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Identidade, diferença e racismo

Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica Política da Promoção da Igualdade Racial na Escola Organização José Carlos Gomes da Silva Melvina Afra Mendes de Araújo Flávia Alves de Sousa São Paulo | 2017 Presidenta da República Dilma Vana Roussef Vice-Presidente Michel Miguel Elias Temer Lulia Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro Universidade Federal de São paulo (UNIFESP) Reitora: Soraya Shoubi Smaili Vice Reitora: Valeria Petri Pró-Reitora de Graduação: Maria Angélica Pedra Minhoto Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa: Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni Pró-Reitora de Extensão: Florianita Coelho Braga Campos Secretário de Educação a Distância: Alberto Cebukin Comitê Gestor da Política Nacional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica - CONAFOR Presidente: Luiz Cláudio Costa Coordenação geral do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica - COMFOR Coordenadora: Celia Maria Benedicto Giglio Coordenação de Produção e Desenho Instrucional Felipe Vieira Pacheco Coordenação de Tecnologia da informação Daniel Lico dos Anjos Afonso Secretaria de Educação Básica - SEB Secretário: Manuel Palacios da Cunha e Melo Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão SECADI Vice-Coordenadora: Romilda Fernández Felisbino Coordenação pedagógica do curso Coordenador: José Carlos Gomes da Silva Secretário: Paulo Gabriel Soledade Nacif Vice-Coordenadora: Melvina Afra Mendes de Araújo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE Coordenação de ead Izabel Patrícia Meister Presidente: Antonio Idilvan de Lima Alencar Paula Carolei Fundação de Apoio à Universidade Federal de São Paulo - Fap-Unifesp Rita Maria Lino Tárcia Valéria Sperduti Lima Diretora Presidente: Anita Hilda Straus Takahashi produção Secretaria Tecnologia da informação Eduardo Eiji Ono Bruna Franklin Calixto da Silva Marlene Sakumoto Akiyama Daniel Gongora Fabrício Sawczen João Luiz Gaspar Marcelo da Silva Franco Mayra Bezerra de Sousa Volpato Margeci Leal de Freitas Alves Tiago Paes de Lira Valéria Gomes Bastos Vanessa Itacaramby Pardim Adriana Pereira Vicente Clelma Aparecida Jacyntho Bittar Livia Magalhães de Brito Tatiana Nunes Maldonado Suporte técnico Enzo Delorence Di Santo André Alberto do Prado Nilton Gomes Furtado Rodrigo Santin Rogério Alves Lourenço Sidnei de Cerqueira Vicente Medeiros da Silva Costa João Alfredo Pacheco de Lima Rafael Camara Bifulco Ferrer Edição, Distribuição e Informações Universidade Federal de São Paulo - Pró-Reitoria de Extensão Rua Sena Madureira, 1500 - Vila Mariana - CEP 04021-001 - SP http://comfor.unifesp.br Copyright 2015 Todos os direitos de reprodução são reservados à Universidade Federal de São Paulo. É permitida a reprodução parcial ou total desta publicação, desde que citada a fonte Política da promoção da igualdade racial na escola Organização José Carlos Gomes da Silva Melvina Afra Mendes de Araújo Flávia Alves de Sousa Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica Política da promoção da igualdade racial na escola / José Carlos Gomes da Silva, Melvina Afra Mendes de Araújo, Flávia Alves de Sousa (orgs.). - São Paulo: Unifesp, 2017. 423 p. ISBN 978-85-93527-04-3 1. Igualdade na educação. 2. Política educacional - Brasil. 3. Discriminação na educação - Brasil. 4. Discriminação racial. 5. Identidade racial. 6. Negros – Condições sociais. I. Silva, José Carlos Gomes da. II. Araújo, Melvina Afra Mendes de. III. Sousa, Flávia Alves de. IV. Título. CDD 379.0260981 Sumário Módulo 1. Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais ....... 6 Disciplina 2. Identidade, diferença e racismo .................................................. 7 Glaydson José da Silva Jair Batista da Silva Unidade 1. o que são as identidades? ......................................................... 9 Unidade 2. Concepções de identidade nas Ciências Humanas e Sociais ...... 14 Unidade 3. Crise de identidade? ................................................................. 16 Unidade 4. Identidades nacionais ............................................................... 23 Unidade 5. Identidade brasileira ................................................................. 27 Unidade 6. Democracia racial ..................................................................... 29 Unidade 7. Diferença e identidade e direito à diferença ............................. 34 Unidade 8. Racismo, preconceito e discriminação racial ............................ 38 Unidade 9. A particularidade do racismo no Brasil ..................................... 42 Unidade 10. Racismo e política ................................................................... 52 Disciplina 3. Educação, Racismo e Antirracismo ........................................ 59 Janaina de Figueiredo José Lindomar C. Albuquerque Unidade 1. As oportunidades educacionais para negros e brancos ........... 61 Unidade 2. Racismo: algumas deinições ................................................ 67 Unidade 3. Racismo no Brasil ..................................................................... 74 Unidade 4. Racismo e antirracismo: o que pensaram os nossos intelectuais?80 Unidade 5. O movimento negro no Brasil: suas lutas e conquistas ............. 85 Unidade 6. A escola brasileira e as origens de um discurso antirracista ..... 91 Unidade 7. Racismo e cotidiano escolar ...................................................... 99 Unidade 8. A Lei 10.639: a sua longa trajetória .......................................... 106 Unidade 9. Experiências positivas de promoção da igualdade racial .......... 116 Unidade 10. Para uma educação antirracista .............................................. 122 Disciplina 4. Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção ..................... 129 Andréa Barbosa Disciplina 5. Atividade Extra Sala: Visitar Territórios Negros na Cidade de São Paulo ..................................................................................................... 155 Gilberto da Silva Francisco 4 Módulo 2. Fundamentos histórico-culturais-conteúdos especíicos ........... 180 Disciplina 6. Diáspora Negra no Brasil ....................................................... 182 Douglas José Gomes Araújo Unidade 1. Introdução ................................................................................. 184 Unidade 2. Texto 1. Povos e etnias africanas na diáspora ........................ 189 Unidade 2. Texto 2. Escravização, travessia e reterritorialização das culturas africanas ...................................................................................................... 195 Unidade 3. Texto 1. Escravidão, quilombos e remanescentes de quilombos 203 Unidade 3. Texto 2. Congadas e irmandades negras ................................ 213 Unidade 4. Texto 1. Do jongo ao samba: expressões da cultura bantu no sudeste brasileiro ................................................................................. 223 Unidade 4. Texto 2. Capoeira: arte-luta e reelaboração da identidade negra232 Unidade 5. escritos negros: Imprensa negra e Carolina Maria de Jesus ..... 239 Disciplina 7. Cultura Afro-Brasileira I: Literatura Negra .............................. 251 Profa. Dra. Ligia Fonseca Ferreira Unidade 1. O negro brasileiro, de personagem a autor: uma introdução ... 253 Unidade 2. A “democracia racial” e a negação da literatura negra ........... 261 Unidade 3. Texto 1. A emergência das “literaturas negras” no mundo: espaços, conexões e aproximações com o Brasil (décadas 1920-1960) ...... 267 Unidade 3. Texto 2. Airmação e identidade: a literatura negra chegou para icar (anos 1970-1980) .................................................................. 275 Unidade 4. Literatura afro-brasileira x literatura negra: nomes e conceitos em discussão ........................................................................................ 280 Unidade 5. Apresentação de alguns autores representativos da literatura negra ............................................................................................................ 288 Módulo 3. Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções ......... 325 Disciplina 8. Cultura Afro-Brasileira II: Artes negras, artistas e performances . 328 Ms. Renata Aparecida Felinto Dr. Salomão Jovino da Silva Unidade 1. Sons e ruídos, música e identidades ...................................... 329 Unidade 2. Texto 1. O negro e a arte produzida no Brasil nos primeiros séculos: do barroco às musicalidades africanas ...................................... 335 Unidade 2. Texto 2. Manifestações culturais e artísticas na diáspora negra a partir dos registros iconográicos: instrumentos e musicalidade ............... 345 Unidade 3. Manifestações culturais e artísticas na diáspora negra a partir de registros iconográicos: instrumentos e musicalidade. Texto 1. Início do 5 século 20: o artista negro entre o popular e o erudito ............................. 356 Unidade 3. Texto 2. Artes Visuais e os temas da religiosidade afro-brasileira, raça, gênero e política ................................................................................ 362 Unidade 4. Manifestações culturais na diáspora: tocadores, história do samba e polifonia dos protestos negros. Texto 1. Trocas, conlitos e mudanças culturais na diáspora: tocadores do bairro do Braz ................... 373 Texto 2. Clementina e Sellasié: Duas Áfricas se encontram no Festival de arte cultura negra em Dakar, 1966 ....................................................... 377 Unidade 5. A revolução pela Arte de Adbias do Nascimento: manifesto estético ................................................................................................ 387 Disciplina 9. Foram desenvolvidas atividades extra-sala ........................... 394 Disciplina 10. Religiosidade afro-brasileira: tolerância e intolerância no Espaço Escolar. ................................................................................................ 395 Melvina Afra Mendes de Araújo Patrício Carneiro Araújo Unidade 1. Conceito de religião aplicado às manifestações dos negros no Brasil ...................................................................................................... 396 Unidade 2. Candomblé, uma religião da diáspora africana. Texto 1. Tornar-se religião ......................................................................................... 400 Unidade 2. Texto 2. Religiões africanas: a supremacia nagô .................... 401 Unidade 3. O candomblé em busca de legitimação: religiosos e pesquisadores como mediadores. Texto 1. Em busca da pureza .................. 403 Unidade 3. Texto 2. Alargando as noções de religiões afro-brasileiras ...... 404 Unidade 5. Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo .......................................................................................... 407 6 Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica Especialização em Política de promoção da igualdade racial na escola Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais São Paulo | 2015 DISCIPLINA 2 IDENTIDADE, DIFERENÇA E RACISMO Autores: Glaydson José da Silva Jair Batista da Silva Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Objetivos gerais: • • Propiciar relexões teóricas sobre os temas identidade, diferença e racismo que auxiliem em uma compreensão elaborada dos conteúdos do curso. Abordar discussões recentes sobre os conteúdos do módulo, informando bibliograia de referência e disponibilizando passagens da obra de estudiosos sobre os temas tratados, forma de disponibilizar textos nem sempre de fácil acesso. Apresentação Neste primeiro módulo do curso de Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola abordaremos algumas questões referenciais. Os conteúdos aqui tratados terão dois objetivos: 1. promover uma relexão teórica acerca de conceitos importantes para a compreensão geral do curso, como identidade, diferença e racismo; e 2. iniciar discussões sobre temas que serão posteriormente aprofundados, como democracia racial e racismo. O módulo está dividido em 10 unidades. Unidade I – O que são as identidades? Unidade II – Concepções de identidade nas Ciências Humanas e Sociais Unidade III – Crise de identidade? Unidade IV – Identidades nacionais Unidade V – Identidade brasileira? Unidade VI – Democracia racial Unidade VII – Diferença e identidade e direito à diferença Unidade VIII –Racismo, preconceito e discriminação racial Unidade IX – A particularidade do racismo no Brasil Unidade X – Racismo e política 4 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Unidade 1. O que são as identidades? Objetivos: • • Apresentar, em linhas gerais, aspectos importantes e deinidores do conceito de identidade nas Ciências Humanas e Sociais; Problematizar a multiplicidade das identidades 1. Introdução A temática das identidades é extremamente atual e recorrente nas Ciências Humanas e Sociais, o que aponta para a sua grande importância e, também, para a sua complexidade. Nas últimas décadas, o conceito de identidade foi largamente utilizado e, ainda hoje, é tido como de capital importância para explicação de fenômenos sociais. O uso do conceito se fez acompanhar, em igual medida, de uma grande crítica a seu respeito. Do que ele trata? Qual seu signiicado? Que espectro recobre? Qual sua importância e quais seus limites? A busca de respostas a essas questões nos conduz a uma relexão sobre o tema, perpassando por aspectos centrais que o informam. 2. O que são as identidades? Ouvimos, cotidianamente, diferentes expressões que incorporam o conceito de identidade, formulando expressões como: identidade nacional, identidade racial, identidade negra, identidade religiosa, identidades de gênero, identidade cultural. As próprias expressões “perda de identidade” e “crise de identidade” parecem mobilizar o conceito para exprimir o lugar social que essas diferentes identidades ocupariam, hoje, num mundo globalizado, em constante e veloz mudança. Sejam individuais, de grupo ou coletivas, essas diferentes identidades apontam para um conjunto de valores que permitem a articulação, em torno de si, de referências comuns que deiniriam o indivíduo, os grupos sociais dos quais fazem parte ou um corpo maior, como a sociedade, e a relação destes respectivos sujeitos com os outros indivíduos, grupos sociais e sociedades. Esse processo se organiza e se completa em torno de uma ideia de identiicação, que emerge a partir do reconhecimento de valores ou características comuns que são partilhadas pelos indivíduos em relação a uma mesma origem ou ideias, informam e dão sentido às suas práticas e permitem representar a si mesmos e aos outros. As ideias de unidade, não contradição e de adequação a algo orbitam o pensamento sobre as identidades. Em que consistiria, então, ter identidade? Por essa perspectiva seria ter características próprias, intrínsecas naturais ou criadas que deiniriam os sujeitos e o “ser” das coisas, em um processo que se dá sempre em relação: sou homem e não mulher; sou brasileiro e não africano; sou negro e não branco; sou heterossexual e não homossexual. Nesses termos, a identidade se dá em relação a um ou a vários referentes, ligando-se à unidade e à sua contraposição em relação a outros seres efetivamente existentes, criados ou inventados. Mas quais seriam as implicações de se postular a questão das identidades assim entendida? A identidade do homem, da mulher, do brasileiro, do negro, do branco? Problematizar esse entendimento nos conduz a duas características que deinem as identidades: seus aspectos essencial e ontológico, apontando para a ideia, para além da cultura, de algo que “é”, e sempre foi e sempre será. Algo que tem uma 5 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais essência que deine o que ele é, sendo essa mesma essência quase imóvel no tempo. Levando ao limite a ilustração, considere-se, por exemplo, a crença de que “os homens são mais inteligentes que as mulheres” e de que “os negros são inferiores aos não negros”. Considere-se o silogismo: “Todo negro é inferior aos não negros. Rômulo é negro, logo, Rômulo é inferior a todos aqueles que dele diferem pela sua cor”. Essa essencialização deiniria Rômulo a partir de seu nascimento e o acompanharia ao longo de sua vida. Frases como: “As mulheres são”, “os homens são”, “os japoneses são”, “os judeus são”, os “homossexuais são” comumente esperam complementos naturalizadores e essencializadores, transcendendo, aí, o espaço de uma vida e apontando para características ixas deinidoras e imóveis no tempo que deiniriam esses sujeitos, grupos, sociedades a priori . Parte-se aí do princípio de uma ideia de identidade natural e imutável, que deine no tempo indivíduos e práticas. Em outros termos, indivíduos, grupos e sociedades são circunscritos a determinados traços e características vistos como deinidores do que eles são. Ao nascermos nos é atribuído um nome, pelo qual somos identiicados e nos identiicamos posteriormente, seguindo com ele, grosso modo, até o im de nossas vidas. Os nossos documentos de identiicação social, “documentos de identidade” que somos chamados a apresentar constantemente em diferentes circunstâncias da vida social – R.G. e CPF –, são um exemplo, circunscrito nos indivíduos, de características que lhes são próprias, únicas e intransferíveis. Pelo R.G é possível saber a data e o local do nascimento de um indivíduo, nome dos pais, sexo, nome e o número pelo qual ele é institucional e individualmente identiicado. Essa identiicação, é claro, não resume a identidade dos indivíduos, que é forjada cultural e socialmente por meio de suas experiências e relações sociais. De modo similar, a utilização de um uniforme, que vincula determinados indivíduos a determinada corporação, escola etc., diz alguma coisa dos mesmos, mas não resume sua identidade. Não temos por objetivo apresentar um conceito pronto de identidade, mas, sim, apontar para importantes subsídios que permitam a todos a construção de um conceito, que considere a constituição das identidades como algo que leve em conta escolhas (individuais, grupais, coletivas) e determinações que permitam “olhar”, dialogar, representar e “dizer” algo sobre o outro; algo que se considere aquilo que se quer ser, com dimensões intrínsecas, incontornáveis, como o lugar de nascimento, o sexo, a cor da pele. As identidades se constituem por meio da relação de atores e grupos sociais inseridos em contextos sociais especíicos, em uma dinâmica para a qual contribuem aspectos entendidos como naturais e outros, percebidos como artiiciais, mas sempre se deinem em relação a algo que lhes é entendido como externo. Logo, as identidades se deinem nas percepções que temos de nós em relação aos outros e na percepção que temos dos outros em relação a nós, é um processo no qual os limites e as fronteiras deinidoras dos incluídos e dos excluídos dependem de uma relação dialógica entre o “nós” e “eles”. As identidades não são biologicamente estabelecidas ou necessariamente ixas, elas podem se constituir rapidamente e se desfazer da mesma forma, tudo depende da dinâmica das relações sociais. Pelas nossas falas construímos simbolicamente a nós e aos outros, num espaço em que a subjetividade (em seu mais vasto sentido) ocupa um lugar importante na construção da alteridade. A construção do “outro” aos nossos olhos, ou, como o percebemos socialmente, é informada por um conjunto de valores que nos constituem (“raça1”, etnia, origem social, gênero, instrução etc.) e que também constituem aos “outros”. 1 Dado que o conceito de raça não possui realidade natural ou biológica iremos utilizá-lo aqui entre aspas, visto que seu sentido nas disputas, nos embates e na vida social tem um caráter marcadamente político. 6 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo A ideia de uma identidade única e imutável contradiz a multiplicidade constitutiva da subjetividade dos indivíduos. Um indivíduo pode ter múltiplas e diferentes identidades, ligadas a aspectos étnicos, religiosos, regionais, de gênero, de classe etc. Sob a designação homogeneizante “nordestino”, por exemplo, tem-se homens e mulheres, brancos e não brancos, pobres e ricos, jovens e velhos, etc. Uma pessoa nascida no nordeste brasileiro, assim como em qualquer outro lugar, associa-se, nesses termos, à diferentes identidades. IMPORTANTE Penso que se assim for feito haverá uma quebra na continuidade do texto. Minha sugestão é de que permaneça na coniguração original, visto que todos os créditos foram conferidos ao autor e à obra. A título de ilustração, reproduzimos um estudo de caso apresentado no livro “A identidade cultural na pós-modernidade, do sociólogo jamaicano Stuart Hall. “Em 1991, o então presidente americano, Bush, ansioso por restaurar uma maioria conservadora na Suprema Corte americana, encaminhou a indicação de Clarence Thomas, um juiz negro de visões políticas conservadoras. No julgamento de Bush, os eleitores brancos (que podiam ter preconceitos em relação a um juiz negro) provavelmente apoiaram Thomas porque ele era conservador em termos da legislação de igualdade de direitos, e os eleitores negros (que apoiam políticas liberais em questões de raça) apoiariam Thomas porque ele era negro. Em síntese, o presidente estava “jogando o jogo das identidades”. Durante “audiências” em torno da indicação, no Senado, o juiz Thomaz foi acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-colega de Thomaz. As audiências causaram um escândalo público e polarizaram a sociedade americana. Alguns negros apoiaram Thomas, baseados na questão da raça; outros se opuseram a ele, tomando como base a questão sexual. As mulheres negras estavam divididas, dependendo de qual identidade prevalecia: sua identidade como negra ou sua identidade como mulher. Os homens negros também estavam divididos, dependendo de qual fator prevalecia: seu sexismo ou seu liberalismo. Os homens brancos estavam divididos, dependendo , não apenas de sua política, mas da forma como eles se identiicavam com respeito ao racismo e ao sexismo. As mulheres conservadoras brancas apoiavam Thomas, não apenas com base em sua inclinação política, mas também por causa de sua oposição ao feminismo. As feministas brancas que frequentemente tinham posições mais progressistas na questão da raça, se opunham a Thomas tendo como base a questão sexual. E, uma vez que o juiz Thomas era um membro da elite judiciária e Anita Hill, na época do alegado incidente, uma funcionária subalterna, estavam em jogo, nesses argumentos, também questões de classe social. A questão da culpa ou da inocência do juiz Thomas não está em discussão aqui; o que está em discussão é o “jogo de identidades” e suas consequências políticas. Consideremos os seguintes elementos: • • As identidades eram contraditórias. Elas se cruzavam ou se “deslocavam” mutuamente. As contradições atuavam tanto fora, na sociedade, atravessando grupos políticos estabelecidos, quanto “dentro” da cabeça de cada indivíduo. 7 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais • • • Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social – podia alinhar todas as diferentes identidades com uma “identidade mestra” única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, basear uma política. As pessoas não identiicam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e representadas. De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas dessa forma por identiicações rivais e deslocantes – advindas, especialmente, da erosão da “identidade mestra” da classe e da emergência de novas identidades, pertencentes à nova base política deinida pelos novos movimentos sociais: o feminismo, as lutas negras, os movimentos de libertação nacional, os movimentos antinucleares e ecológicos. Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identiicação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito com constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política da diferença”.(HALL 2002: 21) A fragmentação das identidades mencionada no livro de Stuart Hall se contrapõe à ideia de uma identidade única, que nasceria com o indivíduo e o acompanharia até o im de sua vida. A exempliicação proposta por Hall nos dá base para problematizarmos a simplicidade da ideia de uma identidade mestra e abrangente que incorpora e submete as distintas identidades desenvolvidas e desconstruídas pelos sujeitos ao longo da sua existência social. SAIBA MAIS BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. In: https://identidadesculturas. iles.wordpress.com/2011/05/bauman-zygmunt-identidade.pdf PARA REFLETIR • Em que consiste a identidade? • Como se constitui e mantém uma identidade? • As identidades são ixas e acompanham o indivíduo ao longo de sua vida? Sim? Não? Por que? • As identidades são obrigatórias? • Que relação se pode estabelecer entre identidade e subjetividade? • Como se dá o processo de identiicação do sujeito com algo, alguém (indivíduo, grupo ou coletividade) ou alguma coisa? 8 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Considerações Finais Até aqui você pode observar, em linhas gerais, algumas relexões que nos permitem uma aproximação do conceito de identidade; pode notar, também, a complexidade da temática. É importante considerar, nesse momento inicial do curso, que as identidades possuem, discursivamente, um caráter essencial, que perdura no tempo e que a identiicação é uma dimensão inalienável das identidades. Veremos, a seguir, que essa percepção da identidade como algo ixo e imutável, que não sofre as inluências do tempo e da cultura tem sido amplamente revista nas Ciências Humanas e Sociais. Referências Bibliográficas HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. 9 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 2. Concepções de identidade nas Ciências Humanas e Sociais Objetivos: • • Apresentar, em linhas gerais, algumas das principais concepções de identidade nos estudos contemporâneos; Construir, coletivamente, uma deinição do conceito de identidade. 1. Introdução Como se pode observar na unidade anterior, a relexão sobre as identidades nas Ciências Humanas e Sociais hoje tendem a considerar as dimensões multifacetadas e, por vezes, contraditórias da identidade dos sujeitos. Essa compreensão resulta de um longo processo histórico e só é possível se considerarmos a própria trajetória das mudanças sociais e dos estudos a respeito da temática. O que se apresenta nessa unidade é um breve resumo das grandes orientações que inluenciaram os estudos sobre as identidades nas sociedades ocidentais. 2. Concepções de identidade nas Ciências Humanas e Sociais Comumente não consideramos a historicidade das coisas que nos circundam, tomando-as como se sempre tivessem existido da forma como as conhecemos. Atualmente, é comum, mesmo nos meios acadêmicos, a utilização de diferentes expressões que apontam para um entendimento multifacetado das identidades individuais, mas esse entendimento nem sempre é contextualizado e nem sempre se considera quais dinâmicas sociais o tornaram possível. Do mesmo modo que na unidade anterior, utilizaremos as relexões de Stuart Hall para resumir o percurso do pensamento social a respeito das identidades. Hall aponta para três distintas concepções de identidade (2002:10): a) sujeito do Iluminismo; b) sujeito sociológico e c) sujeito pós-moderno. 10 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, uniicado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa (...) A noção de sujeito sociológico reletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suiciente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura dos mundos que ele/ela habitava (...) De acordo com essa visão (...), a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. (...) O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade uniicada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. (...) o próprio processo de identiicação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade ixa, essencial ou permanente. (HALL 2010: 10-12) Essas três concepções de identidade, aqui deinidas de forma rápida, resumem as grandes linhas de orientação da questão, e auxiliarão a melhor reletir acerca de aspectos centrais e deinidores que frequentemente informarão as discussões do curso . Considerações Finais As concepções de identidade aqui apresentadas são representativas de importantes orientações no pensamento social, podendo se airmar que, atualmente, coexistem em um mesmo ou diferentes contextos. Referências Bibliográficas HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. 11 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 3. Crise de identidade? Objetivos: • • Caracterizar a crítica à essencialização nas constituições identitárias; • • Ilustrar o caráter híbrido, múltiplo e, por vezes, contraditório das identidades; Apontar para as principais transformações sociais que permitiram, socialmente, mudanças na concepção de identidades, anteriormente entendidas como ixas; Promover, a partir das experiências individuais, uma relexão acerca da multiplicidade de orientações que deinem as identidades. 1. Introdução Identidades essenciais e ixas relacionadas a gênero, sexualidade, etnia, “raça”, nacionalidade e classe tem sido colocadas em questão, particularmente a partir das experiências sociais – fortemente afetadas pelas transformações da segunda metade do século passado, especialmente através do aprofundamento da globalização. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL09: 2002) A ideia de movimento nas práticas sociais de algo que está descentrado, deslocado da experiência socialmente percebida como norma pode ser entendida como explicadora das “crises de identidade”. Perspectivas identitárias ixas, integrais, uniicadas, que apontavam para um núcleo estável do sujeito ou do “eu” – sempre igual ao longo do tempo e da história – tem sido amplamente criticadas em diferentes áreas do conhecimento, apontando para uma direção “antiessencialista das concepções étnicas, raciais e nacionais da identidade cultural e da política da localização” (HALL 2000: 103). Situar o contexto histórico dessas mudanças permitirá um entendimento melhor da trajetória das questões ligadas à identidade, assim como, o lugar que hoje ocupam no pensamento social. 2. Crise de identidade? Observamos na seção anterior o lugar importante, dentro e fora do universo acadêmico, que hoje é ocupado pelas relexões sobre identidade. Essas relexões aproximam e fazem interagir instâncias de ordem individual, coletiva e grupal, sempre afetadas pelas questões identitárias, apontando para o fato de que a identidade é uma dimensão inalienável da experiência humana; sua extensão e sua complexidade não devem diminuir o interesse a seu respeito. O 12 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo conceito, de múltiplos signiicados, é determinante de várias questões importantes das relações dos indivíduos entre si, com os grupos e com a sociedade, dentre as quais se pode citar, por exemplo, o pertencimento, a inclusão e a exclusão, a etnicidade e a nacionalidade, sendo entendido como um dispositivo interpretativo de diferentes aspectos das experiências sociais. Compartilhar uma identidade com alguém signiica ter vínculos de identiicação, em um ou em vários níveis: “racial”, étnico, religioso, local, regional, nacional, sexual, etc. Esses vínculos delimitam e circunscrevem nossas inserções no mundo e nossas experiências, particularizando as mesmas, informando, a um só tempo, quem somos ou desejamos ser e nossas expectativas “comuns”, bem como o repertório, as práticas e as representações que temos dos outros. Como observa Paul Gilroy, “A identidade nos ajuda a compreender a formação daquele pronome perigoso: “nós”, e a levar em conta os padrões de inclusão e exclusão que ela cria mesmo sem querer” (2007: 125). Pela identidade nos aproximamos ou nos distanciamos das coisas e das pessoas, estabelecemos limites, fronteiras, espaços de pertencimento e exclusão; pela identidade estabelecemos o que temos em comum e o que nos diferencia dos outros. O pertencimento a um grupo ou comunidade distingue e estabelece fronteiras, por vezes físicas, como no caso das nações, instâncias heterogêneas e múltiplas organizadas em torno de elementos entendidos como uniicadores, como a origem de seus habitantes, a língua e o território. A identidade da nação comporta elementos naturais, de fato, mas outros que só existem nominal e discursivamente, na medida em que apontam para uma unidade desejada, para valores comuns almejados – no passado, no presente e no futuro – mas que não correspondem às experiências sociais na medida em que ocultam ou mascaram as diferenças. A crença em uma identidade absoluta e radicalmente compartilhada está na base de diferentes divisões e fundamentalismos. O poder desta identidade absoluta é inegável, visto sua capacidade de mobilizar para si, em torno dos valores que propugna, um conjunto de indivíduos. A identidade está presente em nosso cotidiano ao possibilitar unir, pela luta política, um conjunto de indivíduos que se batem por ideais comuns, à radicalização política, que leva desde a segregação à eliminação física do outro, do diferente, como no caso do Nazismo e do Fascismo e de outros movimentos ultranacionalistas. Quando a identidade se refere a uma marca indelével, ou a um código de alguma forma inscrito nos corpos de seus portadores, a alteridade só pode ser uma ameaça. A identidade é assim um destino latente. Vista ou não vista, estando na superfície do corpo ou enterrada profundamente em suas células, a identidade aparta para sempre um grupo em relação a outros que sejam desprovidos dos traços particulares escolhidos que se tornam a base para a tipologia e a avaliação comparativa. Não sendo mais um locus para a irmação da subjetividade ou da autonomia, a identidade se transforma. Sua movimentação revela um desejo profundo de solidariedade mecânica, serialidade e hipersimilaridade. O escopo da ação individual diminui até desparecer. (GILROY 2007: 130) 13 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Tem-se aqui, levada ao limite, a ideia de uma identidade ixa. Em muitos casos, garantidora e não garantidora do direito à vida, pois serve como fundamento para a justiicação da existência de si e da eliminação física do outro, tal como nos massacres étnicos, em detrimento do extermínio do outro, do diferente, do não puro, como no caso da “Solução Final” alemã, que previa a eliminação física de todos os judeus, extirpando o que se entendia como “não harmonioso”, “não ajustado”, “não estético”, enim, “não puro”.Tendemos a negligenciar o fato de que a formação das identidades ixas tem uma história; Comumente se associa as mudanças de identidades ixas para uma visão mais plural e mais ampla das identidades à passagem do mundo moderno para o que se convencionou designar de mundo “pós-moderno”. Muito se disse, desde pelo menos os anos 1980, acerca da “crise da modernidade”. Entender essa crise implica um entendimento prévio da própria ideia de modernidade. Para conceituar “modernidade”, podemos fazer referências ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que posteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua inluência (GIDDENS 1991:13). A crítica e superação de um determinado modelo “moderno”, ou mesmo as próprias sociedades que sucederam este período conheceram designações como “pós-modernas” e “pós-modernistas” com uma imensa gama de deinições e interpretações. Para além das diferentes classiicações, essa crítica centra-se em valores e visões de mundo geográica e temporalmente delimitados, como, por exemplo, ideias de desenvolvimento humano e social estabelecidas no período moderno na Europa. No inal da década de 1980, teóricos como Francis Fukuyama preconizavam, à sombra dos escombros do Muro de Berlim, o im da história, das ideologias e o triunfo da democracia liberal, cuja legitimidade como sistema de governo poderia constituir o “ponto inal da evolução ideológica da humanidade” (FUKUYAMA 1992: 11). Na esteira oportuna de (re) leituras da Revolução Francesa, por ocasião de seu bicentenário, e crise dos regimes socialistas do leste europeu, esses discursos sobre a chamada “crise da modernidade” ganharam fôlego, ligando, sobretudo, as bases do que se vivia e contestava ao im de um modelo, cuja origem remontava ao pensamento iluminista. Caracterizado pela crença no racionalismo e otimismo, em relação à ciência e à técnica, advinda do Renascimento do XVI e do Racionalismo do XVII, o ideário do Iluminismo constituiu as bases das diferentes ciências nos séculos seguintes. Em meio a processos de secularização de algumas sociedades europeias, em especial a francesa, a razão iluminista elegeu como alvos de uma crítica contundente o Estado Absolutista e o Cristianismo. Da religião à razão, da transcendência à imanência, essa passagem é sempre associada às ideias de civilização e progresso, que instaurarão binômios (como natural e não natural, ciência e espírito, conteúdo e forma) que se cristalizarão nas sociedades ocidentais até serem contestadas de modo mais sistemático. A concepção desenvolvimentista e evolucionista de homem e mundo, forjada pelo ideário iluminista, irá nortear as nascentes ilosoias da história do XVIII, concebidas a partir de ideias que preconizavam o devir da matéria, a evolução das espécies e o progresso dos seres humanos (BOURDÉ& MARTIN, 1990: 44). Imbuídas de um marcado pensamento teleológico, segundo o qual as coisas se desenvolviam em direção a um im, essas ilosoias irão postular a orientação da evolução humana, com vistas para o desenvolvimento de estados sucessórios e ascendentes e a concretização de etapas deinitivas ao indar desse mesmo desenvolvimento. Preocupados em demonstrar a evolução da humanidade, por meio de grandes metanarrativas explicadoras das experiências huma- 14 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo nas, autores como Auguste Comte (1798-1857) e Karl Marx (1818-1883) irão teorizar, em uma perspectiva de linearidade, notadamente no primeiro, etapas sociais do desenvolvimento humano, seja pelos estados teóricos e a física social de um ou pela sucessão dos modos de produção do outro. O pensamento teleológico (que concebia a orientação da história para um im) deste período irá fundamentar as bases da tradição intelectual moderna, posteriormente criticadas. O século XX, com todos seus avanços cientíicos, só fará explicitar o fracasso do ideário iluminista, mostrando a utilização nefasta da ciência que, a título de salvação da humanidade, muitas vezes pôs, e ainda põe em risco essa mesma humanidade. O ideal salvador e de progresso contínuo se fez acompanhar das grandes guerras mundiais, a ameaça atômica, os imperialismos, os colonialismos, as ditaduras, os conlitos étnicos, religiosos, econômicos e sexuais das sociedades não resolvidos, problemas ecológicos potencializados, desemprego, violência, acirramento de desigualdades, miséria etc. As benesses do progresso quando democratizadas, salvaram a muitos, quando não, a poucos, consolidando uma crudelíssima política elitista, excludente. Representando a não concretização de um projeto moderno “iluminista”, que levaria os homens inelutavelmente à civilização por meio do progresso. O mundo contemporâneo é o locus das incertezas e indeinições, relexo da não linearidade anteriormente prevista e da pressão cumulativa de eventos históricos (FLAX 1991: 218). Corroendo as bases em que se conigurou a modernidade, atualmente, as ciências atualmente põem em questão o estatuto de verdade da epistemologia iluminista, assim como, também, seus modelos racionalizadores. Na esteira de autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Michel Foucault (1926-1984), a subjetividade e a relativização assumiram lugares cada vez mais consolidados na história do pensamento. No ambiente historiográico, essa crise é percebida pela agonia de modelos ditos “positivistas” de se fazer história e pelo ceticismo em relação às grandes metanarrativas que explicariam as experiências humanas. Uma crítica contundente se erigirá contra a busca das origens e todos os essencialismos. A concepção iluminista, como algo existente e por ser apreendido, e seus corolários, perde espaço para entendimentos menos pretensiosos que, de uma perspectiva social e culturalista, percebem indivíduos e práticas como construções discursivas. Paralelo à falência de velhos modelos normatizadores e essencialistas do humano se dará a constituição de uma história mais democrática, includente, revisionista de valores entendidos como universais, mas que respondiam a interesses e questões únicas e exclusivas de homens brancos, europeus, burgueses, cristãos, colonialistas, que mais não izeram do que reiicar suas próprias experiências. A sociedade contemporânea é bem representativa do esgotamento da modernidade, da desconiança das verdades absolutas e das grandes generalizações dos discursos totalizantes. É nesse contexto, de ampla revisão teórica dos fundamentos da modernidade, que se insere a revisão das questões de identidade. Por essa via, é possível entender por que movimentos sociais baseados na ideia de identidade (movimento feminista, movimento negro, movimento indígena, GLBT etc.) vão ganhar, paulatinamente, visibilidade na cena política. Tanto na política quanto na produção do conhecimento, a desconiança com a totalidade que conceitos como classes, estado, etc. passam a orientar as construções analíticas e políticas. A chamada “crise das identidades” tem seus fundamentos na crítica a um modelo moderno de identidade ixa e imutável e é feita em grande medida a partir do pós-modernismo. Harley observa que “quanto ao sentido do termo, talvez só haja concordância em airmar que o ´pós-modernismo´ representa alguma espécie de reação ao ‘modernismo’ ou de afastamento dele” (HARVEY 1989:19). 15 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Situar este entendimento conceitual é relevante para a contextualização das discussões sobre as identidades. “É a partir da Filosoia, com a publicação do livro A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard, em Paris em 1979, que a expressão “pós-moderno” ganha força no âmbito das Ciências Humanas. Para Lyotard, “pós-moderna” é a condição do saber nas sociedades mais desenvolvidas, designando a expressão o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do im do século XIX. Baseado em A.Touraine, defende a hipótese de que o saber muda de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na era dita pós-industrial e as culturas na era dita pós-moderna. Essas mudanças trazem em seu bojo novos paradigmas de compreensão dos homens, das culturas e do mundo, e se coniguram de maneira similar nos diversos espaços do conhecimento. A natureza do saber não sai intacta nessa transformação geral. Nessa lógica, dois aspectos podem ser entendidos como deinidores da chamada “condição pós-moderna” ambos críticos da racionalidade iluminista: 1. a “incredulidade em relação às metanarrativas; 2. a “morte dos centros”. Ao primeiro se liga o descrédito dos grandes discursos e metanarrativas explicadores das experiências humanas e do mundo; ao segundo, a desconiança em face de todos essencialismo deinidores e dos sujeitos universais que os acompanham.”(FUNARI & SILVA 2007: 21) A esse segundo aspecto se liga a não essencialização das identidades, não mais “os homens”, “as mulheres”, “os negros”, os “gays” com características ixas e previamente estabelecidas e deinidas pelo gênero, pela cor ou pela orientação sexual, mas, “os homens”, “as mulheres”, “os negros”, os “gays”, na pluralidade de suas experiências e em identidades que se aproximam e se distanciam na relação com os indivíduos dentro desses grupos e entre eles. Desnaturalizar uma identidade é entendê-la como algo não essencial, algo que não ixa, na origem, o destino das pessoas para toda a vida, atribuindo-lhe uma condição intransponível. A deinição de uma identidade ixada pelo sexo ajuda a ilustrar a relação entre essencialização e naturalização. À identidade determinada biologicamente em diferentes culturas, se contrapõe àquela que é construída socialmente. Para Jane Flax, as diferenças biológicas são norteadoras de nossa concepção binária de sexualidade. Assim, parece haver um complexo de relações que tem associado, dado signiicados: pênis ou clitóris, vagina e seios (leia-se distintivamente corpos masculinos ou femininos), sexualidade (leia-se reprodução – nascimento de bebês), percepção do eu como um gênero característico, diferenciado – ou (e somente) uma pessoa masculina ou feminina (leia-se relações de gênero como uma categoria ‘natural” e excludente). Isto é, acreditamos que só há dois tipos de seres humanos, e cada um de nós só pode ser um deles. (FLAX 1991: XX) A crítica ao determinismo biológico caracteriza, hoje, os estudos de gênero. A compreensão das relações de gênero passa, então, pela rejeição do caráter ixo e permanente das oposições binárias e pela historicização e desconstrução dos termos da diferença sexual (SCOTT 2000: 84). 16 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Esta constatação é de signiicativa relevância na medida em que rompe não só com o determinismo biológico como, também, com a própria ordem cultural modeladora do “ser homem” ou “ser mulher” nas sociedades, ao reconhecer nesta condição um estatuto histórico e culturalmente construído, desnaturalizando as identidades sexuais. Como observa a ilósofa francesa Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher”. SAIBA MAIS ORTIZ, Renato. Identidades culturais no contexto da globalização. Entrevista. Disponível em: ile:///C:/Users/Note/ Downloads/36922-43460-1-PB.pdf Considerações Finais As novas identidades que surgem em contraposição às ixas, conigurando um ambiente de “crise de identidades”, se ligam à esfera de crítica à modernidade, como pudemos observar, estando associadas à mudanças globais, “incluindo questões sobre história, mudança social e movimentos políticos” (Woodward, 2000:20). O colapso de velhas estruturas, as experiências em um mundo globalizado, as mudanças na economia e na política global atingem de forma impactante as identidades, ixas ou não. Referências Bibliográficas FLAX, Jane. Pós-moderno e relações de gênero na teoria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa (org.). Pós-modernidade e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. pp. 217-250. FUKUYAMA, Francis. O im da História e o último homem. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. FUNARI, Pedro Paulo A., SILVA, Glaydson J. da.Teoria da História. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007. GIDENS, Antonhy. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991. GILROY, Paul. Entre campos nações, culturas e o fascínio da raça:Tradução de Célia Marinho Azevedo et al.São Paulo: Annablume, 2007. pp.07-72 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da.Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. 17 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais HARVEY, David. Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: 1989, Edições Loyola. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 20, 2, 1995, pp. 71-99. Woodward, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução: In: SILVA, Thomaz Tadeu (org).Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais: Petrópolis: Vozes, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005 SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2006 18 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Unidade 4. Identidades nacionais Objetivos: • • Reletir acerca da existência e inexistência de uma identidade nacional; Discutir o caráter de naturalidade e artiicialidade desta identidade. 1. Introdução A crença na existência de uma identidade individual, constituída por aspectos e valores que caracterizam e identiicam os indivíduos, conferindo-lhes uma singularidade, não nos parece objeto de problematização; o mesmo não se dá quando falamos em identidades que caracterizam e identiicam grupos, coletividades e, mesmo, o povo de um país, ou nação. Nesta unidade problematizaremos a ideia de uma identidade nacional e alguns de seus limites e problemas. 2. Identidades nacionais As identidades nacionais são criações modernas, pelo fato de que as próprias nações também o são; elas se constituíram e se estabeleceram, sobretudo, ao longo do século XIX. Quando pensamos em países como Alemanha ou Itália, por exemplo, comumente não consideramos o fato de que sua existência, com a conformação que hoje conhecemos, nem sempre foi assim, daí soar estranho quando se diz “os alemães”, ou “os italianos” para se referir a esses povos nesse período, visto que a uniicação política e administrativa que viria a dar lugar a esses povos só ocorreria no inal do XIX, no caso da Alemanha (1871), e início do XX, no caso da Itália (1929). Antes da uniicação o que se conhecia era um conjunto de reinos. Os povos desses reinos, doravante unidos, passaram a ser chamados de alemães e italianos. Essa designação nacional que englobava a todos os povos, agora unidos oicial e discursivamente, não contemplava as especiicidades de todos os grupos que os constituíam. A ideia nominal de uma “raça”, uma língua, uma cultura que fosse comum a todos não era mais que uma manifestação discursiva que não correspondia à realidade social, visto que mascarava todas as diferenças dos distintos povos que foram unidos. As identidades nacionais se associam aos nacionalismos do século XIX e se ligam à ideia de cultivar, por meio da educação, diferentes “mitologias nacionais” acerca da origem das nações, postulando para grupos multiétnicos com histórias diferentes, línguas diferentes e culturas diferentes a existência de uma mesma história e línguas e culturas comuns, com um passado harmonioso comum e um futuro grandioso também comuns. Como se pode observar, a ideia de nação aponta para a existência de uma história nacional comum. As identidades nacionais nascem, sobretudo, da necessidade de fazer unir o que estava historicamente separado, como territórios que foram agrupados a países aos quais não pertenciam. Desse modo, diferenças linguísticas, culturais, religiosas são ocultadas em um discurso de unidade que atende à necessidade de criação de um “ser nacional”, com valores comuns no passado, no presente e que tem, também, anseios de um mesmo futuro. A unidade funciona como uma espécie de vínculo 19 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais que une a todos. A identidade é, nesse sentido, um elo que une, historicamente, o que nem sempre foi unido. A identiicação se daria, sobretudo, pela comunhão de valores. IMPORTANTE O ilósofo francês Ernest Renan (1823-1892), em uma conferência de 1882 – “O que é uma nação?” –, que se tornaria uma referência clássica nos estudos sobre as questões nacionais deinia nação como sendo: “(...) uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que para dizer a verdade não formam mais que uma constituem esta alma, este princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no presente. Uma é a possessão em comum de um rico legado de lembranças; outra é o consentimento atual, o desejo de viver em conjunto, a vontade continuar a fazer valer a herança que receberam esses indivíduos.” (RENAN 2006: 99) Há uma dimensão artiicial que constitui a identidade das nações. O “legado de lembranças” e histórias comuns, nas quais seus membros devem se reconhecer e se identiicar, e que promovem o sentimento de “pertencimento” à nação por parte de seus diferentes componentes, se guarda alguma pertinência, em muitos casos, guarda, também, uma dimensão signiicativa de artiicialidade. Pense-se, por exemplo, nos diferentes estados de uma federação, com suas diferentes histórias. Uma unidade histórica na qual os habitantes de todos eles se reconhecessem requer, por vezes, uma dimensão ictícia, imaginária, criada em torno de ancestrais, símbolos, idiomas e valores apresentados como comuns a todos. A história como campo do conhecimento cientíico e as mitologias nacionais são importantes meios utilizados como forma de promover essa ideia de unidade. Identidades étnicas, políticas, religiosas, sociais, culturais, sexuais etc., são (re)elaboradas e redeinidas pelas relações que se estabelecem com a memória e não constroem, necessariamente, vínculos de verdade com a história. Presente na formação das identidades étnicas dos mais diferentes países, os mitos de origem dos países europeus vão guardar a especiicidade de terem tomado forma e se difundido em torno dos estados nacionais, lançando mão de velhas estruturas abstratas, já perpetuadas desde a antiguidade, em uma dinâmica que lida com instâncias do mito, da memória e da história. Dos três componentes ativos dessa dinâmica (mito, memória e história), por sua natureza dúbia que o prende ao mundo real e imaginado, é sobre o mito, mais precisamente os mitos nacionais fundadores, que repousam as nações. É essa característica híbrida que torna o mito mobilizador de ações, visto representar uma soma de lembranças coletivas comuns a todos; mito e invenção são instâncias essenciais à construção das identidades nacionais. Pode-se entender o mito aqui como uma espécie de meio pelo qual os grupos elaboram sua estabilidade e longevidade. Por meio dos mitos, as identidades nacionais são constituídas em um universo de empréstimos simbólicos e sentidos construídos em muitas tentativas de uniicação das histórias nacionais com vistas a se construir e estabelecer (discursivamente) “passados apropriados” (indivíduos, grupos, coletividades, sociedades). A expressão invenção das tradições, cunhada por Eric Hobsbawm, a isso se aplica com 20 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo perfeição. Para ele, toda tradição inventada, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal (1984: 14). Ao perpetuarem algumas recriações como se sempre tivessem existido na memória nacional, os grupos sociais têm sempre por objetivo estabelecer uma continuidade em relação ao passado histórico, tanto étnica como, também, de algumas instituições. A ideia de valores transmitidos liga-se, assim, à evocação de uma certa ancestralidade, de uma antiguidade da nação e de seus valores, perpetuada nas imagens da vida nacional com o objetivo de forjar identidades, pelo uso da ideia de permanência. Naturalmente, muitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos, inclusive o nacionalismo – sem antecessores - tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica, por exemplo, através da criação de um passado antigo que extrapola a continuidade histórica real, seja pela lenda (...) ou pela invenção. (HOBSBAWM 1984:14) Nesses termos, nação é um conceito que só se pode sustentar em torno de um passado adequado e de um futuro crível, de uma história e de um destino comuns. As nações são entidades historicamente novas ingindo terem existido durante muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua História consista de anacronismo, omissão, descontextualização e, em casos extremos, mentiras. Em um grau menor, isso é verdade para todas as formas de História de identidade, antigas ou recentes. (HOBSBAWM 1998: 285) Uma unidade de língua e cultura, enim, uma unidade nacional, circunscreve a identidade coletiva a todos que partilham nominalmente dos mesmos ancestrais, conduzindo a uma certa ideia de comunidade, uma comunidade “imaginada” a partir de laços orgânicos comuns, que comumente confere direitos a quem é portador de determinada identidade, excluindo aqueles que não o são. (ANDERSON 1989). IMPORTANTE Como interpreta Benedict Anderson (1989), as nações são, antes de tudo, entidades constituídas pela história e pela memória, embasadas em processos de identiicação coletiva, tipos ideais de grupos abstratos. 21 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais É na lembrança coletiva que referenciais passados, comumente atendendo a interesses do tempo presente, vão atuar, justamente, para terem história e memória, um substrato comum, o passado – mas não um passado qualquer, um passado glorioso. Um passado prestigioso, para a escrita de uma história prestigiosa, o que auxilia a mobilizar pessoas em torno da ideia de uma cultura comum que une a todos. Considerações Finais As identidades nacionais e seu status de naturalidade ou artiicialidade constituem importantes aspectos no estudo das coletividades. Pauta de diferentes estudos, uma consequência imediata evidenciada aos observadores mais argutos tem sido o enfoque na necessidade de uma problematização maior em torno do discurso de unidade da nação, em prol da valorização da pluralidade das culturas. Essa inlexão nas tradições interpretativas traz como corolário o imperativo de reletir acerca da suposta desintegração das “identidades nacionais” e, também, das relações que se estabelecem entre o global e o local. Construído em torno de referenciais tomados como absolutos, como por exemplo, língua, território, cultura e raça, atualmente o conceito de “identidade nacional” não se sustenta mais sem uma relexão teórica maior a seu respeito; sua ligação à ideia de “tradições inventadas” (Eric Hobsbawm) e “comunidades imaginadas” (Benedict Anderson), importantes balizas no pensamento sobre as identidades também não. A globalização econômica e a fragmentação cultural que marcam o mundo contemporâneo estabelecem o afastamento de modelos impostos pelos ideários dos Estados-nação, num contexto em que o discurso nacional tem de se recolocar face ao reconhecimento da diversidade dos indivíduos e grupos e do lugar atualmente ocupado pela subjetividade no âmbito das ciências. Referências Bibliográficas ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira, São Paulo: Ática, 1989. HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric J., RANGER, Terence (Orgs). A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim de Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. pp.xx RENAN, Ernest. O que é uma nação? Conferência realizada na Sorbonne em 11 de março de 1882. Tradução de Glaydson José da Silva. Revista Aulas, Revista Aulas. Dossiê subjetividades. Org. Adilton Luís Martins. V. 01. nº 02 Campinas, IFCH, 2006. pp. 87-102. 22 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Unidade 5. Identidade brasileira Objetivo: • Promover uma discussão acerca da existência ou inexistência de uma identidade nacional brasileira 1. Introdução Nesta unidade problematizaremos a ideia de identidade nacional, particularmente, a identidade nacional brasileira. As questões aqui apresentadas permitirão, a partir de uma análise de diferentes experiências individuais e do olhar dos cursistas para a realidade social, uma compreensão inicial mais elaborada de questões que serão tratadas nas unidades posteriores. 2. Identidade brasileira Uma identidade nacional pressupõe a existência de um jeito de “ser nacional”. Há uma especiicidade em ser brasileiro? O que é ser brasileiro? Haveria uma identidade nacional brasileira? Sem diiculdades podemos arrolar um conjunto de aspectos que caracterizam o Brasil como uma nação, como a sua delimitação geográica e a sua autonomia nas esferas política, econômica e jurídica. Os problemas surgem quando tentamos identiicar os brasileiros com características que lhes seriam próprias, deinidoras de uma identidade comum a todos e consensual entre eles. Uma primeira e importante questão a se colocar seria a de como, num país marcado por desigualdades sociais, mas, também por inúmeras diferenças (étnicas, regionais, culturais), essa ideia de unidade identitária seria possível. Para muitos, aspectos etnoculturais comuns, presentes na língua, nas religiões, na culinária, nas formas de organização social, por exemplo, deiniriam um “jeito brasileiro” de ser, portador de uma singularidade que deiniria uma cultura brasileira, uma cultura nacional. Que lugar ocuparia a multiplicidade das identidades e a diferença nesta coniguração nacional é questão que importa para uma boa relexão acerca do tema. PARA REFLETIR Há uma especiicidade em ser brasileiro? O que é ser brasileiro? Haveria uma identidade nacional brasileira? Como articular instancias locais e regionais, com instâncias do macro, nacionais, quando o que está em questão é a identidade nacional? Será que a inventada, imaginada ou criada identidade nacional nada mais é que a combinação, articulação ou uniicação das diversas identidades singulares (individuais, coletivas, grupais) experimentadas a seu modo? 23 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Considerações Finais Ouvimos cotidianamente expressões como: os brasileiros são cordiais, ou, o Brasil é o país do futebol ou do samba. Ser cordial ou gostar de futebol e samba deiniriam, por esse entendimento, um jeito de ser dos brasileiros, comum a todos. Nessa unidade buscamos problematizar a multiplicidade das identidades, mas, também, apontar para o fato de que grandes generalizações, por vezes, correspondem às experiências que são de grupos ou coletivas. Referências ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. 24 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Unidade 6. Democracia racial Objetivos: • • Historicizar e problematizar a ideia de democracia racial; Promover, a partir de um estudo de caso (identidade nacional brasileira), uma relexão acerca das experiências individuais dos cursistas com o conteúdo da unidade; 1. Introdução Do período imperial à Primeira República conhece-se no Brasil uma nacionalidade ostensivamente polarizada, marcada pela enorme distância entre brancos e pretos, civilizados e matutos (...) Foi apenas a partir de 1930, principalmente com o Estado Novo (1937–1945) e a Segunda República (1945–1964), que o Brasil ganhou deinitivamente um “povo”, ou seja, inventou para si uma tradição e uma origem (GUIMARÃES 2006: 123). Entendido a partir de então como uma civilização miscigenada, produto do cruzamento de diferentes culturas, a grande questão para o Brasil nesse período é como tornar-se moderno. A resposta a esta questão implicava discutir o que e a quem incluir na modernidade. Quais traços da cultura deveriam ser entendidos como brasileiros? Quem formaria a nação? Diferentes movimentos nas artes e nas ciências sociais buscaram reletir sobre isso e na esfera econômica o incentivo à indústria e à urbanização, a partir da década de 1930, marcam o desejo desenvolvimentista do país. Data deste período, o im da emigração sistemática, que havia substituído o trabalho escravo desde meados do século XIX. Nem a presença maciça da população negra e nem aquela dos europeus isoladamente garantiam às elites locais uma identidade nacional. Neste contexto, a ideia de democracia racial aparece como uma espécie de solução para os conlitos, atuando no fabrico de um verdadeiro sentimento de nacionalidade. A problemática da identidade nacional passa, a partir de então, a ocupar um lugar importante na história da cultura brasileira. 2. Democracia racial No caso do Brasil, o processo de industrialização e desenvolvimento urbano a partir da década de 1930 fez emergir uma discussão acerca do povo brasileiro e de seu lugar na história, em suma, de sua identidade. Enquanto alguns identiicavam as razões do atraso econômico do país no predomínio de uma população mestiça, outros apontavam a necessidade de se buscar conhecer a identidade nacional, suas especiicidades culturais em relação aos outros países, como meio de assegurar condições de igualdade na integração da sociedade brasileira à civilização ocidental. Nos programas e livros didáticos, a História ensinada incorporou a tese da democracia racial, da ausência de preconceitos raciais e étnicos. Nessa perspectiva, o povo brasileiro era formado por brancos descendentes de portugueses, índios e negros, e, a partir dessa tríade, por mestiços, compondo conjuntos harmônicos de convivência dentro de uma sociedade multirracial e sem conlitos, cada qual colaborando com seu trabalho para a grandeza e riqueza do país. - Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental – História e Geograia (1ª a 4ª série) p. 21 25 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais A constituição de uma nova identidade nacional articula identidades individuais, grupais e coletivas. A crença na existência de uma identidade nacional brasileira pressupõe a existência de uma identidade brasileira, que omite diferenças regionais, culturais ou sociais, não atentando para a heterogeneidade do povo brasileiro; a ideia de democracia racial contribui fortemente para ocultar essas diferenças e criar uma narrativa uniicadora de nação, cujo conteúdo “serviu para fortalecer a ideia de uma história nacional caracterizada pela ausência de conlitos, porque, ainal, não somos e nem fomos um povo guerreiro (a própria Independência foi pacíica, assim como a libertação dos escravos) e, internamente, vivemos sem problemas decorrentes de racismos, preconceitos étnicos ou ainda,discriminações, exclusões. Em sua face mais perversa, essa mesma teoria serviu para dissimular as desigualdades sociais e econômicas, e para justiicar a situação de miséria de grande parte da população: um povo mestiço, que carrega os males de uma fusão de grupos selvagens indolentes (índios que não queriam ser escravos e se rebelavam contra esse trabalho tão digno para a grandeza da pátria) e de negros africanos submissos e sem vontade própria, sem desejos de vencer na vida! A preguiça e a indolência, frutos dessa mestiçagem democrática, eram, ou ainda são, os responsáveis pela pobreza da maioria da população”. (BITTENCOURT 20101: 199) Os debates da segunda metade do século XIX no Brasil são muito informados por discussões que ocorriam na Europa acerca da evolução histórica dos povos. As ideias de inferioridade e superioridade, de primitivo e de complexo presidem as diferentes teorias sobre o progresso das civilizações e constituem o fundo político e analítico através do qual se desdobrará a ideologia das três “raças” fundadoras da nação e constituidoras da identidade nacional do brasileiro. A pedra angular destes debates é a crença na superioridade natural da civilização europeia em relação às demais. A “importação” de uma teoria dessa natureza não deixa de colocar problemas para os intelectuais brasileiros. Como pensar a realidade de uma nação emergente no interior desse quadro? Aceitar as teorias evolucionistas implicava analisar-se a evolução brasileira sob as luzes das interpretações de uma história natural da humanidade; o estágio civilizatório do país se encontrava assim de imediato deinido como ‘inferior’ em relação à etapa alcançada pelos países europeus. Torna-se necessário, por isso, explicar o ‘atraso’ brasileiro e apontar para um futuro próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir como povo, isto é, como nação. (...) A especiicidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, só pode ser compreendido quando combinado a outros conceitos que permitem considerar o porquê do ‘atraso’ do país. Se o evolucionismo torna possível a compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessário porém completa-lo com outros argumentos que possibilitem o entendimento da especiicidade social. O pensamento brasileiro da época vai encontrar tais argumentos em duas noções particulares: o meio e a raça. (...) meio e raça se constituíam em categorias do conhecimento que deiniam o quadro interpretativo da realidade brasileira. A compreensão da natureza dos acidentes geográicos esclarecia assim os próprios fenômenos econômicos e políticos do país. Chegava-se, desta forma, a considerar o meio como o principal fator que teria inluenciado a legislação industrial e o sistema de impostos, ou ainda que teria sido elemento determinante na criação de uma economia escravagista. Combinada aos efeitos da raça, a interpretação se completa. A neurastenia do mulato do litoral se contrapõe, assim, à rigidez do mulato do interior (Euclides da Cunha); a apatia do mameluco amazonense revela os traços de um clima tropical que tornaria incapaz de atos previdentes e racionais (Nina Rodrigues). A história brasileira é, desta forma, apreendida em termos deterministas, clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato. (ORTIZ 1994: 15-16) 26 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Meio e “raça” são, deste modo, elementos determinantes da construção da identidade brasileira para os intelectuais deste período. Se, por um lado, se vincula os defeitos e vicissitudes ao meio ambiente, por outro, o caráter miscigenado da população informa as relexões sobre a “identidade do brasileiro”. Índios, negros e imigrantes europeus ora são incorporados, ora são incluídos nas teorias que buscavam deinir uma identidade brasileira, constituída por índios, brancos e negros, na qual os brancos ocupavam sempre uma posição de superioridade em relação aos demais. Aos olhos da elite, a cultura de índios e negros, era entendida como um entrave ao desenvolvimento da cultura brasileira, que deveria buscar equiparar-se à cultura europeia. Ao mesmo tempo, a mestiçagem possibilitava a “aclimatação” da civilização europeia nos trópicos. O mestiço simbolizava para a intelectualidade deste período, o cruzamento de “raças” desiguais, que trazia em si as vicissitudes das “raças” inferiores (apatia, imprevidência, desequilíbrio moral e intelectual), legadas biologicamente (ORTIZ 1994: 21), conferindo ao elemento mestiço um caráter de inferioridade. Os elementos das “raças inferiores” só se dissipariam futuramente, ao longo de um processo de branqueamento da sociedade brasileira, o que fazia da identidade nacional um projeto para o futuro. Mas, o que torna especialmente estimulante é pensar como a mestiçagem passa de obstáculo ao desenvolvimento e à emancipação civilizatória para condição de traço, contribuição nacional notável ao desenvolvimento e história da humanidade. Do caráter inferior do mestiço à sua própria concepção como elemento constituinte da identidade nacional, na lógica da ideologia da democracia racial, há um percurso de ideias, que começam a se esboçar no inal do século XIX. A abolição é um fator importante, visto que os negros, a partir de então, ao se incorporarem de forma mais efetiva à dinâmica à constituição da população brasileira, sendo integrados, a partir de então, às relexões sobre a identidade brasileira. Data da virada do século XIX para o XX as percepções sociais de que o Brasil é produto de três “raças” formadoras: brancos, negros e índios. Para Antonio Sérgio Guimarães, a solução brasileira ao problema da integração dos ex–escravos negros e de descendentes dos povos indígenas à sociedade nacional passou, primeiro, por negar a existência de diferenças biológicas (capacidades inatas), políticas (direitos), culturais (etnicidade) e sociais (segregação ou preconceito) entre esses e os descendentes de europeus, com ou sem misturas, e, em segundo lugar, por incorporar todas essas diferenças originais numa única matriz sincrética e híbrida, tanto em termos biológicos, quanto culturais, sociais e políticos. É o que se convencionou chamar de democracia racial. (2001: 22) Para Renato Ortiz, o mito das três “raças” pode ser datado no momento em que a sociedade brasileira sofre transformações profundas, passando de uma economia escravista para outra de tipo capitalista, de uma organização monárquica para republicana, e que se busca, por exemplo, resolver o problema da mão-de-obra incentivando-se a imigração europeia. (1994: 39) 27 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais A chamada Revolução de 1930 marca a presença do Estado como organizador do desenvolvimento social. As transformações sociais, o novo status da ciência mundial e a modernidade conduzem à novas formas de organização social e modelos de interpretação das sociedades. Nesse período, as teorias raciológicas cedem espaço às ideologias que lidam mais com o conceito de cultura do que o de “raça”, destituindo das “raças” características anteriormente entendidas como biologicamente inerentes, e conferindo à mestiçagem um caráter de positividade. A ideologia da mestiçagem, do mito das três “raças” passa, a partir de então, a ser socialmente explicadora da cultura. “O que era mestiço torna-se nacional” (Ortiz 1994: 41) Até meados da década de 1990 duas grandes orientações dos estudos sobre a história da escravidão orientaram o entendimento sobre a questão racial no Brasil: uma delas baseava-se a na obra de Gilberto Freyre e sua visão de uma escravidão mais amena que em outros países e a outra era representada por Florestan Fernandes, denunciadora do caráter violento da escravidão. Essas duas posturas interpretativas, a dos estudos de Gilberto Freyre e os da “Escola Sociológica de São Paulo” – representada por Florestan Fernandes e seus pesquisadores, inserem-se no debate sobre o caráter “brando” ou “cruel” da escravidão no Brasil. (...) Quanto à primeira linha interpretativa sobre a escravidão, em diversos livros e artigos publicados entre os anos 1930 e 1970, o sociólogo pernambucano, ao estudar o desenvolvimento da temática de um “novo mundo nos trópicos”, constrói a visão de um Brasil como uma terra [quase] livre de preconceito racial, e que poderia servir de espelho para o restante do mundo resolver seus problemas raciais. Para Freyre (1936, p. 56), a formação da sociedade brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. Porém, sobrepondo-se a todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. Freyre encontra as origens desse “novo mundo” na experiência colonial brasileira, e, em especial, na sua experiência supostamente benigna com a escravidão. (...) O produto inal dessa interpretação do passado colonial brasileiro, elaborada por Freyre, foi a constituição de uma das mais harmoniosas junções da cultura com a natureza e uma cultura com a outra que a América jamais vira. (...) A ideia da escravidão amena, suave e humana no Brasil colonial está tão forte no discurso de Freyre (1971, p. 68), que este, em Novo Mundo nos Trópicos, chega a airmar que à vista de todas essas evidências não há como duvidar de quanto o escravo nos engenhos do Brasil era, de modo geral, bem tratado, e a sua sorte realmente menos miserável do que a dos trabalhadores europeus que, na Europa Ocidental da primeira metade do século XIX, não tinham o nome de escravos. (...) Por outro lado, A “Escola de Sociologia e Política de São Paulo” ou “Escola Sociológica de São Paulo” –designação atribuída por Charles Wagley a Florestan Fernandes e sua equipe de pesquisadores – que teve intensa produção intelectual nos anos 1960 e 1970, passou a pensar o Brasil com os conceitos de “classe social” e “luta de classes” e “vão se opor à visão idílica do Brasil colonial produzida por Freyre”. Esse grupo de pesquisadores corresponde à segunda linha interpretativa da historiograia brasileira sobre a escravidão (...) Fernandes e seus colaboradores produziram muitos livros e artigos, a partir dos anos 1960, atacando diretamente o mito da “democracia racial” e mostrando a realidade da desigualdade e da discriminação racial no Brasil. (RIBEIRO: 2013: 281-286) 28 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo IMPORTANTE Para uma compreensão mais elaborada dessas duas grandes orientações e das vertentes historiográicas que lhes sucedem recomendamos a leitura do texto “Letras negras, páginas brancas: as imagens do negro entre a historiograia e o ensino de História (Brasil segunda metade do século XX), do historiador Renilson Rosa Ribeiro, disponível em: http://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/etd/ article/viewFile/4117/pdf SAIBA MAIS FERNANDES, Florestan. O mito da “democracia racial”. In: ______A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Globo. pp. 304-326 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala : Formação da Família Brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1992. FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional, 1971. Considerações Finais É muito comum, ainda hoje, a ideia de que vivemos em uma democracia racial. Essa crença desconsidera a experiência nefasta do racismo em nossa sociedade, negligenciando conlitos raciais que marcam duramente as relações sociais. Apontar para a historicidade dessa expressão e problematiza-la nessa unidade (questionando o lugar-comum de seu entendimento) atendeu ao intuito de propiciar uma relexão crítica e elaborada da questão. Referências Bibliográficas BITTENCOURT, Circe. Identidade nacional e ensino de História do Brasil. In: KARNAL, Leandro. (Org.). História na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003, p p. 185-204. GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo soc. v.18 n.2 São Paulo nov. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0103-20702006000200014&lng=pt&nrm=iso ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. RIBEIRO, Renilson Rosa. Letras negras, páginas brancas: as imagens do negro entre a historiograia e o ensino de História (Brasil segunda metade do século XX), ETD, Campinas, SP v.15 n.2 p.281-299 maio./ago.2013 29 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 7. Diferença e identidade e direito à diferença Objetivos: • • • • • Estabelecer relações entre igualdade e diferença e entre identidade e diferença Apontar para as relações de poder como construtoras da igualdade e da diferença Analisar o multiculturalismo à luz das relações de poder Discutir o reconhecimento da diferença Discutir o direito à diferença 1. Introdução O direito à igualdade, se incontestável do ponto de vista dos direitos humanos e das leis convive, atualmente, com o direito à diferença. Somos diferentes e almejamos ter nosso direito de sê-lo reconhecido por todos. Contudo, tanto o pensamento igualitarista quanto aquele que se bate pelo direito à diferença nos reservam armadilhas se não os problematizarmos. Se, por um lado, a igualdade universalista é um risco, justamente por desconsiderar as diferenças sociais e culturais, por outro, a crença no direito à diferença pode se fundamentar na premissa de que os seres humanos são naturalmente desiguais e podem ser tratados de forma desigual. Ao que se sabe, e a historiograia recente sobre os totalitarismos europeus do século XX tem ido nessa direção, os judeus não foram tratados daquela inconcebível forma pelo fato de serem considerados iguais a todos os seres humanos, abstraídos de “todas as outras qualidades e relações especíicas”. Ao contrário. Foi precisamente pelo ódio à sua especiicidade de “judeus” – à sua diferença. Foi por heterofobia, por fobia à sua alteridade irredutível. E uma vez reconhecido o fato bruto da alteridade, da diferença incomensurável, foi por desvalorização da diferença reconhecida, cuja existência neste mesmo ato é reairmada para ser negada, expelida, exterminada. (PIERUCCI 2008: 22) Muitos discursos de respeito à diferença são fundamentadores da segregação e, mesmo, do racismo, fazendo da desigualdade de fato uma desigualdade de direito, comumente assentada na ideia de uma desigualdade natural. Mas, é importante ter-se em conta que, apesar da mobilização da ideia de diferença nesse tipo de discurso levar à consequências humanisticamente inaceitáveis, ela não é única. Na própria agenda de diferentes organizações sociais e grupos políticos vemos hoje expressões como “direito à diferença” e “respeito às diferenças”. Igualdade e diferença não são conceitos que possam ser tratados em absoluto, sem que se considere um e outro, do mesmo modo que identidade e diferença também não. Tratar das relações entre igualdade e diferença e oferecer subsídios para que se problematize essas relações é o objetivo desta unidade. 30 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo 2. Diferença, identidade e direito à diferença Vive-se no mundo contemporâneo uma profusão de diferentes culturas, de diferentes identidades; muitas dessas surgem e desaparecem em uma velocidade singular, apontando, por vezes, para seu caráter efêmero e circunstancial. Muitas outras logram maior perenidade, evidenciando o reconhecimento e o estabelecimento da diversidade cultural. De modo paradoxal, essa mesma diversidade parece conviver com um desejo, por vezes, de sermos culturalmente iguais, de nos identiicarmos com as mesmas coisas. Não se pode negar o fato de que a televisão, por exemplo, exerce signiicativa inluência na vida das pessoas. Pelo reconhecimento de si no outro ou pelo desejo de identiicação, quantas pessoas não se apresentam parecidas nos modos de viver, agir, se vestir etc. com personagens das tramas de icção, como as novelas. Quantas vezes o igurino de um(a) protagonista não é incorporado por milhares de pessoas que passam a se vestir de forma igual ou similar. Faça o exercício de observar o quão parecidas são as pessoas em seu modo de vestir indo a um shopping e olhando ao seu redor. De uma perspectiva maior e mais global, os meios de comunicação transpuseram todas as barreiras e, hoje, a velocidade das informações faz de exemplos que antes seriam regional ou circunstancialmente isolados casos que transcendem países e culturas, apontando para uma espécie de homogeneidade cultural. Eis o paradoxo! A convivência da diversidade cultural e da diferença com a homogeneização cultural. Analisar essa contraposição tendo-se em conta o multiculturalismo e suas ligações intrínsecas com as relações de poder parece-nos uma estratégia interessante. Para Tomaz Tadeu da Silva, o multiculturalismo: “transfere para o terreno político uma compreensão da diversidade cultural que esteve restrita, durante muito tempo, a campos especializados como o da Antropologia. Embora a própria Antropologia não deixasse de criar suas próprias relações de saber-poder, ela contribuiu para tornar aceitável a ideia de que não se pode estabelecer uma hierarquia entre as culturas humanas, de que todas as culturas são epistemológica e antropologicamente equivalentes. Não é possível estabelecer nenhum critério transcendente pelo qual uma determinada cultura possa ser julgada superior a outra. Nessa visão, as diversas culturas seriam o resultado das diferentes formas pelas quais os variados grupos humanos, submetidos a diferentes condições ambientais e históricas, realizam o potencial criativo que seria uma característica comum de todo ser humano. As diferenças culturais seriam apenas a manifestação supericial de características humanas mais profundas. Os diferentes grupos culturais se tornariam igualados por sua humanidade. Essa visão liberal ou humanista de multiculturalismo é questionada por perspectivas que se poderiam caracterizar como mais políticas ou críticas. Nestas perspectivas, as diferenças culturais não podem ser concebidas separadamente de relações de poder. A referência do multiculturalismo liberal a uma humanidade comum é rejeitada por fazer apelo a uma essência, a um elemento transcendente, a uma característica fora da sociedade e da história. Na perspectiva crítica não é apenas a diferença que é resultado de relações de poder, mas a própria deinição daquilo que pode ser deinido como “humano”. A perspectiva crítica de multiculturalismo está dividida, por sua vez, entre uma concepção pós-estruturalista e uma concepção que se poderia chamar de “materialista”. Para a concepção pós-estruturalista, a diferença é essencialmente um processo linguístico e discursivo. A diferença não pode ser concebida fora dos processos linguísticos de signiicação. A diferença não é uma característica cultural: ela é discursivamente produzida. Além disso, a diferença é sempre uma relação: não 31 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais se pode ser “diferente” de forma absoluta; é-se diferente relativamente a alguma coisa, considerada precisamente como “não diferente”. Mas essa “outra coisa” não é nenhum referente absoluto, que exista fora do processo discursivo de signiicação: essa “outa coisa, o “não diferente”, também só faz sentido, só existe, na “relação de diferença” que a opõe ao “diferente”. Na medida em que é uma relação social, o processo de signiicação que produz a “diferença” se dá em conexão com relações de poder. São as relações de poder que fazem com que a “diferença” adquira um sinal, que o “diferente” seja avaliado negativamente relativamente ao “não diferente”. Inversamente, se há sinal, se um dos termos da diferença é avaliado positivamente (o “não diferente”) e o outro, negativamente (o “diferente”) é porque há poder. (...) Uma perspectiva mais “materialista”, em geral inspirada no marxismo, enfatiza, em troca, os processos institucionais, econômicos, estruturais que estariam na base da produção dos processos de discriminação e desigualdade baseados na diferença cultural. Assim, por exemplo, a análise do racismo não pode icar limitada a processos exclusivamente discursivos, mas deve examinar também (ou talvez principalmente) as estruturas institucionais e econômicas que estão na sua base. O racismo não pode ser eliminado simplesmente através do combate a expressões linguísticas racistas, mas deve incluir também o combate à discriminação racial no emprego, na educação, na saúde” Essa passagem do livro “Documentos de Identidade” nos auxilia a perceber, em parte, os principais percursos do pensamento multiculturalista e suas principais orientações e críticas. As perspectivas críticas indicadas apontam para um entendimento, hoje, muito mais elaborado do multiculturalismo, ligando, por um lado, à produção da diferença em meio às relações de poder e, por outro, às estruturas institucionais e econômicas. Em sua perspectiva humanista, o multiculturalismo, ainda que com premissas relevantes para a luta política dos grupos minoritários (entendidos como diferentes), a partir do momento em que lhes reconhece direitos, não pode ser desvinculado das ideias de tolerância e respeito. Essas ideias, se aplicadas à interpretação das culturas e à análise da diferença carecem de uma problematização maior a seu respeito, o que implica levá-las ao limite de sua interpretação. O signiicado de tolerância tal qual o conhecemos remonta, pelo menos, ao século XVII, e estava ligado à ideia de suportar algo ou alguém diferente de nossa cultura ou de nós mesmos. Voltaire ilustra, no Dicionário ilosóico, sua utilização: “Quando os romanos foram mestres da mais bela parte do mundo, sabemos que eles toleraram todas as religiões”. Tolerar alguém em sua diferença implica aceitar esse alguém em seus termos, como é. O sentimento de tolerância confere, àquele que tolera, um lugar privilegiado na relação com o outro, um lugar estabelecido por uma relação de poder, que evidencia, em geral, a “grandeza” do que tolera face à diferença do outro. “Apesar de seu impulso aparentemente generoso, a ideia de tolerância, por exemplo, implica também uma certa superioridade por parte de quem mostra “tolerância” Por outro lado, a noção de “respeito” implica um certo essencialismo cultural, pelo qual as diferenças estão sendo constantemente produzidas e reproduzidas através de relações de poder. As diferenças não devem ser simplesmente respeitadas ou toleradas. Na medida em que elas estão sendo constantemente feitas e refeitas, o que se deve focalizar são precisamente as relações de poder que presidem sua produção.”(SILVA 2005: 86) 32 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo A tolerância e o respeito são conceitos sempre aplicados ao trato com a diferença. Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo em que a resposta se abrigava, segura de si, no primeiro termo da disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta se deslocou. A começar da segunda metade dos anos 70, passamos a nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se em ritmo acelerado e perturbador a consciência de que nós, os humanos, somos diferentes de fato, porquanto temos cores diferentes na pele e nos olhos, temos sexo e gênero diferentes além de preferências sexuais diferentes , somos diferentes na origem familiar e regional, nas tradições e nas lealdades, temos deuses diferentes, diferentes hábitos e gostos, diferentes estilos ou falta de estilo; em suma, somos portadores de pertenças culturais diferentes. Mas somos também diferentes de direito. É o chamado “direito à diferença”, o direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente. The righttobe diferente!, é como se diz em inglês o direito à diferença. Não queremos mais a igualdade, parece. Ou a queremos menos. Motiva-nos muito mais, em nossas demandas, em nossa conduta, em nossas expectativas de futuro e projetos de vida compartilhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes uns dos outros. (PIERUCCI 2008: 07) PARA REFLETIR É possível engajar-se politicamente numa luta de direito à diferença sem abrir mão da igualdade?As diferenças são naturais ou são produzidas? Por que? Considerações Finais Pudemos observar nesta seção questões importantes no que se refere à ideia de diferença, particularmente aquelas relacionadas à sua produção social e cultural. Ter ciência de que essa construção é mediada por relações de poder e, também, informada pela relação dos indivíduos com as estruturas institucionais e econômicas aporta maior complexidade ao entendimento das diferenças. Esse entendimento nos leva a uma outra compreensão de ideias como a de respeito e tolerância. Referências Bibliográficas PIERUCCI, Antonio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 33 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 8. Racismo, preconceito e discriminação racial Objetivos: • • Apresentar aspectos importantes e deinidores da noção de racismo nas Ciências Humanas e Sociais; Diferenciar racismo, preconceito e discriminação racial. 1. Introdução A emergência dos chamados novos movimentos sociais no cenário político, especialmente a partir da segunda metade do século XX, provocou inquietações sociais, políticas e analíticas à medida que introduziram novas demandas, reivindicações, emblemas, símbolos e ideologias ao conjunto dos movimentos políticos. A emergência desses novos agentes políticos descortinaram diversas formas de opressão especialmente contra mulheres, negros, homossexuais, indígenas, imigrantes, etc. que haviam permanecido obscurecidos, negligenciados ou, simplesmente, silenciados pelas forças políticas dominantes: Estado, partidos políticos, movimentos populares, sindicatos, centrais sindicais etc. Ora, tal evidência representou em boa medida a constatação segundo a qual as lutas reivindicativas, por exemplo, dos partidos políticos e das organizações sindicais, deveriam ampliar seu leque de preocupações para inserir em seus programas as lutas políticas identitárias que esses grupos oprimidos experimentavam no seu cotidiano, processo que signiicou a necessidade de politizar as reivindicações identitárias e, ao mesmo tempo, esvaziar a representação dominante acerca dessas demandas. É nesse cenário, portanto, que termos como sexismo, racismo, xenofobia e xenofobismo, homofobia e homofobismo etc. passam, com maior frequência,a estar cada vez mais presente no debate teórico e político contemporâneo. Esses questionamentos signiicavam colocar na ordem do dia uma série de problemas, conceitos e agentes políticos que, até então, continuavam silenciados ou negligenciados pela forma tradicional de se pensar e fazer política. Nesse contexto, conceitos como diferença, reconhecimento, identidade, etnicidade, democracia, multiculturalismo, etc. passavam a informar mais e mais os embates políticos e teóricos na atualidade. Uma posição que tem assumido grande destaque na teoria social contemporânea, diz respeito às lutas por reconhecimento. Essa concepção tem sublinhado que as demandas e as lutas dos grupos, ao contrário de reivindicações meramente materiais, aspiram, na verdade, ao reconhecimento da sua identidade de grupo, de seus traços, características e heranças culturais. 34 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo 2. Racismo, preconceito e discriminação racial As lutas por reconhecimento têm questionado as bases normativas da sociabilidade atual à medida que sublinham que os padrões culturais podem engendrar formas de opressão, desigualdades e sofrimentos, precisamente por não reconhecerem as particularidades culturais. Para Taylor (1993), por exemplo, a política do reconhecimento implica em acentuar os nexos entre identidade e reconhecimento, pois, para ele, uma luta baseada nesta última categoria é uma luta pela diferença. Neste sentido, na relação entre brancos e negros, sublinha Taylor (1993), estabeleceu-se uma imagem depreciada da população negra projetada pelos brancos durante vários anos, que alguns negros não deixaram de adotar. Dessa forma, autodepreciação se constitui em um dos principais, eicazes e poderosos instrumentos de sua própria opressão. Por isso, o falso reconhecimento não apenas evidencia a ausência de respeito merecido, mas pode, igualmente, causar uma ferida dolorosa, que provoca em suas vítimas efetivas uma aversão mutiladora contra si mesmas. Portanto, conclui Taylor, “o devido reconhecimento não é somente uma cortesia que devemos ao outro: é uma necessidade humana vital” (TAYLOR, 1993, p. 45). No mesmo contexto teórico, mas com outra inalidade política, a ilósofa americana Nancy Fraser analisa o que denomina coletividades ambivalentes (são aquelas que sofrem opressões ou injustiças simultaneamente de natureza econômica e cultural. Um exemplo de coletividade ambivalente analisado por Fraser (2001) encontra-se na luta contra o racismo. “Raça”, assim como classe, é uma categoria essencial da economia política. Nesse sentido, “raça” estrutura a divisão do trabalho na sociedade capitalista. De fato, “raça” legitima a divisão no interior do trabalho assalariado entre proissões mal pagas, sujas, desqualiicadas e desprestigiadas, ocupadas quase sempre por “pessoas de cor” (negros, indígenas etc.) e proissões técnicas, cientíicas, liberais, etc. bem pagas e dotadas de reconhecimento e prestígio social, dominadas primordialmente por brancos. A divisão do trabalho na atualidade, diz Fraser, como herança histórica do colonialismo e da escravidão, cria e reproduz classiicações raciais para legitimar as formas de exploração e apropriação cruel que se abatem, especialmente, sobre os negros (FRASER 2001). Na forma atual do capitalismo, a “raça” aparece como um importante marcador que informa a maneira como os indivíduos e coletividades têm acesso ao mercado de trabalho, cujo resultado é a transformação de amplos contingentes da “população de cor” em “subproletariados degradados e supérluos” (FRASER 2001: 263). Além do mais, o produto social de tudo isso é a reprodução de uma estrutura político-econômica que cria mecanismos de exploração, marginalização e exclusão sistemáticas que se fundamentam na “raça”. O desenvolvimento do debate teórico e político exposto brevemente acima nos coloca o desaio de elaborar uma deinição de racismo, preconceito e discriminação dialogando as teorias do reconhecimento. Neste sentido, não parece fora de propósito conceber o racismo como uma prática social sob a qual o agente racista não reconhece a dignidade e estima social do objeto de sua ação, cuja inalidade é atingir a autoconiança, o autorrespeito e a autoestima dos indivíduos e coletividades não reconhecidas. Além disso, o racismo pode ser uma forma de reconhecimento positivo entre coletividades: grupos racistas constroem sua identidade pela denegação do reconhecimento. A luta por reconhecimento engendrada pelos ativistas 35 sociais antirracistas visa combater as práticas e as representações que afetam o autorrespeito e a autoestima de indivíduos e coletividades que têm o reconhecimento denegado. Por isso, o racismo carrega consigo a desigualdade entre identidades, em outros termos, é a “negação da identidade igualitária”, cujos desdobramentos “relegam os indivíduos racialmente inferiorizados a um status de cidadão de segunda classe, apesar da igualdade de direitos e de atribuição formalmente reconhecidas pelo Estado” (d´ADESKY, 2001, p. 32). Isto implica, em um só movimento, reconhecer a dignidade identitária individual e coletiva daqueles que são alvos de práticas cotidianas de injustiça social. IMPORTANTE Preconceito racial é o reconhecimento de condutas morais, atributos intelectuais, estéticos, físicos e psíquicos como propriedades de “raça”, independente da experiência social que se tenha com os supostos integrantes de tal ou qual grupo e independente da inexistência da noção de “raça” como realidade biológica. É uma atribuição por antecipação, e como tal pode assumir diversas formas: estética, escrita, oral, privada e pública. Discriminação racial, por seu turno, refere-se ao comportamento e ações efetivas, reconhecidas como legítimas, a partir da ideologia racial. SAIBA MAIS FERNANDES, Florestan. Signiicado do protesto negro. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: 3. ed. Editora Ática, 1978 FRY, Peter. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a “política racial” no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 28, 19951996. p.122-135 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo & HUNTELY, Lynn (org.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e terra, 2000 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. 36 Referências Bibliográficas D´ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (org). Democracia hoje: novos desaios para a teoria democrática contemporânea. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 245-282. SILVA, Jair Batista da. Racismo e sindicalismo – reconhecimento, redistribuição e ação política das centrais sindicais acerca do racismo no Brasil (1983-2002). 2008. 374p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosoia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas (SP). TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y “la política Del reconocimiento: ensaio de Charles Taylor. Traducción MônicaUtrilla de Neira. México, Fondo de Cultura Económica, 1993. 37 Unidade 9. A particularidade do racismo no Brasil Objetivo: • Discutir a particularidade do racismo no Brasil. 1. Introdução A discussão acerca da noção de “raça” e o conceito de racismo é extensa e complexa. Por isso, não se pretende realizar aqui uma exposição exaustiva desta problemática, mas tão somente apresentar um quadro multifacetado destas deinições, concepções, ideias, formulações etc. para que se possa compreender sua manifestação na realidade brasileira 2. A particularidade do racismo no Brasil Hasenbalg (1979), interessado em investigar a estratiicação e os mecanismos sociais que reproduzem as desigualdades raciais, ressalta que a “raça” como categoria socialmente constituída atua como critério classiicatório à medida que regula a ocupação dos agentes na estrutura de classes e na estratiicação social (HASENBALG, 1979: 20-21). Por conseguinte, a “raça” manifesta, na realidade, a eiciência da ideologia racial que distribui, de forma subalterna, os indivíduos na divisão do trabalho e, ao mesmo tempo, cria os mecanismos sociais adequados para manter os integrantes do grupo racial submetidos à lógica predominante na sociedade, determinando desta forma as suas posições na estrutura sociais como “lugares apropriados” (HASENBALG, 1979: 83). Em outras palavras, o que o autor sugere é o seguinte: a sociedade, ao reproduzir as posições e a forma de distribuição dos indivíduos na estrutura social, particularmente, por meio da divisão hierárquica do trabalho, cria os lugares adequados que brancos e não-brancos devem ocupar. Procurando se contrapor às pesquisas que sublinharam a “raça” como um elemento de adscrição e de ausência de mobilidade e o que esta noção implica na constituição de uma estrutura sócio-racial ou uma estratiicação racial distinta e sobreposta à estratiicação econômica, Hasenbalg (1979) tentará articular a relação entre “raça”, estrutura de classe e estratiicação social. Para isto, construirá um particular entendimento desta noção: A raça, como traço fenotípico historicamente elaborado, é um dos critérios mais relevantes que regulam os mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema de estratiicação social. Apesar de suas diferentes formas (através do tempo e do espaço), o racismo caracteriza todas as sociedades capitalistas multirraciais contemporâneas. Como ideologia e como conjunto de práticas cuja eicácia estrutural manifesta-se numa divisão racial do trabalho, o racismo é mais do que um relexo epifenomênico da estrutura econômica ou um instrumento conspiratório usado pelas classes dominantes para dividir os trabalhadores. Sua persistência histórica não deveria ser explicada como legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversiicados interesses do grupo racialmente supraordenado no presente. (HASENBALG, 1979, p. 118). 38 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Para este autor, a “raça” como atributo fenotípico é uma característica particular que a difere das outras variáveis da estratiicação. Precisamente porque a “raça” como traço individual não pode ser transformada; apenas, os efeitos derivados da adscrição racial podem ser sim modiicados, pois para transformar ou neutralizar esses efeitos é necessário modiicar também outras variáveis (HASENBALG: 1979). Além disso, a dinâmica do sistema de produção cria e a recria as posições a serem ocupadas na estrutura de classes, porém, o racismo atua como um fator signiicativo de distribuição dos agentes nos lugares deste sistema. Isto equivale a dizer que o processo de distribuição dos agentes é condicionado menos pela dinâmica das relações de classe e mais pelo processo de adscrição racial. Numa palavra, é a “raça” e não a classe que, para o autor, deine a posição do indivíduo na estrutura de classe. Neste particular, como parece evidente, este autor ocupa uma oposição contrária à defendida por Otávio Ianni. Precisamente, o racismo é pensado aqui como uma prática social criada pelo grupo branco dominante para manter os privilégios que goza através da expropriação e submissão do grupo dominado, os negros: “o racismo como conjunto de práticas do grupo branco dominante, dirigidas à preservação do privilégio de que usufrui por meio da exploração e controle do grupo submetido” (HASENBALG e SILVA 1988: 119). Isto permitiu a Hasenbalg (1979) estabelecer a relação entre a fragmentação da identidade racial e a cooptação social dos segmentos não-brancos da população. Empregando a ideia de continuum de cor, ele sublinha que as oportunidades de mobilidade ascendente estão associadas às diferenças entre matizes de cor, por um lado, e que uma parte dos membros mais claros entre mestiços e mulatos (negros) podem ser absorvidos nos níveis médios e superiores do sistema sem, representar perigo ao monopólio e ao prestígio da “classe dominante branca” (HASENBALG 1979: 236). A decorrência política desta situação é a fragmentação da identidade dos não-brancos e a cooptação realizada pelo grupo dominante, cujo desdobramento é a constituição de projetos individuais de ascensão entre os não-brancos, esvaziando, portanto, desejos e ações políticas e econômicas do grupo subordinado. Assim, o continuum de cor proporciona vantagens aos mulatos e dilui a solidariedade entre as organizações políticas negras. Isto ocorre porque: A distância social entre a elite de cor e a massa de negros, mais o engajamento da maioria dos negros em esforços que visam simplesmente a assegurar a sobrevivência, tornam difícil a uma liderança em potencial encontrar um público para movimentos de demanda organizados. (HASENBALG 1979: 237). Combinado a este processo, airma Hasenbalg (1979), os não-brancos e suas lideranças viram-se confrontados com duas poderosas armas ideológicas: o ideal de branqueamento e a democracia racial. O primeiro – o ideal de branqueamento – permitiu e permite às classes dominantes creditar ideologicamente à apatia e à negligência dos negros os motivos do atraso econômico brasileiro. O ideal de branqueamento para as elites possuía ainda, assim, mais duas importantes características: primeiro, representava uma racionalização ao avanço do processo de mestiçagem; segundo signiicava, também, o pessimismo racial do inal do século XIX. No entanto, a crença principal entre os setores dominantes se baseava no pressuposto segundo o qual a superioridade branca e a redução, e posterior desaparecimento do negro solucionariam 39 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais o dilema racial no Brasil. Associado com tal crença e reforçando-a, a ideologia do branqueamento acreditava na homogeneização racial, ou seja, julgava possível eliminar as divisões raciais para construção ideológica do país como paraíso racial. No entanto, como toda ideologia, o branqueamento adquire real signiicado quando se avaliam seus efeitos políticos, especialmente sobre os segmentos subalternos não-brancos da população. Primeiro, a aceitação pelos não-brancos em processo de ascensão da ideologia do branqueamento implica rejeitar o grupo negro de referência e representá-lo de modo negativo, precisamente porque aqueles segmentos desejam os valores e normas do segmento branco e dominante da população, visto que é neste segmento que se concentram os parâmetros, os símbolos de aceitação social e reconhecimento que os não-brancos desejam. Segundo, isto promove a divisão interna entre os não-brancos enfraquecendo a ação política. Terceiro, mas não menos importante, isso fornece o fundamento para práticas preconceituosas de mulatos contra negros (HASENBALG 1979). Essa ideologia do branqueamento da população teria ainda como motivação o processo de imigração europeia e os casamentos inter-raciais. Isto porque as pessoas de cor mais escura tendem a escolher parceiros mais claros, devido à difundida crença no grau de recompensa advindo do nível de brancura dos indivíduos, assim “o sistema induz os não-brancos a casarem-se com as pessoas mais claras, de modo a maximizar as chances de mobilidade ascendente da sua prole” (HASENBALG 1979: 240 – Grifo do autor). Outra poderosa arma ideológica é o mito da democracia racial. As condições históricas antecedentes, como paternalismo e clientelismo, presentes na transição do escravismo para o sistema de trabalho livre favorecem o aparecimento do mito da democracia racial. Como mito, ele possui a força e a capacidade de integração, ao preço, obviamente, de desmobilizar os negros e de tornar aceitáveis as desigualdades raciais. Nesse sentido, a democracia racial pode ser vista como símbolo integrador (HASENBALG 1979). Sobre essa questão é incontornável a distinção estabelecida por Nogueira (1998). Ao estudar as “relações raciais” em um município do interior paulista, Itapetininga. Nogueira estabelece a particularidade do racismo à brasileira daquele encontrado nos EUA. Entre brasileiros, airma, o preconceito tende a distribuir os indivíduos, uns em relação aos outros, em um continuum de cor que situa em um pólo o negróide e no outro extremo o caucasóide. Por isso, “na vida social, os caracteres negróides, em geral implicam preterição de seu portador, quando em competição em igualdade de outras condições com indivíduos brancos ou de aparência menos negróide” (NOGUEIRA 1998:239). Disso decorre que o preconceito criado e recriado é, na verdade, mais acentuadamente de cor ou marca racial do que de origem. O primeiro é a forma predominante no Brasil, já o segundo é o mecanismo preponderante nos Estados Unidos. Precisamente porque o preconceito de cor ou de marca racial, em contradistinção ao preconceito racial de origem, implica a idéia de preterição e, portanto, por deinição, a possibilidade de serem os seus efeitos atenuados, contrabalançados ou agravados pela presença ou ausência de outros característicos pessoais ou sociais. A variação do preconceito de marca em função do número e evidência das marcas raciais faz com que o ajustamento dos indivíduos ao preconceito seja antes individual que grupal, tornando precária a solidariedade entre os componentes do grupo (NOGUEIRA, 1998, p. 239). 40 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Apesar de efetivamente distinto do preconceito de classe, o preconceito de marca tende a ser confundido com ele devido à reunião dos portadores de certas marcas “raciais” em especíicas camadas da sociedade. Nesse sentido, o acesso às oportunidades sociais, especialmente àquelas de maior prestígio e reconhecimento social, são monopolizadas pelo grupo racial dominante. Além disso, o preconceito de marca age sobre seus objetos não só externamente, mas também internamente atingindo a autorrepresentação e a autoavaliação que o indivíduo tem de si. Não deixam de ser curiosos os termos empregados por Nogueira, pois no quadro da teoria do reconhecimento, a situação de reconhecimento denegado tende a afetar a estima social, a coniança e a representação que o indivíduo tem de si mesmo, provocando uma luta contra essa injusta situação (NOGUEIRA 1998). O preconceito de origem, por seu turno, implica a exclusão ou segregação dos indivíduos pertencentes ao grupo racial discriminado, visto que nessas sociedades, discriminador e discriminado hostilizam-se mutuamente “como unidades sociais distintas”. Pois, na interação entre eles, “de um lado, há opressão, de outro, ressentimento e desconiança. O preconceito de origem tende a se tornar obsessivo tanto para o que o exerce como para vítima. Gera ódio e antagonismo recíproco” (NOGUEIRA 1998: 243). As diferenças entre essas duas formas de preconceito, de marca e de origem, decorrem, no primeiro tipo, da ausência de hostilidade, antipatia, exclusão, repulsa e segregação incondicionais entre os integrantes do grupo preconceituoso e as vítimas do preconceito, que “não chega a perturbar o raciocínio e a obscurecer o julgamento das qualidades dos componentes do grupo dominado, pelo menos não, na medida em que o faz o preconceito de origem”(NOGUEIRA 1998:245). As ambiguidades do racismo, dos preconceitos e das discriminações raciais icam patentes nos diversos sistemas de classiicação racial existentes entre nós. No caso particular do Brasil, o racismo engendrou um sistema de classiicação das pessoas e coletividades prescinde de regras formais de determinação, precisamente porque as classes dominantes, ao promoverem o branqueamento pela via da miscigenação, tornaram desnecessária a segregação racial institucionalizada. Isto, por sua vez, tornava, e torna, irrelevante o estabelecimento de regras de ascendência mínima. Regras que são relevantes para deinir o grupo de pertencimento racial, como ocorreu, especialmente, nos Estados Unidos e África do Sul. Todavia, como no Brasil não havia, e não há, tradição de controle da origem, isto pode ter tornado desnecessário para a classe dominante estabelecer sistemas formais, através de regras jurídicas, de ascendência mínima. A consequência disso foi a constituição de um sistema de classiicação mais lexível, sutil e complexo. Entretanto, cabe evidenciar como funciona este sistema de classiicação no Brasil: “A classiicação racial brasileira é baseada na aparência e geralmente com base em categorias que são utilizadas de forma inconsistente” (TELLES 2003: 105). 41 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais PARA REFLETIR Será que o sistema nativo é baseado, de fato, apenas na aparência? Isto signiica que aqueles indivíduos socialmente representados como mais próximos da aparência branca estarão imunes às formas de preconceito e discriminação, estão isentos das práticas de reconhecimento denegado? Será que nosso sistema de classiicação não estaria informando com sua complexidade e lexibilidade os lugares sociais que os espectros de cores representam, em outras palavras, o continuum de cores não quer informar o lugar social do sujeito? De acordo com alguns analistas, a aparência mais próxima dos brancos, se não elimina, ao menos minimiza o impacto dos preconceitos: “pode-se dizer que, no Brasil, somente aqueles com pele realmente preta sofrem todos os preconceitos e discriminações reservadas aos negros africanos” (GUIMARÃES1995: 56 – Grifo dos autores). A classiicação brasileira, de acordo com Telles (2003), que varia de branco a negro divide-se em três sistemas, a saber: 1. o sistema empregado nos censos, especialmente aquele usado pelo IBGE, utiliza um continuum que vai de branco a negro. Como se sabe, os resultados e classiicações empregadas pelos censos dão forma a uma determinada concepção de “raça” reproduzida no país, fato que parece ser verdadeiro particularmente no Brasil. Isto porque os resultados do censo servem de ponto de partida para se estabelecer e institucionalizar distinções sociais que a compreensão popular tem sobre “raça”; 2. o sistema popular que emprega diversos termos classiicatórios, sobretudo a categoria moreno. O sistema de classiicação popular caracteriza-se, por seu turno, pela grande, mas não ilimitada quantidade de termos empregados para deinir “raças” e cores. Assim, tal sistema caracteriza-se pela ambiguidade, traço que se manifesta, especialmente, no uso de termos como cabo-verde, loiro(a), marrom, “parmalat”, branquinha(o), negão (a), moreno(a) e correlatos; 3. o sistema adotado pelo movimento negro. Finalmente, o sistema empregado pelo movimento negro que vem se tornando hegemônico, precisamente porque adotado pela mídia, acadêmicos e agentes públicos, utiliza apenas as categorias de branco e negro (TELLES 2003). Por exemplo, o modo binário representa os indivíduos a partir das categorias de branco e negro. Este é modo empregado especialmente pelo Movimento Negro, pelas camadas médias intelectualizadas e pelos acadêmicos: de fato, “observa-se que a designação ‘negros’, ‘pardos’ e ‘mulatos’ refere-se ao tratamento dispensado ao item cor, pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geograia e Estatísticas]. Para nós do Movimento Negro Uniicado, os negros e seus descendentes (se constituem) em uma só raça e um único povo” (MNU, 1988, p. 24 – Grifo dos autores). Essa é uma defesa aberta da bipolaridade classiicatória e, de modo subjacente, da noção de “raça”, pois negros, mulatos e pardos são vistos como uma única “raça”. Tal posição visa, na verdade, politizar e combater o racismo, o preconceito e a discriminação através de uma estratégia seguida pelo movimento negro americano, caminho esse que, como mostrei acima, vem recebendo duras críticas daqueles que condenam a recuperação da noção de “raça”. 42 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo No entanto, os segmentos populares também empregam a bipolaridade. Enquanto a bipolaridade popular seria manejada de forma situacional, isto é, dependendo das experiências vividas quotidianamente pelos agentes, a forma empregada pelo movimento negro seria de caráter impositivo e militante. Isto porque procura se sobrepor ao modo popular de representação. Ao lado do modo binário, existiria o modo múltiplo ou popular, fartamente empregado pela população, que utilizaria termos como “moreno (a)”, “moreno (a) claro”, “pardo”, “crioulo”, “neguinho (a)”, “loiro (a)”, “preto (a)”. O modo múltiplo não seria um sistema, de acordo com Fry (1995-1996), por carecer justamente de sistematicidade. Todavia, sublinha DaMatta (1987), o sistema de classiicação brasileiro deine-se pela construção de sutilezas, matizes e nuances. Pois, “raça” combina-se com outros critérios para indicar a posição social da pessoa. Portanto, se há articulação entre critérios físicos (lidos culturalmente, claro), sociais e culturais para deinir a classiicação social do indivíduo, então, o modo múltiplo parece informar a maneira que as classiicações são realizadas no cotidiano: Já no nosso sistema, o ponto-chave é a admissão de nuanças e gradações. A ‘raça’ (ou a cor da pele, o tipo de cabelos, de lábios, do próprio corpo como um todo etc.) não é o elemento exclusivo da classiicação social da pessoa. Existem outros critérios que podem nuançar e modiicar essa classiicação pelas características físicas (que são deinidas culturalmente). Assim, por exemplo, o dinheiro ou o poder político permitem classiicar um preto como mulato, ou até mesmo como branco. Como se o peso de um elemento (como o poder econômico) pudesse apagar o outro fator (DAMATTA, 1987, p. 81). Existe, ainda assim, um terceiro modo de classiicação, talvez uma forma híbrida das duas anteriores, que informa o censo brasileiro, que, por sua vez, representa uma ampliação do modo polar – visto que não emprega apenas as categorias de “branco” e “negro”, mas categorias como “preto”, “branco”, “pardo”, “amarelo” ou outras -, mas que conigura uma redução do modo popular. Precisamente, porque no modo híbrido, o número de termos classiicatórios é signiicativamente menor. No entanto, uma importante transformação vem ocorrendo, “nota-se um deslizamento das categorias ‘negro’ e ‘mulato’ para ‘preto’ e ‘pardo’” (FRY 1995-1996: 131) Esse modo híbrido de classiicação, particularmente empregado pelo IBGE, tal como a forma popular, não implica em classiicações baseadas na ixidez das categorias, ou seja, os indivíduos não são “classiicados em relação à bipolaridade dos sinais exteriores e da ascendência” (d´ADESKY 2001: 135). O modo múltiplo possibilita, ainda, para alguns autores, que os indivíduos sejam diversamente classiicados, dependendo de uma situação para outra. Além disso, possibilitaria a desracialização da identidade individual. Assim, o modo múltiplo é, de acordo com Fry (1995-1996), de menor ambiguidade e racismo que o modo bipolar criado a partir da realidade norte americana. Apesar de reconhecer que ambos os modos sejam baseados em traços de descendência, o que lhes confere caráter racista, o modo múltiplo é, contudo, mais aberto, precisamente porque possibilita distintas formas raciais de constituição identitária do indivíduo por meio da descendência. O modo bipolar – quer americano, quer militante –, por outro lado, legitima a crença purista e racista, segundo a qual é necessário apenas uma gota de “sangue negro” para 43 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais macular a suposta “pureza branca” e se criar, idilicamente, “um mundo de ‘raças’ essencializadas” (FRY 1995-1996: 133). Entretanto, se a aposta para solução das práticas racistas, preconceituosas e discriminatórias contra a população negra na sociedade brasileira for o conlito, então o modo bipolar de classiicação deve aparecer como necessário para orientar as ações e estratégias políticas dos agentes em suas lutas. E é isto que parece fundamentar as chamadas políticas de discriminação positiva, como a política de cotas para negros nas universidades (FRY 1995-1996). Com outros propósitos, como lembra Munanga (2004), a posição social do mestiço, na classiicação presente no Brasil, em nada lembra o sistema encontrado nos Estados Unidos e na África do Sul. Na experiência brasileira, a classiicação estaria baseada na cor, ou seja, na marca e na cor da pele, e não na origem ou no sangue como naqueles países. Pois, “dependendo do grau de miscigenação, o mestiço brasileiro pode atravessar a linha ou a fronteira de cor e se classiicar ou ser reclassiicado na categoria ‘branca’” (MUNANGA 2004: 131). Mas isso não é tudo, o mestiço no sistema de classiicação racial é o ponto de encontro da tríade branco-negro-índio, lócus para o qual converge e diverge o tipo estruturante da nacionalidade. Decorre daí, airma Munanga, o mito da democracia racial: “fomos misturados na origem e, hoje, não somos nem pretos, nem brancos, mas sim um povo miscigenado, um povo mestiço (MUNANGA 2004:131). A mestiçagem, airma Munanga (2004), que signiica os cruzamentos entre populações, cruzamentos esses que são de natureza biológica e social, deve conduzir o pesquisador a se deter não somente nos elementos biológicos do processo, mas nos fatos sociais, psicológicos, econômicos, culturais e políticos-ideológicos. Pois, a mestiçagem como ideologia e o mestiço como sua igura informam a caráter ambíguo do racismo no Brasil: O mestiço simboliza plenamente essa ambigüidade, cuja conseqüência na sua própria deinição é fatal, num país onde ele é de início indeinido. Ele é ‘um e outro’, ‘o mesmo e o diferente’, nem um nem outro’, ‘ser e não ser’, pertencer e não pertencer’. Essa indeinição social (...) conjugada com o ideário do branqueamento, diiculta tanto a sua identidade como mestiço quanto a sua opção da identidade negra. A sua opção ica hipoteticamente adiada, pois espera, um dia, ser ‘branco’, pela miscigenação e/ou ascensão social (MUNANGA 2004: 140). A conclusão retirada desse diagnóstico aponta a mestiçagem como um obstáculo, isto é, como um limite político-ideológico que impede a emergência de identidades particulares. Por isso, no Brasil, a construção de identidades políticas culturais encontram enormes diiculdades, precisamente devido à ideologia da mestiçagem, da mistura, pois as “cercas e as fronteiras entres as identidades vacilam, as imagens e os deuses se tocam, se assimilam” (MUNANGA 2004: 136). Ademais, como lembra Barth (1998), o que deine a identidade étnica ou cultural de um grupo são suas fronteiras étnicas: “a fronteira étnica que deine o grupo e não a matéria cultural que ela abrange”, logo, “se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão” (BARTH 1998: 195). Por conseguinte, a mestiçagem – à medida que embaralha as fronteiras, elemento essencial para a formação das identidades – 44 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo serve como elemento político para desarmar a construção de uma identidade negra, enfraquecendo politicamente, portanto, a luta por reconhecimento. SAIBA MAIS ANDREWS, George Reed. O protesto político negro em São Paulo – 1888-1988. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 21, dez. /1991. p. 27-48. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Para além das “relações raciais”: por uma história do racismo. 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Nesta unidade tratou-se de apontar para o que entendemos como algumas especiicidades do caso brasileiro, ligadas ao estabelecimento e à estratiicação do racismo e seus mecanismos de reprodução de desigualdades. Referências Bibliográficas BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Teorias da etnicidade. Tradução Élcio FERNANDES. São Paulo: Editora da UNESP, 1998. p.185-227. D´ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia cultural. Rio de Janeiro, 1987. FRY, Peter. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a “política racial” no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 28, 1995-1996. p.122-135. 46 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. ‘Raça’, racismo e grupos de cor no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 27, abr./1995. p. 45-63. HASENBALG, Carlos. 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Tradução Ana Arruda Callado, Nadjeda Rodrigues Marques e Camila Olsen. Rio de Janeiro: RelumeDumará. 2003. 47 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 10. Racismo e política Objetivo • Tratar das relações entre racismo e inserções do movimento negro na política. 1. Introdução A relação entre racismo e política não tem sido alvo de grande preocupação de investigação entre os cientistas sociais em comparação com outras dimensões que essa problemática suscita. Assim, enquanto as desigualdades raciais no acesso à educação, ao mercado de trabalho, especialmente o ingresso nos postos de comando e prestígio nas empresas e instituições, bem como as formas de preconceito e discriminação cotidianas etc. têm merecido atenção dos pesquisadores, a referida relação não tem despertado o interesse dos especialistas, especialmente entre os cientistas políticos, conforme airmam diversos autores (HASENBALG e SILVA 1993; PRANDI 1996; OLIVEIRA 2002). Isto se relete no pequeno número de publicações e na atenção recente que esta problemática vem recebendo. Por esse motivo, abordaremos a relação entre racismo e política com enfoque na trajetória do movimento negro. A emergência de um movimento negro é algo relativamente recente no Brasil, especialmente, quando confrontado com o protesto negro da década de 1930, particularmente aquele desenvolvido em São Paulo, e mais ainda se considerar a luta contra a escravidão como manifestação desse protesto político negro (ANDREWS, 1991). 2. Racismo e política O im da escravidão aparece para uma nova vertente historiográica como uma conquista dos escravos – e, portanto, como manifestação do movimento negro – devido à impossibilidade política de realizá-la a partir de um parlamento dominado pelos interesses dos proprietários de escravos. Ademais, combinado com a reforma eleitoral de 1881 que, patrocinada pelos proprietários, reduziu de uma só vez o eleitorado de um milhão para 150 mil votantes (homens adultos, alfabetizados), com a inalidade de manter o controle sobre um universo de eleitores em expansão, isso resultou no efetivo domínio dos fazendeiros sobre a política brasileira (ANDREWS 1991). Por esse motivo, a luta abolicionista deveria surgir por fora do sistema político formal, o que de fato acabou acontecendo. Daí porque os abolicionistas mais radicais circularem pelas fazendas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, estimulando os escravos a abandonar as plantações e se dirigirem aos centros urbanos, onde seriam acolhidos por abolicionistas que lhes forneceriam refúgio e proteção. Aliado a este movimento, airma Andrews (1991), o presidente do Clube Militar solicitou, em 1887, a retirada das Forças Armadas da responsabilidade pela captura dos escravos fugitivos, “missão que os oiciais rejeitavam por considerarem-na tanto imoral quanto impossível de executar” (ANDREWS 1991:29; ver ainda, IANNI: 2004a). 48 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo Este fato representou o último impedimento signiicativo à fuga de escravos. Além disso, a “posição crítica” da monarquia em relação à escravidão provocou, especialmente entre os fazendeiros de café, em São Paulo, uma importante transformação na sua posição em relação à abolição. Cerca de quarenta mil escravos - isto representava mais de um terço da população escrava da província - foram libertados pelos seus proprietários nos doze meses anteriores à abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888. Como destaca Andrews, a escravidão é extinta porque já não era mais possível organizar a produção a partir do trabalho compulsório, precisamente devido à indisciplina e à desorganização do trabalho escravo, “uma desorganização produzida, é claro, pelos próprios escravos” (ANDREWS 1991:29-30). Portanto, a extinção da escravidão não foi obra apenas dos senhores ou da imposição dos interesses da Inglaterra, mas foi também resultado da ação dos negros, quer fossem escravos ou livres, assim, “apesar de os fazendeiros tentarem reivindicar o crédito pela abolição, observadores contemporâneos e subseqüentes reconhecem-na como ‘uma vitória do povo e, poderíamos acrescentar – uma conquista dos negros livres e escravos’” (ANDREWS 1991: 30). Há que se assinalar também as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais que afetavam a sociedade brasileira na segunda metade do século XIX. Por exemplo, na cafeicultura, a fazenda se transforma em empresa, cujo resultado é uma reconiguração dos fatores e da organização agrícola alterando sua feição anterior e dotando-a de um sentido capitalista que requer novas atitudes e comportamentos por parte do fazendeiro que se refaz, assim, em empresário nessa nova dinâmica, ocorre ainda que “o escravo se transforma em trabalhador livre, a mão-de-obra em força de trabalho” (IANNI 2004a:. 