O Boulevard Dos Sonhos Perdidos - Uma Experiência Cênica

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O Boulevard dos

Sonhos Perdidos
Tem sempre algo que nos assombra.
Uma rua e seus frequentadores...
Uma rua e os sonhos que não deram certo...
Sonhos que não voltam mais...
Sonhos perdidos...

Texto:

Wilson Roque Basso


Cena 1

Primeiro contato: trevas. Música Stormy Weather. Abre a cortina. No palco, no


lado esquerdo, vemos um poste e uma lua, um homem está sob a luz do poste,
fumando e, no lado direito vemos duas mulheres; uma mulher fuma, o nome
dela é VIVIAN. Ela usa roupão surrado, cabelos em desalinho e às suas costas
encontra-se uma outra mulher, sentada numa cadeira, costurando uma roupa,
o nome dela é NORMA, elas estão congeladas num tempo; tanto o homem e as
duas mulheres estão congelados em tempos diferentes. Entra pelo lado direito
do palco uma mulher de casaco, luvas e chapéu, e traz na mão uma mala. Ela
vem atravessando o palco, enquanto continuamos a ouvir a música Stormy
Weather. A mulher continua a caminhar e vai até o poste, é o boulevard, é como
se ela acabasse de chegar de viagem, vindo de algum lugar distante.

As duas mulheres do lado direito descongelam:

VIVIAN: Olha só pra essa rua...

NORMA: Não é uma rua, é uma avenida.

VIVIAN: Um boulevard... Era assim que todos a chamavam: boulevard. Nome


chique e pomposo.

NORMA: O boulevard dos sonhos perdidos...

VIVIAN: E foi aqui, exatamente neste boulevard, que minha mãe atracou sua
vida, feito um velho navio.

NORMA: Desceu a sua âncora tão funda que nunca mais deixou este lugar, sou
testemunha disso, viu?!

VIVIAN: Sabe, ela me contava que logo que desceu de um ônibus, caindo aos
pedaços e cheio de gente que fedia à nicotina e suor, que encontrou um homem...
Ele se chamava... Como era mesmo o nome dele...? Não consigo me lembrar o
maldito nome do sujeito!

No lado esquerdo, um tempo: o passado. No lado direito, outro tempo: o


presente. Os tempos vão se intercalando.

RAVI: Como é seu nome, garota bonita?

002
HILDA: Hilda.

RAVI: É um belo nome. Simples, porém belo. Como a flor; frágil, porém graciosa.
Mas o seu nome é forte, significa: “a guerreira”, “a combatente”.

HILDA: Sabe tanto assim de nomes?

RAVI: É sempre bom saber a origem do nome, isso diz muito sobre a pessoa.

HILDA: E como se chama?

VIVIAN: Ravi! Esse era o nome do homem, do primeiro homem que minha mãe
conheceu logo que chegou!

NORMA: Coitada... Hilda era jovem demais e era tão ingênua...

HILDA: Ravi... Nunca conheci ninguém com esse nome... E o que significa?

RAVI: Vem do sânscrito e significa “sol”.

HILDA: Sol...

RAVI: Esse nome tem a simbologia do sol, refletindo a luz, conhecimento e poder.
Ou seja, minha nobre e bela Hilda, eu sou àquele que traz luz à vida das pessoas!

VIVIAN: Essa é boa!... Foi o que ele disse à minha mãe, assim que ela botou os
pés nesta avenida.

NORMA: Esse Ravi foi o grande amor de Hilda, ela fazia tudo por ele.

VIVIAN: E ele, nada por ela.

NORMA: Nós mulheres somos assim mesmo, filha, fazer o quê?!... Quando nos
apaixonamos somos lançadas a um inferno de sofrimento e prazer, amor e ódio,
alegria e tristeza, é assim. A vida é assim.

VIVIAN: Ele trouxe desgraça para a vida dela.

NORMA: Não deveria falar assim de seu pai.

VIVIAN: Ele não era meu pai! Quantas vezes já lhe pedi para não repetir mais
isso?! Velha desgraçada...

NORMA: Sou sua tia, mais respeito!

003
VIVIAN: Você não é minha tia. Minha mãe não tinha parentes quando chegou a
este maldito lugar!

NORMA: Mas eu a ajudei nas dificuldades que teve no começo, e depois a criar
você. Hilda não tinha um pingo de condições.

VIVIAN: Por causa de quem?!... (Norma fica calada) Não consegue responder,
não é? Sua velha enxerida! Mas foi por causa daquele cafetão desgraçado que a
vida dela nunca foi ao rumo certo!

NORMA: Não fale dele desse modo! Ele era um homem bom!

VIVIAN: Bondade nunca residiu naquele coração. E você ainda o defende?!

NORMA: Ele gostava da sua mãe, se apaixonou por ela, logo que a viu.

VIVIAN: Não fale asneiras, aquele homem a via como um pedaço de carne.

NORMA: Você se tornou uma mulher amarga, lamento muito por isso... Deveria
encontrar alguém.

VIVIAN: O amor é uma fruta que já nasce podre.

NORMA: E o rancor é uma ferrugem que vai impedindo, pouco a pouco, as


engrenagens do coração funcionar.

VIVIAN: Não me valem de nada as suas palavras.

RAVI: Posso perguntar de onde vem?

HILDA: Como sabe que venho de outro lugar?

RAVI: Não precisa ser nenhum detetive para deduzir... (Aponta a mala com a
cabeça).

HILDA: Ah!... A mala.

RAVI: E então, a garota bonita é de onde?

HILDA: De bem longe. Não quero falar disso, só preciso de um lugar para
pernoitar e depois, bem logo pela manhã procurar um emprego.

RAVI: Vou levá-la para a pensão da Dona Norma.

HILDA: É familiar?

Entra uma prostituta. Caminhando e fumando. Ela avança para a frente do


palco.

DEYSE: Esta cidade vai te engolir, garota.


