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MÚSICA: A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO 1 Parte I

RESUMO O texto apresenta uma adaptação do trecho inicial do relatório de pesquisa de pós-doutorado findo em 2014 desenvolvido na UFRJ. Este mesmo trecho é aqui apresentado em sua primeira parte onde se mostram questões introdutórias acerca da questão musical em contraponto com a dimensão do pensamento e do sagrado. A música mais especificamente se apresentará na sequência da parte III a ser publicada posteriormente. A influência e a presença do pensamento de Heidegger se mostram no modo em que nossa investigação se direciona, evidenciando-se a liberdade interpretativa metodológica nossa maneira de tomar de empréstimo o que o pensador nos relegou. O diálogo com outros autores e com a tradição ocidental da antiguidade (de modo especial a Grécia) é explorada de modo livre, obedecendo ao chamado e a dinâmica da própria investigação. Não há neste texto, bem como nos subsequentes, intenção ou direcionamento analítico, mas sim o propósito da busca pelas questões da música, do sagrado e do pensamento desde elas mesmas.

1 MÚSICA: A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO1 Parte I Eduardo A. G. Gatto (CEFET/RJ) RESUMO O texto apresenta uma adaptação do trecho inicial do relatório de pesquisa de pós-doutorado findo em 2014 desenvolvido na UFRJ. Este mesmo trecho é aqui apresentado em sua primeira parte onde se mostram questões introdutórias acerca da questão musical em contraponto com a dimensão do pensamento e do sagrado. A música mais especificamente se apresentará na sequência da parte III a ser publicada posteriormente. A influência e a presença do pensamento de Heidegger se mostram no modo em que nossa investigação se direciona, evidenciandose a liberdade interpretativa metodológica nossa maneira de tomar de empréstimo o que o pensador nos relegou. O diálogo com outros autores e com a tradição ocidental da antiguidade (de modo especial a Grécia) é explorada de modo livre, obedecendo ao chamado e a dinâmica da própria investigação. Não há neste texto, bem como nos subsequentes, intenção ou direcionamento analítico, mas sim o propósito da busca pelas questões da música, do sagrado e do pensamento desde elas mesmas. APRESENTAÇÃO O presente texto é parte do relatório de pesquisa de pós-doutorado realizado no programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e entregue em 2014. Aqui, este apresenta-se com algumas poucas modificações. Devido ao seu tamanho o dividimos em partes. Nesta se encontra a primeira parte das considerações introdutórias para seguir ao questionamento pela questão musical (de que constam os subtítulos: Som e Silêncio; Música, Som e Silêncio; e Consagração), que desde tempos imemoriais é um dos caminhos pelos quais o homem corresponde ao real. Torna-se clara ao longo do texto a influência do pensamento de Heidegger e a maneira muito própria deste se lançar ao fenômeno, caminho que abraçamos ao nosso modo, nele, nossa ventura se pauta pelas veredas sem fim do Ocidente, focando-se mais fortemente em alguns aspectos da tradição da Grécia antiga e seus desdobramentos. Nesta esteira é que dizemos que exigindo misteriosamente a insistência da busca, o real (questão primordial) apropria-se do homem e o conduz nos múltiplos caminhos percorridos e a percorrer, conclamando sua ação, que também musicalmente o conduzem para si. Assim o homem colabora para a consolidação de toda uma tradição que se constitui diretriz inequívoca a quem se aventure pelas venturas do caminho, no entanto, esta mesma diretriz não dá-se caminho único já que a tradição não totaliza a possibilidade musical por permanecer esta última em 1 Este texto se encontra publicado segundo a referência que segue: GATTO, E. A. G. MÚSICA: A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO – Parte I. In: Hortelã: formação de professores em filosofia. Organizadores: Felipe G. Pinto et. al. Col. ‘CHÁS PARA FILSOFIA’. Rio de Janeiro: Publit, 2017, pp. 178-190. 2 constante renovação e reafirmação. Paradoxalmente a música congrega dinâmica e permanência nos fazendo perceber que de há muito somos ultrapassados por ela no que somos. Ela é anterior a qualquer existência do homem enquanto individualidade, nos sendo presença de distintos modos desde a história da humanidade como um todo. Compreender essa ultrapassagem é essencial para percorrer os caminhos que se desdobram nos arrastando pela fluida sinuosidade de sua constituição. Pela especificidade da questão e pelo caminho pretendido, as discussões presentes não se dão à objetividade. Por não congregar uma constituição legada ao domínio da exatidão e da estaticidade, encontrando-se originariamente anterior à prescrição, a música não admite ser resolvida e dissolvida pela abstração. Radicalmente inserida no paradoxo, ela é um intrincado complexo sempre misteriosamente posto, fazendo