20), ou seja, realiza-se o processo que engendra também a transformação do escravo em operário. Com isto não se pretende airmar que a atuação dos negros naquele momento tenha sido o fator determinante dos eventos e eles tenham ocupado o centro da ação abolicionista, como bem lembra Fernandes (1978): a revolução abolicionista, apesar de seu sentido e conteúdo humanitários, fermentou, amadureceu e eclodiu como um processo histórico de condenação do ‘antigo regime’ em termos de interesses econômicos, valores sociais e ideais políticos da ‘raça dominante’. A participação do negro no processo revolucionário chegou a ser atuante, intensa e decisiva, principalmente a partir da fase em que a luta contra a escravidão assumiu feição especiicamente abolicionista.Mas, pela própria natureza de sua condição, não passava de uma espécie de aríete, usado como massa de percussão pelos brancos que combatiam o ‘antigo regime’ (FERNANDES 1978: 16). Posteriormente, a ação política dos negros, nos anos trinta, terá na Frente Negra Brasileira (FNB) um importante instrumento de organização. A Frente Negra Brasileira foi criada, em 16 de setembro de 1931, após a queda da Primeira República, com a Revolução de 30; e foi fechada em 1937, com a constituição da ditadura do Estado Novo por Getúlio Vargas (NASCIMENTO 2000; IANNI 2004a; MNU 1988). Assim, após uma série de mobilizações e manifestações com um bom número de presentes, por exemplo, a FNB chegou a organizar mais de 200 mil negros; segundo seus participantes (MNU 1988), na cidade de São Paulo, existia um braço armado do movimento treinado militarmente: “só na capital do estado de São Paulo possuía 49 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais inúmeros núcleos de arregimentação de militantes. Era nos núcleos que alguns de seus militantes eram adestrados militarmente para depois serem incorporados à Milícia Frentenegrina – nome do seu braço armado” (MNU 1988: 69). Suas principais lideranças criaram ainda um partido político deinido em termo étnicos que imediatamente se organizou em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Rio Grande do Sul (ANDREWS 1991) A tentativa de superação destas contradições direciona o movimento negro nas décadas de 40 e 50, a destacar a unidade como estratégia de fortalecimento do movimento e no plano da ação, a adoção de iniciativas acentuadamente culturais. Neste contexto, organizações unitárias são propostas como a Associação dos Negros Brasileiros (ANB), que, no entanto, não consegue se materializar; surge ainda a Associação Cultural do Negro (ACN) e a União Negra Brasileira (MAUÉS 1991; MNU 1988). Durante a década de 1940, duas organizações se destacam: o Comitê Democrático Afro-Brasileiro e o Teatro Experimental do Negro (TEN), ambos fundados com a participação do líder negro Abdias do Nascimento, no Rio de Janeiro. O Comitê Democrático foi fundado, em 1945, para lutar pela anistia dos presos políticos e, ao mesmo tempo, efetivamente implantar a democracia no país, especialmente a democracia racial. Além disso, o Comitê Democrático pretendia introduzir as reivindicações dos negros na Constituição Brasileira que se redigia no congresso. Contudo, nenhuma das reivindicações do Comitê Democrático e de outras organizações que lutavam pela redemocratização do país foram atendidas na nova Carta. A presença de negros na força de trabalho trará consequências políticas imediatas, pois, “Ao reduzir as antigas barreiras à participação negra na economia industrial, diminuiu consideravelmente o ressentimento entre a população de origem africana. Em segundo lugar, ao iliar os trabalhadores negros ao movimento operário controlado pelo Estado, integrou os afro-brasileiros no sistema político do país de uma forma nova e sem precedentes” (ANDREWS, 1991, p. 35). Todavia, é necessário destacar, para matizar o reconhecimento otimista da passagem acima, que esta integração se realizou – como sempre izeram as classes dominantes com a maioria da população e com os negros, em particular –, de modo subalterno. Esta integração passava, também, pela sedução dos trabalhadores negros aptos a votar (o direito ao voto se limitava aos alfabetizados; desta forma, os analfabetos estavam impedidos de votar, assim mesmo, os sindicatos, por exemplo, burlavam, frequentemente, tal proibição). O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Social Progressista (PSP), além do movimento sindical, procuravam o apoio dos negros nas eleições (ANDREWS 1991) Entretanto, experiências como a do Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, buscavam incrementar, a partir do teatro, uma nova identidade para o negro. Neste sentido, esta experiência não se reduz apenas à cultura. A redeinição da identidade negra signiicava reconhecer a “existência de uma elite negra pensante e dirigente – uma intelligentzia negra, como era referida” (MAUÉS 1991: 123 – Grifo dos autores). Especialmente em uma época – como airma seu criador, Nascimento (2000) –, em que o negro entrava nos teatros para, principalmente, realizar serviços de limpeza. Deste modo, o TEN foi criado “para contestar essa discriminação, formar atores e dramaturgos afro-brasileiros e resgatar uma tradição cultural cujo valor foi sempre negado ou relegado ao ridículo pelos nossos padrões culturais: a herança africana na sua expressão brasileira” (NASCIMENTO 2000: 206). Nesta perspectiva, como lembra Fraser (2001), a luta levada a cabo pelo TEN tinha dupla signiicação: buscava lutar contra o reconhecimento denegado através da ação na estrutura cultural-valorativa, e, 50 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo ao mesmo tempo, atuar na esfera político-econômica – por exemplo, através da participação no processo eleitoral de 49/50. Durante a década de 1960, o movimento e o protesto negro sentiram, tal como o conjunto dos movimentos sociais e políticos, o impacto provocado pela repressão imposta pela ditadura militar. Neste cenário, os ativistas e organizações negras tiveram que atuar em semiclandestinidade ou clandestinidade, tal como as organizações de esquerda. Estas, como se sabe pela pesquisa histórica mais recente, possuíam um pequeno número de militantes negros em seu interior, particularmente aqueles vinculados ao movimento negro. Por isso, o reluxo do movimento negro deve ser visto como resultado da ação repressiva que se abateu sobre o conjunto das forças de oposição à Ditadura Militar. Contudo, durante a década de 1970, ocorre uma signiicativa mudança com o ressurgimento do movimento negro moderno. A mudança se manifesta na radicalidade da proposta e no caráter contestador do movimento (HASENBALG e SILVA: 1993). De fato, o movimento negro contemporâneo altera substancialmente sua agenda política: busca construir um sentido de pertencimento e o reconhecimento da dignidade dos brasileiros negros de origem africana (d´ADESKY 2001). Para isso, processa-se uma revalorização de símbolos, valores e sinais estéticos associados à negritude. Tratava-se de recuperar, através do reconhecimento, a estima social dos negros vistos como socialmente inferiores. Por esse motivo, o objetivo do movimento, nesse momento, é agregar uma coletividade que tendia a se espalhar e buscar controlar “um destino freado pela inferiorização a que é submetido o negro, principalmente, sua não-participação nos órgão do poder central” (d´ADESKY 2001:. 63). Mas, porque o movimento ressurge com estas características? Primeiro, pela emergência de um segmento da população negra educada e em processo de ascensão; segundo, que decorre da situação anterior, os negros viam – apesar de mais educados e experimentando alguma ascensão social –, bloqueados os canais para galgar posições mais valorizadas socialmente devido aos atos racistas: “os negros com curso secundário e superior procurando empregos não-manuais e em proissões liberais na aluente economia de São Paulo viam-se relegados às posições menos desejáveis ou mesmo rejeitados de todo” (ANDREWS 1991: 36). Além disso, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 1976 mostrou “de maneira conclusiva a existência de desigualdades raciais em todos os níveis da força de trabalho, e desigualdades particularmente graves na área dos empregos não manuais em proissões liberais” (ANDREWS 1991:37 – Grifo dos autores). Esta experiência, aliada à conjuntura internacional de luta por direitos civis nos Estados Unidos, além dos processos de libertação nacionais na África, provoca mudanças ideológicas signiicativas no movimento negro, potencializando, com isto, uma ação mais radicalizada e contestadora (HASENBLAG e SILVA 1993; ANDREWS 1991; MAUÉS 1991). Ademais, novas lideranças com formação universitária começaram a organizar um novo movimento, reagindo, assim, à situação de exclusão econômica e política que vivenciavam durante a Ditadura Militar. É nesse contexto, então, que surge o Movimento Negro Uniicado (MNU), em 1978, na cidade de São Paulo, com duas características que o diferenciava das experiências anteriores: era acentuadamente mais militante, talvez relexo da sua inluência estrangeira, e radicalmente de esquerda, ao menos na sua maior parte (ANDREWS 1991). A primeira aparição pública do MNU foi, na realidade, em uma manifestação contra a discriminação e o preconceito: precisamente, o Clube Tiête de São Paulo não queria permitir a participação de quatro atletas 51 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais em sua equipe de voleibol juvenil, pelo fato deles serem negros, outro protesto direcionava-se contra a “morte de Robson Silveira da Luz, trabalhador e pai de família, torturado até a morte pela polícia no distrito 44° distrito de Guaianazes (SP)”, em 1978 (MNU 1988: 77). Esta maior radicalidade e contestação tem sido atribuída à frustração aos projetos de ascensão social que – especialmente naqueles segmentos da população negra melhor situados no mercado de trabalho e com alta formação escolar – viam bloqueadas, ou seja, viam impedidos os caminhos para o status de classe média, porque se achavam merecedores de tal prestígio devido ao nível de escolaridade e qualiicação que possuíam. Por isso, não deixa de ser sintomático – do lugar social e da radicalidade potencial do movimento – e surpreendente o maior apoio político e social recebido quando da fundação do MNU: O apoio e a solidariedade mais representativos à criação de um movimento negro em nível nacional viria, sem dúvida, dos detentos de São Paulo. Se o Movimento Negro Uniicado nascia como reação a atos de violência, inclusive com morte, a voz daqueles detentos, negros em sua maioria e que conviviam cotidianamente com a violência institucionalizada do estado brasileiro, deveria ser ouvida (MNU 1988: 08). Este cenário e as transformações políticas e ideológicas internas ao movimento provocam uma ruptura com a ideia assimilacionista presente na FNB, durante a década de 1930, bem como enseja o rompimento com o ideário preconizado pelo movimento nas décadas de 40 e 50. Assim, o branco integrado à classe trabalhadora e seus valores deixam de ser o modelo almejado pelas lideranças negras. Em seu lugar emerge a valorização de atributos do nacionalismo cultural mobilizados para constituir uma identidade valorizada para o negro no Brasil. Nesta perspectiva, “se processa a crítica às visões de mundo eurocêntricas, a recusa do ideal do embraquecimento, um “retorno às raízes”, uma adesão à negritude e uma valorização da África de origem” (HASENBALG e SILVA 1993,p. 149 – Grifo dos autores). Desta forma, o movimento se dá conta, portanto, que, para combater de modo mais eicaz o racismo, é preciso entender o problema em toda sua complexidade, o que inclui a construção de sua própria identidade e de sua história (MUNANGA 1996). Por isso, a estratégia será a airmação de valores africanos, um retorno às raízes, isto é, assumir e valorizar a negritude. Esses elementos animarão tanto a retórica quanto a ação desta militância negra a partir da criação do MNU. Isso implica exaltar uma estética da negritude composta de vestuário, penteados, adornos, além da valorização dos elementos que compõem a cultura africana: música, dança, jogos, hábitos alimentares e a adoção de nomes africanos para as crianças (MAUÉS 1991). Todavia, mesmo levando em conta as diferenças históricas signiicativas, a ação desenvolvida pela Frente Negra Brasileira parece ter tido mais sucesso para difundir sua mensagem no meio negro do que o movimento negro moderno. Três têm sido as razões explicativas para isto. Primeira, a crescente diferenciação no interior da população negra, devido às signiicativas transformações que se processaram no Brasil nos últimos anos: “as divisões de classe no interior da população negra têm colocado um obstáculo importante à mobilização política segundo uma linha racial” (ANDREWS 1991:39); a segunda razão de teor mais político-ideológico 52 Disciplina 2 - Identidade, Diferença e Racismo airma que o projeto do movimento nos anos trinta almejava uma transformação no interior da ordem, perspectiva que não se confrontava com os valores e a ideologia racial, o discurso do moderno movimento negro deine-se justamente pelo radical confronto com os valores raciais dominantes, especialmente aqueles que preconizam a harmonia e a ausência de conlitos entre os grupos raciais (HASENBALG e SILVA: 1993). A terceira razão, refere-se ao sistema político, especialmente como este sistema age para limitar o potencial de contestação das ações coletivas, o que nesta questão implica a articulação entre poder e dominação baseada na prática racista. Assim, o movimento negro viu seu protesto ser contido a partir de quatro ações interligadas: primeira, as iniciativas do Estado ao promover a migração e a constituição de mercado de trabalho livre, que no passado favoreceu o trabalhador branco nacional ou estrangeiro em detrimento da força de trabalho negra; a segunda ação, a ideologia do embranquecimento que, combinada à concepção de racismo e desigualdade entre negros e brancos como continuum de cores, tem como consequência a fragmentação da identidade coletiva e a busca de saídas individuais para obtenção de reconhecimento social; terceira, a força da ideologia da democracia racial que provoca o encobrimento das desigualdades entre as coletividades atingidas pelo racismo, mesmo fornecendo elementos culturais de integração; a quarta ação, a situação material de grande parte da população negra, marcada pela pobreza, analfabetismo, baixa escolaridade, etc. o que limita a possibilidade de mobilização política (HASENBALG e SILVA: 1993). Todavia, o moderno movimento, surgido a partir da década de 1970, à medida que pretendia uma nova identidade para o negro, por meio do reconhecimento de sua identidade individual e coletiva, encontrou, ao menos, três caminhos para alcançar esse objetivo: a primeira através da cultura – vale destacar a importância da luta cultural e política levada a cabo pelos blocos afros, afoxés, escolas de samba etc. -, a segunda mediante ações de caráter religioso, a terceira através de ações políticas. O primeiro caminho representava a revalorização dos costumes, hábitos e heranças de origem africana e o combate à folclorização dessa tradição. O segundo, a revalorização das manifestações religiosas das comunidades negras, que preconiza o terreiro como espaço de resistência. O terceiro caminho organiza-se a partir de ações políticas e contra-ideologia: “ela estimula a tomada de consciência de uma identidade particular, a dos afro-brasileiros, considerada diferente e não necessariamente oposta a uma identidade nacional mais global” (d´ADESKY 2001: 160). No fundo, cada uma a seu modo, todas essas correntes surgidas da insatisfação pelo reconhecimento denegado, buscam ver o negro reconhecido como igual, reconhecido como ser humano e portador de valor e mérito determinados na sociedade abrangente, pois, desejam, numa palavra, ter reconhecida sua dignidade individual e coletiva como seres portadores de direitos e não mais como indivíduos portadores de reconhecimento denegado antecipadamente, como o racismo, o preconceito e a discriminação impõem (d´ADESKY 2001). Apesar da perda de inluência e importância política, o MNU conseguiu alcançar sucesso onde as experiências anteriores haviam fracassado, sobretudo em pautar as questões referentes às discriminações e desigualdades praticadas no cotidiano no cenário político e mercado de trabalho, promovendo, com isso, a discussão na sociedade sobre a melhor forma de atacar esta problemática. No plano ideológico, talvez o principal triunfo do movimento negro tenha sido o desmonte da ideologia do branqueamento, da ideologia da democracia racial no Brasil e seu uso em benefício da classe dominante (ANDREWS 1991; d´ADESKY 2001), precisamente porque demonstra o lugar social destinado aos negros em termos educacionais, oportunidades 53 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais de trabalho, lazer, em relação ao nível de renda. Por isso, “as lideranças do MNU fazem uma drástica contestação da ordem vigente e do lugar que nela é reservado ao negro” (MAUÉS 1991: 125). Considerações Finais A abordagem das relações entre racismo e política nesta unidade, com enfoque na trajetória do movimento negro, buscou ligar o próprio im da escravidão à atuação de negros escravizados e livres. Ação esta que se desdobrou, posteriormente, na luta política por direitos, na criação de movimentos organizados. Referências Bibliográficas ANDREWS, George Reed. O protesto político negro em São Paulo – 1888-1988. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 21, dez. /1991. p. 27-48. D´ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: 3. ed. Editora Ática, 1978. HASENBALG, Carlos e SILVA, Nelson do Valle. Notas sobre desigualdade racial e política no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 25, dez./1993. p. 141-159. IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1987]. MAUÉS, Maria Angélica Motta. Da ‘branca senhora’ ao ‘negro herói’: a trajetória de um discurso racial. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 21, dez./1991. p. 119-129. MUNANGA, Kabengele. O anti-racismo no Brasil. In: MUNANGA, Kabengele (org.). Estratégias e políticas de combate à discriminação. São Paulo: EDUSP/Estação Liberdade, 1996. p. 79-94. NASCIMENTO, Abdias do & NASCIMENTO, Elisa Larkin. Relexões sobre o movimento negro no Brasil, 1937-1997. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo & HUNTELY, Lynn (org.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e terra, 2000. p. 203-235. OLIVEIRA, Cloves Luiz Pereira. O negro e o poder no Brasil: uma proposta de agenda de pesquisa. Caderno CRH, Salvador, nº 36, 2002. p. 49-67. PRANDI, Reginaldo. Raça e voto na eleição presidencial de 1994. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 30, dez./1996. p. 61-78. 54 DISCIPLINA 3 EDUCAÇAO, RACISMO E ANTIRRACISMO Autores: Janaina de Figueiredo José Lindomar C. Albuquerque Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Introdução A disciplina Educação, racismo e antirracismo visa, por um lado, discutir e problematizar as ideologias e as práticas sociais racistas existentes no âmbito da sociedade brasileira e, particularmente, a maneira como se manifestam no cotidiano das práticas pedagógicas em sala de aula. Por outro lado, a disciplina se propõe a abordar as lutas antirracistas protagonizadas por intelectuais críticos, pelos movimentos negros e por setores do Estado brasileiro por meio da efetivação de políticas de ações airmativas e da aprovação, regulamentação e implementação da lei 10.639/03. A disciplina ainda se propõe a apresentar algumas experiências escolares históricas e contemporâneas de combate ao racismo e o debate propositivo em torno de uma educação para as relações étnico-raciais. Como parte componente do Módulo I: aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais, os temas aqui tratados mantêm um diálogo e intersecção importante com os assuntos abordados na disciplina Identidade, diferença e racismo. Estas duas disciplinas formam o núcleo conceitual do primeiro módulo. Os conceitos fundamentais abordados – raça, racismo, preconceito, discriminação, identidade, diferença, diversidade etc. – se constituem em um repertório conceitual fundamental para as discussões em outras disciplinas do curso e na prática pedagógica dos cursistas. Muitos destes conceitos serão retomados e aprofundados em outras disciplinas mais especíicas durante a especialização. A disciplina apresenta também o marco político, educacional e jurídico de aprovação e implementação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira na educação básica. A lei, os parâmetros curriculares e as resoluções posteriores associadas à regulamentação da lei servem de parâmetro para pensarmos os limites, desaios e propostas pedagógicas inovadoras que possibilitem outros modos de pensar os saberes africanos e afro-brasileiros, combatendo permanentemente o racismo e o eurocentrismo no processo de formação dos professores, no material didático e nas práticas pedagógicas. A disciplina está dividida em dez unidades e em dois momentos de aprendizagem necessariamente interligados. Nas cinco primeiras unidades abordaremos questões gerais relacionadas às desigualdades raciais no Brasil, os conceitos de raça e racismo, a maneira como se manifesta o racismo brasileiro, o que signiica a ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial e as lutas antirracistas dos movimentos negros. Nas unidades seguintes centraremos nossa discussão no universo escolar, destacando as experiências escolares antirracistas associadas aos movimentos negros, as manifestações de racismo no cotidiano escolar, os antecedentes da lei 10.639/03 e os efeitos de sua implementação nas escolas durante a última década, as experiências positivas de escolas antirracistas anteriores e posteriores a implementação da lei e a proposta de uma educação para as relações étnico-raciais no marco de uma discussão crítica sobre o multiculturalismo. Desejamos a tod@s uma ótima leitura e que os temas aqui tratados possibilitem debates, discussões e aprendizagens ao longo da disciplina. 56 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Unidade 1 - As oportunidades educacionais para negros e brancos Objetivos: Apresentar aos estudantes algumas desigualdades sociais e educacionais entre negros e brancos no Brasil contemporâneo como ponto de partida para a nossa relexão sobre racismo. Olá cursist@s! Vamos começar a nossa conversa falando um pouco com você, caro (a) cursista, sobre as desigualdades raciais na área da educação que ainda existem em nosso país. Como você já sabe, o Brasil é um país com profundas desigualdades sociais. Os dados estatísticos produzidos nas últimas décadas no Brasil comprovam que as desigualdades brasileiras não são somente de classe social, mas também de raça, gênero, regional etc. Os dados quantitativos dos censos do Instituto Brasileiro de Geograia IBGE, da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do próprio Ministério de Educação mostram que, quando se destaca a comparação entre pessoas de diferentes raças nestes levantamentos estatísticos, percebemos que os negros ocupam geralmente posições inferiores aos brancos, mesmo pertencendo a uma mesma classe social. Negros e brancos têm as mesmas oportunidades educacionais no Brasil? 1. 1.1 As desigualdades sociais e raciais Antes de entrarmos em nossa discussão sobre acesso à educação no Brasil para brancos e negros, podemos discutir um pouco sobre o que signiica as desigualdades sociais e raciais no Brasil. As sociedades modernas, inclusive o nosso país, se estruturaram por meio de uma contradição básica: uma ordem jurídica que prega que todos somos iguais perante a lei e uma ordem econômica e social em que as desigualdades e diferenças de renda, instrução, origem, cor da pele, gênero, status, entre outros marcadores de diferença, coniguram várias formas de desigualdades sociais. A igualdade de oportunidades, um dos credos do pensamento político liberal, é uma icção normativa que entra em choque com a experiência cotidiana das pessoas marcadas por diversas barreiras sociais e simbólicas que funcionam como mecanismos de produção de desigualdades em diferentes espaços sociais: escola, mercado de trabalho, representação política, etc. As desigualdades sociais são bastante evidentes e contrastivas na sociedade brasileira. Não é difícil perceber o abismo que separa pobres e ricos. Basta olharmos para estatísticas sobre propriedade e renda da população brasileira nos últimos censos ou a maneira como ocorre 57 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais a ocupação e apropriação do espaço urbano em áreas centrais e periféricas. Mas nem todos concordam que existam desigualdades raciais no Brasil. Para alguns, os negros são discriminados por serem a maioria pobre e não por causa de sua cor da pele ou determinados traços faciais e tipo de cabelo. Além disso, airmam que uma pessoa pode nascer pobre e negra, mas com esforço pessoal e muita dedicação aos estudos e ao trabalho pode ascender socialmente e quebrar as várias barreiras sociais, alcançando sucesso pessoal e superando preconceitos. Você concorda com este tipo de airmação? Um branco e um negro ou uma mulher negra e outra branca com a mesma condição social têm as mesmas oportunidades educacionais e trabalhistas na sociedade brasileira? A ascensão social de alguns negros, individualmente, muda a desigualdade racial entre negros e brancos no Brasil? Todos os principais levantamentos estatísticos das últimas décadas, que incluíram a categoria “raça/cor”, demonstram a existência de desigualdades raciais no Brasil, especialmente nos anos médios de escolaridade, inserção no mercado de trabalho, diferenças de rendimentos e tipos de ocupação. Os negros e pardos (categoria do IBGE) continuam tendo menor taxa de escolarização, quando comparado com os brancos, trabalham mais em ocupações com menos status social, ganham salários médios menores e poucos ocupam cargos de cheia. Na pesquisa realizada em 1999 na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, a taxa de desemprego entre os negros era de 20,9% enquanto entre os brancos era de 13,8%. Aquela pesquisa também revelou que no período somente 1,9% dos negros ocupados em São Paulo eram empregadores, enquanto 7,2% dos brancos estavam nesta posição. Por outro lado, mais da metade das mulheres negras (56,3%) eram empregadas domésticas ou mensalistas (HERINGER, 2002, p. 62). Em 2013, o rendimento médio dos trabalhadores das seis maiores regiões metropolitanas era de 1.908,30 reais. Se separarmos por raça, os brancos ganhavam em média 2.334,67 reais, enquanto os negros e pardos somente 1.374,86 reais (LAESER, 2013). Um famoso mecanismo de discriminação no mercado de trabalho é o requisito da “boa aparência” em muitos empregos, sobretudo femininos destinados a atendimentos públicos. Muitas vezes a “boa aparência” signiica ter a pele clara e o cabelo liso. Os relatos são os mais variados de mulheres negras que foram preteridas em entrevistas de emprego por causa do tipo de cabelo, cor da pele ou/e formato facial. PARA REFLETIR Você concorda que o Brasil tem profundas desigualdades raciais no sistema educacional? Por quê? 1.2 As desigualdades raciais na escolarização Os números dos censos e das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNADs), no âmbito da educação, também revelam as disparidades entre brancos e negros no tocante ao analfabetismo, aos anos de estudo na educação básica e acesso ao ensino superior. Embora haja uma tendência geral nas últimas décadas de diminuição do analfabetismo e de aumento 58 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo da escolarização da população brasileira, o recorte “raça/cor” nos levantamentos censitários revela que os maiores índices de analfabetismo e menores anos de estudos no sistema educacional se concentram na população negra/parda, quando comparada com a população que se declara branca. Entre 1988 e 2008, por exemplo, houve uma diminuição nas taxas de analfabetismo da população brasileira maior de 15 anos, de 18,9% para 10%. Enquanto que a taxa de analfabetismo entre os negros e pardos reduziu de 28,9% em 1988 para 13,2% em 2008, entre os brancos a redução foi de 12,1% para 6,2% no mesmo período (LAESER, 2013). Estes simples dados revelam que a taxa de analfabetismo entre os negros e pardos em 2008 (13,2%) ainda era maior do que a taxa entre os brancos em 1988 (12,1%). O gráico abaixo compara as taxas de analfabetismo em anos mais recentes, entre 2004 e 2012, por raça/cor conforme dados da PNAD/IBGE. Observamos que as taxas de analfabetismo entre os brancos oscilaram de 7,2% em 2004 para 5,3% em 2012 e entre os negros/pardos diminuíram mais acentuadamente de 16,3% em 2004 para 11,8% em 2012. Mas, da mesma forma, a taxa de analfabetismo entre os negros/pardos em 2012 ainda é superior à taxa entre os brancos em 2004. Em termos proporcionais, o gráico ainda demonstra que a população indígena enfrenta as maiores taxas de analfabetismo no Brasil, com 14,3% em 2012. Por outro lado, os asiáticos (amarelos na classiicação do IBGE) obtiveram as menores taxas, somente 2,4% em 2012 (BRASIL, 2014:44). Analfabetismo por raça/cor - 2004 e 2012 0,2 18,4% 0,18 0,16 16,3% 14,3% 0,14 11,8% 0,12 11,5% 0,1 8,7% 0,08 7,2% 5,3% 0,06 3,3% 0,04 2,4% 0,02 0 Indígena Branca Negra 2004 Amarela Brasil 2012 Fonte: Brasil, 2014: 44. Os jovens negros continuam tendo menos acesso à universidade que os jovens brancos, apesar da redução da grande disparidade existente entre estes dois grupos na última década, 59 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais graças principalmente às políticas de ações airmativas e ao Programa Universidade para Todos (PROUNI). Em 1992 somente 1,5% dos jovens negros entre 18 e 24 anos estavam na universidade, enquanto 7,2% dos jovens brancos da mesma faixa etária eram universitários. Em 2009, esse percentual subiu para 8,3% entre os jovens negros e 21,3% entre os jovens brancos. Um aumento mais de cinco vezes entre os negros e cerca de três vezes entre os brancos, diminuindo um pouco a disparidade sobre a presença de jovens negros e brancos na universidade (CHARÃO, 2014). O gráico seguinte compara os níveis de ensino frequentado por jovens entre 18 e 24 anos negros/pardos e brancos a partir de dados da PNAD de 2001 e 2011. Os dados revelam que os jovens brancos nessa faixa etária frequentam principalmente a universidade, 39,6% em 2001 e expressivos 65,7% em 2011, enquanto os negros e pardos frequentam, em sua maioria, o ensino médio, cerca de 43,9% em 2001 e 45,2% em 2011. Embora tenha havido um signiicativo aumento da presença dos jovens negros/pardos no ensino superior, de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011, a taxa dos estudantes universitários negros em 2011 (35,8%) ainda é menor do que a taxa dos estudantes universitários brancos uma década antes (39,6%). Distribuição dos estudantes de 18 a 24 anos de idade, por nível de ensino frequentado, segundo a cor ou raça - Brasil - 2001/2011 % 65,7 45,2 43,9 39,6 35,8 34,3 32,2 24,1 11,9 14,1 13,7 11,8 10,2 4,5 2001(1) Branca Fundamental regular 7,2 5,6 2011 Médio regular 2001(1) Preta ou parda Outros (2) 2011 Superior (3) (1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. (2) Pré-vestibular, supletivo e alfabetização de adultos. (3) Inclusive graduação, mestrado ou doutorado. Fonte: Brasil, 2012:116. As pesquisas quantitativas que explicitam a variável “raça ou cor” revelam as profundas desigualdades raciais existentes em várias esferas da sociedade brasileira, inclusive em nosso sistema educacional. A constatação dos números é o primeiro passo no processo de desvendamento dessas desigualdades raciais. O passo seguinte é interpretar estes dados a partir de uma visão histórica sobre a formação social brasileira centrada nos afrodescendentes, bem como utilizar estes números como instrumento político na luta contra os discursos que airmam que não há discriminação racial na sociedade brasileira e a favor de políticas públicas que promovam a igualdade racial. 60 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo PARA REFLETIR Essas desigualdades e formas de discriminações são produzidas por vários mecanismos: menor grau de escolaridade dos negros que geralmente se traduz em empregos com salários mais baixos e barreiras sociais que indicam os “lugares de brancos” e “lugares de negros”. Você conhece muitos juízes negros? Os empresários são em sua maioria negros? Quantos presidentes negros o Brasil já teve? Quantas deputadas negras existem no congresso brasileiro atual? Quantos estudantes negros existem em um curso de medicina na USP ou na UNIFESP? Mas é provável que você já tenha visto muitas empregadas domésticas negras ou porteiros e garis negros. SAIBA MAIS Livro: PAIXAO, Marcelo; ROSETTO, Irene et al. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil. 2009-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. Site: www.geledes.org.br Música: Seu moço, Anna Ratto. Filme: Raça: um ilme sobre igualdade, doc. De Zoel Zito. Lugar: Museu Afro-brasileiro 2. Considerações finais Uma educação que visa combater as marcas cotidianas e institucionais do racismo na sociedade brasileira precisa explicitar esses dados das desigualdades raciais no Brasil no campo da educação e em outras áreas. Como já airmamos, os dados estatísticos revelam profundas desigualdades raciais no país, mas também podem ser usados pelos movimentos sociais negros como um mecanismo que comprova as desigualdades e legitimam reivindicações e políticas públicas especíicas por direitos, serviços e bens destinadas à promoção da igualdade racial. Esse é o ponto de partida para a discussão crítica destes mecanismos sutis de discriminação que os números revelam e para organização de políticas públicas concretas que visem acabar com estas formas de desigualdades raciais. 61 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Referências bibliográficas BRASIL. Ministério do Planejamento, orçamento e gestão. IBGE. Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística. Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2012. BRASIL. Ministério do Planejamento, orçamento e gestão. Caderno de monitoramento do PPA 2012-2015. Retrato das políticas sociais na PNAD 2012. Brasília, 2014. CHARÃO, Cristina. O longo combate às desigualdades raciais. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Igualdade Racial. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.php?option=com_content&view=article&id=711, acesso em 11 de novembro de 2014. LAESER. Tempo em curso. Ano V, Vol. 5, n. 11, novembro de 2013. HERINGER, Rosana. Desigualdades raciais no Brasil: Síntese dos indicadores e desaios no campo das políticas públicas. Cadernos Saúde Publica, Rio de Janeiro, n. 18, , PP. 5665, 2002. PAIXAO, Marcelo; ROSETTO, Irene et al. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil. 2009-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. 62 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Unidade 2 - Racismo: algumas definições Objetivos: Discutir o signiicado de raça e racismo no mundo moderno; apresentar as diferenças especíicas entre os termos preconceito e discriminação racial. Olá cursist@s! Caro(a) cursista, você já parou para pensar sobre o signiicado do racismo? Ele existiu em todas as sociedades e tempos históricos? O que é ser negro ou indígena em uma sociedade racista? Como o racismo se manifesta em nossa vida cotidiana? Você já foi vítima de racismo ou já cometeu preconceito racial em relação à outra(s) pessoa(s)? Vamos tentar conversar um pouco com você sobre o que é o racismo, as formas em que ele se manifesta e o signiicado de algumas palavras relacionadas ao racismo: raça, preconceito racial e discriminação racial. 1. O que é o racismo? 1.1 Raça e racismo A palavra raça vem do latim ratio, signiicando categoria, espécie. No contexto medieval o termo era usado como sinônimo de descendência, linhagem, grupo de pessoas que tinha um ancestral e/ou algumas características físicas comuns. As ciências naturais utilizaram inicialmente o termo no âmbito da zoologia e botânica para classiicar as espécies vegetais e animais (MUNANGA, 2004). A raça, como um atributo biológico que diferencia e hierarquiza os seres humanos, é um termo moderno. Tudo indica que essa classiicação valorativa somente surgiu no século XVIII, contexto do iluminismo europeu, e serviu de referência para as teorias raciais que se consolidaram no século XIX em alguns países europeus e que circularam por outros continentes e países, inclusive pelo Brasil. O racismo é, por sua vez, uma ideologia que fundamenta a existência de raças biológicas diferentes e hierarquizadas entre superiores (brancas, arianas) e inferiores (semitas, negras, indígenas). Como airma Ruth Benedict, no livro Raça: ciência e política, foi “a ideologia racista que criou as ‘raças’ e não o contrário” (MACAGNO, 2014: 51). O racismo é uma forma de expressão do imperialismo, colonialismo e nacionalismo. Consolida-se no processo de expansão e exploração europeia de outros continentes onde os povos colonizados (africanos, ameríndios, asiáticos, entre outros) ou discriminados em territórios nacionais europeus, como os judeus, passam a ser vistos como pertencentes a raças inferiores e indesejadas. Se o racismo, associado a este conceito biológico de raça, é moderno, as formas de dominação e subordinação entre povos são bastante antigas e os exemplos históricos são variados. A relação entre povos que se veem como superiores e melhores, enxergando os outros como inferiores, é um fenômeno recorrente nas sociedades humanas (LÉVI-STRAUSS, 1976). Os gregos e os romanos no mundo antigo, por exemplo, se viam como cidadãos republicanos e percebiam os outros povos vizinhos como bárbaros e estrangeiros. Trata-se do fenômeno bastante geral 63 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais do etnocentrismo, ou seja, os grupos étnicos geralmente veem os seus valores culturais, suas formas de conhecimento e de organização social como centrais e certos e rechaçam os valores, saberes, crenças dos outros povos, vistos por estes como falsos, inferiores e que devem ser combatidos em situações de contato e de conlito interétnicas. Para Lorenzo Macagno, “o etnocentrismo como operação simbólica universal é o gênero, enquanto o racismo, como acontecimento histórico particular – ‘moderno’ – é a espécie” (MACAGNO, 2014: 62). O racismo pode se aproximar de determinadas narrativas religiosas e produzir versões especíicas de alguns relatos bíblicos, acionando as hierarquias entre povos e servindo de justiicativa “branca” para a escravidão e servidão de outros povos. A narrativa sobre o povoamento do mundo após o dilúvio pelos ilhos de Noé – Jafé, Sem e Cam - alimentou a ideologia racista dos Afrikâners1 na África do Sul e se converteu em uma justificativa religiosa para o apartheid2 (MACAGNO, 2014:61). Cam, o filho de Noé que o viu nu, foi condenado pelo pai a ser servo dos outros irmãos. Esse teria sido o filho responsável pelo povoamento da África, logo os africanos estariam condenados a ser escravizados pelos europeus, herdeiros de Jafé. PARA REFLETIR O sistema de segregação racial estabelecido na África do Sul em 1948 atingiu também o sistema educacional, especialmente a partir do Bantu Education Act de 1952. A justiicativa do Primeiro Ministro daquele país para esta lei, que estabelecia uma educação diferenciada - “mais básica e vinte vezes mais barata para os negros do que para os brancos”-, também recorria a determinadas interpretações bíblicas: “não é dito na Bíblia que tais pessoas (os negros) são somente cortadores de lenha e carregadores de água? Então para que desejariam ter estudos?3” As ideologias e práticas racistas podem estabelecer ainidades e heranças em relação às crenças religiosas. Para Castoriadis, o judaísmo do Antigo Testamento, por exemplo, desenvolveu uma concepção de “povo eleito por Deus” e isso alimentou e alimenta intolerâncias e exclusões em relação a outros povos, como no caso dos judeus sionistas4 em relação aos palestinos. Entretanto, as religiões monoteístas geralmente permitem a conversão do “outro”, enquanto que o racismo se singulariza por não ser possível essa “conversão” (CASTORIADIS, 1987). Em suas formas mais extremas, o racismo se caracteriza pela defesa do extermínio das “raças diferentes e inferiores”, como no caso do holocausto5 . 1 Também chamados de boers, são calvinistas descendentes de europeus (especialmente de holandeses, alemães e franceses e ingleses) que se estabeleceram como colonos brancos na África do Sul desde o século XVII e estabeleceram vários conlitos raciais com as populações nativas. 2 Apartheid ou separação foi o sistema político adotado pelos afrikâners na África do Sul entre 1948 e 1994, onde foi estabelecido oicialmente um conjunto de leis e atos visando separar os territórios especíicos dos “brancos” e dos “negros”, sendo estes últimos subordinados e alijados de todas as instâncias de poder. 3 Documentário: Apartheid, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QsWB16FW7Zc, acesso em 15/05/2015. 4 O sionismo ou nacionalismo judaico é contrário à ideia de “assimilação”, prega a manutenção da identidade judaica “pura” e é favorável a ocupação dos territórios palestinos. 5 O holocausto foi o genocídio de cerca de seis milhões de judeus pelo regime nazista de Adolf Hitler no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). 64 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo O conceito cientíico de “raça” busca se distanciar dessas justiicativas religiosas, tentando demonstrar a hierarquia natural, biológica entre as “raças” por meio de instrumentos de observação, experimentação e mensura. Entretanto, determinadas representações sociais sobre a inferioridade do negro (a simbologia negativa do preto em determinadas religiões) e sobre a superioridade do branco (alma, anjos, etc.) alimentaram as ideologias racistas. A produção social e biológica em torno do conceito de raça é produto da modernidade. O processo de colonização da América produziu uma divisão racial do trabalho (os índios e negros no trabalho escravo e os brancos no trabalho livre) por meio de determinadas classiicações homogêneas do outro. As alteridades inferiorizadas e escravizadas pelos “brancos” – “índios” e “negros” – foram produzidas por meio da acentuação de diferenças fenotípicas e do desaparecimento de todas as diferenças culturais de uma quantidade imensa de povos nestes dois continentes - América (astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, guaranis, entre outros.) e África (achantes, iorubás, zulus, congos, nagôs, angolas, jejes, bacongos, entre outros). “Índios” e “negros” são, portanto, formas de classiicação contrastivas dos colonizadores “brancos” (QUIJANO, 2005). Há uma identiicação biológica das grandes diferenças (cor da pele, formato do rosto e dos olhos, estatura, etc.) capazes de serem situadas em uma escala evolutiva (“primitivos”, “selvagens”, “bárbaros”, “civilizados”) onde o topo é ocupado pelo homem, branco e europeu. “’Índios’ e ‘negros’, daí em diante não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores”. (QUIJANO, 2005: 127). As teorias raciais do século XIX são especialmente uma tradução cientíica dessas formas de dominação da experiência colonial moderna desde o século XVI. As teorias raciais do século XIX e início do século XX são constitutivas do racismo cientíico. Várias áreas do conhecimento (antropologia, criminologia, entre outras) buscaram demonstrar e explicar as hierarquias das raças por meio de medida dos crânios, do formato do nariz etc., tentando estabelecer relações entre o aspecto físico, psicológico, moral e cultural desses grupos sociais classiicados como raças. Paul Broca (1824-1880), fundador da Sociedade Antropológica de Paris, deiniu assim as diferenças biológicas entre negros e brancos: O rosto prognático (projetado para frente), a cor de pele mais ou menos negra, o cabelo crespo e a inferioridade intelectual e social estão frequentemente associados, enquanto a pele mais ou menos branca, o cabelo liso e o rosto ortognático (reto) constituem os atributos normais dos grupos mais elevados na escala humana. Um grupo de pele negra, cabelo crespo e rosto prognático jamais foi capaz de ascender à civilização (BROCA apud RODRIGUES, 2009, p. 85). 65 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Imagens das medidas dos rostos e crânios que visam aproximar os negros dos macacos e colocar o branco no topo da escala evolutiva. Fonte: Racismo cientíico. Disponível em: http://racismo-cientiico.weebly.com/teoacutericos-seacuteculo-xvii-xix.html, acesso em 12/05/2015. Essas teorias tiveram efeitos sociais nas práticas antissemitas (contra os judeus) que se alastraram pela Europa, nas classiicações dos negros como “macacos” no próprio contexto americano, como durante a Guerra do Paraguai (1865-70), e também alimentou as formas de discriminação e extermínio dos outros (judeus, eslavos, ciganos) durante o regime nazista (1933-45). Você deve estar se perguntando, o racismo é então produto da colonização e da própria ciência moderna? Em boa parte sim, mas o racismo vai adquirindo outros formatos ao longo do tempo e se enraíza em nossas práticas institucionais. É possível pensar em um racismo institucional, isto é, um mecanismo social de exclusão seletiva de grupos e indivíduos classiicados racialmente e que ocupam posições de poder subordinadas em diferentes instituições sociais. Estas pessoas são geralmente excluídas de determinados lugares tradicionalmente ocupados pelas “elites brancas”: cursos de medicina, carreira de juiz, formação em engenharia, etc. As diversas instituições no Brasil criam mecanismos implícitos e explícitos para favorecer o acesso dos brancos e diicultar ou proibir a presença dos negros e pardos em determinados espaços sociais. A própria exigência da “boa aparência” como requisito básico para determinados empregos pode ser visto como um destes mecanismos de seleção do racismo institucional. As desigualdades raciais existentes na educação básica e no ensino universitário estão associadas geralmente a formas de racismo institucional. A escola aparece oicialmente como um lugar de acesso universal, sem discriminação de classe, raça, gênero ou religião. Porém, os alunos negros geralmente estão excluídos das melhores escolas e universidades, lugares de prestígio das elites brancas. Além disso, as taxas de evasão escolar e repetência dos alunos afrodescendentes também podem ter causas que remetem a formas de discriminação sutis que ocorrem no cotidiano das salas de aula e dos intervalos escolares. O Estado é uma instituição paradoxal que pode simultaneamente produzir e combater o racismo. Quando pensamos nas forças repressivas do Estado brasileiro (especialmente exército e polícias militares) podemos constatar claramente a existência de um racismo de Estado, 66 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo por meio de inúmeros relatos sobre as ações policiais em relação aos negros e pela própria quantidade dos jovens negros que são assassinados pela polícia brasileira. Segundo a pesquisa Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), cerca de 61% dos homicídios praticados por policiais em São Paulo atingem a população negra. Por conseguinte, são assassinados três vezes mais negros do que brancos pela ação direta da polícia paulista, de acordo com os dados oiciais de 2011 (SINHORETTO, 2014). Por outro lado, outros órgãos do Estado brasileiro, como a própria Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, promovem ações de combate ao racismo em diversas instituições estatais e sociais. O racismo institucional pode ainda adquirir formas mais indiretas, que geralmente não são vistas como racismo. Por exemplo, a constatação da forte presença de estudantes brancos nos colégios privados dos bairros centrais e os negros e pardos em colégios públicos nas zonas periféricas das cidades brasileiras. Neste caso, os pais das crianças e jovens brancos podem justiicar que essa separação não é intencional. Eles estão somente querendo dar a melhor educação possível para os seus ilhos (WIEVIORKA, 2007). Essas práticas sociais, por mais que sejam justiicadas de outra forma, produzem separações e hierarquias entre brancos e negros. Importante pensar que as instituições não são entes abstratos. Elas são formadas por pessoas que produzem e reproduzem inúmeros mecanismos de diferenciação e discriminação no interior destes órgãos estatais, empresariais e sociais. Uma terceira forma de racismo que gostaríamos de acentuar está relacionada à dimensão cultural. Podemos denominá-lo de “novo racismo”, “racismo cultural” ou “racismo simbólico” – a denominação varia entre autores e países. Ele está centrado em diferenças culturais vistas como essenciais, permanentes, deinitivas. Os povos ou etnias são vistos como tendo suas culturas próprias e “puras” que não devem ser misturadas com culturas inferiores e atrasadas. Há um deslocamento da “raça” para a “cultura”, mas a cultura não é vista como um processo e luxo permanente de signiicação. Pelo contrário, ela adquire marcas de origem e pureza. Trata-se de um discurso conservador centrado na defesa da identidade étnica e nacional e no afastamento da perigosa diferença étnica e religiosa que pode contaminar o “nosso” território de pertença. O racismo europeu contra os imigrantes muçulmanos, africanos, latinos na Europa contemporânea pode ser visto como um bom exemplo desse tipo de racismo. 2. Preconceito e discriminação racial Essas formas de racismo se manifestam por meio de preconceitos, discriminações e segregações. O preconceito é essencialmente um pré-julgamento que fazemos dos outros, por ignorância ou por não mantermos ainidades valorativas em relação à determinada pessoa ou grupo social, ou ainda por uma atitude intencional de afastamento e menosprezo pelo outro. Trata-se de uma atitude prévia muitas vezes construída a partir de estereótipos e generalizações diante da alteridade - o “negro”, o “nordestino”, o “pobre”, o “imigrante” de outro país, entre outros. O preconceito pode ser visto como uma atitude produzida a partir de estigmas, rótulos construídos coletivamente em determinadas conigurações de poder entre aqueles que se sentem “de dentro” (incluídos) e os que são vistos como “de fora” (excluídos) (ELIAS; SCOTSON, 2000). 67 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Quando o preconceito produz distinções e hierarquias entre superiores e inferiores, melhores e piores, incluídos e excluídos chamamos de discriminação. A discriminação racial produz e legitima desigualdades raciais por meio de complexas hierarquias simbólicas que podem ser, em parte, compreendidas psicologicamente pelas atitudes de alta ou baixa autoestima dos indivíduos pertencentes a determinados grupos sociais. A discriminação, como uma classiicação daquele que detêm poder, pode gerar a negação de identidades estigmatizadas, silêncios, mas também resistências capazes de inverter a relação de poder. Um exemplo de incorporação do estigma são os afrodescendentes que não gostam de serem negros ou buscam esconder essa classiicação racial por meio da ideologia do branqueamento. Já uma forma de resistência que altera relações de poder são os afro-brasileiros que airmam orgulhosamente a sua negritude. Quando a discriminação cria espaços sociais de separação cultural, política e jurídica, zonas exclusivas para brancos e negros, chamamos de segregação, como no caso do apartheid da África do Sul e as separações legais que existiam nos Estados Unidos antes das lutas pelos direitos civis nas décadas de 1960 e 1970. SAIBA MAIS Livro: MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, André A. Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói, RJ: UFF, 2004. Site http://www.criola.org.br/ Música: Racismo é burrice, de Gabriel, o pensador. Filme documentário: Apartheid, disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=QsWB16FW7Zc Lugar: Museu da Imagem e do Som (MIS). 3. Considerações finais Os racismos têm, portanto, suas histórias, deinições e transformações. Eles se manifestam de forma diferente em distintas sociedades nacionais e em períodos históricos variados. O racismo brasileiro não é igual ao racismo norte-americano ou sul-africano. Por outro lado, nem tudo pode ser chamado de racismo. Ele é uma ideologia de poder que se manifesta por meio de escalas hierárquicas de valores e concepções de mundo traduzidas em marcadores raciais e étnicos. Os negros subordinados que buscam produzir um discurso de contrapoder em relação aos brancos dominantes não são a rigor racistas, estão na verdade buscando mudar a balança de poder, rompendo com assimetrias entre negros e brancos em uma determinada sociedade. Por im, a raça parece ser uma determinação biológica, mas na verdade é uma construção social e política. Ela tem uma história, sentidos diferentes nos contextos nacionais e nos períodos 68 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo históricos. Discutir a questão racial no campo acadêmico hoje é pensá-la como um campo de luta. Uma peleja entre os intelectuais que airmam, com base na genética contemporânea, que não há raças humanas e os pesquisadores que veem as raças ou relações raciais como formas de classiicações sociais e como campo de luta por airmação das identidades afrodescendentes, negras, indígenas, entre outras. (GUIMARÃES, 2002). Referências bibliográficas CASTORIADIS, Cornelius. Relexiones en torno al racismo. ESTUDIOS. Filosofía-historia-letras,1987.Disponível: http://biblioteca.itam.mx/estudios/estudio/estudio09/sec_3.html, acesso 18/11/2014. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. GUIMARÃES, Antonio Sérgio. 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Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo: Letalidade policial e prisões em lagrante. UFSCAR, 2 de abril de 2014, disponível em: http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rio-Executivo_FINAL_01.04.2014.pdf, acesso em 11 de maio de 2015. WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007. 69 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 3 – Racismo no Brasil Objetivos: Reletir sobre as manifestações do racismo no Brasil e as formas de combatê-lo. Olá cursist@s! Caro(a) cursista, agora que você já sabe um pouco sobre o signiicado histórico do racismo no mundo moderno, é chegada a hora de pensarmos nas manifestações do racismo no Brasil. Alguns autores chegam, inclusive, a apontar uma certa singularidade do nosso racismo, às vezes chamado de “racismo à brasileira” ou “racismo cordial”. Você se considera uma pessoa racista? Conhece alguma pessoa racista? Já presenciou alguma atitude racista na escola, trabalho, momentos de lazer, lugares de consumo ou outro ambiente social? Se considera por convicção um(a) antirracista que combate toda e qualquer atitude racista de seus colegas, amigos, professores ou pais? 1. Existe racismo no Brasil? 1.1 O racismo brasileiro Em 1995, o Instituto Datafolha fez um amplo levantamento sobre racismo no Brasil e comprovou que 89% dos brasileiros airmam que existe preconceito de cor contra negros, mas somente 10% conirmam que têm um pouco ou muito preconceito. Entretanto, de forma indireta, 87% dos entrevistados concordam inteiramente ou parcialmente com enunciados preconceituosos em relação aos negros. Em suma, “os brasileiros sabem haver, negam ter, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra negros” (RODRIGUES, 1998, p. 11). Há um racismo velado, não revelado publicamente, mas que se efetiva em palavras e atos especialmente em contextos de inferiorização do outro, situações de conlito, disputas, desconianças, ameaças hierárquicas e medo de perda de poder em relação ao outro classiicado como negro, indígena, imigrante, entre outros. Criamos historicamente uma autoimagem de uma sociedade mestiça, híbrida de brancos, negros e índios. Bastante diferente de outros imaginários nacionais centrados numa nação branca, como a Inglaterra, França ou Argentina. Somos vistos como majoritariamente mestiços, morenos, mulatos, cafuzos, mamelucos. Essa miscigenação ultrapassou as barreiras de cor ou raça e os brasileiros geralmente se enxergam como sendo menos racistas do que os estadunidenses ou os sul africanos, uma vez que naqueles países não houve uma mestiçagem tão intensa como aqui e foram, inclusive, instituídos regimes legais e políticos de segregação racial. Para Oracy Nogueira, no Brasil predomina o preconceito de marca ou cor da pele e nos Estados Unidos o preconceito de origem, ligado à ascendência hereditária de uma pessoa. O preconceito de marca, centrado na aparência, permite mais a assimilação e a mestiçagem visando o branqueamento, enquanto o preconceito de origem tende a ser mais segregacionista. No Brasil, se o indivíduo é mestiço claro, independente que os pais e avós sejam negros, ele sofrerá menos preconceito racial. Nos Estados Unidos, a pessoa pode não revelar nenhum traço negróide na aparência, mas se sabe que em sua origem há pessoas negras, ela será considerada negra e sofrerá os mesmos preconceitos (NOGUEIRA, 2006). 70 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo PARA REFLETIR Nossa mestiçagem, cordialidade, hospitalidade e informalidade teriam sido antídotos importantes de combate ao racismo? Caro (a) leitor (a), você concorda que o Brasil é um país menos racista que outras nações, tais como os Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha? Ou o Brasil é um país racista como os outros países? Os brasileiros teriam uma espécie de duplo código de conduta em relação ao racismo? Não se concebem como racistas, mas na prática social são racistas? Qual a origem desse racismo contra o negro? Como se manifesta o racismo na sociedade brasileira? O Brasil de hoje é herdeiro de uma sociedade colonial e imperial escravocrata, onde o negro ocupou fundamentalmente a posição de pessoa escravizada. O Brasil em 1888 foi o último país a abolir a escravidão nas Américas. Um abolicionismo incompleto, que não permitiu incluir o negro na ordem social capitalista (BASTIDE; FERNANDES, 2008). O negro livre se tornou marginalizado no mundo rural e urbano do inal do século XIX e início do século XX. Durante grande parte da República brasileira os negros ocuparam especialmente posições sociais subalternas no mundo do trabalho, estavam muitas vezes completamente excluídos de trabalhos formais e continuaram sendo discriminados e criminalizados em suas práticas religiosas, culturais e esportivas. Por exemplo, a capoeira e as religiões afro-brasileiras foram bastante perseguidas, proibidas e condenadas pelas elites brancas e pelo próprio Estado brasileiro durante muito tempo. A escravidão negra deixou marcas profundas de discriminação em nossa sociedade, inclusive escutamos insultos raciais atuais exigindo que os negros e negras voltem “para a senzala”. Mas será que o racismo contra o negro brasileiro atualmente só existe por causa do “tempo do cativeiro”? Há pessoas racistas que nem sabem e nem mencionam esse contexto. Elas airmam que não gostam de “negros”, tem raiva dos “pretos” e que estes são “fedidos”, “sujos” e “preguiçosos”. O racismo opera cotidianamente por meio de piadas, causos, ditos populares etc. Ainal de contas, temos uma variedade de expressões correntes na língua portuguesa recheadas de racismo contra os negros. Primeiro, já airmamos, na unidade anterior, que o racismo contra o negro ou o indígena é produto da modernidade. Filho da colonização e da escravidão. Mas, na escravidão antiga na Grécia e Roma também não havia negros escravizados? Não, prezado (a) cursista, a escravidão antiga era sobretudo por dívidas e guerras e os escravos eram recrutados em diferentes povos, tudo indica que não havia nenhuma referência à cor da pele. A associação entre cor negra e escravidão foi produzida no mundo moderno, devido ao modo como os africanos entraram nesse empreendimento colonial. Basta imaginarmos: se os africanos tivessem sido os colonizadores e os europeus os colonizados e escravizados, a história da hierarquia das raças seria bem diferente. Por detrás da biologização das raças existe uma história de vencedores e vencidos, exploradores e explorados, senhores e escravos. 71 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Segundo, não precisa que os indivíduos racistas tenham consciência ou mencionem a escravidão para estabelecermos a relação entre nossa modernidade colonial e escravocrata e o racismo contemporâneo. Nem que os racistas de hoje sejam herdeiros de famílias escravocratas. Aprendemos a ser racistas no convívio com outros racistas. A socialização das gerações racistas ao longo do tempo não é somente um processo consciente, é também inconsciente. Há a formação de uma espécie de comportamento racista por meio de gestos, atos, palavras em determinados círculos sociais de convivência. Terceiro, a herança da escravidão não explica todo o racismo atual. O preconceito racial vai se transformando ao longo do tempo, o racismo adquire novos contornos, enraizamentos e justiicativas, como as formas de racismo institucional analisadas na aula anterior. 1.2 Racismo no Brasil: a intersecção entre classe, raça, região e nação. O racismo contra o negro no Brasil não deve ser pensado como um fenômeno isolado. O racismo brasileiro é um fenômeno complexo que geralmente se articula com a classe, região, gênero, e, em alguns casos, com a nacionalidade. Somente vamos situar aqui algumas possibilidades dessas intersecções. O preconceito de classe é muito forte no Brasil. Há várias situações de insultos e xingamentos públicos de pessoas que se consideram “ricas” ou “da elite” e que desfecham palavras negativas em relação aos pobres: “preguiçosos”, “vagabundos”, “miseráveis”, “metidos”, “bestas”, etc. Essas formas de discriminação social podem se articular com a questão racial, uma vez que muitos pobres são negros e mestiços. A coniguração de poder pode ser “ricos brancos” discriminando “pobres negros”. Mas as discriminações também podem ocorrer entre “brancos pobres” e “negros pobres”, especialmente em situações em que os negros não aceitam mais a dominação branca ou que adquiriram algum status de poder (empregos melhores, maior grau de instrução, maior consciência de sua negritude, etc.). Nas situações em que os negros ascendem socialmente e passam a fazer parte de uma classe média ou das “elites de cor” também se acentuam as formas de discriminação por parte das elites brancas. Estas se sentem visivelmente ameaçadas por estes negros ricos que “não reconhecem mais o seu lugar” nas hierarquias de classe, status e poder. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, às vezes a discriminação pode ser direcionada ao mesmo tempo ao pobre (classe), nordestino (região) e negro (raça) por meio de generalizações em torno do “baiano” ou “paraíba”. A partir dos anos 1950, houve um acentuado desaparecimento de determinadas expressões negativas em relação ao negro, comuns durante o Império (1822-1889) e a Primeira República (1889-1930), tais como “mulato pernóstico”, “negro boçal”, “negro de alma branca”, e um recrudescimento de um racismo regionalizado - “baiano”, “paraíba” ou “nordestino” -, principalmente em centros industrializados como São Paulo e Rio de Janeiro (GUIMARÃES, 2002). Essa transformação se dá, sobretudo, devido ao aumento da migração interna de uma população pobre, negra e mestiça que sai do Nordeste e se direciona para o Sudeste e Sul do país (GUIMARÃES, 2002). Além disso, em lugares de forte imigração europeia, negros, indígenas e mestiços costumam sofrer muitas experiências de humilhação e inferiorização, geralmente em torno de padrões estéticos (estatura, formato do rosto, tamanho da cabeça, tipo de cabelo, etc.) 72 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo e da autoimagem desses imigrantes e descendentes que se veem como mais “trabalhadores” do que os outros nacionais. As formas de discriminação podem ainda ocorrer entre os negros. Aqueles que se consideram mais ricos, mais “claros” e detendo maior prestígio social podem incorporar a ideologia do branqueamento e também discriminar, rebaixar e excluir outros negros mais pobres e mais “escuros”. Há relatos também de estudantes negros que estão vindo dos países africanos de língua portuguesa que dizem que já sofreram discriminação por parte de brancos e negros brasileiros. Aliás, caro(a) leitor(a), a realidade dos imigrantes e dos estudantes haitianos, angolanos, moçambicanos, congoleses, ganeses, bolivianos, peruanos, entre outros, na sociedade brasileira contemporânea tem produzido novas práticas de racismo em ambientes de trabalho, consumo, escola e espaços de lazer e sociabilidade. O estudante moçambicano Egor Borges foi vítima de racismo na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), em Araraquara, em 2012, quando picharam na parede mensagens racistas, como “sem cotas para os animais africanos”. Conforme seu relato, “o Brasil tem características de preconceito e de racismo. Quando a gente chega ao aeroporto já nota isso, muda alguma coisa, o policial já lhe trata diferente dos demais passageiros. Você ica travado, todos vão embora e sua bagagem ica correndo sozinha na esteira. Na faculdade [Unesp] escreveram na parede mensagens racistas. Em Moçambique, de onde eu venho, o preconceito é entre diferentes etnias, diferente do que acontece no Brasil. O racismo dói demais. O mais peculiar é que aqui no Brasil o racismo é oculto, disfarçado, dissimulado. Até o negro brasileiro é racista. Ele se acha melhor que o negro africano. Isso é complexo, pois o negro daqui acha que é superior que o africano, que vem de outro lugar” (Egor Borges apud ARAUJO, 2014). 2. A criminalização do racismo e a injuria racial O racismo é crime no Brasil a partir da lei 7.716, de 1989. A primeira legislação sobre o racismo em nosso país data de 1951, lei Afonso Arinos (1.390). Nesta lei o preconceito de raça ou de cor era considerado uma contravenção penal, uma infração penal de menor teor ofensivo. Como contravenção penal era menor o tempo de reclusão ou o valor das multas para as várias situações em que gerentes, administradores e donos de estabelecimentos comerciais, hoteleiros, educacionais se recusavam a atender, hospedar ou matricular pessoas negras. Os ativistas negros no contexto da constituinte (1986-1988) e posteriormente conseguiram pressionar para que o preconceito de raça ou de cor fosse considerado um crime e fosse também extensivo para outras situações não contempladas na lei Afonso Arinos. A redação atual do artigo primeiro da lei 7.716 foi modiicada pela lei 9.459/97, incluindo além do preconceito de raça ou cor, também a etnia, religião e procedência nacional: “Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Como muitas das queixas feitas posteriormente a vigência da lei 7.716 poderiam ser enquadradas no código penal brasileiro como “crime de injúria ou infâmia”, a lei 9.459/97 considerou que a injúria racial tivesse a mesma punição dos crimes raciais (GUIMARÃES, 2002: 169). 73 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais A injúria racial pode ser observada por meio dos insultos raciais relatados pelas vítimas, como faz o pesquisador Antonio Sérgio Guimarães, no artigo o insulto racial: ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. O insulto pode ser caracterizado por meios de palavras, atos, gestos que visa denegrir a imagem de uma pessoa ou grupo social. O insulto racial é uma das formas como se expressa o preconceito e a discriminação racial. Os insultos ocorrem geralmente em ambiente de trabalho, vizinhança, ambientes comerciais, de prestação de serviço e consumo e na rua (trânsito, passeio, etc.). Os insultos acontecem em situações de conlitos e acirramento de ânimos, especialmente aqueles entre vizinhos, mas também podem ser instauradores de novos conlitos, particularmente em ambientes de trabalho onde os negros ocupam cargos que precisam chamar atenção para cumprimento de determinadas normas coletivas. Por exemplo, um negro como porteiro de um condomínio onde um dos proprietários está ocupando uma vaga indevida de outro morador e o porteiro negro precisa chamar a atenção deste proprietário branco. O insulto geralmente tem como efeito inferiorizar o outro, associando-o a uma condição de pobreza, anomia social, delinquência, depravação moral, sujeira e animalidade. As palavras usadas em insulto racial são as mais variadas: “preto”, “negro”, “baderneiro”, “vagabunda”, “macumbeira”, “fedida”, “vaca”, “macaco”. Conforme Guimarães, nos limites da pesquisa realizada, as mulheres são as que mais insultam e são insultadas, com ênfase nas palavras de cunho sexual (GUIMARÃES, 2000). SAIBA MAIS Artigo: GUIMARÃES, Antonio Sérgio de. Insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estud. afro-asiát. no.38 Rio de Janeiro Dec. 2000. disponível online: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101546X2000000200002. Site: Racismo Disponível: watch?v=OVcCBHp6lwU. https://www.youtube.com/ Música Catequeses do Medo, Rappa. Filme: O io da memória, de Eduardo Coutinho. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UrIwQT_KKp8 Lugar: Museu Casa Brasileira 74 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo 3. Considerações finais Caro (a) leitor (a), você já percebeu, durante a leitura, que no Brasil tem racismo e que existem leis para puni-lo. Mas, como se explica isso? A ampla maioria dos brasileiros não se considera racista, criamos leis para combater o racismo e aumentam as denúncias de racismo e de injúria racial nas delegacias especializadas e nas comuns. Além disso, assistimos cada vez mais reportagens televisivas e vídeos nas redes sociais sobre situações de preconceito racial contra os negros, como as cenas recentes em shoppings centers e restaurantes em várias cidades do país. Somos ou não uma nação racista? Caro(a) cursista, somos uma sociedade multifacetada: criamos uma autoimagem que não somos racistas, no máximo racista é o outro, particularmente os setores dominantes de nossa sociedade - parte dos intelectuais, jornalistas, políticos, religiosos, formadores de opinião produzem e reproduzem os mitos da “democracia racial” e o lado bondoso e hospitaleiro do “homem cordial”. Mas a realidade cotidiana dos negros, favelados, pobres, indígenas, imigrantes elucida o outro lado dessa realidade nacional, derruba estes mitos e denuncia os insultos, discriminações e formas de violência, incluindo a policial. Estes grupos vivenciam cotidianamente preconceitos e discriminações raciais e sociais, que precisam ser rigorosamente punidos. Referências bibliográficas ARAUJO, Glauco. Vítimas de preconceito, antropólogos, artistas respondem: o Brasil é racista? G1. Globo. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/09/vitimas-de-preconceito-antropologos-artistas-respondem-o-brasil-e-racista.html, acesso em 15 de novembro de 2014. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008. GUIMARÃES, Antonio Sérgio. O mito anverso: o insulto racial. In: Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed.34, 2002, p.169-195. GUIMARÃES, Antonio Sérgio de. Insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estud. afro-asiát. no.38 Rio de Janeiro Dec. 2000. disponível online: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2000000200002, acesso em 10/10/2014. NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Sugestão de um quadro de referência para a interpretação. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2006, pp. 287-308. RODRIGUES, Fernando. Racismo cordial. FOLHA DE S. PAULO/DATAFOLHA. Racismo cordial. A mais completa análise sobre preconceito de cor no Brasil. São Paulo Ática, 1998. 75 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 4 - Racismo e antirracismo: o que pensaram os nossos intelectuais? Objetivos: Discutir especialmente a ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial como ideias fundamentais que legitimam a singularidade do racismo brasileiro. Olá cursist@s! Caro(a) leitor(a), vamos continuar a nossa conversa sobre o racismo no Brasil. Como a discussão sobre raça se enraizou em nossas ideias, valores e instituições? Que caminhos e transformações a discussão racial percorreu em solo brasileiro? Que pensadores lutaram contra o racismo cientíico e o mito da democracia racial? O objetivo dessa aula é pensar a questão racial para alguns intelectuais brasileiros em determinados contextos históricos. Os caminhos do racismo e do combate ao racismo na sociedade brasileira são inseparáveis do lugar dessas concepções e de seus efeitos na realidade brasileira. 1. As teorias raciais e a ideologia do branqueamento As teses raciais circulavam e se enraizaram no Brasil nas faculdades de Direito de Recife e São Paulo, nas faculdades de Medicina da Bahia e Rio de Janeiro, nos Museus Etnográicos, nos Institutos Históricos e Geográicos, e em outras instituições imperiais na segunda metade do século XIX. Intelectuais europeus andaram e divulgaram algumas dessas ideias na corte imperial, como o diplomata francês Conde de Gobineau em seu livro Ensaio sobre a desigualdade das raças. Outros intelectuais brasileiros absorveram, por meio de livros e revistas, as verdades cientíicas de prestigiosos intelectuais europeus. Um “bando de ideias novas” desembarcaram em solo brasileiro naquele período: positivismo, evolucionismo, darwinismo social e as teorias raciais (SCHWARCZ, 1993). A problemática racial era bastante relevante na discussão da viabilidade nacional do país. Como já vimos, o racismo cientíico via como natural a hierarquia das raças e como problemático o cruzamento entre “raças puras” em estágios evolutivos diferentes. O cruzamento geraria seres desequilibrados e estéreis. Há a hipótese que a própria origem da palavra mulato pode estar associada a essas teorias. Para alguns, o termo seria derivado da palavra mula, animal estéril derivado do cruzamento entre o jumento e a égua. Intelectuais brasileiros, como o médico Nina Rodrigues e o engenheiro e escritor Euclides da Cunha, foram adeptos dessas ideias. Nina Rodrigues via o negro como inferior em relação ao branco e não acreditava na viabilidade de um país mestiço em termos de progresso e civilização. Entre os negros também estabelecia toda uma escala entre os negros mais evoluídos, os nagôs e jejes, e os menos evoluídos, os bantos e angolas (RODRIGUES, 2009). 76 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo No livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, o autor foi também crítico de uma legislação liberal centrada em princípios igualitários para as diferentes raças e propôs uma legislação com punições variadas conforme o grau de evolução das raças (brancos, negros e indígenas). Euclides da Cunha, no livro Os Sertões, vê os mestiços do litoral brasileiro como “neurastênicos” (fracos do juízo e irritados) e “desequilibrados” devido a maior profusão de contatos e misturas entre diferentes raças em contraste com o tipo mestiço mais deinido - o sertanejoque se isolou durante mais de três séculos no interior do Brasil. Outra corrente de pensamento, ligada a essas teorias raciais, teve solo fértil na Faculdade de direito de Recife. Também existiram fortes defensores na vida política, como na Assembleia Legislativa da Província de São Paulo no contexto de votação da política de atração de imigrantes. Estamos falando dos adeptos da teoria do branqueamento da raça. O argumento fundamental constatava que o Brasil era um país mestiço e, portanto, inferior devido a essa mistura racial. Como airmava o crítico literário Silvio Romero, “somos mestiços, se não no sangue, ao menos na alma”. (Silvio Romero apud SCHWARCZ, 1993, p. 11). Contudo, essa miscigenação não nos condenava ao fracasso coletivo. A mistura programada, especialmente com a introdução de mais elementos brancos na nação brasileira, por meio da imigração, ampliarão os cruzamentos inter-raciais. Pressupunha que a genética do branco era dominante, ainal tratava-se da raça superior, e que em três ou mais gerações haveria naturalmente um processo de branqueamento dos netos e bisnetos. Essa perspectiva foi sintetizada pelo diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro em 1911, João Batista Lacerda: “o Brasil de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (Batista Lacerda apud SCHWARCZ, 1993, p.11). Um caso exemplar, da maneira como foi posta em prática essa ideologia do branqueamento, são os projetos e as discussões políticas em torno da imigração branca na Assembleia da Província de São Paulo no inal do Segundo Império (1840-1889), contexto do movimento abolicionista. Os deputados paulistas se dividiam entre uma minoria que defendia a mão de obra nacional e uma maioria defensora do incentivo governamental para atrair imigrantes brancos vindos da Europa e dos Estados Unidos. Os discursos favoráveis à imigração branca destacavam o empenho ao trabalho, a iniciativa individual capazes de moralizar e civilizar a sociedade brasileira. Mas também a importância dessa imigração para “melhorar a raça” no Brasil. Como airma o deputado J. de Paula Souza no contexto da aprovação do projeto em 1869: “apoiado, uma profusão de sangue melhor” (ALPS apud AZEVEDO, 2004, p.122). PARA REFLETIR Você deve estar se perguntando: todos os intelectuais desse período concordavam com estas teses racistas? A discordância era somente entre aqueles que não acreditam na viabilidade de um país mestiço e aqueles que viam no branqueamento uma saída secular? Teve alguma voz destoante naquele período? 77 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Prezado(a) cursista, esta pergunta me permite lembrar de um autor que foi profundamente contrário a estas correntes de pensamento racista. Trata-se do médico e educador Manoel Bomim. Em seu livro América Latina: males de origem, publicado em 1905, ele associou diretamente essas teses racistas ao imperialismo e colonialismo das “nações saqueadoras” da Europa. Tratava-se de uma ideologia de poder que encobria as razões históricas da exploração das colônias americanas pelas nações ibéricas - Portugal e Espanha. Metaforicamente, os colonizadores são “parasitas” que sugam as riquezas dos colonizados ou “parasitados”. Para Bomim (1993), não há raças superiores e inferiores, o que existem são povos adiantados e atrasados e o atraso dos países da América Latina, incluindo o Brasil, é derivado da colonização, do conservadorismo das elites locais e da falta de educação do povo. O antídoto do nosso atraso não é o branqueamento, mas a educação popular. 2. A democracia racial: ideologia e mito Essas ideias negativas sobre a mestiçagem brasileira estiveram em evidência até início dos anos 1930. Vivíamos no país um novo contexto histórico: com a Revolução de 1930, o governo de Getúlio Vargas (1930-45) e as políticas nacionalistas de valorização da cultura nacional. A partir de então podemos dizer que há uma mudança substancial do modelo explicativo da raça para uma abordagem culturalista da formação nacional. Um autor fundamental nessa transição é o sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, em seu famoso livro Casa Grande & Senzala, de 1933. Gilberto Freyre se formou nos Estados Unidos e aprendeu, com o antropólogo Franz Boas, a distinguir raça e cultura, vendo particularmente a importância do hibridismo de diferentes matrizes culturais na formação da sociedade brasileira. A miscigenação racial e cultural passa a ser vista como algo positivo, não é mais defeito, é o que temos de melhor. O Brasil conseguiu produzir “zonas de confraternização” entre senhores e escravos, especialmente no ambiente da escravidão doméstica. Por exemplo, a escrava ama de leite amamentando e cuidando do ilho do senhor, os cuidados da mucama com sua sinhá, entre outras. A sociedade brasileira, para Freyre, é formada com base em duas tendências: uma aristocrática e outra democrática. A aristocrática produz distâncias e desigualdades entre brancos e negros, senhores e escravos, jesuítas e indígenas, doutor e analfabeto. Por outro lado, a tendência democrática produz zonas de contatos e trocas culturais e permite quebrar determinadas barreiras de cor, como o caso da ascensão social de mulatos durante o império. Freyre denominou a relação entre essas duas tendências de equilíbrio de antagonismos. Embora o autor não use a expressão “democracia racial” em seu livro Casa Grande & Senzala - somente vai usar a expressão “democracia étnica e social” a partir dos anos 1940 -, as ideias em torno da mestiçagem, das zonas de confraternização e do equilíbrio de antagonismos se combinam com o que veio a ser conhecido pela expressão “democracia racial”. Para Freyre, a democracia étnico e social não signiica igualdade entre as raças e culturas, mas principalmente a possibilidade de convívio harmonioso entre as etnias e de ascensão social especialmente dos mestiços (FREYRE, 2004). Embora a democracia racial não tenha sido inventada por Freyre - ideias de “paraíso racial” remetem aos viajantes do período do império -, sua obra é uma referência central de uma visão harmoniosa da formação brasileira, onde o racismo e os conlitos envolvendo negros, indígenas e brancos são bastante encobertos. As principais 78 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo críticas do movimento negro e de intelectuais que combate o mito da democracia racial, como Florestan Fernandes, são endereçadas especialmente a sua obra. A década de 1950 é um momento importante na discussão do tema das relações raciais no Brasil. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) inancia um amplo projeto de estudo sobre o negro em algumas cidades brasileiras, especialmente Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Estamos vivendo o contexto pós-segunda guerra mundial e existia uma memória ainda muito viva do racismo no cenário da Alemanha nazista. Para a UNESCO, o Brasil era imaginado como uma espécie de laboratório de relações raciais harmônicas entre negros e brancos e poderia servir de exemplo para construir um mundo mais fraterno e menos racista. Essa hipótese foi formulada tendo como referência os livros de Gilberto Freyre, mas especialmente as obras de intelectuais norte-americanos e baianos que tinham feito pesquisas recentes sobre as relações raciais na Bahia durante os anos 1940. Em São Paulo, icaram responsáveis pelo estudo Roger Bastide e Florestan Fernandes. Estes intelectuais convidaram muitas lideranças do movimento negro para conversar, debater e entrevistar na própria Universidade de São Paulo (USP). Além disso, eles cruzaram dados do censo de 1940 e puderam observar as desigualdades raciais, especialmente referentes aos dados de ocupação e instrução. O que a pesquisa revelou foi uma quantidade imensa de situações de discriminações raciais vivenciadas pelos negros em diferentes classes sociais, bastante distante da hipótese que a UNESCO queria comprovar. A democracia racial seria, portanto, um mito, uma ideologia que encobre as situações mais cruéis da prática do racismo no cotidiano dos negros. Mas o mito não é algo abstrato e falso, fácil de ser combatido e descartado. O mito opera na realidade das pessoas por meio de uma ambiguidade de valores. A expressão: “nós, brasileiros, dizia-nos um branco, temos preconceito de não ter preconceito” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p. 155), ou seja, temos um conceito prévio que não somos preconceituosos, revela esse paradoxo. Muitos brasileiros não admitem discursivamente que são racistas, mas praticam o racismo em palavras, gestos e atos. Na década de 1950 em São Paulo, Roger Bastide e Florestan Fernandes veriicam formas diversas de expressão do preconceito racial entre famílias tradicionais e também entre os imigrantes estudados - sírios, portugueses e italianos. As famílias tradicionais e os imigrantes sírios admitem a presença de negros em suas casas, mas como subordinados e obedientes. As famílias tradicionais paulistas também só admitem a ascensão dos negros se for por meio da ajuda dos brancos e incorporando os valores da sociedade dominante, expresso na famosa frase: “negro com alma de branco”, ou seja, incorporando a ideologia do branqueamento cultural e simbólico. Estes negros que ascenderam socialmente muitas vezes também reproduzem preconceitos em relação aos negros mais pobres, especialmente no que diz respeito à anomia social e à higiene (“bêbados”, “vagabundos”, “sujos” etc.). Particularmente a “classe média de cor” vivencia as ambiguidades de sua nova posição social. Parte desses novos membros da classe média costuma se distanciar dos parentes pobres e tenta se inserir no mundo das elites brancas. Entretanto, eles sofrem muitas situações de discriminação nos novos ambientes sociais que frequentam: o restaurante, as lojas caras, as festas etc. (BASTIDE; FERNANDES, 2008). 79 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais PARA REFLETIR Livro: SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo:Companhia das Letras, 1993. Site http://racabrasil.uol.com.br/ Música: Meninas do Brasil, de Moraes Moreira. Filme: Curta-metragem: Vista minha pele. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m7rLDHeIK3k Lugar: Museu da Diversidade museudadiversidade.com.br/ Sexual - http://www. 3. Considerações finais A tese do branqueamento e da democracia racial são dois aspectos centrais da maneira como se expressou o racismo no Brasil. E daí o nosso racismo velado, disfarçado, onde airmamos que não somos racistas, mas muitas vezes temos atitudes preconceituosas que não revelamos publicamente. Isso termina diicultando o próprio combate do racismo nas escolas, pois muitos professores, coordenadores pedagógicos e diretores dizem que na escola não existe racismo, embora a prática educativa cotidiana esteja permeada por atitudes racistas não problematizadas. Importante, para concluir, frisar que se tratam de ideias muito discutidas em determinados momentos de nossa história e que foram incorporadas em nossa prática social, não desapareceram, e ainda tem efeitos na vida diária de muita gente. Referências bibliográficas AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2004. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008. BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49ª Ed. São Paulo: Global, 2004. RODRIGUES, Elisa. Raça e controle social no pensamento de Nina Rodrigues. Revista Múltiplas Leituras, n. 2, vol. 2, 2009, p. 81-107. Disponível em: ile:///C:/ educa%C3%A7%C3%A3o%20racismo%20e%20antirracismo/nina%20rodrigues. SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 80 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Unidade 5- O movimento negro no Brasil: suas lutas e conquistas Objetivos: Apresentar os principais momentos de organização política e de lutas antirracistas dos movimentos negros no Brasil; enfatizar as conquistas e desaios do Movimento Negro Uniicado. Olá cursist@s! Caro (a) cursista, espero que esteja acompanhando bem a nossa discussão sobre racismo no Brasil até aqui. É chegada a hora de pensarmos mais diretamente nas lutas de combate ao racismo, particularmente aquelas enfrentadas pelo movimento negro brasileiro. Você deve estar se perguntando: o que viria a ser o movimento negro? Quando ele se organizou? Ele é o mesmo durante nossa história republicana? O movimento negro sempre combateu o racismo? Quais as principais lutas e conquistas concretas desse movimento? 1. Períodos da organização do movimento negro no Brasil Prezado(a) cursista, vamos, portanto, explicar estas questões iniciais levantadas. O movimento negro atualmente é uma forma de organização e mobilização política da sociedade civil centrada em uma identidade étnico-racial - negro, afrodescendente, afro-brasileiro - e com o objetivo de luta contra a discriminação racial dos negros em diferentes instituições e espaços sociais: escolas, universidades, hospitais, clubes, restaurantes, shoppings centers, hotéis, entre outros lugares. O movimento tem como meta a perspectiva da igualdade e da justiça social entre negros e brancos. Essa deinição é válida particularmente para o Movimento Negro Uniicado (MNU), fundado em 1978, no contexto de abertura da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), e outros movimentos mais atuais. O MNU é um agente coletivo e político importante na reivindicação e conquista de muitas ações políticas, jurídicas e educacionais que ocorreram nas últimas décadas destinadas à população negra no Brasil. Antes de conversamos mais sobre este período mais recente, é importante fazer referência às organizações negras que antecederam o MNU. Os movimentos negros no Brasil tem uma história de descontinuidades e de posturas políticas bastante diferentes. Eles costumam ser divididos, a grosso modo, em quatro períodos principais: 1) República Velha (1889-1930); 2) Revolução de 1930 ao Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1937); 3) Da democratização ao Golpe Militar (1945-1964); 4) Da abertura política (1978/79) ao contexto atual (DOMINGUES, 2007). Na primeira fase, especialmente entre 1910-1930, as organizações dos “homens de cor”- clubes cívicos, grêmios, sociedades beneicentes etc.-, como geralmente eram nomeadas, eram sobretudo assistenciais, recreativas e/ou culturais. Estas organizações não tinham um caráter partidário, eram locais e muitas delas vinculadas à religião católica. Muitos clubes e grêmios serviam como espaços de sociabilidade e lazer para os “homens de cor” em um contexto de 81 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais uma sociedade dominante que demarcava e criava muitos lugares de interdição aos negros, como clubes de futebol, piscinas, restaurantes, etc. De uma maneira ainda pouco expressiva, apareciam já denúncias de racismo e luta contra o preconceito por parte de algumas dessas organizações, principalmente por meio dos jornais escritos pertencentes a esses clubes e grêmios ou independentes (DOMINGUES, 2007). O segundo período (1930-37) vale destacar particularmente a Frente Negra Brasileira (FNB), criada em 1931, no início do governo de Getúlio Vargas (1930-45). Trata-se de um movimento social centrado na ideia nacionalista de defesa da inserção da “raça negra” no mundo do trabalho, uma vez que os imigrantes estrangeiros eram preferidos no mercado de trabalho, deixando a maioria dos negros e mestiços na condição de desempregados e marginalizados. A Frente Negra Brasileira visava construir um “novo negro” (“trabalhador”, “ordeiro”, “civilizado”) por meio de valores morais e instrução escolar, afastando-se dos estereótipos relacionados ao negro: “vagabundo”, “sem instrução”, “bêbado”, etc. A inclusão do negro na sociedade nacional ocorreria por meio de uma postura assimilacionista de valores da cultura dominante. A FNB se transformou em partido político em 1936, mas no ano seguinte (1937), com a instauração da ditadura do Estado Novo (1937-45), todos os partidos foram instintos, inclusive a FNB (DOMINGUES, 2007). No terceiro período (1945-64) merece referência o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado ainda em 1944 por Abdias do Nascimento. O TEN é um movimento político de vanguarda artística focado na defesa da negritude, o negro como protagonista no teatro e na vida política. O negro passa a ser visto como o povo brasileiro. Não se trata de uma minoria, mas de uma maioria explorada e excluída, incluindo os mestiços e pardos sem direitos civis e sociais. Os negros necessitam romper com complexos de inferioridade, assumindo com orgulho sua negritude, e os mestiços precisam combater a “patologia” da ideologia da brancura e se identiicarem também como negros, ampliando a deinição de negro (RAMOS, 1957). Trata-se de um contexto nacional em que a discriminação racial, a medida que ampliava o mercado capitalista competitivo, tornava-se mais acirrada e mais visível. Os preconceitos e estereótipos continuavam a ser direcionados aos negros. A grande parcela da população negra e mestiça continuava vivendo em favelas, cortiços, mucambos (GUIMARÃES, 2002, p. 88). Tratava-se também do contexto político do nacional-desenvolvimentismo e das esperanças da integração do negro na sociedade de classes. A perspectiva do TEN é uma combinação entre nacionalismo e negritude. As atividades do TEN não se resumiram ao teatro, houve também concurso de beleza, cursos de alfabetização para empregadas domésticas, entre outras atividades. O TEN termina sendo fechado no contexto do golpe militar no Brasil. Alguns de seus membros terminam indo para a aventura do exílio, como no caso de Abdias Nascimento que parte para os Estados Unidos. Depois desses rápidos antecedentes, caro(a) cursista, voltamos para o contexto do Movimento Negro Uniicado, o quarto momento histórico desse breve percurso de luta contra o racismo. O MNU difere bastante dessas experiências anteriores. Inspira-se na luta dos negros pelos direitos civis nos Estados Unidos e dos conlitos pela emancipação nacional no contexto de independência dos países africanos (Angola, Moçambique, Cabo Verde, África do Sul) nos 82 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo anos 1960 e 1970. As ideias de pan-africanismo e de afrocentrismo - uma perspectiva histórica centrada na África e que visa combater o eurocentrismo hegemônico - estão presentes em algumas correntes desse novo movimento negro. O MNU se apresenta como um movimento de esquerda e mantêm relação com outros movimentos sociais (movimento feminista, novo sindicalismo, novos movimentos urbanos, entre outros) no contexto da abertura política no Brasil. É um movimento centrado na discussão de classe e raça. Manifestação do Movimento Negro Uniicado – Rio de Janeiro, 1978. Fonte: https://mamapress.wordpress.com/2013/08/03/desmilitarizar-a-policia-e-desmilitarizar-o-brasil/, acesso em 18/05/2015. Algumas correntes, como o “quilombismo”, lutam contra o capitalismo e o racismo. Para esta perspectiva, somente numa nova sociedade radicalmente igualitária é possível superar o racismo (GUIMARÃES, 2002). Lideranças do Teatro Experimental do Negro, como Abdias Nascimento, se tornou um protagonista central neste novo momento do movimento negro. Um autor que radicalizou bastante o seu discurso e suas práticas desde a experiência do TEN. Ele se aproximou do marxismo e das lutas dos direitos civis dos negros norte-americanos nos anos de 1960 e 1970 e se tornou um crítico fervoroso do mito da democracia racial. 2. Agenda e conquistas políticas do movimento negro A agenda política do movimento negro desde o inal dos anos 1970 e durante os anos 1980 foi bastante variada. Para efeito de nosso curso, gostaria somente de destacar alguns eixos: a política de identidade e reconhecimento dos negros, a inclusão do conhecimento africano e da cultura afro-brasileira no currículo escolar, a ação política e jurídica de criminalização do racismo, a ação simbólica em torno das datas comemorativas. 83 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais No primeiro eixo, a airmação da negritude e das raízes culturais africanas, bem como a exigência de uma campanha do governo brasileiro que sensibilizasse a população negra (negra e parda) a se declarar “preta” nos censos de 1991 e 2000. No segundo eixo, vale destaque às iniciativas para inclusão de conteúdos de História da África e do negro brasileiro nos currículos da educação básica, a revisão dos livros didáticos no que diz respeito à retirada de visões estereotipadas dos negros e a substituição por imagens e textos que promovam o orgulho e autoestima dos negros (GUIMARÃES, 2002). Já, no terceiro, a luta para transformar o racismo em crime durante a Assembleia Constituinte (1986-88) e em 1989, ano de promulgação da lei especíica de criminalização do racismo (7.716/89). No quarto eixo, a recusa da data oicial de 13 de maio como dia de celebração da incorporação dos negros à sociedade brasileira e a escolha do 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, como o dia da Consciência Negra, entre outras. Esta separação aqui é unicamente para efeitos didáticos. Na prática essas ações ocorreram simultaneamente e não necessariamente nesta ordem. No campo da educação, vale um registro de algumas iniciativas municipais e estaduais no sentido da inclusão da história da África nos currículos escolares, como a disciplina “introdução aos estudos africanos” nas escolas públicas de Salvador em 1985. Essa experiência foi viabilizada a partir de uma parceria entre os movimentos sociais e a universidade, por meio do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). No Rio de Janeiro e São Paulo outras iniciativas foram formuladas, como os projetos Zumbi dos Palmares (RJ) e Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) (SP/RJ) e o Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-brasileiros (GTAAB) no âmbito da Secretaria de Educação (SP). Este grupo foi responsável por desenvolver uma série de atividades junto aos professores das escolas públicas visando rever os currículos e introduzir conteúdos não discriminatórios em relação aos negros (SILVA, 2006). Nas décadas seguintes, o movimento negro teve envolvido na pressão pela concretização do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos escolares por meio de legislações estaduais (Bahia, Rio de Janeiro e Alagoas) e municipais (leis orgânicas de Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e leis ordinárias de Belém, Aracaju e São Paulo) durante a década de 1990 e nacional (lei 10.639/03) no início dos anos 2000. A discussão detalhada da lei 10.639 será abordada nas próximas aulas. O movimento negro tem lutado bastante, nas duas últimas décadas, no campo das ações airmativas visando o acesso dos jovens negros e pobres à universidade. Líderes do movimento negro e intelectuais envolvidos ou solidários a políticas de reparação e inclusão social travaram uma batalha em torno da defesa de ações airmativas no sistema de ensino brasileiro. Várias universidades públicas brasileiras adotam hoje políticas airmativas. O governo tem criado programas e políticas especíicas, bem como instituído órgãos governamentais para tratar diretamente da questão racial no Brasil, como a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. Algumas lideranças do movimento negro hoje fazem parte destes órgãos do governo e se articulam, de várias maneiras, com outros líderes e ações no âmbito da sociedade civil. 84 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo PARA REFLETIR Você deve estar pensando: percebo que muitas ações de combate ao racismo e as desigualdades raciais estão sendo efetivadas nas três últimas décadas. E reconheço a importância do movimento negro nesse processo, bem como as ações dos governos municipais, estaduais e federais na efetivação de determinadas políticas de combate às desigualdades raciais. Mas, de fato, o racismo está diminuindo? A inclusão da História da África tem modiicado a visão dos alunos da escola básica sobre o negro e o continente africano? As ações airmativas têm contribuído para diminuir as disparidades entre negros e brancos em relação ao acesso à educação? Caro (a) cursista, suas perguntas exigem novas pesquisas, espero que continue formulando interrogações e buscando respostas a partir das publicações disponíveis sobre o tema. Gostaria que você lembrasse de suas perguntas em nossas próximas aulas, pois agora entraremos diretamente na discussão educacional e nas iniciativas de construção de uma educação antirracista. Espero que algumas de suas inquietações possam ser respondidas até o inal de nosso curso. SAIBA MAIS Artigo cientíico: DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, n. 23, 2007, p. 100-122. Site: https://www.facebook.com/MNUMovimentoNegroUniicado Música: Negro rei, Cidade Negra. Filme documentário: Raça Humana, de Dulce Queiroz (2010). disponível: https://www.youtube.com/watch?v=wd9jv3E_eKM, Lugar: Movimento Negro Uniicado – Campinas/SP. 3. Considerações finais Como analisamos, o movimento negro percorreu um longo trajeto marcado por continuidades e rupturas tanto com relação ao seu discurso como no que diz respeito às suas reivindicações. É interessante notar que essa caminhada nos vai revelando também um processo de decodiicação do nosso racismo. As denúncias e críticas realizadas pelas lideranças negras vão desvendando a lógica que move o racismo brasileiro. Vimos também os desaios que ainda cercam as ações dessa e outras organizações sociais na busca pela promoção da igualdade racial. A história dos movimentos negros no Brasil revela continuidades e descontinuidades, algumas convergências e divergências de projetos e ações 85 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais no passado e no presente. O movimento negro não é homogêneo, é plural, com divergências ideológicas e de formas de atuação política, mas, ao mesmo tempo, busca convergir para algumas bandeiras de lutas em comum, como as atuais políticas de ação airmativa e de luta por uma educação antirracista. Referências bibliográficas DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, n. 23, 2007, p. 100-122. GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed.34, 2002, p.169-195. RAMOS, Alberto Guerreiro. Patologia social do branco brasileiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957. SILVA, José Carlos Gomes. Cultura afro-brasileira e patrimônios culturais africanos nos currículos escolares: breve memória de lutas por uma educação inclusiva*. Texto apresentado no SEMINÁRIO RACISMO E EDUCAÇÃO II, nov. 2006, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG. 86 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Unidade 6 - A escola brasileira e as origens de um discurso antirracista Objetivos: Analisar a trajetória histórica da escola brasileira, tendo em vista a dinâmica racial; recuperar experiências de escolas negras e identiicar as origens da formação de um pensamento pedagógico antirracista. Olá cursist@s! Hoje em nossa aula reletiremos um pouco sobre a seguinte questão: A escola brasileira é racista? Para responder a essa pergunta devemos primeiramente pensar na história dessa instituição: em que contexto político-social surgiu a escola brasileira, a qual grupo estava destinada e qual foi o seu papel na formação escolar de crianças e jovens negros. Podemos já adiantar que a escola foi criada dentro de uma concepção de educação que excluiu a população negra. No entanto, essa população não aceitou essa condição de marginalidade e passou a reivindicar o acesso à educação e à qualidade do ensino, o que implicou rever a própria concepção de educação vigente e o racismo. Em muitos momentos, essa reivindicação se organizou institucionalmente criando as escolas destinadas à população negra. Essas escolas negras ao longo da história não apenas cumpriram o papel do Estado na escolarização da população negra, mas reivindicaram políticas públicas para a educação, lançando as bases para a formação de um discurso pedagógico antirracista. Desse modo, nessa aula vamos trilhar por esse caminho percorrido pela população negra no seu percurso dentro das instituições escolares percebendo, a partir daí, como e de que forma se organizou um pensamento pedagógico antirracista. 1. Da escola branca à escola negra: caminhos e descaminhos As pesquisas atuais sobre a situação da educação da população negra no Brasil6 convergem para alguns pontos comuns, quais sejam, os baixos níveis de sua escolarização, bem como a sua exclusão no sistema de ensino do país. Essa constatação vem sendo denunciada, há algum tempo, pelo movimento negro que procura trazer o passado para ilustrar a continuidade de um presente desigual. Nesse sentido, analisar a história da educação brasileira signiica lançar olhares para os diferentes momentos do passado em que a população negra fora impedida de escolarizar-se. Impedimento esse que se valeu desde normas constitucionais a princípios morais. 6 Rosemberg, Fúlvia. Estatísticas educacionais e Cor/Raça na Educação Infantil e no Ensino Fundamental: um balanço. Estudos em Avaliação Educacional, v.17, n 34, maio/ag, 2006. Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LASER) do Instituto de Economia da UFRJ. O IDH 2013 desagregado pelos grupos de cou ou raça. Tempo em Curso. Ano v; vol 5, numero 11, novembro 2011. 87 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais De acordo com Silva; Gonçalves (2000), durante o período colonial (1500-1822) e parte do imperial (1822-1889), era proibido aos negros escravizados ler, escrever ou cursar as escolas, salvo àqueles que trabalhavam nas fazendas dos jesuítas. Esses construíam escolas para os seus escravos, pois acreditavam que a educação desempenhava uma dupla função: convertê-los ao catolicismo e “civilizá-lo” para o trabalho. Os autores destacam que em ins do século XIX muitas escolas surgiram nessa linha, isto é, associava-se escolarização a mecanismos de controle e disciplinarização do trabalho. A isso somava-se a ideia de civilizar “essa gente”. Cabe ressaltar que esse tipo de escolarização, almejada pela elite branca e proprietária, partia dos dilemas políticos vividos na época, sobretudo, com relação a abolição. Pensar em uma nação moderna e civilizada com uma população negra livre trouxe um conjunto de avaliações e propostas políticas de integração nacional. A escolarização desse contingente, considerado atrasado e incivilizado, consistia em uma das propostas para a transição do regime escravocrata para o livre. Contudo, como veremos, as divergências de interesses deram rumos diferentes a esse projeto. Em 1878, com o Decreto de Leôncio de Carvalho, surgiram as escolas noturnas, para libertos e livres no município de Corte, sendo, no entanto, vetada a entrada de escravos. Silva & Gonçalves apontam as raízes excludentes da escola brasileira, cujo recorte de classe e de raça afastou a população escravizada e negra do ambiente escolar. (SILVA; GONÇALVES, 2000) A proibição de escravos nos cursos noturnos logo foi abandonada em 1879 por ocasião da Reforma do Ensino Primário que criou cursos para jovens e adultos. No entanto, essa tentativa em tornar o acesso à escola para todos se chocava com a resistência de setores da elite brasileira, que proibia a entrada de negros, fosse eles livres, libertos ou escravizados. Na prática cotidiana de uma sociedade escravocrata os decretos e leis, simplesmente, eram vetados. Assim, a escola se chocava com as ambiguidades que lhe eram inerentes desde a sua origem: oferecer instrução pública para uma população majoritariamente escrava. O período que antecedeu à abolição também trouxe debates públicos e polêmicos sobre a educação escolar da população negra. A Lei do Ventre Livre, decretada em 1871, prescrevia que crianças nascidas em ventres de mães escravas a partir daquela data seriam livres e deveriam ser educadas. Essa orientação fazia parte da concepção de muitos intelectuais, abolicionistas e do próprio governo imperial, os quais articulavam a abolição ao processo de instrução dessa população. Tal orientação, vale destacar, se apresentou sob o viés moralista e disciplinador. A polêmica se formou em torno da responsabilidade da educação dessas crianças livres. Inicialmente, discutiu-se a possibilidade dos senhores de escravos serem obrigados a educá-las e em troca manteriam o direito de propriedade. Entretanto, o descontentamento da elite branca escravocrata levou a uma série de negociações resultando na isenção dessa responsabilidade por parte dos senhores de escravos. O Estado passou a assumir a função em oferecer a educação escolar para as crianças ingênuas7 e livres. Caberia aos proprietários entregarem-nas ao governo mediante pagamento indenizatório. (SILVA; GONÇALVES, 2000) 7 Esse termo ingênuo originou-se do Direito Romano e signiicava todos aqueles nascidos livres. No Brasil, após a Lei de 1871 o termo passou a signiicar “os ilhos livres de mulher escrava”, fazendo alusão a Lei do Ventre Livre. 88 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo O Estado encaminharia essas crianças a instituições que na época foram construídas para atendê-las. Porém, tal como argumentam Silva; Gonçalves (2000), essas crianças beneiciadas pela Lei do Ventre Livre não foram entregues ao governo e continuaram presas aos laços institucionais da escravidão. A própria lei garantia ao proprietário, segundo os autores, a posse dessas crianças “livres” exploradas até completarem 21 anos de idade. Você deve estar se perguntando: ainal o que mudou? Caro (a) cursista ainda que o título tenha sido alterado de proprietário para tutor, nada mudou para essas crianças. O im da escravidão em 1888 não alterou de forma signiicativa esse quadro, na medida em que a transição para o trabalho livre manteve um tipo de estrutura social que garantiu os antigos privilégios econômicos. Dessa forma, a grande parte da população negra foi empurrada para as cidades onde os bancos de emprego mal remunerados obrigaram as crianças e os jovens a contribuírem com a renda familiar afastando-as, desse modo, das redes de ensino. O trabalho precoce, as diiculdades inanceiras e o tratamento desigual das escolas republicanas levaram as crianças e jovens negras a não escolarizarem-se. (CUTI, 1992) Esse processo de marginalização culminou em várias contestações, muitas delas organizadas a partir de associações, grêmios e clubes negros. A principal pauta de reivindicação estava voltada à exclusão e precariedade do ensino das crianças e jovens negros. Essa mobilização estimulou nas entidades negras a criação de suas próprias escolas. A partir daí um discurso pedagógico antirracista começava a ser formulado. 2. Experiências de escolas negras: uma autonomia desejada? “Sem estudo não se vence.” (A Voz da Raça, 17 mar. 1934, p.8) Nas primeiras décadas do século XX, a cidade de São Paulo viveu um momento de expansão industrial, crescimento urbano e populacional. As demandas por mão de obra mais qualiicada levaram à ampliação das redes de ensino formadas, naquele momento, por escolas públicas, privadas, religiosas entre outras. Contudo, o acesso a essas redes se restringiram à população branca de São Paulo, na medida em que as instituições escolares estavam sob a égide do pensamento racial da época e das políticas educacionais que daí resultaram. Como podemos observar, o ideal de branqueamento e a concepção da miscigenação como algo negativo transformaram negros e mestiços em alvos de estigmatização e discriminação racial. Nesse sentido, se por um lado, a reformulação jurídica após a abolição alargou o acesso da população negra à alguns direitos políticos; por outro, as teorias raciais trouxeram um conjunto de impedimentos à sua escolarização. Uma grande parte das escolas nas primeiras décadas do século XX diicultava ou, simplesmente, não permitia alunos negros. Os jornais da época relataram casos em que as escolas 89 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais barraram o acesso de crianças negras às matrículas escolares. Domingues (2008) descreve uma passagem do jornal Progresso que, em 1929, publicou o caso da ilha adotiva negra do “ilustre” ator Procópio Ferreira. Nessa matéria, airmava-se que o colégio Sion recusou a aceitar a matrícula de sua ilha alegando não receber “pessoas de cor, embora oriundas de família de sociedade” (Progresso, 24 mar. 1929, p. 2, apud, DOMINGUES, 2008). Em outros momentos, há denúncias por parte da imprensa negra da época de escolas que, obrigadas a aceitar crianças negras, tratavam-nas com desprezo e humilhação. Esses episódios, como outros, ilustram a forma como a população negra foi excluída dos bancos escolares. A resistência diante desse fato, no entanto, culminou na formação de escolas negras, bem como, no surgimento de um discurso pedagógico antirracista para a educação. Os primeiros registros encontrados sobre as escolas destinadas à população negra no Estado de São Paulo localizam-se em ins do século XIX no contexto pós-abolição8. Segundo Domingues (2008) foram iniciativas pontuais e que não conseguiram se irmar, sobretudo, por falta de recursos e apoio do Estado. Contudo, tais iniciativas conferiram certa experiência organizacional formando a base pela qual surgiram as escolas organizadas pela Frente Negra Brasileira (FNB). Crianças negras na escola frentenegrina Fonte: Quilombhoje, disponível em: http://www.quilombhoje2.com.br/blog/?tag=educacao, acesso em 18/05/2015. Silva & Gonçalves (2005) atribuem à Frente Negra Brasileira a criação de um dos projetos educativos mais importantes e completos da história das organizações e entidades negras. A experiência se espalhou por outros estados brasileiros tendo, dessa maneira, uma repercussão a nível nacional. 8 Há hipóteses da presença de escolas organizadas pelos negros na cidade de São Paulo já no período da escravidão, em torno da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos. Ver: RODRIGUES, Argemiro. Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63, p. 137-138, nov. 1987. 90 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo De acordo com Passos (2010) a Frente Negra iniciou em 1932 com cursos de alfabetização de adultos e, em seguida, criou escolas que alfabetizaram 4.000 alunos. Além da escola primária, existiam cursos para a formação social, pois a concepção de educação não se limitava apenas à escolarização, mas à instrução política e cultural dos alunos. Daí, a proposta pedagógica se nortear pelos seguintes objetivos ideológicos: “congregar, educar e orientar”. IMPORTANTE Cabe aqui pontuar, tal como explicitado por Passos (2010), os principais eixos que formaram o pensamento pedagógico frentenegrino: 1. A educação criava condições para a ascensão social do negro; 2. A escolarização e a formação/instrução eram entendidas como parte do processo educativo; 3. A instrução/formação rompia com a alienação e despreparo do negro diante do mundo; 4. A educação romperia com a pobreza; 5. A escolarização e a instrução elevavam o nível cultural dos negros e davam-lhe maiores condições de competirem com os brancos; 6. A escolarização e a instrução integrariam os negros à sociedade; 7. A escolarização e a instrução/formação eliminariam o preconceito. É possível airmar que a Frente Negra, apesar dos limites da sua proposta pedagógica e da sua crítica ao sistema de ensino brasileiro, lançou pontos importantes no processo de formação do pensamento antirracista para a educação. Já naquela época as lideranças frentenegrinas defendiam a educação enquanto um direito social e garantia de cidadania. Também denunciaram a falta de políticas públicas para a população negra na área de educação. Segundo Domingues (2008), embora a Frente Negra não tenha construído uma proposta pedagógica multirracial e pluricultural, suas críticas ao material didático, à evasão escolar causada pelo tratamento desigual, a denuncia à historia do negro contada sob um viés negativo, lançaram bases para se pensar em uma educação do negro no Brasil. Isso, como veremos, desembocará na elaboração de uma determinada proposta de educação e na implementação da lei 10639/03. Cabe ressaltar, como elucida Domingues (2008), que a criação das escolas negras naquele momento se caracterizou como um importante marco simbólico para a luta por uma educação pluriétnica. 91 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais 2.1 Escolas: dever do Estado Após a dissolução da Frente Negra pelo golpe que levou à instauração do Estado Novo em 1937, observa-se o surgimento e atuação do Teatro Experimental Negro (TEN). O TEN foi criado, no Rio de Janeiro, por Abdias Nascimento no ano de 1944 e propunha uma função política e educativa ao teatro. Esse passava a ser, na concepção do TEN, o io condutor no processo de alfabetização e formação cultural das alunas e alunos negros. A estratégia pedagógica partia da discussão de temas variados, como: folclore afro-brasileiro, história, geograia, teatro, entre outros. Nesse momento, o tema da Negritude e as ideias revolucionárias que ferviam o cenário intelectual dos anos 50 conferiram um tom diferenciado à proposta de educação do TEN. A partir daí observa-se um entrelaçamento maior entre educação e combate ao racismo. A educação na perspectiva do TEN deixa de ser responsabilidade da família, tal como supunham as lideranças frentenegrinas, para se tornar responsabilidade do Estado. Essa mudança discursiva da militância negra nos anos 50 pode ser notada nas críticas do sociólogo Guerreiro Ramos, que chamava atenção para os equívocos em pensar uma autonomia da educação diante do Estado. Na visão desse intelectual, essa posição defendida pela Frente Negra se converteu em isolamento do negro, “um tipo de gueto”. Guerreiro Ramos negava a ideia de “educar para melhorar”, pois o problema da “precariedade e baixa escolarização não era um problema do negro, mas um problema nacional”(SILVA; GONÇALVES, 2000: 15). No entanto, Passos (2010) identiica a permanência de algumas reivindicações da FNB nas pautas do TEN, tais como: a educação como forma de ascensão e integração social; a educação como valorização da população negra diante da sociedade e como instrumento de combate à discriminação racial. Embora seja perceptível essa proximidade entre as entidades é importante dizer que o TEN apresentava algo novo, como a centralidade do combate ao racismo na esfera da educação e a relação entre educação e cultura. IMPORTANTE Além desses aspectos, o TEN não apenas se manifestou a favor das mudanças mais amplas para a educação como também as sistematizou em críticas muito bem articuladas. Silva; Gonçalves (2000) resumem algumas dessas propostas: 1. Alteração de normas jurídicas que garantissem os direitos dos negros; 2. Reformulação da inserção do negro no mercado de trabalho; 3. Acesso à educação e cultura; 4. Elaboração de leis antirracistas; 5. Educação gratuita para crianças brancas e negras; 6. Criação de medidas que assegurassem o acesso de negros no ensino secundário e universitário. 92 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo A atuação do TEN perdurou até ins da década de 60 e a sua expansão, tal como a Frente Negra, ocorreu por várias cidades e estados brasileiros. Suas intervenções e propostas para a educação foram retomadas em outros momentos pelas lideranças e movimentos sociais negros. SAIBA MAIS CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Racismo e Anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Contexto, 2010. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio ao lar ao silêncio escolar. Dissertação (Mestrado), São Paulo, Faculdade de Educação USP, 1998. Disponível em: http://www.google.com.br/search?q=tese+cavalleiro+silencio+ no+lar&hl=pt-PT&gbv=2&oq=&gs_l= Site www.geledes.org.br Música: Anésia, Maurício Tzumba. Filme: Mãos Talentosas, Thomas Carter, 2009/EUA, Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=k4xrwBE12ok Lugar: Escola do Quilombo da Caçandoca, Ubatuba. 3. Considerações finais Como vimos, o que as estatísticas hoje nos mostram sobre a situação da educação da população negra constitui ainda herança de um passado que persiste em se manter. As escolas se formaram nas estruturas do racismo brasileiro, cuja premissa consiste em excluir os negros dos espaços públicos, lhes negando direitos sociais. As experiências negras abriram o debate para se pensar em uma educação aberta a todos, sem estigmatizar ou excluir as diferenças étnico-raciais. Uma educação não reprodutora do racismo. Mas, isso não ocorreu de maneira harmoniosa e, sim, no contexto de embates e contestações políticas. As lideranças e movimentos negros se organizaram institucionalmente e propuseram outros formatos de escolas e educação para o país. Essas propostas ainda nos nossos dias são reivindicadas e a escola continua a resistir às mudanças. A educação como instrumento de luta antirracista será ainda por muito tempo, como veremos nas outras aulas, uma das principais reivindicações políticas das organizações negras. 93 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Referências bibliográficas CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silencio do lar ao silencio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2010. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silencio do lar ao silencio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Dissertação de mestrado, Faculdade de Educação, USP, 1998. Disponível em: http://www.google.com.br/search?q=tese+cavalleiro+silencio+no+lar&hl=ptPT&gbv=2&oq=&gs_l, acesso em 12/12/2014. CUTI, José Correia Leite. E disse o velho militante. Depoimentos e artigos. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. DOMINGUES, Petrônio. Um “templo de luz”: Frente Negra Brasileira (1931-1937) e a questão da educação. In: Revista Brasileira de Educação, vol.13 no.39 Rio de Janeiro Sept./ Dec. 2008. GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Movimento Negro e Educação. Set/ou/Nov/dez 2000, nº15. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/ n15/n15a09.pdf , acesso em 15/12/2014. PASSOS, J. Célia dos. As desigualdades educacionais, a população negra e a Educação de Jovens e Adultos. 2010. RODRIGUES, Argemiro. Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63, p. 137-138, nov. 1987. ROSEMBERG, Fúlvia. Estatísticas educacionais e Cor/Raça na Educação Infantil e no Ensino Fundamental: um balanço. Estudos em Avaliação Educacional, v.17, n 34, maio/ ag, 2006. Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LASER) do Instituto de Economia da UFRJ. O IDH 2013 desagregado pelos grupos de cor ou raça. Tempo em Curso. Ano v; vol 5, numero 11, novembro 2011. SILVA, Petronilha B. G.; GONÇALVES, Luis A. Oliveira Movimento Negro e Educação. In:Educação como exercício da diversidade. Brasília: UNESCO, MEC, ANPED, 2005. 94 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Unidade 7 - Racismo e cotidiano escolar Objetivos: Reletir sobre alguns mecanismos discriminatórios presentes no cotidiano escola; pensar a respeito dos lugares sociais produzidos pelo racismo institucional; discutir a difícil relação entre os mecanismos de exclusão racial e a construção da identidade de crianças negras. Olá cursist@s! Na aula passada discutimos sobre a constituição das escolas e a sua relação com o racismo institucional. Analisamos as proibições e diiculdades externas, perceptíveis em alguns momentos históricos, para o acesso da população negra às escolas brasileiras. Também vimos os seus desdobramentos: as experiências de escolas negras e as origens da formação de um discurso pedagógico antirracista. Nessa aula, vamos reletir sobre as formas como o racismo se revela no interior da escola: seja a partir de mecanismos explícitos ou velados. Esses mecanismos, segundo algumas pesquisas, se manifestam no alto índice de evasão escolar, nas diiculdades de aprendizagem das crianças negras, nos conlitos raciais, entre outros aspectos. Para tanto, gostaríamos que vocês formulassem hipóteses para a seguinte pergunta: Como se manifesta o racismo no cotidiano escolar? 1. Cotidiano escolar opressor Como muitos estudos já apontaram9, o espaço escolar reúne um conjunto de valores sociais, padrões de comportamento, princípios morais que norteiam as relações interpessoais e interferem no processo de construção das identidades individuais. A escola e a família, como airma Cavalleiro, desempenham um papel importante na formação do sujeito, pois são essas instituições que lhes apresentam o mundo social. Segundo a autora as primeiras formas de socialização do indivíduo se dá a partir do universo escolar, ou seja, no contato com outras crianças e adultos que não pertencem ao seu grupo familiar e social. Essa fase que se estende até os sete anos de idade, deine alguns aspectos da personalidade e da identidade da criança (CAVALLEIRO, 2010). Nesse processo de socialização, a família e a escola ora partilham, ora discordam de certas visões e valores sociais. No entanto, as possíveis discordâncias entre esses saberes, de acordo com Gomes, fazem parte do processo de aprendizagem do sujeito e não criam conlitos signiicativos no seio familiar e/ou escolar (GOMES, 1994). A escola deve organizar e aproximar, por meio de situações pedagógicas, os diferentes conhecimentos. Entretanto, Gomes (1994) aponta a existência de escolas que não estabelecem esse jogo de continuidade e complementaridade dos saberes trazidos pelas crianças. Essa experiência causa 9 MOREIRA, Leite D. Educação e relações interpessoais. In: Introdução à psicologia escolar. Org. Maria Helena Souza Pato. São Paulo: Casa do Psicólogo, 3 ed. 1997. GOMES, J. V Relação família e escola: continuidade e descontinuidade do processo educativo. São Paulo: Idéias, nº16, 1993 95 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais rupturas e, muitas vezes, põe em xeque a construção de um lugar social em que a criança busca ocupar, bem como deslegitima àquele ocupado pelo seu grupo familiar. Assim, esse choque entre os saberes, valores e princípios familiares pode criar um lugar social estigmatizado para a criança. Nessa perspectiva, cabe ressaltar que a maneira como o mundo vai sendo apropriado e signiicado pelo indivíduo não apenas o situa na vida social, mas também mobiliza elementos para a construção de sua identidade. Esses elementos estão ligados, inicialmente, à forma como o sujeito identiica o seu próprio corpo e se reconhece como parte de um coletivo humano e social. A partir daí a identidade se forma na dinâmica do reconhecer-se e ser reconhecido pelo outro. Essa lógica nos leva ao seguinte questionamento: PARA REFLETIR Como pensar a construção da identidade de crianças negras em um contexto escolar que alimenta e reproduz a imagem estereotipada e negativa do corpo negro?Quais são os mecanismos que criam e mantém esse lugar esvaziado de sentidos? 1.1 Como eu me vejo, como sou vista: identidade e corpo Quando a criança negra inicia o seu processo de socialização na escola a sua primeira descoberta está ligada ao seu corpo. Um corpo que revela o seu “defeito de cor”10. A partir daí o movimento de se reconhecer e ser reconhecida passa pela rejeição desse corpo negro. A não aceitação das crianças negras se manifesta nos olhares, gestos, afetos e “brincadeiras”, assim como, nos conteúdos escolares e nas relações interpessoais. A beleza, a inteligência, a educação, a docilidade são atribuídos ao sujeito branco, tornando-se em ideais a serem alcançados por muitos alunos e alunas negras. Isso, no entanto, implica negar a si próprio e a perseguir o seu corpo. Nesse sentido, Costa argumenta quão o racismo se mostra violento e perverso ao impingir o ideal de embranquecimento como algo positivo. O corpo negro se torna uma clausura de sofrimento, vigília e autopunição ao invés de ser “fonte de prazer” e libertação (COSTA, 1986). Com essa imagem corporal distorcida, a identidade da criança se constrói no desejo de ser o outro, o branco, criando representações psíquicas ligadas à morte e à dor. 10 O termo foi cunhado no período colonial dentro do contexto das leis segregracionistas. A condição racial impedia ou não a ocupação de cargos civis, militares e eclesiásticos. Aos negros e mulatos, eram vetados essas funções, permitidas apenas para os brancos. Havia casos, no entanto, em que lhes eram concedidos tais cargos a partir do pedido de “dispensa do defeito de cor”. Ver: OLIVEIRA, Anderson J. Machado. Suplicando a dispensa do “defeito de cor”: clero secular e estratégias de mobilidade social no Bispado do Rio de Janeiro do século XVIII. In: XIII Encontro de História Anpuh-Rio, disponível em: http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/ content/anais/1212773302_ARQUIVO_Texto-AndersondeOliveira-Anpuh-RJ-2008.pdf. 96 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Para as meninas negras, a marca dessa identiicação com a brancura se dá, entre outros aspectos, pela imagem criada sobre os cabelos. As bonecas, os ilmes, os livros infantis e as propagandas de beleza reforçam uma estética branca e estigmatizam os cabelos das meninas negras considerados “duros”. O desejo compulsivo em alisar ou prender os cabelos podem revelar a relação de sofrimento e de autonegação, conforme indicam as frases abaixo11: “Eu quero ser como a Ana (se refere à menina branca de cabelos longos e lisos), porque ela parece uma princesa, a barbie!” - Jéssica, 5 anos, negra; “Eu sou branca como essa boneca, só queria ter olhos claros como ela” – Alhine, 7 anos, negra. “Eu não solto o meu cabelo porque ele é ruim, é muito duro e é feio. E depois os meninos icam falando que eu tenho cabelo de bombril” – Jasmin, 8 anos, negra12 Essas frases extraídas do cotidiano escolar nos levam a reletir sobre algumas representações raciais que estruturam a identidade dessas crianças. Pode-se dizer que a não aceitação de sua condição étnico-racial, do seu corpo, constitui um dos seus pontos estruturantes. Entretanto, isso não se dá por uma fantasia criada pela criança, como alguns educadores tentam nos convencer, mas pelos estigmas, discriminações e preconceitos raciais que rondam e se manifestam de formas variadas na escola. A grosso modo, podemos dizer que existem duas formas de discriminar e excluir as crianças negras: as formas veladas e as explícitas. Tais formas, porém, não são estanques, ao contrário, se aproximam criando diferentes combinações. Aqui, propomos pensá-las separadamente apenas como um recurso didático e relexivo: a) As formas veladas – Os preconceitos raciais e as discriminações são sutis, mas poderosos nos seus propósitos, a saber, manter lugares sociais. É possível citar alguns exemplos, tais como: • A diferença de tratamento entre crianças brancas e negras. Em uma escola, Maria dizia sempre que a professora não gostava dela. A professora, rebatia, dizendo que não sabia por que ela tinha essa ideia ixa. Em uma observação de aula, a diretora atenta a isso descobriu esse desafeto tão reclamado por Maria. Lá estava ele, no olhar carinhoso da professora diante das meninas brancas, no seu gesto afetuoso das carícias aos cabelos dessas meninas e, por im, nos elogios à letra das meninas brancas. A professora se calava diante de Maria, nenhum elogio, nenhum afeto, apenas indiferença. Depois, em reunião, a diretora comentou essas observações e a professora então se revelou: “- Eu trato Maria com educação e respeito. Ninguém consegue controlar os afetos.” 