004
RAVI: (Falando para Hilda) Espere um instante...

Ravi vai até a prostituta.

RAVI: O que faz aqui, Lindalva?!

LINDA: Quantas vezes tenho que repetir pra não me chamar de Lindalva?! É
Linda! Lindalva é nome de gente pobre... É Linda... Simples assim. (Olha para
Hilda) Ah.... Eu já entendi... Agora sei porque está agindo dessa maneira, o Dom
Juan das ruas, o mestre das calçadas está de olho em outra...

RAVI: Cala essa sua boca!

LINDA: Está prestes a fazer outra vítima, abater outra presa. Você é bem cara de
pau, Ravi! Está também prometendo coisas a ela, como fez comigo?

RAVI: Cai fora e vê se consegue mais clientes hoje, porque o seu trabalho anda
em baixa, não está dando lucro.

LINDA: O que está fazendo com ela, Ravi? Vai devorar os sonhos dela também,
destruí-los como fez com os meus?

RAVI: Quantas vezes ainda terei que repetir que você não tem talento. Pessoas
como você nascem sem talento, ou melhor, nascem pra outros talentos, se é que
me entende.

LINDA: Você promete coisas que nunca cumpre, nos envolve com seu charme e
depois nos empurra para um abismo de sexo e drogas... Destrói os nossos sonhos
como um verdadeiro canalha! Você é uma máquina de moer carnes!

RAVI: E você só tem carne que não presta. Agora, se manda! Cai fora!

Linda sai às pressas e consternada.

RAVI: Hilda!... Aonde é que paramos?

HILDA: Estamos aqui... O que aconteceu com àquela garota?

RAVI: Nada... Ela está com um problema familiar, e me veio pedir dinheiro.

HILDA: Coitadinha...

RAVI: Realmente é uma coitadinha... Mas me diga, qual é o seu sonho?

HILDA: Meu sonho?

RAVI: Todos nós temos um sonho. É o sonho que nos move.

HILDA: Promete que não rir?

005
RAVI: Primeira lição pra quem vai morar nesta rua: nunca deve ter vergonha dos
sonhos, senão eles não se realizam, Hilda! E então, qual é o seu sonho?

HILDA: Quero ser atriz de cinema.

VIVIAN: Minha mãe queria ser atriz de cinema, adorava Elizabeth Taylor, Bette
Davis, Joan Crawford... Mas depois mudou os planos, foi ser cantora.

NORMA: E ela fez muito sucesso na boate Coração Vermelho, sabia?!

VIVIAN: Naquela boate, naquela espelunca fétida?! Coitada... Aquele antro foi a
sua ruína... Olha só, daqui ainda dá pra se ver o letreiro em Neon todo enferrujado
e pisca suas luzes com dificuldade como se estivessem doentes, tossindo... O
coração já nem ascende mais...

NOEMA Já não é mais como antes...

VIVIAN: Nada é mais como antes... nem mesmo a gente...

RAVI: Então, quer ser atriz de cinema?! É um sonho e tanto, garota...

HILDA: Acha que não consigo?

RAVI: Claro que consegue! Basta você pedir para àquela... para àquela lua.

HILDA: (Descrente) Pra lua?...

RAVI: Sim! Peça a ela e seus sonhos irão se realizar.

VIVIAN: A minha mãe não era somente ingênua, era uma tola. Aonde já se viu,
pedir desejos à uma lua.

NORMA: Era uma garota cheia de sonhos e esperanças, Vivian.

VIVIAN: Sonhos que a levaram à morte.

NORMA: Não fale mais sobre isso.

VIVIAN: Ela foi assassinada, tia!

Cena 2

Entra um jornaleiro.

JORNALEIRO: Extra! Extra! Mais uma mulher é assassinada na boate Coração


Vermelho! Saibam mais sobre esse terrível crime!

006
O jornaleiro cruza o palco. Entra um homem ele é um investigador da polícia.

INVESTIGADOR: Hei! Você aí...

Ravi se aproxima.

RAVI: Pois não, tá procurando por companhia?

INVESTIGADOR: Não é nada disso... Como é seu nome, rapaz?

RAVI: E por que quer saber?

INVESTIGADOR: (Tirando do bolso e exibindo o distintivo) Polícia. Estou


investigando a morte da garota.

RAVI: Meu nome é Ravi.

INVESTIGADOR: Então, Ravi, sabe alguma coisa da garota?

RAVI: Que garota?

INVESTIGADOR: Em que planeta você está? Tô falando da pobre que foi


assassinada, esfaqueada há quinze dias!

RAVI: Ah... Sei muito pouco... O nome dela era... Linda... Quer dizer, ela chamava
Lindalva. Trabalhava como dançarina na Coração Vermelho e, o senhor sabe,
fazia alguns servicinhos extras.

INVESTIGADOR: Tem certeza que não sabe de nada?... Escuta, rapaz, eu sei
como funciona a lei das ruas.

RAVI: Sabe, é?... Então, deve saber também que quem fala muito, acaba mudo,
com a boca costurada.

O investigador puxa Ravi para um canto.

INVESTIGADOR: Vamos lá, rapaz, bata a língua nos dentes! Ninguém vai ficar
sabendo desta nossa conversa.

RAVI: Eu não tenho muito pra falar dela... Eu a conheci muito pouco... Só sei que
numa noite ela desceu de um carro, tinha vindo não sei de onde de carona até
aqui, sentou-se na calçada e começou a chorar. A garota não tinha pra onde ir.

INVESTIGADOR: E você, muito caridosamente, a ajudou, certo?

RAVI: O que mais eu poderia fazer por ela? Claro que a ajudei.

INVESTIGADOR: Dá pra se ver que você é um homem muito generoso,


principalmente com as mulheres.

007
RAVI: É, eu sou...

INVESTIGADOR: Não viu ninguém, nada de anormal por essa rua? Alguém
desconhecido?

