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NEGRIS, A.

Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012

A dupla intencionalidade da recordação iterativa na fenomenologia


husserliana

Adriano Negris1

Resumo
O objetivo do presente texto é apresentar uma perspectiva da abordagem
fenomenológica realizada por Edmund Husserl sobre a questão do tempo. Para
cumprir a tarefa proposta, acompanharemos a análise de Husserl sobre a
relação existente entre uma temporalidade mundana e a consciência subjetiva
do tempo. O resultado dessa investigação pretende demonstrar como a questão
do tempo deve ser pensada a partir da temporalidade do ego transcendental, a
qual se desvela através da ideia de fluxo de consciência na dupla
intencionalidade da recordação iterativa.
Palavras-chave: Tempo, Fenomenologia, Dupla intencionalidade da
recordação iterativa.

Abstract
The central goal of this paper is to present an overview of the
phenomenological approach taken by Edmund Husserl on the question of time.
To accomplish the task at hand, we will follow the analysis of Husserl on the
relationship between a worldly temporality and subjective consciousness of
time. The result of this research aims to show how the issue of time should be
considered from the temporality of the transcendental ego, which is revealed
through the idea of stream of consciousness in double intentionality recall
iterative.
Key-words: Time, Phenomenology, Intentionality double iterative recall.

O que é o tempo? De início, a questão apresentada parece simplória devido à


familiaridade que temos na lida com o tempo, pois o agir cotidiano é essencialmente
marcado pela temporalidade. Contudo, essa pré-compreensão do tempo nos possibilita
responder a questão fundamental: o que é o tempo? A constatação feita por Agostinho
no Livro XI das Confissões2 revela a profunda aporia que permeia o tema. Na

1
Adriano Negris é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
E-mail: adrianonegris@gmail.com
2
“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me
fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada
sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente”. In:
Santo Agostinho – Vida e Obra, Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Oliveira Santos, S.J e A. Ambrósio
de Pina, SJ. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000, p. 322.
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investigação sobre o tempo, Edmund Husserl vai realizar uma abordagem


fenomenológica sobre a relação de pertinência entre o tempo objetivo (tempo mundano)
e a consciência subjetiva do tempo, excluindo quaisquer suposições, afirmações e
convicções a respeito do tempo objetivo para que se entenda o tempo como realidade
imanente aos atos intencionais. O presente trabalho tem a intenção de acompanhar a
tarefa fenomenológica de Husserl, notadamente a análise da temporalidade do ego
transcendental que se desvela na idéia de fluxo de consciência na dupla intencionalidade
da recordação iterativa.

Antes de iniciarmos o desenvolvimento do escopo aqui traçado, convém


estabelecermos o horizonte no qual o tema da temporalidade vai se mostrar na
fenomenologia de Husserl. Para tanto, elegemos como fio condutor a própria noção de
temporalidade do ego transcendental exposta por Husserl.

O ego transcendental pode ser encarado como uma síntese performática que
incessantemente vai articulando vivências e ao mesmo tempo abrindo possibilidades de
constituição da consciência juntamente com seus objetos. Ao realizar uma reflexão
sobre a dinâmica dos atos intencionais, observamos que tanto o próprio ato como seus
campos correlatos se dão, necessariamente, dentro de um horizonte temporal. Isso
ocorre porque os atos intencionais se constituem mediante percepção, lembrança ou
imaginação que corresponde, respectivamente, a um presente, passado e futuro. Nesse
sentido, as vivências intencionais são inegavelmente temporais. Tendo em vista essa
compreensão, Husserl vai realizar a descrição da experiência temporal do ego
transcendental.

Numa primeira aproximação, podemos apontar que existe um tempo que marca
a percepção de algo como algo e um tempo inerente ao perceber. Em outras palavras, o
que se quer dizer é que a percepção sempre atual dos atos intencionais e seus correlatos
estão estreitamente ligados a uma consciência interna do tempo. Assim, há uma
temporalidade marcada por uma identificação que possibilita a consciência apreender a
identidade de determinado objeto. Essa temporalidade objetiva corresponde à ordem
cronológica do tempo (passado, presente e futuro), concebida mediante uma atitude
natural em relação ao mundo. Por outro lado, a síntese que compõe o ego transcendental
não é uma instância atemporal, ela possui uma consciência interna do tempo, que deve
ser compreendida a partir de uma experiência contínua do tempo – um fluxo temporal -,
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana

que suprime a pretensa autonomia das dimensões temporais objetivas – passado,


presente e futuro.