as aproximações embasadas nos caminhos de investigação dominantes no Ocidente se mostrarem ineficazes. Não se pode esperar, portanto, que aqui se revele a referência entre música e silêncio, como realização primordial, por um dito objetivo e muito menos definitivo. As questões que prorrompem exigindo respostas mostram o caminho questionador constituído e instituído na complexidade conjuntural de um mundo. Mais do que respondê-las como se pode compreender usualmente, nossa intenção é a de nos rendermos e sermos por elas tomados nos retendo junto a elas mesmas. Tal posse e retenção não nos revelam impedidos e muito menos presos, mas nos conduzem a uma recolocação que nada tem que ver com espaço. Por isso dizemos que pela música somos tomados e tal posse nos impulsiona a percorrer as vias da poeticidade que se tece. Pela música somos, somos já músico e ouvinte, apropriados de assalto num transe que transita nas vias etéreas de sua concretude em acontecimento. O(S) CAMINHO(S) Nossa investigação se desenvolveu desde a práxis musical (incluindo aqui nossa ativa participação ao longo de 15 anos nos gὄupὁὅ de múὅica de câmaὄa “Múὅica Suὄda” [encerradas nossas atividades neste grupo no ano de 2015] e “Cameὄata de Viὁlõeὅ” nas vias da criação, seja pela composição de obras e arranjos, como também pela construção de diversas interpretações de obras musicais) passando pela busca conceitual no âmbito do pensamento, da arte e do sagrado, todos tentativas de aproximação do que está em questão. Esta práxis aqui apontada se apresenta apenas como parte do caminho sem, no entanto, transparecer ao longo do texto que se dimensiona pela discussão dos campos do conhecimento aqui presentes (pensamento, arte e sagrado) que se consolidam áreas de atuação do humano frente à exigência da questão 3 primordial, e cada qual responde por visões distintas procurando do real recolhê-lo de distintas formas. E aqui procuramos dispô-las fora das cristalizações da especialização exacerbada, marca inequívoca de nosso tempo. A multiperspectivação apontada tende para a questão abordando-a por aspectos diferenciados buscando respostas à complexidade que se impõe. Pensar e fazer música se complementam abrindo o leque para percorrer suas vias. A prática do músico pela criação de composições, arranjos e performances, bem como a escuta, como vivência da dinâmica em foco, nos concedem proximidade e abertura para dispô-la na perspectiva discursiva. Pensamento, arte, e sagrado, como um corresponder ao que chama, são dimensões perpassadas pela música. A prática musical, portanto, dialogando em todas essas dimensões, nelas se encontra também lançada e, assim, pensada. Nosso caminho se mostra em diálogo com diversos autores, e por um caminho metodológico hermenêutico poético, as áreas apresentadas são convidadas a falar desde o mito, da poesia, da filosofia, buscando convidar a que não se mostra por palavras e se apropria da sonoridade de outro modo. Esta multiplicidade já nos é sempre questão e se revela desde há muito, um dos exemplos deste legado é o que nos diz Aristóteles: ὸ ε α πο αχῶ 2 (ὅeὀdὁ uma daὅ tὄaduçõeὅ pὁὅὅíveiὅμ “ὁ ὅeὀdὁ-ser diz-se de múltiplas maneiras3”)έ A paὄtiὄ dὁ dizer múltiplo daquilo que é, a música como complexidade congrega um sem fim de perspectivas. Longe de congregarmos todas, procuramos um aceno por maior amplitude ao encarar a dinâmica complexa que se apresenta. O andamento da pesquisa delineou diversas abordagens buscando fazer colaborar saber e fazer na dinâmica do acontecimento musical. Tal colaboração se mostrou determinante para a condução dos caminhos que se fizeram constantes na procura que se sustém. Isso não revela qualquer domínio de nossa parte para o que se põe aqui, uma dominação não se sustenta ou se posiciona no caminho delineado porque antes dela tomamos parte em uma participação. Como já diz a letὄa da caὀçãὁ “Timὁὀeiὄὁ”, de Heὄmíὀiὁ Bellὁ de Caὄvalhὁμ “σãὁ ὅὁu eu quem me ὀavegaήQuem me ὀavega é ὁ maὄ”έ Seὀdὁ ὀavegadὁὅ pelὁ maὄ que ὅe tece múὅica ὀὁὅ diὅpὁmὁὅ a pὄὁcuὄaὄ eὅὅe meὅmὁ maὄ que ὀὁὅ cὁὀduz, ὅuὅteὀta e aquece cὁm ὅuaὅ “ὄotas incertas4”, ὁὀde incertos nos conduzimos nas vias sonoras que se realizam real musicalmente ao se fazerem já som e silêncio, música e encobrimento, verdade e não verdade. Pela música nos postamos a caminho e por ela somos subtraídos de nós a nos encontrarmos. Achados e perdidos no discurso 2 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro Z. 1028a, linha 10. São Paulo: Edições Loyola, 2005 - 2ª edição, p. 286. Tradução livre do prof. Manuel Antônio de Castro presente nos cursos da Faculdade de Letras da UFRJ. 4 ALVES, A. Musa Absurda. Rio de janeiro: Editora Multifoco, p. 43. 