RAVI: (Depois de pensar) Não... Não vi nada.

Investigador tira um cartão do bolso.

INVESTIGADOR: Se souber de algo, não hesite em me ligar.

O investigador sai, entra Hilda correndo e abraça fortemente Ravi.

HILDA: Ravi, a Linda foi morta! Ela foi assassinada!

Foco, novamente no lado direito do palco sobre Norma e Vivian.

VIVIAN: Depois começaram acontecer àqueles crimes... Primeiro tinha sido uma
mulher de origem africana, Olga, esse era o nome dela, depois foi a vez de uma
que tinha já uma certa idade, mas ainda trabalhava na rua, Carmem, e depois...

NORMA: Não vamos falar sobre isso, sabe perfeitamente que essa tragédia me
aborrece muitíssimo.

VIVIAN: Não deveria. Já se passaram tantos anos e nada da polícia descobrir


quem a matou. Esqueceram dela...

NORMA: Ninguém esqueceu de ninguém, Vivian. Vai ver que o assassino era
apenas um forasteiro, um caixeiro viajante. Passou, matou e foi embora.

Foco de luz sobre um jovem rapaz abotoando a camisa. Às suas costas está uma
jovem prostituta.

LINDA: (Abraçando-o por de trás.) Faz tanto tempo que você não vinha me ver,
me procurava, senhor Marcus Blackthorn...

MARCUS: (Seco, cortante.) Eu trabalho.

LINDA: Marcus Blackthorn... O que significa?

MARCUS: É inglês e significa que não toque em mim, quando não quero que
toquem em mim.

A garota tira as mãos em volta dele.

LINDA: Tudo bem... Você é bonito, atraente e coisa e tal, mas é muito esquisito...

Marcus a pega com força pelo braço.

008
MARCUS: O que foi que você disse, sua vagabunda?!

LINDA: Você está me machucando!

MARCUS: Posso te machucar ainda mais, se eu quiser. (Tira um dinheiro do bolso


e atira na cara de Linda) Agora, pega a merda desse e cai fora.

LINDA: (Apanhando do dinheiro espalhado no chão.) Eu não entendo você...

MARCUS: Não tente.

LINDA: Você é um homem bonito, bem sucedido... Dá pra se ver que é de família
nobre e vive por esses lados da cidade? É uma coisa que não dá para entender!

MARCUS: Eu gosto... Os bons prazeres valem muito dinheiro e vocês fogem à


regra... Olha só, a felicidade não reside somente em dormir em lençóis de seda,
limpar a boca com guardanapos de linho e tomar um bom vinho em taças de
cristais. Pelo menos, não pra mim... Eu gosto de sentir o cheiro da escória, sentir
o cheiro de bode que os miseráveis têm... É como sair do céu e descer ao inferno,
pecar um pouco, cometer as maiores atrocidades e depois, subir novamente ao
éden, totalmente revigorado.

LINDA: Você poderia ter tudo.

MARCUS: Eu tenho tudo, mas eu gosto de ver e sentir o que os miseráveis fazem
por um punhado de notas... O que são capazes e até onde estão dispostos a
chegarem por dinheiro...

LINDA: É assim que me vê?

MARCUS: (Olha por um instante.) Você tem um verniz... tem algo que me atrai,
é especial... Não sei dizer exatamente o que é, mas sinto que você é diferente.

LINDA: Jura?... Eu não me sinto deste lugar... Quero sair daqui o quanto antes e
ter uma outra vida, bem melhor que esta que levo.

MARCUS: Não fale assim... perderia seu encanto.

LINDA: Que encanto pode ter esta vida? Que maldito encanto pode ter esta
situação lastimável?!

MARCUS: Vocês fazem parte de uma outra fauna... Agora, se manda.

Linda sai. Foco de luz se apaga sobre Marcus Blackthorn.

Entram Hilda e Ravi.

HILDA: E como foi que a conheceu?

009
RAVI Por incrível que pareça, as histórias parecem se repetir. Foi como você,
desembarcou nesta avenida, desceu de um carro, caminhou um pouco pela
calçada e depois de andar uma quadra, sentou-se ali, naquele lugar, na sarjeta e
começou a chorar de soluçar.

Enquanto Ravi narra a chegada de Lindalva ao boulevard a cena acontece;


entra Lindalva e senta-se na beira do palco e começa a chorar. Ravi deixa Hilda
e vai até a mulher sentada na calçada. Hilda assiste à cena toda como uma mera
espectadora.

RAVI: Por que razão chora, moça?

LINDA: Eu acabei de descer de um carro de um desconhecido. Chego de bem


longe, onde Judas perdeu as botas.

RAVI: Todos nós viemos de algum lugar. Seja bom ou ruim, é um lugar. Como se
chama?

LINDA: Lindalva, mas gosto que me chamem de Linda.

RAVI: Linda é melhor.

LINDA: Por que acha também que “Lindalva” é nome de gente pobre, é?

RAVI: Não. Não tem nada a ver, moça. Linda é mais sonoro.

LINDA: Porque eu acho “Lindalva” nome de gente pobre.

RAVI: Se você está dizendo...

LINDA: Minha mãe me batizou com este nome... Talvez porque já sabia que eu
seria uma desgraçada...

RAVI: Não fala assim.

LINDA: Como é seu nome?

RAVI: Ravi.

LINDA: Nome esquisito.

RAVI: Significa sol.

LINDA: O meu não significa porra nenhuma.

RAVI: Claro que significa, você é uma mulher muito bonita e, é por isso que
“Linda” combina muito com você.

010
LINDA: Acha mesmo?

RAVI: Não só acho, como tenho certeza.

LINDA: Mas o meu nome é Lindalva... E não Linda.

RAVI: Não importa. Me diga, você tem um sonho?

LINDA: Por quê?

RAVI: Porque todos que vêm pra esta rua, tem um sonho.

