NEGRIS_Adriano
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Adriano Negris1
Resumo
O objetivo do presente texto é apresentar uma perspectiva da abordagem
fenomenológica realizada por Edmund Husserl sobre a questão do tempo. Para
cumprir a tarefa proposta, acompanharemos a análise de Husserl sobre a
relação existente entre uma temporalidade mundana e a consciência subjetiva
do tempo. O resultado dessa investigação pretende demonstrar como a questão
do tempo deve ser pensada a partir da temporalidade do ego transcendental, a
qual se desvela através da ideia de fluxo de consciência na dupla
intencionalidade da recordação iterativa.
Palavras-chave: Tempo, Fenomenologia, Dupla intencionalidade da
recordação iterativa.
Abstract
The central goal of this paper is to present an overview of the
phenomenological approach taken by Edmund Husserl on the question of time.
To accomplish the task at hand, we will follow the analysis of Husserl on the
relationship between a worldly temporality and subjective consciousness of
time. The result of this research aims to show how the issue of time should be
considered from the temporality of the transcendental ego, which is revealed
through the idea of stream of consciousness in double intentionality recall
iterative.
Key-words: Time, Phenomenology, Intentionality double iterative recall.
1
Adriano Negris é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
E-mail: adrianonegris@gmail.com
2
“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me
fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada
sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente”. In:
Santo Agostinho – Vida e Obra, Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Oliveira Santos, S.J e A. Ambrósio
de Pina, SJ. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000, p. 322.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
O ego transcendental pode ser encarado como uma síntese performática que
incessantemente vai articulando vivências e ao mesmo tempo abrindo possibilidades de
constituição da consciência juntamente com seus objetos. Ao realizar uma reflexão
sobre a dinâmica dos atos intencionais, observamos que tanto o próprio ato como seus
campos correlatos se dão, necessariamente, dentro de um horizonte temporal. Isso
ocorre porque os atos intencionais se constituem mediante percepção, lembrança ou
imaginação que corresponde, respectivamente, a um presente, passado e futuro. Nesse
sentido, as vivências intencionais são inegavelmente temporais. Tendo em vista essa
compreensão, Husserl vai realizar a descrição da experiência temporal do ego
transcendental.
Numa primeira aproximação, podemos apontar que existe um tempo que marca
a percepção de algo como algo e um tempo inerente ao perceber. Em outras palavras, o
que se quer dizer é que a percepção sempre atual dos atos intencionais e seus correlatos
estão estreitamente ligados a uma consciência interna do tempo. Assim, há uma
temporalidade marcada por uma identificação que possibilita a consciência apreender a
identidade de determinado objeto. Essa temporalidade objetiva corresponde à ordem
cronológica do tempo (passado, presente e futuro), concebida mediante uma atitude
natural em relação ao mundo. Por outro lado, a síntese que compõe o ego transcendental
não é uma instância atemporal, ela possui uma consciência interna do tempo, que deve
ser compreendida a partir de uma experiência contínua do tempo – um fluxo temporal -,
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
Os objetos temporais, afirma Husserl, são aqueles “que não são apenas unidades
no tempo, mas que contêm também em si mesmo extensão temporal” 3. Além da
extensão temporal (duração), eles se constituem numa multiplicidade de dados e
3
HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Tradução,
introdução e notas: Pedro M. S. Alves. Lisboa: Casa da Moeda, 1994, p.56.
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apreensões imanentes porque não são dados fora de uma relação intencional. Mas no
interior das relações intencionais, como se dá a diferenciação temporal desses objetos?
A distinção temporal (algo que se apresenta como passado, presente e futuro) não é
fornecida pela qüididade dos objetos temporais, uma vez que o surgimento desses
objetos já pressupõe uma experiência temporal para que eles sejam temporalmente
distintos. Nesse sentido, notamos que a temporalidade é o modo de acontecimento dos
atos intencionais, tendo em vista que a experiência temporal é compreendida de maneira
cooriginária aos atos intencionais, suas vivências e aos próprios conteúdos vivenciais.
