O Boulevard Dos Sonhos Perdidos - Uma Experiência Cênica
O Boulevard Dos Sonhos Perdidos - Uma Experiência Cênica
O Boulevard Dos Sonhos Perdidos - Uma Experiência Cênica
Sonhos Perdidos
Tem sempre algo que nos assombra.
Uma rua e seus frequentadores...
Uma rua e os sonhos que não deram certo...
Sonhos que não voltam mais...
Sonhos perdidos...
Texto:
VIVIAN: E foi aqui, exatamente neste boulevard, que minha mãe atracou sua
vida, feito um velho navio.
NORMA: Desceu a sua âncora tão funda que nunca mais deixou este lugar, sou
testemunha disso, viu?!
VIVIAN: Sabe, ela me contava que logo que desceu de um ônibus, caindo aos
pedaços e cheio de gente que fedia à nicotina e suor, que encontrou um homem...
Ele se chamava... Como era mesmo o nome dele...? Não consigo me lembrar o
maldito nome do sujeito!
002
HILDA: Hilda.
RAVI: É um belo nome. Simples, porém belo. Como a flor; frágil, porém graciosa.
Mas o seu nome é forte, significa: “a guerreira”, “a combatente”.
RAVI: É sempre bom saber a origem do nome, isso diz muito sobre a pessoa.
VIVIAN: Ravi! Esse era o nome do homem, do primeiro homem que minha mãe
conheceu logo que chegou!
HILDA: Ravi... Nunca conheci ninguém com esse nome... E o que significa?
HILDA: Sol...
RAVI: Esse nome tem a simbologia do sol, refletindo a luz, conhecimento e poder.
Ou seja, minha nobre e bela Hilda, eu sou àquele que traz luz à vida das pessoas!
VIVIAN: Essa é boa!... Foi o que ele disse à minha mãe, assim que ela botou os
pés nesta avenida.
NORMA: Esse Ravi foi o grande amor de Hilda, ela fazia tudo por ele.
NORMA: Nós mulheres somos assim mesmo, filha, fazer o quê?!... Quando nos
apaixonamos somos lançadas a um inferno de sofrimento e prazer, amor e ódio,
alegria e tristeza, é assim. A vida é assim.
VIVIAN: Ele não era meu pai! Quantas vezes já lhe pedi para não repetir mais
isso?! Velha desgraçada...
003
VIVIAN: Você não é minha tia. Minha mãe não tinha parentes quando chegou a
este maldito lugar!
NORMA: Mas eu a ajudei nas dificuldades que teve no começo, e depois a criar
você. Hilda não tinha um pingo de condições.
VIVIAN: Por causa de quem?!... (Norma fica calada) Não consegue responder,
não é? Sua velha enxerida! Mas foi por causa daquele cafetão desgraçado que a
vida dela nunca foi ao rumo certo!
NORMA: Não fale dele desse modo! Ele era um homem bom!
NORMA: Ele gostava da sua mãe, se apaixonou por ela, logo que a viu.
VIVIAN: Não fale asneiras, aquele homem a via como um pedaço de carne.
NORMA: Você se tornou uma mulher amarga, lamento muito por isso... Deveria
encontrar alguém.
RAVI: Não precisa ser nenhum detetive para deduzir... (Aponta a mala com a
cabeça).
HILDA: De bem longe. Não quero falar disso, só preciso de um lugar para
pernoitar e depois, bem logo pela manhã procurar um emprego.
HILDA: É familiar?
LINDA: Quantas vezes tenho que repetir pra não me chamar de Lindalva?! É
Linda! Lindalva é nome de gente pobre... É Linda... Simples assim. (Olha para
Hilda) Ah.... Eu já entendi... Agora sei porque está agindo dessa maneira, o Dom
Juan das ruas, o mestre das calçadas está de olho em outra...
LINDA: Está prestes a fazer outra vítima, abater outra presa. Você é bem cara de
pau, Ravi! Está também prometendo coisas a ela, como fez comigo?
RAVI: Cai fora e vê se consegue mais clientes hoje, porque o seu trabalho anda
em baixa, não está dando lucro.
LINDA: O que está fazendo com ela, Ravi? Vai devorar os sonhos dela também,
destruí-los como fez com os meus?
RAVI: Quantas vezes ainda terei que repetir que você não tem talento. Pessoas
como você nascem sem talento, ou melhor, nascem pra outros talentos, se é que
me entende.
