mais de 37 mente citado pela jurisprudência. Nessa hipó-
(trinta e sete) anos de serviços, acusado de de- tese, tratava-se de servidora do INSS acusada
sídia e de valer-se do cargo em detrimento da de improbidade administrativa por valer-se do
dignidade da função pública (art. 117, IX e XV, cargo para obter vantagem de caráter pecuniá-
da Lei no 8.112/1990). Por meio de mandado rio. Na linha dos julgados anteriores, o Minis-
de segurança, o impetrado alegou a inconsti- tro-relator afirmou que não se poderia alegar
tucionalidade da sanção. ofensa a ato jurídico perfeito, uma vez que “a
O Ministro Néri da Silveira destacou em cassação da inatividade remunerada do servi-
seu voto a validade dos dispositivos atacados, dor público é pena disciplinar legalmente pre-
uma vez que o art. 41, §1o, da Constituição vista, à qual não se pode opor, como ato jurí-
prevê a possibilidade de perda de cargo do ser- dico intangível, a concessão da aposentadoria,
vidor público em virtude de sentença judicial cuja existência, ao contrário, constitui o ante-
transitada em julgado ou mediante processo cedente necessário de sua aplicabilidade”15.
administrativo punitivo. Ressaltou ainda que Seguindo a tese adotada até o momento
o fato de o servidor ter tempo de serviço para na Corte, o Ministro Ricardo Lewandowski,
a aposentadoria não poderia impedir a Admi- no ano de 2015, deferiu o pedido de suspen-
nistração Pública de investigar e punir eventu- são de tutela antecipada em acórdão proferido
al falta que tenha praticado ainda no exercício pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa
de suas atividades.14 Catarina, o qual, no âmbito de agravo de ins-
trumento, declarou incidentalmente a incons-
14
O mesmo entendimento foi empregado no MS
no 22.728, de relatoria do Ministro Moreira Alves. No atividade – e, portanto, anteriormente à sua concessão –,
caso, fora aplicada a penalidade a servidora pública da Se- de falta punível com a demissão” (BRASIL, 1998).
cretaria de Planejamento da Presidência, em razão de im- 15
Em sentido semelhante, no MS no 23.219-AgR, o
probidade administrativa e aplicação irregular de recursos Ministro Eros Grau assinalou que a natureza contributiva
públicos. O Ministro-relator ressaltou que a sanção disci- do benefício previdenciário não seria um empecilho para
plinar não viola ato jurídico perfeito, na medida em que “o a aplicação da penalidade. A questão não foi devidamen-
ato jurídico perfeito impede que se desconstitua aposenta- te problematizada no voto, sendo referida apenas lateral-
doria pela aplicação de lei posterior a ela, mas não há que mente e tendo sido citado como fundamento o precedente
se invocar esse princípio, que se situa no âmbito do direito relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, o qual também
intertemporal, para se pretender a inconstitucionalidade não havia discutido em detalhes a circunstância da mu-
de lei que, com relação às aposentadorias ocorridas pos- dança de regime. Também o acórdão do AI 504.188-6, Rel.
teriormente a esta, comine sua cassação pela prática, na Min. Sepúlveda Pertence.

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titucionalidade de dispositivos de lei estadual que, da mesma forma que
a Lei no 8.112/1990, previa a pena de cassação de aposentadoria para
delegado de polícia estadual, desconstituindo a aplicação da penalidade
realizada em processo administrativo disciplinar. Em seu voto, o Mi-
nistro-relator reforçou que o entendimento dominante na jurisprudên-
cia do Supremo Tribunal Federal é pela constitucionalidade da sanção
disciplinar, citando expressamente os precedentes do Plenário da Corte
comentados acima.16
Com base nos precedentes do STF, o Superior Tribunal de Justiça
também tem reconhecido a validade da sanção disciplinar. A Primei-
ra Seção do STJ, que aprecia matérias de direito público, em especial
questões administrativas e tributárias, adota entendimento pacífico pela
constitucionalidade da cassação de aposentadoria de servidor público,
como se observa em recentes acórdãos proferidos no ano de 201517. É
importante destacar que o STJ costuma citar os julgados do STF sobre o
tema sem qualquer questionamento quanto às premissas adotadas nas
decisões, sendo a tese adotada, em grande parte, de modo acrítico pela
Corte. Cabe também a ressalva de que há votos vencidos no STJ susten-
tando a inconstitucionalidade da penalidade, em razão das mudanças
promovidas pelas emendas constitucionais e pela circunstância de os
precedentes do STF não terem enfrentado diretamente a questão18.
Além da jurisprudência dos Tribunais Superiores, outros argumen-
tos acadêmicos são também utilizados para defender a validade da
sanção aplicada. Dentre eles, aponta-se que a questão deve ser analisa-
da sob a perspectiva do direito administrativo, e não do direito previ-
denciário. Segundo alegado, a aplicação da penalidade de cassação da
aposentadoria está em conformidade com o regime jurídico funcional e
disciplinar do servidor público previsto pela Constituição Federal, não
tendo relação imediata com o benefício previdenciário. A cassação da
aposentadoria, como penalidade disciplinar, integra o regime estatutá-
rio dos servidores públicos e, portanto, não se poderia cogitar de even-
tuais reflexos previdenciários da sanção como um fundamento para
invalidação de norma atinente ao regime disciplinar do funcionalismo
público. Os regimes são diferentes e devem ser observados sob enfo-
ques diversos, uma vez que a aposentadoria não eliminaria o vínculo
jurídico-administrativo do servidor (RIBEIRO, 2012, p. 58-59).