LINDA: Não... Mas já o tive...

RAVI: Ninguém deixa de ter sonhos.

LINDA: Mesmo depois de uma grande decepção? Quando jovem, tinha uma
grande voz, sonhava em ser cantora. Aos 16 anos tive a tão sonhada oportunidade
da minha vida, assinar um álbum com uma das maiores gravadoras do país...

Surge a figura de um homem, no canto do palco.

AGENTE: Isso não é nome de cantora, Aonde já se viu, Lindalva... Vamos chamá-
la de... Rosa Maria. Isso: Rosa Maria, isso sim é nome de cantora: “Rosa Maria a
próxima rainha do rádio!”.

RAVI: Puxa! Isso é demais, Linda!

LINDA: Pois é, foi demais pra mim... Mas no mesmo mês, descobri que estava grávida.
A gravadora desistiu do contrato, alegando que a minha gravidez atrapalharia tudo e,
como se isso não bastasse, meu namorado me deixou e meus pais me desertaram. Criei
o meu filho, sozinha, com pouquíssima ajuda, mas meu filho morreu de acidente de carro
e cá estou, sem nada e sem destino algum, pra viver uma vida que não vale nada...

Ravi sai de perto de Linda e vai até Hilda.

RAVI: Foi assim que a conheci...

HILDA: Pobre Linda, agora está morta.

RAVI: Naquela mesma noite em que nos conhecemos, linda cantou uma música
para mim, foi lindo...

Mudança de Luz. Linda canta a música: “Boulevard Of Broken Dreams”

011
Cena 3

Mudança de Luz. Entra por um lado o Investigador e do outro lado entra um


homem de macacão, boné e limpando as mãos com um pano sujo de graxa.

INVESTIGADOR: Sou o Investigador Oliver, como vai, senhor Sam?

SAM: Eu sei bem que você é... Já o vi passar inúmeras vezes em frente à minha
oficina.

INVESTIGADOR: Gosta de carros é?

SAM: Diga o que quer.

INVESTIGADOR: Estou investigando a morte da dançarina da boate Coração


Vermelho.

SAM: Essas putas não têm jeito mesmo, são todas umas sujas...

INVESTIGADOR: Não acha que está sendo preconceituoso demais?

SAM: Agora falar a verdade virou preconceito, é? Essas vadias mijam na porta do
meu estabelecimento. Todas as manhãs tenho que lavar com creolina! O cheiro
da creolina me embrulha o estômago...

INVESTIGADOR: Eu tive uma família nada fácil, meu pai era preconceituoso,
homofóbico...

SAM: Ele achava que tu era viado, é?

INVESTIGADOR: Nada disso. E minha mãe era muito religiosa, mais católica que
o Papa.

SAM: Este é o momento em que eu choro? Olha, Investigador Oliver, por que não
faz as perguntas que tem que fazer e zarpa daqui, hein? Tenho muito serviço.

INVESTIGADOR: Sobre a mulher que foi morta na boate Coração Vermelho?

SAM: O que tem?...

INVESTIGADOR: A conheceu?

SAM: Olha bem pra mim, acha que tenho cara de quem se enrosca com esse tipo
de gente?

INVESTIGADOR: Levando em conta o que tem pregado na parede nos fundos da


sua oficina, acredito que tem suas taras.

012
SAM: Oficina é lugar de homem, já dizia o meu pai, e tem que ter mulher bonita
embelezando o lugar.

INVESTIGADOR: Sei... E tem àquelas mulheres nuas na parede pra...

SAM: Pra me aliviar, entende o que digo?

INVESTIGADOR: Entendo... Bom, o senhor conhecia ou chegou a conhecer a


morta, a senhora Lindalva Queiroz?

SAM: Quem? Com esse nome não... Não sabia que a Linda tinha esse nome...

INVESTIGADOR: Então a conhecia.

SAM: Claro. Nesta rua todos nós nos conhecemos, nos tratamos uns aos outros
com muita cordialidade. Política da boa vizinhança.

INVESTIGADOR: Sei como é... Teve alguma coisa com ela?

SAM: Seja mais específico.

INVESTIGADOR: Já fodeu com ela?

SAM: (Solta uma risadinha) O senhor não foi específico, foi direto. Acertou o cu
da mosca, eu diria... Sim, eu e linda tivemos um rala-e-rola, um chega-junto-aqui,
entende? Ela me confessou que tinha uma tara de transar com mecânicos, numa
oficina. Era noite, desci a porta e fomos para os fundos e o senhor consegue
presumir o que aconteceu, não preciso desenhar, preciso?

INVESTIGADOR: Não, não precisa. Se apaixonou por ela?

SAM: Não... Faz tempo que não sei o que é isso... Aliás, acho que nunca me
apaixonei por ninguém... Depois que...

INVESTIGADOR: Depois quê...?

SAM: Eu nasci e cresci dentro de uma família pobre, meu pai era dono de um pub
decadente que ficava em baixo de nossa casa, onde traia a minha mãe
praticamente todas as noites, era um homem agressivo e ausente
emocionalmente, a minha mãe era uma simples "dona de casa" e cometia
pequenos furtos para conseguir o que queria e não prestava muita atenção em
mim. Cresci nas ruas, sem muito amparo de meus pais, apenas meus amigos eram
a minha família. Com eles eu fui crescendo e aprendendo a "se dar bem"; cometia
alguns furtos, enganava algumas pessoas e segui a vida sem se esforçar muito na
escola ou procurar trabalho para se manter.

INVESTIGADOR: (Sarcástico.) É neste momento em que eu choro?

013
SAM: Ainda não, segure suas lágrimas. Quando eu tinha 16 anos conheci uma
garota e acho que acreditei que aquilo que sentia por ela era amor, nos
apaixonamos e ficamos juntos por dois anos, até que ela descobriu meus crimes
e me denunciou à polícia... Desgraçada! Filha da puta! Bom, meu pai não era flor
que se cheirava, fechou o pub, viemos para cá e ele acabou abrindo essa oficina.
Eu não tive escolha, a não ser seguir os meus pais e assumir este ofício... Eu
cheguei a sonhar em ser piloto de Fórmula 1, acredita?...