11 Todos os depoimentos aqui citados foram recolhidos durante os cursos de formação organizados pela ACUBALIN em 2005 e 2011. A ACUBALIN, é uma entidade sem ins lucrativos voltada à práticas de promoção da igualdade racial e diversidade étnico-cultural. Para tanto desenvolve projetos educativos em escolas públicas. Para saber mais sobre a entidade, acesse: www.acubalin.org.br 12 A primeira frase, proferida por Jéssica, liga a menina branca à princesa que na sua fala é descrita como parecida com a Barbie: magra, branca e loira. Ao desejar ser a menina branca, a princesa, Jéssica busca embranquecer-se. Já a segunda, Aline, o desejo forte em ser branca parece criar uma fantasia de si própria, se vendo como branca. Isso deve lhe causar muito sofrimento, pois por mais que se chegue a um embranquecimento desejado, a sociedade lembra de forma violenta qual é o seu lugar social e racial. Por último, Jasmin reproduz a imagem social criada sobre o seu cabelo ao dizer que ele é ruim e duro. Também busca minimizar os estigmas que lhe perseguem ao prender os cabelos. As tentativas em se camular e ocultar seus traços identitários são perceptíveis aí. 97 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais • Isso nos mostra que o silêncio não signiica que algo não é dito. Além disso, discordamos com a professora, na medida em que os nossos afetos são sim inluenciados por muitos elementos sociais (raciais). • Os projetos pedagógicos. Em uma escola pública infantil, os professores e alunos desenvolveram um projeto sobre as famílias. Na exposição desse projeto a sala só tinha desenhos e representações de famílias brancas e monogâmicas. Uma mãe negra perguntou a ilha: “- Por que você desenhou uma família branca se somos todos negros, ilha?” A menina respondeu: “- não sei! A professora contou história da família da branca de neve, cinderela e de João e Maria. – Mãe, todos eram brancos. Também na colagem só achei pessoas brancas e felizes nas revistas. E a nossa família é diferente”. • As brincadeiras e as relações com seus pares. No intervalo de uma escola pública infantil, uma menina icou isolada olhando para as outras meninas e brincando sozinha. A professora perguntou a ela: “- Greice, por que você não brinca com as outras meninas?” A menina respondeu: “- Porque elas não querem, não gostam de mim.” A professora disse: “- claro que gostam, Greice, para de besteira”. – “Não, não gostam. Elas me disseram que sou fedida e muito preta. Isso é coisa da sua cabeça, menina”, disse a professora. Insistindo no caso, ela continua: - “Quer ver? Paulinha, venha cá, por favor. Você não quer brincar com a Greice? - Se ela quiser, professora. - Tá vendo Greice, você inventa coisa, menina?” A falta de escuta para compreender o sentimento de Greice fez com que a professora não resolvesse o conlito, ao contrário, legitimou o agressor e culpou a vítima. Em um conlito há situações interessantes de aprendizagem. Nesse caso, a exclusão racial poderia ser trabalhada de forma coletiva, contribuindo para as relações e convívio entre crianças negras e brancas. Ao invés disso, a professora informou, implicitamente à Greice que ela inventou o racismo e que não se pode falar sobre isso. Acrescenta-se a crueldade das relações raciais no próprio universo infantil, sobretudo, quando utilizam as ofensas raciais para discriminar. Os termos como “fedida” e “preta” acionam os estigmas ligados ao corpo: à cor e à anomalia (higiene). (GUIMARÃES, 2002) • O posicionamento dos professores e gestores diante dos conlitos raciais. O posicionamento dos educadores escondem e, ao mesmo tempo, revelam o racismo. As suas posturas diante dos conlitos raciais variam, contudo o silenciamento torna-se a sua marca. Algumas frases emblemáticas, como essas: “parem com isso somos todos humanos”, “todos temos sangue vermelho”, “pare de se lamentar e volta para o seu lugar”, “resolvam vocês essa briga”13; nos revelam as diiculdades e, por vezes, desconhecimento dos educadores no enfrentamento do racismo no cotidiano escolar. 13 Outras frases como essas foram analisadas em: SOUZA, Ana Lúcia Silva. “Negritude, letramento e uso da oralidade”. In: Do silencio do lar ao silencio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Org. CAVALLEIRO, E. São Paulo: Contexto, 2010, p.179-194. 98 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo b) As formas explícitas – Nessas formas, o racismo se manifesta explicitamente enquanto discriminação racial. Podemos elencar: • Os insultos racistas: Durante o recreio, no pátio da escola um menino chama a colega de “macaca” e começa a discussão. O inspetor intervém e os leva para a direção. Lá a diretora escuta a versão do inspetor (e não dá voz à vítima) e conclui dizendo aos adolescentes: “olhe, bullyng não é saudável, não se faz isso”. Mas, a vítima insistia que não era bullyng, e, sim, racismo. E a diretora irritada, chama a atenção da vítima, invertendo a situação na seguinte frase: “agora dá para entender, você provoca mesmo”. Os insultos raciais, como bem analisou Guimarães (2002), constituem formas de violência racial, um mecanismo que legitima relações de poder e demarca, assim, as hierarquias sociais/ raciais. Cada ofensa traz em si um estigma, cuja função consiste em levar a vítima a um lugar de inferioridade. Guimarães (2002), ao analisar termos injuriosos como “macaco”e “urubu”, argumenta que se o primeiro está ligado à ideia de selvageria e a um estágio quase humano, o segundo se remete ao devorador de restos e lixo. É importante frisar que os insultos raciais carregam intencionalidades (humilhar, excluir e discriminar), assim como demonstram um sentimento de superioridade presente no agressor. No caso acima, podemos também analisar a questão de gênero nesse conlito ao envolver um menino branco e uma menina negra. Também nos chama a atenção para aquilo que Munanga Kabenguele (2013) airma sobre o caráter singular do racismo brasileiro que culpabiliza a vítima e vitimiza o agressor. • Violência escolar Ao reletirem sobre o sistema educacional francês Bourdieu; Passeron (1975) encontraram no ambiente escolar um cenário opressivo e marcado pela violência simbólica14. A violência simbólica, tal como teorizada por esses autores, constitui uma imposição tanto dos valores como da cultura dominantes. Dessa forma, de acordo com Bourdieu; Passeron (1975), é a partir da ação pedagógica que se reproduz o poder cultural e social dominantes. Os grupos que não estão inseridos nessa estrutura de poder se sentem excluídos, comprometendo a construção de sua própria identidade. As práticas pedagógicas na instituição escolar, geralmente, difundem visões, valores, saberes que levam os alunos a romperem com o seu universo cultural e social (e étnico-racial). A forma generalizante como a escola apresenta um determinado saber causa estranhamento e exclusão simbólica. Durante muito tempo o movimento negro vem chamando a atenção para esse tipo de violência em que as crianças negras estão sujeitas. Violência essa expressa na dinâmica do cotidiano escolar, bem como na própria estrutura do ensino do país. Como vimos, essa violência se revela de forma velada e explícita. 14 Conceito que aparece na teoria da reprodução social. Ver: P. BOURDIEU; PASSERON, J.C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975. 99 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Assim, seja nas visões estereotipadas sobre o negro, no silenciamento diante dos conlitos raciais, no material pedagógico construído a partir de um viés etnocêntrico, seja nos insultos raciais, a violência racial mantém a estrutura de privilégio do nosso país e os lugares sociais. SAIBA MAIS KABENGELE, Munanga Org. Superando o Racismo na Escola. Brasília, 2005. Disponível http://portal.mec.gov.br/secad/ arquivos/pdf/racismo_escola.pdf, acesso em 12/12/2014. Site http://revistaescola.abril.com.br/formacao/brasil-pais-todascores-643758.shtml http://antigo.acordacultura.org.br/mojuba/ http://www.geledes.org.br/plano-de-aula-cultura-negra-em-sala-deaula#axzz3Nxnxmp12 Música: CASAS (Paulo Brandão / Luiz Eduardo Ricon), In: Tem gente, Animação dirigida para a primeira infância. É parte integrante do “Uniduni TV”, programa infantil em 10 episódios produzido pela MultiRio. Olhos coloridos, Macau e interpretado por Sandra de Sá. Filme: Racismo desde criança, comparando as bonecas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DDO3RrxmCeQ Lugar: Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Guia Lopes, Bairro do Limão, em São Paulo/SP. Considerações finais A natureza plácida e diluída do nosso racismo, como já discutimos, cria uma das violências mais perversas da nossa sociedade: a violência escolar. As crianças e os adolescentes negros são oprimidos cotidianamente na escola. A instituição não tem se apresentado como um lugar de sentido, na medida em que o processo de aprendizagem exclui os saberes familiares, estigmatiza a história das populações negras e reforça padrões de comportamento e beleza pautados nos ideais da brancura. Os insultos raciais e outras formas de violência reproduzem as hierarquias sociais e raciais, mantendo os lugares sociais (simbólico, mas não apenas) para essas crianças negras. Ser negro e negra signiica viver essa violência diária que, ao se manifestar de forma velada, esconde os seus mecanismos e efeitos psíquicos. Muitas crianças negras desenvolvem um sentimento de solidão esvaziando o signiicado da busca por sua identidade. Violência e opressão: eis a chave explicativa do nosso racismo. 100 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Referências bibliográficas BORDIEU P. & PASSERON, J.C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silencio do lar ao silencio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2010. COSTA, Jurandir F. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986 2º Ed. (Biblioteca de Psicanálise e Sociedade, v. n.3) GOMES, Jerusa V. 1994. Socialização primaria, tarefa familiar?. In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, nº 91, p-54-61, Nov. 1994. GUIMARÃES, Antonio Sérgio. O mito anverso: o insulto racial. In: Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed.34, 2002, p.169-195. MOREIRA, Leite D. Educação e relações interpessoais. In: Introdução à psicologia escolar. Org. Maria Helena Souza Pato. São Paulo: Casa do Psicólogo, 3 ed. 1997. GOMES, J. V Relação família e escola: continuidade e descontinuidade do processo educativo. São Paulo: Idéias, nº16, 1993. MUNANGA, Kabengele. Entrevista: Nosso Racismo é um crime perfeito. Jornal de Todos os Brasis, 11 nov. 2013. Disponível: http://jornalggn.com.br/noticia/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito#.Uo3lI0q5b_I.twitter Acesso 12/12/2013. MUNANGA Kabengele, Org. Superando o Racismo na Escola. Brasília, 2005. Disponível http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf, acesso em 12/12/2014. 101 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 8 - A Lei 10.639: a sua longa trajetória Objetivos: debruçar sobre a trajetória histórica que desembocou na criação e implementação da lei 10.639, bem como discutir seus desdobramentos, limites e possibilidades. Olá cursist@s! Após analisarmos as questões que envolvem o racismo na escola, analisaremos agora o arcabouço jurídico que orienta o seu enfrentamento. A Lei 10.639 constitui parte de um conjunto de ações airmativas que surgiu após anos de luta das organizações sociais, em especial, do movimento negro. O seu surgimento contou com um longo trajeto histórico e político que organizou, paulatinamente, aquilo que entendemos hoje por Educação Étnico-racial. Veremos em que medida as pesquisas acadêmicas sobre educação e raça foram se encontrando tanto com as visões e mobilizações do movimento negro em torno da educação, como com as políticas públicas que daí resultaram. Esse caminho nos levará a seguinte constatação: a Lei 10.639 apresenta uma longa trajetória em que contou com muitos atores políticos, algumas derrotas e vitórias. 1. Dos discursos antirracistas à formulação da Lei 10.639/0315 Como vimos nas últimas aulas, o tema da educação sempre esteve presente nas discussões e reivindicações dos movimentos sociais negros. Isso possibilitou, ao longo do tempo, a construção de quadros diagnósticos e diferentes propostas para a educação do país. As visões foram se ampliando, tornando o debate cada vez mais associado à necessidade de elaboração de políticas públicas para o enfrentamento do racismo no âmbito escolar. Dentro dessa linha, o movimento negro que (re) surgiu pós-78 se subdividiu em várias organizações sociais negras atentas às questões que envolviam, particularmente, a educação. Além disso, como nos lembram Silva; Gonçalves (2000), muitos membros e militantes dessas novas organizações possuíam nível superior e médio, conferindo ao debate novos olhares para a educação. Os autores apontam o aumento, nesse período, ainda que pequeno, de pesquisas sobre educação étnico-racial nas universidades. Tornar a questão racial na área da educação um objeto de pesquisa exigiu uma longa jornada de debates e envolvimento das universidades com o tema. Isso contou também com a imersão de pesquisadores negros nesse trajeto. Assim, entre 1978 a 1988 muitos encontros foram realizados para discutir a educação dentro de uma perspectiva racial e seguindo uma lógica mais voltada à denúncia e aos diagnósticos. O debate sobre educação e raça tornou-se público e ganhou um espaço nas agendas políticas. Vale ressaltar que o contexto nacional, sobretudo nos anos de 1980, com a redemocratização do país, favoreceu esse impulso. 15 Essa Lei foi alterada para 11.645 instituída em 10 de março de 2008 e incorporando também a história e as culturas dos povos indígenas. 102 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Alguns encontros e documentos tornaram-se emblemáticos e divisores de água nessa fase de luta contra o racismo na esfera da educação. É possível citar O Manifesto Nacional do Movimento Negro Uniicado Contra a Discriminação, lançado em 1978, que reivindicava, com veemência, a luta contra o racismo e a promulgação do dia da Consciência Negra16. Em 1982, realizou-se a Conferência Brasileira de Educação (CBN), cujo tema principal consistia em debater a discriminação no ensino. Isso resultou, é importante destacar, no apelo à criação de novos estudos e pesquisas sobre raça e educação nos cursos de pós-graduação. (SILVA; GONÇALVES, 2000) Silva; Gonçalves (2000) apontam como signiicativo o lançamento do Programa de Ação, organizado pelo Movimento Negro Uniicado (MNU) em 1982, no qual propunha as seguintes mudanças: reestruturação curricular, realização de cursos de formação para professores e ampliação do acesso de alunos negros a todos os níveis escolares por meio de bolsas. Esses e outros encontros tiveram grandes repercussões nacionais que incentivaram novos debates, interferiram em algumas secretarias municipais e estaduais de educação e impulsionaram a criação de um conjunto de experiências em educação comunitária por todo o país. Com relação às Secretarias de Educação (primeiramente, nos Estados de São Paulo, Bahia e no município do Rio de Janeiro) veriicou-se um esforço em repensar o currículo e reavaliar os livros didáticos. Essa ação implicou na contratação de assessores, nos quais passaram a dialogar com as comunidades negras, conferindo outra dinâmica na relação entre a militância com as esferas públicas de poder. Durante esses anos vivenciou-se um boom no debate sobre educação e raça estruturando um círculo produtivo: encontros e discussões, experiências comunitárias educativas e repercussões nas administrações públicas. As experiências em educação comunitária, ligadas em sua maioria às comunidades negras, loresceram nesse período trazendo um protagonismo a esses sujeitos e, ao mesmo tempo, articulando educação e culturas afro (ou ainda, escolas e territórios negros). Essas ações educativas atribuíam sentido àquilo que se reivindicava, ou seja, a retomada da memória e territórios negros, bem como a valorização das culturas afro-brasileiras. De acordo com Silva; Gonçalves (2000), existem poucos registros sobre essas experiências, porém os autores apontam como fundamental a pesquisa realizada pelo Instituto de Recursos Humanos João Pinheiro, ligado à sede do Ministério da Educação de Belo Horizonte (Minas Gerais) realizada entre 1983-84. Na próxima aula voltaremos nesse tema para revisitar esse material pesquisado. Por ora, é importante destacar que embora esse mapeamento tenha sido de extrema importância, não houve uma sistematização dos debates da época. Isso ocorreu apenas em 1986 com a realização do encontro intitulado “O negro e a educação”, organizado pela Fundação Chagas em que sistematizou tanto as relexões sobre Educação e Raça, como as experiências educativas comunitárias. Tal evento solicitado pelo Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra do Estado de São Paulo contou com o inanciamento da Fundação Ford. Esse 16 De acordo com registros, a primeira vez em que o 20 de novembro foi mencionado como o dia da Consciência Negra, data de 1971. (GONÇALVES;SILVA, 2000, p.15) 103 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais encontro se caracterizou não apenas como uma ação acadêmica, também se revelou enquanto um espaço político e de trocas de experiências educativas (SILVA; GONÇALVES, 2000). O encontro desdobrou-se na edição 63 de Cadernos de Pesquisa, publicado em novembro de 1987. Essa publicação se tornou um marco na relexão sobre educação e o negro, assim como uma referência para as pesquisas acadêmicas. Souza (2001) destaca a sua importância e inluência para as discussões da Constituinte de 1988, para a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases e Educação Nacional (Lei 9394/96), também norteou a revisão dos livros didáticos e, por im, se materializou na formulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). 2. O Caderno 63 e os PCNs: da critica à ação A revista Cadernos de Pesquisa, criada no ano de 1971, tinha por objetivo discutir temas variados relacionados à educação e à pesquisa. Contudo, o primeiro artigo publicado sobre educação e raça é datado de 1979. O artigo A criança negra e a educação seguia mais uma linha de denúncia do racismo na escola por parte da militância negra. Souza (2001) traça os principais pontos abordados nessa publicação: 1. A discriminação da população negra; 2. Os processos perversos e sutis na diferenciação de crianças negras e brancas. Aqui o termo criança, segundo o artigo, apresenta uma conotação racial. Criança não inclui crianças negras; 3. As denúncias contra a valorização da cultura e história dos brancos e a estigmatização do negro, sempre ligado a um imaginário depreciativo e essencialista (o negro do futebol, do samba e dos vícios); 4. Os relatos num tom de crítica a uma ideologia escolar que ensinava as crianças negras a serem obedientes e submissas; 5. Os malefícios psíquicos que os testes de QI causavam às crianças negras, sobretudo quando se serviam deles para justiicar o discurso essencializado que negros são bons apenas para os trabalhos físicos; 6. O sofrimento vivido pelas meninas nas escolas com relação a texturas de seus cabelos; 7. A ausência nos currículos da História da África. Nesse ponto, Souza (2001) destaca a importância dada, por parte dos militantes e pesquisadores, à inclusão de determinados conteúdos que favoreçam o fortalecimento da autoestima das crianças negras; 8. A falta de brinquedos e propagandas que possam combater uma imagem negativa do negro. Essa convertida, entre outros, nas ofensas raciais presenciadas nas escolas. É interessante notar o quanto dessas reivindicações ainda hoje são reclamadas pelo movimento negro e demais organizações sociais. 104 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Após a publicação desse número, durante muitos anos, o tema deixou de estar presente no Caderno. A quebra do silêncio, entretanto, se deu em 1985 com a pesquisadora Regina Pahim, ao iniciar uma discussão sobre a representação dos índios no contexto escolar. Dentro desse debate, esta estudiosa se voltou para os seguintes eixos: o currículo, o livro didático, o professor e o aluno. Contudo, embora a população negra não tenha sido o foco da discussão, abria-se para a ideia de uma educação e/ou sociedade multicultural. No ano seguinte, Regina Pahim lançou um artigo que priorizava a questão racial e, com isso, sistematizou dados e relexões sobre a situação da educação da população negra no país. A autora criticou a falta de estudos sobre essa realidade. A partir daí houve uma articulação para a criação do Seminário O negro e a Educação, em 1986, e o lançamento do Caderno 63, no ano seguinte. Dessa forma, se por um lado os debates nacionais sobre educação e racismo estavam na pauta do dia entre os militantes negros, por outro, a sistematização e as pesquisas nessa área ainda eram escassas. Souza nos aponta cinco grandes temas que organizaram e nortearam os debates do Seminário, a saber: diagnósticos, socialização das crianças e construção de identidades, currículo, livro didático e relatos de experiências educacionais (SOUZA, 2001, p.47). Esses temas recuperavam, de maneira mais organizada, as interpretações de 1979. Assim, tendo em vista esses eixos temáticos, alguns pontos foram explicitados, sob a forma de denúncia e constatações diagnósticas: 1. A diiculdade em mapear as condições sócio-educativas dessa parcela da população; 2. A crítica aos censos que, naquele momento, esbarravam-se na diiculdade teórica em deinir quem era mestiço, pardo ou moreno; 3. A necessidade em reavaliar os critérios e conceitos de cor e raça, bem como repensar as categorias que norteiam a estrutura racial da sociedade brasileira; 4. Enfrentar a situação de exclusão da população negra no mercado de trabalho e nos bancos escolares; 5. Denúncias com relação: a) à instituição escolar - que silencia e mantém o racismo; b) ao livro didático - que nega a história do negro; c) e, por im, às posturas de alguns professores - que não contribuem para o im da discriminação racial; 6. Análises sobre a questão da construção da identidade negra que se esbarra cotidianamente nos ideais hegemônicos brancos. Esses expressos na mídia e nos livros didáticos considerados opressores à formação de uma identidade negra; 7. Criticas ao despreparo de professores. Nesse Seminário, Fúlvia Rosemberg17 desempenhou um papel importante nessa discussão ao apresentar dados sobre o baixo desempenho escolar de crianças e jovens negros, o alto índice de evasão escolar e as diferenças entre negros e brancos na conclusão dos ciclos escolares. Ao vincular a precariedade escolar à pobreza, Rosenberg (1991) airma a presença de uma 17 Apresentou o artigo Raça e educação inicial. In Cadernos de Pesquisa, nº 77. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, maio de 1991. 105 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais segregação espacial e a necessidade de cotas para negros em escolas, consideradas de melhor qualidade e fora dos espaços pobres urbanos. Vale destacar autores como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle18 que apresentaram um estudo comparativo entre a escolarização de negros e brancos. Segundo Souza (2001) esses e outros autores contribuíram para o debate sobre educação e raça que se irmava no Brasil. No entanto, ao pensar o impacto do Caderno sobre a formação de um pensamento antirracista ica evidente que o número 63 estabeleceu um marco, contudo, não criou um ritmo contínuo. Dos 42 artigos sobre o tema, 30 encontravam-se no número 63, conforme elucida Souza (2001). Durante os anos de 1980 e 90 observa-se uma efervescência e acirramento nos debates públicos dando visibilidade à temática racial na educação. Nesse momento, os militantes e alguns intelectuais se voltaram para a denúncia, diagnóstico e sistematização de uma proposta discursiva antirracista. Proposta que entrelaçava, ainda que de forma embrionária, os debates públicos, as reivindicações políticas com as pesquisas acadêmicas. Isso se desdobrou, como veremos, em ações pontuais e em conquistas perceptíveis em ins dos anos 80 e na década de 90. É possível dizer que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) se caracterizaram como uma proposta curricular que pretendia aglutinar os debates, assim como expressar o novo contexto internacional que se abria. 2.1 Os PCNs A temática educação e raça ganhou espaço em inúmeras esferas, direcionando alguns rumos e mudanças importantes. Na década de 1980, os encontros, publicações e debates conferiram uma participação do movimento negro em algumas decisões políticas, proporcionando-lhe certas conquistas nas suas pautas reivindicatórias. Portanto, observa-se um movimento que passa pela denúncia e diagnóstico às ações concretas. As lutas da militância negra levaram à organização da Convenção Nacional, realizada em 1986, em Brasília. Dessa Convenção, os inúmeros participantes e representantes negros elaboraram um documento com propostas antirracistas encaminhadas à Assembleia Nacional Constituinte. Esse documento foi incorporado, ainda que parcialmente, ao novo texto constitucional de 1988, no qual prescrevia o racismo como “crime inaiançável e imprescritível”. Outras conquistas podem ser citadas como de suma importância e com ecos no campo da educação: a proibição da discriminação no trabalho, na educação e religiosa; a demarcação de territórios quilombolas; e o reconhecimento, na Constituição Federal de 1988, da pluralidade étnica, racial e cultural do Brasil (SILVÉRIO, 1999). Essa ação do movimento negro também pôde ser sentida no processo de elaboração das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) no ano de 1996. O recorte de raça, embora incorporado de maneira secundária, passa a ser reconhecido na medida em que o texto legal 18 Apresentaram o artigo Raça e oportunidades educacionais no Brasil. In: Cadernos de Pesquisa, nº 73. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, maio de 1990. 106 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo inscreve a importância das diferentes contribuições culturais e étnicas na formação do povo brasileiro. Abria-se uma brecha para as futuras intervenções legais e com isso o surgimento da Lei 10.639/03. Tal reconhecimento trouxe uma importante conquista, qual seja, a inclusão da Pluralidade Cultural como um dos Temas Transversais19 na criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Houve nesse momento um esforço por parte do Estado brasileiro em agregar essas demandas sociais nas suas agendas políticas. Se, ao inal da década de 1980, o Brasil passava pelo processo de redemocratização, em meados dos anos 1990, o contexto mundial favoreceu sobremaneira o diálogo e a abertura política para as reivindicações do movimento negro. É possível apontar dois acontecimentos internacionais que marcaram os rumos da educação no Brasil. O primeiro, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, organizada em 1990 pelas seguintes agências internacionais: Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial. Essa conferência resultou na assinatura e comprometimento de vários países, como o Brasil, com a Declaração Mundial de Educação para Todos. O ponto central desse documento consistia na valorização de ações governamentais, voltadas à promoção de uma educação como um direito de todos. Já o segundo, a Declaração de Nova Delhi de 1993 reuniu representantes de alguns países para irmarem um acordo que estabelecia metas a serem atingidas na área da educação. O Brasil foi um dos países que participaram desse encontro e se comprometeu, assim, em oferecer uma educação básica e de qualidade para todos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) surgiram nesse cenário como uma alternativa possível para reestruturar o currículo nacional, atualizando a estrutura obsoleta do ensino do país e agregando, simultaneamente, as novas demandas internas e externas. A reforma do ensino a partir dos PCNs contou com a introdução da noção de transversalidade20 como o recurso metodológico e/ou didático a ser utilizado. Todavia, esse instrumento didático suscita, ainda hoje, uma série de críticas, sobretudo no que tange ao seu caráter generalizante. Nessas críticas aponta-se que as questões étnico-raciais são trabalhadas de forma abrangente e supericial, pois se encontram em várias áreas do conhecimento e, ao mesmo tempo, em nenhuma (ANSELMO, 2003, apud, SOUZA, 2001, p. 57). Assim, se por um lado, as análises sobre os PCNs levavam em consideração a sua importância nas lutas em favor da justiça social e respeito à diversidade étnico-racial; por outro, as críticas apontavam as contradições veriicáveis nos textos dos PCNs e na lógica dos Temas Transversais. 19 Os Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares são: Ética, Meio Ambiente, Saúde, Pluralidade Cultural e Orientação sexual. Esses temas reletem, segundo a linha dos PCNs, os conceitos de cidadania e democracia. 20 A transversalidade constitui um princípio teórico que orienta as metodologias de ensino e/ou as propostas curriculares. Esse princípio, muito difundido hoje em vários países, surgiu no início do século XX e se apresenta, grosso modo, como uma forma de integrar o currículo, minimizando as fronteiras que separam as disciplinas. O conceito de interdisciplinaridade também se aproxima do princípio da transversalidade. 107 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais De acordo com Souza (2001), os PCNs, ao defenderem a pluralidade cultural como um tema transversal, esbarram em certas ambiguidades: como a defesa de uma visão homogeneizante de um povo brasileiro e, ao mesmo tempo, a airmação da presença de diferentes contribuições para a formação do Brasil. Seguindo os argumentos de Souza (2001), nos parece que os Parâmetros tentam abordar todos os assuntos, todas as culturas e povos como se isso denotasse pluralidade. Essa lógica parece subentender a noção de igualdade (“todos somos iguais”), o que leva aos pressupostos do mito da democracia racial. As lideranças negras, ao compreenderem essas e outras lacunas presentes nos PCNs, se mobilizaram em prol de políticas mais reais e especíicas de combate ao racismo. Dessa forma, a Lei 10.639/03 se conigurou como resultado dessa inlexão discursiva e da mobilização social. 3. A lei 10639/03: (re) atualizando o olhar “Eu não concordo com essa lei, porque veio de repente de cima para baixo. E agora temos que cumpri-la” (depoimento de uma professora) Caro(a) cursista, o que trata a lei 10.639? Qual o seu signiicado histórico, político e educacional? Por que será que na época, em 2003, educadores e a sociedade em geral não a reconheceram (ou ainda não a reconhecem)? Por que foi considerada, tal como evidencia o depoimento da epígrafe, um ato autoritário? Aqui vamos tentar discutir um pouco o seu signiicado, lembrando que todo o panorama histórico que antecedeu a sua promulgação, e exposto acima, já nos dá muitas pistas para pensá-la sob outros ângulos. A Lei 10.639, implementada em 2003, traduz de modo geral a prescrição da Constituição Federal de 1988 que deine a educação como um direito social. Essa deinição constitucional se desdobra na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96), no Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172 de 2001) e em outras legislações complementares, como a Lei 10.639. Assim, tanto essa Lei como as suas regulamentações (resolução CNE/CP 01/2004 e parecer CNE/CP 03/2004) formam uma política educacional de Estado, atualizando e garantindo o direito à educação. Além disso, a 10.639 - que tornou obrigatória a inclusão dos temas História da África e Culturas Afro-brasileiras no currículo das escolas públicas e privadas do país – se inscreve como uma política pública de natureza diferente, isto é, se insere no conjunto de políticas de ações airmativas voltadas à promoção da igualdade racial. Essa Lei faz parte de um longo processo histórico, marcado por lutas sociais lideradas pelo movimento negro brasileiro. É possível dizer que a promulgação da Lei 10.639 está intimamente ligada à própria trajetória de luta do movimento negro e às suas reivindicações por acesso à educação e à qualidade do ensino, localizadas, originalmente, em ins do século XIX. 108 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo As reivindicações e as estratégias discursivas para uma educação antirracista foram se remodelando ao longo da história, como já analisamos. Desde ins dos anos de 1990, o discurso das lideranças negras começou a mudar ao se deparar com duas constatações: A primeira, o caráter universalista das políticas de Estado para a educação, materializadas, em certa medida, nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Essas políticas universalistas inauguradas pós-ditadura militar eram concebidas pelas lideranças negras como dissociadas das lutas contra o racismo. Já a segunda, se conigurou muito mais em inspiração nas lutas dos negros norte-americanos em prol das políticas de ações airmativas. A partir dessa inlexão discursiva, as lideranças negras passaram a requerer políticas mais concretas. A ampla mobilização do movimento negro e outros movimentos sociais, somada aos acordos internacionais irmados em 2001, - por ocasião da 3º Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada em Durban, África do Sul - , trouxeram mudanças signiicativas para o país. Dentre os compromissos assumidos em Durban, as políticas de ação airmativa se constituíram como uma das metas para o Estado brasileiro. Nesse sentido, o aumento da pressão popular21 por medidas de reparação social e os acordos irmados em Durban levaram a alteração da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) sancionando a Lei 10.639 no ano de 200322. No entanto, essa Lei ao ser promulgada impactou alguns segmentos sociais presos ao imaginário criado pelo mito da democracia racial e, com isso, trouxe à tona velhos temas para a discussão pública e certa resistência à efetivação da Lei. A polêmica em torno da Lei expressa a natureza política e social das questões raciais no Brasil. É importante frisar, como nos mostra Gomes (2009), que o racismo não está circunscrito ao campo da educação, também se manifesta e se ramiica por toda a estrutura social. Daí a importância, de acordo com essa autora, da efetivação da Lei 10.639, na medida em que essa se caracteriza como um mecanismo propulsor as ações e programas voltados à diversidade étnico-racial dentro de uma perspectiva mais ampla. Essa airmação nos leva a compreender a lógica que sustenta essa Lei, caracterizada não apenas pelas suas diretrizes curriculares, mas pelo seu potencial em estimular outras e novas políticas públicas de direitos sociais. Dessa forma, a implementação da Lei 10.639 constitui algo complexo, pois incide sobre uma estrutura maior e excludente. Pensar a Lei signiica transpor os limites da educação e compreender a dinâmica das relações raciais no Brasil. Contudo, os limites dessa Lei têm se mostrado na resistência em institucionalizá-la por parte de educadores, gestores, governos municipais e estaduais, bem como na falta de ampliação 21 Cabe lembrar como marco da mobilização popular a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e Vida, realizada em Brasília no dia 20 de novembro de 1995, organizado pelo movimento negro e contou com 30 mil manifestantes. 22 A Deputada Esther Grossi e o Deputado Ben-Hur Ferreira foram autores da Lei 10.639/03. 109 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais dos programas federais. Algumas pesquisas mostram23 que após mais de 10 anos de sua promulgação, a Lei apresenta pouco enraizamento nas escolas, nos currículos e em outras esferas do sistema educacional. A sua efetivação tem se dado por meio de iniciativas individuais de educadores sensíveis ao tema. O mapeamento realizado pelas pesquisas As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2000, em nível nacional, e pela Racismo e Educação: a Lei 10639 na rede pública do Estado de São Paulo, no âmbito estadual, nos revela os desaios enfrentados nesses últimos anos no processo de construção de uma educação para as relações étnico-raciais. Ambas as pesquisas concluíram, dentro de seus universos analisados, que os trabalhos pedagógicos voltados às relações étnico-raciais nas escolas são realizados a partir de ações individuais. Não se veriicou nesses estudos um grau relevante (em termos numéricos) de uma institucionalização dos parâmetros curriculares propostos pela 10.639. A institucionalização da Lei implica enfrentar o racismo institucional que diiculta a incorporação de suas diretrizes no “Plano Nacional de implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais, nos Planos de implementação das Leis Estaduais e Municipais, na Gestão Escolar, nas práticas pedagógicas, nos currículos e na construção do Projeto Político Pedagógico” (GOMES, 2013:41). Assim, é possível airmar que, se por um lado, a implementação da Lei 10.639/03 se caracteriza como um marco para a educação no Brasil, isto porque criou um espaço nas diretrizes curriculares para o tratamento da questão racial e étnica; por outro, as leis por mais progressistas que possam se apresentar apenas ganham concretude e eicácia quando a sociedade assim se mobiliza para tal. SAIBA MAIS SANTOS, Salles A. Educação Antirracista: caminhos abertos pela Lei 10639/03. Secad, MEC, 2005. http://unesdoc.unesco. org/images/0014/001432/143283por.pdf Site: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf Música: Racismo é burrice de Gabriel, o pensador. Filme: Mesa redonda na USP, 2013 para debater os 10 anos da Lei 10.639/03: https://www.youtube.com/watch?v=8WbLZOPcXUs Lugar: Centro de Estudo Africanos – CEA, USP, São Paulo/SP. 23 BERNARDO, Teresinha. (Coord.). Racismo e Educação: a Lei 10639 na rede publica do Estado de São Paulo, desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário da PUC/SP, coord. pela profa. dra. Teresinha Bernardo e inanciado pela FAPESP (previsão de publicação em 2015). GOMES, Nilma Nilo. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desaios para a política educacional e indagações para a pesquisa. In: DOSSIÊ RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Educ. rev. no.47 Curitiba Jan./Mar. 2013. Disponível: http:// dx.doi.org/10.1590/S0104-40602013000100003 Acesso 29/09/2014 110 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo 4. Considerações finais Nesse percurso, constatamos que não obstante o longo caminho de construção de uma política educacional voltada à diversidade étnico-racial, ainda a realidade nos mostra quão precisamos caminhar no sentido de consolidá-la. Isso exige ampliar e manter os debates públicos com as organizações sociais, movimento negro e sociedade civil a im de discutir os rumos da educação nacional, enfatizando a importância do lugar ocupado pela educação para as relações étnico-raciais ou uma educação antirracista. Também signiica pensar como o racismo brasileiro se mostra estruturado na nossa sociedade, criando barreiras institucionais para mudanças reais. Assim, pensá-lo, discuti-lo e descortiná-lo é a nossa tarefa, nosso dever. Referências bibliográficas GOMES, Nilma Lino. Limites e possibilidades da implementação da Lei 10.639/03 no contexto das Políticas Públicas. In: Caminhos Convergentes: Estado e Sociedade na Superação das Desigualdades raciais no Brasil. (Orgs.) Paula, Marilene de; Heringer, Rosana , Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll Saiftung & Actionaid, 2009. __________, As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desaios para a política educacional e indagações para a pesquisa. In: DOSSIÊ RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Educ. rev. no.47 Curitiba Jan./Mar. 2013. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602013000100003, acesso 29/09/2014. SANTOS, Salles A. Educação Antirracista: caminhos abertos pela Lei 10639/03. Secad, MEC, 2005. http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001432/143283por.pdf, acesso em 15/12/2014. SILVA, Petronilha B. G.; GONÇALVES, Luis A. Oliveira. Movimento Negro e Educação. 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Cavalleiro, Eliane, São Paulo: Contexto, 2001. 111 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 9 - Experiências positivas de promoção da igualdade racial Objetivos: Apontar algumas iniciativas educativas voltadas à questão étnico-racial. Olá cursist@s! Hoje vamos trabalhar, de forma breve, com algumas iniciativas pedagógicas realizadas durante os últimos anos e que se mostraram importantes para a discussão sobre uma educação étnico-racial, antes e depois da implementação da Lei. São experiências educativas que apontam para o tratamento da diversidade sob vários ângulos e natureza institucional. 1. Um breve panorama Poucos estudos se debruçaram em mapear e analisar de forma sistematizada as experiências educativas de promoção à igualdade racial. Atualmente, os bancos de teses e dissertações apresentam trabalhos de pesquisas pontuais e especíicas sobre uma determinada localidade, uma ou outra escola e algumas práticas pedagógicas. Isso torna difícil compreender um universo mais macro. Diante dessa diiculdade analítica, optamos em apresentar dois recortes sobre as práticas pedagógicas que abordam a temática racial. O primeiro, está relacionado às experiências de educação comunitária, mapeadas na década de 1980 pelo Instituto de Recursos Humanos João Pinheiro. Vale ressaltar que a chamada educação comunitária surge no bojo das discussões sobre a educação popular dos anos de 1950 e 1960 com as ideias difundidas por Paulo Freire. De modo geral, pode-se dizer que a educação popular trazia como mote a valorização dos saberes comunitários para os processos de ensino e aprendizagem24. O segundo recorte, compreende as ações informais de Organizações Não-Governamentais que desde os anos de 1990 vem alimentando e incentivando essa rede de práticas pedagógicas atentas ao tema étnico-racial. Essas práticas, contudo, revelam a premissa que nos cerca, qual seja, tratam de iniciativas individuais. É importante destacar que muitas entidades antirracistas buscam criar canais de diálogo entre escolas, poder público e comunidades negras. Essa atuação promove resultados importantes na difusão, e visibilidade dos pressupostos da Lei, como também resulta em intervenções políticas signiicativas. 24 PEREIRA, Dulcineia de Fátima F.; PEREIRA, Eduardo T. Revisitando a Historia da Educação Popular no Brasil. Revista Histedbr on line, Campinas, n.40, p.72-89, dez. 2010, disponível em: http://www.histedbr. fe.unicamp.br/revista/edicoes/40/art05_40.pdf 112 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Nessa linha, traremos a atuação do Centro de Estudos das Relações e Trabalho e Desigualdades (CEERT), particularmente analisaremos alguns elementos do Prêmio Educar para a Igualdade Racial. A proposta aqui é reletir de que maneira essas experiências contribuíram para a formação de um repertório didático ligado à diversidade racial e à valorização das culturas afro-brasileiras. Veriica-se uma rede educativa tecida em torno da escola que mobiliza alguns educadores e gestores para discutir o tema racial. Essa rede tem se mostrado, atualmente, como um importante ator no processo de efetivação da Lei 10.639/03. 1.1 Comunidades negras e educação: Segundo Silva; Gonçalves (2000), as experiências de educação comunitária com o enfoque étnico-racial se alastraram pelo país, sobretudo, a partir da década de 1980. No entanto, a maioria se concentrou nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador. Na primeira, as propostas educativas envolviam as escolas de samba, concebidas como lugares negros. Cabe frisar que nesse momento, essas comunidades ligadas à cultura negra e/ou às religiões de matrizes africanas eram consideradas como territórios negros ou lugares negros25. A categoria lugar analisada por alguns autores diferencia, a grosso modo, o lugar espacial e social demarcado pelo racismo daquele espaço onde os indivíduos se encontram, se reconhecem e compartilham saberes e experiências com os seus pares. (RATTS, 2011). Daí Ratts (2011) ressaltar a distinção entre lugares negros e lugares de negro. O primeiro ligado ao espaço de cultura e identidade; o segundo, aos espaços essencializados e naturalizados pela segregacão racial do espaço. O universo cultural e étnico cumpre uma função importante na demarcação simbólica dos lugares negros, enfatizado pela ideia de comunidade. Esses lugares criam um sentimento de pertença comunitária e étnica, na medida em que se encontra ali uma memória e um conjunto de saberes compartilhados. Essa relação com a comunidade negra, com o seu território, se impõe desde os anos de 1980 como uma forma de busca e construção de identidades. Em Salvador, essas experiências comunitárias foram realizadas na relação com os grupos de Afoxé Ilê Aiyê, Olodum e com os terreiros de Candomblé. O projeto sobre a pedagogia nagô26 parece ter tido grande visibilidade no II Encontro de Educação Comunitária, realizado na década de 1980, pois tratava da apresentação de uma escola criada no interior de um terreiro de candomblé. 25 O conceito de território negro é utilizado aqui como lugar identitário, histórico e relacional. Ver, SODRÉ, M. 1998 26 A palavra nagô consiste em um termo genérico para referir-se aos antigos africanos provenientes das regiões de línguas iorubanas (localizados, grosso modo, no sudoeste da Nigéria, Benin e Togo). No Brasil, com o tráico negreiro e a escravização de populações africanas, o termo ganhou outros signiicados se atrelando a vários grupos étnicos, cujas proximidades linguísticas formaram as chamadas nações de candomblé. O culto nagô compreende uma estrutura litúrgica, mítica e uma cosmogonia particular. 113 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Essa escola surgiu dentro do terreiro Ilê Axé Opó Afonjá no ano de 1978 com o nome de Obá Biyi27. O seu objetivo inicial consistia em atender crianças entre seis meses a cinco anos, ilhos dos membros da comunidade de terreiro. O Ilê Axé Opó Afonjá, localizado no bairro de São Gonçalo em Salvador, na Bahia, conta com um extenso terreno que abriga mais de 50 famílias descendentes de antigos escravos. A sua importância histórica foi reconhecida com o seu tombamento em 2000, pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A partir de 1986 a escola se tornou de 1º a 4º série do Ensino Fundamental, com o nome de Eugênia Anna dos Santos, em homenagem a primeira yalorixá da comunidade (mãe Aninha). Escola Eugênia Anna dos Santos, Salvador Fonte:http://meuatelierdeideias.blogspot.com.br/2009_11_01_archive.html, acesso em 18/05/2015. Com a atuação e esforços da sacerdotisa Stella de Azevedo Santos (mãe Stella), a escola foi municipalizada em 1998 e atende hoje mais de 350 crianças. O currículo dessa escola se estrutura a partir dos conteúdos formais e dos valores e saberes da cultura religiosa desenvolvidos com o projeto Ire Ayó (caminho da alegria), implantado em 1999. Essa escola parece ser uma das primeiras iniciativas que trabalha a diversidade de uma forma diferenciada (SANTOS; LUZ, 2007). O fato de estar inserida no espaço religioso cria pontos de partida diferenciados para a aprendizagem. Isto porque a extensão da área e a coniguração do espaço arquitetônico proporcionam outras maneiras de apropriação do saber. De acordo com Santos (2011), as crianças se sentem livres e não presas a um contexto disciplinador que algumas escolas apresentam. Além disso, a convivência com o espaço sagrado e o conjunto de saberes que isso implica, como: o respeito aos mais velhos, ao espaço, à oralidade, entre outros, cria um sentimento de pertencimento étnico-cultural. 27 Contou como fundadores: professora America, mestre Didi entre outros. 114 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Souza (2001), ao questionar certas orientações presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais que folclorizam o tratamento da pluralidade, enfatiza a importância da vivência. Assim, podemos dizer, tal como a autora destacou, que na escola Eugenia Anna dos Santos não se aprende, mas vive-se a pluralidade. 1.2 Ceert: uma Organizações Não-Governamental antirracista As Organizações Não Governamentais (ONGs) surgiram na década de 1970 dentro de um contexto marcado por tensões políticas e sociais. Inicialmente, as ONGs estavam associadas aos movimentos sociais, contudo aos poucos foram se deslocando e irmando suas próprias estratégias e delineando, com isso, o seu campo de atuação. No Brasil, as entidades que trabalham com a questão racial formam um universo grande e pouco pesquisado. De modo que o critério utilizado aqui para a seleção do Centro de Estudos das Relações e Trabalho e Desigualdades (CEERT) encontra-se no fato de que essa entidade desenvolve o projeto Prêmio Educar para a Igualdade Racial. Esse se apresenta hoje como uma ação importante no processo de implementação da Lei 10.639/03. O Prêmio além de criar um grande acervo de iniciativas pedagógicas que tratam do tema racial, também se desdobrou em projetos de monitoramento nas escolas onde tiveram iniciativas inscritas e não premiadas. Essa ação traz elementos para compreender o grau de implementação da Lei nas redes públicas de ensino do país. O CEERT foi fundado em 1990 por Maria Aparecida Bento e Hedio Silva Jr28 e tem como objetivo compreender o mercado de trabalho e as desigualdades raciais vividas pelos trabalhadores negros. No entanto, dentre as várias ações e projetos desenvolvidos pela entidade, muitas estão voltadas à área de educação. O Prêmio Educar para a Igualdade Racial surgiu no ano de 2002 com o objetivo de recolher experiências educativas em escolas de todas as regiões brasileiras no âmbito da Educação Infantil, Fundamental I e II. Na primeira edição, o Prêmio contou com mais de 2000 inscrições, oferecendo uma amostra da relação entre os educadores, gestores com a questão racial. O Ministério da Educação (MEC) reconheceu o Prêmio como uma das ações mais importantes na promoção da igualdade étnico-racial realizadas pela sociedade civil. O banco de experiências educativas recolhidas nesses 12 anos de existência conta com mais de 2.300 práticas pedagógicas acessíveis à consulta. O Prêmio, em sua sexta edição em 2012, selecionou e premiou iniciativas divididas em duas categorias: educadores e escolas. E em todas as edições disponibiliza ao público o acesso ao conjunto de práticas inscritas. Esse acervo virtual se tornou em um espaço de trocas de experiências entre educadores de diversas e diferentes regiões do Brasil. 28 Maria Aparecida Bento, é doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP e Dr. Hédio Silva Jr. é doutor em Direito pela PUC/SP. 115 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Cartaz do 6° prêmio, 2012 Fonte: http://gppgrcmr.blogspot.com.br/p/legislacoes.html, acesso em 18/05/2015. Na pesquisa “As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003”, coordenada por Nilma Gomes29, um dos caminhos metodológicos para criar uma amostragem do universo analisado (todas as regiões brasileiras) foi a consulta do acervo do Prêmio. Durante a pesquisa, no entanto, observou-se que muitas iniciativas premiadas não deram continuidade. Entretanto, Gomes (2013), embora aponte o caráter descontínuo dessas iniciativas demonstradas na trajetória das iniciativas premiadas, também as considera como transformadoras. Desse modo, o Prêmio Educar para a Diversidade traz contribuições para superação do racismo, na medida em que reconhece, incentiva e valoriza as práticas pedagógicas ligadas à educação étnico-racial. SAIBA MAIS Práticas Pedagógicas para a Igualdade Racial na Educação Infantil. BENTO, Maria A. (Org.), São Paulo: CEERT, 2011. Disponível em: http://www.ceert.org.br/arquivos/Praticas-Pedagogicas-para-aIgualdade-Racial-na-Educacao-Infantil.pdf Site: www.ceert.org.br Música: Afoxé Oyá Alaxé – Quilombo Axé (Dia de Negro) disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZXzKnf_nMJg Filme: Alguém falou de racismo, Daniel Caetano, 2012/Brasil. Lugar: Terreiro de Candomblé Ilê Un Zambi, Caraguatuba/SP. 29 GOMES, Nilma L. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desaios para a política educacional e indagações para a pesquisa. In: DOSSIÊ RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Educ. rev. no.47 Curitiba Jan./Mar. 2013. Disponível: http:// dx.doi.org/10.1590/S0104-40602013000100003 Acesso 29/09/2014 116 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo 2. Considerações finais Tanto as experiências educativas comunitárias como as ligadas às Organizações Não Governamentais nos oferecem um campo de possibilidades para a aprendizagem e o trabalho com a diversidade. Mas por que as estruturas formais de ensino resistem a essa rede educativa alternativa que nos cerca? Por que muitos educadores e gestores têm diiculdade em dialogar com esses espaços onde a questão da identidade negra está fortemente colocada? São indagações que nos remete a pensar sobre um imaginário criado que estigmatiza e impede os sujeitos de experimentarem aquilo que forma a sua humanidade: a diversidade. Referências bibliográficas BENTO, Maria A. (Org.). Práticas Pedagógicas para a Igualdade Racial na Educação Infantil. São Paulo: CEERT, 2011. Disponível em: http://www.ceert.org.br/arquivos/Praticas-Pedagogicas-para-a-Igualdade-Racial-na-Educacao-Infantil.pdf GOMES, Nilma. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desaios para a política educacional e indagações para a pesquisa. In: DOSSIÊ RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, Educ. rev. no.47 Curitiba Jan./Mar. 2013. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S010440602013000100003 Acesso 29/09/2014. __________. Educação Étnico-cultural. In: Diversidade na Educação: relexões e experiências. Brasília: Secretaria de Educação Media e Tecnológica, 2003, p. 67-76. RATTS, Alex. Os lugares da gente negra: raça, gênero e espaço no pensamento de Beatriz Lélia Gonzáles. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais, 2011, Disponível:http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1308498461_ARQUIVO_Ratts_ Os_lugares_da_gente_negra.pdf SANTOS, M. Deoscoredes; LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui – Obá Biyi: a educação pluricultural africano-brasileira. Salvador: Fala Nagô, 2007. SILVA, Petronilha B. G.; GONÇALVES, Luis A. Oliveira. Movimento Negro e Educação. Set/ ou/Nov/dez 2000, nº15. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n15/n15a09.pdf, acesso 15 de novembro de 2014. SODRÉ, M. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. 117 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Unidade 10 - Para uma educação antirracista Objetivos: Analisar o conceito de multiculturalismo; pensar o encontro do multiculturalismo e diversidade no Brasil; reletir essas categorias na educação; apontar a presença ou não das diferenças entre a proposta da Educação Étnico-racial e antirracista com os apontamentos trazidos pelos conceitos de diversidade e multiculturalismo. Olá cursist@s! Hoje chegamos ao inal desse primeiro módulo em que discutimos sobre o racismo e as suas diversas manifestações, sobretudo, no âmbito da educação. Analisamos as experiências educativas ligadas à diversidade, debatemos nos nossos fóruns questões raciais presentes no cotidiano escolar. Para essa última aula propomos reletir aspectos daquilo que denominamos Educação Antirracista ou Educação Étnico-racial. Para tanto, nos colocamos as seguintes questões: O que deine uma Educação para as relações étnico-raciais? Como surgiu essa ideia ou proposta? Educação Étnico-racial é a mesma coisa que Educação Antirracista? Em que constitui essa proposta de educação? O que muda? As respostas para essas e outras indagações suscitarão revisitar termos como, multiculturalismo e diversidade. Termos ou bandeiras políticas? 1. Diversidade e Multiculturalismo Pensar em uma educação antirracista implica compreender alguns signiicados dos termos multiculturalismo e diversidade, pois são esses conceitos que respaldaram as reivindicações políticas do movimento negro e norteiam as propostas para uma educação étnico-racial. O conceito de multiculturalismo surge no contexto de globalização30, marcado pelo crescimento dos intercâmbios culturais e conlitos étnicos, raciais e culturais que daí emergiram, sobretudo durante o século XX. O paradoxo desse contexto se caracterizava pelo duplo movimento: por um lado, a homogeneização cultural que se apresentava como resultado da circulação e massiicação dos meios de comunicação, bem como da produção de modelos padronizados de consumo. Por outro, os grupos minoritários criticando a diluição de suas identidades e levantando a bandeira do reconhecimento das diferenças culturais. O mundo se apresentava na segunda metade do século XX como multicultural com espaços sociais que aglutinavam, devido às diásporas (coloniais ou contemporâneas), diferentes grupos étnicos. O desaio estava posto: reconhecer as diferenças que cercam o nosso espaço e marcam a nossa contemporaneidade. 30 Não há consenso sobre a origem da globalização, alguns autores identiicam-na no século XV-XVI com as expansões marítimas, outros no século XIX, a partir da expansão imperialista, e ainda há outros autores que apontam os anos de 1980 como marco, dentro do contexto de implementação das primeiras medidas neoliberais (quebra de fronteiras nacionais, circulação das mercadorias em escala mundial e Estado não interventor). 118 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo A origem do multiculturalismo encontra-se no interior dos movimentos sociais, sobretudo negros, que empreendiam suas lutas em favor dos grupos minoritários. Gonçalves; Silva (2003) localizam o começo do multiculturalismo já em ins do século XIX nos Estados Unidos nas lutas por direitos civis. Assim, ao se tornar o mote das mobilizações sociais negras, o racismo e as discriminações raciais passaram a ser denunciados. No entanto, o multiculturalismo não icou circunscrito aos embates políticos. Suas propostas adentraram-se no campo da educação e das artes. Na verdade, o próprio conceito surgiu nas universidades dos EUA na década de 1960, com os professores afro-americanos preocupados com os processos de segregação e exclusão das “minorias”31 étnicas. Suas ideias foram difundidas nas escolas, igrejas e associações negras norte-americanas. A partir desses primeiros estudos, novas pesquisas sobre práticas pedagógicas e metodologias sobre educação dentro de uma perspectiva multicultural surgiram ao longo do século XX (SILVA; BRANDIM, 2008). IMPORTANTE Para efeitos didáticos, podemos dividir o multiculturalismo em quatro fases: Fins do século XIX – ainda não estruturado dentro de padrões conceituais, mas já inserido nas lutas políticas norte americanas; Anos 1960 – surge enquanto conceito nas universidades americanas; Anos 1970 - ganha força ao se vincular as mobilizações populares e às pesquisas na área da educação; Décadas de 1980/1990 – inluenciado pelos Estudos Culturais, que valoriza as diferenças e pluralidade culturais. Nesse momento, há uma associação entre educação escolar e cultura. Nessa fase também se amplia o campo de pesquisa sobre o tema dentro das universidades. É nesse período que o multiculturalismo chega ao Brasil. PARA REFLETIR O que propõem, de fato, o multiculturalismo? E para a educação? 31 O termo minorias pode ser encontrado nos estudos jurídicos e nas ciências sociais, ambos apresentam linhas teóricas e debates diferentes. Assim, o termo pode suscitar muitos signiicados. Mas, grosso modo, podemos dizer que minorias são grupos socialmente oprimidos e que estão submetidos a vários tipos de violência e exclusão. Cabe frisar, que minoria não está ligado ao número de indivíduos que formam esses grupos. Ao contrário, muitas vezes esses grupos são numericamente maiores em relação a outros. O termo está ligado a ideia de uma distribuição desigual do poder entre grupos sociais que coexistem em uma mesma sociedade. Ver: BAYLÃO, 2001. 119 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais É possível elencar os seguintes elementos que estruturam o campo teórico e político do multiculturalismo, quais sejam: a. É uma estratégia política de reconhecimento e representatividade da diversidade cultural; b. Está associado às lutas dos grupos oprimidos e excluídos socialmente; c. Faz uma revisão dos conceitos de democracia e cidadania, reletindo-os na sua relação com as políticas de identidades culturais e com as novas formas de representatividade que essas identidades exigem; d. Desaia o discurso hegemônico sobre cultura e educação; e. Defende a diversidade cultural silenciada pelo poder dominante; f. Tornou-se um compromisso social, político e cultural com a diversidade; g. Tem como fundamento o reconhecimento e o direito à diferença. Tais elementos são traduzidos para a educação da seguinte forma: a) crítica aos saberes escolares impregnados de uma visão etnocêntrica e de estereótipos; b) pensa a educação a partir de uma ruptura com um saber escolar que privilegia os grupos dominantes; c) crítica à pratica pedagógica e às orientações curriculares estruturadas pela ideologia do monoculturalismo, que apresenta e universaliza apenas uma cultura, a ocidental; d) ênfase no reconhecimento da diversidade; e) trabalha as seguintes questões: machismo, racismo, preconceitos, discriminações, entre outros; f) procura reorganizar o currículo e as práticas pedagógicas para tratar a diversidade. Contudo, cabe frisar que os estudos sobre o multiculturalismo apresentam diversas linhas e posições. No momento é importante icarmos atentos para os desdobramentos da proposta multicultural para a educação hoje. Isso porque têm assumido, nos últimos anos, caminhos discursivos diferentes das propostas originais. No Brasil, parece que a ideia de diversidade cultural, eixo da política multicultural, se reconigurou nos moldes do mito da democracia racial. Veremos que tudo é diversidade no discurso. Mas, o que acontece de fato? 1.1 Multiculturalismo no Brasil A partir desse breve panorama é possível compreender a conotação política do multiculturalismo. No Brasil, a sua entrada se deu no contexto de pressão internacional por políticas de combate ao racismo e à discriminação. A UNESCO e as suas agências (UNICEF, BID etc.) organizaram encontros e compromissos políticos para uma educação voltada à cidadania e respeito à diferença, como já analisamos. Nesses encontros, o Brasil se comprometeu em cumprir determinadas metas para a educação. É nesse momento histórico que surge os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que trouxeram uma proposta curricular pensada nas linhas do multiculturalismo e dentro das demandas sociais trazidas pela redemocratização do país. 120 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo Nessas “novas” orientações se reconhecia a diferença e a pluralidade cultural, bem como chamava a atenção para a convivência harmoniosa entre os diversos grupos. Silva; Brandim, (2008) argumentam que o multiculturalismo ao ser introduzido no Brasil ganhou diferentes conotações. Dentro do movimento negro o tema era analisado, como relatou Petronilha B. G. Silva32, “não como um tema transversal ou central, mas como forma de existência” (SILVA; BRANDIM, 2008). Estava colocado no calor das lutas políticas contra o racismo e as discriminações raciais. Esse foi o ponto de partida para o multiculturalismo ganhar terreno tanto nas pesquisas sobre educação dentro das universidades brasileiras, como nas políticas educacionais de Estado. Havia na época uma interposição entre política e identidade. Assim, na década de 1980 a luta pelo reconhecimento da diferença trouxe para o Brasil o multiculturalismo como referência política para pensar as identidades negadas ao longo da nossa história colonial. Contudo, alguns intelectuais e/ou lideranças negras alertaram para as suas armadilhas, especialmente a sua adoção pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Petronilha B. G. Silva, ao relatar a sua participação nesses debates, chamava a atenção na época para os perigos que o tema transversal intitulado Pluralidade Cultural corria, caso não tivesse associado às discussões maiores sobre direitos sociais (SILVA; BRANDIM, 2008). Esse alerta foi identiicado nos anos 1990 na medida em que se percebia as suas armadilhas: tornou-se uma generalização e desvinculado das lutas sociais. A partir daí o multiculturalismo deixa de fazer parte do vocabulário dos movimentos sociais e negros. A ideia em centralizar mais na questão racial, no combate ao racismo e na promoção da diversidade trouxe, seja para o campo político como acadêmico, a proposta de uma Educação Étnico-racial, antirracista e voltada à diversidade cultural. Essas nomenclaturas passaram a dominar os discursos pedagógicos, sobretudo a partir da promulgação da Lei 10.639/03. 1.2 Educação antirracista: para uma educação étnico-racial Certa vez uma professora disse em um curso de formação: “- Eu na minha aula falo de todas as culturas: índio, africano, preto, amarelo, todos eles. Porque todos nós somos iguais e a diversidade é uma necessidade, não é mesmo?” Essa fala revela uma linha que me parece conigurar hoje muitos dos discursos pedagógicos sobre multiculturalismo e/ou diversidade cultural. Alguns equívocos são cometidos em prol da igualdade ou diversidade. A apologia à diversidade como sinônimo de igualdade e reconhecimento das diferenças demonstram os rumos seguidos pelo multiculturalismo. Isso também nos dá pistas sobre a diiculdade da sociedade brasileira e, em especial, da escola, em lidar com a diversidade e equidade. 32 Petronilha B. G. Silva, profa.. Dra.emérita da Universidade de São Carlos/SP. integrou como relatora à comissão que elaborou o parecer CNE/CP n.º 3/2004. O documento regulamenta a lei 10.639/2003 e estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos termos do Artigo 26 da Lei 9394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Também participou dos debates sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais como militante do movimento negro e pesquisadora. É uma importante referência para as discussões sobre Educação Étnico-racial hoje no Brasil. 121 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais O primeiro aspecto que podemos considerar nesse discurso trata-se da diiculdade em compreender que apresentar ou “falar de todas as culturas” não é o suiciente para mudar comportamentos e atitudes sociais. Mesmo porque muitas vezes apresentar as culturas podem levar a comparações e a julgamentos. Muitos educadores se mostram presos a suas referências culturais (também sociais e raciais) e demonstram preconceitos com relação ao quadro de culturas apresentadas aos alunos. NA PRÁTICA Nesse ponto vale o exemplo: Em uma visita a uma escola, havia um projeto sendo realizado sobre a diversidade cultural. Nesse projeto, existiam algumas sociedades africanas e indígenas. Um aluno em sala disse: “- a nossa sociedade é mais evoluída, não é professora?” A professora respondeu: “- Por que você está falando isso?” – “Porque essas sociedades nem têm prédios, indústrias e cidades. Na verdade, nem usam roupas.” A professora teve muita diiculdade em lidar com a pergunta, pois a questão demonstrava que algumas representações negativas estavam enraizadas no imaginário daqueles alunos. Eles compararam a sociedade em que eles vivem com àquelas apresentadas. Como compararam? A partir de padrões de sua sociedade e do ponto de vista da sua classe, gênero e raça. Estabeleceram escalas de classiicação entre superior e inferior e estigmatizaram as sociedades analisadas, já que lhes foram mostrados um recorte dessas sociedades, no caso, as sociedades tradicionais. O feitiço se voltou contra o feiticeiro: ao invés desse projeto se tornar em uma importante estratégia pedagógica de combate às discriminações e preconceitos, acabou reforçando-os. Essa diiculdade da professora em trabalhar com a diversidade se deve ao fato do entendimento que se tem da pluralidade cultural. Assim, diversidade ou pluralidades não signiicam apenas reconhecer as diferenças, mas pensá-la e apresentá-la a partir de um olhar crítico. No projeto da escola, talvez tenha faltado à professora debater a questão do poder, das desigualdades e questionar os nossos próprios valores e padrões ao olhar essas sociedades. 122 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo IMPORTANTE Nessa perspectiva, Gomes (2003) deine diversidade como as diferenças que percebemos empiricamente e as relações de poder que envolvem essas diferenças. Assim, diversidade não signiica, como demonstra Gomes (2003), apenas o reconhecimento do “outro”, mas a relação entre eu e o outro. Uma relação que sempre parte de comparações de modelos sociais, ideológicos, de beleza, raça, gênero e de poder. As comparações nos mostram diferenças e similitudes, isso constitui o jogo da diversidade. Isso não signiica que essas diferenças não podem nos trazer estranhamento e alições. No entanto, esse choque com o outro deve mobilizar uma revisão de nossos padrões, visões e da nossa própria história. A educação para as relações étnico-raciais e antirracista se estrutura a partir dessa concepção de diversidade, na medida em que compreende a importância desse tema para a promoção da igualdade racial. A luta contra o racismo na educação signiica conferir novos olhares sobre as nossas relações étnico-raciais, bem como atribuir outros signiicados à diversidade. SAIBA MAIS LMOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. Artigo: SILVÉRIO, Valter R. O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora. Revista USP, São Paulo, n. 42, p.44-55, agosto de 1999. Disponível: http://www.usp.br/revistausp/42/04-valter.pdf http://www.usp.br/revistausp/42/04-valter.pdf Site: http://www.cpisp.org.br/indios/html/uf.aspx?ID=SP Música: Paratodos, Chico Buarque. Lugar: Escola da aldeia Tekoá Pyau - Comunidade indígena de Jaraguá/SP. 123 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais 2. Considerações finais Ao analisarmos o conceito de multiculturalismo e seus impactos no Brasil, percebemos que existem ainda muitos desaios a enfrentar para a construção de uma educação democrática e de qualidade. A vigilância do uso de conceitos, das nossas práticas pedagógicas e das nossas atitudes deve ser constante. Isso porque o racismo está presente em várias esferas da sociedade. No ambiente escolar, é preciso icarmos atentos, pois as sutilezas do “racismo cordial” se manifestam em diferentes formas. A resistência na efetivação da Lei 10.639 se constitui como um modo operante do racismo institucional. Contudo, essa Lei aponta para a construção de uma educação antirracista voltada à promoção da igualdade racial e diversidade. Suas diretrizes nos mostram quão importante é pensar em projetos e ações educativas voltadas ao reconhecimento e valorização das diferenças, uma Educação para as Relações Étnico-raciais. Sabemos que a educação não pode resolver todos os problemas que envolvem as desigualdades raciais e o tratamento da diversidade, mas se constitui como espaço privilegiado onde se pode discuti-las. Referências bibliográficas BAYLÃO, Raul D. S. Um conceito operacional de minorias. Revista Fund. Escola Superior do Ministério Publico do Distrito Federal e Territórios. Brasília: ano V, 17, p. 209-233, jan/jun 2001. Disponível: http://www.escolamp.org.br/arquivos/17_09.pdf Acesso 05/01/2015. GOMES, Nilma Nino. Educação Étnico-cultural. In: Diversidade na Educação: relexões e experiências. Brasília: Secretaria de Educação Media e Tecnológica, 2003, p. 67-76. GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas. In: Educação e Pesquisa, São Paulo Jan./June 2003 vol. 29 no.1. Disponível: http://dx.doi.org/10.1590/S151797022003000100009 Acesso 03/01/2015. MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. SILVA, Maria José A. da & BRANDIM, Maria Rejane Lima. Multiculturalismo e Educação: em defesa da diversidade cultural. Diversa, Ano I, jan.-jun, 2008, p. 51-66 124 DISCIPLINA 4 METODOLOGIA CIENTÍFICA E PROJETO DE INTERVENÇAO Autora: Andréa Barbosa Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais 1. Pesquisa qualitativa e construção do conhecimento científica Uma primeira questão que se coloca quando usamos o termo qualitativo em relação à pesquisa é que este termo teve uma história marcada por uma oposição ao termo quantitativo. Essa é uma questão que tem seu auge no século XIX e princípios do século XX por ser neste período um momento em que questões epistemológicas importantes estavam situadas nessa dicotomia. Hoje, no entanto, podemos perceber que esta dicotomia faz pouco sentido se não for apenas para dimensionar uma ênfase no tipo dos dados coletados. Quantidade e qualidade estão intimamente relacionadas e a discussão deveria, segundo André (1995), se centrar em “questões mais consistentes como: A natureza do conhecimento cientíico, e sua função social, o processo de produção e o uso desse conhecimento; critérios para avaliação do trabalho cientíico; critérios para seleção e apresentação de dados qualitativos; métodos e procedimentos de análise, entre outros.” (André, 1995:16) 1.1. O que é uma pesquisa qualitativa A pesquisa qualitativa, especialmente em Ciências Humanas e Sociais, é aquela que privilegia os processos sociais através do estudo de situações de pequena escala das ações sociais individuais e grupais e utilizando uma variedade de técnicas de pesquisa com o intuito de construir uma análise em profundidade dos dados empíricos a partir de escolhas metodológicas e teóricas especíicas. Valoriza-se a criatividade e a imaginação no sentido da articulação de elementos conhecidos em uma nova coniguração analítica. Não está em jogo a invenção de algo novo, mas uma análise que traga questões interessantes para compreendermos de outra maneira algo já “conhecido”, ou para enfrentarmos um contexto desaiador e desconhecido. O que é valorizado numa pesquisa qualitativa é, portanto a originalidade das articulações de referências teóricas e dados empíricos em torno do problema proposto. As escolhas metodológicas se referem menos às técnicas empregadas (que podem ser várias numa mesma pesquisa: entrevista, observação participante, grupo focal, etc.), do que as escolhas teóricas que orientam a produção do conhecimento cientíico. Neste sentido, a metodologia de qualquer pesquisa, está relacionada ao conhecimento crítico dos caminhos da produção de conhecimento cientíico (Martins, 2004). Ela questiona os seus limites e suas possibilidades, e tem consciência, de que qualquer conhecimento produzido está fundamentalmente atrelado aos valores, sejam eles culturais ou sociais de quem o produz. Esta é uma concepção que está posta desde Max Weber (2006) quando o autor empreende uma relexão sobre a objetividade nas Ciências Sociais. Todo o argumento de Weber foi construído a partir de uma discussão com o positivismo que pressupunha um conhecimento isento de valores e construído de forma 126 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I apartada da vida, ou, melhor, acima da vida que o produzia. Weber estava preocupado em discutir os princípios epistemológicos da construção de conhecimento nas Ciências Sociais. Diante da construção de fronteiras entre as ciências “hard”, ou seja as ciências da natureza, e as ciências “soft”, ou seja as Ciências Sociais, era preciso valorizar a forma de trabalhar do cientista social. Os próprios termos coloquiais “hard” e “soft” (em inglês, “duras” e “suaves”) já trazem em si o tom da disputa por legitimidade nesse processo de construção de fronteiras. Contudo, deixando de lado esta dicotomia, entendamos que o conhecimento cientíico, de forma geral, se conigura como um discurso intelectual diante da realidade que pressupõe certos procedimentos para sua construção, veriicação e sistematização. No caso das pesquisas sociais, esse processo, que inclui a coleta de dados e sua análise, é fundamentalmente constituído por concepção de mundo social e o lugar que o homem ocupa dentro dele. Um dado que torna esse processo de construção bastante especíico é o fato da possibilidade de diálogo com os objetos de pesquisa. Essa possibilidade pressupõe que esses objetos se tornem sujeitos da pesquisa tanto quanto os próprios pesquisadores. Desta perspectiva, podemos ser afetados pela pesquisa tanto quanto nossos objetos/sujeitos (Saada, 2005). Esta é uma questão importante a qual voltaremos mais adiante quando tratarmos dos métodos e técnicas. Os fenômenos sociais que estudamos são complexos, não podemos separá-los em condições controladas para a pesquisa. Os fenômenos sociais estão sempre em luxo no processo da vida social e para captá-los para uma pesquisa cientíica temos que ter a consciência de que ela sempre será um momento dentro de um processo. E a pesquisa mesma também deve ser encarada como um processo em si no qual existem vários sujeitos em interação. Portanto a pesquisa é uma relação, e como tal depende de como os elementos envolvidos nessa relação estão posicionados e interagem. Neste sentido, nas pesquisas sociais a neutralidade não existe e a objetividade é sempre relativa (Becker, 1977). Tudo vai depender do ponto de vista adotado, ou seja, do lugar de onde olhamos para a realidade que intentamos compreender. Não há pesquisa sem ponto de vista, sem posicionamento. O olhar e o ouvir do pesquisador são bem treinados pelas disciplinas que o orientam, e as questões que ele formula estão fundamentalmente ligadas às questões teóricas e metodológicas que o guiam (Cardoso de Oliveira, 2006). Como pesquisadores somos como nossos interlocutores sujeitos históricos e políticos. A objetividade relativa está justamente, como nos diz Roberto da Matta (1991), na situação de que as análises são sempre parciais posto que são sempre inluenciadas pelas posição, biograia, educação, interesses e preconceitos do pesquisador. Esse fato não inviabiliza a produção de conhecimento, mas torna esse processo mais complexo. Não existe, se entendermos desta forma a qualidade da construção do conhecimento nas Ciências Sociais, “a verdade” dos fatos ou mesmo das informações oferecidas pelos sujeitos pesquisados. Não se busca “a verdade”, mas “as verdades” (no plural) que são produzidas no processo de construção das relações da pesquisa que tem um objetivo e um problema especíico a tratar, formulados pelo pesquisador, mas que só se realizam a partir do encontro com os interlocutores. Estamos sempre lidando com interpretações, nos diria Geertz (1978), as de primeira mão e de segunda e terceira mãos como as dos pesquisadores. É nesse encontro, ou mesmo confronto, que é possível construir o conhecimento cientíico. 127 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Voltando a Weber e Becker, não existe, portanto, um conhecimento objetivo em si, mas um conhecimento construído a partir de questões teóricas e mesmo políticas que são propostas e articuladas por pesquisadores às realidades que desejam compreender, elas mesmas povoadas de sujeitos que ao se tornarem interlocutores da pesquisa também a ela agregarão outras questões ou pelo menos um ponto de vista crítico em relação às hipóteses dos pesquisadores. Portanto, a relação de pesquisa que se estabelece entre pesquisadores e sujeitos estudados são também relações sociais e políticas. Elas fazem parte da realidade social onde a pesquisa está inserida. Nesse sentido, é a consciência dessa coniguração da produção do conhecimento cientíico e o cuidado ao lidar com seus limites e potencialidades que oferecem a possibilidade de densidade e consistência para os resultados de uma pesquisa. 1.2. As várias faces de uma pesquisa. Objetos, sujeitos e perspectivas. Interessante perceber que quando se ouve falar de pesquisa qualitativa fazemos uma relação imediata a uma pesquisa onde há o contato direto com as pessoas do contexto pesquisado. A pesquisa qualitativa também lida com a produção material desses sujeitos (documentos, fotos, objetos...) e sobre ou relacionada à eles (documentos oiciais, artigos de jornais e revistas...). No contato direto estão em jogo alguns sentidos privilegiados como o olhar e o ouvir. O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2006) já nos brindou com uma bela relexão sobre como o conhecimento construído pelo antropólogo se baseia na percepção e no pensamento e que neste processo três momentos (não necessariamente sucessivos) são fundamentais: a percepção dada pela mobilização do ver e do ouvir e o pensamento mais explícito no ato de escrever. Para o autor não há pensamento sem a percepção, portanto as duas esferas - a dos sentidos e a da razão - estão intrinsecamente relacionadas. PARA REFLETIR Permito-me aqui um parêntese para reletirmos sobre a questão dos sentidos, já que nas ciências eles são sempre provocadores de incertezas e historicamente esta foi uma das razões de disputa epistemológica entre o quantitativo e o qualitativo. O que seria a subjetividade presente nos sentidos? A visão é um sentido dos mais privilegiados em nossa sociedade. Acreditamos porque vemos (como na expressão “Ver para crer”). Conhecemos porque vemos (como na expressão “sei porque vi”). É tão privilegiado que acabamos por superpor potencialidades distintas que estão presentes nesse ato de ver. A visão é uma potencialidade corporal, isiológica, dada pela plena função do olho e seu aparato visual. Os olhos capturam a luz que incide sobre a retina que é formada por células fotorreceptoras. Essas células captam a luz e transformam essa energia luminosa em impulsos nervosos que são levados pelo nervo óptico para o cérebro, para que lá sejam interpretados. Aqui acaba o ato da visão, entretanto é também aqui que começa o ato 128 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I do olhar. O olhar diferentemente do ver é uma interpretação e, com tal é um ato intencional carregado de signiicados e valores. Enquanto a visão é um ato físico, o olhar é um ato cultural. Claro que na vida da maioria de nós esses dois atos ocorrem simultaneamente e por isso temos diiculdade de perceber o olhar como algo que é aprendido ao longo de nossos processos de socialização. Mas se atentarmos para algumas outras experiências culturais e mesmo individuais, podemos perceber essa sutil diferença e essa consciência pode nos ajudar muito a perceber a qualidade epistemológica da pesquisa qualitativa que lança mão dos recursos da observação visual e da escuta. Trago como exemplo o caso do paciente Virgil relatado no livro “Um Antropólogo em Marte”, de Oliver Sacks (1995). O conhecido neurologista norte americano icou famoso justamente por narrar os casos clínicos que acompanhava de forma simples e num linguajar acessível para os não médicos. Neste relato, Sacks nos dá a conhecer a história de Virgil, homem que havia icado cego quando criança devido a uma enfermidade e havia construído sua relação com o mundo a partir de outros sentidos privilegiados como o tato (ele era massagista) e a audição. Virgil, com idade em torno de 40 anos, recebe o incentivo de uma namorada para fazer uma cirurgia para recobrar a visão. Virgil é convencido e após fazer a cirurgia é declarado novamente um vidente. Sucesso total dizem os exames físicos. Ele volta para casa e, segundo o autor, volta a um mundo completamente desconhecido e não necessariamente melhor. De fato, Virgil teve muita diiculdade para se adaptar à sua realidade de vidente já que, ao longo de sua vida, não havia sido devidamente treinado para tal. Ele tinha seus animais de estimação, mas aprendera a reconhecê-los pelo cheiro, audição e tato não pela visão. A agregação de mais esse elemento o desnorteava e confundia. Só se tranquilizava ao tocá-los. Sua casa como espaço de deslocamento tinha se tornado um labirinto no qual ele tinha muita diiculdade em reconhecer os trajetos da sala até a cozinha ou do quarto até o banheiro. Para não se perder ele precisava fechar os olhos. Sem falar na sensação de enlouquecimento que assistir a um jogo de futebol na televisão provocava. O excesso de cores e movimento na tela retirava dele a atenção ao jogo e sua opção novamente era fechar os olhos. Passado algum tempo o corpo de Virgil se recusou a ver. Sacks nos relata como era contraditório o fato dos exames físicos estarem em perfeita ordem, mas o rapaz relatar que não via. O que percebemos com o riquíssimo relato de Sacks é que o que Virgil não conseguia era olhar. Ou seja, ele via, mas não conseguia atribuir signiicado ao que via, pois não tinha sido treinado para isso. Alguns diriam que ele não havia sido alfabetizado visualmente. Essa é uma analogia interessante se pensarmos que é fácil para nós percebermos que a linguagem escrita é para nós um aprendizado e, no entanto, o mesmo não acontece com o aprendizado em relação à linguagem visual. Em nossa sociedade temos a tendência a naturalizar nossa relação com o ato de olhar. O olhar, portanto, não é algo natural. Há modos diferentes de olhar o mundo. Diferentes modos de olhar que são marcados pela trajetória daquele que olha: sua origem cultural, sua posição social, os valores construídos no seu processo de socialização, suas preocupações de pesquisa. Feita essa airmação podemos voltar a Cardoso de Oliveira e concordar como ele que tanto o olhar (o autor utiliza a termo ver, mas com o sentido que construímos aqui como olhar) como o ouvir dos Cientistas Sociais são bem treinados pela disciplina e é dessa articulação da soisticação do olhar possibilitada pelas relexões teóricas e metodológicas que partem os projetos de pesquisa. Nenhum pesquisador vê somente. Ele olha. E olha com toda a sua bagagem de vida e de formação acadêmica. Roberto Cardoso de Oliveira também parece perceber um risco maior no ouvir do que no olhar ao questionar a técnica da entrevista como uma forma de “neutralizar” ou “subjugar” o 129 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais interlocutor. O Antropólogo defende um trabalho mais dialógico, uma interlocução de fato, onde perguntas e questionamentos são operados por todos os sujeitos envolvidos (2006: 21). Julgamentos de técnicas de pesquisa especíicas à parte, o que esta colocação nos traz de interessante é perceber que o que está em jogo numa pesquisa é um encontro de subjetividades. Tanto o pesquisador, como o interlocutor constroem um espaço comum de comunicação a partir das questões e hipóteses levadas pelo pesquisador e das questões e hipóteses dos interlocutores e, é nesse lugar que a pesquisa acontece e a construção de conhecimento de processa. Portanto, percebemos que tanto pesquisador como pesquisados são sujeitos do processo de pesquisa. E precisam ser dimensionados como tal para que o conhecimento construído tenha uma consistência dialógica e não unilateral o que para uma perspectiva qualitativa de pesquisa seria um equívoco. Equívoco, pois tenderia a levar para a pesquisa uma ideia que sem o encontro/confronto com a realidade pesquisada seria apenas a sua airmação. Estaríamos apenas procurando conirmar ideias anteriormente concebidas e não realizando uma pesquisa. Uma pesquisa sempre se inicia com questões. Perguntas que serão respondidas, ou pelo menos tentaremos elaborar algumas possibilidades de respostas a partir desse encontro/confronto com os interlocutores e sua realidade. IMPORTANTE Neste sentido, as várias faces de uma pesquisa são os vários termos da relação sobre a qual a pesquisa é construída: quem são os sujeitos da pesquisa? Qual o contexto em que estes sujeitos estão inseridos? Qual a pergunta que norteia a pesquisa? Quais os pressupostos teóricos e metodológicos que a sustentam? Este conjunto de elementos deine uma perspectiva para pesquisa, lhe fornece um ponto de vista, uma identidade. Deinidos estes parâmetros, podemos escolher quais são as técnicas de pesquisa mais apropriadas para empreender o trabalho. Uma das características da pesquisa qualitativa também é sua heterogeneidade em relação às técnicas empregadas. Como os fenômenos que estudamos são complexos dado ao próprio contexto e perspectiva de pesquisa qualitativa, as técnicas precisam ser mobilizadas para dar conta dessa complexidade. Não é possível isolar elementos distintos e controlá-los em condições normais de temperatura e pressão como numa pesquisa em química. Nosso contexto de pesquisa exige uma multiplicidade que abordagens para lidar com a multiplicidade de relações e questões que a realidade social apresenta. Essa forma de empreender a pesquisa acaba por trazer para o momento da análise um material muito heterogêneo: entrevistas, anotações de campo, fotograias, documentos pessoais, documentos institucionais, jornais... na verdade é impossível prever a gama total de materiais que coletamos numa pesquisa qualitativa. A partir desse material é que recortamos os dados relevantes para enfrentar a questão que nos propomos pesquisar. É aqui que vislumbramos uma outra qualidade desse tipo de pesquisa que a socióloga Heloisa Martins denomina de uma “heterodoxia no momento da análise dos dados”: 130 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I “A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que, por sua vez, depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva. [...] A intuição aqui mencionada não é um dom, mas um resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador.” (Martins, 2006:3) A autora menciona a intuição como parte fundamental do trabalho de pesquisa, eu acrescentaria também a imaginação e a criatividade. Assim como ressaltado por ela, não está em questão aqui nenhum tipo de dom ou esoterismo, mas um árduo trabalho construído pelo pesquisador. Portanto, a análise desses dados é um ato de verdadeiro artesanato intelectual para usar uma expressão de WRIGHT MILLS (2009). Desta forma, o pesquisador precisa estar atento ao próprio trabalho, os riscos e as potencialidades que ele apresenta e constantemente efetivar um recuo crítico para realizar uma relexão lúcida. 1.3. Ética na pesquisa Proximidade entre pesquisado e pesquisador é uma questão ética que se coloca em pesquisas qualitativas que interagem diretamente com pessoas como a etnograia. O risco da proximidade é menos o de induzir a um resultado previsto ou “viciado” do que de não perceber o quanto a pesquisa pode ter consequências para a vida das pessoas que se colocam à disposição para a interlocução. Toda pesquisa introduz um elemento novo no contexto em que se coloca pela intromissão se pessoas portadoras de um saber, um estilo de vida e mesmo culturas diferentes (ou mesmo semelhantes, mas com propósitos bem especíicos). Como já salientamos no início do texto, as relações que construímos na pesquisa com nossos interlocutores são relações que estão inseridas no mundo social, portanto são relações sociais e políticas, e como tal também carregam consigo relações de poder. A defesa pelo uso da expressão interlocutor ao invés de informante como na antropologia moderna é mais do que um jogo de palavras, é uma declaração de uma posição política e epistemológica. Informantes são objetos de perguntas. Interlocutores são sujeitos do diálogo, portanto também formulam hipóteses e perguntas, também tem projetos e, o mais importante, suas vidas existem para além da pesquisa. Alguns perigos éticos se apresentam numa relação de pesquisa: Um desses perigos seria o do pesquisador se colocar acima dos outros no sentido de colocar os seus objetivos de pesquisa e a sua própria pesquisa como a coisa mais importante do processo. E eles são importantes de fato, contudo, numa relação dialógica há outras dimensões igualmente importantes. Esse perigo advém de um resquício da ciência enquanto discurso ideológico herdeiro do positivismo. Nesse registro, a ciência se coloca como superior “(...) a tudo o mais: o saber cientíico é “o” conhecimento partir do qual todos os outros são articulados, entendidos e explicados.” (Martins,2004:5). Como pesquisadores devemos ter claro na construção do nosso lugar nessa relação que o interlocutor também é um sujeito que constrói conhecimento. Não é nossa tarefa “guiar” ou mesmo julgar nossos interlocutores. A relação de pesquisa precisa tomá-los como sujeitos autônomos e agentes na construção de sua própria realidade. No encontro de hipóteses e saberes que uma pesquisa provoca o movimento é o de perceber o que eclode dessa mútua provocação. 131 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Pensar os interlocutores como sujeitos é pensá-los como agentes. Eles não precisam que os cientistas falem por eles ou que pensem por eles, mas que falem com eles e pensem com eles. David Macdougall nos coloca uma questão muito interessante em relação à realização de ilmes num contexto etnográico. De quem é a história? (1997) Para o autor a história a ser contada é aquela possibilitada pelo encontro de subjetividades. Neste sentido, a pesquisa é um campo intersubjetivo e é essa realidade que precisamos enfrentar para construir um conhecimento mais dialógico (Macdougall, 1999). Se de um lado temos o perigo de esquecer que a pesquisa lida com pessoas e que elas são sujeitas, por outro, existe também o perigo da mimese do pesquisador em relação aos seus interlocutores. A proximidade construída ao longo de um processo de pesquisa pode redundar numa postura militante da causa dos sujeitos envolvidos. Neste caso, o perigo é em olharmos para o contexto pesquisado não com a persistência intelectual para descortinar as possibilidades de construção da realidade, mas de olharmos para essa realidade como gostaríamos que ela fosse. O papel do pesquisador e cientista social é desdobrar a realidade nas suas várias camadas de complexidade e não achatá-las a uma ideologia existente. É preciso perceber a existência dessas possibilidades e perceber o seu uso no jogo político da trama social. Nosso trabalho não é facilitar e simpliicar o mundo, mas perceber, desnudar e interpretar sua complexidade. Isso não quer dizer que o pesquisador é imparcial ou neutro. Como também já dissemos anteriormente, essa objetividade é sempre relativa. Quando pesquisamos não deixamos nossos valores e projetos políticos numa sacola em casa. O que quero dizer é que não ter consciência desses limites e enfrentá-los como desaio na pesquisa seria, no mínimo, uma grande ingenuidade. O debate sobre a neutralidade e avaliação ética na construção do ilme etnográico trazido por Debora Diniz em relação à sua experiência de realização do ilme “Uma vida Severina” é bastante relevante e nos ajuda a pensar a questão da ética na pesquisa já que a realização de um ilme etnográico é também parte da construção de um processo de pesquisa. “Assumir que não há neutralidade na construção da narrativa é airmar que toda narrativa representa um ponto de vista sobre os fenômenos sociais, sendo, portanto, uma narrativa ética e estética sobre o que é ilmado. Mas isso não signiica abdicar de compromissos acadêmicos. O reconhecimento do caráter iccional da neutralidade não pressupõe seu abandono como uma postura ética durante o trabalho de campo.” (Diniz, 2008: 419) A autora analisa criticamente a submissão de pesquisas qualitativas das Ciências Sociais aos comitês de ética que utilizam critérios oriundos de contextos de pesquisas biomédicas. Nessa situação, o projeto deve ser submetido e precisa colher junto aos interlocutores o termo de consentimento livre e esclarecido. Isso quer dizer que todas as pessoas entrevistadas ou que participarão como interlocutoras da pesquisa precisam ser apresentadas ao projeto, suas hipóteses e questões e assinar um termo de consentimento. Uma pesquisa qualitativa, qualquer que seja a técnica empregada, precisa ser apresentada para os interlocutores, não há possibilidade ética de realizar uma pesquisa na obscuridade. Contudo, uma pesquisa qualitativa por se expor o tempo todo ao confronto com a realidade que deseja compreender tem uma forma mais plástica e mais 132 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I variante o que pode ocasionar muitas vezes mudanças nas próprias hipóteses e objetivos do projeto em seu curso. Nesse sentido, o que teria sido consentido no início pelos interlocutores perderia a validade. Essas mudanças no decorrer da pesquisa não são problemas éticos, muito pelo contrario essas reconstruções são a riqueza do processo etnográico, por exemplo. A ética permanece presente e atuante na medida em que os interlocutores são considerados ao longo do processo como sujeitos e, portanto participantes do processo que é construído. Voltemos ao exemplo de Débora Diniz sobre seu ilme/pesquisa “Uma história de Severina”. O projeto se iniciara como uma pesquisa sobre mulheres que abortaram durante o período de três meses em que vigorou uma liminar que permitia o aborto à mulheres grávidas de bebês com anencefalia. A anencefalia é uma má-formação fetal incompatível com a vida extrauterina, o que torna a sobrevida do feto de horas ou dias após o parto. No processo da pesquisa encontraram Severina que estava internada no hospital para realizar um aborto no dia em que o STF revogou a liminar. A história de vida de Severina permitiria acompanhar o impacto de uma decisão do STF na vida de mulheres comuns e dependentes da legalidade do Estado. “Foi assim que de uma etnograia das mulheres que abortaram, o ilme passou a ser um estudo de caso, uma mudança metodológica não prevista no desenho inicial do projeto de pesquisa”. (idem: 421) Em relação à conduta ética, segundo a autora, o primeiro e mais delicado desaio foi o de garantir que Severina seria continuamente informada sobre o roteiro do ilme, seu signiicado político e possível impacto midiático. Pelo contexto político da época em que foi realizado o risco de espetacularização da história de Severina era eminente. Severina também representava a vulnerabilidade-padrão dos estudos em ética em pesquisa: mulher, analfabeta, pobre, nordestina e agricultora. Além de ser um momento de vida muito dramático e sofrido para ela. “Para além desses descritores sociológicos da desigualdade de gênero, classe e região, não se podia ignorar que ela estava à espera de uma decisão do Estado para interromper a gestação e a equipe de ilmagens poderia representar 'a parcela da sociedade que decidiria sua vida'. Apesar de nenhum pesquisador ser capaz de atestar a eicácia simbólica do processo de consentimento informado em pesquisas de altíssimo risco e, de fato, estudos pós consentimento contestam a tese de que seja possível informar plenamente os participantes em condição de extrema vulnerabilidade, alguns procedimentos foram adotados para fortalecer o processo decisório de Severina e seu marido, Rosivaldo a equipe adotou a seguinte estratégia para o termo de consentimento: (1) não o resumiu a um ato mecânico de apresentação do projeto de pesquisa isto é, ao instante inicial das ilmagens, onde foi apresentada a ideia e grande parte dos acontecimentos ainda estavam por ocorrer; e (2) convidou uma entidade do universo simbólico e sociológico de Severina para garantir que as condições do termo inal de consentimento livre e esclarecido pós-edição do ilme estavam claras e de acordo com os interesses de Severina. A adoção desses procedimentos impunha um risco à inalização do projeto: havia a possibilidade de mudança de opinião pelo casal no instante inal da edição do ilme. Apesar de representar uma ameaça à inalização do ilme, este era também um pacto que redescrevia os termos tradicionais da pesquisa cientíica – as diretoras do ilme não deteriam o poder absoluto de construção da narrativa, mas esse seria compartilhado com os protagonistas do ilme”. (idem: 422) 133 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais O desaio neste caso era dos mais intensos. A pesquisa deveria proceder de forma delicada, consciente e o tempo todo em parceria com os interlocutores. Um dos momentos mais dramáticos, talvez tenha sido a escolha na edição de inserir a imagem do ilho natimorto. “A opção foi exibir o feto durante quatro segundos, sem qualquer imagem detalhada na má-formação craniana. A opção de não o exibir não correspondia aos rumos de construção do roteiro e soaria uma censura moral à crueldade do real. No entanto, é Severina quem decide mostrar uma foto em detalhes do ilho natimorto, a imagem que guardava em sua casa. Por ser a imagem que ela tornou pública sobre o ilho, essa foi uma cena adicionada à edição inal e é onde melhor se visualiza o ilho em um caixão branco.” (idem:422) Claro que o exemplo vivido por Debora Diniz é um exemplo extremo em relação aos riscos mais comuns enfrentados pelas pesquisas qualitativas, mas por isso mesmo se torna muito pertinente para reletirmos sobre a questão central de uma pesquisa qualitativa que lida com interlocutores: o pesquisador precisa estar consciente e lidar o tempo todo com o fato de que a vida das pessoas com as quais lida continua para além das pesquisas e por isso o ato de realizar uma pesquisa precisa ser um ato responsável. 134 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I 2.1. A etnografia O método etnográico tornou-se bastante utilizado por várias disciplinas das Ciências Humanas e Sociais. Hoje, estudos de cunho etnográico são comuns, mas de forma bastante sucinta, a etnograia é um método qualitativo desenvolvido pela Antropologia nos ins do século XIX e consolidado no início do século XX Intensiva = detalhada e densa a partir de uma com o trabalho de Bronislaw Malinovski nas Ilhas Trombriand no imersão. pacíico Ocidental (1978). Numa etnograia são utilizadas diversas técnicas que se complementam a im de construir uma descrição Extensiva = de longa duração. de um grupo ou sociedade a partir de uma observação intensiva e extensiva do contexto a ser conhecido. “Não existe uma única resposta quando se pergunta como se faz uma etnograia ou um trabalho de campo”, nos diria Evans-Prtichard (1978). De Malinowski até hoje a etnograia já teve várias críticas e reavaliações, mas a leitura do pioneiro de sua sistematização ainda vale a pena. Malinowski em “Os Argonautas do Pacíico Ocidental” inicia seu texto (tanto o método como o estilo de texto oriundo dele são denominados de etnograia) convidando o leitor a imaginar com ele o lugar onde a pesquisa se desenvolveu. Nessa descrição o autor enfatiza o estranhamento em relação à língua e aos costumes e já introduz um primeiro elemento do método: o estranhamento. O estranhamento em relação ao outro pode ser um movimento inevitável quando o pesquisador se insere em um contexto etnográico cuja alteridade é radical ou pode ser um recurso construído no processo de pesquisa quando o pesquisador se insere num contexto familiar como nos estudos urbanos. Importante notar que o familiar nem sempre é conhecido como nos alertou Gilberto Velho e, neste sentido, a etnograia e o movimento de estranhamento é válido tanto para o estudo de sociedades muito diferentes da nossa como da nossa própria sociedade. O estranhamento é um recurso que nos ajuda a desnaturalizar atos, valores e interpretações. Se num contexto de alteridade radical aparentemente ica mais fácil enxergar os atos culturais dos interlocutores como construídos e não naturais o mesmo não acontece com os nossos atos e valores. O estranhamento também tem de ser utilizado ao revés e o pesquisador precisa olhar para seus próprios atos e pensamentos (inclusive a ciência) como culturalmente construídos. Portanto, tanto num contexto etnográico mais próximo ou mais distante o desaio do estranhamento é sempre um primeiro movimento importante de ser elaborado pelo pesquisador. Um segundo movimento relevante para o método é o da observação participante. Essa observação inclui não apenas o ato de olhar, mas também o de ouvir. Olhos e ouvidos atentos e bem treinados, diria Roberto Cardoso de Oliveira são importantes para a construção da pesquisa. A observação participante pressupõe que o pesquisador interaja com o contexto observado afetando-o e sendo afetado por ele. A partir desses dois movimentos um dos objetivos é o de estabelecer relações de interlocução com sujeitos do contexto estudado. Este primeiro momento de estabelecimento das relações nem sempre é fácil e nem sempre é rápido por isso se espera que uma etnograia tenha um desenvolvimento em um tempo dilatado a im de que essas relações se estabeleçam e a partir desse momento a inserção no campo de pesquisa possa tornar-se 135 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais efetiva. Essa observação e a interação com os interlocutores possibilitam uma aproximação do contexto e uma descrição apurada dos agentes, dos cenários e dos processos. Este processo de descrição demanda do pesquisador um engajamento denso. Densidade é uma palavra-chave para um dos autores contemporâneos mais inluentes na Antropologia. Cliford Geertz chama a atenção para uma perspectiva mais interpretativa da pesquisa etnográica. IMPORTANTE Para o autor o objetivo da etnograia não seria explicar o outro, mas compreende-lo e esta compreensão seria sempre relativa, pois estaria constrangida pelos limites desse olhar por cima dos ombros que o antropólogo utiliza no seu trabalho de campo. O objetivo da etnograia seria, então, para Geertz, o de construir uma descrição densa. Um esforço intelectual de interpretar interpretações dos nossos interlocutores. A descrição densa seria uma possibilidade de compreensão das lógicas de interpretação do mundo de nossos interlocutores pela observação não só dos discursos sobre o mundo, mas da observação da prática sobre no mundo. Realizar uma etnograia seria como tentar ler um manuscrito estranho, diria o autor. “O que o etnógrafo enfrenta, de fato, é uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas elas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar.” (Geertz, 1978:20). Para o autor, essa busca por uma descrição densa é a busca pelo signiicado que as pessoas atribuem ao mundo e ao vivido. A cultura seria uma teia de signiicados tecida pelo próprio homem que a ela se atrela. A cultura é dessa forma, pública. Ela se explicita o tempo todo nas ações cotidianas e, nesse sentido, seu signiicado também é público. A busca pelo signiicado cultural é, portanto, uma busca explícita e não algo escondido ou inacessível. Para realizar esse movimento interpretativo da cultura é preciso retirar os interlocutores (e aqui ele se refere aos interlocutores de culturas e sociedades muito diferentes da do pesquisador) do lugar do exótico, da opacidade e expor a sua própria lógica trazendo-o para o lugar do comum, do “normal”. IMPORTANTE Para Geertz o objetivo da etnograia, e da antropologia em geral também, era alargar o universo do discurso humano. 136 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I Nesse sentido, a etnograia se dedica a compreensão do pequeno, mas nem por isso menos complexo. Os estudos micro sociológicos, os contextos etnográicos circunscritos, focados, possibilitam uma compreensão mais densa da complexidade da vida social. Na construção da descrição densa, a interlocução é fundamental, pois a possibilidade de construção do conhecimento etnográico depende dessas relações. Descrição e interpretação caminham juntas, não são processos separados embora possamos, como faz Geertz, fazer uma distinção operacional entre o estar lá (em alusão ao trabalho de campo) e o estar aqui (em alusão ao momento da escrita etnográica). Como apontado anteriormente, muitas técnicas se conjugam numa etnograia: observação participante, entrevista, realização de ilme etnográico, fotograias, histórias de vida, análise de documentos pessoais ou institucionais... enim, o método exige uma sensibilidade e uma atenção ao contexto que se objetiva compreender para que a escolha das técnicas a serem utilizadas. O trabalho de campo construído dessa maneira pressupõe uma abertura para mudanças, um plano de trabalho lexível e aberto à interlocução com a realidade pesquisada. Mudanças que ocorrem também nas próprias relações de pesquisa. A ideia de ser afetado pela pesquisa discutido por Favret-Saada em seu artigo publicado em 1990 (traduzido no Brasil em 2005), embora traga questões polêmicas em relação à ética na pesquisa, nos ajuda a pensar o aspecto transformador que um processo qualitativo de pesquisa nos coloca. Ao iniciarmos uma pesquisa com essa profundidade, é quase certo de que sairemos dela transformados, ou afetados, assim como também os nossos interlocutores. Essa transformação muitas vezes é sutil outras nem tanto, mas está fundamentalmente ligada a ideia de que a etnograia nos permite alargar nossa noção de humanidade. Começamos uma pesquisa com uma noção de onde se situam os limites do que julgamos humano (assim como qualquer membro de uma cultura e sociedade especíicos) e terminamos o processo com esses limites modiicados. Isso não que dizer que este seja um processo simples e sempre positivo, mas sem dúvida é transformador. 2.2 História de Vida e História Oral O recurso metodológico que se apoia em depoimentos e narrativas de histórias de vida são fundamentalmente utilizados como apoio às pesquisas onde se procura produzir uma nova documentação sobre algum tema como, por exemplo, o estudo de grupos mais pobres ou vencidos em disputas sociais e, portanto, cuja a perspectiva não é contemplada pela história oicial (perspectiva de Paul Thompson,1998). Ou ainda como proposta de abordagem do contexto que se quer compreender a partir da perspectiva da inserção individual. Nesse caso, a biograia do indivíduo é considerada relevante para a compreensão do contexto estudado. Não se espera que os testemunhos tragam a verdade a tona. Como já airmamos anteriormente, a pesquisa qualitativa não está em busca da verdade, mas de uma interpretação mais complexa da realidade. Interessante a airmação de Guita Debert (1986) a partir de sua pesquisa sobre velhice com mulheres com mais de 70 anos, em São Paulo. O que o diálogo com os interlocutores permite é uma relativização dos conceitos e de seus pressupostos que, muitas vezes, na forma como são formulados, tendem a universalizar as experiências humanas. Por exemplo, era comum considerar que o trabalho doméstico era simplesmente uma forma de opressão. A pesquisa realizada com essas mulheres revelou que elas consideravam esse trabalho sob outras óticas 137 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais como, por exemplo, como uma forma de garantir sua independência e maior informação. Para elas os homens envelheciam mais rápido porque eram dependentes das mulheres para as coisas mais corriqueiras da vida e também achavam que elas eram muito mas bem informadas e politizadas porque tinham mais acesso aos jornais, rádio e televisão por que seu trabalho doméstico permitia esse acesso cotidianamente enquanto que o trabalho formal dos homens não permitia. (Debert, 1986: 144) Ao trabalharmos com testemunhos de vida precisamos estar atentos a questão da relação entre memória individual e coletiva. O que recolhemos nos depoimentos são memórias individuais, fragmentos, lembranças que são mobilizados segundo as questões que são feitas pelo pesquisador e também segundo as possibilidades narrativas de acordo com o tema pesquisado. A memória é seletiva: ica apenas o que signiica diria Eclea Bosi (1994). Ela também é aprendida, pois nem tudo que é relatado no depoimento foi vivido pela própria pessoa, mas faz parte dela. Portanto a memória é articulada e relacionada a um fenômeno construído social e individualmente num intenso trabalho de organização. Michael Pollack possui um trabalho extremamente interessante com histórias de vida de indivíduos que tiveram experiências extremamente traumáticas e dramáticas. Ele realizou pesquisas com sobreviventes dos campos de concentração nazistas e com pessoas infectadas pelo vírus da Aids. Em suas análises o lugar da memória como articuladora nos processos de construção de identidades é fundamental na medida em que ela é um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua construção ou reconstrução de si (Pollack, 1992: 5). Por essa razão memória e identidade são valores disputados em conlitos sociais. Os dados que obtemos com as narrativas de vida são muito delicados e difíceis de interpretar, pois as cronologias construídas por cada indivíduo são levadas em consideração e elas não necessariamente coincidem. As cronologias são plurais assim como são plurais as vivências dos acontecimentos. Contudo, há uma parcela da memória que é compartilhada de forma similar entre vários indivíduos. Para Bosi (1994) esta é a memória hábito que faz parte de todo o processo de socialização e faz com que compartilhemos uma memória social. Um autor fundamental para discutir a questão de uma memória coletiva é Maurice Halbwachs (2004). O autor constrói uma hipótese para a relação entre a memória individual e a memória coletiva distinguindo uma intuição sensível e uma persuasão coletiva. Muitas das lembranças que supomos serem pessoais são, de fato, lembranças enquadradas por uma história coletiva construída e ensinada no processo de socialização. Portanto, a memória individual, não deixa de ser construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo e pode ser considerada “um ponto de vista sobre a memória coletiva”. Esta perspectiva deve sempre ser analisada cuidadosamente levando-se em conta o lugar ocupado pelo sujeito dentro do seu grupo social e também se considerando as relações mantidas por eles com outros círculos sociais e culturais. (HALBWACHS, 2004: p.55). 2.3. Pesquisa-ação Outro método bastante utilizado em contextos escolares é a pesquisa-ação. Essa proposta parece ter sido seminalmente aplicada por Kurt Lewin. Este pesquisador da área das questões psicossociais empreendeu suas primeiras pesquisas de uma forma experimental num contexto de pós-guerra. 138 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I “Suas pesquisas iniciais tinham por inalidade a mudança de hábitos alimentares da população e também a mudança de atitudes dos americanos frente aos grupos éticos minoritários. Pautava-se por um conjunto de valores como: a construção de relações democráticas; a participação dos sujeitos; o reconhecimento de direitos individuais, culturais e étnicos das minorias; a tolerância a opiniões divergentes; e ainda a consideração de que os sujeitos mudam mais facilmente quando impelidos por decisões grupais. Suas pesquisas caminhavam paralelamente a seus estudos sobre a dinâmica e o funcionamento dos grupos. Sua forma de trabalhar a pesquisa-ação teve grande desenvolvimento nas empresas em atividades ligadas ao desenvolvimento organizacional”.(Franco,2005:485) Contudo, somente nos anos 1960/70 que o método toma vulto com várias propostas na Europa, Austrália e América Latina. Sua base está numa tentativa continuada, sistemática e empiricamente fundamentada de aprimorar a prática (Tripp, 2005). Um primeiro movimento do método é que a pesquisa deve partir da prática da observação cotidiana do contexto a ser pesquisado, portanto, exige uma inserção ativa do pesquisador no contexto pesquisado com uma visão de transformá-la. Ou seja, com uma perspectiva de intervenção clara. A partir da década de 1980 pesquisadores como Elliot e Adelman associam essa prática com a perspectiva dialética da teoria crítica de Habermas assumindo como objetivos do método a melhoria da prática educativa docente. Este segundo movimento, torna a prática mais complexa, pois assume objetivos emancipadores para os sujeitos nela envolvidos. A intervenção aqui deve ser lida como uma proposta de transformação da realidade escolar a partir não só do alto engajamento dos professores/pesquisadores como também da comunidade escolar como um todo, pois a realização deve ser feita de forma colaborativa em diversas etapas a im de gerar uma prática relexiva tanto por parte do professor como também dos grupos pesquisados. Esta é uma prática que dialoga diretamente com as duas anteriormente apresentadas, mas que atribui uma atenção redobrada às formas de compartilhamento das etapas da pesquisa e dos resultados atrelados a um projeto de transformação da realidade. Nesta perspectiva não basta apenas conhecer, interpretar e analisar os contextos pesquisados, mas intenta-se construir coletivamente um projeto de intervenção. Segundo Franco (2005) Kurt Lewin considerava que a pesquisa-ação é um processo de espiral que envolve três fases: 1. planejamento, que envolve reconhecimento da situação; 2. tomada de decisão; e 3. encontro de fatos (fact-inding) sobre os resultados da ação. Esse fact-inding deve ser incorporado como fato novo na fase seguinte de retomada do planejamento e assim sucessivamente (2005:488). Portanto o luxo do desenvolvimento da pesquisa partindo desse princípio de Lewin e associando-se aos pressupostos emancipadores da teoria crítica icaria algo como: 139 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais IMPORTANTE Planejamento Observação Ação/ intervenção Relexão A fase de planejamento da pesquisa-ação pressupõe a colaboração e negociação dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Essa já não é em si uma tarefa fácil, pois é muito comum uma tensão entre os componentes sobre a legitimidade e autonomia do trabalho. Os professores (teóricos e práticos), ansiosos para preservar sua autonomia proissional no âmbito curricular; e os interlocutores, para validar suas ideias perante a academia. Contudo, é justamente aí que reside o caráter inovador da pesquisa-ação: caráter participativo, gesto democrático e contribuição à mudança social. A pesquisa-ação traria em seus próprios pressupostos epistemológicos a possibilidade de superar as lacunas existentes entre a teoria e a prática, ampliando a capacidade de compreensão dos professores em relação às suas práticas e por isso favorecem os processos de transformação. Segundo Thurler (2001) é preciso que se construa uma cultura da cooperação: “[...] um certo hábito de ajuda mútua e de apoio mútuo; um capital de coniança e de fraqueza mútua; participação de cada um na tomada de decisões coletivas; um clima caloroso, de humor, de camaradagem e o hábito de expressar seu reconhecimento.” O pesquisador deve ser um facilitador e entender que suas ações tem um signiicado diferente para cada pessoa com quem ele for lidar. Ele deve considerar as vozes dos interlocutores não apenas como dado, mas como parte constitutiva e criativa da pesquisa. Por esse motivo é preciso que ele esteja aberto a mudanças no decorrer da execução do projeto. Seja capaz de vivê-las, juntamente com os sujeitos participantes, em cada etapa do projeto. Desta forma, a metodologia não se faz por meio das etapas ixas de um método, mas se organiza pelas situações relevantes que emergem do processo. 140 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I “É também por isso que tal metodologia assume o caráter emancipatório, pois mediante a participação consciente, os sujeitos da pesquisa passam a ter oportunidade de se libertar de mitos e preconceitos que organizam suas defesas à mudança e reorganizam a sua autoconcepção de sujeitos históricos”. (Franco, 2005: 486) Franco alerta também para o perigo do método se tornar apenas uma chave retórica, ou seja, que pesquisadores o utilizem para realizar projetos que, de fato, nada tem de participativo, pois procuram aplicar um projeto de mudança que parte deles próprios num movimento unilateral, ingênuo e quase, eu chagaria a dizer, arrogante. “Nesse caso, a dimensão crítica e dialética da pesquisa está sendo negada. A pesquisa-ação crítica deve gerar um processo de relexão-ação coletiva, em que há uma imprevisibilidade nas estratégias a serem utilizadas. (Franco, 2005:486) 141 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Projeto de Pesquisa Um projeto de pesquisa deve estar, antes de qualquer coisa, relacionado aos interesses de conhecimento de quem o elabora. Isso quer dizer que quanto mais o pesquisador estiver engajado na sua realização, o projeto pode ser mais interessante e profundo. Tudo começa com a curiosidade e claro, no caso de um projeto de pesquisa ela tem um sobrenome: curiosidade cientíica. Essa é uma curiosidade bem informada pela bagagem que o pesquisador carrega, suas aderências teóricas e metodológicas, sua vontade de conhecer que parte de um lugar especíico para olhar o mundo, como uma disciplina, por exemplo. A curiosidade cientíica é em si mesma questionadora, parte de uma pergunta, e a formatação de um projeto de pesquisa seguem algumas etapas para que essa pergunta inicial ganhe profundidade e se sustente como um projeto de investigação. Um projeto é uma demonstração do que o pesquisador quer realizar e, portanto deve ser claro e sucinto. Imagina-se que um projeto de especialização não exceda 15 páginas com espaço, entrelinhas de 1,5 e fonte Times New Roman 12 incluindo a folha de rosto e a bibliograia. No caso de um projeto de pesquisa/intervenção bem comuns quando se escolhe uma metodologia próxima a da pesquisa-ação, o projeto deve prever alguma ação prática onde o pesquisador realizará uma interação presencial com os demais sujeitos da pesquisa. Esta ação pode ser uma oicina cujos objetivos ajudem a provocar a relexão que é tema da pesquisa, pode ser uma exposição, pode ser uma dinâmica de grupo, enim a técnica utilizada vai depender do projeto em si. A questão é que em projetos de intervenção o pesquisador deve estar diretamente envolvido em atividades que possuem um objetivo relacionado ao problema de pesquisa e essas ações devem ser planejadas em conjunto com os sujeitos envolvidos na pesquisa. IMPORTANTE O Projeto de Pesquisa deve compreender: 1) Título; 2) Resumo; 3) Introdução e justiicativa, com síntese da bibliograia fundamental; 4) Objetivos; 5) Metodologia; 6) Plano de trabalho e cronograma de sua execução; e 7) Bibliograia Título O título embora seja o primeiro dado que aparece em um projeto, normalmente é o último a ser escrito. Isso porque ele deve expressar o trabalho diretamente. Títulos poéticos podem ser 142 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I inspiradores, contudo, é fundamental que eles não sejam totalmente enigmáticos. Eles precisam expressar o assunto do trabalho a ser desenvolvido. Sobre o que seria um trabalho cujo título fosse “Palavras ao vento”? Muitas são as possibilidades, não é? Mas um trabalho cujo titulo fosse “Palavras ao vento. Narrativas da igualdade e cotidiano escolar”, já inclui algumas pistas sobre a questão que o trabalho irá focalizar. É claro que sempre há um grau de subjetividade e o leitor sempre será chamado a fazer suas hipóteses em relação ao trabalho proposto, mas é importante que o título seja indicativo do tema tratado. No caso acima, as narrativas da igualdade, ou seja, discursos sobre a igualdade no contexto escolar. Não há necessidade de longos títulos explicativos e detalhistas, mas títulos que sejam indicativos do tema tratado pela pesquisa. Resumo e palavras-chave Juntamente com o título, normalmente é uma das últimas partes que redigimos, pois o resumo é uma síntese do recorte que escolhemos, apresentando nosso problema, algumas indicações teóricas e nossos objetivos. É um texto de 20 linhas aproximadamente que costuma vir seguido de uma relação de palavras-chave. As palavras-chave não devem exceder o número de seis e são termos usados para indexar o projeto e classiicar a pesquisa em relação aos seus principais temas. Por exemplo, se uma pesquisa versa sobre a relação de gênero e as religiões afro-brasileiras no contexto escolar, as palavras-chave poderiam ser: gênero, religiões afro-brasileiras e escola. Introdução e justificativa, com síntese da bibliografia fundamental Após o resumo, é a vez do corpo do projeto propriamente dito. A introdução é o espaço do texto reservado para a explicitação do tema, do recorte e da questão que mobiliza da pesquisa. É nesse espaço também que podemos contar um pouco sobre como chegamos a este problema. Informações sobre a trajetória do pesquisador também podem ser inseridas na introdução, desde que relevantes para que o leitor situe melhor o recorte e o problema de pesquisa. O problema de pesquisa é central quando respondemos a questão sobre o que é a pesquisa, pois uma pesquisa é sempre mobilizada por um problema, uma questão. O problema de pesquisa deve ser sempre uma hipótese, nunca uma certeza (uma tautologia), ou algo irrefutável. Ainal, propomos realizar uma pesquisa para tentar compreender algo que está em aberto. A pesquisa é um movimento de conhecimento, portanto, de busca. Se a introdução é o lugar do sobre o que é a pesquisa, a justiicativa que se segue é o lugar que explicita qual a sua importância para a área do conhecimento ao qual está relacionada. Porque vale a pena pesquisar esse assunto? Porque esse problema é relevante? Na construção do argumento do porque vale a pena pesquisar esse recorte, as referências teóricas e, principalmente um balanço da produção bibliográica sobre o tema é fundamental. Este balanço, muitas vezes chamado também de “o estado da arte”, é o que possibilita ao pesquisador demonstrar que este não é um trabalho ingênuo. Isto quer dizer que o pesquisador fez uma análise da produção bibliográica (mesmo que limitada) sobre o tema e isso possibilita que ele tenha a dimensão de como o seu problema de pesquisa se situa nesse campo de relexão. Ele demonstra que não supõe que seja o único a tratar do tema e, mais, que consegue relacionar 143 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais sua pesquisa com outras que tenham temas, recortes ou mesmo abordagens próximas. Este é também o momento para apresentar algumas escolhas conceituais com as quais o pesquisador trabalhará ao longo da pesquisa. Essas escolhas serão justiicadas juntamente com o problema da pesquisa. Por exemplo, se minha pesquisa é sobre a relação entre juventude, trabalho e evasão escolar. A minha justiicativa deve enfrentar alguns conceitos como o de juventude para que eu possa demonstrar que escolhas dentro deste campo teórico iz para empreender minha pesquisa. Com que autores eu estabeleço um diálogo e com quais estabeleço um debate. Quando escrevo juventude, a qual conceito de juventude estou me referindo. Os conceitos são históricos, exercícios teóricos, não absolutos, por isso a necessidade, principalmente em Ciências Sociais, de deinir o seu escopo. No caso, ainda em exemplo, quando me reiro a juventude estou pensando a partir de uma perspectiva geracional etária? Ou ainda da perspectiva de uma experiência cultural e social. Ser jovem é a mesma coisa quando se mora num grande centro urbano e na zona rural? Ser jovem é a mesma coisa se falamos da juventude que tinha 20 anos em 1950 e agora? Ser jovem é igual se moramos numa favela ou num condomínio fechado entre muros? Questões conceituais são sempre complexas e por isso exigem que o pesquisador as enfrente já na elaboração do projeto. Objetivos Os objetivos são os desaios cientíicos que o projeto se propõe enfrentar. Até aqui já temos claro o tema ao qual a pesquisa faz referência, o problema/ questão que mobiliza a pesquisa, o escopo de seu recorte, a justiicativa de sua realização. Neste momento, precisamos evidenciar onde queremos chegar com a pesquisa, ou seja, quais os desaios que julgamos sermos capazes de enfrentar e responder. Os objetivos devem estar em sintonia com nossas escolhas teóricas apresentadas até o momento. Eles também são uma demonstração de nossas escolhas epistemológicas. Existem objetivos gerais e especíicos: • • Os objetivos gerais são os que norteiam a pesquisa como um todo, por exemplo, como o de compreender as relações de gênero que são construídas no contexto escolar quando o que está em foco são as narrativas de igualdade. Objetivos especíicos são aqueles que podemos alcançar em etapas pontuais da pesquisa, eles são mais circunscritos como, por exemplo, seguindo a ideia anterior, identiicar quais são as deinições de gênero feminino e masculino presentes nos discursos dos professores no contexto da sala de aula. Percebam que existem alguns termos que nos ajudam na construção dos objetivos. São verbos que estão sempre no ininitivo, pois será o resultado do trabalho que ainda está por ser realizado e são ações relativas à construção do conhecimento como, por exemplo: analisar, compreender, identiicar, perceber, etc. Metodologia Aqui a questão é como vamos empreender a pesquisa? Neste sentido, é importante citar as referências de autores que ajudam os leitores da proposta a entenderem que os desaios mencionados não foram ainda vencidos e que poderão ser vencidos 144 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I com os métodos e meios da proposta de pesquisa. Como já tratado na parte inicial deste texto sobre metodologia qualitativa, não devemos confundir metodologia com técnicas de pesquisa. A metodologia é uma argumentação importante que indica como, a partir das escolhas conceituais e teóricas apresentadas, montamos nossa estratégia de abordagem do tema. No caso de uma pesquisa qualitativa, é importante que demonstremos saber o escopo deste tipo de pesquisa e quais os benefícios que esta escolha nos traz para enfrentar o problema de pesquisa construído. Se escolhemos o método etnográico, por exemplo, ou o da pesquisa-ação, este é o momento para justiicarmos esta escolha lançando mão de todos os argumentos que construímos anteriormente. Se vamos realizar a pesquisa mobilizando métodos e técnicas diversos, este é o momento de argumentar qual o benefício desta estratégia para alcançar os objetivos descritos. É também o momento para descrevermos o contexto da pesquisa, quem serão os interlocutores privilegiados, se já existe acordo/autorização de alguma instância para a realização da pesquisa, que tipo de documentação e dados essa metodologia gerará, como serão analisados esses dados, etc. No caso de um projeto de intervenção, este é o momento de explicitar qual a estratégia de intervenção elaborada e como ela vai propiciar a relexão esperada. Plano de trabalho e cronograma Escolhida e apresentada a estratégia de trabalho agora é momento de separá-la em eventos importantes e previstos para o desenvolvimento do trabalho. É também importante planejá-los no tempo para que possamos medir o progresso do projeto. Há diversas formas possíveis de apresentação do plano de trabalho, a mais comum é em forma de tabela como a que se segue. Cada pesquisa possui suas etapas especíicas, não há um padrão de quais as que deverão estar arroladas em um cronograma, contudo é importante demonstrar que o plano de trabalho está ainado com a metodologia apresentada. Ele não precisa ser extremante descritivo e detalhista. O importante é demonstrar que o pesquisador sabe discernir as etapas fundamentais do seu trabalho e dimensionar quanto tempo é necessário para sua realização. Exemplo de plano de trabalho e cronograma para 10 meses: Atividade Pesquisa bibliográica aprofundada Jan X Fev Mar Abr Mai X X Planjemento das oicinas X Análise dos dados da oicina 1 Jul Ago Set Out X Reuniões de trabalho com a coordenação pedagógica/apresentação da proposta de pesquisa para a comunidade escolar Oicina de leitura e escrita 1(cordel) Jun X X X 145 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Oicina de leitura e escrita 2 (conto) X Análise dos dados da oicina 2 X Apresentação dos resultados parciais para a comunidade escolar X Redação do relatório de pesquisa X Apresentação inal para a banca X X X Em pesquisas de maior fôlego e que exigem relatórios parciais, o relatório parcial deverá fazer referência ao plano de trabalho, no sentido de justiicar o andamento da pesquisa, as etapas que já foram cumpridas e as que ainda estão por vir. É claro que como todo planejamento há desaios que interferem no planejamento, e o relatório parcial é justamente o momento para apresentar esses desaios e demonstrar as saídas encontradas para enfrentá-los adequando um novo plano de trabalho. Bibliografia A bibliograia ou também chamada de sessão de referências, pois podem incluir não somente livros e artigos, mas outras fontes como ilmes, jornais, entrevistas, etc. é a sessão do projeto onde estarão relacionadas todas as fontes utilizadas e citadas ao longo do texto do projeto. 