16
STF, STA 729-AgR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 28/
maio/2015. No mesmo sentido, em 03/jun./2014, o acórdão do AgRg no RMS 32.624, Rel.
Min. Celso de Melo.
17
STJ, MS 17.537, Primeira Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 11/mar./2015;
STJ, MS 20.936, Primeira Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. em 12/ago./2015.
18
Ver voto-vista proferido pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho no MS 17.537.

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Em acréscimo, os defensores da constitu- Em último lugar, a penalidade deveria ser
cionalidade também sustentam que, no regime mantida com base no princípio da moralida-
estatutário, o servidor só adquire o direito à de. Não seria compatível com o dever de mo-
aposentação caso sejam respeitadas as dispo- ralidade permitir que um servidor público que
sições regulamentares e constitucionais. Na praticou ilícitos durante o exercício de suas
prática, então, o ilícito administrativo cometi- funções mantenha-se sustentado por toda a
do durante o exercício da função pública vicia coletividade que, no final das contas, paga
todos os atos posteriores, incluindo a conces- pelos benefícios recebidos na inatividade. Ao
são de aposentadoria, de modo que não ha- extinguir a pena, seria criada uma verdadeira
veria verdadeiramente a produção de um ato imunidade para servidores aposentados.
jurídico perfeito. Pelo contrário, a concessão Em outro sentido, a extinção da pena de
de aposentadoria deu-se em desconformidade cassação traria também um estímulo à práti-
com a lei vigente ao tempo em que se efetuou ca de atos de improbidade administrativa por
e, nos termos em que o define o art. 6o, § 1o, da servidores já com os requisitos para requerer
Lei de Introdução às Normas do Direito Bra- a aposentadoria, mas que se mantêm no cargo
sileiro (LINDB), não poderia produzir um ato em virtude do abono de permanência, dispos-
jurídico perfeito, na medida em que “reputa-se to no art. 40, §19, da Constituição. Como exis-
ato jurídico perfeito o já consumado segundo te a certeza de que o servidor não terá a sua
a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. aposentadoria cassada, bastaria que o indiví-
Por outro lado, também deve ser afastada duo, ao menor sinal de ser suspeito de praticar
a alegação de que haveria enriquecimento ilí- ilícito, requisitasse o seu direito de aposenta-
cito por parte da União. O caráter universal e ção e, com isso, escapasse de possível processo
solidário da previdência social, reforçado pela administrativo disciplinar. A eliminação da
Emenda Constitucional no 41/2003, levaria à pena, portanto, geraria um maior incentivo à
desnecessidade de restituição dos valores re- prática de ilícitos na Administração Pública,
colhidos pelo servidor punido, pois não mais em especial para servidores já com direito à
se configuraria uma relação sinalagmática de aposentadoria20.
pagamento de contribuição e fruição do bene-
fício, de modo que seria permitido pelo atual Piceli, o valor pago pelo servidor a título de contribuição
regime previdenciário o pagamento de con- previdenciária nunca foi e nem é prestação sinalagmática,
mas tributo destinado ao custeio da atuação do Estado na
tribuições sem uma necessária contrapartida, área da previdência social. Nos termos do artigo 195 da
CF, deve ser custeada por toda sociedade, de forma direta
como ocorre com a contribuição previdenciá- e indireta, o que se poderá denominar princípio estrutu-
ria paga pelos inativos.19 ral da solidariedade, como decidiu o STF nas ADIs 3.105/
DF e 3.128/DF, relatado originalmente pela ministra Ellen
Gracie, relator designado para o acórdão ministro Joa-
19
Esse é o entendimento defendido pelo desembarga- quim Barbosa”.
dor do TJ-SP, Urbano Ruiz (2015): “No tocante ao outro 20
“Os casos submetidos a julgamento têm revelado
argumento, dos que se opõem à cassação da aposenta- que funcionários com direito à aposentadoria continuam
doria, fundados no caráter contratual da contribuição em atividade por longos anos, atraídos pelo abono de per-
previdenciária, de natureza securitária, a revelar comu- manência (CF, artigo 40, parágrafo 19), e muitos se envol-
tatividade e reciprocidade na obrigação, o STF, ao deci- vem em práticas ilícitas, puníveis com a pena de demissão.
dir a declaratória de constitucionalidade da contribuição Contudo, aposentam-se de imediato, evitando a impo-
previdenciária, agora paga também pelos aposentados e sição da penalidade e, quando sobrevém a cassação da
pensionistas, assentou que o sistema previdenciário, ob- aposentadoria, ingressam com ações sustentando, muitas
jeto do artigo 40 da CF, nunca foi de natureza jurídico- vezes com sucesso, que a penalidade é ilegal ou até mesmo
-contratual, regido por norma de direito privado. Como inconstitucional, permanecendo impunes, o que significa,
dito no voto vencido, redigido pelo desembargador Eros em verdade, estímulo à corrupção” (RUIZ, 2015).