INVESTIGADOR: Chegou perto, agora cuida de carros.

SAM: Engraçadinho... Eu não tive nada a ver com a morte dessa... mulher.

INVESTIGADOR: Se apaixonou por ela, mas Linda o desprezou e não suportando


a dor de seu desprezo, por isso a matou?

SAM: Poderia ser uma boa possibilidade, mas eu já disse que não tive nada a ver
com a morte dela! Por que não pergunta pra àquele almofadinha?

INVESTIGADOR: Quem?...

SAM: Ele é um viciado em putas... É rico, dá pra se ver, mas gosta de comer a
ralé... Tem cara de gente rica e refinamento, poderia comer caviar, mas prefere
um bom prato de arroz com feijão e ovo. Vai entender essa gente deste mundo,
tem gente que larga o milho pra comer a merda.

INVESTIGADOR: Sabe o nome dele?

SAM: Marcus Blackthorn, lembro bem desse nome. Uma vez trouxe o carro pra
fazer uma revisãozinha...

Entra de um lado Marcus Blackthorn e Oliver se volta para ele.

MARCUS: Espero que seja rápido, senhor...?

INVESTIGADOR: Oliver.

MARCUS: O nome do escritor...

INVESTIGADOR: Minha mãe gostava de ler Oliver Twist.

MARCUS: Sua mãe tinha refinamento.

INVESTIGADOR: Éramos pobres, senhor Blackthorn.

MARCUS: Mas refinamento não tem nada a ver com a quantidade de dinheiro
que se tem em bancos. Existem pessoas que nascem refinadas, mesmo sendo
miseráveis.

INVESTIGADOR: Obrigado, tomarei isso como um elogio.

014
MARCUS: É um elogio, senhor Investigador. Diga o que quer.

INVESTIGADOR: Falar sobre Lindalva.

MARCUS: Eu amava a Linda... Do meu jeito, mas a amava.

INVESTIGADOR: Gosta de ficar com prostitutas, senhor Blackthorn?

MARCUS: Eu as amo... Gosto da vida que levam e das habilidades que possuem,
se é que me entende.

Entra uma mulher com um paletó em mãos.

LÚCIA: Querido, não esqueça o seu paletó.

MARCUS: Como haveria de me esquecer, minha adorável Lúcia. Senhor Oliver,


esta é minha esposa, Lúcia Blackthorn. Lúcia este é o Investigador Oliver.

Os dois se cumprimentam.

INVESTIGADOR: Encantado.

LÚCIA: O senhor aceita beber algo?

MARCUS: O senhor Oliver veio falar da pobre Linda.

LÚCIA: Que horror... Como alguém pode cometer tamanha atrocidade... Aonde
já se viu, tirar a vida de uma pessoa!

INVESTIGADOR: Pois é... Infelizmente, este á o mundo em que vivemos.

MARCUS: Entre eu e Lúcia não existem segredos, senhor Oliver.

INVESTIGADOR: Que bom.

LÚCIA: Mas eu não entendo porque veio interrogar o meu marido, senhor Oliver.

MARCUS: Porque àquela rua, o Boulevard dos Sonhos Perdidos, assim como a
chamam, é caminho do meu trabalho e passo lá todo o santo dia, Lúcia. E paro
religiosamente na doceria para tomar um café e comer um bom-bocado de cocô
com goiabada.

LÚCIA: Isso é verdade. Àquela doceria é realmente um lugar celestial, senhor


Oliver. Os doces parecem ser feitos pelas mãos de anjos! Anjos do nosso Senhor!

MARCUS: Amém. Minha querida Lúcia é uma esposa exemplar, senhor Oliver. É
uma santa!

INVESTIGADOR: Eu percebi, senhor Blackthorn. Uma santa.

015
MARCUS: Eu na verdade, não sei nada dessa senhora, a pobre que foi morta. Mas
estarei disposto a ajudá-lo a prender o responsável, se assim quiser, é claro.

INVESTIGADOR: Toda ajuda é bem-vinda, senhor Blackthorn. Quem sabe o


senhor e eu tomamos um café nessa doceria.

MARCUS: Será um prazer, Investigador.

INVESTIGADOR: Senhora, foi um prazer conhecê-la.

LÚCIA: Venha quando quiser, senhor Oliver.

Oliver sai.

LÚCIA: Você tem que tomar mais cuidado, meu marido.

MARCUS: Não se preocupe, está tudo sob controle... Não quero que se atormente
com coisas triviais.

LÚCIA: Coisas triviais?! Uma mulher foi morta e eu sei bem o que deve ter
acontecido.

MARCUS: Foi um descontrole, só isso.

LÚCIA: Um descontrole que pode nos trazer muitos aborrecimentos. Pode causar
a nossa separação.

MARCUS: Sentiria a minha falta?

LÚCIA: (Enfática.) Eles não podem descobrir o nosso segredo, Marcus!

MARCUS: Ninguém vai descobrir nada, fique tranquila.

LÚCIA: Já não é o seu primeiro deslise... A polícia pode chegar muito perto de
nós.

MARCUS: Para de ser pessimista, mulher! Confia em mim.

LÚCIA: Estamos nos arriscando demais.

MARCUS: Você quer que eu pare com tudo isso?

LÚCIA: Não!... Sabe que eu preciso que você continue sendo o que é...

MARCUS: E o que sou para você, Lúcia?

LÚCIA: Você é o que me mantém viva.

016
MARCUS: Não quero que se preocupe com esse investigadorzinho.

LÚCIA: Ela já limpou os pés no nosso capacho!

Lúcia sai, Marcus fica pensativo.

Blecaute.