A temporalidade objetiva permite identificar um objeto tal como ele se mostra


no ato de perceber. Mas a cada perceber, a cada ato intencional, o objeto se mostrará de
modo perfilado, já que a percepção fixa “atomicamente” a realidade. Então, como é
possível a aparição de um objeto na sua identidade mesma – na sua idealidade – tendo
em vista a incessante alteração de perspectiva deste mesmo objeto provocada pela
percepção? É justamente a consciência interna do tempo que abarca, num só fluxo,
todos os modos possíveis de mostração de um objeto, permitindo-nos apontar sua
idealidade na experiência particular da percepção. Dessa maneira, a consciência interna
do tempo é uma síntese temporal que incessantemente articula um fluxo de vivências e
permite abarcar e articular os momentos temporais constantes na ordem objetiva do
tempo (passado, presente e futuro). Assim sendo, em que sentido a reflexão
fenomenológica de Husserl aponta para idéia de fluxo de consciência como base de toda
experiência temporal do ego transcendental?

Husserl inicia sua abordagem acerca da consciência interna do tempo a partir do


fenômeno da duração da sensação de um objeto temporal. Como sabemos, o ato
intencional abre um campo de mostração no qual seus objetos (ou conteúdos) se
constituem de maneira ideal no interior do próprio horizonte descerrado pela
intencionalidade. Quando um conteúdo é dado no horizonte da relação intencional
verificamos que este mesmo objeto se apresenta com uma duração – seja ele se
alterando ou se mantendo. Segundo Husserl, essa consciência de duração de um objeto
tem que ser originária, pois a experiência de uma percepção que dura é condição de
possibilidade da sensação de que algo dura. Em outros termos, a duração da sensação
tem que ser originária porque não poderia haver uma representação derivada da
duração. Então, se a duração da sensação acena para uma temporalidade mais originária,
devemos, agora, investigar como se dá a duração de um objeto temporal.

Os objetos temporais, afirma Husserl, são aqueles “que não são apenas unidades
no tempo, mas que contêm também em si mesmo extensão temporal” 3. Além da
extensão temporal (duração), eles se constituem numa multiplicidade de dados e

3
HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Tradução,
introdução e notas: Pedro M. S. Alves. Lisboa: Casa da Moeda, 1994, p.56.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012

apreensões imanentes porque não são dados fora de uma relação intencional. Mas no
interior das relações intencionais, como se dá a diferenciação temporal desses objetos?
A distinção temporal (algo que se apresenta como passado, presente e futuro) não é
fornecida pela qüididade dos objetos temporais, uma vez que o surgimento desses
objetos já pressupõe uma experiência temporal para que eles sejam temporalmente
distintos. Nesse sentido, notamos que a temporalidade é o modo de acontecimento dos
atos intencionais, tendo em vista que a experiência temporal é compreendida de maneira
cooriginária aos atos intencionais, suas vivências e aos próprios conteúdos vivenciais.

A duração dos objetos temporais também coloca em evidência outros fenômenos


que a ela estão associados, a saber: o decurso temporal e a retenção. A gênese de um
objeto temporal deve ser encarada como um marco temporal (ponto-fonte), um início. A
partir desse início, notamos que o objeto preenche sua duração. Para que haja a
constituição desse objeto é necessário que suas fases se sucedam umas as outras de
modo que as anteriores não se percam por completo, nem que haja uma superposição
continua de fases. A cada fase de um objeto que se dá num momento “agora”, que deve
retrair-se de maneira modificada para que suas fases posteriores possam surgir
continuamente. Para explicar o acontecimento da retenção destacamos o seguinte
exemplo mencionado por Husserl:

Quando, por exemplo, soa uma melodia, o som individual não desaparece
completamente com o cessar do estímulo ou então com o movimento dos
nervos por ele excitados. Quando soa o novo som, o precedente não
desaparece sem deixar rastro, senão nós seríamos mesmo incapazes de notar
as relações entre sons consecutivos; nós teríamos, em cada instante, um som,
eventualmente, no intervalo de tempo entre o toque de dois sons, uma pausa
vazia, nunca, porém, a representação de uma melodia. Por outro lado, não
basta ficarmos com esta permanência das representações de som na
consciência. Se elas permanecessem sem modificação, teríamos nós então,
em vez de melodia, um acorde de sons simultâneos, ou antes uma amalgama
desarmônica de sons, tal como a obteríamos se todos os sons já soados
tocassem simultaneamente4

Por meio da descrição do soar de uma melodia Husserl demonstra que quando
um som se dá num determinado ponto temporal, ele paulatinamente se afasta deste
ponto inicial, mas ao mesmo tempo algo é retido enquanto ocorre o afastamento. Na

4
Idem, 1994, p.45 e 46.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana

retenção tem-se uma consciência do som que se foi e da duração que ele preenche.
Quando o som acaba, resta ainda a consciência do som e da duração do som, que
permanece de maneira alterada, revelando o decurso do som (decurso temporal). Nesse
contexto, o decurso temporal é marcado pelo movimento de distanciamento paulatino;
algo que vai se afastando de um ponto para outro. A consciência do decurso temporal é
capaz de deixar à vista o fato que a duração é o modo de aparição de um objeto
temporal e, ao mesmo tempo, realçar que essa aparição se dá na unidade de um fluxo
constante. Segundo Husserl, o fenômeno do decurso “é uma continuidade de mutações
constantes, que forma uma unidade inseparável – inseparável em extensões que
pudessem ser por si e indivisível em fases que pudessem ser por si, em pontos da
continuidade. Os fragmentos que extraímos abstractivamente podem ser apenas no
decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da continuidade do decurso” 5.

Diante das observações realizadas por Husserl, depreendemos a necessidade de


se pensar a temporalidade de algo a partir da idéia de fluxo dinâmico que vai
incessantemente articulando passado, presente e futuro. Toda a experiência de objetos
tem lugar em um fluxo de experiências onde cada momento presente – momento em que
algo se apresenta originariamente, na percepção, como objeto mesmo – leva em sí,
retidas em certa medida, as experiências passadas que por sua vez antecipa ou projeta as
possíveis experiências futuras a partir do efetivamente experimentado. Com isso
verificamos que não se pode falar da consciência de objetos sem ter em conta ao mesmo
tempo a consciência do horizonte em que necessariamente se encontra todo objeto de
que se tem experiência. O contexto de um objeto é também um contexto temporal
formado pelas lembranças passadas e as futuras experiências possíveis, imaginadas.

Até o presente momento tentamos reconstruir o caminho percorrido por Husserl


na descrição do fenômeno da duração dos objetos temporais e o próprio movimento
retencional constitutivo desses objetos na imanência da dinâmica do fluxo de
consciência. A partir deste ponto, o referido percurso vai servir de alicerce para explicar
o processo de recordação dos objetos temporais e, em última instância, a dupla
intencionalidade da recordação iterativa.

5
Idem, 1994, p.60.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012

O ato de percepção de um objeto está estritamente ligado ao fenômeno de


retenção continua de suas fases em relação a um ponto-agora – tido como um marco
temporal. As fases de um objeto vão se doando à percepção (ponto-agora) e, de maneira
subseqüente, aos poucos vão se escoando para um “passado-agora” que se retém
modificado para a apreensão de uma nova fase necessária à constituição do objeto
temporal. Na retenção temos a sensação de duração que se esvai e que se manifesta por
meio do ato intencional da percepção. Segundo Husserl, “caracterizamos a recordação
primária ou retenção como uma cauda de cometa, que se agrega à respectiva percepção.
Disso deve ser inteiramente distinguida a recordação secundária, a recordação iterativa”
6
. Mas, o que afinal caracteriza a recordação iterativa?