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5. O caminho do meio: a certo que a natureza solidária do sistema tem
constitucionalidade da cassação de como consequência a inexistência de uma co-
aposentadoria e a possibilidade de mutatividade estrita entre contribuição e be-
contagem do tempo de contribuição nefício. O regime próprio de previdência so-
no regime geral de previdência social cial adotado no Brasil é o de repartição simples
(pay as you go), o qual, diferentemente do re-
As duas teses expostas nos itens anteriores gime de capitalização (funding), não forma um
têm seus pontos fortes e fracos. Os argumentos fundo individual para cada servidor, mas sim
em prol da inconstitucionalidade têm razão ao um fundo coletivo, em que as contribuições
afirmar que a alteração do regime previdenci- pagas pelos funcionários da ativa financiam os
ário operado pelas Emendas Constitucionais benefícios pagos aos servidores inativos. Não
no 3/1993, no 20/1998 e no 41/2003 modifica a há, portanto, um montante específico reserva-
natureza da aposentadoria. Se antes o benefí- do para cada segurado.
cio era considerado um prêmio concedido ao Como constitui um fundo coletivo, é pos-
servidor pelos bons serviços prestados à cole- sível pensar em diversas situações em que se-
tividade, atualmente a cobrança compulsória gurados contribuem sem receber nenhum tipo
de contribuição previdenciária transforma a de benefício, apenas aumentando os valores
relação entre o servidor público e a previdên- disponíveis para os demais segurados. Esse se-
cia, uma vez que o indivíduo, de fato, contribui ria o caso, por exemplo, de morte do servidor
financeiramente, por meio de contribuição de público antes do recebimento da aposentado-
natureza tributária, para a formação do fun- ria em que o indivíduo não deixa qualquer her-
do necessário à concessão do benefício. Nes- deiro para usufruir da pensão. Nessa hipótese,
sa perspectiva, é parcialmente verdadeira a todas as contribuições vertidas não resultaram
conclusão de que a cassação de aposentadoria em qualquer contraprestação estatal.
produziria enriquecimento ilícito por parte da Essas situações, contudo, são excepcionais.
Administração Pública, considerando que ha- Em regra, não se pode cogitar da cobrança de
veria um confisco pelo poder público. contribuição previdenciária sem a fruição de
Nesse ponto, seria incabível sustentar que qualquer benefício. A solidariedade deve ser
o caráter solidário da previdência social seria entendida como um mecanismo para ampliar
suficiente para afastar a alegação de enriqueci- os sujeitos passivos responsáveis pelo custeio
mento ilícito por parte do Estado. O princípio da seguridade social, mas, ao mesmo tempo,
da solidariedade não afasta o direito individual deve manter um mínimo de correlação entre
do beneficiário de receber a aposentadoria21. É os aportes dos segurados e as prestações esta-
tais. A dimensão solidária do sistema não pode
21
“O fato de ser a solidariedade uma das caracterís- ser totalmente ofuscada pela dimensão contri-
ticas do seguro social não significa que os beneficiários
não tenham direito de receber o benefício. Eu diria que
a solidariedade até reforça o direito, porque ela foi idea- tribuir necessariamente para a manutenção do benefício;
lizada exatamente para garantir o direito dos segurados são as hipóteses em que à contribuição não corresponde
ao benefício. De outro modo, não haveria recursos sufi- qualquer benefício. Mas para os servidores assegurados, à
cientes para manter os benefícios da previdência social. A contribuição tem necessariamente que corresponder um
solidariedade significa que pessoas que não vão usufruir benefício, desde que preenchidos os requisitos previstos
do benefício contribuem para a formação dos recursos ne- na Constituição e na legislação infraconstitucional. A re-
cessários à manutenção do sistema de previdência social; gra da solidariedade convive (e não exclui) o direito indi-
é o caso dos inativos e pensionistas e também dos servi- vidual ao benefício para o qual o servidor contribuiu” (DI
dores que não possuem dependentes mas têm que con- PIETRO, 2015).