Cena 4
Foco de luz sobre Vivian e Norma.

NORMA: Eu não sei o que você pensa, filha... Fica aí relembrando o que já
passou... Por que não esquece esse maldito passado?!

VIVIAN: Minha mãe foi morta, logo depois de Linda ter a garganta cortada.

NORMA: Ela teve a garganta cortada, é?... Você não me disse isso...

VIVIAN: Eu não disse?... Pois é, ela teve a garganta cortada de fora a fora, sangrou
feito uma galinha.

NORMA: Que horror... Tinha um homem que andava por aqui, por essas bandas
da cidade. Era um homem muito bonito, usava roupas elegantes e tinha modos
refinados. Era um homem misterioso. Uma vez ele se hospedou aqui, na pensão
com uma mulher...

VIVIAN: Ele chegou a conhecer a minha mãe?

NORMA: Sua mãe trabalhou muito tempo na rua... e só depois, foi trabalhar na
boate Coração Vermelho.

No lado esquerdo do palco surge um homem, conversando com o investigador


Oliver.

INVESTIGADOR: Pense bem, Constantino... Você está aqui servindo mesas há


anos, deve ter visto alguém.

CONSTANTINO: Disse bem, sirvo mesas e não sou vigia de rua. Muitas pessoas
passam por aqui, senhor Oliver. Muitas pessoas vêm e vão, e não dá pra ficar de
braços cruzados, reparando no que as pessoas estão fazendo!

INVESTIGADOR: Um homem sempre vem aqui e pede um café e um pedaço de


bom-bocado de côco com goiabada, o que me diz dele?

CONSTANTINO: Café e bom-bocado de côco com goiabada... Ah, sim! Sei quem
é! É um bom sujeito, bem distinto! Me dá boas gorjetas.

017
INVESTIGADOR: Então, o que acha dele?

CONSTANTINO: Acabei de dizer, é um homem bom, distinto. O que quer que eu


diga, afinal?

INVESTIGADOR: Ele chegou alguma vez aqui acompanhado?

CONSTANTINO: Não posso falar dos clientes da doceria... é uma norma da casa.

INVESTIGADOR: Quer que eu convide você a bater um papinho na delegacia e,


quem sabe, aproveito pra puxar sua capivara. A gente nunca sabe o que as pessoas
guardam em seu passado.

CONSTANTINO: Que isso seja segredo de confissão.

INVESTIGADOR: Como quiser, ninguém vai saber que você abriu o bico.

Voltamos para Norma e Vivian.

VIVIAN: Lembra da doceria da esquina?

NORMA: Fazia uns doces maravilhosos, era de dar água na boca!

VIVIAN: Pois é... fechou há anos... Tinha um garçom, o Constantino, lembro


dele... Olhou para mim, ainda garotinha, grudada na barra da saia da minha mãe,
e depois fez um afago na minha cabeça...

NORMA: Como consegue se lembrar disso? Você era tão criança... Não sei como
consegue, realmente não sei.

VIVIAN: A polícia veio aqui, não veio?

NORMA: O quê?...

VIVIAN: Veio interrogar você bem aqui... Eu escutei tudo, estava atrás da porta.

Entra o investigador Oliver e Vivian fica observando Norma e ele como uma
mera espectadora.

INVESTIGADOR: Eu sinto muito pela sua perda.

NORMA: Ela era como uma filha para mim.

INVESTIGADOR: Sei como deve estar sendo difícil pra senhora... ainda mais que
ela deixou uma filha, Vivian, para a senhora cuidar.

NORMA: Ela já está com quinze anos, vai superar. Mas o que quer comigo, senhor
Oliver.

018
INVESTIGADOR: Falar sobre a morte de Hilda. Teve a garganta cortada como a
dançarina Linda.

NORMA: Vocês da polícia não conseguiram solucionar a morte de Linda, acham


que vão encontrar o assassino de Hilda?

INVESTIGADOR: Ela teve a garganta cortada, morreu da mesma maneira que


Linda...

NORMA: Eu sei... mas o que quer afinal de mim?

INVESTIGADOR: Saber um pouco da vida de Hilda.

NORMA: Ela veio aqui, perdeu seus sonhos e agora se foi...

INVESTIGADOR: Simples assim?

NORMA: Não tem nada de interessante numa vida como a de Hilda. Essas
mulheres foram mortas porque tiveram seus sonhos perdidos...

INVESTIGADOR: O que está dizendo?

NORMA: Nada de muita importância...

VIVIAN: O que foi que ele disse depois?

NORMA: Você não ouviu tudo? Não estava atrás da porta?

VIVIAN: Sim, eu estava... mas eu não consigo me lembrar o que ele disse...

INVESTIGADOR: Em todas essas mortes, algo muito peculiar me chamou a


atenção, dona Norma.

NORMA: E o que seria, senhor Oliver?

INVESTIGADOR: As vítimas sofreram agressões e nas cenas dos crimes,


faltavam-lhes uma peça íntima... suas calcinhas.

NORMA: Que curioso. Então, além de ser um assassino ele é um pervertido


sexual.

INVESTIGADOR: Podemos presumir que sim.

No outro canto do palco entra Lúcia e Marcus Blackthorn.

LÚCIA: Mais uma morte, meu marido, como isso é possível?

MARCUS: Não podemos evitar, são os efeitos colaterais, Lúcia.

LÚCIA: A polícia já está no nosso encalço.

019
MARCUS: Não precisa me lembrar sempre disso... Afinal, o que quer que eu faça?

LÚCIA: Quero que tome muito cuidado, só isso... Quem foi dessa vez?

MARCUS: Hilda... Ela disse que estava apaixonada por mim.

LÚCIA: As mulheres se apaixonam muito facilmente, são presas fáceis... Basta


um homem sussurrar-nos palavras doces em nossos ouvidos, pronto, lá estamos
nós abobalhadas e com os quatro pneus arriados.