LINDA: Você promete coisas que nunca cumpre, nos envolve com seu charme e
depois nos empurra para um abismo de sexo e drogas... Destrói os nossos sonhos
como um verdadeiro canalha! Você é uma máquina de moer carnes!
RAVI: E você só tem carne que não presta. Agora, se manda! Cai fora!
RAVI: Nada... Ela está com um problema familiar, e me veio pedir dinheiro.
HILDA: Coitadinha...
005
RAVI: Primeira lição pra quem vai morar nesta rua: nunca deve ter vergonha dos
sonhos, senão eles não se realizam, Hilda! E então, qual é o seu sonho?
VIVIAN: Minha mãe queria ser atriz de cinema, adorava Elizabeth Taylor, Bette
Davis, Joan Crawford... Mas depois mudou os planos, foi ser cantora.
VIVIAN: Naquela boate, naquela espelunca fétida?! Coitada... Aquele antro foi a
sua ruína... Olha só, daqui ainda dá pra se ver o letreiro em Neon todo enferrujado
e pisca suas luzes com dificuldade como se estivessem doentes, tossindo... O
coração já nem ascende mais...
RAVI: Claro que consegue! Basta você pedir para àquela... para àquela lua.
VIVIAN: A minha mãe não era somente ingênua, era uma tola. Aonde já se viu,
pedir desejos à uma lua.
Cena 2
Entra um jornaleiro.
006
O jornaleiro cruza o palco. Entra um homem ele é um investigador da polícia.
Ravi se aproxima.
RAVI: Ah... Sei muito pouco... O nome dela era... Linda... Quer dizer, ela chamava
Lindalva. Trabalhava como dançarina na Coração Vermelho e, o senhor sabe,
fazia alguns servicinhos extras.
INVESTIGADOR: Tem certeza que não sabe de nada?... Escuta, rapaz, eu sei
como funciona a lei das ruas.
RAVI: Sabe, é?... Então, deve saber também que quem fala muito, acaba mudo,
com a boca costurada.
INVESTIGADOR: Vamos lá, rapaz, bata a língua nos dentes! Ninguém vai ficar
sabendo desta nossa conversa.
RAVI: Eu não tenho muito pra falar dela... Eu a conheci muito pouco... Só sei que
numa noite ela desceu de um carro, tinha vindo não sei de onde de carona até
aqui, sentou-se na calçada e começou a chorar. A garota não tinha pra onde ir.
RAVI: O que mais eu poderia fazer por ela? Claro que a ajudei.
007
RAVI: É, eu sou...
INVESTIGADOR: Não viu ninguém, nada de anormal por essa rua? Alguém
desconhecido?
VIVIAN: Depois começaram acontecer àqueles crimes... Primeiro tinha sido uma
mulher de origem africana, Olga, esse era o nome dela, depois foi a vez de uma
que tinha já uma certa idade, mas ainda trabalhava na rua, Carmem, e depois...
NORMA: Não vamos falar sobre isso, sabe perfeitamente que essa tragédia me
aborrece muitíssimo.
NORMA: Ninguém esqueceu de ninguém, Vivian. Vai ver que o assassino era
apenas um forasteiro, um caixeiro viajante. Passou, matou e foi embora.
Foco de luz sobre um jovem rapaz abotoando a camisa. Às suas costas está uma
jovem prostituta.
LINDA: (Abraçando-o por de trás.) Faz tanto tempo que você não vinha me ver,
me procurava, senhor Marcus Blackthorn...
MARCUS: É inglês e significa que não toque em mim, quando não quero que
toquem em mim.
LINDA: Tudo bem... Você é bonito, atraente e coisa e tal, mas é muito esquisito...
008
MARCUS: O que foi que você disse, sua vagabunda?!
LINDA: Você é um homem bonito, bem sucedido... Dá pra se ver que é de família
nobre e vive por esses lados da cidade? É uma coisa que não dá para entender!
MARCUS: Eu tenho tudo, mas eu gosto de ver e sentir o que os miseráveis fazem
por um punhado de notas... O que são capazes e até onde estão dispostos a
chegarem por dinheiro...
MARCUS: (Olha por um instante.) Você tem um verniz... tem algo que me atrai,
é especial... Não sei dizer exatamente o que é, mas sinto que você é diferente.