RIL Brasília a. 53 n. 212 out./dez. 2016 p. 81-100 91


butiva, de modo que a regra é que os segurados recebam algum tipo de
benefício em contraprestação aos aportes realizados, ainda que não haja
propriamente uma relação sinalagmática entre contribuição revertida
ao sistema e recebimento de benefícios previdenciários22.
Por essa razão, faz sentido a alegação de que a sanção de cassação da
aposentadoria consistiria, em última análise, em um confisco dos valo-
res revertidos pelo indiciado ao sistema previdenciário. Afinal, o servi-
dor seria privado de um direito para o qual contribuiu durante todo o
período de atividade.
Ademais, é importante esclarecer que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal não enfrentou diretamente a questão de a natureza
contributiva do regime previdenciário constituir empecilho à penalida-
de de cassação da aposentadoria. A análise dos precedentes realizada no
item anterior comprova que a Corte apenas se ateve a repetir os argu-
mentos expostos no primeiro julgado sobre o tema (MS no 21.948, Rel.
Min. Néri da Silveira) sem problematizar e enfrentar adequadamente a
natureza contributiva do sistema. Apesar de ventilado lateralmente no
MS no 23.219-AgR pelo Ministro Eros Grau, o voto apenas repetiu o pre-
cedente relatado por Sepúlveda Pertence (MS no 23.299), que, de resto,
também nada dispôs sobre a mudança do regime previdenciário, muito
menos trouxe razões jurídicas adequadas para solucionar o problema.
Os demais tribunais, incluindo o STJ, apenas repetem acriticamente os
precedentes, entendendo que esse é o entendimento atual do STF.

22
Esse entendimento ficou registrado no voto do Ministro Luís Roberto Barroso no
RE 661.256-RG, que tratava da discussão acerca da existência do direito à desaposentação.
Confira-se o seguinte trecho do voto: “De forma particular, não se extrai da ordem cons-
titucional a exigência de que haja correlação estrita entre os aportes dos segurados e as
prestações que receberão futuramente. De modo compatível com esse cenário normativo,
a legislação brasileira consagra, historicamente, a opção por um modelo de repartição
simples, em que todas as contribuições atuais formam um fundo geral para o custeio das
prestações devidas no presente. Inexistem, assim, contas individuais vinculadas a cada
segurado [...]. Isso não significa, contudo, que o legislador disponha de liberdade abso-
luta para formatar o sistema segundo quaisquer critérios de conveniência. Em vez disso,
há pelo menos dois limites principais à sua atuação. Em primeiro lugar, a falta de uma
comutatividade absoluta ou rígida entre contribuições e benefícios não significa que a
correspondência possa ser inteiramente desprezada. Ao contrário, a Constituição deixa
claro que os salários de contribuição compõem a base de cálculo para a definição das
prestações previdenciárias e que estes, assim como os próprios benefícios resultantes,
devem ser atualizados a fim de que preservem a sua expressão econômica. Essas circuns-
tâncias têm levado este Supremo Tribunal Federal a destacar a existência de uma relação
necessária entre os aportes dos segurados e as prestações estatais. Em segundo lugar, e
com maior relevância, o modelo concebido pelo legislador precisa ser compatível com o
princípio da isonomia, repartindo de forma equitativa os ônus e bônus do sistema previ-
denciário. Essa é uma exigência expressa do art. 201, § 1o, da Constituição, que impõe a
adoção de critérios uniformes para a concessão de aposentadorias. Daí a necessidade de
que a legislação institua uma fórmula estável de correspondência entre contribuições e
benefícios, aplicável a todos os segurados. Essa fórmula conterá, inevitavelmente, algumas
variáveis indeterminadas a priori, desde a maior ou menor extensão do período de fruição
dos benefícios até a existência ou não de pensionistas. É de se notar, porém, que essas
incógnitas aplicam-se ao conjunto de segurados de forma impessoal, e não seletivamente”
(BRASIL, 2016).