MARCUS: Ela era muito bonita.

LÚCIA: Se apaixonou por ela também?

MARCUS: Não, claro que não... É você quem eu amo.

LÚCIA: Fico feliz com essas suas palavras doces... E então, trouxe o que eu lhe
pedi? Ou melhor, o que me pertence?

Marcus tira um pequeno embrulho do bolso do paletó e o entrega à Lúcia.

MARCUS: Eu nunca vou entender essa sua... tara.

LÚCIA: Por que acha que casei com você?... Meu querido, você tem suas fantasias,
gosta de se deleitar com prostitutas e eu só peço pequenos souvenires delas...
Pequenas lembranças.

Lúcia vai saindo.

MARCUS: Aonde vai?

LÚCIA: Guardarei o meu pequeno presente e depois irei à Madame Bravatska.

MARCUS: Outra vez?! Você vai se consultar de novo com essa cartomante,
clarividente, feiticeira, sei lá o que essa mulher é?!

LÚCIA: Precisamos de proteção.

MARCUS: Mas você já é uma mulher religiosa.

LÚCIA: Sim, mas toda ajuda nunca é demais.

Voltamos para Norma, Vivian.

VIVIAN: Ele era um pervertido...

NORMA: Você ouviu bem o que ele disse.

VIVIAN: Foi ele quem matou todas aquelas mulheres?

020
NORMA: Não sei... Os boatos corriam soltos por esse boulevard, filha. Alguns
diziam que tinha sido o garçom daquela doceria, outros falavam que podia ser
muito bem o senhor Sam da oficina mecânica, ele tinha tido um caso com àquela
prostituta que foi morta... a Linda.

VIVIAN: Qualquer um, desta rua, poderia ser o assassino. Eu sei que eu era jovem
demais para entender certas coisas, mas a minha mãe foi morta, teve a garganta
cortada também. Minha mãe era tão jovem e talentosa.

A cena congela em Vivian e Norma. Entra Hilda cantando a canção “A Vida é


Um Moinho”.

Blecaute.

Cena 5
O cenário é composto ao som de uma música; mesa e duas cadeiras. Entra Lúcia
e depois entra Madame Bravatska, uma mulher trajando roupas coloridas,
turbante alto na cabeça, brincos e muitas pulseiras e colares, parece uma rainha
egípcia.

M. BRAVATSKA: Que bons ventos a traz de volta aqui, senhora Blackthorn.

LÚCIA: Preciso que deite as cartas para mim.

M. BRAVATSKA: Mas esteve aqui ontem mesmo.

LÚCIA: Estou com um pressentimento...

M. BRAVATSKA: Que tipo de pressentimento?

LÚCIA: Preciso saber se tudo isso que está acontecendo é verdade, é real.

M. BRAVATSKA: E o que é a verdade? E o que é a realidade?

LÚCIA: Madame Bravatska, me ajude por favor. Acho que estou ficando louca.

M. BRAVATSKA: No mundo em que vivemos hoje, todos nós estamos ficando


loucos, senhora Blackthorn.

LÚCIA: Mas é que eu sinto que às vezes, sou outra pessoa.

M. BRAVATSKA: Mas isto não é caso para se deitar as cartas, filha, é caso de
procurar um médico, um especialista de cabeça.

LÚCIA: É como se eu vivesse outra vida.

M. BRAVATSKA: E... você conhece essa pessoa que jura viver outra vida e que
não seja a sua?

021
LÚCIA: É que a história dela se confunde com a minha... entende?

M. BRAVATSKA: Dela quem?...

LÚCIA: Dessa mulher... Acho que o nome dela é Vivian.

M. BRAVATSKA: Sonha com ela?

LÚCIA: Às vezes... Aliás, tudo se confunde dentro da minha cabeça.

M. BRAVATSKA: Fala disso com o seu marido?

LÚCIA: De maneira alguma... Marcus jamais entenderia...

M. BRAVATSKA: Entenderia o quê?

LÚCIA: Por favor, Madame Bravatska, deite as cartas para mim. Quero saber o
que me resta...

Entra no canto do palco, sob o foco de luz Vivian seguida pela tia Norma.

VIVIAN: Vamos titia, coloque as cartas sobre a mesa! Fale toda a verdade!

Madame Bravatska a olha com indignação e começa a colocar as cartas sobre


a mesa.

NORMA: (Entrando) Mas que verdade, criatura?! A sua mãe foi morta por aquele
sujeito, o tal do senhor Blackthorn.

VIVIAN: Ele foi preso?

NORMA: Não... Você sabe como as coisas funcionam neste mundo, não é?! Gente
rica consegue os melhores advogados e, você sabe também, que dinheiro compra
qualquer um.

VIVIAN: Algo me diz que não foi ele, o senhor Blackthorn.

NORMA: Você está ficando louca, sabia?

VIVIAN: Não fale assim de mim.

NORMA: Não você não está ficando louca, você já nasceu louca! Deus que me
livre de você...

Norma sai.

VIVIAN: Eu sei que não foi ele quem a matou, mas se não foi o senhor Blackthorn,
quem foi?... Será que foi o dono da oficina?...

022
Do outro lado do palco aparece o senhor Sam.

SAM: Eu só tive mesmo um caso com aquela vagabunda... a Linda... Eu amava


linda...

VIVIAN: Tem também o garçom, o Constantino...

Em outro ponto do palco.

CONSTANTINO: Eu?! Eu só sirvo mesas... Não tenho tempo de ficar atras de


rabos de saia... Com essa, já se soma quatro corpos, quatro assassinatos!

VIVIAN: Pode ter sido aquele verme... Ravi.

Em outro ponto do palco.

RAVI: Eu jamais faria isso, ainda mais com a sua mãe, filha!

VIVIAN: (Grita.) Não me chame de filha! Espera um instante... pode ter sido
àquela invejosa, a Samantha...