3 4 musical, permanecemos silêncio perante o que se descortina misteriosamente nas águas tecidas sonoramente. Pela incerteza e erraticidade nos lançamos no pulo eterno da música em movimento permanente enquanto concretude fluida, nos concedendo seu brilho que, alvo e translúcido, ao mesmo tempo em que denso e opaco, nos erradica de nós no trânsito que nos condiciona e comove. Comovidos somos musicais e, comovida, a questão primordial se dispõe música no abismo silencioso em que se promove. MÚSICA: A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO As vias da diversidade nos fazem contemplar múltiplas possibilidades de encarar a dinâmica musical. O diálogo com a tradição nos move em direção a uma possibilidade de caminho, sendo que esta mesma tradição nos perfaz concedendo-se paradoxalmente nas raias de um limite que se torna impossível precisar. Uma intrincada rede se tece constituindo-se por todo acontecimento e não acontecimento. Resguardando todas as impossibilidades e possibilidades o real move-se trazendo a infinidade abismal que o vela. Perante tal multiplicidade, dialogar com a tradição nos traz para visões diferenciadas onde se promove o debate constantemente pondo em evidência o entendimento próprio e o da alteridade. Pelo tecido que se enreda, os caminhos se tocam pela dinâmica e permanência. Depararmo-nos com a tradição não nos diz, ao mesmo tempo, de um isentar o confronto com possibilidades novas de constituição do acontecimento musical, pelo contrário. Percebemos que o tecido enquanto dinâmica musical se dá por uma permanente auto-referência que, sincrônica e constantemente, permanece paradoxalmente se constituindo e mudando, mas sempre permanecendo o que é. Assim nos lembramos das palavras de Heráclito no fragmento de número 84: ε α ο ἀ απα ε α 5. Traduzido por Carneiro Leão como: “Tὄaὀὅfὁὄmaὀdὁ-ὅe ὄepὁuὅa”έ Disposta na dinâmica do real a questão musical se traz como um precedente consolidado a cada instante, ininterruptamente trazendo sua condição paradoxal no soar e ressoar do tempo. A profusão do desvelar-se da questão como música torna impossível a objetivação estática na manutenção isolada do todo a fim de uma análise ou intervenção. Como questão ela já está imersa em referências sustentadas na diferença originária onde revelam-se obras, músicos, ouvintes, saber, bem como tudo o que por ela é. Ontologicamente reunidos, todos fluem em concretização própria. De muito nos ultrapassando, aqui da música nos ocupamos, mas em verdade antes ela nos apropria, sustenta, atravessa, nos formando e conformando no que somos 5 ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Texto e tradução: introdução de Emmanuel Carneiro Leão; tradução de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 80-81. 5 enquanto músicos e ouvintes, no culto e consagração do que nos sagra e consagra. A ela rendemos a homenagem e a possibilidade de ser o que somos e, assim, habitarmos o que nos permite o real. Como questão a música nos permite vislumbrá-la a partir de prismas distintos sem jamais consentir compreensão ou totalização. O diálogo e debate com a tradição e com o aqui delineado são a medida - disposta aquém da precisão e correção - para o caminho de nosso projeto. Imensurável abismo se impõe permitindo o que se apresenta e ausenta desde o real. Por ele a questão se impõe abrindo e fechando caminhos de sua própria consolidação, caminhos que não controlamos, ninguém os detém, apenas deles fazemos parte na escrita tecida radicalmente pela música que se institui. Encontramo-nos inevitavelmente em nossa própria condição: a incompletude. Somos e nos encontramos a caminho na procura pelo real e por nós mesmos. Transitando nas vias abismais nos tornamos plenos percebendo nossa incompletude e radicalidade desde as múltiplas e afluentes vertentes, garantia de eterna continuidade, como fecunda profusão de um incessante fluxo sonoro que se concede mistério. Na plenitude de nossa incompletude, transitando a partir do abismo imensurável, nos deparando com o que procuramos e sempre nos escapa, encontramos o alento vivente como condição necessária de nossa presença e sentido. Plenos por nossa incompletude, nossa plenitude dá-se na radicalidade que nos garante a essência: caminhando em um constante fluxo que, resguardando e resguardado por abismo imensurável, concede realidade e realização, somos, estando na disposição de perdermo-nos e assim encontrarmos abrigo. Disposto o fluxo de modo mais evidente, dizemos que musicalmente somos plenos na conjuntura de música pelo que não somos. Não ser nos revela, faz e perfaz, completa e plenifica conduzindo-nos como músicos e ouvintes. Sendo já pelo outro, o somos ao modo da reunião. O que nos reúne ao mesmo tempo nos conduz convocando-nos para que tomemos posse de nós, ou como diz Heidegger, nos conduz para chegarmos onde já estamos6: chegarmos a nós mesmos imersos, dispostos e impostos pelo real. Claro tem de estar que essa chegada não se refere a uma localidade. Não há aqui um fim ou perspectiva prescritiva de determinação, mas a tenaz revolta de insistirmos em nós mesmos pela alteridade que nos conforma. Rolamos e rodamos revoltados como condição movente na dinâmica que nos envolve e nos faz voltar ao que somos pelo que não somos. A tenacidade com que voltamos a nós confere toda plenitude ao lançarmo-nos no abismo caótico que sinuosa, curvilineamente, aflui e reflui como recuo radical, condição esquiva de sua própria manutenção que garante e consente toda musicalidade do que assim acontece. A 6 HEIDEGGER, M. A linguagem. In: A caminho da linguagem. Trad. Márcia de Sá C. Schuback. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 8. 6 condição humana se revela no constante fluir e afluir concedido pelo real e pela vida. Ronaldes de Melo e Souza nos entrega a seguinte passagem a partir de um modo grego de compreensão para vida como questão: Zoé quer dizer o processo fluido, difuso e dramático da vitalidade cósmica, que se nos apresenta na coalescência de sua excessividade como matriz abissal da totalidade do real, como o coração selvagem de todos os seres viventes, a pulsação infinita do puro in fieri, a incessante proliferação da matéria vertente do divino zoogônico, a propulsão transcendente da hierofania do êxtase, que se manifesta continuamente em trânsito para além dos limites impostos pelo princípio de individuação 7. τ dὄama da “vitalidade cóὅmica” aqui pulὅa paὄa além de tὁda iὀdividualidade mὁὅtὄaὀdὁ-se movente e crescente no vigor que garante a continuidade de toda vida. Um vigor garantidor da “pὄὁlifeὄaçãὁ” que irrompe advindo como revelação do entendimento grego da vida desde a robustez de sua constituição, pela dinâmica paradoxal em que estamos mergulhados como condição. “Cὁmὁ matὄiz abiὅὅal da tὁtalidade dὁ ὄeal” a vida ὅe peὄfaz vigὁὄ pulsante que se move já sustentando a radicalidade de mostrar-se sem fundo e, assim, paradoxalmente conceder a emergência do revelar-se próprio do vivo pela vida - abismo infinito e permanente concedendo toda a efemeridade da individuação que emerge presença na conquista de si no brilho fulminante de ser. Pela força que constantemente traz-se em trânsito para além de toda individuação, o homem deve também a sua humanidade. Lançando o vigor incessante enquanto matriz radical de toda vida, a Ζω - não se restringindo a perspectiva humana, posto que de muito a ultrapassa revela o homem como o que dá-se vertente em sua condição. Sendo chamado para si mesmo, verte-se já encontrando-se ao mesmo tempo em que se perde devendo à Ζω , desde a φ ,o que ele é. Pela “pὄὁpulὅãὁ tὄaὀὅceὀdeὀte” cὁmὁ fὁὄça ὄadical em tὄâὀὅitὁ cὁὀὅtaὀte, o homem é concedido individual e essencialmente participando do chamado do real onde, já assim, este último, chamando ao homem como música, chama também a si mesmo poeticamente na dinâmica que institui. Chamando e sendo chamado na correspondência enquanto dinâmica viva que flui, o real como música dá-se na afluência resguardada na simplicidade do abismo imensurável e inenarrável como dinâmica incessante no curso contínuo que prolifera caminhos e descaminhos. Retidos e contidos na delimitação ilimitável de nossa condição chegamos ao trânsito em que somos resguardados onde a música se mostra um fluxo extasiante no consumar de sua transiência8. Para além da efemeridade da morte enquanto fenecimento, o trânsito em que somos lançados e chamados desde a questão musical, dura perdurando na concretude fluídica em 7 SOUZA, Ronaldes de M. O Corpo de Baile da Linguagem da Vida. In: Terceira Margem: revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 191-209, jul.-dez. 2011, p. 191. 8 A respeito de transiência, descontentamento e incompletude do homem, cf.: LEÃO, E. Filosofia como escultura, pintura e música. In: Aprendendo a Pensar. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 40-43. 7 que com ela crescemos chegando a ser quem somos a cada vez, em cada momento. A disposição temporal instaurada pela música clama na convocação de nossa própria construção enquanto homens, músicos e expectadores, extrapolando a delimitação da consciência lançando-nos para fora de toda determinação no paradoxo constante de nossa presença. Já pelo que não somos, somos nós mesmos, nos reunindo pelo chamado que ecoa trazendo a temporalidade de sua instauração na confirmação que sacraliza a eternidade de todo momento em um constante fluir movente, que sinuosamente percorre as curvas dos caminhos inaugurados pela sua presença9. O ecoar ao mesmo tempo silencioso e sonoro da questão musical reverbera na transformação do homem, das obras e do saber, desde a proliferância inesgotável em que nos dispomos pela condição de vida que ω e φ “dramaticamente” nos ofertam, como infinita fecundidade eternamente grávida de poeticidade como possibilidade de realização incessante. No trânsito em que se percebe a questão musical dizemos que esta dá-se já caminho, não um caminho previamente preparado, mas sim paradoxalmente uma construção constante e inaugural que, a cada vez, desafia o homem a permanecer no transe de sua