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Dessa forma, não há como se afirmar que a jurisprudência pacífi-
ca do STF é pela constitucionalidade da sanção. A oportunidade que o
Supremo Tribunal Federal terá para tratar adequadamente da matéria
é a ADI 4882, incluindo o dever de justificar o motivo da permanência
da penalidade no atual sistema contributivo, algo ainda não discutido
na Corte. Por isso, não há de se falar que exista consenso da jurispru-
dência do Supremo sobre o tema, pois o principal argumento em prol
da inconstitucionalidade não foi devidamente enfrentado pelo Tribunal.
Por outro lado, os defensores da constitucionalidade têm razão
quando argumentam que não há propriamente um ato jurídico perfeito
a resguardar o servidor inativo. Se havia circunstância que não foi reve-
lada no momento da concessão da aposentadoria, a higidez do ato é, no
mínimo, questionável. Isso porque, caso se soubesse da conduta ilícita e
fosse aberto procedimento administrativo punitivo a tempo, nos termos
do art. 172 da Lei no 8.112/1990, não seria possível a concessão do bene-
fício. Como, no momento do deferimento da aposentadoria, não era de
conhecimento da Administração Pública a conduta delituosa pratica-
da pelo servidor público, a alegação de impossibilidade de aplicação de
pena em momento posterior criaria um verdadeiro bill de indenidade
para o servidor aposentado: seria impossível responsabilizá-lo, ao me-
nos no campo administrativo, por ato ilícito praticado ainda na ativida-
de. Tal circunstância não parece estar em conformidade com o Estado
democrático de direito, o qual exige a responsabilidade dos indivíduos
que cometem ilícitos administrativos.
É preciso também levar a sério o argumento de que a eliminação
da penalidade criaria incentivos perversos aos servidores públicos que
já preenchem os requisitos para a requisição do benefício, mas perma-
necem em atividade em razão do abono de permanência. Sabendo que
teria imunidade em caso de aposentadoria, ao menor indício de que
poderia ser acusado de uma conduta ilícita durante o exercício do cargo,
o servidor poderia requerer a aposentadoria e livrar-se de uma possível
punição. Do ponto de vista da criação de uma estrutura adequada de
incentivos23, esse não parece ser o melhor desenho institucional, uma
vez que facilitaria a adoção de comportamentos ilícitos pelos servidores.
Nesse cenário, haveria um maior estímulo à prática de condutas delituo-
sas após a reunião dos requisitos necessários para a obtenção da aposen-
tadoria, pois o servidor saberia que teria na concessão do benefício um
escudo para se proteger de eventuais processos disciplinares.
Em acréscimo, não se pode desprezar que a cassação da aposenta-
doria parece apelar para um senso de justiça e de moralidade acessível

23
Sobre o tema, ver Friedman (2001, p. 11).

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a qualquer cidadão comum. Ainda que, no sis- Com essas informações em mente, é im-
tema atual, a aposentadoria não constitua um possível não concluir que a aposentadoria no
prêmio para o servidor, aos olhos da sociedade serviço público, mesmo no regime contribu-
parece imoral que um indivíduo que, compro- tivo, ainda constitui uma vantagem, uma vez
vadamente, se utilizou do cargo público para que os valores são muito mais elevados do que
obter vantagem pessoal ou que, de outra for- o benefício pago aos trabalhadores do setor
ma, não tenha desempenhado de forma ade- privado. Por que manter essa distinção favorá-
quada o seu ofício, receba dos cofres públicos vel para servidores que comprovadamente co-
uma remuneração robusta por um longo perí- meteram ilícitos? Não seria claramente injusto
odo de tempo e sem prestar nenhum serviço permitir que o indivíduo se aposente com va-
efetivo à coletividade. A cassação parece ser lores exorbitantes mesmo tendo uma conduta
uma punição justa, no sentido mais popular da reprovável durante o exercício de suas funções?
expressão, para aqueles que não cumpriram os Em segundo lugar, além do elevado mon-
padrões mínimos de moralidade no exercício tante dos proventos do regime próprio em
de suas funções. comparação com o regime geral, outro dado
Outros dois aspectos referentes ao regime não pode ser esquecido. Ainda que o servidor
próprio de previdência social devem ser lem- arque com a contribuição previdenciária (11%
brados. Em primeiro lugar, a média do valor sobre o valor de sua remuneração, nos termos
das aposentadorias no serviço público é muito do art. 4o da Lei no 10.887/2004), e com isso
maior do que no setor privado. A primeira ra- contribua financeiramente para a sua aposen-
zão para isso é bastante simples: a remunera- tadoria, uma parte relevante do valor disponí-
ção do serviço público no Brasil, seja em qual vel no fundo também é custeada pelos cofres
categoria for, é, em média, muito mais elevada públicos.26
do que a do setor privado24. A segunda razão Assim, do ponto de vista financeiro, não é
está nas peculiaridades do regime próprio de verdade que o servidor público é o único res-
previdência, que permite o pagamento de pro- ponsável pela formação da sua aposentadoria.
ventos mais elevados do que o regime geral.25 Pelo contrário, uma expressiva parcela do seu