Quando, por exemplo, soa uma melodia, o som individual não desaparece
completamente com o cessar do estímulo ou então com o movimento dos
nervos por ele excitados. Quando soa o novo som, o precedente não
desaparece sem deixar rastro, senão nós seríamos mesmo incapazes de notar
as relações entre sons consecutivos; nós teríamos, em cada instante, um som,
eventualmente, no intervalo de tempo entre o toque de dois sons, uma pausa
vazia, nunca, porém, a representação de uma melodia. Por outro lado, não
basta ficarmos com esta permanência das representações de som na
consciência. Se elas permanecessem sem modificação, teríamos nós então,
em vez de melodia, um acorde de sons simultâneos, ou antes uma amalgama
desarmônica de sons, tal como a obteríamos se todos os sons já soados
tocassem simultaneamente4
Por meio da descrição do soar de uma melodia Husserl demonstra que quando
um som se dá num determinado ponto temporal, ele paulatinamente se afasta deste
ponto inicial, mas ao mesmo tempo algo é retido enquanto ocorre o afastamento. Na
4
Idem, 1994, p.45 e 46.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
retenção tem-se uma consciência do som que se foi e da duração que ele preenche.
Quando o som acaba, resta ainda a consciência do som e da duração do som, que
permanece de maneira alterada, revelando o decurso do som (decurso temporal). Nesse
contexto, o decurso temporal é marcado pelo movimento de distanciamento paulatino;
algo que vai se afastando de um ponto para outro. A consciência do decurso temporal é
capaz de deixar à vista o fato que a duração é o modo de aparição de um objeto
temporal e, ao mesmo tempo, realçar que essa aparição se dá na unidade de um fluxo
constante. Segundo Husserl, o fenômeno do decurso “é uma continuidade de mutações
constantes, que forma uma unidade inseparável – inseparável em extensões que
pudessem ser por si e indivisível em fases que pudessem ser por si, em pontos da
continuidade. Os fragmentos que extraímos abstractivamente podem ser apenas no
decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da continuidade do decurso” 5.
5
Idem, 1994, p.60.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012
Quando observamos o modo pelo qual a recordação iterativa se dá, notamos que
a recordação manifesta-se num ponto-agora, num presente. Nesse momento “agora” a
percepção não vai dar ensejo a constituição originária de um objeto temporal, que se
mantém pelo meio retencional de suas fases. Na recordação iterativa a percepção
6
Idem, 1994, p.67.
7
Idem, 1994, p.68.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
8
Idem, 1994, p.60.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
objeto é dada mediante um retorno completo a todo fluxo temporal para chegar até o
ponto do presente em que se manifesta a recordação. Por outro lado, como o fluxo não
pode ser estático, ele constantemente se articula como abertura para apreensão de novas
vivências. Por ser uma síntese em fluxo, todos os objetos que surgem na consciência de
um agora são influenciados pelas vivências anteriores que se deram ao longo do fluxo e,
de tal maneira, que todo o novo reage sobre o antigo. O novo aponta para novamente
para o novo, o qual se determina, ao entrar em cena, e modifica as possibilidades
reprodutivas do antigo. Essa retroação ao longo da cadeia temporal e o movimento de
protensão – ambos imprescindíveis para presentificação do recordado – forma a dupla
intencionalidade da recordação. O objeto recordado ganha tons de algo passado porque
o ato de recordar, que se dá num presente, retorna todo fluxo de consciência e com isso
influencia o recordado. O presentificado na recordação adquiri o caráter de passado
justamente porque do ponto agora, influenciado pelos eventos da cadeia temporal, se dá
com um matiz diferenciado, pois o que foi originariamente constituído e que agora se
reconstitui pela recordação está em incessante processo de obscurecimento. Os
conteúdos das vivências que se deram num passado não são alterados pela
presentificação da recordação. Contudo, o modo como a vivência se dá na
presentificação é nitidamente diferenciado, não só porque está temporalmente afastado
do ponto agora, mas também porque o modo de aparecer do conteúdo recordado está
influenciado por todas as vivências que se deram ao longo do fluxo de consciência até o
ponto agora. Nesse sentido, Husserl explica que “o poder retroactivo retrocede ao longo
da cadeia, porque o passado reproduzido traz o caracter de passado e uma intenção
indeterminada, referida a uma certa posição temporal em relação ao agora”9.
9
Idem, 1994, p.83.
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Não há primeiro plano sem fundo. O lado que aparece nada é sem o lado
inaparente. Assim também na unidade da consciência do tempo: a duração
reproduzida é o primeiro plano, as intenções de inserção (da duração no
tempo) tornam consciente um fundo temporal. E, de um certo modo, isto
continua na constituição da temporalidade do próprio (objecto) duradouro,
com o seu agora, o seu antes e o seu depois10
10
Idem, 1994, p.84.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana
Bibliografia
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM,
2008.
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SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004, p.152 a 153.