146 Disciplina 4 - Metodologia Cientíica e Projeto de Intervenção I NA PRÁTICA Para inalizar faço aqui uma síntese das perguntas fundamentais que devem ser respondidas a cada sessão do projeto. Se você ler um projeto e conseguir responder a essas perguntas já é um indicativo de que ele deve estar bem construído. Título: qual o tema da pesquisa? Resumo: contém o tema, o recorte, o problema e alguma referência conceitual? Introdução: sobre o que vou pesquisar? Meu problema de pesquisa está claro? Justiicativa: porque é pertinente pesquisar isso? Objetivos: onde eu quero chegar? Quais são meus desaios cientíicos? Metodologia: Como vou realizar a pesquisa? Plano de trabalho: quais são as atividades necessárias para a realização da pesquisa e quando elas serão realizadas? Bibliograia: todas as referências citadas ao longo do texto estão presentes? Formatação final do texto: Roteiro sugerido para formatação do Projeto de Pesquisa e do Trabalho de Conclusão de Curso: 1. Folha de rosto contendo título do projeto de pesquisa, nome do pesquisador, resumo de 20 linhas, até seis palavras-chave e data. 2. O projeto de pesquisa deve ser apresentado de maneira clara e resumida, ocupando no máximo 15 páginas digitadas em espaço 1,5. Em fonte Times New Roman 12 e o formato inal deve ser em PDF. 3. As referências bibliográicas devem seguir o padrão oferecido pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). SAIBA MAIS Uma síntese das normas aplicadas a trabalhos acadêmicos está disponível na página da Biblioteca da EFLCH/UNIFSP (http://www. unifesp.br/campus/gua/biblioteca/a-biblioteca/normalizacao-detrabalhos-academicos). 147 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Referências citadas: Livros e artigos ANDRÉ, Marli Eliza D.A. Etnograia da prática Escolar. Campinas: Papirus, 1995. BECKER, Howard. “De que lado estamos?” IN: Teoria da Ação coletiva, Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BOSI, Eclea. Memória e Sociedade. São Paulo: Cia das Letras,1994 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “O trabalho do Antropólogo. Ver, ouvir, escrever”. IN: O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora UNESP, 2006. DA MATTA, Roberto. Relativizando. Rio de Janeiro: Record, 1991 DEBERT, Guita “Problemas relativos a utilização da história de vida e história Oral”, IN CARDOSO, Ruth, A aventura antropológica.Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986. 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Visitar a cidade O ato de visitar envolve o lúdico e, além disso, a visitação, o passeio, devem ser contextualizados no curso de formação que vocês integram, considerando que essa é uma estratégia de extrapolação do espaço tradicional de estudo, mas o interesse relacionado aos conteúdos aprendidos deve ser estendido à visitação. Ela é parte da formação intelectual de cada um que faz parte desse projeto. A visitação, em si, é um misto de envolvimento e observação, de relexão intelectual e de diversão. Ela pode conter, assim, a experiência de aprendizado, conectada com os conteúdos e relexões próprios das atividades acadêmicas; mas também a experiência lúdica, de divertimento, o que torna esse tipo de atividade especial. Outro elemento importante é como se dá esse “olhar” sobre a cidade. No nosso cotidiano, não damos atenção a muitas características interessantes dela. Nas grandes cidades, as pessoas geralmente andam apressadas, nas calçadas, ruas, avenidas, circulando em veículos particulares ou no transporte público. O tempo de deslocamento é visto como algo negativo, o que inluencia, em certa medida, a relação de muitas pessoas com o espaço urbano. Ou seja, no cotidiano, costumeiramente, não há oportunidades de fruição das fachadas, monumentos, olhares para o alto para conferir este ou aquele detalhe de uma construção, e mesmo para se pensar com mais calma na importância histórica de determinados lugares. Na visitação, a abertura que temos com o espaço urbano é diferente. Vamos, assim, preparados para conhecer o novo, mesmo que o novo seja uma leitura nova de espaços que já conhecemos. Esse é um ponto-chave da visitação: as possibilidades de novas leituras do espaço urbano, da paisagem da cidade, do espaço especíico, da nossa inserção neles e as conexões entre tudo isso. Dessa forma, a visitação não é um simples deslocamento para conhecer algo exótico, mas uma tarefa que nos inclui como leitores críticos da cidade. Não se trata apenas da observação intuitiva, mas da compreensão da nossa situação nesses espaços dinâmicos. Assim, nossa visitação não deve ser incluída no campo da exceção, como se fosse uma atividade exclusivamente turística. Ela está ligada às nossas expectativas e ao conhecimento prévio (elaborado ou não) sobre determinados locais. Ou seja, a ideia de exceção pode ser substituída por certo envolvimento no ato da visita propriamente dita, que sempre apresenta algo novo, no que se refere à experiência original (a primeira vez em um local) ou à renovação de uma experiência anterior (revisitar algum local conhecido). PARA REFLETIR Qual a minha relação com esse local no cotidiano? Como a visita a algum local pode me oferecer novas perspectivas sobre a cidade? Quais as minhas expectativas para a visitação do local a ser visitado? 155 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais 2. Conhecimento prévio A visitação deve ser preparada considerando esses vários aspectos, e o conhecimento prévio é um dos primeiros passos. O visitante deve reletir sobre o conhecimento que ele tem com esses locais (Já ouvi falar dele? Já o visitei? O que ele representa para mim?), e procurar informações sobre eles a partir de outras fontes também. Vivemos em uma época em que a oferta de informação é muito grande. É possível saber mais sobre esses locais a partir da internet, televisão, jornais, revistas etc. Ainda, podemos dialogar com familiares e amigos, por exemplo, reproduzindo as mesmas questões acima indicadas. Tudo isso pode fornecer ao visitante uma grande quantidade de informações sobre esses locais e, melhor que isso, informações potencialmente diversiicadas. Esse é um primeiro ponto de relexão que apresenta duas questões-chave sobre lugares a visitar: a primeira é a avaliação de nosso envolvimento com lugares simbólicos. Se os conhecemos de relatos, discursos, reportagens etc., eles já compõem, mesmo que timidamente, a nossa relação com a cidade. Ou seja, mesmo que nunca tenhamos visitado determinado local, saber algo sobre ele já indica certo envolvimento. Diferente disso, não saber nada sobre determinado lugar é também signiicativo. Por que há, na cidade, locais conhecidos (cuja memória social destaca de maneira consistente) e outros sobre os quais conhecemos pouco ou nada? Pensar nisso já é reletir sobre a forma como determinados lugares são situados no campo da memória social, do patrimônio, do cotidiano etc. A segunda questão é a mobilização de informações prévias à visitação como uma espécie de preparação. Isso não signiica estabelecer rigidamente estratégias de visitação de forma prévia, mas de se preparar para a experiência de visitação considerando o nosso conhecimento sobre o local, também o de outras pessoas (desde aquelas próximas como amigos e familiares até autores de sites da internet, blogs, artigos de revistas, livros, entre outros); ou seja, que a visitação não seja pura novidade. PARA REFLETIR 1. Já ouvi falar do local a ser visitado? 2. Já visitei esse local? 3. O que esse local representa para mim? 4. Onde posso buscar mais informações sobre esse local? 5. Como o processo histórico interferiu na atual situação do local a ser visitado? 3. A paisagem urbana Esses lugares que visitamos estão inseridos em uma paisagem urbana. Geralmente, complexa e ligada a estratégias de circulação e acesso, o que também é preciso pensar: a situação geográica desses lugares a visitar e sua situação na cidade devem ser objeto de atenção. Para isso, pode-se reletir sobre a composição da cidade (regiões centrais e periferias, meio urbano 156 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo e rural etc.) e a situação do lugar a visitar nesse contexto. Ou seja, uma instituição relacionada a um espaço da cidade onde há variados equipamentos culturais, ampla oferta de transporte público, serviços como restaurantes, lanchonetes, bancos, entre outros, pode facilitar o acesso e permanência em determinado local. Diferente disso, a diiculdade de acesso e a ausência de serviços pode limitar bastante a experiência do visitante. Mas, a questão pode ser mais profunda e ligada a fenômenos históricos especíicos. Em determinadas regiões, o desenvolvimento de estratégias de urbanismo foi mais destacado do que em outras. Isso tudo pode ter papel central na situação atual desses espaços, convertidos, no caso em questão, na especiicidade de acesso e permanência. Entretanto, além de pensar no processo histórico e sociológico, é importante considerar a nossa própria inserção nesse contexto. Por exemplo, é válido reletir sobre a nossa situação espacial com relação aos lugares a visitar: assim, entender o deslocamento até o local é uma tarefa importante porque pode nos oferecer relexões sobre a paisagem, a espacialidade e as territorialidades. A disposição de edifícios, monumentos, parques, jardins etc. respondem a uma complexa lógica urbanística. Esses locais estão na região central da cidade? Estão na periferia? O acesso é fácil? Há estações de metrô? Linhas de ônibus nas proximidades? Qual a quantidade de veículos de transporte público temos que usar para chegar até esses locais? Qual é a nossa situação espacial na cidade com relação a eles? PARA REFLETIR 1. Qual a situação do local a ser visitado na paisagem urbana? 2. Em que região da cidade está esse local? 3. Como é o acesso a esse local? 4. Qual a minha situação na cidade em relação a esse local? 5. Qual o meu percurso para chegar a esse local? 4. Local/instituição a visitar É muito importante pensar no tipo de instituição que será visitada. Qual a importância que a comunidade dá a eles? Eles são tombados por algum órgão de proteção patrimonial? Eles são públicos? Privados? É importante notar que muitas das instituições em questão foram constituídas em um processo longo e carregam consigo marcas disso. Por vezes, aliado a isso, o caráter simbólico que foram constituindo é revertido em certo destaque atualmente, por exemplo, como instituições de referência para determinados temas ou mesmo protegidas pelas variadas instâncias de patrimonialização (desde o inventário até o tombamento e políticas de preservação). Dessa forma, a história da instituição interessa não apenas como elemento de erudição, mas também para compreender o lugar que ela ocupa atualmente. Por exemplo, instituições longevas que ocupam certo destaque ainda hoje em dia não nos comunicam apenas sobre o passado, mas sobre como mobilizamos o passado; ou seja, o próprio exercício de memória social e seu desdobramento no que se refere à valorização (ou não) de certas instituições, de certos lugares da cidade e de certas populações relacionadas a eles. 157 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Outro elemento importante é a mudança. Muitas das instituições aqui evocadas no seio dos territórios negros de São Paulo são caracterizadas por atividades relativamente variadas ao longo do tempo. Por exemplo, espaços relacionados a funções especíicas originalmente, mas que passaram a desenvolver outras atividades, como a criação de espaços museológicos e a sua inserção em roteiros de turismo na cidade. Conhecer a história desses lugares, assim, é conhecer como se estruturou a dinâmica viva a que estão ligados. Eles não são lugares ixos, rígidos, cujo interesse remonta exclusivamente ao passado, mas instituições marcadas por mudanças e atuações variadas ao longo do tempo. A própria abertura para um público visitante, por exemplo, pode estar ligada a uma nova atuação de instituições que, anteriormente, não possuam uma vocação desse tipo. Dessa forma, há diferentes instituições com caráter variado (templos religiosos, centros comunitários, museus etc.), mas, mesmo internamente, no que se refere à história das instituições, percebe-se certa variedade. PARA REFLETIR 1. Qual é o tipo de local a visitar? 2. Qual a importância que a comunidade dá a esse local? 3. Há alguma estratégia de proteção a esse local? 4. Esse local é mantido pela iniciativa pública ou privada? 5. Qual era a vocação original desse local? Qual é a atual? Houve mudança? 6. Como devo me comportar no local a ser visitado? 5. A experiência da visita No contexto da visita, é preciso pensar na adequação aos espaços. A visitação a um templo religioso deve ser feita observando-se certas regras de conduta no local e principalmente respeito. Há espaços religiosos, por exemplo, que vetam a entrada com cobertura na cabeça. Em alguns deles, é possível fazer a visitação enquanto determinada cerimônia está em curso, e falar alto, rir e ações similares podem interferir negativamente no seu andamento. Há certos espaços nos quais o ato de fotografar não é bem-vindo. Assim, tudo isso deve ser acordado anteriormente. Em vários casos, a visitação por grupos deve ser agendada. Ainda é importante lembrar que a especiicidade desses locais pedirá uma relexão também especíica sobre eles. A lógica de visitação de um museu é bem diferente daquela relacionada a um templo religioso. Dessa forma, o visitante deve pensar nessas especiicidades e não criar uma fórmula padrão de observação dos locais visitados. É importante notar as diferentes formas de organização desses espaços a visitar. Em alguns casos, onde há uma estrutura pensada para receber visitantes em contexto museológico, observar o edifício-sede, as estratégias de apresentação da exposição (expograia), as formas de diálogo entre instituição e público (material explicativo, legendas, pessoal do educativo etc.), é essencial. Qual o objetivo da instituição? Como ela propõe a realização de seus objetivos? 158 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo As estratégias de comunicação são bem sucedidas? Seu espaço físico é agradável, convidativo? Oferece acessibilidade universal (física e sensorial)? As regras de visitação são claras? O visitante é acolhido na instituição? O local é seguro (tem saídas de emergência, sinalização, plano de emergência para pessoas e acervos)? Em outros casos, como a visitação de monumentos, não há necessariamente esse aparato e as questões a serem colocadas são outras como: o monumento é tombado? qual o estado de preservação? Há estratégias de preservação do poder público? Esse monumento é um ponto de articulação social? Qual o seu lugar na cidade? Quando e por quem ele foi produzido? Há sinalização informativa? Há serviços básicos (sanitários, cafés, áreas de descanso etc.) no entorno? E a quantidade de questões poderia continuar. Ou seja, esses exemplos indicam que se deve pensar na especiicidade do lugar a visitar para que seja criada uma estratégia de visita. Ainda, é muito importante pensar no registro da experiência. Anote, fotografe, faça vídeos e grave áudio. A produção de anotações escritas e de material audiovisual pode enriquecer bastante o seu relatório, na medida em que você poderá revisitar algumas informações, repensá-las e apresentar discussões mais aprofundadas sobre a experiência da visita. Mas, para isso, são necessários alguns cuidados, como uma conversa com os responsáveis pela instituição ou envolvidos no registro. Nem sempre as pessoas se sentem à vontade quando são capturadas imagens fotográicas sem autorização, e o mesmo vale para o registro em vídeo e áudio. Gravar o desenvolvimento de uma cerimônia religiosa é bastante proveitoso, entretanto, isso deve ser acordado anteriormente e só deve ser feito mediante autorização. Além disso, deve-se pensar que tal material só pode ser usado em contexto limitado, como a produção do relatório. Para seu uso com ins inanceiros seria necessário a assinatura de um termo de cessão de direitos. PARA REFLETIR No local, há informações claras sobre a instituição, monumento ou logradouro? Há preocupação com acessibilidade? Quais as condições materiais do local? Tratando-se de instituição com espaço de exposição pública, há pessoal do educativo? Qual foi a estratégia de visitação criada por você? Ao inal da visita, a atividade foi bem sucedida? As expectativas foram alcançadas? 6. A visita em perspectiva O término da visita não encerra o potencial de relexões sobre o local visitado. O conjunto de informações e relexões que envolvem desde o conhecimento prévio até a experiência de visitação deve ser pensado de forma relacionada. Ou seja, a visitação não precisa ser uma 159 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais experiência isolada entre as aulas, mas pode integrar de forma efetiva os debates ao longo do curso. Assim, ela pode ser compreendida em algumas situações que apresentam elementos especíicos, mas que estão fortemente conectadas: 1. A primeira é a pré-visitação, que envolve o conhecimento prévio e uma pesquisa preliminar sobre o local a visitar e, além disso, a própria discussão desse conteúdo no curso (possivelmente em uma aula anterior à visita); 2. Depois disso, a própria visitação, contextualizada, incluindo elementos do deslocamento até o local a ser visitado e a experiência da visitação, que seria seguido de uma discussão pós-visitação, envolvendo a articulação do conhecimento prévio e a experiência da visitação especiicamente; 3. E, por im, os conteúdos ligados à visitação podem ser base para a discussão ao longo do curso, o que conferiria a essa experiência mais que uma exceção no conjunto de aulas, mas uma forte inclusão. Dessa forma, apresentando topicamente o que foi dito, sugere-se ao aluno a criação de um relatório simples, concentrando os seguintes elementos (compreendendo os pontos A, B e C em uma aula anterior à visitação, e D, E, F e G, em uma aula posterior): a. conhecimento prévio; b. pesquisa preliminar; c. caracterização do tipo do local a visitar; d. descrição do deslocamento; e. descrição da experiência no local; f. articulação do conhecimento prévio e da experiência de visitação; g. contribuição dessa experiência para as discussões sobre os espaços de cultura negra em São Paulo. PARA REFLETIR 1. Quais as relações entre o conhecimento obtido na visitação e o conhecimento obtido nas aulas? 2. Quais elementos novos a visitação apresentou para a discussão sobre as comunidades negras em São Paulo e seus territórios? 3. Quais as contribuições da experiência da visitação para o curso? 160 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo 7. Territórios negros em São Paulo As estratégias de visitação, conforme descrito acima, são situadas como estudo do meio ligado especiicamente aos “territórios negros” na cidade de São Paulo, onde a paisagem é bastante complexa e foi constituída em um processo histórico que materializou diferentes propostas tecnológicas e ideológicas no espaço. Há construções em taipa de pilão, pau-a-pique, tijolos (desde o século XIX principalmente), concreto armado etc., constituindo conjuntos arquitetônicos ou edifícios isolados de estilo colonial, eclético, modernista, entre outros. Em determinadas regiões, é possível observar, lado a lado, elementos que foram constituídos ao longo de séculos e que foram mantidos por motivos variados. É no seio dessa complexidade da paisagem urbana que devemos compreender os territórios negros na cidade de São Paulo. Eles são caracterizados por elementos especíicos (algum tipo de relação efetiva com as populações negras na cidade), e abrangentes (eles estão dispostos na paisagem urbana dividindo espaço com outros territórios). Assim, pensar na conexão entre o especíico e o mais amplo é bastante proveitoso na observação aqui proposta. E, mais que isso, não devemos pensar em um território negro homogêneo, delimitado rigidamente e cristalizado ao longo do tempo. Ao contrário, ele é caracterizado pela variedade, diferente da própria noção norte-americana de “gueto”, fortemente ligada à ideia de homogeneidade (CLEMENTE & SILVA, 2014, p. 87-8). Entretanto, a caracterização de espaços de segregação que está na base da compreensão dos guetos é um elemento que nos ajuda a reletir sobre os territórios negros em São Paulo. É interessante pensa-los a partir de um repertório comum, mas também de certas especiicidades (SILVA, 1997, p. 143). Em primeiro lugar, eles não são exclusivamente compostos por negros, o que também é indicado pela constante interação com populações de origem italiana e portuguesa em várias regiões da cidade de São Paulo no início do século XX. Além disso, eles podem ser especíicos quanto ao seu caráter urbano ou rural e, ainda, regional, dada a natureza das dinâmicas da região, estado ou cidade nos quais ele se organizou; ou seja, esses territórios negros não são necessariamente “uniformes” (JESUS, 1999, p. 155). Ainda, os territórios negros são caracterizados por tipos variados: escolas de samba, quadras de dança, terreiros, igrejas e times de futebol, ligados consistentemente à atuação de populações negras são considerados territórios negros (PORTA et al., 2004, p. 62). PARA REFLETIR 1. O que é um território negro? 2. Como o estudo do meio pode ajudar a pensar nos territórios negros da cidade de São Paulo? A constituição de territórios negros em São Paulo, logo depois do inal da escravidão, foi marcada pela segregação racial em meio urbano (CARRIL, 2006, p. 80). Negros dividiam espaço com italianos e portugueses em bairros como a Barra Funda, disponibilizando-se como mão-de-obra básica em armazéns de café; o que também pode ser percebido em regiões como o Lavapés, Bixiga e Cambuci: até os anos 30 do século XX, populações negras que viviam em 161 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais condições parcas, habitando cortiços e porões (ROLNIK, 1997, p. 75; GODOI, 1998, p. 72 e 77). Nesse sentido, percebe-se que há, por um lado, a própria identiicação dos territórios negros como elemento de agregação e, por outro, como exemplos de segregação (QUINTAS, 1995, p. 56); sendo eles também frequentemente associados à ideia de discriminação (HERCULANO & PACHECO, 2006, p. 41-3). Assim, a forte inserção de comunidades negras em bairros de São Paulo originalmente relacionados à inserção de comunidades brancas indica algo da variedade da inserção desse grupo. Por exemplo, na Barra Funda (onde nasceu o bloco carnavalesco de Dionísio Barbosa), a comunidade de portugueses foi paulatinamente permeada por negros que buscavam trabalho em armazéns de café e na estação ferroviária. Um processo análogo ao da ocupação da região do Bixiga (onde se desenvolveria a escola de samba Vai-Vai), no qual a penetração da população negra se deu posteriormente à ixação da comunidade de imigrantes italianos. Assim, regiões como a do Bixiga e da Barra Funda, mas também do Cambuci, da Sé, dos Lavapés e da Santa Iigênia, podem ser consideradas territórios negros (CARRIL, 2006, p. 80), de composição variada, como visto, e caracterizadas por parcas condições habitacionais e trabalho informal – alguns dos elementos que indicam a segregação na paisagem da cidade. E, mesmo internamente, é possível observar certa hierarquia socialmente imposta. No caso do Bixiga, por exemplo, onde uma consistente presença da população negra remonta à primeira metade do século XX (CASTRO, 2008 e BRUNO, 1986, p. 152), o museu local (Museu Memória do Bixiga), registra quase exclusivamente elementos da presença italiana (o próprio site do museu é apresentado em inglês, português e italiano), e pouco da presença negra histórica no bairro (aparecem apenas objetos da escola de samba Vai-Vai), uma evidente seleção de memória. Algumas dessas características que estruturavam esses territórios negros no início do século XX são ainda bem consistentes, como sua expressão urbana, delimitação em espaços de pobreza e discriminação social. Assim, deve-se pensar nos territórios negros atuais em São Paulo, nos quais é possível observar expressões como o hip-hop e saraus da periferia (CLEMENTE & SILVA, 2014, p. 90-1,99-101), considerando o processo histórico. Ou seja, a seleção de espaço que constantemente estruturou os territórios negros em São Paulo, deslocando populações negras de espaços que se tornavam interessantes para as elites, está intimamente ligada às atuais dinâmicas que estruturam territórios negros atualmente, seja em espaços como o Largo do Paissandú, em uma região cuja degradação é constantemente objeto de notícias pela imprensa, e também nas periferias nas quais atualmente se instalam em grande quantidade populações negras. Nesse contexto, dinâmicas especíicas como relexões sobre esse alheamento em canções e criações visuais no seio do movimento hip-hop e mesmo os saraus da periferia, situam discussões sobre o racismo, discriminação etc., mas também sobre o orgulho da cultura especíica que se organizou nesses espaços. PARA REFLETIR 1. Na cidade de São Paulo, onde é possível encontrar territórios negros? 2. Os territórios negros são exclusivos? 3. Qual a relação entre os territórios negros e memória social? 162 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo 8. Lugares a visitar O estudo do meio, como aqui proposto, tem um recorte especíico: os territórios negros na cidade de São Paulo. Tal recorte apresenta a possibilidade de relexão sobre a especiicidade de dinâmicas ligadas à ixação e desenvolvimento de comunidades negras na cidade de São Paulo ao longo dos últimos séculos, especialmente entre o século XIX e XX. Além disso, os territórios negros vistos em perspectiva podem ser situados em uma trama mais complexa de territórios alternativos que compõem a paisagem urbana. Nesse sentido, serão indicados alguns locais relacionados ao recorte “territórios negros” como uma referência inicial, propondo a cobertura de locais e instituições ligadas a diferentes campos de atuação das comunidades negras de São Paulo. PARA REFLETIR Qual o nosso recorte para o estudo do meio? Qual território negro de São Paulo você indicaria para o estudo do meio? Na sequência, será apresentado um local (o Largo do Paissandú, organizado em torno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos), descrito de forma extensa, retomando os pontos acima indicados, articulando desde o conhecimento prévio até a experiência da visitação, servindo como modelo metodológico para a visitação de outros locais sugeridos. • Antes da leitura das sugestões de lugares a visitar relacionados a territórios negros de São Paulo, apresente um roteiro de quatro lugares que você pensa adequado nesse recorte. Depois disso, contraste com as propostas apresentadas na sequência. • Lembre-se, essas são apenas propostas que podem ser modiicadas ou ampliadas com um quadro maior de lugares a visitar. Converse com os professores e colegas do curso tentando ampliar as informações aqui apresentadas e o repertório de locais a visitar. 8.1. Largo do Paissandú (modelo de visitação) 8.1.1. Pesquisa preliminar O Largo do Paissandú é uma área na região central da cidade de São Paulo composta por uma praça com vegetação variada e dois monumentos principais (uma igreja e uma estátua na parte posterior) e adjacências. O nome Paissandú está ligado à Guerra do Paraguai, mais especiicamente à tomada do Porto de Paissandú no Uruguai pelo exército brasileiro (GEEP & MAIA, 2002, p. 44). A graia é variada: desde o registro histórico “Payssandu” até novas formas como Paissandu, Paissandú e Paiçandu (esta última recuperando a descrição do nome a partir da fonética guarani). Opta-se, aqui, pela graia “Paissandú”, já que é assim que o logradouro aparece nas informações oiciais da cidade como as placas de localização. 163 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais A igreja é o elemento central de articulação da praça que organiza o Largo do Paissandú, espaço de circulação ampla de pessoas, tendo ali um terminal de ônibus metropolitano, e de manifestações populares (por exemplo, como a noticiada pela Folha de São Paulo em 20 de maio de 2014: “Manifestação de motoristas bloqueia trânsito no Largo do Paissandú”), o que apenas ratiica seu ainda atual e relevante papel simbólico para manifestações sociais. No que se refere ao seu papel articulador no âmbito da comunidade negra, pode-se lembrar que mesmo instituições prestigiadas no seio do ativismo negro como a FNB (Frente Negra Nacional, 1931-1937) mantinham relações com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ali no Paissandú (HOFBAUER, 2006, p. 355-6); e que, em 1980, foi feito um enterro simbólico da Lei Afonso Arinos (n. 1390 de 1951), que previa a discriminação racial como contravenção, em uma grande passeata que teve o Largo do Paissandú como ponto de concentração e de partida (OLIVEIRA, 1988, p. 42). No cotidiano, é um local de ampla circulação popular, mesmo que o objetivo de muitos daqueles que passam por ali não seja a permanência, mas uma passagem rápida para alcançar outro destino; o que, em parte, está ligado ao processo de degradação do local que foi chamado na edição de 9 de setembro de 2010 do periódico Metrô News de “quase um ‘inferno’” (p. 5), ressaltando a situação de falta de segurança, mau cheiro, concentração de moradores de rua, o que estaria ocasionando a perda de iéis frequentadores da igreja do local. Na mesma matéria, há a fotograia de moradores de rua, crianças e adultos, que se refugiam com seus pertences ao pé da estátua da Mãe Preta, como se pudessem ali obter certo conforto inspirado pela escultura. Nesse contexto, e desde 2003, há projetos para a chamada “revitalização” da região empreendidos por várias secretarias municipais no âmbito da cultura (o anúncio da ida da Orquesta Sinfônica Municipal, da Orquestra Experimental de Repertório, do Balé da Cidade), da promoção social (o encaminhamento dos moradores de rua a albergues), entre outros (Urbs, ed. 29-30, 2003, p. 39). Destaca-se, nesse sentido, a iniciativa de tombamento do local. Desde 2004, o Largo do Paissandú passou a ser protegido a partir da a Resolução 16/04 do CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), que alterou a Resolução 37/92, relacionada ao tombamento do Vale do Anhangabaú, propondo complementarmente o tombamento de outros trechos relacionados, entre eles o “Largo Paiçandú no qual estão preservados o Monumento ‘Mãe Preta’ e a vegetação de porte”. Trata-se de uma estratégia de tombamento generalista, que não inclui explicitamente o edifício da igreja (cujo tombamento especíico vem sendo pleiteado junto ao CONDEPHAAT (Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo)), mas o monumento “Mãe Preta”, um elemento importante para a caracterização do território negro aqui tratado. Trata-se de escultura em bronze de autoria de Júlio Guerra, autor de outra conhecida estátua, o Borba Gato em Santo Amaro, e que foi recentemente homenageado na exposição “Júlio Guerra - memórias, escultura e pintura” no Museu de Belas Artes de São Paulo (MuBA) de junho a agosto de 2013, na qual havia, inclusive, uma miniatura em bronze da Mãe Preta do Largo do Paissandú, um estudo que precedeu a produção da estátua. Sua construção estava ligada ao decreto 2342 de 19 de dezembro de 1953 aprovado para um concurso que objetivava escolher um projeto para o monumento à Mãe Preta, vencido por Júlio Guerra, criador da estátua que foi disposta no Largo do Paissandú conforme a Lei 4414 de 26 de setembro de 1955, custando trezentos mil cruzeiros (JORGE, 1999, p. 206). 164 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo Escultura da Mãe Preta com Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ao fundo, Largo do Paissandú, centro de SP (arquivo pessoal). É importante pensar na Mãe Preta como um dos ícones que sintetizava a questão do negro livre logo depois da abolição da escravatura. Já na década de 20 do século XX, o jornal “O Clarim da Alvorada”, de São Paulo, apresentava uma campanha para a criação do “Dia da Mãe Preta” como comemoração da aprovação da Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871. Nesse contexto, pensava-se na criação de um monumento simbólico no Rio de Janeiro, mas apenas no pós-guerra o projeto foi retomado e construído em São Paulo, no seio das comemorações do quarto centenário da cidade, o que não foi algo pacíico. Apesar de ter sido aprovada pelo Legislativo, o prefeito à época, Jânio Quadros, chegou a vetar a construção da estátua (CARLI, 1982, p. 74); e, ainda, depois de construída, ela não conquistou rapidamente a simpatia da população negra (ALBERTO, 2014); e foi dito, nesse contexto, que a tal escultura era uma imagem equivocada do Brasil, degradando o negro brasileiro diante da nação e do mundo (ANDREWS, 1991, p. 331). Já a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandú, pertencente à Arquidiocese de São Paulo, foi construída entre 1904-1906 por trabalhadores negros, em um processo de realocação da sede do culto da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, antes situada no antigo Largo do Rosário (depois, Praça Antônio Prado) desde 1737 (MOURA, 2004, p. 110; SANTOS, 2006, p. 69-70); local onde havia, além das atividades relacionadas ao culto cristão, manifestações como a congada, batuque, samba de umbigada, moçambique, caiapó etc., o que continuou no novo espaço (FAUSTINO, 2011, p. 38), onde a comunidade negra também não era desejada, apesar de ser uma região erma, uma 165 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais espécie de sítio naquela época (PAULA, 2008, p. 58). Tal transferência foi situada em um contexto de reformas urbanas (a antiga igreja foi demolida), na qual teria havido a expulsão de populações consideradas indesejadas em espaços que se valorizavam (DOMINGUES, 2003, p. 163-4). Mesmo antes da ixação da igreja no Largo do Paissandú, a região era consistentemente frequentada por negros, como indicam relatos de Saint-Hilaire na primeira metade do século XIX sobre a grande circulação de negras batendo roupas na várzea do Carmo e na Lagoa Zunega, região que se tornaria o Largo do Paissandú (ROLNIK, 1997, p. 63). Quase um século depois, o jornal Progresso (edição de 26 de setembro de 1929) revelava em uma entrevista com uma transeunte negra ali na mesma região, que a situação havia mudado bastante, já que esta vagava por ali em busca de um trabalho, tarefa que, segundo a informante, era quase impossível; já que, depois da abolição da escravatura, e com a migração de populações pobres europeias, o trabalho negro sofreu um processo de desvalorização importante. Os anúncios da elite paulista procurando nos jornais copeiras, cozinheiras, amas e criadas de toda sorte, geralmente vinham acompanhados de complementos explicitando a preferência por portuguesas, francesas e alemãs (DOMINGUES, 2003, p. 123). A transposição da sede da igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos indica, além do processo de segregação social, a própria seleção de memória na constituição de territórios na paisagem urbana, e um exemplo disso é a toponímia. Muitas vezes, é possível identiicar espaços negros tradicionais a partir dos nomes de certos lugares (OLIVEIRA, 2007, p. 186), e a caracterização do espaço onde se situava a antiga igreja dessa irmandade revela isso: o Largo do Rosário, uma referência à Nossa Senhora do Rosário que emprestava o nome à irmandade de homens pretos e à sede de seu culto cristão, lugar onde se realizavam outras expressões de suas manifestações culturais além de certa concentração de habitações. Assim, o nome da santa evocava em grande medida esse território negro que foi isicamente deslocado e, mais que isso, desapareceu da memória na medida em que o nome do lugar mudou para uma homenagem a uma igura de expressão da elite paulista: o cafeicultor que se tornaria prefeito da cidade de São Paulo, Antônio Prado. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos - tipo de organização que respondia à segregação da população negra escravizada desde o período colonial no Brasil, em São Paulo, remonta ao século XVI, mas é preciso notar que a confraria de Nossa Senhora do Rosário foi dividida entre “homens brancos” e “homens negros” no século XVIII (MOURA, 2004, p. 110). Essa irmandade apareceu em vários pontos do Brasil Colonial, sendo a que se instituiu no Rio de Janeiro em meados do século XVII a mais antiga registrada; e foi organizada em São Paulo no século XVIII. E, há indícios que, já na transição do século XVIII para o XIX, havia mais de 30 irmandades relacionadas à Nossa Senhora do Rosário, incluindo, além de São Paulo, Taubaté, Lorena, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Jacareí. A devoção à Nossa Senhora do Rosário remete a uma aparição da Virgem Maria em Prouille, França, no início do Século XIII (TINHORÃO, 1975, p. 46), e foi originalmente organizada na Colônia, Alemanha, desde o início do século XV, mas se difundiu dada a ação de missionários portugueses, chegando aos Açores, Cabo Verde, Congo e ao Brasil (desde o século XVI), onde ela é observada de sul a norte: Nossa Senhora do Rosário foi objeto de devoção de várias irmandades compostas pela população negra no Brasil Colonial e sua identiicação está provavelmente ligada à associação entre essa santa e São Benedito, muitas vezes chamado de 166 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo “negro”, “africano” ou “mouro”, cuja tradição situa seu nascimento na Sicília, no seio de uma família proveniente da Etiópia; ou como escravo cativo no norte da África. Registra-se, por exemplo, em Angola, o culto desses dois santos desde o século XVII. No Brasil, esse culto articulado dos dois santos aparece em alguns contextos, como com a ação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito da Paróquia de Parati, no Rio de Janeiro, e igreja de culto associado desses santos também em Cuiabá e Santa Catarina. A identiicação desse culto (seja o de Nossa Senhora do Rosário isoladamente ou relacionado a São Benedito) às comunidades negras no Brasil é bastante forte. Na paróquia de Parati, por exemplo, no edifício da igreja desses santos há, no segundo andar o “Museu Negro”, respondendo a uma relação antiga de ações dessa irmandade, como a criação de escolas para alunos negros desde o início do século XX. Com isso, é possível notar que a associação entre o culto à Nossa Senhora do Rosário e as comunidades negras no Brasil é tradicional, remontando ao período colonial, e que a situação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Largo do Paissandú responde a essa tradição, o que foi ratiicado pela inserção naquele espaço de um ícone da história do negro no Brasil (a Mãe Preta), e a estratégias de articulação da população negra de São Paulo na história recente em campos variados: desde a luta por direitos civis (como indica a passeata citada acima) até as múltiplas facetas da religiosidade afro-brasileira. Por exemplo, essa igreja que tem sua história ligada fortemente às populações negras de São Paulo, em 1977, foi palco de uma polêmica religiosa envolvendo o padre Rubens de Azevedo, da Igreja do Rosário, que se recusou a realizar uma missa em homenagem à criação do maior terreiro de candomblé do Brasil naquele contexto (o Axé Ilé Obá, no Jabaquara) que já havia sido encomendada por seu responsável. Mesmo com isso, candomblecistas ligados ao terreiro, reconhecendo a importância daquele espaço como articulador simbólico da comunidade negra em São Paulo, dirigiram-se para o Largo do Paissandú depositando lores diante do monumento da Mãe Preta, mas foram advertidos pela polícia a não entoarem suas canções ritualísticas naquele local (MUNANGA, 2004, p. 15-6). Além disso, pode-se pensar na estátua da Mãe Preta ali situada como um foco de atuação devocional do ritual católico (a própria citação do modelo da Madonna medieval e renascentista - Maria trazendo Cristo bebê junto ao corpo), mas também de muitos grupos do candomblé (ALBERTO, 2011, p. 293). Em datas comemorativas como o 13 de maio (dia da abolição da escravatura), geralmente uma mãe de santo atua em um ritual jogando água perfumada e pipoca na estátua (ANDREWS, 1991, p. 231). Ainda, nota-se a importância desse ícone no contexto das comemorações do “Dia Nacional de Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, Umbanda e seus Segmentos” (30 de setembro), conforme lei municipal 14.342/07; onde, entre vários eventos, há a lavagem da estátua da Mãe Preta. Entretanto, a situação mudou signiicativamente. Nessa igreja, atualmente, é comum a atividade de missas afro e missas congas caracterizadas pela integração de elementos das manifestações de culturas afro no ritual católico da missa. As missas afro (incluindo elementos mais amplos da religiosidade afro-brasileira) e as missas congas (com os integrantes das congadas e também moçambiques) são razoavelmente comuns em meio católico no Brasil desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), já que se criou um ambiente de certa tolerância, por exemplo, a congadeiros em contexto católico (KIDDY, 2007, p. 238). Na década de 1960, no Brasil, já era possível observar a execução de missas congas em vários lugares de Minas Gerais por exemplo. 167 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Esses eventos, como as missas congas, têm tanta popularidade em algumas paróquias que, por vezes, têm que ser executadas na área exterior das igrejas ou em espaços de concentração de massas, como o caso de 1988, nas comemorações do centenário da abolição da escravatura no Brasil, em Minas Gerais houve uma missa conga no estádio Mineirinho (KIDDY, 2007, p. 204). No Largo do Paissandú, elas ocorrem em situações especiais como as viradas culturais da cidade. Entretanto, esses não são eventos que acontecem apenas em paróquias ligadas a comunidades negras em São Paulo como as do Paissandú e do Bixiga, mas em contexto mais amplo; por exemplo, há missas afro na basílica de Nossa Senhora de Aparecida. Nessas missas, há a introdução de elementos de manifestações de matriz afro-brasileiras no ritual católico da missa. Há, nesse sentido, estruturando o conteúdo eclesiástico tradicional, sonoridades, gestos e organização visual não tradicionais nesse contexto. Instrumentos musicais próprios do candomblé, das congadas, moçambiques, entre outros, são introduzidos no interior da igreja ritmando os hinos ao lado de danças também correspondentes a essas manifestações culturais, bem como a indumentária especíica. O padre, por exemplo, pode abandonar a tradicional batina e utilizar uma bata de tecido e padrões relacionados à cultura afro-brasileira, entre outros itens como o barrete. Um outro exemplo desse tipo de abertura são recepções de eventos culturais relacionados à comunidade negra de São Paulo como a apresentação do Coral Negro da banda Cantafro. 8.1.2. Situação na cidade e acesso Originalmente, a região do Largo do Paissandú era caracterizada por um complexo hídrico chamado de Praça das Alagoas, composto por nascentes do Rio Yacuba, e a maior delas era a Zunega ou Tanque do Zunega (DICK, 1997, p. 184). Essa paisagem foi descaracterizada a partir de uma prática de aterramentos na região, criando-se o atual conjunto impermeabilizado, respondendo a uma prática que reformulou a paisagem urbana de São Paulo em grande medida desde a segunda metade do século XIX - a constituição de trechos impermeáveis a partir de aterramentos ou canalização de rios que foram desaparecendo da paisagem como elemento aparente, processo que ocorreu no Largo do Paissandú e em várias outras regiões da cidade como no Anhangabaú, na rua 25 de Março, na várzea do rio Tamanduateí, na rua 23 de Maio, e em vários outros locais da cidade (JORGE, 2011). Atualmente, essa região, situada no distrito da República, é bastante central e com ampla oferta de transporte público: além de ônibus metropolitanos (dado o terminal relacionado à praça), há pelo menos três estações de metrô próximas (São Bento, Luz e República) servindo populações de variadas regiões de São Paulo, e ela é situada nas proximidades de importantes instituições da cidade de São Paulo como o Teatro Municipal, Praça da República, Praça do Correio, entre outros, disponibilizando-se uma série de equipamentos culturais e uma grande quantidade de serviços ali, alguns deles referenciais como o popular Shopping Center Grandes Galerias (a “Galeria do Rock”); tudo isso enquadrado por um complexo de ruas e avenidas bastante conhecidas como a São João, Rio Branco e bem próximo da Ipiranga. 168 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo IMPORTANTE No que se refere à paisagem, é importante notar que a região é um dos espaços de descontinuidade. Isso, já que essa parte central da cidade é consistentemente caracterizada pela impermeabilização do solo e construção de arranha-céus, havendo alguns poucos espaços de descontinuidade, como o próprio Largo do Paissandú, onde a construção mais alta é a igreja tratada e um conjunto formando canteiros arborizados. Essa constatação é importante já que essas regiões arborizadas e relacionadas à sociabilidade pública permanecem a despeito de uma forte atuação da especulação imobiliária ao longo do século XX devido a políticas de patrimonialização. Por exemplo, espaços similares (parcialmente arborizados e ligados à sociabilidade pública) na região também são protegidos por estratégias de patrimonialização (no caso, o tombamento), como a Praça da República e a Praça Ramos de Azevedo (Resolução CONPRESP 16/04). Apesar das estratégias públicas citadas, é visível certa degradação do patrimônio (logradouro e monumentos), apresentando-se um espaço de pouca qualidade para as pessoas que ali passam, permanecem ou vivem. Políticas atuais de modiicação da experiência em espaços públicos de São Paulo em um projeto chamado “Centro Aberto”, incluindo o Largo do Paissandú, como algumas estratégias recentes da prefeitura de São Paulo, visam “melhorar a experiência do transporte público e de permanência no espaço público, revelando as potencialidades do entorno”. As ações públicas, nesse sentido, concentram-se na priorização de pedestres e ciclistas, suporte à permanência no local, atração e ativação do espaço público, além de uma programação cultural no local. IMPORTANTE Veja o seguinte link para o detalhamento do projeto e da programação: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/centro-aberto-Paissandú/ 8.1.3. Caracterização do local a visitar e a experiência da visita O local a visitar é um largo organizado por uma praça dominada por uma igreja, o que nos apresenta estratégias especíicas de visitação. Aqui, a proposta será de duas possibilidades de abordagem: a primeira é a visitação da praça com a observação externa da igreja (sua fachada, situação na praça etc.), e a segunda incluindo a igreja pensada também no seu interior. É importante notar que a primeira possibilidade é mais livre no que se refere à dinâmica da 169 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais instituição a ser visitada. Para que o interior da igreja e as atividades que ali se desenvolvem sejam conhecidos na visitação, é preciso consultar horários de funcionamento e a abertura da instituição para registros como fotograias e gravação de áudio. A data e horário em que a visita ocorre também deve ser objeto de relexão. As impressões aqui apresentadas foram colhidas a partir de uma visita no Largo do Paissandú em 14 de setembro de 2014, um domingo, a partir das 08h00, o que apresenta um cenário especíico: circular no centro de São Paulo nos inais de semana, especialmente aos domingos, é bastante diferente de executar a mesma ação durante a semana. A quantidade de pessoas por ali é bem menor aos domingos e é possível observar com mais detalhes alguns elementos do local. Entretanto, a própria dinâmica de circulação ampla do local, conforme descrito acima, não pôde ser observada na visita. Ainda, há outros pontos a considerar, como as datas festivas. Ir ao Largo do Paissandú nos feriados comemorativos da abolição da escravatura, da consciência negra ou no dia nacional de tradições de matrizes africanas proporcionaria uma experiência na qual a expressão simbólica do lugar no seu uso pela comunidade negra de São Paulo estivesse bastante ativa, o que não se observa necessariamente no cotidiano. O horário especíico também deve ser considerado. Sabemos que há luxos de circulação mais ou menos intensos ao longo de certos dias da semana dadas as condições cotidianas de deslocamento relacionadas à jornada de trabalho. No período matutino, o deslocamento de regiões periféricas para regiões centrais é intenso, ocasionando certa aluência consistente de pessoas no centro urbano em regiões como a do Largo do Paissandú. O horário do almoço e da saída do trabalho, de retorno à casa em regiões distantes ou a busca de lazer noturno e mesmo a ida a instituições de ensino marcam esses luxos. Dessa forma, o horário especíico da visita pode oferecer àquele que vive a experiência da observação de um local cenários especíicos. Quanto ao edifício da igreja, ele é pintado com uma cor amarela bem forte, destacando-se na paisagem da praça. Ao chegar, ele é o elemento mais visível do conjunto. O estilo arquitetônico é neorromânico, com torre central associada à fachada principal, situada frente à esquina do Largo do Paissandú com a Avenida São João. Sua fachada está repleta de pichações, assim como quase todas as construções que constituem o conjunto da praça: além da igreja, a base da estátua, os pontos de ônibus e algumas muretas delimitativas dos canteiros, que estão dispostos em torno do edifício da igreja que domina a parte central da praça, e são caracterizados por espécies diversiicadas de árvores, além de outras que foram plantadas isoladamente. O calçamento da praça é feito com “pedras portuguesas” brancas e avermelhadas formando desenhos geométricos. É possível notar que, enquanto a igreja possui uma fachada mais tradicional ligada a um estilo historicista (o neorromânico), o desenho do mosaico em pedras portuguesas no calçamento, os recortes dos canteiros (especíicos e assimétricos), e a própria estátua da Mãe Preta possuem uma proposta diferente, mais modernista que historicista, criando-se, assim, um conjunto variado de estilos que compõem a praça. Esse elemento é importante já que há duas propostas diferentes de circulação no local: uma delas é a ligada ao culto na igreja que, como se sabe, em contexto cristão é situado no interior do templo. Assim, as atividades da igreja são amplamente concentradas nesse contexto. Já a proposta de ampla circulação em espaço público, o que inclusive possibilita as concentrações de pessoas em manifestações e a circulação diária daqueles que passam pela praça, está mais ligada à ideologia modernista de produção de espaço. Dessa forma, além de estilos diferentes, percebe-se lógicas diferentes de circulação presentes no mesmo local. 170 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo O conjunto caracterizado por construções de períodos diferentes proporciona certos problemas de visibilidade. Por exemplo, os pontos de ônibus de concreto armado situados na praça bloqueiam em parte o acesso visual da fachada da igreja. Nesse conjunto, a situação de estátua da Mãe Preta é discreta: ela está disposta na parte posterior da igreja entre dois canteiros. Associados à estátua é possível ver lores depositadas e uma concentração de pertences de moradores de rua que eventualmente aparecem. Reforçando o caráter variado e público de circulação do local, na praça, há ponto de troca de bicicletas (não havia nenhuma bicicleta por ali no contexto desta visita) e ciclovia que conecta o Largo do Paissandú com a região do Anhangabaú. Veriica-se, ainda, acesso identiicado a deicientes visuais relacionados às faixas de pedestres contíguas à praça. Percebe-se o caráter público de circulação reforçado por elementos como o próprio padrão de desenhos do calçamento da praça acima descrito. O desenho geométrico estruturado pela técnica de pedras portuguesas é encontrado, além do Largo do Paissandú, em áreas de circulação pública na região: em várias calçadas e calçadões relacionados à Avenida São João existe o mesmo tipo de calçamento com padrões geométricos, inclusive no trecho que conecta o Largo do Paissandú à Praça do Correio e que se estende até o Vale do Anhangabaú. Há, nesse sentido, uma noção de conjunto criada pelo poder público baseada em certa uniformidade destacando a função de circulação, ratiicando a característica cívica desses espaços. Assim, a experiência de observação desse espaço indica uma tensão entre o público em contexto republicano, ligado à ampla circulação e mesmo concentrações populares, noção de organização popular própria de meios urbanos e que remontam a formas de apropriação do espaço público presentes já no contexto da Revolução Francesa por exemplo. De outra forma, há a frequentação pública do templo sagrado ali presente no Largo do Paissandú, onde a circulação e gestos são mais controlados. Dessa forma, é interessante pensar na segunda estratégia de visitação desse local, incluindo também a visitação da igreja. Como dito, o edifício religioso domina a paisagem da praça. Externamente, quase monocromática (predomina o amarelo forte, com molduras em branco, teto em tom marrom e esverdeado na torre), internamente a construção é mais colorida: as cores amarelo claro, rosa, azul predominam na organização de trechos pintados, molduras e de uma grande quantidade de padrões e iguras religiosas pintadas nas paredes, compondo um espaço interno ricamente ornamentado. Ali, a celebração das missas acontece diariamente, exceto aos sábados, em vários horários. O que acompanhamos foi a missa iniciada às 08h30 e teve aproximadamente uma hora de duração. O espaço interno não é muito amplo, e quase completamente ocupado por uma parte posterior e central onde é situado o altar e por bancos nos quais os iéis se dispõem no contexto da celebração da missa. Nas paredes, em nichos, há estátuas de santos negros (São Benedito, Santo Antônio de Categeró e Santa Eigênia). Apesar da forte ligação histórica dessa paróquia com populações negras de São Paulo, presente em alguns signos claros de referência como os santos citados, os iéis que acompanhavam a missa, em número relativamente pequeno, era de composição étnica variada. Nesse sentido, é possível observar que a restrição original do culto nessa igreja, relacionada à distinção interna nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário entre negros e brancos, não tem aplicação prática no plano da longa duração. Não se pensa, é claro, na manutenção da distinção ao longo do tempo, mas de uma eventual tradição ligada especiicamente à comunidade negra, o que não foi observado nessa visita, apesar de serem conhecidas celebrações intimamente ligadas à comunidade negra como as missas afro e congas. 171 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais A experiência nesse espaço interno, assim, indicou uma descontinuidade da sensação no espaço exterior, marcada pela ampla iluminação solar e circulação de populares. Ali dentro, inspirando certa circunspecção e retraimento, o espaço bem mais escuro é iluminado por um candelabro central pendurado no teto, algumas lâmpadas e pela luz externa que atravessa as janelas (rosáceas) com vitrais igurativos coloridos. O gesto é ritualizado e o texto relacionado à liturgia institucional. Além disso, a participação nesse ritual é marcada pela aceitação de uma identidade cristã, católica. O controle da ação das pessoas nesse meio interno revela, ainda, uma preservação material mais forte da região interna do edifício, mas é possível observar certo estado de degradação em alguns elementos arquiteturais. 8.1.4. Reflexões posteriores à visita Pensando nas informações sobre a história desse local e a experiência da visita, foi possível notar que a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, situada no Largo do Paissandú, gerou em torno de si uma importante referência de articulação da identidade da população negra de São Paulo, o que teve como base a tradição já constituída da relação entre o culto dessa santa e comunidades negras em um horizonte histórico mais amplo, mas também à instauração da igreja anterior no antigo Largo do Rosário no século XVIII. Ou seja, essa referência de identidade tem como base uma tradição bem constituída; entretanto, a situação é mais complexa. Pode-se dizer que essa tradição irradiou e consolidou referências paralelas que se tornaram tão (ou mais) importantes que a própria igreja, como a estátua da Mãe Preta que foi inserida nesse contexto praticamente cinquenta anos depois da construção da igreja. Assim, se a igreja como instituição apartou-se, em certos períodos, das mais variadas manifestações das comunidades negras que frequentam essa região, a praça em sua vocação pública, não. É justamente nesse espaço de acolhimento público, onde permanece a estátua da Mãe Preta, alheia ao interior controlado do edifício da igreja, e que foi se constituindo como referência importante na articulação da identidade desse grupo em São Paulo. Mais que isso, a noção de apropriação do espaço público é bastante evidenciada nesse espaço no cotidiano, proporcionando certas tensões entre o aspecto público da instituição católica e aquele cívico. Por exemplo, em certas épocas, fecham-se as portas da igreja em horários entre as cerimônias respondendo à ampla frequentação da praça por moradores de rua, por frequentadores da “Galeria do Rock” e à preocupação com a segurança do local. Entretanto, é preciso ter essa visita como a observação pontual de uma atividade mais complexa dessa instituição. Sabe-se, por exemplo, que a conexão com as comunidades negras de São Paulo não se perdeu e, em eventos simbólicos, ela se torna mais evidente. É o caso das celebrações das missas afro que respondem tanto ao plano tradicional (por exemplo, o culto de São Benedito) como aquele mais ligado à história recente (o debate sobre os direitos civis). Nesse sentido, dois eventos ocorridos ali na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Largo do Paissandú são bem indicativos. O primeiro foi a tradicional missa afro em homenagem a São Benedito, um dos santos padroeiros da comunidade negra no Brasil, em torno do qual se desenvolveu, na paróquia de Nossa Senhora Achiropita, no Bixiga, uma pastoral afro. Entre 23 e 25 de abril de 2014, houve uma missa afro na igreja do Paissandú em homenagem a esse santo organizada pela ainda bastante ativa Irmandade de Nossa Senhora do rosário dos Homens Pretos. O outro, no mesmo ano, no dia 19 novembro (no mês da consciência negra), realizou-se a 14ª edição da missa afro organizada pelo sindicato dos bancários de São Paulo. 172 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo A atividade foi iniciada no Largo São Bento com um cortejo afro tendo um grupo de percussão Nkembi e terminou com a missa referida. O objetivo era evidenciar a discussão sobre a desigualdade racial no Brasil, sobretudo no campo da economia e do trabalho. Esses são dois exemplos pontuais de uma prática comum: as missas afro acontecem em datas simbólicas para a comunidade negra de São Paulo, mas também em outras como o Dia das Mães, revelando o interesse de diálogo entre a instituição católica e manifestações variadas das populações negras de São Paulo. Nesses eventos, há uma marcada presença de instrumentos musicais relacionados a cerimônias de religiões com base afro-brasileira, além de homens e mulheres com danças próprias desse mesmo contexto no transcorrer da missa; o que se distancia, em certa medida, daquela polêmica de 1977 sobre a missa comemorativa da criação do terreiro de São Paulo, situação que foi, em termos gerais, retrabalhada em contextos mais recentes, o que está certamente ligado não apenas às mudanças no interior da instituição, mas também às lutas e conquistas da comunidade negra na história recente do país. O Largo do Paissandú visto como um território negro na atualidade, remete à própria organização de territórios negros no passado em aspectos variados: sua organização em torno de elementos tradicionais, cuja longevidade indica processos históricos de longa duração (pode-se dizer que esse é um local simbólico para comunidades negras de São Paulo há mais de um século), e mesmo certas especiicidades de sua composição como a composição variada (não são espaços exclusivamente frequentados por comunidades negras de São Paulo) e por sua associação à pobreza. Todos esses elementos indicam que a observação da situação atual do Largo do Paissandú, de maneira especíica ou generalista, pode ser feita de maneira bastante proveitosa recuperando-se os elementos históricos que organizaram o espaço e as dinâmicas sociais relacionadas a ele. 8.2. Sugestões de territórios negros a visitar Na sequência, serão apresentados (de forma tópica e alfabética) alguns locais caracterizados como territórios negros que poderiam integrar novas visitas e mesmo a constituição de roteiros, pensando-se a relação dos conteúdos das visitas com o curso de que participam e também a própria relação entre os locais visitados. Pode-se, assim, ser constituída uma relexão do conjunto pensando-se em elementos de territorialidade, mas também certas recorrências ligadas ao lugar na cidade, as políticas de patrimonialização, o tipo de envolvimento do poder público ou de fundações privadas etc. Além disso, como indica a lista a seguir, a caracterização dos territórios negros é bem variada e o aluno pode aproveitar essa variedade criando um roteiro explorando elementos da manifestação cultural, religião, musealização de acervos, instituições de referência etc. Diferente disso, pode haver o interesse de aprofundamento em um tipo especíico de território negro (como templos religiosos), tentando estabelecer certas recorrências que caracterizam sua coerência. Enim, as possibilidades são amplas. Dito isso, segue a lista: 1. Associação Cultural Cachuera!; 2. Casa Mestre Ananias; 3. Centro Cultural do Candomblé; 173 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais 4. Centro de Cultura Afro-Brasileira Asé Ylê do Hozooane; 5. Escola de Samba Vai-Vai; 6. Escola de Samba Camisa Verde e Branco; 7. Grupo Cordão de Ouro; 8. Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte; 9. Igreja Nossa Senhora Achiropita; 10. Igreja de Santa Cruz das Almas dos Enforcados; 11. Ilê Alákétu Asé Ibualamo; 12. Museu Afro-Brasil; 13. Samba da Vela; 14. Sítio da Ressaca (Museu da Cidade de São Paulo - biblioteca temática voltada à cultura negra); 15. Terreiro de Candomblé Aché Ilê Obá; IMPORTANTE Vários deles propostos pelo “Roteiro Afro” da SPTuris, ver link abaixo: http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/o-que-visitar/roteiros/ roteiros-tematicos/roteiro-afro 174 Disciplina 5 - Atividade extra sala - Visitar territórios negros na cidade de São Paulo Considerações finais A visitação a territórios negros na cidade de São Paulo deve ser vista de forma complementar e diretamente relacionada aos conteúdos discutidos no curso. O aproveitamento das relexões variadas relacionadas à visitação poderão ser potencializadas como mais uma fonte de informação para os debates sobre questões raciais no Brasil. Dessa forma, o conteúdo lúdico que certamente compõe qualquer atividade de visitação com excursões escolares e similares deve ser agregado a relexões críticas que poderão ser ensejadas no transcorrer do curso. Para tanto, é importante que o a visitação seja discutida na sua especiicidade (um local a visitar) e na organização de roteiros (um circuito de lugares a visitar), o que, em si, já é uma atividade complexa já que considera a natureza do território negro a visitar, sua caracterização prévia e as relações com as discussões ao longo do curso. Preparar a visita signiica situar a abordagem especíica para a experiência no local. Como visto, na cidade de São Paulo os territórios negros são caracteristicamente variados o que pede um tipo de observação orientada, relacionada às especiicidades da ação das comunidades negras de São Paulo e suas relações nesses espaços. Diferente disso, o visitante poderá ter uma experiência voltada para temas relevantes em debates diferentes que não seriam necessariamente aproveitados no recorte “territorialidades negras”. Por exemplo, ir ao bairro do Bixiga exclusivamente interessado na situação da população de origem italiana é relevante, mas secundário no que se refere ao tema das territorialidades negras. E, mais que isso, o aproveitamento da visitação articulada ao conhecimento prévio e a criação de um relatório no qual as impressões do visitante aparecem devem ser base para a interseção entre debate teórico e experiência prática sobre o tema básico nesse curso de formação. 175 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Referências Bibliográficas ALBERTO, P. L. Terms of Inclusion: Black Intellectuals in Twentieth-century Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011. _____. A Mãe Preta entre sentimento, ciência e mito: intelectuais negros e as metáforas cambiantes de inclusão racial, 1920-1980. In: GOMES, F. & DOMINGUES, P. (orgs.) Políticas de raça: Experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2014. ANDREWS, G. R. Blacks & Whites in São Paulo, Brazil, 1888-1988. Madison: University of Wisconsin Press, 1991. BRUNO, E. S. Almanaque de memórias: reminiscências, depoimentos, relexões. 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É permitida a reprodução parcial ou total desta publicação, desde que citada a fonte DISCIPLINA 6 DIÁSPORA NEGRA NO BRASIL Autor: Douglas José Gomes Araújo Introdução à Tecnologia da Educação a Distância Objetivos Esta disciplina focaliza a diáspora negra no Brasil sob a perspectiva histórico-antropológico. Abordaremos, ao longo das aulas, diferentes aspectos do legado do processo diaspórico africano e suas implicações no Brasil. Interessa-nos focalizar, sobretudo, temáticas que permitam compreender as singularidades e diversidades das culturas africanas, em especial, linguagens simbólicas que teriam orientado as ações dos africanos no novo contexto. Os referenciais culturais possibilitaram aos africanos e descendentes a reelaboração da cultura ancestral. Práticas culturais contemporâneas elaboradas desde o período escravocrata, capoeira, jongo, congada, samba, quilombos, literatura, iliam-se a uma tradição africana permanentemente recriada na contemporaneidade. O título e os conteúdos da unidade foram inspirados no livro de HEYWOOD, Linda. Diáspora negra no Brasil. São Paulo, Contexto, 2009. As unidades deste módulo foram elaboradas a partir da textualização das aulas, aulas transcritas e materiais pedagógicos utilizados por mim e pelo Prof. Dr. José Carlos Gomes da Silva durante atividades que desenvolvemos no curso de extensão “Cultura Afro-brasileira: fundamentos para a prática pedagógica”. O curso foi ministrado no Campus de Extensão da UNIFESP – Santo Amaro nos anos 20132014. Participamos em conjunto de todas as etapas, ou seja, da concepção teórica à prática pedagógica, na condição de coordenadores e professores. Reorganizo nesse momento as aulas em formato de texto acadêmico, proponho atividades e acrescentando indicações para o aprofundamento dos conteúdos adequados à modalidade EaD. 4 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Unidade 1. Introdução Caros cursistas a nossa disciplina se inicia propondo uma relexão sobre o continente africano à época da escravidão. Tencionamos percorrer o drama da dominação europeia na África a partir do século XV e registrar algumas das suas consequências mais imediatas. É fato conhecido que o expansionismo mercantil europeu implicou em consequências dramáticas para povos e etnias africanas, pois implicou na captura violenta de homens e mulheres socialmente inscritos em grupos étnicos especíicos, acirrou conlitos interétnicos e produziu embates entre diferentes concepções de mundo. A reelaboração dos códigos ocidentais nos termos africanos foi inevitável, pois a submissão jamais se fez de maneira plena. As estratégias de luta, rebeliões e fugas, os dramas da travessia do Atlântico e a reinscrição das culturas africanas nas Américas, produziram impactos duradouros que ainda ecoam em nossos dias. A retomada dos referenciais simbólicos africanos, afro-americanos e afro-brasileiros na contemporaneidade, por diferentes comunidades negras, artistas e movimentos negros, nos lembra que a memória ancestral permanece como uma referência viva, atuando de maneira seletiva, reelaborando sentidos, funcionando como ios condutores de ações que, embora aparentemente seccionadas em tempos e espaços, podem ser mais bem compreendidos por meio das referências históricas, míticas, simbólicas que unem os afrodescendentes no presente ao passado. A evocação e reelaboração de símbolos africanos, afro-americanos na diáspora não se relaciona com uma atitude essencialista, mas com a airmação de um sentimento de pertencimento que possui importante valor simbólico. Acreditamos que o melhor caminho para compreendermos a cultura africana na diáspora é toma-la enquanto linguagem simbólica, conforme propuseram Mintz e Price (2003). Enquanto conjunto de referenciais simbólicos que evoca o passado, mas que não se mantém inerte e fossilizado. Observar a dinâmica das práticas culturais africanas na diáspora implica em um primeiro momento em deinir, ainda que provisoriamente, o conceito de cultura na perspectiva antropológica. Existe, contudo, na contemporaneidade uma ininidade de sentidos atribuídos à palavra cultura. Cotidianamente o termo tem sido empregado para hierarquizar pessoas e grupos sociais detentores de saberes escolarizados ou valores e atitudes reinadas, assim, uma certa concepção de superioridade inicialmente associada à noção de cultura ainda ecoa em diferentes formulações. No inal do século XIX a concepção dominante de cultura vigente no mundo ocidental era de caráter evolucionista. Acreditava-se que as sociedades humanas se encontravam em um processo unilinear de crescimento, passando-se dos estágios mais simples aos mais complexos. No ápice da evolução encontrava-se a sociedade europeia. Segundo essa ótica o mundo se dividiria entre civilizados e primitivos, sendo as sociedades europeias classiicadas como civilizadas. Considere, por exemplo esse marco contextual. Se no inal do século XIX o mundo podia ser dividido, de acordo com a visão ocidental europeia, entre sociedades civilizadas - dotadas e cultura, hábitos, valores, crenças e técnicas superiores e primitivas - ágrafas, a-históricas, inferiores, imaginem as projeções sobre as sociedades africanas do século XV, colonizadas e submetidas à escravidão? A percepção dos colonizadores conduziu a uma imagem da “África selvagem”, situada nos estágios inferiores da humanidade. Posteriormente, o escritor Joseph Conrad (2008) nos legaria um texto literário permeado por situações resultantes do contato. Ao longo da narrativa o autor problematiza a persistência do imaginário negativo/selvagem do europeu sobre a África. 5 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Os atos desenvolvidos pelos europeus em face aos povos africanos se inscrevem em um imaginário ordenado pela concepção hierárquica de cultura. O racismo cientíico elaborado no inal do século XIX por autores como Gobineau e Agassiz, elevaria ao status de ciência as construções raciológicas, sustentadas em pressupostos falsos sobre a superioridade biológica da “raça branca”. Posteriormente o antropólogo Franz Boas (1858-1942) iria demonstrar que “raça” não é um conceito cientíico. Raças consideradas inferiores, incluindo povos africanos, foram em outros tempos históricos produtoras de saberes e técnicas que poderiam ser classiicadas como mais complexas que a dos povos europeus. O exemplo do Egito Antigo foi evocado por Boas para demonstrar que povos africanos se encontravam em estágios mais complexos de cultura que os europeus de igual período. Boas também comprovou que inexistiram raças puras ou culturas puras, pois todos esses fenômenos resultariam da mistura incessante, trocas e intercâmbios promovidos por migrações humanas. A partir de Franz Boas o conceito de raça foi substituído na academia pelo conceito de cultura. O conceito passou por um longo debate (Laraia, 1989), mas, recentemente o antropólogo Clifford Geertz introduziu uma deinição que assumimos como orientadora das nossas análises, para o autor a cultura é uma “linguagem simbólica” (Geertz, 1978). Os atos culturais materiais ou simbólicos - utensílios, roupas, instrumentos musicais, expressões orais, gestuais - são atos comunicativos. A capacidade de produzir cultura deriva da condição humana universal de simbolizar a experiência sensível. Para as diferentes culturas atos singulares da vida humana, a vida e a morte, alimentação, casamento, religião, trabalho, arte, são codiicados por maneiras especiais de simbolização ou atribuição de sentido. Coube a Leslie White exprimir com nitidez esse princípio fundamental da cultura. “Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou os nossos ancestrais antropoides em homens e fê-los humanos. Todas as civilizações se espalharam e perpetuaram somente pelo uso de símbolos (...) toda cultura depende de símbolos.” (White, apud Laraia, 1989, p. 56). Assim a unidade humana reside em nossa capacidade da comunicação simbólica, porém, nos diferenciamos profundamente quanto às escolhas culturais. Do ponto de vista antropológico não existe uma prática cultural que possamos classiicar como superior ou inferior a uma prática cultural. Música, arte, família, religião, etc. inscrevem-se em sistemas de representação especíicos, que permitem aos indivíduos dar sentido às experiências humanas em oposição aos demais animais. “O fato é que os homens se recusaram a ser aquilo que, à semelhança dos animais, o passado lhes propunha, tornaram-se inventores de mundos. E plantaram jardins, izeram choupanas, casas e palácios, construíram tambores, lautas e harpas, izeram poemas, transformaram os seus corpos, cobrindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras, construíram altares, enterraram seus mortos e os prepararam para viajar e, na ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas noites.” (Alves, 1983). 6 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil IMPORTANTE Apesar de a linguagem simbólica exprimir a unidade da espécie humana, as culturas que resultam da capacidade humana de simbolizar a experiência vivida são diversas. A antropologia, ciência que se consolidou no inal do século XIX e início do século XX, concluiu que a maioria dos povos desenvolvem concepções etnocêntricas de mundo, ou seja, consideram os valores culturais próprios como superiores aos demais povos. Essa atitude é concebida como etnocêntrica. “Etnocentrismo é, portanto, uma visão de mundo onde nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas deinições do que é a existência humana” (Rocha, 1994). O etnocentrismo tem se reconigurado dando origem a práticas discriminatórias, como xenofobia e racismo. As concepções da cultura como linguagem simbólica, instrumento privilegiado de comunicação humana iria ganhar ainda mais solidez nas teorias antropológicas contemporâneas, desenvolvidas por Claude Lévi-Strauss (1985 e Cliford Geertz (1978). Independentemente das diferenças teóricas que existem entre estes autores nos é suiciente admitir que cultura é um fenômeno da ordem do signiicado, ou seja, que as práticas culturais são orientadas por esquemas de sentido. Assim os objetos materiais como tambores, arcos, lechas e machados, não podem ser compreendidos sem referência ao contexto cultural em que são produzidos, ou seja, à sociedade e à cultura que os geraram, isso porque enquanto artefatos úteis transmitem signiicados quando acionados por membros de uma cultura especíica. IMPORTANTE A diáspora africana é, portanto, aqui compreendida do ponto de vista da cultura. Assim concebido o processo histórico em tela implicou no tráico de pessoas, mas mobilizou também complexas concepções de mundo, estratégias de luta e resistência, técnicas de produção da vida material, elaborações artísticas e religiosas, radicadas em matrizes culturais ancestrais. Os africanos transplantados forçadamente para as Américas nada podiam transportar, porém os corpos e mentes aqui chegaram referenciados em uma memória cultural. Há registros informando que, nos portos de embarque em Ajuda, os nagôs eram obrigados a darem sete voltas em torno da “árvore do esquecimento” para assim apagarem a memória ancestral (Filme “Atlântico Negro: Na rota dos orixás”, de Renato Barbieri - 1998). Mas a recriação das culturas africanas nas Américas demonstra que o “efeito do esquecimento” jamais 7 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos se efetivou, ao contrário, princípios estruturais da cultura africana passariam a funcionar na diáspora como uma espécie de sintaxe orientadora de práticas que não se apresentariam o modelo ancestral, mas forneceriam orientações fundamentais para a ação e reinvenção da cultura ancestral (Mintz e Price 2003). As culturas africanas fundamentam-se, sobretudo, na tradição oral, saberes religiosos, cientíicos e artísticos estão codiicados em instituições que preservam e veiculam os conhecimentos. Os griots, uma casta de músicos da África Ocidental (Senegal, Mali), são exemplares da forma como saberes artísticos e conhecimentos históricos e genealógicos são mantidos pela tradição oral (Hampaté Bâ, 1982). É nesse sentido que as sociedades africanas tradicionais podem ser classiicadas como “sociedades da palavra”, pois de fato o registro oral adquire nesses contextos um valor fundamental. O aforismo atribuído a Amadou Hampatê Ba: “Na África quando um velho morre é uma biblioteca que se queima”, resume o princípio basilar da cultura africana tradicional, em que transmissão de saberes se realiza “de boca a ouvido”. Esse princípio orientou os africanos na reelaboração da cultura afro-brasileira. Foi sem dúvida esse o suporte que possibilitou na diáspora a recriação de um conjunto de práticas culturais no processo de luta contra a escravidão. A tradição oral, conceito que articula memória, palavra e transmissão de saberes (Vansina, 1982), permanece como valor fundamental em um conjunto de práticas culturais de origem africanas e afro-brasileiras. Serão elas o objeto privilegiado dos nossos estudos ao longo da disciplina: quilombos, congado, jongo, capoeira, samba, militância e literatura negra são concebidos como expressões culturais afro-diaspóricas. Aos mestres de capoeira e bateria de escola de samba, jongueiros, capitães de congado, o reconhecimento da dívida histórica pela defesa do patrimônio cultual. A todos eles as nossas justas homenagens. SAIBA MAIS Assista aos documentários: Atlântico Negro – na Rota dos Orixás: https://www.youtube.com/ watch?v=5h55TyNcGiY A História do racismo – BBC: https://www.youtube.com/ watch?v=6Ds-gtdzieU 8 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Referências Bibliográficas ALVES, Ruben. O que é religião. São Paulo, Brasiliense, 1983. BOAS, Franz. Cuestiones fundamentales de Antropologia Cultural. Buenos Aires, 1947. CONRAD, Joseph. O coração das trevas, São Paulo, Companhia das Letras, 2008 GEERTZ, Cliford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. HAMPÂTÉ BÂ, Amadou “A tradição viva”. In: KI-ZERBO, J (coord.) História Geral da África I –Metodologia e Pré-história da África. São Paulo, Ática/UNESCO, 1982. LARAIA, Roque Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989. LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985 MINTZ, Sidney e PRICE, Richard. 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Os termos empregados para categorizar os africanos muitas vezes se referiam aos portos de embarque dos escravizados e áreas geográicas dominadas pelos exploradores. Dados etnográicos e pesquisas históricas contemporâneas vêm contribuindo para a concepção relativização dos povos africanos submetidos à escravidão. Características gerais de grupos étnicos mais expressivos que imprimiram em nosso solo as marcas da cultura africana auxiliam-nos na compreensão da sua singularidade na diversidade. Caros cursistas possivelmente você já tenha se deparado com o desaio ou mesmo a simples curiosidade despertada por termos amplamente difundidos sobre sociedades africanas à época da escravidão. Categorias como jeje, mina, nagô, fula, benguela, moçambique, congo, angola, talvez não lhes sejam estranhas. Ao longo do processo de escolarização ou mesmo frequentando algum evento ou instituição cultural afro-brasileira certamente você terá ouvido referências a algumas delas. A questão que desejamos inicialmente desenvolver é sobre o signiicado destas categorias. Certamente algumas ainda são de uso corrente entre os afro-brasileiros. PARA REFLETIR Quais as razões dessa permanência? Em que sentido são utilizadas? O que exatamente signiicam na contemporaneidade? Até que ponto informam sobre a realidade antropológica das sociedades africanas à época da escravização? De imediato airmamos que alguns destes termos foram construídos pelos colonizadores no intuito de classiicar externamente a imensa diversidade de sociedades africanas. Por meio de categorias como nação, country, terre empregadas pelos colonizadores portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, que desta forma procuram introduzir alguma ordenação no entendimento da diversidade de povos com os quais entravam em contato. Os nomes dos portos de embarque dos escravos foram amplamente utilizados como categoria classiicatória dos africanos. Cumpre, portanto, submeter tais categorizações à análise crítica, pois embora saibamos que algumas destas expressões permanecem em uso pelos afrodescendentes nas América. Em muitos casos tais referências foram reapropriadas e ressigniicadas, dando origem a uma modalidade nova de categorização metaétnica. 10 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil A diversidade de povos e etnias africanas colocou desaios de outra ordem aos pesquisadores, ainal como estabelecer algum grau de ordenação e classiicação em um continente que possui povos aparentemente tão diversos? A principal unidade de organização social dos africanos é o parentesco. As famílias nucleares, as estruturas mais amplas às quais estas se agregam, linhagens e clãs, a unidade linguística, a posse de um território, práticas ritualísticas, cerimoniais e religiosos, a divisão do trabalho, possibilitam um nível de organização básico que é a etnia (Ngou-Mvet, 1994). A expansão de um grupo étnico, em geral, ocorria pela incorporação de outros o que conduziu à formação de vastas organizações políticas sob a centralidade de um rei, originando importantes reinos. O Reino do Congo, o Reino do Dahomé, Reino do Ndongo, são alguns exemplos de reinos formados pela agregação de diferentes grupos étnicos. Os dados demográicos oiciais indicam que cerca de 12 milhões de africanos escravizados aportaram às Américas, sendo que, desse total, aproximadamente 4 milhões foram destinados ao Brasil1. Como então produzir alguma inteligibilidade classiicatória nesse universo amplo, que nos permitia compreender aspectos peculiares aos povos africanos? Os estudos antropológicos, históricos e linguísticos desenvolvidos na contemporaneidade nos têm auxiliado. Particularmente a linguística foi tomada como ciência auxiliar nesse processo classiicatório. Do ponto de vista linguístico não existem línguas superiores, todas possuem uma estrutura lógica interna universal, podendo ser subdivididas em níveis fonético, sintático e semântico. Os estudiosos concluíram que não existem línguas superiores, apenas diferentes. Língua e cultura derivariam da função simbólica, uma especiicidade humana, que nos possibilita a elaboração de subsistemas de representação social (Lévi-Strauss, 1985), assim, a língua pode ser utilizada como um critério classiicatório, não hierárquico. A classiicação dos povos a partir do critério da língua se impôs como uma solução importante no campo da Antropologia. Sabe-se também que uma língua é sempre derivada de um ramo ancestral comum, concebido como tronco linguístico. Percebeu-se igualmente que as línguas humanas se transformavam ao longo do tempo. Tornou-se possível identiicar línguas mais próximas do tronco ancestral comum e outras mais distanciadas. As línguas aparentadas foram classiicadas como pertencentes a uma mesma família linguística. A partir deste critério foi plausível aos estudiosos agrupar povos pertencentes em um mesmo tronco linguístico, ou seja, nessa categoria incluíram povos que falavam a mesma língua e povos que falavam línguas aparentadas. O critério da língua nos auxilia na classiicação das diferentes sociedades africanas. Assim podemos estabelecer níveis de “uniformidade” e ainidade na ampla diversidade. Selecionamos na ampla diversidade linguística da África macro-unidades que possuem ainidades (Greenberg, 1982) sendo que duas delas estiveram implicadas na diáspora de povos para o Brasil. 1. a Afro-asiática, outrora denominada camítico-semítica, situada ao norte; 2. a Niger-Congo (iorubá, fulani, ibo, fon e outras), classiicada historicamente como Sudanesa, universo este caracterizado pela grande fragmentação linguística; 3. a área Bantu onde se veriica maior unidade linguística; 4. a Khoisan, corresponde a uma pequena área onde se encontram os hotentotes e bosquímanos. 1 Ver dados oiciais do IBGE: http://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros 11 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Fonte: http://www.ibamendes.com/2011/05/blog-post_02.html Acesso em 21/10/2015 A distribuição espacial dos povos africanos coincide em grande parte com o mapa linguístico. Para o estudo da cultura afro-brasileira interessa-nos diretamente os grupos linguísticos yorubá, fon e bantu, pois foram destes acervos sociolinguísticos que provieram, à época da escravidão, a maioria dos africanos que se dirigiu ao Brasil. Os bantu, por exemplo, se distribuem por toda a extensão da África, situada a partir da República dos Camarões até o extremo sul. Apenas os bosquímanos e os hotentotes, presentes nesse amplo espaço geográico, falam línguas diferentes do tronco linguístico bantu. 12 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil IMPORTANTE O termo bantu foi cunhado a partir dos estudos de W. Bleck. Em 1860 este pesquisador percebeu que existia entre as línguas dos povos da África Central e Austral semelhanças estruturais. Notou também o pesquisador, nesse amplo universo de povos, a presença de uma partícula comum, ntu, que signiicava homem, enquanto o termo bantu era utilizado como plural, ou seja, os homens. A estrutura social bantu tradicional fundamentava-se no parentesco. As unidades familiares integravam linhagens, em geral patrilineares, estas se iliavam a clãs, que uma vez reunidos, davam origem a reinos. A hipótese para a grande unidade cultural veriicada na área bantu é que estes povos teriam iniciado a expansão territorial por volta de 1500 a.C. Os pioneiros eram grupos de agricultores que conheciam a cerâmica e instrumentos de pedra. O ponto de partida teria sido a região onde hoje se situa a República dos Camarões. Por meio de alianças políticas, casamentos exogâmicos e guerras de conquista, os bantu foram agregando outros grupos étnicos à estrutura social (Ngou-Mve, 1994). Na área bantufone identiicamos historicamente a formação de grandes reinos. Além das semelhanças linguísticas e organização social os bantus compartilhavam analogias quanto às concepções religiosas. A cosmologia religiosa bantu possuía como característica central a lexibilidade. Inexistia no sistema sagrado um controle sacerdotal ou ortodoxia rígida. O culto aos ancestrais apresentava-se, porém, como princípio geral. Nzambi Mpungo era “considerado o deus maior e criador do universo”, mas também era concebido como “ancestral original do primeiro humano”. Seguindo-se a lógica da descendência, os ancestrais estariam mais próximos do ser supremo, por isso a razão em cultuá-los. Os bantu desenvolveram um soisticado sistema de culto aos ancestrais. Acreditavam que os antepassados da linhagem de um homem vigiavam seu comportamento e o punia por qualquer desvio que cometesse (Radclife-Brown e Ford, apud Kagame, 1975, p. 132). “[Entre os Bacongo] Os defuntos têm sua aldeia à maneira dos vivos... Na aldeia, os antepassados possuem casas e campos... Os antepassados são os senhores e proprietários da terra e da água, das lorestas e do sertão, com todos os animais que neles vivem e as palmeiras de vinho que neles crescem. Possuem igualmente as terras de cultura e elas produzem abundantes colheitas se eles assim permitirem. Se algum indígena quiser abater ou incendiar uma antiga loresta para nela fazer um campo de mandioca ou de milho, deverá certiicar-se previamente das disposições dos antepassados por uma pequena prova chamada kifudikila.” (Van Wing, apud Kagame, 1975, p. 131). 13 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Os estudos históricos de Thornton (2009) revelaram que a cosmologia religiosa bantu convivia com a ideia de espíritos perigosos ou inferiores. As concepções de ventura e desventura integravam este universo sagrado (Mello e Souza, 2002), como consequência, desenvolveu-se entre os bantus um complexo religioso especíico, que visava assegurar proteção contra os infortúnios (desventura). De acordo com Thornton, pequenos santuários contendo objetos de proteção (nkisi) foram ediicados por diferentes povos bantu. Esses povos chegaram ao Brasil em meio a um luxo mais ou menos ao longo do período escravocrata. Os bantu inluenciaram a sociedade brasileira em diferentes aspectos. Palavras de origem banta foram incorporadas ao nosso vocabulário (Lopes, 2012). Práticas culturais e instituições afro-brasileiras de origem bantu alcançaram ampla difusão: congada, jongo, samba, candomblé angola. Utilizados como mão de obra desde os primórdios do ciclo açucareiro, os bantu teriam prioritariamente se ixado nas áreas rurais. Pesquisas etnográica orientadas pelo paradigma evolucionista contribuiriam para estigmatizar os povos bantu como inferiores. Porém aquilo que, para muitos, era um dado negativo dos bantu, a sua capacidade em mesclar, misturar e fundir com outros povos, pode ser interpretado como uma das suas características positivas, fato que explica a sua grande difusão no continente africano. Os portugueses foram os primeiros a constatarem a força política dos povos bantu. Ao aportarem no estuário do Rio Congo, em 1492 constataram in loco a grande complexidade e extensão de um reino, o Reino do Congo. A conquista desse imenso reino, não pode ser realizado apenas por meio da espada, negociações, embaixadas e processos de cristianização, precisaram ser mobilizados. Na área linguística Niger-Congo, que engloba parte da África Ocidental, também se observa, à época da escravidão, a formação de grandes reinos, como os de Gana, Mali e Songai. Os pequenos reinos dos Iorubás e o antigo Reino do Dahomé, este sob a hegemonia do grupo linguístico fon. Tais unidades políticas são também importantes, especialmente porque, os grupos étnicos que abrigavam em suas fronteiras, foram fundamentais ao desenvolvimento da religiosidade afro-brasileira. As religiões dos fon e dos yorubás apresentam semelhanças internas, embora o culto aos voduns dos fon comporte distinções em relação aos orixás yorubanos. Os voduns expressam, por exemplo, vínculos de pertença mais sólidos com a família ou linhagem, enquanto os orixás se vinculam de maneira mais direta às comunidades locais. Os iorubá, embora dispersos por uma vasta área geográica, compartilhavam uma mesma língua. A mitologia de origem da cultura na cidade de Ilé-Ifé e o herói fundador Oduduwá eram os dois outros elementos que os unia. Os iorubás dividiam-se até 1800 em subgrupos que circunscreviam reinos e cidades como Oyó, Ijexá, Ijebu, Egbá, Ketu, Ekiti. Determinados orixás assumiam importância maior em determinados reinos, cidades ou comunidades especíicas. O orixá Xangô, por exemplo, era amplamente cultuado em Oyó (Adekoya, 1999). Outra importante religião havia se ixado na África Ocidental, à época da diáspora escravocrata, era o islã. Povos islamizados como os haussá tiveram papel fundamental nas dinâmicas sociais locais. As ações religiosas e políticas que empreenderam, especialmente a prática da jihad, se estenderam também ao Brasil. Durante o grande luxo de escravos da Costa Ocidental da África para a Bahia, veriicado entre 1770 e 1850, muitos haussá aqui aportaram, sendo internamente denominados malês. Nas primeiras décadas do século XIX os haussá foram responsáveis por grandes rebeliões em Salvador, registradas na historiograia como a Revolta dos Malês. 14 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Os termos aplicados aos africanos por colonizadores, missionários e administradores não correspondiam, portanto, aos etnômios, isto é, o sentido étnico atribuído pelos próprios povos africanos. Os europeus utilizavam a categoria nação para se referir a grupos étnicos que desconheciam e sob este rótulo incluíam deferentes etnias. Assim, os haussá foram classiicados como malês, os iorubá como nagôs e os fon, rotulados de jejes. Na diáspora, categorias elaboradas pelos colonizadores como Moçambique, Congo, Jeje, Nagô, foram assumidas pelos escravos e deram origem a organizações metaétnicas nas Américas, sob o rótulo nação uma multiplicidade de etnias foram reordenadas, mas esse não foi um processo aleatório, iliações étnicas, linguísticas e culturais orientaram a recomposição das nações de candomblé e os ternos de congo, por exemplo. SAIBA MAIS • O Povo Brasileiro - Matriz Afro: https://www.youtube.com/ watch?v=vwj1GBEYr_s • “A inluência das línguas africanas no português brasileiro” – Yeda Pessoa de Castro http://www.educacao.salvador.ba.gov.br/ documentos/linguas-africanas.pdf • O Tempo Dos Povos Africanos de Elisa Larkin http://uhem-mesut. com/+semen/genut/tut/medu/0015/suplemento-didatico.pdf Referências Bibliográficas ADEKOYA, Olúmúywá Anthony. Introdução à história social dos Yorubá: tradição oral e história. São Paulo, Terceira Margem, 1999. GREENBERG, Joseph H. “Classiicação das Línguas da África”. In: KI-ZERBO, J. (coord.) História geral da África I: metodologia e pré-história da África. São Paulo, Ática/UNESCO, 1982 KAGAME, Alexis. “A percepção empírica do tempo e a concepção de história no pensamento bantu”. In: P. Ricouer (org). As culturas e o tempo, São Paulo, Vozes/EDUSP, 1975. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985 LOPES, Nei. Novo dicionário banto do Brasil, Rio de Janeiro, Pallas, 2012 NGOU-MVET, Nicolás. El Africa bantu en la colonización de Mexico, Madrid, CSIC, 1994 (pp. 10-66). THORNTON. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In: HEYWOOD, Linda. Diáspora negra no Brasil. São Paulo, Contexto, 2009. (pp 81-100). 15 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 2 Texto 2. Escravização, travessia e reterritorialização das culturas africanas Objetivos: Analisar os processos de desestabilização das etnias e reinos africanos em decorrência do desenvolvimento do sistema escravistas. Pretendemos ainda reconstruir imageticamente o drama da travessia. A dramaticidade dessa migração forçada deixou marcas no imaginário das culturas africanas nas Américas. A simbologia das águas, o culto a Iemanjá, as referências à água em cantigas e legras de samba, são documentos da memória da travessia, um drama recriado em festas públicas e manifestações culturais. A terra é outro elemento fundamental do imaginário afro-americano e afro-brasileiro traduzido em formações quilombolas, palenques, cumbes. A escravidão implicou na desestabilização dos grupos étnicos no continente africano. Conforme notou Fernando Novais, somente se pode compreender a submissão do africano à condição de escravo como um subproduto do escravismo, ou seja, “é começando com o comércio de escravos que se entende a escravidão colonial” (Novais, apud Gomes, 2005, p. 27). Portanto, a escravização dos africanos, “não resulta de um efeito colateral, mas um elemento central do sistema escravista”. Durante a vigência do tráico escravocrata no Brasil oicialmente delimitado entre 1531 e 1855 aqui aportaram 4 milhões de africanos. O luxo foi descontínuo e algumas regiões da África foram objeto do tráico em momentos especíico. Pode-se delimitar períodos e espaços em que a captura de africanos com o ito da escravização se veriicou de maneira mais intensa. Apresentamos abaixo uma síntese desse processo extraída de Rafael Sânzio Araújo dos Anjos (2000). • Século XVI – a referência principal são os povos africanos retirados das regiões caracterizadas como Alta e Baixa Guiné (...) Os territórios africanos atingidos pelo tráico nesse período atualmente correspondem a parcelas dos seguintes países: Serra Leoa, Senegal, Guiné, Guiné Bissau e Gâmbia”. Parte expressiva desse contingente de africanos foi enviada para as regiões açucareiras Pernambuco, Bahia, Maranhão, Grão-Pará (Anjos, 2000, p. 29-31). • No século XVII o tráico vai ser dinamizado na “Costa de Angola”, transportando povos africanos para a Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo e regiões do Centro-Sul do Brasil, e na “Costa da Mina”, com luxos para as províncias do Grão-Pará, Maranhão e o território atual do Rio Grande do Norte. A antiga “Costa da Mina” compreende atualmente os territórios dos seguintes países: Costa do Marim, Gana, Togo, 16 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Benin, Nigéria e Camarões. A conhecida “Costa de Angola” corresponde aos seguintes países: Angola, Gabão e Guiné Equatorial (Anjos, 2000, p. 31). • Nos séculos XVII e XVIII, vão se constituir as mais importantes e duradouras extensões territoriais das rotas do tráico negreiro: as “Costas da Mina” e de Angola. É nesse período que vão ocorrer os maiores volumes de povos africanos transplantados para o território brasileiro. A primeira metade do século XIX caracterizou-se pelos vários tratados visando abolir o tráico negreiro, o que no Brasil só ocorreu efetivamente em 1850. Os espaços geográicos da África atingidos por esse último ciclo têm correspondência na atualidade nos seguintes países: Gana, Togo, Benin, Nigéria, Gabão, Congo, Angola, Moçambique e Madagascar (idem, p. 31). O fato de os lucros do comércio escravista acabarem nas mãos dos comerciantes metropolitanos, explica a opção pelos africanos. Sabemos que escravização de indígenas foi, inclusive, iniciada, mas o rápido abandono não se deu pelas supostas razões religiosas, mas pelo fato de os ganhos da escravização destes icarem nas colônias. A escravidão dos africanos, ao contrário, desenvolveu-se integrada ao chamado “comércio triangular”. Os navios partiam das metrópoles com mercadorias, armas e bens manufaturados, na África estes bens eram trocados por escravos. Os navios negreiros conduziam os africanos até as colônias onde eram comercializados. Uma vez nas colônias os comerciantes abasteciam as naus com mercadorias diversas como açúcar, tabaco e metais preciosos que seriam comercializados na Europa. Fonte: ADEKOYA, Olúmúywá Anthony. Introdução à história social dos Yorubá: tradição oral e história. São Paulo, Terceira Margem, 1999. 17 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos NA PRÁTICA Apesar de iniciarmos esta fala nos referindo ao dado econômico, o nosso objetivo é tentar compreender a forma como este processo macroestrutural impactou os africanos, como eles reagiram aos efeitos e produziram simbologias relacionadas com o trauma da travessia do Atlântico. Algumas destas simbologias aparecem ainda no imaginário afro-brasileiro. Abordaremos de maneira especíica duas destas representações simbólicas: 1. A primeira delas é a simbologia das águas, presente nos mitos e narrativas dos ternos de Congada; 2. a segunda diz respeito aos quilombos, experiência africana que foi reelaborada nas Américas e que permanece, enquanto representação social, rica em signiicações. Diferentes pesquisadores identiicaram a temática das águas nos textos religiosos afro-brasileiros. A igura de Iemanjá, representada como a “grande mãe africana do Brasil” e os sincretismos deste orixá com Nossa Senhora Aparecida foram interpretados recentemente por Vallado (2005) a partir de nexos com a religiosidade africana. Podemos agregar ainda o ritual das águas para Oxalá, a lavagem da Igreja de Nosso Senhor do Bonim na Bahia, como ritos diaspóricos relacionados à simbologia das águas. Os textos, ritos e mitos da tradição religiosa, as referências que localizamos em letras de samba, reforçam o valor simbólico da água no imaginário afro-brasileiro. A nossa hipótese é que a presença deste elemento é uma expressão emblemática da Travessia do Atlântico, da “Passagem do Meio”. Os dramas vividos nestes momentos inaugurais da diáspora foram objeto de uma importante reconstituição em linguagem fílmica (La Amistad, Steven Spielberg). Simbologias das águas são referências importantes no imaginário afro-brasileiro, mas se estendem também ao universo afro-americano. Martin Lienhard (1998) ao estudar as cantigas rituais dos paleros em Cuba, observou que as categorias que se reportavam às águas e à terra apareciam nos cânticos como elementos centrais. Em tal contexto, a palavra ninda, expressaria as simbologias relacionadas ao universo das matas, terra ou quilombo, enquanto a categoria kalunga vincular-se-ia à simbologia das águas, à madre de água, divindade protetora dos escravos. Ou seja, em diferentes contextos os pesquisadores têm observado um conjunto representações que se conectam com as experiências históricas da diáspora, sendo estas circunscritas ao menos a dois universos temáticos: 1. Ao drama da travessia: simbolizada na valorização do elemento água; 2. à luta contra a opressão: representada no elemento terra/território. 18 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Simbologia das águas: kalunga A simbologia das águas e a importância conferida à terra, ao mato, às lorestas pelos africanos nas Américas, se inscreve, portanto, em um longo processo de reconiguração das identidades negras em face à desestruturação das culturas tradicionais africanas. A escravidão enquanto projeto de dominação, com inalidades comerciais transatlânticas, surgiu como criação moderna, com sentidos especíicos conferidos pela expansão comercial europeia. Os africanos de fato conheciam a escravidão, mas a forma como era praticada diferia das inalidades comerciais europeias. Ajustes foram desenvolvidos pelos europeus até a transformação da captura e venda de africanos como escravos. A cooptação e o envolvimento de chefes políticos locais com o tráico foi um aspecto importante no desenvolvimento do novo modelo de escravidão na África, mas tal efetivação não pode ser analisada sem se considerar as determinantes da expansão mercantilista. Os contatos estabelecidos desde o início pelos portugueses no continente africano são ilustrativos da forma como as identidades tradicionais foram sendo desestabilizadas pelo tráico. A colonização portuguesa teve início nas primeiras décadas do século XVI, com o desenvolvimento da economia do açúcar na Ilha de São Tomé. A mão de obra escrava era abastecida nesse momento por indivíduos capturados nas regiões do Benin e Congo, locais por onde os portugueses iniciaram ocupação do continente. O comércio de escravos tomou vulto nos séculos XVI e XVII, quando da união das coroas de Portugal e Espanha (1580-1640). De acordo com Miller (2009, p. 33) durante os “turbulentos anos de 1570, revoltas em São Tomé interromperam o comércio e a produção de açúcar na ilha” e forçaram os portugueses a buscar novas alternativas. O deslocamento dos portugueses para a região de Angola abriu uma segunda fonte de suplemento da mão de obra escrava. Ao longo do século XVII o porto de Luanda se ixaria como principal núcleo exportador. O local permaneceu, apesar das oscilações, como referência nos séculos seguintes, inclusive durante o período do tráico ilegal, 1830-1860 (Pantoja & Saraiva, 1999). O projeto de escravização empreendido por Portugal articulava os poderes temporal e o espiritual. A colonização do Congo pode ser tomada como exemplar. A adesão dos congoleses ao catolicismo não se fez exclusivamente por meio das armas, a cruz foi uma aliada importante. Os marcos religiosos da conquista nos quais a colonização se desenvolveu explicam em grande medida a adesão dos congoleses aos ideais dos colonizadores. Os portugueses, sob o comando de Diogo Cão chegaram à foz do rio Zaire em 1483. Os relatos conirmam que a conversão rápida ao catolicismo foi fator importante para a dominação política. Os registros históricos sobre a primeira expedição visando aprofundar os contatos entre a corte portuguesa e o reino do Congo datam de 1485. A literatura especializada revela que o encontro inicial entre os dois reinos foi de natureza pacíica. As narrativas mencionam fatos que reforçam a ideia de uma fácil incursão dos portugueses ao interior do reino. Parte da expedição teria, porém, avançado em demasia e demorado a retornar. A tripulação que os aguardava nos navios, cansada de esperar, zarpou, levando consigo alguns reféns. Os pesquisadores registram outro fato que comprova a ideia de um contato inicial diplomático. Em 1489 o rei do Congo enviou uma embaixada a Portugal com o objetivo de selar a amizade entre os povos. Solicitava-se ao rei português que os jovens da comitiva fossem instruídos nos 19 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos mandamentos da fé cristã, nas falas e escritas latinas. Durante todo o ano de 1490 os enviados ao rei de Portugal permaneceram no país “iniciando-se nos costumes da corte” (Mello e Souza, 2003, p. 53). O retorno dos reféns de 1485 ao Congo foi saudado “como se todos fossem mortos ressuscitados” (MacGafey, apud Mello e Souza, 2003, p. 63). A religião congolesa contribuiu de forma decisiva para a interpretação mítica do fato. Do ponto de vista da cosmologia bacongo, inclusive atual, o mundo divide-se em duas partes, o visível e o invisível. O mundo dos vivos é “habitado por gente negra”, nele os seres humanos aparecem e desaparecem por meio do nascimento e morte. O mundo invisível é habitado pelos ancestrais e espíritos diversos. Os ancestrais interferem no mundo dos vivos, podendo, inclusive, castigá-los. Para os bacongo as duas vias de comunicação com o mundo invisível são os túmulos e a água. O oceano era para muitos bacongos domínio do além. A chegada dos portugueses ao Congo foi elaborada como um acontecimento mágico, pois do ponto de vista dos congoleses, no mundo do além, os homens tinham a pele branca, seriam albinos. Os portugueses foram concebidos, portanto, dentro deste quadro mágico como seres superiores (Mello e Souza, idem). As águas se apresentavam, porém, no imaginário bacongo de maneira polissêmica. Podiam inspirar temor, uma vez que eram associadas à morte, mas podiam signiicar também poder divino, habitat dos ancestrais e divindades. Nas concepções de alguns povos bantus as águas evocavam, por vezes, uma divindade especíica, a kalunga, “termo semântico complexo, mas que em diferentes versões signiica “mãe d’água” (Lienhard, 1998, p. 45). O embarque dos africanos nos navios negreiros se aigurava como uma experiência traumática, em particular pela violência imposta, mas era igualmente temida pelos vários signiicados associados às águas. Diversas práticas desenvolvidas pelos escravos nas Américas, como, por exemplo, o suicídio nas águas, tinham como componente simbólico o desejo de o espírito retornar à África via oceano. Ou seja, por meio das águas os africanos sabiam que haviam chegado ao um novo habitat, mas, por esta mesma via acreditavam que se daria o retorno espiritual às origens. As narrativas dos congadeiros da Irmandade Nossa Senhora do Jatobá (MG) falam de Nossa Senhora do Rosário, uma divindade que teria acompanhado os africanos durante a longa travessia. As memórias colhidas por Leda Maria Martins (1997) são exemplares da importância conferida às águas e ao mar. As noções que identiicam a água como local de moradia da divindade são recorrentes. Os textos em que a autora registrou a tradição oral congadeira conirmam que “os africanos não navegaram sós”. Destacamos, para os nossos propósitos ilustrativos, fragmentos da narrativa número 4. Eu ouvi quando contava os negos veio, o qual eu era criança nessa época, contando sobre a lenda do reinado e nóis sobrevivemos no reinado de Nossa Senhora como lenda. Assim contava eles que Nossa Senhora apareceu no mar e o menino, uma criança ilha dos nego véio, foi a primeira que viu a santa e viu uma coisa muito [...] uma coisa brilhando em cima da cabeça dela. Ele não sabia distinguir o que era, porque estava muito longe. Voltou em casa e contou a seus pais que tinha visto uma mulher muito bonita sentada na pedra dentro do mar e com uma luz na 20 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil cabeça. O pai do menino falou pro menino que não admitia que ele contasse mentira, que preto não conta mentira, que ele abrisse a boca só prá falar a verdade, bateu no menino e o menino icou brincando, daí a pouco ele tornou a ver a santa a mesma coisa, lá no mar. Nesse meio de temo o branco viu a Nossa Senhora sentada no mar, então os padre jesuíta, assim contado pelos nego véio. E foram lá prá tirar a santa, levaram banda de música, levaram coral, izeram uma igrejinha bonita e foram de canoa e tiraram a santa lá de dentro do mar, colocou ela dentro da igreja. Quando foi no outro dia que eles voltaram, ela não estava lá mais, estava sentada na mesma pedra; aí o pessoal começou a fazer a romaria e juntando os marujos pro mar, tudo prá ver Nossa Senhora, tirava ela e colocava ela na igreja e ela tornou a voltar pro mesmo lugar lá onde ela tava. O menino tornou a ver a santa e tomou outro coro, quando foi na terceira vez que ele falou que tinha visto a mulher bonita lá dentro da água do mar, os pais dele foram até uma certa distância e viram a santa e viu a multidão de gente que estava fazendo a romaria e pelejando pra ver se Nossa Senhora icava fora da água. Então os nego véio pediram a seus senhor, que eles eram escravos, se eles podiam ir lá cantar pra santa na beira do mar. Então o senhor deles falou: cantar como, vocês não têm instrumentos, e eles disseram se ele dava permissão deles cortar a madeira, pegar a madeira pra fazer os instrumentos, pra poder cantar pra Nossa Senhora. O senhor deles respondeu: desde que vocês forem no mato e não cortarem nenhuma madeira em pé, nenhuma madeira verde pra fazer seus instrumentos, cês pode ir, cês pode cantar pra ir lá visitar a santa. Então juntou os [...] sete homens, seis homens e uma mulher, eles foram pro mato, cortaram os cabos no mato, pegaram folha de bananeira africana colocou na boca daquele pau ocado [...] se diz que preto é cheio de mandinga e feitiçaria, mas não tem nada disso, preto só tem, quando ele faz uma coisa ele faz de amor e de coração com aquela fé viva que eles tinha de cantar pra Nossa Senhora, colocaram aquela folha de bananeira naquele pau ocado e foi cantar pra Nossa Senhora na beira do mar. Quando eles chegaram na beira do mar que eles cantaram: anaruê, okunda, otunda, dandolê, di carunga uaiá, anaruê oiê, akunda, oreia di carunga anaruê. (...) Quando foi no outro dia que o senhor foi lá onde é que a santa tava ela já não tava lá mais, ela já tinha desaparecido, aí [...] o senhor apertou os nego e disse que ia botar eles na roda do chicote, naquela roda de navalha se eles não falasse onde é que tinha escondido a santa; foi o menino [e] disse pro senhor: porque vossuncê não vai lá na beira do mar pra ver se a santa não voltou pra lá? Quando ele chegou lá a santa estava dentro de um ranchinho de sapé, que os nego tinha feito pra guardar os seus instrumentos e pra cantar pra Nossa Senhora do Rosário. Aí eles pelejaram de toda maneira, ela icou naquela casa de sapé, que a casa de Nossa Senhora, por mais bonita que seja ela, é a mais humilde de todas as igrejas de nosso Brasil, e nesse meio de tempo que teve aquela confusão toda, Nossa Senhora do Rosário até que resolvida toda sentou no tambor Santana e ele icou 21 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos considerado para os congadeiros e para todo o pessoal que faz o reinado, o tamborete sagrado onde ela sentou pela primeira vez no meio dos preto. E desse dia em diante a confusão os nego começou a fazer a segunda festa de Nossa Senhora do Rosário, baseada nos quinze mistérios do Rosário de Maria. (Sr. João Lopes, 64 anos, capitão-Mor da Irmandade de N. Senhora do Rosário do Jatobá) (Martins, 1997, p. 53-54). As referências mitológicas à santa que protegeu os africanos durante a travessia se somam a outra categoria, que se reporta ao contato estabelecido entre os capturados nos navios negreiros. Robert Slenes (1991) constatou que entre os africanos que chegavam ao Brasil no período colonial era uso corrente a palavra malungo para designar aqueles que se reconheciam como companheiros de viagem ou de travessia. Consultando um dicionário português de 1779 o autor veriicou que o termo tinha como sinônimo “a forma como chama o preto aquele que veio com ele (da África) na mesma embarcação”. Lembra o autor que o uso do termo malungo entre os africanos era um indicativo que, antes mesmo de adentrarem ao navio, enquanto aguardavam nos portos de embarques, os africanos, cujas línguas se iliavam ao tronco ancestral bantu, dialogavam e se compreendiam mutuamente. Portanto, para Slenes as novas identidades étnicas que seriam posteriormente recriadas nas Américas começaram a ser gestadas no processo da grande travessia. SAIBA MAIS • La Amistad: fragmento do ilme sobre a captura dos escravos na África: https://www.youtube.com/watch?v=rRebrV3z1kw • Era Rei e Sou Escravo - Música de Milton Nascimento: https:// www.youtube.com/watch?v=z2g2JVx65OA 22 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Referências Bibliográficas LIENHARD, Martin. O mar e o mato. Histórias da escravidão (Congo-Angola, Brasil, Caribe), Salvador, UFBA/CEAO, 1998 MARTINS, Leda Maria. Afrograias da memória. Perspectiva & Mazza Ed. São Paulo e Belo Horizonte, 1997 MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação do rei Congo. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002. MILLER, Joseph C. “África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850”. In: Linda Heywood (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo, Contexto, 2009. PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flávio S. Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999. VALLADO, Armando. Iemanjá: a grande mãe africana do Brasil. Rio de Janeiro, Pallas, 2005. 23 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 3 Texto 1. Escravidão, quilombos e remanescentes de quilombos Objetivos: Abordaremos os processos de constituição dos quilombos nas Américas. Entendemos que essa experiência possui nexos com os antepassados de luta de algumas etnias africanas. A formação de quilombos durante a escravidão não foi obra de uma fuga desordenada da opressão, mas fez parte de um projeto político que em sua expressão máxima, Palmares incluía a formação de um Estado Negro, sob a liderança tradicional de um rei, igura central na organização política dos povos africanos. A percepção da terra como espaço de luta negra na diáspora prossegue na contemporaneidade. As comunidades negras rurais, ressiginifcadas como “remanescentes de quilombos”. De acordo com Jan Vansina os “kilombos” teriam surgido em Angola por volta de 1500 enquanto a categoria linguística que designava uma “associação de iniciação militar” (Vansina, apud Lienhard, 1998, p. 109). Os pesquisadores entendem que essa prática de formação militar iria ganhar relevo quando foi reconigurada uma estratégia de luta empreendida contra o colonialismo em solo africano. Trata-se de um modelo de organização militar especialmente elaborada pelos guerreiros imbagala, nomeados jaga pelos portugueses. A presença portuguesa na região, com a inalidade de exploração da mão de obra escrava, deu início ao segundo grande ciclo escravocrata, iniciado no século XVII. Os conlitos com os africanos militarmente organizados, os imbagala, se acirraram no período. Ao longo do século XVII o tráico escravocrata iria se concentrar na “Costa de Angola”. Parte expressiva do contingente populacional escravizado nesta região seria destinada aos estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo os cálculos de Miller “menos da metade de 8 a 10 mil cativos enviados a cada ano de toda a costa ao sul da foz do rio Zaire alcançou o nordeste Brasileiro” (Miller, 2009, p. 35). Após um breve período de domínio holandês na região os portugueses reestabeleceram a hegemonia. Na medida em que os interesses dos fazendeiros de Pernambuco se tornaram o motivo mais importante em restabelecer a presença comercial portuguesa em Luanda, nos anos 1650 e 1660, os Centro-Africanos da área de Cuanza, escravizados entre as décadas de 1660 e 1690, vieram aportar no Brasil, a maioria em Pernambuco e talvez secundariamente na Bahia (Miller, 2009, p. 36-38). A ação dos portugueses de captura dos escravos contou com o apoio de chefes guerreiros nativos que irmaram aliança com os colonizadores. Os indivíduos capturados, que conseguiam escapar do jugo português, muitas vezes fugiam e embrenhavam-se no mato. Segundo Martin 24 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Lienhard a ideia de fuga era incomum no modelo de escravidão africana tradicional, mas sob o colonialismo europeu, passou a ser amplamente praticada. A emergência de uma “consciência escrava” de resistência à dominação portuguesa foi se consolidando. “Um aspecto particularmente interessante desse movimento é a composição do exército dos escravos fugidos” (Lienhard, 1998, p. 108). A organização militar em acampamentos foi inicialmente utilizada pelos jaga, enquanto aliados dos portugueses, na captura dos escravos, mas a ação rebelde, de resistência à dominação, iria conferir à prática outro signiicado. De acordo com o autor kilombo “o nome que se deu no Brasil ao reduto de escravos fugidos tem o mesmo sentido do empregado em Angola”. Lienhard admite, ainda, que a rainha angolana Nzinga fez uso da experiência quilombola ao longo da resistência aos portugueses. (...) imagem do quilombo bantu sobreviveu, sem dúvida, na consciência coletiva dos escravos americanos procedentes da Área Congo-Angola. É legítimo supor que eles, para lutar contra o seu cativeiro na América, se inspirassem nessa forma de organização político-militar, particularmente adequada a uma existência incerta e sem base geográica permanente. Ora, na América escravista, os quilombos, palenques, cumbes se inscreviam em uns projetos muito variáveis segundo o lugar e a época, todos bem diferentes dos que animavam os jagas ou a própria Nzinga. Alguns quilombos foram redutos mais ou menos autônomos de escravos de procedência africana (Lienhard, 1988, p. 109-110). As primeiras informações sobre o mais importante quilombo das Américas, o Quilombo dos Palmares, datam de 1612, quando os portugueses empreenderam expedições preliminares destinadas a combater o Estado Negro. Palmares continuou, entretanto, a crescer. Em 1840 os holandeses que ocupavam Pernambuco passaram a considerá-lo “um sério perigo”. “Mandaram Bartolomeu Lintz para obter informações sobre o quilombo, que foi descrito como composto por dois grandes assentamentos: uma aldeia grande na Serra da Barriga e uma menor à margem esquerda do rio Gurungumba” (Funari e Carvalho, 2005, p. 11-12). A presença de um rei negro como comandante e líder militar resgatam um aspecto fundamental de organização política das sociedades africanas. As iguras do rei, tanto nos quilombos quanto na congada, revelam semelhanças simbólicas que as iliam culturalmente à tradição bantu. As pesquisas recentes sobre Palmares conirmam que este foi um experimento que contou a presença da região de Angola. No século XVII a exploração da mão de obra escrava havia se deslocado para a essa região. Palmares foi se conigurando com uma reunião de pequenas comunidades, mas é possível concluir que a centralização política foi o que possibilitou a longa duração da luta. Os primeiros registros sobre quilombo começam ainda no período em que a capitania de Pernambuco, encontrava-se sob o domínio holandês. Palmares As primeiras informações documentadas sobre Palmares são de 1597. As regiões serranas de Pernambuco foram, na época, escolhidas como espaço ideal de refúgio para os quilombolas, 25 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos destacava-se dentre todas a Serra da Barriga. A região era circundada por uma loresta densa que diicultava o acesso. Existia na localidade uma espécie de árvore, a palmeira, que iria contribuir para que o local fosse denominado Palmares. Em 1637, o governo holandês em Pernambuco enviou expedições com o ito de preparar a destruição de Palmares, Bartolomeu Lins, um mestiço que possivelmente tenha vivido no quilombo, relatou que na Serra da Barriga existiam duas comunidades, Palmares Grandes composto por 5.000 habitantes e Palmares Pequenos, com 6.000 (Gomes, 2014, p. 63). As riquezas naturais, rios e peixes, matas e caças forneciam a matéria prima para ediicar e cobrir as casas, produzirem as vestimentas, alimentos, condimentos e bebidas, mel, sal, azeite, vinho. A produção da vida material e cultural adquiriu uma ordenação própria. Plantavam ainda cana-de-açúcar para consumo próprio e produção de melado. O sistema agrícola dos palmaristas era organizado. O terreno para o plantio preparado, e o período de colheita acompanhado de festa em todos os mocambos. A produção era coletiva (Gomes, 2014, p. 74) Os mocambos de Palmares situavam-se a 120 quilômetros do litoral de Pernambuco. IMPORTANTE O termo Mocambo, empregado à época, era uma palavra de origem africana que signiicava acampamento militar, mas também denotava moradia entre os falantes das línguas bantu da África Central e Centro-Ocidental. Para os africanos que lutavam contra o poder colonial, mocambos se referiam aos “acampamentos militares tanto de reinos que participavam do tráico como de guerreiros (os imbagalas) que atacavam os portugueses e outros grupos africanos” (Gomes, 2014, p. 120) Possivelmente os principais grupos étnicos que integraram o quilombo tenha provindo África Central e Centro-Ocidental. Por volta de meados do século XVII o ciclo do açúcar e a exploração da mão de obra escrava na região de Angola, promoveram a diáspora de importantes contingentes de povos dessa localidade, em geral falantes do umbundo e quimbundo, por isso seria plausível admitir que Palmares foi um experimento em que se recriou as estratégias de lutas nativas ancestrais. A visão elaborada posteriormente sobre esta forma de organização social como sendo de natureza multirracial, em que brancos pobres, negros e indígenas conviviam harmonicamente, não exprime a realidade, trata-se para alguns pesquisadores de uma projeção do “mito da democracia racial”. Palmares, segundo outros estudiosos, foi em sua essência uma recriação bantu, mais especiicamente Centro-Africano-Ocidental. 