Na retenção o conteúdo do percebido se mantém como uma intensidade


atenuada, porém, na recordação iterativa, o que ocorre é a presentificação de algo que
não está mais presente no agora. Com a recordação iterativa, o ponto-agora (ponto-
fonte) é preenchido por um recordado, por um passado que vem à tona num presente,
tornando-se um presente presentificado, mas não realmente presente, não
percepcionado, não primariamente dado e intuído. Apesar da recordação presentificar
algo passado, ela própria se constitui por meio de protensões e retenções que vão
proporcionar a dação de um objeto duradouro. Husserl nos diz:

A recordação iterativa é, ela própria, recordação iterativa originariamente


constituída e, depois, mesmo agora passada. Constrói-se, ela própria, através
de um continuo de protodados e retenções e constitui (ou melhor:
reconstitui), em unidade com eles, uma objetividade duradoura imanente ou
transcendente (segundo ela esteja imanente ou transcendentemente dirigida).
A retenção, pelo contrário, não produz nenhuma objectividade duradoura
(nem original nem reprodutivamente), mas apenas retém na consciência o
produzido e imprime-lhe o caráter de ‘mesmo agora passado’ 7

Quando observamos o modo pelo qual a recordação iterativa se dá, notamos que
a recordação manifesta-se num ponto-agora, num presente. Nesse momento “agora” a
percepção não vai dar ensejo a constituição originária de um objeto temporal, que se
mantém pelo meio retencional de suas fases. Na recordação iterativa a percepção

6
Idem, 1994, p.67.
7
Idem, 1994, p.68.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana

presentifica um objeto que se encontra num ponto temporal distinto do ponto-agora,


representando um “agora” que não é dado. Para destacar a oposição entre percepção e
recordação, vale citar a interessante passagem do §17º das Lições para uma
fenomenologia da consciência interna do tempo:

Se chamamos, porém, percepção ao acto em que reside toda origem, que


constitui originalmente, então a recordação primária é percepção. Porque
apenas na recordação primária vemos o que é passado, apenas nela se
constitui o passado e, sem dúvida, re-presentativamente, mas antes de modo
presentativo. O mesmo-agora-sido, o antes em oposição ao agora, pode ser
directamente visto apenas na recordação primária; é sua essência trazer esta
novidade e peculiaridade à intuição directa, primária, extactamente como é a
essência da percepção do agora trazer directamente o agora à percepção. Pelo
contrário, a recordação iterativa, tal como a fantasia, oferece-nos a simples
presentificação; ela é como que a mesma consciência que o acto-do-agora e o
acto-do-passado, criadores de tempo, como que a mesma, mas contudo
modificada (HUSSERL, 1994, p. 72).

A recordação iterativa presentifica um determinado objeto temporal e todas as


suas fases e retenções que lhes são inerentes num presente-agora, revelando uma
consciência de sucessão tal como é dada na consciência originariamente doadora. Na
recordação iterativa podemos repetir essa consciência de sucessão originária, no qual
presentificando-a, acabamos por recordá-la. E, como afirma Husserl, a presentificação
de uma vivência acha-se a priori no domínio da liberdade, pois podemos
voluntariamente recordar de algo quantas vezes desejarmos.

Agora sabemos que a recordação iterativa é dotada de um caráter voluntário,


tendo em vista que presentificamos algo que foi efetivamente vivenciado pelo ego
transcendental. Pela recordação, podemos “recolher” o conteúdo de uma vivência
intencional que já tenha sido experimentada em determinada posição temporal e
presentifica-lá a partir de um “ponto-agora” da percepção. A questão que se apresenta
neste ensejo é a seguinte: como um objeto reproduzido pela recordação iterativa ganha a
propriedade de algo passado? Como podemos afirmar que um determinado conteúdo
vivencial reproduzido pela recordação é um passado? O que nos permite dizer que algo
recordado é passado? Para responder tais indagações, Husserl menciona que é
importante distinguir, em cada presentificação, a reprodução da consciência em que o
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objeto duradouro passado é originariamente constituído e aquilo que se anexa a


reprodução como constitutivo para consciência de passado, de presente ou de futuro.