LINDA: Jura?... Eu não me sinto deste lugar... Quero sair daqui o quanto antes e
ter uma outra vida, bem melhor que esta que levo.
LINDA: Que encanto pode ter esta vida? Que maldito encanto pode ter esta
situação lastimável?!
009
RAVI Por incrível que pareça, as histórias parecem se repetir. Foi como você,
desembarcou nesta avenida, desceu de um carro, caminhou um pouco pela
calçada e depois de andar uma quadra, sentou-se ali, naquele lugar, na sarjeta e
começou a chorar de soluçar.
RAVI: Todos nós viemos de algum lugar. Seja bom ou ruim, é um lugar. Como se
chama?
LINDA: Por que acha também que “Lindalva” é nome de gente pobre, é?
RAVI: Não. Não tem nada a ver, moça. Linda é mais sonoro.
LINDA: Minha mãe me batizou com este nome... Talvez porque já sabia que eu
seria uma desgraçada...
RAVI: Ravi.
RAVI: Claro que significa, você é uma mulher muito bonita e, é por isso que
“Linda” combina muito com você.
010
LINDA: Acha mesmo?
RAVI: Porque todos que vêm pra esta rua, tem um sonho.
LINDA: Mesmo depois de uma grande decepção? Quando jovem, tinha uma
grande voz, sonhava em ser cantora. Aos 16 anos tive a tão sonhada oportunidade
da minha vida, assinar um álbum com uma das maiores gravadoras do país...
AGENTE: Isso não é nome de cantora, Aonde já se viu, Lindalva... Vamos chamá-
la de... Rosa Maria. Isso: Rosa Maria, isso sim é nome de cantora: “Rosa Maria a
próxima rainha do rádio!”.
LINDA: Pois é, foi demais pra mim... Mas no mesmo mês, descobri que estava grávida.
A gravadora desistiu do contrato, alegando que a minha gravidez atrapalharia tudo e,
como se isso não bastasse, meu namorado me deixou e meus pais me desertaram. Criei
o meu filho, sozinha, com pouquíssima ajuda, mas meu filho morreu de acidente de carro
e cá estou, sem nada e sem destino algum, pra viver uma vida que não vale nada...
RAVI: Naquela mesma noite em que nos conhecemos, linda cantou uma música
para mim, foi lindo...
011
Cena 3
SAM: Eu sei bem que você é... Já o vi passar inúmeras vezes em frente à minha
oficina.
SAM: Essas putas não têm jeito mesmo, são todas umas sujas...
SAM: Agora falar a verdade virou preconceito, é? Essas vadias mijam na porta do
meu estabelecimento. Todas as manhãs tenho que lavar com creolina! O cheiro
da creolina me embrulha o estômago...
INVESTIGADOR: Eu tive uma família nada fácil, meu pai era preconceituoso,
homofóbico...
INVESTIGADOR: Nada disso. E minha mãe era muito religiosa, mais católica que
o Papa.
SAM: Este é o momento em que eu choro? Olha, Investigador Oliver, por que não
faz as perguntas que tem que fazer e zarpa daqui, hein? Tenho muito serviço.
INVESTIGADOR: A conheceu?
SAM: Olha bem pra mim, acha que tenho cara de quem se enrosca com esse tipo
de gente?
012
SAM: Oficina é lugar de homem, já dizia o meu pai, e tem que ter mulher bonita
embelezando o lugar.
SAM: Quem? Com esse nome não... Não sabia que a Linda tinha esse nome...
SAM: Claro. Nesta rua todos nós nos conhecemos, nos tratamos uns aos outros
com muita cordialidade. Política da boa vizinhança.
SAM: (Solta uma risadinha) O senhor não foi específico, foi direto. Acertou o cu
da mosca, eu diria... Sim, eu e linda tivemos um rala-e-rola, um chega-junto-aqui,
entende? Ela me confessou que tinha uma tara de transar com mecânicos, numa
oficina. Era noite, desci a porta e fomos para os fundos e o senhor consegue
presumir o que aconteceu, não preciso desenhar, preciso?
SAM: Não... Faz tempo que não sei o que é isso... Aliás, acho que nunca me
apaixonei por ninguém... Depois que...