condição. Pelo berço de nossa tradição, os gregos antigos revelavam seu encantamento fascinado por tal manifestação e desvelamento do real desde a sacralidade de seu relacionamento com as Musas (Μο filhas de Ζε eΜ ο ῃ ), , que presidiam as artes. A música se mostrava dizendo-se a Musa, a que fala encantando como presença manifesta, a que fala encantando como canto. Assim revelava-se o poeta, o bardo, o cantor, um cultor das Musas. Estas se mostravam o canto que a eles era inspirado e concedido sem que estivessem nele restritas, mas já o concediam enquanto presença sem com isso serem nele totalizadas ou compreendidas e circundadas 10. Pela experiência grega, anterior à subjetividade e ao sujeito, recebemos o não controle do homem, na perspectiva individual e essencial, para com o acontecimento musical em se presentificando. Ela nos revela que a música e a arte estão para além de nós enquanto falam também em nós. Isso énos reafirmado por Benveniste a respeito da dupla acepção do verbo εὔχο α como orar ou afirmar com jactância no sentido de vangloriar-se. A partir dos exemplos analisados pelo autor em Homero, este nos diz de εὔχο α no sentido de vanglória própria: 9 O paradoxo temporal que aqui se apresenta, depende de uma compreensão de tempo para além das referências com as quais estamos acostumados no que se refere à nossa experiência temporal, hoje cristalizada na pós-modernidade pelos domínios da técnica. Nossa compreensão de tempo nesse aspecto sempre se dinamiza pelo que nos apresenta a ciência, estando este marcado pela duração desde a medida e o controle, a precisão e a determinação. A respeito da discussão temporal fora de tal vigência, cf. HEDEGGER, M. Tempo e ser. Trad. de Ernildo Stein In, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000, p. 249-269. Cf. também: JARDIM, A. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7 letras, 2005, p. 133-135. Sobre quatro modos gregos de experienciar o tempo (aiôn, khronos, kairós e ethos), cfέ D’AMARAL, Mέ Sobre tempo: considerações intempestivas. In: Tempo dos tempos. Organização Marcio Doctors. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 25-27. 10 Cf. KRAUSZ, L. S. As Musas: Poesia e Divindade na Grécia Arcaica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007. 8 Trata-se do mesmo mecanismo de afirmação proferida perante os deuses. Desta vez, os deuses são engajados para que sancionem uma afirmação de existência; como base dessa afirmação, o que se oferece, figuradamente, é o próprio corpo: ‘eu me cὁὀὅagὄὁ aos deuses, enquanto sou filho de Fulano, ou: o mais corajoso’. É dessa consagração metafórica que resulta o valor enfático; eúkhomai continua a ser um veὄbὁ de cὁmpὄὁmetimeὀtὁμ ‘Tὁmὁ cὁmpὄὁmiὅὅὁ de ὅeὄέέέ’, e ὅe pὁde dizeὄ, ‘façὁ voto de ser (o mais corajoso, ou: o filho de Fulano) 11’έ As Musas cantam porque são o canto. Como nos mostra Torrano elas ὅãὁ “ὁ caὀtὁ em ὅeu encanto12”, encantando como canto as Musas mostram e, mostrando, são. Aqui se encontra em questão a originariedade do que, como canto, reúne toda possibilidade de encantamento dos cantos que encantam acontecerem. “O canto em seu encanto” como Musa é a deusa, e jaz fora do homem enquanto manifestação do sagrado que eclode consentindo ao homem, poder dele, canto, tomar parte na correspondência ao que, sagrado, desde o real, manifesta-se. Essa manifestação é exigência do real em assim mostrar-se. O que é sagrado se dá sacralizado como mostrar-se que fala encantando no homem e para além dele, essencial e também individualmente. O grego percebeu do real como φ a fala sagrada do canto enquanto presença de uma referência em que o real consente-se no mistério de sua aparição e imposição. Tal referência está para além, mas também no homem como um reunir que o convoca e conclama a tomar parte de si no verter fluídico e constante da surgência epifânica da poeticidade “proliferante” da ω , da φ , do real. O homem desde a música dispõe-se reunião. Na perspectiva musical enquanto músico e ouvinte ele se faz também pelo que não é. Sendo o que ele é, resguardado músico e ouvinte, já reúne e é reunido pelo que não é como obras e saber, bem como também pelas possibilidades de acontecimento musical que encontram-se na latência de presença ou não na dimensão imensurável de tempo e real, pela abissal condição incessantemente prenhe de perspectivas e possibilidades. A experiência grega é um convite a pensar fora da unilateralidade da subjetividade, porque a fala da Deusa é a fala musical como manifestação misteriosa e dinâmica do sagrado, que reúne conduzindo o homem por vias que ele desconhece, em um trânsito no qual, em transe, ele é convocado a ser quem é. A experiência grega conduz o homem, o trazendo a consagrar o que sagra-se acontecimento e reunião na reverberação de sua manifestação que já retrai-se silêncio. A esse respeito Walteὄ τttὁ também ὀὁὅ dizμ “A Muὅa é a deuὅa da fala veὄídica, ὀὁ 11 BENVENISTE, E. O vocabulário das instituições indo-europeias. Vol. II. Trad. Denise Bottmann, Campinas: Editora da Unicamp: 1995, p. 239-240. 