26 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil IMPORTANTE Palmares se consolidou como uma experiência que articulava diferentes mocambos que se espalharam pela Serra da Barriga. O principal mocambo era Macaco “centro político e administrativo, funcionando como se fosse a capital de Palmares. Além disso, tratavase do mais povoado, com milhares de casas, e nele residia GangaZumba, o principal líder dos palmaristas” (Gomes, 2014, p. 84). Dentre os demais mocambos destacavam-se: Subupira, Osenga, Una, Gôngoro, Oiteiro, Garanhuns, Gonzom Graça, Drambraganga, Quiloange, Aqualtune, Pedro Capacaça, Acotirene, Cucaú, Tabocas Grande, Quissama, Tabocas Pequeno, Cantigas, Andalaquituche (idem, p. 87). Palmares teria resistido até 1695 (data do assassinato do seu principal líder Zumbi). A historiograia registra que após a morte de Zumbi, outros líderes continuaram as lutas. São citados, Camoanga e Mouza. A organização política em Palmares era centralizada, possivelmente reeditando a importância simbólica do rei em sociedades centro-africanas. A resistência dos quilombolas transformou Palmares em um desaio que surpreendeu o poder colonial. Foram inúmeras as tentativas de destruir o quilombo, mas a maioria esbarrou nas estratégias de luta dos palmarinos. As expedições militares contra os quilombolas iriam colher sucessivos fracassos. “Quando não se destruía um ou outro mocambo abandonado – ou mesmo alguns palmaristas eram capturados – as tropas só encontravam febre e armadilhas naquelas selvas (Gomes, 2014, 123). A resistência militar iria conduzir a tentativas de pactos e negociações com os portugueses. PARA REFLETIR Seria possível a convivência entre o poder colonial e um Estado negro? A questão parece ter dividido as principais lideranças, Ganga-Zumba e Zumbi. De qualquer maneira, as primeiras tratativas formais foram desenvolvidas com a mediação de um militar de origem africana e lideranças de Palmares, posteriormente, os próprios palmaristas teriam enviado uma comitiva integrada por três ilhos de Ganga-Zumba para negociar o acordo de paz com o governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida (Gomes, 2014, p. 125). A tentativa de pacto atribuída a Ganga-Zumba não logrou êxito. Sabe-se que este se tornou a principal liderança de Palmares entre 1645-1678. Disputas internas indicam, contudo, que Ganga-Zumba teria sido envenenado e morto. O novo líder seria Zumbi, sobrinho de Ganga-Zumba, que se irmaria como líder militar e comandante geral de Palmares de 1678 até1695. 27 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Zumbi teria nascido em Palmares em 1655. Durante as investidas coloniais contra os palmaristas, foi capturado ainda recém-nascido. Levado para Vila de Porto Calvo foi batizado com o nome de Francisco. Cresceu e passou a trabalhar para o padre Antônio e Mello. Sabe-se que com este aprendeu bem o latim e o português. Em 1670, com cerca de 15 anos fugiu para Palmares. Poucos anos depois já se tornara importante comandante militar. No inal de 1678, com sua decisão de não apoiar o acordo com os portugueses e devido ao assassinato de Ganga-Zumba, tornar-se-ia o principal líder de Palmares (idem, p. 138). No inal da década de 1680 a posição do poder colonial foi redeinida. O principal objetivo agora era a destruição total de Palmares. Investiram desde então no apoio dos paulistas, que desenvolveram conhecimentos de luta nas selvas, na prática de captura aos indígenas. Do ponto de vista dos bandeirantes paulistas os ganhos materiais seriam o grande atrativo, pois a capitania de Pernambuco forneceria “chumbo e mantimentos” e os paulistas, se vencedores, teriam acesso aos espólios de guerra. “As crianças capturadas seriam propriedades suas; Após o início da expedição teriam o direito de receber oito mil réis por cada palmarista que se apresentasse por conta própria ao seu senhor; Teriam direito de posse e usufruto das terras onde se localizavam os mocambos de Palmares (Gomes, 2014, p. 145) O bandeirante Domingos Jorge Velho foi o comandante militar dos paulistas na luta contra Palmares. A principal questão econômica, do ponto de vista destes, era a terra, considerada muito valiosa. Mas a mão de obra escrava era outro motivador, pois até então os bandeirantes paulistas se viam limitados ao aprisionamento de indígenas. Destruir palmares signiicava, portanto, ganhos econômicos signiicativos. A morte de Zumbi em 1695 seria anunciada nos “quatro cantos da Colônia”, mas as “autoridades sabiam que a luta contra os mocambos não seria brevemente concluída. Havia centenas de fugitivos naquelas serras pernambucanas” (Gomes, 2014, p. 153). A destruição do mais importante quilombo das Américas não encerrou o projeto político que o mobilizara. Ao longo do período colonial multiplicaram-se as experiências quilombolas. SAIBA MAIS O quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais, tem sido concebido como um experimento que se aproxima de valor histórico de Palmares (Do Campo Grande aos Martins – Robson Camargo - https:// www.youtube.com/watch?v=p56FUs7Jx6k ) por se tratar de uma tentativa de constituição de um reino negro no período escravocrata. 28 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Importantes líderes negros resgataram contemporaneamente valores e ideias políticos forjados desde os quilombos. O quilombismo, elaborado por Abdias do Nascimento, pode ser tomado como uma referência no sentido de se religar o passado e o presente. As lutas antirracistas atuais encontram, portanto, nos antepassados uma das principais inspirações Quilombismo Os quilombolas dos séculos XV, XVI, XVII, XVII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de airmação da sua verdade. [...] o quilombismo expressa a ciência do sangue escravo, do suor que este derramou enquanto pés e mãos ediicadoras da economia deste país. Um futuro melhor para a população afro-brasileira só poderá ocorrer pelo esforço de organização e mobilidade coletiva tanto da população negra quanto de suas inteligências e capacidades escolarizadas, para a enorme batalha no fronte da criação teórico-cientíica. Uma teoria cientíica inextricavelmente fundida à nossa prática histórica que efetivamente contribua à salvação da comunidade negra, a qual vem sendo inexoravelmente exterminada. Seja pela matança direta da fome, seja pela miscigenação compulsória, pela assimilação do negro aos padrões e ideais ilusórios do lucro ocidental. Não permitamos que a derrocada desse mundo racista, individualista e inimigo da felicidade humana afete a existência futura daqueles que efetiva e plenamente nunca a ele pertenceram: nós negro-africanos e afro-brasileiros. Condenada a sobreviver rodeada ou permeada de hostilidade, a sociedade afro-brasileira tem persistido nesses 500 anos sob o signo de permanente tensão. Tensão esta que consubstancia a essência e o processo do quilombismo. Assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e deinido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo. Deve-se assim compreender a subordinação do quilombismo ao conceito que deine o ser humano como seu objeto e sujeito cientíico, dentro de uma concepção de mundo e de existência na qual a ciência constitui uma entre outras vias de conhecimento. (Nascimento, Abdias do. Quilombismo um conceito cientíico emergente do processo histórico e cultural da população afro-brasileira. O quilombismo. 2 ed. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Palmares, 2002, pp. 272-274 – texto extraído de Gomes, Flávio, 2014, pp 39-40) Territorialidades negras contemporâneas Apesar de Palmares ter se conigurado como principal experimento bantu no nordeste brasileiro, localizamos nas regiões do sudeste e centro-oeste um conjunto signiicativo de comunidades negras. O termo quilombo permaneceu durante muito tempo vinculado ao passado escravista, mas contemporaneamente o conceito foi ressigniicado (Almeida, 2002). Até as décadas de 1970-1980 utilizava-se academicamente a categoria “comunidades negras rurais” para designar os espaços historicamente ocupados pela população negra. Categorias 29 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos correlatas como “terras de preto”, “campesinato rural”, eram por vezes empregadas. Foi seguindo a trilha de uma surpreendente “comunidade negra” que falava ainda uma “língua africana” que os pesquisadores Carlos Vogt e Peter Fry “descobriram” em Salto de Pirapora o Cafundó. A comunidade do Cafundó falava uma língua que os moradores classiicavam como cucópia. Posteriormente descobriu-se que no município de Patrocínio, em Minas Gerais, um grupo mais disperso de indivíduos também falava uma “língua africana” semelhante, o kalunga. Os estudos de Fry e Vogt (1996) revelaram que os falantes dessas “línguas africanas”, não utilizavam uma língua propriamente africana, pois se expressavam por meio de uma espécie de “dialeto”. Empregavam léxicos africanos ordenados pela sintaxe da língua portuguesa. Apesar do léxico extremamente limitado, o sistema do Cafundó é vivo e produtivo. Do ponto de vista estritamente lexical, observa-se uma constante expansão do vocabulário através do uso de expressões formadas por processos metafóricos e analógicos. Essa expansão se dá em geral através do uso de palavras do léxico africano que concorrem para a formação de novas expressões cuja estrutura gramatical é, grossso modo, a de nome + preposição + nome (Vogt & Fry, 1996, p. 129). As comunidades negras, referenciadas em práticas culturais de origem bantu, localizadas no sudeste brasileiro, foram interpretadas por Robert Slenes (1991/92) como expressão da presença maciça dos centro-africanos durante o ciclo cafeeiro. Além dos povos de origem Angola-Congo, também se acentuou no período o luxo das etnias localizadas na Costa do Pacíico, região de Moçambique, macondes, shonas, macuas, swhaili. Os dados apresentados por Robert Slenes comprovam que em meados do século XIX os bantus predominavam nos estados do Sudeste e, cidades como Vassouras (RJ) e Campinas (SP), destacavam-se por ostentar percentuais elevados de africanos. A localização de comunidades negras rurais como Cafundó, o desenvolvimento do jongo, a presença da congada em São Paulo e Minas Gerais são produtos desse mesmo processo histórico que possibilitou a difusão da cultura bantu por vastas extensões territoriais no sudeste brasileiro (Slenes, 1991-92). A partir da Constituição de 1988 os quilombos adquiriam novos signiicados no Brasil. A visão arqueológica, passadista, fossilizada das “comunidades negras” foi substituída por uma concepção nova, de natureza jurídico-política, expressa na categoria “remanescente de quilombo”. Contribuíram para esta formulação os movimentos negros e, em parte, pesquisadores, acadêmicos, instituições como a Associação Brasileira de Antropologia, entre outros. A questão dos quilombos foi, então, atualizada, passando a referir-se a uma realidade contemporânea. A ideia de se assegurar a propriedade da terra aos ex-escravos, indivíduos e grupos que nela trabalham e habitam desde tempos imemoriais foi consagrada no texto constitucional. O Artigo 68 dos “Atos das Disposições Constitucionais Transitórias” da Constituição de 1988 garantiu juridicamente aos quilombolas a posse da terra. Essa base legal tem sido vista como um primeiro intento de uma política de reparação aos afrodescendentes, aos ex-escravos nenhuma recompensa foi assegurada desde o ato da Abolição da Escravatura (1888). Seguiu-se posteriormente uma grande polêmica sobre o fato de o artigo ser autoaplicável ou não, sobre como se daria a posse coletiva da terra em uma sociedade regida pelo direito privado, sobre como se comprovaria a real pertença histórica à localidade. O estado de São Paulo 30 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil criou um órgão especial, o Instituto de Terras, para encaminhar a questão, mas outros nada izeram. A contratação de antropólogos se impôs como uma necessidade se o reconhecimento e a titulação da terra quilombola. Os chamados “Laudos Antropológicos” iriam se tornar peça chave no sentido de fundamentar a decisão jurídica da parte do Estado. Todos estes cuidados deveriam ser tomados, porque, geralmente, as terras quilombolas se situam em áreas de litígio. Constatou-se a maioria fora objeto de brutal expropriação e grilagem. Muitas destas áreas continuam sendo griladas, demandadas por fazendeiros e mesmo por grandes imobiliárias, especialmente, quando os quilombos se situam em regiões litorâneas, como, por exemplo, Cassandoca, (Caraguatatuba-SP). O decreto 4.487, de 20/11/2003, representou um último esforço no sentido de regulamentar o artigo 68. Do ponto de vista legal, (...) a caracterização dos remanescentes de quilombos será atestada mediante autoideinição da própria comunidade [entendendo-se como] grupos étnicos-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais especíicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (Mattos, 2005, p. 106). O governo federal delegou à Fundação Palmares as funções de apoiar pesquisas, mapear as terras e amparar os quilombolas na demanda pela titulação. Os primeiros registros realizados por Rafael Sânzio Araújo dos Anjos indicaram em 2000, a presença de 848 quilombos no Brasil (Anjos, 2000). Em 2005 esse número saltou para 2.228, ou seja, o quilombo era um dado real, mas se encontrava encoberto na memória social por uma ideologia passadista e categorias acadêmicas que impossibilitavam que fossem vistos como fenômeno vivo na sociedade brasileira. Os dados do ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo contabilizam atualmente no estado 28 comunidades remanescentes de quilombos, sendo apenas 6 tituladas. SAIBA MAIS Conira a página do IRESP: http://201.55.33.20/page.php?tipo=11 As culturas africanas encontram-se ainda inscritas em outros processos de reterritorialização a serem discutidos de maneira mais detalhada quando analisarmos as formações religiosas, candomblé e umbanda e o samba. Estas práticas também se consolidaram por meio de inscrições territoriais. Nos casos das religiões afro-brasileiras o terreiro pertence a um solo que é de natureza sagrada, pois como nos diz Muniz Sodré, “o Axé é algo que literalmente se planta”. “Existe axé plantado nos assentamentos dos orixás, dos ancestrais” (Sodré, 1988, p. 90). Os territórios negros, por sua vez, são espaços do urbano em que a cultura negra se inscreve por meio de práticas simbólicas especíicas (Rolnik, 1989). O processo de formação do samba e das escolas de samba é exemplar. O território negro não possui, portanto, o componente da sacralidade peculiar ao terreiro, mas se irma como um espaço de construção de sociabilidades 31 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos negras, em geral, desenvolvidas em torno da música. O bairro da Saúde no Rio de Janeiro à época, da Tia Ciata, pode ser concebido como um “território negro”, também a Barra Funda que estudamos em dado momento (Silva, 1990) apresenta elementos simbólicos da mesma natureza. Jovens da periferia da Zona Sul de São Paulo retoma metaforicamente o quilombo e o aplica às áreas empobrecidas da grande metrópole, “antigamente quilombo, hoje periferia”, expressão cunhada pelo grupo de rap Z’África Brasil, nos permite indagar sobre uma nova realidade da comunidade negra, os “quilombos urbanos”. SAIBA MAIS 1. SILVA, José Carlos G. & CLEMENTE, Claudelir C. “Dos quilombos à periferia: relexões sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na contemporaneidade”. http://www.seer.ufu.br/index. php/criticasociedade/article/view/26993 2. ROLNIK, Raquel. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro) https:// raquelrolnik.iles.wordpress.com/2013/04/territc3b3rios-negros.pdf 3. Vídeo-clipe do grupo de rap paulistano Záfrica Brasil, Antigamente Quilombos, Hoje periferia. https://www.youtube.com/ watch?v=56hlSm3xOq0 32 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Referências Bibliográficas ALMEIDA, Alfredo Wagner B. Os Quilombos e as Novas Etnias. In: Fundação Cultural Palmares (org). Quilombos no Brasil. Brasília, Fundação Cultural Palmares/Minc, 2000. ANJOS, Rafael Sanzio A. Territórios das comunidades remanescentes dos antigos quilombos no Brasil. Brasília, Editora e Consultoria, 2000. FRY, Peter & VOGT, Carlos. Cafundó: a África no Brasil. São Paulo, Editora da UNICAMP/ Companhia das LetraSLENES, Robert. Malungo ngoma vem! África coberta e descoberta do [no] Brasil. Revista USP, nº 12, dez.-fev., 1991-1992, pp. 48-67.s, 1996. FUNARI, Pedro P. & CARVALHO, Aline V. Palmares ontem e hoje. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. GOMES, Flávio. Palmares. São Paulo, Contexto, 2014. MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In: Linda Heywood (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo, Contexto, 2009. ROLNIK, Raquel. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras (Etnicidade e Cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro). Estudos Afro-Asiáticos, nº 17, 1989, p. 29-40. SILVA, José Carlos G. Os sub urbanos e a outra face da cidade. Negros em São Paulo, 1900 - 1930. Cotidiano, lazer e cidadania. Mestrado em Antropologia Social, UNICAMP, 1990. SODRÉ, Muniz. Terreiro e cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro, Vozes, 1988 33 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 3 Texto 2. Congadas e irmandades negras Objetivos: Compreender o caráter simbólico-africano das práticas da congada bem como das irmandades negras e suas implicações na reelaboração dos patrimônios culturais africanos nos contextos da religiosidade africana e do catolicismo. Os registros sobre a coroação de reis negros no Brasil datam do século XVII. Os estudos desenvolvidos na atualidade indicam que a prática se manteve em nosso meio como uma reelaboração da igura política do rei, uma instituição fundamental na organização das sociedades africanas. As pesquisas desenvolvidas por Marina de Mello e Souza (2000) conirmam que o rei era uma realidade fundamental entre os bantus. Os povos das regiões do Congo e Angola estavam à época da colonização organizados politicamente de maneira hierarquizadas. O rei era expressão suprema de sociedades sustentadas em sistemas de linhagens e clãs, que abrigavam em seu interior populações densas e militarmente organizadas. Alguns destes reinos se tornaram conhecidos, seja porque era desejável estabelecer alianças, seja porque representavam entraves a serem enfrentados pelos colonizadores. O Reino do Congo, o Ndongo e Matamba, o Reino do Dahomé, são exemplares do poder da realeza africana. Particularmente na região de Angola os portugueses tiveram de enfrentar um longo período de resistência motivado pela postura insubmissa da Rainha Njinga, “que nasceu no Ndongo oriental em 1582 e foi de 1623 a 1663 a líder dos povos ambundos-jagas que habitavam as regiões do Ndongo e Matamba” (Mello e Souza, 2002, p. 104). Durante esse período a monarca liderou a resistência aos portugueses, impondo-lhes derrotas e por vezes estabelecendo pactos e adesões, ela “se tornou um precedente histórico” e “depois dela o reino do Ndongo e Matamba teve várias rainhas”, e “em 80 anos, do período de 104 anos que se seguiu à morte de Njinga, o governo coube a mulheres”. A prática de negociação entre os reinos africanos e os colonizadores envolvia o sistema de “embaixada” (idem, p. 106-1007). A “embaixada”, comum entre os reinos africanos, foi identiicado no Brasil nas “congadas”. Os estudos pioneiros de Mário de Andrade (1959) registraram diferentes textos de caráter dramatúrgico envolvendo reis negros em processo de negociação com os portugueses. Os diálogos inclusive mencionavam o nome da “Rainha Nzinga”, certamente uma variante de Njinga, nas representações elaboradas pelos congadeiros. Tanto Mário de Andrade quanto Oneida Alvarenga, sua herdeira nas pesquisas, conceberam a existência da “embaixada”, como critério para se conceituar as “congadas”. Apenas os ternos de Moçambique foram por eles interpretados como sendo de natureza distinta, exatamente porque não apresentavam o chamado “entrecho dramático”, a embaixada (Andrade, 1959; Alvarenga, 1960). Mário de Andrade destacou a dimensão da africanidade como um aspecto importante para o entendimento do fenômeno congadeiro. A coroação dos reis negros foi assumida como uma prática de origem “conguesa” reconstituída pelos africanos no Brasil. As referências constantes à Rainha Ginga (Nzinga) foram por ele interpretadas como parte da reelaboração dos 34 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil antepassados africanos (Silva, 2008, p. 19) Para Alvarenga (1960), o que caracteriza as festas autointituladas Festa do Congo é a existência da “Embaixada”, a dramatização envolvendo a coroação de um rei, enquanto nas festas denominadas Congada não se veriica a parte dramática (Silva, 2008, p. 23). O termo congado igualmente foi por nós utilizado no estudo que realizamos em Uberlândia-MG. Veriicamos que nesse contexto, embora o ritual do congado não mais valorize a coroação de reis negros ou dramatize “embaixadas”, a prática da “busca do rei”, agora reduzida ao “rei festeiro”, é parte, necessária da festa. Em Uberlândia, dois casais de rei e rainha, o casal de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, compõem o reinado da Congada. É interessante notar que não existem mais reis congos. Tito Teixeira (1970) ao falar da festa, airmava que existiam dois casais de reis negros, um branco e outro negro. O rei e a rainha negros eram denominados reis congos. Segundo os relatos dos congadeiros, a rainha e o rei congos eram posições vitalícias e hereditárias. (...) Os dois casais de rei e rainha atualmente são os próprios festeiros: o casal de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Eles são eleitos a cada ano pela Irmandade. Os reis festeiros ajudam na coordenação da novena, e durante o ano de seu reinado desenvolvem atividades para arrecadar dinheiro e, assim, oferecerem lanche aos Ternos no segundo dia da festa (Calábria, 2008, pp. 94-95). O Terno de congado é uma organização fundada no parentesco, ou seja, agrega um elevado número de membros de uma família extensa, possui uma referência no território urbano, o quartel, local onde se reúnem. Em torno do quartel, habita, em geral um agrupamento de pessoas que se classiicam como parentes. Participam da congada diferentes Ternos, Congo, Moçambique, Marinheiro e Catupés. Em meados de 1990 existiam 12 Ternos em Uberlândia, atualmente, são 24, ou seja, a tradição do congado segue viva e em expansão. Possivelmente a coroação de reis nesse atual momento da Festa de Nossa Senhora do Rosário ainda permaneça como uma referência ao fato de o rei ter sido um tema importante no imaginário dos africanos desde a diáspora. A prática da coroação de um rei ganhou forma institucional quando os escravos e libertos passaram a construir as Irmandades Negras. A permissão da igreja católica para que leigos pudessem criar irmandades visando o desenvolvimento do catolicismo, em especial, na área mineradora de Minas Gerais, foi a brecha encontrada no sistema para que a instituição do rei fosse recriada. As Irmandades Negras se organizaram enquanto espaço de devoção aos santos católicos considerados importantes para os escravos. Inicialmente era-lhes permitido apenas zelar por uma imagem alocada nas igrejas da elite branca. Posteriormente, os escravos iriam erguer pequenas capelas, mediante recursos próprios, em que puderam louvar santos especíicos, São Benedito, Nossa Senhora das Mercês, Santa Eigênia, Nossa Senhora do Rosário. As associações negras sustentadas em laços de solidariedade étnica se multiplicaram no interior do sistema escravista (Scarano, 1978). As irmandades viabilizaram práticas religiosas, promoveram o auxílio mútuo e o apoio a cerimoniais fúnebres, aspecto sensível do universo religioso bantu fundado no culto aos ancestrais. Portanto, um enterro digno propiciado aos escravos e ex-escravos somente se tornou possível com o apoio das irmandades negras. O congado, festa que se seguia aos momentos de devoção nas capelas, exprimia nos espaços públicos um conjunto de princípios simbólicos peculiares à cultura centro-africana. A presença do rei enquanto membro de uma irmandade religiosa sugere que por meio deste 35 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos personagem foi possível assegurar a unidade do grupo (...) “foi a força simbólica e a capacidade de arregimentação de um rei ou chefe que izeram as associações étnicas organizadas ao seu redor serem adotadas pelos diferentes grupos, em lugares diversos” (Mello e Souza, 2002, p. 173). Eleito no âmbito das corporações de ofício, irmandades religiosas, comunidades quilombolas e dos grupos de revoltosos que buscavam romper com a situação de dominação a que estavam submetidos, “reis de nação” existiram em diferentes regiões da América portuguesa, como Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, São Paulo e Rio de Janeiro. Fruto do processo de constituição de comunidades negras no Novo Mundo, esses costumes foram incorporados à sociedade colonial escravista ou por ela perseguidos, dependendo do contexto (idem, p.251). Os relatos precisos destas práticas, ainda no século XVIII, conirmam que se tratava de uma instituição importante entre os negros (Mello Moraes, 1979). As tentativas de proibição das festas ao longo do século XIX não foram suicientes para suprimi-las, indicando que as irmandades negras já haviam se irmado como uma instância reconhecida, negociada em face ao poder colonial. A coroação de reis negros entre os escravos no Brasil foi simultânea a diferentes regiões das Américas. A unidade de práticas em locais díspares expressa a atualização de uma tradição ancestral comum aos povos centro-africanos. Os estados de Minas Gerais, São Paulo (região do Vale do Paraíba), Rio de Janeiro (litoral Fluminense) e Goiás (área de mineração) marcados por diferentes ciclos econômicos, ouro, café, diamante, incorporaram as mais diferentes etnias africanas, mas a instituição do rei negro permaneceu como um princípio comum. Burlando o propósito regulador escravista, o rei negro coroado nos festivais Pinksters [no contexto norte-americano], funcionava como agente aglutinador dos escravos oriundos de diferentes nações e etnias africanas, muitas das quais inimigas milenares. Os ritos realizados sob a regência desses reis reterritorializavam os repertórios culturais africanos, criando novas formas de expressão e singulares idiomas artísticos; instituíam uma ordem hierárquica paralela à escravista; apropriavam-se de um espaço lúdico considerado menos “nocivo” pelos “senhores”, fomentando estratégias simbólicas que, sob o ritmo dos tambores, reforçavam suas tradições culturais e sua manifestação (Martins, 1997, p. 38) Foi sob a igura simbólica do rei negro que as diferentes etnias bantu retomaram o espírito de comunidade dilacerado pela diáspora. Se a prática foi reinventada a partir de símbolos diferenciados, apropriando-se de ritos e santos cristãos no âmbito das irmandades, o certo é que o processo de fusão não foi desenvolvido de forma aleatória, mas orientado pelo sistema simbólico ancestral, único elemento permitido aos africanos na longa travessia do Atlântico. Sabe-se pelos dados objetivos que a presença da população negra em Minas Gerais é signiicativa, mas é especialmente quando se observam as práticas culturais concretas que temos a dimensão dessa importância. Nesse universo o congado surge como o dado mais visível da experiência negra. 36 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil De março, quando em geral os rosários são abertos, até ins de outubro, quando então os Reinos se recolhem e se fecham, os tambores cantam em Minas e guiam pelas ruelas e pelos asfaltos, pelas capelas e igrejas do Rosário, pelos quintais, as nações do Congo que, com seus reis e rainhas, seus capitães e marinheiros, rematizam a África em terras d’Américas. Como estiletes autografando as abissais desfronteiras e deslimites simbólico geográicos dessas serras gerais, Congos, Moçambiques, Marujos, Catupés, Candombes, Vilões, Caboclos, na sua variedade rítmica, cromática e coreográica, performam cânticos, gestos, ritmos e falas, como aedos e griots que imbricam a história e a memória, posfaciando o discurso cultural brasileiro com os prefácios africanos (Martins, 1997, p. 36). Apesar do congado se constituir como um experimento referenciado na ancestralidade centro-africana, apenas recentemente essa prática começou a ser analisada sob uma perspectiva afrocêntrica. As categorias em voga em décadas anteriores, como por exemplo, “catolicismo popular” e “cultura popular”, silenciavam sobre a dimensão étnica. O estudo desenvolvido por Mintz & Price (2003) tem sido tomado como um marco importante para o entendimento dos fenômenos diaspóricos em uma perspectiva afrocentrada. A concepção das culturas afro-americanas como experimentos referenciados em princípios e valores comuns tem se revelado uma estratégia fecunda. Segundo esta abordagem o dado empírico que abriga a diversidade, deveria ser tomado como expressão de um objeto que possui unidade simbólica mais profunda. Portanto, simultaneamente à descrição de traços culturais concretos é importante a identiicação de princípios, valores ou regras tácitas que permeiam distintas manifestações culturais em função de sua origem comum (Frigério, 1992, p. 175). Situar a cultura negra na perspectiva afrocêntrica implica do nosso ponto de vista em concebê-la enquanto conjunto de princípios e valores inconscientes que orientam as práticas subjacentes à tradição oral, à retórica, à gestualidade, fazeres musicais, rituais e desempenhos verbais. Segundo Alejandro Figério o que caracteriza a performance africana é o fato de esta ocorrer “em vários níveis sucessivos, misturando gêneros que para nós seriam diferentes e separados” (Frigério, 1992, p. 177). Assim, em uma prática cultural de matriz africana, identiicamos, simultaneamente, múltiplas dimensões do fazer artístico: música, dramatizações, mímica, dança. O ritual congadeiro se desenvolve nas ruas em consonância com a concepção de arte multidimensional. Etnografia de uma Congada Os registros etnográicos que elaboramos a partir de meados dos anos 1990 em Uberlândia surgiram em meio à surpresa/estranhamento provocado por um fenômeno que desconhecíamos. Constatamos que o rito congadeiro alcançava grande visibilidade na cidade, embora, à época, o número de Ternos ainda fosse reduzido. O ritual realizava-se tradicionalmente na segunda semana de novembro e dele participavam 12 Ternos. Posteriormente a Festa passou a ser realizada na segunda quinzena do mês de outubro. No inal de 2008 constatamos que a festa crescera em números e expressão política na cidade e o número de Ternos havia dobrado. 37 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Durante aproximadamente três anos (1997-2000), acompanhamos regularmente o evento. Depois continuamos a fazer incursões pontuais. O estudo se concentrou inevitavelmente nos dois dias em que os Ternos ocupavam com sons, cores e cânticos o centro urbano. O terceiro dia, se assim podemos qualiicar, consiste de um momento de natureza privada, a retirada dos instrumentos musicais, rito ao qual se tem pouco acesso. Normalmente para a grande Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário grupos de outras regiões são convidados e passam normalmente a integrar o encontro. O ritual se realiza em etapas distintas. No primeiro dia, que coincide com o sábado, ocorre o hasteamento do mastro na Igreja do Rosário, simbolizando o início da festa. É também nesse mesmo dia que os diferentes grupos percorrem a cidade e recebem convidados para um almoço coletivo. No segundo dia acontecem as visitas às casas das pessoas que solicitaram a presença dos Ternos em retribuição a “uma graça alcançada”, também acontece a “busca do rei”. A realização do cortejo religioso no inal da tarde encerra o ritual. Normalmente um Terno de Moçambique tem a responsabilidade do encerramento, simbolicamente expresso no descerramento do mastro que é conduzido para o interior da igreja. A Festa foi por nós interpretada a partir de dois marcos teórico: um de natureza etnográica, em que nos ixamos na descrição e análise do ritual e, um segundo, em que nos situamos na perspectiva histórica. Visto etnograicamente o fenômeno foi concebido de maneira tripartite, conforme as orientações de Victor Turner (1974, p. 116). Utilizamos na análise do rito as categorias “separação”, “liminaridade/communitas” e “reagregação”. A Festa do Rosário envolve atividades desenvolvidas nas esferas privadas e públicas. No âmbito privado encontram-se as ações de preparação dos Ternos. Durante os meses, que antecedem ao ritual, os Ternos percorrem as ruas da cidade e visitam devotos, rezam tocam instrumentos musicais, cantam e se preparam para o grande rito. Encontros em frente à Igreja do Rosário e a realização de “leilões” integram os preparativos. A “paramentação” dos Ternos e a saída em cortejo no primeiro dia também envolve rituais especíicos, rezas e ingestão de bebidas como o ortí, um composto de aguardente, raízes e ervas. A prática integra o ritual da “Alvorada”, quando “espiritualmente” o Terno evoca proteção contra infortúnios. O comparecimento às casas dos devotos que solicitaram a presença em pagamento de uma “graça recebida” – de Nossa Senhora do Rosário ou São Benedito - e as visitas aos espaços religiosos afro-brasileiros, como o Terreiro da Mãe Irene no bairro Martins, inscrevem-se nessa esfera mais intimista e particular do ritual. Mas o cortejo acontece essencialmente nos espaços públicos. Esta dimensão mais visível tem origem no quartel, a sede do grupo, local em que geralmente reside o capitão e que agrega ainda o grupo de parentesco mais amplo. Durante o trabalho de campo obtivemos do “Seu” Lázaro depoimentos que nos informam sobre o rito de separação fundamental para os congadeiros, a ingestão do ortí. A partida do quartel é uma cena emocionante, no caso o acompanhei o Pena Branca, um dos Ternos que se localizava no bairro negro Patrimônio. A partida do território negro para o centro urbano é marcado pela centralidade da música africana: canto/ resposta, tambores, caixas, gungas e patangomes (idiofones de agitamento). Bastões ornados por galhos de arruda e rosas são carregados pelos integrantes alternam o bailado em ila e coreograias guerreiras. Estamos assim a caminho do estado de communitas. Turner (1974), o conceituaria esse momento como e situação em que, coletivamente, os indivíduos passam a experimentar papéis que rompem com as posições estruturais da vida cotidiana, no caso, se 38 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil tornam capitães e soldados. O uso de “categorias militares” parece em princípio estranhas, mas desde o estudo de Mitchell (2009) sobre a dança kalela, realizado no Cinturão do Cobre (Zâmbia) compreendemos que as categorias importadas da cultura ocidental exprimem não a adesão, mas um processo novo de reelaboração da cultura tradicional. A suspensão das regras da vida ordinária, o ato de cidadãos comuns assumirem papéis como capitão, soldado, a indumentária peculiar a cada grupo, o trajeto a ser percorrido, as visitações, o cortejo em frente à igreja, tudo isso é experimentado fervorosamente. Apesar da visibilidade dos símbolos do catolicismo, quando do cortejo em frente à igreja, observações mais atentas indicam que o estado de communitas é vivenciado ainda mais intensamente pela imersão na religiosidade afro-brasileira: guias de orixás, folhas de plantas como arruda e guiné, aparecem sutilmente nos corpos e bastões dos congadeiros. O rito da Alvorada marca “a separação” da vida ordinária de maneira ainda mais efetiva. Deste este momento o cangadeiro sabe que estará vivendo sob o reinado de N. S. do Rosário. O ponto de convergência dos cortejos se localiza em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário. A presença da coletividade negra nas ruas centrais nesses dias é o aspecto mais sensível do evento. Toda uma rede de sociabilidades é mobilizada ou restabelecida através da reintegração dos membros que se encontravam por vezes distantes, em bairros, cidades e até mesmo em outros estados. Os momentos da passagem do cortejo em frente à igreja são os mais valorizados, pois neste local ocorrem a abertura da Festa e a procissão, atividade que marca o encerramento. Nesses momentos também podemos experimentar a sensação da arte negra em sua plenitude, com as múltiplas expressões artísticas se fundindo. No congado localizamos ao mesmo tempo, sem hierarquizações, música, imagens, cores, danças, cortejos, rito, gestos, mímicas. Na reunião de todos os Ternos na praça da igreja, esses elementos são potencializados. Trata-se de um momento singular integrado pela multidimensionalidade das linguagens simbólicas. Uma das características principais – aliás a principal – das artes negras é seu caráter multidimensional, a densidade de sua performance. É uma performance que ocorre em vários níveis sucessivos, misturando gêneros que para nós seriam diferentes e separados (...). É a interpenetração, a fusão, de todos esses elementos que faz dela uma forma artística única. O todo que se consegue a partir da fusão dessas diferentes artes é maior que a soma de suas partes constitutivas e tem como resultado formas artísticas que são novas, diferente do somatório que as constituem (Frigério, 1992, p. 177). O sentimento de pertença ao grupo étnico é, porém, experimentado não apenas no momento de maior visibilidade, mas em diferentes instâncias. Um segundo grupo que pesquisei, o Princesa Isabel, também do bairro Patrimônio, visitou previamente os centros de umbanda tradicionais da cidade. Paralelamente ao ritual católico estabelecem-se laços com a tradição religiosa afro-brasileira, mas esta é uma dimensão “menos visível” do ritual. Nos centros de umbanda são oferecidos almoços aos congadeiros, trocas rituais e cerimoniais marcados pela afetividade. O desempenho dos músicos também se modiica conforme o contexto. A execução e no andamento se revela mais rápido e intenso nos terreiros de umbanda. Enquanto isso, em frente à igreja católica, as performances são mais contidas. 39 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Durante as visitas às casas dos devotos os indivíduos trocam orações e cânticos que reconstroem no espaço urbano a rede de relações “invisíveis” que os une. Os Ternos são recebidos nos espaços domésticos como mediadores entre os homens e as divindades. A recepção e as oferendas de alimentos aos congadeiros assumem o sentido de retribuição “à graça recebida”, ou seja, exprime o cumprimento das promessas. De acordo com Mauss (1974) foi com os deuses que os homens inauguraram as primeiras relações de troca. Os princípios da dádiva também estruturam o conjunto das relações que se estabelecem entre as divindades, os indivíduos e os grupos sociais no rito. O alimento é, neste caso, um mediador importante. Aparece nas vistas aos terreiros, nas casas dos devotos e no grande almoço oferecido nos quartéis. O ritual é marcado por diferentes etapas simbolicamente articuladas pela troca de alimentos, músicas, gestos, orações e mensagens. Incluem no rol das práticas ritualísticas os seguintes atos: visitas às casas que solicitaram a presença dos ternos, leilões, rituais de benzimento dos instrumentos musicais, cortejos pela cidade, homenagens a festeiros, busca do rei, entrada ritual nos terreiros de umbanda, gigantescos almoços coletivos, alguns superando a cifra de mais de 1000 pessoas. Todas estas ações reconstroem através do rito a totalidade de uma experiência outrora marcada pela violência da escravidão, mas que se reelabora anualmente por meio das referências humanizadoras da cultura. O encerramento da festa acontece, conforme indicamos no terceiro dia, quando então, um realiza-se um rito privado de retirada dos instrumentos musicais. Os congadeiros são então reintegrados à vida cotidiana. O ritual é finalizado e a realidade retoma o seu curso. 40 Moçambique Pena Branca: saída do Quartel Seu Lázaro: capitão do Moçambique Pena Branca Jovens do Moçambique Pena Branca Soldados do Moçambique Pena Branca com seus bastões Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Jovens do Moçambique Princesa Isabel Crianças do Moçambique Princesa Isabel em ação Ramon: capitão do Moçambique de Belém Músicos do Moçambique de Belém tocando patangomes Moçambique Pena Branca em ação. Músicos do Moçambique de Belém, sob o pulso das caixas e maracanãs 41 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Crianças do Moçambique do Belém sendo coordenadas pelo capitão Ramon Crianças do Moçambique Pena Branca Moçambique Princesa Isabel, sob a liderança do capitão Nestor (bastão de itas) Os Ternos e Comunidade Negra ocupam as ruas da cidade SAIBA MAIS 1. Os Arturos - Documentário sobre a comunidade de negros de Contagem, Minas Gerais. https://www.youtube.com/ watch?v=I1zKmaAvUY4 2. Missa Dos Quilombos – Álbum de Milton Nascimento ( 1981) https://www.youtube.com/watch?v=nHJolAPE1-4 42 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Referências Bibliográficas ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira, Porto Alegre, Globo, 1960. ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. Martins Fontes, 1959, v.2. CALÁBRIA, Juliana. Uma análise ritual da congada em Uberlândia, in: Ana Paula Alcântara (org.). Congos, moçambiques e marinheiros: olhares sobre o patrimônio cultural afro-brasileiro de Uberlândia. Uberlândia, Gráica Composer, 2008. FRIGÉRIO, Alejandro. Artes negras: uma perspectiva afrocêntrica. Estudos Afro-Asiáticos, 23:175-190, dezembro, 1992. MARTINS, Leda Maria. Afrograias da memória. Perspectiva & Mazza Ed. São Paulo e Belo Horizonte, 1997. MICHELL, J. Clyde. A dança kalela: aspectos das relações sociais entre africanos urbanizados na Rodésia do Norte. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. (org). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo, Ed. UNESP, 2009 SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. A irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1978. SILVA, José Carlos G. Repensando os estudos sobre a congada: refazendo percursos, percorrendo novas trilhas, in: Ana Paula Alcântara (org.) Congos, moçambiques e marinheiros: olhares sobre o patrimônio cultural afro-brasileiro de Uberlândia. Uberlândia, Gráica Composer, 2008. TEIXEIRA, Tito. Bandeirantes e pioneiros do Brasil central: história da criação do município de Uberlândia. Uberlândia, Uberlândia Gráica, 1970. TURNER, Victor. O Processo ritual. Petrópolis, Vozes, 1974. 43 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 4 Texto 1. Do jongo ao samba: expressões da cultura bantu no sudeste brasileiro Objetivos: Estudaremos o desenvolvimento do samba enquanto expressão musical referenciada em matrizes musicais africanas. O samba conforme conhecemos é uma expressão musical urbana, porém, identiicamos nesse estilo musical vínculos com sonoridades que historicamente vinham sendo desenvolvidas no meio rural. O jongo é considerado uma expressão musical de origem rural que apresenta elementos que teriam contribuído para a formatação do samba de partido alto no Rio de Janeiro. Nessa cidade um espaço conhecido como Pequena África se conigurou como principal núcleo agregador da população negra no qual o samba se consolidou. Na cidade de São Paulo o chamado samba rural foi praticado nos chamados territórios negros como Bixiga e Barra Funda. A música aparece nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo como linguagem que possibilitou diferentes práticas de sociabilidades negras. O Rio de Janeiro nas origens do samba urbano As relações entre o samba e as matrizes musicais africanas vêm sendo apontadas desde longa data. Para alguns a palavra samba deriva do étimo angolano semba. O termo samba somente seria registrado em jornais da cidade do Rio de Janeiro no inal do século XIX, o que conirma tratar-se de um fenômeno urbano. Porém, diferentes elementos sonoros, coreográicos, instrumentais que identiicamos no samba teriam origens em expressões rurais. IMPORTANTE Nesse universo os pesquisadores localizaram práticas que remeteriam aos primórdios do samba: samba de umbigada, samba de roda, samba lenço, samba rural. Durante o período escravocrata, o conjunto dessas expressões musicais, foi classiicado como batuque, rótulo de conotação etnocêntrica aplicado às musicalidades negras em geral. Em décadas recentes as pesquisas sobre o samba passaram a revelar os vínculos mais diretos com as ancestralidades musicais africanas e os nexos com as comunidades negras urbanas, conforme as concepções de Mattos & Abreu (2007). 44 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil O mapa cultural do jongo no século XXI nos leva para o passado, quase em linha direta com os grupos africanos de língua bantu chegados à costa do Sudeste na primeira metade do século XIX. Mas também nos leva para o futuro, para um impressionante movimento de emergência étnica associado à luta contra a discriminação racial, pelo reconhecimento cultura e pela posse de terras tradicionais, empreendido por comunidades de camponeses negros organizados por laços de parentesco (Mattos & Abreu, 2007, p. 99). O etnomusicólogo Kazdi Wa Mukuna (2006) identiicou no samba urbano elementos estruturais familiares à musicalidade tradicional de povos centro-africanos, células rítmicas do lundu - uma expressão musical rural afro-brasileira, que depois seria incorporada pela elite branca - também foram vistas pelo autor como ancestrais do samba. Além dos aspectos sonoros o pesquisador registra os conlitos entre os sambistas e o policiamento. As perseguições continuariam por todo o período que antecede o governo de Getúlio Vargas quando então começa a se redeinir o estilo musical como um dos símbolos nacionais. O jongo tem sido apontado como uma das principais matrizes musicais do samba. O local onde o samba de partido alto se estruturou, o Morro do Estácio, era uma tradicional área de reunião dos praticantes do jongo. Os elementos coreográicos do jongo, a centralidade da percussão, o canto/resposta, indicam um “ar de família” com o samba urbano. Agregue-se a este argumento o fato de a área cultural do jongo, a região do Vale do Paraíba, ter se constituído como um local de predomínio da cultura bantu, conforme, observou Robert Slenes. O jongo foi por muito tempo visto como uma prática meramente folclórica, mas os estudos pioneiros desenvolvidos por Stanley Stein (2007) e atualmente por Slenes (2007) conirmaram, que por meio do canto-resposta, permeado por palavras africanas os escravos faziam críticas ácidas aos senhores de escravo e ao sistema escravista. Para Carlos Sandroni (2001) as estruturas rítmicas que dão identidade ao samba assumiram no contexto do Rio de Janeiro dos anos 20 e 30 do século passado duas conigurações. A primeira forma foi deinida pelo autor como samba amaxixado, a segunda, classiicada como samba de partido alto. Também revelou o pesquisador que estas modalidades não existiam apenas enquanto expressões sonoras, mas que se enraizavam na geograia musical da cidade. O samba amaxixado, por exemplo, era praticado por um núcleo especíico da população negra que se articulava em torno da casa da Tia Ciata, espaço este localizado nas proximidades do bairro da Saúde e da Gambôa. O local foi classiicado por Roberto Moura (1983) como “A pequena África no Rio de Janeiro”, pois se tratava de um espaço habitado por descendentes de ex-escravos que trabalhava, em sua maioria, como estivadores na região portuária. A casa da Tia Ciata era um núcleo que abrigava várias expressões centrais da cultura afro-brasileira: o culto à religião dos orixás, praticado pela própria Ciata, o samba tradicional, jogado nos fundos do terreno e o samba amaxixado desenvolvido nos espaços da sala de visitas. Entre os frequentadores da casa da Tia Ciata encontravam-se três importantes pais fundadores da música popular brasileira: Pixinguinha, Donga e João da Baiana. O primeiro samba de grande sucesso, o Pelo Telefone (1917), cuja autoria oicial foi atribuída a Donga, teria sido uma construção coletiva, como é próprio da música tradicional afro-brasileira fundamentada na tradição oral. Embora logo 45 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos tenha se tornado sucesso, os sambistas continuariam sendo associados à malandragem, o estigma, reforçava a perseguição policial, por vezes, a condição de malandro, uma postura crítica à exploração vigente no mundo do trabalho era assumida deliberadamente e positivada (ver: Lenço no Pescoço – Wilson Batista). Além da casa da Tia Ciata, existia um segundo núcleo de sambista, no qual teria se desenvolvido o samba de partido alto, o local era conhecido como Morro do Estácio (Sandroni, 2001). A chamada “turma do Estácio” era integrada por músicos como Nilton Bastos, Brancura, Baiaco e Ismael Silva (Cunha,2004). O samba de partido alto tinha como característica estrutural a maior presença de síncopes, essa particularidade sonora possibilitava o desenvolvimento do gingado e também o canto desenvolvido em cortejo pelos espaços públicos. Para a maioria dos estudiosos os elementos estilísticos do samba de partido alto prepararam o advento dos blocos carnavalescos e os desiles das escolas de samba. O testemunho de Cartola a esse respeito não deixa dúvidas. O Estácio era a escola mais velha, não vamos discutir isso. Fora do carnaval, o pessoal do Estácio vinha para cá pro morro cantar samba, qualquer dia da semana. E nós tínhamos muito respeito a eles como mestres do samba (Sandroni, 2001, p.131). O samba amaxixado foi, contudo, o primeiro a ser registrado pela indústria fonográica. A gravação da música Pelo Telefone (1917) por Bahiano e o Coro de Cordas tornou-se um marco na história do gênero. Entretanto, de acordo com Sandroni, progressivamente, o samba amaxixado foi sendo preterido pela indústria fonográica e, do nosso ponto de vista, poucos o classiicaria como samba. O chamado samba de partido alto, herdeiro da tradição do Estácio, ao contrário, irmou-se posteriormente como padrão, sendo assim reconhecido em todo o território nacional. As relações entre o samba e a identidade negra se apresenta uma história complexa. Em determinados momentos as estratégias oiciais e o mercado fonográico transformaram o samba em símbolo nacional ou simples mercadoria de consumo. As sonoridades de matriz africana foram, por vezes, apagadas, porém, nos anos 1970, um número signiicativo de sambistas, negros e negras reairmaram o marcador étnico-racial como uma das características centrais: Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Nei Lopes, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra. Talvez os tenha ouvido, possivelmente, apreciado, admirado, mas seria interessante saber mais, porque além do prazer estético a música é também “boa para pensar”. São Paulo: samba nos territórios negros paulistanos O processo de constituição do samba em São Paulo apresenta um conjunto de semelhanças, mas também peculiaridades, que o singulariza em relação ao Rio de Janeiro. No caso paulistano também constatamos importantes relações com a geograia da cidade. Nas primeiras décadas do século passado os negros encontravam-se ixados em três espaços distintos, a Barra Funda, Bixiga e Baixada do Glicério - nas proximidades do Cambuci. As regiões mencionadas abrigavam também importantes contingentes de imigrantes, sobretudo, italianos, espanhóis e 46 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil portugueses. A comunidade negra se concentrava de forma minoritária em espaços especíicos destes bairros, por isso, nos pareceu apropriado classiicá-los como territórios negros (Rolnik, 1989). A presença da população negra nos referidos locais obedeceu a motivações distintas, mas em todas elas localizamos produções culturais em que o samba foi escolhido como marcador identitário importante. A Barra Funda, por exemplo, passou a abrigar contingentes da população negra em função das possibilidades de trabalho oferecidas pela Estação Ferroviária. Nas primeiras décadas do século passado a região se transformou em importante entreposto da produção do café. Ao lado da estação ferroviária foram construídos armazéns para estocar o produto, que deveria ser embarcado para o porto de Santos conforme a demanda do mercado internacional. As atividades de ensacar, carregar e descarregar as sacas de café demandavam trabalho braçal e os negros que chegavam à metrópole, egressos de cidades do interior assumiram tais funções. Lentamente os negros passaram a residir no bairro. Os porões das casas dos imigrantes italianos passaram a ser locados, servindo-lhes de moradia. A presença da população negra na Barra Funda iria provocar importantes reconigurações culturais. A cultura tradicional africana em suas múltiplas expressões, congada, jongo, samba de umbigada, foi reelaborada. Contudo, esse processo não se deu de forma abrupta, pois os contatos com a cultura ancestral foram mantidos. Os encontros anuais com as práticas culturais radicadas nos municípios do interior tinham lugar anualmente em Bom Jesus de Pirapora. As reuniões de núcleos urbanos da cultura africana, oriunda de cidades como Campinas, Tatuí, Sorocaba, São Carlos, Itu e os territórios negros da metrópole, ocorriam com frequência na primeira semana dos meses de agosto. A música encontrava-se no centro dessas manifestações. Mário de Andrade se impressionou com o fenômeno. O interesse que nutria pela música tradicional iria conduzi-lo ao local. Na pesquisa que desenvolveu em Pirapora analisou pela primeira vez o chamado samba rural paulista ou o samba de bumbo. As descrições de Mário de Andrade comprovam que no chamado samba de Pirapora possuía características distintas do samba carioca. O principal elemento musical do samba rural paulista era a presença de um tambor de enormes proporções, o bumbo. O pesquisador airmava que ao se dirigir à Pirapora pretendia registrar o samba rural paulista, mas ao indar a pesquisa, constatou que havia acompanhado de fato um grupo de sambistas da capital. O registro comprova as intensas interações que havia entre o samba urbano, que se desenvolvia nos territórios negros do Bexiga, Barra Funda e Cambuci e samba rural. Foi essa modalidade de samba que possibilitou aos negros construir na metrópole uma rede de sociabilidades que resultaria na elaboração de instituições culturais próprias. Em torno do samba foram ediicadas as primeiras organizações carnavalescas e, simultaneamente, os negros paulistanos desenvolveram a percepção de sua especiicidade. Compreenderam que compartilhavam uma cultura ancestral e que podiam participar da vida urbana orientados por associações culturais particulares. A música atuou nesse momento como um importante fator de agregação. A prática do samba nos diferentes espaços urbanos envolvia, assim como ocorria no Rio de Janeiro, controle e vigilância. A ação da polícia era ostensiva, porém, aos poucos foram conquistando espaços que se tornaram legítimos, a despeito da repressão. Identiicamos na Barra Funda algumas dessas regiões conquistadas em que se desenvolvia a prática do samba. O mais importante desses núcleos era o Pátio da Banana. Local que alguns sambistas paulistanos equiparavam à lendária Praça Onze do Rio de Janeiro, região histórica, na qual posteriormente foi ediicado o sambódromo. 47 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos O Pátio da Banana icava nas proximidades do atual Memorial da América Latina. Ao indar o árduo trabalho de carga e descarga das sacas de café tinha início o samba os trabalhadores se reunião para a prática do samba. Entre os jovens frequentadores das rodas de samba localizamos iguras históricas, como o Seu Inocêncio “O Mulata”, fundador da Escola de Samba Camisa Verde e Branco, Seu Zeca da Casa Verde, Seu Dionísio Barbosa, fundador do Grupo Barra Funda. O pesquisador Wilson Rodrigues de Moraes nos legou um registro dos sambas cantados no Pátio da Banana. O depoimento foi concedido por Seu Inocêncio um dos fundadores da Escola de Samba Camisa Verde e Branco. A letra é reveladora do sentimento de pertença ao bairro e da importância do samba como símbolo de identidade coletiva. Não sô do morro, nem da favela Brigo não corro e se apanhá não conto guela Sô da Barra Funda A zona do samba Onde tem gente bamba Onde tem macumba, olé E tem gente bamba Quem quizé sabê meu nome Não precisa preguntá Trago letra na cabeça Ai, como verso no jorná A descrição do Sr. José Francisco conirma a importância adquirida pelo samba na Barra Funda: Na Barra Funda tinha o Largo da Banana, onde o pessoal se encontrava para fazer seus batuques e ali na Barra Funda, nos porões das casas, se fazia os batuques. Eu morei na Vitorino Carmilo, 118, mas ali na Vitorino Carmilo no número 60, o batuque começava sábado logo ao meio dia. Era ali na Barra Funda um ponto de encontro da comunidade negra, mas o Bixiga também era famoso, mas sabe como é, era uma mescla de negro com a colônia italiana. Agora na Barra Funda era mesmo um ponto de concentração de negros. (Sr. José Francisco, depoimento concedido a: Silva, 1990, p. 98) Obtivemos de outra fonte referências indicativas que as sociabilidades negras também permeavam os espaços das residências. Como os porões habitados pelos negros eram construções geminadas, alguns decidiram abrir “passagens” entre um e outro porão que dessa forma se tornaram interligados, sugerindo conforme a imagem elaborada por uma testemunha de época a existência de um “quilombo subterrâneo”. 48 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Em questões de meses, sob solares e sobrados, estabeleceu-se uma enorme colônia negra, vastíssimo quilombo instalado nos porões. Estes por sua vez foram sendo ligados e interligados convertendo-se em intricados labirintos subterrâneos para onde, impelidos pela pressão econômica, aluíam os negros. Ali se instalaram, celebraram suas raras alegrias e carpiram tristezas muitas. Ali nasciam os negros da Barra Funda, ali viviam grande parte de suas vidas, ali geralmente morriam (Branco, 1982, apud Silva, 1990). O samba foi adquirindo posteriormente uma forma institucional. Embora fosse praticado nos interiores dos porões e em espaços públicos conquistados, como o Largo da Banana, lentamente a expressão pública foi legitimada. Os cordões carnavalescos representaram a resposta cultura e política mais importante da comunidade negra marginalizada. Cordões Carnavalescos O primeiro cordão carnavalesco paulistano foi organizado na Barra Funda por iniciativa do Sr. Dionísio Barbosa, fundador do Grupo Barra Funda, em 1914. A ideia de incluir o samba nos festejos do carnaval ocorreu-lhe após um período de residência no Rio de Janeiro. Durante a estadia pode conviver intensamente com os blocos carnavalescos da cidade e com capoeiristas famosos (Britto, 1986). Por volta dos anos 1920 o Grupo Barra Funda já se apresentava na cidade como uma instituição legítima. Havia inclusive um percurso que anualmente se repetia. Os carnavalescos saíam a pé da Barra Funda, seguiam pela Av. São João, subiam a Avenida Angélica e alcançavam a Av. Paulista, desciam a Brigadeiro Luís Antônio e chegavam ao Largo São Francisco, Rua São Bento e inalmente à Praça do Patriarca. Nesse local um elevado número de populares permanecia aguardando-os. Então os integrantes paravam e faziam uma apresentação especial (Britto, 1986, p. 76). O Grupo Barra Funda era composto por aproximadamente 60 pessoas. A orquestração conirma que havia descontinuidades em relação ao samba de Pirapora. A sonoridade urbana era resultante da combinação de instrumentais característicos do choro e da percussão africana. O instrumental do choro seguia à frente. A formação básica incluía instrumentos como saxofone, trombone, violão e três cavaquinhos. A percussão vinha a seguir sendo composta pelo surdo, caixa e cuíca, porém, o que a distinguia a música era a presença do bumbo empregado nas festas de Pirapora. Ainda nos de 1970, já sob o domínio das escolas de samba, o bumbo permanecia como referência importante, assegurando uma timbragem e rítmica peculiares ao samba paulistano. Se difundiram principalmente pelos territórios negros. No Bixiga, por exemplo, as cisões de um clube de futebol deram origem, no inal dos anos 1920, ao Vai-Vai. O cordão adotou desde o início as cores preto e branco, em homenagem ao Esporte Clube Corinthians. O Vai Vai se notabilizar-se-ia pela valorização da percussão e a exclusão dos instrumentos identiicados ao choro. Nas proximidades da Barra Funda havia outro importante cordão carnavalesco, o Campos Elíseos, Fundado 49 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos em 1917 pelo Sr. Alcides Marcondes. A marca distintiva desse cordão era a articulação da percussão, que às vezes incluía uma quantidade superior a 10 instrumentos, dentre estes, caixas, surdos e bumbos de todos os tamanhos, à esta sonoridade juntava-se o “grupo de choro” composto por trombone, clarinete, violão, banjos, chocalhos, pratos e prato com baqueta. Os cordões cumpriram importantes funções sociais e culturais. A transição do mundo rural e pequenas cidades do interior para a metrópole foi orientada por referências culturais que se revelaram importantes na constituição de novas formas de sociabilidade. A coletividade negra encontrou nessas instituições suportes para enfrentar a rudeza do mundo do trabalho e o racismo. Fernandes (1978) enfatizou a desagregação, a sociopatia do grupo, mas nos espaços da cultura, não estudados pelo ilustre pesquisador, reconhecimentos e pertenças coletivas foram elaborados a coletividade não se sucumbiu aos fatores desagregadores da metrópole. Se tornaram os embriões das escolas de samba paulistanas como Vai-Vai, Camisa Verde e Branco e Unidos do Peruche. Atualmente o mapa das escolas de samba na cidade de São Paulo conirma a importância das experiências anteriores. Há uma nítida concentração das escolas de samba na Zona Norte. A região abrigou nas décadas de 40/50 importantes contingentes da população negra oriundos dos bairros da Barra Funda e Bixiga, desterritorializados pela especulação imobiliária e as reformas urbanas iniciadas pelo prefeito Prestes Maia. Os cordões carnavalescos se apresentaram como instâncias de reconstrução dos laços comunitários no espaço urbano. As ações desenvolvidas nessas instituições não se limitavam apenas ao período do carnaval. Os salões de baile, viagens a Pirapora, piqueniques, organizados ao longo do ano, contribuíram para reforçar a pertença à comunidade. Os momentos de alegria e festejos se contrapunham à segregação espacial e ao racismo experimentados na vida cotidiana. Durante a pesquisa que realizamos no bairro da Barra Funda registramos um samba de autoria do Seu Zezinho da Casa Verde em que este traduzia os níveis de conlito com o policiamento. Depoimentos gravados também reforçaram esse aspecto. 50 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Na Barra funda meu bem Zona que dá o que falar Onde a polícia não vem Mocorogo não tem que a quadrilha matar Vou te deixar a vontade Mulher do meu bem querer Venha aqui nesse samba Não tem encrenca nos vamos sambar Nega Adalgisa é Valente Tá sambando com a gente Tá querendo briga Nega não há moropuca Tá icando maluca Tá querendo apanhar O jeito da nega é bamba Bamba nega que só vai no samba Quero te dar meu valor Nega... Nega eu também sou do amor Geraldo Filme, importante sambista paulistano que também residiu na Barra Funda, e que atuou como baliza no Cordão Carnavalesco Campos Elíseos, nos legou outro depoimento em que enfatiza a centralidade da mulher negra no mundo do trabalho e na organização da cultura nos territórios negros: Minha mãe trabalhava de doméstica numa pensão, lugar de muito movimento na Alameda Glette, na Barra Funda, ela puxava samba e cresci no meio disso tudo. Meu começo foi como baliza no Campos Elíseos (Britto, 1986). Duas gravações de Geraldo Filme reairmam os aspectos centrais da sociabilidade negra na cidade que estamos destacando. A primeira música, Tradição, revela o sentimento de pertença ao território negro do Bixiga, a segunda, intitulada Silêncio no Bixiga é uma homenagem ao diretor de bateria Pato N’água, importante sambista da Vai Vai, morto segundo versões populares por forças paramilitares, os Esquadrões da Morte, que atuaram durante o período ditatorial. Os anos 40 e 50 assistiriam à emergência de escolas de samba tradicionais como, por exemplo, a Nenê de Vila Matilde, mas os Cordões iriam resistir até o início dos anos de 1970. Progressivamente, estas instituições foram perdendo importância, as exigências oiciais dos desiles carnavalescos impuseram o formato das escolas de samba como padrão. Atualmente o samba assumiu outras formas, os grupos de pagode por um momento se tornaram hegemônicos, porém, o que se observa na cena urbana paulistana é a continuidade do espírito de comunidade. Nos espaços comunitários os sambas históricos continuam sendo cantados. As músicas de Geraldo Filme, Cartola, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Martinho 51 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos da Vila, Demônios da Garoa, Lupicínio Rodrigues, Wilson Batista, Assis Valente, entre outros, ainda ecoam em meio aos novos espaços da sociabilidade negra. O Samba da Vela, as rodas de samba em São Mateus, na Casa da Cultura no bairro da Piraporinha, seguem conirmando as palavras de Nelson Sargento: o samba agoniza, mas não morre. SAIBA MAIS Fio da Memória – Documentário de Eduardo Coutinho Link: https://www.youtube.com/watch?v=UrIwQT_KKp8 Referências Bibliográficas BRITTO, Ieda M. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo, FFLCH-USP, 1986. CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção da nacionalidade – 1917-1945. São Paulo, Annablume, 2004 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978. LARA, Silvia Hunold & PACHECO, Gustavo. “Eu venho de muito longe, eu venho cavando”: jongueiros cumba na senzala centro-africana. In: Memórias do jongo. Rio de Janeiro e Campinas, Folha Seca/CECULT, 2007. MATTOS, Hebe & ABREU, Marta “Jongo, registros de uma história”, In: LARA, Silvia Hunold & PACHECO, Gustavo. Memórias do jongo. Rio de Janeiro e Campinas, Folha Seca/ CECULT, 2007 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FUNART, 1983. MUKUNA, Kazadi wa. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo, Terceira Margem, 2006. ROLNIK, Raquel. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras (Etnicidade e Cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro). Estudos Afro-Asiáticos, nº 17, 1989, STEIN, Stanley J. “Uma viagem maravilhosa”. In: LARA, Silvia Hunold & PACHECO, Gustavo. Memórias do jongo. Rio de Janeiro e Campinas, Folha Seca/CECULT, 2007. 52 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Unidade 4 Texto 2. Capoeira: arte-luta e reelaboração da identidade negra Objetivos: Compreender a capoeira enquanto prática afro-brasileira reelaborada em diferentes tempos e espaços; entender o signiicado da capoeira no contexto das expressões estéticas de origem africana; articular a prática da capoeira com os processos de construção da identidade negra. A elaboração dessa arte-luta vem se desenvolvendo desde o período escravocrata. Ao situarmos o fenômeno na perspectiva histórica pretendemos contribuir para a compreensão do fenômeno enquanto experiência reelaborada, lexível e em consonância com as lutas sociais e com os processos de construção da identidade negra. Os estudos sobre a capoeira indicam que se trata de uma criação original da população escrava. A forma, por vezes lúdica, em que é apresentada na contemporaneidade apenas faz alusões a um experimento inicialmente marcado por enfrentamentos, lutas, castigos físicos, prisões e sofrimentos. Quando retornamos aos documentos históricos percebemos que uma forma original de capoeira fora elaborada pelos africanos, escravos e ex-escravos. A intensa repressão à prática é correlata ao teor da insubmissão que caracterizou a “capoeira escrava”. Os principais registros sobre prisões motivadas pela prática da capoeira no período escravocrata datam das primeiras décadas do século XIX. Os dados apresentados por Carlos Eugênio Líbano Soares, permitem compreender aspectos característicos da “capoeira escrava”. Para o autor a prática surgiu como uma forma de resistência à escravidão, um instrumento de luta contra a brutalidade da servidão, porém, diferentemente dos quilombos, que se associavam às fugas, se circunscreveu ao meio urbano. O jogo da capoeira não era uma atividade de ‘boçais’ como se denominavam os africanos recém-chegados, ou um recurso desesperado diante da onipresença da ordem policial. O tipo social ‘capoeira’, que estava sendo forjado naquele momento exibia vários sinais de estar já profundamente enraizado na sociedade escravista urbana e articulado com as formas de lidar com a lei dos brancos e seu aparato de poder (Soares, 2002, p. 78) Para o autor a formação da capoeira se vincula a estratégias e luta dos escravos que desejavam permanecer nas cidades. Os dados conirmam que a fuga, alternativa possível para se escapar à condição de escravo, não se associava aos capoeirista, ou seja, “capoeiras e fugidos, ao menos na documentação raramente se cruzavam” (p. 79). Os capoeiras, investiam na permanência no meio urbano, “estreito e perigoso” é bem verdade, demonstrando desenvoltura nos deslocamentos pela cidade. Ficar na cidade, teria sido uma escolha política dos escravos que praticavam a capoeira. O livro Códice 403, relata prisões de capoeiras quase sempre realizadas em período noturno. Acrescenta algumas estratégias dos capoeiristas, ou seja, aos “assovios de capoeira” e “cabeçadas”. Referências simbólicas importantes são mencionadas. O uso de itas de cores, 53 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos encarnadas e amarelas, podem ser lidas como marcas de distinção e pertencimento aos grupos. Além desses elementos eram citados o chapéu, em forma de barrete, casquete ou boné como elementos identitários dos capoeiristas. Os capoeiras eram selecionados devido às suas habilidades pessoais. Possivelmente seriam iguras de destaque na comunidade escrava, exibindo qualidades como companheirismo, liderança e mesmo conhecimentos mágico-religiosos. Dados sobre a polícia joanina (1810-1821) trazem informações importantes sobre a composição étnica dos capoeiras. Ainda de acordo com Soares (2002) 77% deste universo pesquisado eram de origem africana, 10,6% crioulos e 11% de “origem indeterminada”. Os dados apresentados por Vidor Reis referente aos anos 1857-1858, referentes à prisão do Calabouço, revelam que o percentual de nativos crescera, signiicativamente, 30% do grupo era composto de escravos crioulos, vindo a seguir 14 etnias, identiicadas como sendo majoritariamente da região de Angola (Vidor Reis, 1997, p. 28), dados que indicam a procedência centro-africana, conforme, depoimentos colhidos posteriormente junto ao Mestre Pastinha informam que: “...em sua terra nativa a capoeira recebia o nome de ‘dança da zebra’, também conhecida como N’Golo. Essa dança era um ritual de iniciação feminina que marcava a passagem da adolescência para a vida adulta, durante o qual os homens lutavam como zebras, sendo que, aos vencedores cabia-lhes escolher a mulher que desejassem. Ele destaca também que alguns toques de berimbau são legítimos e originários da África, tais como São Bento Pequeno, São Bento Grande, Santa Maria, Angola, Cavalaria, Panha laranja no chão tico-tico e Essa cobra me morde Senhor São Bento.” (Vidor Reis, 1997 p. 142). Particularmente nos últimos anos da década de 1850 iríamos assistir ao recrudescimento da repressão aos capoeiras. Os dados referentes a prisões nos anos 1858, 1859, 1861, são respectivamente 200, 367, 407 (Soares, 1993, p. 62). Os historiadores conirmam que a perseguição somente atenuar-se-ia após a Guerra do Paraguai (1864-1870). Durante esse período escravos e capoeiras foram progressivamente incorporados à legião de combatentes e, como retribuição, era-lhe prometido a alforria. A partir de a 1872 surgem referências à Flor da Gente, malta de capoeira que se ixava no bairro da Glória e que possuía vínculos com o universo político. A articulação dos capoeiras com os políticos monarquistas sugere que, embora, informalmente, certa legitimidade fora alcançada. A cooptação iria se tornar de fato estratégica junto aos adeptos do regime monárquico em disputa com aqueles que se iliavam aos ideais de República. A festa da Glória era por eles [capoeiras] preferida. D. Pedro II dedicava especial carinho a essa romaria, comparecendo anualmente com todas as formalidades e intercedendo sempre pela liberdade dos que por ventura fossem dela privados durante os festejos. Resultado: os capoeiras viam um campo propício para as suas proezas e praticavam toda sorte de iniquidades, que a polícia não coibia para não desagradar o soberano, a quem todos rendiam verdadeiro culto (Vida policial, apud Soares, 1993, p. 67). Para os pesquisadores a relativa popularidade do imperador junto às camadas populares luminenses ainda carece de estudos, possivelmente, as posições favoráveis à Lei do Ventre Livres, condenação aos castigos físicos e manifestações em prol da abolição tenham contribuído. 54 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil A imagem de um Estado intervencionista nas relações senhor-escravo aos poucos foi se irmando como positiva aos olhos das classes populares e dos escravos (Soares, 1993, p. 67). A posição de prestígio junto aos monarquistas, a ação contrária aos políticos republicanos, em atos e comícios por estes produzidos, explica em parte a dura repressão que se abateu sobre os capoeiras logo após a instauração da República (1889). Logo no ano seguinte, 1890, a capoeira seria tipiicada como crime pelo Código Penal. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal; provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena – prisão celular de dois a seis meses. Parágrafo único: é considerado circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dobro (Rego, apud Vidor Reis, 1997, p. 46-47) Antes mesmo da vigência do Código Penal ações visando o extermínio da capoeira foram empreendidas pelo delegado Sampaio Ferraz. A partir de 10 de dezembro de 1889 uma onda de prisões iria se abater sobre os capoeiristas nos vários distritos da cidade. Somente na primeira quinzena deste mês, mais de uma centena de capoeiras, incluindo praticantes e chefes de maltas, foram presos. Os capoeiras atuavam de maneira coletiva. Formavam grupos cujas identidades encontravam-se fortemente referenciadas em símbolos e atitudes. O contraste não era apenas com os órgãos de repressão, mas internos. Dentre as principais maltas de capoeira destacavam-se os Nagoas e Guayamus. Os Nagoas identiicavam-se com a tradição da capoeira escrava e se iliavam a uma herança de organização das lutas anti-escravocrata que remontava aos séculos XVIII e XIX. Os Guayamus, acreditam os estudiosos, vinculavam-se a uma tradição mestiça, que incorporava, crioulos chegados de todas as províncias, brancos das camadas populares e imigrantes portugueses pobres, que aos poucos iriam conformar uma classe trabalhadora urbana. Os estilos eram também contrastantes. Os Nagoas usavam uma cinta de cor branca sobre o vermelho e seus chapéus tinham uma das abas batidas para frente. Os Guaiamus, por sua vez, tinham cinta de cor vermelha sobre a branca e chapéu com uma das abas levantadas para frente. Assim, quando em uma fortaleza [taverna] encontravam-se capoeiras adversários, o Guayamú pede vinho e aguardente, derrama essa no chão e saracoteia em cima, lançando por im vinho sobre a aguardente. É bastante isso prá começar a luta, porque o capoeira não consente que a sua cor seja pisada e muito menos que se coloque sobre ela a cor do adversário (Vidor Reis, 1997, p. 36). A cidade encontrava-se também apropriada, existindo assim a “terra dos Guaiamus”, (centro da cidade) e a “terra dos Nagoas” (Lapa ou Cidade Nova). A opção de vida do capoeira era marcada por princípios de liberdade. “Viver sobre si”, se auto sustentando, longe do controle dos patrões e senhores, construir laços de solidariedade nos espaços das ruas, quiosques e cortiços, desfrutar de momentos fortuitos de ascensão social, como, por exemplo nos períodos eleitorais, compunha opções de um estilo de vida peculiar aos capoeiras. Tais escolhas reforçavam a existência das maltas, espaço de apoio coletivo aos indivíduos. A possibilidade de um chefe político utilizar os serviços da malta e conferir-lhe proteção, tornara-se estratégica na sobrevivência do grupo. 55 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos O im da chamada República Velha, cujo poder político se manteve sob o controle da oligarquia rural, sucede-se um período de disciplinarização da capoeira. Em contraste com a simples repressão, veriicamos ações patrocinadas por órgãos do Estado em que se procurou organizar a capoeira de forma a torná-la expressão folclórica nacional ou instituí-la como esporte regulamentado. Ações desse tipo tiveram início durante a primeira fase do governo de Getúlio Vargas, inaugurada a partir de 1930. Nesse período o esporte e a educação física passaram a ter papel destacado na “formação do homem brasileiro” (Lima & Lima, 1991). No caso da capoeira, esta poderia ser praticada livremente, porém, desvinculada de qualquer ato considerado marginal, subversivo ou agitador. Poderia ser apresentada como folguedo nos festejos populares e como espetáculo folclórico em recintos estipulados. Como luta, deveria ser exercida apenas como defesa pessoal ou esporte, praticada em locais fechados por pessoas idôneas e de bem, devendo assim transformar-se em esporte nacional (Areias, apud, Lima & Lima, 1991, p. 163) Uma forma de capoeira que vinha se desenvolvendo no contexto baiano se apresentou como a mais adequada ao novo momento. Mestre Bimba, tem sido considerado o principal responsável pela projeção e legitimação da capoeira. O estilo que desenvolvera, foi praticado, ainda em 1936, junto às instâncias do poder. O governador da Bahia, Juracy Magalhães o convidou, na oportunidade, para uma exibição no palácio. O governante promoveu uma reunião com um grupo de amigos e convidados em que lhes seria apresentado “uma parte da nossa herança cultural”. Naquele mesmo ano a capoeira foi oicializada pelo governo baiano como “instrumento de Educação Física” e mestre Bimba recebeu da Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública uma licença de registro de funcionamento de sua escola como “centro de educação física” (Areias, apud Lima & Lima, 1991, p. 164). A capoeira tradicional baiana tem origem em uma prática desenvolvida por outro mestre, o Mestre Pastinha, que a denominou Capoeira Angola (Frigério, 1989). Vicente Ferreira Pastinha nasceu a 5 de abril de 1889, na cidade de Salvador. Os registros de memória indicam que, quando era menino, enfrentava problemas com um rival que sempre lhe batia. Um dia “um velho africano”, penalizado diante de sua situação, chamou-o e disse: “você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia, vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia”. Assim, entre 8 e 10 anos de idade esteve em contato com o mestre de capoeira Benedito: um preto natural de Angola. Aos 12 anos, em 1902, ingressou na escola de aprendizes da Marinha onde aprendeu, esgrima, lorete, carabina, e ginástica sueca. Deu baixa aos 20 anos e abriu sua primeira escola (Vidor Reis, 1997, p. 139). 56 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Para Alejandro Frigerio a Capoeira Angola pode ser tomada como expressão máxima da arte negra, cujo fundamento é a multidimensionalidade. De acordo com o autor o que caracteriza a performance africana é o fato de esta ocorrer “em vários níveis sucessivos, misturando gêneros que para nós seriam diferentes e separados” (Frigério, 1992, p. 177). Assim, em uma prática cultural de origem africana, poderemos, identiicar, simultaneamente, múltiplas dimensões do fazer artístico: música, dramatizações, mímica, dança. Os elementos que o autor destaca da Capoeira Angola auxiliam na compreensão desta concepção de arte multidimensional: 1. Malícia: quase todos os autores concordam que este é um dos fundamentos da capoeira Angola. “O Angoleiro distrai seu rival, brinca com ele, engana-o, mostrando-se desprotegido, para ser atacado justamente onde se deseja, ou seja, para um contra-ataque eicaz. 2. Complementação: os dois jogadores icam atentos aos movimentos um do outro e sempre se deslocam, atacam e se defendem em função do que izer o adversário, ou para provocar determinado movimento deste. Os capoeiristas não devem entrar em choque direto porque assim a harmonia do jogo será rompida; 3. Jogo baixo: o jogo de angola tem movimentos predominantes (mas não apenas) baixos. Exigem que o tronco e a cintura estejam lexionados e a baixa estatura. 4. Ausência de violência: na capoeira angola, os jogos, são exatamente isso, jogos. Pretende-se sim atingir o adversário com alguns golpes e evitar que ele nos alcance, mas a luta está sempre e inseparavelmente misturada com o jogo. 5. Movimentos bonitos: o elemento estético possui importância, busca-se a harmonia de movimentos, não se interromperá o jogo para se fazer uma pirueta acrobática que não seja exigida. 6. Música lenta: A capoeira angola é cadenciada e se realiza em movimentos lentos, em comparação com outras variantes. É um jogo de domínio do corpo e da mente. 7. Importância do ritual: Existem princípios a serem obedecidos para o início do jogo. Não se pode ser um bom angoleiro se não se sabe sair do pé de um berimbau. Como no candomblé é preciso demonstrar que se domina os códigos, saber invocar proteção, encerrar a roda em sentido anti-horário. 8. Teatralidade: As expressões nos rostos, os movimentos das mãos, ingindo medo, distração, alegria, canções gestualizadas, tudo isso faz parte da essência da capoeira angola Os pesquisadores sobre o tema concordam que a Capoeira Regional foi uma criação do Mestre Bimba. Airmam ainda que ele era um praticante da Capoeira Angola, mas, considerando que esta modalidade “deixava muito a desejar em termos de luta”, criou a “Luta Regional 57 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Baiana”. O jogo tornou-se mais rápido, movimentos acrobáticos foram valorizados e elementos das artes marciais orientais foram incorporados. Bimba foi o primeiro mestre a abrir uma escola (academia de capoeira em 1932). Acredita-se que tenha sido também o pioneiro no desenvolvimento de uma metodologia de ensino especiica para o aprendizado da arte-luta. Por meio de tais estratégias teria conseguido ampliar os limites da capoeira. Progressivamente um público que pertencia à classe média baiana foi sendo atraído, tornando alunos do mestre. Na década de 60 a Bahia permanecia como o principal centro da capoeira, mas muitos mestres começaram a ser atraídos pelas oportunidades oferecidas no Sudeste, Rio de Janeiro e São Paulo. A acentuada migração de nordestinos para esta região possivelmente contribuiu para reinscrição da “capoeira baiana”. Distante do seu contexto original a capoeira iria passar por um novo ciclo de transformação. Começou-se, por exemplo, a projetá-la como esporte. Concepções novas, como “arte marcial brasileira”, passara a ser a ela associadas. Em 1972 a capoeira foi declarada esporte pelo Conselho Nacional de Desportos. O novo status alcançado trouxe consequências. Alejandro Frigério (1989) destaca alguns itens importantes nesse novo contexto: 1. Crescente burocratização: torna-se necessários que existam associações, federações, que se elabore um regulamento único para que exista competições. 2. Incorporação de elementos das artes marciais orientais: tornam-se regras o uso do uniforme branco, a prática de pés descalços, o uso de cordões para caracterizar os diferentes níveis de aprendizagem, passa-se a empregar juízes para arbitrar a luta. 3. Cooptação ideológica pelo sistema: a capoeira é re-signiicada como “educação, civismo, cultura e saúde”. As primeiras tentativas de uniformização passam a ser ditadas pela Força Aérea; 4. Concepção evolucionista: prega-se a evolução da capoeira e a ultrapassagem de folclore para arte marcial. Isso implicaria em despojar-se dos marcadores identitários africanos. A interpretação da capoeira conforme alguns autores sugere uma linha evolutiva em que os marcadores étnico-raciais teriam sido apagados. A partir do inal dos anos 70, a cultura afro-brasileira foi impactada pela reorganização dos movimentos negros. A reivindicação de marcadores étnicos tradicionais entrou na agenda política. Práticas musicais e religiosas começaram a invocar, por exemplo, símbolos ancestrais, sonoridades e instrumentos de percussão. Embora a capoeira tenha passado por transformações que por vezes projetam o apagamento de referenciais afro-brasileiros é preciso sempre articular as concepções e práticas ao contexto. 58 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil A capoeira uma vez concebida como esporte ou como técnica corporal, empregada no aprimoramento do condicionamento físico, passou inevitavelmente por um processo de embranquecimento, mas o campo da cultura deve ser concebido como um lugar de disputas em torno da atribuição de sentidos. Os princípios da Capoeira Angola continuam sendo valorizados atualmente. São praticados e reivindicados pelos “angoleiros” como os fundamentos legítimos da capoeira. Nesse universo, que é o da cultura, é, portanto, impossível assegurar uma linha evolutiva. As concepções sobre a capoeira encontram-se no momento abertas e em disputa, sujeitas a reinvenções e à criação. A tradição cultural afro-brasileira assenta-se em saberes organizados e veiculados por meio da oralidade. Isso implica dizer que não se reduzem a um conjunto de símbolos fossilizados, mas permanentemente atualizados. SAIBA MAIS Uma vida Pela Capoeira – Documentário sobre a vida do Mestre Pastinha, guardião da Capoeira Angola. Link: https://www.youtube. com/watch?v=-unP_tdBiKI Referências Bibliográficas FRIGERIO, Alejandro. Capoeira: de arte negra a esporte branco. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 10, vol. 4, 1989. _____. Artes negras: uma perspectiva afrocêntrica. Estudos Afro-Asiáticos, 23:175-190, dezembro, 1992. LIMA, Robert K & LIMA, Magali. Capoeira e cidadania: negritude e literatura no Brasil Republicano. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, n. 34, 1991, pp. 143-182. SOARES, Carlos Eugênio L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, Ed. Unicamp, 2002. ______. Da Flor da Gente à Guarda Negra: os capoeiras na política imperial. Estudos Afro-Asiáticos, n. 24, pp. 61-81, julho de 1993. VIDOR REIS, Letícia. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo, Fapesp/ Publisher Brasil, 1997. 59 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 5 Escritos negros: Imprensa negra e Carolina Maria de Jesus Objetivos: Esta aula tem por objetivo compreender as produções culturais negras no campo da escrita elaboradas nas primeiras décadas do século XX. As marcas da tradição oral podem ser localizadas nos experimentos jornalísticos negros classiicados como Imprensa Negra Paulistana. A segunda experiência à qual nos reportamos é a produção literária de Carolina Maria de Jesus. Analisaremos essas duas produções como um aspecto importante da luta das comunidades negras no campo da Educação. Elas também expressam duas atitudes que permanecem como símbolos das lutas da população negra no pós-Abolição e na República. A imprensa negra (1900 – 1930) A imprensa negra se estruturou nas primeiras décadas do século XX como um movimento literário e político, tendo como principal inspiração o líder abolicionista Luiz Gama. As homenagens nas páginas dos jornais e as visitações que os líderes negros faziam ao túmulo de Luiz Gama no Cemitério da Consolação, revelam que “o precursor do abolicionismo” fora escolhido como principal ícone da comunidade. Sob o rótulo “imprensa negra paulistana” os pesquisadores incluem um número vasto de pequenos periódicos de circulação efêmera na capital paulista e cidades do interior (Bastide, 1983; Ferrara, 1986; Silva, 1990). Foram identiicados no conjunto das produções dois ciclos distintos, o primeiro compreende os anos 1915 a1924, o segundo entre 1925 e 1933. O primeiro ciclo se inicia com a publicação do jornal O Menelick (1915) que será seguido por uma multiplicidade de outros títulos: O Kosmos, O Alinete, O Clarim. A força simbólica de O Menelick (1915) permanece na contemporaneidade. Durante pesquisa que atualmente desenvolvemos recentemente1 localizamos jovens negros no Sarau do Binho distribuindo uma revista com o mesmo título, O Menelick, Segundo Ato. Na oportunidade houve também um evento que contou com a participação de jovens escritoras negras, objeto de matéria da revista: Elizandra Souza, Priscila Preta, Tula Pilar e Raquel Almeida. O segundo ciclo jornalístico se inicia com a publicação e O Clarim da Alvorada e, posteriormente, A Voz da Raça, órgão da Frente Negra Brasileira. Este ciclo se encerra em 1933 quando ocorre o fechamento do jornal A Voz da Raça, ordem de Getúlio Vargas. 1 Reiro-me mais uma vez ao projeto de pesquisa O Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens: lutas políticas, produções culturais e segregação urbana na cidade de São Paulo (1978-2012). Apoio: FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (José Carlos Gomes da Silva). 60 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil O estudo de Roger Bastide (1983) conirma que esta modalidade de impressa não foi uma particularidade dos negros paulistanos, encontramos iniciativas semelhantes tanto nos EUA como em demais países da América Latina. O autor classiica essa produção jornalística como imprensa de tipo “adicional”, pois não tinha caráter noticioso ou informativo. As informações mais gerais eram lidas nos veículos da grande impressa. Os jornais negros tinham, portanto, outras inalidades, ou seja, visavam, em primeiro lugar, instaurar redes de sociabilidades entre os negros; reforçar a autoestima e valorizar as ações dos negros em diferentes campos da cultura; reforçar sinais culturais diacríticos marcadores da identidade negra. O segundo aspecto presente nestes jornais era de natureza política, uma vez que davam vazão ao protesto étnico-racial e denunciavam as desigualdades raciais. Da perspectiva dos negros paulistanos, que enfrentavam a concorrência do imigrante no mercado de trabalho, este aspecto ganharia destaque a partir de meados dos anos 1920. Desde esta data os jornais O Clarim da Alvorada e A Voz da Raça, começaram a discutir a necessidade de “uma segunda abolição” (Fernandes, 1978), pois entendiam que a inserção do negro na sociedade de fato não se efetivara. Um terceiro aspecto característico destes jornais era “a importância dada à vida social” (Bastide, p. 130). Localizamos nas páginas destes periódicos diferentes ações de natureza recreativa, festas, bailes, recitais de poemas, casamentos (Silva, 1990). Os jornais O Menelick (1915), O Bandeirante (1918), O Alinete (1918), A Liberdade (1918), O Kosmos (1922), são representes da fase inicial, marcada pelas atividades recreativas. Percebemos no conjunto das produções uma transformação importante. A partir de meados dos anos 1920 alguns exemplares começaram a apresentar matérias que faziam apelo à solidariedade étnico-racial, caixas beneicentes, construção de hospitais, bibliotecas, monumentos. Os temas se tornariam frequentes indicando que tinham como modelo os imigrantes, estes tinham seus próprios jornais, mas também escolas e hospitais. As lideranças negras começaram por essa época a discutir a possibilidade de criação de uma Associação dos Homens de Cor, o Centro Cívico Palmares e a construção do Hospital Henrique Dias, a ediicação de um monumento à Mãe Preta também entrou na pauta da militância negra (Silva, 1990). Nesse período a comunidade negra paulistana encontrava-se dividida em termos socioeconômicos e culturais: os trabalhadores informais negros e a “elite negra”. Os agrupamentos divergiam quanto aos aspectos econômicos, culturais e políticos. Os trabalhadores informais haviam ingressado no espaço urbano em data recente. O grupo compunha o grosso da mão de obra braçal ou vivia do subemprego. O bairro da Barra Funda iria se tornar o principal espaço de moradia, trabalho e cultura para esta coletividade. As atividades de carregar e descarregar das sacas de café dos vagões ferroviários na Estação Barra Funda, a estocagem nos armazéns, situados no entorno, demandavam mão de obra dos negros recém-libertos. 61 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos NA PRÁTICA Durante as pesquisas realizadas no mestrado entrei em contato com Seu Zezinho ou Zeca da Casa Verde, um morador do bairro que havia vivenciado diferentes experiências peculiares aos trabalhadores informais negros. O Seu Zezinho havia trabalhado como chapa, residido em porões, atuava ainda como músico e fora membro do Cordão Carnavalesco Barra Funda, Fundador do Cordão Flor da Mocidade e compositor de sambas. A trajetória de vida do Seu Zezinho era exemplar da experiência coletiva dos negros marginalizados, singularizada no indivíduo (Silva, 1990). O segundo grupo, identiicado por Florestan Fernandes como “elite negra paulistana”, era formado por funcionários públicos, jornalista, dentistas. Foi desse grupo de classe média que surgiram os fundadores dos jornais negros. Para Fernandes (1978) foi este segmento que expressou de forma mais contundente o protesto contra o “preconceito racial”. De fato, os integrantes da “elite negra” estavam em um processo de mobilidade social e esbarravam diretamente nos limites do racismo ao reivindicarem a inclusão em postos historicamente ocupados pelo segmento branco. Apesar das diferenças de classe, Bastide e Fernandes, entenderam que os negros que integravam a “classe média” tinham origens nas camadas populares, embora a situação ocupacional fosse distinta dos trabalhadores informais, mesmo assim, ousaram articular uma mobilização política mais ampla. O movimento de politização culminou com a organização da Frente Negra Brasileira, instituição que tinha como porta-voz o jornal A Voz da Raça. As orientações políticas e ideológicas da Frente Negra apareciam nos artigos e editoriais jornalísticos, mas os poemas também traduziam suas concepções de mundo, o poeta e militante Lino Guedes foi a principal expressão literária. A posição política do grupo articulava-se em torno de três princípios nucleares, conforme observou Roger Bastide: 1. O primeiro era o combate ao alcoolismo, problema que a “elite negra” identiicava entre os trabalhadores e subempregados. Os jornais desenvolveram neste sentido uma série de artigos condenando o uso abusivo do álcool. Com esta “campanha” desejavam atingir a parcela mais ampla de negros que vivia do trabalho braçal e habitava os porões das casas dos imigrantes. A “campanha” pela aquisição de terrenos e construção da casa própria tinha propósitos semelhantes; 2. O segundo princípio que defendiam era a reforma dos costumes. Alegavam, por exemplo, que os negros deveriam ter um comportamento irrepreensível. Adotavam, nesse sentido, referências simbólicas que pautavam as atitudes do segmento branco. A formalidade na vestimenta, o uso do paletó e da gravata, técnicas de branqueamento, como o alisamento do cabelo, eram sugeridas. Os encontros recreativos em bares e salões, o lazer e a diversão excessivos eram condenados. 62 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil 3. A disciplina no trabalho era o terceiro princípio que prescreviam. A questão era vista como um problema, pois os estudos relativos ao período conirmam que de fato o homem negro experimentava grande instabilidade no emprego. Como as mulheres, conseguiam mais facilmente se ixar no serviço doméstico, possuíam maior estabilidade e, muitas vezes, assumiam a condição de chefes de família. Os casamentos eram desfeitos precocemente, sendo a instituição familiar bastante instável na comunidade negra do período (Fernandes, 1978). Os caminhos trilhados pela Frente Negra conduziram, porém, a uma postura ideológica que em dado momento resvalou para o nacionalismo e apoio a Getúlio Vargas. A opção se mostrou complicada, pois o próprio Vargas ordenaria posteriormente o fechamento da instituição. Há, porém, no projeto político da Frente Negra Brasileira uma atitude pioneira de valorização da educação como instrumento de mobilidade social do negro. NA PRÁTICA No inal dos anos 1990, tive o privilégio de entrevistar o Sr. Francisco Lucrécio, Secretário da Frente Negra Brasileira (FNB). Ele apresentou na oportunidade uma interpretação pessoal sobre os conlitos no âmbito da Frente Negra. Segundo o depoimento, alguns líderes, entre os quais o incluía, defendiam o princípio da educação como forma de inserção social do negro. Encontravam-se, neste sentido, iliados à tradição de Luiz Gama, ex-escravo que se alfabetizou informalmente, tornou-se advogado autodidata e utilizou a cultura escrita como forma de questionamento das desigualdades raciais. Havia, porém, um segundo grupo que apoiava a articulação política institucional, defendia um Estado forte, sob a conduta de Vargas. Esta atitude foi vencedora nos embates internos. IMPORTANTE O principal expoente desta facção foi Arlindo Veiga dos Santos, um líder carismático e eloquente, cujos atributos valeram a hegemonia no grupo. O depoimento do Sr. Francisco Lucrécio é esclarecedor. A frase citada abaixo com ênfase no registro oral “mais tarde foi que enveredou para a política” revela o desencantamento com o movimento liderado por Arlinda Veiga dos Santos: 63 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos A Frente Negra sempre achou que a luta do negro deveria partir da educação, então ela se preocupou muito em criar os departamentos, esportivo, educacional, social, assistencial e tinha também o departamento de imprensa e biblioteca. Todos giravam em torno da Frente Negra, inclusive as escolas de alfabetização. Conseguimos do Estado quatro professoras. Depois, mais tarde foi que enveredou para a política (Silva, 1998, p. 88). O mais audacioso projeto educacional desenvolvido pelo grupo foi a Escola da Frente Negra, que funcionou no bairro da Liberdade entre 1934 a 1937. A escola recebeu professoras negras designadas oicialmente pelo Estado e possivelmente formou uma turma, pois o ciclo das escolas isoladas, na qual a unidade escolar fora incluída, era de 3 anos. Posteriormente, em meados dos anos 40, o TEN – Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento, um ex-militante da Frente Negra Brasileira, iria desenvolver mais um projeto de educação organizado autonomamente pelos negros. A experiência educacional do TEN priorizava a escolarização, mas a integrava ao objetivo mais amplo, a “luta emancipatória do negro”. Estima-se que o TEN atendeu mais de 600 pessoas em seu curso de alfabetização de adultos. Os projetos educacionais gestados pela militância negra dos anos 30-40 valorizavam, portanto, a cultura escrita. A valorização da cultura escrita pela classe média negra nos anos 30, não impossibilitava aproximações com os negros marginalizados que atuavam como trabalhadores braçais e que se organizavam por meio dos Cordões Carnavalescos. Os principais cordões do período eram o Grupo Barra Funda, O Campos Elíseos e o Vai Vai. A Frente Negra Brasileira organizava ainda os concursos de carnaval dos quais participavam os principais cordões carnavalescos. O Sr. Francisco Lucrécio também nos relatou que chegou a compor um samba em parceria com a Dona Eunice, a lendária fundadora da primeira escola de samba de São Paulo, a E. S. Lavapés (1937). As diferenças de práticas, ideias e condições socioeconômicas não impossibilitaram, portanto, os trânsitos e comunicações entre aqueles que clamavam pela “Segunda Abolição”, uma vez que a primeira teria sido objeto das lutas travadas por Luiz Gama. 64 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Carolina Maria de Jesus: vozes negras e marginalidade urbana Carolina Maria de Jesus. Imagem extraída de: Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960, 1ª ed.) A escritora Carolina Maria de Jesus nasceu na cidade mineira de Sacramento, município vizinho a Uberaba, provavelmente em 1914. Chegou à cidade de São Paulo em 1937, após um longo périplo por cidades do interior paulista. Na condição de mulher negra, migrante e pobre, experimentou as difíceis condições de vida que caracterizavam a metrópole paulistana. O processo de industrialização havia por essa época ingressado em uma nova etapa passando a atrair o trabalhador nacional de diferentes estados. Novas categorias sociais como os retirantes das secas, nordestinos e negros, surgiam em um cenário urbano, até então marcado pela presença dos imigrantes europeus. Sabemos muito pouco sobre a forma como os novos atores da vida urbana enfrentaram os desaios da cidade. Por meio dos escritos de Carolina foi possível acessar fragmentos daquelas experiências. As narrativas que nos legou registram um conjunto de vozes silenciadas, reunidas por uma personagem de trajetória incomum. Embora a autora tenha se ocupado nos romances, poemas e peças teatrais de episódios situados no âmbito da vida pessoal e familiar, reportava-se com frequência a questões que diziam respeito às camadas populares. Nas páginas da principal obra, “Quarto de despejo”, encontramos relatos sobre a expulsão dos pobres das regiões centrais, sobre a precariedade dos transportes coletivos, as péssimas condições de moradia em cortiços e favelas. O livro causou profundo impacto na opinião pública dos anos 60 porque pela primeira vez uma voz marginalizada, legitimada pelo falar “desde dentro” aparecia questionando as mazelas da política desenvolvimentista (Meihy & Levine, 1994). Embora no escrito tenha adotado o estilo autobiográico, a autora deixava evidente que as diiculdades que enfrentava na vida pessoal eram igualmente compartilhadas por milhares de migrantes anônimos. 65 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos O cenário urbano que Carolina e os demais migrantes encontraram a partir dos anos quarenta fora modelado pela primeira forma de segregação socioespacial gestada nas décadas iniciais do século XX. Nestes momentos a planta urbana apresentava como características principais a concentração das atividades econômicas e de moradias nas regiões centrais2. Os trabalhadores industriais e do setor doméstico encontravam-se próximos aos locais de trabalho, nas imediações das fábricas e das mansões das elites. A disposição espacial das diferentes classes sociais, embora possibilitasse o encontro dos desiguais no espaço público, obedecia a hierarquizações de natureza socioeconômica. As camadas populares se ixavam nas terras baixas, sujeitas a inundações dos rios e córregos, enquanto as elites ocupavam as terras altas, onde surgiam bairros como Campos Elíseos, Higienópolis e outros que se encaminhavam rumo ao espigão da Avenida Paulista3. Os cortiços se tornaram nesse período a forma mais comum de habitação popular. Apareciam com frequência em bairros como Brás, Bexiga e Barra Funda, sendo ocupados especialmente por imigrantes. A partir dos anos 40 tais ediicações prosseguiram, mas desta feita, tinham por objetivo abrigar o trabalhador nacional. Do ponto de vista arquitetônico considerava-se como cortiço o conjunto de cômodos geminados “que [dava] para um pátio ou corredor, e que [tinha] banheiro, cozinha e tanque coletivos”4. Havia, porém, uma segunda forma de moradia popular, ainda mais precária, eram os porões, espaços inferiores das casas dos imigrantes, inicialmente destinados ao armazenamento de objetos de pouco uso. A forte demanda por moradia e os baixos custos do aluguel converteram, no entanto, esses locais em alternativa residencial. Segmentos da população negra egressos da escravidão e seus descendentes aluíram para estes espaços. Por isso, mesmo em alguns bairros tradicionalmente ocupados por espanhóis, italianos e portugueses formaram-se agrupamentos que progressivamente adquiriram características de “territórios negros”5. Na metade do século passado a primeira forma de segregação socioespacial paulistana começou, porém, a dar sinais de esgotamento. Uma nova ordenação econômica passou a exigir redeinições no sentido de assegurar o luxo mais intenso das mercadorias. Coube especialmente ao poder público promover ações no sentido de assegurar a remodelação das ediicações e o alargamento de vias outrora destinadas a carroças e bondes. Nesse novo contexto, os cortiços e porões logo passaram a ser vistos como formas inadequadas de habitação. O discurso higienista, que nas primeiras décadas do século XX, servira de justiicativa para intervenções pontuais nos momentos em que a metrópole era assolada por epidemias, foi mais uma vez retomado. As formas tradicionais de habitação popular, cortiços e porões, foram então estigmatizadas pelo discurso cientíico, sendo classiicadas como insalubres, inóspitas, focos de “doenças físicas” 2 “A primeira forma de [segregação sócio-espacial] estendeu-se do inal do século XIX até os anos 1940 e produziu uma cidade concentrada em que os diferentes grupos sociais se comprimiam numa área urbana pequena e estavam segregados por tipos de moradia. A segunda forma urbana, a centro-periferia, dominou o desenvolvimento da cidade dos anos 40 até os anos 80”. In: Caldeira, Tereza Pires do Rio. Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, EDUSP/Ed. 34, 2000, p. 211. 3 Ver a propósito, Rolnik, Raquel. “São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política”, In: Kowarick, Lúcio (org.). As lutas sociais e a cidade. São Paulo e Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. 4 Rolnik, op. cit, p. 80. 5 Os territórios negros se situavam particularmente nos bairros da Barra Funda, Bela Vista e Baixada do Glicério. Embora segregados, esses locais foram transformados culturalmente, tornando-se espaços referenciados na cultura afro-brasileira. O principal símbolo de distinção, no caso, era o cordão carnavalesco, precursor das escolas de samba. Ver a propósito, Silva, José Carlos Gomes da. Os sub-urbanos e a outra face da cidade. Negros em São Paulo, cotidiano, lazer e cidadania. Dissertação de mestrado, Unicamp, 1990; “Negros em São Paulo: espaço público e cidadania”. In: Niemeyer, Ana Maria e Godoi, Emília P. (orgs.). Além dos territórios. São Paulo, Mercado de Letras, 1998. 66 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil e “morais”. Tais conclusões permearam a primeira conferência sobre a chamada “moradia econômica” patrocinada em 1941 pelo IDORT (Instituto do Desenvolvimento Racional do Trabalho), órgão da prefeitura. Intelectuais, técnicos e administradores reivindicaram do poder público urgência na mudança do padrão histórico de moradia popular.6 Carolina chegou, portanto, à cidade, em um momento de radicais transformações da vida urbana. A erradicação das chamadas “casas de cômodos”, que marcaria sua trajetória, já havia se integrado em deinitivo à pauta do discurso oicial como solução para o remodelamento do espaço público. Como consequência da política de expulsão dos pobres do centro urbano, estima-se que, em meados da década de quarenta, cerca de 10 a 15% da população tenham sido obrigadas a abandonar as residências7. Os moradores procuraram resistir por meio da Liga dos Inquilinos, mas os protestos não foram suicientes para deter as ações do poder urbano. A exclusão das camadas populares das regiões centrais foi implementada por meio de medidas coercitivas. Coube ao próprio Estado improvisar “barracões precários” no intuito de amenizar a situação da população lançada abruptamente ao relento8. O ato de construir “abrigos provisórios” oicializava o novo drama da habitação popular que doravante seria deslocado para as favelas. Mais que uma alternativa caótica de realocação das camadas populares na cidade, a favela surgia como um projeto intencional, fomentado pelo poder público. O sentimento íntimo do estado de abandono coletivo experimentado pelas camadas populares durante o processo de transição da vida urbana para um novo padrão de segregação espacial foi apreendido subjetivamente por Carolina. A escritora descreveu as transformações em curso enquanto sujeito social e cronista. Narrou o que viu, ouviu e sentiu do ponto de vista dos migrantes pobres, negros e favelados. Quarto de despejo - sua obra mais importante – contém relatos de uma gama de situações recorrentes, marcadas por racismo, fome e miséria que vitimavam milhares de pessoas em situações idênticas. Embora o discurso carolinano tenha se desenvolvido em um plano microscópico, subitamente o vemos deslocar-se para a esfera macropolítica. Surgem então nestes casos, expressões indignadas, endereçadas aos políticos, identiicados como principais responsáveis pelas adversidades que as camadas populares enfrentavam na vida urbana. Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatório, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palácio do Governo. Foi lá que eu vi o ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as tragédias que os políticos representam em reação ao povo.9 6 Revista do Arquivo Municipal, nº 82, 1942. 7 Bonduki, Nabil “Crise de habitação e a luta política no pós-guerra”, in: Kowarick, Lúcio (org.). As lutas sociais e a cidade. São Paulo e Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 111. 8 “Algumas vezes, durante o período mais agudo da crise de habitação, no pós-guerra, a própria prefeitura construiu barracões ediicados em série para serem ocupados pelos ‘sem teto’ numa política de angariar prestígio popular”. Bonduki, op. cit. p. 108. 9 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo, p. 54. 67 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Quando abandonamos as rudezas da vida urbana e nos deslocamos para o contexto literário dos anos 60, veriicamos que a situação não se apresentava menos adversa para Carolina. Por essa época, até mesmo as mulheres “brancas e bem-nascidas”10, experimentavam diiculdades de inserção no mundo predominante masculino das letras. Também a história da nossa literatura não registrara até aquele instante a presença de escritoras negras. A história de vida de Carolina conirma que o fato de ter se tornado escritora foi algo realmente inusitado, era migrante, residia na favela do Canindé e vivia da reciclagem do lixo urbano, estudara por um breve período, suiciente apenas para alfabetizá-la. A condição de mulher negra e semianalfabeta indicava que teria destino idêntico ao de milhares de migrantes recém-chegados à capital paulista, isto é, que padeceria no anonimato e na miséria. O diário que tinha por hábito escrever sobre o cotidiano da favela ao transformar-se em livro alterou, porém, as previsões sobre seu mais provável destino. “Quarto de despejo” tornou-se um fenômeno editorial desde a primeira edição, em 1960. Atingiu de imediato a vendagem de dez mil exemplares nos três primeiros dias de lançamento na cidade de São Paulo. Outros noventa mil foram distribuídos pelo país nos primeiros seis meses. Foi traduzido para 13 idiomas e lido em mais de 40 países11. Os números permanecem extraordinários até mesmo para os padrões atuais, cujas edições em geral, não ultrapassam a três mil cópias. A emergência de uma personagem tão inesperada no cenário das letras foi, porém, motivo de controvérsias. Especulou-se sobre a hipótese de tratar-se de um golpe publicitário forjado pelo jornalista que a descobriu. O falecimento da autora em 1977, no anonimato e em condições de pobreza, a coloca em posição semelhante à de outros escritores negros como Cruz e Souza e Lima Barreto, marcados igualmente pela tragédia pessoal e reconhecimento público fugaz. O legado literário de Carolina inclui: 1. Produção literária 1960, Quarto de despejo (diário de uma favela) São Paulo Francisco Alves Quarto de despejo. Diário de uma favela São Paulo Ediouro 1976 Quarto de despejo. Diário de uma favela São Paulo Ed. Ática 1998 Casa de alvenaria. Diário de uma ex-favelada São Paulo Francisco Alves 1961 Meu estranho diário São Paulo Ed. Xamã 1996 1ª ed. 10 Expressão empregada por Marisa Lajolo ao se referir à emergência das mulheres no universo literário brasileiro nos anos 60. O surgimento de escritoras como Clarice Lispector representavam uma novidade em um cenário predominantemente masculino. O caso de Carolina era ainda mais inusitado. “A leitora no quarto dos fundos”. In: Leitura Teoria & Prática. São Paulo, jun. 1995, ano 14, n. 25. 11 Dados fornecidos por Meihy, José Carlos Sebe & Levine, Robert. Cinderela negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1994, pp. 25 e 26. 68 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil 2. Provérbios Os provérbios de Carolina Maria de Jesus São Paulo Áquila 1963 Pedaços da fome São Paulo Áquila 1963 O escravo *Inédito 3. Romances Carolina embora tenha alcançado imenso sucesso nos anos 60, encontra-se, hoje, praticamente desconhecida. Apenas recentemente observamos pequenas ações visando minimizar os efeitos do apagamento a que foi submetida. A biblioteca do Museu Afro-Brasil, no Parque do Ibirapuera e uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil), ambas no município de São Paulo, decidiram homenageá-la adotando o patronímico Carolina Maria de Jesus. Pesquisas desenvolvidas em meados dos anos 90 pelos professores José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine reavivaram o interesse acadêmico sabre a escritora. No âmbito mais restrito dos estudos literários identiicamos também diiculdades quanto ao reconhecimento das contribuições de Carolina. O lugar social de onde falava e as características peculiares da escrita são vistos como impasses no sentido de incluí-la no seleto núcleo dos escritores negros: Luis Gama, Cruz e Souza, Eduardo de Oliveira, Solano Trindade, entre outros, classiicados como representantes da literatura negra brasileira12. Argumenta-se que a obra carolinana, ao contrário das produções dos escritores mencionados, não se pauta pela exigência da norma culta, peculiar à cultura escrita. Constata-se, ainda, a ausência de um eu enunciador negro13, considerado fundamental na deinição da pertença ao campo da literatura negra. Os elementos mais característicos de suas produções permitiriam situá-la no universo da literatura marginalizada, categoria esta na qual se incluem de acordo com Martin Lienhard14, os escritos elaborados por descendentes de africanos e indígenas nas Américas. Poderíamos, nesse campo, ainda de forma mais restrita, concebê-la como uma representante de uma literatura negra marginalizada. 12 De acordo com Zilá Bernd a pertença ao campo da literatura negra pressupõe a emergência na narrativa ou no texto poético de um eu enunciador negro, isto é, de uma postura política que permite a identiicação do escritor enquanto afrodescendente, mas esse é um aspecto controverso em Carolina. Sobre literatura e identidade negra ver as discussões de Bernd, Zilá. Negritude e literatura na América Latina, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987; Introdução à literatura negra. São Paulo, Brasiliense, 1988; Poesia negra brasileira. Antologia. Porto Alegre, AEG Editora, 1992. 13 A identiicação de um eu enunciador negro em Carolina tem merecido resposta negativa. Embora participasse do contexto político dos anos 60, encontrava-se alheia aos debates sobre literatura e identidade negra que segundo Zilá Bernd marcaram as produções literárias dos escritores negros do período. Ver a propósito dessa temática, Poesia negra brasileira. Antologia, 1992. 14 Conforme as sugestões de Martin Lienhard, particularmente, nos discursos dos descendentes de indígenas e africanos podemos localizar as percepções dos marginalizados sobre os conlitos étnicos que tiveram lugar na história das Américas. Ver a propósito: Lienhard, Martin. La voz e su huella: escritura e conlicto étnico-social em América Latina (1942-1988). Ciudad de La Habana, Casa de las Américas, 1990; “La représentation de l’oralité populaire ou marginale dans des textes modernes d’Amerique Latine et d’Africa lusophone”, Versants, 30, pp. 9-29, 1996; O mar e o mato. Histórias da escravidão (Congo – Angola – Brasil – Caribe). Salvador, EDUFBA/CEAO, 1998. 69 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos As produções dos segmentos marginalizados possuem, conforme Martin Lienhard, algumas particularidades, incorporam expressões próprias à oralidade, inscrevem categorias extraídas de sistemas linguísticos nativos e apresentam transgressões em relação aos padrões normativos da escrita. A violência infratora que os escritores marginalizados manifestam inconscientemente revela não apenas insubordinações à norma culta, mas a “pactos e protocolos da cultura, dos cidadãos e cidadãs também excluídos do mundo econômico”15. Sob a condição marginalizada a graia se apresenta marcada por expressões cifradas que incluem metáforas e categorias nativas, entre outros elementos discursivos. Nestes casos, o entendimento dos textos envolve estratégias de “escavação” análogas às adotadas pelos arqueólogos. No âmbito da literatura negra marginalizada as escavações visam especiicamente reconstituir o discurso africano, escravo e afro-brasileiro. A perspectiva aqui esboçada permite-nos conceber as produções literárias de Carolina como um conjunto de testemunhos em que se encontram soterradas as experiências sociais dos negros e migrantes pobres. Os temas da opressão e da liberdade são importantes ios condutores da narrativa carolinana. Podemos interpretar estas presenças como a manifestação do desejo de se libertar dos grilhões do racismo e da miséria que enfrentava na vida real. O fato da liberdade permanecer no centro das atenções da escritora permite concluir que, do ponto de vista dos negros das primeiras décadas do século passado, o ato formal da abolição da escravatura foi insuiciente para criar as condições para o exercício da cidadania. A grande maioria dos negros que migrou para as grandes cidades padeceu em silêncio sob penosas condições de vida. Carolina foi uma exceção, porque embora tenha enfrentado as agruras da vida urbana, conseguiu documentar a própria trajetória por meio da escrita e, mesmo inconscientemente, emprestou sua voz para entoar o sofrimento dos silenciados. SAIBA MAIS Indicamos o documentário “Mil Trutas, Mil Tretas” que foi produzido pelo grupo de rap Racionais Mc’s. Problematiza a história das comunidades negras na cidade de São Paulo. Desde o pós-abolição até meados dos anos 2.000. Link: https://www.youtube.com/watch?v=slwalSi03g8 15 Expressão empregada por Marisa Lajolo no sentido de revelar o valor da obra de Carolina Maria de Jesus. In: “Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina”, in: Jesus, & Meihy. (org.) Antologia pessoal, Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 1996, p. 59. 70 Disciplina 6 - Diáspora Negra no Brasil Referências Bibliográficas BASTIDE, Roger. A imprensa negra no Estado de São Paulo. In: Estudos afro-brasileiros, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1983. ______.Estereótipos de negros através da literatura brasileira. In Estudos afro-brasileiros, São Paulo, Perspectiva, 1983. BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo, Brasiliense, 1988. ______.Poesia negra brasileira – Antologia. Porto Alegre, AGE: IEL: IGEL, 1992. BONDUKI, Nabil. Crise de habitação e a luta política no pós-guerra, in: Kowarick, Lúcio (org.). As lutas sociais e a cidade. São Paulo e Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, EDUSP/Ed. 34, 2000, p. 211. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. São Paulo, Ática, 1998. LAJOLO, Marisa. A leitora no quarto dos fundos. In: Leitura Teoria & Prática. São Paulo, jun. 1995, ano 14, n. 25. LIENHARD, Martin. La voz e su huella: escritura e conlicto étnico-social em América Latina (1942-1988). Ciudad de La Habana, Casa de las Américas, 1990; ______. “La représentation de l’oralité populaire ou marginale dans des textes modernes d’Amerique Latine et d’Africa lusophone”, Versants, 30, pp. 9-29, 1996; ______.O mar e o mato. Histórias da escravidão (Congo – Angola – Brasil – Caribe). Salvador, EDUFBA/CEAO, 1998. MEIHY, José Carlos Sebe & Levine, Robert. Cinderela negra. A saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1994, pp. 25 e 26. ______. Meihy, Jose Carlos Sebe B. (org.) Antologia pessoal, Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 1996, p. 59. ROLNIK, Raquel. São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política, In: Kowarick, Lúcio (org.). As lutas sociais e a cidade. São Paulo e Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. SILVA, José Carlos G. Negros em São Paulo: espaço público, imagem e cidadania (19001930). In: Ana Maria de Niemeyer e Emília P. Godoi (org.). Além dos territórios. Para um diálogo entre a etnologia indígena e os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas, Mercado de Letras, 1998. ______.Os sub-urbanos e a outra face da cidade. Negros em São Paulo: cotidiano lazer e cidadania, 1900-1930. Dissertação de Mestrado. Campinas, UNICAMP, 1990. 71 DISCIPLINA 7 CULTURA AFRO-BRASILEIRA I: LITERATURA NEGRA Autora: Profa. Dra. Ligia Fonseca Ferreira Objetivo geral • Apresentar e conceituar, no âmbito da literatura brasileira, a “literatura negra”, campo no qual se inscrevem autores que se enunciam enquanto negros, da segunda metade do século XIX à atualidade. Objetivos específicos 1. Observar, dentro do período analisado, a emergência do negro (de personagem a autor) na literatura brasileira, representada majoritariamente por autores brancos; 2. Apresentar o panorama de emergência dos movimentos artísticos e políticos de airmação e valorização dos povos negros no plano internacional e seus ecos no Brasil; 3. Observar em que medida a literatura negra estabelece um contraponto com as imagens e estereótipos do negro presentes na literatura nacional; 4. Observar a emergência, nominação, airmação da “literatura negra” brasileira e os debates que suscita; 5. Apresentar breves dados biobibliográicos (vida e obra), apontar principais características e comentar a produção de alguns autores representativos; 6. Veriicar como se constrói uma identidade literária negra, individual e coletiva, através de um discurso, temas e perspectiva especíicos; 7. Observar como a literatura negra questiona o mito da democracia racial, denuncia o racismo à brasileira, enaltece a autoestima, prestando-se à discussão e à promoção da igualdade racial. Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 1. O negro brasileiro, de personagem a autor: uma introdução Objetivo • Esboçar um breve panorama da presença/ausência do negro na literatura brasileira, em particular no momento de emergência, em meados do século XIX. Prezad@ cursista, Antes de dar início à leitura desta introdução à nossa disciplina, gostaríamos de lhe propor um pequeno exercício de “anamnese”, ou seja, fazer um esforço consciente para “trazer algo à memória, reminiscências, recordações”. Note que a ideia é fazer um mergulho dentro de você, sem o auxílio de outra ferramenta. Concentre-se, então, por alguns minutos e escreva numa folha a resposta às seguintes perguntas: 1. Pensando nas obras de literatura brasileira que você leu ao longo de sua formação escolar até o ensino médio, recorda-se de algum personagem negro e de suas características? Qual/quais? 