Para que questão possa ser elucidada é imprescindível pensarmos na idéia de


fluxo de consciência. Aliás, só caminhamos para um desenlace do problema se a
consciência da recordação for observada de maneira imanente ao fluxo de consciência.
Isto porque a unidade do fluxo de consciência é uma continuidade de mutações
constantes, que forma uma unidade inseparável, de modo não podemos vislumbrá-la em
fases que pudessem ser por si ou em fases que pudessem ser por si, em pontos da
continuidade. Como alerta Husserl, “os fragmentos que extraímos abstractivamente
podem ser apenas no decurso total e do mesmo modo as fases, os pontos da
continuidade do decurso” 8. Então, o que significa a dupla intencionalidade da
recordação?

Quando recordamos, mediante o uso da liberdade, efetivamente experimentamos


algo que foi verdadeiramente vivenciado em outro ponto temporal diverso do ponto-
agora no qual a recordação se dá. Esta constatação não é suficiente para apontar o objeto
da recordação como passado. Mas o que ocorre para que possamos ter consciência do
passado na recordação? A recordação presentifica um objeto, repetindo todas suas fases
de constituição e a retenção que lhe é pertinente. Quando ocorre a recordação, ela se dá
na imanência de um fluxo temporal no qual não somente a recordação vivida aparece,
mas todo o fluxo temporal é colocado em jogo, de maneira que todo o fluxo temporal é
recordado até o ponto temporal onde a recordação está em desenvolvimento. Assim,
Husserl explica que:

A recordação está num fluxo constante, porque a vida da consciência está


num fluxo constante e não se une numa cadeia apenas membro após membro.
Pelo contrário, todo o novo reage sobre o antigo, a sua intenção antecipativa
preenche-se e determina-se com isto, o que dá à reprodução um colorido
determinado.

Na dinâmica do fluxo de consciência, a recordação contém uma intencionalidade


que se volta para (re)constituição do objeto temporal, no qual a presentificação do

8
Idem, 1994, p.60.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana

objeto é dada mediante um retorno completo a todo fluxo temporal para chegar até o
ponto do presente em que se manifesta a recordação. Por outro lado, como o fluxo não
pode ser estático, ele constantemente se articula como abertura para apreensão de novas
vivências. Por ser uma síntese em fluxo, todos os objetos que surgem na consciência de
um agora são influenciados pelas vivências anteriores que se deram ao longo do fluxo e,
de tal maneira, que todo o novo reage sobre o antigo. O novo aponta para novamente
para o novo, o qual se determina, ao entrar em cena, e modifica as possibilidades
reprodutivas do antigo. Essa retroação ao longo da cadeia temporal e o movimento de
protensão – ambos imprescindíveis para presentificação do recordado – forma a dupla
intencionalidade da recordação. O objeto recordado ganha tons de algo passado porque
o ato de recordar, que se dá num presente, retorna todo fluxo de consciência e com isso
influencia o recordado. O presentificado na recordação adquiri o caráter de passado
justamente porque do ponto agora, influenciado pelos eventos da cadeia temporal, se dá
com um matiz diferenciado, pois o que foi originariamente constituído e que agora se
reconstitui pela recordação está em incessante processo de obscurecimento. Os
conteúdos das vivências que se deram num passado não são alterados pela
presentificação da recordação. Contudo, o modo como a vivência se dá na
presentificação é nitidamente diferenciado, não só porque está temporalmente afastado
do ponto agora, mas também porque o modo de aparecer do conteúdo recordado está
influenciado por todas as vivências que se deram ao longo do fluxo de consciência até o
ponto agora. Nesse sentido, Husserl explica que “o poder retroactivo retrocede ao longo
da cadeia, porque o passado reproduzido traz o caracter de passado e uma intenção
indeterminada, referida a uma certa posição temporal em relação ao agora”9.

Diante das lições de Husserl, depreendemos que apenas na unidade do fluxo de


consciência se constitui a unidade temporal do objeto recordado e a própria unidade do
fluxo. O que a dupla intencionalidade revela é o incessante movimento do fluxo, no qual
impõe sempre um movimento para frente, lançando-se sempre para o novo e
simultaneamente resgatando-se por meio da retroação às vivencias anteriormente
experimentadas. Cada fase do fluxo traz consigo não um ponto isolado do decurso, mas
o rastro intencional de todas as fases anteriores.