12 TORRANO, J. A. A. O mundo como Função de Musas; in: Teogonia: a origem dos deuses / Hesíodo; estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 21. 9 sentido mais elevado13”έ Tὁda fala da Musa é já disposta à veὄdadeέ τ veὄídicὁ em ὅeu “ὅeὀtidὁ maiὅ elevadὁ” ὀãὁ pὁde ὅeὄ aqui cὁmpὄeeὀdidὁ pelὁ ditὁ latino de véritas. Esta se consagra pela compreensão da verdade por precisão, correção, exatidão e adequação, não nos concedendo a dimensão e reverberação da verdade grega em que as Musas vigoravam paradoxalmente manifestas e retraídas. No Ocidente, precisão e correção são dimensões que se instituem por julgamento arbitrário construído pela eleição um árbitro que, por aparente imparcialidade, percebe todos os lados de determinada questão e, assim, intercede de acordo com as normas e leis que delimitam, determinam e organizam as ações de um determinado povo14. No entanto, sendo já esse alguém um homem e, portanto, dispondo-se por sua finitude e parcialidade, tal julgamento necessariamente se concederá pela insuficiência de sua unilateralidade e condição, da qual ele não pode se furtar. A mudança da visão imparcial da testemunha arbitral, para o juízo de valor que desvela a arbitrariedade como atitude ou estaticidade modelar compartimentada, concedendo-se verdade precisa e correta do que é arbitrado, é já herança metafísica a partir dos desdobramentos do direito e sua aplicabilidade. Apresentada por oposição ao falso na perspectiva da linearidade e do juízo, a verdade, dita por véritas, se manifesta como posição dependente da parcialidade do homem, instituída por norma ou moral. Werner Aguiar nos revela uma interessante passagem acerca do entendimento latino da verdade: A verdade na acepção da veritas latina não é relativa às coisas, nem ao real e muito menos às realizações. (...) é um valor de referência à posição que se ocupa no exercício do poder e (...) no fato da veritas pré-dispor o modo pelo qual se pretende controlar o real. No imperium, as posições são determinadas pela ação que resulta num fallere da parte que é dominada. No pensamento latino, a ação acabada de fallere cὁmὁ “pὄὁvὁcaὄ ὁu levaὄ à queda” é expὄeὅὅa pelὁ ὅeu paὄticípiὁ, a palavὄa falsum. (...) Aquele que cai, isto é, que é dominado, ocupa a posição predeterminada do falsum. (...) e por esta ocupação, a manutenção do comando sobre ela configura o modo de ocupação territorial do imperium. (...) Por isso a justiça é imperial na medida em que segue a lei – ius, iubeu – de tal modo que o iustum ordena e comanda sobre aquele que cai, isto é, sobre o falsum. Desse modo, o falsum se torna erro. (...) O erro é definido, portanto, de antemão, pela lei de quem impera, pelo verum e desse modo o verum não precisa de lei, somente o falsum15. Aliada a territorialidade e o poderio das noções de domínio do imperium por oposição à falência de fallere, temos a perspectiva metafísica no campo da estruturação modelar na sua validade que já se institui norma e normatividade, juntas elas encontram caminhos seguros por onde se desvendar a verdade como estaticidade e exercício de força coercitiva. Temos de levar ainda em consideração, pela influência da estaticidade modelar, a ação das palavras gregas 13 OTTO, W. F. Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 49. Cf. a noção de arbiter na sociedade romana no trabalho de BENVENISTE. Op. cit., p. 121-123. 15 AGUIAR, W. Música e Hermenêutica no Horizonte do Mito. In: A Construção Poética do Real. Org. Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 113-172. Citação - p. 139-140. 14 e 10 οω ; respectivamente: 1) postura de pé, verticalidade; linearidade; firmeza e, posteriormente, pela influência da metafísica como questão e desenvolvimento, retidão, correção16; vindo esta de que fala ainda em geometria dos ângulos retos e das perpendiculares; e, no discurso metafisico, do que é reto, seguro e próspero; e 2) semelhança, o que imita, equivalente, vindo de que diz um, o mesmo, comum, unido; que forma ainda ο ο que diz semelhante, igual, equivalente, vindo da raiz indo europeia *sem- que mostra o sentido de conjunto, consistência, portanto, unidade e identidade17. Subsequentemente a metafísica mostra a perspectiva de οω enquanto representação a partir da abstração da φ no âmbito da semelhança e da equivalência tomando-a por questão da verdade. Ao se unirem todas essas noções com as interpretações posteriores dos pensamentos de Platão e Aristóteles temos a verdade como referencial por um pressuposto modelar concedendose precisão e correção e ainda adequação, oposta ao erro, ao incorreto, impreciso e inadequado que por derrota e falência assume sua condição. Condição esta, relegada e atrelada a si mesma pela dependência do juízo. A linearidade dual em que se sustenta a verdade, assim posta, requer