SAM: Eu nasci e cresci dentro de uma família pobre, meu pai era dono de um pub
decadente que ficava em baixo de nossa casa, onde traia a minha mãe
praticamente todas as noites, era um homem agressivo e ausente
emocionalmente, a minha mãe era uma simples "dona de casa" e cometia
pequenos furtos para conseguir o que queria e não prestava muita atenção em
mim. Cresci nas ruas, sem muito amparo de meus pais, apenas meus amigos eram
a minha família. Com eles eu fui crescendo e aprendendo a "se dar bem"; cometia
alguns furtos, enganava algumas pessoas e segui a vida sem se esforçar muito na
escola ou procurar trabalho para se manter.
013
SAM: Ainda não, segure suas lágrimas. Quando eu tinha 16 anos conheci uma
garota e acho que acreditei que aquilo que sentia por ela era amor, nos
apaixonamos e ficamos juntos por dois anos, até que ela descobriu meus crimes
e me denunciou à polícia... Desgraçada! Filha da puta! Bom, meu pai não era flor
que se cheirava, fechou o pub, viemos para cá e ele acabou abrindo essa oficina.
Eu não tive escolha, a não ser seguir os meus pais e assumir este ofício... Eu
cheguei a sonhar em ser piloto de Fórmula 1, acredita?...
SAM: Engraçadinho... Eu não tive nada a ver com a morte dessa... mulher.
SAM: Poderia ser uma boa possibilidade, mas eu já disse que não tive nada a ver
com a morte dela! Por que não pergunta pra àquele almofadinha?
INVESTIGADOR: Quem?...
SAM: Ele é um viciado em putas... É rico, dá pra se ver, mas gosta de comer a
ralé... Tem cara de gente rica e refinamento, poderia comer caviar, mas prefere
um bom prato de arroz com feijão e ovo. Vai entender essa gente deste mundo,
tem gente que larga o milho pra comer a merda.
SAM: Marcus Blackthorn, lembro bem desse nome. Uma vez trouxe o carro pra
fazer uma revisãozinha...
INVESTIGADOR: Oliver.
MARCUS: Mas refinamento não tem nada a ver com a quantidade de dinheiro
que se tem em bancos. Existem pessoas que nascem refinadas, mesmo sendo
miseráveis.
014
MARCUS: É um elogio, senhor Investigador. Diga o que quer.
MARCUS: Eu as amo... Gosto da vida que levam e das habilidades que possuem,
se é que me entende.
Os dois se cumprimentam.
INVESTIGADOR: Encantado.
LÚCIA: Que horror... Como alguém pode cometer tamanha atrocidade... Aonde
já se viu, tirar a vida de uma pessoa!
LÚCIA: Mas eu não entendo porque veio interrogar o meu marido, senhor Oliver.
MARCUS: Porque àquela rua, o Boulevard dos Sonhos Perdidos, assim como a
chamam, é caminho do meu trabalho e passo lá todo o santo dia, Lúcia. E paro
religiosamente na doceria para tomar um café e comer um bom-bocado de cocô
com goiabada.
MARCUS: Amém. Minha querida Lúcia é uma esposa exemplar, senhor Oliver. É
uma santa!
015
MARCUS: Eu na verdade, não sei nada dessa senhora, a pobre que foi morta. Mas
estarei disposto a ajudá-lo a prender o responsável, se assim quiser, é claro.
Oliver sai.
MARCUS: Não se preocupe, está tudo sob controle... Não quero que se atormente
com coisas triviais.
LÚCIA: Coisas triviais?! Uma mulher foi morta e eu sei bem o que deve ter
acontecido.
LÚCIA: Um descontrole que pode nos trazer muitos aborrecimentos. Pode causar
a nossa separação.
LÚCIA: Já não é o seu primeiro deslise... A polícia pode chegar muito perto de
nós.
LÚCIA: Não!... Sabe que eu preciso que você continue sendo o que é...
016
MARCUS: Não quero que se preocupe com esse investigadorzinho.
Blecaute.
Cena 4
Foco de luz sobre Vivian e Norma.
NORMA: Eu não sei o que você pensa, filha... Fica aí relembrando o que já
passou... Por que não esquece esse maldito passado?!
VIVIAN: Minha mãe foi morta, logo depois de Linda ter a garganta cortada.
NORMA: Ela teve a garganta cortada, é?... Você não me disse isso...
VIVIAN: Eu não disse?... Pois é, ela teve a garganta cortada de fora a fora, sangrou
feito uma galinha.