24
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domi- despesa média com aposentados do Poder Executivo da
cílios (PNAD) de 2013, elaborada pelo Instituto Brasileiro União é de R$ 8.739,00 (oito mil setecentos e trinta e nove
de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que o ren- reais). A média dos outros poderes é ainda mais alarman-
dimento médio dos servidores públicos federais é 288% te: (i) incríveis R$ 26.285,00 (vinte e seis mil, duzentos e
maior do que a média nacional. No ano de 2015, a média oitenta e cinco reais) no Poder Legislativo; (ii) R$ 18.303
da despesa mensal com a remuneração dos servidores ati- (dezoito mil trezentos e três reais) no Poder Judiciário; e
vos do Poder Executivo federal era de R$ 9.723,00 (nove (iii) R$ 16.932 (dezesseis mil, novecentos e trinta e dois
mil setecentos e vinte e três reais), segundo o Boletim Es- reais) no Ministério Público da União, de acordo com os
tatístico de Pessoal e Informações Organizacionais, divul- dados trazidos pelo Boletim Estatístico de Pessoal e Infor-
gado em fevereiro de 2015 pelo Ministério do Planejamen- mações Organizacionais, divulgado em fevereiro de 2015
to, o que representa uma remuneração próxima a 1% dos pelo Ministério do Planejamento.
mais ricos no país e três vezes maior que o PIB per capita 26
De acordo com o art. 8o da Lei no 10.887/2004, a
brasileiro em 2014. Se analisarmos a média da despesa contribuição da União para o custeio do regime de previ-
mensal de outros poderes, os valores são ainda mais ele- dência é o dobro da contribuição do servidor ativo. E mais:
vados: (i) R$ 15.034,00 (quinze mil e trinta e quatro reais) o parágrafo único do dispositivo mencionado afirma que
para o Poder Legislativo; (ii) R$ 15.255,00 (quinze mil, du- a União é responsável por cobrir eventuais insuficiências
zentos e cinquenta e cinco reais) para o Poder Judiciário; financeiras do regime decorrentes do pagamento de bene-
e (iii) R$ 13.971,00 (treze mil, novecentos e setenta e um fícios previdenciários. Em outras palavras, há uma quan-
reais) para o Ministério Público da União. tidade significativa de recursos públicos drenados para
25
Enquanto o teto previdenciário do RGPS gira em o pagamento de aposentadorias de servidores (BRASIL,
torno de R$ 4.500,00(quatro mil e quinhentos reais), a 2004).

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provento de inatividade vem justamente da contribuição paga pelo po-
der público, o que enfraquece a tese de enriquecimento ilícito por parte
do Estado no momento da cassação da aposentadoria. Novamente, as
perguntas que merecem resposta são: o que justificaria manter uma apo-
sentadoria em regime privilegiado para indivíduos punidos em processo
administrativo disciplinar? Como justificar isso perante a sociedade?
Diante desse cenário, a proposta do presente trabalho é buscar o ca-
minho do meio.
Entendemos que não há razão jurídica para declarar a inconstitucio-
nalidade dos arts. 127, IV, e 134 da Lei no 8.112/1990. De fato, o art. 41,
§1o, II, da Constituição permite a perda do cargo para servidor públi-
co condenado em processo administrativo disciplinar. Com a perda do
cargo, ficaria insubsistente o ato de concessão de aposentadoria. Ainda
que o regime administrativo não se confunda com o previdenciário, é
certo que o servidor apenas tem direito aos benefícios do regime pró-
prio de previdência se está empossado em um cargo público efetivo.
Caso contrário, o regime de previdência ao qual está vinculado seria o
RGPS. Tanto é assim que o art. 183, §1o, da Lei no 8.112/1990 determina
que os ocupantes de cargo em comissão que não sejam, simultaneamen-
te, ocupantes de cargo ou emprego efetivo na Administração Pública
não têm direito aos benefícios do regime próprio de previdência.
Por outro lado, como já explicado acima, não há de se falar em ato
jurídico perfeito ou direito adquirido. A higidez do ato de concessão
de aposentadoria fica prejudicada justamente pelo conhecimento a
posteriori de fato impeditivo de concessão do benefício, com funda-
mento no art. 172 da Lei no 8.112/1990. Caso a conduta delituosa fosse
conhecida antes da requisição da aposentadoria, sendo instaurado o
devido processo administrativo disciplinar, o servidor ficaria impedido
de ter seu pedido deferido, o que levaria a sua demissão em caso de
aplicação de pena.
Também não se sustenta o argumento do caráter perpétuo da pena
e a sua característica de ultrapassar a pessoa do acusado. O fato de a
sanção ser definitiva, não quer dizer que ela é perpétua. A cassação da
aposentadoria em um cargo específico não impede o servidor de vir a
se aposentar em outro cargo, desde que cumpra os requisitos mínimos.
Não se trata de uma impossibilidade eterna de auferir benefício previ-
denciário no regime próprio, mas sim de concessão de aposentadoria
em razão de um ilícito cometido em cargo específico. Em princípio, não
há qualquer empecilho à aposentadoria por outro cargo público.
Além disso, o mero fato de a penalidade atingir indiretamente os
familiares do servidor não significa que ela ultrapassa a pessoa do indi-
ciado. Se assim fosse, o ordenamento jurídico brasileiro não permitiria