a construção dominante no Ocidente dada pela imposição da essência que, mostrando-se pela técnica, nos dita os caminhos pelos quais nossa cultura se consolida. O império da razão como forma de corresponder ao real, concedendo a este seus ditames, dispõe e disponibiliza este mesmo real desde uma produção e desvelamento próprios, imersos na essência técnica que assola e dispõe do mundo na atualidade. Para tal já nos alerta Heidegger buscando colocar em questão, desde a perspectiva ontológica, a essência da técnica revelada como um modo de desencobrimento próprio que dispõe a tudo pela disponibilidade disponível18. Sendo assim, tanto o homem como o real, se mostram desencobertos como o que está já disponível na sua própria disposição, de modo a prover e promover uma retroalimentação da própria conjuntura que os mostra desencobertos, como construção assim estruturada e organizada. Permanecendo na discussão acerca da verdade enquanto aquela que de nós exige correspondência, nos fala também Heidegger acerca da concepção romana: Imperium diz im-parare, estabelecer, fazer arranjos; prae-cipere, ocupar algo de antemão e, através dessa ocupação, ter o comando sobre isso, e, assim, ter o ocupado como território. Imperium é o mandamento, o comando. A lei romana, ius – iubeu, eu comando – está enraizada no mesmo domínio essencial do imperial, ou seja, do Cf. as obras de referência: LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. – JONES, H. S. A Greek-English Lexicon. New York: Oxford University Press, 1996, p. 1249-1250; CHANTRAINE, Pierre. Dictionaire Étimologique de la Langue Grecque. Histoire des Mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1968, p. 818-819. 17 Cf. as obras de referência: CHANTRAINE. Op. cit., p. 799-800; LIDELL & SCOTT-JONES. Op. cit., p. 1225; POKORNY, Julius. Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. 3 vol. Bern & München: Francke Verlag, 1959, p. 902-903. 18 HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Trad. de Emanuel Carneiro Leão. In: Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p.11-38, cf. especialmente as p. 21-24. 16 11 imperativo e do ser submisso. Comando é o fundamento da essência da dominação; esta a razão porque uma tradução mais clara e mais própria de imperium é “altὁ-cὁmaὀdὁ”έ Ser superior é parte e parcela de dominação. Ser superior somente é possível pela permanência constante na posição mais alta, e isso no modo da permanente superação dos outros. (...) Na essência da constante superação reside (...) a manutenção do controle e a subjugação. (...) O mais forte e inerente traço da dominação essencial consiste em que os dominados não sejam reprimidos ou mesmo desprezados, e sim, o contrário, que eles consigam oferecer seu serviço, no interior do território do comando, para o asseguramento permanente da dominação. O levar à ruína é determinado pelo escopo de que os que caem permaneçam de certo modo de pé, mas não por cima. O levar à ruína imperial, o fallere, é, portanto, o enganar que deixa de pé, é o driblar19. Dominar e comandar ambos percebidos como o dispor, na dominação, do serviço daquele que cai de pé em posição subserviente, é o caminho por onde revela-se a técnica que hoje domina o Ocidente. Caminho pelo qual o que nos dispõe pela técnica domina dispondo-nos a servir na serventia da disposição e disponibilidade. A tradução da palavra grega para a experiência romana não se deu fora de consequências. Toda tradução, por si, é uma dinâmica ingrata sustentada a partir das diferenças radicais entre culturas, ou melhor, entre modos distintos de corresponder ao real e instituir e constituir formas de durar e perdurar demorando no que o real nos oferece. Acerca da verdade, Heidegger nos diz que “τ deciὅivὁ é que a latiὀização ocorre como uma transformação da essência da verdade e do ser20 no interior do domínio da história greco-romana21”έ A decorrência histórica desse acontecimento essencial é o que nos indica atualmente nossa experiência da verdade, onde vivemos a herança desse feito de modo a, com ele, colaborarmos na consolidação do Ocidente, este que a cada vez se distancia do saber mítico, paradoxal e ironicamente afirma-se como o mito da técnica e da ciência. Nele não falam mais as Musas e o mito desde o sagrado. O real se desencobre como a verdade do rigor, da exatidão, que a tudo descortina trazendo a prova, o provável e a comprovação pela irrupção do método como gerador e potencializador de real subvertido já nas concepções que se formam dele, real, em tais visões. Não mais vigora o mistério, ou ainda, se vigora em tais visões, se dá reduzido ao desconhecido que, no império de nossa época, necessariamente se dispõe na dinâmica da previsibilidade de um descortinamento. A mítica ocidental tomada pela verdade da disposição e disponibilidade é transpassada pelo caminho unívoco da lógica. A construção que se autogere e gerencia se confere num contínuo e constante refluir na maquinação incessante da presença desencoberta já pela mística da dominação desenfreada, que prescreve delineando metas e se mostrando por suportes cada vez mais aprimorados e precisos. Suportes que anestesiam na sinestesia, que nos fazem extasiar perdidos nos próprios caminhos pelos quais nos 19 HEIDEGGER, M. Parmênides. Trad. de Mario S. Wrublevsky. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2008, p. 72. 20 Grifo do autor. 21 HEIDEGGER. Idem, p. 69. 12 direcionam a sensibilidade consciencial de um mundo que emerge ludibriado pela afluência radical dos olhares e audições, do gosto e do tato. Um mundo construído e sustentado na repetida e incessante necessidade de criar novos atrativos como condição de existência e permanência, uma construção que embebe nos encantos de suas conquistas como um fármaco dos sentidos e das expectativas criadas sobre seu próprio caminho. Conquistas que fazem suplantar e relegar tudo ao domínio do ultrapassado, porque já necessita da ultrapassagem para permanecer comandando e dominando. Uma ultrapassagem da qual descende a pressa na qual a concorrência que se multiplica em dominar sempre novos espaços - concedendo novidades mais rápidas, mais potentes, mais precisas, mais eficientes, mais visuais, mais sinestésicas, mais anestesiantes e inebriantes, na onda fluídica criada por ela mesmo para se autogerir e permanecer - faz com que nos mostremos presença sustentados pelo inebriante encantamento de seus encantos e dissimulações, que já nos assaltam desde a virtualidade como dissimulações travestidas na perversão transgressora da realidade e do real, fazendo com que um real se mostre já revestido pelos dribles da simulação que reina. Outra atuação destinada ao homem, neste cenário, se presencia na dramatização da verdade que predispõe determinadamente o juízo. Assumindo seu papel o homem julga. O julgar se mostra instituição de limites pela configuração que assume uma posição e uma postura. Tal posição permitindo a irrupção da sujeição que impõe, julga pela parcialidade de uma forma de mostrar-se preconizada pela assunção da verdade, mas paradoxalmente, ao mesmo tempo, ela já o é determinada por essa mesma verdade por ela assumida previamente. Não há dúvidas de que o homem sempre esteve na disposição de tomar medidas perante a diferença, e todo tomar medidas já se dispõe por escolhas que delineiam caminhos sustentados pela exclusão de outros, mas aqui e agora, o julgamento assume uma conotação mais intensa, sendo entendida esta intensidade pela via da redução e determinação coercitiva e prescritiva. Pelo escopo do juízo, a verdade mostra uma dinâmica unívoca entre ganhar e perder. Ganhos e perdas que se perfazem no movimento de constituição do que é, porque mostram a dualidade como único caminho delineador do que se institui agora real, passando este último a valer por uma construção de modo. Tal construção, como resposta à questão da verdade, é decisiva para nos conduzir pelos caminhos retos que hoje vivenciamos, uma retidão que consegue inegavelmente maravilhas técnicas e tecnológicas, sempre funcionando a serviço da própria manutenção do domínio e do comando na exclusividade de sua posição. Esse juízo ao mesmo tempo dissimula a condição humana, fazendo-nos acreditar na falácia de nosso pretenso domínio acerca das coisas, da verdade e do real. Mostrando-se a verdade pela senda do juízo, nos aprofundamos na construção da engrenagem técnica sem 13 percebermos por onde ela se encaminha e a partir de onde ela pode ser o que é. Afundamo-nos imersos e dispersos, pois que nos dispersamos de nós essencialmente. Nessa dispersão nos aprofundamos na dissimulação do real e de nós mesmos enquanto uma maneira de o próprio real se revelar - entendendo, pois, que a atual conjuntura é já uma permissão do real que vigora apenas como construção perspectivística dele mesmo. Afastados do real e de nós, nos lançamos na dissimulação do tempo e da presença, no falatório falacioso forjado pela opinião atuante enquanto catarse das problemáticas mundanas, um escape inventivamente criado a fim de conduzir e administrar as facetas humanas sustentada no controle das perdas e ganhos. Afastados de nós, somos ceifados diretamente na liberdade que nos destina o real onde, por conseguinte, habitamos as dissimulações e simulações de mundo, assumindo este último como configuração de verdade por tais modos de mostrar-se. CONSIDERAÇÕES FINAIS DE SEGUIMENTO Aqui apenas apontamos na direção do que vem a seguir que, por questões formais, faz um término parcial aqui interpor-se entre o que advém. Segue para o próximo texto, ainda nesta parte introdutória da discussão - após a demora pela dimensão da verdade como hoje se nos apresenta - a busca por uma aproximação desta mesma questão partindo da experiência dos gregos antigos, tomando ainda em consonância as questões da memória e do esquecimento, desde o mito e a poesia.