NORMA: Que horror... Tinha um homem que andava por aqui, por essas bandas
da cidade. Era um homem muito bonito, usava roupas elegantes e tinha modos
refinados. Era um homem misterioso. Uma vez ele se hospedou aqui, na pensão
com uma mulher...
NORMA: Sua mãe trabalhou muito tempo na rua... e só depois, foi trabalhar na
boate Coração Vermelho.
CONSTANTINO: Disse bem, sirvo mesas e não sou vigia de rua. Muitas pessoas
passam por aqui, senhor Oliver. Muitas pessoas vêm e vão, e não dá pra ficar de
braços cruzados, reparando no que as pessoas estão fazendo!
CONSTANTINO: Café e bom-bocado de côco com goiabada... Ah, sim! Sei quem
é! É um bom sujeito, bem distinto! Me dá boas gorjetas.
017
INVESTIGADOR: Então, o que acha dele?
CONSTANTINO: Não posso falar dos clientes da doceria... é uma norma da casa.
INVESTIGADOR: Como quiser, ninguém vai saber que você abriu o bico.
NORMA: Como consegue se lembrar disso? Você era tão criança... Não sei como
consegue, realmente não sei.
NORMA: O quê?...
VIVIAN: Veio interrogar você bem aqui... Eu escutei tudo, estava atrás da porta.
Entra o investigador Oliver e Vivian fica observando Norma e ele como uma
mera espectadora.
INVESTIGADOR: Sei como deve estar sendo difícil pra senhora... ainda mais que
ela deixou uma filha, Vivian, para a senhora cuidar.
NORMA: Ela já está com quinze anos, vai superar. Mas o que quer comigo, senhor
Oliver.
018
INVESTIGADOR: Falar sobre a morte de Hilda. Teve a garganta cortada como a
dançarina Linda.
NORMA: Não tem nada de interessante numa vida como a de Hilda. Essas
mulheres foram mortas porque tiveram seus sonhos perdidos...
VIVIAN: Sim, eu estava... mas eu não consigo me lembrar o que ele disse...
019
MARCUS: Não precisa me lembrar sempre disso... Afinal, o que quer que eu faça?
LÚCIA: Quero que tome muito cuidado, só isso... Quem foi dessa vez?
LÚCIA: Fico feliz com essas suas palavras doces... E então, trouxe o que eu lhe
pedi? Ou melhor, o que me pertence?
LÚCIA: Por que acha que casei com você?... Meu querido, você tem suas fantasias,
gosta de se deleitar com prostitutas e eu só peço pequenos souvenires delas...
Pequenas lembranças.
MARCUS: Outra vez?! Você vai se consultar de novo com essa cartomante,
clarividente, feiticeira, sei lá o que essa mulher é?!
020
NORMA: Não sei... Os boatos corriam soltos por esse boulevard, filha. Alguns
diziam que tinha sido o garçom daquela doceria, outros falavam que podia ser
muito bem o senhor Sam da oficina mecânica, ele tinha tido um caso com àquela
prostituta que foi morta... a Linda.
VIVIAN: Qualquer um, desta rua, poderia ser o assassino. Eu sei que eu era jovem
demais para entender certas coisas, mas a minha mãe foi morta, teve a garganta
cortada também. Minha mãe era tão jovem e talentosa.
Blecaute.
Cena 5
O cenário é composto ao som de uma música; mesa e duas cadeiras. Entra Lúcia
e depois entra Madame Bravatska, uma mulher trajando roupas coloridas,
turbante alto na cabeça, brincos e muitas pulseiras e colares, parece uma rainha
egípcia.
LÚCIA: Preciso saber se tudo isso que está acontecendo é verdade, é real.
LÚCIA: Madame Bravatska, me ajude por favor. Acho que estou ficando louca.
M. BRAVATSKA: Mas isto não é caso para se deitar as cartas, filha, é caso de
procurar um médico, um especialista de cabeça.
M. BRAVATSKA: E... você conhece essa pessoa que jura viver outra vida e que
não seja a sua?
021
LÚCIA: É que a história dela se confunde com a minha... entende?
LÚCIA: Por favor, Madame Bravatska, deite as cartas para mim. Quero saber o
que me resta...
Entra no canto do palco, sob o foco de luz Vivian seguida pela tia Norma.