RIL Brasília a. 53 n. 212 out./dez. 2016 p. 81-100 95


nenhuma condenação pecuniária, tendo em vista que qualquer perda
financeira provocada por decisão do poder público, em alguma medi-
da, prejudica materialmente os familiares do apenado. Fora isso, não
há como alegar que há, em qualquer hipótese, um direito subjetivo à
obtenção de pensão pelos herdeiros do servidor público, especialmente
quando eles dispõem de meios para obtenção da própria sobrevivência.
A constitucionalidade da cassação da aposentadoria, contudo, deve
ser acompanhada de uma válvula de escape para o servidor punido. Os
arts. 127, IV, e 134 da Lei no 8.112/1990 devem ser interpretados con-
forme a Constituição, de maneira a permitir a contagem do tempo de
contribuição no regime próprio para efeito de aposentadoria no regime
geral, com fundamento no art. 201, §9o, da Constituição.27
Essa solução, além de fundamentada na Constituição e na legislação
pertinente, compreende uma série de benefícios. Primeiro, respeita a
natureza contributiva do regime próprio de previdência social, de modo
que o aporte financeiro realizado pelo servidor terá como contrapartida,
ainda que sem uma comutatividade direta, um benefício previdenciário
concedido pelo Estado. Segundo, privilegia a jusfundamentalidade do
direito à aposentadoria, na medida em que o indivíduo condenado não
ficará sem uma proteção mínima da seguridade social, o que, de modo
indireto, também promove o princípio da dignidade da pessoa humana.
Terceiro, ao mesmo tempo em que preserva os direitos do indiciado,
também alcança os anseios de punição da sociedade, na medida em que
não concede ao servidor faltoso um regime mais benéfico do que o dis-
ponibilizado para a maior parte dos demais cidadãos, garantindo-lhe o
mesmo tratamento dos demais empregados regidos pelo RGPS. Quarto,
desonera os já combalidos fundos de pensão dos servidores públicos,
sem deixar de prestar um cobertor de segurança mínimo ao servidor
apenado. Quinto, cria uma estrutura correta de incentivos aos servido-
res que se mantém no cargo mesmo tendo direito à aposentadoria, de
maneira a não estimular a prática de condutas delituosas. Sexto, preser-
va a proporcionalidade e a isonomia nas sanções disciplinares aplicadas
aos servidores públicos, na medida em que trata da mesma forma aque-
les que praticaram conduta ilícita passível da penalidade de demissão
durante a atividade, uma vez que tanto os que foram demitidos quanto

27
De acordo com o dispositivo, “Para efeito de aposentadoria, é assegurada a conta-
gem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada,
rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de previdência social se compensa-
rão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei” (BRASIL, 1988). Assim, o
servidor que teve a sua aposentadoria cassada poderia requerer a sua filiação no RGPS e
postular a contagem recíproca do tempo de contribuição do regime próprio. Nos termos
do art. 99 da Lei no 8.213/1991, o benefício seria pago na forma da legislação do regime
geral de previdência e de acordo com a contagem do tempo de contribuição, ficando in-
teiramente regido pelo RGPS.