2. Nesse mesmo período de sua formação, lembra-se de ter lido obra(s) de um(a) autor(a) negro(a)? Qual/quais? Conserve as respostas, retornaremos com este assunto ao inal desta aula para você realizar a primeira “Atividade de aprendizagem”. Como indicado no título da disciplina, apresentaremos e discutiremos aqui aspectos da literatura negra, uma vertente da literatura brasileira que nasce com a poesia do ex escravo e abolicionista Luiz Gama na segunda metade do século XIX, atravessa o século XX, consolidando-se como campo especíico dos anos 1980 até os dias de hoje. Considerando o contexto histórico, social e ideológico em que esse campo emerge, a intenção de nele inscrever-se pode ser encarado como uma atitude de “resistência” por parte de um grande número de autores (as) negros (as), cuja produção foi por muito tempo ignorada e subestimada, quando não propriamente invizibilizada. Tanto no plano individual quanto coletivo, eles navegam na contracorrente da historiograia literária tradicional para tornar audíveis sua voz, suas vivências e memórias negras e alcançar o reconhecimento e a legitimidade de sua expressão como formadora da literatura nacional. Para melhor compreensão do tema, antes de deinir e problematizar o conceito de “literatura negra”, tal como será entendido aqui, parece-nos necessário esboçar um breve panorama da presença/ausência do negro na literatura brasileira, em particular no momento de emergência, em meados do século XIX, situação que, na longa duração, raramente aparecerá em equilíbrio com o peso da participação dos africanos e seus descendentes na formação social, eco74 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra nômica, política e cultural brasileira. Tal conhecimento, mesmo não exaustivo, é fundamental para se observar em que medida se pode estabelecer um contraponto com as obras e posições estéticas e ideológicas dos autores representantes da “literatura negra”. O negro “personagem” Primeiramente, é como personagem que o negro-escravo desponta na literatura brasileira, em sua maioria feita por autores brancos, em pleno período romântico fortemente marcado pelo indianismo, tendo como principais representantes Gonçalves Dias, na poesia, e José de Alencar, no romance. Da Academia de Direito de São Paulo partiram as primeiras manifestações poéticas dedicadas ao escravo em luta pela liberdade, corrente inaugurada em 1850, ano da Lei Eusébio de Queirós, com “Saudades do escravo” (“Escravo - não, não morri/ Nos ferros da escravidão;/ Lá nos palmares vivi,/ Tenho livre o coração!”), do professor de direito, político e poeta de José Bonifácio, o Moço, fundador do tema romântico que, dezoito anos mais tarde, alcançaria sua expressão máxima nos versos abolicionistas de seu discípulo Castro Alves. O “poeta dos escravos”, retratou no “Navio negreiro” (1868) a atmosfera torturante da travessia enfrentada pelos africanos que, a despeito da inspiração abolicionista, parecem grotescos e despertam aversão (“Stamos em pleno mar.../(...) Era um sonho dantesco... O tombadilho/ Que das luzernas avermelha o brilho,/ Em sangue a se banhar./ Tinir de ferros... estalar de açoite.../ Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dançar...). Porém, poucos anos depois da extinção do tráico, algumas obras, contudo, apresentam o negro com traços e pendores negativos. No teatro, tem-se, de José de Alencar, que mal escondia sua preferência escravista, a peça O demônio familiar (1857), em que o moleque Pedro aparece como mau caráter, inescrupuloso, desleal, cujas intrigas colocam em risco relações amorosas e a paz familiar; alforriado no inal, recebe o que para os escravos era a tão sonhada recompensa, a carta de alforria, porém a liberdade lhe é oferecida como um castigo, pois dali por diante precisaria sobreviver sem a proteção dos seus senhores. É ainda no drama romântico que alora a representação não menos estigmatizadora do “mulato” traidor, cuja condição “híbrida” (meio negro, meio branco) estaria na origem de um comportamento e de uma personalidade ambíguos. Agrário de Meneses, autor de Calabar (1858), a primeira peça brasileira a apresentar um herói afrodescendente. Meneses debruça-se sobre a igura histórica do mulato que, no passado, traíra o colonizador português para se colocar ao lado dos holandeses; no entanto, segundo Raymond S. Sayers, em O negro na literatura brasileira (1958), obra de referência nos estudos sobre o tema no período que se estende até 1888, ano da Abolição da Escravatura, esta peça “parece ter sido o primeiro estudo feito no Brasil sobre o complexo de inferioridade do mulato, da extrema sensibilidade dos membros desse grupo miscigenado, por sua difícil posição na sociedade”. Ora, conforme assinala este autor, Calabar parecia conter os elementos que inspiraram Oliveira Viana em seu Populações Meridionais do Brasil (1938) a descrever com tanta irmeza, mas com uma atitude hoje francamente racista, a “psicologia estranha e paradoxal” do mulato . O gesto da traição por parte de um indivíduo “mestiço” repete-se em outro drama romântico, igualmente de cunho histórico – Gonzaga (1867), de Castro Alves, inspirado pela Conjuração Mineira. Movida por ameaças contra sua integridade física e promessas de liberdade, Carlota, escrava da noiva de Gonzaga, entrega a Silvério dos Reis a lista com o nome dos conjurados; 75 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos arrependida, redime-se, mas ao inal se suicida. Se alguns romances apresentam a visão do cativo ingênuo e iel, outros o apresentam como traiçoeiro, corrompido e animalizado, de convívio daninho aos brancos, razão pela qual se deve combater a escravidão. O romance de folhetim também introduz o personagem negro na metade do século XIX. Popular entre as camadas letradas, tratava-se de um gênero publicado capítulo a capítulo nos jornais, destinava-se a um público leitor formado por moços e moças na maioria brancos, pertencentes às classes médias e altas, residentes na Corte e eventualmente nas províncias, e que buscavam entretenimento, como hoje os telespectadores de novelas. Maria ou a Menina Roubada (1852), de Teixeira e Sousa, é provavelmente o primeiro romance folhetim que atribui aos negros não só um papel de destaque maior do que aos personagens brancos, como introduziu tipos que retornam na produção iccional posterior: a feiticeira Laura (Sayers, 1958, p. 319-320) e José Pachola, um jovem crioulo bem-humorado e de boa índole, que canta e dança, e conta com a benevolência de sua senhora, embora seu objetivo seja obter a alforria. Dezesseis anos antes do drama Gonzaga, de Castro Alves, Teixeira e Sousa, autor mulato diga-se de passagem, publicou Gonzaga ou a Conspiração de Tiradentes na qual, embora secundária, a igura de um escravo iel e submisso ao seu senhor até a morte deste, suscita a exclamação de um personagem: “Feliz quem tem um amigo como este escravo” (apud Sayers, op.cit, p. 321). Porém, o mais popular desses romances foi sem dúvida Memórias de um sargento de milícias (1854), que põe em cena a vida familiar brasileira, descreve tipos populares e cenas urbanas ambientadas ao tempo de Dom João VI, num Rio de Janeiro em que as ruas são povoadas por negros, escravos e livres, em seus múltiplos afazeres e ofícios, e também nos castigos, semelhante ao universo retratado por Jean-Baptiste Debret nas aquarelas faziam uma espécie de reportagem da pobreza e da escravidão. Negras livres vivendo de sua atividade Escravos transportadores Viagem de um fazendeiro Castigo de um escravo Castigo de um escravo O açoite Aquarelas de Jean-Baptiste Debret 76 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Em Memórias de um sargento de milícias, o jovem Leonardo apaixona-se por Vidinha, uma das primeiras personagens mulatas a aparecer em obra de icção no Brasil; suas características – bela, de voz lânguida, alegre, temperamental – tornam-na uma espécie de irmã mais velha das mulatas que compõem uma tão extensa quanto estereotipada galeria, não só na literatura, como em outras artes, a música e a pintura brasileira. Ainda no romance, um caminho análogo ao de Alencar, na peça mencionada mais acima, seria trilhado pelo autor de A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo na trilogia As vítimas algozes (1869), título que já traz em si uma contradição inquietante, indicando o lado sombrio dos negros, “vítimas” de um regime violento que, por sua vez, os transforma em agentes de violência e vingança contra o branco. Por essa razão, o autor dava a seguinte justiicativa em seu prefácio: é preciso pintar. “o quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes involuntária e irreletidamente ao senhor, (...) o escravo de nossas casas e de nossas fazendas, o homem que nasceu homem, e que a escravidão tornou peste ou fera”. Se por um lado tais palavras soam antiescravista, por outro são francamente antiescravo, logo, antinegro. Todos os escravos das Vítimas Algozes são desonestos, maldosos, falsos, ingratos, violentos, só causam problemas aos senhores, além de possuir uma sexualidade comparável à dos animais. O romantismo crava, portanto, imagens do negro que oscilam da empatia ao paternalismo, da exotização a caracterizações aviltantes e produzidas, quando não acentuadas em correntes literárias posteriores. No Mulato (1881), do maranhense Aluísio Azevedo, romance tido como a primeira obra naturalista brasileira, o protagonista Raimundo não se enxerga como “afrodescendente” e ignora ser ilho de uma negra. Homem elegante, educado na Europa, vê-se impedido de se casar com a mulher amada, por ser alvo do violento preconceito da família e da sociedade branca de São Luís. Raimundo, no entanto, parece encarnar o tipo tão fecundo e frequente dos negros e mulatos que se “embranquecem” socialmente, renegando suas origens africanas, o que na sociedade escravista, período em que se situa obra de A. Azevedo, e mesmo além, remete à infamante condição de escravo. Na impossibilidade de apontar um levantamento exaustivo aqui, vale a pena referir o seminal e ainda atualíssimo estudo Preconceito de Cor e a Mulata Brasileira (1975), de Teóilo de Queiróz Júnior. Associando características formais da narrativa e conteúdo ideológico, o autor centrou-se na análise das representações da mulata por autores brancos, das sátiras de Gregório de Matos (século XVII) a Gabriela, cravo e canela (1958), de Jorge Amado, passando pelo Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Herdado das negras, o traço mais marcante das mulatas é, sobretudo, a irresistível sensualidade, objeto e perdição do homem branco. Separados por quase oitenta anos, os dois personagens-tipo mais representativos, na criação de autores brancos, Rita Baiana (O Cortiço) e Gabriela, possuem inúmeros pontos, positivos e negativos, em comum: 77 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos “(...) solidariedade, alegria, vigor físico, graça, beleza, senso estético, gosto pela vida, habilidades domésticas e culinárias, higiene pessoal, musicalidade (...) ao dançar e cantar”, qualidades que alternam com a “irresponsabilidade, sensualidade, amoralismo, inidelidade” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1982, p. 33). Porém, tornam-se quase caricaturais, não pela via do humor, esses traços redutores e cristalizados ao longo do tempo na literatura brasileira e que denotarão o comprometimento dos escritores brancos com a perpetuação do “preconceito racial” na literatura. O negro “autor” Se até aqui evocamos principalmente a emergência do negro-personagem, devemos, no entanto, chamar a atenção para um fato bastante revelador das contradições presentes na sociedade brasileira de um século XIX dominado pela questão da escravidão, pela presença e pelo destino diverso e adverso do africano e de seus descendentes em todas as camadas da população, temas que ocupam corações e mentes. O fato é que quase concomitantemente à emergência do personagem negro, surge o primeiro autor negro da literatura brasileira, o ex-escravo e abolicionista Luiz Gama (BA, 1830 - SP,1882), autor de Primeiras Trovas Burlescas (1859), inaugurando o veio da literatura negra ao enunciar-se e ter a intenção de ser reconhecido enquanto poeta negro: “Quero que o mundo me encarando veja,/ Um retumbante Orfeu de carapinha”. (Poema Lá vai verso). No século XIX, ainda, brota a voz sublime de um ilho de escravos, o poeta simbolista Cruz e Sousa (SC, 1861 - MG, 1898). Também conhecido como “Cisne Negro”, dele partiu grito angustioso que ecoaria na alma e nos versos de muitos poetas e escritores negros do século XX-XXI, que também se veem 78 Luiz Gama, por volta de 1870. Foto de Augusto Militão de Azevedo Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra cercados por muros intransponíveis de negações e obstáculos : (...) Artista! Artista! Pode lá isso ser se Tu és d’África, tórrida e bárbara, (...) arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia (...) (“Emparedado”, Broquéis, 1893) Assim como Luiz Gama, Cruz e Sousa também viveu, quiçá de forma mais impiedosa, sob o bombardeio das ideias que subtraíam ao negro a possibilidade de realizações estéticas e estigmatizavam seu continente de origem. Naquele inal do século XIX, ainda sob o regime imperial, Luiz Gama e Cruz e Sousa ainda eram vivos, o abolicionismo avançava na mesma medida em que os escravagistas buscavam retardar a abolição, quando nasce o escritor carioca Lima Barreto (1881- 1922). Embora mulato, assim como seus antecessores, Lima também inscreveu-se literariamente enquanto negro, seja pela sua voz própria, seja pela de personagens. Em várias obras, o autor tematiza, de forma penetrante, a condição esdrúxula de negro, pobre, intelectual/escritor no pós-abolição e no pós-república, e alvo do impiedoso “preconceito de cor”. Vivenciando uma outra forma de “emparedamento”, para tomarmos a imagem de Cruz e Sousa, um Lima desalentado, havia muito descrente com as promessas da República, confrontado diversas vezes com a discriminação racista, como quando é barrado à entrada de um evento, exclama: “É triste não ser branco!” (Diário Íntimo). Essa frase lacônica e lapidar, como veremos, não sai da boca de um homem que renega suas origens, mas que, ao contrário, se faz cronista do destino que o Brasil daquele e de tempos posteriores reservou à multifacetada e “população de cor”, bem como às complexas e dolorosas relações interétnicas no país. Curiosamente, Lima nasceu num dia treze de maio e, menino, assistiu aos festejos da Abolição, uma data que, em vez de gratidão, é rechaçada por vários autores negros dos séculos XX-XXI. IMPORTANTE Como se deduz pela distância geográica e de geração, os três homens nunca se conheceram. Mas gostaríamos que, desde já, esses nomes – Luiz Gama, Cruz e Sousa, Lima Barreto - icassem marcados em sua memória, antes de serem estudados mais detalhadamente adiante, pois se trata das três pedras fundamentais da literatura negra. 79 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Nas próximas unidades discutiremos algumas questões presentes nas camadas profundas de nosso inconsciente coletivo, como a ideia de “democracia racial” e de como afetam a percepção relativa à literatura negra e o negro na literatura; em seguida, apresentaremos as deinições e concepções de “literatura negra” que fundamentam a escolha terminológica empregada nesta disciplina; passaremos em seguida à apresentação de alguns autores e autoras negras representativos desta vertente, num recorte que estará longe de ser exaustivo; fazendo uma ponte com o que foi tratado nessa introdução, procuraremos observar como evoluiu, desde o século XIX, a presença do personagem e do autor negro na Literatura brasileira. Referências Bibliográficas BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2010. “Cronologia da abolição da escravatura”. Revista de História, n. 20. Disponível em: http:// www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/cronologia-da-abolicao-da-escravatura. FERREIRA, Ligia Fonseca. Primeiras Trovas Burlescas e outros poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. QUEIROZ JÚNIOR, Teóilo. Preconceito de Cor e a Mulata Brasileira. São Paulo: Ática, 1975. SAYERS, Raymond S.. O negro na literatura brasileira. São Paulo: Edições O Cruzeiro, 1958. 80 DISCIPLINA 10 RELIGIOSIADDE AFROBRASILEIRA: TOLERÂNCIA E INTOLERÂNCIA NO ESPAÇO ESCOLAR Autora: Melvina Afra Mendes de Araújo Patrício Carneiro Araújo Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 2. A "democraria racial" e a negação da literatura negra Objetivo • Reletir sobre o “mito da democracia racial” e a negação da literatura negra. Há uma questão que se deve ter em mente ao abordarmos nosso tema. Seguramente, você já se deparou em alguma disciplina deste curso, ou mesmo anteriormente, com uma ideia que impregna nossa mentalidade, nosso inconsciente coletivo: a “democracia racial”. Tal ideia não nasceu da noite para o dia. De fato, começa a ser gestada anteriormente à Abolição (1888), quando a escravidão no Brasil era tida como mais “doce e cristãmente humana” do que a de outros países como os EUA (FERNANDES, 1978, p. 254). Essa visão era compartilhada por brasileiros e, sobretudo, por viajantes europeus, surpresos de aqui se encontrarem um considerável número de “mulatos” livres, inluentes, ocupando cargos de destaque na sociedade imperial. A família do conselheiro Antonio Pereira Rebouças, ilho de uma escrava e de um alfaiate português, pai dos engenheiros Antonio e André Rebouças, formam um bom exemplo de “afrodescendentes” posicionados no alto da hierarquia social do Segundo Reinado, e no circulo próximo do próprio Imperador. Conforme aponta o sociólogo Florestan Fernandes, importante estudioso da condição dos negros e das relações raciais no Brasil, se durante o regime escravista, fundado na desigualdade, a discriminação e o preconceito de cor permitiam manter as distâncias sociais, após a Abolição e a República, persistiam razões de ordem psicossocial, legal e moral que impediam a efetiva igualdade ou uma real transformação dos antigos modelos de relações raciais no Brasil. A sociedade branca colocava o paternalismo de sempre à disposição dos negros, desde que esses não se comportassem como “agitadores” ou “contestadores”, ou seja, desde que não escapassem do controle dos brancos. Apesar dos efeitos perniciosos dessa atitude, segundo Fernandes, não havia exatamente uma “intenção explícita” de prejudicar os negros, porém, essas atitudes não aloravam à consciência social (Idem, p. 252). Talvez por aí se explique a opinião bastante frequente, entre os brasileiros brancos, ou seja, “o preconceito contra o preconceito de ter preconceito”, na certeira formulação de Florestan Fernandes (SCHWARCZ, 2005-6, p. 173). Em outras palavras, se ninguém é “racista”, o país não o é. 82 Conselheiro Antonio Pereira Rebouças (1798-1880) Eng° Antonio P. Rebouças Filho (1839-1874) Eng° André P. Rebouças (1838-1898) Disciplina 10 - Religiosidade afro-braileira: tolerância e intolerância no espaço escolar Continuando, a ideia de democracia racial reforçar-se-á nos anos 1930, período fértil em trabalhos que buscavam interpretar e explicar a identidade e a cultura brasileira. Casa Grande & Senzala (1933), obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, sustenta que o convívio e a proximidade física reduziram as diferenças e suavizaram as relações entre senhores e escravos. Disseminou-se, então, a crença de que no Brasil as raças formadoras de sua população conviviam harmoniosamente. A prova disso seria o alto grau de miscigenação entre índios, negros e brancos que dava uma feição e moldava a identidade do povo brasileiro, levando à ausência do preconceito, do racismo e dos ódios raciais diferentemente do que então ocorria no regime segregacionista norte-americano e, mais tarde, no apartheid sul-africano, este último instituído em 1948. A afortunada obra de Freyre tranquilizou muitos brasileiros, irritou parte deles, e seduziu o público estrangeiro que ainda hoje, em grande parte, acredita encontrar-se ali uma chave para compreender o Brasil e a miscigenada sociedade brasileira. Nos anos 1970, Florestan Fernandes, autor da obra seminal A integração do negro na sociedade de classes, contrapôs-se às conclusões de Freyre: para o sociólogo paulista, o “mito” da democracia racial atribuiu as misérias da população “de cor” a sua exclusiva incapacidade e irresponsabilidade, aliviando a consciência dos brancos. Além de gerar uma falsa ideia da realidade racial brasileira, o mito da democracia racial, alimentou algumas convicções etnocêntricas, dentre elas “a ideia de que o Negro não tem problema no Brasil”, de que “graças à natureza do povo brasileiro, não existem distinções raciais entre nós”; de que “as chances de enriquecimento, prestígio social e de poder estiveram acessíveis a todos sem distinção”; de que “o Negro está satisfeito com sua situação e seu modo de vida”; e, por im, a de que todos os problemas de justiça social foram resolvidos no momento da abolição” (Fernandes, 1978, vol. I, p. 256). Seja como for, toda uma vertente da literatura brasileira, em geral produzida por autores brancos como Jorge Amado, para citar apenas um nome bastante conhecido, não apenas abraçou como celebrou a nossa mistura étnica, imortalizando personagens como a “mulata” Gabriela, do célebre romance Gabriela, Cravo e Canela (1958). A par da literatura, encontramos exemplos desse mesmo fenômeno nas artes plásticas, como a tela O mestiço (1934), de Cândido Portinari, ou as mulatas retratadas em inúmeros quadros de Di Cavalcanti. C. Portinari. Mestiço. Óleo sobre tela, 1934, Pinacoteca do Estado de São Paulo. 83 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Di Cavalcanti. Cinco moças de Guaratinguetá. Óleo sobre tela, Museu de Arte de São Paulo (MASP), 1930. Na música popular, são inúmeras e eloquentes as ilustrações, como as marchinhas de carnaval O teu cabelo não nega (1931) e Linda Morena (1932), de Lamartine Babo, ou ainda A mulata é a tal (1947), de Braguinha1. Olhando para trás, vemos que um grande conjunto de produções culturais buscou incar a imagem ideal e representativa do Brasil como país “mestiço”. Se essa visão persiste aqui dentro, talvez hoje muito menos do que há quarenta anos, quando o mito da democracia passou a ser questionado, ela marca igualmente a maneira como o Brasil ainda é visto de fora. No entanto, é preciso ter em mente que a falsa crença ou mito da “democracia racial”, longe de ser um benefício, ocultava a real condição de mulheres e de homens negros, sobre os quais pesavam estereótipos herdados do século XIX. Neste período, com a inalidade de fundamentar a desigualdade das raças, forjaram-se teorias pseudocientíicas. Estas classiicavam a raça africana como a mais inferior intelectualmente, e seus descendentes, como produtos biológica e moralmente degenerados. No entanto, a democracia racial e a elevação do “mestiço”, do “mulato” ou do “moreno” como símbolo da identidade brasileira não eram ideias unânimes e foram combatidas por diversos intelectuais brancos. Como se sabe, nos anos 1880, última década da escravidão, teve início a grande imigração, que por quase cinquenta anos trouxe para cá centenas de milhares de europeus, atraídos pelo governo brasileiro. Tinha-se como propósito não só substituir a mão de obra escrava pelo trabalhador livre, como também, e sobretudo, promover o embranquecimento do país, “limpando” suas veias do sangue africano. O uso desse verbo não é fortuito. É bem provável que você já tenha ouvido a expressão “limpar o sangue”. Sangue limpo (1861), 1 Desde os anos 1970, o movimento negro e em especial o feminismo negro combate a democracia racial e a igura da “mulata” como objeto sexual e símbolo da violação sofrida pelas escravas. Essa importante observação foi colocada em nota de rodapé, apenas por uma questão de coerência argumentativa. 84 Disciplina 10 - Religiosidade afro-braileira: tolerância e intolerância no espaço escolar aliás, é o título de uma peça de matiz abolicionista do dramaturgo paulista Paulo Eiró.Mais de trinta anos depois, as artes plásticas fornecem uma ilustração expressiva: Modesto Brocos, “A redenção de Cam”, 1895, Museu das Belas Artes, RJ. O quadro retrata a miscigenação no seio de uma família rural. Da avó negra, e provavelmente ex-escrava, à terceira geração, simboliza o inelutável embranquecimento da população brasileira, percebido, porém, como uma dádiva dos céus pelos próprios negros (note a atitude da avó negra, à esquerda do quadro, e orgulho do homem sentado à porta). Contudo, tais representações reletem não só a ótica de um pintor branco, como a de toda uma ideologia reinante no país, contexto pós-abolição e pós-republicano. Assim, em 1947, quase sessenta anos depois da Abolição, o escritor e jornalista Paulo Duarte, numa postura abertamente racista que hoje nos chocaria, colocou-se como porta-voz dos brasileiros, airmando categoricamente nas páginas de um importante jornal: “Uma coisa (...) existe com absoluta nitidez: a deliberação marcada pelo consenso unânime dos brasileiros lúcidos: o Brasil quer ser um país branco e não um país negro. Não vem aqui agora a pesquisa [da UNESCO] destinada a saber se o negro é intelectual ou moralmente inferior ao branco, ou ao índio (...). O que prevalece é a decisão brasileira de ser um país branco e mais nada”. 85 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos O autor apontou igualmente o “método”, segundo ele, mais “humano”, “inteligente”, mas “moralmente mais perigoso” para alcançar tal objetivo: “a eliminação do negro pela miscigenação”. Porém, contrariando as previsões acima, não foi esse o rumo tomado pela evolução da população brasileira, como o demonstrariam os dados censitários do século XXI, reletindo novos padrões de identiicação e de autoclassiicação. Em 2010, há uma mudança histórica: pela primeira vez, o número de pessoas que se declararam brancas diminuiu. Segundo o IBGE, registrou-se uma redução da proporção brancos, tendo o número de pretos e pardos, chegado a 51%. Os resultados da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio) em 2013 conirmaram a tendência, apontando que 53% dos brasileiros se autodeclaram pretos ou pardos, logo, afrodescendentes. Longe de ser uma digressão, as considerações acima relacionam-se diretamente com a nossa disciplina ao fornecer alguns elementos para contextualizar e compreender algumas reações que a “literatura negra” suscita. Se antes de cursar esta disciplina, você se perguntou: “ mas o que é literatura negra? Literatura negra ... existe?”, saiba que você não seria nem a primeira nem a última pessoa a fazê-lo. Veja-se, pois, a opinião externada pelo poeta maranhense Ferreira Gullar, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 4/12/2011 : Deàalgu sàa osàparaà á,àpassou-seàaàfalaràe àliteraturaà egraà rasileiraàparaàdefià iràu aàliteraturaà es ritaàporà egrosàouà ulatos.àTe hoàdúvidasàdaàper à ê iaàdeàu aàtalàdesig ação .à O que teria levado o autor a negar a “pertinência” da literatura negra? Talvez uma crença arraigada na “democracia racial”, bem como na cultura nacional como fruto dos processos de “mestiçagem” que, como vimos, no Brasil não signiica só “mistura”, mas também apagamento e exclusão, parece permear o pensamento do renomado poeta maranhense. E continuando seu raciocínio: “O Brasil não seria o país que o mundo conhece - e que nós amamos - sem a música [e] sem a dança que tem, criada (...) pelos negros. Ninguém hoje pode imaginar este país sem os desiles de escolas de samba, sem a dança de suas passistas, o ritmo de sua bateria, a beleza e euforia que fascinam o mundo inteiro. Uma parte dessas manifestações artísticas é também dos brancos, mas constituem, no seu conjunto, uma expressão nova no mundo, nascida da fusão dos muitos elementos de nossa civilização mestiça”. Confundido quanto às razões históricas e ideológicas que coninaram o negro ao popular, ao folclore e ao carnaval, e ecoando o ultrapassado preconceito de que os negros seriam congenitamente inaptos para as atividades do espírito, Gullar conclui não haver bases para se “falar de literatura brasileira negra”, algo que não teria “cabimento”, já que, segundo ele, “os negros, que para cá vieram na condição de escravos, não tinham literatura, [pois] essa manifestação não fazia parte de sua cultura”. O negro é colocado como o “outro”, como “eles”, alguém que recebe, portanto, um olhar “de fora”; mesmo que ignorássemos a identidade social do sujeito do discurso – o escritor Ferreira Gullar -, ninguém hesitaria em airmar que se trata de um indivíduo branco, falando em nome e dirigindo-se a um “nós” branco, como ele, ou por ele imaginados como pessoas com quem compartilha ainidades, interesses e opiniões. Logo, os “negros” não são destinatários deste discurso que acaba reproduzindo um mecanismo de exclusão semelhante ao que se observa em outras situações: o samba, a dança e o Carnaval seriam os lugares legítimos, “cabíveis”, para a manifestação artística do negro. A literatura não. 86 Disciplina 10 - Religiosidade afro-braileira: tolerância e intolerância no espaço escolar Curiosamente, naquele 2011, decretado Ano Internacional dos Afrodescendentes, a publicação do artigo de Gullar coincidiu com o lançamento de Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, uma obra que será importante referência para esta disciplina. Trata-se de um trabalho inédito, oportuno e de raro fôlego, resultado de um levantamento sistemático e abrangente que evidenciou a igura do autor negro, no panorama da literatura brasileira, ou seja, do negro que escreve, pondo em xeque as representações tradicionais, conforme apontamos na aula anterior. Os números são reveladores: em mais de 2000 páginas, são apresentados 75 escritores e 25 escritoras num arco temporal de 150 anos, partindo de Luiz Gama, primeiro autor negro a se enunciar como tal e autor de Primeiras Trovas Burlescas (1859), até nomes contemporâneos como o do coletivo Quilombhoje, que desde 1978 publica a série Cadernos Negros, como veremos mais adiante nesta disciplina. Vê-se, pois, que a literatura negra existe e é “pertinente”. Os conteúdos previstos para esta disciplina foram deinidos para sensibilizá-lo e desenvolver sua análise e relexão crítica sobre este veio pouco ou mal conhecido. Ainal, o Brasil é a maior nação afrodescendente das Américas, uma realidade que, se ausente da literatura, da historiograia literária e materiais didáticos, encontra-se presente diante dos nossos olhos, nas ruas, nos bancos escolares e, em particular, das escolas públicas. Referências Bibliográficas CUTI, Luiz Silva. “Negros ou urubus? Ferreira Gullar defende que a intelectualidade é exclusividade branca”. Disponível em: www.racismoambiental.net.br/2011/12/19/negros-ou-urubus-ferreira-gullar-defende-que-a-intelectualidade-e-exclusividade-branca DUARTE, Paulo. “Negros do Brasil”. O Estado de São Paulo, 16-17/04/1947. FERNANDES, Florestan. “O mito da democracia racial”. In: A integração do negro na sociedade de classes, 3ª edição, São Paulo: Ática, 1978, vol. 1, pp. 249-268. GULLAR, Ferreira. “Preconceito cultural”. Folha de São Paulo, 04/12/2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/12790-preconceito-cultural.shtml Literatura e afrodescendência no Brasil : antologia crítica. Eduardo de A. Duarte e Maria Nazareth S. Fonseca (orgs.). Editora UFMG, 2011, 4 vols. SAYERS, Raymond S.. O negro na literatura brasileira. São Paulo: Edições O Cruzeiro, 1958. SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Nem preto, nem branco, muito pelo contrário, cor e raça na Intimidade”. In: História da vida privada no Brasil, org. Fernando Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 177-184. __________________. “A questão racial brasileira vista por três professores”. In: Revista USP, n. 68, dezembro/fevereiro 2005-2006, p. 168-179. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/68/14-lorestan-joao-oracy.pdf (acesso em 10/12/2014) 87 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 3 Texto 1. A emergência das “literaturas negras” no mundo: espaços, conexões e aproximações com o Brasil (décadas 1920-1960) Objetivos • Apresentar o panorama de emergência dos movimentos artísticos e políticos de airmação e valorização dos povos negros no plano internacional e seus ecos no Brasil. Antes de examinar a literatura negra em solo brasileiro, nosso intuito é mostrar-lhe que não se tratou de um caso isolado em relação ao isolado do que ocorria em outros espaços. Já nas primeiras décadas do século XX, a literatura dos afrodescendentes loresceu em vários países, sob o inluxo de dois movimentos importantes que alavancaram a expressão e a valorização das chamadas “artes negras”, ao mesmo tempo que introduziram, no plano internacional, debates sobre a questão racial. Dos EUA partiu, na década de 1920, o Harlem Renaissance (Renascimento do Harlem1), movimento que buscava fortalecer os vínculos com as tradições e valores africanos, despertar uma nova consciência de ser negro (blackness) e criar uma nova paisagem social e cultural. Congregava artistas, músicos, intelectuais e escritores como W. E. B. Du Bois, Countee Cullen, Claude Mckay e Langston Hugues, entre outros. Esses ativistas denunciavam a dramática condição dos negros norte-americanos, vítimas do racismo institucionalizado (Lei Jim Crow) [ver glossário], e lutavam pelos direitos civis, que só alcançariam no inal dos anos 1960, graças à ação de líderes como Martin Luther King. O poeta Langston Hughes é autor do célebre poema My people (Meu povo, 1923): “A noite é bela/como as faces de meu povo./As estrelas são belas,/ como os olhos do meu povo./ Belo, também, é o sol,/ belas também as almas do meu povo”2. Segundo Eduardo Assis Duarte, nesses versos há, por um lado, a “iguração do poeta como porta-voz”, aquele que “fala por si e por sua comunidade”, por outro, a antecipação da palavra de ordem político-estética “black is beautiful (negro é bonito)” dos anos 1960 em diante e “anunciam uma tendência que irá se manifestar em todos os países em que os autores negros se puseram a falar de e para a sua gente” (DUARTE, 2011, vol 1:16). No Brasil não seria diferente. Hugues resumia num único verso – “I, too, am America (Eu, também, sou América)” - a exclusão imposta aos negros no país que ajudaram a construir mas Langston Hugues (1902-1967) os considerava como estranhos. Do outro lado do Atlântico, a França abrigou, em 1919, o Primeiro Congresso Panafricano, organizado pelo escritor e ativista norte-americano W. E. B. Du BOIS, que se exilou naquele país por algum tempo, e Blaise Diagne, senegalês, o primeiro deputado africano eleito para a Câmara dos deputados francesa (o Senegal era então uma colônia da França). A partir 1 Harlem é, ainda hoje, um bairro negro na cidade de Nova Iorque. 2 Tradução de Eduardo Assis Duarte. In : “Entre Orfeu e Exu: a afrodescendência toma a palavra”. Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Eduardo A. Duarte (org). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol 1, p. 15. 88 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra daí, começam as fecundas relações entre intelectuais afro-americanos com intelectuais negros oriundos das colônias francesas da África e do Caribe, porém residentes em Paris. Todos receberam inluência direta do movimento Harlem Renaissance, uma vez que, a partir da década de 1920, a efervescente cidade-luz acolheu inúmeros artistas, músicos de jazz e escritores norte-americanos, como L. Hugues, que lá viveu em 1923, mesmo ano da composição de My people. Muitos artistas europeus e estrangeiros, brancos, residentes em Paris, icaram fascinados pelas arts nègres [artes negras], introduziram ou se inspiraram em elementos africanos, como se vê em quadros do espanhol Pablo Picasso e em “A negra”, da pintora modernista brasileira Tarsila do Amaral, que na década de 1920 residiu vários anos na capital francesa. Esta tendência foi chamada de “negrismo” [ver glossário no inal deste material]. Aliás, completando este quadro, um dos amigos mais próximos do casal Tarsila e Oswald de Andrade, na França, foi o escritor franco-suíço Blaise Cendrars, que, segundo Tarsila, adorava arte e cultura africana, publicou um trabalho pioneiro, a Anthologie Nègre [Antologia Negra] em 1921, reunindo contos da tradição oral africana que ele, europeu e branco, foi a primeira pessoa a considerar como sendo “literatura”. No campo literário, encontramos aqui um fenômeno similar ao “negrismo” quando alguns escritores brancos trazem para sua produção poética elementos colhidos na cultura ou no “folclore” afro-brasileiro ou africano (música, dança, culinária), no intuito de reforçar o caráter nacionalista nos primeiros anos do Modernismo brasileiro. Como exemplos, teríamos Raul Bopp, com Urucungo (1932); Jorge de Lima, com Poemas (1927) e Poemas negros (1947); e Mário de Andrade, com Poemas da negra (1929). É bom notar esses dois fenômenos marcados por visões distintas (de dentro/ de fora), ocorrendo simultaneamente em vários espaços: a. de um lado, a emergência de uma nova consciência, de novos discursos e novas vozes negras no plano cultural, literário e político; b. de outro, a inluência marcante das artes e dos temas negros na produção estética de artistas e escritores brancos. Pablo Picasso. Detalhe do quadro “Senhoritas de Avignon” (1907 ) e máscara fang do Gabão 89 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Tarsila do Amaral. “A Negra” (1923), Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo Prosseguindo no tempo, no início dos anos 1930, três estudantes negros Aimé Césaire (Martinica), Léopold S. Senghor (Senegal) e Léon G. Damas (Guiana Francesa), fundam o periódico literário e cultural Revue du monde noir [Revista do mundo negro] (1931-1932), na qual colaboram negros africanos e da afro-diáspora, norte-americanos sobretudo, como L. Hugues, testemunhando o fértil intercâmbio de ideias entre esses intelectuais. Anos mais tarde, Césaire, Senghor e Damas lideram o movimento da Negritude, de repercussão internacional, na qual a inluência e atuação de seus líderes foi marcante não só no campo literário como no campo político. A palavra “negritude (em francês “négritude”) foi criada por Césaire e empregada pela primeira vez em sua obra-prima Cahier d’un retour au pays natal [Diário de um retorno ao país natal] (1939). Nesta obra, a “negritude” aparece com três sentidos: a) o de “povo negro”; b) o de “sentimento ou vivência; e c) o de revolta e indignação (FERREIRA, 2006: 170). Na década seguinte, Léopold Senghor, já renomado escritor e político, publica a Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache [Antologia da nova poesia negra e malgache3] (1948), na qual se encontrará contornos mais precisos ao conceito de Negritude. Aimé Césaire Léopold S. Senghor Léon G. Damas 3 Malgache: adjetivo relativo a Madagascar. 90 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Considerando os vasos comunicantes entre os movimentos acima descritos, ocorridos entre EUA, França, África e Caribe francófono, é preciso destacar um fato que, curiosamente, acontece quase ao mesmo tempo no Brasil. Estamos aqui nos referindo às ideias que circulavam na década de 1920-30, em particular na imprensa negra de São Paulo, e talvez passe despercebida uma questão de ordem linguística, mas que chama a atenção por apresentar uma coincidência: o uso da palavra “negro” (em português), e de suas correspondentes em inglês (negro) e em francês (nègre4), ocorrendo em espaços tão distintos como os EUA e a França e o Brasil, este sem o contato havido entre os dois outros países. Nos três idiomas, àquela altura, tratava-se de vocábulos com sentido pejorativo, remetendo à condição de escravo e à submissão, vocábulos que eram vítimas de um preconceito linguístico. Não é à toa que, os ativistas negros norte-americanos desejaram reabilitar a palavra, batizando seu movimento de “New Negro”, quebrando paradigmas e airmando uma identidade. A formação da palavra “négritude” em francês também tinha uma explicação. Segundo Césaire, seu criador, era preciso exorcizar o mal-estar em ser e se dizer “nègre” em língua francesa: “Nossa luta era contra a alienação [...] Como os antilhanos se envergonhavam de ser negros [nègres], procuravam todas as perífrases para designar um negro. Dizia-se um preto [noir], um homem de pele morena e outras bobagens dessas... Já que tínhamos vergonha da palavra nègre, pois bem, pegamos a palavra nègre [...]” (DEPESTRE, 1980, p. 75-76, apud FERREIRA, 2006, p. 172) No Brasil, aquelas primeiras décadas também serviram para romper e superar um tabu - o uso da palavra “negro”, palavra que possuía valor depreciativo e era evitada até por aqueles a quem se aplicava. Muitas associações negras em São Paulo referiam-se aos seus membros como “homens de cor”. Num manifesto publicado em 1927, no Clarim da Alvorada, um dos principais órgãos da imprensa negra paulista, Arlindo Veiga dos Santos, importante líder da comunidade, fazia questão de deinir o sentido abrangente, que hoje nos soa bastante atual, emprestado ao termo: “São negras todas as pessoas de cor, os pretos, os mulatos, os morenos, etc. todos os descendentes do Africano e do Índio”5. Apesar do amplo espectro presente na deinição de Santos, a palavra “negro”, desde os tempos da escravidão, continuava sendo frequentemente usada, no Brasil, como um insulto racista lançado exclusivamente aos afrodescendentes, compreendidos numa vasta gama de cores. Em 1938, até o escritor-ícone do modernismo, Mário de Andrade, cujas avós paterna e materna eram “mulatas” lhe legaram sua “cor duvidosa”, confessou muitas vezes ter sido xingado de “negro”6. Já àquela altura, quando ainda não se constituíra aqui o campo especíico da 4 Em francês, para “negro” tem-se a palavra “noir”, que é o nome da cor preta; em se referindo a pessoas, no entanto, é menos agressiva e ultrapassada do que “nègre”. 5 “Palavras aos pais negros”, Clarim da Alvorada, 13/5/1927. 6 Mário de Andrade, “A superstição da cor preta”, in: Boletim Luso-Africano. Rio de Janeiro, dezembro de 1938: “Se qualquer de nós, Brasileiros, se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é freqüente chamar-lhe: - Negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele não foi lá muito convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando bem, muito obrigado.” 91 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos literatura negra, vê-se que a consciência se preparava, permitindo que a ideia de assumir a palavra “negro” se ixasse e que o tabu fosse enfrentado. Lino Guedes, poeta e jornalista negro bastante conhecido no meio negro paulista, publicou em 1936 uma coletânea de poemas cujo título, no sentido descrito acima, é revelador: Negro preto, cor da noite. O ator, ativista e político Abdias do Nascimento (1914-2011), fundador do Teatro Experimental do Negro, uma experiência pioneira na dramaturgia brasileira, airmou em suas memórias que o uso do termo “negro” causava estranheza e indignação: “Tentava-se esconder o sol da verdadeira prática do racismo e da discriminação racial com peneira furada do mito da ‘democracia racial’” (NASCIMENTO, 1997, p.72). Mário de Andrade (1893-1945) Não podemos deixar de mencionar que é um estrangeiro, o francês Roger Bastide, professor de sociologia na USP de 1938 a 1954, quem faz o primeiro trabalho voltado para o resgate e análise da produção de poetas negros, em geral excluídos do cenário da literatura brasileira. Neste sentido, seu ensaio A poesia afro-brasileira (1943) é um divisor de águas, ao introduzir um novo objeto para os estudos literários e uma nova abordagem para estudá-lo. Bastide contribuiu muito para a introdução e divulgação do conceito de Negritude entre nós, através dos inúmeros artigos sobre o tema publicados no jornal O Estado de São Paulo nos anos 1960. Lino Guedes Esse período é marcado pelas lutas dos povos afrodescendentes e africanos. (1897-1951) Nos EUA, a luta pelos direitos cívicos inspira o Black Arts ou Black Aesthetics Movement [Movimento de Arte Negra, de Estética Negra], ramo artístico do movimento Black Power. Na África, iniciam-se os movimentos pela independência. Vinte e cinco anos depois de a Negritude ter sido criada na França, Léopold Senghor é eleito o primeiro presidente do Senegal livre em 1960, acontecimento de grande impacto em outros países africanos, inclusive lusófonos como Angola ou Guiné Bissau, onde se conduzia a guerra contra o colonizador branco europeu e seus intelectuais miravam, por um lado as ideias negritudinistas, por outro o marxismo. O poeta, guerrilheiro e político angolano, Agostinho Neto, tornar-se-ia também o primeiro presidente de Angola independente. Até aqui, circulamos por vários espaços, traçamos um breve panorama de projetos, políticos e estéticos, que faziam alorar, em circuito internacional, e em períodos-chave (entre-guerras, pós segunda guerra, im do colonialismo na África e Américas). E chegamos ao momento, raramente lembrado, em que a Negritude veio, isicamente, ao encontro do Brasil, que recebeu a visita dos poetas-políticos Léon Damas e Léopold Senghor em 1964, momento em que surgem novos artíices da literatura negra, como veremos no tópico seguinte. Selo comemorativo da visita de L. Senghor ao Brasil, 1964 92 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Glossário 1. Lei Jim Crow: conjunto de leis que deiniam regras de segregação/separação entre brancos e negros norte-americanos em vários espaços (escolas, faculdades, serviços públicos, prisões, trens, ônibus, etc.), especialmente nos estados do sul do país. Vigorou de 1876 a 1965, demorou a ser efetivamente aplicada em alguns municípios. Esteve no cerne da campanha pelos direitos cívicos, encabeçada por líderes como Martin Luther King Jr. Último discurso de M.L. King, Memphis, 1968 “Eu sou um homem”. Marcha em Memphis, 1968 Manifestação pró-segregação (EUA, anos 1960): “Não queremos ir à escola com negros” 93 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos 2. Negrismo: Na deinição do crítico literário Jorge Schwartz, “o negrismo, enquanto tema de vanguarda, constitui um tema importado, desvinculado de uma realidade vivenciada. Trata-se de um discurso plástico produzido por uma elite artística branca e europeia que incorpora uma temática negra para divulgá-la junto a um público também branco, em geral pertencente ao mesmo grupo de elite cultural.” (SCHWARTZ, 1995: 580) Para o autor, exemplos disso são obras como Urucungo, de Raul Bopp, Poemas negros, de Jorge de Lima, Poemas da negra, de Mário de Andrade. 94 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Referências Bibliográficas ANDRADE, Mário. “A superstição da cor preta”. In: Boletim Luso-Africano. Rio de Janeiro, dezembro de 1938. Disponível em : http://www.lch.usp.br/sociologia/asag/ superti%E7%E3o%20da%20cor%20-%20M%E1rio%20de%20Andrade.pdf (acesso em 01/12/2014) CÉSAIRE, Aimé. Diário de um retorno ao país natal. Tradução Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012. DUARTE, Eduardo Assis. “Por um conceito de literatura afro-brasileira”. In: Terceira margem, Rio de Janeiro, n. 23, p. 113-138, jul-dez 2010, pp. 113-138. Disponível em: www.revistaterceiramargem.com.br/index.php/revistaterceiramargem/article/view/60 (acesso em 01/12/2014) _____________. “Entre Orfeu e Exu: a afrodescendência toma a palavra”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Eduardo A. Duarte (org). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 1, pp. 13-48. FERREIRA, Ligia Fonseca. “Negritude, Negridade, Negrícia: história e sentidos de três conceitos viajantes”. In: Via Atlântica nº 9, junho 2006, pp. 163-183. Disponível em: http:// www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/viewFile/50048/54176 (acesso em 01/12/2014) NASCIMENTO, Abdias."Teatro Experimental do Negro: Trajetória e Relexões”. In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional: O Negro Brasileiro. Org. Joel. Ruino dos Santos, 25°edição, 1997, p. 70-81. SCHWARTZ, Jorge (Org.). Vanguardas latino-americanas. São Paulo: EDUSP, 1995. 95 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Unidade 3 Texto 2. Afirmação e identidade: a literatura negra chegou para ficar (anos 1970-1980) Objetivos • Veriicar como se constrói uma identidade literária negra, individual e coletiva, através de um discurso, temas e perspectiva especíicos. Conforme vimos, Léon G. Damas e Léopold Senghor visitaram o Brasil no fatídico ano de 1964, em que se dera o golpe militar, que por vinte e um anos privara os brasileiros das liberdades democráticas. Seja como for, quando os dois ilustres fundadores da Negritude passaram por aqui, dois escritores negros representavam a nossa literatura negra, que guardadas as devidas proporções, não possuíam o mesmo volume e projeção comparável à dos escritores negritudinistas, de língua inglesa ou francesa. Naquele momento, ocupavam particularmente a cena dois nomes: Eduardo Oliveira (1926-2012), professor, poeta, político e intelectual “pan-africanista” [ver glossário], autor, entre outros, de Banzo (poemas, 1965), Gestas líricas da negritude (1967) e do “Hino à Negritude”, oicializado por lei em maio de 20147; e Oswaldo de Camargo (1937- ), jornalista e escritor, hoje o mais velho e mais importante escritor negro vivo, por todos considerados como um “elo entre gerações” que, através de inúmeras iniciativas tem contribuído para consolidar o campo da literatura negra tal como o conhecemos hoje, conforme veremos mais adiante. É interessante, portanto, notar a mudança, em termos de airmação identitária, ocorrida no Brasil em plena vigência da ditadura militar: começa-se a reivindicar com mais força uma “cultura negra”, sem desatentar dos acontecimentos internacionais, especialmente na África, onde as lutas de independência, em particular nos países lusófonos, ou seja, de língua portuguesa, se estenderiam até 19758. Esta é a atitude de autores brasileiros que, individual e/ ou coletivamente, reivindicarão a partir dos anos 1970, o adjetivo “negro” para caracterizar sua condição - poeta/escritor(a) negro(a) – e à esfera a que pertencem – a literatura “negra”. Esta airmação identitária tem como marco o ano de 1978 em que, desaiando a repressão policial do regime militar, um ato público contra o racismo, em 07 de julho em São Paulo, dará ensejo à criação do MNU - Movimento Negro Uniicado contra a Discriminação Racial, ousada contribuição da comunidade negra para a abertura política que se pusera em marcha. Em paralelo à luta política, dá-se a emergência do que Oswaldo de Camargo chamou de “ativismo negro literário” (CAMARGO, 1987: 107). Esse fenômeno novo marcou-se pela criação dos coletivos de escritores como o “Negrícia”, no Rio de Janeiro, “Palmares”, em Porto Alegre, “Gens”, na Bahia, e o “Quilombhoje”, em São Paulo. Este último grupo, para dar o mais signiicativo exemplo, fundou em 1978 os Cadernos Negros, publicação dedicada à prosa (contos) 7 Ver matéria jornalística “Dilma sanciona lei que oicializa Hino à Negritude”. Disponível em : http://g1.globo. com/brasil/noticia/2014/05/dilma-sanciona-lei-que-oicializa-no-pais-o-hino-negritude.html 8 Datas de independência das ex-colônias portuguesas: Guiné-Bissau , em 1974; Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe, em 1975. 96 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra e à poesia, de notável e rara existência, estendendo-se até os dias de hoje e no qual colaboram autores de várias regiões do Brasil. No prefácio manifesto de seu primeiro número, os autores, sensíveis, se colocam em consonância com a conjuntura internacional e nacional, falam de e para sua gente, apropriando-se o legado da negritude: “A África está se libertando! (...) E nós, brasileiros, como estamos? (...) Cadernos Negros marca passos decisivos para nossa valorização e resulta de nossa vigilância contra as ideias que nos confundem, nos enfraquecem e nos sufocam. (...) Aqui se trata de legítima defesa dos valores do povo negro. (...) Cadernos Negros é a viva imagem da África em nosso continente. É a Diáspora Negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as cicatrizes que assinalaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mãos o livro. (...) Fazemos da negritude, aqui posta em poesia, parte da luta contra a exploração social em todos os níveis, na qual somos os mais atingidos”9. Conforme assinala Duarte, “os signatários [deste manifesto] fazem questão de destacar a transversalidade espaço-temporal de sua escrita, seja na incorporação de autores (...) de outras gerações, seja nas referências às demais vozes negras da África e da diáspora (...) “transcendendo tanto fronteiras geográicas quanto temporais” (DUARTE, 2011, vol.1: 27-28). Na década de 1980, a proximidade do centenário da Abolição estimulou alguns autores “militantes” a dar visibilidade, delimitar, ampliar e consolidar a noção de literatura negra. Com este im, teve um papel fundamental a publicação de antologias poéticas, em sua maioria, hoje desafortunadamente esgotadas ou só encontráveis em sebos e, com alguma sorte, em bibliotecas. 9 Cadernos Negros 1, 1978, p. 2-3. 97 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Em ordem cronológica, destacamos a Antologia contemporânea da poesia negra brasileira (1982), cujo organizador, o poeta Paulo Colina, tem na verdade um duplo propósito, contrapondo aos estereótipos do negro, uma outra imagem, um outro lugar: “(...) não somos só comida e capoeira, umbanda e candomblé, malandragem e sexo avantajado, samba e futebol. Os negros sempre dominaram a palavra (...) O leitor conhecerá aqui (...) alguns dos poetas negros atuais de quilate (...) espalhados e ilhados em outros Estados deste continente que chamamos Brasil.” (COLINA, 1982:7-8) A antologia A Razão da Chama. Antologia de poetas negros brasileiros (1986), é a primeira a reunir “poetas negros ou mulatos” que, do inal do século XVIII à atualidade, se revelaram ou se revelam negros. Ecoando preocupação semelhante à de Paulo Colina, acima mencionado, Camargo relembra que “o negro foi sem dúvida colocado como personagem e motivo na Literatura Brasileira”, mas que na coletânea “escorre esta seiva poética, alento, reivindicação, consolo e airmação de que nós também somos Literatura”. Ainda segundo o organizador, publicar esta obra dois anos antes do centenário da abolição foi um projeto motivado pela expectativa de fazer os “estudiosos (...) se deterem, mais aprofundados, sobre a problemática negra ou afro-brasileira” (Camargo, 1986: ix e xii). Em 1987, Camargo lança o pioneiríssimo trabalho O negro escrito. Apontamento sobre a presença do negro na literatura brasileira, sem dúvida o primeiro esforço de elaboração de um panorama histórico da literatura negra, do século XVIII à atualidade, fonte preciosa e incontornável para os trabalhos posteriores, contendo dados biobiliográicos, apreciação crítica das obras e antologia temática. Oswaldo de Camargo (1937 - ) O negro escrito é, sem dúvida, o embrião de Literatura e Afrodescendência: uma antologia crítica, já mencionado anteriormente. No prefácio, o poeta Paulo Colina, relata uma experiência que se repete ainda hoje: 98 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra “Por experiência, sei que toda vez que o negro escrito aparece em um debate, uma conferência, palestra, surgem, de pronto, as perguntas de rotina: Mas, por que literatura negra? Existe? A literatura tem cor?” E eu sou obrigado a retroceder às análises que tenho feito desde que me confronto com o mundo. Para chegar à conclusão de que à sociedade pátria interessa o negro mudo. Tudo uma questão de voz. Quando se questiona a existência de uma literatura negra ou afro-brasileira – quero dizer, o negro escrito, (...) existe aí uma tentativa de negação. Negação dos valores que o negro despe em seu fazer literário. (...)”10 Vemos, portanto, que o prefaciador do Negro escrito explicitou, vinte e cinco anos antes da publicação do artigo de Ferreira Gullar, visto em aula anterior, o fenômeno que perpassa a literatura negra, ou seja, a sua “negação”, negação que constitui um relexo de outras dimensões negadas ao afrodescendente no Brasil.10 Glossário 1. Pan-africanismo= “doutrina ou movimento que busca o desenvolvimento da unidade e da solidariedade entre os países da África” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009). 10 Oswaldo de Camargo. O negro escrito. Apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira. São Paulo: Imprensa Oicial, 1987, p. 11. Grifo do autor. 99 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Referências Bibliográficas CAMARGO, Oswaldo de (org.). A razão da chama. Antologia de poetas negros brasileiros. São Paulo: Edições GDR, 1986. ________________________. O negro escrito. Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oicial, 1987. COLINA, Paulo (org.). Antologia contemporânea de poesia negra brasileira. São Paulo: Global editora, 1982. DUARTE, Eduardo Assis. “Entre Orfeu e Exu: a afrodescendência toma a palavra”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Eduardo A. Duarte (org). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 1, pp. 13-48. FERREIRA, Ligia Fonseca. “Negritude, Negridade, Negrícia: história e sentidos de três conceitos viajantes”. In: Via Atlântica nº 9, junho 2006, pp. 163-183. Disponível em: http:// www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/viewFile/50048/54176 (acesso em 01/12/2014) VÁRIOS AUTORES. Cadernos Negros. Números 01 a 37. São Paulo: vários editores, 1978 a 2014. Webgrafia Site do Coletivo de escritores Quilombhoje: 01/12/2014) 100 www.quilombhoje.com.br (acesso em Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Unidade 4. Literatura afro-brasileira x Literatura negra: nomes e conceitos em discussão Objetivos: • Observar a emergência, nominação, airmação da “literatura negra” brasileira e os debates que suscita. Esperamos que os conteúdos anteriores tenham-no ajudado a perceber que a emergência da(s) “literatura(s) negra(s)” foi um fenômeno que se deu em contextos, sob conjunturas e temporalidades diversas em várias partes do que Paul Gilroy, um historiador do qual você seguramente já ouviu falar em outras disciplinas deste curso, chamou de “Atlântico Negro” (África, Américas, Europa). Nesta sequência, pretendemos chamar sua atenção para o fato de que não é unívoca e nem existe um consenso em torno da denominação “literatura negra”, tema desta disciplina. É importante, pois, estar atento(a) para que, a depender das referências que porventura forem pesquisadas em bibliotecas ou na internet, você possa “separar o joio do trigo”, e buscar sempre as referências mais coniáveis. Este também é o cuidado que temos ao listar as obras e demais recursos que servem de embasamento ao conteúdo de nossas aulas. Quanto à literatura negra, na realidade tem sido objeto de (re)deinições e controvérsias tanto por parte dos autores quanto da crítica literária e demais estudiosos do assunto. Tais discussões são provocadas pelo uso de outros termos, como “literatura afro-brasileira”, “literatura afro-descendente” ou “literatura afro”, que entram em concorrência ou se alternam como se fossem sinônimos, gerando convergências e divergências quando se trata de nomear e deinir o conceito. Na qualidade de professores ou futuros professores, logo, diretamente afetados pelas leis e diretrizes sobre educação, podemos observar essas variações de uso, mencionadas acima, em vários textos, inclusive nos textos oiciais como a Lei 11.645/08, que alterou a lei 10.639/03, em cujo §2 do artigo 26-A consta o seguinte : “[O]s conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileiros [grifo nosso] e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”1. 1 Grifos nossos. Registre-se que o mesmo qualiicativo “afro-brasileiro” também se encontra no texto da lei 10639/03. 101 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Como se vê, partindo-se do princípio de que o pressuposto básico da literatura (como, aliás, de toda produção escrita) é de que “alguém escreve para alguém ler”, a margem para a interpretação das leis acima é bem ampla e suscita questionamentos. Pode-se estendê-la do estudo do negro-personagem e dos temas afro-brasileiros presentes na literatura de escritores brancos (escritas sobre o negro, voltadas para o leitor branco? negro? ), à literatura afro-brasileira (entendida como...?) e à literatura negra (o negro autor, a escrita do negro, para o leitor negro? branco?), etc. Seja como for, não cabe nesta disciplina, cujo objetivo é introduzir um novo tema para seu conhecimento, nos alongarmos em debates teóricos, especialmente porque, como você deve ter constatado nestas aulas ou observado na sua experiência de vida social, e qualquer que seja o seu pertencimento étnico, trata-se de um tema quase sempre polêmico. No entanto, pensando na sua formação, parece-nos importante apresentar convergências e divergências conceituais, na ótica de alguns nomes que constituem hoje importantes referências nos estudos da produção literária aqui especiicamente abordada. Assim, propomos-lhe, a seguir, comentários e breve análise dos pontos de vista de um crítico literário e dois escritores. Para o crítico Eduardo Assis Duarte, organizador de Literatura e Afrodescendência e coordenador do portal Literafro (ver webgraia), ferramenta essencial para seu estudo daqui por diante, o conceito de “literatura afro-brasileira” é uma “formulação mais elástica (e mais produtiva)”; esta abrangeria a emergência do “sujeito étnico” (eu que se assume negro) nos textos, de Luiz Gama (século XIX) a Cuti (contemporâneo), passando por Lima Barreto, como também uma enunciação mais dissimulada de um Machado de Assis, que nunca trouxe à tona, em sua escrita, sua condição de “mestiço, neto de escravos. Neste sentido, a nominação “literatura afro-brasileira”, que tem sido empregada desde o trabalho pioneiro de Roger Bastide em 1943, englobaria as “várias tendências” de uma identidade, explicitada ou não, na expressão literária. Para fundamentar sua escolha, Duarte apoia-se igualmente no fato de que vários autores contemporâneos, como os iliados ao grupo Quilombhoje, adotam a expressão “literatura afro-brasileira” como subtítulo de vários volumes dos Cadernos Negros bem como no livro lançado pelo grupo em 1985, Relexões sobre a literatura afro-brasileira (DUARTE, 2010: 121)2. Por im, caracteriza a “literatura afro-brasileira” pela temática (“temas afro-brasileiros”), pela autoria (“uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso”); linguagem (“construções linguísticas marcadas por vocabulário, ritmo, sonoridades das línguas africanas”); pelo ponto de vista (fatos e experiências relatados sob um a ótica negra), pelo público (produção destinada principalmente a um público negro, a ser formado e conscientizado) (DUARTE, 2010: 122). Em suma, torna-se evidente que a “epiderme” não é um critério suiciente para caracterizar a produção literária aqui estudada, embora as alusões à pele negra sejam recorrentes, na poesia ou na prosa, em sentido próprio ou igurado. Continuando, a im de estabelecer um contraponto com as posições de Duarte, propomos-lhe abaixo o ponto de vista expressado por dois escritores que também realizaram exercícios críticos. 2 Este texto, disponível na internet (ver referências), encontra-se também integralmente reproduzido em Literatura e Descendência...., op. cit., vol 4 (História, teoria, polêmica), pp. 375-403. 102 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra No congresso anual da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizado em 1988, ano do centenário da abolição, Paulo Colina apresentou a comunicação “Relexões pela noite viva”, imprimindo sua marca identitária na crítica, da mesma forma que o faz em sua poesia. Como você poderá depreender da declaração abaixo, Colina evoca várias dimensões presentes na conceituação de “literatura negra”: A literatura é universal, sim. Mas para nós tem cor. Negra. Não no sentido que Gilberto Freyre quis dar a ela em seu prefácio a Poemas Negros, de Jorge de Lima; tampouco no sentido [contemplativo], na terceira pessoa do singular, como nos entrega Raul Bopp3. Quando cantamos “eu, este “eu” é coletivo. Seguramente, literatura para nós tem cor. E quando a chamamos de negra, mais do que uma deinição, é uma arma de ponta com a qual combatemos todas as armadilhas que procuram nos caçar o Ser4, no sentido lato que este verbo exige, e que [o censo de 1980] provou que (...) a democracia racial aqui é falácia, apenas. E, pela poesia, recuperamos nossa verdades, nossas raízes. Quer falando de amor, quer questionando o racismo, fazendo reversão de valores ou revisando nossa história (e/ou). Recuperando nossa identidade, sempre.5 IMPORTANTE Mais recentemente, é importante considerar as contribuições do poeta, dramaturgo, contista, ensaísta e crítico Luiz da Silva Cuti, um dos mais importantes escritores negros da atualidade, membro fundador do Quilombhoje e dos Cadernos Negros. Ao lado de Oswaldo de Camargo, que já nos anos 1960 buscou incar o conceito de “literatura negra”, trata-se seguramente de um dos líderes do “ativismo negro literário” dos últimos trinta anos, cuja relexão teórica é considerada como fundamental para o desenvolvimento dos estudos sobre a produção literária dos escritores negros. Em “Negro ou Afro não tanto faz” (2010), terceiro capítulo de seu livro Literatura Negro-Brasileira (2010), a partir de sua própria experiência como escritor, Cuti aponta os riscos de ambiguidades, opacidades e assimilações contidos na nominação, para ele problemática, de literatura “afro-brasileira” ou “afrodescendente”, ao mesmo tempo em que denuncia a progressiva “eliminação” do personagem negro em nossa literatura. O autor nos alerta igualmente sobre algo que pode passar despercebido, ou como coisas mais ou menos equivalentes, ou seja, as implicações de se amalgamar “literatura negro-brasileira” com “literatura africana”. 3 Poeta modernista e diplomata. Colina alude, sem dúvida, ao livro de poemas Urucungo. 4 Grifo do autor. 5 Apud Eduardo Assis Duarte. Literatura e Afrodescendência..., op. cit., vol. 2, p. 414-415. 103 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Para nós, professores, essa compreensão será muito importante, pois norteará nossas ações para preparar, propor, prover e explicar os conteúdos selecionados para o uso em sala de aula, em atendimento às leis 10.639/03 e 11.645/08. Reproduzimos a seguir trechos6 de uma relexão fundamental: Na literatura, por razões fundamentadas em teorias racistas, a eliminação da personagem negra passa a ser um velado código de princípios. Ou a personagem morre ou sua ascendência clareia7. A evolução do negro no plano iccional só pode ocorrer no sentido de tornar-se branco, pois a “afro-brasilidade” pode sobreviver sem o negro, ou seja, não ser vítima da discriminação racial ou, até, ser um discriminador (...) Denominar de “afro” a produção literária negro-brasileira (dos que se assumem como negros em seus textos) é projetá-la à origem continental de seus autores, deixando-a à margem da literatura brasileira (...). “[A]fro-brasileiro” e “afro-descendente” são expressões que induzem a discreto retorno à África, afastamento silencioso do âmbito da literatura brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero apêndice da literatura africana. Em outras palavras, é como se só à produção de autores brancos coubesse compor a literatura do Brasil. O aval do Estado Brasileiro8 dá à denominação “afro-brasileira” um caráter compulsório, enquadrando a produção literária em seus pressupostos ideológicos. O interesse de intercâmbio econômico com os países africanos sustenta as iniciativas do intercâmbio cultural. (...) Atrelar a literatura negro-brasileira à literatura africana teria um feito de referendar o não questionamento da realidade por esta última. A literatura africana não combate o racismo brasileiro. E não se assume como negra (...) Africanos de hoje, em particular os literatos, ciosos da busca de reconhecimento cultural de suas nacionalidades, incluindo aí os africanos brancos, tendem a rejeitar uma identidade continental para as suas obras, preferindo a caracterização nacional baseada na noção territorial geográica. (...) Quanto aos autores, um afro-brasileiro ou afro-descendente não é necessariamente um negro-brasileiro. O critério da cor da pele, em se tratando de texto escrito, em que medida é importante, considerando que “afro” não implica necessariamente ser negro? O referido preixo abriga não negros (mestiços e brancos), portanto, pessoas a quem o racismo não atinge, para as quais a herança africana não está no corpo, portanto não passa pela experiência em face da discriminação racial (...) Quando se fala 6 Optamos por incluir esta citação mais longa por julgar mais conveniente para seu estudo e, sobretudo, evitar cortes que prejudicassem a coerência argumentativa do autor. 7 Neste ponto, o autor insere a seguinte nota : “O mulato, de Aluísio Azevedo, Bom crioulo, de Adolfo Caminha, e, mais recente, Negro Leo, de Chico Anísio, exempliicam a eliminação; Os tambores de São Luís, de Josué Montello, e Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, exempliicam o clareamento dos descendentes das personagens principais. O presidente negro, de Monteiro Lobato, vai mais longe, com a esterilização de toda a raça negra ( nos Estados Unidos)” (CUTI, 2010:35). 8 Aqui também, o autor coloca uma nota, citando o exemplo do termo “afro-brasileiro”, empregados na lei federal 10.639/03, mencionado por nós em uma aula anterior, bem como o Projeto de Lei 3.891, que cria a UNILAB Universidade Federal da Integração Luso-Afro-Brasileira (CUTI, 2010: 36). 104 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra em “poetas negros”, estariam os que usam tal expressão referindo-se à cor da pele? Parece-nos que sim, porém, não apenas isso. Então, além do dado da cor, teria de haver o dado da escrita. Que escrita será essa? Parece-nos que a escrita afro-brasileira ou afrodescendente tenderia a se diferenciar da escrita negro-brasileira em algum ponto. O ponto nevrálgico é o racismo e seus signiicados no tocante à manifestação das subjetividades negra, mestiça e Luiz Silva CUTI (1951 - ) branca. Quais as experiências vividas, que sentimentos nutrem as pessoas, que fantasias, que vivências, que reações, enim, são experimentadas por elas diante das consequências da discriminação racial e de sua presença psíquica, o preconceito? Esse é o ponto! (CUTI, 2010: 34-39) Ainda sobre o mesmo assunto, em outro depoimento, Cuti evoca o impacto ou desconforto que ainda causa um simples vocábulo, o que justiica, no contexto brasileiro, a opção por termos mais brandos, que talvez traduzam a nossa pretensa “cordialidade” [ver glossário], há algum tempo posta em xeque, que talvez comande o nosso “racismo cordial [ver glossário]: A palavra “negro” é (...) polissêmica [ver glossário] e contundente. “Afro-brasileiro” é um termo apaziguado de conlitos, lembra conceito forjado em gabinete. O Brasil da democracia racial prefere palavras mais amenas que não tragam conotação conlituosa. A polarização criativa perde impulso, a crítica ao racismo também.(...) [A] amplitude que a expressão “afro-brasileiro” possa ter é caracterizada pela conotação dissolvente da identidade negra. (DUARTE, 2011, v. 4: 60) Duarte, Colina e Cuti ilustram três opiniões acerca do nome e da conceituação de “literatura negra”. Você deve ter percebido, no entanto, as convergências e divergências entre o crítico e os escritores. Na esteira de seu predecessor, Oswaldo de Camargo, o mais velho dentre os contemporâneos vivos e reconhecido como “elo entre gerações”, além de Colina e Cuti, vários outros escritores assumem o protagonismo ao tomar as rédeas da nomeação e da conceituação da literatura negra. Assim, concluindo este tópico, acrescentamos que muitos escritores fazem desta questão um tema para seus escritos, como você pode ler e fruir, abaixo, nos poemas do mineiro Adão Ventura (1946-2004) : 105 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Faça sol ou faça tempestade faça sol ou faça tempestade, meu corpo é fechado por esta pele negra. faça sol ou faça tempestade meu corpo é cercado por estes muros altos, — currais onde ainda se coagula o sangue dos escravos. faça sol ou faça tempestade, meu corpo é fechado por esta pele negra. e Paulo Colina: Corpo a corpo a vida é uma horda bárbara de sentimentos as noites tentam desde o princípio de tudo a derrubada de estigmas primários o cotidiano tem sempre à mão um repertório de sambas e blues o papel branco vive me jogando desaios na cara ser marginal todavia só interessa à paixão bastaria ao poema apenas a cor da minha pele?9 9 Ambos os poemas constam d’A razão da chama. Antologia de poetas negros brasileiros. Seleção e organização Oswaldo de Camargo. São Paulo: 1986, p. 70 e 80-81, respectivamente. 106 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Glossário 1. Cordialidade [brasileira] = Esta noção foi introduzida pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil (1936). No Capítulo V, “O homem cordial”, descreve-se como características próprias aos brasileiros os comportamentos de aparência afetiva e sentimental, manifestados supericialmente. Porém, o autor precisou enfrentar um erro de interpretação, pois sua expressão acabou sendo interpretada no sentido diverso do que pretendia ao falar da postura dos indivíduos que não consegue separar o público do privado, que relação com o Estado deveria ser impessoal e não pessoal. Afetuoso e emotivo na esfera privada/familiar, o brasileiro, em sua relação com o público e o Estado, seria individualista, avesso à hierarquia, arredio à disciplina e a certa introspecção, desobediente a regras sociais e afeito ao paternalismo e ao compadrio. O “homem cordial” também não suportaria distâncias interpessoais. Tal constatação leva o autor a airmar que “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar”, chamando a atenção para o fato de, aqui, os os limites do público serem frequentemente invadidos pelo privado; segundo ele, igualmente, “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido[,] uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios”, fatores que impedem a criação de uma sociedade mais justa, isenta e igualitária. 2. “Racismo cordial” = Em 1995, em comemoração aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, o jornal Folha de São Paulo publicou os resultados da mais ampla pesquisa, até então realizada, sobre o preconceito no Brasil num suplemento especial, com o título “Racismo cordial”, depois transformado em livro (ver referências bibliográicas). Na introdução, os autores advertem: “[Na pesquisa] o Datafolha encontrou algo simples e previsível: o Brasil é um país racista contra pessoas negras. A diferença é que isso foi, pela primeira vez, constatado cientiicamente. (...) Infelizmente, como não havia trabalho anterior e com a mesma amplitude, não foi possível comparação com outros períodos da história do país Agora isso [tornou-se] viável.” 3. Polissemia = “multiplicidade de sentidos de uma palavra ou locução’ (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). 107 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Referências Bibliográficas CAMARGO, Oswaldo de (org.). A razão da chama. Antologia de poetas negros brasileiros. São Paulo: Edições GDR, 1986. ________________________. O negro escrito. Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oicial, 1987. COLINA, Paulo (org.). Antologia contemporânea de poesia negra brasileira. São Paulo: Global editora, 1982. CUTI, Luiz Silva. “Negro ou afro não tanto faz”. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010, pp.31-62. DUARTE, Eduardo Assis. “Por um conceito de literatura afro-brasileira”. In: Terceira margem, Rio de Janeiro, n. 23, p. 113-138, jul-dez 2010, pp. 113-138. Disponível em: www. revistaterceiramargem.com.br/index.php/revistaterceiramargem/article/view/60 (acesso em 01/12/2014) GILROY, Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001. Racismo cordial. A mais completa análise sobre o preconceito de cor no Brasil. Organização Cleusa Turra e Gustavo Venturi. São Paulo: Datafolha, Ática, 1995 [Pode ser encontrado para download na internet]. VÁRIOS AUTORES. Cadernos Negros. Números 01 a 37. São Paulo: vários editores, 1978 a 2014. WEBGRAFIA (acessos em 01/12/2014) 1. Portal Literafro de Literatura Afrobrasileira (UFMG): www.letras.ufmg.br/literafro 2. Site do Coletivo de escritores Quilombhoje: www.quilombhoje.com.br 3. Site do escritor Luiz Silva Cuti : www.cuti.com.br 4. Blog do escritor Oswaldo de Camargo : www.oswaldodecamargo.blogspot.com.br 108 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Unidade 5. Apresentação de alguns autores representativos da literatura negra As aulas anteriores tiveram como objetivo de lhe dar alguns subsídios para a etapa que agora iniciamos. Não seria justo apenas falar sobre literatura, sem fruir da literatura, provando de uma experiência estética que é a das inalidades de todas as artes. Objetivos: Nesta unidade apresentaremos breves dados biobibliográicos (vida e obra), apontando as principais características e produção de alguns autores representativos, exempliicando com textos extraídos de suas obras. Em virtude das características desta formação, foi necessário, portanto, fazer uma seleção, pois seria impossível cobrir a totalidade do que hoje constitui o corpus da literatura negra brasileira. Ainal, conforme revelou a pesquisa que deu origem à obra Literatura e Afrodescendência, já mencionado anteriormente, foram levantados cerca de 100 escritores negros (75 homens, 25 mulheres), desde o inal do século XIX até a atualidade. Longe de ser exaustivo, o que lhe propomos aqui são indicações para que, ao inal da disciplina, você esteja apto a fazer descobertas e a trilhar sozinho ou com colegas um caminho para aumentar seus conhecimentos e competências. A produção dos escritores, com raríssimas exceções, é de difícil acesso, raramente disponíveis em bibliotecas públicas, das escolas, universidades, e tampouco para aquisição em livrarias e sebos. Por essa razão, indicaremos sempre que possível as fontes mais idedignas pela internet. Um recurso, no entanto, será de fundamental utilidade para complementar as informações contidas neste tópico: o Portal Literafro de Literatura Afro-brasileira, da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais, cujo coordenador é Eduardo Assis Duarte, já mencionado anteriormente, constitui uma espécie de enciclopédia e biblioteca on-line. Nós o convidamos, desde já, a visitar esse portal e explorar seu funcionamento. Nossa lista se compõe dos seguintes escritores: Luiz Gama, Cruz e Sousa, Lima Barreto; Solano Trindade, Oswaldo de Camargo, Cuti, Oliveira Silveira, Carolina de Jesus, Geni Guimarães, Míriam Alves e Conceição Evaristo. Ao abordar a produção desses autores, buscaremos veriicar como se constrói uma identidade literária negra, individual e coletiva, através de um discurso, temas e perspectiva especíicos. Como a produção aumenta consideravelmente no século XX, a partir de Luiz Silva Cuti, as apresentações seguiram o seguinte formato: breves dados biográicos, comentários sobre a obra, excertos. 109 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Luiz Gama (BA, 1830 – SP, 1882): a primeira voz negra da literatura brasileira O poeta, jornalista, advogado, abolicionista e republicano, Luiz Gama é um dos principais intelectuais e ativistas negros do século XIX, o único autodidata e o único a ter vivido oito anos de escravidão. Nasceu em Salvador em 21 de junho de 1830, ilho de uma africana livre, Luiza Mahin, com a qual conviveu até os sete anos. Seu pai pertencia a uma família baiana de origem portuguesa e acabaria protagonizando um episódio que marcaria para sempre a dramática história de vida de Gama: arruinado pelo jogo, vendeu o próprio ilho de dez anos como escravo, que chega, nesta condição, à cidade de São Paulo, em 1840. Jovem seguramente superdotado e dono de uma memória e inteligência incomuns, aos dezessete anos aprende a ler e a escrever com um estudante de direito que residia na pensão de seu senhor. Doze anos depois, em 1859, ele publica na capital paulista a primeira edição de seu livro único, as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, uma coletânea de poemas de satíricos e românticos, que teve uma segunda edição em 1861 no Rio de Janeiro1. Pela primeira vez, um negro tivera a audácia de denunciar as mazelas políticas, éticos e sociais, bem como os paradoxos raciais da sociedade imperial. Muita curiosidade, portanto, foi o que cercou a poesia de um autor sui generis, pois, em pleno Brasil escravocrata, jamais foram lidos versos de um negro se assumindo como tal. Neste sentido, é Luiz Gama quem inca a primeira voz negra na literatura brasileira, como o atestam os seguintes versos de seu poema mais célebre, Quem sou eu, conhecido também como A Bodarrada: (...) Se negro sou, ou sou bode2, Pouco importa. O que isto pode ? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta... Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos, E, sejamos todos francos, Uns plebeus, e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios, importantes, E também alguns tratantes... Aqui, n’esta boa terra, Marram todos, tudo berra;3 (...) 1 Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas e outros poemas. Organização, introdução e notas de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 2 Bode = nome atribuído na época a mulatos de pele escura. Grifo nosso. 3 Grifo nosso. Este poema, bem como os demais textos do autor citados adiante, podem ser lidos na integra na obra referida na nota anterior em também em: Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. Introdução, organização e ensaios de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Imprensa Oicial, 2011. 110 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Este poema foi considerado por Manuel Bandeira como uma das obras-primas da nossa literatura. Em praticamente todos os seus escritos, inclusive jornalísticos, do ponto de vista identitário, Luiz Gama se posiciona como um “sujeito étnico”, ou seja desejando ser assim percebido por seus leitores, em sua maioria brancos, como só poderia ser naquela época. Fiel a suas origens, em outros poemas, Luiz Gama critica duramente a “mulatos” envergonhados que, “embranquecidos” socialmente, renegavam sua descendência africana, como se lê nesta estrofe de “Sortimento de gorras para a gente do grande tom”: (...) Se os nobres desta terra empanturrados, Em Guiné têm parentes enterrados ; E, cedendo à prosápia, ou duros vícios, Esquecem os negrinhos seus patrícios ; Se mulatos de cor esbranquiçada, Já se julgam de origem reinada, E, curvos à mania que os domina, Desprezam a vovó que é preta-mina : Não te espantes, ó Leitor, da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade !4 De sua pena sairiam outras poesias importantes e que remaram na contramão dos modelos literários da época. Luiz Gama também pioneiro ao louvar a negra mulher amada, como se pode ler em Meus amores, tema que retornaria em Cruz e Sousa, e, principalmente, na produção dos poetas negros do século XX: Meus amores são lindos, cor da noite Recamada de estrelas rutilantes ; Tão formosa crioula, ou Tétis negra5, Tem por olhos dois astros cintilantes. (...) Depois de publicadas as duas edições de Primeiras Trovas Burlescas, o republicano e abolicionista Luiz Gama abandona a literatura pelo jornalismo político e pela defesa de escravos nos tribunais paulistas. Mesmo nesta atuação, marcava seu ailiação étnica que, somada aos seus ideais republicanos, cercava-se de uma aura política. Em seus poemas como nos demais escritos, Luiz Gama falava não só por si, mas por uma coletividade. Exemplo disso, uma carta de 1880 ao editor de um jornal paulistano, na qual saía em defesa do abolicionista negro, José do Patrocínio, que sofrera ofensas racistas por parte de um adversário branco: 4 Guiné = no século XIX, designa uma vasta região da África banhada pelo Oceano Atlântico, na parte onde há uma reentrância, que corresponderia hoje a países como Togo, Gabão, Nigéria, Benin, entre outros, de onde provieram muitos dos escravos trazidos ao Brasil, nome pelo qual se referia a África; Preta-mina = referência a uma etnia originária da Costa da Mina, parte do golfo da Guiné. 5 Tétis = igura mitológica, símbolo da fecundidade das águas. 111 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Ilustrado redator : Acabo de ler, sem espanto, mas com pesar, o (...) escrito, publicado na (...) Província [de São Paulo] de hoje, contra o distinto cidadão José do Patrocínio. Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime ; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam ; que esta cor convencional da escravidão, (...) à semelhança da terra, [a]través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade. (Gazeta do Povo, 28/12/1880)6 Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882, aos 52 anos de idade. Seu funeral icou registrado nos anais da história São Paulo como o maior até então, na capital. Seu legado é imenso. Patrimônio de todos os brasileiros, o exemplo do “cidadão” Luiz Gama deve ser por todos nós conhecido, e, em particular pelas crianças e jovens - negros, pardos, índios, brancos, asiáticos - em particular das classes desfavorecidas, pois a trajetória do ex-escravo libertador nos traz uma mensagem clara: a razão, a proissão de fé, a determinação e o altruísmo podem levar o ser humano a superar condições trágicas, fatalidades e conformismo. Para saber mais sobre esta brilhante igura, cuja obras representa a nascente da literatura negra, recomendamos particularmente os artigos e vídeos constantes das referências abaixo. Referências Bibliográficas FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. Introdução, organização e ensaios de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Imprensa Oicial, 2011. __________. “Ethos, poética e política nos escritos de Luiz Gama”. In : Revista Crioula n. 12, novembro 2012. Disponível em : www.revistas.usp.br/crioula/article/view/57813/60862 (acesso em 01/12/2014) _________. “O sonho sublime de um ex-escravo”. Revista de História da Biblioteca Nacional, 2013. Disponível em : www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-sonho-sublime-de-um-ex-escravo 01/12/2014) (acesso em “Luiz Gama: escravo e abolicionista”. In: Revista FAPESP, 15/05/2014. Disponível em: www.revistapesquisa.fapesp.br/2014/05/15/escravo-e-abolicionista (acesso em 01/12/2014) 6 Grifo nosso. 112 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Vídeos Entrevistas com Ligia Fonseca Ferreira, biógrafa e especialista em Luiz Gama : • TV Justiça, programa Iluminuras: www.youtube.com/watch?v=vEJ1Km8H3Zs (acesso em 01/12/2014) • TVUnivesp, programa Literatura Fundamental 68: univesptv.cmais.com.br/literatura-fundamental-68-luiz-gama-ligia-fonseca-ferreira (acesso em 01/12/2014) • Programa Canal Livre na Band: tvuol.uol.com.br/video/canal-livre--legado-de-luis-gama-parte-2-04020C983970D0815326 (acesso em 01/12/2014) Glossário Corpus = coletânea ou conjunto de documentos [e obras] sobre determinado tema (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). Cruz e Sousa, o primeiro e maior poeta simbolista “Que importa que morra o poeta? Importa que não morra o poema!” (Cruz e Sousa) João da Cruz e Sousa nasceu em 24 de novembro de 1861, na cidade de Desterro - SC (atual Florianópolis). Seus pais eram escravos alforriados por um militar, que assumiu a criação do menino, provendo-lhe primorosa instrução até a adolescência. Após a morte de seu protetor, deixou os estudos e passou a escrever crônicas abolicionistas na imprensa catarinense. Porém, tratava-se de uma região hostil àquele homem que contrariava a ideologia racial em voga, apoiada na crença “cientíica” da inferioridade congênita dos negros. Cruz e Sousa revelou-se um talento precoce, compondo poesias desde os oiti anos de idade. Estudou como bolsista no Ateneu Provincial Catarinense, estabelecimento no qual cursavam os ilhos das famílias abastadas, logo, brancas, da província. Aluno brilhante, tinha pendor por ciências naturais, matemática e línguas (francês, inglês, latim, grego). Leitor reinado e admirador dos grandes poetas de seu tempo, como os franceses Charles Baudelaire e Mallarmé, e os portugueses Antero de Quental e Guerra Junqueiro, Cruz e Sousa distinguia-se por suas maneiras e trajes elegantes. Apesar do seu elevado nível cultural e formação incomuns para um negro em sua época, nunca alcançou posições proissionais à altura. Em 1884, sofreu na pele o racismo, ao ser recusado como promotor de Laguna por ser negro, o que lhe causou profunda insatisfação, fazendo-o engajar-se com maior ímpeto na campanha abolicionista com conferências, poemas, artigos e crônicas literárias. De passagem pela Bahia, em 1885, participou do movimento abolicionista local. Nesse mesmo ano publicou uma de suas crônicas mais contundentes, na qual pinta o retrato imoral de um padre “escravocrata”, e indiretamente da Igreja que maculava os ensinamentos do Cristo compactuando da exploração criminosa dos cativos : 113 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos UM PADRE ESCRAVOCRATA!... Horror! Um padre, o apóstolo da Igreja, que deveria ser o arrimo dos que sofrem, o sacrário da bondade, o amparo da inocência, o atleta civilizador da cruz, a cornucópia do amor, das bênçãos imaculadas, o relexo do Cristo... Um padre que comunga, que bate nos peitos, religiosamente, (...) que se confessa, que jejua, (...) que prega os preceitos evangélicos(...) Um escravocrata de... batina e breviário... horror! Fazer da Igreja uma senzala, dos dogmas sacros leis de impiedade, da estola um vergalho, do missal um prostíbulo... Um padre, amancebado com a treva, de espingarda a tiracolo como um pirata negreiro, de navalha em punho, como um garoto, para assassinar a consciência. Um canibal que pega nos instintos e atira-os à vala comum da noite da matéria onde se revolvem as larvas esverdeadas e vítreas da podridão moral. Um padre que benze-se e reza, instante a instante (...) Um padre que deixando explodir todas as interjeições da ira, estigmatiza a abolição. (...)7 Desejoso de se aproximar de meios literários mais cosmopolitas e, certamente, de fugir às pressões racistas em sua terra natal, um dos epicentros da imigração europeia e do projeto de branqueamento do país, o poeta catarinense vai para o Rio de Janeiro em 1888, onde terá uma vida proissional instável. Em 1893 casa-se com a negra Gavita Rosa Gonçalves, com a qual terá quatro ilhos. A família atravessará imensas diiculdades inanceiras e problemas de saúde. Gavita enlouquece após o nascimento do segundo ilho. Trabalhando em condições insalubres na Estrada de Ferro da Central do Brasil, em Minas Gerais, Cruz e Sousa contrai a tuberculose que lhe retirará a vida em 1898, bem como a vida de todos os seus ilhos.7 Impossível detalhar aqui a existência repleta de infortúnios de um autor cuja obra, assim como a de Luiz Gama ou de Lima Barreto, é o seu principal legado. Com a publicação de Broquéis (1893), o poeta, também conhecido como “Cisne Negro”, funda o simbolismo no Brasil [ver glossário]. Segundo o crítico e historiador Alfredo Bosi, “nada se compara em força e originalidade à irrupção dos Broquéis, com que Cruz e Sousa renova a expressão poética em língua portuguesa (...) sua linguagem foi revolucionária de tal forma que os traços parnasianos mantidos acabam por integrar-se num código verbal novo e remeter a signiicados igualmente novos” (BOSI: 2010). Nesta coletânea, inclui-se o poema “Violões que choram”, contendo versos dos mais surpreendentes da poesia brasileira, que provocam efeitos de rara sonoridade (leia em voz alta para “ouvi-la”): Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. (...)8 7 João da Cruz e Sousa, “O Padre”. In: Tropos e Fantasias (com Virgílio Várzea), 1885. 8 Ver nas referências o site contendo a obra poética integral de Cruz e Sousa. 114 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Porém, as angústias do indivíduo que vê seu gênio tolhido pelos obstáculos colocados pelo pensamento racista que permeia tanto a sociedade, bem como os meios literários ao qual tentou em vão se integrar, manifestam-se no “Emparedado”, um poema em prosa, gênero do qual Cruz e Sousa foi um dos introdutores no Brasil. Do texto, longo, apresentamos alguns trechos mais expressivos, no qual você poderá identiicar alguns dos temas que caracterizam a expressão de um sujeito étnico negro (“pigmento”, “a cor da minha forma, do meu sentir”), a preconceito contra a África e os africanos (“Tu és dos de Cam...”) bem como a ideologia de superioridade branca (“raças do ouro e da aurora”, “arianos”...), com fundamento cientíicos (“Ciências e Críticas”), a solidão e a angústia da negação da arte realizada por um negro: Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento icam alguns mais rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria ininita, esmagadora, irrevogável! Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre? (...) E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores enervantes, (...) uma voz ignota, que parece vir do fundo da Imaginação ou (...) dos mistérios da Noite — talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me: — “Tu és dos de Cam9, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oiciais dos meios convencionalmente ilustres! (...) Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! (...) Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa lagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas! 9 Lenda bíblica, contida no livro de Gênese (9:27), segundo a qual Cam, filho de Noé, um dia viu seu pai nu e este amaldiçoou o filho de Cam, Canaã, que deveria ser o mais inferior dos servos de seus próprios irmãos, ser marcado com a cor escura e condenado a errar pelas regiões tórridas do que hoje corresponde à África. Esta seria, pois, a origem da raça negra, nascida da maldição de Cam e de seus descendentes. 115 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, alito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto... Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta ediicação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça. E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríicas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...10 Este texto é uma profunda lamentação sobre a melancolia e a perplexidade, lúcidas, porém, sobre as identidades de Poeta/Negro/Artista que então pareciam inconciliáveis. Mais do que sentimento, a constatação destes aprisionadores limites se tornaram uma metáfora para muitos poetas negros que se seguiram a Cruz e Sousa. O “Emparedado” pode ser considerado uma espécie de testamento do homem e do poeta, cuja vida mergulhada em misérias não impediu sua alma de viver mergulhada na Arte. Referências Bibliográficas BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2010. CRUZ E SOUSA, João da. “O padre”. In: Tropos e Fantasias (com Virgílio Várzea), 1885. Disponível em: http://pt.wikisource.org/wiki/O_padre (acesso em 01/12/2014). Produção poética integral de João da Cruz e Sousa. Disponível no Portal Literafro: http://www. portalsaofrancisco.com.br/alfa/cruz-e-souza/obras.php (acesso em 01/12/2014) 10 Texto integral disponível em : www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet222a.htm 01/12/2014) 116 (acesso em Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Glossário Parnasianismo = corrente poética, surgida na segunda metade do século XIX na França, em reação aos lirismo e sentimentalismo exaltados no período romântico; cultiva a objetividade, a arte pela arte, a perfeição formal. O principal representante no Brasil é Olavo Bilac. Simbolismo = movimento literário e artístico, também surgido no inal do século XIX na França, em reação às correntes do Realismo e Parnasianismo. Cultua-se a expressão do sujeito (“eu”), e visão subjetiva, simbólica, espiritual e transcendente do mundo. A obra de arte resultaria não da reprodução da realidade, mas da combinação subjetiva de sentimentos e de pensamentos, de iguras e de formas próprias. O principal representante no Brasil é Cruz e Sousa. Poema em prosa = obra em prosa, análoga a um poema pela inspiração, pelos temas e pelo estilo, embora tenha estrutura da prosa (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). Lima Barreto: retratos do preconceito racial na capital da República O jornalista e escritor Lima Barreto é sobretudo conhecido como o autor de Triste im de Policarpo Quaresma (1911), obra sempre presente nas listas dos vestibulares e que também já inspirou o cinema e o teatro. Algumas pessoas talvez nem adivinhem que se tratava de um “homem de cor”, condição que permeou sua obra e sua vida que, sob alguns aspectos, assemelhou-se à de Cruz e Sousa, conforme observou o crítico e historiador Alfredo Bosi em Literatura e Resistência (2002): “Para as convenções da história literária não há relação consistente entre Cruz e Sousa e Lima Barreto. O primeiro é simbolista, o segundo é narrador realista. Dois gêneros, dois estilos diferentes (...) No entanto, há um io existencial que os une e lhes dá um parentesco bem próximo. Em ambos, ouve-se o protesto do negro e do mulato batendo na mesma tecla: as expectativas despertadas na adolescência pelo talento precoce de ambos foram desmentidas duramente no ingresso na juventude por força do preconceito de cor.” (BOSI, 2002: 186) Com efeito, o carioca Afonso Henriques de Lima Barreto nasce numa data que parece ironia : uma segunda-feira 13 de maio de 1881, sete anos antes da Abolição. Sua vida foi marcada por fracassos, decadência e projetos abortados: entrou para a difícil e elitista (leia-se, branca) Escola Politécnica do Rio de Janeiro que precisou abandonar ante de obter o diploma que garantiria a ele, arrimo de família, um trabalho digno; nunca foi promovido ou alcançou algo melhor do que um trabalho inexpressivo numa repartição pública; por três vezes, a Academia Brasileira de Letras recusou a candidatura daquele escritor mulato, suburbano, mal-ajambrado e alcoólatra. Muitos projetos de obras sequer saíram do papel ou não foram completados, como o inacabado romance Clara dos Anjos, publicado postumamente. 117 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Uma de suas avós era uma escrava alforriada. Seus pais eram ambos “mulatos”. A mãe, professora, falece quando ele tinha sete anos, provocando a primeira catástrofe familiar. Seu pai, homem culto, era tipógrafo. Assim como Cruz e Sousa, Lima Barreto também icaria exposto à loucura por longos anos em seu cotidiano, assistindo às alucinações do pai que, segundo ele, enlouqueceu da noite para o dia. A situação material difícil o faria renunciar a projetos de casamento. Por causa da bebida e frequentes crises de depressão foi internado algumas vezes num hospício, experiência na qual se baseou para escrever O cemitério dos vivos. O escritor Oswaldo de Camargo airmou em O negro escrito que Lima Barreto foi “o romancista brasileiro do começo do século XX que mais olhou a si mesmo para escrever” (CAMARGO, 1987:68) e ele o fez tanto em obras de caráter confessional, em primeira pessoa, como o Diário Íntimo, quanto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, seu primeiro romance, publicado em 1909. Seria impossível, embora tentador, apresentarmos a você a extensa obra de Lima Barreto. O pouco que mencionamos aqui, pode e deve ser acessado, na medida de seu interesse, como já dissemos, no valiosíssimo Portal Literafro, e isso vale para o conjunto de escritores apresentados. Ao contrário dos romances, uma obra tem sido proporcionalmente, àqueles, menos estudada, suscitando interesse acadêmico bem mais recente. No entanto, através dela descobrimos a voz próprio Lima Barreto, uma vez que ela constitui o que chamamos de “escrita de si”, obras em primeira pessoa, como por exemplo as autobiograias, memórias, cartas, etc. Estamos falando do Diário Íntimo (D.I.), que cobre um período de 1903 a 1921, obra de conteúdo bastante variado (fatos pessoais, desabafos, pensamentos e opiniões, inquietações e desabafos, impressões e notas de leitura, esboços e ideias para escritos, comentários e críticas sobre a vida literária, etc...). De cara, nas primeiras linhas, o autor apresenta-se assim: Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou ilho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua inluência na nossa nacionalidade. (BARRETO, 1956: 33) Nesta obra, pouco conhecida, mas através da qual alora a identidade do “eu” marcado pela sua condição racial, Lima relata as situações que ele próprio vivia numa sociedade “teoricamente” republicana, porém ainda impregnada dos comportamentos herdados do regime anterior, que perpetuavam as relações desiguais e hierarquizadas entre negros e brancos, inclusive os pertencentes às camadas mais simples. Em 1902, prestou um concurso para um cargo no Ministério da Guerra, onde passava sempre pela humilhação de ser confundido com um subalterno, e o esforço interior para suportar, e tentar superar, o que era sentido como uma violência emocional, mesmo descrita com ironia: Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, causou-me reparo. Ia eu pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim, inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a cousa feriu-me tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue frio para que não desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em tomar-me como tal (...) Por que então essa gente continua a querer-me contínuo, por quê? 118 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Porque....o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo (...) Quando me julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo. (Diário Íntimo, op. cit, p. 51-52) Lima Barreto, cuja fama de alcoólatra e depressivo o perseguiu mesmo depois de sua morte, manifestava em sua prosa realista uma lucidez incomum. No diário, as pessoas despejam pensamentos e inquietações que talvez não ousem compartilhar. Assim, no D.I., encontramos um homem atento e inconformado com as teorias raciais, em seus raciocínios tortos sobre os negros, raciocínios que o autor, ex-aluno de engenharia, buscava desconstruir, como se lê nas seguintes anotações, de teor ainda atualíssimo : Os negros izeram a unidade do Brasil. (…) Os negros, quando ninguém se preocupava em arte no Brasil eram os únicos (...). Os produtos intelectuais negros e mulatos, e brancos, não são extraordinários, mas se equivalem, quer os brancos venham de portugueses, quer venham de outros países. Os negros diferenciam o Brasil e mantêm sua independência, porquanto estão certos que em outro lugar não têm pátria (…) A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori (…) Se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto à inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, porque excomungará o negro?11 A maior parte dos romances sociais de Lima Barreto, que teve intensa atuação como jornalista, há muitos elementos autobiográicos, em particular Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), o primeiro livro do autor, no qual faz retrato ácido das redações dos jornais, fogueira de vaidades, e da vida literária carioca, durante a Primeira República. O livro é escrito em forma de memórias e acaba constituindo-se numa denúncia da difícil e solitária ascensão social do negro no Brasil. 11 O autor alude aqui a uma teoria muito em voga, desde o século XIX, segundo a qual haveria uma relação direta entre o tamanho do crânio e capacidade intelectual; as diferenças se dariam no plano das raças. Buscouse demonstrar que os negros tinham crânios menores, comparáveis aos dos maçados, o que fundamentaria sua inferioridade na hierarquização das raças. 119 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Homem culto, como seu autor, Isaías comenta o efeito da maneira como era chamado – “mulatinho”, “pretinho” – na sua infância, na escola: Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artiicial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada. Quando você acessar os documentos do Portal Literafro sobre o autor e “Guia de leitura” deste romance (ver referências), talvez se dê conta de que, menos do que aniquilar, a “bofetada” sentida por Isaías lhe tenha servido para um “despertar”. Pois como apontaram alguns, Recordações... pode ser entendido como um romance das ilusões perdidas, ilusões que alimentaram os sonhos de liberdade e igualdade e dos negros e escravos, que o pós-abolição e a república não realizaram. Assim como nasceu ironicamente num dia 13 de maio, Lima Barreto faleceu, ironicamente, em 1922, ano do surgimento do Modernismo brasileiro. Seu realismo social prenuncia os grandes romances sociais produzidos a partir dos anos 1930. A sua consciência étnica, os temas, a perspectiva e a voz que introduz em seus romances fazem dele um exemplo e uma referência reivindicada pelos autores negros. Porém, como veremos, a poesia é o gênero mais frequente na literatura negra, não havendo continuadores de Lima Barreto no campo da icção. Esperamos que você tenha se compreendido a riqueza, profundidade e extensão da obra destes reconhecidos precursores da literatura negra, apresentados até aqui, cujo conhecimento é uma passagem obrigatória para abordar, ainda que sucintamente, os autores seguintes, cujo número aumentará progressivamente até a atualidade. Referências Bibliográficas BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956. CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oicial, 1987. Guia de leitura de Recordação do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto (Companhia das Letras). Disponível em : www.companhiadasletras.com.br/guia_leitura/85012.pdf (acesso em 01/12/2014) Portal Literafro. Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro/ (acesso em 01/12/2014) 120 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Solano Trindade: cantando ao seu povo, na esteira da Negritude. Menino pobre, nascido no Recife em 24 de julho de 1908, ilho de operários, o poeta, pintor, teatrólogo, ator, folclorista, fundador de organizações negras, agente cultural Solano Trindade, cuja arte se marcou pela forte sensibilidade socialista, assim se deinia: “Agrada-me ser chamado de poeta negro, poeta do povo, poeta popular. Isso me dá uma consciência exata do meu papel na defesa das tradições culturais do meu povo, na luta por um mundo melhor.”12 Depois de deixar a marca de sua atuação no seu estado natal, sua trajetória o fez circular em boa parte do Brasil, antes de aportar no Embu das Artes, em São Paulo, no início dos anos 1960, onde hoje funciona uma de suas heranças, o Teatro Popular Solano Trindade, e onde vivem seus descendentes. Nos anos 1920, lança seus primeiros poemas, de inspiração mística, e a partir dos anos 1930, destaca-se na militância política, social e racial, tendo sido foi um dos organizadores dos I e II Congressos Afro-Brasileiros, em Recife e em Salvador (1934 e 1937, respectivamente), do qual participou grande parte da intelectualidade brasileira negra e branca. Em 1936, publicou seu primeiro livro – Poemas negros – cujo título anuncia a orientação temática e construção poética. Como você deve se lembrar, por essa data ainda não havia sido fundado o movimento estético e político da Negritude, nascido na França no inal dos anos 1930. Mais tarde, a partir de obras publicadas a partir dos anos 1940, Solano será considerado o primeiro poeta da “Negritude” brasileira. Visionário, em 1936, fundou no Recife a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira, voltado para a divulgação “do trabalho dos poetas e pintores negros”, através de uma conscientização pacíica e pedagógica, como parte do processo para transformar as relações sociais e raciais e colocar a todos em pé de igualdade. O programa do Centro encerra ideias de airmação identitária, chamando à conciliação, presentes na poesia de Solano e na missão redentora que abraçara : “Não faremos lutas de raças, porém ensinaremos aos nossos irmãos negros que não há raça superior nem inferior, e o que faz distinguir uns dos outros é o desenvolvimento cultural. São anseios legítimos, a que ninguém de boa fé poderá recusar cooperação.”13 12 Apud Literatura e Afrodescendência..., op. cit., vol 1, p. 389. 13 Ibidem, p. 392. 121 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Vê-se, pois, o empenho do poeta em reverter uma ideologia herdada do século anterior e contribuir para a valorização e a autoestima do povo negro. A intensa relação de Solano Trindade com o teatro, por quase trinta anos, não caberia aqui, mas pode ser por você melhor conhecida a partir das informações contidas no Portal Literafro. Assim como sua poesia, também se voltava para iniciativas que colocavam atores, autores e diretores negros em destaque. Em 1945, integra o histórico e pioneiro Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento; em 1949, participa do Teatro Folclórico Brasileiro, antes de fundar em 1950 o Teatro Popular Brasileiro, cujo elenco era formado por “domésticas, operários, estudantes e comerciários” e os espetáculos apresentavam diversas ritmos e danças folclóricos, de origem africana, como os batuques, lundus, congadas, cocos, capoeiras, maracatus, candomblé, etc. No ano de 1955, realizou a primeira montagem da peça de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, antes de ser transposta para o cinema. Assim como aconteceria com Oswaldo de Camargo, que estudaremos adiante, Solano Trindade era amigo de muitos intelectuais brancos, como Graciliano Ramos, Abílio Machado, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Milliet, Santa Rosa, entre outros (MARTINS, 2011: 396). Envolvido em vários movimentos, políticos e artísticos dos anos 1940-1950, o poeta recifense captou e esteve entre os fundadores de um novo discurso dos Negros sobre sua própria condição no período posterior à ditadura de Getúlio Vargas. Ele lança os elementos de uma nova poética negra, fornecendo códigos, valores e mitos, bem como uma autorrepresentação étnica positiva, para que pessoas da mesma classe e mesma raça se solidarizem e irmanem sua voz dos negros brasileiros à dos negros de outros espaços. Em sua principal obra, Cantares ao meu povo (1961), Solano dialoga, de forma quase explícita com Langston Hugues, representante da Harlem Renaissance e autor do poema I, too, am America, já mencionado anteriormente, bem como com seu “irmão de Cuba”, Nicolas Guillén (1902-1989), a quem dedica um longo poema. O engajamento marxista destes reforça em Solano o sentimento de pertencer à “América”, por cujo continente jorra o “sangue” e “geme” a alma africanos, sentimento que, universalizante, extrapola as fronteiras de um único país: América eu também sou teu amigo há na minh’alma de poeta um grande amor por ti corre em mim sangue do negro que ajudou na tua construção (...) (“América, eu também sou teu amigo”, Cantares ao meu povo) Geme na minh’alma A alma do Congo Do Níger, da Guiné De toda África, enim A alma da América A alma Universal (“Quem tá gemendo?, Cantares ao meu povo) 122 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Um dos projetos de Solano era fazer com que os negros resgatassem sua própria história, invertendo a narrativa e as criações dos mitos da História oicial. Assim, o poeta se faz porta-voz de um povo e faz a louvação dos Palmares e do herói Zumbi : Eu a to aos pal ares odia do opressores de todos os povos de todas as raças e ão fe hada o tra todas as ra ias ... O opressor ão pôde fe har a e altratar i ha o a eu orpo eu poe a é cantado através dos séculos minha musa esclarece as consciências Zumbi foi redimido (“Canto aos Palmares”, Cantares ao meu povo) O mesmo processo de inversão positiva da História, anulando séculos de negação e rejeição, é também o que se lê abaixo no poema “Navio Negreiro”, mesmo título do célebre poema de Castro Alves, mas numa perspectiva que, mesmo ao relembrar o sofrimento, relembra também toda riqueza trazida pelos africanos às Américas e a força com a qual aliaram “resistência” a “inteligência”: Lá vem o navio negreiro cheio de melancolia, lá vem o navio negreiro cheinho de poesia... (...) lá vem o navio negreiro com carga de resistência lá vem o navio negreiro cheinho de inteligência (...) Solano Trindade faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1974, e em 1976, foi tema do enredo da Escola de Samba Vai-Vai, em São Paulo. 123 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Sobre ele, o crítico e professor Zenir Campos Reis, escreveu: “A poesia de Solano Trindade foi feita para ser declamada, e não para a leitura silenciosa. Ela carece do suporte da voz e do gesto na expressão corporal. É poesia destinada ao espaço público, a tribuna e o palco”14. Para concluir, esta apresentação, deixamos aqui a sugestão para que você descubra um de seus agora mais conhecidos (e longos) poemas – “Tem gente com fome”, musicado por João Ricardo e gravado por Ney Matogrosso em 1979. Referências Bibliográficas MARTINS, Leda Maria. “Solano Trindade”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol 1, pp. 389-415. TRINDADE, Solano. Tem gente com fome e outros poemas. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Ministério da Cultura/ Sindicato dos escritores, 1988. Portal Literafro. Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro/ (acesso em 01/12/2014) Vídeos Heróis de todo mundo – Solano Trindade. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=JEvVPDn6umI acesso em 01/12/2014) “Tem gente com fome”, interpretado por Ney Matogrosso. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=I5FUX3e089I (acesso em 01/12/2014) 14 Apud Oswaldo de Camargo. Solano Trindade, poeta do povo. Aproximações. São Paulo: Com-Arte, 2009 (fonte não mencionada). 124 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Escritores e escritoras contemporâneos Oswaldo de Camargo, (Bragança Paulista, 1936 - ): Elo de gerações O escritor, jornalista, ensaísta e militante da literatura negra, conforme ele mesmo se deine, Camargo é hoje, neste contexto literário, o principal autor vivo. Em entrevista exclusiva a Ligia Fonseca Ferreira (ver referências), ele retraça momentos mais marcantes de sua vida: a infância em Bragança Paulista, onde seus pais eram apanhadores de café, os dilemas e preconceitos vividos dentro do seminário, a religiosidade católica, a formação musical erudita, a chegada a São Paulo nos anos 1950, a participação nas associações negras, a convivência com lideranças negras das décadas de 1920-1930, as relações com escritores e intelectuais brancos, a atuação na imprensa, a formação e o início como escritor, leituras e autores preferidos, as exigências desta vocação, a amizade e o papel de mentor para com escritores mais jovens e participação como fundador do coletivo Quilombhoje e dos Cadernos Negros, etc. O escritor é hoje reverenciado como o mais importante “elo entre gerações” da atualidade. Autor de obras de poesia e de icção, e circulando entre o mundo negro e branco (este, particularmente no plano intelectual), Camargo transporta para vários textos os dilemas causados por um certo “hibridismo cultural”, conforme aponta Zilá Bernd: “de um lado, suas raízes africanas e os elementos culturais ligados a esta ancestralidade pulsam dentro dele, lembrando-lhe sua origem; de outro, o apelo cultural do mundo branco e dos valores morais do ocidente não deixam de exercer um enorme fascínio. Temos como resultado, a criação de um universo poético, onde a utilização de farta simbologia, revela o dilaceramento do poeta entre os dois mundos de que se sente partícipe ( BERND, 1992: 64). Assim, ele busca conciliar essa cisão interior e exteriormente, muito embora persista a sensação de deslocamento no mundo do Outro. Este é o tema de um de seus mais emblemáticos poemas – “O estranho” (ver referências), no qual o poeta se rebela contra a ameaça de sua “cor” lhe ser roubada ou negada, e sem esta, perde sua identidade, não para si, mas para Outro, entre ironias e máscaras. A amargura não se converte em rancor e o “estranho” convida à comunhão e se dispõe a fechar os olhos ao desprezo e ao esquecimento ao qual os “senhores” (mundo dos brancos) o coninaram: 125 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Se o escuro me relevais à baça pele que ofusca vossa estimada clareza, também vos deixo por nada o enxurro de tantos medos nas vossas mentes liriais. Os vossos doces punhais aceito-os com meu disfarce e atrás do muro de um riso escondo meu pensamento... (...) Senhores, vós não sabeis quem sou! (...) notai-me o passo, eis que aturo a estreiteza da senda que vosso mundo traçou Vinde, provai do meu pão! (...) No vosso rosto percebo enojo ao que vos oferto... (...) A noite sentada à mesa É bem conhecida minha... Eu vos convidei, senhores! Provai, provai do meu pão! Fazendo da sua uma memória coletiva, Camargo também se aplica em desconstruir versões da História oicial; assim como Solano Trindade se voltou para a igura de Zumbi dos Palmares, Camargo medita, numa perspectiva grave e nada festiva do descendente de escravo, sobre a ilusória abolição, cético em relação aos louvores de uma Liberdade antiga, vazia e frágil, imposta pelas “mãos de mando”, mas bem diferente da Liberdade “menina”, alimentando as expectativas dos negros ainda hoje : 126 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Já não há mais razão para chamar as lembranças e mostrá-las ao povo em maio. Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam o sentido do que sonhamos. Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça, e desce às praças das bocas entreabertas e começa: “Outrora, nas senzalas, os senhores...” Mas a Liberdade que desce à praça nos meados de maio, pedindo rumores, É uma senhora esquálida, seca, desvalida e nada sabe de nossa vida. A Liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada no ombro dos moleques e se esconde no peito, em fogo, dos que jamais irão à praça. Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes e seu grito: “bendita Liberdade!” E ela sorri e se orgulha, de verdade, do muito que tem feito (“Em maio”, O Estado de S. Paulo, 25/01/1987) Por volta dos centenário da abolição, a crítica ao treze de maio retornaria nos textos de outros poetas, como o gaúcho Oliveira Silveira (1941-2009): “Treze de maio traição/ liberdade sem asas/ e fome sem pão (...) os brancos não izeram mais / que meia obrigação”15. Camargo se lança como iccionista em 1972 com o livro de contos O Carro do êxito, no qual pinta a nova “sociedade”, uma burguesia negra emergente na cidade de São Paulo, bem como cenas diversas como os bares onde se discute o futuro da “raça”, se relatam as peripécias de um repórter da imprensa negra, que talvez merecesse uma comparação com o personagem Isaías Caminha, de Lima Barreto. Para Camargo, seus contos são uma tentativa, sementes para a criação de um regionalismo urbano negro na prosa de icção. 15 Oliveira Silveira. “Treze de maio”. In: Razão da Chama..., op. cit., p. 62. 127 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Ultimamente alguns de seus livros tem sido reeditados em versões corrigidas e aumentadas, como A descoberta do frio (novela), primeira edição em 1979 e a segunda em 2011. O autor acaba também de lançar a novela inédita Oboé (2014), com visíveis elementos autobiográicos, cujo resultado é a prosa talvez mais aiada e ainada do autor. Segundo a prefaciadora, “[p]ercebem-se, nas histórias narradas, como vestígios, semelhanças entre fragmentos da vivência e experiências do narrador com as do próprio escritor (...) Assim, a memória do texto tinge-se também de história.” Por im, desde o inal dos anos 1950 até o presente, Camargo tem desempenhado um papel fundamental para a constituição de um campo especíico e legitimação da literatura negra. Além de seus livros de poesias, contos e novelas, isso se deve à atuação como jornalista em grandes órgãos da imprensa paulista (O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde) e na imprensa negra, à participação de iniciativas como a fundação dos Cadernos Negros, à organização de antologias como a Razão da Chama e ao lançamento de O negro escrito, o primeiro livro, hoje esgotado, a fornecer um panorama histórico da produção de escritores negros brasileiros. Seria impossível detalhar aqui a relação completa das obras e demais escritos de Oswaldo de Camargo, relação que afortunadamente se encontra detalhada no Portal Literafro. Alguns de seus textos foram publicados em antologias no exterior como a Nouvelle Somme de Poésie du Monde Noir [Nova Soma de Poesia do Mundo Negro], organizada por Léon G. Damas (Revista Présence Africaine, n. 57, Paris, 1966) e Schwarze Poesie / Poesia Negra (edição bilíngue), organizada por Moema P. Augel, da Universidade de Bielefeld (Alemanha). O autor mantém ainda um blog com informações relativas a suas atividades e disponibilização de escritos mais antigos e recentes (ver referências). Referências Bibliográficas BERND, Zilá. Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre: AGE: IEL: IGEL, 1992. FERREIRA, Ligia Fonseca. “Entrevista com Oswaldo de Camargo”. In: Via Atlântica, n. 18, Dez. 2010, p. 103-120. Disponível em: www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50745 (acesso em 01/12/2014) CAMARGO, Oswaldo. O carro do êxito. __________. “O estranho (poema)”. In: Via Atlântica, n. 18, Dez. 2010, p. 121-122. Disponível em: www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50746/54852 (acesso em 01/12/2014) __________. A descoberta do frio (novela). Prefácio de Clovis Moura. São Paulo: Ateliê editorial, 2011. _______________. Oboé (novela). Prefácio Leda Maria Martins. São Paulo: Com.Arte, 2014. Portal Literafro. Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro/ (acesso em 01/12/2014) 128 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Webgrafia Blog do escritor. Disponível em: oswaldodecamargo.blogspot.com.br (acesso 01/12/2014) Vídeos Entrevista com Oswaldo de Camargo. Salvador, 24/10/13. Disponível em : https://www. youtube.com/watch?v=HtNFfQuuINo (acesso em 01/12/2014) Cuti (Ourinhos, 1951- ): a cor e o corpo na escrita. Poeta, contista, dramaturgo e ensaísta, Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, e um dos fundadores do Quilombhoje e dos Cadernos Negros, é hoje um dos pilares da literatura negra brasileira, com uma obra expressiva tanto na criação quanto na crítica literária. Se o marxismo inspirou Solano Trindade e o catolicismo, Oswaldo de Camargo, Cuti, a exemplo de outros poetas surgidos no inal dos anos 1970 e início dos anos 1980, faz parte de uma geração desiludida com as ideologias redentoras. Não é mais tempo de espera, como diria a canção de Geraldo Vandré (“Vem vamos embora, que esperar não é fazer...”), mas de indignação e do protesto, que constituem uma forma de conhecimento bem como uma arma para desmontar a exclusão e o preconceito. Insistindo que a consciência dos negros deve despertar para seus próprios valores, a voz do poeta é uma voz coletiva e ele se dirige especiicamente para os “seus”, pressupondo ao longo de toda a sua obra o “leitor negro”, igura e intenção ausente do conjunto da literatura brasileira. Pode-se dizer que a obra de Cuti é atravessada pelas marcas da negrura e do “enfrentamento da questão racial” entre eu-nós negros x eles (brancos). Dessa forma, segundo Maria Nazareth S. Fonseca, “o escritor explicita os graves conlitos com que se deparam os afrodescendentes e os preconceitos que insistem em ressaltar no corpo negro os detalhes de uma diferença que faz da cor da pele, do tipo de cabelo, do desenho dos lábios e do nariz atributos de rejeição que a sociedade legitima”; logo este “corpo em diferença [afronta] as imagens [do] preconceito, restaurando com o ferro em brasa da exclusão as marcas produzidas (...) desde a escravidão” que se tornam verdadeiras armadilhas psicológicas para o sujeito (FONSECA, 2011:16), como se lê no poema “Ferro”: Primeiro o ferro marca a violência nas costas Depois o ferro alisa vergonha nos cabelos Na verdade o que se precisa é jogar o ferro fora é quebrar todos os elos dessa corrente de desesperos.16 16 In: Batuque de Tocaia. São Paulo: edição do autor, 1978. 129 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos ou ainda nas situações de violência – policial, social, histórica – internalizadas e que pesam, particularmente, sobre o homem negro: às vezes sou o policial que me suspeito me peço documentos e mesmo de posse deles me prendo e me dou porrada às vezes sou o porteiro não me deixando entrar em mim mesmo a não ser pela porta de serviço (...) um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto depois um imperador deposto a república de conchavos no coração e em seguida uma constituição que me promulgo a cada instante17 A cor e o corpo negros são temas recorrentes na obra de Cuti; mais do que a voz, eles têm uma signiicação em si, funcionam como símbolos e deinem a particularidade de uma enunciação e a própria identidade do sujeito. Do contrário, como reconheceríamos um(a) negro(a) se não for por seus traços físicos, traços dos quais é impossível se desfazer? Sabemos que um homem, com alguma engenhosidade pode se “disfarçar” de mulher, e vice-versa, exemplo que já nos deu a literatura brasileira na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, com o personagem Diadorim, encarnado numa minissérie de TV pela atriz Bruna Lombardi. Um poema de Cuti nos fala da cor e da pele ostentada, onde o orgulho se mancha da ironia e denúncia de uma libertação que não promoveu a igualdade: Minha bandeira minha pele Não me cabe hastear-me em dias de parada após um século da hipócrita liberdade vigiada minha bandeira minha pele Não vou enrolar-me, contudo e num canto acobertar-me de versos Minha bandeira minha pele (...)18 17 Poema “Quebranto”. In: Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. 18 Poema “Porto-me estandarte”. In: Sanga. Belo Horizonte: Mazza, 2002 130 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Dentre os escritores negros contemporâneos, Cuti também se distingue pela formação acadêmica e experiência crítica: em seu doutorado na Unicamp examinou em perspectiva comparada a obra de Lima Barreto e de Cruz e Sousa; mais recentemente, conforme já estudado anteriormente, Cuti também tem se voltado para a consolidação – teórica e crítica - do campo da literatura negra brasileira. No poema “Tradição”, o poeta registra, portanto, sua ailiação literária às vozes negras que considera como marcos de uma tradição ininterrupta na literatura brasileira, de Machado de Assis (um voz mais “escondida”) à vertente ultracontemporânea do “rap” (observe o jogo com a palavra “a-rap-iado” em lugar de “arrepiado”): Sob a vasta bigodeira de machado os lábios da raça escondidos acho a lâmina do riso e o discreto escracho em cruz ico muito à vontade para reunir setas de revolta angústia e cravos ensaio o arrombamento de portas com pé-de-cabra que me empresta com o deboche de sua risada o gama com o lima aio as facas entro na trama solano eu abraço no boi bumbado socialistado num salto a-rap-iado chego junto com os mano nossa vida muito tato e tutano19 19 In: Negroesia, op. cit. 131 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Pensando no seu peril e no contexto de sua atuação docente, uma obra de Cuti, na qual se dispôs a fazer “crítica social” bastante útil e, ao mesmo tempo, intrigante. Trata-se de Moreninho, Neguinho, Pretinho, publicado em 2009 na “Coleção Percepções da Diferença – Negros e Brancos na Escola”20. O autor faz uma relexão acerca dos nomes presentes no título e as formas como o racismo se manifesta por baixo desses apelidos depreciativos, que se substituem ao verdadeiro nome e acabam por reforçar a baixa autoestima das crianças negras. Focando o ambiente escolar, o ensaísta-poeta nos diz : No campo educacional, desfazer noções de intolerância, que ao longo dos anos foram introjetadas na mente das crianças, é a grande missão do professor. Qualquer conteúdo didático do currículo não supera a importância da ação de corrigir o rumo dos alunos. Professor é, sobretudo, professor de vida. Entretanto, surge a pergunta: como se pode ensinar o que não se sabe? Quando um professor, ele mesmo, costuma chamar ou referir-se a seus alunos empregando expressões como “moreninho”, “neguinho”, “pretinho”, ou outras variantes, é possível que ele exija um comportamento diferente de seus alunos? Serenamente, a resposta é: não! Superar seus próprios limites e diiculdades de relacionamento (e chamar alguém pela cor da pele ou traços étnicos é uma diiculdade, se não for uma doença) e fazer desse propósito evolutivo um constante aprendizado são o caminho dos que se pretendem felizes, e o professor, pela responsabilidade formadora que tem, não pode icar alheio a esse propósito. À sua volta, centenas de crianças estão aguardando as indicações que as municiem não apenas de conhecimento técnico, mas, sobretudo, humano, para seguirem em frente ousando sonhar. Evidentemente, o relacionamento entre elas é mediado pelo professor dentro da sala de aula. (...) Daí que, ao reconhecer o aluno pelo nome, o professor dá mostras de não apenas ter boa memória, mas, sobretudo, de ter espírito elevado, mais ainda se souber, além de guardar os nomes, decorá-los com bons adjetivos. Decorar é também colorir, enfeitar. E quando se trata de nome, o resultado é um sorriso que desabrocha no rosto de alguém que se sente valorizado e reconhecido. (p. 43 e 45) Da poesia aos contos, dos ensaios ao teatro, gênero raramente praticado pelos escritores negros, passando rapidamente pela literatura infanto-juvenil (A pelada peluda da bola, 1988), Cuti destaca-se hoje como autor de uma obra variada sob muitos aspectos, talvez a mais abundante dentre os escritores negros contemporâneos. Assim como Oswaldo de Camargo, Cuti mantém igualmente um site no qual disponibiliza vários textos presentes em suas diversas obras, entrevistas, pesquisas, etc (ver referências). 20 Obra integral disponível na internet (ver referências). 132 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Referências Bibliográficas CUTI. Moreninho, Neguinho, Pretinho. São Paulo : Terceira Margem, 2009 (Coleção Percepções da Diferença – Negros e Brancos na Escola). Disponível em: www.usp.br/neinb/wp-content/uploads/NEINB-USP-VOL-3.pdf (acesso em 01/12/2014) FONSECA, Maria Nazareth Soares. “Cuti”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 3, pp. 11-29. Portal Literafro. Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro/ (acesso em 01/12/2014) Webgrafia Site do escritor. Disponível em: www.cuti.com.br (acesso 01/12/2014) Vídeos Presença do escritor Cuti na Bienal do Livro de São Paulo, 2010. Disponível em : www.youtube.com/watch?v=VzxSEYNGABs (acesso em 01/12/2014) 133 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos A literatura negra na perspectiva feminina A esta altura da apresentação dos autores negros, talvez você já estivesse se perguntando se há autoras mulheres. Sim, elas existem e, a exemplo do que ocorre na produção literária em geral (não só a brasileira), também formam uma minoria. Nota-se que o levantamento realizado para a elaboração da obra Literatura e Afrodescendência: uma antologia crítica identiicou 25 mulheres num total de 100 escritores, no período de 150 anos. No entanto, trata-se de uma minoria que nos últimos anos tem contribuído para uma renovação da literatura negra, introduzindo novos temas, como as relações raça e gênero ou ainda as questões associadas à sobrevivência, à sexualidade, à maternidade, à família e às pressões psicológicas vividas tendo de lidar com todos esses desaios. Se, dentro da estrutura social brasileira, a mulher negra ocupa os níveis inferiores do ponto de vista econômico, social, cultural e proissional, sofrendo, portanto, maior preconceito e opressão, no campo da literatura, conforme vimos nas aulas iniciais, ela é vítima de forte estereótipos construídos desde o século XIX e reforçados pela democracia racial. Assim, as autoras negras, em sua maioria poetas e contistas, denunciam e contrapõem-se aos lugares a que foram coninadas dentro de uma sociedade brasileira dominantemente patriarcal, machista e branca, muitas vezes apontando o sexismo dentro do próprio campo da literatura negra contemporânea. Fazendo uma difícil seleção, gostaríamos de apresentar três poetas e contistas que têm se destacado no conjunto da produção literária enfocada nesta disciplina. O projeto comum é fazer ouvir a voz daquelas que, ainda mais do que os homens, foram silenciadas. Essas autoras acabam introduzindo, forçosamente, novos modelos como o ineditismo representado pelas mulheres que escrevem dentro da cultura brasileira, mas, principalmente, a subversão de imagens inscritas na prosa e na poesia brasileira (tanto do escritor branco quanto do escritor negro). Geni Guimarães (São Manuel, SP 1947- ) Lançou seu primeiro livro de poemas, Terceiro ilho, em 1979. No início dos anos 80, aproximou-se do grupo Quilombhoje e ao longo da década, destacou-se no circuito literário brasileiro. Em 1988, participou da IV Bienal Nestlé de Literatura dedicada ao Centenário da Abolição e publicou Leite do peito, pela Fundação Nestlé, volume de contos de caráter autobiográico, que registra a vivência de uma família negra em meio rural mas profundamente marcada por ideologias da sociedade branca. Em 1989, a novela infanto-juvenil A cor da ternura o prestigiado Prêmio Jabuti de Autor Revelação e o Prêmio Adolfo Aisen da Academia Brasileira de Letras, em 1992, sendo sua autora a única escritora negra a ganhar tais recompensas. Os próprios títulos dos livros mencionados, ínima parte da bibliograia que você pode consultar no Portal Literafro, já remetem a uma sensibilidade feminina. Em 1988, esteve na Alemanha, a convite da cidade de Colônia, ao lado de Oswaldo de Camargo e de Cuti. Em 1995, participou de dois encontros de escritores brasileiros na Áustria, ao lado de João Ubaldo 134 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Ribeiro, Marina Colasanti e, novamente, junto com os escritores negros Cuti, Míriam Alves e Conceição Evaristo. No texto poético de Geni Guimarães, encontramos uma enunciação que se exibe no “ser”, no “sangue” e no “corpo” feminino, este sendo uma fonte de conhecimento e valorização de si mesma, como se lê no poema “Integridade: Ser negra Na integridade Calma e morna dos dias Ser negra De carapinhas De dorso brilhante, De pés soltos nos caminhos(...) Ser negra De verso e reverso De choro e riso De verdades e mentiras Como todos os seres que habitam a terra. Negra Puro afro sangue negro Saindo aos jorros Por todos os poros. Assim, ao contrário da negra ou da mulata objeto sexual, mas cujas cor e outros atributos não “pegam”, Geni reconstrói seu corpo mas também seu próprio desejo, em busca do homem negro idealizado, que é preciso cativar, como no poema “Caça”: (...) Quero um homem De cama, De colo, De terra maciça. Quero um homem De beijo vadio, De longos caminhos, De peito pisado: Quero um negro. (...) Este é apresentado como reverso do homem branco (“esses homens”); falando através de uma 135 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos voz coletiva no poema “Esses homens”, o eu-lírico rememora a humilhação e ressentimento profundos que marcaram por séculos as mulheres negras desde a escravidão, resultando numa anti-celebração das origens da miscigenação no Brasil: Ah!...esses homens não batem nem pedem passagem. Esses homens me açoitam O negro da pele, (...) Esses homens me barram Me cortam os esquemas Me embromam de manso Me compram a pobreza Me dão pelo lance Um sorriso de esguelha Ah!... esses homens me acurralam em estupro invisível... Conforme aponta Moema P. Augel, nos poemas de Geni, “a correlação entre o racial, o sexual e o erótico é bastante estreita e se revela como uma estratégia estética pela qual sua posição independente e liberada desconstrói os estereótipos, por tanto tempo repetidos, dos corpos femininos negros colonizados. Sua fala se eleva efetuando uma inversão dos valores machistas associados à sensualidade agressiva e reiicante atribuída à mulata, sobretudo, e à mulher afrodescendente em geral” (AUGEL, 2011: 281). Além d’A Cor da Ternura, publicou ainda dois outros livros infanto-juvenis: A dona das folhas e O rádio de Gabriel. 