VIVIAN: Vamos titia, coloque as cartas sobre a mesa! Fale toda a verdade!
NORMA: (Entrando) Mas que verdade, criatura?! A sua mãe foi morta por aquele
sujeito, o tal do senhor Blackthorn.
NORMA: Não... Você sabe como as coisas funcionam neste mundo, não é?! Gente
rica consegue os melhores advogados e, você sabe também, que dinheiro compra
qualquer um.
NORMA: Não você não está ficando louca, você já nasceu louca! Deus que me
livre de você...
Norma sai.
VIVIAN: Eu sei que não foi ele quem a matou, mas se não foi o senhor Blackthorn,
quem foi?... Será que foi o dono da oficina?...
022
Do outro lado do palco aparece o senhor Sam.
RAVI: Eu jamais faria isso, ainda mais com a sua mãe, filha!
VIVIAN: (Grita.) Não me chame de filha! Espera um instante... pode ter sido
àquela invejosa, a Samantha...
SAMANTHA: Eu e Hilda sempre fomos rivais, mas isso não quer dizer que eu a
matei. Eu não morria de amores por ela e ela nem por mim, então ficávamos
quites.
SAMANTHA: Detetive, qual é o seu problema? Nós estamos sempre com alguém,
nos relacionamos com pessoas, precisamente com homens. A gente os conhece,
vamos para algum lugar, fazemos o serviço, eles pagam e cada um segue o seu
caminho. É assim que funciona as coisas.
NORMA: (Entrando.) De onde você tirou essa tal de Samantha? Nunca existiu
essa Samantha.
NORMA: Criatura do céu, você está equivocada. Sua mãe tinha mais inimigos que
o presidente dos Estados Unidos. Hilda sempre foi uma mulher de poucas
amizades. As meninas da boate não gostavam muito dela porque Hilda era uma
bela mulher. E você sabe, ela tinha muitos admiradores.
VIVIAN: Uma vez, eu a vi discutindo com a Samantha, a mulher que lhe falei!
023
NORMA: E onde você viu as duas conversando?
NORMA: Isso é mentira. Você deve ter sonhado isso, muitas pessoas confundem
sonho com realidade.
VIVIAN: Eu juro!
NORMA: Sua mãe nunca levou você naquele antro de perdição, era assim que ela
chamava aquele lugar: antro de perdição. Ela dizia que faria de tudo para manter
você bem distante daquele lugar.
Blecaute.
Cena 5
Foco sobre Ravi e Hilda como se tivessem naquela primeira noite em que se
conheceram.
RAVI: E resolveu atracar aqui, descer sua âncora aqui nesta rua, no Boulevard
dos Sonhos Perdidos...
NORMA: Me diga, Vivian, o que faz pensar que sua mãe foi morta por alguém?
VIVIAN: (Transtornada, quase louca, delirante) Não foi?... Foi alguém dessa rua,
eu sei! As pessoas com quem ela falava, ela conhecia essa gente toda... As pessoas
falavam mal dela... Eu tinha vergonha...
NORMA: Vergonha?... Me diga mais sobre isso... Consegue me falar sobre essa
dor, sobre a dor da perda?
024
RAVI: Fale um pouco sobre sua mãe.
INVESTIGADOR: Não vejo suspeito neste caso, ou melhor falando, não vejo
culpados nas mortes daquelas mulheres.
VIVIAN: A Linda foi assassinada, assim como a minha mãe... As outras mulheres
foram mortas...
NORMA: Você também falou de uma Samantha, quem era essa mulher?
LÚCIA: Está na hora dela encarar o espelho, concorda comigo, meu marido?
NORMA: Vivian, eu não sou sua tia. Mantenha-se na realidade. Estou aqui para
ajudá-la.
NORMA: Fala pra mim, Vivian, como a sua mãe foi morta?
025
VIVIAN: Ela foi envenenada...
NORMA: Entendo...
VIVIAN: Lúcia... Sim foi ela que fez chá com preparos venenosos...
NORMA: Lúcia?...
VIVIAN: Foi ele! Foi ele quem matou todas aquelas mulheres.
NORMA: Tem certeza disso, Vivian?... Ou está apenas buscando culpados nesse
seu mundo imaginário.
VIVIAN: É mentira! Eu jamais faria isso... Não faria com ninguém, muito menos
com a minha mãe... minha mãezinha...
Fim
026