No outro canto do palco, Samantha e o Investigador.

SAMANTHA: Eu e Hilda sempre fomos rivais, mas isso não quer dizer que eu a
matei. Eu não morria de amores por ela e ela nem por mim, então ficávamos
quites.

INVESTIGADOR: Certo... Mas durante o tempo em que trabalharam juntas na


boate, notou algo de diferente nela, chegou a vê-la com alguém?

SAMANTHA: Detetive, qual é o seu problema? Nós estamos sempre com alguém,
nos relacionamos com pessoas, precisamente com homens. A gente os conhece,
vamos para algum lugar, fazemos o serviço, eles pagam e cada um segue o seu
caminho. É assim que funciona as coisas.

No outro lado do palco, entra Norma.

NORMA: (Entrando.) De onde você tirou essa tal de Samantha? Nunca existiu
essa Samantha.

VIVIAN: Existiu sim. Ela era dançarina na boate Coração Vermelho.

NORMA: Criatura do céu, você está equivocada. Sua mãe tinha mais inimigos que
o presidente dos Estados Unidos. Hilda sempre foi uma mulher de poucas
amizades. As meninas da boate não gostavam muito dela porque Hilda era uma
bela mulher. E você sabe, ela tinha muitos admiradores.

VIVIAN: Uma vez, eu a vi discutindo com a Samantha, a mulher que lhe falei!

023
NORMA: E onde você viu as duas conversando?

VIVIAN: Quando minha mãe levou para assistir um ensaio na boate.

NORMA: Isso é mentira. Você deve ter sonhado isso, muitas pessoas confundem
sonho com realidade.

VIVIAN: Eu juro!

NORMA: Sua mãe nunca levou você naquele antro de perdição, era assim que ela
chamava aquele lugar: antro de perdição. Ela dizia que faria de tudo para manter
você bem distante daquele lugar.

VIVIAN: Isso não é verdade.

NORMA: A verdade é uma ilusão.

Blecaute.

Cena 5
Foco sobre Ravi e Hilda como se tivessem naquela primeira noite em que se
conheceram.

RAVI: E o que é uma ilusão, se não um pequeno sonho perdido em pensamentos


que nos levam para bem longe, como um navio.

HILDA: A minha vida é um navio...

RAVI: E resolveu atracar aqui, descer sua âncora aqui nesta rua, no Boulevard
dos Sonhos Perdidos...

No outro canto do palco.

VIVIAN: Por que Boulevard dos Sonhos Perdidos?...

No outro ponto do palco, sob o poste de luz.

RAVI: Porque os sonhos se perdem na nossa realidade, Vivian!

No outro canto do palco.

NORMA: Me diga, Vivian, o que faz pensar que sua mãe foi morta por alguém?

VIVIAN: (Transtornada, quase louca, delirante) Não foi?... Foi alguém dessa rua,
eu sei! As pessoas com quem ela falava, ela conhecia essa gente toda... As pessoas
falavam mal dela... Eu tinha vergonha...

NORMA: Vergonha?... Me diga mais sobre isso... Consegue me falar sobre essa
dor, sobre a dor da perda?
024
RAVI: Fale um pouco sobre sua mãe.

INVESTIGADOR: Não vejo suspeito neste caso, ou melhor falando, não vejo
culpados nas mortes daquelas mulheres.

VIVIAN: Àquelas mulheres...

NORMA: Quem são essas mulheres, Vivian?

VIVIAN: Quem são?... Eu não sei... Elas viviam aqui na rua...

SAMANTHA: Por que não fala sobre a Linda...

VIVIAN: Linda está morta...

NORMA: Morta? Quem está morta?

VIVIAN: A Linda foi assassinada, assim como a minha mãe... As outras mulheres
foram mortas...

NORMA: Você também falou de uma Samantha, quem era essa mulher?

VIVIAN: Eu não sei!

LÚCIA: Está na hora dela encarar o espelho, concorda comigo, meu marido?

MARCUS: Está na hora dessa mulher encarar a verdade!

NORMA: Fale a verdade para mim, Vivian...

VIVIAN: O que a senhora quer que eu diga, tia?!

NORMA: Vivian, eu não sou sua tia. Mantenha-se na realidade. Estou aqui para
ajudá-la.

RAVI: Mantenha-se no sonho!

M. BRAVATSKA: O sonho é um lugar melhor e seguro! Posso deitar as cartas pra


você, minha menina.

INVESTIGADOR: Houve uma morte... O nome da coitada era... Hilda.

CONSTANTINO: Eu cheguei a servir café com bolo de chocolate para ela, na


doceria, no dia em que ela foi morta.

MARCUS: Teve a garganta cortada?

SAM: Foi envenenada.

NORMA: Fala pra mim, Vivian, como a sua mãe foi morta?
025
VIVIAN: Ela foi envenenada...

NORMA: Entendo...

LÚCIA: Foi eu que levei o veneno!

NORMA: Quem levou o veneno?

VIVIAN: Lúcia... Sim foi ela que fez chá com preparos venenosos...

NORMA: Lúcia?...

VIVIAN: A esposa daquele homem... ele era o assassino! Marcus Blackthorn...

LÚCIA: Meu marido nunca foi o assassino.

VIVIAN: Foi ele! Foi ele quem matou todas aquelas mulheres.

NORMA: Tem certeza disso, Vivian?... Ou está apenas buscando culpados nesse
seu mundo imaginário.

LÚCIA: Ela encheu uma xícara com preparos venenosos.

VIVIAN: É mentira! Eu jamais faria isso... Não faria com ninguém, muito menos
com a minha mãe... minha mãezinha...

NORMA: Está tudo na sua mente, Vivian... Está tudo aí dentro.

LÚCIA: Todos nós estamos aí dentro.

M.BRAVATSKA: Presos como animais enjaulados.

MARCUS: Vivos como num sonho.

Música dramática. Luz cai em resistência.

Fim

026

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