136 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Míriam Alves (São Paulo, 1952- ) Publicou seus primeiros versos nos Cadernos Negros, em 1982. No ano seguinte, publicou seu primeiro livro, Momentos de busca, e incorporou-se ao grupo Quilombhoje, sendo a primeira do grupo a introduzir questões de gênero e a temática negro-história-raça numa perspectiva feminina. A memória da amarga travessia da África até o Brasil, e o “esquecimento” no qual são jogados os homens e, especialmente, as mulheres negras, se transmutam em força e atos de resistência, como evocam os belos versos de “Mar”: nos porões fétidos da história comi podridões Endoideci. Adoeci. Atiraram-me no mar do esquecimento agarrei-me às âncoras passadas-presentes cavalguei as ondas desemboquei rumo à vida. Resgatar imagens femininas faz autora reinterpretar algumas personagens míticas, como Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama, convertida em símbolos do feminismo negro mesmo sacriicando um pouco a verdade histórica21, ao longo das duas últimas décadas numa espécie de contraponto ao símbolo masculino de Zumbi: 21 Segundo João José Reis, o principal historiador da maior insurreição negra ocorrida na Bahia em 1835, a Revolta dos Malês, não há comprovação de que Luiza Mahin, mãe do escritor, advogado e jornalista Luiz Gama, tenha participado ou liderado o movimento. 137 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Ouve-se nos cantos a conspiração vozes baixas sussurram frases precisas escorre nos becos a lâmina das adagas Multidão tropeça nas pedras revolta há revoada de pássaros sussurro, sussurro: “- é amanhã, é amanhã. Mahin falou, é amanhã” A cidade toda se prepara Malês Bantus Geges Nagôs Vestes coloridas resguardam esperanças aguardam a luta Arma-se a grande derrubada branca a luta é tramada na língua dos Orixás “- é aminhã, aminhã” sussurram Malês Geges Bantus Nagôs “- é aminhã, Luiza Mahin falô” Míriam Alves é uma das raras escritoras a ter participado de vários projetos internacionais (palestras, cursos, edições bilíngues), especialmente nos Estados Unidos, onde co-organizou duas antologias bilíngües, Finally us: Contemporary Black Brazilian Women Writers [ Finalmente nós: escritoras negras brasileiras contemporâneas] (poemas), em 1995, e Women writing Afro-Brazilian Women’s Short Fiction [Mulheres escrevendo – Contos de mulheres afro-brasileiras] (contos), em 2005. A autora mantém um blog (ver referências), contendo informações atualizadas sobre suas obras e atividades. 138 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Conceição Evaristo (Belo Horizonte, 1946- ) A professora, pesquisadora e escritora mineira Conceição Evaristo, que, a exemplo de Miriam Alves, entrou para o coletivo Quilombhoje a partir dos anos 1990, tendo estreado na literatura nesse mesmo ano, com a publicação de seis poemas nos Cadernos Negros n. 13. Trata-se hoje de um dos nomes mais representativos da literatura negra feminina brasileira, contando com projeção no Brasil e no exterior. Suas obras têm integrado várias coletâneas nacionais – Quilombo de palavras, Vozes mulheres, O negro em versos – e estrangeiras, especialmente nos Estados Unidos. Trilhando igualmente a via acadêmica, como o fez Cuti, Conceição Evaristo dedicou-se a relexões sobre a literatura negra brasileira em seu mestrado e no doutorado, estudou as relações entre literatura negra brasileira e a produção literária africana de língua portuguesa. Assim, como ensaísta, seus trabalhos têm sido divulgados em periódicos nacionais e estrangeiros. Poeta, contista e iccionista, sua consagração se dá com a publicação do romance Ponciá Vivêncio (2003) que narra, numa prosa poética onde se entrecruzam memória individual e memória coletiva, a trajetória de uma descendente de escravos (Ponciá), da infância, na terra de seus antigos senhores, até a maturidade, na favela de uma grande metrópole. No sentido inverso das histórias de superação com inal feliz, no romance de Conceição Evaristo, cujas obras sempre retratam o cotidiano cruel dos excluídos, as perdas – terra, avô, pai, ilhos, esposo - são maiores que os ganhos. A própria identidade de Ponciá, que como muitos afrodescendentes vive no limiar da cidadania, é afetada pelo fato de portar o sobrenome – Vivêncio – do antigo dono de seus ancestrais. Um dia, ela retorna às terras do Coronel Vivêncio para contar a história de seu avô que enlouqueceu aos os ilhos serem vendidos após a Lei do Ventre Livre (1871), e também do pai que servia de brinquedo ao sinhozinho e era alijado do universo da leitura, do conhecimento mal visto pelos senhores, pois signiicavam autonomia e liberdade: Pajem do sinhô-moço, escravo do sinhô-moço, tudo do sinhô-moço, nada do sinhô-moço. Um dia o coronelzinho, que já sabia ler, icou curioso para ver se negro aprendia os sinais, as letras de branco e começou a ensinar o pai de Ponciá. O menino respondeu logo ao ensinamento do distraído mestre. Em pouco tempo reconhecia todas as letras. Quando sinhô-moço se certiicou que o negro aprendia, parou a brincadeira. Negro aprendia sim! Mas o que o negro ia fazer com o saber de branco? O pai de Ponciá Vicêncio, em matéria de livros e letras, nunca foi além daquele saber. Conceição Evaristo, portanto, deu forma ao conceito de “escrevivência” que utiliza para caracterizar sua produção textual, na qual se articulam vida, literatura e militância social, étnica e de gênero. 139 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Com a publicação de Ponciá Vivêncio, a autora contrariou a tese até então vigente de que a produção dos escritores negros se limitavam a poemas e narrativas breves (contos), como o demonstra Eduardo Assis Duarte: Em que consistiria esse romance? Se entendido como texto de autoria afrodescendente, tratando de tema vinculado à presença desse segmento nas relações sociais vividas no país, a partir de uma perspectiva identiicada politicamente com as demandas e com o universo cultural afro-brasileiro e destacando ainda o protagonismo negro nas ações, em especial aquelas em que se defronta com o poder e com seus donos, não há dúvida de que Ponciá Vicêncio não só preenche tais requisitos, como ocupa o lugar supostamente vazio do romance afro-brasileiro. No entanto, o texto de Conceição Evaristo não é exemplo único e tem, sim, seus precursores. Além de estabelecer um saudável contraponto com o abolicionismo branco do século XIX e com o negrismo modernista de um Jorge Amado, um José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá Vicêncio remete ao Isaías Caminha, de Lima Barreto; em menor escala, ao Brás Cubas, de Machado de Assis; e, com certeza, ao memorialismo de Carolina Maria de Jesus e ao Ai de vós, de Francisca Souza da Silva, entre outros. (DUARTE, 2006: 305). O romance de Evaristo já foi comparado, em importância, à Cor Púrpura (1982), da escritora norte-americana Alice Walker, obra que foi adaptada para o cinema em 1985 por Steven Spielberg. Registre-se, também, que a obra da autora tem sido objeto de estudos acadêmicos (seminários, dissertações, teses) no Brasil e, especialmente, no Estados Unidos, onde Ponciá Vivêncio já se encontra traduzido para o inglês e integra a bibliograia de cursos sobre literatura e cultura brasileiras de inúmeras universidades norte-americanas. No Brasil, a obra tem sido recomendada em vários vestibulares e nas bibliograias em vários estabelecimentos do ensino médio. Um fato recentíssimo nos permite fazer uma ponte com a observação de Paulo Colina em 1987, no prefácio ao Negro Escrito (ver aulas anteriores) com respeito à ausência de escritores negros em eventos nacionais e internacionais: num avanço tímido, quase trinta anos depois, registre-se que Conceição Evaristo é a única escritora negra integrante de uma lista de cerca de 50 escritores representantes do Brasil no Salão do Livro em Paris (março 2015). A autora mantém um blog (ver referências), contendo informações atualizadas sobre suas obras e atividades. 140 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Referências Bibliográficas AUGEL, Moema Parente. “Geni Guimarães”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol 2, pp. 273-291. DUARTE, Eduardo de Assis. “O Bildungsroman [romance de formação] afro-brasileiro de Conceição Evaristo”. In: Estudos Feministas, Florianópolis, n. 14, 2006, pp. 305-308. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v14n1/a17v14n1.pdf (acesso em 01/12/2015) Entrevista com Míriam Alves: um poema com muita pele. Revista Geni n. 5. Disponível em: revistageni.org/11/um-poema-com-muita-pele (acesso em 01/12/2014) Portal Literafro. Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro (acesso em 01/12/2014) Webgrafia Blog da escritora Mirian Alves. Disponível em: alvesescritorapoeta.blogspot.com.br (acesso em 01/12/2014) Blog da escritora Conceição Evaristo. Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot. com.br (acesso em 01/12/2014) Vídeos Geni Guimarães, A poesia que veio do campo. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=1hZS6vmqkcw (acesso em 01/12/2014) Conceição Evaristo, momentos em Nova Iorque. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=W2DgEX8fIHE (acesso em 01/12/2014) A escritora Conceição Evaristo fala sobre o negro na literatura brasileira. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=aBkym0dwUVI 141 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos Considerações finais Chegamos ao inal desta disciplina. Esperamos que os tópicos selecionados, longe de serem abrangentes, possam ter-lhe sido úteis para conhecer alguns aspectos de uma literatura negra brasileira tão pouco ou mal conhecida e reconhecida por sua riqueza e contribuições, num plano ético e estético, para a compreensão da cultura brasileira, ao longo dos últimos cento e vinte anos. Ainal, a literatura é, como outras artes, poderosa fonte de criação do imaginário social, além de oferecer um retrato da sociedade. Os debates e questionamentos em torno do tema perduram. E, como você pode observar, o coro dos escritores negros que buscam legitimar e chamar a atenção para esse rio subterrâneo que corre por debaixo da literatura nacional tenha sua razão de ser. Você sem dúvida deve se recordar de uma relexão do poeta Paulo Colina, citada num dos tópicos anteriores: “Por experiência, sei que toda vez que o negro escrito aparece em um debate, uma conferência, palestra, surgem, de pronto, as perguntas de rotina: “Mas, por que literatura negra? Existe?” Já se vão quase trinta anos desde que Colina fez este comentário, ou seja muito antes da criação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, mas surpreendentemente permanece atual, se pensarmos na polêmica levantada em 2013, por ocasião da Feira de Frankfurt (principal evento editorial do mundo realizado a cada dois anos na Alemanha) em que o Brasil fora escolhido como país homenageado. O governo brasileiro, através do MinC (Ministério da Cultura) elaborou uma lista de 70 escritores para representarem o país, dentre os quais apenas 1 negro (Paulo Lins) e 1 descendente de indígenas (Daniel Munduruku), fato que foi criticado, não pela mídia e intelectuais brasileiros, mas por um dos mais importantes jornais alemães, o Süddeutsche Zeitung. Por um lado, o responsável pela lista, o crítico Manuel da Costa Pinto, argumentou que “não se rendeu a critérios extraliterários” e que “não usamos cotas”; por outro lado, a então ministra da cultura, Marta Suplicy, respaldou Costa Pinto, reforçando que o critério para a composição da lista não foi “étnico” mas sim “estético”, acrescentando, talvez por desconhecer o campo da “literatura negra”, que “[talvez] num futuro teremos mais autores negros em um evento de grande porte como a Feira de Frankfurt”22. Como era de se esperar, o “ativismo literário” dos escritores negros não deixaria este fato passar em branco. Um dos mais recentes coletivos de escritores negros, o Ogun’s Toques, sediado na Bahia, não tardaria em lançar uma nota de repúdio que circulou em alguns órgãos de imprensa e nas redes sociais [ver referências]. O único escritor negro da lista, Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, declarou a um jornal brasileiro23 que a seleção dos escritores era “racista”, e revelava uma concepção de literatura errônea, ao excluir toda uma produção literária e escritores que eram simplesmente ignorados ou subestimados. PARA REFLETIR Mas o que isso tudo relete sobre a concepção de literatura e sobre a presença ou papel do negro na literatura nacional contemporânea? 22 Folha de São Paulo, 02/10/2013. 23 O Globo, 07/10/2013. 142 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Iniciamos esta disciplina apresentando um breve panorama da presença do negro na literatura brasileira no século XIX, presença abundante e complexa como personagem, num período, como já sabemos, em que são fortes tanto o peso da escravidão quanto o do preconceito na sociedade brasileira. Acreditamos, porém, que seria interessante encerrar esta disciplina, depois de termos estudado os conteúdos relativos à literatura negra, evocando um estudo que, em nossa opinião, fornece um contraponto interessante a um fenômeno presente na literatura (não-negra) brasileira atual e revelador de uma forte ideologia a ela subjacente. Uma ampla pesquisa sobre a personagem negra na literatura contemporânea, analisando 260 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas três principais editoras de icção (Companhia das Letras, Rocco e Record), aponta os seguintes dados: • 93% dos autores são brancos, em sua maioria homens, os demais não são identiicados; • na posição de protagonistas: 84,5% são brancos, 6%, negros, 6% mestiços; aqui também, observamos uma pirâmide invertida : a maioria dos protagonistas são homens brancos, a minoria, mulheres negras; • na posição de narradores : 87% são brancos, 3 % são negros, 4% são mestiços; • quanto à posição socio-econômica : a. os brancos são 92% da elite econômica; 88% classes médias; 52% pobres; b. os negros são 10% elite econômica; 16% classes médias; 74% pobres • quanto à ocupação proissional das personagens negras: Bandido, contraventor 20,4% Empregado(a) doméstico(a) 12,2% Escravo 9,2% Proissional do sexo 8,2% Estudante 5,1% Escritor 4,1% Professor 4,1% Tais números nos mostram que a literatura brasileira contemporânea não espelha minimamente os censos demográicos recentes, a composição e o peril socioeconômico da população brasileira hoje, como destoa dos discursos e programas oiciais. 143 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos especíicos A coordenadora da pesquisa, professora Regina Dal Castagnè, da Universidade de Brasília, embora se situe num lugar, por assim dizer, não comprometido com uma certa militância, acaba referendando o que os escritores negros têm denunciado, nos últimos quarenta anos, ou seja, os processos entranhados na sociedade brasileira, processos que têm relegado o negro à invizibilização, ao silenciamento, à estereotipação. Além disso, a pesquisadora nos alerta igualmente sobre as implicações “políticas” e, sobretudo “estéticas” produzidas por uma falta de representação dos negros na literatura brasileira, que não deveria ser, dentro das artes e da cultura, um mundo à parte: A literatura contemporânea relete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expresse, algumas características centrais da sociedade brasileira. É o caso da população negra, que séculos de racismo estrutural afastam dos espaços de poder e da produção de discurso” . (...) A ausência de personagens negros não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma vez que implica a redução da gama de possibilidades de representação (...) porque ser negro numa sociedade racista não é apenas ter outra cor, é ter outra perspectiva social, outra experiência de vida, normalmente marcada por alguma espécie de humilhação (...) essa experiência diferenciada [ainda] precisa ser legitimada em nossa literatura e em nossa sociedade. (DAL CASTAGNÈ, 2011: 309 e 322) A situação encontrada pela pesquisa, centrada em obras publicadas até 2004, dez anos depois, está longe de ter se modiicado. Contudo, esperamos que as instigantes conclusões da autora, somadas aos conhecimentos adquiridos nesta disciplina, possam alimentar novas relexões e produzir um novo olhar e uma nova escuta. E que estes se dirijam não apenas aos seus alunos, à sua prática e atividades em sala de aula, como também a sua experiência de vida em geral, permitindo-lhe agir para que a igualdade, de todos, em todos os níveis, seja fortalecida em nossa sociedade. GLOSSÁRIO Perspectiva social = Segundo este conceito, “pessoas posicionadas diferentemente na sociedade possuem experiência, história e conhecimento social diferentes, derivados desta posição”. Ou seja que, mesmo que se compreenda ou se solidarize, nunca viverão as mesmas “experiências de vida”, logo, enxergarão o mundo social o mundo social a partir de uma “perspectiva diferente” (Marion Young, Inclusion and Democracy [ Inclusão e Democracia] 2000). 144 Disciplina 7 - Cultura Afro-brasileira I: Literatura Negra Referências Bibliográficas DAL CASTAGNÈ, Regina. “A personagem negra na literatura contemporânea”. In: Literatura e Afrodescendência: antologia crítica. Eduardo A. Duarte (org). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 4, pp. 309-337. “Entrevista com Regina Dal Castagnè: Autora de pesquisa airma que a literatura é elitista”. Zero Hora, 24/02/2013. Disponível em: zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/02/autora-de-pesquisa-airma-que-literatura-e-elitista-4054476.html (acesso em 01/12/2014) “Entrevista com Regina Dal Castagnè: Radiograia da literatura brasileira.” In: Cândido. Revista eletrônica da biblioteca pública do Paraná, data da entrevista não informada. Disponível em: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=617 (acesso em 01/12/2014) “Nota de repúdio pela ausência de escritores negros brasileiros na Feira de Frankfurt”. Disponível em: www.buala.org/pt/mukanda/ausencia-de-escritores-negros-brasileiros-na-feira-de-literatura-de-frankfurt (acesso em 01/12/2014) “Paulo Lins diz que há racismo na lista da feira de Frankfurt”. O Globo, 07/10/2013. Disponível em: www.oglobo.com/cultura/paulo-lins-diz-que-ha-racismo-na-lista-da-feira-de-frankfurt-10280069 (acesso em 01/12/2014) 145 Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica Especialização em Política de promoção da igualdade racial na escola Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Autores: Ms. Renata Aparecida Felinto Dr. Salomão Jovino da Silva São Paulo | 2016 Presidenta da República Dilma Vana Roussef Vice-Presidente Michel Miguel Elias Temer Lulia Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro Universidade Federal de São paulo (UNIFESP) Reitora: Soraya Shoubi Smaili Vice Reitora: Valeria Petri Pró-Reitora de Graduação: Maria Angélica Pedra Minhoto Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa: Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni Pró-Reitora de Extensão: Florianita Coelho Braga Campos Secretário de Educação a Distância: Alberto Cebukin Comitê Gestor da Política Nacional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica - CONAFOR Presidente: Luiz Cláudio Costa Coordenação geral do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica - COMFOR Coordenadora: Celia Maria Benedicto Giglio Coordenação de Produção e Desenho Instrucional Felipe Vieira Pacheco Coordenação de Tecnologia da informação Daniel Lico dos Anjos Afonso Secretaria de Educação Básica - SEB Secretário: Manuel Palacios da Cunha e Melo Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão SECADI Vice-Coordenadora: Romilda Fernández Felisbino Coordenação pedagógica do curso Coordenador: José Carlos Gomes da Silva Secretário: Paulo Gabriel Soledade Nacif Vice-Coordenadora: Melvina Afra Mendes de Araújo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE Coordenação de ead Izabel Patrícia Meister Presidente: Antonio Idilvan de Lima Alencar Paula Carolei Fundação de Apoio à Universidade Federal de São Paulo - Fap-Unifesp Rita Maria Lino Tárcia Valéria Sperduti Lima Diretora Presidente: Anita Hilda Straus Takahashi produção Secretaria Tecnologia da informação Eduardo Eiji Ono Bruna Franklin Calixto da Silva Marlene Sakumoto Akiyama Daniel Gongora Fabrício Sawczen João Luiz Gaspar Marcelo da Silva Franco Margeci Leal de Freitas Alves Mayra Bezerra de Sousa Volpato Sandro Takeshi Munakata da Silva Tiago Paes de Lira Valéria Gomes Bastos Adriana Pereira Vicente Clelma Aparecida Jacyntho Bittar Janaina Gomes Reis Bezerra Tatiana Nunes Maldonado Suporte técnico Enzo Delorence Di Santo André Alberto do Prado Nilton Gomes Furtado Rodrigo Santin Rogério Alves Lourenço Sidnei de Cerqueira Vicente Medeiros da Silva Costa João Alfredo Pacheco de Lima Rafael Camara Bifulco Ferrer Vanessa Itacaramby Pardim Edição, Distribuição e Informações Universidade Federal de São Paulo - Pró-Reitoria de Extensão Rua Sena Madureira, 1500 - Vila Mariana - CEP 04021-001 - SP http://comfor.unifesp.br Copyright 2015 Todos os direitos de reprodução são reservados à Universidade Federal de São Paulo. É permitida a reprodução parcial ou total desta publicação, desde que citada a fonte Introdução Artes Negras ou somente Arte? Qual seria a melhor maneira de categorizarmos esse labor sensível produzido por mulheres e homens negros do Brasil ao longo dos séculos, em contextos opressores e desfavoráveis? Chamar de Artes Negras restringiria a compreensão dessa produção, que constitui um corpo expressivo e de relevância inegável? Por exemplo, nas Artes Visuais, as características do Barroco brasileiro o distinguem do movimento desenvolvido na Europa, pois aqui adquiriu outras cores, formas e conteúdos. Se considerarmos somente uma visão de História Universal da Arte, na qual a origem social e étnica dos criadores são omitidas, tenderíamos a eclipsar o protagonismo desses artistas não brancos e hiper valorizar as concepções estéticas de matrizes ocidentais e europeias. Com inalidade didática, mas ainada com uma perspectiva política, podemos deinir por Artes Negras as produções estéticas realizadas no Brasil por descendentes de africanos que podem ou não colocar em evidência elementos de matrizes culturais africanas. Essa deinição visa delimitar o nosso campo de relexão, por entender que uma parte signiicativa dessas produções tem sido colocada à margem do que chamamos História da Arte. Há ainda uma forma de tornar irrelevante o protagonismo negro nas Artes, por meio da assimilação desqualiicadora, ou na sua categorização em adjetivos negativos ou rebaixadores, como Arte Primitiva ou Arte Naïf. A relexão sobre a forma mais adequada para se nomear a Arte feita por negras e negros ainda é atual e necessária. Especialmente porque a Arte dita erudita, a que se encontra fundamentada e representada pela chamada História Universal e Oicial da Arte, foi sistematizada de forma que, por vezes, estabelece um conlito diante da produção a qual chamamos de negra ou de afro-brasileira. Essa Arte erudita, que lamentavelmente tem sido a única considerada nos currículos escolares, muitas vezes, exclui ou desvaloriza a Arte Negra e a Arte Popular, na qual estão inseridas afro-brasileiras e afro-brasileiros. Dessa forma, as unidades que compõem esse módulo apresentarão a Arte Negra pelo viés da convergência de categorizações. Mesclando o erudito e o popular, simbolizando a vida por meio das potencialidades estéticas de nossas mentes e corpos. Assim, apresentamos um panorama com datas, mas não seguindo um padrão cronológico e evolutivo, como se a Arte se aprimorasse com o passar dos anos trazendo a noção de Arte maior ou menor, de mais ou de menos desenvolvida. Passaremos por artistas que consideramos os mais expressivos dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI, apresentando suas produções, biograias, concepções e contextos, a partir de uma divisão pautada na Visualidade e na Musicalidade. Entremeios estará uma breve nota acerca das produções das Artes Cênicas e de Abdias do Nascimento, homem que atuou em muitas frentes das Artes. Desejamos que você se aprofunde no conhecimento da Cultura Negra e de seu legado artístico a partir das leituras dos textos aqui na íntegra e dos que estão indicados, bem como os ilmes a assistir, os lugares a visitar, as imagens a observar, as músicas a ouvir e outras formas de expansão desse saber que estamos lhe indicando. Tenha um excelente estudo! Módulo 2 Disciplina 8 DISCIPLINA 8 UNIDADE 1: Cultura Afro-Brasileira II: SONS E RUÍDOS, MÚSICA Artes negras, artistas Ee performances IDENTIDADES Autor: Dr. Salomão Jovino da Silva Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Unidade 1. Sons e ruídos, música e identidades Objetivo • Desenvolver relexões e relações sobre a música e a identidade negra. Não foi através de livros e atividades escolares que as informações sobre as civilizações africanas,começaram a circular no Brasil, mas por meio de canções urbanas e batuques de rua, desde o inal do século XIX. Fragmentos de histórias, memórias e episódios épicos foram convertidos em enredos, células rítmicas, poesia, melodias e canções entoadas em desiles públicos, espetáculos teatrais e gravados em disco. Dessa forma as musicalidades urbanas atuaram como disseminadoras de conteúdos e temáticas que, em outras circunstâncias, icariam restritas a círculos de pessoas altamente escolarizadas, ou as elites acadêmicas. A Rainha Nzinga, Chico Rei, Anastácia, Chica da Silva e Zumbi, desilaram nas avenidas como personagens em reconstruções alegóricas das escolas de samba e blocos carnavalescos. Segundo Manuel Querino, no inal do século XIX era habitual entre foliões negros soteropolitanos encenarem episódios e encarnar iguras africanas consideradas heroicas. O Rei etíope Menelik fez carreira em Salvador (Bahia) como personagem de desile público e foi incorporado como título de jornal por intelectuais negros. As musicalidades negras são históricas e também contam e cantam histórias da África, da diáspora negra e da presença negra na formação do Brasil. A história desse processo é, em si, relativamente desconhecida, mas muito interessante. Tanto as populações negras urbanas, como comunidades das pequenas cidades e quilombos contemporâneos demonstraram ter na musicalidade repositório e ponto de conexão com as memórias da África e suporte simbólico de redeinição de identidade. Os Congados, Batuques, Ticumbis e Jongos ixados nos calendários das festas-cerimonias e dos rituais públicos tornaram-se pontos culminantes de percepções e imaginários socialmente constituídos e partilhados. Isso não se deu sem tensões e conlitos com a sociedade dominante e os novos potentados, ilhos da casa grande. Entretanto, em uma sociedade industrial urbana como a brasileira atualmente, quase toda relação com a música é marcada pelo consumo. Baixamos conteúdos musicais de diversas partes do mundo pela rede mundial de internet, via computadores, tabletes e celulares. Na maioria das vezes a música se apresenta na forma de produto a ser consumido em casa, no carro, no trabalho, nos transportes, festas, shows em lugares públicos ou privados. Entre nós há reprodutores portáteis de arquivos virtuais, digitais e analógicos, televisões, pick-ups para discos de vinil e compacto discos digitais. Nossa percepção e sensibilidade são inundadas cotidianamente por sons naturais e áudios processados em diferentes tipos de máquinas em diversos pontos do mundo. Muitas dessas máquinas resultam de invenções recentes e foram incorporadas ao nosso cotidiano, de tal forma, que parecem ter sempre estado entre nós. Será? 5 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Contudo, os primeiros equipamentos de captura e reprodução sonora foram criados no ocidente industrializado, no inal do século XIX e o estadunidense Thomas Edson recebeu sozinho toda gloria pelo feito. Em geral, nenhuma dessas invenções nasce de um único cérebro genial, mas de inúmeras pesquisas e disputas intelectuais e comerciais, cujas autorias são obliteradas pela propaganda. Os equipamentos captores e emissores mecânicos de sons foram inicialmente denominados fonógrafos. As transformações tecnológicas nas formas de captura e disseminação de sons mecânicos foram estonteantes desde a industrialização dos fonógrafos até os pequenos aparelhos de MP3. Até então, a relação das sociedades humanas com os sons era de simultaneidade (só podíamos ouvir o som ou música no momento em que acontecesse), algo que o etnomusicólogo Kazadi Wa Mukuna (Wa Mukuna, 2000) deiniu como evento/música. Isso mudou deinitivamente quando o fato ou acontecimento sonoro pôde ser gravado, reproduzido e difundindo em escala industrial. IMPORTANTE Uma ressalva sobre a graia musical: Sistemas de notação musical surgiram remotamente no continente africano e no oriente médio. Todavia, uma história parcial sobre essa tecnologia a coloca como tendo sido sistematizada primeiramente na Grécia antiga. Mas a representação gráica dos sons ou da música, não é a música ou som em si. É necessário que o executante tenha pleno domínio da leitura dessa escrita e algum objeto sônico para transformá-la em algo perceptível ao ouvido e descodiicável a mente. Reter o som e disseminá-lo de forma mecânica e artiicial causou também alteração na relação sensorial com fenômenos acústicos, parece que, sobretudo, nos tornando menos capazes de percebê-lo nas suas múltiplas dimensões. A saturação sonora decorreu da exposição excessiva aos ruídos mecânicos e também aos imperceptíveis sons da vida urbana. O senso comum não reteve a memória desse rápido processo de mudança na sensibilidade, atualizações tecnológicas e das maneiras de pensar, ouvir, fazer e propagar música, mas ele inevitavelmente nos impactou. Entretanto e felizmente ainda reverberam em nossas almas e corpos as vozes humanas, percussão, cordas e sopros. Os primeiros equipamentos de captura de sons e gravações musicais ingressaram no Brasil por voltada de 1902. Podemos fazer um som, como outros animais ou mesmo a natureza, sem com isso fazer música. Para transformar sons em música é necessário ter intenção e cultura, cultura musical. É também necessário dominar maneiras especiicas de fazer e combinar sons e silêncios. Isto é, transformar os sons em linguagem, códigos sonoros compreensíveis para quem faz e quem ouve. Isso sim é música: Sons com forma, conteúdo e sentido. Música com sentido religioso e ou festivo, para saúde e entretenimento, lazer ou comércio, educação ou simples contemplação. Mesmo com toda tecnologia disponível para fazer sons simulados, ainda vamos combinando ruídos e sons, simulacros e timbres naturais pelos caminhos que guiam os nossos sentidos e sensibilidades. 6 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances As primeiras fábricas de instrumentos musicais foram veriicadas no primeiro quartel do século XX e as de equipamentos portáteis de radiofonia somente na década de 1950, embora um sistema de rádio amador tinha surgido nos anos 1920. A despeito disso, ainda hoje, os instrumentos musicais industrializados continuam custando caro e o artesanato musical permanece como espaço de criatividade, geração de renda e resistência cultural. Artesãos pernambucanos exportam alfaias (tambores) pelo mundo todo, ao passo que em São Paulo, o artista Luis Poeira, do Instituto Tambor, não consegue vencer a demanda por instrumentos percussivos personalizados. Artesania que alimenta saberes e resistências e cria uma rede complexa, fornecedores de madeira, couro, ferragens, tecido e toda uma gama de insumos. O disco, o rádio, a escolarização musical e os espetáculos estimularam a criação de maneiras novas de fazer e comunicar música, mas como o país é extenso, uma diversidade de gêneros e estilos musicais foi preservada da crescente e avassaladora padronização, também desencadeada por esse processo. Tal multiplicidade musical constatada na década de 1930 pelos modernistas reformadores da cultura nacional, ainda pode ser percebida em sociabilidades musicais, algo bem diferente do que aconteceu em sociedades mais industrializadas, onde as musicalidades sofreram uma estandardização irreversível. Nivelamento por baixo das sensibilidades. As sociabilidades musicais ou musicalidades negras têm sido parte do nosso legado, reserva estética e manancial das identidades negras. Elas passaram a narrar em cânticos, textos orais e células rítmicas a memória de uma África perdida no tempo, experiências do tráico, escravidão e mais recentemente do terror racial. Tais musicalidades recompõem em nível simbólico, no formato de mosaicos expressivos, dados culturais especíicos do processo de formação da sociedade contemporânea. Pode-se também sustentar que mais remotamente comprovam a existências de princípios civilizatórios africanos que escapam aos padrões do ocidente cristão. O que chamamos de musicalidades negras, são as expressões que comunicam, sob a forma de performance, parte dessa conlituosa história cultural de negações e silenciamentos, mas também de construção e inventividade. Ainda mais, contestando a hegemonia cultural vigente, pesquisadores airmativos têm mostrado que as práticas artísticas, literárias e religiosas, tal como as musicalidades negras emergiram como estratégias de construção e reconstrução de identidades negras no Atlântico, cujos luxos são alimentados e refeitos como projetos de sujeitos históricos coletivos. São vivências atravessadas tanto pelos impedimentos, como também pelas possibilidades técnicas da modernidade (Gilroy, 2000). Aliás, algo que vem sendo proposto em diferentes tempos e abordagens por pesquisadores justamente engajados como Edson Carneiro, Staurt Hall, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, Nei Lopes, Muniz Sodré e Paul Gilroy. Trata-se de uma reversão do colonialismo cognitivo, no qual a África e os descendentes de africanos dispersos são vistos como desprovidos de passado, ou como uma parcela da humanidade, cujas histórias e culturas seriam irrelevantes. Os textos alocados aqui não têm um sentido cronológico, nem pressupõem um processo evolutivo das culturas musicais negras no Brasil. Ensejam relexões em torno das musicalidades negras, como uma forma de acesso à história e culturas africanas e afro-brasileiras, tal qual preconizavam ativistas antirracistas ao longo do século XX e como determina a Lei Federal 10.639/2003, que instituiu a obrigatória disseminação de tais conteúdos nos sistemas de ensino do país, ensejando uma outra educação. 7 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos SAIBA MAIS História de Angola. Editora Porto: Afrontamento: MLPA, 1965. ROSA, Allan da. Pedagoginga, autonomia e mocambagem. Rio de janeiro: Aeroplano, 2013. CANDÉ, Roland. História Universal da Música. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Culturas musicais e identidades negras Nós, descendentes de africanos estamos bem ligados às formas e tecnologias musicais contemporâneas, mas não esquecemos totalmente a nossa longa e rica história em termos de culturas musicais. Mas como foi essa história? Resumidamente podemos argumentar que no Brasil, num passado longínquo haviam vários instrumentos de sopros indígenas, como também chocalhos, tambores, cordas, lautas e trompas de madeira e cabaça. Em meio à colonização e genocídio, os jesuítas introduziram outros de origem europeia na catequese e ainda no século XVI africanos capturados por traicantes e trazidos para o domínio português, trouxeram consigo saberes fônicos e culturas musicais. Ricas sabedorias sonoro-musicais com base na voz e no canto, como também trouxeram técnicas de confecção de instrumentos, principalmente tambores ou membranofones (instrumentos onde a membrana vegetal ou animal é friccionada ou batida com mão ou pedaço de madeira), lautas e trompas ou aerofones (instrumentos musicais cujos sons são produzidos com ar ou vento), xilofones (instrumentos nos quais o som advém da madeira). Trouxeram ainda conhecimentos para confeccionar e tanger diferentes tipos de chocalhos; kalimbas, pequenos instrumentos feitos de lâmina de metal e madeira, designados lamelofones; cordas ou cordofones (berimbaus, tihumbas, orucungos); e marimbas (xilofones). As culturas artísticas e entre elas as musicalidades são socialmente produzidas e veiculadas. No caso da população negra escravizada tiveram função fundamental, qual seja: preservar conhecimentos sonoros e acústicos como os instrumentos, por exemplo, além de elementos linguísticos e preceitos religiosos. Há quem interprete as sociabilidades negras, como as Congadas, por exemplo, como uma forma de controle social exercida pelas elites senhoriais. Essa perspectiva nega aos negros a capacidade de compreender o mundo que os cercava, no fundo revela a permanência de uma diiculdade cognitiva dos estudiosos. Barreira interpretativa criada pelo racismo antinegro, que torna alguns estudiosos da cultura, incapazes de nos ver como protagonistas, tanto no passado como no presente. 8 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances As sociabilidades musicais foram e são fatores basilares às identidades negras. Música no corpo e na alma, lições de difícil apreensão para racionalismo ocidental. Música de natureza religiosa e simultaneamente de festa, são constituídas como forma de visibilidade e contraste étnico. Estar juntos em torno da música conigura sentido ao “nós”, em relação àqueles que distinguimos como os “outros”. Alimentamos assim matrizes culturais que perpetuam, com mudanças e novos signiicados, formas africanas de estar no mundo. Não foi possível na diáspora manter as identidades étnicas africana originais. Por isso escravizados e forros, inteligentemente constituíram sobre aquelas novas identidades que lhes permitiram manter um senso grupal a alimentar uma memória das Áfricas estatais, cada vez mais remotas. As mudanças e adaptações ocorreram em todos os extratos das culturas africanas na dispersão. Também no âmbito das culturas musicais, no seio da música litúrgica de origem africana dispersa em repertórios de práticas culturais conhecidas como Kimbandas, Congadas, Mocambiques, Candomblés, Umbandas, Quicumbis, Candombes, Encantados, Batuques, Voduns. Trata-se de cosmogonias e seus termos são autonomeados ou atribuídos, mas certamente também podem ser capturadas como religiosidades afro-brasileiras. Culturas musicais populares negras mostraram-se diversas aos olhos dos folcloristas da primeira metade de 1900 e ainda hoje demonstram uma vitalidade sem precedentes, diante da imposição da indústria cultural. O múltiplo pesquisador e músico Mario de Andrade intentou fazer um mapa das musicalidades brasileiras nos anos 1930 em um projeto folclorista. Situa-se seu projeto em uma tendência intelectual e mundial vinda da Europa, que se pode chamar de nacionalismo romântico. O resultado, ainda que parcial, resultou em materiais impressos, fílmicos e fotográicos que nos fornecem um panorama muito interessante sobre a diversidade de culturas musicais populares e étnicas no Brasil daquela época. Embora os pesquisadores modernistas buscassem algo que deiniam como o caráter nacional, ou a identidade cultural da nação, foram eles que revelaram nossa diversidade. Durante a ditadura militar o Ministério da Educação e Cultura coordenou nova pesquisa e catalogou musicalidades em todo pais. A Campanha Nacional do Folclore coligiu e divulgou na forma de publicações impressas e pouco mais de meia centena de compactos discos de vinil, com encarte e textos de especialistas, mostrando que apesar das grandes mudanças culturais, as culturas musicais continuam diversas e vigoras. Cocos, Maracatus, Sambas e Batuques, continuam a ser fator fundamental de identidade para comunidades negras semi-urbanas em todo país. Nos anos 1990 o antropólogo Hermano Viana, herdeiro da antropologia de viés ufanista, consignou ampla pesquisa seguindo o mesmo raciocínio e passos dos folcloristas e produziu CDs de áudio, ilmes e acervos fotográicos de uma gama impressionista de musicalidades dispersas nos territórios. Muitas delas reiteravam as geograias sonoras identiicadas pela equipe de Mario de Andrade, cinquenta anos antes. Se as surpresas dos modernistas do folclore foi à diversidade, a dos neofolcloristas foi sua continuidade e permanência. Só que agora já não podem mais ser pensadas como arcaísmos. 9 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos SAIBA MAIS SILVA, Salloma Salomão Jovino da Silva. Memórias sonoras da noite. Tese de doutorado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. XAVIER, Rubens. Feiticeiros da palavra. Tv Cultura: Cachuera, São Paulo, Sd. ANDRADE, Mario. Missão de pesquisas folclóricas. SESC: Centro Cultural São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo: São Paulo, Sem data. Bibliografia GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência; tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, 2001. MUKUNA, Kazadi Wa. Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas etnomusicológicas, São Paulo: Terceira Margem, 2000. 10 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Unidade 2 TEXTO 1. O negro e a arte produzida no Brasil nos primeiros séculos: do barroco às musicalidades africanas Objetivo Reletir sobre o negro e a arte produzida no período colonial e imperial. 1. Mãos negras e conceitos brancos: do Barroco ao Neoclassicismo Por Renata Aparecida Felinto dos Santos O conceito de Arte que utilizamos é europeu. A forma de se estudar a Arte também. O que não quer dizer que não exista em outros lugares do mundo, ao contrário, há uma ininidade de expressões e manifestações estéticas que podem ser classiicadas enquanto objetos ou obras de Arte. Contudo, são os europeus que classiicaram o que produziram em estilos ou escolas artísticas conforme as características que agrupavam essas produções, seus contextos criativos, os materiais empregados, os temas abordados. No Brasil, o Barroco foi introduzido por missionários católicos no inal do século XVI, é o primeiro movimento artístico europeu a ser propagado, seguido do estilo Neoclássico ou Neoclassicismo. Observemos adiante como artíices e artistas negros criaram a partir destas bases estéticas, com ênfase nas produções de dois artistas mineiros: Antônio Francisco Lisboa e de Mestre Valentim da Fonseca e Silva. 1.1. Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho) e a importância das Corporações de Ofícios No Brasil, o estilo Barroco encontrou artistas e artíices que lhe imprimiram características e adaptações aclimatando-o à nossa realidade. “O nome Barroco vem da palavra italiana barocco, que signiica bizarro ou extravagante. A arte barroca em geral se caracteriza por sua exuberância dramática e pelo apelo às emoções do espectador” (O LIVRO, 1994, p. 506). Essa mesma palavra italiana também era utilizada para se referir às pérolas imperfeitas, que não possuem forma esférica apresentando pequenas deformações. Comparada ao racional e organizado estilo renascentista a arte barroca apresentava “pequenas deformações”. 11 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Podemos apontar diferenças entre as características desses dois Barrocos, o europeu e o brasileiro, como você pode observar ao inal deste texto (tabela “O Barroco – breves comparações entre Europa e Brasil”. Uma dessas diferenças se dá inicialmente, pelo fato de, na Europa, a Arte ser produzida pelo artista livre e, no Brasil, pelo artíice escravizado, muitas vezes, sob a supervisão de um mestre português. No Barroco brasileiro, são as mãos africanas, portuguesas, indígenas e mestiças que materializam a fé católica como forma de propagação dessa religião e de catequização de homens e mulheres. Igrejas, esculturas e pinturas de painéis laterais e de tetos de igrejas são erigidas com o intuito de atingir esse objetivo. Dois espaços importantes na produção de obras de arte, neste momento, são as corporações de ofícios e as manumissões, essas últimas exclusivas de homens pardos, como eram denominados os mestiços, até então. Nestes espaços de trabalho e de criação artística, cada etapa do trabalho de confecção de obras de arte sacra era dividida por ofícios. E dentre os ofícios podem ser destacados os ourives, pedreiros, carpinteiros, entalhadores, rebocadores dentre outros. Sobre esse papel de negros e mestiços, Jaelson Britain Trindade diz que: “O fato é que o negro e o mulato – sobretudo este – participaram em grande escala nas artes e ofícios coloniais, isto é, dentro de determinada divisão social e técnica do trabalho. As análises sobre as corporações que deslocam o eixo de investigação desse núcleo – a produção social corporativa – acabam por airmar que ‘muitos negros e crioulos tornaram-se mestres de ofícios’” (TRINDADE em ARAUJO, 2010, p. 167). Segundo Trindade, “o único grupo de oiciais ‘de cor’ livres, constituindo a ‘camaradagem’ do mestre e em obra de igreja ‘branca’ cujos nomes são conhecidos até o momento, são (...) do mestre Antônio Francisco Lisboa” (TRINDADE em ARAUJO, 2010, p. 166). IMPORTANTE Antônio Francisco Lisboa, apelidado de Aleijadinho à sua revelia, é considerado o maior artista das Américas por muitos críticos de Arte. Filho de uma escravizada angolana e de um arquiteto português que o libertou na pia batismal e o criou como ilho legítimo, teve a rara oportunidade de aprender acerca do oicio de escultor e de arquiteto com seu pai, tio e frequentando corporações de ofício da região de Vila Rica, local de seu nascimento e atual Ouro Preto. A partir da observação dos trabalhos desses proissionais e do estudo de gravuras europeias que chegavam à suas mãos aliadas a uma grande criatividade, desenvolveu as obras mais signiicativas do Barroco brasileiro. Segundo Fábio Magalhães, a vida cultural de Vila Rica neste momento era intensa e a corrida aurífera teve enquanto consequência um cotidiano repleto 12 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances de opulência, que se reletia na competição entre as irmandades religiosas por terem as igrejas e estatuarias mais ornamentadas e opulentas (MAGALHÃES em ARAUJO, 2010). É nesse contexto que Lisboa inicia sua carreira auxiliando seu pai e tio e, posteriormente, recebendo as suas próprias encomendas. A quantidade de trabalho que executou durante sua vida demonstra o quão admirado tornou-se Antônio Francisco Lisboa diante dos que encomendavam suas obras e mesmo de seus contemporâneos e concorrentes. A doença que o acomete em 1770, quando tinha por volta de 40 anos, não o impediu de continuar a trabalhar, ao contrário, é nessa fase que ele recebe o pedido mais importante de sua carreira: o conjunto do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, localizado na cidade mineira de Congonhas do Campo e tombado pela UNESCO em 1985. O estilo de Lisboa é único e inconfundível, pois dentre as suas características marcantes estão as iguras humanas que possuem olhos amendoados, ou seja, levemente puxados; narizes ailados e barbas e cabelos que terminam em cachos. As vestimentas, não encontradas no Brasil colonial atestam, bem como as isionomias de suas esculturas, uma inluência externa, como, por exemplo, no caso das botas com bicos inos e pontudos à maneira de botas árabes. O planejamento, isto é, a maneira como os tecidos são esculpidos, é anguloso e geometrizante, observam-se cortes retos que demarcam o seu estilo. Não encontramos nenhuma característica estética que ateste a sua ascendência africana, até porque, por ser uma produção de arte sacra e este o seu maior expoente, não havia espaço para tanto e, infelizmente, nem mesmo essa preocupação. Notemos que pouco se fala de Lisboa enquanto artista negro que era. Além de Ouro Preto e de Congonhas do Campo, podemos encontrar trabalhos de Antônio Francisco Lisboa também nas cidades de Mariana, Sabará, Tiradentes dentre outras. Um dos doze conjuntos escultóricos do Santuário de Bom Jesus de Matosinho executado por Antônio Francisco Lisboa, na cidade de Congonhas do Campo, Minas Gerais. Fonte: Wikimedia 13 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos O Barroco – breves comparações entre Europa e Brasil Barroco Europeu Brasileiro Período Século XVII Século XVIII Temas Mitologia Greco-romana, passagens bíblicas e santos católicos Passagens bíblicas e santos católicos Características Centrava-se na pintura em tela a base de tinta óleo, nas esculturas em mármore e na arquitetura de igrejas, sempre dramatizando as imagens e cenas representadas a im de se educar e iludir os iéis. Por exemplo, o claro e escuro das pinturas em tela eram bem acentuados dando um tom teatral, assim como os tecidos das vestimentas pintadas ou esculpidas O foco era a arquitetura de igrejas e as esculturas em madeira pintada ou policromada como é o termo técnico, e em pedra sabão. A pintura restringia-se a tetos de igrejas. Na pintura: Caravaggio (15711610) Na pintura: Manoel da Costa Ataíde Artistas Na escultura: Bernini (1598-1680) Santos e outras iguras sacras, por vezes, traziam já traços faciais miscigenados, como é o caso da Nossa Senhora da Porciúncula do teto da Igreja de São Francisco de Assis. (1762-1830) Na escultura: Antônio Francisco Lisboa (1730/8 ?-1814) 1.2. Mestre Valentim da Fonseca e Silva e os artistas negros da Academia Imperial de Belas Artes A produção de Mestre Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), demarcam uma transição do que foi o Barroco brasileiro para o advindo estilo Neoclássico. Juntamente com Antônio Francisco Lisboa, compõem uma dupla de grande importância na arte colonial brasileira. Para a pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, ambos os artistas são de importância irrefutável tanto no Rio de Janeiro quanto em Minas Gerais devido à alta qualidade de suas obras artísticas desenvolvidas ao longo de quase cinquenta anos de carreira de cada um deles, inluenciando outros artistas e formando discípulos por meio das atividades em suas oicinas e ateliê e, ainda que tenham introduzido novidades estéticas amparados em modelos europeus, especialmente os de estilo Rococó, é inegável a genialidade de ambos (OLIVEIRA em ARAUJO, 2010). Valentim da Fonseca e Silva era ilho de uma negra africana escravizada e de um idalgo português. Entretanto, a im de uma formação mais completa é sabido que por volta de 1748, ainda muito criança, foi com sua família para Portugal, para estudar em Lisboa, retornando ao Brasil somente em 1770. Na época era comum que intelectuais e artistas se formassem em Portugal. Ao retornar ao Brasil, estabelece uma oicina no Rio de Janeiro, e durante o governo do vice-rei D. Luís de Vasconcelos e Sousa (1779-1790), realiza diversos trabalhos de urbanização, arte urbana e para irmandades católicas. Podemos considerar que são as obras públicas urbanas que diferem tematicamente a sua produção da de Antônio Francisco Lisboa. 14 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Mestre Valentim, como passa a ser conhecido na historiograia das Artes Visuais, é um pioneiro em alguns aspectos, como, por exemplo, sendo o primeiro artista a fundir esculturas em metal a partir de uma temática profana, uma vez que até então os temas das obras de arte de forma geral, se voltavam aos cristãos e bíblicos. Essas emblemáticas esculturas são “A ninfa Eco” e “O caçador Narciso”, concebidas originalmente para o Chafariz das Marrecas, e que hoje possuem um exemplar do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e outro na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A técnica da fundição foi uma das que aprendeu em sua longa estada em Lisboa. Sobre a vasta obra de Valentim, Oliveira faz a seguinte análise: A integração desses temas da lora e fauna tropicais, que aparecem também nos chafarizes das Marrecas e Saracuras, substituindo tritões e golinhos tradicionais, constitui, sem dúvida, um dos aspectos mais originais da personalidade artística de Mestre Valentim, podendo-se detectar sua inluência em outros artistas da época, como o anônimo autor do chafariz do Lagarto, na rua Frei Caneca (idem, p. 85). Valentim falece antes da instalação dos artistas da Missão Artística Francesa no Brasil, que chegam aqui no ano de sua morte, em 1816. Muitos pesquisadores especulam acerca do que seria a História da Arte Brasileira sem a chegada da Missão Artística, entretanto, são somente ideias. IMPORTANTE O que podemos aferir indubitavelmente é que a Missão Artística tornou-se uma divisora de águas entre a produção artística do Brasil Colônia e a do Brasil Império, ofuscando, nesse período, as produções de Aleijadinho e de Valentim em prol da valorização da estética neoclássica. Até pouco tempo atrás estudávamos que esses artistas cheiados pelo arquiteto Joachim Lebreton (1760-1819), tinham sido convidados a vir para o Brasil por D. João VI (1767-1826), a im de retirar o Brasil do atraso que envolvia a sua produção de Artes Visuais. Contudo, hoje, novos e mais profundos estudos apontam que a presença desses artistas aqui se deve a uma conjunção de interesses. Com a chegada desses artistas, observa-se uma drástica mudança nos padrões vigentes. O mais impactante foi o decreto que criou a Academia Imperial de Belas Artes, que aberta em 1826, passou a ditar como fazer Arte de acordo com os cânones europeus. Esse novo artista deveria dedicar-se a temas gerais como os históricos, paisagens ou retratos e não a temas sacros católicos; a partir de agora sua formação passava pelos paradigmas acadêmicos e não mais pelas corporações ou manumissões; o seu intelecto passa a ser mais importante que seu talento manual; ele deixa de ser negro ou mestiço e torna-se branco. 15 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos IMPORTANTE Os artistas negros e mestiços demoram a aparecer na AIBA, como passa a ser chamada a Academia. Isso ocorre ao inal do século XIX, quase junto com a Abolição da Escravidão, apesar de termos informações de alunos afrodescendentes que ingressaram antes de 1888, como é o caso do pintor de naturezas mortas Estevão Roberto da Silva (1845-1891), nascido e falecido no Rio de Janeiro e muito elogiado pela critica de Arte da época. Ainda é importante mencionarmos os pintores Antônio Firmino Monteiro (1855-1888), que se dedicou aos temas históricos e às paisagens; Antônio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), também do Rio de Janeiro, tendo se dedicado à pintura de gênero, ao retrato e à paisagem; e, não poderíamos deixar de mencionarmos os irmãos pintores João Timótheo da Costa (1879-1932) e Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), este último considerado um precursor do movimento modernista ao dedicar-se às pesquisas pictóricas pautadas nos movimentos europeus do im do século XIX e em temáticas que valorizavam o trabalho. Também é Arthur um dos raros pintores negros a pintar negros em suas telas a óleo. “A ninfa Eco” que forma par com “o caçador Narciso”, ambas de autoria de Mestre Valentim, são as primeiras esculturas em metal fundido das Américas. Fotograia: Acerco Digital da Biblioteca do IA – UNESP, autoria de Percival Tirapeli e Vanessa Raquel Lambert Souza. Observamos que a forma de se produzir e pensar Arte durante o período estudado estava fortemente ancoradas nos paradigmas europeus. Primeiro os que foram ditados pela Igreja Católica durante o período Barroco. Em seguida, os que foram introduzidos pela Missão Artística Francesa referendados nas academias de Arte francesas. Os artistas negros que se sobressaíram como Antônio Francisco Lisboa e Mestre Valentim, o conseguiram devido às condições muito especiicas ligadas às suas origens, bem como a um talento e inventividade não encontrados entre seus pares contemporâneos. Tanto esses dois gênios, quanto os artistas que surgem vindos da AIBA, dominaram as técnicas e conceitos europeus, entretanto não arriscaram temáticas que falassem de si e de suas origens africanas. Sobretudo, porque não havia abertura para tanto e muito menos uma consciência étnico-racial que loresceria somente no século XXI. 16 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances SAIBA MAIS Aleijadinho: homem barroco, artista brasileiro. Autor: Maria Alzira Brum Lemos. Editora Garamond, 2008. Mestre Valentim. Autor: Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho. Editora CosacNaify, 1999. IPHAN. Congonhas do Campo, disponível em http://portal.iphan. gov.br/pagina/detalhes/251 Heróis de todo o mundo – Aleijadinho, disponível em https://www. youtube.com/watch?v=lJqjF8cuD9Q Heróis de todo o mundo – Mestre Valentim, disponível em < https:// www.youtube.com/watch?v=t91p90N2iic> Museu de Arte Sacra de São Paulo - <www.museuartesacra.org.br> 2. Gravuras de viajantes e musicalidades africanas no Brasil colonial Por Salomão Jovino da Silva Fonte: MOURA, Carlos Eugenio Marcondes de. A travessia da Calunga Grande-Três séculos de imagens sobre o negro no Brasil. Uma das mais impressionantes imagens do período colonial brasileiro é uma obra pintada a óleo sobre tela, atribuída ao artista holandês Franz Post e denominada: Vue panoramique d’Olinda (Vista panorâmica de Olinda). Nela a imagem de um grupo de homens e mulheres, sugere estar cantando, dançando e alguns indivíduos parecem portar diferentes instrumentos musicais, sendo os tambores aqueles mais nítidos. 17 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Ao centro do quadro um homem está sentado sobre um grande tronco, que pode ser um tambor, ao passo que outro mais nitidamente sustenta um tambor menor ao pescoço. Outras pessoas da cena parecem portar objetos musicais, cordas e chocalhos, mas isso é apenas inferência não se pode ser taxativo nesse sentido. Depositada no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, trata-se de um dos mais antigos documentos visuais da presença de musicalidades africanas no Brasil. Datado de 1650-1655, coincide com a ocupação holandesa de Pernambuco e do período áureo do Quilombo de Palmares, combatido tanto por portugueses, como por holandeses. Naquela época os Holandeses controlam a produção açucareira em Pernambuco e simultaneamente a captura e o tráico de pessoas a partir do Forte de São Jorge da Mina, ponto de luxo comercial da vasta região oeste africana, conhecida como Costa da Mina. Como eles também dominaram o porto de Luanda, em Angola, na África Central é difícil precisar a origem dos africanos retratados na gravura, contudo é possível dizer que desde meados do século XVII, este território que viria a ser o Brasil, presenciou o surgimento de musicalidades de origem africana, na medida em que o suporte material das culturas musicais africanas foi retratado por tal pintor. Nos séculos XVIII e XIX Pernambuco forneceu inúmeros elementos históricos que conirmam tradições culturais africanas, nas quais as musicalidades têm papel fundamental. Lá, Coroações de rainhas e reis Congos foram registradas por viajantes desde o início dos oitocentos. Religiosidades dos Orixás, onde toda liturgia é acompanhada de textos musicais e acompanhamentos de cantores e instrumentistas chamaram a atenção dos folcloristas desde o início do século XX. Festividades como Quilombos, Caboclinhos e Maracatus, cujas origens contêm elementos africanos, europeus e indígenas, hoje são práticas culturais que nos informam sobre intercâmbios culturais próprios de uma sociedade multicultural, embora tratada como se fora o contrário. SAIBA MAIS MOURA, Glória. A força dos tambores: A festa nos quilombos contemporâneos. In: REIS, Leticia dos Reis Vidor e SCHWARCZ, Lilia Moritz (Orgs) São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Estação Ciência, 1996. http://www.antropologiavisual.cl BARBIERI, Renato. Na rota dos Orixás. 1997 Museu do Folclore Edson Carneiro. Rio de Janeiro 18 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances 2.1. Eruditos negros e músicos barbeiros As menções esparsas na literatura histórico-musical à vida e obra do músico negro mineiro José Mauricio Nunes Garcia (1787-1830), fazem cortina de fumaça, que obscurece com uma historia épica de genialidade, a imagem desse que parece ter sido um dos mais proeminentes compositores eruditos brasileiros da passagem do século XVIII e primeiras décadas do período imperial. Os silêncios e aportes vagos dos apontamentos bibliográicos, também mesclam e fundem a história cultural com episódios políticos, por vezes dando mais importância. Dessa forma pouco revela sobre a cultura musical e em meio ao racismo antinegro e hierarquias sociais fundados na raça e segue salpicando tais fatos com intrigas da vida cortesã na capital do império, na primeira metade do século XIX. Parece não haver polêmica sobre o fato de que foram os padres jesuítas a introduzirem desde cedo os padrões musicais escolares europeus no Brasil, com o franco propósito de difusão da fé e dogmas católicos. Os índios Guarani do sudeste, ainda hoje conservaram algumas peças cantadas e acompanhadas à base de rabecas, cujas sonoridades nos remetem a cantigas mencionadas nos escritos do Padre Anchieta e outras fontes do século XIX. A literatura de musicologia histórica sobre os séculos XVIII e XIX, na medida em que se avoluma, nos permite entrever melhor a brecha no muro racial dos estudos acadêmicos sobre música erudita, aberta pelo pesquisador alemão Francisco Curt Lange, que precocemente tratou da proeminência de músicos e compositores negros na Capitania de Minas Gerais. Paradoxalmente negros e mestiços também foram mantenedores e criadores da cultura musical erudita no Brasil, sobretudo até início do século XX, eram copistas, arranjadores, músicos e compositores. O músico e pesquisador Antonio Carlos dos Santos (2009) nos indica que as primeiras informações que detemos sobre músicos negros escravizados versados em leitura musical e portadores de instrumentos europeus datada de 1615. Trata-se do viajante Francês chamado Fracoise Pyard de Laval, que se deteve na Bahia nessa mesma década onde assistiu um concerto executado por um grupo de 30 escravizados em uma fazenda. O pesquisador Paulo Castanha (2010) nos surpreende com a informação de que, uma mulher negra, escravizada e nascida em uma fazenda do interior luminense, foi a primeira musicista erudita brasileira a empreender uma turnê pela Europa nos anos inais do século XVIII. Pouco se sabe ainda sobre Maria Joaquina da Conceição Lapa, mas é possível airmar que apresentou obras de José Mauricio Nunes Garcia em Lisboa, Porto e Coimbra. Em tese os negros não podiam assumir a atividade musical como proissão, era reservada aos brancos, entretanto, muitas vezes de maneira informal assumia o papel de compositores e regentes de orquestras e coro, copistas de partituras, organistas e instrumentistas em várias regiões da colônia portuguesa. Aqui nessa terra de senhores brancos e escravizados negros, índios e mestiços, que passamos chamar Brasil, foi tudo juntado e separado, hierarquizado e dividido, por credo, raça, cor, condição social ou etnia. Foi na cultura musical das classes populares, especialmente em Minas Gerais, desde o século XVIII, que os sopros europeus foram veriicados entre músicos livres e libertos eruditos, autodidatas e semi-eruditos. Consta nessa mesma época a presença ainda que rarefeita de corporações musicais no Rio de Janeiro, Ouro Preto, São Luis, Recife e Salvador. 19 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos No início dos oitocentos, as bandas de barbeiros reuniam excelentes músicos autodidatas, quase sempre negros e, no inal do século XIX bandas populares, basicamente com percussão e sopro surgiram em todo país e eram muito prestigiadas nas praças e coretos dos arraiais, comarcas e vilas. Essas bandas foram chamadas inicialmente de charamelas (tal como em Portugal) e tocavam nas festas e eventos cívicos e religiosos nas ruas das cidades. Não por acaso, o próprio imperador Pedro II mantinha em sua Real Fazenda Santa Cruz, no Rio de Janeiro, uma escola e banda de músicos formados apenas por escravizados africanos e crioulos (negros nascidos no Brasil). Esse exemplo de “civilidade” foi seguido por outros fazendeiros, sobretudo os mais abastados sediados nas zonas de plantio de café em Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. SAIBA MAIS NOGUEIRA, L. W. M. Música em Campinas nos últimos anos do império. Campinas-SP:Editora da Unicamp, CMU, 2001. DVD. O Jongo do Tamandaré. Guaratimguetá.Edições Acervo Cachuera. http://www.palmares.gov.br 20 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Unidade 2 TEXTO 2 . Manifestações culturais e artísticas na diáspora negra a partir dos registros iconográficos: instrumentos e musicalidade Objetivo Conhecer e reletir sobre algumas manifestações culturais e artísticas na diáspora negra a partir dos registros iconográicos. Congados: Fé, festa e memória de um império africano Por Salomão Jovino da Silva Sentimento religioso, ilosoia religiosa, concepção cosmogônica do mundo não são exclusivas dessa ou daquela cultura. Entretanto a sociedade ocidental passou a atribuir diferentes pesos e graus de importâncias àquilo que conhecemos como religião. A hegemonia europeia e cristã do mundo, queiramos ou não, nos fez herdeiros de uma percepção das forças invisíveis como tendo origem em Javé, o deus dos antigos hebreus. Essa visão por força, por guerra e interesses vários se espalhou pelo mundo. Cosmovisão “universal”? Somos desaiados o tempo inteiro por resquícios religiosos não cristãos, depositados no nosso imaginário e nos valores mais ordinários. IMPORTANTE Podemos chamar de religião um conjunto de valores, ideias e atitudes em relação à vida, criação, morte e transcendência ou imaterialidade. Tais conceitos podem ser contidos em objetos (livros, por exemplo) ou fórmulas orais, elaboradas, transmitidas e reconiguradas pelas sociedades no transcorrer do tempo. O ritual é uma das formas de transmissão dos valores religiosos de uma geração a outra. 21 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Durante a expansão colonial, os europeus herdeiros do cristianismo desenvolveram um argumento simples, mas que pareceu eicaz, de cunho puramente ideológico, que colocava as crenças cristãs no suposto topo de um processo evolutivo. Dessa forma todas as outras ilosoias religiosas não cristãs eram tidas como não plenamente evoluídas ou primitivas, sobretudo as religiões entendidas como politeístas, negativamente estigmatizadas como pagãs, idólatras ou animistas. Ainda na idade média europeia as ritualísticas não cristãs foram tachadas como feitiçaria. A partir do século XVIII e do iluminismo passaram a ser considerados superstição ou fetichismo, sobretudo quando a ritualística envolvia o transe. A combinação entre estado monárquico e igreja na formação do mundo colonial português foi crucial para imposição dos valores cristãos, tanto no Brasil como na África. As práticas, expressões e formas religiosas de origem africanas e indígenas foram proscritas, proibidas e oicialmente perseguidas por autoridades coloniais, imperiais e republicanas até início do século XXI. O efeito das discriminações religiosas de tradição africana tem impacto negativo profundo sobre a sociedade brasileira contemporânea. Ainda assim o cristianismo católico foi crivado de brechas antidogmáticas, atravessado por compreensões analógicas e ambivalências, de forma que deidades e concepções religiosas muitas vezes conlitantes se amalgamaram tão fortemente, que as instituições religiosas oiciais se viram obrigadas a suportá-las, quando não assumi-las como suas. Há quem veja nas Congadas reminiscências das estratégias senhoriais de cooptação e domesticação dos escravizados. Estudos recentes, contudo, mostram que o cristianismo ibérico foi incorporado de diferentes formas pelas sociedades centro africanas, mas quase nunca da maneira que alguns antropólogos se apressaram em designar aculturação. Um exemplo remoto diz respeito à incorporação do cruciixo como símbolo religioso centro africano. Engano de quem considerou este sinal como genuinamente europeu e exclusivo da cristandade. Efetivamente ele já estava presente em objetos de ferro e outras indumentárias religiosas, antes da chegada dos europeus em vastas regiões da África ocidental. Aparece na simbologia Adinkra como também no graismo das cestarias e utilitários. Outro exemplo mais contundente é a forma como sacerdotes africanos submeteram as interpretações ritualísticas católicas, como no caso daquela líder política e religiosa (Kimbanda) designada Beatriz Kimpa Vita. Outro exemplo interessante é aquele do Quilombo de Palmares, no qual sacerdotes e chefes centro africanos chamados Ngangas emergiram como inimigos do escravismo canavieiro. IMPORTANTE Na literatura setecentista, sobretudo as iguras dos líderes Ganga Zumba e Ganga Zona, nos dão a entender que, tal como nas regiões do Império do Congo, o termo Nganga, combinava sentido político e religioso. 22 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Hoje, devido à disseminação de uma cognição colonial, temos diiculdade em imaginar sociedades estatais e urbanas na África Central, antes da chegada dos europeus. Entretanto, com base em uma historiograia africana consolidada, podemos vislumbrar não somente sociedades estatais pluriétnicas, como acessar conteúdos sobre a coniguração de civilizações africanas constituídas, como Impérios e Reinos. Este é o caso do Congo. Aqueles que no Brasil passaram a ser denominados linguística e genericamente de “povo ou nação bantu”, mas que na nomenclatura oitocentista podiam surgir com angolas, anjicos ou congos, por exemplo, podiam pertencer a uma miríade de grupos étnicos, em sua maioria, aparentadas. Isso é o que sabemos hoje devido aos avanços das pesquisas dos Etno-linguistas. O ser divino conhecido como Nzambi, na África Central, ingressou no Brasil pelo pragmatismo religioso dos Congo-Angolas e manteve signiicado quase intacto, nos fragmentos linguísticos dos cânticos sagrados do Candombe de Minas Gerais. Zambi também está presente nos Festejos e Religiosidades do Jongo, localizados nas comunidades negras, mantidas nos entroncamentos e zonas semiurbanas fronteiriças dos estados de Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Zambi é igualmente evocado nas Umbandas e Congadas. A musicalidade, sociabilidade onde a música se faz preponderante tem sido o reduto cultural das afro-brasilidades, quer dizer, a música tem funcionado como elemento mantenedor de valores civilizatórios africanos no Brasil. Os repertórios musicais, os instrumentos, a ambiência ou atmosfera criadas pela cultura musical, tem sido uma das formas as quais a África remota e ancestral é reavivada nas culturas negras diaspóricas. Nas orquestras de terreiros e tendas, associações e roças, emergem sonoridades próprias do calendário religioso para cumprir um papel, que antes eram reservados aos músicos de corte africanos. Resquícios orquestrais iorubas, daomeanos, angolanos e congolesas ainda podem ser observados nas dinâmicas religiosidades afro-brasileiras. SAIBA MAIS SOUZA, Marina Mello. Reis Negros no Brasil Escravista: História da festa da coroação de rei Congo. Belo Horizonte: UFMG,2002. Filme Documentário. GERBER, Raquel (dir) e NASCIMENTO, Beatriz (texto). Ori. São Paulo: Angra, 1989. Link: https://www. youtube.com/watch?v=qexH85cYfK4 CD. Os negros do Rosário. Belo Horizonte: Lapa Discos, 1987. 23 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Tocadores de Violas D’Angola no “tempo do cativeiro” Por Salomão Jovino da Silva Viola D’Angola, Música de pretos. Página 159. MEA 0298. Debret. Museu Castro Maia. Exposição Museu da Chácara do Céu, 29-04-03/15-07-03. Rio de Janeiro. Desde o século XVII temos imagens de africanos transpostas às telas por artistas europeus, com os mais variados interesses e abordagens. Jean Baptist Debret um pintor acadêmico francês que morou por 15 anos no Brasil na primeira metade do século XIX, ixado a maior parte desse tempo no Rio de Janeiro. Flagrou e plasmou em suas aquarelas as plantas e frutos, animais e prédios, quintais, praças e ruas, palacetes e casebres, mas foi primoroso nos registros das iguras humanas e nas práticas cotidianas. Não raras são as atitudes racistas próprias a visão civilizatória eurocêntrica e hierarquizante, aqui fundamentadas na escravidão racial. Muito pouco da nossa existência como sociedade escapou ao foco da lente plástica Debret. Por isso temos algumas imagens de instrumentos musicais africanos entre os quais uma que ele identiicou como Viola D’Angola. Viola era um nome genérico para qualquer instrumento musical de cordas dedilhas, percutidas ou friccionadas, neste caso trata-se de um artefato feito de madeira escavada em formato de gamela, com tampo ixo e cinco semi-arcos onde se ixam as cordas. Pode parecer um pouco estranho imaginar que os africanos trazidos como escravos pudessem encontrar algum tempo no meio das tarefas do dia-a-dia e do sofrimento imposto pelas regras rígidas dos senhores, capatazes e feitores para tocar algum instrumento e cantar, mas de fato isso ocorria e não era raro. Desde a passagem de um padre chamado André João Antonil, no século XVIII, e dos registros que ele deixou que somos informados da importância e necessidade dos senhores permitirem algumas horas de alegria e folgança a seus escravos como estratégia de mantê-los produtivos e calmos. Por outro lado, pensar que aqueles seres humanos não perderam sua humanidade somente por viver em uma situação de submissão foi algo de difícil compreensão para os historiadores mais conservadores, que viam os escravos como 24 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances produto, como máquina ou modo de produção, ou mesmo coisa ou como massa. Atualmente os conhecimentos trazidos pelos africanos no exílio são estudados justamente de forma a mostrar que tal sentimento de humanidade jamais deixou de existir, nem nas condições mais cruéis do cativeiro. Tocar, dançar e cantar, além de parte da cultura africana na diáspora era também maneiras imprescindíveis para manter tal humanidade. Instrumentos similares foram registrados por viajantes europeus desde o século XVII nas regiões que correspondiam aos antigos Reinos do Congo e Angola. Hoje ainda, podem ser encontrados com diferentes nomes e número de cordas na região da República Democrática do Zaire e no Sudoeste de Angola onde recebe o nome de Chihumba. Joceliyn Murray aponta as relações entre a Chihumba e a Viola D’Angola de Debret: “A Chihumba de vários arcos ou ‘alaúde de arcos’ é um instrumento muito popular entre os povos do sudoeste da Angola. Toca-se muitas vezes enquanto se vai caminhando, durante uma longa viagem muitas das canções fazem referência à longa marcha, com cargas de mercadoria das zonas rurais até ao porto de Benguela, que foi também um importante centro de deportação de angolanos cujo destino era o trabalho como escravos no novo mundo, especialmente no Brasil. O pluriarco é um dos instrumentos que já tinham chegado ao Brasil com o comércio de escravos no século XVIII. IMPORTANTE Cultura musical é um conjunto de conhecimentos conceituais e práticos desenvolvidos e transmitidos, são saberes advindos principalmente das experiências adquiridas durante séculos, ou mesmo milênios. São maneiras adequadas de se juntar determinados sons, que objetos se podem usar para fazê-los, e como obter sentido para quem faz e para quem ouve estes sons. Trata-se de uma produção humana de ondas acústicas que não poderiam existir simplesmente na natureza, daí serem culturas. Descontando os tempos muito remotos da história da humanidade não se tem conhecimento da existência de alguma sociedade sem música, isso se aplica aos povos de todos os continentes. Africanos, indo-europeus, asiáticos, americanos, australianos, etc, desenvolveram de forma autônoma, tanto sons vocais, como também artefatos sonoros em madeira, ossos, pedra, metais e cerâmica. Para estes vários tipos de instrumentos musicais os pesquisadores criaram classiicações e uma nova ciência denominada Organologia, que os designa pelos tipos de materiais empregados e pela maneira de produzir o som como: cordofones (cordas), xilofones (madeiras), aerofones (sopros), membranofones (membranas vegetais, animais ou sintéticas), usadas para confecção de tambores), metalofones, lamelofones ou laminofones e idiofones: possuem características de material (madeira, ferro, pedra, cabaça e muitos outros materiais), diferentes técnicas de execução podem produzir os sons mais diversos. Aliás, tais nomes são estranhos para as pessoas que querem apenas se divertir criando e ouvindo sons. 25 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Diferentes imagens de pluriarcos africanos foram realizadas no Brasil entre aproximadamente 1790 e 1860, uma das instigantes é uma fotograia da segunda metade do século XIX, de autoria não registrada, onde um homem negro traz um objeto até então tido como “não identiicado”. Embora a postura corporal original para se tocar tal instrumento, pode ser este um momento de passagem de uma técnica africana à outra usada para executar a violas ibérica, que foram adotadas pelos africanos desde os primeiros contatos com os cordofones lusitanos. Hoje podemos sustentar, sem sobra dúvida, que se trata também de uma Chihumba de quatro cordas, o instrumento fotografado nas mãos daquele africano ou descendente, provavelmente no Rio de Janeiro, por volta de 1870. George Ermakof. O negro na Fotograia brasileira do século XIX. página 60. Título: fotógrafo não identiicado, Negro segurando objeto não identiicado. Ermakof: Rio de Janeiro, 2001. Rugendas, Debret e o fotógrafo Cristiano Junior nos mostram situações em que africanos tocam instrumentos musicais, dançam, se divertem e mantêm uma existência que vai além do castigo nos pelourinhos, na lida nas minas úmidas, no trabalho no campo ou nas atividades realizadas dos escravos de ganho como venda de gêneros alimentícios, transporte de cargas e serviços domésticos. Somos lançados pelas imagens nas ruas do Rio de Janeiro onde podíamos assistir um velho cantor negro cego, provavelmente africano de nascença, falando um português cheio de sotaque kikongo tocando seu oricongo, ulukungulo ou chihumba e cantando para uma multidão composta de negros livres e escravos ganhadores, provavelmente, vindos da mesma região. Sem exceção todos os países europeus que participaram da corrida colonial, adquiriram acervos de artefatos africanos que guardam como relíquias nas reservas técnicas dos seus museus. No Museu Etnológico Luigi Pignorini de Roma se encontram os mais antigos exemplares cordofones africanos, recolhido no século XIX. Nos museus portugueses estes datam predominantemente do século XX e entre tantos, um exemplar repousa no Museu Etnológico de Lisboa. As violas de Arcos que certos pesquisadores consideraram parente das “liras” têm as cordas 26 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances paralelas ao corpo de ressonância, fundo abaulado, nas partes laterais apresenta uma decoração geométrica entalhada, o tampo é preso com pregos de madeira selado um tipo de resina natural. No acervo da reserva técnica do Museu de Etnologia de Lisboa tivemos a oportunidade de observar as características mais gerais de uma razoável coleção de instrumentos desse tipo. Registro de entrada datado de junho 1965, adquirido por Margot Dias, considerada a mais importante pesquisadora de música africana no contexto colonial português. São suas, provavelmente, as anotações transcritas aqui: “Consiste de um corpo de ressonância de madeira castanha de forma de uma meia canoa escavada de um troço de madeira. A extremidade mais larga não abaulada, fechada à direita, apresenta cinco orifícios nos quais estão metidas cinco varas toscas e curvadas que servem como cravelhas. Cada uma tem enrolada a volta a extremidade de uma corda de ibra torcida.” Imagem 4. Museu Etnológico de Lisboa. Violas de Arco, nº do tombo: AA349 – nº coleção Ang.3 – Aquisição 18/08/1965 Jose Redinha (1984), outro pesquisador português em Angola, designa dois tipos de “liras” identiicadas por ele no sul daquela antiga colônia: “Têm se distinguido dois modelos de lira no Sul da província: a lira dos viajantes e dos pastores. A primeira apresenta sete ou oito cordas de metal e as dimensões são mais constantes, aproximadamente 50 centímetros de comprimento de caixa. Este instrumento é, geralmente, guarnecido de vibradores, colocados quase na extremidade dos arcos. Os Handas cultivam o exercício duma lira idêntica que designam também Otxiumba, neste caso, com nove cordas”. Viola é por vezes termo genérico para instrumentos de cordas, tantoque, nas gravuras do mesmo período, instrumentos semelhantes àqueles são também denominados com termos semelhantes a estes empregados em Angola. Havendo outros registros desse tipo de instrumentos africanos de cordas nas imagens de Jean Baptiste Debret, Henry Chamberlain, Paul Harro Haring e um número restrito de gravuristas estrangeiros. Instrumentos de corda friccionada, tocado com arco como os violinos e rabecas, cujas caixas de ressonância são feitas de cabaça, casca de coco ou madeira. As “violas”, “violetas” e pluriarcos, no entanto, quebram o estereótipo da música africana como “essencialmente rítmica”. Henry Chamberlain: pagina 348, igura 95, pág 352-353 igura 99. Travessia da Kalunga. Gerard Kubik, pesquisador austríaco que se dedicou intensamente às culturas musicais africanas, estabeleceu vários vínculos das musicalidades afro-brasileiras com suas matrizes africanas no Zimbawe, Angola, Namíbia, Zâmbia e, também pioneiro em informar sobre técnicas de construção e manuseio de instrumentos semelhantes entre os Handa de Angola, grafado como Chihumba. Embora tenha recebido apoio inanceiro e logístico do governo colonial português, já nos anos 70, havia percebido a importância desses registros iconográicos para se compreender os caminhos percorridos pelos africanos e suas culturas no Atlântico. Suas análises aproximaram África e Brasil por meio de uma fantástica imagem grafada por Codina e Freyre no inal do século XVIII, quando da viagem de pesquisa do cientista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira pela região norte do país, documentos que icaram registrados como: Memória da Amazônia, a viagem philosophica de Alexandre Rodrigues Ferreira pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Matogrosso e Cuyabá, 1883-1792 (Museu Laboratório de 27 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Antropologia da Universidade de Coimbra, 1991). Trata-se de desenho aquarelado de uma Chihumba de sete cordas em uma das mais primorosas imagens de um instrumento de cordas africano feito no Brasil, sob o titulo de “Violla q. tocão os pretos”. As iconograias, sejam pinturas, desenhos, gravuras, fotograias, etc. são documentos que dão indícios de intercâmbios e conlitos sócio-culturais envolvendo escravizados e libertos negro-mestiços e a sociedade mais abrangente durante o período em que predominou a escravidão. As musicalidades que eram fundamentais no contexto africano, certamente não deixaram de sê-lo quando milhões de homens, mulheres e crianças de pele escura passaram a ser capturadas e enviadas como mercadorias ao novo mundo, na condição de escravizados. Na diáspora dos africanos estas musicalidades converteram-se em formas diferenciadas de sociabilidade. Gravuras como as de Carlos Julião do inal do século XVII, onde instrumentos musicais africanos como as marimbas aparecem sendo utilizados ao lado de violas portuguesas, por homens e mulheres de origem africanas. São, portanto, narrativas e imagens que permitem entrever a presença não desprezível de instrumentos africanos modelando outra cultura musical que já não era lusitana, nem africana. A predominância crescente de instrumentos cordofônicos ibéricos utilizados por afro-descendentes, possibilita pensar sobre as apropriações por parte destes, das técnicas de fabricação e manuseio das violas. Talvez o que caracterize as culturas africanas na diáspora seja o fato dos seus agentes conseguir o equilíbrio entre se manter pragmaticamente abertos e receptivos e sistematicamente seletivos e resistentes. SAIBA MAIS SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Viola D’Angola, som de raiz. IN: Historia Viva, Temas brasileiros, Edição Especial temática número 3, São Paulo: Duetto, 2006. Museu da Etnologia e Antropologia da USP Marimbas ou Kalimbas: Instrumentos musicais africanos reinventados no Brasil Por Salomão Jovino da Silva “Segurando os dedos por baixo e colocado os polegares nas chaves, o tocador de marimba puxando-as para baixo numa ponta e me seguia deixando-as voltar, produz um suave som sussurrante, parecido com de uma arpa hebraica. A cidade é um teatro etíope e esse é o instrumento favorito da orquestra. Diariamente se encontra escravos tirando deles árias africanas e os grupos que voltam ao campo, geralmente levam consigo uma ou duas marimbas.” Thomas Ewbank 28 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Um viajante estrangeiro desavisado que ao passar pelo Brasil do início do século XXI, se detivesse em alguma cidade com atrativos turísticos, como Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro, poderia deparar-se numa feira de artesanato, com um músico/artesão tangendo uma kalimba. Este instrumento de origem africana é pequeno e confeccionado em vários formatos, sendo mais difundido aquele composto com metade de uma cabaça. Uma prancha pequena de madeira, onde são dispostas várias lâminas de metal, seja ferro, aço inoxidável, cobre ou latão. Com e sem caixa de ressonância, também pode ser construída escavando-se um bloco maciço de madeira. O instrumentista pode obter o som, utilizando os polegares das duas mãos para beliscar as laminas, sustentando a cabaça amarrada aos braços. Em algumas situações usa-se uma cabaça de tamanho avantajado, a qual apoia sobre as pernas. Dessa forma há a ampliação do volume de som. Tal instrumento leve e comodamente transportado, se bem tangido pode produzir um som individual melodioso, muito delicado e de pouco volume. Entre povos da etnia tsokwe de Angola é usado por crianças, mulheres, homens, sem restrições. Pode ser executado em solo ou para acompanhamento da voz humana ou qualquer outro timbre. Mesmo quando tocado por alguém que não tenha conhecimento prévio ou a técnica mais adequada produz uma sonoridade muito agradável, que nos remete aos ruídos aquáticos. Se a mesma personagem curiosa acessasse imagens produzidas por viajantes europeus do inal do século XVIII e início do XIX, poderia também observar um razoável número de gravuras onde instrumentos muito similares, portados por homens prioritariamente negros de diferentes traços, vestimentas, adornos e em diversas situações cotidianas. Especialmente nas gravuras de Jose Codina, Johann Moritz Rugendas, Joaquim Cândido Guillobel, Jean Baptiste Debret, Henry Chamberlain, Edward Hildebrandt e Paul Harro Haring podem ser lagrados em inúmeras circunstâncias comunidades de africanos e afro-brasileiros, cantando, dançando e tocando diferentes instrumentos de cordas, tambores e principalmente Kalimbas. Contudo, se o viajante tiver acesso à imagem ou descrição de uma marimba em autores estrangeiros da primeira metade do século XIX como Jean Batiste Debret ou Thomas Ewbank, tal como a citada acima, icaria um pouco confuso. Trata-se de uma marimba ou kalimba? São instrumentos bem diferentes, no formato, no tamanho e no uso. Tecnicamente a Marimba é um xilofone, o som é produzido com a percussão de pequenas tábuas de madeiras, devidamente ainadas e dispostas sobre um suporte de madeira ou bambu. É também um instrumento africano por excelência, não havendo dúvida entre os pesquisadores sobre sua origem, geograia e usos na África negra. Talvez uma diiculdade linguística tenha levado autores diferentes a tomar a kalimba por marimba. As kalimbas também pertencem a uma família de instrumentos especíicos africanos, cuja origem remota se deu na parte central do continente, na zona linguística bantu e, seu uso foi disseminado por quase continente. A variedade de nomes, tamanhos, materiais e formatos, maneiras de confecções é tão vastas que os especialistas criaram uma categoria especial para este tipo de instrumento, designado lamelofones (nome cientíico das Sanzas, Deza, Tssanje, Kalimba, Mbira). Tal como são classiicados pela Organologia. Se na África estes instrumentos recebem várias denominações, atualmente no Brasil é conhecido como kalimba, onde há também hábeis construtores e praticantes, contudo, não sendo tão popular. 29 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Ao ligar o rádio ou entrar em uma loja muito especializada em música, nosso viajante poderia se deparar com algumas canções de compositores, interpretes ou instrumentistas brasileiros como Dona Ivone Lara, Luís Tati, Décio Goeldi, nas quais este instrumento é também utilizado. A conclusão óbvia que poderia chegar nosso hipotético viajante sonoro é que, tal instrumento musical faz parte de um conjunto de inúmeros outros de origem africana, incorporados à cultura musical brasileira desde sempre e que sempre estivera em uso. Tais circunstâncias fariam nosso viajante supor que a utilização kalimba, nunca cessou no Brasil. Ao inferir sobre tal continuidade cultural nosso hipotético viajante estaria caindo em uma armadilha interpretativa, da qual foram vítimas alguns pesquisadores afoitos que enxergaram continuidade onde havia ruptura e ou que o izeram o sentido contrário. O universo dos estudos culturais brasileiros que têm as populações de origem africana como foco, não raras vezes, tem cometido tais equívocos. O caso da cosmovisão religiosa ioruba tem sido o mais delicado, é alvo de uma exploração sistemática de pesquisadores que somente tem olhos para a continuidade e profundo desprezo para a mudança. A busca de uma cultura negra ideal e em estado de pureza gerou um falso antagonismo entre culturas nagô e bantu, além de invisibilidade, consignou algo que tem sido chamado criticamente de nagocentrismo (L0DY,1987). Pode ser deinido como a crença acadêmica de que as culturas negras no Brasil somente têm conexões históricas e culturais efetivas com povos advindos do Golfo do Benin. Tais imagens reproduzidas e difundidas de forma tão repetitiva criaram uma cultura imagética que no nível do censo comum, constituem um dado retrato dos negros, da escravidão, do passado colonial e imperial brasileiro. Um tempo social vencido e obscurecido pela distância temporal, mas que por vezes nos parece demasiadamente assimilado e familiar, revelado e conhecido. Devemos isso a estes mesmos fragmentos visuais. Independente de fazerem parte dos livros didáticos e do senso comum, se tratados como documentos, estes materiais podem representar um manancial para estudos e relexões sobre as relações sociais, religiosidade, produção artística, sociabilidades. Isso na medida em que possam ser confrontados com outras fontes e registros históricos e submetidos a indagações sobre suas origens, intenções, formas de difusão, etc. Instrumentos fônicos são tecnologias, cultura material cuja inalidade última é criar discursos melódicos, rítmicos e harmônicos, que expressam ideias, conceitos, valores e subjetividades. Tais discursos não são universais, embora não haja notícia de que tenha existido sociedade humana sem música ou anacústica. Africanos geraram tecnologias e culturas musicais que penetraram deinitivamente no fazer-se da sociedade brasileira contemporânea. Tais culturas musicais igualmente podem nos ensinar muito sobre as sociedades africanas e diaspóricas. SAIBA MAIS SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Viola D’Angola, som de raiz. IN: Historia Viva, Temas brasileiros, Edição Especial temática número 3, São Paulo: Duetto, 2006 Racismo: uma historia. BBC de Londres, 2009 The blues. Feel lik going home. Martin Scorcese, Volume I, GNT: Focus Music, 2003 30 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Referências Bibliográficas ARAUJO, Emanoel (Org.). “Negros Pintores”. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Imprensa Oicial; Museu Afro Brasil, 2008. ______. “João e Arthur Timótheo da Costa: os dois irmãos pré-modernistas brasileiros”. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013. ______. “A mão afro-brasileira: signiicado da contribuição artística e histórica”. 2. Ed. Revista e ampliada. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo, 2010. ARAUJO, Emanoel. LAUDANNA, Mayra. (0rg.) “De Valentim a Valentim: a escultura brasileira – século XVIII ao XX. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010. CASTAGNA, Paulo. Música na América Portuguesa. In: MORAES, José Geraldo Vinci; SALIBA, Elias Thomé. História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010. CURTI, Ana Helena. MAGALHÃES, Fábio. (Org.). "Aleijadinho e seu tempo: fé, engenho e arte”. (Catálogo de Exposição). 2. Ed. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2007. LODY, Raul. Candomblé: Religião e resistência cultural. São Paulo: Ática, 1987. p. 15 NAVES, Rodrigo. “A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. O LIVRO da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SCHWARCZ, Lilia Moritz. “O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João”. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. TIRAPELI, Percival (Org.). “Arte sacra: barroco e memória viva”. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo: editora UNESP, 2005. SANTOS, Antônio Carlos dos. Músicos negros (os): escravos da fazenda de santa cruz no rio de janeiro (1808-1832). São Paulo: Annablume, 2009. WIKIMEDIA. A subida do Calvário – Aliejadinho. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Seis_Capelas_dos_Sete_Passos_da_Paix%C3%A3o,_Santu%C3%A1rio_do_Bom_Jesus_de_Matosinhos,_Congonhas_do_Campo,_Brasil>. Acesso em 1 fev. 2016. 31 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Unidade 3. Manifestações culturais e artísticas na diáspora negra a partir dos registros iconográficos: instrumentos e musicalidade Texto 1 Início do século 20: o artista negro entre o popular e o erudito Por Renata Aparecida Felinto dos Santos Objetivo Apresentar artistas negros e a produção em Artes Visuais no início do século XX, bem como algumas tensões para conquistar espaço, visibilidade e reconhecimento. A introdução do sistema de ensino de Artes Visuais de acordo com os cânones das academias europeias trouxe grandes transformações para a produção visual brasileira. No caso dos artistas negros, destacamos que eles foram paulatinamente excluídos enquanto criadores e incorporados enquanto temática durante o período modernista. Do início até meados do século XX, infelizmente, são poucos os nomes que podem ser mencionados. Contudo, o acontecimento mais importante desse período foi a incorporação de temáticas voltadas à cultura negra por parte dos artistas afrodescendentes. Indubitavelmente, foi uma vitória o artista negro ou negra falando de si e dos seus. Os artistas da transição: Irmãos Timótheo e Wilson Tibério Os desaios enfrentados pelos artistas negros e mestiços mencionados no capítulo anterior eram diversos. Manter-se na AIBA enquanto estudantes de Artes Visuais equivale aos estudantes negros e mestiços e mesmo brancos sem recursos que, nos dias atuais, tentam manter-se numa universidade pública ou em cursos de graduação custeados pelo Governo. Há questões relacionadas à distância, moradia, alimentação, dentre outros, somados aos altos custos dos materiais empregados nos estudos artísticos. Alguns dos artistas citados, como é o caso de Estevão Roberto da Silva, abandonou seus estudos por mais de uma vez devido à necessidade de trabalhar para contribuir com o sustento de sua família, esse é um dos casos dos quais temos conhecimento. Segundo Arthur Vale, a maioria dos pintores negros contemporâneos aos irmãos Timótheo da Costa, não faltaram obstáculos e adversidades em seus caminhos (VALE em ARAUJO, 2013). Alguns poucos artistas negros foram apadrinhados, como ocorreu com os irmãos Timótheo da Costa que, desde a pré-adolescência já aprendiam gravura e desenho na Casa da Moeda do Rio 32 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances de Janeiro devido à proteção de Ennes de Souza, então diretor da instituição. Posteriormente ingressaram na AIBA, cujo nome foi alterado para Escola Nacional de Belas Artes, a ENBA, na ocasião da Proclamação da República. A carreira dos irmãos despontou entre o inal do século XIX e inicio do XX, ou seja, entre o processo de libertação dos escravizados e a sua incorporação mal sucedida à sociedade. Nas Artes Visuais, o foco estava na pesquisa de novas formas de pintar e de representar desenvolvidas na Europa e trazidas para o Brasil por diversos artistas. Dentre essas inovações destacamos o Pontilhismo, o Fauvismo, o Expressionismo e os chamados movimentos artísticos surgidos no inicio do século XX. João o irmão mais velho e Arthur o irmão mais jovem. Na aurora do século XX, foram eles os artistas negros de maior destaque devido aos trabalhos que executaram principalmente no Rio de Janeiro. Painéis e murais realizados sob encomenda para locais frequentados pela elite branca carioca como o Salão do Copacabana Palace. Foram artistas negros formados a partir do gosto das elites pelo Neoclássico, ainda que ambos tenham experimentado novas formas de pintar, como João que realizou diversos trabalhos inluenciados pelo Pontilhismo. Já Arthur, foi um dos raros artistas negros a ganhar o prêmio de viagem à Europa na Exposição Geral de Belas Artes. Prêmio muito ambicionado pelos artistas participantes da exposição. Tinha como inalidade o aperfeiçoamento das técnicas artísticas dos seus vencedores no contato com o meio europeu. A tela vencedora se chama “Antes do Aleluia” (1907), e encontra-se no acervo do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1911, os irmãos viajam juntos para Itália acompanhando outros artistas, todos convidados a realizar a decoração do Pavilhão Brasileiro na Feira Internacional de Turim. Ainda que os irmãos tenham tido uma carreira com algum reconhecimento por parte de críticos respeitados na época, como Luis Gonzaga Duque Estrada (1863-1911), os percalços que acompanharam as suas carreiras os marcaram profundamente, tanto que ambos passaram os seus últimos dias no Hospício dos Alienados no Rio de Janeiro. Morreram muitos jovens. Arthur faleceu em 1923 e João em 1932. Encaixar-se nas convenções da Arte e do ambiente erudito e elitista não deveria ser simples, inclusive, porque se observarmos as produções desses artistas, salvo alguns poucos retratos de negros e negras, a identidade afrodescendente deveria praticamente ser suprimida para que houvesse uma aceitação social. Na contramão dessa lógica está Wilson Tibério (1923-2005), pintor nascido no Rio Grande do Sul, de formação autodidata. Há escassas informações acerca de sua produção, mas em princípios do século XX ele foi talvez o único pintor negro a se voltar aos temas relacionados à cultura afro-brasileira. Tanto que o antropólogo Artur Ramos (1903-1949) airmou que Tibério era o restaurador da tradição africana na arte negra (ARAUJO, 2008, p. 58). Entre os temas mais comuns encontrados em suas obras estão as cenas de culto do Candomblé, como a aquarela “Cena de Candomblé”, feita em graite e aquarela. Para os artistas brancos modernistas a cultura afro-brasileira e a própria igura do negro, tornaram-se assuntos primordiais no sentido de se resgatar ou de se forjar uma identidade brasileira. Essa escolha estava alinhada com as estratégias empregadas pelo Governo Vargas, de se utilizar de manifestações e símbolos populares como forma de se aproximar da população mais simples. Coincidentemente muitos desses símbolos eram de origem africana como o samba, por exemplo. Já para os artistas negros e mestiços, esses símbolos, apesar de comporem uma herança africana, não faziam parte de seus repertórios temáticos. Isso ocorreu porque historicamente a par- 33 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos ticipação de africanos e de afrodescendentes na formação da sociedade e da cultura brasileira foi desvalorizada, marginalizada ou subestimada. Por isso, em vez de se mostrarem orgulhosos desse passado e de sua cultura, negros e mestiços negavam suas origens numa tentativa de aceitação, de encaixe num sistema estruturado a partir dos privilégios obtidos por famílias durante o período da escravidão, pela eicácia do racismo e pela submissão às elites. Se observarmos esse contexto com um olhar mais critico, notaremos que ele permanece pouco alterado até a atualidade. Poucos foram os que, como Tibério, se voltaram à cultura afro-brasileira enquanto assunto. Curiosamente, como ocorre até os dias atuais com muitos artistas negros que se debruçam sobre essa temática, o êxito artístico e proissional de Tibério deu-se no exterior. Em 1943, recebeu uma bolsa de estudos da ENBA para aprimorar seus conhecimentos na França. Não há informações suicientes se assim o artista decidiu previamente ou se foram as circunstâncias momentâneas que o incentivaram a não retornar mais ao país, viajando por países como Rússia, China, Itália, Senegal e vindo a falecer na França em 2005. Cena de Candomblé, século XX, de Wilson Tibério. Acervo do Museu Afro Brasil. Modernismo brasileiro: negro enquanto símbolo da identidade nacional Os estudos em História da Arte Brasileira consideram que o modernismo possui três fases. A primeira, de 1922 a 1930, iniciada a partir do advento da Semana de Arte Moderna, ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo, na qual as inovações estéticas ocorridas na Europa são incorporadas às criações de artistas brasileiros. A segunda, de 1930 a 1945, tanto no campo da visualidade, da musicalidade quanto da literatura é marcada pelos temas nacionalistas. A terceira, de 1945 a 1960, é conhecida pela maior liberdade dos artistas e escritores para expe- 34 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances rimentarem novas formas e ritmos. Na literatura, em especial, essa experimentação passa por regionalismos e a busca por raízes mais autênticas e profundas de uma brasilidade. A primeira fase do modernismo é a mais intelectualizada e elitizada, tanto que a Semana de Arte Moderna ocorre num dos endereços mais privilegiados de São Paulo. Para compreender e se identiicar com o que defendiam os artistas que participaram desse evento, era fundamental o conhecimento das vanguardas europeias, ou seja, dos principais movimentos artísticos que estavam em voga naquele momento, como o Futurismo, o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, o Expressionismo dentre outros de menor abrangência. Nesse sentido observemos obras como “O Abaporu”, de 1923, de Tarsila do Amaral (1886-1973), palavra de origem tupi que signiica “homem que come gente”. A pintura possui elementos cubista como a simpliicação, geometrização das formas e cores chapadas. Já na segunda fase, muitos artistas viam na igura, na história e cultura do negro, a materialização de nossa essência brasileira que era almejada pelo Governo Vargas, isso como estratégia de uniicação nacional. Muitos proissionais como antropólogos, sociólogos, historiadores, escritores, músicos e artistas visuais, também demonstraram esse interesse. Dessa maneira, artistas não negros desenvolveram obras tendo o negro e sua cultura enquanto tema. Além da, já mencionada, Tarsila do Amaral, podemos incluir nesta lista Lasar Segall, Alberto da Veiga Guignard, Candido Portinari, Djanira da Motta e Silva, José Pancetti, Santa Rosa, Alfredo Volpi, Emiliano Di Cavalcanti, Mário Cravo júnior, dentre muitos outros. Os artistas negros e mestiços passam a ter alguma visibilidade na terceira fase do modernismo, na qual podemos mencionar os trabalhos de Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962) e de Heitor dos Prazeres (1898-1966). Estes artistas não tiveram uma formação acadêmica em Artes Visuais e podem ser considerados artistas autodidatas. No caso de Agnaldo, começou como vigia no ateliê do artista baiano Mario Cravo Júnior, passou a esculpir em 1953, recebendo orientações desse artista e do Mestre Biquiba Dy Lafuente Guarany (1884-1985), com quem teve contato a partir de uma viagem percorrendo o Rio São Francisco. Essa informação é fundamental porque há algo de carranca de navegações em alguns trabalhos de Agnaldo, e muito possivelmente tal característica se deve a esse contato, já que Biquiba é considerado o mestre dessa arte. A partir de então passa a criar seus próprios trabalhos desenvolvendo um estilo que dialoga diretamente com esculturas africanas de tradição iorubana. Representações de cunho sacro, com variações entre o universo católico e candomblecista permeiam os temas escolhidos por esse escultor falecido precocemente e cuja arte foi reconhecida em vida. Já Heitor dos Prazeres, dentre seus múltiplos talentos, como o de compositor e musicista, expressou a sua facilidade pela pintura como funcionário do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), restaurando pinturas. Em 1937, estimulado pelo jornalista e desenhista Carlos Cavalcanti, passou a realizar as suas próprias pinturas tendo como tema central as festas e danças afro-brasileiras como o samba, o carnaval, o frevo, o chorinho. Também registrou a vida nos morros cariocas por meio de um olhar no qual sobressaia os aspectos positivos desse cotidiano, como as feiras de rua, as brincadeiras infantis, as lavadeiras, a vizinhança amistosa, etc. 35 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Neste mesmo período despontam talentos como os de Rubem Valentim (1922-1991), Emanoel Araujo e Yêdamaria. Os dois primeiros trazendo a temática dos orixás em diálogo com o movimento Concretista, enquanto que Yêdamaria enveredou pelas paisagens e naturezas mortas. Dessa forma, protagonismo negro nas Artes Visuais vai ganhando terreno. Falar sobre suas próprias histórias, apesar do sistema das Artes compostos por críticos, galeristas e marchands, dentre outros, realizarem uma leitura exótica e folclorizante acerca dessas escolhas, passa, em verdade, a ser uma das tônicas que movem as produções desses artistas. Os modos de ser e de viver dos afrodescendentes, suas crenças, tradições, estéticas, necessidades são temas de obras de arte elegidas pelos próprios, e neste ponto reside uma grande importância transformadora, pois são negros e negras que por meio da arte dão voz à parte signiicativa da população brasileira. Uma das pinturas de Heitor dos Prazeres que retrata o cotidiano nas comunidades negras do Rio de Janeiro. Acervo desconhecido. Considerações Finais Os poucos artistas afrodescendentes conhecidos que produziram dentro desse recorte cronológico, tinham grandes dilemas em relação às suas produções artísticas. Um deles era atender aos cânones implantados pela antiga AIBA, transformada em ENBA com a chegada da República, ou seja, incorporar modos de pensar e produzir Arte que estivessem alinhados ao que se fazia nas academias europeias. Outro muito signiicativo era o distanciamento de uma temática que apresentasse estéticas ou temáticas que se voltassem às suas culturas ancestrais africanas. Dessa forma, recuperar e abordar a identidade negra nas Artes Visuais signiicava o risco da não aceitação e do não recebimento de encomendas. No entanto, como aponta a produção de Wilson Tibério, alguns artistas se dispuseram a enfrentar esse sistema com suas obras. Ele abre caminho aos demais como Heitor dos Prazeres, Rubem Valentim, Emanoel Araujo, Agnaldo 36 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Manoel dos Santos e Yêdamaria que são artistas bem sucedidos em termos de reconhecimento e de comercialização de duas obras, todos eles com produções pertencentes a grandes museus nacionais e internacionais. SAIBA MAIS Representações do Negro no Modernismo Brasileiro. Autor: Renato de Souza Porto Gilioli, Noovha America, 2010. Site DezenoveVinte especializado em Arte do século XIX e início do XX no Brasil, disponível em < http://www.dezenovevinte.net/> O Negro na História da Arte Nacional, disponível em <https:// www.youtube.com/watch?v=rLGWg5Ns6f0> Museu Afro Brasil - <www.museuafrobrasil.org.br> Referências Bibliográficas ARAUJO, Emanoel (Org.). João e Arthur Timótheo da Costa: os dois irmãos pré-modernistas brasileiros. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013. ______. A mão afro-brasileira: signiicado da contribuição artística e histórica. 2. Ed. Revista e ampliada. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010. ______. Yêdamaria. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo, 2006. CUNHA, Mariano Carneiro da. Arte Afro-Brasileira. Em ZANINI, Walter (Org.). História Geral da Arte no Brasil. 2 v. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. NINA RODRIGUES, Raymundo. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008. 37 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Texto 2. Artes Visuais e os temas da religiosidade afro-brasileira, raça, gênero e política Por Renata Aparecida Felinto dos Santos Objetivos • Conhecer e reletir sobre as manifestações da religiosidade afro-brasileira nas Artes Visuais; • Reletir sobre a Arte Visual e as relações com os temas de raça, gênero e política, destacando nessa relexão a participação da mulher negra enquanto artista. A Religiosidade afro-brasileira e as Artes Visuais Wilson Tibério, apesar de pouco reconhecido, foi o pioneiro ao abordar a temática afro-religiosa em suas aquarelas e óleos. Por volta da década de 1950, o culto aos orixás passa a ser foco de interesse de pesquisadores e artistas estrangeiros, como o antropólogo francês Pierre Fatumbi Verger, e o artista argentino Bernabó Paride Carybé. A relação da sociedade brasileira com essa herança africana se transforma positivamente e os orixás passam a ser tema em letras de canções da MPB, como os afro-sambas de Baden Powell e temas centrais de pinturas e esculturas de Emanoel Araujo e de Rubem Valentim. Os rituais e a religiosidade afro-brasileira enquanto temática Durante algumas décadas o interesse pela arte produzida por afrodescendentes ou de temática negra, restringiu-se aos objetos estéticos empregados nos cultos afro-brasileiros, como o Candomblé, compreendidos enquanto fetiches e não enquanto obras. A denominação artes negras se fortaleceu, em parte, devido ao pioneiro estudo do médico e pesquisador Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Contudo, essa produção estética feita nas casas de Candomblé era vista com exotismo e mesmo crendice ou superstição. O texto de Rodrigues “As Belas Artes nos Colonos Pretos do Brasil” (1906), publicado na Revista Kosmos, do Rio de Janeiro, já trazia essa menção. Até por volta dos anos de 1970, as religiões de matriz africana tinham suas casas invadidas pela Policia e seus objetos de culto recolhidos e expostos nos chamados Museus de Polícia, ao lado de outros objetos realmente empregados em crimes como armas brancas ou de fogo. Essa prática hostil estava amparada nas noções de religiosidade africana forjadas pelo senso comum: coisa ruim, coisa do mal. Na década de 1950, estudos como os dos franceses Roger Bastide (1898-1974), “As religiões africanas no Brasil” e “O Candomblé da Bahia”, ambos de 1958, e de Pierre Verger (19021996), com diversos livros e artigos acerca do tema, como o livro “Orixás”(1951), revelaram aspectos poucos estudados acerca das mesmas, despertando o interesse e o respeito por uma 38 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances parte da intelectualidade brasileira. Desde então, tal interesse só tem se ampliado e, atualmente, brasileiros como o pesquisador Vagner Gonçalves da Silva têm popularizado informações sobre essas religiões por meio de uma linguagem menos acadêmica e mais acessível ao leigo interessado, facilitando a compreensão das mesmas. Nas Artes Visuais, depois de Wilson Tibério, Agnaldo Manoel dos Santos e Heitor dos Prazeres, outros artistas aprofundaram-se nos estudos e nas representações possíveis baseadas na temática afro-religiosa. Podem ser mencionados nomes como os de Rubem Valentim (1922-1991), Emanoel Araujo , José Adário, Mestre Didi (1917-2013), Jorge dos Anjos e Sérgio Soarez, estes dois últimos mais jovens e ainda produzindo. Nesse grupo há desde artistas que são simpatizantes dessas religiões até sacerdotes reconhecidos. Traremos a luz um artista iniciado e um sacerdote: Valentim e Didi. Rubem Valentim, baiano, foi jornalista, pintor, escultor e gravurista. Iniciou seus estudos em Artes Visuais na década de 1940, como autodidata. Participou de movimentos artísticos na Bahia, juntamente com artistas como o também escultor Mário Cravo Júnior. Teve uma profícua carreira artística, com reconhecimentos como prêmios, convites para lecionar, oportunidades de exposições no Brasil e no exterior. Um raro artista que além de produzir muito também reletia e escrevia acerca de sua produção. O texto “Manifesto ainda que tardio” (1976), é referencial para os que objetivam aprofundar os estudos acerca de seu trabalho para além da opinião da crítica de arte: “Minha linguagem plástico-visual-signográica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista) (...) A Arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade. (...) A iconologia afro-amerindia-nordestina-brasileira está viva. É uma imensa fonte – tão grande quanto o Brasil – e devemos nela beber com lucidez e grande amor” (VALENTIM em ARAUJO, 2001, PP. 28-9). Sendo afrodescendente, mestiço, é essa compreensão de uma identidade não ixa que Valentim deseja transpor em suas obras, tal qual nos fala Stuart Hall (1992). Há uma África que ecoa por meio da simbologia dos orixás empregada de forma geometrizante em suas esculturas, gravuras e pinturas, mas também há o elemento europeu na forma de arte adotada, que é a erudita e o ameríndio, gravada na ancestralidade do artista. A partir da soisticação das formas de Valentim, a leitura acerca das insígnias dos orixás ganham novos espaços de observação, como as salas de museus e de aulas. No caso de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, também baiano, a tradição do culto aos orixás estava circunscrita em seu destino por ser ilho de Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo (1890-1967) ou Iyá Nassô Oxum Muiwá, uma das mais importantes e respeitadas ialorixás do país. Assim, é de criança que ele possui responsabilidades no terreiro e é preparado para ser ogan, função estritamente masculina nas casas de Candomblé e que envolve diversas atividades. Também aprendeu a construir ferramentas rituais voltadas aos orixás do panteão da terra que formam a base do seu trabalho artístico, sendo eles Nana, Omolu e Oxumarê. 39 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Mestre Didi, artista e sacerdote, foi preparado para ser um Alapini, um sacerdote do culto aos ancestrais, do culto ao Babá Egun, que é uma força que concentra os ancestrais masculinos mais signiicativos. Empregando tiras coloridas de couro, búzios, contas e talisca de dendezeira, desenvolveu sua arte e a partir dela esteve em diversas exposições, dentro e fora do Brasil. Também foi reconhecido como Doutor Honoris Causa por importantes universidades e realizou trabalho de pesquisa em cultura africana para a UNESCO durante a década de 1960. Valentim e Didi apresentam, portanto, duas formas distintas de se trabalhar com a simbologia dos orixás. Uma ancorada nas raízes brasileiras a partir da miscigenação e do encontro com si e outra por meio de ancestralidades e continuidades, mesclando tradição e contemporaneidade. Fonte: Obra de Rubem Valentim | Acervo: Museu de Arte Moderna da Bahia Obra de Rubem Valentim onde encontramos setas e machados, que podem simbolizar Oxossi, o orixá caçador de lecha certeira, e Xangó, orixá da justiça. Entretanto, as relações que podem ser estabelecidas com a simbologia dos orixás nem sempre é tão literal assim em suas obras. Os artistas chamados populares e o fio da memória visual que remete à África Convenientemente e muito possivelmente para a manutenção de uma supremacia dos valores culturais, artísticos e estéticos eurocêntricos em nossa sociedade, cultura e arte estão divididas em suas categorias: erudita e popular. É dessa forma que importantes acervos, livros, produções estão organizadas para serem conhecidas, estudadas e apreciadas. O erudito passa pelo ensino de arte formal desde a nossa tenra idade: Ensino Infantil, Fundamental 1 e 2, Médio e Superior, com a possibilidade de pós-graduação dividida em mestrado, doutorado e pós-doutorado. O legado da arte e cultura populares foi e é construído por meio do que lhe foi legado e ensinado por nossos antepassados aos seus bisavós, avós, pais e por sua comunidade. O erudito é racional. O popular é emocional. O erudito é organizado. O popular é orgânico. O erudito é branco. O popular é negro, é indígena, é mestiço. Pode parecer uma radicalização, mas é apenas uma forma mais direta de compreensão do que ocorre em nossa sociedade que é colonizada e que nos coloniza nas formas de pensamento e de compreensão de nós mesmos. 40 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Já mencionado em outros capítulos, por falta de oportunidades pós 1888, data da Abolição da Escravidão no Brasil, o acesso aos serviços básicos de moradia, saúde, educação, transporte e trabalho, foram o grande desaio para a sobrevivência de famílias negras. Pensando nas Artes Visuais, apreciar, consumir ou ser um proissional dessa área era um luxo. Este cenário não desanimou afrodescendentes que buscaram as Artes Visuais como forma de expressão, seja de si e de seu imaginário como também de seu entorno e contexto social, econômico, cultural, religioso e mesmo onírico. Lembremos que mesmo antes da Abolição, por uma demanda religiosa, negros e mestiços, já esculpiam em madeira no período Barroco, e essa forma de esculpir segundo Marianno Carneiro da Cunha, se assemelhava a um fazer africano (1983). O que diríamos então de uma forma atávica de produzir arte? Especialmente na arte do esculpir, ou seja, quando uma característica de nossos antepassados se manifesta espontaneamente em nós. Observamos que na arte chamada popular, onde se concentram um grande número de artistas afrodescendentes, esse fenômeno ocorre na produção de alguns artistas. Artistas que passaram a incorporar em seus trabalhos uma estética que dialoga com as estéticas africanas, sem que para tanto fosse realizada uma pesquisa de referência acerca da arte de povos tradicionais. São muitos os nomes que merecem reconhecimento, e alguns já foram mencionados como os de Biquiba Dy Lafuente Guarany, Heitor dos Prazeres e Agnaldo Manoel dos Santos. Citamos ainda Chico Tabibuia (1936-2007), e suas esculturas que remetem a Exu; Nhô Caboclo (1910-1976), e seu simbolismo onírico; Artur Pereira (1920-2003), Lafaete Rocha (1934-), e as iguras antropozomorfas, que mesclam elementos humanos e animais; Maurino Araujo (1943-), que é um herdeiro da temática e da estética barroca; a Família Julião, que é a família de Zezinho Julião, dentre outros. Esses são os que atuam com escultura, exceto por Prazeres que era pintor, mas que, entretanto, mantinha algo de egípcio em suas iguras representadas sempre como na Lei da Frontalidade empregada pelos artistas dessa civilização (lembremos que Egito se localiza em África). Outros nomes que não compartilham desse atavismo estético podem ser lembrados, como os de Isabel Mendes da Cunha (1924-), ceramista mundialmente reconhecida por suas iguras femininas e casais de noivos; Waldomiro de Deus (1944-), pintor de cenas bíblicas e de comentários acerca do caos da contemporaneidade; Maria Auxiliadora Silva (1938-1974), e suas pinturas extremamente coloridas com texturas de cabelos; Raquel Trindade de Souza (1936-), e as pinturas que representam festas populares do povo negro; e, por im, Sérgio Vidal (1945-), que é um herdeiro de Prazeres ao adotar enquanto tema o cotidiano de famílias negras no Rio de Janeiro. Muitos desses artistas expressam uma africanidade ancestral de forma inegável por meio de esculturas, especialmente as que têm na madeira sua matéria prima. 41 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Fonte: esculturas de Artur Pereira Uma das esculturas de Artur Pereira realizada em madeira na década de 1970. Construída em forma de torre, possui relações estéticas com algumas esculturas tradicionais africanas como a apresentada abaixo. Esse seria o atavismo artístico de que nos fala o texto. Escultura Makonde, etnia do Norte do Moçambique e Sul da Tanzânia. Há semelhanças entre as esculturas dessa tradição e algumas esculturas de arte popular. 42 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Considerações A religiosidade afro-brasileira focada no culto aos orixás é, ainda que timidamente, o primeiro tema que artistas afrodescendentes trataram objetivando a abordagem de uma origem comum, de uma reconexão com o passado africano e airmadora de uma identidade até então negada ou negligenciada. Se para os artistas ditos eruditos apontar a herança cultural, social, religiosa e artística da qual são herdeiros demonstrou-se, em alguns momentos, ser um assunto tabu, para os artistas chamados populares esse assunto alorou de forma mais espontânea. É importante frisarmos que para os mesmos, por não estarem diretamente em contato com o sistema da arte composto por críticos, historiadores, galeristas, curadores, dentre outros, havia uma maior liberdade na escolha dos temas. Muito do que foi e é produzido por artistas negras e negros, pode ser relacionado a uma estética presente nas esculturas de povos tradicionais africanos. SAIBA MAIS FROTA, Coelho Lélia Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro – Século 20. Editora Aeroplano, 2005. Galeria Estação, disponível em < http://www.galeriaestacao.com. br/> Lélia Coelho Frota – Criações Populares, disponível em < https:// www.youtube.com/watch?v=1lzpznQQARc> Pavilhão das Culturas Brasileiras - <http://www.parqueibirapuera. org/equipamentos-parque-ibirapuera/pavilhao-das-culturasbrasileiras/> Raça, Gênero e Política: artistas afrodescendentes em primeira pessoa Temos visto, ao longo das unidades anteriores, que raça, cor ou segmento étnico-racial tem sido uma característica fenotípica ou condição de existência posta à margem das discussões que envolvem o sistema de arte. Artistas visuais afrodescendentes e temáticas que contemplem suas histórias, culturas e vivências foram obliteradas por muito tempo por motivos diversos, alguns deles já mencionados como a inexistência ou a fragilidade da consciência de cor e de grupo, ou seja, de pertencimento. Assim, apresentamos algumas transformações fundamentais para se pensar nas Artes Visuais como linguagem que visa à produção do belo a ser contemplado, mas também do discurso a ser ponderado. As artistas e os artistas aqui apresentados com potentes produções a partir de 1970 questionam o mundo a partir de suas compreensões como afrodescendentes, frutos de um processo histórico violento e agressivo. 43 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Yêdamaria e suas discípulas Se a inserção do homem negro artista foi e é árdua, nos perguntemos como se dá a questão da mulher negra artista. Recordemos que historicamente, além de serem a base da pirâmide social brasileira, sendo as que menos recebem e as que mais trabalham, elas também possuem, em sua maioria, papel de “chefes” de família em muitas regiões do país, visto a desestruturação familiar secular que acomete as famílias negras. Atualmente, vislumbramos transformações, pois não são mais raras as mulheres negras nas universidades em número maior do que os de homens negros. Nas Artes Visuais, citamos o pioneirismo de Yêdamaria. Filha única de uma família de professores baianos, Yêdamaria demonstrou ainda muito criança o interesse pela visualidade. Criada pela mãe viúva, por um tempo segue o mesmo ofício de seus antecessores familiares, o de professora. Mais tarde ingressa na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Na década de 1970, chega aos Estados Unidos, como a primeira aluna negra da UFBA a sair do país para realizar estudos de mestrado. Foi essa oportunidade muito bem aproveitada, que lhe possibilitou difundir seus trabalhos. Se antes pintava barcos de formas geometrizada neste momento redescobre a cultura negra baiana após o contato com os movimentos negros estadunidenses de luta pelos direitos civis. Iemanjá se torna um de seus temas prediletos. Entretanto, tal qual uma herdeira temática do já mencionado Estevão Roberto da Silva, ao retornar ao Brasil, Yêdamaria se dedica às naturezas mortas. Atualmente a pintora e gravadora vive e trabalha em Salvador, Bahia. Como discípulas da artista, outras mulheres negras artistas vêm escrevendo para si outros caminhos que não mais de chefes de família, funcionárias domésticas e “mulatas exportação”. Podemos mencionar Rosana Paulino (1967-) que tem como mote central fotograias antigas e desenhos, sejam de suas familiares, sejam de anônimas todas negras; e Renata Felinto (1978-), que se pauta na questão da identidade negra feminina e suas conexões com a globalização e a ancestralidade. Ou ainda, Michelle Mattiuzzi, que opera de um modo muito particular, por exemplo, é desconhecida a sua data de nascimento e morte como estratégia artística, bem como seu nome não é verdadeiro. Mattiuzzi explora seu próprio corpo negro fora dos padrões hegemônicos de beleza enquanto performer. Já Janaina Barros (1979-), trata tanto das questões de padronização do corpo feminino quanto da afetividade invisível das mulheres negras, num mundo onde são, constantemente, preteridas pelos próprios homens negros. E, inalmente, Priscila Rezende (1985-), que também atua como performer, traz à discussão a padronização da beleza por meio de imposições estéticas, como o “problema” do cabelo crespo que é associado de forma racista ao produto de limpeza de panelas esponja de aço. Todas essas artistas, apesar das adversidades socioeconômicas e culturais, são mulheres graduadas, pós-graduadas e, à fórceps incluem-se, paulatinamente, no mercado de arte, ainda que meios formais como as galerias, institutos e centros de cultura e museus ainda demonstrem muita resistência à apresentação de propostas de arte que escancaram as questões étnico-raciais. Aprofundaremo-nos na produção de Rosana Paulino e de Janaina Barros. Paulino, após o pioneirismo de Yêdamaria, é a artista que possui maior circulação no mercado de arte nacional e internacional, com positiva aceitação de sua produção por galerias, curadores e museus brasileiros. Graduada pela Escola de Comunicação e Artes da USP, especializada em gravura pelo London Print Studio, na Inglaterra, com bolsa concedida pela CAPES, e Doutora em Artes 44 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Plásticas também pela ECA/USP, a partir da bolsa concedida pela Fundação Ford, Rosana se considera, primeiramente, uma desenhista. Seus primeiros trabalhos despertaram a atenção de críticos de arte já durante a graduação. A condição da mulher negra na sociedade brasileira tem sido a sua tônica dominante. Barros, traz relexões importantes acerca da mulher negra nos espaços domésticos, no seu próprio lar e a falta de afeto vivida pela negras. Ela compõe a geração de artistas que percorre diversas linguagens para se expressar, do desenho à performance. Bacharel e Mestra em Artes Plásticas e Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, desenvolveu estudos teóricos e técnicos com artistas e críticos de renome no meio das Artes Visuais. A afetividade da mulher negra aparece na série “Sou todo Seu”, na qual objetos de uso doméstico são utilizados para serem vestidos, são confeccionados com tecidos brilhantes, rendas e bordados e contêm pedidos como “Toca-me” ou “Bulina-me”, sugerindo a falta de acolhimento e proximidade que o ambiente doméstico pode gerar. As artistas mulheres negras do século XXI estão compartilhando com os demais, por meio das Artes Visuais, suas histórias, suas dores, seus desejos, suas faltas e é a partir desses trabalhos que essas poucas se tornam porta-vozes de muitas outras. Coleção Particular. Fotograia: Janaina Barros/ Wagner Viana. Invólucros da série “Sou Todo Seu”, 2010, da artista plástica Janaina Barros, que nos fala da afetividade, dos desejos e anseios das mulheres negras nos espaços domésticos. Século 21: artistas afrodescendentes em primeira pessoa A história da população negra em nosso país está sendo pesquisada com profundidade e considerando o protagonismo negro, ou seja, os seus papéis de destaque na historiograia nacional. Isso se deve, em parte, à Lei 10.639/03, que obriga o ensino de história afro-brasileira nas instituições de ensino. Antes, salvo parcos pesquisadores, em sua maioria, brancos, generalizações, estigmas e preconceitos sobre os africanos e seus descendentes no Brasil eram reproduzidos enquanto verdades, porém sem fundamentos. Por exemplo: “os negros são mais fortes”, ou “os negros são mais preguiçosos”, ou ainda, “os negros são sexualmente vorazes”. Há uma ininidade de airmações estereotipadas transmitidas por séculos até os dias atuais e que ainda são reproduzidas e ouvidas Brasil afora. Entretanto, verdade é que as mesmas não possuem nenhum amparo cientíico, ainda que no século XIX tenham surgido e se propagado pseudo-cientistas que “comprovariam” a inferioridade biológica dos negros, como o Darwinismo Social, transposição das descobertas de Charles Darwin (1809-1882) publicadas em seu livro “A Origem das Espécies” (1859), para o ambiente humano. 