9
Idem, 1994, p.83.
NEGRIS, A. Ensaios Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012

A análise da dupla intencionalidade deixa transparecer a unidade incindível do


fluxo de consciência como a própria constituição do ego transcendental. Os atos
intencionais, as vivências e seus conteúdos correspondentes só surgem na imanência do
fluxo de consciência, no qual sempre aberto para o novo e que também está em
constante processo de resgate de si mesmo por meio de suas vivências. Entretanto, essa
intencionalidade do fluxo não aparece como algo intuitivo de modo que pudéssemos
concretizá-la objetivamente. A constante fluência do ponto-agora não tem qualquer
individuação, não detém nenhuma posição temporal fixa, sendo uma incessante
atualidade que flui sem durar. Desse modo, é necessário que essa dinâmica intencional
fique resguardada num fundo não aparente para que os objetos intencionais constituídos
na sua imanência possam aparecer em primeiro plano. Não é por outro motivo que
Husserl vai chamar a atenção para o fato de que a intencionalidade do fluxo é uma
intuição não-intuitiva, “vazia”, sendo seu objeto a cadeia temporal objetiva dos
acontecimentos e que constitui a obscura vizinhança do que iterativamente recordado de
modo atual. De modo mais explícito Husserl esclarece:

Não há primeiro plano sem fundo. O lado que aparece nada é sem o lado
inaparente. Assim também na unidade da consciência do tempo: a duração
reproduzida é o primeiro plano, as intenções de inserção (da duração no
tempo) tornam consciente um fundo temporal. E, de um certo modo, isto
continua na constituição da temporalidade do próprio (objecto) duradouro,
com o seu agora, o seu antes e o seu depois10

Com as considerações expostas acima, pretendemos destacar como a reflexão


fenomenológica husserliana sobre o tempo nos conduz a idéia de fluxo de consciência,
explicitada neste trabalho por meio da dupla intencionalidade da recordação iterativa.
Para finalizar, consideramos interessante citar um trecho do livro Introdução à
Fenomenologia (SOKOLOWISKI), que sintetiza a própria noção da unidade de fluxo
de consciência como origem da temporalidade do ego transcendental:

A forma do presente vivo assim move-se ruidosa, automática e


constantemente, nem mais rápida nem mais lenta, sempre a par da realidade
da experiência temporal. Ela é o pequeno motor no coração da temporalidade.

10
Idem, 1994, p.84.
A dupla intecionalidade na recordação iterativa na fenomenologia husserliana

Porque é a origem do tempo, é de algum modo fora do tempo (como também


do espaço), e ainda experimenta diferenciação e sucessão, de um tipo próprio
a si mesma. É simultaneamente permanente e fluente, o stehendströmende
Gegenwart, como Husserl a denomina. Ela alterna e ajunta, flui e prende,
abre e fecha, como fogo e a rosa que são um (T.S.Eliot, Little Gidding, ad
finem). Ela é o lugar das mais básicas partes e todos presenças e ausências,
identidades em multiplicidades, aquelas que são pressupostas por todas as
formas mais complexas constituídas em nível mais elevado na experiência.
Esse presente vivo esta também na origem de nossa própria identidade-de-si
como agentes de consciência de verdade e ação, mas porque está na nossa
origem ela é pré-pessoal. Ela funciona anonimamente. Não poderíamos fazer
nada para mudá-la ou fazê-la mais lenta ou acelerada. Não está em nosso
poder. Não controlamos nossas origens. Ela apenas se mantém no alvoroço
de seus próprios termos. E ainda somos identificáveis com ela; ela é “nossa”,
como nossa origem e base.11

Bibliografia

HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo.


Tradução, introdução e notas: Pedro M. S. Alves. Lisboa: Casa da Moeda, 1994.

_________________. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Tradução:


Maria Gorete Lopes e Souza. Porto: Rés, 2001.

Lyotard, Jean-François. A Fenomenologia. Coimbra: Edições 70, 2008.

Santo Agostinho – Vida e Obra. In: Coleção Os Pensadores. Tradução: J. Oliveira


Santos, S.J e A. Ambrósio de Pina, SJ. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000.

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM,
2008.

SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004.

11
SOKOLOWISKI, R. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004, p.152 a 153.

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