96 RIL Brasília a. 53 n. 212 out./dez. 2016 p. 81-100


os que tiveram a aposentadoria cassada podem, igualmente, aproveitar
o tempo de contribuição no regime próprio para o regime geral de pre-
vidência.28

6. Síntese conclusiva

O caminho do meio proposto no presente trabalho busca compatibili-


zar tanto os principais argumentos pela constitucionalidade dos arts. 127,
IV, e 134 da Lei no 8.112/1990 quanto a questão essencial levantada pelos
defensores da inconstitucionalidade da cassação de aposentadoria: a na-
tureza contributiva do regime próprio de previdência social, promovida
pelas Emendas Constitucionais no 03/1993, no 20/1998 e no 41/2013.
O aproveitamento do tempo de contribuição no RGPS para servido-
res punidos com a cassação de aposentadoria constitui o melhor meca-
nismo para preservar os interesses contrapostos no presente caso: de um
lado, o direito individual do servidor de ter uma contrapartida financei-
ra do Estado pelos anos de contribuição previdenciária vertida aos cofres
públicos; de outro lado, o interesse da sociedade em punir os servidores
que não executam suas atividades de acordo com os padrões exigidos.
A esperança é que as ponderações apresentadas no presente tra-
balho contribuam para o debate sobre o tema, bem como funcionem
como auxílio argumentativo para a decisão a ser proferida nos autos
da ADI 4882. Defendemos que o Supremo Tribunal Federal enfrente
adequadamente as teses contrapostas, respondendo aos argumentos
contrários à manutenção da penalidade no regime administrativo brasi-
leiro, de modo a pacificar a questão.
A melhor postura, a mais adequada à Constituição, é a que preserva
a validade da sanção disciplinar da cassação da aposentadoria, de um
lado, mas permite, de outro, o aproveitamento, no RGPS, do tempo de
contribuição prestado pelo servidor ao Regime Próprio, mediante com-
pensação financeira entre os sistemas públicos de seguro social.

28
A proposta aqui apresentada já encontra ressonância na jurisprudência. O Tribunal
Regional Federal da 5a Região, em sede de apelação no processo no 2004.83.02.005904-2,
adotou entendimento defendido neste trabalho, ao afirmar expressamente que o servidor
que teve a pena de cassação de aposentadoria decretada em processo administrativo disci-
plinar, apesar de não ter direito a reaver as parcelas da contribuição previdenciária já ver-
tidas ao sistema, poderia aproveitar o tempo de contribuição no RGPS. Ver TRF 5ª Região,
Apelação cível no 392178/PE, Rel. Des. Francisco Wildo, j. em 23/mar./2010. A mesma so-
lução também é defendida por João Batista Ribeiro: “Na hipótese em comentário, não há
qualquer proibição na legislação que impeça ao servidor público, aposentado pelo Regime
Próprio de Previdência que, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada
ampla defesa, tenha sido punido com a pena de cassação de aposentadoria, prevista no art.
134 da Lei no 8.112, de 1990, filie-se ao RGPS e, após o cumprimento da carência mínima
exigida (art. 24, §único, da Lei no 8.213/1991), aproveite a regra do art. 99, da Lei no 8.213,
de 1991, a fim de lhe garantir o direito à aposentação” (RIBEIRO, 2012, p. 65).

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A proposta apresentada, além de dar solução jurídica à questão, é a
mais justa e a que preserva o núcleo essencial do Direito Fundamental à
Previdência, em situação de isonomia entre os servidores públicos e os
segurados do Regime Geral de Previdência.

Sobre os autores
Marcelo Leonardo Tavares é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; professor adjunto de Direito
Previdenciário da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), RJ, Brasil.
E-mail: marceloltavares@globo.com
Estêvão Gomes Corrêa dos Santos é mestre em Direito Público pela Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ), RJ, Brasil.
E-mail: estevaogcs@gmail.com

Título, resumo e palavras-chave em inglês29


RETIREMENT REPEAL PENALTY: A MIDDLE PATH
ABSTRACT: This article aims to examine the constitutionality of the retirement repeal
penalty after the changes in Brazilian Constitution that modified the national social
security system. We will analyze the arguments in favor and against the constitutionality
of the administrative sanction and propose a middle path, which seeks to balance the
validity of the penalty with the individual right of public servants to receive a financial
contribution paid by the State after by years of contribution for the social security
system.
KEYWORDS: PENSION LAW. RETIREMENT REPEAL PENALTY.
CONSTITUTIONALITY.

Como citar este artigo


(ABNT)
TAVARES, Marcelo Leonardo; SANTOS, Estêvão Gomes Corrêa dos. Cassação de
aposentadoria: o caminho do meio. Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 53,
n. 212, p. 81-100, out./dez. 2016. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/ril/
edicoes/53/212/ril_v53_n212_p81>.

29
Sem revisão do editor.

98 RIL Brasília a. 53 n. 212 out./dez. 2016 p. 81-100


(APA)
Tavares, Marcelo Leonardo, & Santos, Estêvão Gomes Corrêa dos. (2016). Cassação de
aposentadoria: o caminho do meio. Revista de Informação Legislativa: RIL, 53(212), 81-
100. Recuperado de http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/53/212/ril_v53_n212_p81

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