45 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Uma nova geração de pesquisadores de Humanidades e Artes tem demonstrado grande interesse por aprofundar informações acerca de seus antepassados, das relações étnico-raciais em nossa sociedade que vão do campo da inclusão social e proissional até às questões psíquicas e afetivo-sexuais. Busca-se uma compreensão de si por meio do todo, do indivíduo ao coletivo. Esse é um momento único e histórico no qual se delineia a primeira real oportunidade de afrodescendentes terem acesso ao estudo superior e ele tem um grande relexo nas Artes Visuais. Não são poucos os artistas negros e mestiços que hoje falam sobre a história de seu povo em suas obras de forma inteligente e crítica, sem cair na armadilha do panletarismo, ou seja, não permitindo que suas obras assumam o discurso de reivindicação ou de militância mais do que as qualidades estéticas e conceituais dos seus trabalhos. Assim sendo, nessa geração do século XXI, há homens e mulheres que têm se imbuído desse papel de narradores visuais, além das artistas visuais já mencionadas no capítulo anterior como Rosana Paulino, Renata Felinto, Michelle Mattiuzzi, Janaina Barros e Priscila Rezende, podemos apontar outros nomes. Sidney Amaral (1973-) realiza autorretratos que dialogam com a história e a cultura popular brasileira; Tiago Gualberto (1983-) trata mais diretamente da história do Brasil e das questões de identidade que dizem respeito a ser mestiço nesse país; Moisés Patrício (1984-) transita da abstração em gravura até as fotograias, nas quais oferece objetos diversos aos observadores de seus trabalhos, dentre outros. Ressaltamos um caráter que é comum a todos os artistas citados. As religiões de matriz africana não são mais o mote criativo principal desses artistas visuais, o que demonstra que os processos de criação dos mesmos não são mais ancorados pelos ditames do mercado de arte, por quem escreve sobre, por quem expõe ou adquire as obras. O antigo fascínio de colecionadores, curadores e críticos por obras de arte que ao falar acerca do negro, falavam a partir do aspecto religioso, reduzindo um povo inteiro a esse símbolo de resistência, não é o que mais importa a esses artistas. Importa-lhes sim compartilhar indagações, posicionamentos e descobertas que estão em suas visualidades por uma necessidade de propor um novo olhar sobre os temas que lhes importam enquanto artistas e afrodescendentes. Concomitantemente a essa nova postura, destacamos que isso não signiica que tenha havido uma adesão por parte do sistema de arte no que diz respeito a esse posicionamento. Alguns já estão inseridos nesses espaços de reconhecimento, de divulgação e de prestigio, todavia, apesar de importar (e muito) essa representação, não é ela que norteia as trajetórias desses artistas. Apresentaremos brevemente as produções dos jovens mineiros Tiago Gualberto e Priscila Rezende. Gualberto é formado em Engenharia Têxtil pela USP Leste e tem desenvolvido extensa produção por meio de linguagens como a gravura (com a qual já foi premiado fora do país) instalação e performance. O tema do navio negreiro aparece algumas vezes em seus trabalhos seja em fotos 3x4 de diversos indivíduos, homens e mulheres, transferidas para caixas de fósforos e compostas conjuntamente em uma parede; seja via composição elaborada por palitos de fósforos formando uma silhueta de um navio negreiro em vista aérea (planta baixa), e, posteriormente, queimada, quase um happening (nome dado a trabalhos de Artes Visuais provenientes de um conjunto de ações, palavra inglesa que traduzida signiica “acontecendo”, “acontecimento”). Nesses trabalhos os questionamentos acerca do aprisionamento de pessoas e a travessia do Atlântico onde distintos povos africanos se misturam são a atualização da condição de indivíduos em cárcere, mas hoje, num sistema que não os reconhece inteiramente como cidadãos. 46 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Rezende é graduada em Artes pela Escola Guignard, da UFMG, e tem como material de seus trabalhos seu próprio corpo a partir da arte da performance. Em uma de suas performances mais conhecidas ela questiona os modelos de beleza adotados pela sociedade brasileira, amparado nos valores estéticos norte-americano e europeu e divergente do fenótipo, ou seja, da aparência física da maioria esmagadora dos brasileiros, ou melhor, brasileiras. Faz isso usando seus cabelos crespos para lavar panelas de alumínio numa explícita alusão à relação ofensiva entre os mesmos e a palha de aço utilizada para polir panelas. Essa geração pode até ter alguma diiculdade para derrubar as barreiras que separam artistas negros e brancos e, consequentemente, temáticas negras e brancas, no competitivo e hermético circuito das Artes Visuais. Mas, certamente, com o público fruidor dessas obras, as barreiras já foram derrubadas, pois é inegável o interesse e a identiicação ao se deparar com esses trabalhos. A artista visual Priscila Rezende realizando a performance “Bombril”, de 2010 na qual critica o padrão feminino de beleza que traz como norma os cabelos lisos ou alisados, a partir da retomada da ofensa que compara os cabelos crespos a esponjas de aço. Coleção da artista. Fotograia: Priscila Rezende. SAIBA MAIS Arte Afro-Brasileira Para Quê?. Autor: Alexandre Araujo Bispo e Renata Aparecida Felinto dos Santos. Revista O Menelick 2º Ato, 2014. Disponível em: < http://omenelick2ato.com/artes-plasticas/ ARTE-AFRO-BRASILEIRA-PARA-QUE?/> Rosana Paulino, disponível em < http://www.rosanapaulino.com. br/> Entrevista Janaina Barros. Autor: Nabor Júnior. Revista O Menelick 2º Ato. Disponível em < http://vimeo.com/80947194> Biblioteca Carolina Maria de Jesus – Museu Afro Brasil - <www. museuafrobrasil.org.br> 47 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Referências Bibliográficas ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: signiicado da contribuição artística e histórica. 2. Ed. Revista e ampliada. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010. ______ (Org.). Negros Pintores. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Imprensa Oicial; Museu Afro Brasil, 2008. ______. João e Arthur Timótheo da Costa: os dois irmãos pré-modernistas brasileiros. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013. ______. Mestre Didi: Homenagem aos 90 anos. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2009. ______. Yêdamaria. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo, 2006. BARJA, Wagner. FONTELES, Bené. Rubem Valentim: artista da Luz. (Catálogo de Exposição). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. CLEVELAND, Kimberly. Black Art in Brazil: Expressions of Identify. Florida: University Press of Florida, 2013. CUNHA, Mariano Carneiro da. Arte Afro-Brasileira. Em ZANINI, Walter (Org.). História Geral da Arte no Brasil. 2 v. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Tradução: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar Editores (1979). 48 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Unidade 4. Manifestações culturais na diáspora: tocadores, história do samba e polifonia dos protestos negro Texto 1. Trocas, conflitos e mudanças culturais na diáspora: Tocadores no bairro do Braz Autor: Salomão Jovino da Silva Objetivos Reletir sobre trocas, conlitos e mudanças culturais a partir do bairro do Braz; e compreender a origem do samba e sua relação com a história da cultura negra. Jacob Penteado no seu livro de memórias, “Belenzinho 1910”, narra a presença de músicos negros no bairro do Braz, em São Paulo no início do século XX, em uma festa de comemoração da abolição da escravatura. O Braz, que não ica longe da área central da cidade, é antiga zona de chácaras e granjas produtoras de hortaliças e alimentos para subsistência. Ao longo do processo de industrialização foi convertido em bairro operário. “No dia 12 de maio, à véspera, portanto, daquela data, à boca da noite, começavam a chegar negros que nem formiga. Vinham sozinhos ou em magotes, todos empunhando os mais variados instrumentos: bombos, chocalhos, pandeiros, atabaques, triângulos, maracas, tamborins, reque-reques, puítas, urucungos, marimbas, adufes e outros herdados, quiçá, dos seus ancestrais africanos”. Não é possível saber se o autor grafou tais instrumentos segundo os nomes empregados por seus usuários ou se recorreu aos estudos folclóricos para identiica-los. Mas parece surpreendente que a cidade, que nos anos 1970 passou a ser identiicada em uma canção como “túmulo do samba”, 60 anos antes tivesse uma presença musical negra tão rica em instrumentos musicais, inclusive a Marimba. Há tantos outros registros desse tipo de instrumento no Brasil, mas raramente no estado de São Paulo, exceção nas congadas de Caraguatatuba e São Sebastião, a segunda já mencionada por Kazadi Wa Mukuna, registrada no cd Cristãos e Mouros, documentos sonoros brasileiros (Cachuera:Itaú,1998) e pesquisada por Rossini Tavares de Lima (LIMA,1969) nos anos 1960 e Iracema França Lopes Correa (CORREA,1981), publicada sob o título: A congada de Ilhabela na festa de São Benedito. 49 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Em Ilhabela a Congada manteve, até bem recentemente, uma estrutura narrativa com base na ressigniicação da memória da guerra entre os reinos que compunham o antigo império do Congo. Os grupos se coniguram em embaixadas e os confrontos são simulados com bailados, coreograias extremamente elaboradas, cuja mimese escapa aos assistentes e não iniciados na prática dos congadeiros, músicos. Além de marimbas, eram utilizados dois atabaques, para acompanhamento dos textos orais e do canto. Xilofones em Moçambique recebem o nome de Timbila, Balafon no Sengeal, Bala e Balandji na Guiné Bissau. Por comparação, levando-se em conta as distancias temporais e possíveis intercâmbios mais recentes, será possível inferir a origem da marimba da Congada de Ilhabela. De qualquer forma se os primeiros registros imagéticos de xilofones demonstram sua incidência na região norte do país, os últimos apontamentos da sua utilização incidem sobre a região sudoeste, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. A Marimba foi assimilada a música ocidental na Europa, no inal do século XX. Stravisnk e Jean Cocteau escreveram as primeiras peças para o “exótico” instrumento africano. Não temos conhecimento se modernistas brasileiros no processo de “nacionalização” da música erudita atentaram para as possibilidades criativas da marimba. Domingos Morais (1986) cita, por exemplo, o navegante português Luis Cadamostro que visitou a desembocadura do Rio Senegal em 1455 e registrou a presença de balafons entre tambores “mouriscos” e instrumentos de cordas, “violetas de duas cordas”. Descreve um encontro musical em que os africanos “também se maravilharam com o som de nossa gaita de fole, que eu iz tocar um marinheiro meu”. E talvez o primeiro registro europeu de um encontro entre musicalidades africanas a ibéricas ainda no século XV. A iconograia: pinturas, desenhos, gravuras, fotograias, etc. são documentos que dão indícios de intercâmbios e conlitos socioculturais envolvendo escravizados e libertos negro-mestiços e a sociedade mais abrangente durante o período em que predominou a escravidão. As musicalidades que eram fundamentais no contexto africano, certamente não deixaram de sê-lo quando milhões de homens, mulheres e crianças de pele escura passaram a serem capturas e enviadas como mercadorias ao novo mundo, na condição de escravizados. Na diáspora dos africanos estas musicalidades converteram-se na em formas diferenciadas de sociabilidade. Gravuras como as de Carlos Julião do inal do século XVII, também indicam que instrumentos musicais africanos como as marimbas passaram a ser usadas ao lado de violas portuguesas, por homens e mulheres de origem africanas. São, portanto, narrativas e imagens que permitem entrever a presença não desprezível de instrumentos africanos modelando uma outra cultura musical que já não era lusitana, nem africana. A predominância crescente de instrumentos cordofônicos ibéricos utilizados por afro-descendentes, possibilita pensar sobre as apropriações por parte destes, das técnicas de fabricação e manuseio das violas, mas também podemos inferir sobre técnicas, conceitos africanos empregados em instrumentos ibéricos. Talvez o que caracterize as culturas africanas na diáspora, seja justamente o fato dos seus agentes conseguirem certo equilíbrio entre se manter em termos culturais, pragmaticamente abertos e receptivos e sistematicamente seletivos e resilientes. 50 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances SAIBA MAIS SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Viola D’Angola, som de raiz. IN: Historia Viva, Temas brasileiros, Edição Especial temática número 3, São Paulo: Duetto, 2006. Para visitar: Museu da Etnologia e Antropologia da USP. História secreta dos Sambas Os sambas podem ser interpretados como diferentes tipos, formatos e padrões de sociabilidades negras, onde a musicalidade se fez essencial. Com a coniguração de um gênero musical urbano inserido no sistema de entretimento e difundido pelos sistemas Rádio, Espetáculo e Fonograia a partir do Rio de Janeiro ofuscou-se toda uma diversidade de práticas culturais negras brasileiras, antes também denominadas Sambas. Mais recentemente ou após os anos 1970 foi construída uma memória espetacular desse gênero, agora transformado em símbolo da mestiçagem e identidade nacional. Estudar e repertoriar tais sociabilidades/musicalidades e os gêneros musicais designados Sambas, pode nos dar uma boa dimensão da História Cultural do Brasil Negro e da sociedade brasileira nos séculos XIX e XX. Não há dúvida que a palavra “samba” tem origem africana. É utilizada como nome próprio para ambos os gêneros masculino e feminino, em diferentes partes do nosso continente de origem. Ao que sabemos, no Brasil, esta palavra começou a aparecer como sinônimo de música e dança de negros por volta da década de 1840 em algum ponto impreciso do Nordeste. PARA REFLETIR Mas ainal qual é a história do Samba? É a história do gênero musical registrado pela primeira vez em disco em 1917 no Rio de Janeiro? É história da musicalidade e da dança perseguidas pelas autoridades imperiais em várias cidades do país na segunda metade do século XIX, quando escravidão ainda atingia a maioria das pessoas de origens africanas? Uma dada interpretação antropológica de inspiração francamente freyriana e nacionalista, viu o mistério do samba ser desvelado em um evento realizado na capital da república nos anos 1920, quando se fez um encontro entre intelectuais brancos modernistas e músicos populares negros. Mas essa visão dourada dos encontros simbólicos entre extremos sociais é capaz de dar conta de um complexo processo de criação cultural, opressão racial e políticas identitárias? Ou a História do Samba é ainda o entrelace das biograias dos compositores e cantores negros que vendiam suas obras para cantores brancos ou quase brancos que obtinham poder, dinheiro e prestígio, enquanto seus autores morriam pobres e no anonimato? 51 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Viajantes estrangeiros que izeram registros visuais, gravuras e desenhos sobre a população negra no Brasil na primeira metade do século XIX, não utilizam sequer uma única vez essa palavra. Rugendas, Debret e Spix e Martius escreveram e desenharam e descreveram música e danças de roda feitas por negros no Rio de janeiro, São Paulo e Bahia e as designaram pelo nome de Batuque. Assim batuque, era um nome genérico para qualquer atividade social festiva ou não de dançarinos e dançarinas negras. Alguns desses registros mostram presença da umbigada, como parte fundamental da coreograia. O termo batuque com variações é utilizado nas rotas do Atlântico desde o século XVIII, ainda é reconhecido em Portugal, Cabo Verde, Guiné Bissau e Angola como sinônimo de dança e música. Monograias, teses, dissertações acadêmicas e livros de pesquisadores de diferentes formações dedicados às culturas regionais, nos permitem ter uma percepção de longa duração temporal e de larga espacialidade das culturas de matrizes africanas de língua banto de onde também advém a palavra Semba, como identiicadora de uma musicalidade tradicional, especiicamente da região do Congo-Angola. Contudo o acesso a etnograias sobre música da região oeste confrontadas com música sacra afro-brasileira nos permite conectar referências de cultura material, sobretudo instrumentos musicais com diferentes origens africanas. Bancos de gravações de música tradicional africana e afro-brasileras possibilitam a comparação de células rítmicas recorrentes em contextos africanos, diaspóricos a afro-brasileiros. As hipóteses advindas das análises comparativas desses padrões podem apontar para técnicas e sínteses musicais que ampliariam as descobertas de Kazadi Wa Mukuna, sobre os time line banto. Foi apenas no século XX que o termo Samba passou a ser utilizado em diferentes regiões do país para se referir a qualquer encontro social onde se apresentem a música e dança em formato de roda sob acompanhamento de executores de instrumentos e dançarinos. Também no século XX que o gênero musical do Samba Urbano carioca foi produzido, gravado e difundido pelo rádio e espetáculo a partir da antiga capital do país. Este gênero ixou padrões de canto, melodia, harmonia e arranjo, tal como conhecemos hoje. Todavia até por volta de 1950 em diferentes cidades do país as músicas e danças negras realizadas em quintais, praças e ruas podiam ser denominadas tanto de Samba, como Batuque e os cidadãos mais abastados mobilizavam as autoridades para coibi-los. Nos anos setenta o maestro pesquisador Júlio Medaglia e outros críticos do mesmo quilate se voltaram para a elaboração de uma crítica impiedosa do que chamava de Sambão Joia, onde via com degeneração do samba genuíno. Reler essa crítica hoje e trazer elementos daquele contexto será importante para compreender as forças que atuaram sobre as culturas musicais negras no século XX, como também as estratégias criadas pelos artistas negros para burlar as barreiras culturais e raciais do período? 52 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances PARA REFLETIR Quais são os desaios, barreiras e diiculdades daqueles que se autodenominam portadores da tradição do Samba Brasileiro na contemporaneidade? Que técnicas, saberes, identidades e memórias portam e difundem na sociedade brasileira atual? Qual o impacto da indústria do turismo sobre a cultura do samba? Qual o lugar do Samba nas estruturas de entretenimento e lazer do Brasil? Qual lugar das culturas dos Sambas na sociedade da informação e na globalização anti-hegemônica? SAIBA MAIS Dicionário Cravo Albin de Música popular Brasileira: http:/www. dicionariompb.com.br Roda de Samba - Conjunto Voz do Morro. Alpha Records, 1979. Texto 2. Clementina e Sellasié: Duas Áfricas se encontram no Festival de arte cultura negra em Dakar, 1966 Autor: Salomão Jovino da Silva Objetivo Compreender as relações entre música e representações identitárias nas manifestações contemporâneas. Em 1966 a cantora negra brasileira Clementina de Jesus encontrava-se em Dacar, capital do Senegal, com a comitiva brasileira envida pelo Itamaraty e coordenada por Edson Carneiro, antropólogo também negro e baiano. Seu objetivo, como dos demais, era a participação do Brasil no “Festival de Artes e Cultura Negra”, evento que reunia discussões de projetos políticos comuns, atividades artísticas e culturais de africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo. Conta-se que uma vez abordada, durante um almoço, pelo Imperador da Etiópia Hailé Sellasié e sem saber falar outra língua que não fosse o português, Clementina tratou de envolver o monarca em uma contradança, que o deixou encantado. Mas o chefe da comitiva diplomática brasileira a repreendeu publicamente pelo feito. Após o Senegal ter conquistado a independência no início da década de 1960, Dacar havia 53 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos se tornado um centro de atração para a intelectualidade africana, afro-americana de vários países. Era reconhecida naqueles anos a inluência e liderança mundial exercida pelo poeta, ativista e político Leopold Sedar Senghor, um dos fundadores do movimento estético e político da Negritude e, eleito o primeiro presidente da República daquele país, após a desocupação colonial francesa. Olhando retroativamente sabemos que Clementina era simbolicamente uma africana em diáspora, estava no olho do furacão africano, no meio da luta anticolonial e dos debates sobre as identidades negra e africana. Clementina tornou-se igura emblemática no meio musical brasileiro, cujo foco normalmente recaia em iguras brancas e masculinas. Seguiu até os noventa anos atuando no mercado do disco e do show, embora tenha se perpetuado em torno da sua igura pública a imagem recorrente da mãe preta, Tia Anastácia, ama de leite e eterna doméstica, satisfeita com sua condição. No entanto, se olharmos na perspectiva da cultura musical de matrizes africanas no Brasil, sua forma de canto e interpretação musical formam efetivamente, uma espécie de ponte entre a indústria do disco e os cantos negros seculares, transmitidos pela tradição oral (congos, inselenças, jongos, sambas de roda, cantigas de lavadeiras, pontos de terreiro). Sua voz grafada em disco nos traz amostra de um universo de canto feminino aberto e grave, com interpretação livre, balanceada e sincopada, diferente daquele liso, agudo e cheio de vibrato, vindo do bel canto italiano e destinado ao entretenimento da classe média branca. Durante o processo de industrialização grandes diiculdades foram criadas para os descendentes de africanos no mercado de trabalho. Essa política racial era combinada com a entrada massiva de estrangeiros. Os negros urbanos, diante disso, criaram um espaço novo na cultura urbana, o lazer e entretenimento. Conquanto ainda hoje os descendentes de africanos não tenham controle sobre o capital econômico empregado na industrial cultural, não há dúvidas nem polêmicas sobre o fato, que seus aportes intelectuais e criativos foram e são largamente empregados nesse importante mercado. Na década de 1960 havia chegado a hora e vez de uma mulher negra idosa acessar o centro do palco, vestida de “velha baiana”. Há muito conhecimento sobre a sociedade brasileira que pode ser deduzido da história da indústria do entretenimento, representado pelo mundo do disco, da difusão radiofônica, do circuito dos teatros e casas de espetáculo. Contudo é necessário entrar nesses lugares pelas portas dos fundos, há de se vasculhar os terreiros, os quintais e subúrbios, lugares longe das luzes. Será preciso ir além da casa da Tia Ciata e da gravação da canção “pelo telefone”. Faz-se necessário também pensar em que momentos e circunstâncias os afro-brasileiros assumiram seus postos na construção do Atlântico negro. Senegal tornou-se o centro de atração para toda África Negra. Cheick Anta Diop e Abdoulaie Li foram intelectuais de grande expressão na formulação de ideologias anticoloniais, que fomentaram insurgências cognitivas e cientiicas. Senghor intentou inscrever seu país como o eixo de organização das estratégias de libertação e redeinição das referências do que signiicava ser negro (a) ou africano (a), tanto na modernidade, como no passado mais remoto. O Festival de Artes e Culturas Negras de Dacar tinha então objetivos ambiciosos. Clementina simbolizava uma “África Nova” cuja idade seria o quase meio milênio de tráico negreiro e escravidão racial. Como descendente de africanos ainda teve contato com ex-escravizados, sua geração era a segunda nascida após a abolição. Trazia na alma, na voz, senão no 54 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances corpo as marcas de uma realidade moldada pela dispersão forçada de centenas de milhares de africanos, para aquele que foi chamado “novo mundo”, ou melhor, Américas Negras, como escreveu Roger Bastide. Selassié, por sua vez, encarnava o espírito de uma África historicamente remota. África com larga experiência de formação estatal e enfrentamento com os poderes e políticas coloniais na era moderna. África antiga e tradicional buscando a autodeterminação e de olho no futuro e nas possibilidades de cooperação mútua (com o Brasil inclusive. Alguns anos antes Selassié havia sido recebido como estadista em Brasília pelo presidente Juscelino Kubistchek, com vistas a acordos comerciais e de cooperação tecnológicas). Embora a historiograia africana ensaiasse seus segundos passos no início dos anos 1960, a Etiópia tinha uma história tão espetacular quanto imemorial, seus monarcas reivindicavam a prerrogativa de ser ela uma das mais antigas nações mundo. SAIBA MAIS Spirito Santo. Do samba ao funk do jorjão. Petrópolis: KBR, 2001. COELHO, H (org.). Rainha Quelé: Clementina de Jesus, Valença: Editora Valença. 2002. http://spiritosanto.iles.worldpress.com Polifonia dos protestos negros: Musicalidades negras nas disputas em torno das representações e identidades “É o ser humano que deve ser investigado como produtor das manifestações que foram observadas e, portanto, é necessário examinar suas modalidades expressivas.” Angela Ales Bello Em 1968 o evento “Nem Todo Crioulo é Doido” foi organizado em pequeno teatro na cidade do Rio de Janeiro, pelos compositores luminenses, liderados por Martinho da Vila. Um ato de protesto, resposta político-artística à imagem negativa do compositor negro (crioulo) veiculado por uma canção de Estanislaw Ponte Preta. A música foi gravada naquele mesmo ano por Wilson Simonal, intitulada “O Samba do Crioulo doido”, fez um “grande sucesso” em termos de execução radiofônica, num período em que este veículo era o mais difundido em todo país. O evento durou duas semanas e artistas se revezavam no palco, entre discursos e canções na denúncia do racismo antinegro, nem um pouco sutil, contido na imagem estereotipada do sambista que a música de Sergio Porto (Stanislaw) projetava sobre os “crioulos compositores”. Talvez tenha sido o primeiro ato político-artístico contra um conteúdo simbólico de caráter racial antinegro no Brasil. Contudo, tal estigma, do crioulo doido, mostrou-se tão forte, que ainda hoje é utilizado nas situações em que alguém, sem consciência negra, queira se referir a algo mal feito ou qualquer situação considerada confusa. 55 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Martinho da Vila Isabel, que naquela época ainda não gozava de grande prestígio no mercado de espetáculos e na indústria fonográica, patrocinou a gravação de um disco independente, com parte do repertório do show. Também assinou texto de duas laudas impresso na contracapa do disco, onde deine sua musicalidade como “Samba de Crioulo”. Recuperando o termo crioulo como positividade argumenta que o carnaval é uma “guerra, só que a luta é de cores, de beleza, de arte e de cultura”. Segundo sua perspectiva, cada sambista é um “soldado”, numa guerra cultural. Formado por jovens estudantes negros, em 1971, surgia em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul o grupo Palmares, efetivamente o primeiro a conceber a data de 20 de novembro como símbolo fundamental para a luta negra no Brasil. Um fragmento das memórias dessa organização negra igura no texto do poeta Oliveira Silveira, publicada em 2003, sob organização de Valter Silvério e Petronilha Gonçalves. Educação e ações airmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas educacionais Anísio Teixeira, 2003. Páginas 21,42). Silveira nos informa sobre as estratégias de ações e temas das relexões do Grupo Palmares: A busca de símbolos negros capazes de condensar e expressar uma identidade negra uniicadora. Leituras e escrituras, interpretações e anseios mesclados à tentativa de fortalecimento grupal por meio de incorporação de expressões artísticas, sobretudo a literatura, o teatro e a música. Essa parece ter sido uma tônica comum, que atravessa as práticas estético-politicas negras urbanas desde inais do século XIX. Em Salvador nos anos 80, grupos culturais emergentes selaram a conirmação de um fenômeno cultural urbano de caráter étnico, que vinha num processo de crescimento desde o aparecimento do grupo Ilê Aiyê em 1974. Surgiram ainda na Bahia, os grupos Badauê em 1978, Olodum em 1979, Malê-Debalê em 1979, Ara-Kêto em 1980, Muzenza em 1981, Oju-Obá em 1985 e vários outros vieram com diferentes propósitos. Em texto publicado na contracapa do Lp Muzenza de 1988, Ericivaldo Veiga colocava o contexto de surgimento dos blocos afros, nos seguintes termos: São grupos musicais que transformaram radicalmente as feições do carnaval de rua da cidade de Salvador, inserindo a capital baiana no itinerário turístico do país e depois exportando um modelo de carnaval, cada vez menos popular e cada dia mais segregado. Quando ainda não existia uma política de “terceiro setor”, as bandeiras de uma luta cultural eram utilizadas como parte da tensão social mais ampla, mas de alguma maneira ainadas em torno de um projeto nacional de combate ao racismo antinegro no Brasil. Essas experiências vivenciais negras e urbanas, consubstanciadas em ações públicas politizaram a arte, tingindo de negras as práticas que, embora tivessem origem africana, estavam sendo produzidas em uma zona de fronteira. Entre a assimilação condicionada e o quase completo desenraizamento cultural, resultado do trauma da desterritorialização, da incomunicabilidade, da interdição cultural e violências simbólicas e físicas do regime de grande fazenda. Dez anos depois de “Nem todo crioulo é doido”, em São Paulo surgiu o M.N.U., Movimento Negro Uniicado, grupo político de orientação trotiskista ligado a um partido políticos de esquerda, ainda em condição clandestina, pois a chamada “distensão política” do regime militar ainda estava sendo ensaiada. Paralelamente aos encontros anuais de formação política 56 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances organizou o Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONEZU), um evento de artes e cultura, com atividades pelas cidades do interior do estado de São Paulo, como parte do intento de mobilização da população negra para uma cruzada uniicada de luta contra a discriminação racial. João Batista Felix informa que a escolha do dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra desencadeou a criação de outro evento anual: “(...) surgiu o Festival Comunitário Negro Zumbi, em 1978, em cidades do interior do estado. Podemos dizer que esse é o evento “Oicial”, em novembro, do Movimento Negro paulista”. (FELIX, 1996) Ao que indicam os discursos no meio negro havia certo conlito sobre a importância ou não das práticas e linguagens artísticas na luta política contra o racismo e a hegemonia branca. Entretanto os textos que tratam dessa memória parecem escamotear a tensão de forma proposital. O grupo Literário Quilombhoje desde 1978 publica anualmente os “Cadernos Negros”, produção coletiva de contos e poesias, ora cotizando os custos, outra buscando fomento em fundos públicos, em edição de 1998 rememorava: “Os Cadernos Negros surgiram em 1978, em meio a um clima social efervescente, onde pontiicavam greves e protestos estudantis. A criação do MNUCDR (Movimento Negro Uniicado Contra a Discriminação Racial, depois somente MNU) dava-se ao lado do campo de batalha dos setores progressistas, os quais contestavam o governo militar e exigiam liberdades democráticas. Com a criação do MNU, a luta contra o preconceito racial iria ser reequacionada. O FECONEZU (Festival Comunitário Negro Zumbi) também foi criado em 78, e reunia negros preocupados em preservar a herança cultural e organizar-se politicamente. Havia também um movimento incipiente de imprensa negra. Uma das mais contundentes manifestações dessa imprensa era o jornal Arvore das Palavras. Subversivo no seu conteúdo falava de revoluções e consciência, Um dos seus organizadores, Jamu Minka, costumava distribuir os jornais no viaduto do Chá, ponto de encontro de jovens afro-paulistanos, muitos dos quais eram atraídos até aquele local por conta do movimento soul” (RIBEIRO et al., 1998:9-10). O jornalista paulista Hamilton Cardoso, que fora ator nos anos 1970 e um dos ideólogos da negritude brasileira, em 1987 publicou um texto emblemático, “Limites do confronto racial e aspectos da experiência negra no Brasil”. Hamilton preconiza a expansão dos movimentos negros, elenca alguns ícones negros que, apesar de bem inseridos no meio artístico empresarial, na década anterior haviam teimado em deslocar imaginários atribuídos aos negros: 57 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos “(...) A velha imagem traçada para o negro(...) cedendo espaço a outras imagens negras, estas forjadas pelos próprios negros: a imagem do negro rebelde.(...) Em 1986, depois de Gilberto Gil e suas tranças; de Toni Tornado e seu black power; do guerrilheiro do PC do B, Osvaldão, e mesmo das aspirações políticas de Pelé a presidência da República do Brasil, era impossível que Zezé Mota, com sua sensualidade “negra” e sua consciência política radical, juntamente com os cabelos de caju de Paulo Cesar, o jogador mais punido e mascarado do Brasil da ditadura militar, não destruísse parte daquela realidade. Começa-se , no Brasil, a dizer adeus a velha Maria de lata d’água na cabeça” (CARDOSO, Hamilton, 1987). Efetivamente a rebeldia cultural negra teria de fato ameaçado a hegemonia branca? Hoje mais do que nunca as desigualdades podem ser registradas e sentidas em todas as esferas da sociedade, qual seja, no trabalho, na renda, na escolarização, na ocupação do espaço urbano, na distribuição dos serviços públicos. Ademais há também a violência policial e diferenciados acessos aos bens materiais e bens simbólicos. A criação dos carnavais espetaculares se coaduna com outras inovações nas quais há incomparável inserção de negros e negras como protagonistas. Ativos produtores de modernidade que se fez sentir, sobretudo nas atividades de cultura artística, lazer e entretenimento. Mas, no início do século XXI é necessário levar em conta, as novas dinâmicas de acirramento do racismo antinegro. Ter ou não ameaçado a hegemonia branca, torna a produção cultural negra mais ou menos importante do ponto de vista histórico e político? Entretanto, uma história ainda sussurrada nos informa que na segunda metade do século XIX literatos negros se engajaram em inusitados usos da tecnologia de comunicação para combater a escravidão racial. Não estiveram alheios aos sons ancestrais dos tambores (ou marimbas, como cantou Luiz Gama), nem as possíveis mudanças culturais e políticas que se vizinhavam do horizonte. Construíram na ação direta contra a escravidão e na literatura, ação indireta, novas sensibilidades. Um século depois o cenário da realidade havia se tornado muito mais complexa, mas também estavam lá o som dos tambores dos grupos Gran Quilombo, Ilê Aiyê, Ori Axé, Olodum, Muzenza e as vozes negras de Lumumba, Marku Ribas, Nei Lopes, Martinho da Vila e quem mais tenham entoado, “A polifonia dos protestos negros”. No Rio e em São Paulo, inclusive nas cidades do interior, formaram-se inúmeros grupos, onde se discutia e praticava simultaneamente política, cultura e artes articuladas com novas percepções e discursos de identidades negras. Em São Paulo na primeira metade da década de 70 surgiram ainda o periódico Arvores das Palavras e somente no ano de 1975 o Centro de Estudo da Cultura e da Arte Negra(CECAN) e Federação das Entidades Afro-brasileiras do Estado de São Paulo (Feabesp), os grupos Evolução e o Teatro Cultural Negro de Campinas, o periódico Jornegro em 1977, o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), Associação Casa de Arte Cultura Afro-Brasileira (ACACAB), os grupos Quilombhoje de Literatura Negra, Banda Lá de Música e Afro-Dança e Povo Negro em 1978, Kilôa em 1980, Raçasarte em 1982, Coletivo da Mulheres Negras em 1983, Movimento Negra Música,1987. Muito além das capitais emergiram vozes, recriando, elaborando e reelaborando a interpretação do signiicado de “ser negro”. Marcio Damazio na apresentação de “Teclas de Ébano” (1986) de Jamu Minka, nos ajuda a compreender o contexto: 58 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances “Eram tempos em que estávamos impregnados de romantismo, acreditávamos ser a geração redentora das agruras do nosso povo. Nosso trunfo era a consciência. Acreditávamos ter consciência plena de nossa realidade, da realidade de nossa gente. (...) Muita coisa nos tocava: as lutas norte –americanas dos direitos civis (Black is Beatiful, Black Panthers, Luther King, Malcolm X, Muhammad Ali, Angela Davis, Eldrige Cleaver), Fanon, as guerras de libertação em Angola, Guiné, Cabo Verde, Moçambique (Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Samora Machel, etc), a luta contra o regime racista sul africano. Esse volume enorme de referências, combinado com a marginalização absoluta do negro na sociedade brasileira, vinha de encontro as nossas inquietações, acabando por cristalizar-se em ações concretas” (DAMAZIO, 1985:05). No Rio de Janeiro surgiu em 1975, a Escola de samba Gran-Quilombo, o Grupo Latinoamérica, o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África e o Jornal Abertura. Em 1977, surgiu o Jornal Sinba; em 1982, o Grupo Afro-cultural Agbara Dudu e o grupo Negrícia de Poesia e Arte de Crioulo. Ainda no Rio em 1983, surgiram o grupo Nzinga (Coletivo de Mulheres Negras) e, em 1987, o grupo Alain Aiyê e o Bloco Afro-Carnavalesco Dudu Odara. E do mesmo período o aparecimento dos primeiros cursos e estudos de línguas africanas. Coreógrafos negros como Ismael Ivo e Pitanga, apropriam-se também de outras estéticas técnicas de coreograias, trazidas pelas companhias nacionais africanas de dança (Balés folclóricos) que por aqui excursionavam, passando a incorporá-los aos programas de dança contemporânea. Caracterizado aqui, como um fenômeno histórico de politização das práticas artísticas negras urbanas, esse processo icou registrado também nas sonoridades que se remetiam à África, na revalorização dos tambores, na valorização das sociabilidades e sonoridades afro-brasileiras como Maracatus, Congos, Umbigadas e Congadas. Os arranjos dos discos de vários artistas de origem africana enunciaram na música um “eu negro”, ou reivindicaram para si através da canção, a condição de afrodescendente. Parte dessa criação e recriação entrou no mercado fonográico e fomentou a disseminação de uma percepção positiva do que podia ser entendido como negritude brasileira. Esses movimentos negros que começaram no meio urbano, em setores mais escolarizados da população negra, aos poucos ganharam contornos geográicos e sociais mais amplos e conteúdos mais complexos, até que na década de 1990, fosse ressigniicado por setores da juventude urbana pobre e comunidades negras semi-rurais e quilombolas. Lançando mão de táticas variadas, os grupos e artistas negros engajados, buscavam um ponto de convergência entre as culturas residuais de origem africana e práticas culturais e artísticas contemporâneas, visando reconhecimento artístico, visibilidade social e legitimidade política. Em função disso engendraram formas complexas de manipulação de símbolos, imagens, alegorias, representações, ressigniicações do passado que icaram grafados nas letras, arranjos e instrumentações, icnograias, fotograias, matérias impressas em inúmeras canções daquele período. 59 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Podemos interpretar as letras, melodias e arranjos, tanto quanto os sinais espalhados pelas capas dos discos na forma de desenhos, fotograias, ilustrações como formas de textualidade, discursos e narrativas. Este trabalho fez isso, contudo, sem proceder uma exaustiva catalogação formal ou estilística desta produção. Os movimentos de libertação dos africanos contra o domínio colonial europeu, assim como o impacto das ações do movimento Black-Power Norte Americano penetraram no Brasil de inúmeras maneiras. Através da militância, pela mídia televisiva e escrita, chegaram noticias da outra margem do Atlântico. O espelhamento tem sido uma parte importante das trocas do que podemos chamar de Atlântico negro no eixo sul. Embora a intensidade dos trânsitos seja quase sempre desiguais, uma vez resigniicados os símbolos negros mundializados, na medida da sua similitude e das analogias críticas, são incorporadas, surgindo novos símbolos e outros sinais de identiicação. As ideias, ideais e ações de Malcom X, Luther King, Patrice Lumumba, Stive Biko, Samora Machel, Leopod Senghor e Frantz Fanon contribuíram para o estabelecimento de novos parâmetros na análise da situação das populações negras no Brasil. Mas também é certo pensar que houve nesse tempo alguma ressonância, ecos reverberantes do trabalho árduo e intermitente de soerguimento cultural, já empenhado antes por Covis Moura, Edson Carneiro, Maria e Abdias do Nascimento, Raimundo Souza Dantas, Paulo da Portela, Haroldo Costa, Guerreiro Ramos, Candeia e outros tantos ativistas anônimos, no transcurso do delicado e tortuoso século XX. Após os anos 70 estes grupos passaram a reivindicar a memória constituída pelas experiências políticas da Frente Negra Brasileira, do Teatro Experimental do Negro, em alguns episódios das revoltas de escravizados do século XIX, dos quilombolas palmarinos e história da África negra em qualquer tempo. Os pesquisadores, artistas e literatos negros e negras, Hamilton Cardoso, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, Joel Ruino dos Santos, Nei Lopes, Muniz Sodré, Dulce Pereira, Alzira Ruino eram, naquele contexto de início dos anos 1980, novas lideranças que se somavam àquelas que puderam regressar do exílio. Uma zona tênue distinguia a produção intelectual acadêmica negra da produção artística, embora a primeira possa por vezes se pensar superior na apreensão da realidade. Beatriz Nascimento a eminente e inquieta intelectual negra sergipana, criada no Rio de Janeiro lançava em 1975, um projetil de sua bazuca relexiva: 60 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances “O escravo negro, assim como o negro atual, não só participou da formação social do Brasil com sue trabalho, com seu sofrimento, participou também da mesa, da cama, do pensamento e das lutas politicas do colonizador e seus descendentes. Para todo o lado que o branco olhar, depara-se à com o espectro daquele que escravizou e que corrompeu. É justamente o fato de nos ter corrompido que maltrata as consciências salvadoras de muitos dos nossos “defensores”, daqueles que atualmente nos querem redimir estudando-nos através de aspectos sócio-econômicos e apressando-se em se sentir negros, como se séculos de sofrimento e marginalização pudessem ser redimidos por uma sensação “ser negro”. Ser negro é enfrentar um historia de quase quinhentos nãos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral, à sensação de não existir, a prática de ainda não pertencer a uma sociedade na qual consagrou tudo o que possuía, oferecendo ainda hoje o resto de si mesmo” (NASCIMENTO, 2007:102). Beatriz Nascimento foi efetivamente a primeira intelectual diasporica a esboçar uma teoria compreensiva da dimensão atlântica das culturas negras brasileiras. Esteve atenta aos conteúdos mais reinados das relações inter-raciais e aventou hipóteses ainda pouco exploradas no campo psicanalítico. Segundo seus escritos de meados da década de 1970, somente o conhecimento pleno da história poderia emancipar “o homem negro” da dominação racial. É difícil apurar quais os níveis de circulação desse tipo de produção teórica negra, que oferecia outras perspectivas de leitura da história oicial do país e da cultura negra. Seus indícios estão dispersos em memórias orais, textuais, teatrais e musicais do período. É necessário continuar juntando os cacos de argila. O trinômio arte/política/negritude, como prática política, consciência social e valorização cultural nos remete aos anos 1940. Antes, porém, no período compreendido entre as décadas de 1890 e 1920 em Salvador e Recife, depois nos anos 20 e 40 no Rio de Janeiro e São Paulo, já se esboçava uma ação militante negra que combinasse as atividades artística, práticas culturais e atividade política. As artes cumpririam o papel de delimitar os “nós e eles”, não só pela cor da pele ou pelas diferenças fenotípicas e biológicas, mas pela via da evocação constante e sistemática dos contrastes sociais e culturais. Instrumentos classiicados pelos estudos de etnomusicologia, como pertencentes à família dos lamelofones e xilofones, haviam sido introduzidos no Brasil no período colonial, mas caído em desuso desde o início do século. Kalimbas e Marimbas ou Mbiras e balafons, reapareceram nos discos de Gil (Refavela/77) e Ben Jor (África Brasil/75) e Airton Moreira (Batucada Nº 3). História da África antiga foi tema de pesquisa transformada em música por compositores do Rio, como Nei Lopes e Wilson Moreira e na Bahia por Rey Zulu, Ytamar Tropicália, Ademário, Lazzo Matumbi e Valmir Brito. Em São Paulo foram expoentes desta tendência compositores como Carlos Malungo, Lumumba, Beto Santos e Diná Nascimento. As lutas de emancipação política dos povos ainda sob dominação colonial e o regime racista da África do Sul, aparecem em canções de Gerson King Combo, Lumumba, Banda Derepente, Luis Vagner, Gilberto Gil, em discos produzidos num período que se estende do início da década de 70 até os anos recentes. 61 Módulo 3- Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos A África passou a ser evocada enquanto ponto de imbricação de temporalidades múltiplas. As imagens que se veicularam nas canções, eram lagrantes de um movimento sutil de reconstrução das memórias sobrevindas de uma origem comum. Os espaços urbanos são os territórios onde se manifestam estas apropriações, em forma de sociabilidades musicais, seja nos blocos-afro de Salvador ou São Paulo, Escolas de Samba de São Paulo e Rio de Janeiro, grupos de literatura e teatro negro em Porto Alegre, seja em forma de festas e festivais dos grupos negros organizados ou mesmo dos bailes blakcs. Uma história social carregada de conteúdos, de luta, símbolos e contradições. Uma história negra que embora passe à margem da historiograia oicial, não se pode negar que suas inluencias são fundamentais para compreensão do Brasil contemporâneo. SAIBA MAIS SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Polifonia do protesto negro. Dissertação de mestrado em História Social. PUC.SP, 2000. Para visitar: Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo. Referências Bibliográficas CARDOSO, Hamilton. Limites do confronto racial e aspectos da experiência negra no Brasil. In: SADER, Organizador. Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo: Cortez, 1987. P82,104. DAMAZIO, Marcio. IN: MINKA, Jamu. Teclas de Ébano: Poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1986. P.5 FELIX, João Batista. Pequeno histórico do movimento negro contemporâneo, In: SCHWARCZ, lília Moritz; REIS, Letícia Vidor de Souza. Negras Imagens: Ensaios sobre Cultura e Escravidão no Brasil/, S.P, Edusp, Estação Ciência, 1996. P211-216. NASCIMENTO, Beatriz. Negro e Racismo. In: RATS, Alex. Eu sou atlântica: Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado: Instituto Kuanza, 2007. P98-102. RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Marcio e FÁTIMA, Sonia (org.). Cadernos Negros: os melhores contos. São Paulo: Quilombhoje, 1998. pp.9,10. 62 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances Unidade 5. A revolução pela Arte de Abdias do Nascimento: manifesto estético Autora: Renata Aparecida Felinto dos Santos Objetivo Conhecer e reletir sobre o manifesto estético de Abdias do nascimento. Em 2014 comemoramos o centenário de nascimento de Abdias do Nascimento, um grande interessado pela vida e pelo combate às injustiças sociais e raciais. Para minimizá-las, ele foi de diretor de Artes Cênicas a deputado e senador da República. Teve uma profícua atuação nas Artes, podendo ser considerado um “artivista”: artista e ativista. Nas Artes da Cena, em 1944, fundou o TEN, o Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, que serve até hoje de referência aos coletivos formados por atores negros que surgiram em muitos lugares do país. Nas Visualidades, desenvolveu uma interessante produção durante o período em que esteve exilado nos Estados Unidos, no im da década de 1960 e parte da de 1970. Essa unidade tratará de Abdias artista visual, teatral e dos herdeiros desse legado teatral. Ao mesmo tempo, a temos como entremeios aos textos que abordam a Visualidade e aos que tratam da Musicalidade, além de apresentar e prestar uma homenagem a essa grande igura. Abdias do Nascimento e as visualidades: da militância à pintura. Abdias do Nascimento demonstrou seu interesse por diversas áreas das Artes e atuou efetivamente em muitas delas. No que tange às visualidades, organizou um museu voltado às produções de artistas negros ou obras que contemplassem essa temática, o Museu de Arte Negra. Essa ideia surgiu durante o 1º Congresso do Negro Brasileiro, organizado pelo Teatro Experimental do Negro, em 1950. Segundo o próprio Abdias o objetivo era a integração entre as questões de etnicidade e de estética em um único lugar, que contemplasse a especiicidade de ser negro e como a mesma era transposta ou expressa em obras de arte pelos artistas desse segmento étnico-racial e mesmo por não negros sensibilizados por essa cultura. A partir desse Congresso, Abdias passou a reunir um acervo voltado a tal intencionalidade, entretanto, o MAN nunca chegou a tornar-se uma realidade, apesar de ter as obras de sua coleção expostas no Museu da Imagem e do Som, o MIS do Rio de Janeiro, em 1968. Mesmo com esse envolvimento de Abdias com as Artes Visuais, raramente pensamos em sua atuação como artista visual, ou melhor, pintor. Entretanto, essa foi uma das linguagens que despertou o seu interesse enquanto encontrava-se exilado nos Estados Unidos, no período de 1968 a 1979. Diz um de seus relatos que descobriu a pintura nos Estados Unidos por uma necessidade de comunicação, ou seja, não dominando o idioma inglês, encontrou nessa linguagem e na potente simbologia de povos africanos ou da diáspora africana um caminho para se comunicar e expressar a sua afro-brasilidade. Ele inicia esse trabalho em Artes Visuais, primeiramente com materiais bem simples e posteriormente passa para a tinta acrílica sobre a tela. O seu trabalho é absolutamente despretensioso e, ainda assim, desperta o interesse dos estadunidenses desconhecedores do fenômeno da religiosidade afro-brasileira. 63 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Entre os temas de sua pesquisa em Artes Visuais estão vários universos simbólicos, do Egito antigo aos adinkras de Gana, pensando em África, e do Vodu do Haiti às Insígnias dos orixás do Candomblé, focando a diáspora africana e as suas reinvenções ou adaptações. Sobre suas pinturas: Ao invocar e homenagear as entidades e os valores da cultura religiosa afro-brasileira, sua pintura nos traz uma relexão atual e profunda sobre princípios como a justiça, a paz, o poder e a guerra. Numa cosmologia que reúne os ancestrais, os vivos, os não nascidos e as forças da natureza, esses valores voltam-se sempre para o futuro. O ambientalismo, por exemplo, é parte viva e integral dessa religiosidade. Os seres da natureza povoam as telas de Abdias numa troca constante: peixes nadando no céu, criaturas aladas em terra e mar, folhas brotando de pernas e asas. Essa convivência em espaços diversos é metáfora da unicidade essencial entre as formas de vida, consignada no princípio de oferenda. Os elementos da natureza estão sempre presentes. (Em IPEAFRO, s.d.). Ele participou de inúmeras exposições fora do Brasil, pode-se airmar que seu trabalho enquanto pintor é, inclusive, mais reconhecido fora do país. Capas de livros e cartazes também tiveram criações suas enquanto ilustrações. Como características de seus trabalhos podem ser destacadas o uso absoluto das cores, isto é, numa grande variedade; a pintura chapada sem degradê, ou seja, com a suave transição entre as cores mais claras e as mais escuras; as formas simples lertando com uma ingenuidade em relação às noções mais formais de representação, aquelas ensinadas via academias ou cursos de Arte (vide a AIBA/ ENBA e o ensino sistematizado da Arte). Abdias é citado enquanto artista popular no fundamental livro “A Mão Afro-Brasileira” (FROTA em ARAUJO, 2010), mas acolhido junto aos artistas eruditos em livros recentes como “Black Art in Brazil” (CLEVELAND, 2013), reairmando a sua personalidade camaleônica preocupada com as questões que envolvem a história e atuação dos negros em sua globalidade, daí a diiculdade de “rotular” o seu protagonismo. “A Dupla Personalidade de Oxumaré”, obra sem data de Abdias Nascimento, resume as características da pintura que começa a desenvolver nos Estados Unidos: cores chapadas, ou seja, lisas sem transição de uma cor para outra; formas simples; e simetria, ou seja, se for passada uma linha vertical ao meio da tela, um lado será idêntico ou muito parecido ao outro. Acervo: particular. Fotograia: autor desconhecido. 64 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances O Teatro Experimental do Negro e seus herdeiros: a cena negra O Teatro Experimental do Negro, existiu entre os anos de 1944 e 1968, fundado pelo ator, diretor, dramaturgo, artista visual e ativista Abdias do Nascimento (1914 – 2011). Na ocasião, o elenco do TEN, sigla pela qual icou historicamente conhecido, era formado por operários, empregadas domésticas, pessoas sem proissão deinida, moradoras de comunidades e funcionários públicos. Entre os seus objetivos estavam a formação e a encenação de peças teatrais que colocassem o negro e a sua história no centro das narrativas; a alfabetização e a conscientização de seus membros acerca da situação política, social e racial. A estreia do TEN ocorreu no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, local até então reservado à frequentação da elite branca. Entre as peças encenadas pelo TEN, podemos dar destaque a “O Imperador Jones”, (1945), a peça de estreia, “O Filho Pródigo” (1947), “Aruanda” (1950) e “Sortilégio” (1957). IMPORTANTE O Teatro Experimental do Negro nunca atingiu a importância social que pretendia em seu tempo. Mas, em termos de história do teatro, signiicou uma iniciativa pioneira, que mobilizou a produção de novos textos, propiciou o surgimento de novos atores e grupos e semeou uma discussão que permaneceria em aberto: a questão da ausência do negro na dramaturgia e nos palcos de um país mestiço, de maioria negra. (Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural). As Artes Cênicas produzidas por atrizes e atores negros têm cavado seus espaços no cenário brasileiro com unhas, dentes e muito talento, a partir do trabalho dos coletivos que se dedicam a essa linguagem e que estão recebendo prêmios e sendo contemplados por editais públicos voltados às Artes nos grandes centros urbanos. O mais curioso é que o público interessado nos mesmos é composto por pessoas de todas as cores ansiosas em saber mais sobre essa Arte e compreender melhor as questões étnico-raciais, uma vez que a mesma diz respeito a todos nós brasileiros, não somente aos afrodescendentes. As bases das pesquisas desses coletivos é a vivência das negras e negros em seus múltiplos aspectos: afetivos, estéticos, sociais, culturais, religiosos, dentre outros. Ou seja, os fazedores de Artes Cênicas da atualidade, herdeiros de Abdias, aproximam o outro, o espectador, da experiência de ser negro, ainda que essa vivência seja insubstituível por quaisquer outras sensações e intransferível. Muitas vezes, para o próprio negro ou negra, essa experiência pode ser conlituosa ou de difícil compreensão na medida em que alguns ainda não se conscientizaram de fatores históricos que inluenciam as suas vidas e trajetórias de forma determinante. 65 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Se no primeiro momento do teatro feito por afrodescendentes a partir das bases eruditas, o TEN tinha seu elenco constituído por pessoas sem formação na área cênica, até mesmo pela impossibilidade dessa realidade, nesse segundo momento, os elencos desses coletivos negros de teatro são em sua totalidade formados por proissionais que passaram por cursos superiores. Ou seja, dominam a história e a linguagem teatrais impostas a partir de uma perspectiva eurocêntrica e ocidental do que vem a ser esta Arte e, incorporam conceitos e elementos de matriz africana que consideram relevantes. Para além da atuação, muitos desses coletivos também estão engajados em formas de registros de suas pesquisas e apresentações. Também se empenham no aprofundamento de temáticas existentes em suas montagens que se dão via a promoção de conversas públicas com outros coletivos, com o público e com a crítica, ou mesmo, de maneira textual, por meio de registros escritos. Entre esses coletivos podem ser mencionados a Cia de Arte Negra Cabeça Feita (DF), dirigida pela atriz e diretora Cristiane Sobral; o Grupo Caixa Preta de Teatro (RS), dirigido pelo ator e diretor Jessé Oliveira; a Cia Teatral Abdias do Nascimento (BA), criada pelo ator, diretor e dramaturgo Ângelo Flávio Zuhale; o Bando de Teatro Olodum (BA), sem um diretor ixo; a Cia dos Comuns (RJ) criada pelo ator e diretor Hilton Cobra; o Coletivo Negro (SP), sob direção do ator Jê Oliveira; as Capulanas Cia de Arte Negra (SP) e Os Crespos (SP), cujas as direções também se alteram conforme cada espetáculo. As existências dos coletivos mencionados constitui um marco ao se tratar da população negra ocupando palcos das Artes Cênicas com reconhecimento do público. Igualmente, demonstram a superação de barreiras históricas, por exemplo, a atriz e diretora Cristiane Sobral, da Cia de Arte Negra Cabeça Feita, foi a primeira negra a concluir o Bacharelado em Interpretação Teatral na UnB, em 1998. Segundo a atriz e diretora, dedicar-se às Artes Cênicas considerando o contexto histórico, social e cultural brasileiro, signiica: “Negros em cena – discurso com o ponto de vista da negritude – sujeitos e não objetos da história – pesquisa de linguagem, dramaturgia e signos teatrais representativos da estética negra – do jeito de ser e de viver dos negros – resistência negra e suas memórias. Ser sujeito, ter nome, sobrenome, passado e perspectiva, enfrentar e desaiar o racismo e o mito da democracia racial” (SOBRAL em entrevista concedida a SANTOS, não publicada, 2014). Em relação às várias montagens desses coletivos, destacamos dois deles: Os Crespos e As Capulanas Cia de Arte Negras. Na trilogia “Dos Desmanches aos Sonhos: Poética em Legítima Defesa” de Os Crespos, o coletivo se baseou em pesquisas, entrevistas, rodas de conversas que trouxeram a sexualidade e afetividade de homens e mulheres afrodescendentes aos palcos. Podemos dizer até sobre a ausência de afetividade e a agressividade e o desrespeito contidos num expressivo número das relações endogâmicas, isto é, quando de pessoas de um mesmo segmento étnico-racial que se relacionam com ins sexuais e afetivos, neste caso, negros e negras, ou, negros e negros e/ou negras e negras. O descompasso nesses modelos de relacionamentos podem ser observados 66 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances nas montagens “Além do Ponto” (2011), direção de José Fernando de Azevedo, “Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas” (2013), e “Cartas a Madame Satã ou Me Desespero sem Notícias suas” (2014), ambos dirigidos por Lucélia Sérgio. A pesquisadora estadunidense Bell Hooks (1952), foi uma das referências de pesquisa de Os Crespos, especialmente a partir de seu célebre texto “Vivendo de Amor” (2010). Nele, a partir da experiência da escravização vivida por afro-americanos, ela relete sobre os desaios de amar e de se sentir amado para a população afro-diaspórica: Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver. (HOOKS, 2010). O ator Sidney Santiago e a atriz Lucélia Sérgio, de “Os Crespos” em cena na peça “Além do Ponto”. Foto: Divulgação. Já “As Capulanas Cia de Arte Negra”, iniciaram sua trajetória retomando a poesia de Solano Trindade (1908-1974), em “Solano Trindade e suas Negras Poesias” (2009), cuja direção é assinada pelas próprias, para, posteriormente, debruçarem-se sobre o universo negro feminino com “Sangoma” (2013), dirigido pelo ator e diretor Kleber Lourenço. Na segunda montagem somente as mulheres-atrizes atuam, Débora Marçal, Priscilla Obaci, Flávia Rosa, Adriana Paixão, Rose de Oyá e Carol Yewaci Rocha. Essa montagem se desenvolve de forma intimista, através dos cômodos de uma casa na periferia de São Paulo, as vidas das personagens negras são contadas considerando também entrevistas e vivências de mulheres conhecidas das atrizes que compõem o coletivo, no sentido de se mapear a realidade para se produzir arte crítica ancorada nos percalços que acometem as vidas dessas mulheres em vários âmbitos, do psicológico ao sexual. 67 Módulo 3 - Fundamentos histórico-culturais: Conteúdos especíicos Os coletivos mencionados são a continuidade de um projeto-sonho de Abdias que cada vez mais se materializa em nossas realidades culturais e também são referências de muitos outros grupos nascentes no Brasil que nos palcos vem mostrando a sua cara negra. SAIBA MAIS Coletivos de Artes Cênicas: alternativas para afrobrasilidades em cena. Autora: Renata Ap. Felinto dos Santos. Revista O Menelick 2º Ato, Maior de 2011. Disponível em: http://omenelick2ato.com/ teatro/novos-coletivos/, acesso, 15 jan 2015. IPEAFRO: Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros centrado na igura versátil de Abdias Nascimento e que contempla outros nomes: http://www.ipeafro.org.br/home/br Série de pequenos vídeos do coletivo “Os Crespos” intitulada “Comercial” (I, II, III e IV), criados em 2010 e disponíveis nos seguintes endereços: Comercial I: https://www.youtube.com/watch?v=4etbM43TUeY Comercial II: https://www.youtube.com/watch?v=W-ULZ4z5CW8 Comercial IV: https://www.youtube.com/watch?v=e3LwZCQ5Oqo Referências Bibliográficas IPEAFRO. Disponível em: <ipeafro.org.br>. Acesso em 10 mai 2015. TEATRO Experimental do Negro (TEN). Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: http:// enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399330/teatro-experimental-do-negro, acesso em 10 mai 2015. ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: signiicado da contribuição artística e histórica. 2. Ed. Revista e ampliada. São Paulo: Imprensa Oicial do Estado de São Paulo. CLEVELAND, Kimberly. Black Art in Brazil: Expressions of Identify. Florida: University Press of Florida, 2013. HOOKS, Bell. Vivendo de Amor. Tradução Maísa Mendonça. Géledes. 2006. Disponível em: < http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-genero/4799-vivendo-de-amor>, acesso em 10 jan 2015. LIMA, Mariângela Alves de. O Teatro do Negro no Brasil e nos Estados Unidos. Em: Revista USP, nº 28, dezembro/ fevereiro. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995-1996, PP. 257-260. 68 Disciplina 8 - Cultura Afro-Brasileira II: Artes Negras, Artistas e Performances MENDES, Miriam Garcia. O negro e o teatro brasileiro (1889 e 1892). São Paulo: Hucitec, 1993. NASCIMENTO, Abdias do. Teatro negro no Brasil: uma experiência sócio-racial. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, n. 2, 1968. Caderno Especial. NASCIMENTO, Abdias. Abdias Nascimento fala do Museu de Arte Negra. Reproduzido do livro O Quilombismo. 2ed. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Cultural Palmares: OR Editor, 2002, pp. 146-9. Disponível em: http://www.abdias.com.br/museu_arte_negra/museu_arte_ negra.htm, acesso em 10 dez. 2014. 69 Módulo 2 Disciplina 8 DISCIPLINA 9 UNIDADE 1: Foram desenvolvidas SONS E RUÍDOS, MÚSICA atividades extra-sala E IDENTIDADES Autor: Dr. Salomão Jovino da Silva Módulo 2 Disciplina 8 DISCIPLINA 10 UNIDADE 1: Rel i giosidade afro-brasil e ira: SONS E RUÍDOS, MÚSICA tolE eIDENTIDADES rância e intolêrancia no Autor: Dr. Salomão Espaço EscolJovino ar. da Silva Autores: Melvina Afra Mendes de Araújo Patrício Carneiro Araújo Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Unidade 1. Conceito de religião aplicado às manifestações dos negros no Brasil Objetivos Apresentar, de forma panorâmica e sistemática, o campo religioso afro-brasileiro, considerando seu processo histórico de constituição, algumas das suas modalidades e seu universo simbólico e de crença. Discutir a relação entre a educação formal e os adeptos dessas religiões no ambiente escolar, considerando valores como a diversidade cultural, o pluralismo religioso que caracteriza o campo religioso brasileiro e as implicações pedagógicas no que se refere à tolerância e intolerância religiosa. Introdução Prezad@ cursista, Como indica o título da disciplina, discutiremos aqui temas relativos à religiosidade afro-brasileira. No entanto, antes de entrarmos no que concerne, especiicamente, às religiões afro-brasileiras faremos uma discussão sobre a noção de religião que empregamos hodiernamente e sobre o contexto no qual as religiões que conhecemos como afro-brasileiras passaram a ser deinidas enquanto tal. Feito isso, nos voltaremos a temas concernentes às religiosidades afro-brasileiras propriamente ditas. Quando nos deparamos com discussões tais como as incitadas pela declaração do juiz Eugênio Rosa de Araújo, que, ao julgar um pedido de retirada de vídeos considerados ofensivos às religiões afro-brasileiras do Youtube, de que estas não seriam religiões, temos em mente uma determinada noção do que seja religião. No entanto, uma pergunta que precisa ser feita é: a categoria religião tal qual a conhecemos sempre existiu? Ou ainda: em que contexto histórico-social esta categoria foi formulada? É sobre esta pergunta que nos debruçaremos a seguir. O historiador das religiões Angelo Brelich (1982) airma que nenhuma língua primitiva ou arcaica, nem o grego ou o latim têm o termo religião. Era corrente no mundo romano o termo Religio, ainda conforme este autor, que, neste contexto, relacionava-se à submissão dos homens a um poder que ordenava os comportamentos corretos diante da coisa pública e ao qual eles estavam obrigados, sem, no entanto, se referir a qualquer noção de transcendência. Será, segundo Stanley Tambiah (1990), apenas com o cristianismo primitivo que vão começar a ser desenvolvidas as noções de fé, igreja e “religião verdadeira” que tornarão possível a constituição da ideia de religião tal qual a conhecemos. Isso signiica que o processo de cristianização do mundo romano transformou a ideia de pacto civil contida na noção de Religio numa relação entre os homens e Deus. As consequências dessa transformação são bastante complexas e seu desenvolvimento até a ideia que agora temos sobre o que é religião foi longo e pautado por intensos debates teológicos e ilosóicos. No entanto, abordaremos aqui apenas o que interessa para a compreensão do processo que levou à classiicação de certas práticas culturais como religiosas. 72 Disciplina 10 - Religiosidade Afro-brasileira: Tolerância e Intolerância no Espaço Escolar Assim, interessa ressaltar que os fundadores da antropologia tiveram, de acordo com Tambiah, um importante papel. Estes teriam impingido a outras civilizações ou culturas categorias da sua própria sociedade, visto que as culturas observadas por eles não dispunham de nenhuma categoria ou instituição cujo sentido fosse idêntico àquele de religião, tal qual existente na Inglaterra do século XIX. Teria sido nessa tentativa de espelhamento de si no outro que pensadores como James Frazer e Edward Tylor empreenderam o esforço de buscar nos outros algo que se assemelhasse a uma das instituições mais importantes de seu tempo, a religião. Nesse sentido, é preciso lembrar que a grande questão que ocupava corações e mentes daqueles que constituíram o que nós, antropólogos, conhecemos como escola evolucionista era saber como a sociedade humana chegou a ser como era a moderna sociedade da Europa ocidental. Tendo em mente esta pergunta, esses senhores passaram a buscar noutros povos conhecidos resquícios de estágios pelos quais sua própria sociedade - e as instituições nela existentes - teria passado. Nesse movimento, categorias como magia, ciência e religião passaram a compor o quadro evolutivo, sendo que a categoria magia ora era relacionada ao desenvolvimento da ciência, ora ao desenvolvimento da religião. Tanto num como noutro caso, o que icou instituído é que a magia seria algo a ser observado nas pesquisas antropológicas que, naquele momento eram voltadas exclusivamente ao estudo de sociedades de pequena escala, ditas primitivas, já que constituíam parte dos fundamentos culturais das sociedades humanas. E foi assim, como veremos na próxima unidade, que manifestações culturais afro-brasileiras foram aos poucos sendo designadas como compondo o quadro de uma religião. Manifestações de negros, no Brasil, em pauta Partindo de uma concepção de religião que seria, a grosso modo, algo que congregava ritos e mitos, os primeiros que se aventuraram na tarefa de compreender as diferenças existentes entre as sociedades em que viviam, na Europa ocidental, e as outras sociedades, tomaram também como objeto de estudo manifestações que consideravam religiosas ou protorreligiosas. Ao fazer isso, traçaram uma linha evolutiva para classiicar estas manifestações, colocando-as em determinados estágios de evolução, assim como o izeram em relação às sociedades conhecidas até então. A questão que estava em pauta nesse esforço classiicatório referia-se à compreensão das formas de pensamento humano e a hipótese sustentada pela escola evolucionista, que seguia o espírito de sua época, o século XIX, era a de que as outras sociedades seriam menos desenvolvidas que as sociedades europeias e, por consequência, seus membros teriam capacidades intelectuais menos desenvolvidas que os europeus. Foi dentro dessa maneira de interpretar a diferença que tiveram lugar as primeiras tentativas de se tomar como objeto de estudo o negro e suas manifestações, no Brasil. O primeiro autor a se dedicar a esse tipo de estudo foi Raimundo Nina Rodrigues, um médico maranhense radicado na Bahia. Ao se debruçar sobre o negro, que acabara de ser libertado do regime de escravidão, Nina Rodrigues pretendia deduzir leis gerais sobre a evolução mental e cultural dos povos e a religião seria, juntamente com a língua, uma medida segura da situação mental de cada povo. Assim sendo, se interessou, sobretudo, pelo transe estático observado nos cultos que tinham lugar entre a população negra, classiicando-o como “crise de possessão”1. 1 Ao classiicar o transe estático como “crise de possessão”, Nina Rodrigues o enquadra no seio das doenças mentais, que eram, a princípio, uma de suas principais preocupações enquanto médico. 73 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Estes cultos, que o autor chamava de “fetichistas”, representariam uma das formas primitivas da religião, já que ainda não apresentavam características abstratas tal como o cristianismo, judaísmo ou islamismo, por exemplo. No entanto, apesar de não serem ainda completamente desenvolvidos, esses cultos também não estariam nos níveis mais baixos de desenvolvimento, visto que, segundo o autor, os negros que vieram para a Bahia seriam, em sua maioria, nagôs, raça superior à dos demais africanos. Ainda inluenciado pelos esquemas evolutivos, Nina Rodrigues argumenta que, dentre os cultos africanos, os nagôs estariam no topo da evolução em relação aos bantos e a outros africanos radicados em solo brasileiro, estando os jejes num nível intermediário entre estes e os nagôs. Inicia-se aqui uma campanha de valorização da religião nagô em detrimento de outras manifestações religiosas de negros de outras etnias. É preciso ressaltar que ao airmar a superioridade da religião nagô, Nina Rodrigues a relacionava à superioridade racial deste povo, que além de apresentar características físicas e biológicas que os destacavam dos outros, os tornava menos permeáveis a inluências externas. Ou seja, essa pretensa superioridade nagô em relação aos demais africanos radicados no Brasil poderia ser justiicada pelo fato de que os nagôs tinham conseguido manter suas práticas “fetichistas” praticamente inalteradas, apenas justapondo o catolicismo a elas, sem que este lhes izesse degenerar como havia ocorrido com outros africanos ou mesmo com indivíduos nagôs apartados de suas famílias e educados em meio a outros africanos, caboclos ou mestiços. Ao fazer isso, Nina Rodrigues dá início a uma campanha de valorização da tradição nagô, considerando como degenerações as práticas religiosas que se desenvolveram em decorrência da convivência entre africanos – mesmo os de origem nagô – e as demais populações do território, sobretudo as mestiças2. 2 Nesse sentido, há que se observar que Nina Rodrigues foi um opositor ferrenho de qualquer tipo de mestiçagem, defendendo medidas de manutenção da pureza tanto da raça quanto das manifestações religiosas. 74 Disciplina 10 - Religiosidade Afro-brasileira: Tolerância e Intolerância no Espaço Escolar Referências Bibliográficas BRELICH, Angelo. In: PUECH, H. C. (org.). Histoire des religions – Encyclopédie de la Plêiade. Paris: Galimard, 1982. CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. MONTERO, Paula. Religião, modernidade e cultura: novas questões In: TEIXEIRA, Faustino, MENEZES, Renata (org.). As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 249 – 263. NINA RODRIGUES, Raymundo. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010 [1900]. http://static.scielo. org/scielobooks/mmtct/pdf/rodrigues-9788579820106.pdf TAMBIAH, Stanley. Magic, science, religion, and the scope of racionality. Cambridge: Cambrigde University Press, 1990. 75 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Unidade 2. Candomblé, uma religião da diáspora africana Texto 1. Tornar-se religião Objetivos Apresentar, de forma panorâmica, o processo de constituição das religiões afro-brasileiras – com ênfase no candomblé – considerando-as como religiões resultantes da diáspora africana provocada pelo regime de escravidão. Como airmamos na unidade anterior, Nina Rodrigues inaugurou um tipo de relexão que colocava os nagôs no topo de uma cadeia evolutiva racial e religiosa dentre os africanos. A qualiicação dos nagôs como só os mais evoluídos e os que apresentavam cultos mais puros, portanto mais próximos das práticas tradicionalmente executadas na África, teve algumas consequências, dentre as quais o desenvolvimento de pesquisas e de organizações de proteção desses cultos, por intelectuais. Antes de entrarmos nas consequências especíicas relativas à conformação e aceitação, por parte da sociedade mais ampla, dos cultos africanos como religião, é preciso lembrar o contexto em que isso se tornou possível. Com o im da escravidão um enorme contingente de ex-escravos deixou as áreas nas quais viviam e se dirigiu às cidades, o que terminou por gerar uma massa de marginalizados, despossuídos das mínimas condições de sobrevivência. Esta massa, inserida na categoria das “classes perigosas”, foi objeto de uma série de controles relacionados à criminalidade, ao que então se denominava “higiene mental” e às práticas de cura, consideradas como curandeirismo, exercício ilegal da medicina ou charlatanismo, já que o Código Penal republicano, promulgado em 1890, deiniu a cura e os cuidados dos corpos como campo de atuação exclusivo dos médicos. A disputa pela consolidação da exclusividade do domínio sobre o corpo e a cura pelos médicos colocou sob suspeição de charlatanismo uma série de outros atores que exerciam atividades relacionadas à cura, incluindo, além dos praticantes de cultos de origem africana, kardecistas e homeopatas, entre outros. Os dois últimos, que não se pensavam enquanto religião, mas como desenvolvedores de um tipo de ciência, tentaram conquistar o reconhecimento de suas práticas a partir de estratégias que foram mudando conforme o contexto: a homeopatia seguiu tentando se airmar como uma prática cientíica, enquanto o espiritismo kardecista foi, aos poucos, sendo deinido como religião, à medida que a aceitação de suas práticas curativas ganhava espaço a partir de sua vinculação a um princípio bastante caro ao ideário cristão, particularmente ao católico, o da caridade1. 1 Nesse sentido, vale observar que, apesar dos protestos dos médicos, nos processos em que kardecistas eram suspeitos de charlatanismo, curandeirismo ou exercício ilegal da medicina os juízes tendiam a não considera-los 76 Disciplina 10 - Religiosidade Afro-brasileira: Tolerância e Intolerância no Espaço Escolar Assim como no caso do espiritismo, as práticas de cura inseridas nos cultos africanos, bem como daqueles praticados pela população mestiça, foram objeto de perseguição policial e judicial. No entanto, houve nestes casos tratamentos diferentes entre si: por um lado, as práticas inseridas nos cultos nagôs, assim como os cultos como um todo, tiveram o apoio e proteção de parte da intelectualidade brasileira; por outro lado, as práticas curativas inseridas no interior das demais manifestações não tiveram a mesma sorte. Isso porque os trabalhos inicialmente feitos por Nina Rodrigues e continuados por seus discípulos, já os vinham tratando como manifestações religiosas. Desse modo temos, no mesmo contexto, a inserção na categoria religião tanto dos cultos nagôs quanto do espiritismo kardecista. Os primeiros porque considerados, a partir de um ideário evolucionista, como uma manifestação primitiva da religião. Já o segundo por adotar um dos princípios mais caros à religião hegemônica do período. As demais manifestações não tiveram a mesma sorte e foram submetidas ao controle policial e marginalização durante algumas décadas. Voltaremos a esta questão mais adiante. Texto 2. Religiões africanas: a supremacia nagô Objetivos Compreender melhor algumas dinâmicas internas às religiões afro-brasileiras, dinâmicas essas que são ao mesmo tempo fontes de tensões internas e fronteiras de legitimação intra e extra religiosa. O movimento iniciado por Nina Rodrigues no sentido de airmar os cultos dos nagôs como religiosos e como apresentando os traços mais puros de uma religiosidade africana foi continuado por alguns de seus seguidores, dentre os quais se destacam Arthur Ramos e Édison Carneiro, bem como por intelectuais não iliados à chamada escola Nina Rodrigues, como Gilberto Freyre e Roger Bastide, por exemplo. Esse movimento teve por consequência, segundo autores como Mariza Corrêa e Beatriz Góis Dantas, legitimar o candomblé baiano, por um lado, e, por outro, deslegitimar outras manifestações religiosas não hegemônicas. Nesse sentido, Arthur Ramos, um dos principais discípulos de Nina Rodrigues, apesar de ter-se afastado de seu mestre ao deslocar o foco da raça para a cultura, relacionando as formas de culto a elementos culturais e não biológicos, continuou a conceder aos nagôs os mesmos títulos que lhes eram atribuídos por Nina Rodrigues. Apesar de ter airmado que na África religião e magia estavam unidas e sua separação, no Brasil, teria ocorrido em virtude das pressões dos brancos, Arthur Ramos insiste na tese de que o candomblé mantém apenas as atividades religiosas de culto aos orixás, tendo abandonado as atividades relativas à feitiçaria. Em suma, a despeito de algumas variações, ambos autores sustentam a tese de que o Xangô africano mais puro seria uma verdadeira religião e as formas de culto misturadas seriam degenerescências e feitiçarias que deveriam ser combatidas pela polícia e por instituições que trabalhavam pela “elevação moral do negro”. enquanto tal dada a argumentação de que seus praticantes não demandavam daqueles a quem atendiam nenhum pagamento, ou seja, suas práticas se pautavam pelo objetivo de ajudar o outro. 77 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções O argumento levantado por Arthur Ramos sobre a separação entre feitiçaria e religião, originalmente juntas na África, tornou-se comum entre os intelectuais que se ocuparam de questões relativas aos negros, nos anos 1930, que usavam as categorias magia e religião para separar a religião pura dos nagôs da magia. Nesse sentido, a categoria feitiçaria fundiu-se à categoria magia por oposição à categoria religião. Aqui a distinção feita por Durkheim entre magia e religião, na qual a magia relacionar-se-ia a atos individuais e egoístas, enquanto a religião estaria ligada a atos públicos e de interesse comum, parece ancorar as interpretações desses intelectuais e, ao mesmo tempo, orientar suas práticas de defesa dos cultos que entendiam ser dignos de ser classiicados como religião. Ou seja, ao classiicar os cultos a partir de critérios de pureza africana, que seria responsável por garantir o uso legítimo do sagrado, esses intelectuais acabaram deinindo o que seria a religião pura e, portanto, verdadeira. Esses autores não apenas se dedicaram ao estudo das manifestações religiosas africanas, mas se inseriram em movimentos de valorização do africano e de sua herança cultural, participando ativamente de terreiros, nos quais atuavam como ogãs – o que os colocava também na posição de contribuidores inanceiros das casas – e intermediavam as relações com a polícia. Desse modo, esses intelectuais tiveram um importante papel na valorização do africano e na deinição do que poderia ser considerado religião. É interessante observar que até mesmo um intelectual como Gilberto Freyre, que se irmou na cena brasileira a partir do suposto de que a originalidade da cultura brasileira residia na mestiçagem e na mistura das inluências europeia, africana e indígena, ou seja, um suposto absolutamente oposto ao da pureza racial e cultural tal qual defendido por Nina Rodrigues, tenha comungado da interpretação que via nesses cultos os elementos africanos mais puros e exaltava essa pureza. Embora pareça mais relacionada à ideia de que no candomblé, por ser mais puro, seria possível observar mais nitidamente os elementos africanos que entraram na composição do que considerava ser a “cultura brasileira”, este autor acabou por engrossar o caldo daqueles que valorizavam o candomblé em detrimento de outras manifestações tais como a macumba e o catimbó, entre outros. Referências Bibliográficas CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. DANTAS, Beatriz Góis. Vovô nagô e papai branco. Usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graaal, 1988. GIUMBELLI, Emerson. Três observações inais sobre espiritismo, religião e sociedade. In: O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 269 -284. SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégios – charlatanismo e curandeirismo no Brasil. In: Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900 – 1990). São Paulo: IBCCRIM, 2004. p. 55 -81. 78 Disciplina 10 - Religiosidade Afro-brasileira: Tolerância e Intolerância no Espaço Escolar Unidade 3. O candomblé em busca de legitimação: religiosos e pesquisadores como mediadores Texto 1. Em busca da pureza Objetivos Compreender melhor os processos internos de busca de legitimação por parte de alguns dos setores das religiões afro-brasileiras. Veremos, nesta aula, expedientes adotados por alguns autores, bem como por dirigentes de casas de culto no sentido de garantir a pureza ou equivalência de suas práticas em relação àquelas que tinham lugar no continente africano. O grande desaio aqui parece ter sido o de distinguir entre práticas trazidas diretamente da África e aquelas que foram sendo criadas no decorrer do tempo em que estiveram no Brasil. Para tanto, seria necessário, por um lado, a realização de pesquisas sobre os rituais existentes na África – o que, por si só não seria tarefa fácil, dado que a África é um continente com inúmeros grupos étnicos e uma enorme variedade cultural – e, por outro, a ida à África dos sacerdotes que dirigiam terreiros, na Bahia, para que adequassem suas práticas ao modo africano. Bastide foi um dos autores que mais se empenhou na busca pela deinição dos traços que deveriam servir como atestado de pureza africana nos cultos. Para tanto, se dedicou à realização de pesquisas que permitissem a comparação entre rituais realizados na Bahia e na Nigéria, na região do Baixo Daomé, local de origem dos nagôs que vieram para o Brasil. Ao observar a cerimônia de iniciação dos ilhos de Xangô, o autor airma que existem pouquíssimas diferenças entre as cerimônias do Baixo Daomé e dos terreiros da Bahia, que seriam: o traje litúrgico do novo Xangô no Daomé é mais rico que aquele usado nos terreiros baianos; enquanto na África a cerimônia de dar o nome vem depois da cerimônia do panan, na Bahia ocorre o contrário; além disso, na África o nome é dado por uma sacerdotisa e não é revelado pela Iyawo em transe, ao contrário do que acontece nos terreiros nagô da Bahia1. Essa busca pelas raízes africanas também se estendeu, sobretudo a partir dos anos 1930, aos terreiros, que envidaram esforços para enviar seus ilhos para a África. De acordo com Beatriz Góis Dantas, esse movimento de retorno à África foi liderado pelo terreiro baiano, de tradi1 As observações e descrições feitas por Bastide da cerimônia de iniciação dos ilhos de Xangô foram ilustradas com fotos de Pierre Verger, outro africanista francês, radicado na Bahia, que também realizou pesquisas tanto na África quanto na Bahia. Ambos trocaram cartas sobre suas impressões das cerimônias observadas, que estão registradas Verger – Bastide: dimensões de uma amizade. 79 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções ção nagô, Axé Opô Afonjá, que teria ganho, por este motivo, muito prestígio e se tornado um exemplo para outros terreiros. No entanto, nem todos os pais e mães de santo podiam fazer a viagem à África e, nestes casos, restava-lhes a possibilidade de reencontrá-la nos livros dos intelectuais que, guiados pela ideia de preservação de uma África original, tinham descrito rituais e cerimônias dos candomblés considerados os mais puros. Nesse sentido, vale ressaltar que visando o reconhecimento legal do candomblé como religião, Édison Carneiro alargou, em comparação com Nina Rodrigues, a noção de religião africana, estendendo essa classiicação a outras formas de culto de origem africana além da nagô, mas, por outro lado, propôs a iscalização dos terreiros para que fosse possível controlar a ortodoxia dos cultos, separando os verdadeiros daqueles que faziam uso da feitiçaria, charlatanismo e exploração. Nesse contexto, para que pudessem ser classiicados como de origem africana e poderem reivindicar seu reconhecimento legal, os membros dos terreiros tinham que, além de seguir os preceitos descritos pelos autores como sendo característicos da verdadeira religião africana, provar que em seus terreiros não se fazia feitiçaria, charlatanismo ou explorações de qualquer sorte. Isso se relaciona, certamente, à separação entre magia/feitiçaria e religião, classiicadas como práticas indignas e dignas, respectivamente. Texto 2. Alargando as noções de religiões afro-brasileiras Objetivos Ampliar a compreensão acerca do universo das religiões afro-brasileiras, para além do candomblé e para além das nações de candomblé Enquanto no nordeste a construção do conceito de religião se baseou no princípio de pureza africana e teve nos intelectuais um elemento fundamental nessa construção, no sul do Brasil este conceito ganhou outros contornos. Estes estavam mais ligados às disputas em torno dos cuidados com os corpos, às negociações sobre como eram feitas as intervenções sobre esses corpos e se estas envolviam relações de crença ou exploração. Nesse sentido, é preciso ressaltar que, apesar de se tratar de uma disputa envolvendo os médicos, que pretendiam garantir sua exclusividade enquanto cuidadores dos corpos, excluindo da cena àqueles que eram classiicados de charlatães ou curandeiros, a leitura feita pelos juízes nos julgamentos de processos desse tipo se prenderam, como bem demonstram os trabalhos de Emerson Giumbelli (1997) e Yvonne Maggie (1992), sobretudo aos relatos feitos pelos peritos da polícia. Estes é que descreviam as cenas nas quais se realizavam os rituais de cura e os elementos que faziam parte desses rituais, moldando, a partir de suas descrições, os critérios de julgamento e a serem utilizados pelo aparelho repressor. 80 Disciplina 10 - Religiosidade Afro-brasileira: Tolerância e Intolerância no Espaço Escolar Foi, portanto, a partir da construção, ao longo do tempo, de um quadro no qual a mediunidade foi sendo associada à caridade, bem como da mudança do quadro legal que passou a proteger rituais de cura inseridos em cultos que o espiritismo passou a integrar o quadro do que se concebia como religião. Ao ser incluído no quadro dos cultos considerados religiosos, o espiritismo acabou abrindo brechas para que outros cultos também demandassem sua inclusão nesse quadro. Este foi, por exemplo, o caso da umbanda. De acordo com Diana Brown (1985), a umbanda teria surgido a partir da inclusão de elementos advindos de tradições afro-brasileiras em suas práticas religiosas, por parte de um grupo de kardecistas, nos anos 1920. Estes, após visitarem centros de macumba nas favelas e arredores do Rio de Janeiro, teriam considerado os espíritos de pretos-velhos e caboclos mais competentes que os espíritos altamente evoluídos do espiritismo kardecista para tratar algumas doenças e resolver uma série de problemas. No entanto, apesar de terem incluído entidades de tradições afro-brasileiras em seus cultos, houve, inicialmente, conforme atestam as atas do I Congresso do espiritismo de umbanda, realizado em 1941, um esforço por parte de seus fundadores de desafricanização da umbanda, puriicando-a de elementos ligados à África, considerados primitivos. É importante ressaltar que isso se deu num contexto de intensa perseguição policial aos cultos populares, já que, dentre estes, apenas eram reconhecidos como religião o espiritismo, por sua associação ao princípio da caridade, e o candomblé, por sua caracterização enquanto religião africana pura. No entanto, apesar das tentativas de se desvincular dos elementos africanizados, a umbanda não conseguiu se livrar das perseguições de que eram objeto os negros e marginalizados de modo geral. O caminho encontrado pela umbanda para ser incluída no rol das religiões foi o de se apresentar como religião genuinamente brasileira, já que, conforme os preceitos das teorias sobre a identidade nacional cunhadas a partir dos anos 1930, o que constituía a característica fundamental do Brasil e, por consequência, dos brasileiros, era a mistura. Sendo um culto que congregava elementos do espiritismo kardecista, indígenas e africanos, ela poderia ser apresentada como a religião brasileira por excelência. No entanto, mesmo se apresentando como uma religião genuinamente brasileira, restava à umbanda resolver um dilema que colocava em questão sua caracterização mesma como religião: como lidar com o exercício da caridade e a cobrança pelos serviços prestados, dado que os terreiros situam-se geralmente em áreas pobres e necessitam de ajuda inanceira para existirem. Lísias Negrão (1993) airma que a solução encontrada para este dilema repousa na adequação a um princípio básico da umbanda, o da justiça, ou seja, o de que cada um paga pelo que faz. Esse princípio, segundo o autor, coloca limites nas relações de cobrança, não permitindo que seja negada a realização de serviços para quem precisa e não pode pagar e a cobrança excessiva mesmo daqueles mais afortunados. Referências Bibliográficas BASTIDE, Roger e VERGER, Pierre. O ritual de iniciação das ilhas de Xangô na África e no Brasil. In: LÜHNING, Angela (org.). Verger – Bastide: dimensões de uma amizade. 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Tempo social, 5 (1 – 2), 1993, p. 113- 122. 82 Unidade 5 - Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo Unidade 5. Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo Objetivos Apresentar a situação atual de intolerância religiosa que se abate contra as manifestações religiosas afro-brasileiras – incluindo sua relação com o ambiente escolar – tornar conhecidas parte das iniciativas das populações ligadas a terreiros em defesa dos seus direitos, além de aprofundar o necessário diálogo entre a educação formal e as religiões afro-brasileiras, entre a escola e o terreiro. Compreender a importância da Lei 10.639/03, como dispositivo legal que assegura o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica no Brasil (o que inclui a possibilidade de se trabalhar os valores civilizatórios afro-brasileiros presentes nessas religiões), além de dar visibilidade a ações pessoais e coletivas que têm promovido essas religiões como repositórios de diferentes formas de aprendizados e conteúdos que devem ser considerados signiicativos na construção de um currículo descolonizado, cidadão e antirracista. 1. Intolerância religiosa e reação do povo de axé Veremos aqui como as religiões afro-brasileiras têm sido tratadas no Brasil quando o assunto é a sua relação com a sociedade mais abrangente e com as religiões evangélicas (pentecostais e neopentecostais). Como você já sabe, a história das religiões afro-brasileiras sempre foi marcada por incompreensões, perseguições e busca de legitimação. Outro problema que as populações ligadas a essas religiões (às vezes denominadas de “povo de axé”) sempre tiveram que enfrentar é a intolerância religiosa. Isso porque, durante muito tempo essas manifestações religiosas não foram consideradas religiões. Durante toda a época em que vigorou no Brasil uma relação estreita entre o estado e a igreja católica (através de uma dependência mútua oicializada pelo Padroado), o trono e o altar atuaram de forma a imporem uma religião hegemônica em detrimento da rejeição e perseguição das demais. No caso das religiões afro-brasileiras, sempre foram as maiores vítimas da intolerância religiosa. Tal intolerância chegou a ser institucionalizada, já que na primeira constituição brasileira (Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824), a única religião autorizada e considerada legítima era a católica, sendo ela a religião oicial do estado. Já as outras (entre elas as afro-brasileiras) só podiam funcionar no espaço privado, e desde que não exibissem sinais exteriores de templo. Essa mesma intolerância também aparecia nos códigos criminais (como o de 1830 e posteriormente no de 1890) nos quais as manifestações religiosas africanas ou afro-brasileiras eram equiparadas a práticas criminais passíveis, inclusive, de punição. Ora, o que vemos hoje é que, mutatis mutandis, a situação não mudou muito. Cenas que eram comuns até a década de 40 voltaram a acontecer nos últimos anos. A invasão de templos religiosos (terreiros), prisão de seus líderes, humilhação dos iéis, imposição de horário de funcionamento, apreensão de objetos de culto, assim como destruição e execração pública de símbolos afro-religiosos voltaram a ser comuns no Brasil atual. 83 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Constantemente a imprensa tem noticiado atos de vilipêndio e agressões das mais variadas naturezas contra pessoas, lugares e liturgias afro-religiosas. Isso constitui total desrespeito aos direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988 e por uma vasta legislação infraconstitucional que garante e assegura a liberdade de crença e de culto, além da inviolabilidade dos espaços de cultos e suas liturgias. Naturalmente, como sempre aconteceu na nossa história, as principais vítimas de toda essa violência são as religiões afro-brasileiras. Quanto aos promotores dessa violência e intolerância, diferentemente do que aconteceu em períodos históricos anteriores, nos quais a igreja católica e a polícia eram seus principais algozes, hoje em dia os maiores perseguidores são as igrejas evangélicas, sendo que entre elas as mais beligerantes e intransigentes têm sido as pentecostais e neopentecostais, cujo exemplo máximo é a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD. Além dessas igrejas, há outros atores sociais e políticos legitimados por elas, como as chamadas bancadas evangélicas, que, no âmbito da política institucional, muitas vezes atuam pautados nas respectivas teologias das suas igrejas, endossando, ainda mais, a intolerância já existente na sociedade mais abrangente. Sempre que assume essa forma, a intolerância religiosa tem sido praticada de forma contínua e institucionalizada, já que promovida de forma estruturada por parte das casas legislativas, nas quais as ditas bancadas evangélicas instrumentalizam sua atuação parlamentar, no sentido de implementar as políticas intolerantes advogadas pelas denominações religiosas as quais seus membros pertencem. Nessas condições, a violência toma proporções de política de estado, o que é deveras preocupante. Até por que, se a violência é institucionalizada, como desenvolver uma política de estado que combata essa mesma violência? E a Lei 10.639/2003, ao propor como obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira (de cuja cultura as religiões afro-brasileiras também fazem parte) não seria justamente uma tentativa de política pública que visa combater o racismo institucionalizado que em muitos casos se revela como intolerância e rejeição a uma cultura tida como herança de negros? Como então desconstruir essa mentalidade racista e intolerante que vigora na nossa sociedade? Naturalmente você deve estar se perguntando: e os afro-religiosos não reagem a essa intolerância? Decerto, as populações ligadas a essas religiões não tem se mantido apáticas, indiferentes e inertes diante das agressões sofridas. Algumas propostas de soluções para esse problema têm vindo justamente dessa população de terreiro. No próximo tópico veremos algumas das estratégias desenvolvidas pelo “povo de axé” e que devem ser consideradas por nós, na nossa prática pedagógica, quando da implementação da Lei. 2. Representatividade e luta por direitos Anteriormente dissemos que o “povo de axé” não tem se mantido inerte diante da intolerância sofrida por ele. Pois bem, uma das formas de reação a essa realidade tem sido o empenho em campanhas de incentivo à autodeclaração nos censos demográicos. Exemplo disso é a campanha “Quem é de axé diz que é”. Esta campanha foi criada com o objetivo de mudar os quadros estatísticos divulgados pelos censos, já que os números revelados por eles nunca foram iéis à realidade e, portanto, sempre foram contestados pelos grupos afro-religiosos que alegam sub-representação nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs). Com a autoairmação da população “de axé” pretende-se adquirir mais visibilidade e com isso representatividade. O folder abaixo, na versão da campanha para São Paulo, divulgado entre essa população, contextualiza bem a situação que deu origem à campanha: 84 Unidade 5 - Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo Fig. 1: Campanha “Quem é de axé diz que é”. Outra estratégia tem sido incentivar membros dessas religiões a se candidatarem e assumirem cargos públicos. Com isso acredita-se que, ao obter representatividade política, haverá um contraponto àqueles que na política institucional tem criado leis restritivas a essa religiões. Porém, por diversos motivos, essa estratégia ainda não se mostrou eicaz e nem mesmo obteve resultados passíveis de análise. Além dessas estratégias, o “povo de axé” também tem organizado eventos públicos de mobilização popular nas ruas, a im de chamar a atenção para a violência que tem sofrido e sensibilizar a população para essa problemática. Sendo assim, na última década as chamadas “caminhadas pela paz e contra a intolerância religiosa” têm surgido em quase todos os estados da federação. Apesar de não conseguirem uma adesão muito signiicativa, esse tem sido um canal de resistência à intolerância religiosa que talvez produza frutos duradouros. 85 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Além dessas, outras estratégias têm sido levadas a cabo e obtido adesão de agentes e instituições, não necessariamente ligadas a essas religiões, a exemplo de artistas, intelectuais e acadêmicos. E aqui poderíamos questionar: e a escola, que postura ela tem assumido diante de tudo isso? A pergunta é legítima e a busca por respostas envolve todos nós, já que a existência da Lei Federal 10.639/2003 nos instiga a promover uma realidade bem diferente da que percebemos nas nossas escolas e na nossa sociedade. 3. Religiões afro-brasileiras e a educação - O terreiro e a escola Se tratando da Lei 10.639/2003, há de se considerar a importância de discutir também as questões relacionadas às religiões afro-brasileiras, já que estas são parte constitutiva da cultura afro-brasileira, e, portanto, fazem parte do conteúdo da referida Lei. Nesse sentido, as ciências sociais (e de modo mais especíico a Sociologia e a Antropologia) podem ser grandes aliadas nessa tarefa, já que apresentam uma abordagem da religião como aspecto fundamental da cultura. É nesse sentido que propomos incluir a discussão sobre essas religiões numa perspectiva culturalista. Porém, há que se ter o cuidado de não confundir essa discussão com catequese, proselitismo, doutrinação ou congêneres. É justamente para evitar condutas desse tipo que não propomos um “Ensino Religioso” e sim um estudo histórico e cultural dessas religiões e da su importância como foco de resistência das populações negras ao longo da nossa história. Contudo, sabemos o quanto o racismo tem sido uma constante no Brasil. Também sabemos que esse mesmo racismo muitas vezes se manifesta de diferentes formas, inclusive se deslocando da questão da cor e se estendendo a tudo aquilo que está relacionado ao negro1. Assim como suas culturas mais abrangentes, suas religiões também têm sido, amiúde, vítimas desse racismo e preconceito. É por isso que, ao discutirmos religiões afro-brasileiras em sala de aula, também teremos que assumir essa tarefa em uma perspectiva antirracista. Isso implica, inclusive, a necessidade de conhecermos bem o tema a im de desconstruirmos os estereótipos que se construiu historicamente em relação a essas religiões. Além disso, teremos que enfrentar, inclusive, nossos próprios preconceitos. Preconceitos resultantes de séculos de discriminação, racismo e incompreensões em relação a essas manifestações religiosas. Faz-se necessário então uma reaproximação entre o terreiro e a escola. Tal reaproximação não deve, porém, ser motivo para que um se sobreponha ao outro. O sentido dessa reaproximação é tão somente para que cada um possa ouvir o outro e perceber a contribuição que cada um pode dar no combate ao racismo e na promoção de uma educação inclusiva, equitativa e conscientizadora. 1à-àE àseusàváriosàestudos,àoàso iólogoàfra êsàMi helàWieviorkaàte àafiàr adoà ueàoàra is oàpossuiàu aà gra deà apa idadeàdeàseàadaptaràaàdifere tesàsituaçõesàeàrealidadesàso iaisàeà ulturais,àse doàassi ,àeleà e àse preàestáàrela io adoàape asà o àoàperte i e toà t i o-ra ialàdosàgruposà ueàa à ge.àEleàfala,àporà exe plo,àdeàalgu asàfor asàdeàra is oà e àpe uliares,àper e idasà aàFra çaà Ra is e Différe ialiste ,à aà I glaterraà New Ra is àeà osàEstadosàU idosà Sy oli Ra is .àOà ueàháàdeà o u àe treàessasàfor asàdeà ra is oà à ue,àdespre de do-seàdaà o diçãoàra ial,àeleàseàeste deà à ulturaàdosàgrupos-alvo,à o oàseàpodeà per e eràaàperseguiçãoàaosàsí olosàdaà ulturaàeàdaàreligiãoà ulçu a aà aàFra çaà oà asoàdaàa oliçãoàdoàusoà doàv uà asàes olasàfra esas .àTa àa uià oàBrasil,àoàra is oài s àtu io alàper e idoà asàes olas,à ua doà oàassu toà àosàsí olosàdasàreligiõesàafro- rasileiras,àe uadra-seà essaàfor aàdeàra is o.àPoràesseà o àvo,àaà i ple e taçãoàdaàLeià . / àta àdeveài luiràoàrespeitoàaàessasà ulturasàreligiosasàhistori a e teà dis ri i adas.àParaàseà o pree derà elhoràaàdis ussãoàdese volvidaàporàWieviorka,àveja,àporàexe plo:à WIEVIORKá,àMi hel.àOàRa is o,àu aài trodução.àSãoàPauloà:àPerspe àva,à .àEàMutaçãoàdoàra is o.àI :à Diásporas,àredesàeàguetos:à o eitosàeà o fiàguraçõesà oà o textoàtra s a io al.àBERNáRDO,àTeresi haà&à CLEMENTE,àClaudeliràCorrêaà orgs. .àSãoàPauloà:àLogoà:àEdu ,à .àp.à - . 86 Unidade 5 - Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo É nesse sentido que as Orientações Curriculares da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, ao tratar das Expectativas de Aprendizagem para a Educação Étnico-Racial na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, reforçam a importância da inclusão dessa temática no currículo e chama a atenção para a importância de se discutir o sentido e a importância dos terreiros. Segundo a Diretoria de Orientação Técnica da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Município de São Paulo – DOT/SME-SP: “Os projetos político-pedagógicos tem-se negado a aceitar, até mesmo por total desconhecimento de quem os elabora, a capacidade de resistência em que se transformaram os espaços religiosos de origem africana no Brasil. É preciso que a escola cidadã perceba os terreiros de Candomblé não apenas como espaços religiosos, mas também, e principalmente, como territórios de resistência cultural, de manutenção de mitos e de cosmovisão de mundo, de representação e de ressigniicação do mundo africano – renegado pelos currículos escolares que, quando contemplavam a prática da educação religiosa, tinham conteúdo confessional e eram norteados pelos ideais da religião oicial brasileira, o Catolicismo, em vez de ensinar conteúdos de várias religiões. E pior: esses conteúdos eram elaborados para inferiorizar as demais religiões” (DOT/SME-SP, 2008, p. 21-22). Como você pode ver, sendo a religião um aspecto fundamental da cultura, a implementação da Lei 10.639/2003 passa, necessariamente, pela discussão da questão da religião. Até porque, no Brasil, quando o assunto é a história do negro, as manifestações religiosas, assim como seus espaços sagrados de culto (os terreiros), sempre foram espaços de resistência, como deixa bem claro o documento do magistério paulista citado acima. Não é possível, portanto, negligenciar essa discussão. Seria uma omissão querer “pular” essa parte. Seria desonesto “mutilar” o currículo, deixando de lado esse tema simplesmente para evitar polêmica ou não criar indisposição com alunos, pais de alunos ou gestores de outras denominações religiosas e que acreditam que as religiões afro-brasileiras são religiões de adoradores do diabo, como tem acontecido muito. 3.1. A questão do conteúdo e do material: como e onde achar material para trabalhar esse tema? Na sua vida de professor(a) você já deve ter ouvido falar ou mesmo vivenciado alguma situação na qual algum(a) colega, ao aderir à implementação da Lei 10.639/2003, se deparou com a situação em que um dos temas que mais despertou diiculdades e gerou polêmicas foi justamente a temática relacionada com as religiões afro-brasileiras. Não se preocupe, isso tem sido recorrente. Atente para o fato de que, considerando as mudanças do campo religioso brasileiro nas últimas décadas, podemos perceber um crescimento progressivo das religiões pentecostais e neopentecostais, expressões religiosas que aos poucos assumiram a posição de rivais declarados das religiões afro-brasileiras. Com isso, as diiculdades enfrentadas pelas religiões afro-brasileiras em termos de legitimação tem aumentado ainda mais e, se não houver mudanças, o que provavelmente não acontecerá, a tendência é que as diiculdades aumentem ainda mais. Somado a isso, também ica cada vez mais evidente que o magistério tem sido fortemente inluenciado por esse crescimento pentecostal. Isso não representaria um problema para a implementação da Lei caso não houvesse um preconceito histórico por parte da população evangélica em relação a essas manifestações religiosas. Há de se admitir também 87 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções que professores e gestores, quando evangélicos, muitas vezes desenvolvem seu fazer pedagógico pautados nos pressupostos do seu pertencimento religioso evitando assim, sob alegação de objeção de consciência, trabalhar temas relacionados com isso. Não deve ser surpresa para ninguém que, sem incorrer em generalizações simplistas, geralmente os pentecostais costumam apresentar diiculdades em se aproximar das religiões afro-brasileiras, mesmo que seja apenas para conhecê-las melhor. Por isso, respeitando as crenças de cada um e sem querer impor nada que vá contra suas convicções religiosas, acreditamos que uma das melhores formas de se conhecer aquele e aquilo que para nós representa o diferente, o outro, é aproximando-se dele. Tendo contato com ele. Contudo, sabemos a diiculdade que isso pode representar, nessa questão particular. E, mesmo acreditando que nada substitui o contato físico, admitimos que uma das possibilidades de conhecer as religiões afro-brasileiras é através do vasto material escrito, audiovisual e artístico que, felizmente, hoje já existe em quantidade e qualidade consideráveis e tem se tornado progressivamente acessível. Mesmo assim, muitas vezes, quando não se quer assumir a tarefa de discutir a temática relacionada com as religiões afro-brasileiras, costuma-se alegar falta de material. Aqui queremos discordar dessa alegação. Naturalmente a situação ainda não é a ideal quando o assunto é material que aborde esse tema. Contudo, não dá mais para utilizar esse argumento como desculpa para não trabalhar a temática em sala de aula. Por isso, indicaremos um conjunto de material, de diferentes naturezas, que poderá ser útil nesse trabalho. Inicialmente cabe advertir que não se deve icar preso apenas a livros. Além dos livros também existem ilmes, músicas, artistas, museus, terreiros, revistas, obras de arte (muitas delas instaladas em espaço público), centros culturais, eventos e festas públicas, celebrações, pessoas, e uma série de outros espaços de história e de memória, através dos quais você pode ter um contato e uma aproximação com o universo das religiões afro-brasileiras. Esses mesmos espaços de história e de memória também podem ser utilizados como material didático, paradidático, pedagógico e extraclasse para se começar ou desenvolver um trabalho comprometido com essa temática. Na impossibilidade de elencar aqui grande quantidade de material, apresentamos alguns que nos parecem fundamentais, tanto para a formação continuada dos professores e gestores quanto para o planejamento e elaboração de um trabalho que pretenda desenvolver esse tema em sala de aula com os alunos: Livros (Alguns dos livros indicados são mais adequados para sua formação sobre o tema, já outros são indicados para o trabalho direto com os alunos. A leitura lhe mostrará o que deve ser adaptado ou mesmo adotado como texto base para a sala de aula). ACUBALIN (Associação de Cultura Bantu do Litoral Norte – SP); FIGUEIREDO, Janaína de.; ARAÚJO, Patrício C. Et al. Nkisi na Diáspora: raízes religiosas bantu no Brasil. Ed. ACUBALIN, São Paulo, 2013. ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Pai Adão era nagô. Produção alternativa; Rio de Janeiro, 1989. BERKENBROOK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. Petrópolis, Ed. 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Direção: Rubens Xavier. Brasil, 2001. Kiriku e a Feiticeira. Diretor: Michel Ocelot (França), 1998. Besouro. Direção de Orlando Voador, 2009. Jardim das folhas sagradas. Pola Ribeiro, 2011. Minissérie “Mãe de Santo” (Exibido na extinta TV Manchete, na década de 1980, e encontrado hoje nas lojas de artigos religiosos de candomblé e umbanda): Volume 1 (Exú, Ogum e Omolu); Volume 2 (Oxósse, Oxum e Ossain); Volume 3 (Xangô, Oxalá e Ewá) e demais volumes que conseguir encontrar. Cafundó. Direção: Clóvis Bueno e Paulo Betti. São Paulo, 2005. Documentários Atlântico negro – Na rota dos orixás. Direção: Renato Barbieri. Brasil, 1988. O Povo Brasileiro. A matriz Afro. Isa Grinspum Ferraz. 2000. Nkisi na Diáspora. Dir. Zoran Djordjevic, 2013. Religião e cultura popular. Direção: Sérgio Ferretti. Brasil, 1995. Abdias Nascimento. Memória negra. Direção e roteiro de Antônio Olavo. 2008. Orí. Raquel Gerber. Brasil, 1988. O Fio da memória. Eduardo Coutinho. 1991. Yalodê: Damas da sociedade. José Pedro da Silva Neto (Inâ Toby), 2005. Pierre Fatumbi Verger: Um mensageiro entre dois mundos. Lula Buarque de Holanda, 1999. Yaô. Geraldo Sarno, 1976. Orixá Ninu Ilê. Juana Elbein dos Santos, 1978. Mito e metamorfoses das mães nagô (Iya-Mi-Agbá - Arte sacra negra II). Juana Elbein dos Santos, 1979. Egungun. Carlos Blajsblat, 1982. Santo Forte. Eduardo Coutinho, 1999. 91 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Ilê Axé Bahia: A saga dos orixás. Mapeamento cultural e paisagístico da Bahia. A Cidade das mulheres. Lázaro Faria, 2005. Raça. Joel Zito, 2012. Ilê Axé Opô Afonjá. Intolerância religiosa – Ameaça à paz. Direção: Ordep Serra. Salvador, 2004. Devoção. Direção: Sérgio Sanz. Brasil, 2008. Artistas (Os artistas sugeridos são alguns entre os quais se percebe uma inluência das religiões afro-brasileiras sobre sua produção artística, seja na temática ou na estética. Lembramos que, como essa inluência está disseminada no conjunto da obra, não indicaremos as obras em especíico, deixando ao professor e seus alunos o trabalho de pesquisa que localizará essa inluência). Mestre Didi, Maurício Tizumba, Margareth Meneses, Chico César, Gilberto Gil, Sheik Tosado, Edilson Dhio, Caetano Veloso, Edson Gomes, Quinteto em Branco e Preto, Grupo Záfrica Brasil, Sérgio Santos, Elza Soares. Inaicyra Falcão, Clementina de Jesus, Rita Benedito, Maria Betânia, Clara Nunes, Verequete, entre muitos outros e outras. Museus, Centros Culturais e espaços de história e de memória Museu da Pessoa. Rua Natingui, 1100, Alto de Pinheiros, São Paulo – SP. Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). Avenida Professor Almeida Prado, 1.466 – Cidade Universitária, São Paulo – SP. Telefone: (11) 3091-4905. Casa das Áfricas. Endereço: Rua Engenheiro Francisco de Azevedo, 524. Sumarezinho, Região Oeste (Próximo ao Metrô Vila Madalena). São Paulo – SP. Tel. 3801-1718. Museu AfroBrasil. É um excelente lugar para uma primeira aproximação com a grande diversidade cultural ligada às diferentes civilizações africanas. O acesso ao museu e ao seu acervo é grátis e aberto da terças aos domingos. Endereço: Rua Pedro Álvares Cabral, s/n. Pavilhão Manoel da Nóbrega, Parque do Ibirapuera, São Paulo, SP. Portão 10. Centro Cultural Africano. Rua Anhaguera, 551, Barra Funda, São Paulo, SP. Brasil. Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim. Av. Inácio Dias da Silva, s/nº. Piraporinha, São Paulo, CEP 55143-408. Telefone: (11) 5514-3408. http://cpcmboi.blogspot.com.br/ Goma Capulanas. Rua José Barros Magaldi, 1121. Jardim São Luis. São Paulo. CEP 05815010. Fone: (11) 98452-2138. http://capulanas.com.br/ 92 Unidade 5 - Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo Terreiros Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá. Travessa Luis Carlos Lisboa, 166. Saída 79 da Rodovia Fernão Dias. Altura do 15.300 da Av. Cel. Sezefredo Fagundes. Fone: (11) 2995-2410. Axé Ilê Obá. Rua Azor Silva, 77. Vila Fachini, Jabaquara. São Paulo – SP. Fone: (11) 55882437 e 5588-0017. http://www.axeileoba.com.br/ Instituto Religioso Educacional dos Orixás - EGBÉ IRÊ-Ô. Estrada Pedreira-Alvarenga, 5.936. Eldorado/Diadema. CEP: 09972-005. (Esquina com a Rua Vinhedo e Bufet Bolando Festas). Alakétu Ilé Asé Palepá Mariô Sessu. Rua das Baúnas, 102, Pedreira. São Paulo – SP. Ilê Axé Oju Onirê. Rua Caviúna, 123 – Pq. Jacarandá – Taboão da Serra – SP. Inzo Tumbansi Tua Nzambi Ngana Kavungu. Rodovia Armando Sales, 5205, Recrei Campestre, Itapecerica da Serra – SP. CEP: 06856-000. Fone: (11) 4165-4333. http://ilabantu. inzotumbansi.org/ Sites www.mae.usp.br museudaoralidade.org.br www.museudapessoa.net www.forumafrica.com.br www.ileayie.com.br www.axeileoba.com.br www.afropress.com www.geledes.org.br ilabantu.inzotumbansi.org centroculturaloduduwa.com.br intecabsp.wordpress.com intecabsp.wordpress.com/intecab-sp www.lch.usp.br/sociologia/prandi 93 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções www.terreiros.ceao.ufba.br www.mapeamentodosterreirosjp.com.br www.uesc.br/nucleos/kawe/candomble/index.php?item=conteudo_apresentacao.php www.mapeandoaxe.org.br/oprojeto http://cchla.ufrn.br/mapeamentodosterreirosdenatal/terreiros.php?bairro 3.2. Relações entre intolerância religiosa e racismo: uma abordagem possível da Lei Federal 10.639/2003 Para que não haja confusão com nosso propósito, não é demais repetir: ao propormos o estudo em sala de aula a respeito das religiões afro-brasileiras não estamos propondo aulas de Ensino Religioso. A intenção também não é converter ninguém a essas religiões. Não esqueça porém que a Lei 10.639/2003 é categórica ao airmar que: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oiciais e particulares,Torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. “§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (Grifos nossos). Ora, a religião é um elemento fundamental de qualquer cultura e sendo assim, não seria possível estudar a cultura afro-brasileira excluindo o estudo das religiões afro-brasileiras. Porém, como sabemos, o preconceito em relação a essas manifestações religiosas ainda é muito grande e na escola ele também está fortemente presente. O preconceito e intolerância revelam o racismo ainda existente na nossa sociedade, haja vista o tratamento que historicamente se tem dado à herança cultural africana, percebida nas culturas afro-brasileiras. Esse racismo que airma que “coisa de negro” não presta, é feio, sujo, perigoso e diabólico, tem sido motivo para muitos tipos de violência, inclusive para esse que estamos aqui analisando. Por isso, lhe propomos uma abordagem acerca das religiões afro-brasileiras numa perspectiva antirracista, já que a intolerância religiosa, como Wieviorka nos ensinou (2008. p. 27-40.), pode ser vista como uma forma de racismo. A propósito, muitos pesquisadores e personalidades negras do Brasil admitem essa relação entre intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras e o racismo à brasileira. Veja, por exemplo, o que airmam o jurista Hédio Silva Júnior e o antropólogo Ordep Serra, nos depoimentos a seguir: 94 Unidade 5 - Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo “A intolerância de natureza religiosa/racial conigura uma das faces mais abjetas do racismo brasileiro, mantendo-se intacta ao longo de toda a história, e resistindo, inclusive, ao processo de democratização, cujo marco fundamental foi a promulgação da Constituição de 1988. (Silva Jr., 2007, p. 315). Não há coisa mais terrível no mundo do que a intolerância, a diiculdade e a incapacidade de aceitar os outros. O racismo é uma forma de intolerância. Mas é terrível quando se combinam coisas como o racismo e intolerância religiosa. Eu considero tão perigoso para o Brasil a intolerância religiosa quanto o crime organizado. São coisas parecidas. Há uma destruição da teia social, dos laços democráticos, quando a intolerância progride. E ainda pior, no nosso caso aqui do Brasil, é que a gente está vendo que a intolerância se tornou o cavalo-de-batalha do racismo. Quem é que é agredido pela intolerância religiosa hoje? São justamente os cultos afro-brasileiros. É o negro assimilado ao demônio, ao diabo. É o candomblé, a umbanda, os cultos afros que estão sofrendo esse processo de demonização. Há uma caça às bruxas, há uma agressão continuada. E é um absurdo que se fale em nome de Deus, se fale em valores religiosos, agredindo os outros, insultando, condenando. Religião que condena, condena a si mesmo. Então, é preciso restaurar o respeito mútuo. É preciso reestabelecer o diálogo inter-religioso fraterno. Mas isso só pode acontecer se a intolerância for proscrita, banida” (Ordep Serra, 2004. Grifos nossos). Essa realidade deve então fazer parte do currículo e ser trabalhada na escola, tarefa que deve ser assumida por toda a equipe escolar, incluindo professores, alunos, gestores e agentes escolares. Ainal, o combate ao racismo e a promoção de uma educação inclusiva e equitativa é dever de todos. 95 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções PARA REFLETIR Outro exercício que pode lhe ajudar a aprofundar mais seu conhecimento sobre o que tem acontecido no Brasil, em termos de intolerância religiosa contra a população de terreiro, é o que propomos agora. Antes de prosseguir nos estudos desta unidade, veja como a diiculdade de conviver com o pluralismo religioso pode desencadear conlitos que na verdade revelam o quanto a intolerância religiosa expõe o racismo existente na nossa sociedade. Pesquise na Internet pelas seguintes notícias: • “Alunos evangélicos se recusam a fazer trabalho sobre a cultura afro-brasileira”. • “Livro sobre Exu causa guerra santa em escola municipal”. • “Aluno é barrado em escola municipal do Rio por usar guias de candomblé”. • “Professora evangélica é denunciada por racismo e preconceito religioso”. Perceba que uma simples consulta à Internet é suiciente para tomarmos conhecimento a respeito da situação atual da tensa convivência entre as religiões no Brasil. Perceba como o racismo institucionalizado e a intolerância religiosa muitas vezes se manifestam juntos. Toda essa triste realidade exige intervenções na educação que levem em conta uma educação inclusiva e tolerante que valorize a diversidade e promova a paz. Depois de ter lido e reletido sobre cada uma das situações descritas nas reportagens, procure reletir sobre alguma forma de intervenção. Procure pensar em uma proposta que leve em conta a relação entre intolerância religiosa e racismo as motivações e circunstâncias que desencadeiam esses conlitos. Pense também nas posturas mais eicazes que devem ser assumidas pela comunidade escolar (alunos, professores, funcionários e gestores) assim como pelos pais dos alunos envolvidos em situações desta natureza. Depois de pensar nessas questões, caso tenha interesse submeta suas relexões aos seus colegas de curso. Considerações finais Ao chegarmos ao inal desta disciplina esperamos que você tenha nos acompanhado em toda a trajetória e que esse caminho percorrido lhe tenha sido útil para uma compreensão mais abrangente das diferentes formas de racismo existentes no Brasil, presentes na escola e na 96 Unidade 5 - Entre o terreiro e a escola: garantindo direitos e promovendo o respeito mútuo sociedade mais abrangente. Como foi dito anteriormente, o racismo é especialista em disfarces. Por isso, na condição de educadores que somos, temos que conhecê-lo profundamente para que possamos, com a ajuda da Lei 10.639/2003, combatê-lo de forma eicaz no universo escolar. Repetimos também que, muitas vezes o que se apresenta como intolerância ao outro através da recusa ou da rejeição aos símbolos de uma cultura religiosa - também pode se tratar de uma forma de racismo. Nessa perspectiva, essa “mutação do racismo” não é “privilégio” nosso, já que o mesmo fenômeno também tem acontecido em outros países, como bem airma Michel Wieviorka, ao tratar do new racism, racisme diferéncialiste e do symbolic racism. De nossa parte, infelizmente temos que admitir que “lá e cá fadas há”. Ou seja, também sofremos desse mal e por aqui essa forma de racismo se manifesta exatamente através da intolerância religiosa contra pessoas associadas às religiões afro-brasileiras. O foco do racismo se desloca então do pertencimento racial para a ligação com a cultura ou as religiões afro-brasileiras. Assim como na França tem acontecido às populações de religião islâmica, no nosso caso as principais vítimas dessa forma de racismo têm sido os negros e afro-religiosos, situação que é conirmada pelo Mapa da Intolerância Religiosa no Brasil. (Gualberto, 2011). Como podemos ver ao longo desta disciplina, mesmo existindo uma lei federal que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no ensino básico nacional, a real implementação desta lei tem sido diicultada em função do racismo e da intolerância existentes nas escolas. O que inspira ainda mais preocupação é perceber que, em muitos casos, essas condutas têm se manifestado através dos próprios professores e gestores escolares. E sendo assim, ica evidente que no Brasil o racismo é institucionalizado, como comprovou a ONU recentemente em um dos seus relatórios. Contudo, o racismo existente nas escolas apenas evidencia o racismo existente na sociedade brasileira como um todo. E, apesar desse racismo não ser admitido, a relação de dependência e inluência, existente entre a sociedade e a escola, tem feito com que as atitudes e condutas racistas atravanquem e até impeçam a aplicação da Lei 10.639/2003. Sobre esse particular, cabe-nos admitir que de todos os temas relacionados à cultura e história africana e afro-brasileira, a serem trabalhados na educação básica, os que têm encontrado mais resistência são justamente aqueles relacionados com as religiões afro-brasileiras e o legado cultural africano preservado por elas. Considerando que o currículo oicial sempre trabalhou temas ligados a outras modalidades religiosas (até porque o Brasil é e sempre foi um país plurirreligioso) a resistência a trabalhar temas ligados às religiões afro-brasileiras não aceita outra explicação senão a força do racismo que se revela também através da rejeição, do medo, desaprovação e até demonização dessas religiões. Também chamamos sua atenção para o fato de as tensões religiosas existentes no Brasil revelarem o racismo existente e não admitido no Brasil. Racismo esse muitas vezes chamado de “à brasileira”, “cordial” ou “velado” e que tem se reinado e admitido diferentes faces, o que exige ainda mais de todos nós um esforço redobrado no nosso fazer pedagógico diário. Até porque, como costuma airmar a famosa ialorixá do Rio de janeiro, Mãe Beata de Iemojá: “Se a escola não é capaz de respeitar as crianças do candomblé, ela também não merece o nosso respeito”. 97 Módulo 3 - Educação e relações étnico-raciais: ações e intervenções Referências Bibliográficas BOTÃO, Renato Ubirajara dos Santos. Volta à África: (Re)Africanização e identidade religiosa no candomblé paulista de origem bantu. Revista Aurora, Ano II, nº 3. Marília, 2008. LEITE, Fábio. A questão ancestral. Palas Athena & Casa das Áfricas, São Paulo, 2008. MELO, A. V. de. A voz dos iéis no candomblé “reafricanizado” de São Paulo. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosoia e Ciências, 2004. PRANDI, Reginaldo. 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